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Bernardo Nascimento de Amorim
A míngua e o excesso:
Mário de Sá-Carneiro, Arthur Rimbaud e o complexo de Ícaro
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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Bernardo Nascimento de Amorim
A míngua e o excesso:
Mário de Sá-Carneiro, Arthur Rimbaud e o complexo de Ícaro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários,
da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, sob a orientação
da professora Silvana Maria Pessôa de
Oliveira, como requisito parcial à obtenção
do título de Doutor em Letras: Literatura
Comparada.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
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Os meus agradecimentos
À professora Silvana Pessôa, orientadora, incentivadora, parceira;
Ao professor Fernando Cabral Martins, pela acolhida e pelas conversas em Portugal;
Aos colegas do Grupo de Estudos de Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea, em
especial, ao Wagner Moreira e ao Rogério Barbosa;
À CAPES, que, além de me assegurar uma bolsa de estudos, durante os anos de trabalho
no Brasil, sustentou-me em Lisboa, dando-me a oportunidade de conhecer de perto a
cultura e a vida literária portuguesas.
À Flávia Memória, mulher solar
Resumo
A tese se propõe como um estudo comparativo das obras do escritor português
Mário de Sá-Carneiro e do francês Arthur Rimbaud. A partir do que se apresenta como
o complexo de Ícaro, cuja referência inicial se busca na mitologia grega, procuro
colocar em diálogo as duas poéticas, na tentativa de fazer com que elas se iluminem
reciprocamente. Tendo como eixo estrutural do trabalho os movimentos fundamentais
da figura mitológica, procedo à exposição, à discussão e à análise de alguns dos traços
comuns entre as duas obras, assim como de algumas das singularidades que diferenciam
cada uma delas.
Abstract
The thesis proposes itself as a comparative study of the works by Portuguese
writer Mario de Sá-Carneiro and French Arthur Rimbaud. From what is presented as the
complex of Icarus, which refers to Greek mythology, I try to put in dialogue the two
poetics, aiming to make them light up each other. Having as structural axis of the work
the mythology figure’s essential movements, I go on the exposition and the analysis of
some similarities between the two poetics, as well as of some peculiarities that
distinguish each of them.
Sumário
Prólogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Capítulo I – O labirinto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
Capitulo II – A ascensão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Capítulo III – A queda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .181
Epílogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256
Un souffle disperse les limites du foyer
Prólogo
*
1. Julio Cortázar, em um pequeno artigo sobre Rimbaud, escrito em torno de
1941, aponta, neste autor, o que chama de “icarismo
1
. Segundo o escritor argentino, no
caso do poeta, este icarismo representaria o desejo de romper com os limites de uma
realidade tida como inaceitável, a que se associaria a vontade de se criar outro mundo,
em que o sujeito, em um movimento de fuga, que é, igualmente, de ascensão, pudesse
se descobrir de forma integral, absoluta.
Cortázar imagina o escritor francês como alguém que faz da poesia o uso para o
qual ela teria sido destinada, como instrumento para uma conquista da liberdade, como
espaço de fuga dos condicionamentos, em particular daqueles relacionados aos limites
lógicos, que a sociedade, especialmente a burguesa, impõe ao sujeito, e, ao mesmo
tempo, como meio de apreensão do incognoscível. De acordo com o autor, o “terrível
caminho” de Rimbaud seria um constante e “reiterado para além”, através do qual se
poderia, “mediante a apreensão poética”, alcançar um “degrau supremo”, em que, ao
sujeito, “confrontando-se com o divino de igual para igual”, seria dada “a contemplação
de si mesmo”
2
.
O mesmo icarismo seria percebido por David Mourão-Ferreira, poeta e crítico
português, na poesia de Sá-Carneiro. Em um artigo publicado na revista Colóquio-
Letras, em edição de 1990, em uma forma adaptada de outro texto anterior, de 1964,
1
CORTÁZAR, 1999, p. 16. (Grifo do autor).
2
CORTÁZAR, 1999, p. 18. Cabe aqui uma observação concernente às notas de rodapé do trabalho. É que,
para diminuir um pouco a quantidade delas, talvez já excessiva, como se verá, quando se trata de uma
frase ou de todo um parágrafo com uma série de citações, do mesmo autor, de trechos localizados, no
original, na mesma página ou em páginas em sequência, apresento apenas uma nota. Assim, aparecerão,
no interior de uma mesma frase, trechos seguidos com uma só nota, o que significa que se encontram, no
original, na mesma página. Os parágrafos com uma nota apenas na última citação seguem a mesma
lógica. Isto, entretanto, será válido apenas para as obras editadas em português, uma vez que as notas dos
originais em francês trazem, além da referência, a sua tradução. Casos excepcionais serão indicados.
Mourão-Ferreira discorre sobre a existência do que chama de um “complexo de Ícaro”
3
,
imaginando, a partir de Gaston Bachelard, uma espécie de “psicologia da
verticalidade”
4
. Nos termos do crítico, a figura de Ícaro seria uma presença inconsciente
na poética de Sá-Carneiro, uma “figura arquetípica”
5
, a partir de cujo mito pulsaria tanto
a aspiração de altura, o desejo de ascensão a um espaço ilimitado, quanto a consciência
de um desenrolar trágico para o fatal movimento, destinado à queda.
Se, no artigo da década de 1960, Mourão-Ferreira, apontando a “ânsia da altura”,
presente na obra do autor português, falava já na repercussão do mito de Ícaro como a
manifestação de um “voo de frustração”
6
, em que se associaria a fuga à iminência de
uma catástrofe, na versão mais recente chamava a atenção para o que diria respeito aos
“motivos de fuga ‘na vertical’, de incessante aspiração de Altura, de consciência (ou
presciência) do trágico desenlace”
7
.
O mito de Ícaro, a partir das leituras de Cortázar e David Mourão-Ferreira, como
se verá, será apresentado, neste trabalho, como um eixo primordial. As peripécias da
personagem da mitologia grega adquirem a sua importância quando se relacionam as
obras dos dois poetas tendo em vista a ideia de complexo, como um “conteúdo de
representações”
8
, constituindo um todo mais ou menos organizado, cuja efetividade se
assenta na carga de afeto e na carga pulsional que o informa. Tal complexo, aqui, seria a
base para a configuração de forças centrais, no seio do sistema poético de cada escritor,
a partir de uma compreensão de sistema como um conjunto de elementos organizado,
um conjunto de ideias solidárias, consideradas em suas relações.
3
MOURÃO-FERREIRA, 1990, p. 204.
4
BACHELARD apud MOURÃO-FERREIRA, 1990, p. 207. (“psychologie de la verticalité”).
5
MOURÃO-FERREIRA, 1990, p. 205.
6
MOURÃO-FERREIRA, 1966, p. 184.
7
MOURÃO-FERREIRA, 1990, p. 205. (Grifo do autor).
8
FREUD apud MIJOLLA, 2005, p. 368.
De acordo com a lenda, Ícaro seria o filho de Dédalo, o qual teria construído,
por ordem do rei Minos, o labirinto onde se encerrara o Minotauro. Depois de um
desentendimento com o rei, pai e filho são presos no labirinto. Dédalo, artífice de
extraordinária habilidade, planejando a fuga, constrói asas, que o filho prende com cera
sobre os ombros. Antes de Ícaro alçar voo, a outra personagem previne-lhe que fixe o
seu curso “numa altura média”
9
. Ele, entretanto, extasiado com a inusitada possibilidade
de voar, despreza os conselhos de prudência, elevando-se cada vez mais alto, cada vez
mais perto do sol, que acaba por derreter a cera das asas, precipitando-o no mar.
No mito, como se vê, apresenta-se um movimento vertical, em que se tem, por
um lado, a ascensão, que é também uma fuga, e por outro, a queda, provocada por um
desmedido anseio de se ir mais além. Manifesta-se, em um arranjo como esse, o que se
pode pensar como a “imagem das ambições desmesuradas do espírito”
10
, sendo Ícaro
uma sorte de símbolo “do intelecto que se tornou insensato”
11
, ou, em outros termos, o
símbolo “do excesso e da temeridade”
12
. A tentativa da personagem mítica estaria
ligada, em um sentido que, entretanto, não deixa de ser moralizante, a uma “forma de
aberração do espírito: a mania das grandezas, a megalomania”
13
.
2. Ao longo do trabalho, alguns autores serão convocados a acrescentar algo a
respeito dos movimentos que, constituindo o mito de Ícaro, refletem-se nas poéticas de
Sá-Carneiro e de Rimbaud. Entre eles, embora não se mencione o termo icarismo,
apontam-se elementos que podem ser associados ao mito. Fala-se no desejo de evasão,
advindo da insatisfação com o mundo real; na procura de uma experiência
extraordinária, tanto do ponto de vista estético como do vital; na identificação entre a
descoberta de novas vivências, sensoriais, estéticas, e a multiplicação, a ampliação dos
9
CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p. 498.
10
CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p. 499.
11
DIES apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p. 499.
12
CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p. 499.
13
DIES apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 1988, p. 499.
sentidos; na tensão entre uma força que impulsiona o movimento de ascensão e outra a
exercer pressão em sentido contrário.
No que diz respeito à obra de Sá-Carneiro, em um estudo de 1960, Maria da
Graça Carpinteiro chamava a atenção para a “ânsia de impossível”
14
, ou para a
“obsessão dum infinito irrealizável”
15
, que perpassariam toda a escrita do autor. A
“necessidade de vencer limites, de alargar (...) possibilidades demasiado estreitas”
remeteria ao desejo de viver uma forma de “aventura ultra-humana”
16
. Nas narrativas do
escritor, surgiriam personagens cuja condição anormal os deixaria mais próximos de um
“contato com o enigma da existência”
17
. Envolvidas em um “halo de loucura”,
“procurando caminhos de evasão”
18
, seriam estas as figuras a quem seria dada a
oportunidade de vislumbrar “uma porta sobre o Além”
19
.
A autora não deixa de mencionar, no sentido de certa dinâmica que envolveria
os movimentos da ascensão e da queda, o que seriam duas faces da arte de Sá-Carneiro,
uma delas, ascendente, a que se ligariam “a libertação, a fuga, a desintegração dos dados
dos sentidos”, a outra, descendente, em que se “faz baixar ao concreto aquilo que
pertence ao domínio da alma, do abstrato”
20
. Para Carpinteiro, no “salto atrevido”, que
configura o desejado objetivo do poeta, reflete-se “o delírio de atingir uma essência
entrevista numa nesga de céu libertador”, uma essência, entretanto, só “parcialmente
atingida por tentativas [sempre] incompletas”
21
.
Em um ensaio de 1963, Maria Aliete Galhoz aponta para certa “potência de
grandiosidade”, manifesta na obra de Sá-Carneiro, o qual, segundo a autora, aproxima-
14
CARPINTEIRO, 1960, p. 10.
15
CARPINTEIRO, 1960, p. 51.
16
CARPINTEIRO, 1960, p. 10.
17
CARPINTEIRO, 1960, p. 23.
18
CARPINTEIRO, 1960, p. 12.
19
CARPINTEIRO, 1960, p. 14.
20
CARPINTEIRO, 1960, p. 71.
21
CARPINTEIRO, 1960, p. 92.
se “dos exploradores dos infernos e dos êxtases”
22
, atraído por “um vórtice cuja rotação
espiralada tem o sinal do infinito”, mas que é “abissal e marcado da queda”
23
.
Destacando a sua palavra “megalômana”
24
, uma “sensibilidade egocêntrica”, embora
“dilatada”
25
, Galhoz indica a necessidade do poeta de afastar “toda a banalidade que se
assegura mediana e feliz”
26
. Nos termos da autora, Sá-Carneiro teria feito, em meio à
busca de um “gigantismo” sem “enquadramento exato”, a tradução poética de uma
“iluminação pressentida”, mas “inexoravelmente travada de inviabilidade”
27
.
É o crítico alemão Dieter Woll quem publica, em 1968, um dos mais citados
trabalhos sobre a obra do autor português. Em Realidade e idealidade na lírica de Sá-
Carneiro, indica-se a postura do poeta diante do mundo real como marcada por uma
forte negatividade, que informaria o desdém pela vida cotidiana, “posta em confronto
com uma forma de existência artística sublimada”
28
. A obra do escritor, a partir desta
insatisfação com o real, seria guiada pela “procura de uma ‘idealidade’ própria”,
tomando-se, por idealidade, neste caso, conforme uma terminologia retirada de Hugo
Friedrich, “o conjunto daquilo que está na mente do poeta como ideal”
29
. Diante de uma
realidade exterior à qual não se atribuiria qualquer valor, o artista buscaria, como “única
forma de existência digna de ser vivida”, a “evasão para o mundo ideal da arte”
30
, onde
se encontraria o “substituto para uma vivência perfeita que é negada ao homem (...),
porque o homem está preso aos limites da realidade”
31
.
No confronto entre o real e o ideal, surgiria o impulso para uma espécie de salto,
em direção a uma esfera totalmente diferente do universo que se conhece, diferente e
22
GALHOZ, 1963, p. 101.
23
GALHOZ, 1963, p. 102.
24
GALHOZ, 1963, p. 111.
25
GALHOZ, 1963, p. 122.
26
GALHOZ, 1963, p. 111.
27
GALHOZ, 1963, p. 122.
28
WOLL, 1968, p. 54.
29
WOLL, 1968, p. 12. (Grifo do autor).
30
WOLL, 1968, p. 24-25.
31
WOLL, 1968, p. 196.
que estaria para além do espaço e do tempo. A este movimento se associaria o que o
crítico alemão chama de um motivo central da poética de Sá-Carneiro, “o motivo do
voo de grandes alturas”, o qual teria lugar quando o poeta se imagina, como “uma ave
soberba”, a se elevar “nas alturas do céu”
32
.
Woll fala em certa “ânsia de subir”
33
, que caracterizaria alguns dos poemas do
autor, nos quais se veria o desejo de “transpor os limites da experiência humana normal
e de atingir um estado psíquico que torne possível uma experiência supra-real”
34
. A esta
se associaria a loucura, uma espécie de “sintoma do estado de espírito supra-real”
35
, o
qual se identifica, por sua vez, à própria dispersão, uma “vivência de embriaguez”
36
, em
que “o ‘eu’ do poeta espalha-se para além de todos os limites”
37
.
