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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
ALEX DONIZETE VASCONCELOS
A MINUSTAH E A ALTERIDADE:
REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES HAITIANAS NOS DISCURSOS DA ONU
E DA FOLHA DE SÃO PAULO
(2004-2010)
GOIÂNIA
2010
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ALEX DONIZETE VASCONCELOS
A MINUSTAH E A ALTERIDADE:
REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES HAITIANAS NOS DISCURSOS DA ONU
E DA FOLHA DE SÃO PAULO
(2004-2010)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
História do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Goiás, para obtenção do
título de Mestre.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e
Culturas de Migração.
Orientador: Drª. Libertad Borges Bittencourt.
GOIÂNIA
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação na (CIP)
GPT/BC/UFG
Vasconcelos, Alex Donizete.
A MINUSTAH e a alteridade : representações e
identidades haitianas nos discursos da ONU e da Folha de
São Paulo - (2004-2010) [manuscrito] / Alex Donizete
Vasconcelos. - 2010.
189 f. : Il., figs, tabs.
Orientadora: Prof. Dra. Libertad Borges Bittencourt.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Goiás,
Faculdade de História, 2010.
Bibliografia.
Inclui lista de abreviaturas, siglas e tabelas.
1. Haiti - Intervenção. 2. Revolução haitiana (1791).
3. Haiti - Independência. 4. Identidades . I. Título.
CDU:323.272(729.4)
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ALEX DONIZETE VASCONCELOS
A MINUSTAH E A ALTERIDADE:
REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES HAITIANAS NOS DISCURSOS DA ONU
E DA FOLHA DE SÃO PAULO
(2004-2010)
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História da Universidade
Federal de Goiás, para a obtenção do grau de Mestre, aprovada em ____/____ /2010,
pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
________________________________________
Profª. Drª. Libertad Borges Bittencourt - UFG
Presidente da Banca
________________________________________
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes UFU
Membro
________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Martins de Araújo - UFG
Membro
________________________________________
Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho - UFG
Suplente
5
Para alguém que nunca desistiu: mãe.
6
AGRADECIMENTOS
Não desejando ser injusto com todos aqueles que contribuíram direta ou
indiretamente para que este trabalho pudesse ser concretizado, agradeço a amizade e a
atenção dispensada por cada um dos meus familiares, professores, amigos e colegas
que, através de gestos simples e sutis, tal como uma palavra de incentivo, a disposição
em ouvir, em opinar e, acima de tudo pelo afetuoso desejo de que tivéssemos sucesso
em nossa empreitada, fizeram parte desta conquista.
Um agradecimento especial, e justo, aos meus pais, Adolfo e Deny, que apesar
de todas as adversidades e agruras de uma vida que em princípio parecia não nos
reservar muita coisa, acreditaram que era possível sonhar. Sua sabedoria, perspicácia e
devotamento nos trouxeram até aqui. A vocês uma justa homenagem. Mãe, obrigado
por nunca ter desistido.
À minha maestra querida, Profª. Drª. Libertad Borges Bittencourt, que durante a
feitura deste venceu, com uma força irradiante e que lhe é peculiar, uma das maiores
batalhas de sua vida, sem, em nenhum momento, estar ausente ou deixar que estas
contingências interferissem em nossos propósitos - tão pequenos frente ao que lhe
ocorria. Tenha a certeza de que sua força e presença de espírito foram determinantes
para que lográssemos mais essa conquista. Minha eterna admiração, carinho e respeito.
À minha companheira de todas as horas, Andréia, sempre tão solícita, exultante
e compreensiva. Suas palavras, sempre oportunas e carregadas de afeto, fizeram menos
duras as longas jornadas que consumiram, não raro, muitos momentos de lazer e
intimidade. Esteja certa de que estarás sempre comigo.
Ao meu filho, Bruno, que talvez seja o verdadeiro motivo de tudo isso. Talvez
ainda lhe falte o entendimento, neste momento, para compreender „os porquês‟ de
algumas de nossas empreitadas. Carrego comigo a certeza de que fui bastante
afortunado em tê-lo; és grande, serás incomparavelmente melhor que os seus. Tua hora
há de chegar.
Cleude, sou-lhe grato por poder contar com sua sincera amizade. És um dos
sobreviventes de um tempo que deixou saudades, mas também profundas cicatrizes.
Não tens idéia do teu papel nessa batalha.
7
Lima, Liene e as três princesas, orgulho-me de tê-los como verdadeiros amigos.
Sei o quanto isso significa para vocês.
Cris. Ultrapassastes em muito o papel que lhe cabia. Fostes mais que uma
professora. Fostes amiga. Fostes sincera. Meu carinho e admiração.
Mayarinha e Bento Rildo, amigos de caminhada, espero poder me juntar a vocês
em breve, admiráveis mestres.
Aos professores - os quais não nomeio para não correr o risco de ser displicente
e injusto -, companheiros e amigos da UFG, essa grandiosa instituição, à qual devo a
doce liberdade que apenas o saber pode propiciar, minhas humildes reverências. Neuza,
muito obrigado pela atenção e alegria com que sempre nos recebestes. Em especial aos
Professores Alexandre e Eugênio, que tão gentilmente se dispuseram a participar deste
último ato.
Aos amigos que a profissão e o destino colocaram em nossa vida: Subinho,
Vania, Sérgio, Álvaro, PS, Maxwell, Alessandra, Prieto, Ghisi, Welter, Mauro,
Eickhoff, André, Marcos, Torres, Martins, Alves, Bruno, Paulo, Douglas, Tunes e
tantos outros, que antecipadamente me desculpo por minha limitada capacidade de
elencá-los. Muita Força!
E por último, ao distinto povo haitiano que, muito embora sua infeliz sorte, pode
se orgulhar de seu passado e de sua história. Um dia hão de compreendê-los. A história
há de absolvê-los.
8
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
mora, entre feras, sente inevitável
necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
apedreja essa mão vil que te afaga,
escarra nessa boca que te beija!”.
Augusto dos Anjos
9
RESUMO
A conquista do „Novo Mundo‟, que tem início em fins do culo XV, não deixa
dúvidas quanto aos seus propósitos. Inaugura-se aí, neste choque entre a civilização e a
barbárie, um dos capítulos mais trágicos da história. A colonização, bizarro espetáculo,
que não conheceu precedentes, inicia-se a partir da pequena ilha de Hispaniola, que ao
final do século XVIII é apresentada ao mundo como a Pérola das Antilhas, uma das, se
não a, mais próspera colônia da metrópole francesa. O Haiti, país de negros, do vodu e
da revolução, insurge na história como o país da subversão da ordem, do caos e do
terror negro, uma mácula na história da civilização. A ruptura entre colônia e metrópole,
materializada pela Revolução haitiana de 1791, torna-se um divisor de águas, um
capítulo à parte na história das Américas. Os desdobramentos dessa, que foi a única
revolução levada a cabo por escravos capaz de subverter a ordem e promover a
independência de um país, ainda hoje são visíveis, e lamentáveis. O país de Tousaint de
L‟Ouverture, seria duramente castigado pela sua insolência. O Haiti passa praticamente
todo o século XIX em um ostracismo político e econômico para, no século XX, ser
palco de sucessivas intervenções e da ingerência de países com os quais se vira
tragicamente comprometido: França e E.U.A. no final do século XX, início do XXI,
as intervenções, agora legitimadas por organismos internacionais como a ONU e a
OEA, tornam-se, efetivamente, parte do cenário haitiano. É a partir dessas intervenções,
principalmente da última, representada pela MINUSTAH, que procuramos refletir sobre
o Haiti neste trabalho. Valendo-nos da documentação produzida pela ONU e pela Folha
de São Paulo, buscaremos desvelar como as representações e as identidades haitianas
são forjadas, através de um discurso que é, antes de tudo, um elemento de alteridade.
Palavras-chave: Haiti; MINUSTAH; Identidades; Representações; Discurso; Alteridade.
10
ABSTRACT
The conquest of the “New World” that had begun around late fifteenth century
left no doubts regarding its purposes. At that point, in a clash between civilization and
barbarism there had been started one of the most tragic chapters of history.
Colonization, a bizarre spectacle, which had no precedents, started from the little island
of Hispaniola, which at the end of the eighteenth century was introduced to the world as
the Pearl of the Antilles, it was one of, if not the most, prosperous colonies of the
French metropolis. Haiti, a country of black people, of voodoo, and of revolution,
emerges in history as the country of order subversion, of chaos and black terror, a stain
on the civilization history. The rupture between colony and its metropolis, raised by the
Haitian Revolution in 1791, became a watershed, an apart chapter in the Americas
history. The outcomes of this, which was the only revolution carried out by slaves and
that was able to overturn the order and to bring the independency of a country, are still
visible today, however regretful. Toussaint L´Ouverture´s country would be harshly
punished for its insolence. Haiti remained almost the whole nineteenth century in a
political and economic ostracism for, in the twentieth century become the stage of
successive interventions and the interference of countries which it has been tragically
committed: France and USA. In the late of twentieth century and beginning of twenty
first century, those interventions now legitimated by international organizations, such as
UN, and OAS, become, effectively, part of the Haitian scenario. It is from those
interventions, namely the last, which is represented by MINUSTAH, that we think Haiti
in this paper. Making use of the documentation the UN and Folha de São Paulo
produced and through a discourse that is, above all, an element of otherness, we will
seek to reveal how the Haitian representation and identity are forged.
Keywords: Haiti, MINUSTAH, Identities, Representations, Discourse, Otherness.
11
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
BRABATT
- Batalhão Brasileiro
CARICOM
- Comunidade do Caribe
CD
- Convergência Democrática
CEP
- Conselho Eleitoral Provisório
CS
- Conselho de Segurança
CSNU
- Conselho de Segurança das Nações Unidas
DDR
- Desarme, Desmobilização e Reintegração
FAd‟H
- Forças Armadas do Haiti
FMP
- Força Multinacional Provisória
FL
- Fanmi Lavalas
GSI
- Gabinete de Segurança Institucional
MICAH
- Missão de Apoio Internacional Civil no Haiti
MICIVIH
- Missão das Nações Unidas no Haiti
MINUSTAH
- Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
MIPONUH
- Missão de Polícia Civil das Nações Unidas no Haiti
OEA
- Organização dos Estados Americanos
ONGs
- Organizações Não-Governamentais
ONU
- Organização das Nações Unidas
OPL
- Organização dos Povos em Luta
PNH
- Polícia Nacional do Haiti
ROE
- Rules of Engagement (Regras de Engajamento)
SOFA
- Solidariedade pelas Mulheres Haitianas
UN
- United Nations (Nações Unidas)
UNMIH
- Missão das Nações Unidas no Haiti
12
UNSMIH
- Missão de Apoio das Nações Unidas no Haiti
UNTMIH
- Missão das Nações Unidas de Transição no Haiti
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................
14
PARTE 1
HAITI: DISCURSOS, REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DE
UMA HISTÓRIA AINDA PRESENTE ..........................................................
27
1.1
O discurso ............................................................................................................
27
1.2
Identidades e representações ...............................................................................
34
1.3
Hispaniola: o limiar da civilização americana.....................................................
43
1.4
Conquista e colonização da Pérola das Antilhas .................................................
44
1.5
Da Revolução à dependência ..............................................................................
49
PARTE 2
DA ‘ERA ARISTIDE’ À MINUSTAH: ESPERANÇA E DESILUSÃO .....
62
2.1
A „Era Aristide‟: tout moun se moun ..................................................................
62
2.2
MINUSTAH: ultima ratio Regis .........................................................................
85
PARTE 3
A MINUSTAH SOB A LENTE DA FOLHA DE SÃO PAULO: O
DISCURSO MIDIÁTICO CONFORMANDO O ‘OUTRO’ ........................
107
3.1
A topografia urbana de Porto Príncipe: arquétipo do caos ..................................
107
3.2
O povo haitiano: a denegação do Outro ..............................................................
115
3.3
MINUSTAH: intervenção solidária ou imperialismo? .......................................
125
3.4
12 de janeiro de 2010: o que o sismo não pôde apagar .......................................
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................
165
REFERÊNCIAS ................................................................................................
177
TABELA DE REFERÊNCIAS DE DOCUMENTOS DA ONU ...................
189
14
INTRODUÇÃO
O Haiti, seu povo, história e costumes são pensados quase
sempre sob os estigmas barbarizantes da Revolução Negra, do Vodu e de sua intrincada
política, que se desenrola de Jean-Jaques Dessalines, no início do século XIX, a Jean-
Claude Duvalier, (1971-1986), constituindo estes os marcos referenciais e
representativos que orientam aqueles que se debruçam sobre esse tema. Sobressai,
portanto, a representação barbaresca de um país e de um povo que foi e continua sendo,
antes de tudo, o emblema do insucesso de um nefasto “processo civilizatório” que nas
Américas se arrasta, caoticamente, mais de cinco séculos. Acreditamos que o Haiti
não é fruto de um tipo de barbárie atávica. É antes, um desdobramento desse processo
civilizador, um fruto carcomido pelo avanço desenfreado do capitalismo, pela
intolerância religiosa e cultural e pelo oportunismo de uma elite entreguista.
Esses marcos referenciais, que permeiam a sociedade
haitiana, acabam por constituir, de certa maneira, um corpo estruturante a partir do qual
é possível pensar a mesma sob as mais diferentes perspectivas. Ocorre que, quase
sempre, estes aspectos são abordados tomando-se por base determinados vieses que
acabam lhes conferindo uma conotação negativa, prevalecendo assim, nas
representações textuais e imagéticas acerca das problemáticas haitianas, um arquétipo
muito próximo ao real maravilhoso, ao fantástico ou, no extremo oposto, uma
representação caótica, nos limiares do abjeto, do bárbaro. Essas construções acabam
explicitando um discurso que se caracteriza por uma determinada memória discusiva, o
que, por outro lado, acaba evidenciando também o distanciamento e a resistência do
povo haitiano, renegado pelas próprias elites, aos modelos ocidentais de aculturação, ou,
se quisermos, de civilização. Como afirma Scaramal, (2006:7), “Os argumentos anti-
haitianistas disseminaram-se a partir da revolução dos escravos e da luta pela
independência do país, representando a abjeção ao haitiano uma espécie de continuidade
dessas proposições.”
Nosso interesse pela temática haitiana surgiu em 2006,
quando, ao desenvolvermos o trabalho de conclusão de curso de graduação em história,
cujo título era: Sarmiento e Bilbao: da barbárie à utopia - Conformação das identidades
sul-americanas no século XIX, começamos a perceber, pelos relatos de alguns amigos
15
que haviam estado recentemente no Haiti, como componentes da MINUSTAH, (sigla
derivada do francês: Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti), que
muito daquilo que estava presente nas obras que analisávamos para a elaboração
daquele trabalho, de alguma maneira, podia ser observado nos discursos reservados ao
Estado haitiano e a seu povo. Essa constatação inicial estava diretamente ligada a
possibilidade de se pensar a existência do que poderíamos chamar de um continuum
discursivo, alicerçado sobre uma base racista e colonialista, que no caso haitiano se
desenvolve principalmente a partir da revolução escrava, que se inicia em 1791, e que,
perduraria, em parte, até os dias de hoje. O desenvolvimento e a perpetuação de
determinados argumentos utilizados para justificar essa abjeção poderiam fazer parte,
portanto, de um amplo conjunto de discursos que buscavam representar o latino-
americano, e no nosso caso específico o haitiano, de maneira geral, como inferior ou
incapaz.
Naquela oportunidade buscávamos discutir as influências
que algumas obras, de determinados pensadores latino-americanos, mais precisamente
Domingo Faustino Sarmiento
1
e Francisco Bilbao Barquin
2
, tiveram na conformação
das identidades latino-americanas no século XIX. Valendo-nos de conceitos que
também estão presentes neste trabalho identidade, performatividade e citacionalidade
-, começamos a perceber, por meio de nossas pesquisas, que as obras analisadas -
Facundo, Civilização e Barbárie (1845) e Conflicto y armonias de las razas en América
(1883) de Domingo Faustino Sarmiento e La América en Peligro (1862) e El Evangelio
Americano (1864) de Francisco Bilbao Barquin -, longe de constituirem um hiato do
pensamento do século XIX, estavam, isto sim, inseridas dentro de um aparato discursivo
1
Domingo Faustino Sarmiento nasceu em San Juan, Agentina, em 15 de fevereiro de 1811. A vida social
e política de Sarmiento se confundem e não são poucas as controvérsias em que o mesmo se envolve, seja
no jogo político ou ainda em seus esforços intelectuais, nas suas obras. Em 1845 Sarmiento sai do
anonimato quando, exilado no Chile, publica, em forma de folhetim, a sua mais conhecida obra: Facundo
- Civilização e Barbárie, que se constituía, num primeiro momento, em uma arma político-ideológica
contra seu arquiinimigo, Juan Manuel de Rosas, mas que marcaria, para sempre, o pensamento latino-
americano.
2
Francisco Bilbao Barquín nasceu em Santiago, no Chile, em 09 de janeiro de 1823. A sua vida política e
social não foi menos intensa que a de Sarmiento, um pouco menos glamurosa talvez, mas com certeza
mais engajada, mais combativa, mais fiel aos princípios ideológicos e liberais pelos quais sempre lutou.
Bilbao começa a ganhar projeção, por força das circunstâncias, no mesmo período que Sarmiento. Em
1844, contando apenas 21 anos, ele publica, no diário El Crepúsculo, aquela que seria a sua primeira
obra, Sociabilidad Chilena, na qual faz uma profunda análise e crítica da conservadora e tradicional
sociedade chilena, momento em que lança faz um ataque à constituição de 1833 e à Igreja Católica,
criticando também a sociedade institucional como um todo.
16
mais amplo que, em que pese algumas singularidades, próprias de cada período, possuia
uma mesma estruturação e plantava suas raízes nos primórdios do processo de conquista
e colonização das Américas
3
.
O trecho abaixo, retirado de nosso primeiro trabalho,
Vasconcelos, (2007:9), ilustra quais eram as nossas inquietações naquele momento,
como o problema estava sendo colocado e também nos permite corroborar a
proximidade das proposições
Dentre todas as discussões que se desenvolveriam a partir do fatídico
12 de outubro de 1492, uma delas sempre se destacaria, talvez por sua
centralidade, por estar direta ou indiretamente ligada às mudanças
mais profundas que seriam operadas a partir de então, que
procurariam, grosso modo, de maneira sempre diversa, indicar o papel
e o lugar desse novo sujeito que entrava em cena, do „Outro‟, de sua
natureza, de sua constituição enquanto ser, de suas possibilidades e
limitações, do seu passado e seu futuro, enfim. Essa discussão, bem
como inúmeras outras que tiveram suas origens, serão levantadas e
debatidas principalmente nos meios acadêmicos e religiosos, de forma
pretensamente isenta ou ainda com claras motivações políticas,
econômicas e sociais. Os germes daquilo que se transformaria, no
século XVIII e XIX, nas elaboradas teorias raciais, defendidas com
unhas e dentes por alguns grupos de políticos e intelectuais,
repercutindo nos dois lados do Atlântico e que muitas seqüelas
deixariam, foram muito prematuramente inoculados nos corações e
mentes dos „conquistadores‟, repassados e reelaborados de geração em
geração, cumprindo sempre e bem o papel que lhes coube quando
foram engendradas.
3
A idéia dessa continuidade deveu-se, dentre outras coisas, à observação de que, muito embora o
considerável distanciamento espaço-temporal de alguns pensadores, europeus e americanos - dentre os
quais Las Casas, Buffon, De Pauw e Sarmiento -, havia, em seus escritos, um traço comum, qual seja: a
construção de um discurso que apresentava/representava o homem do Novo Mundo, o latino-americano,
ora como o bom selvagem, ora como um incapaz, em outros momentos com um ser inferior ou
degenerado e, porque não, como um bárbaro. As origens desse aparato discursivo podem ser buscadas a
partir da chegada de Colombo às Américas. Para Dussel, (1993), “Colombo não descobriu a América,
num sentido estrito ontológico [...], uma vez que ao partir de Andaluzia, seu propósito era chegar à Índia e
o mesmo [...] morre em 1506 com a clara consciência de ter descoberto o caminho para a Ásia.”.
(DUSSEL, 1993, p. 31). A América, bem como o homem americano, partindo dessa análise, foram
primeiramente uma invenção: [...] desejamos indicar por “invenção” a experiência existencial colombiana
de dar um “ser asiático” às ilhas encontradas em sua rota para a Índia [...] o Outro, o “índio” não foi
descoberto como Outro, e só re-conhecido (negado então como Outro): “em-coberto” (DUSSEL, 1993, p.
32). O descobrimento, ainda segundo DUSSEL, dar-se-ia posteriormente à „invenção‟, por obra de
Américo Vespúcio, [...] trata-se do começo da tomada de consciência de ter „descoberto‟ um Mundo
Novo, que seria a América do Sul [...] (DUSSEL, 1993:34). Esses discursos acabam tomando corpo e
suscitando acalorados debates, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, atingindo o seu
ápice no século seguinte, e perdurando, como acreditamos, até os dias de hoje, ainda que veladamente.
17
Começávamos a perceber que, muito embora a distância
temporal e a singularidade do caso haitiano, este parecia ser herdeiro deste discurso que,
se outrora fora dirigido principalmente aos índios e mestiços, passou, em determinado
momento, e talvez por força de sua insolência e da humilhação perpetrada aos
colonizadores, a fazer parte das representações haitianas, figurando na literatura, não
raro, como o país do caos, habitado por negros incapazes de se governarem a si
mesmos”, Pierre-Charles, (1990:183). Algo bastante próximo, porém, do que podia ser
observado anteriormente. O Haiti surgia em nossos horizontes como a materialização de
um discurso que nascera com a colonização e que ali se apresentava em sua forma mais
crua e brutal.
Sobre o Haiti não pesava apenas o poder do discurso, uma
vez que sua luta, singular, que se inicia em meados do século XVIII, não cessa,
tornando-se ainda mais dramática, sobretudo a partir do século XX, quando este passa a
ser palco de ininterruptas intervenções. Em dado momento começamos a pensar que
procurar entender o sentido dessas intervenções, sobremaneira aquelas que se localizam
temporalmente após o ano de 1915, quando os marines norte-americanos desembarcam
no Haiti para efetivar um avassalamento político que perdura até os dias atuais, com
trágicos efeitos em distintas instâncias sociais, poderia ser um dos primeiros e
importantes passos que deveríamos dar para nos situarmos diante do nosso tema. Não
obstante as tropas norte-americanas terem se retirado em 1934, esta primeira invasão
constitui um marco a partir do qual o Estado haitiano permanecerá, quase sempre, sob
os desígnios geoestratégicos estadunidenses. Os efeitos dessa incursão perduram e
desdobram-se, ainda hoje, mesmo que indiretamente, no desolador quadro sócio-
político e econômico haitiano, que se vincula, também, às fracassadas missões da ONU,
presentes no Haiti.
A análise desses períodos de ingerência, fundamentada
sobre o aporte teórico que de certa maneira dominávamos, poderia contribuir para
pensar o Haiti contemporâneo. Na medida em que representavam momentos de inflexão
de seu continuo histórico, essas intervenções, caracterizadas principalmente pela
desestruturação sócio-política e econômica do Estado ocupado - no nosso caso o Haiti -,
poderiam oferecer uma excelente oportunidade de corroborar, ou não, através da farta
documentação produzida, não pela ONU, mas também pelos meios de comunicação
18
de massa, as permanências que nos permitiriam identificar aquele continuum discursivo
a que nos referimos anteriormente. Havia, além disso, o fato de estarmos
acompanhando, cotidianamente, por meio de relatos e depoimentos, os desdobramentos
da última destas intervenções, o que nos dava a certeza de que poderíamos buscar os
aportes para corroborar nossas hipóteses.
Decidido o caminho, buscamos problematizar a última
dessas intervenções, caracterizada pela criação da FMP (Força Multinacional
Provisória), após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide, e da MINUSTAH
4
,
(sigla derivada do francês: Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti)
pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU) no ano de 2004, momento em que, mais
uma vez, as instituições haitianas, caracterizadas sobretudo pelo clientelismo de suas
elites político-econômicas, mostraram-se incapacitadas para superar a violência e a
miséria generalizada que, contraditoriamente, era, em grande parte, fruto de embargos e
intervenções levadas a cabo anteriormente por estes que agora se arvoravam em
redentores do povo haitiano.
Nossas principais inquietações estão inscritas em um rol
de questões que são permanentemente traspassadas por discussões nas quais os
conceitos de identidade e representação são centrais, sendo buscados nos diferentes
discursos que, juntos, muito embora dissonantes, dão corpo a esse trabalho. As vozes
dos diferentes atores dessa trama são problematizadas por meio de um farto corpus
documental que abarca o período compreendido entre o primeiro semestre de 2004,
momento em que a MINUSTAH assume oficialmente suas atividades, substituindo a
Força Multinacional Provisória (FMP)
5
, até o período imediatamente posterior ao
fatídico 12 de janeiro de 2010, quando o Haiti, após um período de relativa
tranquilidade, volta a ser manchete nos principais jornais do mundo em função dos
desdobramentos do terremoto que se abateu sobre a parte ocidental da ilha, sendo
considerado pela imprensa como a „pior catástrofe das Américas‟.
Nosso recorte, que inicialmente contemplaria o período
compreendido entre o primeiro semestre de 2004 e o final do primeiro semestre de
4
Em sua resolução 1542 (2004), de 30 de abril de 2004, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu a
Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) por um período inicial de seis meses,
com a intenção de prorrogá-la, e pediu que a autoridade da Força Multinacional Provisória (FMP) fosse
passada a MINUSTAH, em 1° de junho de 2004.
5
1º de junho de 2004.
19
2009, ou seja, os primeiros cinco anos do estabelecimento da MINUSTAH, foi
ampliado por causa do sismo ocorrido no dia 12 de janeiro de 2010. Este evento, dadas
as suas proporções e a conseqüente repercussão, tanto interna, quanto externamente,
tornar-se-á, sem sombra de dúvidas, um divisor de águas para a história haitiana,
podendo sinalizar um novo recomeço para o povo haitiano ou, no extremo oposto, o seu
ocaso. Por força deste acontecimento, pela forma como o mesmo repercutiu nos meios
de comunicação de massa, dando ensejo ao ressurgimento de um discurso ainda mais
contundente, no qual a abjeção ao haitiano é explicitada de maneira inequívoca, fomos
obrigados a estender, para o final do primeiro trimestre de 2010, o espaço temporal
abarcado pelo nosso recorte.
Metodologicamente, lançaremos mão da sistemática
utilizada na Análise do Discurso, uma vez que buscamos reforçar e evidenciar os
argumentos que permitam corroborar as nossas hipóteses. Tal ferramenta metodológica
torna-se indispensável no intento de perceber, nas entrelinhas dos documentos, no não-
dito, o sentido e o local de inscrição dos discursos, o reverberar das diferentes vozes,
suas permanências e influências.
É nosso propósito demonstrar como essas construções
continuam se reportando a uma memória discursiva permeada por paradigmas que
sempre orientaram os construtos das representações e identidades haitianas, buscando
colocá-los como vítimas de si mesmos e reféns de sua própria história, como outrora os
discursos colonialistas fizeram. Nessa perspectiva, buscaremos inicialmente uma
aproximação com o ambiente de atuação dos diferentes atores para, em um segundo
momento, tentar perceber a maneira como o outro, no caso o haitiano, é representado.
Nosso trabalho será desenvolvido a partir da
documentação produzida sobre a MINUSTAH. Utilizar-nos-emos de duas fontes
principais, que, de certa maneira, nos possibilitarão estruturar todo o nosso trabalho,
quais sejam:
1) Uma extensa documentação produzida pela ONU,
dentre a qual podemos destacar cerca de dezesseis volumes em forma de informes
(relatórios) do Secretário-Geral da ONU sobre a MINUSTAH, do período
compreendido entre 2004-2009; quatro relatórios de Adama Dieng, compreendendo o
período de 1999-2001, quatro de Louis Joinet, do período de 2002-2006, e um de
20
Michel Forst em 2009, ambos especialistas independentes, contratados pela ONU para
avaliar a situação do Haiti, além de cerca de trinta resoluções do período de 1993-2009.
2) Matérias e reportagens veiculadas pela Folha de São
Paulo, no período de maio de 2004 a março de 2010. São mais de trezentas matérias,
entre artigos, reportagens e entrevistas, muitas das quais realizadas in loco, e que
abordam o tema - a criação, o estabelecimento e a manutenção da MINUSTAH -, com
publicações de artigos e reportagens não de seu quadro de pessoal, mas também de
autoridades políticas, especialistas e militantes políticos e de ONGs, cujas perspectivas
vão do apoio ao rechaço à Missão, o que, por conseguinte, traz à cena, as representações
do povo e do Estado haitiano em suas mais variadas formas. O período pós-terremoto,
alvo de maciça cobertura da imprensa, também é abordado, constituindo a última parte
do trabalho, recoberta de importância, uma vez que a crise traz à tona algumas
perspectivas que de outra maneira permaneceriam encobertas.
Utilizando-nos da análise do discurso como instrumento
teórico-metodológico, principalmente na segunda parte do trabalho, pretendemos pensar
a produção das representações e as identidades haitianas com base nessas produções; o
propósito é explicitar, tanto quanto possível, como uma determinada representação,
interdiscursiva e performaticamente construída, acaba (re)-reproduzindo um discurso
que tem suas raízes na longa duração.
O trabalho está estruturado em três momentos,
constituídos por 11 subtópicos. O primeiro momento - 1 Haiti: discursos,
representações e identidades de uma história ainda presente -, está dividido em 5
subtópicos. Nos dois primeiros - 1.1 O discurso, 1.2 Identidades e representações -,
explicitaremos as bases teórico-metodológicas sobre as quais o trabalho estará assentado
e que, por conseguinte, balizarão nosso percurso. Nos três subtópicos seguintes - 1.3
Hispaniola: o limiar da civilização americana, 1.4 Conquista e colonização da Pérola
das Antilhas e 1.5 Da Revolução à dependência -, buscamos fazer uma apresentação
inicial do Haiti, abordando aspectos que julgamos relevantes no que diz respeito à sua
geografia, história, política, economia e cultura, tentando identificar, ao mesmo tempo,
na conjunção destes fatores, as origens dos motes que orientam a construção desse
modelo discursivo.
21
No segundo momento - 2 Da „Era Aristide‟ à
„MINUSTAH‟: esperança e desilusão -, composto por dois subtópicos: 2.1 A Era
Aristide: tout moun se moun
6
e 2.2 MINUSTAH: ultima ratio Regis
7
- fazendo uso
da documentação produzida pela MINUSTAH, citada anteriormente, de relatórios
produzidos por ONGs e da literatura produzida por autores independentes que se
ocupam dessa temática -, buscaremos primeiramente, tentar entender os caminhos que
levam o Haiti a esta última intervenção, apresentando os principais atores e o seu papel
no estabelecimento da MINUSTAH, para, logo em seguida, problematizarmos a
intervenção propriamente dita, buscando compreender, por meio da farta documentação
arrolada, o seu sentido, sua natureza e o seu papel no reforço ou, ainda, na negação de
determinados estigmas que pesam sobre o Haiti.
No terceiro momento 3 A MINUSTAH sob a lente da
Folha de São Paulo O discurso midiático conformando o „Outro‟ será constiuído por
quatro subitens - 3.1 A topografia urbana de Porto Príncipe: arquétipo do caos; 3.2 - O
povo haitiano: a realização do Outro e 3.3 MINUSTAH: intervenção solidária ou
imperialismo? e 3.4 12 de janeiro de 2010: o que o sismo não pôde apagar -,
procederemos à análise do material produzido pela Folha de São Paulo. Esse corpus
documental é formado por um conjunto de matérias (reportagens e artigos) veiculadas
pela Folha de São Paulo (Folha SP) no período de maio de 2005 a março de 2010,
acerca da MINUSTAH e da problemática haitiana contemporânea, diretamente
relacionada com a queda, ou deposição de Aristide, abordada no tópico anterior. Neste
material está incluído, também, um conjunto de reportagens e artigos produzidos no
pós-terremoto que, publicados num momento de inflexão da história haitiana, vão
diretamente ao encontro de nossa proposta, corroborando-a.
Buscaremos evidenciar as aproximações e os
distanciamentos entre esses dois discursos acerca de determinados temas, tentando
problematizar, inicialmente - 3.1 A topografia urbana de Porto Príncipe: arquétipo do
6
Parte do título de uma obra autobiográfica lançada por Jean-Bertrand Aristide em parceria com
Chistophe Wargny em 1992, quando de seu exílio em Washington, D. C.. Todo Homem é um Homem /
Todas as pessoas são humanas, (Tout Moun se Moun), era uma espécie de chavão utilizado por Aristide
em sua retórica inclusiva que visava superar os abismos sociais que fazem parte do cenário haitiano. O
livro foi lançado no Brasil em 1995, pela editora Paz e Terra.
7
Ultima ratio Locução latina, traduzida por última razão, exprimindo o argumento decisivo, ou a razão
irreprimível. Frederico, o Grande, adotou a locução ultima ratio Regis, como divisa, mandando que fosse
gravada em seus canhões. Por outro lado, o cardeal Rechelieu fez dela a máxima ultima ratio regum, em
alusão igualmente, aos canhões. [O último recurso dos reis]. (SILVA, 2008:1441)
22
caos -, o estranhamento, recorrente, resultante do contato desse outro com a topografia
8
haitiana, em especial de Porto Príncipe, que sintetiza, no discurso, “todas as mazelas”
daquele país.
O povo haitiano surge em meio aos acidentes desta
topografia tornando-se parte dela, como destacaremos no subtópico 3.2 - O povo
haitiano: a realização do Outro. Nos diferentes discursos, em que prevalece, não raro, o
caos e a violência, o haitiano é representado como um pária, a partir do qual o „outro‟
surge como contraponto, como ideal. As representações resultantes desse contato
tendem a reforçar a sua negação, ampliando a diferença, buscando descrever aquele
povo, via de regra, como incapaz, através de tipos sociais abjetos, como pérfidos
assassinos, ladrões, aleijados, etc, ou como vítimas passivas e indefesas. Essas
representações são extremamente significativas na medida em que permitem, em
contrapartida, que o Outro, o não-haitiano, se realize enquanto sujeito ideal,
normalizador, imagem que, segundo Woodward, (2009:50), “[...] pode ser construída
negativamente por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são
definidas como „outros‟ [...]”, no nosso caso, o haitiano.
No subtópico - 3.3 MINUSTAH: intervenção solidária
ou imperialismo? -, faremos uma breve discussão sobre as diferentes perspectivas
erigidas acerca da MINUSTAH, com base nas fontes anteriormente descritas. Como o
próprio tulo demonstra, trataremos de um tema que foi e continua sendo bastante
discutido, não no Haiti, como também pela imprensa internacional, incluída a
imprensa brasileira. Veremos como estas questões são apresentadas e discutidas nos
meios de comunicação, como foram tratadas no Brasil. Carregada de ambiguidades, a
MINUSTAH é apresentada ora como um instrumento de dominação imperialista - leia-
se: norte-americana -, ora como uma oportunidade para o Brasil alcançar assento
permanente no CSNU; outras vezes, até, como laboratório para as forças armadas
brasileiras, mas, antes de tudo, como uma última oportunidade para que o povo haitiano
possa ser alçado à cidadania.
No último tópico - 3.4 12 de janeiro de 2010: o que o
sismo não pôde apagar -, analisaremos apenas os artigos, reportagens e entrevistas
8
Utilizamos o termo topografia para nos referirmos a estética do espaço urbano haitiano em seus mais
variados aspectos, uma composição que reúne acidentes naturais e artificiais, incluído o elemento
humano, que costuma impressionar aqueles que tomam contato com essa realidade.
23
veiculados pela Folha de São Paulo após a ocorrência do sismo que abalou o Haiti no
dia 12 de janeiro de 2010. Veremos, tendo como base esta documentação, como o Haiti
volta a ser notícia nos meios de comunicação, devido à crise que se instala com a
destruição causada pelo terremoto, e o direcionamento dado as notícias que,
acreditamos, corroboram o que tentamos demonstrar ao longo do trabalho.
A escolha da Folha de São Paulo, sobretudo para esta
última parte do trabalho, ocorreu em razão de três aspectos principais: 1) por ser o jornal
de maior tiragem e circulação do país, atingindo uma considerável parcela da população
que faz uso desse meio de comunicação (impresso ou digital) para se manter informada,
o que nos faz pensar que, em alguma medida, esta fonte possa respresentar, com
ressalvas, a visão que se constrói sobre o Haiti no âmbito interno
9
; 2) por ter sido uma
das grandes mídias nacionais que mais atenção deu ao objeto de nosso estudo,
veiculando, no período supracitado (05/04 03/10), em torno de 300 matérias, direta ou
indiretamente relacionadas à MINUSTAH; 3) pela disponibilidade das matérias e
facilidade de acesso, visto que todo o material apresentado neste capítulo, referente às
matérias veiculadas, encontram-se disponíveis, para assinantes, no sitio da Folha SP.
A divisão de nosso trabalho em subitens, longe de torná-lo
estanque, objetiva estabelecer um permanente diálogo entre os três momentos, buscando
evidenciar aqueles aspectos que nos permitirão esboçar os termos em que tanto o Haiti,
num sentido lato, como as estruturas e sujeitos que a ele se ligam, por força da
intervenção, podem ser pensadas. Procederemos à análise de nossas fontes tentando
apreender, não somente a partir do que se diz, mas também pelo que não é dito, pelos
silêncios e omissões, a imagem que sobressai das matérias com relação ao Haiti, à
MINUSTAH e aos contingentes brasileiros, institucionalmente representados pelo
Batalhão Brasileiro.
Visando a fazer uma aproximação histórica e a
conseqüente apresentação do nosso objeto, faremos uma exposição inicial dividida em
dois longos períodos, cindidos justamente pela Revolução, que se torna, a partir de
então um divisor de águas não da história haitiana, mas também e em certa medida
9
Segundo dados auditados pelo Instituto Verificador de Circulação, (IVC), suas tiragens giram em torno
de 343.281 exemplares aos domingos e 290.276 nos dias úteis, com uma média de 297.848 exemplares de
segunda a domingo; é importante salientar que esses números se referem apenas à mídia impressa, o
considerando aqueles que, como nós, se utilizam de meios eletrônicos internet -, para ter acesso às
informações;
24
da latino-americana. Num primeiro momento nos ocuparemos das pelejas
compreendidas entre a chegada dos espanhóis ao que se tornaria Hispaniola,
posteriormente o Haiti, e o início das lides pela independência, ou seja, um período que
se inicia em fins do século XV e que se estende até a última década do século XVIII.
Findo esse primeiro esforço, iniciaremos um movimento que parte da Revolução
Haitiana, iniciada em 1791, culminando com a independência haitiana em 1804, e
avança até a fuga de Jean-Claude Duvalier do Haiti, em 1986. Cabe enfatizar que, por se
tratar de uma aproximação inicial, não nos aprofundaremos mais que o necessário
nessas questões preliminares, visto não constituírem o enfoque de nosso trabalho.
Um último ponto que que ser destacado - uma daquelas
inúmeras dificuldades que apontamos no início -, e que está relacionado com o alcance
e as possibilidades de nossas fontes, bem como com a nossa própria capacidade de
estabelecer certo distanciamento em relação às mesmas, diz respeito ao fato de estarmos
lidando com uma história que, antes de tudo, desenvolve-se pari passu a nosso
cotidiano. Somos atores e expectadores dessa história que se desenrola no exato
momento em que estabelecemos esse corte que, como observamos no início reportando-
nos a Certeau (2002), é representado pela inversão escriturária.
É a história do tempo presente ou história imediata, uma
história cuja poeira levantada pelos rastros dos sujeitos históricos - ou por eventos como
o sismo que varreu o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010 -, ainda encontra-se suspensa
turvando, por vezes, a visão daqueles que como nós se arriscam a seguir demasiado de
perto esses passos. Segundo Barros, apud Silva (2006:257), “falta hábito para que os
historiadores possam analisar o presente como historiadores.”
quem diga que certo distanciamento deve ser buscado;
que a história se legitima, em parte, por causa desse hiato que mantemos com relação ao
passado. Houve um tempo em que esse distanciamento garantia e legitimava o estatuto
do historiador, qualificando-o enquanto tal, e estabelecendo uma diferenciação tanto dos
historiadores ditos amadores, como daqueles profissionais que se ocupavam da história
recente, como jornalistas, editores, cronistas, dentre outros.
Nunca é demais lembrar que toda história, qualquer que
seja ela, tem suas raízes no presente, constituindo-se, em alguma medida, uma história
do presente. É no presente que estão as inquietações que fazem com que voltemos
25
nossos olhares para o passado. É daqui que problematizamos, que buscamos as
justificativas e a fundamentação teórico-metodológica que permitirá construir uma
história dita do passado, se é que é possível assim denominá-la. No mundo hodierno,
com o advento da comunicação de massa e o desenvolvimento tecnológico, no qual o
fluxo de informações cresce exponencialmente, tanto em volume quanto em velocidade,
é quase impossível manter esse afastamento para que determinados fatos históricos
possam ser „curtidos‟ pela ação do tempo para, aí sim, merecerem nossa atenção.
O nosso recorte temporal, muito embora atravessado por
uma memória discursiva que insiste em trazer a tona um passado inscrito na longa
duração, compreende o período entre 2004 e 2010, com uma breve digressão que vai até
a segunda metade da década de 1986, que visa, antes de tudo, estabelecer uma
aproximação com o nosso objeto principal, a MINUSTAH. Dentro desta perspectiva,
poderíamos estar inseridos no que pode ser chamado de história imediata, que seria,
segundo Silva (2006: 267), aquela história dos “historiadores do momento em que
vivem”. Silva (2006:271), resume bem a problemática de se trabalhar com essa história
ao afirmar que:
Escrever um trabalho situado no presente não significa isolar seus
objetos de estudo num espaço de tempo determinado, nem abordar
apenas o instante, o presente imediato. É justamente a possibilidade de
lidar com o instante e ao mesmo tempo inscrever o trabalho na
duração que o legitima como histórico, e aí não diferenças tão
substanciais assim de outros trabalhos situados em outros tempos. [...]
é justamente o excesso que se constitui um problema difícil para o
historiador do tempo presente. [...] mais ainda que a variedade é a
quantidade de informações que se impõe: [...] a pesquisa do presente
precisa recorrer também a constantes imobilizações do complexo que
observa. [...] sempre alguma reportagem ou estudo que você ainda
não leu porque saiu poucos meses, ou algo que está acontecendo e
que você não vai poder acompanhar...
Na elaboração do presente trabalho enfrentamos cada uma
dessas dificuldades. Talvez a maior prova disso tenha sido o sismo que praticamente
varreu o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010 e que fez com que, obrigatoriamente,
tivéssemos que repensar determinadas questões de nosso trabalho, mas que, por outro
lado, nos deu a certeza de que caminhávamos na direção certa. A história do presente
desenvolve-se num ritmo tal que às vezes é impossível acompanhar; daí a necessidade
26
de se delimitar de maneira precisa o objeto e o enfoque dado ao trabalho, sob o risco de,
negligenciando esses aspectos, sermos tragados pela torrente de informações e de
perspectivas que se abrem acerca do assunto.
O afastamento necessário ao historiador talvez resida mais
na inflexão ou na ruptura representada pela mudança do que no deslocamento temporal
que, ao mesmo tempo que permite, teoricamente, uma visão e uma análise menos
comprometida pelo calor dos acontecimentos e pretensamente mais isenta, também
silencia determinadas vozes que não resistem à frieza dos jazigos onde o cotidiano
repousa para, ao fim de um tempo, ou de uma era, ressuscitar como fato histórico.
Colocadas essas questões, vejamos como essas inflexões
marcam, ao menos no nível historiográfico, o fim de uma era e a sua inclusão nesse
seleto rol. Apresentaremos aquilo que acreditamos ser o meio de cultura onde os germes
da MINUSTAH se desenvolveram. Trata-se de uma primeira aproximação com nosso
objeto e arcabouço metodológico; momento em que apresentaremos ao leitor os termos
que balizarão nosso percurso.
27
PARTE 1
HAITI: DISCURSOS, REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DE UMA
HISTÓRIA AINDA PRESENTE
1.1 O discurso
Os discursos têm existência em um campo
de conflitos, no qual as diferenças sociais,
caracterizadas pelas diferentes posições de
sujeito, dos grupos sociais que ocupam
territórios antagônicos, coexistem.
(FERNANDES, 2007:19)
Inúmeras são as dificuldades que se interpõem nos
diferentes momentos da elaboração de um trabalho cujas pretensões, alicerçadas sobre
determinada prática historiográfica, devem obrigatoriamente extrapolar o campo das
especulações e aproximar-se, tanto quanto possível, de uma “representação adequada da
verdade” Chartier, (2009:24). A inversão escriturária, como se referiu Certeau (2002),
longe de determinar um fim, apenas sinaliza um breve hiato, o momento em que a
prática social se consubstancia em discurso, que, sob a ilusão de uma plenitude de
sentidos e significados, preenche, ainda que momentaneamente, as lacunas que de outra
maneira permaneceriam vazias ou incompletas.
Como afirma Certeau (2002:94), “a inversão da ordem, o
encerramento do texto, a substituição de um trabalho de lacuna por uma presença de
sentido pode medir a „servidão‟ que o discurso impõe à pesquisa”. É esse o sentido
que pretendemos aplicar ao trabalho que desenvolvemos, analisando discursos que,
perpassados por um viés performático, são capazes, não de informar, mas de
conformar determinada realidade.
10
É o discurso impondo-se como condição
10
Essa idéia de conformação, conceito ainda carente de elaboração mais adequada, pode ser aqui
sintetizada como a capacidade que tem o discurso de estruturar determinado meio histórico-social, por
meio de um corpus discursivo, textual ou imagético, engendrado sob o endosso de determinados agentes,
que podem ser sujeitos e/ou instituições que detém, por força das relações de poder que se estabelecem
em determinado tempo/meio, a prerrogativa de nomear e classificar.
28
estruturante, constrangendo os sujeitos históricos e produzindo determinados fenômenos
que, com o passar do tempo, em razão de sua incessante capacidade de se repetir,
adquirem um estatuto de verdade, que se estabelece e se torna, por vezes, imune a
qualquer tentativa de desconstrução.
O discurso, objeto de nossas análises, é revelador quando
se pretende pensar uma realidade historicamente constituída e perpassada pelo poder da
palavra, na qual o real é conformado pelo simbólico. Na América Latina, num sentido
lato, e no Haiti, estrito, não como negar o poder e a influência que os diferentes
discursos, históricos, institucionais, jornalísticos, literários, etc, tiveram, e ainda tem,
sobre o meio sócio-político-econômico e cultural. Esse discurso, colonizador sobretudo,
opera não somente sobre as estruturas sociais, internas e constitutivas, mas, e
principalmente, sobre o Outro, constituindo, pelo seu poder intrínseco, o que
poderíamos denominar como um estranhamento com relação ao latino-americano e/ou
ainda, no nosso caso, sobre o povo haitiano, que padece em meio a miséria absoluta, sob
o olhar inquiridor da comunidade internacional.
É esse estranhamento que nos aproximou dessa temática,
fazendo com que buscássemos problematizar como essas construções discursivas e
identitárias se estabelecem e se perpetuam como verdades cristalizadas e incontestes.
Pensar como determinadas representações foram sendo introjetadas no imaginário
coletivo, por meio da utilização desses aparatos discursivos e da gestão da memória que
tem como marco referencial o trauma da Revolução Haitiana, e se mantém incólume, é
parte de nossa proposta. O objetivo é perscrutar os caminhos pelos quais se
estabelecem as identidades hegemônicas, que normalizando estabelecem um corte, a
partir do qual o outro surge sob o conceito da diferença, ou pior, torna-se invisível.
A análise do discurso se constitui no instrumento
metodológico que utilizamos, buscando desvelar as condições de produção, bem como o
sentido dos discursos que dizem respeito à temática haitiana. Gregolin (2007:11), afirma
que “A analise do discurso é um campo de pesquisa cujo objetivo é compreender a
produção social de sentidos, realizada por sujeitos históricos, por meio da materialidade
das linguagens.” Isso posto, podemos afirmar que nossa opção pela análise de discurso
justifica-se não pela natureza de nossas fontes, mas também pelo sentido de nossa
proposta, que busca perceber nos diferentes discursos institucionais (ONU, Folha de
29
São Paulo) o marco a partir do qual as representações e as identidades haitianas,
midiaticamente conformadas, acabam consolidando o estranhamento e a diferença, que
pesam sobre o povo haitiano. Essa busca pelos sentidos dos discursos que perpassam as
representações e as identidades haitianas justifica nossa opção por trabalhar com essa
metodologia. Segundo Santos (2007:109)
O trabalho acadêmico com o discurso não pode existir sem que se
aborde a natureza de significação dos sentidos. Da mesma maneira,
essas significações não poderiam se instaurar, não fosse a ação dos
sujeitos na constituição dos processos enunciativos. Enfim, é na
interação sujeitos-sentidos que emergem as manifestações discursivas
e suas circunscrições socioideológicas.
Nossa perspectiva toma o discurso como objeto, buscando
perquiri-lo, principalmente a partir de sua exterioridade, de sua materialidade histórico-
social, pois, segundo Fernandes (2005:20), o discurso sugere “uma exterioridade à
língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente
lingüística”, o que possibilita entender, mediante a compreensão de suas condições de
produção, como determinadas representações, base para a construção das identidades,
tornam-se monumentos monolíticos, aparentemente indiferentes à ação do tempo, do
devir histórico.