Como traço inerente à obra de Sá-Carneiro, marcava-se, ainda, no estudo do
crítico alemão, a oposição entre “um ideal artístico excessivamente elevado” e certas
“insuficiências”, certo “desânimo”
38
, em um arranjo no qual, “à ânsia entusiástica de
atingir o ideal”
39
, à “ânsia de absoluto”
40
, seria oposta “a insuficiência do homem e do
poeta”
41
. Apontava-se, aqui, a existência de dois extremos. Por um lado, tem-se “a
esperança arrebatadora de atingir um mundo ideal”, por outro, “a rápida desilusão
desoladora”
42
. A esta se ligaria, segundo Woll, o único sentimento sincero presente na
obra do autor português, a autocompaixão, que surgiria “sempre que fracassa o esforço
ideal do poeta”
43
.
32
WOLL, 1968, p. 137.
33
WOLL, 1968, p. 88.
34
WOLL, 1968, p. 100.
35
WOLL, 1968, p. 102.
36
WOLL, 1968, p. 203.
37
WOLL, 1968, p. 105.
38
WOLL, 1968, p. 25.
39
WOLL, 1968, p. 50.
40
WOLL, 1968, p. 196.
41
WOLL, 1968, p. 50.
42
WOLL, 1968, p. 140-141.
43
WOLL, 1968, p. 123.
Já na década de 1990, Fernando Cabral Martins destacaria o papel da ampliação,
na obra do poeta português, caracterizando-a como “ampliação das sensações da
realidade”, o que se daria através “da imaginação, do delírio ou da ultra-sensação”
44
, em
uma articulação entre “desejo, sonho e impossibilidade”
45
. José Carlos Seabra Pereira,
por sua vez, em um artigo publicado na revista Colóquio-Letras, no último ano do
decênio anterior, falaria em como a obra de Sá-Carneiro seria tocada por uma
“inquietação espiritual”
46
, que faria o poeta se voltar para a exploração “do universo
psíquico” e para a busca de certa “transcendência espiritual”
47
. Na perspectiva de
Seabra Pereira, o poeta seria o sujeito “convicto de uma grandeza singular”, de uma
“vocação” e de “potencialidades extraordinárias”, que se ligariam à ideia de uma
“sagração para a atividade artística”
48
. Tais convicções, entretanto, teriam, como
contrapartida, na dinâmica das tensões próprias à obra do poeta, a constatação de um
“malogro”, o “reconhecimento raso do fracasso”
49
.
No que concerne à poética de Rimbaud, começo por lembrar um texto de Henry
Miller, escrito por volta da primeira metade da década de 1950, em que o autor associa a
figura do escritor francês às de outros poetas do século dezenove, que ele chama de
“figuras demoníacas”
50
, “os espíritos livres, que são os atormentados”
51
,
individualidades “imbuídas de uma paixão que as ultrapassa”
52
, assim como das
preocupações com “a expansão da consciência” e com a “criação de novos valores
morais”
53
. Rimbaud, visto como “o sonhador, o louco inspirado”
54
, sempre insatisfeito,
44
MARTINS, 1994, p. 171.
45
MARTINS, 1994, p. 170.
46
PEREIRA, 1990, p. 171.
47
PEREIRA, 1990, p. 172.
48
PEREIRA, 1990, p. 173.
49
PEREIRA, 1990, p. 174.
50
MILLER, 1983, p. 78.
51
MILLER, 1983, p. 79.
52
MILLER, 1983, p. 80.
53
MILLER, 1983, p. 78.
54
MILLER, 1983, p. 7.
andando “atrás do impossível”
55
, seria pensado como um sujeito marcado por uma sorte
de “fome insaciável”, que o faria impor a si mesmo “tarefas sobre-humanas”, aquelas
em que “o alvo está sempre mais além”
56
.
Na linguagem metafórica que caracteriza muitos dos passos de seu texto, Miller
associa o poeta, ser “condicionado ao êxtase”
57
, desejoso de “ultrapassar a si mesmo, e
com asas de ouro”
58
, a “um deslumbrante pássaro desconhecido”, o qual se libertaria,
apenas, “para fazer um vôo de imolação até o sol”
59
. A partir de sua ânsia por “se
realizar integralmente”
60
, a que se conjugaria um “orgulho (...) desmedido”
61
, Rimbaud
seria marcado por um destino que lhe teria dado asas, mas para que ele ficasse
“acorrentado ao solo”, como o pássaro que, “quanto mais bate as asas, mais se sente
aprisionado à terra”, ou como aquele que “se retesa como se quisesse alcançar as
estrelas mais distantes, só para se ver chafurdando na lama”
62
. O genial poeta teria
pedido “mais que qualquer humano já ousou”, mas recebido, por contraste,
“infinitamente menos do que merecia”
63
.
Jean-Pierre Richard, por sua vez, fala em uma sorte de “ascese liberadora”
64
,
assim como em um “saltar no desconhecido
65
, especificamente, no capítulo de Poésie
et profondeur que dedica ao poeta francês, em 1955. Como um dos principais objetivos
do escritor, aponta-se o desejo de vivenciar um “pleno desprendimento”
66
, estado que se
estabelece como condição para que o sujeito possa se transformar continuamente,
55
MILLER, 1983, p. 53.
56
MILLER, 1983, p. 23.
57
MILLER, 1983, p. 54.
58
MILLER, 1983, p. 55.
59
MILLER, 1983, p. 54.
60
MILLER, 1983, p. 61.
61
MILLER, 1983, p. 77.
62
MILLER, 1983, p. 92.
63
MILLER, 1983, p. 105.
64
RICHARD, 1955, p. 195. (“ascèse délivrante”).
65
RICHARD, 1955, p. 223. (“bondir dans l’inconnu”). (Grifo do autor).
66
O autor identifica este desprendimento a uma “inquietante liberdade”: “le plein dégagement, c’est-à-
dire l’inquiétant liberté” (R
ICHARD, 1955, p. 197).
amplificando-se, como se tornado uma espécie de “universo em expansão”
67
. Tal
deslocamento, o qual se relaciona à insurreição contra toda a ordem preexistente, em
nome de uma renovação que se quer total, é apontado como o que situaria “a existência
no movimento de uma ascensão vertical”
68
, capaz de levar o poeta a alcançar outro
mundo. Identificada à transfiguração, seria esta forma de ascensão o que conduziria o
sujeito, em meio a um processo que implicaria a sua fusão com os objetos, a uma nova
harmonia, a um novo sentido “da globalidade das coisas”
69
.
Em seu estudo, Richard não deixa de apontar, entretanto, a direção da queda, que
seria um dos movimentos fundamentais, na poesia de Rimbaud. Após o êxtase da
ascensão ao desconhecido, que revestiria “a forma de uma expansão ascensional”, na
“linha de uma verticalidade”, em direção a um “estado de culminação gloriosa”, a uma
“elevação do ser”
70
, sobreviria, inevitável, “a catástrofe”
71
, vivenciada no contato com
uma força que, “vinda do alto, dirigida para baixo”
72
, desempenharia a função “de
humilhar o salto do homem”
73
. Tal força, segundo Richard, seria associada ao próprio
céu, configurado como o que aniquilaria “todas as tentativas humanas de edificar o novo
mundo”
74
.
Outro autor importante, Hugo Friedrich, cujo livro Estrutura da lírica moderna
data de 1956, encontra, na poesia de Rimbaud, “forças análogas ao êxtase religioso”
75
, a
que se associa a impulsão do sujeito a uma espécie de “beatitude supraterrena”
76
. Como
67
RICHARD, 1955, p. 195. (“univers en extension”).
68
RICHARD, 1955, p. 197, p. 210. (“l’existence dans le mouvement d’une ascension verticale”).
69
RICHARD, 1955, p. 218. (“de la globalité des choses”).
70
Eis o trecho de Richard: “Initialement, (...) la création rimbaldienne revêt la forme d’un jet
ascensionnel; elle se propose de vivifier la ligne d’une verticalité, et d’atteindre à un certain état de
culmination glorieuse. Tout y commence par un soulèvement d’être” (R
ICHARD, 1955, p. 226).
71
RICHARD, 1955, p. 227. (“la catastrophe”).
72
RICHARD, 1955, p. 227. (“venue du haut, dirigée vers le bas”).
73
RICHARD, 1955, p. 227. (“d’humilier le bondissement humain”).
74
RICHARD, 1955, p. 229. (“toutes les tentatives humaines pour édifier ce nouveau monde”).
75
FRIEDRICH, 1991, p. 61.
76
FRIEDRICH, 1991, p. 61.
objetivo do poeta, aponta-se o desejo de “chegar ao desconhecido
77
, uma vontade que
se traduz como “uma excitação que impele a amplidões imaginárias”
78
. Tal amplidão,
entretanto, seria, ao mesmo tempo, altura, revestida “de uma exuberância impalpável”, e
“abismo da derrota”
79
. Nas palavras de Friedrich, quando, no movimento de ascensão,
descortina-se a “inacessibilidade do desconhecido
80
, “a amplidão não mais eleva e sim
destrói”
81
.
O autor alemão chega a distinguir, com clareza, os três atos que constituiriam “a
tessitura da ação (...) de toda a poesia de Rimbaud”
82
. O primeiro deles seria o que se
orienta pela “repulsa” e pela “revolta”
83
, que se observam no ataque “contra a tradição
em geral, contra a beleza”, e em uma “tendência à deformação”
84
, a qual faria com que
as estruturas convencionais do mundo fossem demolidas. O segundo se manifestaria
como uma “evasão das ordens reais”
85
, como uma “fuga para o superdimensional”
86
,
através do que se vislumbrariam os “espaços dilatados, turbulentos”
87
, em que se
dissolvem limites, “mediante a irrupção de amplidões borrascosas”
88
. O terceiro, por
fim, seria identificado como um “mergulho na tranquilidade do aniquilamento”
89
, o qual
encerraria uma “dinâmica destrutiva”
90
, como em um “naufrágio no infinito”
91
. No seio
de uma relação “tanto com a realidade como com a transcendência”
92
, os três
77
FRIEDRICH, 1991, p. 62. (Grifo do autor).
78
FRIEDRICH, 1991, p. 71.
79
FRIEDRICH, 1991, p. 71.
80
FRIEDRICH, 1991, p. 76. (Grifo do autor).
81
FRIEDRICH, 1991, p. 72.
82
FRIEDRICH, 1991, p. 75.
83
FRIEDRICH, 1991, p. 75.
84
FRIEDRICH, 1991, p. 65.
85
FRIEDRICH, 1991, p. 87.
86
FRIEDRICH, 1991, p. 75.
87
FRIEDRICH, 1991, p. 73.
88
FRIEDRICH, 1991, p. 72.
89
FRIEDRICH, 1991, p. 75.
90
FRIEDRICH, 1991, p. 80.
91
Nas palavras do autor, comentando o final de “Le bateau ivre”, trata-se da “tranquilidade do não poder
mais, do naufrágio no infinito, como também da inaptidão para o que é limitado” (FRIEDRICH, 1991, p.
74).
92
FRIEDRICH, 1991, p. 75.
movimentos poderiam ser resumidos, de outro modo, ainda segundo Friedrich, como
“deformação da realidade, ímpeto à amplidão” e “final na ruína”
93
.
Suzanne Bernard, mais concentrada em um movimento ascensional do que em
seu contrário, afirmava, em um ensaio de 1959, a relação entre a busca por uma “nova
fórmula poética”
94
e a “procura do desconhecido”
95
, a qual faria, da poesia do escritor
francês, em particular, e da lírica moderna, como um todo,“mais do que uma forma
artística, uma experiência metafísica”
96
. Salienta-se, neste caso, a função vital que a
criação poética teria para Rimbaud, o qual tomaria a invenção literária como um novo
caminho para o conhecimento, através do que se tornaria possível a abertura a “estados
que transgridem as leis humanas”
97
.
O método do vidente, segundo Bernard, configurado como ato mágico e criador,
permitiria ao poeta “se elevar ao desconhecido”
98
, abrindo as portas que dariam acesso a
“um mundo misterioso e inefável”
99
. Na estrutura de cada poema, recusando o
fechamento, “não só as leis artísticas comumente aceitas”
100
, mas a “simples
coerência”
101
, o escritor daria forma a uma tendência para o ilimitado. Esta, ecoando
tanto no plano técnico quanto no existencial, implicaria “a abolição dos grandes
princípios de identidade e de não contradição”
102
, que acabaria por livrar o espírito,
assim como a arte, das limitações que o real impõe.
Georges Poulet, em texto mais recente, do início da década de 1980, fala em
Rimbaud como um “especialista da evasão
103
, um sujeito que não teria procurado
93
FRIEDRICH, 1991, p. 73.
94
BERNARD, 1959, p. 151. (“nouvelle formule poétique”).
95
BERNARD, 1959, p. 151. (“recherche d’inconnu”).
96
BERNARD, 1959, p. 151. (“plus qu’une forme artistique, une tentative métaphysique”).
97
BERNARD, 1959, p. 156. (“états qui transgressent les lois humaines”).
98
BERNARD, 1959, p. 157. (“s’élever à l’inconnu”).
99
BERNARD, 1959, p. 181. (“un monde mystérieux et ineffable”).
100
BERNARD, 1959, p. 177. (“non seulement des lois artistiques communément admises”).
101
BERNARD, 1959, p. 177. (“simple cohérence”).
102
BERNARD, 1959, p. 181. (“l’abolition des grandes principes d’identité et de non-contradiction”).
103
POULET, 1980, p. 144. (“spécialiste de l’évasion”).
outra coisa senão se evadir da realidade, de acordo com “um desejo infinito de
liberdade”
104
. Em sentido amplo, o poeta buscaria a libertação do ser, a qual só poderia
ser conquistada através do uso de uma “violência extrema”
105
, que implicaria uma ação
criadora de caráter destrutivo, origem possível de um “estado de liberdade positiva, de
liberdade livre
106
.
Poulet salienta a recorrência, na obra de Rimbaud, da ideia do despertar, que se
identificaria a uma forma de “surgimento do ser”
107
, em que o sujeito como que se
liberta “de um fundo tenebroso, de um tipo de morte anterior, a partir do qual se eleva
bruscamente”
108
. Ressaltando a importância do sentido da transformação, nesta poética,
o autor fala em uma poesia marcada pelo “sobressalto”
109
, o qual se relacionaria à
procura do poeta por experimentar, continuamente, a destruição e a renovação das
estruturas tanto do sujeito quanto do mundo conhecido. Neste caso, destaca-se, também,
a relevância do salto, como figura emblemática do “despertar do ser”
110
, do “livre
impulso de um pensamento criador que transforma o mundo e que transforma a si
mesmo”
111
.
Já no início do novo século, mais precisamente, em 2004, o ensaio de Matthieu
Letourneux, intitulado “L’ouvre dévorante”, reforça o caráter de uma poesia que se
recusa a ser estática, ressaltando o valor da errância, como elemento essencial de “uma
obra em movimento”
112
, assim como a importância do “trabalho de destruição [que]
104
POULET, 1980, p. 144. (“désir infini de liberté”).
105
POULET, 1980, p. 140. (“extrême violence”).
106
POULET, 1980, p. 141. Com o grifo se marca, segundo Poulet, uma expressão do próprio Rimbaud, em
uma de suas cartas. (“état de liberté positive, de liberté libre”).
107
POULET, 1980, p. 89. (“surgissement de l’être”).
108
POULET, 1980, p. 90. (“d’un fond ténébreux, d’une sorte de mort antérieure, à partir de laquelle il
s’élève brusquement”).
109
Poulet associa a destruição e o sobressalto: “Le propre de la destruction est de produire un trou, un
arrêt et, à l’instant de cet arrêt, un sursaut, une reprise de vie” (POULET, 1980, p. 139).
110
POULET, 1980, p. 165. (“l’éveil de l’être”).
111
POULET, 1980, p. 165. (“le libre élan d’une pensée créatrice qui transforme le monde et qui se
transforme elle-même”).
112
LETOURNEUX, 2004, p. 69. (“oeuvre en mouvement”).
acompanha a ideia de criação poética”
113
, e o sentido do desregramento, como “recusa
da medida”
114
. Ao mesmo tempo, o autor chama a atenção para o movimento do
aniquilamento, entendido como “dinâmica que faz com que a visão vertiginosa não
possa terminar senão no desaparecimento ou na dissipação”
115
, do mesmo modo como o
sujeito, “sob a pressão das imagens”
116
, desmembra-se ou se despedaça.
Seria interessante mencionar, ainda, antes de passar ao próximo ponto deste
breve prólogo, um último autor, o qual, não se dedicando, em particular, às obras de Sá-
Carneiro ou de Rimbaud, fornece conceitos que dizem respeito aos movimentos
focalizados no trabalho. Em O arco e a lira, Octavio Paz afirma que “poesia e religião
brotam da mesma fonte”, não sendo “possível dissociar o poema de sua pretensão de
transformar o homem, sem o perigo de convertê-lo numa forma inofensiva de
literatura”
117
.
A partir de uma concepção como esta, o autor descreve o que chama de um
“salto brusco”
118
, em termos como os que alguns dos estudiosos acima mencionados
também utilizaram. Trata-se, aqui, do processo através do qual, impelidos por uma
“insuficiência original”
119
e tocados por uma fascinação “de vertigem
120
, os homens
“afundam-se ou se elevam verticalmente, sem que nada os detenha”
121
, em direção “do
desconhecido e do incomensurável”
122
. Imaginando a condição original do homem
como “a possibilidade de uma conquista”
123
, Paz acabaria por definir o ser humano, não
113
LETOURNEUX, 2004, p. 98. (“travail de destruction [qui] va de pair avec l’idée de création poétique”).
114
O autor afirma: “Le dérèglement des sens est en effet un refus de la mesure” (LETOURNEUX, 2004, p.
76).
115
LETOURNEUX, 2004, p. 85. (“dynamique qui veut que la vision vertigineuse ne puisse que s’achever
dans l’engloutissement ou l’évanouissement”).
116
LETOURNEUX, 2004, p. 78. (“sous la pression des images”).
117
PAZ, 1982, p. 142.
118
PAZ, 1982, p. 146.
119
PAZ, 1982, p. 177.
120
PAZ, 1982, p. 157.
121
PAZ, 1982, p. 151.
122
PAZ, 1982, p. 171.
123
PAZ, 1982, p. 188.
por acaso, tal como muitas vezes se apresenta o sujeito, nas obras de Sá-Carneiro e de
Rimbaud, como “uma perpétua possibilidade de queda ou salvação”
124
.
3. O trabalho que se lerá a seguir foi organizado em três capítulos, que
correspondem aos três diferentes momentos que poderiam ligar o mito de Ícaro às
poéticas de Sá-Carneiro e de Rimbaud. No primeiro capítulo, intitulado “O labirinto”,
trata-se do momento em que a figura mítica estaria presa à espécie de prisão em cujos
contornos ela se situa. A esta situação diria respeito a visão de mundo dos autores, ao
modo como eles concebem a sua relação com a realidade, em que, como se verá,
sentem-se, frequentemente, limitados, como se a este espaço não pertencessem.
Os momentos seguintes dizem respeito aos dois movimentos do mito. No
segundo capítulo, trata-se da ascensão, do modo como, nas obras dos dois autores,
imagina-se ou figura-se o movimento ascensional, correspondente, no mito, ao voo de
Ícaro. No terceiro, o foco recai sobre o movimento em sentido contrário, aquele em que
a personagem mítica encontra o seu destino trágico, a queda, a qual, nas obras poéticas,
como se observará, assume diferentes formas.
Em cada capítulo, haverá uma divisão sistematizada, numerada, a estabelecer
cinco repartições: em um primeiro momento, introduz-se, brevemente, o problema de
que se irá tratar; no segundo, abordo o mesmo problema, especificamente, na obra de
Sá-Carneiro; no terceiro, o foco passa a ser a obra de Rimbaud; no quatro, determinam-
se as semelhanças entre as duas poéticas, no que diz respeito ao tema do capítulo; por
fim, no quinto, são as diferenças o principal objeto de interesse.
Será possível notar, em cada capítulo, uma falta de simetria entre as partes
dedicadas, exclusivamente, às obras de um e de outro autor. No primeiro, em que se fala
do labirinto, a sessão em que se trata da poética de Rimbaud é consideravelmente mais
124
PAZ, 1982, p. 178.
extensa do que a destinada à de Sá-Carneiro. No segundo capítulo, a proporção se
mantém mais ou menos equilibrada. No terceiro, é a obra do escritor português que
ocupa mais espaço. Isso, como se verá, não acontece sem razão. O caso é que, mais
voltada para o mundo exterior, mais interessada em seus movimentos concretos, a obra
de Rimbaud fornece mais elementos para uma tomada de posição do poeta diante da
realidade, enquanto a do outro autor se expande em um ambiente marcadamente
introspectivo. Em contrapartida, é na obra deste último que, com mais clareza e
recorrência, figuram-se os movimentos que se podem associar à queda.
Ao longo dos capítulos dedicados a cada autor, a análise dos textos procura
obedecer à ordem cronológica de sua composição. No que diz respeito à obra de Sá-
Carneiro, o ponto de partida costumam ser os poemas que o escritor redigiu ainda bem
jovem, entre 1903 e 1911. Trata-se de textos publicados, pela primeira vez, em 1986, a
partir de um caderno manuscrito do autor, e de outros editados, inicialmente, em jornais
e revistas, como Azulejos e Acto I, entre 1908 e 1911. Na sequência, o mais comum é
que eu comente os textos de Princípio, lançado em 1912, antes de passar às análises das
composições de Dispersão, de 1913, das narrativas de Céu em fogo, publicadas em
1915, dos poemas de Indícios de ouro, escritos entre 1913 e 1915, e daqueles que
entraram para a história da literatura portuguesa, pelas mãos de Fernando Pessoa, como
os Últimos poemas
125
, todos de 1916.
Aqui e ali, entretanto, como se perceberá, o esquema esboçado acaba por não ser
cumprido rigorosamente. É o que acontece, por exemplo, quando deixo de abordar os
primeiros poemas, no segundo capítulo do trabalho, em que também não aparecem os
125
É Fernando Cabral Martins quem informa sobre a organização dos textos: “Esta série de poemas é
publicada por Pessoa na Athena 2 em Novembro de 1924, (...) sob o título completo de Os Últimos
Poemas de Mário de Sá-Carneiro. Uma introdução, que começa com a frase ‘Morre jovem o que os
Deuses amam’, cria um efeito de personagem que sustenta um acto dramático. A série de quatro sonetos,
numa gradação de estranheza e de violência, culminando com as quadras a que dá o título de Fim, é um
dos procedimentos editoriais que Pessoa usa com maior eficácia” (In: S
Á-CARNEIRO, 2005, p. 259).
últimos. No primeiro capítulo, extrapolando este conjunto inicial de textos, julgo
pertinente fazer um comentário sobre Amizade, composição dramatúrgica escrita em
colaboração com Tomás Cabreira Júnior, entre 1909 e 1910. A outra peça, Alma, de
1913, composta em parceria com Antônio Ponce de Leão, contudo, não faz parte do
trabalho. Quanto à narrativa A confissão de Lúcio, igualmente de 1913, o comentário
apenas se estende no segundo capítulo, em que abordo uma cena, em específico. Na
mesma parte aparece, também, pela primeira e última vez, o poema “Manucure”, de
1915. Já as cartas, sobretudo aquelas que o poeta dirigiu a Fernando Pessoa, perpassam
todo o trabalho, nos momentos em que acredito acrescentarem elementos relevantes
para o seu desenvolvimento.
Em se tratando da obra de Rimbaud, o esquema cronológico permanece como
diretriz principal. A tendência é que os comentários e análises sejam iniciados com os
textos do que se convencionou chamar “Les cahiers de Douai”, entre os quais se
encontram “Sensation”, “Ophélie”, “Le Forgeron” e “Ma bohème”, além de outros,
escritos até 1870. Em seguida, o que se apresenta costumam ser as cartas ditas do
vidente, as quais procuro aproximar de poemas como “Les poètes de sept ans”,
“Voyelles” e “Le bateau ivre”, incluídos entre os textos compostos no intervalo de 1870
a 1871. Em uma linha de continuidade, o que vem depois são os poemas de 1872,
algumas vezes editados como “Derniers vers”, “Vers nouveaux” ou “Vers nouveaux et
chansons”.
Às últimas composições em verso do escritor francês, seguem-se os textos
escritos em prosa, os de Une saison en enfer, único livro publicado em vida pelo autor,
em 1873, e os de Illuminations, os quais, apesar de terem sido, durante algum tempo,
considerados anteriores aos do livro editado, têm sido associados, presentemente, aos
anos de 1873 até 1875. O conjunto dos textos abordados inclui o que mais comumente
figura nas obras completas do autor, ficando de fora algumas composições anteriores às
reunidas em “Les cahiers de Douai”, outras que permaneceram incompletas, como “Les
déserts de l’amour” e “Proses en marge de l’Evangelie”, e os poemas do Album zutique,
de caráter, sobretudo, paródico, redigidos quando o poeta frequentava uma roda literária
parisiense, em companhia de Paul Verlaine.
Quanto ao trabalho com a obra de Rimbaud, é preciso acrescentar uma nota
sobre as traduções. Para as composições em prosa, optei por utilizar, na maior parte das
vezes, as versões de Lêdo Ivo, de uma edição de 1982, que contém Uma temporada no
inferno e Iluminações. Trata-se da versão mais literal, recusada por Mário Cesariny, que
considerava este, com Novalis, um estilo menor de tradução, por exigir “muito saber”,
mas “um talento puramente descritivo”
126
.
Em alguns momentos, é, justamente, a tradução portuguesa de Cesariny a que
prefiro, uma reedição de 2007 de uma primeira versão de 1989. Na edição do poeta,
Illuminations continua sendo Iluminações, mas Une saison en enfer adquire o curioso
título de Uma cerveja no inferno, o qual se entende, apenas, a partir de uma nota do
autor à tradução de um poema contido na segunda parte de “Alchimie du verbe”, em
que se diz ser “saison” a “cerveja à moda de Charleville”
127
.
Em algumas poucas passagens, recorro, em se tratando, ainda, dos textos em
prosa, às versões de Maria Gabriela Llansol, publicadas em 1988, e às de Ivo Barroso,
cuja primeira edição é do mesmo ano. É este último, por outro lado, quem se apresenta
como o tradutor mais utilizado quando se trata dos poemas em verso, encontrados em
sua edição definitiva da Poesia completa, de 1995. Quanto às cartas, encontrei tradução
apenas para aquela que Rimbaud remeteu a George Izambard, seu professor no colégio,
em Charleville. O texto é de Alexandre Ribondi, e aparece em A correspondência de
126
NOVALIS apud CESARINY, 2007, p. 194.
127
In: RIMBAUD, 2007, p. 191.
Arthur Rimbaud, edição de 1983, de uma coleção sugestivamente intitulada “Rebeldes e
malditos”.
Ficam restando, além da outra das cartas ditas do vidente, alguns pequenos
trechos, sobretudo de poemas, que eu mesmo me encarrego de traduzir, sempre que
possível, consultando as versões disponíveis. Dos poemas, o que justifica a minha
tradução, em muitos casos, é o interesse em manter o sentido literal do verso, o qual,
muitas vezes, os tradutores, em especial, Ivo Barroso, sacrificam em nome das rimas e
tendo em vista o sentido geral das estrofes. Quanto aos ensaios dos comentaristas
franceses, os quais não possuem tradução para o português, eu mesmo fico responsável
pela versão, que aparece, como se viu acima, no corpo do texto, e não no pé da página,
ao contrário do que acontecerá com os trechos das obras literárias.
Capítulo I
O labirinto
*
1. Em Sá-Carneiro e Rimbaud, as relações entre o mundo, com seus habitantes e
costumes, que caracterizam uma sociedade, e o poeta, manifestam-se em vários
momentos, de distintas formas. O autor português faz da figura do artista o sujeito mais
recorrente nas suas narrativas, em que o mundo real é, frequentemente, rejeitado em
nome de um universo de fantasia. Do mesmo modo, é um artista o sujeito que fala em
grande parte dos poemas, nos quais se vê a tensão entre o poeta e o mundo exterior. O
francês, em muitos dos textos em versos, é contundente nos ataques à sociedade de sua
época, engajando-se, inclusive, de certo modo, politicamente. Nos poemas em prosa, é a
vivência do conflito com os condicionamentos do mundo o que torna inevitável a
transformação do sujeito.
Para falar de como se constitui uma determinada visão de mundo, nas obras dos
dois autores, é interessante observar como ali se estabelecem as relações entre o poeta,
como um sujeito mais ou menos bem caracterizado, e o espaço que lhe é externo, o
mundo ou a sociedade. Em um conjunto de representações que se implicam
mutuamente, é destes elementos que surge a sustentação, em uma relação dialética, para
o impulso de ascensão que tem lugar central em ambas as poéticas.