Um exemplo dessa monumentalização, e que está
diretamente ligada à história haitiana, pode ser buscado na Revolução haitiana ou
Revolução Negra. As representações construídas acerca desse acontecimento histórico e
que pesam sobre o povo haitiano, são singulares na medida em que trazem
intrinsecamente a contradição. Dificilmente haverá uma passagem acerca da história
daquele país que não faça alusão, ainda que indiretamente, à emblemática revolução.
Sobressai, nessas representações, uma perspectiva invariavelmente estigmatizante, na
qual o haitiano surge ora maculado por uma cólera e uma ira aparentemente ou seria
discursivamente? - injustificada e sem precedentes para com o colonizador francês, ora
por uma decadência que é a todo tempo reforçada pelo contraste com as conquistas de
outrora, do Haiti de Toussaint L‟Overture, com o Haiti que hoje se encontra sob
supervisão das tropas da ONU.
30
Adotamos a análise do discurso de linha francesa,
caracterizada principalmente pela sua ligação direta, mas independente, com três
grandes correntes teóricas, quais sejam: o estruturalismo, o marxismo e o freudismo,
tornando-se assim tributária de três áreas do conhecimento, cuja amplitude reforça seu
caráter interdisciplinar e amplia, por conseguinte, o escopo de sua utilização. Com
relação a esse aspecto Orlandi (2007:20), afirma que:
se a Análise do Discurso é herdeira das três regiões do conhecimento
Psicanálise, Lingüística, Marxismo não o é de modo servil e
trabalha uma noção a de discurso que não se reduz ao objeto da
Lingüística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco
corresponde ao que teoriza a Psicanálise. Interroga a Lingüística pela
historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo
perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo
como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como
materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele.
Essa linha francesa desenvolve-se a partir dos anos 1960,
fomentada principalmente pelas contribuições de Pêcheux e Foucault que, extrapolando
os limites de cada uma destas disciplinas, buscam, na sua articulação e na tensão daí
advinda, a sua base teórico-metodológica. Essa tensão, segundo Gregolin (2006:193),
provém da inter-relação “entre uma teoria da língua (Saussure), uma teoria da história
(Marx), uma teoria do sujeito (Freud) que vai caracterizar-se a partir de releituras feitas
por Althusser, Lacan, Pêcheux, Foucault.
A partir dessa aproximação e dessa complementaridade, a
linguagem, inscrita nessa perspectiva, é revestida de sentido apenas quando inscrita na
história, ou seja, o discurso, objeto dessa análise, não se esgota na sua interpretação, vai
além, extrapola, busca o seu sentido nas suas condições de produção, no circuito da
cultura. Em síntese, como indica Fernandes (2007:13), o estudo do discurso de linha
francesa volta-se:
para os aspectos históricos e ideológicos no funcionamento e
formação dos discursos, e perpassa, também, pela História, sempre
considerando o discurso como prática social que resulta de
transformações sócio-histórico-ideológicas, ao mesmo tempo em que
as provoca.
31
O sujeito, nesta perspectiva, surge como determinante na
produção do sentido, uma vez que este é produzido a partir da relação desse sujeito com
a história e com a ideologia. Essa ideologia, de acordo com Orlandi (2007:46),
configura-se como “a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O
indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer.” O sujeito
se apresenta como um agente histórico, psicológico e lingüístico, inscrito em um
determinado espaço-tempo, constituindo-se como elemento chave na produção de
sentidos; sendo assim, tal qual o discurso, constituído na interação com o outro, na
unidade e dispersão dos discursos e dos acontecimentos.
11
O discurso, tal qual a identidade, é caracterizado, também,
pela incompletude, pela recorrente construção. intervém o histórico e o simbólico,
ameaçando constantemente os sentidos produzidos, abrindo espaço para a formação de
discursos outros, de sujeitos outros. O discurso é espaço de estabilidade, na medida em
que sempre algo que se mantém, mas é, talvez com maior justeza, um espaço de
deslocamento e ruptura, no qual a diferença é mais presente do que a permanência. O
discurso é constituído não pela presença, mas também pela ausência, pelo
esquecimento, pelo não-dito, pelo que se apresenta nas entrelinhas, nas margens, no
silêncio que inquieta.
A análise do discurso, numa perspectiva pragmática,
poderia ser descrita como um processo que começa pelo próprio estabelecimento de
um corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta (do ponto de vista)
que o organiza.” (ORLANDI, 2007:64). A pergunta a partir da qual o corpus é
organizado, evidencia, antes de tudo, o lugar discursivo do analista, ou seja, expõe a
filiação sócio-ideológica deste que, longe de ser neutro está, também ele, elaborando um
discurso e organizando um ambiente representativo datado e localizado no interior da
sua perspectiva enunciativa. “Trata-se de uma representação específica do plano
enunciativo em que o analista se coloca. Essa representação, por sua vez, evidencia uma
11
Essa inscrição espaço-temporal possibilita que um determinado discurso possa ser apreendido pelo
analista. É a partir desta localização, que também é ideológica, uma vez que é também o local em que o
sujeito está inscrito, que podemos definir a pertinência, ou não, de determinado discurso. Esse „espaço‟ é
denominado formação discursiva, ou FD, e é caracterizado também pelo fato de ser traspassado por uma
infinidade de outros discursos, que re-surgem pela ação de uma memória discursiva, ou daquilo que, com
relação ao discurso, se caracterizou como interdiscurso, ou seja, “aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente.” (ORLANDI, 2007:31).
32
captação da imagem do um no enquadre do outro e vice-versa.” (SANTOS,
2007:110).
12
Essa tensão não implica necessariamente ruptura ou
mudança. Há, por vezes, certa imobilidade do sentido e dos sujeitos, que permanecem
vinculados a uma materialidade que não é a sua, mas com a qual não conseguem
romper. No caso haitiano, como enfatizado, tem-se a impressão de que os discursos
permanecem ligados a uma lógica revolucionária, cujos estigmas são sempre elencados,
reforçando as idéias de barbárie, de violência, de caos e de incapacidade inata. Esses
discursos, longe de indicarem mudança e ruptura perpetuam e estabilizam determinadas
idéias, colocando o povo haitiano sempre a margem, numa não-condição, como
expectador que aguarda para adentrar ao mundo civilizado. Orlandi (2007:54), destaca
que:
Pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do
simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição,
ele pode ser um deslocamento nessa rede. Entretanto, há também
injunções a estabilização, bloqueando o movimento significante.
Nesse caso, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de
fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já
estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera.
Estaciona, só repete.
Esse alijamento a que é submetido o haitiano, política e
culturalmente, é parte de um processo mais amplo que, grosso modo, pode ser
observado não apenas na história e na historiografia de grande parte dos países latino-
americanos, mas também reiteradamente através dos discursos midiáticos, sejam eles
escritos, falados ou imagéticos. Sem dúvida, com o Haiti, em face de uma peleja
singular e ameaçadora, evidenciada numa interdiscursividade quase imanente, esse
processo foi - e continua sendo - mais acentuado. Essa memória discursiva, ratificada
12
É a partir dessa interação social, entre o um e o outro e dos conflitos daí advindos, em função da tensão
que se estabelece, em grande parte pelo distanciamento das posições ideológicas assumidas, que as
mudanças e as diferentes formações sociais e discursivas tornam-se possíveis. Esta tensão, estabelecida
nas condições descritas, parece carregar consigo os germes da ruptura e da mudança, mesmo que nem
sempre isso aconteça. Na história haitiana, e em grande parte da história latino-americana, a tensão que se
estabelece nessa inter-ação está circunscrita por um poderoso aparato discursivo, colonizador, cujas
origens podem ser buscadas na longa duração, ocupando hegemonicamente todos os espaços de
interlocução.
33
cotidianamente através dos mais diversos vetores, acaba por fortalecer, graças a sua
amplitude e grande capacidade de penetração, os estreitos vínculos entre as práticas
discursivas e a produção das identidades.
As produções midiáticas caracterizam-se principalmente
por sua capacidade de produção de sentidos e subjetividades, buscando através da
aproximação dos campos da história, da memória e do discurso, a coesão necessária
para que determinado enunciado produza a representação que dele se espera. Gregolin
(2007:15), afirma que
Os efeitos de sentido materializam-se nos textos que circulam em uma
sociedade. Como o interdiscurso não é transparente nem, muito
menos, o sujeito é a origem dos sentidos, ninguém consegue enxergar
a totalidade significativa nem compreender todos os percursos de
sentido produzidos socialmente. A coerência visível em cada discurso
particular é efeito da construção discursiva: o sujeito pode interpretar
apenas alguns dos fios que se destacam das teias de sentidos que
invadem o campo do real social.
nos estudos dos discursos midiáticos, segundo
Gregolin (2007), uma aproximação com a análise do discurso, uma vez que ambos têm
como objeto as produções sociais de sentido. A mídia, cuja influência na perspectiva
das Forças de Paz é notória, surge em nosso enfoque como um agente que não apenas
informa, até mesmo porque tamanha neutralidade não pode sequer ser imaginada.
Partimos do princípio de que a mídia conforma na medida em que informa. Não
isenção no ato de informar; as informações são produzidas. Assim sendo, os sentidos,
bem como os objetivos estão postos, antes mesmo que o discurso se materialize. Trata-
se, portanto de pensar a mídia enquanto espaço onde são engendradas, mediante práticas
discursivas, as representações que dão suporte às identidades. Gregolin (2007:16),
afirma:
O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma
construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de
representação da sua relação com a realidade concreta.
Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo
discursivo por meio do qual é construída uma história do presente
como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É
ela, em grande medida, que formata [conforma] a historicidade que
34
nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que
nos liga ao passado e ao presente.
Esses são, em suma, alguns apontamentos teórico-
metodológicos acerca da análise do discurso de que nos serviremos ao longo do nosso
trabalho e que permitirão evidenciar, principalmente na segunda e terceira parte, o
estranhamento existente nas construções textuais e imagéticas que dão suporte à
determinadas identidades e representações muito recorrentes no caso haitiano. Vejamos
como estas se apresentam.
1.2 Identidades e representações
Os sistemas simbólicos fornecem novas
formas de se dar sentido à experiência das
divisões e desigualdades sociais e aos meios
pelos quais alguns são excluídos e
estigmatizados. (WOODWARD, 2009:18)
Para pensar o Haiti sob a perspectiva das identidades e das
representações, procuramos abordar a questão partindo do pressuposto de que tanto as
identidades como a diferença são produtos socioculturais. Segundo Silva (2010:89): “a
identidade é um significado cultural e socialmente atribuído, [sendo que] a identidade
e a diferença estão estreitamente associadas a sistemas de representação.” É a partir da
análise dessas formações discursivas, que buscaremos compreender como e por que
meios as identidades e as representações acerca do Haiti podem ser pensadas numa
relação direta com o discurso, ou seja, pensar as representações e as identidades
haitianas a partir dos diferentes discursos que constituem nossas fontes. uma
proximidade entre a processualidade desses discursos e a conformação dessas
identidades e é desta perspectiva que pretendemos pensar essa relação. Segundo Silva
(2009:96):
a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção,
uma relação, um ato performativo. A identidade é instável,
contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está
ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a
35
sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com
relações de poder.
Essa identidade é pensada a partir da diferença, do
estranhamento sempre presente, lugar da memória discursiva, do interdiscurso. As
identidades haitianas, sempre próximas ao bárbaro e ao abjeto, foram
performaticamente construídas e conformadas, daí a importância e a presença constante
dessas estruturas discursivas e narrativas, determinando o sentido dessas produções. O
trabalho com nossas fontes nos permitiu evidenciar o quão presente esses discursos -
ligados a um passado que é ao mesmo tempo glorioso e abjeto -, se fazem quando a
problemática identitária haitiana in-surge como tema principal.
13
Um dos pontos sensíveis nas discussões acerca das
identidades e que também acabam produzindo estigmas recorrentes, reside no fato de se
buscar “determinada identidade”, ou seja, o fato desta questão ser considerada como
algo estático, fixo, engessado. Identidade, na perspectiva que adotamos, “está sempre
„em processo‟, sempre „sendo formada‟ [...] Assim, ao invés de falarmos da identidade
como algo concluído, deveríamos falar de identificação e vê-la como um processo em
andamento”, permeada pelo interdiscurso, pelas diferentes historicidades. (HALL,
2006:38-39). Corroborando essa idéia Woodward (2000:12), afirma que:
As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando
constantemente em processo de mudança e transformação [...] É
precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações
e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas.
Nas construções discursivas presentes nessa literatura-
documental, da qual nos servimos, explicita-se, de maneira recorrente, uma indiferença
13
No tocante aos processos de conformação das identidades, enfatizamos que é ponto pacífico acerca
destas questões que as mesmas tendem a se intensificar nos momentos de tensão, ruptura, inflexão e de
crise. Hall (2006:9), citando Mercer, afirma que “A identidade somente se torna uma questão quando está
em crise, quando algo supostamente fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e
incerteza”. Dessa maneira, poderíamos pressupor que a importância de que as questões identitárias se
revestem no Haiti, se configuram por um permanente estado de crise que acomete aquele país.
36
para com essa historicização radical, a que se refere Woodward, (2000). As referências
históricas, quando presentes, tendem a isolar os sujeitos haitianos, colocando-os como
únicos responsáveis por toda sorte de tragédias a que estão constrangidos, não fazendo
nenhuma alusão aos jogos de poder que colaboraram, a todo tempo, para que se
chegasse a esse ponto.
Outro aspecto relevante diz respeito às relações de poder
subscritas nos discursos identitários. Via de regra, as identidades são alicerçadas sobre
princípios excludentes e discriminatórios. O „eu‟ e o „nós‟ são construídos a partir da
figura do „outro‟, ou melhor, a partir da negação do „outro‟. As identidades não são
construídas apenas por laços de afinidade, mas em grande parte sobre a diferença.
Mediante a elaboração de sistemas classificatórios se estabelecem posições antagônicas
ou dissonantes. O haitiano não é apenas o oposto, não está apenas do outro lado, pura e
simplesmente; ele nunca foi. Sempre inferiorizado, estigmatizado, satanizado,
bestializado, permanece à margem da civilização.
14
Os discursos, bem como as identidades, são construídos
com objetivos e interesses evidentes. Os discursos produzidos e dirigidos às Américas,
sobretudo ao Haiti, nasceram pós conquista e foram sendo reelaborados e reproduzidos,
tendo como objetivo ampliar os espaços de influência daqueles de quem emanavam,
bem como delimitar a posição a ser ocupada por aqueles a quem esses mesmos
discursos eram dirigidos; como aponta SILVA, (2009:80):
Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas
privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A
normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se
manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa
eleger arbitrariamente uma identidade específica como parâmetro
em relação a qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas.
Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características
positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades
14
As emanações de tal sistema classificatório e o conseqüente estabelecimento dessas oposições
evidenciam que existem aí duas realidades distintas: uma que detém o poder de classificar, perpassada por
certa hegemonia, no nosso caso a própria ONU, representada pelo Secretário-Geral e/ou ainda o CSNU,
na pessoa de seu presidente, ou pela Folha de São Paulo, instituições formadoras de opinião e que detém
o controle de determinados meios de comunicação; a outra, sendo a parte dissidente, constituída pelo
“outro”, a-parte conflitante, espúria, um corpo estranho, que tenta se estabelecer, aqui representado pelo
povo haitiano imerso num cenário de miséria e desilusão. Não é aceito sem resistência, mas também não
pode ser simplesmente extirpado, uma vez que constitui um parâmetro.
37
podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é
„natural‟, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela
nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como „a‟
identidade.
O trecho desvela o sentido de teorias que foram
construídas, em princípio por europeus, apropriadas e reelaboradas por uma parte da
elite política e intelectual haitiana e que são empregadas pela ONU: normalizar para
dominar. Esses discursos, habilmente empregados, foram, em diferentes épocas e
espaços, aceitos como verdades incontestes, legitimados pela chancela de iminentes
figuras do mundo científico e intelectual e ainda por instituições que gozavam de
credibilidade e idoneidade.
Outro conceito que permite entender como os discursos
vão constrangendo e regulando ações e pensamentos é o que Judith Butler (1999),
definiu como conceito de performatividade, assim apontado por Silva (2000:92-93):
O conceito de performatividade desloca a ênfase na identidade como
descrição, como aquilo que é uma ênfase que é, de certa forma,
mantida pelo conceito de representação para a idéia de „tornar-se‟,
para uma concepção da identidade como movimento e transformação.
[...] A formulação inicial do conceito de performatividade deve-se a J.
A. Austin (1998). Segundo Austin, [...] a linguagem não se limita a
proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma situação ou
um estado de coisas [...] essas proposições fazem com que algo se
efetive, se realize. Austin chama a essas proposições de
„performativas‟ [...] proposições cuja enunciação é absolutamente
necessária para a consecução do resultado que anunciam.
Esse conceito sinaliza a dimensão aproximada do poder
que os discursos datados e identificados, isto é, histórica e ideologicamente produzidos,
podem ter no jogo das trocas simbólicas, campo no qual as relações de poder são
estruturadas e a partir de onde são forjadas as identidades. Podemos ponderar o poder de
persuasão e influência que o discurso do Secretário-Geral, o Presidente do CSNU, ou
um formador de opinião como a Folha, por exemplo, podem ter, quando emitem um
valor acerca de determinada situação, ou um determinado povo, pois como indica Silva
(2000:93):
38
ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo
cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma
situação existente, um „fato‟ do mundo social. O que esquecemos é
que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos
lingüísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a
identidade que supostamente apenas estamos descrevendo.
15
Houve, ao longo desse processo, constante alusão aos
traumas sofridos pelo povo haitiano, mas estes discursos são apresentados,
costumeiramente, numa perspectiva que sempre privilegiou o invasor, que se arvora em
mensageiro da civilidade e da democracia; a afirmação é de que ali está para efetivar um
ambiente de segurança e estabilidade que o haitiano não foi capaz de engendrar. Essa
insistência não é inocente, como aponta Silva (2009:94-95):
A eficácia produtiva dos enunciados performativos ligados à
identidade depende de sua incessante repetição. [...] É da sua repetição
e, sobretudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a força que
um ato lingüístico desse tipo tem no processo de produção da
identidade [...] „a escrita é repetível‟. Segundo Derrida, isso vale para
a linguagem em geral. [...] É exatamente essa „citacionalidade‟ da
linguagem que se combina com seu caráter performativo para fazê-la
trabalhar no processo de produção de identidade.
Evidencia-se uma convergência entre as proposições deste
conceito e o sentido das tramas discursivas observadas na conformação identitária
haitiana, nas quais as produções discursivas assumem papel determinante, sobretudo no
universo das Representações Sociais. É nesse campo simbólico que são buscados os
aportes que dão sustentação a essa ou aquela identidade.
Uma das maiores inquietações de que tem se ocupado a
teoria das representações sociais é a de entender como se desenvolvem os processos que
possibilitam tornar o não-familiar, aquilo que teoricamente não faz parte de determinado
universo cognitivo, em algo familiar, em um objeto que possa se tornar reconhecível em
um ambiente social, instituindo determinadas identificações a determinados objetos.
15
Nesse ponto retomamos o questionamento: Não é isso que fica explícito nos discursos acerca do Haiti?
Uma fantasmagoria do povo haitiano foi sendo discursivamente construída e essa perspectiva é reforçada
até os dias de hoje, como o provam as diversas publicações, de natureza distinta, que podem ser
encontradas amiúde nos meios de comunicação de massa, ou ainda em relatórios e documentos oficiais,
ou oficiosos.
39
Parece simples, mas esse re-conhecimento não ocorre de maneira inequívoca como
pode parecer. Não se trata do simples reconhecimento de estímulos ou fenômenos, em
processar informações. Buscaremos neste vasto campo de estudos, que tem como
expoente Serge Moscovici
16
, conceitos e processos que podem contribuir para dar mais
fluidez a nossos propósitos, explicitando ainda mais os seus contornos.
Há, no decorrer desse processo de re-apresentação, uma
tensão que se estabelece entre o sujeito que reconhece e o objeto desse reconhecimento.
Essa tensão se dá, entre outros fatores, pela interposição entre sujeito-objeto, de
distorções e aspectos subjetivos que se encontram arraigados no âmago das culturas,
grupos ou classes que passam a estabelecer relações e trocas simbólicas; estas acabam,
em alguma medida, sendo determinantes nas relações de poder que aí se estabelecem. A
esse respeito, destaca Moscovici (2003:30-31):
É como se nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de
tal modo que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua
idade por exemplo, os velhos pelos novos e os novos pelos velhos
ou devido a sua raça p. ex. os negros por alguns brancos, etc. se
tornam invisíveis quando, de fato, eles estão “nos olhando de frente.
[...] Essa invisibilidade não se deve a nenhuma falta de informação
devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabelecida da
realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a compreendem,
que faz algumas delas visíveis e outras invisíveis.
É sobre essa base que repousam as principais premissas
das representações sociais. É precisamente por apresentar essa capacidade de
convencionar pessoas, objetos ou acontecimentos -, dando “uma forma definitiva, as
localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam como um modelo
de determinado tipo, distinto compartilhado por um grupo de pessoas”, (MOSCOVICI,
2003:34) - e ainda, e não menos importante, pelo poder prescritivo dessas
representações - que se torna evidente quando “elas se impõem sobre nós com uma
força irresistível” (MOSCOVICI, 2003:36) -, que as representações sociais surgem
16
Serge Moscovici nasceu na Romênia em 1928 e é um psicólogo social. Intelectual atuante, foi um dos,
se não o, fundador da teoria das Representações Sociais, tendo atuado tanto na Europa, quanto nas
Américas, sobretudo nos EUA, para o reconhecimento e desenvolvimento das pesquisas referentes a
temas ligados a sua teoria. Atualmente é diretor do Laboratoire Européen de Psychologie Sociale, que ele
co-fundou em 1975 em Paris. É também membro do European Academy of Sciences and Arts , da Légion
d'honneur e do Russian Academy of Sciences.
40
como condição para que possamos tentar compreender, com maior propriedade e
profundidade, algumas questões que de outra maneira pareceriam inexplicáveis.
17
O caso haitiano é revelador no que diz respeito a
amplitude e ao poder das representações. Para tentar entender como esses discursos se
interpõem nas relações humanas, em que as trocas simbólicas surgem como objeto de
apreciação, é preciso entender antes como as representações sociais re-criam a realidade
social, principalmente, tal qual as identidades, nos momentos de crise. As elaborações
discursivas orais, textuais ou imagéticas, alicerçadas sobre a memória e conclusões
passadas, podem conformar essa realidade social, que passa então a se apresentar como
uma espécie de pano de fundo no qual se desenvolvem a economia das relações
humanas, tornando familiar aquilo que, de outra maneira, permaneceria invisível ou fora
do nossos desígnios.
Para compreender como essa aproximação é alcançada
nessas construções, ainda que de forma elementar, lançaremos mão, mais uma vez, de
um processo apresentado por Moscovici. O processo de ancoragem é central dentro do
conceito das representações sociais, uma vez que conta dos caminhos percorridos no
processo de conformação social, antes mesmo que tais discursos se tornem públicos, se
manifestem. O autor enfatiza que classificar e dar nomes são dois aspectos dessa
ancoragem das representações. Moscovici (2003:61), define o processo de ancoragem
como:
um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos
intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara a um
paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É
quase como que ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos
sinalizadores) de nosso espaço social. [...] No momento em que
determinado objeto ou idéia é comparado ao paradigma de uma
categoria, adquire características dessa categoria e é re-ajustado para
que se enquadre nela.
17
Essa singularidade de que se revestem as representações pode ser buscada no conjunto de estruturas, que são
anteriores aos fatos e eventos, e também nas tradições que de certa forma determinam o que pode e o que deve ser
pensado. O que fica ainda mais evidente aqui é o poder coercitivo que as representações sociais impõem sobre nossa
maneira de perceber ou re-conhecer os objetos que compõem nosso universo cognitivo. Essa capacidade de
reconhecer é consubstanciada no tempo, sendo reelaborada por meio de sucessivas gerações, tornando-se
determinante, em dado momento, para que se possa ter, mesmo que limitadamente, algum domínio e compreensão de
um meio social específico, de um meio ambiente. Nossos discursos trazem consigo as marcas desse longo processo
de construção, no qual a linguagem e a comunicação atuam, paulatinamente, conformando, convencionando e
normalizando.
41
Existe, certamente, uma aproximação, ainda que implícita,
entre este processo e o conceito de performatividade, uma vez que, talvez num espaço
temporal diferenciado, no que diz respeito a construção dessas representações e
identidades, ambos criam, paralelamente, as necessárias condições para que sujeitos e
objetos, pela ação do discurso, possam ser percebidos no interior de um campo
simbólico familiar. Silva, (2009:91), problematiza essa aproximação entre identidade-
representação. Segundo ele:
a representação é, como qualquer sistema de significação, uma forma
de atribuição de sentido. Como tal, a representação é um sistema
lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado
às relações de poder. É aqui que a representação se liga à identidade e
a diferença. A identidade e a diferença são estreitamente dependentes
da representação. É por meio da representação que, por assim dizer, a
identidade e a diferença passam a existir. Representar significa, neste
caso, dizer: „essa é a identidade‟, „a identidade é isso‟.
Familiarizar, categorizar, nomear, classificar, ancorar.
Verbos que operacionalizam uma dinâmica em que o diferente, o heterogêneo perde
espaço, cedendo a uma constante normalização que não cessa jamais. Os horizontes
interpostos por essas regras e comportamentos, que são encerrados pelas categorias
constitutivas da memória e das lembranças do passado, daqueles que detém o poder de
nomear, limitam e determinam o que é ou não permitido nesse novo ambiente, que
passa a ser compartilhado por todos, ainda que sob uma espécie de coação, inerente às
representações sociais.
Os movimentos sociais observados no Haiti, inscritos na
longa duração, da qual as intervenções constituem um dos últimos capítulos, são prova
dessa tensão, que resulta diretamente desse longo processo de conformação das
representações haitianas, constante e discursivamente constrangidas por um modelo
sócio-político e cultural geralmente estranho ao seu campo de experiências. As
representações e as identidades haitianas foram forjadas sob essa constante tensão. Não
há, na história do Haiti, um longo período de paz sócio-política-econômica e cultural,
excetuando-se a „paz dos cemitérios‟, implantada por Papa Doc. As crises, os golpes, as
revoluções, as perseguições e as tragédias pessoais fazem parte da realidade nacional,
42
sendo sempre maximizadas e utilizadas conforme distintos interesses.
18
Jovichelovitch,
(1995:64), nos adverte quanto a isso ao afirmar que:
O domínio das operações simbólicas, o espaço das construções
humanas sobre o real, onde a realidade enquanto campo contratual
pode ser expandida, redefinida, e eventualmente transformada, exige
que repensemos o caráter atribuído à relação entre o mundo material e
o mundo simbólico. Porque se é bem verdade que nós na América
Latina (e diga-se, não de passagem, não na América Latina)
estamos atravessados pela violência concreta de relações sociais
desiguais, não é menos verdadeira a consideração de que também
estamos atravessados pela força impressionante da Palavra. A noção
de que o símbolo se constrói apenas como máscara de estruturas
sociais desiguais deve, no meu entendimento, ser colocada em
questão.
Pensar então o Haiti sob os auspícios dessas produções
nas quais as intervenções surgem como a materialização do discurso e/ou como
ferramenta que pode operacionalizar sua efetiva realização - é defrontar-se com
problemas que requerem uma leitura que supere as limitações de um imediatismo
capcioso. É preciso não se esquecer da singularidade do caso haitiano, do peso de seu
intrincado processo histórico, da natureza e do sentido das produções que contribuíram
para a sua derrocada sócio-político-econômica e cultural e que ainda hoje recaem sobre
um povo que padece sob a vigilância dos Organismos Internacionais que representam os
interesses políticos daqueles que são os verdadeiros estigmatizadores dos povos.
18
É neste quadro de crise, que se arrasta de meados do século XVI - quando mais da metade dos nativos
da Ilha do Terror já haviam tombado sob o fogo e a espada dos espanhóis; passando pela lendária
Revolução Negra, em fins do XVIII, pela invasão norte-americana, de 1915 a 1934, pelas ditaduras dos
Duvalier, (Papa e Baby Doc), que se arrastaram do final da década de 50 até meados dos anos 80; e
finalmente pelas últimas crises que se iniciam com o golpe militar que destituiu Jean-Bertrand Aristide,
nos anos 90, e culminam com a intervenção da ONU, em 2004, quando um pedido de socorro foi enviado
pelos membros do CARICOM (Comunidade do Caribe) aos escritórios da ONU, nos EUA, pedindo pela
vida de milhares de haitianos que se viam entregues, mais uma vez, a própria sorte - que estão ancoradas
as representações que in-formam e conformam, via construtos textuais e imagéticos, o ambiente social
haitiano.
43
1.3 Hispaniola: o limiar da civilização americana
Após um momento de espanto neste limiar
marcado por uma colunata de árvores, o
conquistador irá escrever o corpo do outro e
nele traçar a sua própria história. Fará dele
o corpo historiado o brasão de seus
trabalhos e de seus fantasmas. Isto será a
América „Latina‟. (CERTEAU, 2002:09)
O Haiti está localizado no Caribe, a sudoeste de Cuba,
distante menos de mil quilômetros de Miami, capital da Flórida, nos Estados Unidos da
América. O Caribe localizado em um mar que leva o mesmo nome, é constituído por
um conjunto de ilhas, formado basicamente pelas grandes e pequenas Antilhas -, muito
embora a aparente unidade não se apresenta como uma realidade geográfica, política ou
socioeconômica homogênea, sobressaindo os aspectos de sua heterogeneidade, até
mesmo em função das características de sua colonização, levada a cabo por diferentes
países, dentre os quais se destacam Espanha, França, Grã-Bretanha e Holanda. Nos
quadros abaixo podemos visualizar a localização de Hispaniola
19
no Caribe, bem como
a porção haitiana da ilha:
Disponível em: http://www.guiageo-caribe.com/caribe-politico.htm>. Acesso em 10 Fev 10.
19
A ilha na qual está localizado o Haiti, conhecida por Quisqueya pelos índios Tainos, foi batizada por
Cristovão Colombo de Hispaniola, vindo a se chamar, algum tempo depois, Ilha de Santo Domingo. É
uma das Grandes Antilhas (Cuba, Santo Domingo, Porto Rico e Jamaica), e possui uma área aproximada
de 76.000 Km², dos quais 27.750 Km², aproximadamente um terço de sua porção ocidental, são ocupados
pelo Haiti, sendo os outros dois terços pertencentes à República Dominicana, num total de 48.442 Km²,
do lado oriental. A população estimada da ilha é de cerca de dezenove milhões de habitantes, sendo
destes, aproximadamente nove milhões de haitianos.
44
Disponível em: <http://www.guiageo-caribe.com/mapas/haiti.htm>. Acesso em 12 Fev 10.
Hispaniola é o ponto a partir do qual a história do
continente americano desenvolve. É a partir daí que os colonizadores, espanhóis
inicialmente, darão início, em fins do século XV, a um empreendimento sem
precedentes e que resultará, não muito tempo depois, ao preço de milhões de vidas, em
uma reconfiguração das forças sócio-político-econômicas e culturais nunca antes
observada; a conquista e a colonização das Américas. O Haiti teve papel relevante nos
primeiros momentos dessa história, destacando-se principalmente por ter sido o segundo
país do continente a tornar-se independente do jugo das metrópoles européias.
1.4 Conquista e colonização da Pérola das Antilhas
A tragédia da herança colonial consistiu no
reforçamento dessa estrutura social
estratificada pela cor e fisiognomia. (STEIN
& STEIN, 1989:50)
45
O Haiti é o marco fundante da conquista e da colonização
das Américas. É a partir desse ponto que os conquistadores espanhóis avançarão sobre
as populações autóctones, amparados por um discurso que, antes de tudo, propagava um
ideal evangelizador, pretensamente emancipador, totalmente alheio à cultura das gentes
que aqui se encontravam.
O ano de 1492 marca a chegada de Colombo ao norte do
que se tornaria, a partir de então, Hispaniola e, para todos os efeitos, a América. Era o
início de um longo e traumático processo a que seriam submetidas as gentes que, por
força de um discurso historiográfico excludente e eurocêntrico, tenderiam a ser
marginalizadas nas páginas da história.
A população que ocupava Hispaniola por ocasião da
chegada dos espanhóis era constituída basicamente por índios ciboneys e taino-arawaks.
Esses povos, à chegada de Colombo, apresentavam uma organização estatal, ainda que
rudimentar, que tinha no topo de sua hierarquia cinco grandes cacicados e, abaixo
destes, os chefes locais. Essa organicidade, segundo Ferro, (2004), pode ter contribuído
para que Colombo tenha se estabelecido inicialmente no Haiti, uma vez que esses
poderes estatais, ainda não disseminados na maioria das ilhas do Caribe, poderiam
contribuir para a consecução de seus objetivos. em 1494, apenas dois anos passados
do contato inicial, Hispaniola experimentava o primeiro de incontáveis embates que se
seguiriam.
20
Era a destruição de toda a ordem social haitiana em proveito de um
escravagismo cujo único limite era o desaparecimento físico do povo dominado
(FERRO, 2004:52). O ímpeto espanhol, demonstrado na conquista, extrapolou todos os
limites. O extermínio físico do povo dominado não impediu o avanço da „civilização‟
sobre a barbárie; foi apenas o seu primeiro ato.
A introdução do negro como mão-de-obra servil no
cenário sociocultural americano carrega ainda mais as cores desse conturbado período.
20
Ferro (2004:50), demonstra como essa primeira reação, motivada principalmente pela ira e pela
crueldade dos espanhóis, muda completamente o estatuto dos nativos que passam, a partir de então, a ser
encarados como um perigo e uma ameaça à civilização, o que, em tese, justificaria a guerra que contra
eles seria movida, a partir de então. com a resistência dos índios, o julgamento sobre esse povo mudou
completamente. Nos primeiros contatos, eles tinham sido vistos como homens e mulheres pacíficos,
mansos em geral, e até fáceis de converter ao cristianismo. Mas, assim que empreendem o combate,
passam a ser encarados como indivíduos pérfidos, ladrões, assassinos ou saqueadores.
46
Dentre as principais causas apontadas para utilização dessa força de trabalho em
substituição à mão-de-obra nativa, destaca-se a inadaptabilidade do nativo ao sistema de
exploração utilizado pelo colonizador, classificado por Ferro (2004) como
concentracionário.
No caso haitiano, podemos depreender a importância de
que se reveste tal fato, principalmente se levarmos em conta os desdobramentos desse
incremento populacional que, por ocasião da independência do Haiti, no início no
século XIX, viria a constituir o grosso da população da pequena ilha. Os primeiros
escravos, ainda que não tenham vindo diretamente da África, mas provavelmente
trazidos em menor escala de Espanha ou Portugal, podem ter chegado em 1498,
segundo Ferro (2004), há fortes evidências que já se faziam presentes em 1502, uma vez
que nesse ano foi feito um pedido para que parassem de enviar esses escravos, porque
eles se misturam aos índios fugitivos para irem marranear nas montanhas. (FERRO,
2004: 53). Parecia ser um indício do que viria. Como Afirma Stein & Stein (1987:51):
A chegada do negro escravo daí em diante considerado como bem
móvel adicionou um novo fator étnico. Seu fenótipo e inferioridade,
legalmente sancionados, ajustaram-no de imediato à sociedade de
castas: o aparecimento de escravos emancipados e de mulatos e sua
correspondente mobilidade social tornavam-se ameaçadores para a
elite, razão pela qual levantava-se incontinenti barreiras formais e
informais a esses indivíduos. Essas barreiras, erigidas com o fito de
impedir a mobilidade social de todos os não-espanhóis, tornavam-se
mais severas e duradouras para o caso de escravos libertos e mulatos.
Dessa maneira, em menos de meio século, sobretudo nas
décadas de 1520 e 1530, duas alterações significativas foram verificadas no modus
operandi da colonização espanhola. O esforço inicial voltado especialmente para a
mineração foi redirecionado, ainda que temporariamente, para a produção de cana-de-
açúcar, ao mesmo tempo em que a mão-de-obra dos negros africanos, substituía o braço
índio. A cultura da cana-de-açúcar não era capaz, nesses primeiros momentos, de mover
sozinha as pesadas engrenagens coloniais. Segundo Scaramal (2006:15), a partir de
meados do século XVI, em função principalmente da descoberta de ouro no México e
nos Andes e da elevação de “Cuba ao posto central da administração do Caribe”,
47
Hispaniola, passa a figurar apenas como “posto de abastecimento, especializado na
produção de couro e de produtos alimentícios.”
O alheamento espanhol com relação as suas possessões
caribenhas, subsistiria por aproximadamente dois séculos, despertando em fins do
século XVII a cobiça e o interesse de outras metrópoles, como França, G-Bretanha e
Holanda. Esse interesse foi consolidado quando a França se apropria da parte ocidental
da ilha, aproximadamente um terço dela, com base no Tratado de Ryswick, firmado em
1697, como desdobramento da guerra dos nove anos, que teve como principais
protagonistas a França e a Inglaterra. Esse fato constitui um dado relevante, uma vez
que assinala o início da ocupação francesa da parte ocidental da ilha, que passa a ser
conhecida como Saint Domingue, e nos permite localizar as origens da hegemonia
sócio-político-econômica e cultural da França, no que se transformaria, em pouco mais
de um século, no que conhecemos hoje como Haiti. Segundo Scaramal (2006:18),
somente “A partir do ano de 1670, Saint Domingue começou a funcionar como uma
verdadeira colônia.”, vindo a tornar-se, apenas meio século depois, um próspero
empreendimento colonial.
A cultura da cana-de-açúcar, iniciada em meados do
século XVI e abandonada logo em seguida, começa a despontar novamente como uma
opção para a exploração colonial em função não apenas das dificuldades cada vez
maiores para se explorar o minério, escasso, mas também em função do aumento da
demanda do açúcar na Europa. Outro fato que contribuiria para a implementação dessa
cultura era a mesma estar atrelada a outra atividade não menos lucrativa: o maciço
tráfico de escravos da África, que levaria, por conseguinte a um vertiginoso incremento
populacional em Saint Domingue. O tráfico negreiro e a produção açucareira,
intensificados principalmente a partir do início do culo XVIII, foram determinantes
não para o efetivo povoamento da ilha, mas também para que essa despontasse, a
partir da segunda década do século XVIII, como a principal e mais lucrativa das
colônias francesas.
A prosperidade e o crescimento observados na porção
ocidental da ilha não refletiam a realidade observada na parte oriental, espanhola, onde
as atividades econômicas se desenvolviam, quase que exclusivamente em razão de Saint
Domingue, mesmo que contrariando os interesses coloniais. Afora o vertiginoso
48
desenvolvimento econômico observado, outro aspecto, ainda mais importante, no que
diz respeito ao desenvolvimento sócio-político e cultural da ilha, outrora denominada
Saint Domingue, estava na composição étnico-social que então se desenhava. Os
brancos, detentores do poderio político-econômico, apesar de constituirem a minoria,
menos de 10% do total da população, representavam um pesado fardo para os
contingentes de escravos, que ainda se viam submetidos aos mulatos, por quem nutriam
um ódio ainda maior, por terem, com esses, nculos que iam além de um estatuto
social.
A pequena ilha tornara-se, a partir da segunda metade do
século XVIII, palco de inúmeros conflitos entre senhores brancos, mulatos e escravos,
que sob intensa pressão e atentos aos desdobramentos políticos que começam a se
delinear no além-mar começavam a se organizar, promovendo sucessivas revoltas. Estas
começam a ocorrer por volta de 1740, tornando-se celebres as de Fort Dauphin,
lideradas por um negro conhecido por Ti Noel, e outra levada a termo por Mackandal,
figura lendária, em fins da década de 1750.
As principais heranças desse período serão, porém, o
racismo exacerbado e o colonialismo, ambos resultantes das lutas entre brancos,
mulatos e negros. A revolução haitiana foi um exemplo da polarização política
orientada por um viés racista e sectário que, sob os auspícios do colonialismo, conheceu
o seu limite com o levante de 1791. Uma conjunção de acontecimentos contribuíram
para que Saint Domingue entrasse para a história de maneira peculiar naquele final de
século. C. L. R. James (2000:39) retrata algumas das circunstâncias que levaram à
revolução:
Os homens fazem a sua própria história. E os jacobinos negros de São
Domingos fariam a história que mudaria o destino de milhões de
homens e o curso econômico de três continentes. Todavia, se é
possível aproveitar uma oportunidade, não é possível criá-la. O
comércio de escravos e a escravidão estavam firmemente entrelaçados
à economia do século XVIII. Três forças: os proprietários de São
Domingos, a burguesia francesa e a burguesia inglesa prosperaram
sobre a devastação de um continente e a brutal exploração de milhões
de seus habitantes. Enquanto essas forças se mantivessem em
equilíbrio, o tráfico demoníaco prosseguiria; e assim teria continuado
até os dias de hoje. Mas nada, por mais lucrativo que seja, dura para
sempre. Desde que o seu próprio desenvolvimento ganhou ímpeto, os
fazendeiros das colônias e as burguesias francesa e britânica passaram
49
a gerar pressões internas e intensificar as rivalidades externas,
dirigindo-se cegamente para conflitos e explosões que despedaçariam
as bases de seu domínio e criariam a possibilidade da emancipação.
Os próceres da independência haitiana, de Mackandal a
Henri Christophe, todos eles escravos ou ex-escravos negros, se não foram capazes de
criar, estiveram atentos e aproveitaram a oportunidade que lhes foi apresentada. Sob os
sons dos tambores e guiados pelos loas
21
, embalados pelos ares de outra revolução que,
em teoria, mudaria o modo de pensar de todo o mundo ocidental, fizeram eles a sua
própria revolução. O Estado haitiano nasce assim sob o estigma do caos, da desordem,
da barbárie, uma vez que a sua independência desestrutura a única ordem possível: o
querer ocidental, eurocêntrico. Maculado pela sua cor, origens, cultura e religião, o
haitiano passa a buscar , onde olhos menos avisados fundamentaram a sua rejeição, a
força que utilizou para reescrever a história do negro africano nas Américas.
1.5 Da Revolução à dependência
Por dois séculos, a civilização mais evoluída
mostrou-lhes que o poder era usado para
descarregar a sua vontade sobre aqueles
que controlava. Agora que detinham o
poder, fizeram como haviam sido ensinados.
(C. L. R. James, 2000:94)
O Haiti, tido no último quartel do século XVIII como a
Pérola das Antilhas, o grande trunfo colonial da França, convertera-se, num breve
espaço de tempo, em um problema que extrapolava em muito as suas fronteiras e com o
qual seus colonos não podiam lidar. O modelo colonial francês chegara ao seu ocaso no
Haiti. Rosa (2006:13), afirma, corroborando Aimé Césaire, “que um dos sentidos mais
evidentes do projeto colonial francês foi a destituição da humanidade do outro, a qual
incidiu na negação de sua cosmovisão e do modo de expressá-la.” O haitiano, negro,
destituído de sua força de trabalho e bestializado, se revolta, a liberdade já não lhe basta,
quer demonstrar seu poder e o faz.
21
Os loas são os espíritos do culto do vodu, sendo vistos, em certas regiões, como santos e anjos.
50
A disposição invulgar do negro haitiano para a liberdade o
caracteriza, ainda hoje. Oprimidos, explorados, desumanizados, coisificados, os
escravos haitianos, levados a seu limite, reconheceram o momento oportuno e lançaram-
se, de maneira incondicional, numa luta sem precedentes, que consagrou um Estado não
menos singular, mas fundado sobre o estigma de uma Revolução, uma Revolução
Negra, que significou, antes de tudo, a subversão de toda a ordem colonial. Scaramal
(2006:13) afirma que: “A revolução dos escravos no Haiti foi demonizada porque
representou a inversão da ordem estabelecida. Negros submetendo brancos, escravos
submetendo senhores. A revolução, iniciada em 1791, é o ponto de ruptura de um
modelo que entrara em colapso, significando também, ao mesmo tempo, o início de
uma história que, se não é nova, ao menos trazia alguns ingredientes que em um
momento anterior eram impensáveis.
Arrastando-se por mais de uma década, até 1804, a
dinâmica da revolução envolveu três grupos principais: os colonos franceses, brancos;
os mulatos, ou negros libertos, e os escravos negros. A distinção „epidérmica‟
interpunha uma diferença que talvez fugisse aos olhos, mas que não passava
despercebida. Em comum apenas o ódio e o desprezo, alimentado por mais de duzentos
anos de colonização. As diferenças, alimentadas pelos ingredientes racistas e
colonialistas fariam com que o Haiti se tornasse, em função do trauma originário - a
revolução -, um país no qual imperariam as dicotomias e as contradições, sempre
recortado por divergências aparentemente irreconciliáveis. Grondin (1985:40)
demonsta a centralidade do componente racial ao afirmar que:
desde as lutas da independência até os dias de hoje, a cor da pele
sempre foi utilizada pelos dois setores da elite [negros e mulatos] para
marcar suas diferenças e definir suas lutas, bem como para promover,
ocasionalmente, alianças intercores em busca do poder econômico e
da dominação política. Desde as lutas pela independência, sucederam-
se no Haiti mais de 30 chefes de Estado, alternando-se, com uma
quase completa regularidade, os representantes de cada setor.
O Estado haitiano surge assim da dissensão, do trauma da
revolução, da incapacidade ou da impossibilidade de se pensar uma organicidade a
partir dos três grupos supracitados. A independência política, conseguida em 1804,
51
nunca significou uma liberdade econômica e cultural. Apesar das vitórias nos campos
de batalha, a independência não seria reconhecida de imediato pela França, pelas
grandes potências européias ou pelos E.U.A. O governo francês a reconheceria em
1825, mediante o pagamento, por parte do Haiti, de uma indenização de cento e
cinqüenta milhões de francos, e os E.U.A quase sessenta anos depois, em 1862.
ainda, no que diz respeito à revolução, um poderoso
componente simbólico, através do qual a insurreição dos escravos de Saint Domingue
transformou-se em uma revolução singular, a Revolução Negra. A Onda Negra que
varreu o Haiti tornar-se-ia, a partir de então, um problema para grande parte do mundo
colonial, cuja produção dependia essencialmente da força escrava. O haitianismo -
termo que define genericamente o temor alimentado pelas elites em função dos
acontecimentos no Haiti, sobretudo com relação ao poder, à influência e à capacidade
de organização da população negra -, contribuiu para que a revolução haitiana tomasse
um vulto que certamente, não fossem o racismo e colonialismo de que estavam
impregnados o pensamento colonial, esta não teria tomado. Segundo Gomes
(2002:209):
A propaganda do Haiti se espalharia pelas Américas já nos últimos
anos do século XVIII e avançaria firme no século XIX. Houve um
impacto da Revolução de São Domingos e da Francesa nas colônias
francesas e regiões vizinhas. Navios vindos do Haiti ou mesmo com
tripulações de negros dali originários provocavam apreensão. Havia
tanto uma circulação na experiência da sedição como uma avaliação
temerosa de autoridades [...] quanto à possibilidade de articulação
entre tal experiência e a subversão no contexto do final do século
XVIII.
O terror negro corria o mundo como uma peste, de porto
em porto, e a possibilidade de contágio inquietava os defensores da escravidão. É
através da revolução e do aparato simbólico e discursivo dela proveniente que o Haiti é
apresentado - e representado -, ao mundo como um país de negros insurretos,
bestializados e satanizados. Como observa Nishikawa (2005:2): “Apesar de seus ecos
em todo mundo ocidental, que dependiam direta ou indiretamente da escravidão ou de
seus produtos, muitos historiadores tendem a aumentar a importância e o impacto do
Haiti em outros mundos”. Não se trata de uma simples tendência. Houve sim, a partir da
inversão da ordem colonial levada a cabo pelos revolucionários - o que não implicou a
52
negação do modelo -, a construção de um contra-discurso que, longe de silenciar os ecos
da revolução, deu-lhe voz.
Embora a revolução tenha atingido seus objetivos iniciais
- a libertação dos escravos e o rompimento dos laços coloniais com a França -, esta não
foi capaz de trazer a paz e liberdade almejadas pelas massas haitianas. Com o trauma
provocado pelo rompimento, o racismo torna-se ainda mais arraigado e o colonialismo,
sob uma nova roupagem talvez, aparentemente incólume, se exaspera. De acordo com
Rosa (2006:3): “O veneno destes males [racismo e colonialismo] fundou a nação, com
todas [sic.] os exageros derivados de um racismo e de um colonialismo conduzidos às
últimas conseqüências”. Os próceres da independência haitiana foram forjados pelo
sistema e segundo Rosa (2006:5):
Os movimentos pós-coloniais foram, de fato, motivados no sentido de
ocupação do lugar do colonizador e não necessariamente, a inversão
da ordem colonial rumo à sua completa negação. No Haiti, como em
tantas outras colônias, os negros ocuparam o lugar dos brancos,
reproduzindo e atualizando as mesmas linguagens de “pura violência”
e legitimando a dicotomia racial. [...] No contexto pós-colonial
haitiano, ficou evidente que a Revolução revelou o seu fim no
momento de substituição dos brancos pelos negros no poder.
A idéia de nação, que segundo Rosa (2006:1) sugere um
“companheiro profundo e horizontal” e a “celebração de igualdade” dentro dos seus
limites, apesar de mais de duzentos anos passados da revolução, ainda não é uma
realidade factível no Haiti; isso se deve, segundo a autora, à falta de organicidade das
elites políticas, econômicas e intelectuais. Rosa (2006:15), afirma ainda que “A
fragilidade ideológica e material da elite haitiana está emoldurada por sua incapacidade
de desdobrar o processo revolucionário da descolonização em um horizonte
verdadeiramente nacional de equilíbrio de poder e distribuição de riqueza.”