2. Em Sá-Carneiro, há diferentes momentos no tocante ao modo como se
estabelecem as tensões entre o sujeito e o mundo exterior, os quais acompanham o que
se pode imaginar como fases da obra. De modo geral, entretanto, é possível afirmar que,
na maior parte das composições do autor, o mundo se apresenta como um terreno de
cinzenta realidade. Trata-se de um lugar onde se experimenta grande insatisfação, onde
o sujeito se sente como um exilado, um estranho, vindo de outro espaço, ou indo para
outro espaço. Não raro, o mundo se constitui como um objeto de náuseas. O termo se
reveste de um sinal negativo, muitas vezes, a partir das ressonâncias de uma separação
entre mundano e espiritual, entre o baixo e o alto, entre o corpo e a alma.
Em parte significativa da obra do autor, manifesta-se a ideia do homem como
constituído por uma dualidade, concepção que, entre outros, Victor Hugo, em seu
prefácio ao Cromwell, atribuía ao cristianismo. Para o poeta francês, a este caberia a
conformação do homem como um ser, ao mesmo tempo, perecível e imortal, carnal e
etéreo, por um lado, “curvado para a terra”, “prisioneiro dos apetites, necessidades e
paixões”, por outro, lançado para o céu, “levado pelas asas do entusiasmo e da
fantasia”
128
.
Entre os primeiros poemas de Sá-Carneiro, os versos escritos entre 1903 e 1913,
muitas composições têm como tema o sentimento amoroso. Embora haja textos que
parodiam as convenções, a maioria se enquadra dentro da mais tradicional lírica
amorosa. Nela, o sujeito, rejeitado pela formosa amada, deseja a morte, por não ver
mais sentido na vida, ou, diante da morte da amada, deseja a sua também, para
encontrá-la em algum outro plano. O amor é apresentado como a única possibilidade de
realização do homem, para quem o mundo, sem ele, é lugar de plena insatisfação.
Em uma glosa ao mote “Quem me dera meu amor / Essa boca pequenina”, de
1908, a relação entre o mundo e o sujeito do enunciado chega ao ponto de este último
imaginar a beleza de morrer junto com a amada, para que ambos deixem um “mundo
malvado”, de esperanças perdidas, de sofrimento constante: “Quem me dera meu amor,
/ Contigo deixar a vida, / Que é tanta esperança perdida, / Que é tanta miséria e dor!”
129
.
Em outra composição, de 1906, intitulada “Recordações de um moribundo”, o sujeito,
abandonado pela inconstante amante, depois de três meses de relações, deseja a morte,
128
HUGO, 2004, p. 46.
129
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 218.
“o descanso eterno”
130
, com o intuito de acabar com seu martírio. Em meio ao seu
lamento, afirma ser a infância a única época feliz da vida, em que se vivia “alegres dias
risonhos”, quando eram “belos os sonhos”, e ele ainda não conhecia “o que tinha que
sofrer / no mundo sem compaixão”
131
.
Neste conjunto de textos que cobre dez anos de exercícios do aspirante a poeta,
há alguns versos, os únicos da obra de Sá-Carneiro, em que se atribui a Deus certa culpa
por fazer sofrer os homens, e mesmo por não recompensar os amores inocentes, que são
aniquilados pelos infames. A uma perspectiva segundo a qual o mundo é cruel,
acrescenta-se a percepção de uma força perversa a dirigi-lo. Em “A morte de W...”,
tem-se um soneto em que Deus não é clemente com a mãe que perde o filho, sem nada
poder fazer: “Meu Deus, meu Deus; dizia ela a chorar / Por que matas tu este inocente? /
Se tão lindo mo quiseste dar / Para que mo tiras novamente?”
132
. Em “Duas
existências”, um poema narrativo, uma jovem pobre morre depois do abandono de seu
inescrupuloso amante, que continua a viver, “rico, alegre e feliz”, com as graças da
providência, dotada de um “cinismo profundo”:
(...)
É bem certo que mui zomba
A providência no mundo
Com um cinismo profundo
Pois enquanto Maria
Donzela tão desgraçada
Vendo-se ludibriada
Viver mais tempo não queria
E coa vida terminava;
Ele, o infame João,
Continuava a viver
Rico, alegre e feliz
Numa vida de prazer!...
133
130
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 185.
131
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 182.
132
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 164.
133
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 176.
Embora esses primeiros poemas não sejam de expressivo valor literário, é
interessante notar como, neles, já se manifestam alguns dos germes da visão de mundo
de Sá-Carneiro, em particular no que diz respeito à identificação do amor e da morte
como formas de transcendência, ou da infância como espaço privilegiado de felicidade.
Desde cedo, quando não é irônico ou parodista, o poeta apresenta uma visão negativa da
existência, para a qual se procura uma solução.
Na primeira peça escrita pelo autor, entre 1909 e 1910, em parceria com o amigo
Tomás Cabreira Júnior, intitulada “Amizade”, o mundo se reduz à figura da sociedade,
caracterizada por uma “moral tola de convenções e de parvoeiras”
134
. Invejoso da
felicidade alheia, o corpo social, através de cartas anônimas, opõe-se ao enlace das
personagens centrais, colocando obstáculos à sua realização. O núcleo dramático é
bastante comum. Tem-se a estrutura das narrativas oitocentistas, em que se destaca o
conflito entre as leis sociais, os costumes, de um lado, e os sentimentos das
personagens, de outro.
Na trama, o amor, novamente foco das preocupações do autor, é identificado à
inteira compreensão entre duas almas, as quais, com o casamento, propiciador de uma
“eterna ventura”
135
, formariam uma só pessoa. Uma quinta personagem, entretanto,
acrescenta à compreensão que tem da afeição algumas nuances. O artista Cesário, um
amigo da família, solteiro, vindo de Paris, entende que o amor seja uma necessidade que
implica a intimidade dos corpos, “porque os homens... são animais...”
136
. O boêmio, que
brinca com a ideia de que deve “ficar solteiro até à eternidade”
137
, incentiva a
concretização do enlace dos casais, acreditando na ideia de ser natural as amizades entre
134
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 677.
135
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 658.
136
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 677.
137
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 641.
homens e mulheres se transformarem em uma relação amorosa. Nas palavras do artista,
a sociedade seria um espaço onde vigora uma “consciência-padrão miudinha e falsa,
que permite tudo menos a franqueza, que transforma evangelhos em secretas
vergonhas”
138
. De acordo com ele, não haveria nada mais natural do que seguir o
conselho de Deus: “‘Crescei e multiplicai-vos’”
139
.
Em Princípio, o primeiro livro publicado por Sá-Carneiro, em 1912, o mundo
não é apresentado de modo muito diferente do que se vê na peça de estreia. Acentua-se
o sentido de que se trata de um espaço de limitações, associado, agora, com mais
frequência, à futilidade e a uma incompreensão generalizada. A sociedade é o lugar de
estúpidas convenções, que entorpecem o homem, condenando as mais brilhantes
inteligências ao isolamento.
É neste volume, recheado de personagens inadaptadas ao mundo, entre as quais
um número considerável de suicidas, que se encontra o conto “O incesto”. Nele, o
narrador, em meio a uma série de reflexões sobre a vida, a arte e a glória, discorre sobre
a educação das moças portuguesas. Na perspectiva do jovem escritor, esta educação
sufocaria todos os ímpetos, indo ao encontro dos princípios de uma sociedade hipócrita.
Ao falar sobre o plano educativo do pai para Leonor, filha do protagonista da trama, um
dramaturgo de sucesso, o narrador afirma:
Segundo o critério da maioria a educação-modelo duma “menina bem-educada”
resume-se numa ignorância completa das coisas da vida, no sufocamento de
todos os ímpetos, de todas as expansões naturais. Encobrem-lhe a natureza como
uma infâmia. (...)
Pobres raparigas da minha idade!... Caladinhas são um encanto, mas falam e
tudo está perdido! Através das suas palavras, nitidamente surge a cada passo a
miséria desoladora duma educação toda errada, contrária à vida, contrária à
natureza. (...)
Pobres raparigas da minha idade, criaturas de graça, cheias de vida, sadias,
robustas, de lábios frescos e rosados, de seios erguidos, de corpos flexíveis;
138
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 677.
139
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 667.
em nome dos bons princípios, esvaziaram-vos os cérebros, trocaram-vos as
almas!...
140
Com sarcasmo, ataca-se uma das bases de um sistema social cujos ditames
morais são tidos como nocivos, uma vez que afastam o ser humano de sua própria
natureza, dando força à hipocrisia, à mentira, à simulação
141
. Na fala do narrador,
observa-se uma concepção semelhante a que se via no discurso de Cesário, em
“Amizade”. Ao mesmo tempo em que se estabelece uma relação entre a contenção dos
ímpetos naturais da mulher e o seu empobrecimento, tanto intelectual quanto afetivo,
condena-se a sociedade por promover uma educação contrária a dois elementos que se
identificam, quais sejam, a vida e a natureza. Estes se opõem aos artifícios de um corpo
social que necessita sufocá-los para se conservar.
Ainda de Princípio, outro texto que merece um comentário é “Loucura...”. Aqui,
focaliza-se a vida e a tragédia de um artista, uma “singularíssima psicologia”
142
, que
acaba por se suicidar. Na trama, o antes refratário ao casamento Raul Vilar, brilhante
escultor, vive uma intensa relação amorosa com a esposa, Marcela. Entre os dois, o
amor, sendo um amor de alma, em que, acredita Raul, os amantes penetram os
pensamentos um do outro, não deixa de ser, também, um amor de corpo, segundo a
lógica de que “a intimidade das almas exige a dos corpos”
143
. Como “jovens pagãos,
bêbados de beijos”
144
, os esposos fogem ao padrão que consente ao casamento apenas
um amor “sério e circunspecto”
145
, um “amor burocrata”
146
, regrado e insosso.
140
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 310-311. (Grifos do autor).
141
Esta forma de condenação, nesta altura da obra de Sá-Carneiro, só é possível a partir de uma separação
entre ética e estética, e no seio de uma postura de elogio da natureza, que mais tarde será abandonada,
como se verá.
142
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 264.
143
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 273.
144
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 276.
145
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 275.
146
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 275.
Raul e Marcela, ao se amarem “não se envergonhando de ser animais
147
, como
diz o narrador, aproximam-se da própria natureza, afastando-se das dissimulações de
uma sociedade que, na perspectiva da narrativa, embota os sentidos do homem,
restringindo a sua liberdade, a sua experiência. Eis como o narrador, o qual se identifica
como o único amigo do protagonista, fala sobre a sociedade e as suas imposições na
vida íntima dos casais:
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre marido e
mulher e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor
burocrata, membro da Academia; (...) Os esposos dignos (...) devem ser
comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os
suspiros...
O amor dos amantes é, pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a
hipocrisia. (...) É a liberdade da paixão e, como é liberdade, granjeou o ódio da
“gente honesta”...
148
O enredo de “Loucura...”, entretanto, reserva algumas surpresas, que trazem
novos elementos à obra de Sá-Carneiro. O escultor, a partir de determinado momento,
marcado pela aparição, no texto, de um poema de Cesário Verde chamado “Ironias do
desgosto”, começa a ficar obcecado com a ideia de ter que provar que o seu amor não é
somente um sentimento dos sentidos, mas, pelo contrário, “um sentimento todo da
alma”
149
. Angustiado com a passagem do tempo, imaginando a consumação de seu
próprio organismo, bem como da beleza da amada, o protagonista passa a repudiar a
existência, assim como a própria vida, considerando-as como um “suplício eterno”
150
,
ou como uma “obra infame”
151
.
A partir daí, dá-se, na trama, uma espécie de peripécia, a qual poderia ser
atribuída ao estranho caráter do artista, um sujeito que, desde muito novo, “tinha idéias
147
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 276. (Grifos do autor).
148
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 275. (Grifo do autor).
149
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 295.
150
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 293.
151
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 294.
esquisitas, duma esquisitice sinistra”
152
. As notas do diário do escultor mostram ideias
em que a recusa da vida é manifesta: “Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados”
153
.
As passagens apontam para desdobramentos importantes, quando o repúdio à
humanidade se mostra abertamente: “Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse,
acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade!”
154
. Raul, que
outrora encontrava nos seus impulsos naturais motivo de regozijo, agora nega a própria
natureza. Segue-se o desfecho trágico, com a tentativa do protagonista de desfigurar a
sua esposa, para provar o seu amor, e, por fim, o seu suicídio.
Como em outros textos de Sá-Carneiro, confirma-se, em “Loucura...”, a
condição de inadaptado própria do artista, muito comum, aliás, entre os poetas do fim
do século dezenove. Caracteriza-o a figura do sujeito que repudia a sociedade, daquele
que não aceita “a vida tal como ela é, tal como se convencionou que ela fosse”
155
. Na
obra do autor, o parentesco entre Raul, Cesário, de “Amizade”, ou Luís de Monforte, de
“O incesto”, textos a que já fiz alguma referência, é certo. Tem-se, entretanto, aqui, uma
diferença essencial, que deve ser ressaltada. Quando, no desenvolvimento da trama em
que é protagonista, Raul deixa o exercício do que seja natural se contaminar por certo
idealismo, emerge uma nova perspectiva, que faz da matéria uma forma de
manifestação ilusória de uma verdade espiritual mais essencial. O gozo da vida do
corpo, que outrora era forma de desprezo aos limites impostos pela sociedade, passa a
ser associado ao mundo que se quer negar, em nome de uma vivência de outra ordem.
Revela-se, então, ao mesmo tempo, uma “desvalorização do universo físico”
156
,
do que pode ser chamado, com José Carlos Seabra Pereira, de universo da “imanência
152
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 265.
153
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 293.
154
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 294.
155
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 297.
156
PEREIRA, 1990, p. 172.
fenomênica”
157
, e uma valorização negativa do humano, em um processo que será
orientado por certa “cultura do artificial”
158
. Sá-Carneiro, agora, parece adotar uma
postura como a da personagem de Oscar Wilde, em O declínio da mentira, em sua
defesa da arte como um “protesto sanguíneo”
159
contra a natureza, ou a dos simbolistas
e decadentistas, de modo geral. A vida, por um lado, passa a ser subordinada à arte, que
se torna, conforme as palavras de Dieter Woll, a possibilidade de “realização de um
grau de existência superior”
160
. A natureza, por outro, antes vista como uma mãe
161
,
passa a ser repudiada. Quando se manifestam mais fortes as separações entre a realidade
e a fantasia, entre o material e o espiritual, solidifica-se a absoluta necessidade de
transcendência do espaço do mundo.
Na obra de Sá-Carneiro, observa-se uma recorrência da ideia de que a alma é
uma manifestação do que há de mais elevado no homem, do que pode fazer dele um ser
superior. A alma é associada a uma ânsia de elevação. Nela, têm origem os anseios de
uma ascensão que deve levar o sujeito para fora do mundo comum, do mundo concreto,
onde vivem os outros seres. Não por acaso, é como “gente de Alma”
162
, criaturas com
psicologia
163
, que se definem os artistas, marcando a sua diferença em relação ao resto
das pessoas, a sua distinção em relação à gente comum. Concebe-se aquelas figuras
157
PEREIRA, 1990, p. 172.
158
PEREIRA, 1990, p. 171.
159
WILDE, 1992, p. 15. A referência a Oscar Wilde não é sem interesse. A mentira, a simulação, antes
condenadas, de um ponto de vista moral, na obra de Sá-Carneiro, agora devem ser reabilitadas, ao menos
no campo do estético, o qual, entretanto, amplia-se, consideravelmente. No texto de Wilde, a arte, cujo
elemento essencial é a fantasia, configura-se como “o mais alto desenvolvimento” do “mentir por mentir
(W
ILDE, 1992, p. 49). (Grifos do autor).
160
WOLL, 1968, p. 79.
161
Eis mais um trecho do discurso de Raul, antes do que considerei como a peripécia da trama: “‘Ah!,
meu caro, como são imbecis todas estas hipocrisias; frutos dos eternos preconceitos, da educação
totalmente errada duma espécie que se envergonha da sua mãe: a Natureza...’” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p.
275).
162
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 569.
163
A expressão aparece mais de uma vez. Veja-se como Sá-Carneiro a usa em uma passagem de
“Ressurreição”, de Céu em fogo: “Com efeito entre tantos provincianos do nosso meio literário, entre
tantos broeiros de alma, Vitorino Bragança era uma criatura com psicologia: uma criatura de requinte,
civilizada, aristocrática – intensamente européia” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 569). (Grifos do autor).
como seres de uma raça que não é a mesma dos demais homens, a raça daqueles que são
tocados, como a personagem de “Ressurreição”, por um “destino de Auréola”
164
.
Vivendo sob o postulado do que Seabra Pereira chama de “sagração saturnina
do poeta”
165
, ou sob o que Hugo Friedrich diz ser o “pathos da grandeza
incompreendida”
166
, os artistas se elevam sobre os outros homens, desejosos de se
lançar ao encontro de realidades que se ocultam aos olhos da gente média. Em “Asas”,
de Céu em fogo, tem-se um dos modelos de poeta que Sá-Carneiro gosta de imaginar
como sendo da mesma linhagem que a sua. Petrus Ivanovitch Zagoriansky, cuja obra
estaria “destinada por força a fazer uma revolução em todas as artes”
167
, é caracterizado
como “um grande desequilibrado”
168
, na mesma passagem em que se lhe atribui um
gênio robusto. Em “Mistério”, o artista de gênio sente torpores e náuseas, sofre com um
cérebro sempre a trabalhar, imerso em fantasias. A personagem, em que se conjugam
um “orgulho de auréola” e uma “angústia invencível”
169
, configura-se como quem tem o
dom e a necessidade de descortinar novos horizontes, de encontrar outros mundos, mais
raros, mais brilhantes, e como quem sofre com a própria lucidez, com a própria
diferença, que o impedem de viver satisfeito, embora ignorante, como os demais.
O sofrimento dos artistas, incompatíveis com a vida, é inevitável. Por vezes,
entretanto, a constatação deste sofrimento dará origem a posições contraditórias. Como
diz Dieter Woll, “em vez da ânsia de sair da sociedade humana”, surge “o desejo oposto
de também ser plenamente reconhecido”, de “conseguir ter uma relação humana com
ela”
170
. Se, por um lado, o artista vê apenas na arte o meio para banir um tédio
desolador, relacionado a uma vida banal, que se organiza segundo os padrões da gente
164
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 539.
165
PEREIRA, 1990, p. 170.
166
FRIEDRICH, 1991, p. 24.
167
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 493.
168
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 489.
169
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 468.
170
WOLL, 1968, p. 70.
sensata, por outro, entende-se que é a aceitação deste mesmo espaço, supostamente
limitado, o que permitiria ao sujeito viver feliz.
Em “Mistério”, embora sob uma perspectiva crítica, identificam-se as pessoas
comuns, “a gente-média”
171
, a gente que vive “a vida de todos e de todos os dias”
172
, à
“gente feliz”
173
, aquela que se contenta com o que o real lhe apresenta. Em A confissão
de Lúcio, vai-se um pouco mais além, quando se reflete sobre a literatura ser, ao mesmo
tempo, uma dádiva e uma maldição. Afirmando sentir certa inveja da vida comum,
inveja da “suavidade da vida normal”
174
, das pessoas que são felizes, Ricardo, o poeta
em quem Lúcio imagina encontrar uma alma semelhante à sua, relaciona o exercício da
literatura a uma condição, a de que o artista não seja feliz.
Em “Ressurreição”, última narrativa de Céu em fogo, a distância entre o artista e
a pessoa comum atinge os mais altos níveis. É aí que o protagonista se considera um ser
de outra raça, pertencente a outro mundo, diante de quem as pessoas comuns não
passam de “pobres criaturas”
175
, uma imensa “multidão inferior”
176
. O próprio
sofrimento do artista é visto como algo belo, marcado pelo orgulho, pela grandeza. A
comparação entre a vida do artista e a das pessoas comuns é explícita, na fala do
narrador:
Podia não haver muitas coisas suaves na sua vida – mas o que importava se
existiam em troca tantas opulências?... Não haveria mãos enastradas nem lábios
para morder, nem afetos ou amores – uma multidão de insignificâncias violetas,
risonhas, carinhosas. Mas, a compensá-las, havia grandes maços de jornais, os
volumes sagrados da sua biblioteca, e, sobretudo, as suas Obras – ah! as suas
obras esquivas, roçagando miragens, extáticas de ouro, ungidas de Incerto,
tigradas de orgulho, leoninas na ânsia...
177
171
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 469.
172
SÁ-CARNEIRO, 1995, p, 466.
173
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 469.
174
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 372.
175
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 542.
176
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
177
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 541-542.
Inácio de Gouveia, o protagonista da trama, só admite o convívio com a gente
comum para, no que chama de “banhos de banalidade”, fazer “repousar o seu espírito de
Gênio”
178
. Embora de modo passageiro, entretanto, também aqui a personagem sente a
tentação de estar em contato com uma “criaturinha normal”
179
, uma jovem atriz, que
atende pelo nome de Paulette. Em um breve momento de “saudades da planície”
180
, é
por causa da jovem que Inácio se sente tentado a “descer um pouco do pedestal de
soberba onde se guindara”
181
, para, segundo as palavras do narrador, aderido à
perspectiva da personagem, “viver um pouco”
182
.
Entre os poemas, veem-se formulações semelhantes às da prosa. Em
“Dispersão”, composição que dá título ao livro a que pertence, o terreno da felicidade
não está aberto ao poeta, como se lê nos versos: “Porque um domingo é família, / É bem
estar, é singeleza, / E os que olham a beleza / Não têm bem-estar nem família”
183
. Em
“Álcool”, do mesmo livro, manifesta-se a interrogação da dor que cabe ao sujeito
quando imerso na experiência poética: “Que droga foi a que me inoculei? / Ópio de
inferno em vez de paraíso? / Que sortilégio a mim próprio lancei? Como é que em dor
genial eu me eterizo?”
184
. Em “Quase”, emblemático poema do mesmo conjunto,
retoma-se a noção de que a dor maior não é a da pessoa comum, que sequer sonha com
a elevação, mas a daquele que, iniciando um movimento de ascensão, não chega a
atingir a sua meta, restando, metaforicamente, conforme o texto, como “Asa que se
elançou mas não voou”.
185
178
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 553.
179
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 558.
180
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 566.
181
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 559.
182
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 559. (Grifo do autor).
183
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
184
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 59.
185
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 65. Em carta a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro fala sobre si mesmo, associando
o que sente ao que procurou dizer em “Quase”: “Muitas vezes sinto que para atingir uma coisa que anseio
Uma das mais claras colocações de Sá-Carneiro sobre a tensão que existe entre
permanecer na posição de artista, com todo o sofrimento que a rejeição à vida comum
implica, e se abandonar à força da gravidade, para gozar de alguns dos benefícios que
essa vida proporciona, pode ser vista em uma das cartas a Fernando Pessoa, quando o
escritor comenta o poema “Simplesmente”. Aqui, significativamente, é a cumplicidade
da relação amorosa, o velho tema dos primeiros textos do autor, o que parece mais fazer
falta ao sujeito que se desprende da vida:
A minha vida “desprendida”, livre, orgulhosa, farouche, diferente muito da
normal, apraz-me e envaidece-me. No entanto, em face dos que têm família e
amor banalmente, simplesmente, diariamente, em face dos que conduzem pelo
braço uma companheira gentil e cavalgam os carrosséis, eu sinto muita vez uma
saudade. Mas olho para mim. Acho-me mais belo. E a minha vida continua. Pois
bem, esses são a arte da vida, da natureza. Não cultivar a arte diária é fulvamente
radioso e grande e belo; mas custa uma coisa semelhante ao que custa não viver
a vida diária: “A tristeza de nunca sermos dois”.
186
Até agora, eu nada disse sobre Indícios de ouro, o livro que Sá-Carneiro
autorizou Fernando Pessoa a editar postumamente. Quanto à concepção do que seja o
mundo, no volume, a separação entre mundano e espiritual, segundo a qual a alma é o
lugar onde têm origem as ânsias que diferenciam o artista, pode ser vista com clareza
em um poema como “O pajem”, um quarteto, datado de 1915, em que se diz: “Sozinho
de brancura, eu vago – Asa / De rendas que entre cardos só flutua... / – Triste de mim,
que vim de Alma pra rua, / E nunca a poderei deixar em casa...”
187
. Aqui, o sujeito é,
novamente, o ser solitário, o que poderia experimentar o voo, a ascensão, mas se
encontra em um meio restrito, pouco propício à elevação. A tristeza, como em outros
textos, relaciona-se à impossibilidade de adaptação, que remete à diferença constituinte
(isto em todos os campos) falta-me só um pequeno esforço. Entanto não o faço. E sinto bem a agonia de
ser-quase. Mais valia não ser nada. É a perda, vendo-se a vitória; a morte, prestes a encontrar a vida, já ao
longe avistando-a.” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 791). (Grifos do autor).
186
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 748-749. (Grifos do autor).
187
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 117.
do artista, aquele que vive como que fora do mundo, alheio à sociedade. Na rua, espaço
do prosaico, não haveria lugar para as ânsias de elevação que caracterizam o sujeito, ao
qual não restaria outra coisa senão resignar-se a um destino de incompreensão e de
solidão.
Para além das semelhanças com as perspectivas dos textos anteriores, entretanto,
em Indícios de ouro começa a aflorar, perto do fim da vida de Sá-Carneiro, um modo
diferente de se conceber a vida em sociedade e um modo distinto de o sujeito se colocar
no mundo, que não se pode deixar escapar. Como diz Seabra Pereira, o autor mergulha
em um “tempo de suspeita”, em que uma “contraluz duvidosa” se abate “sobre a
projeção mítica do criador estético”
188
. Em “Campainhada”, o poema que se segue a “O
pajem”, a sociedade, aquela que se representa no “salão onde está gente”
189
, não aparece
como o que hostiliza o poeta. Ao se apresentá-la como receptiva e mesmo sorridente,
sugere-se que, talvez, a percepção limitada seja a do próprio poeta, não existindo aquela
grande oposição que ele gosta de imaginar para pensar a sua distinção em relação às
pessoas comuns.
De um posicionamento como esse para a autoironia que passa a tomar conta de
alguns dos versos do autor, em um processo de autodepreciação, que gera “a denúncia
da megalomania egocêntrica e da alienação fantasista”
190
, o passo não será muito
grande. Em “Serradura”, escrito em 1915, a alma, assim como a vida do sujeito, é
apresentada, em um registro muito mais coloquial do que o dos poemas anteriores,
como coisa desprezível, que, como diz o texto, “espapaçou-se de calma, / e hoje sonha
só pelúcias”. Preguiçosa e decadente, esta alma, outrora sonhadora, contenta-se com a
vida de todos os dias, a vida comum e cotidiana da leitura dos jornais e do passeio nos
cafés, onde ela não se incomoda de estar a fumar “o seu cigarrinho / em plena
188
PEREIRA, 1990, p. 173-174.
189
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 118.
190
PEREIRA, 1990, p. 174.
burocracia!...”
191
. Com base na ideia de que a tentativa de elevação seria um tanto inútil,
e de que certas aspirações seriam risíveis, abandonam-se anseios, a arrogância, o desejo
da glória e tudo o mais que levava o sujeito a se imaginar superior aos homens comuns.
Em “Desquite”, o penúltimo poema de Indícios de ouro, observa-se a
consciência da grande distância entre os planos e ideais de um sujeito orgulhoso,
metaforizados como uma “grande festa anunciada / a galas e elmos principescos”, e a
pobre execução desses mesmos projetos, realizados “a guinchos e esgares
simiescos...”
192
. A contradição entre o sublime e o grotesco, as duas partes do homem
duplo, para lembrar Victor Hugo, mostra-se evidente.
Em “Caranguejola”, em um registro também bastante prosaico, desprovido do
ornamento das imagens, das alegorias, o sujeito manifesta a sua desistência da vida, de
seus ideais e até mesmo dos livros, reconhecendo o caráter ilusório do seu orgulho e
relacionando a sua incapacidade de adaptação não mais com uma diferença de valor,
mas com uma falta de jeito pessoal, uma delicadeza excessiva, em uma postura que o
quinto e o sexto quartetos resumem bem:
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
– Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo – e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
193
A resignação, o abandono das ilusões, não serão definitivos, é certo, pois
retornam, nos Últimos poemas, o elogio da diferença e a sensação da grandeza, como
191
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 111.
192
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 120.
193
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 125.
em “O fantasma”, em que o poeta ainda é “o Emigrado Astral”
194
, ou em “El-rei”, em
que o sujeito é marcado por um “excesso de Oiro”
195
, o qual faz dele um intruso no
mundo, mesmo quando convidado à casa de alguém. O autodesprezo, entretanto, nesse
último conjunto de textos, permanece, e de modo contundente, a indicar uma postura
diferente do sujeito em relação a si mesmo, a qual não pode deixar de transformar a
tensão em relação ao mundo.