As elites políticas, compostas pelos representantes dos
setores negro e mulato, desvencilhadas política e administrativamente do jugo francês,
não conseguem se afastar do ranço dualista da política colonial, submetendo a sua
gente, cerca de 80% dela, a um regime de exploração ainda mais vil que o imposto pelos
colonizadores europeus. Os franceses, expulsos e enxovalhados pelas forças
revolucionárias, continuariam ocupando posição central na sociedade e na cultura
53
haitiana, despertando um misto de admiração e repulsa, ao mesmo tempo que segue,
paradoxalmente, “servindo de paradigma civilizatório tanto para o Haiti recém gestado
como para o Haiti contemporâneo.” (ROSA, 2006:7). A autora observa que:
Inseridos desde o período revolucionário na categoria de uma elite ex-
escravizada ou liberta, os líderes políticos não conseguiram criar
condições favoráveis para o amadurecimento e acabamento do
processo revolucionário referente à devolução da autonomia
econômica, social e, sobretudo, política a todos os escravizados da
nação recém-criada [sic.]. Pelo contrário, a elite política institucional
no período pós-colonial reproduziu tanto na infra como na super-
estrutura os mesmos vícios do modelo colonial, realizando um
movimento de mera substituição de quadros.
Segundo Rosa (2006:13), alguns fatores foram decisivos
para que o Haiti se tornasse cada vez mais dependente do capital estrangeiro, a ponto
desta dependência ser considerada crônica por alguns especialistas. A geopolítica, a
ausência de um mercado auto-sustentável e a dependência cultural, ideológica e política
inicialmente da França e posteriormente dos E.U.A, são apontados pela autora como
fatores que impediram, e de certa maneira ainda impedem, o desenvolvimento sócio-
econômico do país. O Haiti sai da revolução com sua infra-estrutura
22
destruída pela
estratégia da terra arrasada, adotada pelos revolucionários negros.
As terras, antes tomadas pelas plantations e cultivadas pela
força de trabalho escrava, ambas extintas com a conquista da independência em 1804,
foram apropriadas pela elite mulata e negra, condenando a grande maioria da população
a uma agricultura microfundiária que mal bastava ao seu sustento. Grondin (1985:54)
afirma que “Depois de lutar por sua liberdade contra os brancos, os ex-escravos tiveram
que lutar, durante quase um século, contra os mulatos e os negros da elite pela terra que
haviam libertado.” Ainda segundo este autor a ameaça constante de expropriação fez
com que as massas permanecessem alheias e desenraizadas da sua terra, ao passo que as
elites passam a se sentir donas do Haiti, levando à falta de organicidade do povo e de
desenvolvimento de uma idéia de nação.
22
Segundo Grondin, (1985:53): “O Haiti contava, nessa época [1788], com 792 engenhos (74323
hectares), 3150 anileiras (82147 hectares), 3117 cafezais, 789 algodoais (20321 hectares), 69 plantações
de cacau (2083 hectares), 10612 hectares de milho, 15315 hectares de batatas, 9854 hectares de inhame,
5877 hectares de sorgo, 7 756 225 pés de bananeira, 1 278 229 pés de mandioca.”
54
Livres do jugo francês, os líderes do movimento de
independência voltaram suas atenções para o outro lado da ilha, Santo Domingo,
movidos pelo velho sonho de torná-la una e indivisível; a colônia espanhola estava sob
domínio francês desde 1795. Foram duas as ocupações haitianas a Santo Domingo. A
primeira durou dois anos, 1804-1805, e a segunda, mais consistente, foi de 1822 a 1844.
Esse movimento de ocupação, que culmina com a independência da República
Dominicana em 1844, constitui praticamente o último capítulo de um esforço
beligerante haitiano, que se iniciara mais de meio século antes, em 1789, dando claros
sinais do esgotamento de suas capacidades. Como afirma Grondin (1985:28):
Em 1844 a República Dominicana proclamou sua independência,
vencendo a guerra de libertação contra o Haiti. A partir de então, ao
mesmo tempo que o Haiti, arruinado pela guerra de independência,
desorganizado pelas exigências da metrópole, e enfraquecido pelo
bloqueio econômico externo e pelas lutas internas pelo poder,
conhecia um culo e meio de decandência, a República Dominicana
conhecia uma crescente explosão demográfica.
A República Dominicana é peça fundamental para que se
possa pensar as identidades e as representações haitianas, visto constituir o contraponto,
a diferença. Rosa (2004) pensa a construção de uma identidade haitiana a partir da
oposição das categorias de mescla e pureza, presentes nos construtos identitários
domínico-haitianos, nos quais “As idéias de que cada haitiano é um ser puro (noble) e
de que, em conjunto, compõe um grupo homogêneo na República Dominicana são
construídas a partir das idéias opostas de que os dominicanos têm a capacidade de se
misturar [...].” (ROSA, 2004:3). O conceito de noblesse, indispensável para se
compreender o povo haitiano, está fundamentado principalmente na idéia de “uma
nação pura e fiel às atribuições da raça negra: a liberdade e a nobreza.” (ROSA, 2004:2)
A cor da pele no Haiti, caracterizada pela negritude, passa a ser encarada não como um
problema e sim como algo que distingue o haitiano e o torna mais próximo de seus
nobres ancestrais africanos, diferenciando-o consequentemente dos dominicanos, que
buscam na mescla a sua distinção, se orgulhando, por conseguinte, do fato de seus
heróis nacionais serem, em sua grande maioria, brancos.
55
O país que ocupa a parte oriental da ilha torna-se assim o
ponto a partir do qual uma identidade haitiana pode ser pensada. O dominicano, em
oposição ao haitiano, orgulha-se de sua condição mestiça e não mulata ou negra; da sua
origem americana e não africana e do fato de sua independência ter sido capitaneada por
chefes brancos, quando muito mulatos, e de sua ascendência espanhola. O haitiano,
apesar de nobre, com raízes africanas, traz em sua essência os elementos que despertam
o desprezo e rejeição por parte do dominicano.
Para o haitiano sua ancestralidade e sua nobreza são vistas
como anteriores a sua cultura, muitas vezes determinando-a. Essa idéia, segundo Rosa
(2004:7), começa a ser engendrada a partir da Rebelião Negra, sendo “amadurecida nos
momentos posteriores de formação da nação haitiana”, demarcando “a fronteira que
separa o povo haitiano dos „outros‟”.
Outro aspecto entranhado na composição sociocultural
haitiana, cujas raízes também remetem a uma matriz africana, diz respeito ao Vodu, a
religião haitiana por excelência. A prática do vodu confunde-se com a chegada dos
contingentes africanos ao Haiti e passa a expressar, em alguma medida, com o passar do
tempo, a resistência e a força da cultura negra. É, em grande parte, por meio dos rituais
e da prática desse „culto bárbaro‟ que os haitianos organizar-se-ão para tornarem-se
independentes.
Por outro lado, se o vodu foi satanizado e combatido por
longos períodos, momentos houve em que as próprias elites, percebendo o seu poder
junto às massas, instrumentalizaram-no, utilizando-o para atingir seus objetivos
políticos, tornando-se clássicos nesse sentido os casos de Boyer, (1820-1843), e de
François Duvalier, (1957-1971)
23
. A igreja católica foi, porém, a sua maior inimiga e
perseguidora, movendo campanhas, em pleno culo XX, para que sua prática fosse
23
Ambos presidentes haitianos. O primeiro, Jean-Pierre Boyer, representante da elite mulata governou o
Haiti no período de 1820 a 1843 e ficou conhecido principalmente por comprar a independência do Haiti
através da indenização paga à França pela independência; esta, como vimos, conseguida a duras penas
após mais de uma década de sangrentas batalhas. François Duvalier, conhecido como Papa Doc, governou
o Haiti através de um regime ditatorial no período de 1957 a 1971, quando foi sucedido pelo filho como
presidente vitalício.
56
definitivamente abolida do seio da sociedade haitiana
24
, banalizando e desqualificando-
a. Segundo Hurbon (1987:101):
a religião popular do Haiti está cercada por todos os lados: pelo
Estado, que utiliza o vodu para consolidar o regime; pelo catolicismo,
que mantém uma posição de poder sobre o vodu; pelo protestantismo
americano, que procura controlar as classes mais pobres da sociedade;
pela elite e pela burguesia, as quais, dominadas pelas ideologias
ocidentais, vêem no vodu ora uma situação primitiva, condenada a ser
ultrapassada pela modernidade, ora como um folclore que se pode
exibir para matar a sede do exotismo dos estrangeiros. Como uma
cidade sitiada, o vodu se debate: a força de contestação que ele
possuía no tempo da escravidão ainda está lá, mas bloqueada,
definhada, transferida para um nível imaginário. [...] o futuro do vodu
é o futuro das massas haitianas exploradas.
Como ressaltado, se a escravidão foi abolida, a exploração
não o foi. A liberdade que movera e orientara os movimentos de independência foi
postergada, sendo substituída por uma escravidão dissimulada sob o dicurso da
reconstrução do Estado. Este, isolado pelos bloqueios e embargos econômicos que se
sucedem após a revolução e vítima de um nacionalismo econômico estreito”, como
afirma Ferro (2004:244), que, em síntese, impede o fluxo de capital estrangeiro ao país,
torna-se cada vez mais dependente da ajuda estrangeira. É dessa maneira que o Haiti
atravessa o século XIX e adentra o século XX. No campo político o que se observa a
partir da independência da República Dominicana, em 1844, é uma sequência de golpes
que só cessarão com outro grande golpe: a invasão americana em 1915.
Outro fator que contribuirá decisivamente para o Haiti
desenvolver essa dependência externa pode ser buscado no fato de que, como afirma
Ferro (2004:243), assim que se tornou independente, o Haiti constituiu um objeto de
rivalidade entre quatro potências: França, Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos,
visto que constituía um novo mercado, em tudo dependente.
Ferro (2004:246-47) aponta quatro diferentes razões para
justificar o interesse das potências pelo Haiti. São elas: a sua situação estratégica na rota
do Panamá, bem como a possibilidade de contar com um porto aberto para reabastecer-
24
Trata-se da Campanha Anti-supersticiosa levada a cabo durante a presidência de Élie Lescot a partir de
1941 e que visava a, segundo Pierre-Charles, (1991-190), “erradicar as práticas religiosas de ordem
africana o vodu da mente do povo mediante o auto-de-fé, a destruição e o incêndio dos templos,
altares e objetos de culto, a perseguição e a execração dos crentes.”
57
se, num Estado independente como o Haiti; a necessidade do país de transformar-se
economicamente, o que demandava grande afluxo de capital; o controle de seu
comércio exterior e, finalmente, o controle das dívidas contraídas pelos haitianos,
garantidas por firmas estrangeiras. O empenho está direcionado à máxima exploração
dos parcos recursos haitianos, dando novas formas ao colonialismo sempre latente.
Os franceses, apesar das intercorrências da independência
haitiana, ainda detinham, nesse início de século, a hegemonia, tanto cultural quanto
econômica no Haiti. Todavia, por volta de 1910-1911, os Estados Unidos suplantaram
os franceses, tornando o Haiti uma espécie de protetorado norte-americano no Caribe.
Ferro (2004:245), afirma que “foi durante esse período que os americanos forjaram a
arma de sua supremacia e de sua vitória: a implantação econômica e financeira.” A
primeira intervenção norteamericana no Haiti ocorreu no período de 1915 a 1934.
Os Estados Unidos inauguram novo modelo de ocupação,
forjado sobre um discurso que, além de reforçar determinados estigmas, alguns dos
quais herdados da revolução, passa a justificar toda sorte de intervenções que o Haiti
sofreria dpor diante. A tão propalada defesa da democracia e a manutenção da ordem
no seu „quintal‟ permitem que os E.U.A passem a controlar, ainda que indiretamente, a
vida política e econômica do Haiti. Como afirma Ferro, (2004:255), “Uma das
desculpas invocadas para justificar a intervenção foi a instabilidade do governo
haitiano. Seitenfus (1994:35) ao analisar o período em questão, resume os interesses
que orientavam a invasão, afirmando que os Estados Unidos, antes de tudo, almejavam
obter condições mínimas para investimentos e proteção de seu capital.”, indicando ainda
que o resultado desse processo é o fortalecimento do nacionalismo, que compreende
inclusive esporádicas rebeliões.
Após quase duas décadas de ocupação, de um
colonialismo travestido, o povo haitiano - levado uma vez mais ao seu limite e
organizado em torno de movimentos sociais que ganharam força no período, como o
nacionalismo, o negrismo e o socialismo -, se insurge contra ingerências culturais e
capitalistas do „colonizador‟. Segundo Pierre-Charles (1991:184),
Após 15 anos de „pax americana‟, imposta mediante a lei marcial, o
cárcere, o terror tecnológico e a intimidação sob todas as suas formas,
um poderoso movimento nacionalista voltou a surgir em 1928-1929
58
contra os marines e os governos-títeres impostos por eles. Este
movimento traduzia o repúdio das massas às forças estrangeiras, o
qual se manifestou sob várias formas desde o início da agressão.
Também expressava o descontentamento de amplos setores da
pequena burguesia humilhada pela soldadesca racista, [...] e o
inconformismo de uma fração dos tradicionais grupos desalojados do
poder e dos privilégios do mesmo pelas forças estrangeiras.
Em 1934 os norte-americanos retiram suas tropas do Haiti,
visto que não havia mais necessidade da presença física dos marines para garantir a
influência estadunidense na ilha. A ocupação deixara um pesado fardo para as futuras
gerações haitianas: uma elite entreguista e corrupta, que se distinguia apenas pela
questão epidérmica entre negros e mulatos, como aponta Pierre-Charles (1991:185).
Nos anos que se seguem ao que é considerado como a segunda colonização do Haiti o
que se são negros e mulatos se revezando no poder, ambos se utilizando do aparato
estatal para fortalecer seu poder econômico e tentar se perpetuar no controle. “A dupla
dominação, pela elite local e pelo imperialismo, não podia senão mergulhar na mais
tremenda miséria o conjunto da população.” (PIERRE-CHARLES, 1991:187).
No contexto de mais uma crise surge Jean François Duvalier, o
Papa Doc. Figura emblemática da política haitana, o médico Jean Francois Duvalier, o
Papa Doc (papai doutor), chega ao poder em 1957, segundo Pierre-Charles (1991:202),
após uma crise da hegemonia dos grupos tradicionais de poder [...], reforçada por [...]
conflitos socioeconômicos e políticos [...], muitos dos quais remanecentes ainda da
ocupação americana. François Duvalier representava a elite negra haitiana, mas
transitava com desenvoltura pelos diferentes setores da sociedade haitiana e
representava, dada a crise, uma garantia à manutenção do status quo daquela sociedade
e dos interesses imperialistas norte-americanos. Segundo Pierre-Charles (1991:207):
Este elemento era o que oferecia mais garantias quanto à manutenção
da ordem, por ser representante da oligarquia negra e por ter fortes
laços com certas frações da elite mulata, assim como por contar com o
apoio direto do imperialismo norte-americano.
Apesar de ter entrado para a história como um ditador frio
e sanguinário, François Duvalier possuía um refinado grau intelectual, tendo sido
diplomado pela Universidade d‟État de Port-au-Prince e pós-graduado em Sociologia
59
pela Sorbonne em Paris. Esta especialização certamente contribuiu para que se tornasse
um defensor da cultura haitiana e para a sua aproximação com o movimento da
negritude. Segundo Grondin (1985:44), “seu programa político era apoiado em estudos
da realidade haitiana, publicados em vários livros de sua autoria.”
Suas qualidades pessoais, ligadas a um programa de
governo marcado por forte ideologia populista, vinculadas à defesa da negritude, lhe
valeram a admiração das massas que, ainda hoje, contrariando grande parte das
expectativas, enfatizam sua popularidade, provocando inclusive certa nostalgia por parte
daqueles que viveram aquele período.
O governo de Duvalier é marcado pela dissonância entre
discurso e práxis, sendo esta, aliás, uma constante da política haitiana. Sua aproximação
com alguns elementos da cultura haitiana, como o vodu, por exemplo, foi vista por
muitos como uma tentativa de instrumentalização da cultura haitiana a fim de atender as
suas aspirações políticas. Segundo opositores, François valeu-se de sua proximidade
com essa cultura para se eleger presidente. Outra crítica recorrente diz respeito ao
alinhamento da política haitiana com o imperialismo norte-americano durante o seu
governo. Grondin (1985:48) afirma que
ao se declarar defensor dos interesses da grande maioria negra do país
[...] e aparentando favorecer, com sua ideologia de „negritude‟ certos
elementos culturais da massa negra, como a língua créole e o vodu,
Duvalier manipulou as massas e projetou-se como o presidente delas.
Para manter-se no poder, Duvalier submeteu o país à hegemonia
norte-americana no Caribe: fez do Haiti um satélite incondicional do
país do Norte [...] E com o apoio do governo americano, instalou no
país um regime de terror.
A posição ocupada pelo Haiti no Caribe é determinante na
condução de sua política externa. Sua proximidade com Cuba alimentou ideais
políticos-ideológicos marcados por disputas entre esta e os E.U.A, ao mesmo tempo que
sua relativa proximidade com Miami não permitiu que ali se desenvolvesse um mercado
interno e uma economia voltada para a exportação. O que se observa é uma economia
altamente dependente do capital estrangeiro, principalmente com relação ao comércio
norte-americano que controla também grande parte da elite política, passiva e
subserviente.
60
Duvalier morre em 1971 e deixa mais uma amarga
herança ao povo haitiano. François, que se tornara presidente vitalício do Haiti em 1964,
conseguiu, através de manobras políticas e do apoio da Câmara Legislativa, estender
esse direito a seu filho, mediante decreto.
Jean-Claud Duvalier, O Baby Doc, em nada se comparava
ao pai “o filho não tinha a estatura intelectual, profissional e política do pai
(GRONDIN, 1985:48). A influência do governo norte-americano teve um peso decisivo
na sua ascensão ao poder. A falta de preparo e competência política do jovem Duvalier
foi minimizada pelo maciço aporte financeiro norte-americano. Segundo Grondin
(1985:50)
Jean-Claude contraiu consideráveis empréstimos; criou as Zonas
Francas, onde os industriais estavam livres de impostos; abriu grandes
portas às empresas industriais de subcontratação, que empregam mão-
de-obra barata, principalmente feminina, [...], e convidou os grandes
organismos internacionais Banco Mundial, BID, PNUD, FAO,
OMS, etc. e nacionais China Nacionalista, Israel, Estados Unidos
(AID), Canadá (ACDI) para implantar projetos destinados a
modernizar o país e solucionar seu problema de miséria endêmica.
Parte significativa desse numerário teve como destino os
cofres da família Duvalier, aumentando ainda mais o seu poderio econômico e,
consequentemente, estendendo o seu domínio sobre praticamente todos os setores da
sociedade haitiana.
25
Em fevereiro de 1986 a situação torna-se insustentável e Jean-
Claude Duvalier deixa o país, confirmando, por um lado, a sua inaptidão para levar a
frente um projeto que começara com seu pai, em 1957 e, por outro, a força das massas
oprimidas. Jean-Claude não conseguira conciliar os interesses da ala duvalerista, mais
conservadora e linha-dura, com os da oposição que, contaminada por uma conjuntura
favorável, vivida em grande parte da América Latina naquele período, pressionava pelo
fim de um governo que, efetivamente, muito embora as suas promessas, fizera muito
pouco. Pierre-Charles (1991:221), avaliando a papadocracia, como ficou conhecida, a
descreve respondendo a pergunta:
25
Em contrapartida, o grosso da população padecia diante de um quadro crescente de miséria e abandono.
A fome generalizada seifava a vida de uns tantos, enquanto outros, cuja força ainda não lhes faltara, se
lançavam ao mar em embarcações precárias em busca de uma morte menos trágica talvez.
61
Qual foi o saldo deste longo período de François Duvalier? Segundo a
avaliação feita por diversos setores da oposição, pela fome e pela
doença nos cárceres; perto de meio milhão de expatriados, uma
juventude perturbada, sacrificada e totalmente pervertida, uma
economia arruinada, a própria nação traumatizada, o homem haitiano
profundamente alterado em seu ser por esta maquinaria do terror e da
corrupção.
A supremacia dos Duvalier, apoiada nos ditames da
política imperialista norte-americana, e sempre atenta aos interesses destes, acabou por
levar o Estado haitiano a uma situação limite. Ao fim dos quase trinta anos de
desgoverno, o que se via era um país afetado por um modelo que, apesar de revestido
por nova roupagem, estava permeado pelos ideais colonizadores e racistas que sempre
orientaram as políticas dirigidas ao pequeno país das Antilhas, que se veria, após um
breve hiato, a mercê da ingerência estrangeira.
É sobre essa base histórica que se desenvolvem as lides
haitianas que acabam cuminando com o estabelecimento da MINUSTAH em 2004. A
fuga de Jean-Claude produz um vácuo de poder que dura aproximadamente cinco anos e
terá fim com a primeira eleição de Jean-Bertrand Aristide à presidência, em 1991. É
também sobre essa estrutura secular de poder que os discursos e as identidades haitianas
vão sendo performaticamente forjados, corroborando determinadas representações, que,
em que pese o distanciamento e a singularidade histórica, permanecem atrelados a um
passado que, no Haiti, parece não silenciar jamais, fazendo-se sempre presente.
A compreensão desse breve período supracitado, por nós
denominado „Era Aristide‟, que se inicia por volta de 1986, com a queda de Jean-Claude
Duvalier e termina em 2004, com o estabelecimento do mandato da FMP (Força
Multinacional Provisória), é imprescindível para entendermos como o Haiti e seu povo
vão de uma ditadura sanguinária dos Duvalier - à uma intervenção que ainda não
conheceu fim. Vejamos como é desenhado esse percurso.
62
PARTE 2
DA ‘ERA ARISTIDE’ À MINUSTAH: ESPERANÇA E DESILUSÃO
2.1 - A Era Aristide’: tout moun se moun
O sofrimento de um homem é o sofrimento
do Homem. Nossa política quer-se, dia após
dia, testemunho eloqüente dessa fidelidade.
Fidelidade ao Homem.
(ARISTIDE, 1995:190)
O Haiti experimentou, sobretudo ao longo das duas
últimas décadas, uma problemática sequência de intervenções da ONU, empreendidas
principalmente sob os auspícios da França e dos Estados Unidos, com os quais sempre
estivera ligado por laços culturais ou protecionistas. Segundo Seitenfus, (2005:2), os
reiterados fracassos da comunidade internacional, dividida entre a indiferença e a
intervenção paternalista, exige um repensar de sua estratégia de ação no Haiti.” Assim
sendo, essas interferências tiveram como reflexo mais evidente o impositivo
estabelecimento de uma missão conjunta, conduzida principalmente por países
subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, latino-americanos em sua maioria, cujos
contingentes militares perfilaram-se, em solo haitiano, sob a liderança do Brasil. Este
fato, segundo apontam alguns analistas, coloca essa última empreitada como um divisor
de águas no que se refere ao estabelecimento e ao emprego de operações desse caráter.
26
Para entender o contexto em que se configura o
estabelecimento da MINUSTAH, bem como o surgimento de alguns atores centrais
dessa trama, nos reportaremos ao ano de 1986, momento de inflexão, uma vez que
26
A análise desses conturbados períodos intervencionistas pode ser esclarecedora, quando buscamos
apreender, numa perspectiva histórica, os percursos e as contingências, sócio-político-econômicas e
culturais que culminaram com a problemática situação político-institucional do Estado haitiano.
Buscaremos, nesse primeiro momento, problematizar o sentido das sucessivas “intervenções” - sobretudo
daquela que se constitui como objeto de nosso trabalho, a MINUSTAH -, que muito pesam sobre o
Haiti, perscrutando a documentação produzida pelos organismos interventores, bem como àquela que
surge como contraponto, ou seja, os relatórios e artigos produzidos principalmente por Organizações Não
Governamentais (ONGs) ou estudiosos do assunto, que constituem, não raro, um argumento crítico dessas
operações.
63
marca, como vimos na primeira parte, o fim do período duvalierista, iniciado em 1957,
com François Duvalier, o Papa Doc, e o início do que poderíamos chamar de Era
Aristide, com a fuga de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, em 1986.
27
Faremos uma
análise buscando apreender principalmente as condições histórico-sociais em que estão
imersos nossos sujeitos discursivos e conseqüentemente as condições de produção dos
discursos que serão analisados na sequência. Segundo Santos (2004:113)
Essa macro-instância partiria da perspectiva de uma explicitação das
condições de produção de uma determinada manifestação discursiva.
Tal explicitação envolveria: i) uma descrição das características
históricas; ii) uma percepção do cenário social; iii) uma interpretação
do lugar dos sujeitos nesse cenário; iv) um esboço da situação
enunciativa instaurada e v) uma projeção de sentidos produzidos nessa
conjuntura interativa. O resgate desses elementos delineia as fronteiras
discursivas do processo enunciativo em enfoque.
O estabelecimento da MINUSTAH ocorreu por força da
resolução 1542, de 30 de abril de 2004
28
, num momento em que o Haiti, uma vez mais,
era marcado por intensas e polarizadas disputas político-ideológicas, que tinham como
ator principal o ex-clérigo Jean-Bertrand Aristide
29
. Titid, como é denominado no Haiti,
dominou o cenário político haitiano praticamente por todo o período posterior a
derrocada de Jean-Claude Duvalier, em fevereiro de 1986, tendo sido eleito presidente
em dezembro de 1990, de acordo com algumas fontes, com 67% dos votos. O espólio
27
Esse recuo carecerá de um aprofundamento maior, se abstendo de apresentar os pormenores de um
período, que por si só, seria merecedor de um estudo de maior detalhamento, o que demandaria tempo e
atenção que não dispomos em virtude da natureza de nosso trabalho.
28
Em sua resolução 1542 (2004), de 30 de abril de 2004, o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu a
Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) por um período inicial de seis meses,
com a intenção de prorrogá-la por novos períodos e pediu que a autoridade da Força Multinacional
Profissional (FMP) fosse passada à MINUSTAH em 1° de junho de 2004.
29
Jean-Bertrand Aristide, ex-padre católico, foi expulso da ordem dos Salesianos em 1988, sob a
alegação de que se utilizava de seu púlpito para questionar as decisões políticas implementadas no Haiti,
principalmente pelos Duvalier. A sua ligação com a telologia da libertação, mal vista pelo Vaticano,
também contribuiu para a sua expulsão. Aristide angariou um grande apoio popular, atraindo,
conseqüentemente, a atenção de políticos, militares e oposicionistas que insatisfeitos com o teor de seus
sermões promoveram sucessivos atentados contra o próprio, como em uma tentativa de assassinato em
1987, e contra seus seguidores, quando incendiaram a Igreja St. Jean Bosco, sede paroquial de seus fiéis,
matando muitos deles queimados. Estes atentados, ao contrário do que se esperava, fortaleceram ainda
mais o ex-padre, ao passo que também fez crescer o ódio e o rancor das oposições que, daí para frente
radicalizariam ainda mais, tornando insustentáveis as sucessivas tentativas de Aristide a frente do governo
haitiano.
64
de quase trinta anos de ditadura dos Duvalier, segundo Pierre-Charles (1990:234-35), é
um Estado em crise: A situação do povo se torna cada dia mais explosiva, enquanto a
crise vai-se acentuando. Tal caldo econômico-social nutre os grandes conflitos políticos
que se gestam hoje no Haiti.
A queda de Baby Doc representa, teoricamente, um ponto
de inflexão na condução do jogo político haitiano. Teoricamente, porque na realidade
houve continuidade no descalabro das políticas públicas e institucionais e o grosso da
população permaneceu imersa na miséria e violência. Segundo Câmara (1998:54):
O fim do Governo de Jean-Claude Duvalier não exorcizou do Haiti os
demônios de seu arraigado autoritarismo. O duvalierismo
permaneceria sem os Duvaliers, reunindo à sua volta expoentes do
antigo regime, os macoutes, a oligarquia rural, as elites urbanas e as
Forças Armadas, desejosos de manter os status quo do „escravagismo‟
da ditadura.
No período compreendido entre 1986 e 1990, o cenário
político haitiano seria dividido por duas forças antagônicas: uma duvalerista, ligada aos
interesses e ideais do período imediatamente anterior, ressentida do poder, e a outra
constituía uma oposição a esse modelo que, com pensamentos democratizantes, buscava
extirpar os resquícios materiais e simbólicos ligados aos Duvalier, principalmente os
macoutes, mediante uma operação que ficou conhecida por déchoukaj. “Nos quatro
anos que se intercalaram entre a derrocada da ditadura duvalierista e a vitória eleitoral
do Presidente Juan-Bertrand Aristide, o Haiti teve cinco governos, três dos quais
militares” (CÂMARA, 1998:55). Aristide surge em meio a esse caudal de
transformações e tornar-se-ia uma figura emblemática e problemática, na conturbada
política haitiana. O próprio Aristide (1995:180), discursando na Assembléia Geral da
Organização das Nações Unidas, em Nova York, a 25 de setembro de 1991, resume,
com uma retórica que lhe é peculiar, o período em questão, parecendo profetizar alguns
desdobramentos futuros:
em 1986, para a surpresa do mundo inteiro, o povo haitiano derrubou
um regime ditatorial de trinta anos. Tal foi o princípio do fim de uma
ditadura cujas marcas são indeléveis. Quanto mais essas marcas nos
65
interpelam, tanto mais gritamos com toda nossa força: Liberdade ou
morte, liberdade ou morte‟.
De fato, o rompimento com o modelo político duvalierista
e as arcaicas estruturas ditatoriais, parecia apontar para uma mudança de atitude, tanto
da classe política quanto da população, insuflada pela torrente Lavalas
30
. Em seu
discurso na Assembléia Geral da ONU em 1991, Aristide parece ter a noção dos
desafios que se interpunham entre o ideal e o real, como fica demonstrado em sua fala.
A surpresa do mundo inteiro demonstra o descrédito, o princípio do fim, o
prolongamento de um mal que perdura, as marcas, a perpetuação dos paradigmas e
por fim o chamamento parece antecipar, dada a precariedade e penúria em que se
assentavam as bases institucionais de seu governo, o futuro do povo haitiano, cuja
liberdade, naquele momento, não se apresentava como primeira opção. Ainda segundo
Câmara (1998:60):
Com a bandeira do lavalas, Aristide inquietava as classes dominantes,
[...] A política do lavalas inquietava também os militares, que viam
com desagrado o grande poder de mobilização de que gozava o Père
Titid entre as camadas mais pobres da população.
Aristide toma posse em 07 de fevereiro de 1991. Nessa
mesma data, Roger Lafontant, ex-chefe dos Tonton Macoutes, ferrenho opositor,
comanda um golpe militar, frustrado por uma onda de manifestações populares e pela
falta de apoio, das Forças Armadas. Titid tenta implementar sua estratégia
lavalassiana (CÂMARA, 1998:63), dando início a uma ampla reforma político-
administrativa, que não foi bem recebida por amplos setores que, direta ou
indiretamente, ainda tinham influência na vida política haitiana.
Aristide foi vítima de um segundo golpe, supostamente
perpetrado pelo Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, General Cedras, em 29 de
setembro de 1991, pouco mais de sete meses após a assunção de seu mandato.
31
É
30
Nome do partido criado por Aristide, inspirado na palavra crioula que significa “águas torrenciais que
limpam tudo à sua frente.”
31
Omitiremos os pormenores desse conturbado período visto este não constituir o enfoque de nossos
estudos e ainda os motivos apontados anteriormente. Maiores detalhes a esse respeito podem ser buscados
na bibliografia arrolada.
66
possível inferir, a partir do recorte apresentado por Cavallaro (2005:6) no relatório
Mantendo a paz no Haiti?, o quão conturbado estava o quadro político haitiano
naquele início de década:
Aristide foi feito refém de um golpe militar em 29 de setembro de
1991, porém, após negociações com a comunidade internacional, o
exército deixou-o sair do país. Às 3:00 horas, um avião das Forças
Aéreas Venezuelanas chegou a Porto Príncipe para acompanhar
Aristide até Caracas e de com destino a Washington, D. C., onde
permaneceria por três anos enquanto negociava a retomada do poder.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos avaliou que “milhares
de haitianos podem ter sido mortos durante o regime militar de facto”
que sucedeu o golpe. O International Crisis Group estimou que entre
3.000 e 5.000 pessoas foram mortas em três anos de regime militar. A
organização de direitos humanos Human Rights Watch afirmou que
“outros milhares foram „desaparecidos‟, torturados, espancados,
estuprados e explorados”. Ademais, aproximadamente 100.000
haitianos fugiram do país, e 300.000 foram exilados dentro do país.
O quadro sócio-político haitiano, que era crítico, fica
fora de controle, dando ensejo, por força da resolução 867, do CSNU, de 23 de
setembro de 1993
32
, ao estabelecimento de uma série de Operações, algumas delas
lideradas pela OEA. Essas iniciativas ocorreram durante toda a década de 1990 e
culminariam, dado os sucessivos fracassos, com o estabelecimento da MINUSTAH,
objeto de nosso trabalho. Ainda segundo o relatório supracitado, (2005:7):
Ao fim de junho de 1993, o diplomata da ONU Dante Caputo chegou
a Nova Iorque para negociar um acordo entre o General Cédras e o
Presidente Aristide. Após dias de negociações, [...] as partes assinaram
32
Considerando que existe a urgente necessidade de garantir as condições adequadas para a plena
aplicação do Acordo da Ilha dos Governadores e os acordos políticos que figuram no Pacto de Nova
Iorque, contidos no anexo ao informe do Secretário Geral de 13 de agosto de 1993 (S/26297), 1. Aprova a
recomendação do Secretário Geral, contida em seu informe de 21 de setembro de 1993 (S/26480) e em
seu informe de 25 de agosto de 1993 (S/26352), de que se autorize o estabelecimento e o imediato envio
da Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH) por um período de seis meses, com sujeição a condição
de que a dita Missão se extenderá depois do prazo de 75 dias somente depois do conselho efetuar um
exame sobre a base de um informe do Secretario Geral em que indicará se se logrou ou não progressos
reais na aplicação do acordo da Ilha dos Governadores e dos acordos políticos que figuram no Pacto de
Nova Iorque; Disponível em: <
http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N93/515/33/PDF/N9351533.pdf?OpenElement>, p. 2.
Acesso em: 29 de setembro de 2009.
67
o Acordo da Ilha do Governador
33
[...] Aristide voltaria ao poder em
30 de outubro de 1993. [...] no dia 30 de outubro, soldados de paz da
ONU chegaram ao Haiti. Contudo, Aristide voltaria ao país apenas em
1994. Em 29 de julho de 1994, os Estados Unidos haviam decidido
que uma intervenção militar seria necessária para devolver o poder a
Aristide. A resolução 940 do Conselho de Segurança da ONU
concedeu aos Estados Unidos a autoridade para intervir em nome da
ONU. Em 19 de setembro de 1994, [...] tropas americanas, “o
primeiro contingente do que tornar-se-ia uma força internacional de
21.000 soldados”, chegou a Porto Príncipe.
O Haiti se encontrava, uma vez mais, sob a ocupação dos
Estados Unidos, que se respaldaram na expulsão dos observadores internacionais da
MICIVIH (Missão Civil Internacional no Haiti), para justificar mais uma intervenção
militar naquele país; esta, porém, resguardada sob o manto das Nações Unidas.
(CÂMARA, 1998:158). Ainda segundo esta autora, naquele momento as principais
questões que pesaram nessa decisão foram a antipatia do governo norte-americano por
Aristide, nutrida desde o governo Bush e, principalmente, as vagas de Boat People
34
que
abandonavam o Haiti em direção aos países do Caribe e à costa dos E.U.A., ou seja, a
abjeção ao imigrante haitiano, o anti-haitianismo
35
.
Contudo, esta é uma ocupação que guarda relativa
distância, não apenas temporal, daquela do início do século XX, de 1915 a 1934, pois se
legitimada pelo CSNU, não obstante a celeuma criada em torno da situação. Foi
estabelecido um acordo entre os representantes do governo norte-americano e o então
Presidente provisório do Haiti, (Émile Jonassaint), assentindo, por meio de negociações
escusas, que previa, entre outras coisas, uma lei de anistia geral e uma antecipada e
honrosa aposentadoria para a cúpula militar golpista, no que pode ser considerada uma
invasão consentida (CÂMARA, 1998:161).
33
O Acordo da Ilha dos Governadores priorizava quatro pontos principais e que deveriam ser
implementados por ambas as partes, quais sejam: Uma trégua política e a formalização de um pacto social
para garantir o processo de transição pacífica do poder; obter um acordo para a normalização do
Parlamento haitiano; implantar procedimentos parlamentares, com vistas à aprovação do nome do
primeiro-ministro a ser designado pelo Presidente; e a aprovação das leis necessárias para garantir o
processo de transição.
34
O Haiti tornou-se referência mundial desse tipo de migração desde o golpe de 1991 contra o
presidente Jean Bertrand Aristide. O golpe militar foi seguido de uma profusa onda migratória realçada,
sobretudo, por centenas de balseiros (boat people) que se lançaram ao mar rumo a vários países do Caribe
e aos Estados Unidos, fugindo da miséria econômica, da violência e da instabilidade. (SCARAMAL,
2006:92)
35
“O anti-haitianismo tornou-se consenso entre os estudiosos das relações dominico-haitianas. Em
deferência a esses estudos, mantém-se o termo.” (SCARAMAL, 2006:128)
68
Os marines norte-americanos desembarcam, uma vez mais
no Haiti para, supostamente, solucionar problemas que de certa maneira estavam
atrelados ao desgaste gerado pela primeira intervenção, ocorrida de 1915 a 1934, vista
como uma neocolonização haitiana. Sob o risco de protagonizar, novamente, uma
intervenção unilateral, os E.U.A buscam envolver os organismos internacionais,
ONU/OEA, na empreitada haitiana, visando a principalmente justificar suas ações
intervencionistas e diluir os gastos daí advindos. Câmara (1998:138), observa que:
Não desejando arcar com o ônus político de uma aventura unilateral
de intervenção, a administração norte-americana não viu saída melhor
do que a de favorecer o envolvimento da ONU, seja através da
participação direta da Assembléia Geral, [...] seja mediante a
transferência da direção do assunto para a égide do Conselho de
Segurança, solução essa que traria ainda o dividendo adicional da
distribuição mais equitativa das responsabilidades financeiras da
operação Haiti.
A intervenção de 1915, como destacado, deu início a um
período de ingerência norte-americana no Haiti, que ainda não cessou. Direta ou
indiretamente, com a intervenção no período de 1915-1934, a política haitiana passou a
ser orientada pelo Departamento de Estado norte-americano. Ainda que veladamente, o
governo estadunidense teve atuação efetiva nos bastidores da política de Estado do
Haiti; promovendo golpes ou apoiando e dando cobertura, apoio financeiro inclusive a
ditadores sanguinários, como os Duvalier, a política norte-americana foi sempre pró-
ativa com relação ao Haiti, reafirmando um paternalismo débil e cercado de
fragilidades. Segundo Pierre-Charles (1990:183):
O ano de 1915 marca uma data importante na história do Haiti e na
evolução do sistema sociopolítico. É o fim de 111 anos de
independência formal, uma independência duramente conquistada,
que se foi dissolvendo pelo entreguismo das classes dirigentes locais e
pelos apetites expansionistas dos Estados Unidos [...] É o início da
neocolonização do Haiti por parte do imperialismo ianque, o começo
de um período de modernização, o qual, sem mudar as bases, pretende
modificar o conjunto. Em outras palavras, em 1915 termina um
período da história do Haiti e começa outro que vem se manifestando,
sobretudo, no nível do sistema político, um sistema concebido e
modelado pelas forças de ocupação e que vem sustentar todo o
edifício econômico, social e cultural haitiano desde então.
69
De fato, aproveitando o pretexto do caos, e proclamando a
necessidade de restaurar a ordem nesse país de “negros incapazes de
se governarem a si mesmos”, os Estados Unidos desembarcam suas
tropas e procedem à ocupação militar do país, dando assim livre curso
ao afã expansionista que já vinham manifestando, desde a guerra
hispano-norte-americana.
Oitenta anos se passaram e o pretexto do caos, do qual fala
Pierre-Charles (1990), continua orientando as demandas norte-americanas. A parceria
ONU/OEA, após o golpe de 1991, resulta, num primeiro momento, na criação da
MICIVIH, que acaba levando à invasão dos marines norte-americanos, supostamente
em função das hostilidades sofridas pelos membros dessa missão pelos golpistas
haitianos. A resolução 867, de 1993, criou as condições para que as forças da ONU se
estabelecessem no Haiti por meio da UNMIH, Missão das Nações Unidas no Haiti, a
primeira Operação de Manutenção da Paz no país. Como ressaltado, as tropas da ONU
começariam a se estabelecer efetivamente apenas um ano mais tarde, em outubro de
1994, assumindo suas funções de maneira plena em março de 1995, oportunidade em
que o comando das operações foi passado dos Estados Unidos à UNMIH.
A conturbada década de noventa no Haiti foi ponteada por
operações da ONU, algumas em parceria com a OEA e outras que contaram também
com a participação da CARICOM, Comunidade do Caribe, órgão que teve participação
ativa no estabelecimento da MINUSTAH. Como destacam (RODRIGUES;
RODRIGUES; OLIVEIRA, 2007:2):
Durante a década de 1990, o Conselho de Segurança aprovou as
seguintes [missões]: a Missão Civil Internacional no Haiti
(MICIVIH), que fora criada pela OEA e ao qual a ONU se somou, em
1993; a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH), primeira
missão da organização no país, criada em 1993; a Missão de Apoio
das Nações Unidas no Haiti (UNSMIH), em 1996; a Missão das
Nações Unidas de Transição no Haiti (UNTMIH), em 1997; a Missão
de Polícia Civil das Nações Unidas no Haiti (MIPONUH), em 1997; a
Missão de Apoio Internacional Civil no Haiti (MICAH), em parceria
com a OEA e o CARICOM, em 2000, cujo mandato terminou em
6/2/2001, um dia antes da posse do presidente Jean-Bertrand Aristide.
Todas essas missões tiveram mandatos limitados, tanto em
relação ao escopo de sua atuação, quanto com respeito ao tempo de
sua existência. O término da última coincidiu com o fim do mandato
de René Préval, único presidente haitiano a completar seu mandato
sem interrupção.
70
Aristide retomou o poder em setembro de 1995; apesar de
ter cumprido grande parte do seu mandato in absentia, este promoveu novas eleições
que foram realizadas em dezembro de 1995, tendo como candidato eleito o
representante do Lavalas, René Préval. Apesar do baixo índice de votantes, 28% da
população, e das suspeitas, contestando a lisura do processo eleitoral, o candidato de
Aristide foi eleito com cerca de 88% dos votos, segundo Cavallaro (2005). Préval se
destacaria por ser o primeiro presidente eleito a terminar um mandato sem interrupções,
o que sugere que, em alguma medida, as operações da ONU contribuíram para garantir
alguma estabilidade ao Haiti no período coberto pelo seu mandato, apesar do fracasso
que sempre lhes é atribuído.
Após as eleições de 1995, devido às dissensões internas, o
Lavalas cindiu-se, surgindo a Organização dos Povos em Luta (OPL), que logo passaria
à oposição, contribuindo decisivamente para a crise de 2003. Em 1996 cria-se o Fanmi
Lavalas (FL). Este partido estará, direta ou indiretamente, envolvido nos principais
acontecimentos políticos a partir de então, muitos dos quais ligados a atos violentos e,
inclusive, a violações dos direitos humanos. uma estreita, e por vezes conflituosa,
relação entre o Fanmi Lavalas e seu fundador e mantenedor, Jean-Bertrand Aristide.
Novas eleições foram realizadas em 2000, em meio a uma
crise política e institucional que se estendera por cerca de vinte meses. Uma vez mais, o
FL logrou êxito e seus candidatos foram declarados vencedores em aproximadamente
metade das vagas disputadas. Titid foi eleito presidente quase uma década depois de sua
primeira e controversa experiência à frente do governo haitiano. Era o princípio do fim.
No bojo dessas eleições surgiram contradições políticas
insuperáveis e de graves conseqüências. Com a definitiva polarização da política
haitiana novas dissensões se configuraram. A OPL passa a se chamar Convergência
Democrática (CD) e a partir dessas eleições o conturbado quadro cio-político e
econômico haitiano se agravaria, culminando com o estabelecimento da MINUSTAH,
em junho de 2004. Segundo Cavallaro (2005:8):
No meio de alegações de irregularidades eleitorais, protestos
contínuos por parte da Convergência Democrática e baixa votação,
Aristide foi eleito Presidente em novembro de 2000, em eleições
boicotadas pela oposição, que a OEA tinha se negado a monitorar.
Com tudo isso, Aristide tomou posse em 7 de fevereiro de 2001.
71
Meses depois, a violência entre Lavalas e a oposição estourou em
Porto Príncipe e pelo país inteiro.
As eleições, em maio de 2000, que em princípio
constituiriam um marco, devendo representar um reforço das bases democráticas da
intrincada política haitiana, tiveram um efeito contrário e desalentador. A frágil
estabilidade se esvaia frente à tensão manifesta na violência perpetrada pelos seguidores
de Aristide, denominados „Quimeras‟. As denuncias de fraude, corrupção e violência
feitas pela oposição contra os partidários de Titid, representados pelo Fanmi Lavalas,
jogaram por terra o que havia sido duramente conquistado, ainda que precariamente. As
eleições foram impugnadas, não pela oposição, mas também pela comunidade
internacional, sob o argumento de que o Fanmi Lavalas, com o apoio do governo,
manipulara o escrutínio. Entretanto, em novembro desse mesmo ano, em novas eleições
presidenciais e senatoriais, boicotadas pela oposição, Aristide se elege e assume o poder
em fevereiro de 2001.
Adama Dieng, Especialista Independente, contratado pela
ONU para prestar serviços de assessoramento e cooperacão técnica em matéria de
direitos humanos, deixa evidente por meio de seu Informe sobre a situação dos
direitos humanos no Haiti -, (DIENG, 2001:7-8), como o processo eleitoral, que deveria
representar um passo adiante na consolidação dos princípios democráticos haitianos,
paradoxalmente se converte em ponto de dissídio, reacendendo antigas discussões e
trazendo de volta velhos fantasmas.
a oposição agrupada no movimento Convergência Democrática
decidiu não participar das eleições presidenciais e senatoriais de 26 de
novembro de 2000. Isso não impediu que o Governo organizasse as
eleições [...] cuja taxa de participação foi de 60% segundo o CEP
[Conselho Eleitoral Provisório], de 30% segundo os observadores
presentes, de 10% segundo os jornalistas e, por último, de 2% segundo
os partidos de oposição que não participaram nas eleições. Desde
logo, a eleição presidencial foi vencida sem surpresas pelo candidato
Jean-Bertrand Aristide. Também era previsível a reação dos partidos
de oposição agrupados na Convergência Democrática. Assim,
reapareram os fantasmas da ditadura, do golpe de Estado e de outras
formas de governo que tanto fizeram haitianos sofrer.
72
A escalada de violência não cessa mesmo após as eleições.
“A violência persistente entre o governo e a oposição levou esta a reivindicar
publicamente, no fim de 2002, o afastamento de Aristide.” (HARVARD & GLOBAL,
2005:9). A oposição, composta por dissidentes políticos, ex-lavalistas, ex-militares (as
Forças Armadas do Haiti - FAd‟H, foram dissolvidas por Aristide em 1995) se mobiliza
e começa a pressionar pela sua saída. A situação do país se deteriora a cada dia e a sua
permanência à frente do governo torna-se insustentável. Adama Dieng (2001:6)
descreve a degradação sócio-política do Haiti, observada durante uma de suas visitas,
realizada entre julho e setembro de 2000:
o especialista Independente reitera sua observação de que como pano
de fundo da polarização política existe uma violência cotidiana
caracterizada por assaltos, assassinatos, agressões e roubos. A esse
sombrio panorama se soma a miséria que impera nas clases sociais
menos favorecidas, as quais sofreram muitos padecimentos e seguem
experimentando dificuldades de acesso à água potável, à saúde, à
habitação e à educação, e, sobretudo, à justiça e ao direito, isto é, aos
serviços jurídicos. É urgente que se afrouxe a tensão e se encontre
uma solução no marco do Estado de direito e conforme as aspirações
da população haitiana. A população deve ser a preocupação primordial
de todos os protagonistas, inclusive da comunidade internacional.
No final de 2000, a polarização da política e a violência
daí advinda tornam cada vez mais crítico o cotidiano da população, particularmente da
menos favorecida, que constitui o grosso da população. Aristide, que surgira no final da
década de 1980 como um messias, um ícone da esperança, da mudança, torna-se, pouco
mais de uma década depois, o principal embaraço para o Estado e para o povo haitiano.
As oposições mobilizadas exigem a sua renúncia, o que
não tarda acontecer. O período compreendido entre a sua primeira eleição e os momentos
que antecedem sua deposição, ou renúncia, em fevereiro de 2004, mesclam uma profunda
vontade de mudança com uma incapacidade de se desprender dos vícios do passado. A
eleição de Titid, no início da década de 1990, acabou gerando, principalmente nas
camadas menos abastadas, grandes expectativas, logo frustradas despertando também, o
ódio e o desprezo de seus opositores.