Em “Aquele outro”, em uma série de qualificações, todas pejorativas, apresenta-
se um verdadeiro farsante, “o mentiroso”, “o falso atônito”, o “bobo presunçoso”, “o
raimoso, o corrido, o desleal”
196
. É o caráter de farsa, que indica a falsa verdade dos
anseios daquele que se dizia destinado a experiências extraordinárias, de transfiguração,
de ascensão, o que se confirma, também, no poema postumamente intitulado “Fim”:
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes –
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços a acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...
197
Agora, a despedida do poeta, o seu enterro, é apresentado como uma sorte de
espetáculo de circo, como se fosse o coroamento de uma trajetória, não trágica,
associada a um sujeito rejeitado pelo mundo, incompreendido, mas farsesca, referente a
alguém que teria vivido sempre o artifício da encenação de sua própria vida, induzindo
ao logro não apenas os outros, mas, sobretudo, a si próprio.
194
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 128.
195
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 129.
196
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 130.
197
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 131.
3. Em Arthur Rimbaud, de cuja obra passo a falar agora, mais ou menos como
em Sá-Carneiro, não se pode identificar uma visão de mundo plana, imutável, sempre
constante. As tensões entre o sujeito e o mundo exterior atravessam diferentes
momentos. Em meio às idas e vindas de uma obra continuamente em transformação,
destaca-se, entretanto, uma perspectiva, segundo a qual, a um universo limitado e
restritivo, seria oposto outro, desconhecido, localizado para além da realidade visível.
Este seria o lugar de expansão de uma harmonia própria, a qual guardaria mistérios
ainda a serem descobertos, sobretudo, através de uma ação de caráter revolucionário.
Em muitos dos poemas do autor, o mundo é apresentado como o lugar de
poderes que mitigam o que haveria de maior no homem, retirando-lhe a liberdade. A
esta se relaciona a vitalidade, uma espécie muito particular de energia, encontrada, por
exemplo, entre os jovens, cujas pulsões não se controlam. Uma civilização específica,
assentada em princípios como os da filosofia racionalista e os da religião católica, que
implicam a dominação de certos estratos, como o clero e a burguesia, sobre o conjunto
restante dos homens, corresponderia a um mundo opressor. Contra este, deve-se insurgir
o sujeito que por natureza não se adapta, aquele que se torna um maldito, não podendo
escolher senão a revolta como forma de ação.
Em algumas das composições com que Rimbaud inicia a sua produção poética,
por volta de 1870, atacam-se as injustiças de que é vítima uma massa da população
oprimida, subjugada pelo domínio de forças contrárias. Faz-se, abertamente, um elogio
da revolução, cujo paradigma não pode deixar de ser a Revolução Francesa. Ressalta,
então, uma forma de crítica social contundente, com a qual se manifesta um
alinhamento do poeta ao povo humilde, aos menos favorecidos, em luta contra as
classes que podem gozar do luxo e do conforto, e que desejam, a todo custo, preservar
os seus privilégios.
Em várias composições dessa época, como no soneto sem título iniciado com o
verso “Morts de Quatre-vingt-douze et de Quatre-vingt-treize”
198
, escrito em um
contexto de retorno da dominação das forças monárquicas, na França, sob o governo de
Napoleão III, fica evidente o pendor revolucionário do autor. No poema, em que se
observa o repúdio ao controle político dos bonapartistas, procura-se relembrar o esforço
da gente comum, dos anônimos trabalhadores, que teriam se sacrificado, como “Christs
aux yeux sombres et doux”
199
, em nome da liberdade. Nesse caso, os revolucionários
mortos, que em vida teriam sido animados pelo amor, uma espécie a mais intensa de
energia vital (“Vous dont les coeurs sautaient d’amour sous les haillons”
200
), são
considerados os verdadeiros heróis de uma conquista válida em um plano universal.
Eles teriam sido capazes, em sua luta contra a opressão, de quebrar um jugo que pesava
“sur l’âme et sur le front de toute humanité”
201
.
Em “Le forgeron”, que retrata o encontro entre o povo e o rei Luís XVI, no
Palácio das Tulherias, em 1792, é, mais uma vez, a gente comum a protagonista da ação
revolucionária. O ferreiro, cuja voz se ouve em muitos dos versos, é o representante dos
pobres trabalhadores, da ralé (crapule
202
), historicamente explorada e oprimida. As
pessoas do povo, em contraste com nobres, clérigos e burgueses, são vistas como os
verdadeiros homens. São os operários orgulhosos de seu trabalho os sujeitos capazes de
transformar a sociedade, de construir, no futuro, uma nova ordem, com o fim da
exploração e com a perspectiva de uma abertura para o conhecimento dos mistérios do
mundo. Na interlocução com o rei, são expressivas as palavras vindas da boca do
ferreiro, que fala em nome da coletividade de cidadãos a qual pertence:
198
RIMBAUD, 2002, p. 48. (Mortos de Noventa e dois e de Noventa e três).
199
RIMBAUD, 2002, p. 48. (Cristos de olhos escuros e doces).
200
RIMBAUD, 2002, p. 48. (Vós cujos corações saltavam de amor sob os andrajos).
201
RIMBAUD, 2002, p. 48. (sobre a alma e sobre a fronte de toda a humanidade).
202
Cito um trecho em que a palavra aparece: “C’est la Crapule, / Sire. Ça bave aux murs, ça monte, ça
pullule” (R
IMBAUD, 2002, p. 63). (É a Ralé, senhor. Ela mancha os muros, ela cresce, ela pulula).
Nous sommes Ouvriers, Sire! Ouvriers! Nous sommes
Pour les grands temps nouveaux où l’on voudra savoir,
Où l’Homme forgera du matin jusqu’au soir,
Chasseur des grands effets, chasseur des grandes causes,
Où, lentement vainqueur, il domptera les choses
Et montera sur Tout, comme sur un cheval!
203
Na poesia de Rimbaud, ao elogio da luta dos trabalhadores contra a injustiça, em
nome da fundação de um novo mundo, vem se juntar o repúdio à Igreja, que se reveste
de um tom blasfematório. Procura-se jogar por terra um deus que não pode viver senão
da submissão e do servilismo. No soneto “Le mal”, à crítica da crueldade do rei para
com seus soldados se acrescenta a imagem de um deus reservado apenas aos anódinos
rituais da Igreja. A figuração é a de um deus sonolento, que só se interessa pelo
dinheiro, conforme se vê nos tercetos da composição:
– Il est un Dieu, qui rit aux nappes damassées
Des autels, à l’encens, aux grands calices d’or;
Qui dans le bercement des hosannah s’endort,
Et se réveille, quand des mères, ramassées
Dans l’angoisse, et pleurant sous leur vieux bonnet noir,
Lui donnent un gros sou lié dans leur mouchoir!
204
Semelhante repúdio à instituição católica se observa em “Soleil et chair”
205
,
poema em quatro partes, no qual, enquanto se canta o esplendor da natureza, da vida, da
terra, do sol, dos deuses pagãos, sugere-se o cristianismo como o que teria retirado do
203
RIMBAUD, 2002, p. 64. A tradução é de Ivo Barroso: “Somos Obreiros, sim, Obreiros! Fomos feitos /
Para os tempos a vir em que haverá saber, / Em que o Homem forjará do amanhecer à noite / Querendo o
grande efeito, ansiando as grandes causas, / E, aos poucos, vencedor, há de domar as coisas, / Em Tudo há
de montar qual montasse um corcel!” (R
IMBAUD, 1995, p. 71).
204
RIMBAUD, 2002, p 56. Eis a versão de Ivo Barroso: “– Existe um Deus, que ri nas toalhas dos altares /
Num cálice dourado, entre incensos, e nesse / Tranqüilo acalentar de hossanas adormece; // E acorda
quando as mães, morrendo de pesares, / Choram de angústia, sob o negro xale imenso, / E Lhe dão uma
moeda, amarrada no lenço!” (R
IMBAUD, 1995, p. 103).
205
Para a transcrição de trechos deste poema, utilizo uma edição brasileira, com os poemas traduzidos e
comentados por Ivo Barroso. Trata-se da versão mais longa do texto, que se encontra em uma carta de
Rimbaud endereçada a Théodore de Banville. São trinta e seis os versos suplementares.
homem a sua castidade e a sua doçura, tornando-o triste e feio, incapaz de sondar o
universo e de desvendar os seus mistérios. Saudoso dos “temps de l’antique
jeunesse”
206
, o sujeito do enunciado manifesta a sua crença em uma nova aurora,
quando o homem, libertando-se do jugo do deus que o atara à cruz (“– Oh! la route est
amère / Depuis que l’autre Dieu nous attelle à sa croix”
207
), ergueria “sa tète libre et
fière”
208
, experimentando, como no passado, o “splendeur de la chair”
209
.
O espírito revolucionário que anima estas primeiras composições, nas quais se
repudia a monarquia, a Igreja, a burguesia, reflete-se também em um reiterado ódio à
passividade e ao conformismo, que atinge os indolentes e os sedentários. Rimbaud
investe tanto contra os que desejam a preservação da ordem quanto contra os que
simplesmente se mantém alheios à necessidade de transformação. Não é por acaso que,
nesse conjunto de poemas, veem-se muito próximos certo elogio do andarilho, daquele
que traça livremente seu caminho, e o sarcasmo com que se trata os frequentadores de
uma biblioteca provinciana, como em “Les assis”. Aqui, o espírito satírico se manifesta
como forma de desconstrução dos valores de um mundo que se pretende superar, ou de
uma sociedade que se pretende extinguir. Transcrevo as duas primeiras estrofes do
texto, nas quais se destaca, em um registro grotesco, a falta de vigor que o poeta
relaciona às personagens:
Noirs de loupes, grêlés, les yeux cerclés de bagues
Vertes, leurs doigts boulus crispés à leurs fémurs,
Le sinciput plaqué de hargnosités vagues
Comme les floraisons lépreuses des vieux murs;
Ils ont greffé dans des amours épileptiques
Leur fantasque ossature aux grands squelettes noirs
De leurs chaises; leurs pieds aux barreaux rachitiques
206
RIMBAUD, 1995, p. 42. (tempos da antiga juventude).
207
RIMBAUD, 1995, p. 45. (– Oh! o caminho é amargo / Depois que o outro Deus nos atou à sua cruz).
208
RIMBAUD, 1995, p. 46. (sua cabeça livre e altiva).
209
RIMBAUD, 1995, p. 48. (esplendor da carne).
S’entrelacent pour les matins et pour les soirs!
210
Em “Ma bohéme”, em contraste com “Les assis” e outros nos quais se
ridicularizam os costumes da província, observa-se o elogio do contato livre e franco
com o vigor da natureza. No texto, tem-se uma imagem do poeta muito própria de
Rimbaud, que não esconde sua afinidade com todos os que se encontram à margem dos
poderes instituídos e de suas convenções. O sujeito do enunciado se apresenta como
aquele que vive na liberdade da errância, associando a lira às botinas que lhe permitem
caminhar longas distâncias. Despojado de toda riqueza material e do conforto burguês,
sozinho, “au milieu des ombres fantastiques”
211
, afastado da vida comum, da sociedade,
da civilização que repudia, o poeta experimenta outras formas de vida, expandindo os
sentidos a tal ponto de se tornar capaz de ouvir o som dos astros, quando se encontra em
uma espécie de comunhão com a natureza, de que faz o seu espaço: “Mon auberge était
à la Grande-Ourse”
212
.
Em “Sensation”, um dos mais breves poemas do autor, composto por apenas
duas quadras, manifesta-se o desejo do sujeito de deambular livremente, longe de
quaisquer constrangimentos, em contato com o vento, com o chão da terra, com o calor
do verão:
Par les soirs bleus d’été, j’irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
210
RIMBAUD, 2002, p. 80. Eis a versão de Ivo Barroso: “Negras verrugas, bexigosos, as olheiras / Verdes,
dedos com nós nos fêmures seguros, / Cocuruto a escamar imprecisas piolheiras / Como essas florações
leprosas que há nos muros; // Enxertaram, nos seus amores epilépticos, / A hílare ossatura aos negros
esqueletos / Das cadeiras; os pés entre os varais caquéticos / Se entrançam todo o tempo em lúgubres
duetos!” (R
IMBAUD, 1995, p. 122).
211
RIMBAUD, 2002, p. 75. (em meio a sombras fantásticas).
212
RIMBAUD, 2002, p. 75. (Meu albergue era na Ursa Maior).
Mais l’amour infini me montera dans l’âme,
Et j’irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, – heureux comme avec une femme.
213
Como o boêmio, o tipo que se recusa a fazer parte de um sistema de dominação,
dá-se vazão, no poema, a um espírito sonhador, com a alma cheia do mesmo amor que
animaria os revolucionários. O sujeito do enunciado faz da errância um modo de
experimentar os sentidos abertos a um universo que não se identifica à sociedade,
opondo-se a ela na mesma proporção em que se dá a aproximação com a natureza. Com
o corpo livre de condicionamentos, com a mente vazia, como se alheia a toda a
influência do racionalismo, solitário, mas sentindo-se completo, o sujeito se abre a uma
forma de experiência individual cujo caráter é essencialmente transformador, e,
portanto, também, profundamente revolucionário.
O contraste entre “Les assis”, de um lado, e “Ma bohéme” e “Sensation”, de
outro, indica, como salienta Louis Forestier, em suas notas sobre o primeiro destes
poemas, o desenvolvimento de “une poétique implicite du départ”
214
. Esta se
manifestaria ainda no conjunto dos primeiros poemas do autor, assim como em suas
cartas do mesmo período, particularmente nas famosas ditas do vidente.
Na primeira delas, endereçada ao seu antigo professor, Rimbaud, reconhecendo
ter nascido poeta, expressa a sua intenção de trabalhar para se tornar um vidente.
Através de um método muito particular, que consiste no “dérèglement de tout les
sens
215
, o sujeito se tornaria capaz de conhecer o desconhecido, bem como de ver o
passado e profetizar o futuro. As visões se apresentam, ao mesmo tempo, conforme
213
RIMBAUD, 2002, p. 50. A tradução é de Ivo Barroso: “Nas tardes de verão, irei pelos vergéis, / Picado
pelo trigo, a pisar a erva miúda: / Sonhador, sentirei um frescor sob os pés / E o vento há de banhar-me a
cabeça desnuda. // Calado seguirei, não pensarei em nada: / Mas infinito amor dentro do peito abrigo, / E
como um boêmio irei, bem longe pela estrada, / Feliz – qual se levasse uma mulher comigo.” (R
IMBAUD,
1995, p. 41).
214
In: RIMBAUD, 2002, p. 282. (uma poética implícita da partida).