A comunidade internacional, sobretudo os países
circunvizinhos do Caribe, representados pelo CARICOM, pareciam pressentir o perigo
73
iminente. Keith Desmond Knight, Ministro das Relações Exteriores da Jamaica, envia um
„pedido de socorro‟
36
ao Presidente do CSNU, solicitando uma reunião urgente para
examinar a deterioração cada vez maior da situação no Haiti, que afeta a paz e a
estabilidade da região. (ONU, 2004c). Dois dias depois, Dominique Villepin, Ministro
das Relações Exteriores da França, também faz seu apelo ao Presidente do CSNU. Na
carta enviada por Villepin (ONU, 2004d:2) destacam-se alguns apontamentos sobre a
situação vivida pelo Haiti às vésperas da queda de Aristide:
Os que apóiam a violência e os que todavia esperam que se possa
chegar a uma solução pacífica estão engajados em uma corrida contra
o relógio. O risco de caos que ameaça o Haiti hoje em dia é manifesto.
A comunidade internacional deve assumir sua responsabilidade para
evitar que o país sucumba frente à desordem e a violência [...] O
terreno que pisamos é delicado [...] o regime chegou a um ponto
morto e se despojou de sua legalidade constitucional. Neste
contexto, qual deveria ser o objetivo da comunidade internacional?
Trata-se de encontrar uma solução política que agrupe todas as forças
do país que se negam a retroceder a sua época mais sombria.
As referências ao estado de caos, desordem e violência,
que pontuam as construções discursivas, identitárias/representacionais haitianas estão e
estarão sempre presentes, corroborando nossas hipóteses. O uso de uma determinada
memória histórica, sempre negativa, presente no final da citação, quando há uma
referência a sua época mais sombria, que propositadamente não vem datada, coloca o
Haiti sempre em posição marginal, em uma não-posição, no tocante aos compromissos
firmados em nome da democracia e do Estado de direito.
Nesse mesmo documento, em sua terceira e última página,
Villepin um ultimato a Aristide, tornando evidente que as pressões eram exercidas
tanto interna quanto externamente. A carta é encerrada com o governo francês fazendo
um chamamento, principalmente às igrejas e às oposições políticas, além de uma
36
Segue documento na íntegra: Carta de 23 de fevereiro de 2004 dirigida ao Presidente do Conselho de
Segurança por meio do Representante Permanente da Jamaica ante as Nacões Unidas - Seguindo
instruções de meu Governo, tenho a honra de solicitar uma reunião urgente do Conselho de Segurança
para examinar a deterioração cada vez maior da situação do Haiti, que afeta a paz e a estabilidade da
região. O Governo da Jamaica faz esta petição em nome dos Estados membros da Comunidade do Caribe.
(Firmado) Stafford Neil Embaixador - Representante Permanente. Disponível em:
< http://daccessdds.un.org/doc/UNDOC/GEN/N04/250/18/PDF/N0425018.pdf?OpenElement> Acesso
em: 28 de agosto de 2009.
74
advertência a Aristide quanto a sua responsabilidade pelos desdobramentos da crise,
como se grande parte dos problemas que agora eclodiam tivessem uma única causa:
Quanto ao Presidente Aristide, é ele em grande medida o responsável
pela situação atual. A ele cabe aceitar as conseqüências e respeitar o
Estado de direito. A decisão é sua, a ele compete a dita
responsabilidade. Todo o mundo percebe que é necessário abrir uma
nova página na história do Haiti, respeitando a dignidade e a
integridade de todos os protagonistas.
Aristide não constitui unanimidade, tanto dentro quanto
fora do Haiti. Isso pode ser observado em um comentário de um editorialista do Jornal
Washington Post, não identificado, apresentado por Dieng (2001:8), no qual Aristide
passa de demagogo populista a líder autenticamente popular:
Muitos em Washington ficarão relutantes em fazê-lo; vêem o Sr.
Aristide como um demagogo populista que se propõe a criar um
Estado de partido único. Mas o Sr. Aristide, que dominou a política
haitiana durante uma década, tanto no poder como fora dele, segue
sendo o único líder autenticamente popular do país e talvez o único
que, se desejar, pode aplicar as reformas econômicas e políticas que o
país requer urgentemente. O fracasso de seu governo pode dar origem
a outra onda massiva de refugiados com destino à Flórida, semelhante
a que induziu, em primeiro lugar, o Governo Clinton a intervir no
Haiti.
Outro ponto que também deixa evidente as preocupações
que movem o governo norte-americano, com respeito à problemática haitiana, é a
possibilidade do recrudescimento de um velho problema, o Boat People. O editorialista
aponta para o fato de que o fracasso de Aristide, que na carta de Villepin é iminente,
poderia dar lugar a uma onda massiva de refugiados com destino à Flórida, daí o alarde
por parte das autoridades ligadas ao governo norte-americano. As políticas norte-
americanas que tratam desse „problema‟ resistem em qualificar esses imigrantes como
refugiados políticos, o que lhes daria o direito, em tese, de serem recebidos naquele
país. Ao invés disso, estes são classificados como emigrantes econômicos, o que torna
plausível e aceitável sua repatriação (SCARAMAL, 2006:93).
75
As cartas endereçadas ao Presidente do CSNU, sobretudo
aquela enviada por Knight, não ficariam sem resposta. A iniciativa do Ministro de
Estado foi seguida por outras solicitações dos representantes de diversos outros
Estados
37
, o que resultou na convocação da sessão número 4917
38
, do Conselho de
Segurança da ONU, no dia 26 de fevereiro de 2004, cuja ordem do dia centrava-se na
questão haitiana.
Findas as possibilidades de negociação, qualquer tentativa
de restabelecer a governabilidade com Aristide no poder seria vã. Não havia espaço para
negociações que incluíssem em suas cláusulas a sua permanência no poder. Ao receber
a palavra do Presidente do CSNU, Knight (ONU, 2004:3), descreve a grave situação
atravessada pelo Haiti alertando para o fato de que a dimensão tomada pela crise
ameaçava extrapolar as fronteiras haitianas, merecendo assim a atenção da Comunidade
Internacional, ali representada pelo CSNU. Knight, visando a dar mais peso ao seu
discurso, traz a tona também a questão sempre ameaçadora aos Estados caribenhos: a
onda negra dos boat people, os refugiados haitianos.
A situação que impera no Haiti não pode ser considerada
meramente um assunto interno. A situação atual levanta agora uma
grave ameaça a paz e a segurança regionais, haja em conta a corrente
de refugiados que ameaça consumir os recursos dos Estados da região.
O direcionamento dado por Knight aos seus discursos
parece estar alinhado com os discursos subseqüentes
39
, dos representantes dos países
participantes na 4917ª sessão. O eixo desses discursos envolve a descrição da crise,
37
Argentina, Bahamas, Bolívia, Canadá, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti,
Irlanda, Jamaica, Japão, México, Nicarágua, Peru e Venezuela.
38
A 4917ª seção do CSNU foi realizada em Nova York, em 26 de fevereiro de 2004, constando na ordem
do dia la cuestión de Haití . Era uma resposta a solicitação contida na carta de Knight, Representante
Permanente da Jamaica na ONU, de 23 de fevereiro de 2004. Participaram desta sessão os representantes
dos seguintes países: Alemanha, Angola, Argélia, Benin, Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos,
Federação Russa, Filipinas, França, Paquistão Reino Unido e Romênia, sendo que todos, em maior ou
menor grau, apontavam para a necessidade da criação de uma Força Multinacional que se ocupasse da
questão haitiana.
39
Todos os representantes (Alemanha, Angola, Argélia, Benin, Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos,
Federação Russa, Filipinas, França, Paquistão Reino Unido e Romênia) fizeram uso da palavra. O
documento (ONU:2004), de 26 de fevereiro de 2004, é uma ata da 4917ª Sessão do CSNU, e contém os
discursos na íntegra, constituindo um documento singular para a análise da movimentação político-
diplomática dos países supracitados em torno da situação haitiana nesse conturbado período.
76
quando é sinalizado um quadro de caos, violência e desordem, temas considerados
comuns quanto ao Haiti.
A ameaça de uma guerra civil como desdobramento
eventual da crise também é explorada. Segundo Knight (ONU, 2004:5), o Haiti se
encontra gravemente ameaçado como consequência da escalada da insurgencia e das
perspectivas de uma guerra civil sangrenta., e para este mal, ato contínuo, o mesmo
apresenta a solução, que também é compartilhada quase que unanimemente, qual seja a
criacão [por parte do CSNU] de uma força que se encarregue de fomentar a participação
dos Estados que contem com recursos disponíveis”. A recorrente receita norte-
americana.
Outro discurso ilustrativo, dado o local de fala do sujeito,
foi proferido pelo representante haitiano na 491sessão, Boniface Alexandre
40
; este
recebe a palavra do Presidente do CSNU, logo após o pronunciamento de Knight, e o
tom de seu discurso, carregado com cores ainda mais sombrias, não deixa dúvidas
quanto ao que se pretendia naquele momento. Caos, desordem, violência, catástrofe,
terror e anarquia são termos que pontuam o discurso de Alexandre (ONU, 2004:5-7)
que inicia alertando que “Essa situação é urgente e grave. Agora mais que nunca requer
toda a atenção da comunidade internacional.”
O Haiti chegara ao limite de suas possibilidades e, dada a
subversão da ordem, “os bandidos estão instaurando o reino do terror”, (ONU, 2004:5),
corroborando as palavras de Knight. O objetivo do representante haitiano é claro: buscar
o apoio da comunidade internacional para restabelecer a paz e a ordem no Haiti,
instando-a para que apóie e recomende o emprego de uma força multinacional no país,
reforçando, aos moldes de Knight, o risco que o agravamento da crise representaria para
o entorno; acenava ainda para a possibilidade de uma guerra civil, lançando mão,
também, da abjeta e emblemática figura do boat people. Segundo Alexandre (ONU,
2004:6):
40
Boniface Alexandre, então Presidente da Corte Suprema Haitiana e que assumiu a presidência interina,
atendendo ao que rezava a Constituição haitiana. Boniface foi Presidente Interino do Haiti no período que
vai de 29 de fevereiro de 2004, data da queda de Aristide, até 16 de fevereiro de 2006, data da eleição de
René Préval.
77
Este perigoso recurso à violência armada em um entorno de pobreza é
inaceitável. Constitue uma séria ameaça para a região. A desordem e
a violência que produzem os ataques armados podem provocar uma
catástrofe sem precedentes em matéria humanitária no país e destruir
suas frágeis instituições. Este é o momento em que a comunidade
internacional deve manifestar-se. Para escapar da violência e da
miséria, os haitianos estão tomando novamente o caminho do mar em
embarcações improvisadas, pondo suas vidas em perigo. [...] Uma
situação análoga, em 1991, levou mais de 40.000 refugiados à costa da
Florida. [...] O Haiti corre o risco de se ver mergulhado em uma
guerra civil, com tudo de negativo que isso implica.
Após reforçar um quadro que, apesar de representar, em
termos, a realidade, era colocado em uma velha moldura, o representante encerra seu
discurso reafirmando, (ONU, 2004:6), que o Governo do Haiti alinhava-se com a
posição assumida pelo CARICOM, no sentido de que o Conselho de Segurança deve
ocupar-se da questão do Haiti e fazer todo o possível para enviar urgentemente uma
força internacional que ajude a restabelecer a paz, de conformidade com as disposições
da Carta das Nacões Unidas. Esse é, em outros termos, o pedido lançado pelo governo
haitiano, que ainda tinha à frente de seu governo Jean-Bertrand Aristide. O pedido por
uma intervenção significava, antes de tudo, um atestado de incapacidade para dar uma
solução negociada à crise. Evidenciava-se que os recursos internos haviam se esgotado
e o Haiti, uma vez mais, dependia da ONU e seus organismos que, pouco mais de
dois anos
41
, haviam deixado o país sem nenhuma solução efetiva.
Os demais representantes de Estado, arrolados
anteriormente, proferiram discursos que podem ser entendidos como uma autocrítica,
principalmente em relação aos fracassos experimentados pela ONU/OEA durante a
década de 1990, uma vez que eram membros deste órgão e respondiam em alguma
medida pelas decisões tomadas conjuntamente.
de se enfatizar também as referências recorrentes à
história haitiana. Trata-se, aparentemente, de uma tentativa de inscrever a crise atual
dentro de um continuum histórico, na longa duração, que se desenvolve a partir de um
ponto de inflexão que orienta as construções discursivas acerca do Haiti, ou seja, a
Revolução. Essa inscrição ideológica envolve uma gestão da memória, algo que se
41
A Missão de Apoio Internacional Civil no Haiti (MICAH), missão desenvolvida pela ONU em parceria
com a OEA, finalizou seu mandato no Haiti em 06/02/2001.
78
aproxima do que Mastrogregori (2006), chamou de tradição histórica das lembranças
42
.
Essa gestão é conseguida principalmente por meio da circunscrição da historiografia da
qual somos tributários dentro dos limites de um ideário colonizador, que se mantém
aparentemente incólume perante alguns esforços isolados.
No trecho abaixo, (ONU, 2004:5), de Knight, destaca-se
que há, pretensamente, um nexo entre o acontecimento histórico que marcou a luta e a
crise atual, uma vez que há, entre um momento e outro, uma história prolongada e
difícil de luta. Outro aspecto é o que transmite a idéia de que, para além do nexo, existe
ainda uma progressiva degradação política, econômica, social e cultural que, ao que
tudo indica, inicia-se com a experiência revolucionária e a consequente separação da
metrópole. Knight lembra que:
É uma jogada cruel do destino que a primeira república negra livre
neste hemisfério tenha tido uma história tão prolongada e difícil de
luta para proteger essa liberdade. É uma ironia ainda mais cruel que
agora, que comemoramos o bicentenário do acontecimento histórico
que marcou o término da luta e o começo de uma nova era de
liberdade, o povo do Haiti esteja tão distante dos objetivos pelos quais
lutou com tanta valentia: a liberdade política, a prosperidade
econômica e a estabilidade social.
As referências diretas ao acontecimento histórico que
marcou a lutaficam evidentes em outro trecho, no discurso do representante de Cuba,
Requeijo Gual (ONU, 2004:20-21). Muito embora o sentido seja outro, a idéia de
continuidade, ou vinculante, permanece, visto que esse fato sinaliza o começo de uma
luta que culmina em uma crise que é agravada pela injusta e excludente ordem
econômica internacional.
42
“A tradição histórica das lembranças é, em suma, essa dinâmica das ões da memória e do
esquecimento, de conservação e de destruição.” Segundo Mastrogregori, (2006:72-3), “torna-se essencial
definir precisamente a tradição das lembranças; como vimos, a dinâmica pela qual se transmite ou se
esquece as lembranças consiste em atestados, marcas ou símbolos da realidade humana [...] A dois
aspectos é preciso se reter: de um lado, a transmissão da lembrança e da imagem do passado é
freqüentemente ligada ao exercício do poder [...] De outro lado, é preciso notar que esses movimentos
determinam diretamente a formação, a posição, a localização das fontes que a historiografia científica um
dia deverá explorar. O estudo do passado não é baseado em uma força de inércia na produção e na
localização de rastros, de fontes, de documentos, mas na participação ativa de eras passadas uma ação
que vai em direção à conservação e à destruição.” O autor sintetiza da seguinte maneira: “A tradição
histórica das lembranças é, em suma, essa dinâmica das ações da memória e do esquecimento, de
conservação e de destruição.” (MASTROGREGORI, 2006:72-73)
79
Colaborar com o Haiti se converte em um dever para todos nós. Não
nos esqueçamos que foi ali onde começou, 200 anos, a luta dos
povos caribenhos e latino-americanos por sua liberdade. A
comunidade internacional deve ajudar o Haiti nesta hora crucial de sua
história. Aos velhos problemas derivados do colonialismo e da
exploração se somam novas dificuldades associadas à injusta e
excludente ordem econômica internacional.
nestes discursos um esforço para posicionar a crise
haitiana do final da Era Artistide, em 2004, dentro de um quadro mais amplo, o das
convulsivas lutas caribenhas, que tem como marco estruturante a própria independência
haitiana. É sempre a natureza explosiva e calcinante da revolução que sobressai nos
discursos que buscam esse nexo. Em outros momentos, as indicações que sugerem a
continuidade não aparecem datadas, referindo-se apenas a um passado vinculado à
situação experimentada naquela oportunidade. Menéndez, da Espanha, reporta-se aos
“problemas estruturais que tornam recorrentes as crises políticas e a violencia no Haiti”
(ONU, 2004:9). Maquieira, do Chile (ONU, 2004:11) refere-se a uma crise enfrentada
periodicamente. Gaspar Martins, de Angola (ONU, 2004:12) menciona uma era de
obscurantismo e trevas para o povo do Haiti, uma era que durou demasiado.” Motoc,
da Romênia (ONU, 2004:17) destaca uma crise que apresenta uma “reativação
periódica”. Sardenberg (ONU, 2004:18-19), do Brasil, fala de uma situação que
prevalece e de “causas profundas” e finalmente, Mayoral, da Argentina (ONU,
2004:25), de “crises recorrentes”.
43
Um fragmento do discurso de Adechi,
representante de Benin, sintetiza o que buscamos demonstrar, uma vez que localiza o
Haiti, ao longo de seus mais de duzentos anos de história, em uma não-posição, a
margem da historia e do círculo virtuoso do crescimento, padecendo sob uma
instabilidade e pobreza extrema. Essa é uma perspectiva que orienta os olhares
dirigidos ao Haiti. Scaramal (2006:11) aponta para essa perspectiva, quando afirma que
43
Os exemplos podem corroborar, em parte, o que, para s, constitui uma tentativa de localizar a crise
haitana de 2004 no interior de uma perspectiva que se apóia sobre a representação de um Estado que é
forjado na luta singular de negros, que se insurgem contra as principais potências mundiais da época
França, Inglaterra e Espanha -, derrotando-as, e que se desenvolve, ou melhor, se degrada, sob o estigma
do caos e da desordem; muito embora o orgulho despertado internamente pelo relativo e efêmero êxito da
revolução, externamente, sobressai, via de regra, apenas esses estigmas.
80
“até os dias de hoje, aos haitianos não foi concedida a entrada de forma cabal à
condição humana.” Adechi (ONU, 2004:13) afirma que:
A comunidade internacional deve apoiar e ajudar o povo haitiano a
entrar, de maneira definitiva, no círculo virtuoso do crescimento. O
povo haitiano merece que lhes ofereçamos esperanças reais de
desenvolvimento depois de 200 anos de independência, nos quais
estiveram a margem da história, carregando o pesado fardo da
instabilidade e da pobreza extrema.
Uma das principais críticas em relação a pouca ou
nenhuma efetividade das ações desenvolvidas pela ONU/OEA no Haiti, em especial
àquelas desenvolvidas na década de 1990 e que se prolongaram até 2001, refere-se, em
parte, à falta de aprofundamento e ao desconhecimento da problemática haitiana;
reporta-se, principalmente, ao afã de dar uma solução improvisada a problemas que, em
razão de sua complexidade e especificidades, demandam tempo e empenho efetivos,
além de uma solução compartilhada, na qual os haitianos sejam parte desta solução e
não do problema.
A ONU tentava aplicar soluções de experiências bem
sucedidas em outras partes do mundo às questões cuja especificidade histórica e
cultural, como é o caso de grande parte das demandas haitianas, não respondiam
adequadamente. É quase um consenso que as medidas adotadas no Haiti deveriam ir às
raízes dos problemas e não permanecerem limitadas às causas imediatas. Mitchell,
representante das Bahamas na 4917ª sessão, após afirmar que a situação no Haiti está
fora de controle (ONU, 2004:7), concluía, na página seguinte que:
Depois de um esforço em curto prazo para restabelecer a ordem
pública, é preciso que haja um esforço em longo prazo para manter a
paz no Haiti. Em muitos sentidos, a comunidade mundial desviou seus
olhares da situação do Haiti na década de 1990, demasiadamente
ansiosa em declarar vitória e retirar-se. O resultado é que voltamos ao
ponto de partida. Desta vez devemos reconhecer e aceitar que o
compromisso em longo prazo neste Conselho deve ser o de propiciar e
promover a mudança no Haiti.
81
É necessário salientar que as observações que fizemos
anteriormente referem-se ao estabelecimento de um paradigma literário-historiográfico
e da utilização de uma memória instrumentalizada, que considera a questão por meio de
uma perspectiva essencialista, o que não quer dizer que negamos ou questionamos a
historicidade em que está envolta a problemática haitiana e sim o tratamento a ela
dispensado. Essa questão perpassa o que Khalid (ONU, 2004:15), representante do
Paquistão, acentua quanto ao direcionamento que deve ser dado ao tratamento da
questão Haiti, principalmente no que se refere a um comprometimento mais efetivo da
comunidade internacional:
No momento em que o Conselho examina esta situação, queremos
fazer uma advertência. Estamos de acordo que não há panacéias e nem
soluções fáceis no caso do Haiti. Os problemas enfrentados pelo Haiti
são multidimensionais. Decênios de pobreza, colapso econômico,
degradação ambiental, violênica e instabilidade, fazem do Haiti o país
mais pobre das Américas. Por conseguinte, as soluções a estes
problemas devem encontrar-se também em várias frentes. As
preocupações imediatas no âmbito da política, da segurança e da
questão humanitária devem ser abordadas, mas também é necessário
atender as outras causas sócio-econômicas que são ainda mais
profundas do conflito e da instabilidade. Ainda que a participação
das Nações Unidas no Haiti remonte a 1986, e inclua uma operação de
manutenção da paz em meados da década de 1990, as Nações Unidas
se retiraram de maneira prematura, sem ter abordado as causas
profundas dos problemas. Em reiteradas ocasiões minha delegação
advertiu que as Nações Unidas não devem se retirar prematuramente
de nenhuma situação de conflito. Também fizemos chamados a favor
de um enfoque mais amplo, que não abarcasse apenas o Conselho de
Segurança, mas também a Assembléia Geral e o Conselho Econômico
e Social, com vistas a resolver os problemas que subsistem em
situações tão complexas. Se as Nações Unidas se envolverem, uma
vez mais, devem fazê-lo com vontade política e financeira suficiente e
com o compromisso sustentável de manter sua participação até que a
paz e a segurança na região estejam completamente asseguradas.
O discurso de Sardenberg, representante do Brasil, reforça
o apoio ao Presidente Aristide, eleito democraticamente - muito embora as dúvidas
levantadas pela oposição e a falta de apoio de órgãos como a OEA -, o que reafirma e
vai ao encontro da posição diplomática costumeiramente assumida pelo Brasil como
pretenso líder regional. Além disso, Sardenberg critica as medidas adotadas pelo
Conselho de Segurança na década anterior e apóia o emprego urgente de uma Força
82
Multinacional no Haiti, colocando-se, em nome do governo brasileiro, à disposição para
intercambiar idéias que possam contribuir para a solução dos problemas vividos pelo
povo haitiano, desde que dentro do marco das Nações Unidas, respaldando os
princípios fundamentais do direito internacional.” (ONU, 2004:15).
A 4917ª sessão foi encerrada, como de praxe, pela
declaração do Presidente do CSNU, feita em nome do Conselho. Nesta declaração,
(ONU, 2004:31), é expressa a preocupação relativa à deterioração do entorno político
humanitário e de segurança no Haiti., bem como reconhecido o empenho da OEA e do
CARICOM em promover iniciativas para uma solução negociada para a crise. O
presidente assinalava a possibilidade de atuação internacional no Haiti, dado o fracasso
das tentativas de negociação e atendendo às solicitações quase que uníssonas, dos
representantes dos diferentes países ali presentes. Segundo ele, (ONU, 2004:31):
O Conselho de Segurança está profundamente preocupado com a
possibilidade de que a violência no Haiti continue e reconhece o
chamamento em prol de uma ação internacional naquele país. O
conselho considerará com urgência as opções de atuação
internacional, incluída a de uma força internacional em apoio a um
acordo político, em conformidade com a Carta das Nações Unidas.
Nas primeiras horas do dia 29 de fevereiro de 2004, Jean-
Bertrand Aristide deixa o país sob condições que ainda hoje não estão muito claras,
vistas as acusações contra os Estados Unidos de retirá-lo a força do poder. O padre-
presidente não conseguira, ou fora impedido de cumprir o juramento que fizera em 07
de fevereiro de 1991, diante da Assembléia Nacional, quando se comprometeu a
respeitar os direitos do povo haitiano e zelar para que fossem respeitados por todos
(ARISTIDE, 1995:11). Aristide partia, as controvérsias ficavam. Sobre Titid pesavam
acusações que envolvem corrupção, violação dos direitos humanos, prevaricação,
associação com o crime e com grupos armados, dentre outros.
A 4917ª Sessão do CSNU havia decidido, uma vez mais, pela
intervenção das tropas da ONU no Haiti. Em 29 de fevereiro de 2004, em mais um
momento de contingências e incertezas, Aristide deixa o Haiti, sem perspectiva de
retorno. Boniface Alexandre assume o cargo de Presidente Interino. Naquela mesma
tarde (ONU, 2004e:3):
83
o Representante Permanente do Haiti nas Nações Unidas apresentou a
solicitação de assistência do Presidente interino, a qual autorizava a
entrada de tropas no Haiti. Atendendo a essa solicitação, o Conselho
aprovou a resolução 1529 (2004). A Força Multinacional Provisória
(FMP) iniciou imediatamente sua implantação no Haiti, tal como
autorizava a resolução.
A resolução 1529, de 29 de fevereiro de 2004, (ONU,
2004e:1), dispõe sobre a criação e o emprego da Força Multinacional Provisória (FMP),
que tinha como missão principal apoiar a continuação de um processo político
pacífico e constitucional e a manter um entorno seguro e estável no Haiti.” Ainda de
acordo com essa resolução, a FMP teria um mandato máximo de três meses e
antecederia o emprego de uma força de estabilização, que deveria ser regulada, quanto
a sua estrutura e mandato, de acordo com as recomendações enviadas pelo Secretário
Geral ao Conselho de Segurança.
No informe do Secretário Geral sobre o Haiti, de 16 de
abril de 2004, (ONU, 2004e), no item “X”, (dez), atendendo ao disposto na resolução
1529, são apresentadas as recomendações relativas a operação das Nações Unidas,
(MINUSTAH), versando sobre o mandato, estrutura e conceito das operações, assuntos
civis, componentes de assuntos humanitários e desenvolvimento, componente militar e
segurança. Neste mesmo documento (ONU, 2004e:35), o Secretário-Geral lamenta que
neste ano em que celebra seu bicentenário, o Haiti tenha que recorrer uma vez mais à
comunidade internacional para que o ajude a superar uma grave situação política e de
segurança”. Constata-se que um silêncio e uma a-historicidade nesses informes e
documentos da ONU no que diz respeito aos agentes e as motivações que colaboraram
para a derrocada haitiana.
Procede-se, nessa mesma página, em que o Secretário-
Geral lamenta a situação haitiana, um mea culpa com relação a pouca ou nenhuma
efetividade das fracassadas missões dos anos noventa; ao mesmo tempo em que se
sinaliza uma prévia responsabilização do Haiti por um possível fracasso de mais uma
empreitada da ONU no país.
Em retrospectiva, nossa participação foi demasiadamente breve e
tropeçou em muitos obstáculos internos e internacionais. Agora a
comunidade internacional tem outra oportunidade de ajudar o Haiti e a
84
seu povo na transição para um futuro pacífico e democrático e
também a decidir seu próprio destino. [...] nossa tarefa não será fácil.
A situação hoje parece mais difícil do que uma década. [...] Por
último, o êxito ou o fracasso dessa missão será, em última instância,
responsabilidade do Haiti.
É importante observar que a abjeção ao refugiado haitiano
era um dos motores para o estabelecimento da FMP. Isso está posto na Resolução 1529,
com o CSNU declarando “que a situacão no Haiti constitui uma ameaça para a paz e a
segurança internacionais, assim como para a estabilidade do Caribe, ante a possibilidade
de uma afluência de haitianos a outros Estados da subregião. (ONU, 2004a:1).
Composta por contingentes do Canadá, E.U.A, França e
Chile, a FMP tinha como objetivos imediatos garantir a segurança do povo e das
instituições haitianas, principalmente na capital, Porto Príncipe, dando condições de
trabalho e segurança às organizações regionais e internacionais que se encontravam
no país prestando apoio humanitário à população. Em médio prazo, visava a preparar o
terreno para o emprego da MINUSTAH. No plano político, a FMP significou o fim de
um período que teve Jean-Bertrand Aristide como protagonista. Aristide se retirara do
contexto político haitiano, muito embora os seus partidários, os representantes do Fanmi
lavalas, continuassem ativos e sendo apontados, ainda hoje, como responsáveis por
grande parte dos distúrbios que se seguiram ao 29 de fevereiro de 2004.
O período que se seguiu à derrocada de Jean-Claude
Duvalier, em fevereiro de 1986, até o estabelecimento da FMP, em fevereiro de 2004,
foi marcado principalmente pela atuação controversa dessa figura, que se transformou
em um ícone da moderna política haitiana, ainda tão presa ao passado. Aristide, o Père
Titid, como era carinhosamente chamado pelo povo, passou de herói a algoz, de solução
a problema, de redentor a agravador da situação do povo haitiano.
O 29 de fevereiro de 2004 marca, a um tempo, o fim do
que se denomina Era Aristide e, concomitantemente, o início - ou seria a continuação -
de um período de ingerências da ONU que perdura até os nossos dias. O
estabelecimento da MINUSTAH é carregado de simbolismos, devendo representar,
antes de tudo, o rompimento com um passado recente, caracterizado pelas fracassadas
missões que se desenvolveram no Haiti de 1993 a 2001.
85
Essa nova etapa da história haitiana ainda se desenvolve,
sendo impossível prever os resultados, devido aos principais desdobramentos da última
empreitada da ONU no país. Sob essa inflexão é fundamental pensar como se
desenvolve esse novo capítulo da trama haitiana sob a égide das forças de paz (os
capacetes azuis) da MINUSTAH.
2.2 - MINUSTAH: ultima ratio Regis
44
O Haiti encontra-se em risco de se tornar
um Estado fracassado permanentemente.
(CAVALLARO, 2005:1)
A herança deixada pelas fracassadas intervenções da ONU
no período analisado anteriormente pesaram na decisão de intervir, uma vez mais, no
Haiti. Como destacado, foram várias intervenções e desgastes, com poucos resultados
efetivos. O estabelecimento do mandato da MINUSTAH está inscrito em um momento
em que se discute a reestruturação da ONU de uma maneira geral e das Operações de
Paz
45
em especial. Como sinaliza Bigatão, (2008:12):
44
Ultima ratio Regis é uma inscrição latina que era usualmente utilizada nos canhões reais e que
significa, literalmente, „O último argumento dos reis‟.
45
“Muito se discute a respeito da terminologia e dos conceitos que abarcam as operações de paz. Tendo
em vista que a Carta da ONU não faz referência explícita a este tipo de ação, nem a Assembléia Geral e o
Conselho de Segurança possuem resoluções específicas que contemplam o assunto, descreveremos as
categorias mais usualmente empregadas para classificar as atividades realizadas pelas Nações Unidas no
campo da paz e segurança, tomando como base o documento “Uma Agenda para a Paz”, apresentado pelo
Secretário-Geral da ONU, Boutros-Ghali, em 17 de Junho de 1992; e “Suplemento de Uma Agenda para
a Paz”, de 3 de Janeiro de 1995 : Diplomacia Preventiva (preventive diplomacy): prevenção do
surgimento de disputas entre Estados, ou no interior de um Estado, visando evitar a deflagração de
conflitos armados ou o alastramento destes uma vez iniciados. Contempla ações autorizadas de acordo
com o Capítulo VI da Carta da ONU. Promoção da Paz (peacemaking): ações diplomáticas empreendidas
após o início do conflito, que visam a negociação entre as partes para a suspensão das hostilidades.
Baseiam-se nos mecanismos de solução pacífica de controvérsias previstos no Capítulo VI da Carta da
ONU. Manutenção da Paz (peacekeeping): ações empreendidas por militares, policiais e civis no terreno
do conflito, com o consentimento das partes, objetivando a implementação ou o monitoramento do
controle de conflitos (cessar-fogos, separação de forças, etc) e também a sua solução (acordos de paz).
Tais ações são complementadas por esforços políticos no intuito de estabelecer uma resolução pacífica e
duradoura para o litígio. A base jurídica deste tipo de operação não se enquadra adequadamente no
Capítulo VI nem no Capítulo VII da Carta da ONU, o que leva alguns analistas a situá-las em um
imaginário “Capítulo VI e meio”. Imposição da Paz (peace-enforcement): respaldadas pelo Capítulo VII
da Carta da ONU, essas operações incluem o uso de força armada na manutenção ou restauração da paz e
segurança internacionais. São estabelecidas quando o Conselho de Segurança julga haver ameaça à paz,
ruptura da paz ou ato de agressão. Podem abranger intervenções de caráter humanitário. Consolidação da
Paz (post-conflict peace-building): executadas após a assinatura de um acordo de paz, tais operações
86
Podemos [...] apontar a “Missão de Estabilização das Nações Unidas
no Haiti” (MINUSTAH) como prova do esforço da ONU em
desenvolver um novo modelo de intervenção em conflitos internos.
Apesar de autorizada sob a égide do Capítulo VII da Carta da ONU,
abrindo espaço para que os capacetes azuis empreendessem ações
robustas a fim de pacificar o país, houve o entendimento de que o uso
da força por si não solucionaria o problema, dado que a questão
haitiana envolve uma rie de questões políticas, humanitárias,
econômicas e sociais que tornam inócuo o mero exercício da força.
Havia certo desconforto, relativo ao emprego de tropas
para tentar contornar uma situação que, em grande medida, era resultado direto dos
insucessos anteriores, experimentados durante boa parte da década de 1990 e que
adentrou o novo milênio sem que resultados tangíveis fossem apresentados. Era
necessário rever os preceitos que orientavam a atuação dessas forças para não incorrer
no risco de novo fracasso. Como afirma Seitenfus (2005:2), Imensa é [...] a
responsabilidade da comunidade internacional no deslinde da atual crise [...] o caso
haitiano abriga singularidades e sofisticações a exigir uma nova concepção de
intervenção e de cooperação internacional.”
A MINUSTAH surge como uma possível resposta a esses
desafios. A Resolução 1542, de 30 de abril de 2004, estabelece o mandato da
MINUSTAH, atendendo as determinações contidas na Resolução 1529, de 29 de
fevereiro de 2004 e no Informe do Secretário-Geral, de 19 de abril de 2004. Ela
estabelece um mandato inicial de seis meses, prorrogáveis por sucessivos períodos de
igual duração e atuaria, inicialmente, visando a: manter a segurança e a estabilidade no
Haiti, [conseguidas, ainda que precariamente, graças à atuação anterior da FMP];
promover boa governança e o processo político e democrático; e monitorar, proteger e
informar sobre a situação dos direitos humanos.”
(CAVALLARO, 2005:10).
visam fortalecer o processo de reconciliação nacional através da reconstrução das instituições, da
economia e da infra-estrutura do Estado anfitrião. Os Programas, Fundos e Agências das Nações Unidas
atuam ativamente na promoção do desenvolvimento econômico e social, mas também pode haver a
presença de militares. Cabe ressaltar que tal classificação apenas nos oferece um marco conceitual para
refletir sobre as operações de paz. Na realidade, a atuação da ONU na prevenção e resolução de conflitos
implica na inter-relação entre tais categorias, sendo que o termo peacekeeping (“manutenção da paz”) é o
mais abrangente para caracterizar as ões da instituição no campo da prevenção e negociação dos
conflitos.” (BIGATÃO, 2008, 3-4)
87
A crise atravessada pelo Estado Haitiano mobilizara, mais
uma vez, a comunidade internacional, que agora buscava uma solução não encontrada
na década anterior. As dissonâncias internas fazem surgir, no bojo da crise, uma
infinidade de atores que lhe dão corpo e identidade. Esses grupos, cujas motivações
político-ideológicas estão ainda ligadas à ausente figura de Aristide, encabeçam os
conflitos que avolumam a crise, fazendo com que as disputas políticas desemboquem
em violentos enfrentamentos, que acabam reforçando as representações caóticas e
barbarizantes, que recaem sobre o povo haitiano. Segundo o relatório da Anistia
Internacional Desarme retrasado, justicia denegada (2005:16):
Desde o início de 2004 houve um aumento muito grande da violência
das guangues e grupos armados na capital, paralizando, em algumas
ocasiões, as atividades econômicas no centro da cidade. Esta violência
é obra de distintos grupos armados que participaram da rebelião que
derrubou Jean-Bertrand Aristide e as guangues armadas que o
apoiavam. Entre esses grupos estão o Exército Canibal, que mudou
seu nome para Frente de Resistência de Artibonite (Front de résistance
de l‟Artibonite); os ex-militares, reagrupados sob a liderança de
Louis-Jodel Chamblain e Guy Philippe na Frente de Resistência do
Norte (Front de résistance du Nord); e as gangues armadas conhecidas
como chimères [quimeras], leais a Jean-Bertrand Aristide. Todos
foram responsáveis por numerosos abusos contra os direitos humanos.
A MINUSTAH é constituída nesse contexto de descrédito
e apreensão. O histórico herdado das missões anteriores não deixava margem para
protelações. Diferente do que possa parecer - principalmente no Brasil, onde essa sigla
surge estritamente ligada aos contingentes militares do Exército Brasileiro, uma vez que
este foi contemplado com a responsabilidade de compor o grosso do contingente militar,
inclusive com comandante da Força -, A MINUSTAH não é apenas uma força militar.
Ela foi idealizada para atuar quase que irrestritamente, tendo sido estabelecidos um
componente civil e outro militar para dar apoio aos aspectos emergenciais e, durante o
seu mandato, que não tem previsão para findar, sobretudo depois da destruição
generalizada causada pelo terremoto do dia 12 de janeiro de 2010, esta teria de estar em
condições de ser constantemente redirecionada e redimensionada, de acordo com as
demandas.
88
A participação brasileira na MINUSTAH - que incluia
assunção do comando do seu contingente militar por um Forcer Commander brasileiro
e também o envio de cerca de 1200 militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica,
que compõem o BRABATT (sigla em inglês para Batalhão Brasileiro) e BRAENGCOY
(sigla em inglês para Companhia de Engenharia Brasileira) -, inscreve-se no âmbito
político da diplomacia brasileira diplomacia solidária ou política de não-indiferença -,
que pleiteia, algum tempo, um assento permanente no CSNU, concorrendo com
países como Japão, Alemanha, Canadá, Índia, dentre outros.
Os contingentes brasileiros atuam de acordo com o
capítulo VII da Carta da ONU
46
, que prevê, segundo BIGATÃO, (2008:268), “a
possibilidade do uso da força na aplicação de medidas para a resolução de conflitos que
se tornaram de fato uma ameaça à paz e segurança internacional. Todas as suas ações
são pautadas nas regras de engajamento para os componentes da MINUSTAH
47
,
documento baseado nas ROE
48
(Rules Of Engagement), da ONU. Este pequeno manual
estabelece, dentre outras coisas, a autoridade para o uso da força e explica políticas,
princípios, responsabilidades e definições das ROE.
Internamente o estabelecimento da MINUSTAH vinha
acompanhado de profunda frustração de uma parte do povo haitiano, evidente no trecho
abaixo (ONU, 2005:3), pois representava o reconhecimento da impossibilidade de se
estabelecer a governabilidade dentro de um quadro de estabilidade, permitindo a
aproximação das diferentes facções do cenário político haitiano.
quase todos os atores nacionais do âmbito político reconheciam que o
Haiti se encontrava em uma profunda crise política, social e
econômica. Os interlocutores se felicitaram com o interesse e a
atenção da comunidade internacional, mas manifestaram certa
frustração pelo fato de que o Haiti necessitava novamente da
assistência internacional. Isso ficou evidente especialmente no dilema
expressado por alguns interlocutores a respeito da necessidade de
tropas estrangeiras para ajudar a conseguir a estabilidade e a
segurança, atributos fundamentais à soberania.
46
Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc4.php. Acesso em 02 Dez 09.
47
Documento obtido junto a componentes da MINUSTAH; não constam quaisquer informações sobre
autor, data, ano de publicação, etc.
Trata-se de um resumo do ROE.
48
ROE Rules of Engagement - São instruções para os comandantes operacionais, para que possam
delinear claramente os parâmetros dentro dos quais a força pode ser empregada pelo componente militar
da MINUSTAH, na execução de suas atividades previstas no mandato da ONU. As ROE são baseadas na
Resolução 1542 do CS da ONU, de 30 Abr 04.
89
O pretexto do caos e a idéia corrente de negros
incapazes de governarem a si mesmos, apontadas por Pierre-Charles (1991), muito
embora negados, ainda servem aos propósitos para os quais foram engendradas, com
uma outra roupagem talvez, mas sempre colaborando para justificar a elaboração dessas
representações que, em última instância, acabam sendo determinantes no ininterrupto
processo de produção das identidades haitianas, maculadas pela força de um discurso
que, embora carente de fundamento, produz e sempre produziu o que dele se esperou.
Existe no Haiti, segundo a documentação analisada, o que se convencionou
chamar de falta de cultura democrática, sendo esta definida por Dieng (2000:20) como:
um conjunto de conhecimentos, sentimentos, símbolos, crenças e
práticas que se caracterizam, em particular, pelo absoluto respeito à
lei, à virtude cívica, ao diálogo político, ao reconhecimento da
oposição, à tolerância, a denegação da violência e a garantia dos
direitos humanos fundamentais.
Segundo essa perspectiva, o povo haitiano, historicamente
alheio às práticas democráticas e submetido, de forma recorrente, a políticas ditatoriais
e/ou autoritárias de governo, não teve possibilidade de desenvolver, ao longo de seu
intrincado processo de conformação político-social, as bases para o estabelecimento de
um processo democrático. Ao que parece, quando isso foi tentado, como no caso da
eleição de Aristide, no início da década de 1990, houve inabilidade, ou inaptidão, para
lidar com a nova situação, fato que culminou com uma violenta polarização política,
que logo se disseminou, como um câncer, por todo o tecido social. É possível destacar
os termos em que esse problema é colocado por Dieng (ONU, 2000:3) quando o mesmo
afirma
seu convencimento de que o Haiti adoece de uma grande falta de
cultura democrática, que é preciso reduzir para que se reforce
verdadeiramente a democracia e se garanta a estabilidade política no
país, que sofre crise após crise desde o restabelecimento da
democracia.
É a partir dessa perspectiva que o haitiano transparece nas
lentes e nos discursos dos membros da ONU; é apresentado ao mundo pelos relatórios
90
da instituição como um sujeito desprovido de saberes e práticas democráticas; alheio e
indiferente, portanto, aos princípios jurídicos e legais que orientam esse regime e
incapaz, por si só, de estabelecer um ambiente estável, no qual as garantias
fundamentais, ligadas aos direitos humanos, sejam observadas e respeitadas. Os
discursos, atravessados pelos interdiscursos que remontam, se quisermos, à Revolução,
constroem um Estado doente e carente, sem tecer qualquer comentário com relação as
causas desse mal, que tem suas raízes, como já dissemos, num colonialismo predador,
ainda presente, e num racismo aparentemente inamovível.
Insiste-se em ver o Haiti com um olhar perpassado por um
viés cultural que longe de se aproximar da cultura local, se estabelece como seu
contraponto. Seitenfus (2006:15) parece convencido deste fato ao afirmar que uma das
maiores dificuldades haitianas encontra-se em nós mesmos. Trata-se da profunda
ignorância sobre o país caribenho. Há somente um sentimento de comiseração que não é
bom conselheiro.
Um dos primeiros problemas a serem enfrentados com o
início do mandato da MINUSTAH diz respeito a se definir a situação do Haiti e qual
enfoque deveria ser dado pela Força de Ocupação para que a Missão que ora se iniciava
não fosse comprometida pelos desdobramentos dos insucessos anteriores, ainda
presentes na memória local. Era mister, nesse primeiro momento, fugir da propensão de
aplicar modelos de missões que tiveram sucesso em outros países e em outros
continentes, àquela realidade. Como lembrou Seitenfus (2006:14), a sociedade haitiana
[diferente do que possa parecer] é complexa, contraditória, sofisticada e maximalista.
Atentar para essas peculiaridades seria um valioso passo para tentar contornar os erros
do passado recente que, de certa maneira, comprometiam a presença da ONU no Haiti.
Havia consenso quanto a esse fato, como se observa no recorte abaixo, (ONU,
2005:14):
alguns interlocutores expresaram preocupação com a necessidade de
se assegurar que a assistência internacional, incluída a cooperação
econômica, levasse em conta os aspectos complexos da situação
particular do Haiti, tendo em vista, especialmente, que as missões
anteriores das Nações Unidas no país haviam fracassado. Alguns
advertiram acerca dos perigos de aplicar no Haiti os enfoques de
modelos utilizados em outros países. A missão é consciente de que a
91
MINUSTAH reconhece esses perigos e procurou soluções e propostas
que se adaptem às singularidades do país.
Tentar entender e respeitar, ainda que com inúmeras
ressalvas, a singularidade do caso haitiano foi determinante para o relativo sucesso da
MINUSTAH no Haiti. Essa foi uma preocupação que aparentemente esteve sempre
presente e que norteou os trabalhos ali desenvolvidos desde os primeiros contingentes.
Como pontuado no comentário do Gen Heleno
49
, primeiro Comandante do componente
militar da MINUSTAH: “o respeito à cultura haitiana e a seus modos de agir é
fundamental. (PEREIRA, 2005:35).
A MINUSTAH enfrentou severas críticas no seu primeiro
ano de atuação no Haiti. Acusações de toda ordem e vindas dos mais diversos meios
foram feitas, tentando desestabilizar e/ou mesmo inviabilizar o seu emprego. Nesse
contexto, há outro aspecto que merece atenção e que diz muito do que buscamos
evidenciar. Existe, como diria Joinet (2005:19), especialista independente contratado
pela ONU, o que se convencionou chamar de „cultura do rumor‟ ou de síndrome do
rumor. Há, não na documentação produzida pela ONU, os informes do Secretário-
Geral e dos Especialistas Independentes, mas também em outras fontes, fortes
evidências de que existe uma considerável distância entre o universo factual, das
práticas cotidianas, e aquele construído por meio dos diferentes discursos, sobretudo os
midiáticos.
No informe sobre a missão do CSNU no Haiti, ocorrida de
13 a 16 de abril de 2005, desvela-se a inquietação e o desconforto causados por essa
prática. Observamos, neste documento, certa disposição por parte da imprensa em
carregar ainda mais os tons desse quadro problemático: “muitos interlocutores nacionais
e internacionais faziam referência ao negativismo e ao sensacionalismo dos meios de
difusão do Haiti.” (ONU, 2005:19). Cria-se assim um quadro ainda mais negativo e
caótico, comprometendo não somente a atuação da MINUSTAH, mas levando ao
desenvolvimento de um estado de permanente tensão entre a população. Para ilustrar
49
O General-de-Exército Augusto Heleno Ribeiro Pereira foi nomeado o primeiro Forcer Commander das
forças militares que atuaram no Haiti após o estabelecimento da MINUSTAH. Exerceu essa função no
período compreendido entre junho de 2004 e setembro de 2005.
92
esse argumento, respaldamo-nos nas afirmações do General Heleno (PEREIRA,
2005:14) em outro trecho da palestra supracitada. Segundo ele:
A população haitiana sofre de uma verdadeira síndrome de
insegurança; qualquer disparo para o alto, na capital Porto Príncipe, e
a imprensa afirma que a cidade está um caos, que há um pânico
generalizado [...] Incidentes pequenos e pontuais são divulgados como
situação de caos, o que é péssimo para o país, mas não há como mudar
esse comportamento da imprensa. Primeiro, porque, embora seja este
o seu papel, ela procura notícias e notícia boa não é notícia. uma
definição interessante de notícia “de que esta seria tudo aquilo que
alguém não quer ver publicado” [...] No Haiti, a imprensa e os
correspondentes estrangeiros, principalmente, estão ali para passar
ao resto do mundo a idéia de desorganização, e eles não
transmitem essa idéia, como exageram para valorizar o seu próprio
trabalho. Entretanto, isso prejudica o país, pois propaga a imagem de
que o Haiti está em situação de insegurança crônica e que ninguém
pode fazer nada por não conseguir andar nas ruas devido à falta de
segurança, o que é uma inverdade. (grifo nosso)
Em outro documento, fica evidente a maneira como essa
imagem negativa pesa sobre o Haiti, dificultando ainda mais o instável quadro sócio-
político e econômico, uma vez que acaba constituindo fator que inibe a aproximação
daqueles que poderiam contribuir para a superação dessas condições, ao mesmo tempo
que favorece quem delas se beneficia. Alguns empresários, interessados em investir no
Haiti, levantam essa questão. Segundo informe do Secretário-Geral, (ONU, 2009:12):
Os empresários insistiram especialmente na necessidade de melhorar a
imagem negativa do Haiti no exterior e de apresentá-lo sob uma luz
mais favorável, tendo em vista que a situação de segurança havia
melhorado consideravelmente. A esse respeito lembraram que os
índices de delitos violentos eram na verdade piores em outros países
da região do Caribe.
A partir dos trechos apresentados, destaca-se que existe
uma tendência em se reforçar ou perpetuar essa imagem negativa do Haiti, retratando-o
como um Estado em permanente anarquia e caos, muito embora a realidade demonstre o
contrário. Podemos afirmar que o Haiti, em tempos de paz, não é notícia.
93
Os motivos que movem esses interesses são inúmeros para
serem tratados nesse momento, mas poderíamos dizer, de forma bastante genérica, que
o Haiti passou a ser apresentado, ao longo dos anos e das sucessivas crises e convulsões,
como o circo dos horrores do Caribe, sendo motivo de espanto e comiseração, como
afirmou Seitenfus. Os que para se dirigem, o fazem munidos de um referencial e de
um ideal que se constroem por meio da negação ou da espetacularização desse outro
haitiano.
Os relatórios produzidos pelas ONGs, no ano de 2005, são
relativamente desfavoráveis à MINUSTAH. As críticas apontam para um quadro de
aparente inércia, ou pior, de retrocesso. Para exemplificar, podemos observar como a
atuação da MINUSTAH é retratada no relatório Mantendo a paz no Haiti?, da
HARVARD & GLOBAL. Segundo Cavallaro (2005:51):
Apesar de um dos mandatos de direitos humanos mais fortes na
história das operações de paz da ONU, a MINUSTAH efetivamente
não investigou ou informou sobre abusos de direitos humanos; nem
mesmo protegeu defensores de direitos humanos. Encarregada de
treinar e reformar a Polícia Nacional Haitiana, a MINUSTAH ao invés
disso tem fornecido apoio incondicional a operações policiais que
resultaram em prisões e detenções ilegais, ferimentos e mortes de civis
não intencionais e execuções extra-judiciais deliberadas. Ao invés de
nortear-se em sua diretiva de proteger civis de iminente violência, a
MINUSTAH ao contrário infligiu neles balas perdidas. Desarmamento
está no centro dos deveres de segurança e estabilização da
MINUSTAH, mas o trabalho da missão da ONU no Haiti não
transpareceu para fora de salas de reuniões. Em conseqüência, o Haiti
é governado por armas e terror, e não pela lei.
As frentes de atuação da MINUSTAH são extremamente
amplas e complexas, havendo, além do mais, interdependência entre elas. Segundo
Gauthier e Bonin (2008:6), “O principal mandato da MINUSTAH é estabelecer um
entorno seguro e estável, que propicie o funcionamento político e constitucional. A
questão da segurança seria o ponto de partida para que qualquer outra ação fosse
intentada e foi justamente aí que mais se progrediu, contrariando grande parte das
críticas feitas pelas ONGs e lembrando também que esta segurança, ainda hoje, está
assentada sobre base precária, principalmente em função da considerável lentidão
observada nas ações nos campos político e social.
94
As hesitações e os tropeços iniciais são até certo ponto
compreensíveis, dada a complexidade de uma operação desse porte, que envolvia, já nos
primeiros contingentes, um total aproximado de 26 países e mais de sete mil homens,
entre civis e militares. Outro aspecto a ser observado é o que diz respeito à nova
doutrina que se desejava implantar, tendo em vista, principalmente, evitar novos
fracassos como aqueles ocorridos na década anterior. Era necessário repensar a
sistemática de emprego que havia sido utilizada até ali, revisitar os insucessos de
outrora e convertê-los em experiências que pudessem somar na tentativa de, em
conjunto com o povo haitiano, retirar o Haiti da posição que ocupava.
Fazia-se necessário não lançar nova luz sobre a
situação, mas, mais importante que isso, incluir o povo haitiano, nessa luta por uma
„nova independência‟. está colocado outro problema. Incluir o povo haitiano na luta
não significava, como queria o Secretário-Geral, colocá-lo como único responsável por
um eventual fracasso. Era necessário, por parte daqueles que tomavam parte dessa
empreitada, perceber que os problemas enfrentados pela população haitiana não m
„causas naturais‟ e/ou ainda seriam resultado da suposta incapacidade que se lhes quer
atribuir.
Algumas críticas severas foram feitas com relação ao
tratamento dispensado ao povo haitiano por parte de alguns estados e/ou instituições.
Um bom exemplo pode ser buscado na palestra do Gen. Heleno ao GSI, quando este faz
um alerta com relação ao posicionamento adotado por alguns países com relação à crise.
Pereira (2005:28) afirmou que:
Discorda das estratégias impostas pelos países doadores da
Comunidade Internacional França, Canadá, Estados Unidos e
Comunidade Européia - que aceitam investir no Haiti caso a
segurança do país se iguale à do Vaticano. Segundo ele, é criminosa a
atuação da Comunidade Internacional em relação ao Haiti, pois o país
necessita de projetos de impacto e o preocupa seriamente o fato de
uma Força de Paz da ONU ser obrigada a fazer operações de guerra.
[...] não adianta querer resolver o problema do Haiti com fuzis nas
ruas, pois não é esse o instrumento capaz de pôr fim aos problemas
sociais que assolam o país. [...] não se devem repetir os mesmos erros
de missões anteriores. Os problemas do Haiti têm mais de 200 anos e
não serão resolvidos em mais oito meses, antes, é necessário ter
calma, perseverança e permanência na ação.
95
Há, por outro lado, um posicionamento não menos
preocupante e que diz respeito ao comportamento de uma parcela da população haitiana
com respeito às constantes intervenções de que o Haiti tem sido palco, sobretudo nas
últimas duas décadas. uma geração de jovens haitianos, que poderíamos chamar de
geração peacekeeper‟, que nasceu e cresceu sob a mira de fuzis e metralhadoras das
forças da ONU/OEA e que, de certa forma, tornou-se, se não dependente, pelo menos
indiferente ao trânsito dos carros blindados da ONU nas ruas das principais cidades.
Caso consideremos 1993 como o ano em que a ONU
efetivamente toma parte das operações que eram desenvolvidas pela OEA, são quase
dezoito anos sob intervenção, com um breve hiato entre fins de 2001 e início de 2004,
ou seja, menos de dois anos. Essa ingerência no Estado haitiano pode ter conseqüências
que em curto prazo talvez não sejam tão perceptíveis, mas que em longo prazo podem
deixar marcas profundas, sobretudo na elaboração das representações e das identidades
haitianas, principalmente desta geração, que nasceu e cresceu sob a sombra e a mira dos
fuzis dos peacekeepers da ONU. Como afirma Seitenfus (2006:14):
As relações do Haiti com o exterior foram sempre marcadas pelo
conflito ou pela indiferença. A terrível luta pela independência
impregnou a sociedade haitiana e hipotecou seu futuro. O mundo
sempre o percebeu com desconfiança. Os haitianos, por sua vez, estão
conscientes que a comunidade internacional, em um dado momento,
irá intervir. As crises demonstram a reiteração desse fenômeno. A
permanência deste elemento faz com que a própria dinâmica de crise
leve em consideração o componente estruturante que constitui a
intervenção de elementos exógenos.
A MINUSTAH, pressionada em função dos antecedentes
que minaram a confiança, não da comunidade internacional, mas principalmente da
população haitiana, esteve ciente, desde o início, das dificuldades que surgiriam nesse
sentido; em função disso, veiculou-se um apelo ao engajamento da população,
reconhecendo, por conseguinte, o quão infrutíferas seriam as ações que não contassem
com o apoio desta. Uma prova da ameaça representada pela indiferença da população
com relação às operações e projetos implementados pela MINUSTAH pode ser
observada na condução do programa de Desarme, Desmobilização e Reintegração,
96
(DDR)
50
, implementado pelo governo haitiano, em parceria com a MINUSTAH. Esse
programa constitui uma das principais fragilidades da MINUSTAH, muito embora,
segundo informações contidas na documentação, sua implementação fosse de
responsabilidade do governo haitiano. Existem críticas apontando que “a falha da
MINUSTAH em desarmar é decididamente o produto de falta de vontade política, e não
de um mandato fraco.” (CAVALLARO, 2005:12).
O programa é dirigido, principalmente, aos ex-integrantes
das FAd‟H, (Forças Armadas do Haiti) dissolvidas em 1995 por Aristide. Como o
próprio nome indica, o programa consiste basicamente em reintegrar esses ex-militares
à sociedade, seja através do reaproveitamento desses quadros nos contingentes da PNH,
e/ou ainda através de um programa de previdência e indenizações. Os ex-militares, uma
vez destituídos de suas funções, acabaram engrossando as fileiras dos grupos armados
que desestabilizaram o Haiti, servindo, por vezes, de mercenários do próprio governo
que os havia dissolvido, como é o caso dos Quimeras. Não houve, num primeiro
momento, sequer a preocupação com o recolhimento das armas que, desviadas e
negociadas com outros grupos para-militares, acabaram se constituindo em ameaça aos
cidadãos haitianos. As estimativas mais otimistas apontam que existam cerca de vinte
mil armas ilegais no Haiti; por outro lado, existem dados que elevam este número para
algo em torno de duzentas mil. Segundo estimativas de algumas ONGs que atuam no
Haiti existiam 170.000 a 200.000 armas ilegais no país em 2005.
As acusações de violações dos direitos humanos por parte
de integrantes da MINUSTAH também constituíam um óbice a ser superado para que se
pudesse angariar a confiança da população. Esse fato se consuma, segundo os informes,
em função principalmente da debilidade das instituições, da brutalidade da polícia, da
impunidade generalizada e da corrupção. As denúncias, advindas sobretudo das ONGs
que atuam no Haiti, recaem não apenas sobre as forças de paz, mas são dirigidas, em
sua maioria, aos efetivos da PNH, cuja formação e atuação estão sob a supervisão da
MINUSTAH. Segundo críticas de Cavallaro (2005:1), integrante de uma das ONGs que
atuam em defesa do povo, em março de 2005:
50
Programas de DDR (Desarme, Desmobilização e Reintegração) são implementados em operações de
paz e em situações de pós-conflito, constituindo-se como um eixo através do qual inúmeras outras
atividades se desenvolvem. As ões desenvolvidas nesses programas buscam retirar de cena não as
armas utilizadas muitas vezes em massacres e extermínios, bem como ex-militares/para-militares que
atuaram nessas situações, reintegrando-os à sociedade, reajustando-os à vida civil.
97
Na área de direitos humanos, a MINUSTAH tem sido [...] leniente.
Numerosas alegações de sérios abusos de direitos humanos cometidos
pela Polícia Nacional Haitiana (PNH) permanecem sem investigação.
Estas violações espalham um espectro sangrento que vai de prisões
arbitrárias e detenções, a “desaparições” e execuções sumárias, de
assassinatos de centenas de pacientes hospitalizados e o subseqüente
descarte de seus corpos em valas comuns e cemitérios clandestinos.
De fato [...] a MINUSTAH efetivamente deu cobertura para que a
PNH levasse adiante uma campanha de terror nas favelas de Porto
Príncipe. Ainda mais perturbadoras do que a cumplicidade da
MINUSTAH em abusos cometidos pela PNH são as alegações críveis
de abusos de direitos humanos cometidos diretamente pela
MINUSTAH, como documenta este relatório. A MINUSTAH, no
entanto, tem virtualmente ignorado estas alegações, assim como as
tem relegado à obscuridade, e portanto garantindo que tais abusos
sigam sem correção. Em resumo, ao invés de seguir a prescrição
específica de seu mandato de colocar um fim à impunidade no
Haiti, as falhas da MINUSTAH asseguram sua continuidade.
A PNH, formada exclusivamente por haitianos, segundo
Joinet (2004:11-12), padece de uma grave crise de identidade, uma vez que, se por um
lado existe um núcleo de policiais esforçando-se em ser profissionais, há, por outro,
divisões internas que corrompem e comprometem a imagem da corporação, atuando,
por vezes, às margens da lei, indo de encontro aos objetivos almejados tanto pela
MINUSTAH, quanto por seus representantes. Como exemplo, são citadas as Brigadas
Especiais, grupo de militares que não aparecem nos organogramas oficiais da PNH; os
agregados, “pessoas que, com o acordo implícito de alguns serviços de polícia, levam a
cabo os trabalhos sujos.” E, finalmente, os Quimeras, “militantes mercenários [...] que
se encontram por trás da maioria das ações levadas a cabo para abortar as manifestações
organizadas, em particular pela oposição pacífica.
A população não conseguia determinar com exatidão
quem eram os verdadeiros responsáveis por ministrar a justiça nas ruas, quais eram os
verdadeiros policiais. A crise de identidade, informa Joinet, extrapolava os limites da
corporação e confundia aqueles que dela necessitavam. Joinet (2005:10) distinguia três
categorias de “policiais”: a primeira era composta pelas unidades da Polícia Oficial; a
segunda pelos falsos policiais [...] algumas „ovelhas negras‟ da PNH, que [...] se
transformam em justiceiros [...] os „verdadeiros falsosque são policiais desertores que
conservam e utilizam sua arma e uniforme; e os grupos armados que são os „libertos-
fugitivos‟ [...]; e finalmente a terceira categoria, formada pelos ex militares
98
convertidos em paramilitaresou os rebeldes com adscrição política transformados em
„parapoliciais‟”.
A Polícia Nacional foi uma das muitas soluções que no
Haiti se tornaram um problema. As acusações feitas contra a PNH de corrupção e
envolvimento com crimes de violação de direitos humanos são freqüentes e estão
diretamente ligadas a outro grave problema que mina a estabilidade do Estado haitiano.
As críticas são tão generalizadas que nos perguntamos se são realmente justificadas ou
são feitas pelo fato de a PNH constituir a única instituição genuinamente haitiana a
tomar parte da MINUSTAH, fato que tornaria essas críticas até certo ponto
compreensíveis dentro da perspectiva que adotamos. Não dúvidas que se trata de
uma profunda crise institucional do sistema judicial e penal. Essa crise sobreveio com a
derrocada de Aristide em fevereiro de 2004, quando o sistema judiciário do país, e não
só ele, foi literalmente destruído.
A justiça, em todas as suas instâncias, carece de ampla
reforma e a criação de quadros que possam amenizar a sensação de insegurança e
injustiça que impera no Haiti. São exemplos da debilidade do sistema judiciário e
penitenciário a detenção prolongada
51
, uma vez que houve registros de que 80% da
população carcerária haitiana cumpria detenção provisória e a super lotação, que
culmina com a degradação humana em função das deploráveis condições a que estas
pessoas são submetidas nestes que deveriam ser centros de ressocialização. Como
aponta Forst (2009:16), na prisão civil de Porto Príncipe [...] os detidos não dispõem se
não de um espaço de 0,42 m², o que os obriga a dormir alternando-se em redes
improvisadas com lençol.”
Casos estarrecedores de linchamentos, prova cabal da
falência do judiciário e do poder público, ainda constam nos relatórios, com números
preocupantes. Segundo dados do informe do Secretário-Geral “Segue causando suma
preocupação o crescente número de linchamentos. Entre agosto de 2007 e janeiro de
51
Segundo Forst (2009:12), em novembro de 2008 o mero de prisões preventivas girava em torno de
80%, sendo que no oeste do Haiti chegava a alarmantes 86%, enquanto, de forma geral, constituía uma
média de 70%. Segundo ele, a duração média dessas prisões era de dois anos quando relacionadas a
crimes e de 12 a 18 meses quando ligadas a pequenas infrações. Outro agravante diz respeito ao fato de
que cerca de 4% dessas prisões são de menores. Podemos imaginar as dificuldades de se iniciar ou dar
continuidade as demandas processuais relativas a essas prisões/infrações em um país que teve o sistema
judiciário e penal quase que totalmente desmantelado durante as manifestações que culminaram com a
saída de Aristide em 2004.
99
2008, os 66 casos que se informou desembocaram na morte de 30 pessoas e causaram
45 feridos. (ONU, 2008:11). Essa ausência do Estado margem para que todos os
grupos, mencionados anteriormente, tentem ocupar esse vazio, agindo supostamente em
nome da „lei e da ordem‟, fazendo com que o estabelecimento de um estado de direito,
base para o desenvolvimento de políticas públicas, se torne mais distante, dificultando o
cumprimento, ainda que parcial, do mandato da MINUSTAH, deixando-a suscetível às
críticas e dando margem a elaboração de discursos que, muito embora a
espetacularização, ganham fôlego. Segundo Seitenfus, (2006:22):
O Haiti é o único exemplo na atualidade a demonstrar a possibilidade
de convívio social ausente o Estado [...] trata-se de uma sociedade sem
Estado. Este sofreu um processo de desgaste ao longo dos últimos
vinte anos fazendo com que desaparecesse o sistema judicial e o
conjunto das instituições públicas.
De modo geral, os avanços da MINUSTAH nos três
principais campos de atuação de seu mandato, delineados pela Resolução 1542, de 30
de abril de 2004, quais sejam: as questões relacionadas à segurança, interna e do
entorno; ao estabelecimento de um processo político e democrático e, por fim, proteger
e informar sobre a situação dos direitos humanos; em seu conjunto foram tímidos. A
questão dos direitos humanos foi, talvez, a que menos avançou. É possível que esse fato
se deva a falta de um arcabouço jurídico-institucional sólido que possa dar sustentação e
legitimidade às ações empreendidas contra alguns males „crônicos‟ que solapam as
bases do Estado haitiano, tais como a corrupção e o constante apelo à violência.
Os dados apresentados no relatório por Forst, no relatório
de 26 de março de 2009, quase cinco anos após o início do mandato da MINUSTAH,
não são animadores. Referências diretas à corrupção e violência dão sinais de que esses
temas seguem sendo preocupantes. Segundo Forst, a violência segue sendo objeto de
preocupação, ao mesmo tempo em que a corrupção, praga que afeta a sociedade
haitiana, é combatida, sem sucesso aparente, com ações empreendidas internamente
pelo débil Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Começa a reverberar nos relatórios da ONU um alerta para
a premente necessidade de se empreender medidas, a largo prazo, de combate a miséria
100
e a exclusão econômica como formas de se evitar um retrocesso no pouco que foi até
agora conseguido.
O importante é observar que há disposição em se discutir o
impacto que tal quadro impõe, não no cotidiano do povo haitiano, mas,
principalmente, nos desdobramentos das ações movidas pela MINUSTAH, as quais
contribuem, direta ou indiretamente, para o sucesso ou para a derrocada de mais essa
missão da ONU no Haiti. Há quase um consenso de que os problemas que recaem sobre
o Haiti não requerem, como meio de solução, apenas a intervenção militar, uma vez que
a insegurança e os atos de violência, que estão diretamente ligados ao prolongado
quadro de instabilidade, são, antes, o resultado de desajustes estruturais, permeados, ao
longo dos anos, por uma prática político-econômica deplorável e predatória.
Utilizando-se do pretexto da falta de segurança e de
garantias, muitos governos postam-se indiferentes às demandas emergenciais, criadas,
em grande parte, pela sua ingerência na pequena ilha. Segundo o Gen. Heleno,
(PEREIRA, 2005:30), “os canteiros de trabalho poderiam se multiplicar pelo país, o que
não ocorre [...] sob a alegação de que não segurança para implantar projetos desta
natureza.”; enfatizou ainda que os fuzis empunhados pelas forças de paz nas ruas das
cidades haitianas não são e nunca foram os melhores instrumentos para por fim aos
problemas sociais que assolam o país. Seitenfus (2008), em artigo publicado na Folha
de São Paulo, muito embora sem apontar as causas, sintetiza e corrobora essas
assertivas:
muito, propugno que a crise haitiana, antes de ser política e
securitária, é provocada pela desesperança, pela miséria, pelo
descalabro administrativo, pela ausência de Estado, pelo vazio
jurídico-institucional e pelas condições infra-humanas em que vegeta
parte ponderável da população. Três dados ilustram a situação: dos
3.341 detentos da Penitenciária Nacional, em Porto Príncipe, tão-só
112 foram condenados. O restante está em “detenção prolongada”,
que pode estender-se por vários anos; 80% da população ativa está
desempregada; há 250 mil crianças em regime de escravidão (os
pouco conhecidos e abandonados “restavecs”
52
). [...] é fundamental e
52
Os restavecs são os meninos que ficam à mercê de um dono. São vendidos ou dados pelas famílias, não
são pagos, não vão à escola, não podem brincar e sofrem maus-tratos e abusos sexuais. "As meninas são
mais numerosas. São chamadas 'làpourça' (a para isso): leia-se: a para o sexo". Jean-Robert Cadet,
haitiano e ex-restavec. Disponível em: <
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:WXYiWhvUVoYJ:www.apagina.pt/%3Faba%3
101
urgente empreender ações que reavivem a economia da ilha. [...] é
indispensável que sejam auto-sustentáveis e se beneficiem da
cooperação financeira dos países desenvolvidos.
É necessário reconhecer, porém, que foi no campo da
segurança que mais se progrediu. No período imediatamente posterior a queda de
Aristide a situação estava totalmente fora de controle e o Haiti a beira de uma crise
humanitária sem precedentes. Hoje, em que pesem as práticas desestabilizadoras
amiúde utilizadas pelas mídias, nacionais e internacionais, apontadas, por exemplo, por
Joinet (2007:12), o quadro da segurança pública, excetuando-se alguns incidentes
isolados e algumas pequenas convulsões pontuais, é de relativa tranqüilidade. É
lamentável que esse progresso da MINUSTAH em termos de segurança não seja
acompanhado de um desenvolvimento sócio-econômico palpável, que lhe
sustentação. Essa atrofia do braço civil da MINUSTAH acarreta um grande óbice no
que diz respeito a aceitação da mesma, principalmente por parte da população mais
carente. Esse descompasso era apresentado em novembro de 2004, pelo Secretário-
Geral (ONU, 2004f:11):
é importante que a MINUSTAH tenha a capacidade de executar
rapidamente projetos em curto prazo que tenham efeitos tangíveis
imediatos para a população. Do contrário, não só produziria uma
grave situação humanitária, mas também poderia dar aos setores mais
pobres da sociedade a impressão de que a MINUSTAH não faz o
suficiente para alcançar mudanças positivas e visíveis no Haiti. Isto
poderia criar maiores riscos de segurança para a Missão. Meu
Representante Especial concluiu, portanto, que será necessário que a
MINUSTAH leve a cabo projetos humanitários com resultados
imediatos, inclusive depois do seu primeiro ano de mandato.
São comuns, nos informes do Secretário-Geral, as alusões
a essa comprometedora incapacidade de apresentar projetos efetivos que possam
contribuir para o desenvolvimento sócio-econômico da população que sofre com a fome
e a miséria. Não há como dissociar as duas realidades. Não há como garantir a paz e a
D7%26cat%3D136%26doc%3D10247%26mid%3D2+restavecs&cd=3&hl=pt-
BR&ct=clnk&gl=br&lr=lang_pt> Acesso em 18 mai. 2010.
102
estabilidade a um povo que se desprovido de meios para atender suas necessidades
mais básicas, como se alimentar, por exemplo.
Há, ainda hoje, crescente preocupação, ao menos em tese,
em tentar desenvolver projetos que possam contribuir para minimizar essas carências.
Essas questões, consideradas fulcrais para a MINUSTAH, colocam os progressos
obtidos na área da segurança assentados sobre base precária; as convulsões sociais
subjazem como uma realidade latente. Como afirmou o Secretário-Geral (ONU,
2004f:13) um povo que tanto tempo se subsumido em um estado de extrema
pobreza, como é o caso do povo haitiano, não pode crer em um projeto político,
apoiado, direta ou indiretamente pela ONU, que não venha acompanhado de emprego e
desenvolvimento a longo prazo. Forst (2009:20) resume a importância de que se
revestem essas questões ao afirmar, citando uma declaração do Presidente do Conselho
de Direitos Humanos, que “o pleno desfrute dos direitos humanos, tanto civis e políticos
como econômicos, sociais e culturais, constitui um fator de paz, estabilidade e progresso
no Haiti”.
Em seu informe sobre a situação do país, relativo ao
período compreendido entre abril e setembro de 2009, o Secretário-Geral (ONU,
2009a:5) destacou a relação segurança-desenvolvimento sócio-político e econômico:
Durante o período coberto por esse informe, o país se manteve
relativamente calmo, apesar de ser uma situação de segurança muito
delicada. As possíveis ameaças a estabilidade incluem o risco de que
voltem a proliferar as gangues de rua, os delinqüentes e outros grupos
armados, a corrupção e a violência associadas ao tráfico ilegal, e os
grandes distúrbios civis. Em um momento de frustração crescente,
devido às difíceis condições de vida, as manifestações aumentaram em
número e intensidade em todo o país e evidenciaram o risco de que
grupos com objetivos muito díspares formem alianças oportunistas
para promover seus interesses particulares.
Não se pode conseguir um quadro de estabilidade
sustentável, sem que haja uma sólida base social e sem que as necessidades e os anseios
mais elementares do povo sejam satisfeitos. Os períodos de maior efervescência no
Haiti estão geralmente relacionados à aproximação dos pleitos eleitorais. Existe uma
polarização política que divide os eleitores entre partidários de Aristide, diga-se Fanmi
Lavalas, e os seus opositores. Contudo, a partir de 2004, com o estabelecimento da
103
MINUSTAH, têm-se conseguido um relativo sucesso na condução e na pacificação
desses processos, fato que contribuiu para que fossem realizadas eleições presidenciais e
parlamentares no início de 2006, oportunidade em que René Preval, atual presidente, foi
eleito em primeiro turno com mais de 52% dos votos. Foram eleitos ainda 27 senadores
e 99 deputados.
Acerca da realização dessas eleições, o Secretário-Geral,
(ONU,2006:1), afirmou que “pela primeira vez na historia recente, não se colocou em
xeque a legitimidade das eleições. Competiram 45 partidos políticos e 3 candidatos
presidenciais.” Novas eleições para o senado foram realizadas em abril de 2009. Houve
poucos casos de violência e também um baixíssimo índice de votantes, 11,3% no
primeiro turno, realizado em 19 de abril e 10,85% no escrutínio realizado no segundo
turno, em 21de junho de 2009.
Seria esse alto índice de abstenção uma evidência da „falta
de cultura democrática‟, apontada por alguns especialistas? Ou seria um sinal da
desesperança do povo em relação ao quadro de pobreza e miséria, uma vez que grande
parte do montante de quase quatro bilhões de dólares gastos com o Haiti nos últimos
cinco anos não trouxeram melhorias efetivas para o povo haitiano. Segundo Seitenfus
(2006:18),
a população pobre do Haiti esperava que a presença estrangeira se
revertesse em seu benefício. Ora, a quase totalidade dos gastos com a
operação de mediação no Haiti foi destinada aos próprios estrangeiros.
Os principais beneficiários haitianos são o complexo hoteleiro e os
proprietários de imóveis.
O segundo mandato de Préval transcorre sob a supervisão
da MINUSTAH e ao que tudo indica o mesmo não será o trigésimo terceiro presidente
deposto na história haitiana. Houve relativos avanços, inclusive no que se refere à
aproximação e diálogo com as oposições, assim como houve também momentos de
ameaça de recrudescimento da crise, como, por exemplo, durante os protestos contra a
alta dos preços dos alimentos, resultantes da ameaça de desabastecimento em 2008 e
alguns episódios pontuais de violência nos primeiros dias após o terremoto do dia 12 de
janeiro de 2010. Com relação aos distúrbios de 2008 o Secretário-Geral (ONU,
2008a:1) afirmou que:
104
Os protestos começaram como um meio para expressar a frustração
pública diante do aumento dos preços mundiais dos produtos básicos,
que impôs graves penúrias a população pobre do país. Não obstante,
em seu transcurso, as manifestações tomaram uma proporção que
indicaram que estavam sendo deliberadamente manipuladas para
servir a fins políticos, criminosos ou financeiros.
A citação evidencia tanto a fragilidade e a precariedade da
estabilidade conseguida na segurança, bem como a atuação velada de grupos
interessados em desestabilizar esse quadro, por meio do que Forst chamou
anteriormente de práticas desestabilizadoras.
A MINUSTAH completou, em 1º de junho de 2009, cinco
anos de atuação no Haiti. Os informes do Secretário-Geral, uma das principais fontes
utilizadas neste capítulo, nos apresentam uma situação que, em que pese alguns
incidentes isolados e a frustração do grosso da população, ainda padece ante os olhos
atentos das forças de paz da ONU, é de relativa tranqüilidade.
Contudo, os fatores que podem desencadear um retrocesso
são latentes, sejam eles naturais, como os furacões, terremotos e as enchentes que tem
atingido regularmente o Haiti; políticos, haja vista a atuação de grupos que esperam
pelo momento propício para agir, impelindo a massa contra o governo e contra as forças
da MINUSTAH; e/ou ainda resultantes de crises externas, como a ocorrida em função
da alta dos preços dos alimentos em 2008. Todas essas variantes tem que ser
administradas para que haja uma resposta capaz de impedir que incidentes localizados
tomem vulto e se transformem em comoção nacional, ameaçando destruir o que foi até
agora conseguido em termos de segurança.
O Brasil esteve presente desde o início na MINUSTAH,
com uma participação ativa, compondo e coordenando o grosso das tropas. O
componente militar, sobretudo o brasileiro, responsável pela segurança, principal óbice
no início da missão, vem cumprindo sua missão. Essa participação efetiva do Brasil foi
criticada no início da missão, causando celeuma entre políticos, intelectuais e
representantes de organizações não-governamentais. A participação brasileira esteve
quase sempre vinculada ora à possibilidade de se assegurar um assento permanente no
CSNU, caso fosse implementada a reforma do mesmo, ora à pretensão do governo
105
brasileiro de se projetar no cenário político internacional, principalmente como der
regional na América Latina. Como afirma Mathias e Pepe (2006:14):
O envolvimento direto nessas instâncias nos últimos anos está
intimamente ligado ao objetivo de conseguir um assento permanente
no CSNU. É importante não esquecer que o Brasil tem sido um dos
maiores defensores de uma reforma no Conselho de Segurança das
Nações Unidas. O país está ao lado de Alemanha, Japão e Índia nessa
empreitada [...] Assim, a participação em operações de paz da ONU
vem sendo encarada como condição importante para a obtenção de
uma vaga permanente no Conselho. Participar delas, entende o
governo brasileiro, é uma forma de demonstrar capacidade de assumir
grandes responsabilidades e de estar interessado em desempenhar
papel de relevo nas questões prementes da agenda internacional.
A presença da MINUSTAH e, conseqüentemente, dos
contingentes brasileiros no Haiti, continuam sendo fundamentais, sobretudo após o
terremoto. Segundo assevera o Secretário-Geral (ONU, 2009:15), “segue sendo
fundamental manter a presença da MINUSTAH”, uma vez que a PNH ainda não tem
condições de assumir plenamente suas responsabilidades e a destruição verificada nas
frágeis estruturas do país. A retirada precoce das forças de paz do Haiti poderia resultar
em fracasso semelhante àqueles experimentados na década de 1990. Há uma disposição,
que não é nova, de reconfiguração das forças da MINUSTAH, que está sendo
implementada, tendo em vista os avanços alcançados em algumas áreas, principalmente
na segurança. O objetivo dessa reconfiguração é adequar os contingentes às demandas
que surgem ou permanecem, empregando de maneira mais racional os recursos
humanos que compõe a MINUSTAH.
A retirada da MINUSTAH do território haitiano, se não
era cogitada pela ONU, muito embora existissem pressões por parte de alguns setores
da mídia e ONGs, agora, em função dos acontecimentos do dia 12 de janeiro de 2010,
está definitivamente descartada em curto prazo. Existe um entendimento, por parte dos
estrategistas militares e autoridades civis, de que a manutenção dos seus quadros é
fundamental para que se evitem retrocessos e/ou o comprometimento do que se
conseguiu até agora, e para que se reconstrua o que foi perdido. Como destaca o
informe do Secretário-Geral (ONU, 2009:7):
106
A avaliação da Missão confirma claramente que para evitar reveses e
retrocessos importantes, segue sendo essencial manter uma substancial
presença internacional, militar e policial, em um nível similar ao atual.
Ao mesmo tempo, é preciso ajustar alguns aspectos da configuração
da força da Missão a fim de atender melhor as necessidades sobre o
terreno.
Este é o Haiti sob o enfoque dos documentos produzidos
pelos corpos civis e militares, responsáveis pela estabilização do país. As bases sobre as
quais se assentam os projetos e as práticas da ONU longe estão de dar segurança e
credibilidade à nova estrutura que se ergue na pequena Pérola das Antilhas. Do sucesso
da MINUSTAH depende, literalmente, o futuro do Haiti. Pois esta representa, em tese,
o último recurso dos „reis‟, a ultima ratio Regis para o povo haitiano.
Após delinear os contornos do ambiente em que se
desenvolvem as lides haitianas, sob a perspectiva do discurso onuseano, enfatizaremos
como o Haiti, os haitianos e a própria MINUSTAH são percebidos pela imprensa
brasileira - aqui representada pela Folha de São Paulo.
107
PARTE 3
A MINUSTAH SOB A LENTE DA FOLHA DE SÃO PAULO: O DISCURSO
MIDIÁTICO CONFORMANDO O ‘OUTRO’
3.1 A topografia
53
urbana de Porto Príncipe: arquétipo do caos
Porto Príncipe tem todas as mazelas de
uma grande cidade latino-americana
sem a infra-estrutura de outras. No Rio,
[Rio de Janeiro] você sai da Rocinha e
vai a Ipanema. Aqui não há Ipanema.
(GOMIDE, 2007:on-line)
Porto Príncipe é o ponto nevrálgico do Haiti, onde todas as
tragédias haitianas se materializam, onde os infortúnios causados pela depauperação de
grande parte da população apresentam-se em sua forma mais cruel. Sua população, algo
em torno de dois e meio a três milhões de habitantes, quase um terço, portanto, da
população total do país, composta em grande parte por migrantes que abandonaram ou
foram expulsos de suas terras no interior do país, sobrevive quase que indiferentes em
meio ao que os discursos midiáticos costumeiramente qualificam como a perfeita
representação do caos.
A capital haitiana é a exata medida da inação, da
indiferença, do preconceito e do racismo que sempre pesaram sobre o Estado e sobre o
povo haitiano. Sem querer correr o risco de sermos reducionistas, poderiamos dizer que,
em certa medida, é a partir de Porto Príncipe, para onde se dirigem os olhos e as lentes
daqueles que nos in-formam, a imprensa nacional/internacional, que o Haiti é
tragicamente apresentado (e representado) ao mundo, ficando o seu interior relegado a
segundo plano, padecendo em silêncio as desgraças que câmeras e microfones não
podem ou não querem captar.
53
A utilização deste termo deve-se a uma tentativa de apresentar, ou representar, não apenas os acidentes
naturais e arquitetônicos, da cidade de Porto Príncipe, mas também de trazer ao leitor o que acreditamos
ser o principal e mais espantoso destes acidentes, qual seja, a espetacularização da tragédia humana. O
povo haitiano, retratado, apresentado e representado, invariavelmente, como vítima de si mesmo.
108
As fontes de que nos valemos nessa segunda parte
reportagens e artigos da Folha de São Paulo nos revelam, por vezes em pormenores, o
estranhamento e a abjeção causada pelo contato com uma realidade que, se de início
parece distante e estarrecedora, torna-se familiar quando realocada para um ambiente
que faz parte do nosso espaço social e de nossas experiências cotidianas. O estranho e
perturbador é mitigado pela apropriação de categorias que nos são familiares,
possibilitando assim a representação daquilo que de outra maneira nos escaparia. É
justamente o que Moscovici (2003) chamou anteriormente de ancoragem.
As representações haitianas, sobretudo aquelas que tratam
da dinâmica das relações humanas, que se desenvolvem nas ruas, becos, ruelas, casas e
casebres de Porto Príncipe, guardam uma relação, por vezes bastante próxima, com uma
realidade factível para a maioria dos brasileiros que alí se encontram e que, em última
instância, são os responsáveis por fazer com que tais representações cheguem até nós: as
favelas brasileiras.
, como , os ocupantes dessas localidades, alijados e
marginalizados socialmente, acabam perdendo sua identidade e, consequentemente,
parte de sua dignidade, sendo levados a travar, diuturnamente, uma incansável luta pela
sua afirmação e reconhecimento. Essa luta se dá sob o olhar racista e excludente de uma
elite, minoritária, que assiste as mazelas de uma massa de miseráveis e também, de
outra parte, pelas diversas organizações internacionais, sejam elas ONGs, de imprensa e
até mesmo da ONU, que do interior de suas bases, ou de seus automóveis blindados,
assistem a escalada da miséria e do drama haitiano sem serem capazes de apresentar
projetos que realmente beneficiem os mais necessitados, limitando sua ação quase que
exclusivamente à garantia da segurança e estabilidade.
A imprensa nomeia, classifica e condena a todos, como se
não houvesse entre eles nenhuma distinção, fazendo predominar apenas os tipos sociais
mais abjetos. Michael (2006:on-line) descrevendo Cité Soleil - um dos bairros mais
populosos de Porto Príncipe - deixa essa tendência à generalização, à “normalização”,
evidente ao afirmar que: Os muros e casas de - madeira é artigo de luxo no Haiti -
109
abrigam, além de miseráveis ou subempregados, gangues armadas e violentas que se
digladiam entre si.”
54
O haitiano que sobrevive abaixo da „linha da pobreza‟,
representa mais de setenta por cento da população do Haiti, fato que faz com que as
referências ao mesmo na mídia sejam corriqueiramente iniciadas com a lembrança de
que o Haiti, além de ser o país da revolução negra, do vodu e das infindáveis ditaturas, é
também o detendor do pejorativo título de „o país mais pobre das Américas‟. A miséria,
com todos os seus desdobramentos, do desequilíbrio ambiental à ingovernabilidade
resultante da polarização da política, compõe o estandarte que via de regra é utilizado
para caracterizar aquela nação. O haitiano in-surge sempre maculado, em meio ao caos,
sob pechas que só a ele cabe.
No trecho a seguir, retirado de uma reportagem da Folha
SP, de julho de 2004, ou seja, em um momento em que as tropas brasileiras ainda
começavam a reconhecer o terreno em que iriam atuar, destaca, como a descrição feita
por um Oficial, provavelmente do Exército Brasileiro, acaba indo muito além do
simples ato de descrever, ao apresentar Porto Príncipe, por meio de categorias que lhe
são familiares, como um misto do que de pior em seu ambiente social, ou seja, as
favelas cariocas. Na reportagem de Neto (2004:on-line), fica evidente o que procuramos
assinalar quando afirma que:
Favela é o que não falta no país, e nelas está parte do problema -
gangues que a missão da ONU tem por objetivo desarmar. Ruelas
estreitas tornam seu policiamento difícil. [...]
"General, [Heleno] Porto Príncipe é 80% Favela da Maré, 15% Parada
de Lucas, e 5% Arrebalde de Madureira", disse um oficial de um
destacamento precursor, fazendo um relatório na sua volta ao Brasil,
citando locais da geografia da pobreza carioca.
Num primeiro momento o próprio autor se refere ao
problema das „favelas‟ no Haiti, apropriando-se de uma expressão que define uma
categoria que, muito embora as aproximações, pode ser estranha a historicidade do
54
As lentes de Michael ignoram, ou não são capazes de captar, como acontece corriqueiramente nas
favelas brasileiras, a grande maioria de cidadãos de bem que vivem nessas casas, para além desses muros,
apresentando ao leitor apenas a escória da sociedade.
110
haitiano, mas que é utilizada por atender a necessidade de apresentar ao leitor uma
informação factível e tão próxima quanto possível da sua realidade.
O autor revela ainda que é alí, nas favelas, que estão parte
dos grandes problemas do Haiti, silenciando-se acerca do que seria e onde estaria a
outra parte do problema, bem como sobre suas causas. Cabe salientar que as favelas,
refúgio das camadas menos favorecidas da população, não constituem o problema em sí,
sendo apenas a ponta do iceberg, uma vez que são, antes de tudo, uma clara evidência
da ausência do poder público, do Estado e consequência de anos de exploração brutal.
55
Mas Porto Príncipe longe está de poder, sequer, ser
comparada com o Rio de Janeiro, mesmo que este seja apresentado em circunstâncias
deploráveis. Apesar das inevitáveis comparações, existe um abismo, discursivamente
sulcado, entre as duas realidades. Como afirmou o General Heleno, em reportagem à
Folha, de setembro de 2004, “Não bairro tão pobre no Rio de Janeiro como os que
existem por aqui [Porto Príncipe]. Os brasileiros não têm idéia de como é o Haiti.”
(MAINSONNAVE, 2004:on-line). Talvez esteja aqui o âmago do problema.
É justamente por causa desse „desconhecimento‟,
apontado por Heleno, que essas construções discursivas, materializadas em reportagens,
entrevistas e/ou artigos, tecem um quadro com cores tão vivas, que acabam prendendo a
atenção do leitor e, em última instância, cumprindo exatamente aquilo que se propõe:
criar uma determinada imagem (representação) do Haiti, sempre negativa, para o leitor
brasileiro, que desconhece a realidade haitiana. Por pior que seja a realidade do Rio de
Janeiro, não espaço para comparações. O Rio, no que tem de pior, surge apenas
como parâmetro, não se iguala. As representações haitianas, assim construídas, chocam
ao mesmo tempo que tornam distantes possíveis aproximações, principalmente quando
apresentada pelas lentes da mídia para quem, segundo o próprio General Heleno
“notícia boa não é notícia”
56
(PEREIRA, 2005:14).
55
O relato do referido oficial, que se utiliza de áreas extremamente problemáticas da capital fluminense
para descrever Porto Príncipe é esclarecedora acerca da visão que sobressai nas representações sobre o
Haiti. A capital haitiana é apresentada como sendo o que há de pior na urbes carioca.
56
Podemos notar, pela maneira como a notícia é apresentada, que o referencial que mais aproxima o Haiti
do Brasil é certamente o Rio de Janeiro, apesar das ressalvas feitas anteriormente e, logicamente, de todos
os cuidados que devemos ter ao nos defrontarmos com uma analogia dessa natureza. A composição
paradisíaca da paisagem que caracteriza a pequena ilha caribenha desaparece, ou é ignorada, diante da
clara intensão de enfatizar apenas aqueles aspectos mais degradantes de sua capital.
111
No trecho colocado na epígrafe deste tópico, Gomide
(2007:on-line), utilizando-se da fala do embaixador do Brasil no Haiti, Andrade Pinto, e
complementando ele mesmo, logo abaixo, apresenta outra aproximação entre Porto
Príncipe, sobretudo de Cité Soleil, com a cidade maravilhosa. Porto Príncipe é
colocada no mesmo patarmar das outras cidades da América Latina, mas apenas no
tocante às mazelas que, não raro, as caracterizam de maneira geral. O embaixador
afirma que, em que pese as dificuldades e precariedades enfrentadas em uma e outra
realidades, no Rio de Janeiro a situação se torna menos tensa e insuportável por haver,
em tese, uma infra-estrutura, uma lvula de escape, para amenizar as pressões dos
ocupantes dos morros cariocas e tornar menos traumática as suas experiências urbanas.
A favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, é colocada como referência em infra-estrutura,
contando, inclusive, com área de lazer, no caso, Ipanema. Segundo Gomide (2007:on-
line):
Porto Príncipe tem todas as mazelas de uma grande cidade latino-
americana sem a infra-estrutura de outras. "No Rio, você sai da
Rocinha e vai a Ipanema. Aqui não Ipanema", disse o embaixador
[Andrade Pinto] à Folha.
Bois Neuf era um desses lugares em Cité Soleil onde os soldados
sempre enfrentavam tiroteios e forte resistência. Longe de ter a infra-
estrutura da carioca Rocinha - que conta com comércio irregular
significativo e até com uma TV comunitária -, é uma favela com uma
rua principal e muitas vielas com valas abertas, sem luz e com odor
fétido.
Impressionam as descrições, as estruturas, ou ainda, a falta
delas. O lixo, o esgoto, as valas negras, a ausência quase que completa de traços de
urbanidade fazem com que o homem haitiano seja tragado pelo ambiente que ocupa,
sendo, não raro, desumanizado e coisificado. A população que alí se encontra parece
alienadas e destituída de sua humanidade em meio ao caos imperante e reiteradamente
presente nas ginas da imprensa. A vida dessas gentes parece perder o sentido, ao
menos aos olhos de seus interlocutores, levando-os, quando em contato com essa
população, a fazer observações que transmitem ao leitor a errônea impressão de que não
há nenhum sentido na dinâmica social haitiana.
112
Sobressai, além da imundície, sempre presente nos relatos,
a aparente apatia e indiferença demonstradas pelo haitiano à podridão que o cerca.
Maisonnave (2005:on-line) assinala esse estado de aparente alienação, ao descrever uma
de suas primeiras experiências pelas ruas do Haiti, acompanhado pelas tropas da
MINUSTAH. Segundo ele: em meio às pilhas de lixo, havia uma intensa
movimentação de ambulantes, mulheres transportando água em baldes na cabeça e
outras pessoas perambulando, sem motivo aparente.” O autor parece tão distante da
realidade que pretende retratar, ou melhor, se coloca tão distante dessa realidade, que é
incapaz de captar o sentido existente no frenético vai-e-vem dos transeuntes, acabando
por retratá-los como semi-autômatos.
Em outro relato, Maisonnave (2006:on-line) descreve
outra experiência junto às tropas da ONU, em Cité Militaire, outro local considerado
crítico nos primeiros anos da ocupação. A descrição do repórter termina com a
utilização de uma imagem que, provavelmente conhecida da grande parte dos leitores,
resume bem a perspectiva reservada ao Haiti pela imprensa internacional, uma vez que a
Folha não constitui uma excessão:
A tensão interrompe a conversa, e os dedos se aproximam do gatilho
dos fuzis [...] Às 20h, a maior parte de Cité Militaire parece uma
cidade deserta e arrasada. Sem fornecimento regular de energia, a
iluminação noturna vem da Lua crescente, e não dos postes apagados
e dos precários casebres às escuras. Poucas pessoas transitam nas ruas,
e de vez em quando uma grande vela vermelha ilumina uma ou outra
barraca que insiste em vender comida.
O jipe chega rapidamente ao ponto forte oito da missão brasileira,
considerado o mais vulnerável a ataques armados. Com 60 homens,
tem a base principal dentro de uma espécie de depósito cercado por
uma imensa área livre, onde foram empilhados contêineres para
bloquear os tiros antes disparados dos telhados das casas vizinhas. O
cenário lembra o apocalíptico "Mad Max".
Mad Max, filme apocalíptico lançado em 1979, trata de
um colapso global ocorrido em razão de uma guerra, travada entre potências mundiais,
motivada por uma crise aguda de petróleo, que faz do planeta terra um lugar deserto e
sem lei, tomado por legiões de semi-selvagens que ameaçam a tudo e a todos. A
utilização desse ícone das telas para ilustrar a realidade haitiana parece ser o
coroamento de uma descrição que não deixava dúvidas quanto à precariedade das
113
condições de uma cidade deserta e arrasada, cujos habitantes, tal qual ratos, saídos de
“precários casebres às escuras”, se arriscam para obter algo para sua subsistência em
uma barraca que, ao que parece, desafia um perigo latente e “insiste em vender
comida”.
O ponto forte oito aparece como uma daquelas fortalezas
do filme, totalmente cercada e protegida contra a constante ameaça de bandos de
indigentes que lutam para sobreviver e que buscam ali a sua redenção. Isso pode ser
confirmado quando, ao final dessa mesma reportagem, Maisonnave voz ao discurso
do tentente - provavelmente do Exército Brasileiro - Clodoaldo Pires Filho, 26.
Clodoaldo diz que a rotina vivida ali “é uma combinação de tensão e tédio [...] De cá,
parece tudo tranqüilo. Mas nunca se sabe o que vem do lado de lá.” (MAISONNAVE,
2006:on-line). O perigo, o medo e a insegurança fazem parte do cotidiano desses
homens, e não deles, alimentando a idéia de que nenhum lugar da ilha é seguro e que
o inimigo, o haitiano, está sempre à espreita.
Há, ao que parece, uma generalização indiscriminada, uma
normalização (SILVA, 2009:80) comum a esse tipo de discurso, que condena a tudo e
a todos, sem fazer distinção de qualquer natureza. O parâmetro se estabelece a partir da
negação do „outro‟, haitiano, considerado vil e ameaçador. O estranhamento é
acentuado pelo antagonismo que se estabelece entre duas realidades tão próximas e tão
distantes. Caroit (2005:on-line) torna evidente os contornos dessa disparidade quando
contrapõe o sis e o caos:
Em meio ao caos que continua a dominar o cotidiano dos moradores
de Porto Príncipe, a capital do Haiti, quase um ano depois da queda do
ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, o acampamento instalado pelos
capacetes azuis (soldados que participam de missões de manutenção
da paz ou de estabilização das Nações Unidas) chineses é um oásis de
disciplina e de limpeza. "Nossa primeira missão foi limpar as pilhas de
lixo e construir nossos dormitórios, nossa cozinha e nosso hospital"
[...] o acampamento vive de maneira auto-suficiente.
O caos que caracteriza Porto Príncipe nos discursos pós-
revolução contrasta com o oásis de disciplina e limpeza dos chineses, deixando evidente
ainda sua auto-suficiência, e porque não o seu distanciamento, com relação às gentes
que ali habitam. A referência temporal, presente no discurso, também deixa entrever
114
que mesmo depois de cessados os motivos que desencadearam a última convulsão
social em Porto Príncipe, qual seja a queda de Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro de
2004, o caos continua a dominar, fazendo suspeitar que este pode não estar ligado ao
fato em si, mas à própria natureza do povo haitiano. A auto-sufuciência do
acampamento chinês estabelece e reforça o limite entre dois mundos, discursivamente
díspares.
Outro aspecto relevante desta mesma reportagem e que de
certa maneira corrobora, ainda que em parte, algumas de nossas hipóteses, é o que diz
respeito ao discurso atribuído por Maisonnave (2005:on-line) a uma policial chinesa
chamada Zhong Ling. O repórter afirma que a referida policial “não se surpreendeu com
a miséria e a violência.” encontrados no Haiti.