215
RIMBAUD, 2002, p. 84. (Grifos do autor). (desregramento de todos os sentidos).
indica Suzanne Bernard, como “um método de invenção literária”
216
e como “um novo
modo de conhecimento”
217
, configurando-se, ainda que na condição de “alucinações
voluntárias”
218
, como o que pode alçar o homem para além de um mundo limitado. Na
mesma carta, vê-se a primeira manifestação explícita da imagem do maldito, daquele
que se engaja no afastamento das convenções de uma sociedade que despreza, e cuja
decência e pudor deseja chocar. Fazendo disso parte de seu projeto poético, Rimbaud
afirma, ecoando a associação entre os heróis de “Le forgeron” e “la crapule”: “je
m’encrapule le plus possible”
219
.
Em “Les poètes de sept ans”, escrito na mesma época da redação das cartas, vê-
se como os pressupostos destas se expressam em poesia. Destaca-se, no poema, a
imagem de uma criança que, desde cedo, tem a alma “livrée aux répugnances”
220
, como
é próprio daquele que escapa à moral e à ordem estabelecidas. Por outro lado, observa-
se o gosto do jovem pelas visões, pelos sonhos, que “l’oppressaient chaque nuit dans
l’alcôve”
221
. Sozinho, no quarto, com seus livros, ele já tem a mente “plein de lourd
ciels ocreux et de forêts noyées, / de fleurs de chair aux bois sidérals déployées”
222
. Em
seu espírito, conjuga-se o amor à liberdade (“À sept ans, il faisait des romans, sur la vie
/ Du grand désert, où luit la Liberté ravie”
223
) ao amor aos homens pobres,
trabalhadores, o qual se sobrepõe ao amor a Deus. Os sonhos e as visões são já o que
permite ao jovem escapar às ordens da mãe, correspondentes aos deveres que um
mundo caduco lhe impõe:
216
BERNARD, 1959, p. 157. (“une méthode d’invention littéraire”).
217
RENÉVILLE apud BERNARD, 1959, p. 157. (“un nouveau mode de connaissance”).
218
BERNARD, 1959, p. 159. (“hallucinations volontaires”).
219
RIMBAUD, 2002, p. 84 (eu me torno indecente o máximo possível).
220
RIMBAUD, 2002, p. 101. (entregue às repugnâncias).
221
RIMBAUD, 2002, p. 102. (oprimiam-no a cada noite na alcova).
222
RIMBAUD, 2002, p. 102. (cheia de pesados céus pardacentos e de florestas inundadas, / de flores de
carne aos bosques siderais estiradas) .
223
RIMBAUD, 2002, p. 102. (Aos sete anos, fazia romances sobre a vida / do grande deserto, onde brilha a
Liberdade roubada).
Il n’aimait pas Dieu; mais les hommes, qu’au soir fauve,
Noirs, en blouse, il voyait rentrer dans le faubourg (...)
– Il rêvait la prairie amoureuse, où des houles
Lumineuses, parfums sains, pubescences d’or,
Font leur remuement calme et prennent leur essor!
224
Formando-se no conflito com os poderes de um mundo que não deseja, o
precoce poeta permanece atento aos ruídos que vêm de fora, aos movimentos da rua,
quando tem a premonição das viagens que o levarão a vislumbrar outros espaços, em
um universo infinitamente mais vasto do que aquele que ele conhece: “– Tandis que se
faisait la rumeur du quartier, / En bas, – seul, et couché sur des pièces de toile / Écrue, et
pressentant violemment la voile!”
225
.
A segunda das cartas vai um pouco mais longe do que a primeira. O combate à
literatura convencional, sobretudo a francesa, é alargado, ao mesmo tempo em que o
autor se estende sobre o caráter da poesia que há de ser feita, no futuro. Lembrando
certa função social do poeta, o qual não poderia deixar de ser considerado um cidadão,
cujos poemas devem ser feitos para durar, como os dos gregos, no passado, Rimbaud
imagina ser, como criador, “un multiplicateur de progrès
226
. Como Prometeu, o poeta
seria “vraiment voleur de feu”
227
, um homem “chargé de l’humanité, des animaux
même”
228
, responsável por definir “la quantité d’inconnu s’éveillant en son temps dans
l’âme universellle”
229
.
224
RIMBAUD, 2002, p. 102. A tradução é de Ivo Barroso: “Já não amava Deus; mas os homens, que à
tarde, / Via, sujos, chegando em suas casas baixas (...) – Sonhava as vastidões de prados onde as vagas /
De luz, perfumes bons, douradas lactescências / Se movem calmamente e evolam como essências!”
(R
IMBAUD, 1995, p. 147).
225
RIMBAUD, 2002, p. 102-103. Eis a versão de Ivo Barroso: “– Enquanto progredia a agitação das ruas /
Embaixo, – só, deitado entre peças de tela / De lona, a pressentir intensamente a vela!” (RIMBAUD, 1995,
p. 147).
226
RIMBAUD, 2002, p. 92. (Grifos do autor). (um multiplicador de progresso).
227
RIMBAUD, 2002, p. 91. (verdadeiramente ladrão de fogo).
228
RIMBAUD, 2002, p. 91. (Grifo do autor). (encarregado da humanidade, dos animais mesmo).
229
RIMBAUD, 2002, p. 91. (a quantidade de desconhecido a se revelar em seu tempo na alma universal).
Em uma postura notadamente modernista, reivindica-se a liberdade aos novos
“d’exécrer les ancêtres”
230
, recusando-se a “intelligence borgnesse”
231
dos literatos do
passado. A mesma postura revolucionária, contrária a todo servilismo, ou modernista,
libertária, observa-se quando o autor fala sobre a mulher, assumindo um ponto de vista
que vai ao encontro da forte crítica à educação cristã desenvolvida em “Les premières
communions”, composição um pouco posterior à redação das cartas. No poema, em que,
conforme Ivo Barroso, “a atmosfera de misticismo erótico” é responsabilizada por fazer
da mulher “objeto de vergonha e pecado”
232
, uma “petite fille inconnue, aux yeux
tristes”
233
é vítima de um Cristo “éternel voleur des énergies”
234
. Na carta, quando o
autor prevê um futuro para a mulher, reivindica-se a sua autonomia: “Quand sera brisé
l’infini servage de la femme, quand elle vivra pour elle et par elle”
235
.
As palavras de Rimbaud, na segunda das cartas, apontam para a necessidade de
uma atividade em que o sujeito se faz criador, digno de exercer a poesia como uma
função vital, a qual deve implicar o afastamento do espaço da familiaridade. O poeta,
cuja primeira tarefa é procurar conhecer a si mesmo (“La première étude de l’homme
qui veut être poète est sa propre connaissance, enitère; il cherche son âme, il l’inspecte,
il la tente, l’apprend”
236
), deve buscar, no contato com o mundo externo, formas
absolutamente novas e mais intensas de vida. Devem-se experimentar, conforme diz o
texto, “toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie”
237
.
230
RIMBAUD, 2002, p. 87. (de execrar os antepassados).
231
RIMBAUD, 2002, p.88. (inteligência caolha).
232
In: RIMBAUD, 1995, p. 345.
233
RIMBAUD, 2002, p. 118. (uma menina desconhecida, de olhos tristes).
234
RIMBAUD, 2002, p. 122. (eterno ladrão de energias).
235
RIMBAUD, 2002, p. 92. (Quando será rompida a infinita servidão da mulher, quando ela viverá por ela
e para ela). A posição de Rimbaud, em relação às mulheres, pode variar, conforme o ponto de vista
assumido em cada texto. Em alguns dos primeiros poemas, os retratos são depreciativos, em outros, como
em “Les mains de Jeanne-Marie”, vislumbra-se a força da mulher esclarecida.
236
RIMBAUD, 2002, p. 88. (O primeiro estudo do homem que deseja ser poeta é conhecer a si mesmo, por
inteiro; ele procura sua alma, ele a inspeciona, ele a experimenta, ele a apreende).
237
RIMBAUD, 2002, p. 88. (todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura).
Valendo-se de uma fé e de uma força extraordinárias, (“il a besoin de toute la
foi, de toute la force surhumaine”
238
), o autor afirma desejar se tornar mais do que o que
se conhece por humano, transformando-se no que o texto designa como “le grand
malade, le grand criminel, le grand maudit, – et le suprême Savant!”
239
. Cultivando sua
alma, no sentido de torná-la monstruosa (“il s’agit de faire l’âme monstrueuse: (...)
Imaginez un homme s’implantant et se cultivant des verrues sur le visage”
240
), isolado
dos homens comuns, da boa sociedade, de seus costumes e normas, o poeta, entretanto,
não estaria sozinho. A sua tarefa seria coletiva, ainda que não desempenhada com
sincronicidade: “viendront d’autres horribles travailleurs; ils commenceront par les
horizons où l’autre s’est affaissé!”
241
No conjunto de poemas que Louis Forestier, entre outros editores de Rimbaud,
denomina “Poésies 1872”, abre-se um novo ciclo da obra do autor, após o fechamento
do anterior pelo emblemático “Le bateau ivre”. Em alguns momentos, entre os versos
desta época, destaca-se a energia da revolta, que já informava parte dos textos
anteriores, com a violência contra os poderes instituídos, aqueles que tornariam o
homem submisso e dependente. No sentido desta permanência, o poema que se inicia
com o verso “Qu’est-ce pour nous, mon coeur, que les nappes de sang”
242
, é um dos
mais representativos. Nele, a potência da revolta se mostra envolta em uma fúria
vingadora, direcionada, em parte, contra grupos específicos, como os industriais, os
príncipes, os senadores, os imperadores, os colonos, em parte, contra todo o mundo, tal
238
RIMBAUD, 2002, p. 88-89. (tem-se necessidade de toda a fé, de toda a força sobre-humana).
239
RIMBAUD, 2002, p. 89. (o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio!).
240
RIMBAUD, 2002, p. 88. (trata-se de tornar a alma monstruosa: (…) Imagine um homem implantando e
cultivando verrugas no próprio rosto). Henry Miller, falando sobre as figuras mitológicas monstruosas
como aquelas que “perturbaram a norma, o equilíbrio”, amedrontando o homem comum, cujo maior
pavor seria “o da expansão da consciência”, chama a atenção para um sentido de monstruoso que remonta
ao título deste trabalho. O autor, recorrendo a um dicionário, define o termo como se referindo a
“qualquer forma organizada de vida extremamente anômala, seja por falta, excesso, deslocamento ou
distorção de partes ou órgãos” (M
ILLER, 1983, p. 29).
241
RIMBAUD, 2002, p. 89. (virão outros horríveis trabalhadores; eles começarão dos horizontes onde o
outro se aniquilou).
242
RIMBAUD, 2002, p. 145. (O que são para nós, meu coração, as toalhas de sangue).
como existe, em sua ordem contemporânea, com sua justiça, sua história, e mesmo seus
continentes: “Europe, Asie, Amérique, disparaissez”
243
.
O sujeito do enunciado parece assumir a postura do que Georges Poulet chama
de um “anjo nietzscheano”
244
, dotado de uma “pureza ativa, mas terrivelmente
agressiva”
245
, cuja tarefa é derrubar todas as instituições, todas as ordens
246
. Dirigindo-
se ao seu coração, ele clama pela guerra, pela vingança (“Tout à la guerre, à la
vengeance, à la terreur”
247
), a serem vividas em meio ao que é denominado “les
tourbillons de feu furieux”
248
. Sugere-se a associação entre a vontade de transformação
e a possibilidade de ser necessário sacrificar a vida. Após a menção ao que pretende
conquistar o revoltoso, manifesta-se, na quinta estrofe, a percepção de que a luta, dado o
caráter utópico de sua aspiração, não pode ser vencida: “Notre marche vengeresse a tout
occupé, / Cités et campagnes! – Nous serons écrasés!”
249
.
Ao final do poema, referindo-se a amigos, irmãos na luta (“Oh!, mes amis! –
mon coeur, c’est sûr, ils sont des frères”
250
), o sujeito se reconhece, explicitamente,
como parte de um grupo, nomeadamente marginal, identificado como composto por
“noirs inconnus”
251
. Vindo de um espaço excêntrico, estas serão as figuras que, em um
ponto máximo de expansão de uma energia transformadora, farão fundir a terra, com o
calor de sua vingança, uma velha terra que há de se transfigurar, sob uma nova ordem:
“Ô malheur! je me sens frémir, la vieille terre, / Sur moi de plus en plus à vous! la terre
243
RIMBAUD, 2002, p. 145. (Europa, Ásia, América, desaparecei).
244
POULET, 1980, p. 136. (“ange nietzschéen”).
245
POULET, 1980, p. 136. (“pureté active, mais terriblement agressive”).
246
Poulet completa o raciocínio dizendo que o anjo, como a figura do mago, em Rimbaud, tem o
privilégio de se situar fora ou além de toda moral: “L’ange ou le mage a pour privilège, selon Rimbaud,
de se situer en dehors ou au-delà de tout morale”. (P
OULET, 1980, p. 136).
247
RIMBAUD, 2002, p. 145. (Tudo à guerra, à vingança, ao terror).
248
RIMBAUD, 2002p. 145. (os turbilhões de fogo furiosos).
249
RIMBAUD, 2002p. 145. (Nossa marcha vingadora tudo ocupou, / Cidades e campos! – Nós seremos
esmagados).
250
RIMBAUD, 2002, p. 146. (Oh! meus amigos! – meu coração, é certo, eles são irmãos).
251
RIMBAUD, 2002, p. 146. (negros desconhecidos).
fond”
252
. Segundo a lógica do poema, esta guerra, mesmo não podendo ser vencida,
jamais se extinguiria, como o próprio poeta não pode deixar de existir: “Ce n’est rien!
j’y suis! j’y suis toujours.”
253
Em muitos momentos, nos poemas de 1872, entretanto, a tônica deixa de estar
na possibilidade de um movimento revolucionário de caráter coletivo, passando a recair
no drama do sujeito em relação à ordem que vem de fora de si mesmo, a qual é vista
como alheia a uma fome e a uma sede pessoais. A vontade de atuação na história, no
destino do mundo, que se observava na poesia mais social do autor, cede espaço para a
recorrência do desejo de fusão entre o sujeito e a natureza, que implica, por um lado,
uma sorte de dilaceramento íntimo, e, por outro, de certo modo, uma recusa do mundo
como lugar social. Mais do que a insurreição contra os poderes instituídos, o que
importa, agora, é o encontro com o único elemento capaz de suprir a fome e a sede
características de um destino pessoal.