Os motivos apresentados para justificar a indiferença
demonstrada por Zhong à miséria e à violência ali observadas fundamentaram-se na
seguinte afirmação da policial: Tivemos aulas de história e de familiarização com a
realidade do Haiti durante os três meses de preparo para as operações de manutenção da
paz que tivemos num centro de treinamento perto de Pequim. Fica evidente, portanto,
que o preparo demonstrado por Zhong deve-se ao fato de que o quadro vivenciado por
ela no Haiti, em Porto Príncipe em particular, comporta uma justificativa histórica,
alicerçada sobre um arcabouço discursivo, um interdiscurso, que traz a tona o
delineamento dado ao assunto nos centros de treinamento em que se preparam os
contingentes de capacetes azuis, e não só ali.
Porto Príncipe é a terra dos contrastes, onde o outro se
realiza, onde o poder do discurso se materializa, onde o querer e a ordem ocidental,
eurocêntrica, se impoem, mostrando a sua força. É, antes de tudo, o triste resultado da
afronta a esse querer, a esse poder. A singularidade desta terra demonstra o quão
singulares foram seus habitantes e sua luta, evidenciando também o quão pesada se
tornou a herança deixada por eles. A estética urbana, ponteada por pilhas de lixo e valas
de esgoto a céu aberto, pela falta de estruturas básicas, demonstra, por sua vez, uma
realidade cujas causas o discurso insiste em ignorar.
O povo haitiano parece tragado pelo ambiente caótico que
ganha vida nas descrições apresentadas pelo discurso midiático, surgindo nestes
discursos, como mais um acidente dessa intrincada composição. A topografia haitiana,
115
revelada através destes discursos, se mostra recortada desses acidentes, sejam eles
naturais ou resultantes da ação humana. A degradação, não do ambiente, mas
também do povo haitiano, longe de constituir uma incógnita, apresenta-se de maneira
muito evidente nos discursos. O povo haitiano, ao ser assim representado, lugar ao
„Outro‟, que conforma ao mesmo tempo que informa. No tópico seguinte, se
enfatizado como se essa relação, em que o haitiano, subsumido em meio ao caos,
torna-se objeto tanto de alteridade, quanto das mais abjetas representações.
3.2 - O povo haitiano: a denegação do Outro
Sejamos claros e diretos: O Haiti um
país sob transfusão é economicamente
inviável e politicamente impossível, se
deixado a própria sorte. (SEITENFUS,
2005:on-line)
As referências ao Haiti e, consequentemente, aos
haitianos, encontradas nas reportagens, no momento anterior, indicam a perspectiva
adotada tanto por parte considerável da imprensa e de alguns organismos internacionais
que ali estão, quanto por uma minoria da própria população, que, por causa dos vínculos
estabelecidos com estes, acabam se apropriando desse discurso, fazendo coro e
potencializando ainda mais o seu escopo. O Haiti é descrito como terra de litígio, como
revela o tulo da reportagem de Maisonnave (2005:on-line): “Apesar da ONU, Haiti
vira „terra de ninguém‟.” Sobressai nesse título a materialização de um interdiscurso que
remonta a um passado inscrito na longa duração e que tem suas raízes, para falarmos de
uma realidade que nos é próxima, na invisibilidade atribuída pelo colonizador ao outro,
fosse ele o degredado, o autóctone do novo mundo ou o negro africano transformado em
mercadoria, pária da sociedade haitiana pós-revolução.
A força do enunciado de Maisonnave deixa evidente que,
em que pese os esforços dirigidos pela comunidade internacional ao Haiti, aí
representada pela simbólica figura da ONU, o mesmo sucumbe ante a violência e ao
desmando, aparentemente irremediáveis. A leitura das matérias e reportagens, não só da
Folha de São Paulo, mas da dia como um todo, acabam induzindo o leitor a concluir
116
que, ao fim das contas, o maior problema do Haiti são os próprios haitianos. Em
algumas matérias veiculadas pela Folha, essa perspectiva emerge acintosamente dos
discursos, como, por exemplo, na declaração de Denneth Modeste, representante da
OEA no Haiti, em matéria de Vila-Nova (2005:on-line). Modeste, comentando
acusações de abusos cometidos pelos militares da MINUSTAH, afirmou que “se as
tropas saíssem amanhã, os haitianos as chamariam para salvá-los uns dos outros.”.
Neste comentário fica clara não somente a sua posição, mas, principalmente, a da
insituição a qual representava no momento da declaração, que se arvora como
mediadora da crise que perdura há quase duas décadas no país.
Na reportagem anterior cujo título é: Haitianas acusam
missão da ONU de abusos, Vila-Nova (2005:on-line) apresenta, por meio de um
informe da SOFA, Solidadariedade pelas Mulheres Haitianas, uma outra perspectiva,
que vai ao encontro do discurso e do olhar estigmatizante do Outro. Segundo o informe:
“A Sofa está extremamente preocupada que os soldados estejam fortemente armados e
que usem o poder que têm como meio de tirar vantagem significativa de mulheres [...]
Eles estão olhando para os haitianos como se fossem cão sem dono.” Em linhas gerais,
era certamente assim que o haitiano se sentia naquele momento, em que a ocupação
completava um ano sem resultados efetivos, fato que até certo ponto era compreensível
dada a amplitude e a complexidade da situação. Mas o que chama a atenção não é essa
questão e sim a maneira como são percebidos e representados.
As críticas dirigidas aos haitianos ficam tanto mais ásperas
quanto mais tensas as situações internas se tornam. Os últimos cinco anos, período em
que a MINUSTAH esteve presente no Haiti, foram marcados por uma diminuição
gradativa da violência, perceptível, sobretudo, nos dois últimos anos que precederam o
12 de janeiro de 2010. Houve alguns períodos de recrudecimento da violência,
caracterizados pela Folha como „ondas de violência‟, com motivações diversas, que iam
desde protestos políticos à revoltas populares, como a causada pela alta dos preços dos
alimentos no primeiro semestre de 2008.
As eleições presidenciais no início de 2006 constituiram
um período em que a exasperação da crítica foi notória. O processo eleitoral de 2006,
considerado um marco na tentativa de redemocratização do país e uma derradeira
esperança para o povo, foi alvo de críticas contundentes da imprensa internacional. O
117
que seria uma prova inconteste do desejo de mudança e de ruptura do povo haitiano
com um passado em que a realização de eleições representava, não raro, a perpetuação
de ditadores no poder, acaba se transformando, pelo discurso enviesado da imprensa
internacional, em uma manifestação caótica e distante dos seus propósitos
democratizantes.
Quando, em outros tempos, não havia manifestações por
parte da população em comparecer às urnas para proceder o escrutínio, pesavam sobre
ela acusações que a qualificavam como anti-democrática, corroborando teses como a da
falta de cultura democrática, apontada na segunda parte de nosso trabalho. Em 2006,
quando uma parcela considerável da população foi às urnas o discurso muda, mas o
direcionamento é o mesmo.
A significativa participação dos haitianos no processo
eleitoral de 2006, longe de lhes garantir o reconhecimento da comunidade internacional,
acabou fazendo com que assumissem uma culpa que não lhes cabia inteiramente. Na
reportagem de Maisonnave (2006:on-line), desvela-se que a efetiva participação, longe
de ser comemorada, foi utilizada como pretexto para justificar o tumulto e o „caos‟
ocorrido em alguns locais de votação. Segundo Maisonnave: “o presidente do Conselho
Eleitoral Provisório (CEP), Max Mathurin, minimizou a desorganização da votação de
ontem no Haiti e preferiu culpar o comparecimento em massa dos eleitores pelo caos
verificado em diversos centros de votação pelo país.” O que fica demonstrado é que: por
mais que tudo corra bem, o povo haitiano é criticado.
O relativo fracasso das eleições deve-se, dentre outros
motivos e, diferente do que afirmou Mathurin, ao fato de que as relações entre o CEP,
Conselho Eleitoral Provisório, a ONU/OEA, instituições responsáveis pela coordenação
do pleito, foram se deteriorando a ponto de colocar em risco a realização do pleito.
Atrasos, adiamentos, falta de estrutura, tanto em pessoal quanto em material, foram
alguns dos motivos que ameaçaram o processo. Entretando, o discurso de Juan Gabriel
Valdés, enviado especial da ONU ao Haiti, em agosto de 2005, seis meses antes das
eleições, deixa bastante claro, uma vez mais, a posição não do sujeito, mas, antes de
tudo, do representante do principal organismo internacional que atua no Haiti.
Valdés, naquela oportunidade, defendia a idéia que mesmo
não havendo condições ideais para a realização do pleito eleitoral, ainda assim, este
118
deveria ser realizado para evitar as tensões geradas pela manutenção do governo
provisório. Até ai nada demais, não fosse a maneira como o mesmo se refere às eleições
previstas, até aquela data, para outubro, ou seja, menos de três meses depois,
demonstrando, antes de tudo, as suas expectativas, marcadas por um preconceito
evidente. Valdés afirmava que: “não serão eleições austríacas, serão eleições haitianas.”
(MAISONNAVE, 2005:on-line).
Aqui estão postos, de maneira objetiva, discursos que
emergem do sujeito, sem que, contudo, seja uma manifestação individual e isolada,
estranha ao seu ambiente de produção. É a perspectiva de ninguém menos que o
representante da ONU no Haiti, o que nos leva a crer que representa também, em grande
medida, a visão institucional desta organização. O fato de Valdés ter afirmado que se
tratava de eleições haitianas, em contraposição a um modelo ideal, europeu
evidentemente, parece abrir espaço para que as falhas e óbices de qualquer natureza,
estivessem justificados, eximindo, como sempre, a ONU e a OEA.
Maisonnave (2006:on-line), que cobriu as eleições como
enviado especial da Folha de São Paulo, assim as descreve, em reportagem de 8 de
fereveiro de 2006:
A primeira eleição haitiana após a queda de Jean-Bertrand Aristide foi
marcada por pelo menos quatro mortes, invasão de um centro
eleitoral, gás lacrimogêneo, tiros para o alto e a imensa sombra do ex-
presidente, exilado desde fevereiro de 2004 [...] Na capital, um
homem de 74 anos acabou asfixiado no tumulto, e uma mulher teve
um infarto. Em Gros-Morne (norte), um policial matou um homem
perto de um posto de votação e acabou morto pela multidão, [...] A
reportagem da Folha acompanhou a caótica votação no prédio da
Circulação e Serviços de Transportes [...] Dentro, duas filas de ao
menos 300 mulheres grávidas, idosos e deficientes físicos mostravam
a disposição em votar, o que não é obrigatório no Haiti. À frente das
filas, havia uma mulher grávida de oito meses e um rapaz que se
movimentava com as mãos [...] Do lado de fora, os policiais haitianos
desistem de segurar o portão e tentam deixar apenas algumas pessoas
entrarem. Impossível. Os idosos e as mulheres grávidas tentam se
proteger numa sala enquanto a multidão avança. O rapaz paraplégico é
colocado sobre um dos carros semidestruídos que se acumulam no
pátio.
Uma moto tenta sair do pátio e é atropelada pela multidão. A polícia
começa a dar coronhadas, mas, em minoria, foge e deixa todos
entrarem. Ao menos seis são pisoteados. Uma menina com fratura no
joelho chora. Uma patrulha brasileira de jipe foge. [...] A gritaria é
ensurdecedora. [...] No fundo do pátio, um soldado brasileiro chama a
119
atenção para uma mulher grávida que chora sentada. Ao lado, outra
grávida joga água em sua barriga de oito meses. Por que não volta
para casa? "Quero ficar e votar", diz, torcendo o vestido. "Quero paz."
A descrição de Maionnave parece nos transportar para o
prédio da Circulação e Serviços de Transportes haitiano, cenário da “caótica votação”.
Mortes, invasões, gás lacrimogêneo e tiros para o alto; assim transcorrem as „eleições
haitianas‟.
57
Outro ponto que chama a atenção no recorte acima é o fato
de que, ao que parece, no centro de votação em questão existiam apenas dois grupos
distintos de cidadãos: o primeiro, caracterizado principalmente pela violência que
disseminavam, é apresentado como um grupo de bárbaros e selvagens que, em tropel,
destruíam tudo o que surgia a frente, desafiando a polícia local e as patrulhas da
MINUSTAH, tomados por uma cólera aparentemente inexplicável; o segundo grupo,
formado por mulheres grávidas, idosos e deficientes físicos, ou seja, um grupo de
incapazes, surge como vítima do primeiro. Em suma, não existe meio termo. O discurso
da Folha de São Paulo busca construir um quadro caótico, não fugindo, por não
conseguir ou por não querer, do quadro que orienta os discursos que buscam retratar e
evidenciar a sanha haitiana como um primitivismo atávico.
O título da reportagem de Maisonnave, de 09 de fevereiro
de 2006, dois dias após a realização das eleições, parece confirmar as „previsões‟ de
Valdés: “Haiti tem dia calmo após caos das eleições” (MAISONNAVE, 2006:on-line).
O conteúdo da reportagem, portanto, longe de corroborar o título, confirma o que
estamos apontando. Jacques Bernard, diretor geral do CEP (Conselho Eleitoral
Provisório), confirma o maciço comparecimento do povo haitiano, muito embora o voto
no Haiti não seja obrigatório. Segundo Bernard: “Talvez seja a maior taxa de
comparecimento na história das eleições livres no Haiti.”
Em outro trecho da reportagem, o general José Elito, então
comandante militar da MINUSTAH, afirma que dos mais de 800 centros eleitorais,
57
Bem distante do que sería de se esperar de “eleições austríacas”, onde os cidadãos de um dos países
mais ricos do mundo, cuja renda percapita anual ultrapassa quarenta mil dólares, votam sob os olhares
benevolentes dos mesários, provavelmente refinados e solícitos, cumprimentando cada cidadão,
indistintamente, ao final de seu dever cívico, os quais agradecem ao bom Deus, distinto também daquele
do Vodu, por não dependerem de organismos internacionais como a ONU e a OEA para garantir um
direito tão elementar.
120
apenas uma meia dúzia registrou problemas.”. Logo a frente Pierre Esperance, ativista
de direitos humanos no Haiti, afirma que apesar de os problemas de organização não se
restringirem aos atrasos, estes não afetariam o resultado, em função do alto
comparecimento. Das falas de Bernard, Elito e Esperance, não podemos depreender o
caos de que fala Maisonnave. Perguntamos-nos então: para onde o enfoque do repórter
conduz o leitor?
Assim, reiteramos as assertivas de Heleno acerca do
direcionamento dado pela imprensa às notícias veiculadas sobre o Haiti, que
privilegiariam os seus aspectos negativos, potencializando-os e, sobretudo, da
permanência de um determinado discurso, anti-haitinista, que, como procuramos
demonstrar, remonta à Revolução, ou ainda antes.
Na tentativa de corroborar seu discurso e suas impressões,
Maisonnave, em reportagem de 16 de fevereiro de 2006, intitulada “Bagunça vence
participação”, busca se apoiar em relatórios de observadores nacionais e internacionais,
dentre os quais figuram representantes da União Européia. Contra estes, a nosso ver,
pesam grande parte das críticas dirigidas ao país, uma vez que são, em sua grande
maioria, os responsáveis diretos por grande parte dessas perspectivas que condenam o
Haiti. Maisonnave (2006:on-line) afirma que:
A confusão testemunhada pela reportagem coincide com relatórios de
observadores nacionais e internacionais. A União Européia, por
exemplo, disse que o Conselho Eleitoral Provisório haitiano (CEP)
"não possuía a capacidade administrativa e organizacional necessária
para conduzir as eleições" [...] Para alguns analistas, como é no Haiti,
vale quase tudo.
O empresário "Charlito" Baker, o terceiro mais votado e favorito da
elite haitiana, [...] reclamou, com certa razão, que, se os mesmos
problemas tivessem ocorrido em outros países, as eleições teriam sido
anuladas. Suas declarações, no entanto, tiveram pouco eco. Branco,
ele teve meros 8% dos votos, e sua capacidade de mobilização é zero.
[...] Humilhados cotidianamente pela fome e pelo desemprego, os
eleitores de Préval foram novamente rebaixados a animais nos postos
de votação de Cité Soleil e Bel Air [...] o caos venceu o
comparecimento.
Não surpreende a ninguém a afirmação de Maisonnave
sobre o posicionamento da União Européia com relação ao Conselho Eleitoral
Provisório Haitiano (CEP), pois o simples fato de ser coordenado por haitianos, aos
121
olhos desses observadores, o coloca como incapaz e inapto para conduzir eleições ou
o que quer que seja. O discurso eurocêntrico, caracterizado principalmente por seus
traços racistas e colonialistas, reforça os estigmas que pesam sobre os haitianos. A
afirmação de que no Haiti vale quase tudo também é reveladora, apesar de não
surpreender. Como afirmamos, estes discursos estão assentados sobre uma base que
busca apresentar o Haiti como “terra de ninguém” e os haitianos como “cão sem dono”,
onde a ordem, possível, foi subvertida pelo caos, ainda e sempre imperante.
A afirmação atribuída por Maisonnave a Charlito Baker
também reforça a idéia de que o Haiti segue realmente (discursivamente) à margem da
civilização. Ao afirmar que “[...] se os mesmos problemas tivessem ocorrido em outros
países, as eleições teriam sido anuladas”, Baker, cidadão haitiano, branco, acaba, talvez
intensionalmente, se alinhando aos discursos eurocêntricos, o que de certa maneira é
compreensível, visto o mesmo ser um representante da elite haitiana, tão afeita aos
hábitos e costumes daqueles e indiferente às desgraças que se abatem sobre seu
desprezado povo.
O último trecho do recorte anterior é o que deixa mais
evidente a perspectiva defendida pela imprensa de maneira geral. O que quis
Maisonnave dizer, quando afirmou que “os eleitores de Préval foram novamente
rebaixados a animais”? Novamente‟?! O que os redimiu anteriormente? Quando foram
trazidos então a condição humana? Por quanto tempo permaneceram/permanecerão
entre „nós‟, humanos e civilizados‟? O que os rebaixou? Para esta última pergunta a
resposta: o olhar do outro, do branco, humano, civilizado, observador, analista, que,
detentor do poder de nomear e classificar, rebaixa a soleira da humanidade àquele que
lhe confere dignidade, cidadania e até, quem sabe, uma invejável superioridade. Mas,
como se trata do Haiti, no final, „o caos venceu‟. Repete-se a recorrente máxima sobre o
cotidiano daquela região.
Outro aspecto que também merece ser analisado diz
respeito aos discursos - publicados pela Folha -, dirigidos a Jean-Bertrand Aristide, o
padre-presidente, pivô da última crise, que culminou com o estabelecimento da
MINUSTAH em 2004 e que ainda justifica, de certa maneira, a sua presença em solo
haitiano. Aristide, como vimos, ao assumir o governo do Haiti em 1991 tenta
122
implementar uma política populista, distanciando-se das elites (políticas, militares,
econômicas) que não permitem que o seu governo se estabeleça efetivamente.
A proximidade de Aristide com as massas haitianas pode
ser apontada, ainda que indiretamente, como um dos motivos de sua destituição em
1991, sendo também, por outro lado, a principal responsável por seu retorno, por via
direta, em 2000, muito embora os questionamentos acerca da lisura do processo que o
reconduziu à presidência. O discurso de Aristide, caracterizado principalmente por sua
eloqüência, conseguiu reunir o povo haitiano em torno de um ideal democrático pelo
simples fato de lhes atribuir, ainda que discursivamente, dignidade, humanidade e
cidadania. Segundo Caroit (2006:on-line):
Em dezembro de 1990, quando os haitianos compareceram em
número maciço às urnas para eleger Jean-Bertrand Aristide, este se
havia aproveitado de sua imagem de benfeitor dos favelados para
encarnar a idéia de mudança democrática. "Todas as pessoas são
humanas", ele costumava dizer às massas miseráveis do país,
reconhecendo pela primeira vez sua condição de cidadãos.
Aristide procurou se confundir com as massas, lançando
mão de uma velha receita, muito utilizada pelos caudilhos que dominaram o cenário
político da América Latina no século XIX e XX. Aristide se fez povo e, tal qual o povo
haitiano, foi vítima do preconceito, do racismo e do desdém experimentado por este
séculos. A inaptidão ou a incapacidade atribuída a Aristide para governar e estabilizar o
Haiti não está ligada a sua pessoa, às suas aptidões pessoais. O aparato discursivo
dirigido contra Aristide é orquestrado pelas elites entreguistas que, em consonância com
representantes de organismos e organizações internacionais, visam, em última instância
visto, em tese, Titid consubstanciar, com o povo, um ideal de nação, ausente até então
-, e alicerçado sobre um interdiscurso secular, desqualificar um e outro, Aristide e as
massas haitianas.
Não defendemos aqui os desvios e os descaminhos da
política implementada por Aristide durante os seus dois mandatos, parte deles ausente,
nem a violência que se lhes atribui. Trata-se, antes de tudo, de tentar evidenciar, no
interdiscurso, nas permanências, uma interpretação tão abrangete quanto possível dos
123
sentidos que lhes permeiam e que acabam tornando mais factível o campo social em que
são produzidos.
Aristide, cuja coturbada trajetória política foi abordada na
primeira parte deste trabalho, tem na eloqüência do seu discurso a sua consagração, mas
também sua ruína. Os ecos de seu discurso, potencializados pelo apoio de uma ala fiel e
radical, ligada ao Fanmi Lavalas, inviabilizaram sua permanência a frente do governo
do Haiti, em 2004. A radicalização das ações de alguns dos seguidores de Aristide foi
decisiva para a sua derrocada. Titid acabou isolado, tanto interna, quanto externamente.
Seitenfus (2005:on-line) afirma que
Pressionado internamente por uma poderosa, embora díspar, oposição,
composta por ex-militares e ex-policiais, por supostos representantes
da sociedade civil organizada (Grupo dos 184), pelo alto clero e,
sobretudo, por antigos companheiros de caminhada, desiludidos com
seu desgoverno, o ex-padre dos pobres se fez vítima de um incêndio
que ele mesmo havia ateado.
Do exterior não poderia vir sua salvação. Ao contrário. Capitaneado
pela França, ultrajada pela acusação de um débito de US$ 22 bilhões
oriundo da época da Independência haitiana (1804), o grupo de países
ocidentais influentes abandonou o ex-prelado por razões específicas:
os Estados Unidos pretendiam evitar uma guerra civil que fizesse
ressurgir o fantasma dos "boat people"; o Canadá, por sua vez,
demonstrou uma compreensível fadiga em face da violência
governamental e do poço sem fundo provocado pela corrupção e pelos
desmandos recorrentes.
A loquacidade de Aristide incendeia as massas que, postas
fora de controle e capitaneadas por interesses escusos, acabam vítimas de mais uma
intervenção. Ao final, tanto Aristide, quanto o Haiti foram abandonados à própria sorte
para depois serem socorridos por seus próprios algozes. A oposição do governo norte-
americano e francês a Aristide é recoberta de significados. Sabendo do clientelismo e do
paternalismo débil que sempre orientou as relações desses dois países com o Haiti,
podemos deduzir que as políticas de Aristide ameaçaram seus interesses diretos,
fazendo com que estes, utilizando-se do aparato onuseano, o colocassem, uma vez mais,
sob a tutela daquela organização.
Segundo informações veiculadas pela própria Folha,
Aristide não teria caído e sim retirado do poder pelo governo norte-americano. As
124
reportagens publicadas pela Folha tratam o assunto inicialmente como renúncia, até que
as primeiras acusações de golpe começam a ser divulgadas, fazendo com que, a partir
daí, esse fato passe a oscilar entre renúncia, deposição e/ou pressão externa. Aos poucos
a pressão exercida pelos E.U.A vai se tornando mais explícita, parecendo não haver
dúvidas quanto ao papel deste no deslinde da crise que culminou com a derrubada de
Aristide.
Ao final Aristide é discursivamente colocado no rol dos
ditadores haitianos, ao lado de figuras lendárias como François e Jean-Claud Duvalier.
As representações de Titid na imprensa, em particular na Folha de São Paulo, não
deixam dúvidas quanto ao que se quer fazer pensar. Deibert (2006:on-line) afirma que:
Conduzido de volta ao poder por tropas de uma força internacional,
em 1994, se tornou um espelho dos ditadores que muitos esperavam
que sua eleição fosse afastar da Presidência. [...] Aristide deixou para
trás um rastro de cadáveres e sonhos despedaçados.
Aristide fracassou e com ele o povo que lhe dava apoio.
Sua derrubada representou um duro golpe ao povo haitiano, principalmente por
transcorrer justamente no ano em que seria comemorado o bicentenário da revolução
que culminou com a independência do país. Esse fato constituiu prova, naquele
momento, ante a comunidade internacional, da limitada capacidade, ou incapacidade, do
povo haitiano de postar-se como protagonista de um período recente e importante da sua
história, que se iniciou com a queda de Jean-Claude Duvalier em 1986 e que
representou, em tese, a tomada de consciência democrática.
O baluarte da democracia haitiana não resistira aos severos
temporais que, uma vez mais, se abateram sobre a pequena ilha. Aristide se retira, ou é
retirado, da cena política haitiana, deixando para trás os „sonhos despedaçados‟ de
grande parte dos haitianos. Como afirmou Dibert (2006:on-line), “Os haitianos não
pedem menos do que uma democracia real e não merecem menos do que isso.”
O estabelecimento da MINUSTAH, como vimos na
primeira parte de nosso trabalho, que se deu sob intensa crise, por solicitação do
presidente interino, reacendeu antigas discussões e ressuscitou velhos fantasmas.
Aristide tornou-se um destes fantasmas ao se insurgir contra organismos e instituições
125
que, tempos, condenam o Haiti a habitar o limbo da civilização. Os atores desta
trama secular, bem como seus discursos, prosseguem incólumes e indiferentes ante as
desgraças deste povo condenado também pela sua ousadia.
Depois de apresentar o discurso dirigido às gentes e à
urbes haitiana, de se refletir como a MINUSTAH é representada pelo discurso da
Folha.
3.3 MINUSTAH: intervenção solidária ou imperialismo?
o que teria acontecido se a MINUSTAH
não estivesse aqui?
(Prèval Presidente do Haiti)
O estabelecimento da MINUSTAH, como enfatizado, foi
visto inicialmente com desconfiança, tanto interna, quanto externamente, mas em um
ponto todos concordavam: parecia um mal inevitável. O Haiti fora levado, uma vez
mais, por motivos diversos, muitos dos quais alheios a seu controle, a uma intervenção
armada que, por sinal, ainda segue seu curso.
A primeira polêmica ocorre justamente em torno da
discussão sobre a natureza e os limites desta operação. Seriam as tropas da MINUSTAH
forças invasoras, de ocupação ou de caráter eminentemente humanitário? Partidários de
Aristide se apressam em classificá-las como invasoras. Heleno, primeiro comandante
das forças militares da MINUSTAH, por seu turno, busca desconstruir a idéia semeada
pelos seguidores de Aristide nos primeiros meses da presença das tropas no Haiti,
procurando estabelecer uma diferenciação entre a “intervenção”, caracterizada pela
FMP (Força Multinacional Provisória), e o trabalho desenvolvido pelos capacetes azuis
latino-americanos. Em entrevista a Ricardo Bonalume Neto (2004:on-line), em 03 de
agosto de 2004, reitera:
O general-de-divisão brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira nega
que as tropas da ONU que ele comanda no Haiti sejam uma força de
ocupação.
"Somos hóspedes de um país soberano e independente" [...] "Nossa
missão é ajudar o Estado haitiano a atuar." [...]
126
A missão do Brasil foi uma decisão de governo, diz o general,
respaldada em resoluções da ONU. Se a princípio a ONU agiu para
legitimar a intervenção multinacional liderada por EUA e França,
depois houve a decisão de substituir essa tropa por capacetes azuis,
força composta até agora sobretudo por latino-americanos.
"Alguns interesses foram contrariados, e qualquer história tem dois ou
três lados", declara Heleno. "Toda a atuação do Brasil é no sentido de
ajudar o Haiti."
Boniface Alexandre, presidente interino do Haiti no
período de 2004-2006, e que autorizara, em 2004, a entrada de tropas no Haiti, por outro
lado - em entrevista a Vila-Nova (2005:on-line), em 14 de abril de 2005 - defende a
presença das tropas como forma de tentar conter a onda de violência causada pela saída
de Aristide, buscando evidenciar o caráter humanitário da missão, ao mesmo tempo que
reafirma a soberania do país. Não são forças de ocupação. São pessoas que vieram nos
ajudar [...] Depois disso, irão embora. Somos uma nação soberana..
Não há, ainda hoje, consenso a esse respeito. Talvez o
mais sensato academicamente seria aceitar a declaração de Heleno, de que sempre que
alguns interesses são contrariados, qualquer história terá dois ou três lados e buscar,
com base nos desdobramentos da MINUSTAH até os dias atuais, ponderar sobre os
interesses defendidos pelas suas tropas.
No Brasil a questão despertou, ao menos de inicio,
principalmente no meio político e na mídia, algumas manifestações que deixavam claras
as posições assumidas pelos grupos que se colocavam contra ou a favor do
estabelecimento de uma força multinacional em território haitiano. Em reportagem da
Folha, de 20 de maio de 2004, da sucursal de Brasília (2004:on-line), cujo título é:
Senado autoriza envio de missão brasileira para estabilizar Haiti, evidencia-se,
primeiramente, como a questão era discutida pelo Senado brasileiro, uma vez que era
necessária a aprovação desta casa para que o contingente brasileiro, de 1200 homens,
fosse enviado ao Haiti, e também como são delineados os principais eixos que
orientaram os debates acerca dessa problemática, que ainda perdura:
Após uma maratona de quase 13 horas, o Senado brasileiro autorizou
ontem o envio de 1.200 militares para a missão da ONU no Haiti [...]
O envio de tropas ao Haiti causou polêmica, mas acabou aprovado por
38 votos a 10. A senadora Heloísa Helena (sem partido-AL) afirmou
127
que o Brasil "vai legitimar um golpe dado no Haiti, com a destituição
de Jean-Bertrand Aristide". [...]
O líder do governo, Aloizio Mercadante (PT-SP), disse que atender ao
convite da ONU "reafirmará o compromisso do Brasil com os
propósitos da Carta das Nações Unidas, reforçando sua presença junto
àquele organismo e demonstrando capacidade para pleitear o assento
permanente no Conselho de Segurança".
O líder do PDT, Jefferson Péres (AM), disse ser um "paradoxo" o
Brasil querer policiar o Haiti quando não garante a segurança do Rio
de Janeiro. Já o líder do PFL, José Agripino (RN), chegou a
questionar os custos da missão - R$ 150 milhões - mas mudou de idéia
após conversar com o comandante do Exército, general Francisco R.
de Albuquerque.
O posicionamento de cada um dos representantes
supracitados reflete, não por acaso, o direcionamento que a questão Haiti tomará no
âmbito interno. Os partidos considerados de Esquerda, ali representados pela senadora
Heloísa Helena, num primeiro momento, criticam a tomada de posição do governo
brasileiro, acusando-o de legitimar o golpe perpetrado contra Aristide e de se alinhar
com as políticas imperialistas dos E.U.A, que, àquela altura, mantinham a FMP (Força
Multinacional Provisória) em território haitiano, em conjunto com França, Canadá e
Chile. A utilização desse discurso antiimperialista constitui a tônica nas críticas contra a
participação do Brasil na MINUSTAH.
A ala governista, representada por Mercadante, defende
uma idéia que também é central quando se debate esta questão, qual seja: o tão sonhado
assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ao assumir o comando do
contingente militar da Missão, o governo brasileiro quer dar mostras de que o Brasil
desponta não apenas como um líder regional, mas, acima de tudo, como um país que
está pronto, ou se preparando para figurar entre os grandes deres mundiais, o que
depende, como já vimos, de uma ampla reforma no Conselho de Segurança.
res, por seu turno, na intervenção um paradoxo. Sua
posição corrobora a percepção apontada no tópico anterior, bastante difundida, da
inevitável comparação, ancoragem, feita internamente entre as representações da
realidade haitiana e das favelas cariocas. Essa questão ensejo a várias discussões que
apontam, inclusive, para utilização do quadro encontrado no território haitiano como
laboratório de treinamento das tropas brasileiras que ali se econtram para posterior
emprego nas áreas dominadas pelo crime organizado no Brasil.
128
Ainda com relação a citação anterior, Agripino levanta
outra questão que será bastante discutida internamente. Os gastos do Brasil com a
MINUSTAH, que em 2010 ultrapassarão a cifra de um bilhão de reais; também
apontam para um aparente paradoxo, uma vez que os quadros das polícias (federal, civil
e militar) estão, em sua grande maioria, depauperados, tanto em recursos materiais e/ou
humanos, necessitando, portanto, de investimentos por parte do governo brasileiro.
O primeiro ponto, apresentado por Heloísa Helena, tem
diversos desdobramentos no decorrer da missão e, ainda hoje, é utilizado por
organizações e entidades contrárias à participação, principalmente no tocante a
liderança exercida pelo Brasil no contexto da MINUSTAH. A primeira pergunta que se
faz com relação a essa questão, e que é amplamente debatida por diversos setores da
sociedade brasileira, é acerca da definição do escopo da missão. Seria uma questão de
„diplomacia solidária‟ ou „política de não-indiferença‟, como querem aqueles que
defendem a permanência do Brasil a frente da Missão? Ou seria uma intervenção, a
legitimação de um golpe, com o conseqüente emparelhamento com a política
imperialista norte-americana, para a qual o Brasil estaria a serviço? Os debates acerca
desta questão giram em torno destas duas perspectivas.
A Folha de São Paulo tomou posição acerca desta questão
e, por mais de uma vez, afirmou o seu apoio a presença militar do Brasil no Haiti, mas
sempre com ressalvas. Na reportagem da redação, não identificada, “O Brasil no Haiti”,
(2005:on-line), de 14 de junho de 2005, pouco mais de um ano, portanto, do efetivo
estabelecimento da MINUSTAH, a Folha deixa clara a sua posição quando afirma:
A missão brasileira no Haiti completa um ano neste mês em meio a
crescentes sinais de fracasso. [...]
Esta Folha apoiou a presença militar brasileira no Haiti, mas ela era - e
permanece - digna de aprovação à medida que possa oferecer àquele
país soluções mais duradouras. Se isso não for possível - como cada
vez mais parece ser o caso -, não haveria sentido em mantê-la.
Não se defende que o Brasil e os outros países participantes
simplesmente se retirem da ilha caribenha, hipótese em que
certamente favoreceriam a eclosão de um conflito armado entre
gangues rivais. Mas não se pode, por outro lado, assistir inerte à piora
das condições de segurança e do ambiente político. [...]
Do jeito que as coisas estão, o Brasil e os demais países participantes
da Minustah se limitam a agir a serviço dos EUA e da França, as duas
potências que, por seus vínculos históricos com o Haiti, exercem
129
grande influência sobre a política local. No caso dos EUA, impedir a
implosão do país é também importante pelo fato de que refugiados
haitianos costumam, em momentos de agravamento de crises, dirigir-
se à costa da Flórida em busca de refúgio.
A crítica da Folha corrobora, dentre outras questões, a
pertinência de nossa opção por esta fonte que, ao se posicionar publicamente acerca
desta questão se vê no dever de apresentar ao leitor não só um volume maior de
informações, mas, também, a sua perspectiva. Alguns aspectos apontados anteriormente
ficam evidentes no recorte acima, como as dificuldades enfrentadas pelos contingentes
brasileiros, sobretudo nos primeiros dois anos da missão; a posição favorável assumida
pela Folha à presença brasileira no Haiti, ainda que condicional; a necessidade dessa
permanência e, finalmente, e mais importante, a posição assumida com relação a
suposta subordinação dos contingentes militares brasileiros aos interesses norte-
americanos e franceses, velhos conhecidos do povo haitiano.
Essa última questão é central quando se procura justificar
ou condenar a presença das forças multinacionais no Haiti. Estados Unidos e França,
que no último informe do Secretário-Geral da ONU, de setembro de 2009, contavam
com pouco mais de 1% (um por cento) dos efetivos militares e policiais presentes no
Haiti, parecem ter questões bem mais importantes para se ocupar, deixando o país para
as forças da MINUSTAH, composta, em sua maioria, por países do terceiro mundo.
Essa incômoda ingerência figura como uma das principais
críticas feitas, tanto à MINUSTAH, quanto ao comando brasileiro da missão, colocando
aquela como um Estado dentro do Estado” (VILLA-NOVA, 2005:on-line); como
afirmou Carole Pierre-Paul, coordenadora da SOFA, Solidadariedade pelas Mulheres
Haitianas, ao criticar as investigações feitas pela MINUSTAH, com relação a possíveis
abusos cometidos contra a população haitiana.
Na reportagem “Apesar da ONU, Haiti vira „terra de
ninguém‟”, de Maisonnave (2005:on-line), fica evidenciada não a pressão exercida
pelos norte-americanos, mas, também, a ênfase dada pela Folha ao assunto, bem como a
posição defendida pelo governo brasileiro:
Acostumados a intervir no Haiti, os Estados Unidos têm demonstrado
impaciência com a falta de resultados no país. uma semana, o
130
jornal "Washington Post" noticiou que a embaixada norte-americana
no país havia recomendado ao governo de George W. Bush o envio de
marines para garantir a segurança nas eleições de outubro e novembro.
Em visita ao Haiti na última quinta-feira, o subsecretário de Estado
dos EUA para a América Latina, Roger Noriega, exortou a missão
liderada pelo Brasil a ser mais "pró-ativa" no combate às gangues,
mas negou especulações de que Washington poderia enviar militares
para reforçar a segurança do país.
O chefe-de-gabinete do governo haitiano, Michel Brunache, disse que
a chegada de marines americanos seria "bem-vinda" e que a população
tem "cada vez menos" confiança nos capacetes azuis.
O especialista em relações internacionais Ricardo Seitenfus, que no
ano passado foi enviado ao Haiti pelo Itamaraty para acompanhar as
negociações políticas, defende o trabalho brasileiro. Segundo ele,
"evitamos o pior, que seria uma guerra civil".
"O nosso modelo é de diálogo, com baixo índice de intervenção
militar, de associar a presença militar à tentativa de resolver as
questões socioeconômicas e o diálogo político", afirma. "Devemos
continuar prestando esse serviço, mas colocando como condição dois
elementos: o diálogo político e a questão socioeconômica como
problemas a serem enfrentados."
Os Estados Unidos estão mais que acostumados a intervir
no Haiti como se este país fosse um componente da política de Estado norte-americana.
Estas ações, desastrosas e infrutíferas, foram resposáveis pela maior parte dos
sofrimentos vividos por cerca de 80% dos nove milhões de haitianos que vivem no país
e padecem na miséria quase absoluta, não esquecendo que a presença de marines
americanos, seja em 1915 ou em 1994, foram verdadeiros desastres. O Haiti tornou-se,
ao longo dos anos, um problema que os Estados Unidos não querem, não podem ou não
tem tempo para resolver. As cobranças feitas ao comando da MINUSTAH para maior
utilização da força serão recorrentes e inversamente proporcionais à disposição
demonstrada por esses países em se envolver na busca de uma solução duradoura. No
trecho supracitado destaca-se, por um lado, a pressão exercida pelos E.U.A para
aumentar o uso da força e por outro a posição defendida pelo governo brasileiro,
norteada pelo „diálogo‟ e pelo „baixo índice de intervenção militar‟.
Afora as pressões externas, existem também as críticas
internas, cobrando resultados mais efetivos. Em reportagem sem autoria identificada, de
17 de novembro de 2005, intitulada “Os ônus do Haiti”, mais uma vez a Folha toma
posição e endurece as críticas ao afirmar que
131
a paupérrima ilha caribenha transformou-se num atoleiro para o
Brasil. [...]
Esta Folha foi favorável à colaboração do Brasil com as forças da
ONU, mas meses vem alertando para os problemas ocasionados
pela falta de uma ação conjunta da comunidade internacional. Ao que
tudo indica, à medida que o tempo passa, a situação tende a piorar.
[...] É também desalentador que grande parte da ajuda prometida por
diversos países em 2004 jamais tenha chegado à ilha. E dificilmente
chegará. O Haiti não é o único país miserável do planeta que cobra
apoio externo, e os EUA, potência que realmente faz a diferença, têm
outras prioridades internacionais no momento.
Diante desse quadro, o Brasil vê-se na incômoda posição de comandar
uma missão que vai se tornando cada vez mais impossível. Sendo
assim, os brasileiros ficam com os ônus políticos pelo fracasso. Para
não torná-los muito evidentes, o país permanece no Haiti apenas
fingindo que tudo corre bem.
A posição assumida pelo jornal demonstra a tensão vivida
tanto pelo governo quanto pelos militares nos primeiros anos da missão, quando “a
paupérrima ilha caribenha tranformou-se num atoleiro para o Brasil.”, contrariando, ao
menos inicialmente, o que buscava o governo brasileiro, como ilustrado no início deste
tópico, no discurso do senador governista Aloizio Mercadante. Claro estava, àquela
altura, e a Folha faz questão de evidenciar isto, que dos E.U.A, ocupado com outras
questões internacionais mais importantes, além das pressões, nada mais se poderia
esperar. Na contra-mão das expectativas governistas, ao Brasil restaria o ônus do
fracasso e alguns milhões de dólares a menos.
Não bastassem os resultados pouco promissores deste
início de missão, que colocavam em xeque a capacidade do Brasil de estar a frente do
comando da missão, havia ainda aqueles que, aparentemente tomados por um
chauvinismo peculiar (francês), buscavam, avessos aos condicionamentos históricos,
colocar em um mesmo patamar os responsáveis diretos pela ruína do Estado haitiano e
aqueles que, em que pesem as suas limitações, buscavam, reverter uma situação que até
então permanecia praticamente inalterada. Caroit (2006:on-line), na reportagem “Haiti:
rude transição para a democracia”, afirmou que
Depois de sofrerem inúmeras frustrações em seu relacionamento com
a França e Estados Unidos, os haitianos esperam forte cooperação dos
países latino-americanos. Até o momento, nem o Brasil que assumiu
o comando militar da Minustah na esperança de obter um assento
permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas nem o
132
Chile nem a Argentina conseguiram se sair melhor do que fizeram as
antigas potências coloniais.
Caroit, representante do Le Monde”, na ânsia de
encontrar outros culpados para os infortúnios que, não por acaso, se abateram sobre o
Haiti, parece querer que Brasil, Chile e Argentina, em conjunto com os demais países
que atuam na MINUSTAH, apontem, em menos de dois anos, soluções para problemas
causados por mais de dois séculos de colonização, racismo e preconceito dispensados
pela França e pelos Estados Unidos ao Haiti.
É por força de discursos como este, que buscam reforçar o
status quo da ordem mundial - para o qual o Haiti surgiu como um entrave -, que os
países integrantes da MINUSTAH começam a ser vistos como meros instrumentos,
servindo aos propósitos das grandes potências mundiais. Camille Chalmers, ativista
haitiano, reforçou esse ponto de vista quando afirmou, em reportagem de Ana Flor
(2007:on-line), publicada pela Folha em 24 de janeiro de 2007, no Fórum Social
Mundial, em Nairóbi, que “a missão [MINUSTAH] é um meio de dominação dos EUA
e da França, e que países participantes, como o Brasil, que lidera a missão, são
instrumentos.”
Não precisamos ir a Nairóbi para encontrar críticas com
esse direcionamento. Na reportagem “Relatório da OAB afirma que missão da ONU no
Haiti não é humanitária”, de Ítalo Nogueira (2007:on-line), da Folha de São Paulo, de 4
de setembro de 2007, temos um outro exemplo acerca deste assunto:
Relatório da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que visitou o
Haiti por dez dias, aponta a Minustah (Missão de Estabilização da
ONU no Haiti) como uma força "violenta", "constrangedora" e que
"não pratica ação humanitária".
Para o autor do documento, o advogado Aderson Bussinger Carvalho,
as tropas brasileiras deveriam se retirar da missão. O Brasil lidera as
tropas no país desde 2004. [...] "A conclusão a que eu cheguei é que a
presença das tropas no Haiti não é humanitária. É uma missão
estritamente militar. O país tem uma história de ocupações e o Brasil
acaba exercendo um papel nesse histórico". [...] "Os militares não
construíram escolas, hospitais... Os haitianos estão em um quadro que
exige soluções econômico-sociais", disse o advogado.
133
O discurso de Bussinger, que é filiado ao PSTU, (Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificados), que internamente representa oposição à
presença do Brasil no Haiti, parece se perder no vazio, carecendo de argumentos que lhe
dêem sustentação. A conclusão que Bussinger chega é óbvia e não demandaria uma
viagem ao Haiti. Realmente, as tropas presentes no Haiti cumprem missões estritamente
militares, cabendo ao braço civil da MINUSTAH, reconhecidamente deficiente, a
realização de trabalhos humanitários.
Um pouco mais plausível é a crítica de Sérgio Kalili e
Sandra Quintela (2009:on-line), na reportagem “O Brasil deve renovar o comando da
missão de paz no Haiti? Não. Brasileiros „Go home!‟”, de 10 de outubro de 2009.
Cinco anos de Minustah, e o Haiti continua o país mais pobre do
Ocidente. Ocupa o 153º lugar no IDH da ONU, com 80% da
população abaixo da linha da pobreza e 80% do povo desempregado.
Poucos são os programas sociais e os recursos destinados ao povo. Do
orçamento da missão, 85% vai (sic.) para militares e a polícia civil.
A Minustah garante a estabilidade para a implantação de projetos
econômicos que agradam mais aos países vizinhos e à elite doméstica
do que ao povo. No ano em que foi eleito, Préval iniciou privatizações
de portos, aeroportos, dos sistemas de telefone e saúde. Dezoito zonas
de livre comércio surgiram para transnacionais, como as têxteis
americanas. Além da miséria, a violência continua.
Seria ilusório esperar que o estabelecimento da
MINUSTAH, no contexto em que se deu, pudesse resolver problemas estruturais,
causados, dentre outros motivos, por séculos de exploração colonialista, assentada sobre
uma base racista e segregadora que conformou uma sociedade em que uma minoria,
menos de cinco por cento da população, vive sobre a miséria dos demais. Como
afirmamos no final da primeira parte - 2.2 - MINUSTAH: ultima ratio Regis -, a
MINUSTAH avançou visivelmente no tocante à segurança, deixando, portanto, uma
lacuna no tocante aos projetos sociais que deveriam garantir, pari passu, melhorias nas
condições de vida do grosso da população. Os gastos com a manutenção e rodízio das
tropas, substituídas a cada seis meses, realmente consomem o grosso das verbas
alocadas e a estabilidade garantida, a dar crédito ao discurso acima, continua atendendo
134
as políticas norte-americanas e francesas, mas também garantem alguns benefícios à
população, dentre os quais o direito básico de ir e vir, impraticável em 2004.
Essa aparente inamobilidade do quadro social foi e
continua sendo uma preocupação, principalmente do governo brasileiro, uma vez que as
críticas dirigidas a esse aspecto da MINUSTAH acabam, não raro, recaindo sobre o seu
braço armado, e, consequentemente, sobre a atuação brasileira. Inicialmente a falta de
segurança foi elencada pelas principais agências de ajuda internacional como um dos
principais óbices ao envio de verbas ao Haiti. Estas agências acenavam com bilhões de
dólares, mas se diziam impossibilitadas de socorrer financeiramente o Haiti em função
do quadro de violência ali instalado. Boniface Alexandre, ex-presidente interino do
Haiti, alertava sobre essa dificuldade em entrevista à Vila-Nova, (2005:on-line), em
14 de abril de 2005:
O problema do Haiti é econômico. Estão desempregados 80% dos
haitianos. Para resolver isso, precisamos convencer os investidores
estrangeiros a investir no Haiti. Mas eles pensam que falta segurança
no país. Não creio que o Haiti viva hoje numa situação de segurança
que impeça a chegada de investimentos. Essa é uma imagem que se
cria para colocar um obstáculo à boa marcha do governo. A maioria
dos recursos prometidos pelos países estrangeiros até o momento não
chegou. Estamos começando a receber a conta-gotas esses recursos.
As autoridades brasileiras faziam eco ao discurso de
Boniface. Heleno, primeiro comandante das forças da MINUSTAH e um dos maiores
críticos da falta de comprometimento da comunidade internacional com a questão
haitiana, assim se referira - em reportagem de 11 de setembro de 2009, (PEREIRA,
2005:on-line) - a esse descompasso existente entre a promoção da segurança e da
melhoria das condições de vida da população:
A caótica realidade socioeconômica do país levou-me a concluir, de
imediato, que construir um ambiente seguro e estável seria viável se
combinássemos segurança com projetos de infra-estrutura e
desenvolvimento. A doação de mais de US$ 1 bilhão, na Conferência
de Washington, em julho de 2004, fez-me crer que canteiros de
135
trabalho, tropas e polícia desdobrar-se-iam, simultaneamente, pelas
diversas regiões do país.
Entretanto desculpas inconsistentes continuam adiando providências
urgentes no campo econômico e social, obrigando os militares a
realizar ações humanitárias que fogem a sua alçada.
Várias vezes, expressei minha discordância quanto à estratégia
adotada pela "comunidade internacional" em relação ao Haiti. [...] O
Brasil e a Espanha ameaçaram, inclusive, retirar seus efetivos
militares. Até agora, pouquíssimo aconteceu de prático e visível.
Deixei o Haiti convicto de que somente a geração maciça de postos de
trabalho melhorará as condições de vida e criará uma esperança de
futuro para os jovens haitianos. Exigir uma segurança impecável para
aplicar recursos quando 80% da força de trabalho não possui emprego
formal e 70% do povo sobrevive miseravelmente com uma refeição
diária soa utópico e até mesmo cruel.
Até agora, cabe quase que exclusivamente aos vetores de segurança
criar condições para o cumprimento da resolução do Conselho de
Segurança da ONU.
O discurso de Heleno não deixa dúvidas com relação ao
descaso com que os organismos internacionais continuavam tratando a situação
haitiana. Heleno, muito, propugnava que a problemática haitiana não seria resolvida
com a presença de homens armados com fuzis nas ruas das cidades do país. As agências
e organismos internacionais, sobretudo as norte-americanas, francesas e canadenses,
buscando defender a sua posição, contra-atacavam exigindo, por outro lado, que as
tropas da MINUSTAH intensificassem as operações de combate à violência
intensificando, consequentemente, o uso da força. Uma velha e fracassada receita, muito
utilizada por estes em outras situações, inclusive no Haiti.
As cobranças relativas ao uso da força, feitas
principalmente por esses três países, continuam sendo uma constante no desenrolar da
missão. A impressão que se tem é a de que os dramas que acometem o grosso da
população haitiana, como a miséria, a fome, a falta de emprego, a falta de estruturas
básicas, de saneamento, saúde, educação, etc., não dizem respeito e não estão na pauta
de discussão destes países, importando para estes, tão somente, a solução dos problemas
mais imediatos e que podem influenciar, negativamente, os seus interesses na pequena
ilha ou em seu próprio território, no caso dos E.U.A. Celso Amorim, ministro das
relações exteriores do governo brasileiro, em reportagem de Fernanda Krakovics
(2004:on-line), de 03 de dezembro de 2004, cujo sugestivo tulo é “Para Celso
136
Amorim, nações ricas têm concepção diferente do Haiti”, corrobora essas idéias quando
afirma que:
uma das dificuldades de atuação da Minustah (Missão da ONU de
Estabilização no Haiti) é que, embora coloquem dinheiro, os países
desenvolvidos têm uma concepção diferente do trabalho.
"Aquilo ali para eles é um problema de segurança, um problema de
migração e de narcotráfico. Então, na medida em que esses problemas
estejam assegurados, com algumas tropas lá e a guarda costeira
tomando conta, essas outras questões que envolvem um movimento
financeiro de mais longo prazo não se obtêm com facilidade", disse
ele, no Senado.
Para o chanceler, não é possível resolver os problemas de segurança
do Haiti isoladamente da situação política, humanitária, social e
econômica.
É justamente esta a questão. O povo haitiano,
corroborando Moscovici, na primeira parte de nosso trabalho
58
e valendo-nos do
discurso de Amorim, torna-se invisível diante dos olhares „eclipsados‟ de determinados
grupos por uma classificação arbitrária, que ganha contornos precisos no discurso,
performativo, conformando e cristalizando determinadas identidades e representações.
Para países como Canadá, E.U.A e França, o Haiti, utilizando uma vez mais o discurso
de Amorim, não passa de um problema de segurança, de migração e de narcotráfico.
É sobre essa perspectiva deturpada, embora usual, que
estes países buscam justificar o incremento da força, fazendo com que a opinião pública
de maneira geral, tenda, cada vez mais, a classificar a MINUSTAH como uma força
invasora e repressora, que estaria atuando no Haiti como mero instrumento de
dominação. As denúncias com relação a pressão exercida por estes países para o
aumento do uso da força podem ser buscadas praticamente desde o início da missão.
em dezembro de 2004, seis meses após o estabelecimento da MINUSTAH, o general
Heleno - em reportagem da redação da Folha, de 05 de dezembro de 2004, intitulada
58
Moscovici, (2003:30-31): “É como se nosso olhar ou nossa percepção estivessem eclipsados, de tal
modo que uma determinada classe de pessoas, seja devido a sua idade por exemplo, os velhos pelos
novos e os novos pelos velhos ou devido a sua raça p. ex. os negros por alguns brancos, etc. se
tornam invisíveis quando, de fato, eles estão nos olhando de frente. [...] Essa invisibilidade não se deve
a nenhuma falta de informação devida à visão de alguém, mas a uma fragmentação preestabelecida da
realidade, uma classificação das pessoas e coisas que a compreendem, que faz algumas delas visíveis e
outras invisíveis.”
137
“Brasil assumiu missão de paz seis meses” - “afirmou que sofre pressões de países
como EUA, Canadá e França para usar mais força para controlar a crise no país
caribenho.”
Em outra oportunidade, o mesmo general Heleno em
reportagem da redação, de 25 de março de 2005, intitulada “General refuta crítica a ação
no Haiti” -, criticando o relatório elaborado pela Universidade de Havard (EUA) em
parceria com a ONG Justiça Global, marca sua posição, que também parecia ser a do
governo brasileiro, ao afirmar que:
"Acusações infundadas, testemunhos irresponsáveis e isolados,
movidos por interesses pouco evidentes, e visão deturpada, parcial e
distorcida do problema haitiano não merecem resposta."
[...] "Há queixas freqüentes, de alguns setores mais favorecidos da
sociedade haitiana e da comunidade internacional, sobre nossa
moderação no emprego da força e a necessidade de "muscularmos"
nossas operações", disse. "Em várias oportunidades, ressaltei que não
cedo às pressões."
Podemos notar, no discurso de Heleno, que as pressões
partem não da comunidade internacional, mas também de setores da elite da
sociedade haitiana que, certamente, representam os interesses daqueles países no Haiti.
Ao deixar o comando da missão, no final do mês de agosto de 2005, Heleno defende,
uma vez mais, em um pequeno artigo de sua autoria, intitulado “Haiti: um grande
desafio”, publicado pela Folha em 11 de setembro de 2005, a posição assumida pelo
comando das forças de paz no tocante ao uso da força, ao mesmo tempo em que critíca
aqueles que continuavam exigindo mais vigor. Heleno afirmava que “a situação exigirá
um trabalho duro, persistente e demorado, incluindo ações de governo, em uma solução
compatível com uma força de paz, sem o uso indiscriminado da violência, como
desejam alguns inescrupulosos” (PEREIRA, 2005:on-line).
O posicionamento adotado pelo governo brasileiro com
relação à condução das operações militares e ao trato com a população haitiana,
diferente do adotado pelos marines americanos em oportunidades anteriores, certamente
foi fator decisivo no relativo êxito da missão do BRABATT (Batalhão Brasileiro), no
Haiti, pois, como afirmou Patrick Elie, ex-membro do gabinete de Aristide, em
138
reportagem de Maisonnave (2005:on-line), "todo mundo sabe a diferença entre o marine
americano e o militar brasileiro".
Esse talvez tenha sido o grande trunfo das tropas
brasileiras: aproximar-se do povo haitiano, buscando, por meio de laços culturais
compartilhados, identificar-se, tanto quanto possível, com ele. Roberto Abdenur
(2008:on-line), diplomata de carreira aposentado, em artigo publicado pela Folha em 24
de maio de 2008, intitulado “É hora de o Brasil encerrar a missão no Haiti? Sim. Novos
desafios para as Forças Armadas”, mostrou a divergência existente entre a posição
assumida pelas forças brasileiras e a tática nada efetiva defendida pelos estadunidenses:
No que a mim dizia respeito, fui certa feita interpelado por altos
funcionários norte-americanos que instavam as forças brasileiras a
serem mais agressivas. Dei-lhes a resposta que daria qualquer
brasileiro: não temos a tradição guerreira dos EUA. Preferimos
prudência e comedimento, recorrendo à força apenas em última
instância. A prioridade era a conquista da simpatia da população.
A MINUSTAH talvez tenha sido um mal necessário. Para
aqueles que discursam de maneira intransigente contra a presença de tropas no Haiti, o
posicionamento de Préval, atual presidente, em entrevista concedida a Maisonnave
(2006:on-line), pode ser reveladora. Perguntado se teria alguma crítica à atuação da
MINUSTAH no Haiti, Préval afirmou: “Não gosto de criticar a ação dos outros. Creio
que a resposta mais pertinente é colocar a seguinte questão: o que teria acontecido se a
Minustah não estivesse aqui?”.
Como demonstramos, as críticas aos trabalhos
desenvolvidos pela MINUSTAH foram contundentes nos primeiros dois anos da
missão. Houve também, sobretudo após esse período inicial, manifestações de apoio e
reconhecimento ao trabalho realizado pelos capacetes azuis em prol do povo haitiano,
muito embora os evidentes interesses do Brasil ao assumir o comando da missão.
59
Scolese (2004:on-line), em reportagem da Folha, de 23 de
novembro de 2004, intitulada “ONU pede ampliação da presença de militares brasileiros
no Haiti”, afirmava que:
59
Acerca desses interesses um sempre se destacou: o pleito ao assento permanente no CSNU, (Conselho
de Segurança das Nações Unidas), que, como já dissemos, depende, antes de tudo, de uma ampla reforma
do mesmo, o que, afora a demagogia de alguns chefes de Estado, parece muito distante.
139
O comando da missão das Nações Unidas no Haiti tem sido usado
como alavanca para objetivos maiores da política externa do governo
Lula.
Uma das principais intenções é conquistar uma cadeira permanente no
Conselho de Segurança (CS) da ONU - instância executiva máxima da
organização multilateral, que tem o poder, por exemplo, de autorizar o
uso da força militar. Atualmente, apenas EUA, Reino Unido, Rússia,
França e China integram o órgão de forma permanente. Em visita ao
Brasil [...] o presidente russo, Vladimir Putin, disse que apóia a
reforma do CS e a cessão de assento permanente aos brasileiros.
Em artigo publicado pela Folha em 29 de maio de 2005,
assinado por Carlos Eduardo Gaio e James Louis Cavallaro, ambos ligados a ONG
Justiça Global, cujo título é “Conselho de Segurança a qualquer custo? (GAIO;
CAVALLARO, 2005:on-line), essa questão vem à tona em forma de crítica. Ao
informar sobre um artigo publicado no New York Times, em que o governo brasileiro
prometia não apoiar as sanções da ONU ao sanguinário governo sudanês, em função das
barbaridades perpetradas pelo mesmo, os autores levantam a questão que aparece como
título do referido artigo, alertando que:
O Itamaraty finalmente seu pleito de um assento permanente no
Conselho de Segurança (CS) da ONU começar a ser discutido
seriamente. [...] é preciso deixar claro que apoiamos a iniciativa
brasileira em pleitear seu ingresso [...] No entanto, é preciso
questionar o que parece ser a política brasileira a esse respeito: a de
buscar uma vaga permanente no Conselho de Segurança a qualquer
custo. [...]
Tanto a tragédia no Haiti como o genocídio de Darfur, que o governo
brasileiro parece ignorar e usar como barganha, não nos deixam
esquecer das questões práticas e prementes a serem analisadas vis-à-
vis ao Conselho de Segurança da ONU. Diante de tão delicadas
questões, é imprescindível que a sociedade brasileira indague: a que
custo o Brasil está buscando seu assento no Conselho de Segurança?
Realmente a impressão que se tem - em que pese o
posicionamento brasileiro na questão haitiana estar, até certo ponto, historicamente
justificado na tradição diplomática brasileira, em ações como a não-indiferença política
ou a diplomacia solidária, defendida por Seitenfus -, é que a possibilidade de conseguir
uma vaga no Conselho de Segurança da ONU foi determinante na participação e,
140
principalmente, na assunção do comando da MINUSTAH. Afora o tom áspero do alerta
dos autores citados anteriormente e o questionamento sobre a veracidade das
informações ali apresentadas, realmente uma inegável movimentação do governo
brasileiro nessa direção.
Em outra reportagem, Eliane Cantanhêde e Eduardo
Scolese (2006:on-line) apresentam, por ocasião da morte do general Bacellar, no início
de 2006, outro alerta com conteúdo semelhante. Segundo a reportagem, “a missão de
paz da ONU no Haiti tem servido como um dos alicerces do Itamaraty para vender ao
mundo a possibilidade de o país obter um assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas.”. Na sequência, os autores deixam outra questão no ar,
em razão do suicídio do general Bacellar, além de uma ressalva importante. Levantam a
seguinte questão: vale a pena arriscar a vida de homens brasileiros em troca de uma
aspiração da políticas externa [?] [...] anunciando logo em seguida o fato de “o Japão ter
desistido de assinar o projeto de reforma do Conselho de Segurança apoiado por Brasil,
Índia e Alemanha.”
Em junho de 2010 o Brasil, ali representado pelos
militares que compoem o Batalhão Brasileiro e pelo comandante das tropas da
MINUSTAH, completará seis anos a frente da MINUSTAH, sem previsão para sair,
visto os trágicos acontecimentos de 12 de janeiro de 2010. Disso podemos depreender
que seria exagero afirmar que se tratava, pura e simplesmente, de uma aspiração ao
assento permanente no CSNU ou que o Haiti, corroborando publicação apresentada
anteriormente, teria realmente se tornado um atoleiro para o Brasil. Ou seriam as duas
coisas? Ou nenhuma delas? Prefirimos acreditar em um possível amadurecimento
político dos países latino-americanos e o conseqüente despertar de uma consciência de
colaboração multilateral, sul-sul, encampada pelo grupo do ABC, (Argentina, Brasil e
Chile).
O trabalho dos sucessivos contingentes brasileiros na
MINUSTAH, independente da obtenção, ou não, do assento permanente no CSNU,
rende bons frutos ao Brasil, que, se não possui as credenciais para ocupar aquele posto,
desponta como um líder regional, diante dos países da América Latina. Muito embora as
críticas, sobretudo aquelas do início da missão, há, também, o reconhecimento, tanto
141
interna, quanto externamente, dos avanços alcançados, principalmente em Porto
Príncipe, área de atuação das tropas brasileiras.
A relativa paz conquistada a partir de 2007 foi
incontestável. Até mesmo os opositores, ao conhecer a realidade do Haiti e os trabalhos
ali realizados pelos soldados brasileiros, acabam reconhecendo a importância da
presença brasileira naquele país. Fernando Gabeira, então senador pelo Partido Verde,
do Rio de Janeiro, crítico da participação brasileira no Haiti, visitou aquele país em
fevereiro de 2006 e afirmou que
O trabalho feito em Bel Air é um modelo que seria muito interessante
para Cité Soleil [Bel Air e Cité Soleil são bairros de Porto Príncipe] e
também para o Brasil, embora não precise ser feito necessariamente
pelos militares [...] A brigada fez trabalhos concretos que o Estado não
supre, como pavimentação, assistência médica, ainda que precária, e a
coleta do lixo.
O senador, corroborando parte do que procuramos
trabalhar no tópico anterior, vê em Bel Air e Cité Soleil duas realidades bastante
próximas da realidade suburbana do Brasil, o que o faz aventar a possibilidade de
implementar projetos similares localmente.
Ban Ki-Moon, Secretário-Geral das Nações Unidas,
também elogiou, por mais de uma vez, o trabalho realizado pelas tropas brasileiras. Em
entrevista concedida a Sérgio Dávila (2007:on-line), Ki-Moon afirmou sua gratidão aos
serviços prestados pelos brasileiros na MINUSTAH e a proximidade da população
haitiana com os soldados brasileiros:
Sou muito grato quanto ao papel do Brasil na Minustah. Quando
visitei o Haiti, vi junto à população um sentimento muito positivo.
Andei pela Cité Soleil, o que não seria possível sete meses. Os
brasileiros prenderam todas as gangues, a segurança foi restaurada, e
as pessoas puderam voltar às suas atividades econômicas e sociais.
Isso é uma mudança completa, liderada pela Minustah.
Não é surpreendente ver o Secretário-Geral da ONU em
declarações elogiosas ao trabalho realizado pela MINUSTAH, mas também não
como negar as observações feitas com relação à restauração da segurança nestes locais,
142
que antes eram consideradas áreas críticas de Porto Príncipe. Kawaguti (2009:on-line)
corrobora a assertiva do Secretário-Geral, ao apresentar um panorama que nos dois
primeiros anos da missão seria praticamente impensável. Portanto, no final do
primeiro semestre de 2009, verifica-se também que outro aspecto preocupante continua
inalterado: o descompromisso das agências e organismos internacionais em cumprir
com suas promessas:
Facções rebeldes controladas, índices de criminalidade inferiores aos
de cidades como Rio e São Paulo, desemprego e escassez de ajuda
financeira internacional. Esse é o retrato do Haiti quase cinco anos
após a chegada de militares a serviço da ONU, que hoje estudam a
retirada a partir de 2011.
A Folha esteve no Haiti e constatou que as gangues chimères foram
desbaratadas, e os combates entre militares brasileiros das Nações
Unidas e rebeldes - que ocorriam a cada três dias em meados de 2005
- são parte do passado do país.
De acordo com a Minustah (Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti), a taxa de homicídios no país em 2008 foi de
5,09 para cada 100 mil habitantes. A taxa de São Paulo referente ao
mesmo ano foi de 10,7 casos, e a do Rio, 35. [...]
Mais de 70% dos 2.848 crimes reportados à Minustah e à PNH
(Polícia Nacional do Haiti) no ano passado tiveram motivação
patrimonial. As extorsões mediante sequestro, por exemplo, que
atingiram 160 casos no mês de dezembro de 2005 - no auge dos
confrontos - caíram para dez no mesmo período de 2008.
O fato de a Folha de São Paulo publicar reportagem com
esse conteúdo constitui um dado seguro dos avanços alcançados, uma vez que a mesma
fora, outrora, crítica quanto aos parcos resultados apresentados pelas forças de paz no
início das atividades da MINUSTAH, ameaçando inclusive retirar o seu apoio com
relação a permanência dos militares brasileiros em solo haitiano. Outro fato revelador
desta reportagem e que começava a ecoar nos meios de comunicação, dizia respeito
aos estudos relacionados à retirada das tropas, o grosso delas, a partir de 2011.
O plano de retirada, segundo Kawaguti (2009:on-line),
começaria a ser implementado a partir do fim de 2011, com a desmobilização gradual
das tropas militares. Após a realização das eleições presidenciais, previstas inicialmente
para novembro de 2010, os capacetes azuis permaneceriam por mais 12 meses para
garantir uma transição pacífica e segura.
143
A relativa calma acabou garantindo maior estabilidade ao
país, o que, em tese, permitiria resolver o antigo impasse do repasse das verbas,
prometidas pelas agências internacionais desde o início das operações, possibilitanto a
melhoria real das condições de vida de grande parte da população. Uma vez atingido
esse patamar de segurança, a população haitiana começava a ter esperanças de retomar
os rumos de sua própria história.
Em outra reportagem, também de maio de 2009, cujo
título é “Comércio e Justiça voltam à vida no Haiti”, Kawaguti, uma vez mais, relata a
situação vivida pelos moradores de Porto Príncipe. É quase inevitável a comparação
com a reportagem de Maisonnave, de 2006, quando o mesmo comparava o bairro de
Cité Militaire com o isólito cenário do filme Mad Max. Por meio desta comparação,
podemos ter a dimensão das mudanças observadas em cinco anos de atuação das tropas
da MINUSTAH no Haiti. Kawaguti (2009:on-line) enfatiza:
Sem confrontos entre rebeldes e militares das Nações Unidas dois
anos e 15 dias, o Haiti assiste atualmente a um ressurgimento do
Poder Judiciário, do comércio de rua e da rede elétrica, além do início
de uma reforma carcerária.
No auge dos combates no país, em 2005, os 1.200 militares brasileiros
responsáveis pela segurança na capital Porto Príncipe chegaram a
entrar em combate contra rebeldes chimères 111 vezes em seis meses,
o que dá a média de quase dois confrontos a cada três dias.
A tropa brasileira chegou a disparar 49,6 mil tiros (somente em
combate) em cerca de 180 dias. Hoje, às vésperas do aniversário de
cinco anos do início da missão, é comum encontrar soldados que
chegaram ao Haiti e, em cinco meses de missão, não usaram nem uma
munição do carregador do fuzil. [...]
Em meados de 2005, os capacetes azuis conseguiam entrar nos
bairros de Bel Air e Citè Soleil (redutos rebeldes) em veículos
blindados e sempre eram recebidos a tiros.
Hoje, a primeira coisa que se nota na capital é a ausência desses
blindados, que agora só circulam à noite em áreas específicas. A
maior parte do patrulhamento é feito por tropas em jipes ou a pé, para
não intimidar a população. [...]
Diferentemente de cinco anos atrás, grande movimento de veículos
civis durante a noite. Em um giro rápido de carro é possível encontrar
barreiras da polícia nacional nas principais ruas.
A cidade, que vivia permanentemente sem luz, agora tem energia
elétrica na maioria dos bairros entre o início da manhã e as 19h. Lojas
funcionam em construções de alvenaria, e até supermercados podem
ser encontrados na cidade. [...] As últimas facções rebeldes que
lutavam em Porto Príncipe foram desbaratadas por operações militares
da ONU em abril de 2007.
144
"Ainda membros de gangues em Bel Air e Citè Soleil, mas são
muito poucos e agem de noite. A grande diferença é que hoje a
comunidade tem coragem de procurar a polícia e denunciar", disse
Mantinard Robert, coordenador de um projeto de segurança
comunitária em Bel Air promovido pela organização não
governamental brasileira Viva Rio.
A descrição de Kawaguti parece alavancar o Haiti e suas
gentes do caos descrito por Maionnave em 2006. Ao final, podemos constatar, com
base nas reportagens veiculadas pela Folha, que o saldo deixado pela MINUSTAH até
aquele momento fora positivo. Houve, como demonstra a reportagem supracitada, uma
mudança que com certeza é mais significativa que todas as outras: a mudança no
comportamento das pessoas, dos cidadãos haitanos, o que significa, uma mudança,
ainda que sutil, por parte daquele que profere o discurso, sobre o Outro. Se no auge da
crise estes viviam acuados e cerceados dos seus direitos mais elementares, hoje
participam do processo de reconstrução do país, com atitudes contrárias à proliferação
de gangues de bandidos.
Muito embora o Haiti ainda apresentasse problemas
graves e que demandariam anos de trabalho e investimentos, havia o que comemorar. O
povo e o Estado haitiano, antes reféns de grupos armados, como os chimères, por
exemplo, experimentavam agora as vantagens de um longo trabalho. Os haitianos
haviam reconquistado alguns direitos básicos, perdidos ao longo dos anos, como o
direito de ir e vir, por exemplo. Agora, com a estabilidade, ainda que frágil, poderiam
recomeçar a sua caminhada. As críticas relativas a falta de estabilidade e segurança
não faziam muito sentido. Excetuando-se alguns incidentes pontuais, a segurança no
Haiti parecia, naquele momento, apresentar índices consideravelmente melhores.
Essa conquista contribuiu para que pudéssemos arriscar
uma resposta, ainda que parcial, à pergunta colocada no título deste tópico, acerca da
natureza e os limites da MINUSTAH. Como ressaltado anteriormente o povo haitiano
ainda sofre as conseqüências de séculos de exploração, alicerçada sobre princípios
racistas e colonialistas. A falta de estruturas básicas faz com que a maioria da
população, cerca de oitenta por cento dela, continue vivendo num quadro de miséria
absoluta, daí a grande dependência da ajuda internacional. Esse problema, segundo
defendiam as agências e organismos internacionais, supostamente comprometidos com
145
o futuro do Haiti, poderia ser resolvido quando fosse estabelecido um quadro de
segurança e estabilidade no país. Pois bem, esse objetivo foi satisfatoriamente
alcançado, como ficou demonstrado nas reportagens arroladas neste tópico.
Assim sendo, do ponto de vista militar - caracterizado pelo
emprego das tropas da MINUSTAH, justamente o que mais causava apreensão e
incertezas no povo haitiano e furor na imprensa, que temiam dentre outras coisas o
desrespeito à soberania do país - a MINUSTAH, cumpriu o seu papel, uma vez que
conseguiu atingir o objetivo inicial a que se propusera, que seria a manutenção da
segurança e da estabilidade, garantidas, ainda que de maneira precária, pela FMP, Força
Multinacional Provisória. Consideramos que, a esse respeito, as forças de paz foram
além, pois o quadro deixado pela FMP em 2004 era incomparavelmente mais explosivo
e instável do que o de meados de 2009.
Por outro lado, o quadro sócio-econômico pouco mudou.
As doações, prometidas no início do mandato da MINUSTAH, mais de um bilhão de
dólares, ainda são insuficientes ou o que é pior, nunca chegaram. Não houve melhora
significativa nas áreas relacionadas à saúde, educação, moradia, emprego, etc. Algumas
conquistas, pontuais, foram conseguidas graças ao emprego das tropas, principalmente
de Engenharia, na realização de trabalhos de saneamento, limpeza, reurbanização,
reformas de escolas e atendimento médico-hospitalar. O braço civil da MINUSTAH
parece tomado por uma paralisia cujo remédio, ministrado em doses homeopáticas,
permanece incapaz de prover seu pronto restabelecimento.
Assim sendo, com base nos artigos e reportagens da Folha,
nossa principal fonte, se houve uma atitude realmente imperialista no estabelecimento
da MINUSTAH, visando a atender as demandas imediatas de países como E.U.A e
França - o histórico de intervenções desses países no Haiti, principalmente dos E.U.A,
justificava essa preocupação -, esta não se materializou nas ações das tropas
comandadas pelo Brasil. Apesar das críticas, das denúncias de violação dos direitos
humanos e das pressões internacionais, os capacetes azuis da ONU cumpriram o seu
papel. Vale destacar também o trabalho dos mais de doze mil soldados brasileiros que
passaram pelo Haiti nos últimos cinco anos, que, solidarizando-se com o povo haitiano,
acabam justificando, por sua espontaneidade e simpatia - que sempre o diferenciou do
146
marine americano por exemplo -, as pretenções e a atitude política defendida pelo
governo brasileiro junto à comunidade internacional.
Nosso trabalho, não fossem as contingências históricas e a
nossa opção por uma história que, como fizemos questão de afirmar desde o início,
ainda é presente, estaria praticamente terminado. Fazemos questão de, antes de passar
ao tópico seguinte, trazer a citação que foi utilizada na epígrafe daquele tópico, quando
Silva (2006:269) afirmou que para os historiadores do presente, sempre vai faltar um
fim. A história será sempre, portanto, inacabada.. A história haitiana, sobretudo a
recente, caracterizada principalmente pela presença da MINUSTAH em seu território e
pela conseqüente estabilidade alcançada depois de décadas de crises sofreu um trágico
revés no dia 12 de janeiro de 2010. Um terremoto de mais de sete graus na escala
Richter atingiu o Haiti naquela data, praticamente devastando-o.
No próximo tópico refletiremos como uma nova crise,
provocada por uma tragédia que é considerada a maior das Américas, faz com que o
povo haitiano volte a ser, novamente, objeto de um discurso ainda mais pessimista,
sendo colocados, uma vez mais, à margem da civilização e da condição humana. Em
que pese as conquistas imediatamente anteriores, o terremoto fez ressurgir, no e pelo
discurso midiático, a representação do caos; o Estado e o povo haitiano surgem como
uma representação no extremo limite da civilização.
3.4 12 de janeiro de 2010: o que o sismo não pôde apagar
Ao atingir o palácio presidencial em
Porto Príncipe, o terremoto de 7 graus
na escala Richter destruiu, na terça o
último símbolo institucional do Haiti. O
Estado haitiano sobrevive agora nas
tradições de sua população, herdeira
dos únicos escravos que chegaram ao
poder no continente depois de uma
revolta contra a França. (ANTUNES,
2010:on-line)
Porto Príncipe, 12 de janeiro de 2010, terça-feira.
Aproximadamente dois milhões de pessoas se amontoam na principal cidade do Haiti,
147
localizada na baia de Gonaives, no paradisíaco mar do Caribe, cuja beleza em nada
reflete a dura rotina de seus habitantes. A esperança embala os sonhos de um futuro
melhor, bem diferente de um passado cujas cicatrizes ainda não fecharam totalmente.
Entre o frenético vai-e-vem dos coloridos tap-taps
60
, abarrotado de pessoas, destaca-se
também o trânsito das inconfundíveis viaturas brancas e/ou camufladas, identificadas
com as iniciais UN (United Nations), contrastando com o ambiente.
A população, cuja vida parece transcorrer em relativa paz,
parece indiferente ao trânsito destes que outrora foram considerados “invasores” e que
agora, neste 12 de janeiro de 2010, talvez sejam um pouco mais que isso. O cidadão
haitiano, muito embora o incômodo provocado pela presença de homens fortemente
armados nas ruas e vielas, sabe que esse é o preço a pagar por uma liberdade que
bem pouco tempo não existia.
Nesse dia, cerca de duzentas e trinta mil pessoas não
retornaram para as suas casas no final da tarde no Haiti, revelado na última citação do
tópico anterior, no qual Kawaguti (2009:on-line) descreveu um país em franca
recuperação. O Haiti não fazia mais parte dos noticiários e a última reportagem
veiculada pela Folha de São Paulo acerca da MINUSTAH datava de 31 de outubro de
2009, um claro sinal de que não houve, neste período, nenhum fato anormal ou digno de
nota por parte da imprensa.
O terremoto não traria o Haiti e o seu povo de volta
para as capas dos principais jornais do mundo, mas também faria com que, uma vez
mais, se tornassem novamente reféns de um discurso que, em dado momento, pensamos
estar perdendo força. Como afirmou Batista Jr. (2010:on-line), em reportagem da Folha
de 28 de janeiro de 2010: “o terremoto atingiu o país num momento em que seu
desempenho econômico era bastante bom. Pela primeira vez em muito tempo o Haiti
parecia bem posicionado para retomar o desenvolvimento e escapar da miséria.”
A tragédia com todos os seus desdobramentos -
reacendeu não a comiseração da comunidade internacional para o país, mas também,
e de maneira ainda mais contundente, a abjeção potencializada por um discurso que,
como tentamos demonstrar durante todo o nosso trabalho, coloca o haitiano no limiar da
condição humana. O Haiti, que ao que parece começava a ensaiar os primeiros passos
60
Veículos adaptados, utilizados pelos haitianos, sobretudo em Porto Príncipe, para o transporte urbano.
148
depois de décadas de estagnação, volta a um patamar inferior à situação de fevereiro de
2004.
No título do artigo de Thomas (2010:on-line), publicado
pela Folha em 14 de janeiro de 2010, com título “O Haiti estava de joelhos; agora,
está prostrado”, esse retrocesso fica evidente. A partir de relatos como este podemos ter
uma idéia, primeiramente, de como essa tragédia muda totalmente o quadro de
estabilidade descrito no final do tópico anterior e também de como a imprensa se
apropria dessa tragédia para apresentar ao mundo o Haiti e o haitiano como dignos
representantes do caos. Segundo Thomas:
No dia 12 de janeiro de 2010, o mundo ruiu em Porto Príncipe. Um
mundo já frágil e parcialmente em ruínas foi-se abaixo. O Haiti
estava de joelhos. Agora, com a destruição de sua capital, está
prostrado.
Os principais edifícios desabaram, entre eles o palácio nacional, vários
ministérios e a catedral [...]
Mortos e feridos se aglomeram nas calçadas, indivíduos correm horas
e horas para chegar em sua casa e ver como se encontram os seus,
outros parecem andar e correr sem destino.
A primeira impressão, relatada nos dias que se seguiram
ao terremoto, era de que realmente o Haiti havia literalmente acabado, pelo menos era
essa a idéia que pareciam querer transmitir. Poderia ser assim, não fosse a singularidade
e a resistência desse povo, para quem, com certeza, essa entrará para a sua história
apenas como mais uma catástrofe. Em outra reportagem, de 25 de janeiro, Brady
(2010:on-line), fazendo um contraponto com a situação vivida pelo Haiti antes do
terremoto, apresenta ao mundo o quadro desolador da capital haitiana, não deixando
porém de lembrar que o Haiti, as vésperas do terremoto, era um país que, ao que parece,
se equilibrava a beira de um abismo. Segundo ele:
As cenas do Haiti são de fato desanimadoras. Um país à beira do
abismo parece ter sido empurrado para baixo, com sua paisagem de
corpos em decomposição, prédios demolidos e uma população ferida e
faminta.
149
Maisonnave (2010:on-line), enviado especial da Folha a
Porto Príncipe, cujas descrições anteriores ao sismo já deixavam transparecer uma
imagem bastante negativa do Haiti, apresenta, em reportagem de 15 de janeiro de 2010,
com um detalhamento que lhe é peculiar, no que se transformou a capital haitiana:
Centenas de corpos acumulados dividindo as calçadas e as ruas com
milhares de haitianos caminhando aparentemente a esmo.
Sobreviventes sob escombros à espera de um resgate que
provavelmente nunca chegará, em meio à ausência quase completa de
Estado. Dois dias depois do terremoto, Porto Príncipe ainda não
começou a reagir à tragédia que arrasou a capital mais pobre da
América Latina. [...] Em quase toda a cidade, principalmente nas
partes mais altas e com casas de alvenaria, o cenário é de casas e
edifícios desmoronados, corpos abandonados, multidões nas ruas e
trânsito caótico. [...], numa esquina, havia 23 mortos enfileirados e
cobertos por moscas, entre crianças e adultos. O corpo de um bebê foi
colado em cima da barriga de uma mulher, como se ela o estivesse
embalando.
A cena fazia com que a maioria dos transeuntes tapasse
instintivamente a boca e o nariz com a própria roupa ou com um pano
- praticamente a única medida profilática visível. Muitos abriam os
braços, num gesto de incredulidade. [...] os corpos eram reunidos no
mesmo local, gerando mau cheiro, moscas e reações de asco e
indignação. Mas também corpos dispersos, que passavam
praticamente desapercebidos pelos transeuntes.
O povo haitiano, aos olhos de Maisonnave (2005:on-line),
continua a caminhar a esmo, ou sem motivo aparente. Destituídos da figura simbólica
do Estado, parecem indiferentes e incapazes de reagir à desgraça que se abateu sobre
Porto Príncipe. Incrédulos, segundo o repórter, os haitianos não pareciam capazes de,
por si só, fazer pelos seus o que uma ajuda que „nunca chegariapoderia fazer. O povo
haitiano se vê, como sempre, a mercê de uma ajuda que efetivamente parece limitada às
promessas feitas em momentos de crise e, uma vez mais, parece esperar que ela chegue.
Não tarda para que os discursos veiculados pela imprensa
mundial acerca do fato sejam tomados por um sensacionalimo deplorável, apresentando
artigos e reportagens pouco factíveis e destituídas de historicidade, que fazem emergir,
dos escombros deixados pelo sismo e com uma força incomum, os estigmas herdados
de um passado marcado pelo racismo e pelo colonialismo.
150
A Folha, mesmo tentando se eximir da responsabilidade
sobre alguns dos conteúdos publicados em seus cadernos por pessoal estranho ao seu
quadro de funcionários, não constitui uma excessão e os cronistas de plantão se
apresentam para, cada um a seu modo, expor suas opiniões acerca do acontecido. A esse
respeito convém reiterar que, como alertou Silva, (2000:93)
61
, nossos discursos, afora a
carga de intencionalidade de que está ou não provido, acabam por definir ou reforçar
determinadas identidades, estigmas, que supomos apenas descrever. É justamente isso
que ocorre nesse caso particular. O Haiti e o povo haitiano tornam-se, mais uma vez,
reféns de um discurso que, como pontuamos, conforma ao mesmo tempo que
informa.
O quadro de desordem e alienação parece reinar
novamente. As descrições de cenas do cotidiano aparecem nas reportagens dos meios de
comunicação de massa como cenas dantescas. Esse estranhamento aparece até no
simples fato de tomar uma condução, descrita como se os haitianos fossem incapazes.
Lage (2010:on-line), em reportagem de 15 de janeiro de 2010, descreve uma destas
cenas:
Quem quer entrar numa "tap-tap" [lotações de Porto Príncipe] vai
correndo pela calçada e, ao se aproximar do veículo, se joga para
dentro, de cabeça, pelas pernas, como der, e tenta viajar pendurado,
parte dentro, parte fora do carro.
E muita gente simplesmente andando pela capital, sem direção,
principalmente na região central, a parte da cidade mais atingida.
Um exemplo evidente do que destacamos foi a publicação,
no dia 17 de janeiro de 2010, cinco dias após o terremoto, de um texto que, segundo
informações da Folha, data de 1892, cuja autoria é atribuída a um holandês chamado
Guerrit Verschuur, e traduzido por Jean Marcel C. França, intitulado “Haiti nas trevas”.
No texto em questão, com pouco mais de duas páginas e dividido em três partes - „Ruas
imundas‟; „Exército cômico‟ e „Ladrões‟ -, que se seguem à uma pequena introdução,
Verschuur relata, por meio de um discurso que já nos é familiar, uma visita feita à Porto
61
Conforme citação página 38 - [...] ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo
cultural, achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um „fato‟ do mundo
social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüísticos
que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos
descrevendo.”
151
Príncipe, provavelmente no final do século XIX. Tentaremos transcrever abaixo as
passagens principais do referido texto, cuja publicação no jornal não foi atribuída a
nenhum de seus repórteres ou correspondentes, para, em seguida, reforçar algumas
observações:
A baía de Porto Príncipe é uma das mais encantadoras que conheço.
Em formato de ferradura, ela é toda circundada por uma exuberante
vegetação. [...] Para obter a permissão de desembarque é necessário
submeter a lista dos passageiros ao ministro do Interior e ao presidente
da República, de modo que somente três ou quatro horas depois de
ancorar é que se tem a bendita autorização para desembarcar.
Ruas imundas - [...] Turgeaut [local ficou hospedado] é o local de
residência da maior parte dos negociantes estrangeiros e cônsules, pois
pode-se desfrutar de um ar fresco, de uma atmosfera salubre e de
umas variadas e pitorescas perspectivas. Infelizmente, o caminho que
vai da cidade até este lugar é um verdadeiro caminho haitiano, pleno
de pedras e de enormes buracos. [...] As ruas da cidade são ainda mais
imundas do que as de Jacmel e Les Cayes, [cidades do interior do
Haiti] estando a sua limpeza entregue somente ao vento e à chuva.
Certo dia, numa via, que tem o sugestivo nome de rua dos Milagres,
encontrei uma mula morta obstruindo a circulação; no dia seguinte, o
corpo do pobre animal encontrava-se intocado no mesmo lugar.
Foi somente dois dias mais tarde que, "por milagre", a infecta carcaça
foi removida. [...]
Exército cômico - [...] O país é ainda semisselvagem [sic.] e, sem o
auxílio e o empenho dos estrangeiros, nem as coisas mais elementares
estariam disponíveis. [...] O Exército haitiano parece saído de uma
ópera cômica; o estrangeiro em visita ao país que deixar de ver a
revista da tropa estará perdendo um divertimento que reputo único no
mundo.
[...] O exército haitiano tem tantos oficiais quanto soldados; o número
de generais e coronéis é enorme, e os uniformes são os mais variados
e bizarros que se pode conceber. [...] Certo dia, o cônsul inglês levou-
me para conhecer a Câmara dos Deputados, [...] Ao retornar da sessão,
vi um agente de polícia perseguir o pobre diabo de um negro, que
roubara uma galinha. O representante da lei deu uma dura pancada no
malfeitor com um bastão enorme. Uma única pancada daquele bastão
seria suficiente para pôr qualquer ser humano fora de combate, mas a
cabeça de um haitiano é dura como um pote de ferro.
Ladrões - O negro somente deixou cair o objeto do crime e continuou
a correr do policial. Nesse ínterim, a galinha foi recolhida por um
outro ladrão, que fugiu o mais rápido que pôde.
Os ladrões, a propósito, não são poucos por aqui, sobretudo depois do
entardecer, por isso, é comum ver brigas e ouvir tiros de pistola pela
cidade. Aos ladrões vêm ainda se juntar os bêbados, os marinheiros
em licença e uma enorme variedade daqueles tipos que estão sempre
prontos para se meterem em discussões e armarem brigas.
152
É também comum encontrar loucos perambulando pela cidade, sendo
os casos de loucura mais comuns entre os negros do que entre os
brancos.
O que questionamos é o propósito de uma publicação
destas, a respeito de um país que há menos de uma semana havia sido devastado por um
desastre que já era considerado o maior das Américas, no qual sucumbiram mais
duzentas e vinte mil pessoas. O texto é extremamente depreciativo e apresenta um
discurso extremamente racista e, principalmente, inapropriado para o momento em que
o Haiti começava a sepultar os seus mortos em valas coletivas. Não pelo conteúdo em
si, uma vez que discursos dessa natureza eram comuns no século XIX, tendo em vista as
teorias racistas alicerçadas nas perspetivas evolucionistas que tinham como principais
expoentes Darwin e Spencer, mas, principalmente, pelo momento em que vem à tona.
O texto, ao que parece, procura, de alguma maneira,
apresentar uma justificativa histórica para o que muitos acreditaram ter sido o fim do
Haiti, ou então minimizar o ocorrido, demonstrando que o caos povoa, muito, o
cotidiano daquele povo.
O Exército é achincalhado acintosamente e não por acaso,
uma vez que representa uma das principais instituições do Estado e que, aos olhos do
visitante, se transforma, com seus uniformes bizarros, em uma „ópera cômica‟ e
diversão garantida. O povo é apresentado por Verschuur
62
como semi-selvagem e
incapaz das coisas mais elementares, sendo representado, na oportunidade, por um
„pobre diabo de um negro‟, „ladrão de galinhas. O narrador, não bastasse haver lançado
mão de um representante de dignidade tão duvidosa, ainda desumaniza o mesmo, de
maneira genérica, ao dizer que a pancada desferida pela autoridade haitiana em sua
cabeça seria suficiente para r qualquer “ser humano” fora de combate, mas, como se
62
Ao falar das ruas de Porto Príncipe podemos deduzir que se tratava, muito provavelmente, de um
negociante ou de um cônsul, pelo fato de ter ficado hospedado em Turgeaut, um pequeno oásis em meio à
sujeira e a imundície descrita pelo viajante, um lugar que seria ainda mais aprasível - onde se respira um
ar fresco -, não fosse o „caminho‟, verdadeiramente haitiano, repleto de pedras e buracos que levavam a
ele e que, inevitavelmente, não podiam passar despercebidos. Não bastasse tudo isso, restos de animais
mortos compõe a paisagem, o que tornava, por certo, ainda mais fétidas as ruas imundas e esburacadas. A
propósito, as ruas de que fala, distantes de Turgeaut, são, sabidamente, o lugar do povo, das massas, onde
as trocas simbólicas e sociais acontecem, onde o povo representa e é representado. O desdém
demonstrado pela parte baixa da cidade, com suas „ruas imundas‟, não é outra coisa se não um claro
reflexo da abjeção e do asco ao povo haitiano que ali habita e que, se misturando à sujeira e a podridão,
compõe o quadro descrito por Verschuur.
153
tratava da cabeça de um haitiano, “dura como um pote de ferro”, não havia produzido o
efeito esperado.
O terceiro e último aspecto que chama a atenção de
Verschuur também é revelador: ao que parece, as ruas de Porto Príncipe estavam
apinhadas de ladrões, uma vez que o fruto do roubo do primeiro mal chega ao chão, se é
que chegou, e é apanhado por um outro ladrão que desaparece tão rápido quanto
surgiu.
Esse último trecho Ladrões - nos remete a uma outra
reportagem de Silva (2010:on-line), intitulada “No coração das trevas”, de 19 de janeiro
de 2010. Ao ler o recorte da reportagem em questão ficamos pensando se, apesar da
distância tempo-circunstancial, as descrições não seriam, antes, objetos de um mesmo
discurso, dado sua semenhança. A desordem parece reinar nestas decrições e a última
frase da citação abaixo é reveladora a esse respeito. O “estado de natureza hobbesiano”
é maximizado pelas lentes da imprensa:
Centenas de homens disputam sacos de comida entre os escombros; a
polícia, com nove guardas, tenta contê-los, em vão; um dos
saqueadores cai no chão, atingido por um tiro na nuca, disparado por
um policial; enquanto agoniza, outro homem lhe toma a carteira do
bolso. A cena em Porto Príncipe foi registrada e relatada ontem na
Folha pelo repórter-fotográfico Caio Guatelli.
O jornal "O Globo" reproduziu outras duas imagens de um
linchamento na capital do Haiti. Na primeira, um homem nu e com os
pés amarrados é espancado a pauladas, cena observada por uma
criança; na segunda foto, vemos apenas suas pernas, enquanto o resto
do corpo, coberto por dejetos, arde ainda vivo sob a fogueira
improvisada na rua.
Estamos no estado de natureza hobbesiano - da guerra de todos contra
todos.
Podemos apontar ainda outras semelhanças do texto de
Verschuur, no tocante ao perfil social descrito, com a citação da reportagem de
Maisonnave (2006:on-line)
63
, ao descrever um centro de votação de Porto Príncipe nas
eleições de 2006, onde os votantes eram compostos apenas de idosos, mulheres grávidas
e deficientes físicos, e deduzir que não se trata de mera coincidência e sim de certas
63
Ver citação na íntegra na página 118-119.
154
permanências, do interdiscurso. É assim que o haitiano transparece através das lentes da
imprensa em geral.
As aproximações da natureza destes discursos, bem como
as permanências observadas, evidenciam a existência de uma determinada memória
discursiva que teima em não silenciar e que coloca o povo haitiano como contraponto da
identidade que o Outro busca estabelecer para si mesmo. O outro, branco, civilizado e
dotado de capacidades que o haitiano não possui, enfatiza neste apenas o que, por outro
lado, lhe confere uma superioridade aparentemente natural, a identidade, como
afirmou Silva (2009:80).
É essa imagem que orienta os discursos produzidos acerca
do Haiti: um país de negros, débil, caótico e totalmente dependente da ajuda
internacional. Como afirmou Schwartsman (2010:on-line),
No Brasil, [e não só aqui] Haiti virou sinônimo de miséria e das piores
mazelas da pobreza. Na França, designações comuns para o país
caribenho incluem „nação patética‟ e „pedaço da África perdido no
meio das Américas‟. Nem sempre foi assim. Faz tempo, é verdade,
mas o Haiti também já foi conhecido como „pérola das Antilhas‟.
As raízes africanas, evidenciadas não na cor da pele,
motivo de orgulho do povo haitiano, mas também na sua intrincada cultura, trazem
consigo todo o preconceito e racismo dispensados ao povo africano. É comum observar
essa referência ao “pedaço da África perdido no meio das Américas”, como forma de
menosprezar e denegrir a imagem do povo haitiano, ou africano, buscando apresentar
apenas os fatores negativos dessa ligação com o continente africano, como fica claro no
trecho da reportagem de Zanini (2010:on-line):
É comum dizer que o Haiti "não pertence" ao continente americano e
que, na verdade, o país caribenho é um pedaço da África no
hemisfério Ocidental.
muito de verdade nisso. [...] Em desenvolvimento humano, a
realidade dos haitianos é compatível com a africana. [...] Toda a
paisagem urbana africana está firmemente implantada por aqui:
mulheres equilibrando carga na cabeça, porcos passeando nas ruas,
táxis com o vidro dianteiro rachado, vendedores sem troco, crianças
com manchas de desnutrição no couro cabeludo.
[...] Mas há algo de inadequado na comparação.
155
Em primeiro lugar, não uma única África, assim como não um
Terceiro Mundo apenas.
Zanini alerta para o que parece óbvio; apenas parece, mas
não é. A comparação Haiti-África não é gratuita, nunca foi. Quando esta comparação é
discursivamente estabelecida o que se quer evidenciar, na grande maioria das vezes, são
os aspectos negativos de uma aparente incapacidade supostamente inata e comum aos
dois lados do Atlântico. O ato de estabelecer essa generalização, uma “única África” e
“um Terceiro Mundo”, busca apagar, tornar invisíveis, as singularidades históricas e
culturais de cada povo, fazendo transparecer, ao final, apenas os aspectos que depoem
contra seu povo e o seu passado de lutas. Seja com relação ao Haiti ou a África o
discurso, que tem uma origem, segue um determinado modelo, no qual o que
transparece são, como vimos, as “mulheres equilibrando carga na cabeça, porcos
passeando nas ruas, táxis com o vidro dianteiro rachado, vendedores sem troco, crianças
com manchas de desnutrição no couro cabeludo”, ou seja, as evidências de um olhar
guiado por um discurso que impede que outras coisas sejam vistas.
Do passado o que se destaca não são as conquistas dos
escravos liderados por Tousaint Louverture e sim o título de pérola das Antilhas que,
como lembra Schwartsman, um pouco a frente, foi obra dos franceses, conseguido por
por causa da brutal exploração de cerca de quinhentos mil negros nas lavouras haitianas.
As lutas e os feitos da independência, levadas a cabo pelos escravos da pequena ilha
são, não raro, condenados e/ou simplesmente ignorados, cedendo lugar a um discurso
racista. Strecker (2010:on-line) reforça nossas colocações:
Para o historiador Manolo Florentino [Organizador de Tráfico,
Cativeiro e Liberdade, ed. Civilização Brasileira, colunista da Folha e
professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro],
"chama a atenção" que a singularidade haitiana esteja sendo pouco
mencionada após o terremoto que devastou o país. "O Haiti é o único
caso de revolta escrava que toma o poder nas Américas", [...] Se, por
um lado, as revoltas exitosas foram precursoras do fim da escravidão e
da independência política no contexto do antigo mundo colonial,
condenaram esses países de um ponto de vista econômico.
E não econômico. No pós-terremoto abundam as
perspectivas mais estarrecedoras acerca da realidade haitiana. Certamente muito disso
156
se deve, como afirmou Florentino, à falta de conhecimento dessa singularidade que
marca sua história ou ainda, o que por vezes parece ser o caso, a uma clara tentativa de
justificar o quadro de penúria, ainda mais agravado pelo terremoto, como „culpa‟ única
e exclusiva dos haitianos e/ou de suas raízes histórico-culturais, fato que,
consequentemente, eximiria de culpa quaisquer outros países ou organizações.
Um exemplo deplorável e injustificável, mas que por outro
lado adéqua-se ao que refletimos, foi a declaração do cônsul geral do Haiti em São
Paulo, George Samuel Antoine. Antoine faz parte da minoria branca haitiana e é cônsul
em São Paulo desde 1975, quando foi indicado por Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc.
Em declaração ao programa “SBT Brasil”, veiculada pela Folha em 16 de janeiro de
2010, ao comentar o terremoto ocorrido quatro dias antes Antoine afirma: “Acho que,
de tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo. O africano em si tem maldição.
Todo lugar que tem africano está fodido.” (GALVÃO, 2010:on-line).
O discurso de Antoine resume, exemplarmente, o que
tentamos demonstrar. Não bastasse a declaração anterior o representante do país ainda
afirma, na mesma reportagem, que “a desgraça do Haiti está sendo uma boa‟ porque o
país „fica conhecido‟”. Esta declaração, feita por um cidadão haitiano, nascido em Porto
Príncipe, demonstra também, dentre outras coisas, a distância abissal entre a trágica
realidade de cerca de 80% da população e o estado de alienação de uma minoria ligada
ao poder.
Mas Antoine não está sozinho. Gleiser (2010:on-line), na
reportagem “Ciência, religião e o Haiti”, de 24 de janeiro de 2010, fala de um outro
exemplo semelhante:
É horripilante testemunhar a crueldade - e até mesmo a estupidez - de
certos homens de fé nesses momentos difíceis. Um exemplo é do
pastor evangélico americano Pat Robertson, que recentemente atribuiu
o terremoto a uma punição divina contra o povo haitiano, que
supostamente assinara um pacto com o diabo para conseguir obter sua
independência dos franceses.
Duas questões ficam evidentes, mais uma vez, no discurso
atribuído por Gleiser ao pastor Robertson. De um lado, a ignorância ou a negligência
quanto à historicidade que permeia a situação atual do Haiti, de outro, a tendência
157
recorrente de se classificar o povo haitiano como incapaz, valendo-se, como faz
Robertson, de explicações esdrúxulas. É mais fácil atribuir a independência do povo
haitiano ao diabo que reconhecer a sua capacidade para tal.
64
Freire (2010:on-line), em reportagem à Folha, de 17 de
janeiro de 2010, intitulada “Como se faz um Haiti?”, deixa bem claro o que afirmamos.
É como se toda a história haitiana transcorresse à revelia de seu povo, que, inertes,
assistem a tudo esperando que alguém lhes oriente. Segundo Freire:
Como se faz um Haiti? Ditatura genocida, ignorância, cleptocracia,
racismo, jogo da política mundial e embargos estão na origem da
desgraça. [...] O Haiti era um lugar tão miserável como tantos outros
da América Central em meados do século 20. Mas talvez estivesse
pronto para se tornar um dos piores buracos do inferno sobre a Terra.
Todos estes ingredientes estão inegavelmente presentes na
história haitiana, que desemboca na crise de 2004. Mas, será só isso? A história do Haiti
não é uma história de “vítimas”, mas sim de uma luta desigual. A impressão que se tem
é que o povo haitiano assistiu impassível, desde meados do século XX, à trajetória de
genocidas e cleptomaníacos que deixaram, ao final, um país em frangalhos. Esse
discurso não é novo e nem exclusivo, estando emparelhado com um aparato discursivo
que envolve também a América Latina. O que diferencia, no caso haitiano, é a tônica, a
constância, a permanência, a veemência.
Nas reportagens da Folha que se seguiram ao terremoto,
também é possível identificar alguns discursos que se destacam e se diferenciam deste
corpus. Há, em meio a uma avalanche daquilo que chamamos de cronistas de plantão,
um pequeno número que procura pensar o Haiti de outra perspectiva, da qual nós
certamente nos aproximamos mais. Thomaz
65
(2010:on-line), em artigo publicado em
64
Quando esta historicidade vem a tona, porém, outra problemática a acompanha. A história haitiana foi
marcada não apenas pelo modelo implantado pelo colonizador em hispaniola, mas, principalmente, pela
revolução que marcou a traumática ruptura com esse modelo, o que demonstrou, dentre outras coisas, a
singularidade e a capacidade do povo haitiano que, mesmo sobre pressão e a intervenção das grandes
metrópoles da época, logrou êxito no seu intento libertador. Muito embora tudo isso esteja muito bem
demonstrado historicamente, o perfil do povo haitiano continua sendo orientado por um discurso que
margem, ora a uma representação extremamente caótica, ora a um sujeito sobremaneira passivo,
sobressaindo, de uma maneira ou de outra, uma representação sempre negativa.
65
Omar Ribeiro Thomaz é antropólogo e professor da UNICAMP.
158
14 de janeiro de 2010, demonstra, de maneira bastante clara, o que o sensacionalismo
midiático, por dever ou por conveniência, tende a ocultar. Segundo ele:
A comoção inicial, traduzida em cânticos e em clamores para "Jesu" e
"Bon Dieu", cede pouco a pouco a uma sensação de frustração sem
limites, de raiva. Historicamente, o mundo insistiu em ignorar o Haiti
e sua grandeza.
Ao embargo político e intelectual secular - como definir de outra
forma o ostracismo ao qual foi relegado o Haiti após sua vitoriosa
revolução que culminou com sua independência em 1804? -
sucederam-se intervenções e ocupações que sempre procuraram negar
aos haitianos o sentimento do orgulho dos seus feitos; e, por fim, o
golpe de misericórdia, a imposição de uma agenda ditada pela Guerra
Fria, que, entre os anos 1950 e 1980 destruiu o Estado haitiano (ao
contrário do que pensam alguns, o Haiti possuía um Estado, nem
melhor nem pior do que os seus congêneres latino-americanos e
caribenhos), fragilizou suas instituições, criminalizou os movimentos
sociais e arrebentou seu sistema econômico.
Não foi a interferência americana que destruiu o plantio de milho e
interrompeu as conexões existentes entre o camponês, os fornos e os
consumidores? Ou outra intervenção que promoveu a eliminação do
porco crioulo, base econômica de famílias? Ou o embargo
internacional que promoveu o golpe final nas reservas florestais
impondo o uso indiscriminado de carvão vegetal?
Diante da fúria da natureza não cabe outro sentimento que o de uma
frustração que deita raízes numa história profunda e que subitamente
pode ganhar cor: o mundo dos brancos nos destruiu; o mundo dos
brancos diz que quer fazer alguma coisa, mas o que faz, além de
nutrir seus telejornais com fotos miseráveis que fazem alimentar a
satisfação autocentrada dos países ditos ocidentais? (grifo nosso)
O discurso de Thomaz é objetivo, destacando-se,
principalmente, por apresentar ao leitor, aturdido por uma torrente de discursos que
condenam o povo haitiano, outra perspectiva, que busca desvelar o que a poeira
levantada pelo terremoto parece ter tornado ainda mais obscuro. Além das colocações
históricas, Thomaz corrobora nossa perspectiva ao demonstrar o direcionamento que,
via de regra, a mídia de uma maneira geral confere à problemática haitiana,
apresentando e enfatizando apenas os aspectos negativos de sua história, ligados à
miséria social em que vive o povo, que surge como culpado e vítima, colaborando para
reforçar aquilo que chamamos, em outro momento, de “a realização do outro” e que
Thomaz preferiu chamar de “satisfação autocentrada”.
159
Em outro artigo publicado na Folha, de 18 de janeiro de
2010, intitulado “Haiti, que ajuda?”, Thomaz (2010:on-line) volta a defender sua
perspectiva:
Duas reações foram recorrentes nos dias que se seguiram aos
terremotos. Uma, talvez a mais primária, era a de responsabilizar a
natureza. A outra, a de responsabilizar os próprios haitianos pelo caos
que sucedeu ao cataclismo. Afinal, foram incapazes de construir um
Estado e, por isso, são incapazes de reagir.
Ambas as reações são perversas. Não estamos diante de um
cataclismo natural, mas também de uma catástrofe social. E o
desmantelamento do Estado haitiano não é responsabilidade exclusiva
dos haitianos, muito pelo contrário. País com pouca margem de
manobra no contexto caribenho ao longo das décadas de Guerra Fria,
viu as grandes potências apoiarem uma ditadura regressiva e
particularmente violenta; concomitantemente, e especialmente a partir
do fim dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, o Haiti, como tantos
outros países, foi vítima de profissionais engravatados que aplicavam
a mesma receita em qualquer lugar: desregulamentação, estado
mínimo, livre comércio. [...] Sem termos presente o fato de que o
Haiti é um país soberano, e que os haitianos não são vítimas passivas
de catástrofes naturais, dificilmente sairemos do circulo de pobreza e
miséria criada pela própria "comunidade internacional".
O discurso de Thomaz busca desconstruir a imagem
reforçada pelo discurso midiático que coloca o haitiano como o único culpado por toda
a sorte de desgraças que se abatem sobre o país, inclusive as naturais, como no caso do
terremoto. Várias reportagens buscavam ligar a ocorrência do sismo à degradação do
meio ambiente observada no Haiti, imputada, logicamente, única e exclusivamente à
voracidade destrutiva atribuída ao povo.
O sismo, como afirmou o cônsul Antoine, colocou o Haiti
nas primeiras páginas de todos os grandes jornais do mundo. Durante os dias que se
seguiram a tragédia, a mídia internacional dirigiu suas lentes para o Haiti, destacando
equipes para realizar a cobertura da tragédia. Essa atenção acabou tendo um
desdobramento que, de certa forma, podia ser esperado, dado o comportamento da
comunidade internacional. O Haiti, em função do desastre, passa a ser objeto de
influência e disputa de alguns países, dentre os quais se destacavam Brasil e E.U.A.
Saraiva (2010:on-line) ilustra, com ironia, em artigo publicado pela Folha em 20 de
160
janeiro de 2010, como o Haiti passa a figurar nas agêndas internacionais, bem como a
atenção que passa a merecer das grandes potências mundiais, velhas conhecidas
o Haiti é o novo palco para a exibição dos interesses e das quedas de
braço do sistema internacional em momento de redesenho de
hierarquias. As grandes potências que minguaram recursos e esforços
diplomáticos para o alívio da pobreza no Haiti e em países miseráveis
que o mundo ainda abriga são as mesmas que agora coordenam a
operação de aplainar os cemitérios do país caribenho. [...]
Tudo agora é humanitarismo nas lágrimas de crocodilo dos líderes
cínicos. Apenas agora, tarde, ouvem-se discursos de desdobrada
atenção ao drama do Haiti. Atores e músicos famosos fazem o cordão
de proteção ao humanitarismo renovado do Norte. Não faltarão
festivais em estádios e correntes de solidariedade romântica aos
pobres haitianos.
Acompanhar a cobertura internacional das agências britânicas,
francesas e alemãs na Europa desses dias é hilário. O Haiti preencheu
o noticiário monótono do frio polar e da neve.
É como se no Haiti não houvesse passado, apenas terra arrasada, em
descoberta tardia das responsabilidades internacionais antes não
reconhecidas. O silêncio das grandes potências em relação aos
projetos brasileiros, apresentados anos atrás, de construção de
infraestrutura e autonomia energética no Haiti é gritante.
O Brasil, que apresentava um histórico favorável, em
razão do relativo sucesso nos cinco anos à frente da MINUSTAH, passa a reivindicar o
controle das operações; inicialmente de busca e resgate de mortos e feridos, e,
posteriormente, de reconstrução do Haiti, o que demonstraria, em tese, a sua capacidade
e o seu preparo para lidar com situações desta envergadura, empregando e coordenando
esforços, reforçando o seu papel de país emergente e der regional frente à comunidade
internacional e, principalmente, ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como
bem lembrou Saraiva, não é de hoje que os representantes brasileiros, dentre eles
podemos citar aqueles que figuraram neste trabalho, como Gen Heleno e o Ministro
Celso Amorim, apontavam para a necessidade de se investir na melhoria das condições
da população, leia-se infraestrutura e autonomia energética, o que significa, em outras
palavras, desenvolvimento econômico, criticando as políticas francesas e norte-
americanas dirigidas ao país.
Os E.U.A, por outro lado, têm na tragédia haitiana e no
Haiti, país com o qual sempre manteve uma conturbada relação, uma chance de
161
melhorar a sua imagem de potência imperialista e também de grande responsável pelo
colapso social haitiano. Cantanhêde (2010:on-line) resume este quadro de solidariedade
e disputa afirmando que
O colapso do Haiti, que era o país mais miserável da região, é
considerado pelas diplomacias dos EUA e do Brasil como o evento da
década nas Américas. À primeira impressão, o Haiti acabou. Mas,
como não pode simplesmente acabar, virou fator de confluência
internacional. A união não é mais em torno de guerras, mas da
solidariedade. Para os EUA, uma chance única de aproximar sua
imagem à de Obama, amenizando o ranço de potência que invade,
domina e mata e assumindo a ação que agrega e salva. Para o Brasil,
mais um degrau na busca de uma liderança regional. Os EUA
comandam o Haiti e foi por delegação deles que o Brasil assumiu a
chefia da Minustah, a missão de paz da ONU. Com o caos, os dois
tentam acertar níveis de convivência e de comando, o que não é fácil
num momento assim. de ciumeira a cotovelada até para definir o
controle do aeroporto.
O Brasil, mais uma vez, se ligado aos E.U.A,
comandando, sob os auspícios destes, uma força que, se conseguira trazer alguma
estabilidade e segurança ao Haiti, não consegue, agora, coordenar os esforços que
dependem, em partes, da anuência do governo norte-americano. Uma das primeiras
ações do governo norte-americano no pós-terremoto foi interditar o espaço aéreo
haitiano, passando a controlar, do seu território, as atividades de pouso e decolagem no
aeroporto internacional de Porto Príncipe. Os rumores acerca das ameaças à soberania
haitiana tomam algumas páginas dos jornais. O governo norte-americano, num ato de
auto-afirmação, anuncia o envio de algo em torno de dez mil soldados ao Haiti e
estabelece, simbolicamente, sua base militar nas ruínas daquilo que um dia foi o centro
do poder no Haiti, o Palácio Presidencial.
Contudo, as políticas norte-americanas para o Haiti
seguem a mesma linha de sempre. O povo haitiano não constitui o foco das ações
empreendidas pela Casa Branca no país destroçado pelo sismo. Os primeiros esforços
que chegam ao Haiti se ocupam deliberadamente em socorrer os cidadãos
estadunidenses feridos ou soterrados, indiferentes às agruras do povo. A imprensa
internacional, movida pelos números do sensacionalismo, continua a discutir o futuro
político do Haiti, indiferente à sorte dos seus quase nove milhões de habitantes, ao
162
mesmo tempo em que aviões da força aérea norte-americana tentam persuadir os boat
people, que só eles viram, a permanecer no Haiti. Batista (2010:on-line), em reportagem
de 4 de fevereiro de 2010, intitulada “Haiti: ajuda ou recolonização?”, exprime o drama
haitiano frente às preocupações que movem a comunidade internacional:
depois do terremoto, os EUA, com o propósito de socorrer a
população, enviaram milhares de soldados para o país. [...] a catástrofe
abalou gravemente o governo haitiano e as demais instituições do
país. [...] Criou-se, afirma-se, um "vácuo de poder".
[...] O "New York Times" publicou extensa reportagem sustentando
que o presidente do Haiti "não está à altura da situação" [...] O
presidente Préval é apresentado como um homem "quebrado" e
"desorientado".
A revista inglesa "The Economist" foi mais longe. Em arrogante
editorial, decretou que o governo haitiano não tem condições de
reconstruir o país e recomendou a criação de "uma autoridade
temporária com amplos poderes para agir". As pessoas parecem
esquecer que o Haiti tem um governo democraticamente eleito, que
deve ser respeitado. O Haiti precisa de ajuda - e não de ser ocupado
militarmente e administrado de fora para dentro. Uma das grandes
preocupações do governo dos EUA [...] é com o risco de um êxodo
migratório haitiano.
Poucos dias depois do terremoto, embora não houvesse sinais de
haitianos tentando fugir da ilha por barco, um avião da força aérea dos
EUA, equipado com rádios transmissores, passou a sobrevoar
diariamente o país com uma mensagem gravada pelo embaixador do
Haiti aqui em Washington: "Não se apressem a deixar o país. Se vocês
pensam que chegarão aos EUA e todas as portas estarão abertas, vocês
estão enganados. Vocês serão interceptados no mar e enviados de
volta para casa".
Tanto os olhares da comunidade internacional, em especial
os norte-americanos, quanto os discursos midiáticos, mantêm o mesmo direcionamento
de sempre. Como afirmou o escritor americano Tracy Kidder, ao repórter Sérgio Dávila,
em entrevista publicada em 18 de janeiro de 2010: “O Haiti tem sido uma colônia
virtual dos EUA, e se você olha o resultado disso, nós não fizemos um bom trabalho,
fizemos? A política dos EUA em relação ao Haiti tem sido em geral ruim.” (DÁVILA,
apud KIDDER, 2010:on-line).
Prèval, atual presidente do Haiti, é desqualificado para
coordenar a reconstrução. Batista tem que lembrar aos editores da revista The
Economist que o Haiti é um país soberano e com um presidente que, desorientado ou
163
não, foi democraticamente eleito. Por fim um alerta ao governo norte-americano e aos
demais de que a situação exige esforços que não se relacionam a uma ocupação militar.
Os E.U.A, preocupados com o velho fantasma dos boat people, mostram a sua
verdadeira face por meio da mensagem do embaixador do Haiti em Washington: “Se
vocês pensam que chegarão aos EUA e todas as portas estarão abertas, vocês estão
enganados.”. Existem algumas „estruturas‟ que o sismo não abalou, pelo contrário.
A situação do Brasil no Haiti, por outro lado, continua
diretamente relacionada ao papel desempenhado pela MINUSTAH. A tolerância do
povo haitiano com relação a esta, fica fragilizada com o terremoto, visto, por um lado,
as evidentes limitações em pessoal e material para lidar com a problemática e, por outro,
devido às espectativas criadas pela população haitiana que via nela e em algumas ONGs
que atuam no país as únicas instituições capazes de prestar socorro imediato. Apesar das
frustrações iniciais, quando os primeiros esforços foram dirigidos para tentar salvar seu
próprio pessoal, Zanini (2010:on-line), em reportagem de 31 de janeiro de 2010,
afirmou que durante um período de mais de dez dias em que esteve no Haiti, no pós-
terremoto, “a Folha percebeu bem mais demonstrações de apreço aos brasileiros entre a
população do que o contrário.”, concluindo que a MINUSTAH “em geral é bem aceita
pelos haitianos.”
Ao Haiti e ao povo haitiano não resta outra alternativa,
que não a de acolher, ainda que a contra-gosto, as forças da MINUSTAH. O terremoto
veio selar esta relação. Não se trata de ser ou não capaz de fazer frente à situação. À
MINUSTAH caberá o papel de tentar conduzir a reconstrução do país, que, aos moldes
do que ocorrera duzentos anos atrás, virou terra arrasada. Robert Fatton Jr., cientista
político haitiano, resumiu bem a relação do povo haitiano com a MINUSTAH, em
entrevista à Antunes (2010:on-line), da Folha, em 18 de janeiro de 2010. Perguntado
sobre que avaliação fazia da força de paz da ONU, Fatton respondeu que
Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos ainda maior.
Goste-se ou não, ela é elemento essencial da situação atual. Foi
criticada às vezes por ser muito violenta, outras vezes por não ser
violenta o suficiente. Não é surpreendente que os haitianos tenham
uma relação de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas
estrangeiras em nosso solo, mas sabemos que não podemos ficar sem
ela. O ponto-chave é como fazer a transição da Minustah para uma
força local.
164
Uma relação de amor e ódio, de alteridade, assim pode ser
definida a relação entre o Haiti e a MINUSTAH. A transição de que fala Fatton, que
era vislumbrada para o próximo ano, parece agora mais distante. O sismo, que por um
momento pareceu ser o fim do Haiti, pode ser, em que pesem todas as vidas perdidas e a
destruição causada, uma nova oportunidade, um novo recomeço.
O povo haitiano parece ter sido colocado a prova mais
uma vez. A tenacidade demonstrada reiteradas vezes pelos descendentes de L‟Overture
não deixa dúvidas de que esse povo não se abate, que sua luta, inglória, não foi em vão
e por mais desalento que uma tragédia dessas proporções possa trazer, restará a
esperança de um povo que, na contra-mão do discurso, insiste em viver.
O discurso midiático, sensacionalista, sobretudo da
imprensa internacional, busca no drama haitiano, que é diário, a denegação do outro.
O haitiano surge sempre como vítima de si mesmo, condenado pelo simples fato de ter
nascido haitiano e descender daqueles que, em outro momento, ousaram desafiar a
ordem estabelecida. Não outro crime que se lhes possa imputar. A barbárie que lhe
atribuem não é maior que todos os crimes que foram perpetrados contra seu povo ao
longo da história. Nascido como uma excrecência aborto da pátria francesa e criado
como filho bastardo sob a tutela dos E.U.A, o Haiti segue sua trágica trajetória.
As crises, quase ininterruptas, tornam ainda mais agudas
as críticas, que alicerçadas sobre um discurso racista e colonialista, não deixam espaço
para que uma outra imagem do haitiano possa aflorar. Comiseração, indiferença e medo
são sentimentos que estão sempre ligados aos discursos que se dirigem ao povo
haitiano. A história, que a alguns de redimir, condenou o povo haitiano, mas uma
certeza se mantem incólume: sob os escombros do terremoto do 12 de janeiro de 2010 e
da história, o povo haitiano resiste, nas ruas, na história e na memória; é uma gina da
história que o sismo não pode apagar.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tão, ou mais difícil que iniciar um trabalho, cujo objeto é
uma história que se desenvolve no exato momento em que este é redigido, do tempo
presente ou imediata, é colocar-lhe um termo. Pensamos que um texto dessa natureza
não deve ser finalizado com um ponto final, pura e simplesmente. Seria mais acertado
deixá-lo em aberto, com um sinal de dois-pontos, uma vez que assim procedendo
estaríamos assinalando não o seu fim, mas uma pausa, um prenúncio, a aproximação de
um enunciado; tanto mais quando se trata de uma história rica e imprevisível quanto
aquela que se desenvolve no Haiti.
A singularidade do seu povo, dos seus feitos, de suas lutas
e de suas vitórias devem ser celebradas, para que não se perca de vista os motivos de
sua injusta condenação. Uma de nossas primeiras preocupações ao iniciar este trabalho
foi apresentar ao leitor uma síntese desse processo histórico que tem início,
praticamente, com uma revolução sem precedentes, que infligiu à ordem estabelecida
uma derrota que jamais seria esquecida e que ainda hoje pesa sobre os descendentes do
que C. L. R. James consagraria, em sua clássica obra, no final da década de 1930, como
os Jacobinos Negros.
O ostracismo e o isolamento a que o Haiti é condenado
durante praticamente todo o século XIX, a ingerência francesa e norte-americana, que
acaba culminando com invasões e embargos econômicos no século XX, aliados a uma
exploração econômica que se iniciou com a colonização e que ainda não conheceu fim,
acabaram condenando a maioria da população ao estado de miséria quase que absoluta
que, por sinal, é o que sobressai nas páginas dos jornais, como se estivessem a nos
dizer: esse é o preço da liberdade.
Mais importante do que conhecer essa história é perceber,
como tentamos demonstrar ao longo dos primeiros tópicos, como os seus
desdobramentos, apropriados por um discurso estigmatizador, assentado sobre uma base
racista e colonialista, acaba levando, no e pelo discurso, o Estado e o povo haitiano aos
baixios da humanidade, erigindo determinadas representações e identidades que, uma
vez arraigadas, resistem, inclusive, à materialidade dos fatos. No Haiti a assertiva de
166
que „contra fatos não argumentos‟ não pode ser aplicada sem ressalvas e é isso, em
parte, o que buscamos evidenciar.
A historicidade haitiana surge transvestida, em trajes
franceses, pois se a revolução significou, até certo ponto, um rompimento com um
determinado modelo colonial, caracterizado principalmente pelas plantations e pela
massiva exploração da mão-de-obra escrava, o foi capaz de estabelecer uma ruptura
com os hábitos e costumes da metrópole, ou seja, com a dependência cultural, que
continuou a orientar as ações de uma elite que, indiferente à sorte do seu povo, não foi
capaz de estabelecer, com este, uma organicidade que pudesse efetivar o que a
revolução havia apenas iniciado, ou seja, um projeto de nação que congregasse, em
torno de si, as diferentes figuras desse grande mosaico.
Temos assim, ainda hoje, duas realidades distintas no
Haiti: uma minoria, talvez menos de cinco por cento da população - Câmara (1998) fala
em seis famílias que detém um expressivo poderio político e econômico e representa
os interesses estrangeiros no país e que, por conseguinte, controla, ainda que
indiretamente, o destino da outra parte, que constitui a grande maioria da população,
quase oitenta por cento dela, que vive em condições degradantes e que se tornou, ao
longo dos anos, um símbolo, preenchendo as manchetes dos jornais das grandes redes
internacionais, sendo representada, pelo discurso midiático, como a materialização do
caos.
Não como negar o quadro de miséria ante a falência
quase que completa a que foi levado o Estado haitiano. Esse não foi, em nenhum
momento, o nosso objetivo. Entretanto, é necessário compreender, ou melhor, não
esquecer, como esse quadro se desenha, sua composição, sua trama. Uma tela nova em
uma velha moldura; acreditamos que talvez essa seja a explicação para grande parte da
problemática haitiana, que vai de sua independência, via revolução, às últimas
intervenções, cujo ápice é o estabelecimento da MINUSTAH, em junho de 2004. A
ruptura estabelecida pela Revolução não fora profunda o bastante para eliminar o
preconceito e o racismo que sempre orientaram as relações colônia-metrópole, criando,
ou reforçando estruturas discursivas que, indiferentes às conquistas dos escravos
haitianos, acabaram conformando uma estrutura social e uma narrativa negadora do
haitiano enquanto sujeito de sua própria história.
167
Estas estruturas discursivas são erigidas, como tentamos
demonstrar no início de nosso trabalho, a partir da diferença que se estabelece entre o
„outro‟, normalizador, detentor do poder de classificar, e aquele que, privado de sua
condição de sujeito, sofre a ação de uma prática discursiva que con-forma ao mesmo
tempo que in-forma, em razão do caráter perfomativo de suas proposições. Nesse
sentido, as fontes elencadas em nosso trabalho foram esclarecedoras. O corpus
documental utilizado no segundo e no terceiro tópicos, a documentação produzida pela
ONU e as matérias veiculadas pela Folha de São Paulo, evidenciam essa prática.
Ao nos utilizarmos destas fontes buscamos pontuar
determinados aspectos, inseridos nesses discursos, que se tornam capitais não para
corroborar nossas premissas, mas também para permitir ao leitor uma familiarização
com a temática que explorávamos. Isto posto, podemos afirmar que a aproximação
buscada no primeiro tópico estava ligada, antes de tudo, ao delineamento e a
compreensão de determinadas práticas, discursivas e historiográficas, que julgamos
indispensáveis ao entendimento dos nossos propósitos no desenvolvimento do trabalho.
Não houvesse a explicitação histórico-teórica buscada naquele primeiro momento, nossa
perspectiva poderia se tornar vazia e destituída de sentido. Nosso intuito, ao estabelecer,
de início, as bases teórico-metodológicas e as condicionantes históricas atinentes ao
tema era apontar as condições para acompanhar e perceber a presença daquelas
estrutruras que estaríamos buscando, a todo o momento, evidenciar.
O nosso recorte temporal, apesar de estar delimitado
fundamentalmente pelo estabelecimento da MINUSTAH em 2004, vinculou-se, de certa
maneira, ao aparecimento de uma figura que começa a despontar no final do período
duvalierista, qual seja: Jean-Bertrand Aristide. A compreensão deste período, por nós
denominado de “Era Aristide”, que vai, mais precisamente, como buscamos demonstrar,
de fins da década de 1980 até o estabelecimento da FMP, em 2004, é imprescindível
para que se possa entender a história recente do Haiti e, por conseguinte, como aquelas
estruturas e práticas discursivas, citadas anteriormente, atuam a fim de fazer emergir
e/ou reforçar, contra o povo haitiano, as mais abjetas representações.
Aristide se insurgiu, aos moldes do que fizeram seus
antepassados, contra aquelas estruturas de poder que sempre condenaram o povo
haitiano. Sobre o padre-presidente, enquanto representante das massas e em razão de
168
sua estreita relação com estas, recaem as mais torpes acusações. As elites haitianas -
sobretudo aquelas ligadas às esferas política e econômica, cujos interesses sempre
estiveram distantes da realidade da grande maioria da população e promiscuamente
ligados aos interesses imperialistas, fossem eles franceses ou norte-americanos -,
utilizar-se-iam de todas as armas para afastar Père Titid e com ele as massas que o
apoiavam, do centro decisório do país. Eliminando-se um, eliminava-se,
consequentemente o outro. O governo de Aristide, negro, haitiano, ligado às massas e
contrariando os principais interesses das elites locais visto que havia se desligado da
igreja católica, da qual fora expulso em 1988, fundado um partido cuja sustentação
estava, principalmente, na união das massas e dissolvido as Forças Armadas, em 1995
estava fadado ao fracasso.
Todas as pessoas são humanas, dizia Tidid, numa
aparente tentativa de convencer a si mesmo e a todos aqueles que se colocavam ao seu
lado daquilo que os discursos e as representações que pesavam sobre seu povo e sua
pátria pareciam negar. A desumanização e a coisificação do haitiano foi e continua
sendo um dos motes do discurso anti-haitianista. A eleição de Aristide, no início da
década de 1990 significou, por um lado, um sonho democratizante, a esperança para
milhões de haitianos que anos, ou séculos, se viam alijados do poder, padecendo o
jugo daqueles que administravam o Haiti, ainda que indiretamente, através das políticas
predatórias levadas a campo por seus testas-de-ferro, como foi o caso das quase três
décadas do poder dos duvalier, orientados pela política do dólar dos E.U.A. e, por outro,
uma ameaça a essa estrutura, secularmente engendrada, que deveria ser combatida e
eliminada.
O sonho logo se torna pesadelo. Vítima de sucessivos
golpes, atacado por seus opositores e traído por seus correligionários, Aristide passa seu
primeiro mandato praticamente exilado e ensejo a uma série de intervenções no
território haitiano, capitanteadas principalmente pelos E.U.A que, em nome de alguns
organismos internacionais como ONU e OEA, buscavam resguardar os seus interesses
no combalido Haiti. Na esteira destas intervenções, que tomam praticamente toda a
década de 1990 e adentram o novo milênio, Aristide consegue eleger seu candidato,
Rene Prèval, em 1995, e se reeleger novamente, em 2000, iniciando uma crise que
169
acaba culminando com a MINUSTAH, ponto a partir do qual o nosso trabalho se
desenvolve efetivamente.
Não é difícil compreender porque Aristide se tornou uma
ameaça; em grande parte, porque se utilizava da mesma arma empregada pelos seus
opositores, o discurso. Aristide carcterizava-se, principalmente, pela eloqüência e pelo
tom contundente de seus discursos. Titid cria um contra-discuso que busca, antes de
tudo, desconstruir as representações e identidades forjadas por um discurso que, em
última instância, aprisionava o povo haitiano a uma não-condição, tornando-os,
expectadores e/ou vítimas de si mesmos e de sua própria história. O direcionamento e o
sentido dado ao discurso „lavassaliano‟ de Aristide surge como questionamento e
negação, como uma voz que começa a ecoar, não no Haiti, e que deve, portanto, ser
rapidamente silenciada.
O final desta história é conhecida. Aristide é apontado
como um ditador populista e demagogo, sendo apresentado pelo governo norte-
americano como um descompensado. Não tarda para que seja colocado no patamar dos
ditadores que o precederam. Seus seguidores, em sua totalidade, passam, também, a ser
representados e identificados como chimères, cujas semelhanças com os macoutes do
período duvalierista é cada dia mais enfatizada. O pequeno Haiti, cuja força da palavra
parece ainda mais evidente, é tragado por novas convulsões populares. Os E.U.A,
ladeados por França, Canadá e Chile, intervém, em 2004, com a FMP, sob a chancela da
ONU, que se enredada, uma vez mais, às deliberações do governo estadunidense e
francês.
Nesse cenário, a MINUSTAH nasce com o
estabelecimento da FMP. As bases dos discursos que levam a mais uma intervenção em
solo haitiano são praticamente as mesmas. O povo e o Estado haitiano considerado
incapaz de estabelecer um governo democrático e de conciliação e representado na
oportunidade pela emblemática figura do boat people - surgem nos discursos dos
representantes da 4917ª sessão do Conselho de Segurança da ONU, como uma séria
ameaça a si mesmos; mais importante que isso, ao entorno, leia-se E.U.A.. Nessas
representações sobressai o caos, materializado na miséria, na violência e na barbárie que
parece tomar conta do Haiti e dos discursos que, inegavelmente, faziam premente a
necessidade de mais uma intervenção. Nesses discursos, o povo haitiano surge como o
170
único protagonista de seu fracasso. uma a-historicidade evidente, uma vez que os
responsáveis pelos descalabros tomavam a palavra, supostamente horrorizados e
preocupados com o destino deste povo, tanto mais com a possibilidade destes tomarem
o mar rumo a outros países.
A partida de Aristide, em 29 de fevereiro de 2004,
segundo apontam alguns documentos, por pressão norte-americana, encerrou um
período que durara mais de uma década e que colocara o Haiti na pauta do CSNU. O
teor dos discursos proferidos pelos representantes dos diferentes países por ocasião da
4917ª sessão do CSNU demonstravam claramente que a situação do povo não constituía
o foco do problema que estava sendo tratado, mas sim os possíveis desdobramentos
advindos do acirramento da crise, ou seja, da possibilidade desta estrapolar as fronteiras
terrestres e marítimas do país e, aos moldes do que acontecera no início da década de
1990, quando cerca de quarenta mil boat people deixaram o Haiti em direção aos países
circunvizinhos e à Flórida.
O estabelecimento da MINUSTAH, em junho de 2004, foi
revestido de significados. Naquele ano era comemorado o bicentenário do fim da
revolução que culminou com a independência haitiana, fato bastante lembrado nos
discursos onuseanos. A intervenção parecia representar o fracasso de uma luta que se
iniciara dois séculos antes e que, efetivamente, poucos resultados produzira. Nos
informes do Secretário-Geral da ONU, estava evidente que a MINUSTAH poderia
significar uma última chance ao povo haitiano, que em duzentos anos de história não
fora capaz de estabelecer as bases institucionais de um Estado democrático, mas, por
outro lado, também tinha o mesmo significado para a ONU que, presente no Haiti
mais de uma década, não conseguira reverter o quadro desolador deixado como herança
por Jean-Claude Duvalier. No discurso onuseanao nenhuma observação acerca das
condicionantes históricas que conduziram o povo haitiano àquela situação.
Às forças da MINUSTAH, compostas principalmente por
países do terceiro mundo e que tinha o seu braço armado sob o comando do Brasil,
caberia a difícil missão de tentar resolver problemas que tinham raízes no intrincado
processo histórico haitiano, cujos partícipes, agora se retiravam de cena, acompanhando,
dos bastidores, o desenrolar desse último capítulo da tragédia haitiana. No país,
discursivamente transformado no circo dos horrores do Caribe, uma força composta por
171
cerca de sete mil homens se desdobra, segundo alguns, a serviço das potências
imperialistas, para tentar por termo a barbárie do povo haitiano, representado, em sua
quase totalidade, pelos tipos sociais mais abjetos. O Haiti transparece na documentação
produzida pela ONU como o país a beira de um abismo, alheio às práticas sociais - que,
em algum momento, um representante da ONU chamou de „cultura democrática‟ -, onde
imperam o caos e a desordem.
Os três primeiros anos de atuação da MINUSTAH em solo
haitiano foram os mais conturbados, transcorridos sob críticas contundentes. O
esfacelamento das estruturas estatais ao longo dos anos que precederam o
estabelecimento desta força, principalmente durante a crise imediantamente anterior à
ocupação, tornam o trabalho mais difícil. O principal óbice da missão, ainda hoje, diz
respeito ao descompasso observado entre as ações implementadas pelo seu componente
militar e civil. As ações empreendidas pelo componente militar garantiram, ao final do
ano de 2007, relativa estabilidade e o fim dos grupos organizados que aterrorizavam o
povo. Por outro lado as melhorias das condições de vida - relacionados à saúde,
emprego, saneamento, educação, dentre outros, que dependiam diretamente das doações
prometidas pelas agências e organismos internacionais -, foram tímidas e/ou
praticamente inexistentes, levando, inclusive, uma parte da população, insuflada por
determinados setores da sociedade, que tem interesse na saída da MINUSTAH, a se
questionarem sobre a real necessidade de mais uma intervenção. A esperança começa a
se transformar em desilusão; a euforia dá lugar a frustração.
No final de 2009, porém, o quadro geral é de relativa
tranqüilidade, principalmente com relação à segurança. Os incidentes entre as tropas e
os grupos armados praticamente inexistem e o Haiti parece dar mostras de uma
recuperação que há anos não se via. O povo tem assegurado novamente o seu direito de
ir e vir, as atividades comerciais começam a se normalizar e as instituições do poder
público, dentre elas o judiciário, seriamente afetado durante a crise, retomam
parcialmente suas atividades. Entretanto, como afirmou Lienel Delatour, secretário-
geral da ONG haitiana Centro pela Democracia e pelo Empreendimento Livre, em
reportagem de Maisonnave, de fereveiro de 2006, “aqui é a terra da teoria da
conspiração” (MAISONNAVE, 2006:on-line), ou seja, é a terra onde tudo é possível.
172
As fontes relativas aos artigos/reportagens e entrevistas
veiculadas pela Folha de São Paulo, utilizadas na terceira e última parte de nosso
trabalho apresentam um quadro ainda mais estarrecedor. Nesta documentação, cuja
autoria não está circunscrita aos quadros do jornal, tivemos uma visão mais abrangente
de como as representações haitianas permanecem atravessadas pelo discurso
estigmatizador, com fortes traços racistas e colonialistas, tal qual buscamos demonstrar
na primeira parte deste trabalho. Buscamos evidenciar neste último momento, após
apresentar ao leitor os elementos necessários à compreensão de nossa proposta, bem
como da realidade que pesa sobre o povo haitiano, principalmente sob a intervenção, o
quão impregnados estão os olhares que se voltam para o Haiti e seu povo.
A assertiva de Heleno, (PEREIRA, 2005:14), de que “a
imprensa e os correspondentes estrangeiros, principalmente, estão ali para passar ao
resto do mundo a idéia de desorganização, e eles não transmitem essa idéia, como
exageram para valorizar o seu próprio trabalho”, parece absolutamente correta quando
analisamos as publicações da Folha. É esta a perspectiva que norteia as produções e os
discursos midiáticos acerca do Haiti, deixando transparecer, assim, a permanência de
uma prática discursiva sempre latente, que emerge no calor dos acontecimentos,
sobretudo nos momentos de crise. À imprensa, como afirmou Heleno, interessa não
somente a informação, mas o espetáculo, corroborando nossa perspectiva acerca do
papel desempenhado pela mídia na produção de sentidos e subjetividades que,
perpassando os domínios memorialísticos e historiográficos, acabam conferindo ao
objeto que re-tratam determinadas representações e identidades que, pela ação
performática do discurso, acabam se cristalizando.
A „idéia de desorganização‟ e os exageros, apontados
por Heleno, que acabam caracterizando as produções midiáticas, textuais e imagéticas,
referentes ao Haiti, estão inseridas no que, em outro momento, chamamos de continuum
discursivo, cujas origens, como procuramos demonstrar, podem ser buscadas na
formação do Estado haitiano, ou ainda antes. Esse suporte, que não é exclusivo do Haiti,
mas que emerge de maneira mais evidente, e orienta grande parte das produções
dirigidas à América Latina como um todo, busca se afirmar justamente no excesso, no
extravagante, no extraordinário. Essa afirmação depende, portanto, de uma tensão
173
necessariamente existente entre memória e esquecimento, sempre presentes nesses
discursos, como desvelam nossas fontes.
As descrições e os relatos referentes ao ambiente social
em que se desenvolvem as lides haitianas, lugar das trocas simbólicas, no qual o povo
representa e é representado, evidenciam, antes de tudo, o sentido que se quer dar a esses
discursos. O Haiti, sua história, sua cultura e seu povo estiveram ligados a uma prática
discursiva que buscou representá-los como o oposto assimétrico do ideal colonizador,
sendo relegados, assim, ora a uma não-condição, ou, o que não é menos usual, a um
modelo a ser evitado e, quiçá, combatido.
Porto Príncipe, a capital haitiana, sintetiza, pela maneira
como é representada, as variantes de um discurso que se estrutura a partir de categorias
estigmatizadoras e excludentes. As descrições e os relatos colocam diante dos olhos do
leitor as imagens mais degradantes, nas quais sobressaem, invariavelmente, aspectos
ligados à imundície, à violência, à desordem e ao caos. Situações corriqueiras são
retratadas sob uma ótica que privilegia apenas o que excede, o que choca, o que
conforma. O sentido presente nas atividades que se desenvolvem nesse ambiente acaba
eclipsado por uma lente que não pode ou não quer perceber aquele ambiente dentro de
sua especifidade, de sua historicidade.
A permanência de determinada prática discursiva a que
nos referimos durante todo nosso trabalho, principalmente no que diz respeito ao
ambiente e ao povo haitiano, foram bastante evidenciadas nesta última parte do
trabalho. Abundam os exemplos, apresentados nas citações, em que o olhar do
observador, já contaminado pelo discurso, reproduz o que dele se espera. O texto
atribuído a Guerrit Verschuur, publicado pela Folha de São Paulo, em 17 de janeiro de
2010 foi um ótimo exemplo para que pudéssemos afirmar a presença e a influência
dessa memória discursiva nas produções que se referem ao Haiti. O texto em questão,
produzido no final do século XIX, traz consigo elementos que, ainda hoje, orientam o
direcionamento dado ao assunto. O espaço urbano, as instituições e o povo haitiano são
tragicomicamente representados por Verschuur, tal qual, ainda hoje, o fazem repórteres
e agentes internacionais que se ocupam do Haiti sob a mesma perspectiva,
demonstrando, dentre outras coisas, a similaridade e a continuidade destas propostas.
174
Sob essa ótica o povo haitiano, se deixado a própria sorte,
provavelmente se consumiria. Em afirmações como esta estão presentes os estigmas que
buscam evidenciar a inaptidão e a incapacidade que se lhes atribui. Todas as ações
empreendidas pelo povo haitiano são, desde o seu início, fadadas ao fracasso. O
presidente daquele país, seja Aristide ou Prèval, é representado, via de regra, como
passivo e débil; a PNH, como uma instituição corrupta e violenta; outras instituições,
como o CEP, por exemplo, não teriam capacidade para organizar o que quer que seja; o
povo haitiano, a população civil, surge no discurso como uma turba de bandidos,
ladrões, assassinos e/ou, por outro lado, como tipos fragilizados, como por exemplo,
idosos, mulheres grávidas, aleijados e menores indefesos. Tais representações são
comuns.
Às cenas de violência e miséria somam-se outras tantas
relacionadas, quase sempre, à intenção de atribuir, ao povo haitiano, uma inferioridade e
uma degeneração que em muito se aproximam das propostas Buffon-Depaunianas da
segunda metade do século XVIII. O tempo parece não ser capaz de redimir o povo
haitiano de seu alijamento, pelo contrário. Há, ao que parece, uma mácula de origem,
talvez sua ascendência africana, como teria afirmado o embaixador haitiano George
Samuel Antoine, ou, como parece ser o caso, este seja o preço a pagar pela ousadia de
seus próceres em submeter, à época, as maiores potências do mundo aos seus desígnios.
O sismo do dia 12 de janeiro deixa tudo isso ainda mais
evidente. A destruição causada pelo abalo - que ocorreu num momento em que certa
tranqüilidade parecia reinar no Haiti, o que se refletia, inclusive, no arrefecimento do
tom dos discursos que outrora se mostravam mais exaltados - faz emergir, com força
incomum, a sordidez característica deste discurso. O cenário de morte e destruição, com
milhares de corpos amontoados nas ruas, se decompondo ao relento, contaminando o
ambiente com um odor fétido e macabro, faz com que o Haiti seja retratado,
literalmente, como o “pior buraco do inferno sobre a terra”. Não bastasse todo o
sofrimento causado pela perda dos seus e do pouco que tinham, os haitianos passam a
ser apresentados, uma vez mais, como responsáveis diretos pelo desastre.
Na contramão destes discursos, entretanto, existe uma
outra corrente que, atenta às condicionantes históricas que conduziram o Haiti à atual
situação, busca desconstruir essa imagem caótica e barbarizante que condena o povo a
175
posição marginal. Fugindo daquele aparato discursivo que, alheio às vicissitudes
históricas, busca condená-los como únicos responsáveis por toda sorte de seus
infortúnios, este grupo, por seu turno, busca justificar a penúria em que vive grande
parte da população, pautado em argumentos que se ligam à materialidade resultante das
conturbadas relações com países como E.U.A e França, para quem o Haiti, como
afirmou Celso Amorim, em entrevista concedida à Fernanda Krakovics (2004:on-line),
nunca passou de um problema de segurança, de migração e de narcotráfico.
Nem todo o dinheiro do mundo vai resolver todos os
problemas do Haiti”, disse o chefe da MINUSTAH, Edmond Mulet, em março de 2007,
em reportagem de Raphael Gomide (2007:on-line). Heleno afirmara também que o
problema ali não era militar e que não poderia ser resolvido apenas com homens
armados de fuzis nas ruas. Também partilhamos dessas opiniões, feitas algumas
ressalvas. Parece claro que existe outro problema subjacente, para o qual dinheiro e
armas não constituem a solução. Talvez na citação de Thomaz (2010:on-line), em artigo
publicado pela Folha em 14 de janeiro de 2010, apresentada na última parte de nosso
trabalho, esteja parte da resposta: o mundo dos brancos diz que quer fazer alguma
coisa, mas o que faz, além de nutrir seus telejornais com fotos miseráveis que fazem
alimentar a satisfação autocentrada dos países ditos ocidentais?”.
A MINUSTAH, afora os consideráveis avanços
alcançados no período anterior ao terremoto, conseguidos pelo emprego de um
considerável aparato bélico e ao custo de bilhões de dólares, independente de sua
natureza, imperialista ou solidária, não pôde oferecer uma solução definitiva aos
problemas haitianos. A „imagem negativa‟ que pesa sobre o Haiti no exterior, de que
falavam os empresários locais nos relatórios do Secretário-Geral da ONU em 2009, que
é, em grande medida, a mesma imagem que sobressai nas representações midiáticas, tal
qual procuramos demonstrar em nosso trabalho, impede que qualquer avanço efetivo e
duradouro seja alcançado. O discurso midiático, “que só faz alimentar a satisfação
autocentrada dos países ditos ocidentais”, constitui o arcabouço que sustenta essa visão.
A primeira mudança que se deve operar para que aos
haitianos, parafraseando Scaramal (2006), seja concedida a entrada de forma cabal
à condição humana‟, depende, única e exclusivamente de nós, sendo, antes de tudo, uma
questão de alteridade. O haitiano não é a única fonte do problema, que reside,
176
principalmente, ao que nos parece, na maneira com que uma grande parte de nós
aprendeu a perceber o homem haitiano, se apropriando, acriticamente, de um discurso
que, como afirmamos reiteradas vezes, cumpriu e ainda cumpre muitíssimo bem os
propósitos para os quais fora engendrado.
Esperamos, ao final de nosso trabalho, que os esforços
materializados nessas páginas possam contribuir para que futuras leituras acerca deste
tema sejam feitas, não perdendo de vista a singularidade que, por vezes, imersa numa
historicidade incomum, acaba deixando margem para que um discurso pérfido a
condene. O povo haitiano tenta se reerguer de mais uma tragédia, contando, para isso,
com uma ajuda que, muito embora as repetidas promessas e compromissos, chegou,
quando chegou, de forma pontual. Não estando a ajuda pretendida ao alcance de nossas
mãos, façamos, então, o que nos possibilita o trabalho acadêmico abalizado: desconfiar
de um discurso que, em maior ou menor medida, também nos fez prisioneiros.
177
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São Paulo, Folhaonline, São Paulo, 14 jan. 2010. Mundo. Disponível em: <
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2010.
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2010.
189
TABELA DE REFERÊNCIAS DE DOCUMENTOS DA ONU
Nr
Ordem
Sigla
Ano
Referências
1
S/RES/867
1993
(ONU, 1993:p.)
2
A/55/335
2000
(DIENG, 2000:p.)
3
E/CN.4/2001/106
2001
(ECOSOC, 2001:p.)
4
E/CN.4/2004/108
2004
(ECOSOC, 2004:p.)
5
S/PV.4917
2004
(ONU, 2004:p.)
6
S/RES/1529
2004
(ONU, 2004a:p.)
7
S/RES/1542
2004
(ONU, 2004b:p.)
8
S/2004/143
2004
(ONU, 2004c:p.)
9
S/2004/145
2004
(ONU, 2004d:p.)
10
S/2004/300
2004
(ONU, 2004e:p.)
11
S/2004/908
2004
(ONU, 2004f:p.)
12
E/CN.4/2005/123
2005
(ECOSOC, 2005:p.)
13
S/2005/302
2005
(ONU, 2005:p.)
14
S/2006/592
2006
(ONU, 2006:p.)
15
A/HR/4/3
2007
(JOINET, 2007:p.)
16
S/2008/202
2008
(ONU, 2008:p.)
17
S/2008/586
2008
(ONU, 2008a:p.)
18
A/HRC/11/5
2009
(FORST, 2009:p.)
19
S/2009/175
2009
(ONU, 2009:p.)
20
S/2009/439
2009
(ONU, 2009a:p.)
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