Em “Chanson de la plus haute tour”, a segunda parte de “Fêtes de la patience”,
composto por quatro poemas, manifesta-se uma aspiração pelo isolamento (“Que rien ne
t’arrête / Auguste retraite”
254
), ao mesmo tempo em que se reforça certo desprezo pelas
relações cotidianas, no seu aspecto mais convencional, rotineiro: “Je me suis dit: laisse,
/ Et qu’on ne te voie”
255
. Estas, à medida que se tornam absolutas na vida do sujeito, são
vistas como opressoras de toda a energia jovem, que se extingue quando se torna
dependente ou quando simplesmente se conforma, tornando-se ociosa: “Oisive jeunesse
/ À tout asservie, / Par délicatesse / J’ai perdu ma vie”
256
.
252
RIMBAUD, 2002, p. 146. (Ó desgraça! eu me sinto tremer, a velha terra, / Sobre mim, mais e mais
vosso! a terra funde).
253
RIMBAUD, 2002, p. 146. (Não é nada! Eu estou aqui! Estou sempre aqui!).
254
RIMBAUD, 2002, p. 155. (Que nada te detenha / Augusto retiro).
255
RIMBAUD, 2002, p. 155. (Eu disse a mim mesmo: abandona, / E que não te vejam).
256
RIMBAUD, 2002, p. 155. (Ociosa juventude / A tudo submetida. / Por delicadeza / Perdi minha vida).
Tais relações, como se vê na parte seguinte do conjunto, denominada
“L’éternité”, e como já se via em textos do período anterior, seriam o que impede a
libertação do indivíduo. Neste último poema, recusando a esperança comum e toda
orientação de sistemas pré-estabelecidos, como aqueles que dizem respeito à religião
católica, com suas promessas de salvação (“Là pas d’espérance, / Nul orietur”
257
), o
sujeito do enunciado diz a si mesmo: “Des humains suffrages, / Des communs élans /
Là tu te dégages / Et voles selon.”
258
Na quarta estrofe, por outro lado, afirma-se que há
um dever a ser cumprido, o qual se relaciona a certas “braises de satin”
259
(“Puisque de
vous seules, / Braises de satin, / Le Devoir s’exhale / Sans qu’on dise: enfin”
260
), em
uma possível referência aos influxos do sol. Este seria o que alimenta o objeto com
quem dialoga o sujeito do enunciado, isto é, a sua própria alma, uma “âme
sentinelle”
261
: “Âme sentinelle, / Murmurons l’aveu / De la nuit si nulle / Et du jour en
feu”
262
.
Em “L’éternité”, explicita-se outra ideia importante da poética de Rimbaud. A
eternidade parece ser concebida como algo que só tem existência no instante, na
concentração do momento, que logo passa: “Elle est retrouvée. / Quoi? – L’Éternité. /
C’est la mer allée / Avec le soleil”
263
. Trata-se de uma espécie de eternidade
instantânea, que não pode existir de maneira durável, e que confirma, para usar as
257
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Lá, nenhum orietur). Segundo Ivo Barroso, o uso do latinismo orietur, nessa
passagem do texto, indica a recusa da espera pela vinda de um salvador. De acordo com o mesmo autor,
no Antigo Testamento, orietur (Ele virá; ele nascerá) diz respeito à promessa de Deus de que enviará o
Messias (Cf. In: R
IMBAUD, 1995, p. 357-358).
258
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Dos humanos sufrágios, / Dos comuns ardores / Lá tu te libertas / E voas
como queres).
259
RIMBAUD, 2002, p. 156. (brasas de cetim).
260
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Pois de vós apenas, / Brasas de cetim, / O Dever se exala / Sem que se diga:
enfim).
261
RIMBAUD, 2002, p. 156. (alma sentinela).
262
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Alma sentinela, / Murmuremos a confissão / Da noite tão nula / E do dia em
fogo).
263
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Ela foi redescoberta. Quem? – A Eternidade. / É o mar que se vai / com o
sol).
palavras de Georges Poulet, “a virgindade de cada momento da existência”
264
, a qual
faria com que o sujeito fosse sempre “um ser novo em um novo universo”
265
.
Não por acaso, “Âge d’or”, a última parte de “Fêtes de la patience”, é
sensivelmente menos grave do que as demais. Agora, como se a ação do tempo e a
própria experiência fizessem sentir os seus efeitos, dando origem a uma nova
eternidade, possivelmente tão fugaz como as anteriores, o sujeito parece aceitar o
conselho de outras vozes para o abandono de seu sofrimento. A luta pessoal seria
deixada de lado, em uma capitulação diante da realidade, tal como se apresenta: “Vis et
laisse au feu / L’obscure infortune”
266
. Em contradição com o que havia dito antes, o
sujeito se mostra disposto a esquecer o próprio infortúnio, outrora visto como parte
essencial de seu ser, manifestação de sua sede mais íntima.
Isto a que chamei instabilidade, que pode ser visto na oscilação das posições do
sujeito, em “Fêtes de la patience”, pode ser notado, ainda, em elementos que aparecem
no último texto de 1872 ao qual quero fazer uma referência, o poema que se inicia com
o verso “Ô saisons, ô châteaux!”. Aqui, chama a atenção, desde logo, por um lado, a
referência às próprias estações, as quais estariam relacionadas à possibilidade de uma
transformação incessante, tanto da vida quanto do sujeito, que deixam de ser coisas
estanques, sempre iguais a si mesmas, e, por outro, a sugestão de certo desprendimento,
de uma intencional desvalorização da intensidade das aspirações, que outrora, em outros
poemas, estavam ligadas ao ímpeto revolucionário, à inadequação do sujeito ao mundo.
Na composição, o sujeito, que não deixa de se apresentar como poeta, cuja
palavra deve fugir e voar (“Il fait qu’elle fuie et vole!”
267
), assume uma postura bem
pouco grave, como aquela de “Âge d’or”, recusando antigas preocupações, dispondo-se
264
POULET, 1980, p. 122. (“la virginité de chaque moment d’existence”).
265
POULET, 1980, p. 122. (“un être neuf dans un univers neuf”).
266
RIMBAUD, 2002, p. 158. (Vive e abandona ao fogo / O obscuro infortúnio).
267
Acrescento mais um verso à citação: “Que comprendre à ma parole? / Il fait qu’elle fuie et vole!”
(R
IMBAUD, 2002, p. 165). (O que comporta a minha palavra? É preciso que ela fuja e voe).
a viver sem esforço, aberto a uma espécie de encanto que lhe deve tomar corpo e alma:
“Mais! je n’aurai plus d’envie: / Il s’est chargé de ma vie. // Ce Charme! il prit âme et
corps, / Et dispersa tous efforts”
268
. Abandonando-se o esforço, o empenho, recusa-se o
engajamento do poeta maldito, do sujeito comprometido com a revolução, seja pessoal,
seja coletiva. Aquele que, em um momento passado, teria sido acossado por um forte
anseio, que lhe obrigava a uma ação muitas vezes torturante, relacionada ao seu
infortúnio, agora se mostra complacente consigo mesmo, segundo a lógica de que toda
alma tem os seus defeitos, as suas fraquezas, as quais devem ser relevadas: “Ô saisons,
ô châteaux! / Quelle âme est sans défauts?”
269
.
Com a referência às estações, a esta forma de transformação cíclica, de alteração
da natureza, que implica a mudança de estado, constituinte da dinâmica da vida, posso
passar a comentar as obras de Rimbaud escritas em prosa, entre as quais a primeira tem,
justamente, o sugestivo título de Une saison en enfer. Impregnado da simbologia
católica, da ideia do inferno, esta série de poemas se apresenta como uma forma de
relato reflexivo, em que a diferença entre o que se viveu no passado e o que se vive no
presente ganha bastante relevo.
No conjunto de textos, tem-se um sujeito que se coloca como um danado, uma
figura de caráter extraordinário, que poderia representar, para o mundo, um sério perigo,
mas que se encontra em um movimento pendular, em que, à força para a revolta, opõe-
se a desconfiança cética no seu próprio poder de reação. Uma espécie bem particular de
oscilação, já antevista, em outras composições, toma uma forma mais consistente,
embora contra a própria ideia de consistência: ora o sujeito se curva sob o peso da
condenação, do afastamento dos valores que a sua educação lhe havia incutido, sendo
tentado a abandonar o projeto que criara para a sua poesia, ora é este mesmo projeto o
268
RIMBAUD, 2002, p. 165. (Mas! eu não terei mais desejo: / Ele tomou conta da minha vida. // Este
Encanto! ele tomou alma e corpo, / E dispersou todos os esforços).
269
RIMBAUD, 2002, p. 165. (Ó estações, ó castelos! / Que alma é sem defeitos?).
que se expressa com força poética, no seio de uma prosa em que já se vê muito da
dissolução, da incoerência e da fragmentação da lírica moderna
270
.
No plano de um drama interior, que acomete um sujeito em luta consigo mesmo,
o qual é, segundo Jean-Pierre Richard, como um “animal perseguido”
271
, debatendo-se
“com as imagens abstratas de seu passado
272
, vigora a contradição. Em muitas
passagens do livro, entretanto, verifica-se a continuidade de posições assumidas nos
poemas anteriores, em especial, no que diz respeito ao mundo com o qual se choca o
poeta. Manifesta-se o desprezo generalizado pela civilização, que era já uma das bases
do ímpeto revolucionário dos versos de Rimbaud.
Logo no primeiro texto, fala-se sobre o início da experiência que teria
condenado o poeta ao inferno. Destaca-se, então, a recusa a dois valores fundamentais
da cultura ocidental, quais sejam, o bem e o belo, que não podem deixar de remeter às
normas sociais dos campos da ética e da estética: “Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes
genoux. – Et je l’ai trouvée amère. – Et je l’ai injuriée. Je me suis armé contre la
justice”. Seria no afastamento de princípios como os da beleza e da justiça que o poeta
se tornaria um maldito, um sujeito intratável, disposto a usar a sua energia em uma
revolta violenta contra a própria humanidade: “Je parvins à faire s’évanouir dans mon
esprit toute l’espérance humaine. Sur toute joie pour l’étrangler j’ai fait le bond sourd de
la bête féroce”.
Em “Mauvais sang”, o sujeito do enunciado fala de seu desejo de deixar de
pertencer à raça a qual imagina pertencer, uma raça inferior, cujos atributos são
270
Os traços apontados fazem parte do que Hugo Friedrich caracteriza como a anormalidade da lírica
moderna (Cf. F
RIEDRICH, 1991, p. 22-23), a qual, em Rimbaud, cuja poesia tem função vital, é, também, a
anormalidade da própria experiência existencial.
271
RICHARD, 1955, p. 211 (“un animal harcelé”).
272
Richard, no trecho em que fala destas imagens abstratas, também se refere à história, à moral e à
teologia, objetos com que tem que se haver o poeta, em Une saison en enfer: “Rimbaud s’y retrouve seul
avec lui-même et avec les images abstraites de son passé. Il s’y livre sans défense à l’histoire, à la morale
ou à la théologie” (R
ICHARD, 1955, p. 211).
elementos como “la cervelle étroite, et la maladresse dans la lutte”
273
. O anseio é o de
escapar do mundo em que nasceu e se informou, de uma França “fille aînée de
l’Église”
274
, parte de uma Europa que observa fielmente “la déclaration des Droits de
l’Homme”
275
. Em certo trecho, o enunciado é dirigido a alguns dos representantes de
grupos que, ali, deteriam algum tipo de autoridade:
‘Prêtres, professeurs, maîtres, vous vous trompez en me livrant à la justice. Je
n’ai jamais été de ce peuple-ci; je n’ai jamais été chrétien; je suis de la race qui
chantait dans le supplice; je ne comprends pas les lois; je n’ai pas le sens moral,
je suis une brute: vous vous trompez...’
276
Diante de um espaço cuja moral, cujas leis se associam a elementos como “le
culte de Marie, l’attendrissement sur le crucifié”
277
, é que o sujeito se coloca como um
danado, em luta contra uma civilização perversamente domesticadora. Em outro
momento de “Mauvais sang”, imagina-se uma saída da Europa, em direção a lugares
nos quais o homem poderia viver em maior contato com a natureza:
Me voici sur la plage armoricaine. Que les villes s’allument dans le soir. Ma
journée est faite; je quitte l’Europe. L’air marin brûlera mes poumons; les
climats perdus me tanneront. Nager, broyer l’herbe, chasser, fumer
surtout; boire des liqueurs fortes comme du métal bouillant – comme faisaient
ces chers ancêtres autour des feux.
278
273
RIMBAUD, 2002, p. 178. (O cérebro acanhado e a inabilidade na luta).
274
RIMBAUD, 2002, p. 179. (Filha mais velha da Igreja).
275
RIMBAUD, 2002, p. 179. (Declaração dos Direitos do Homem).
276
RIMBAUD, 2002, p. 182. A tradução é de Mário Cesariny: “‘Padres, mestres, doutores, enganais-vos
entregando-me à justiça. Eu nunca fui esta gente; eu nunca fui cristão; eu sou da raça que cantava no
suplício; eu não conheço as leis; não tenho senso moral; sou uma besta: enganais-vos...’” (R
IMBAUD,
2007, p. 124).
277
RIMBAUD, 2002, p. 179. (o culto de Maria, a compaixão ante o crucificado).
278
RIMBAUD, 2002, p. 180. A tradução é de Mário Cesariny: “Eis-me na praia armoricana. Que as cidades
cintilem ao anoitecer. A minha jornada está feita: deixo a Europa. O ar do oceano queimará meus
pulmões; ignotos climas me bronzearão. Nadar, trincar erva, caçar, fumar, fumar muito; beber licores
abrasivos como metal fundente – como faziam os nossos queridos antepassados em volta das fogueiras”
(R
IMBAUD, 2007, p. 123).
Em uma praia que se associa a uma antiga região da Gália, seria possível ao
sujeito se fortalecer, recuperar algo de uma energia primitiva, perdida em um mundo
que dissipa todo o vigor. Ali, teria lugar o desenvolvimento uma forma de vida mais
intensa e livre, alheia aos subterfúgios e servilismos que a civilização ocidental impõe,
em particular, no presente, quando é impulsionada pelo progresso e pela ciência, esta
“nouvelle noblesse”
279
. Na praia armoricana, o poeta recuperaria algo de uma saúde
essencial, reaprendendo a não esperar por deus, passivo como os contemporâneos de sua
raça. Na volta, como um enfermo feroz, “avec des membres de fer, la peau sombre,
l’oeil furieux”
280
, seria retomado o ímpeto revolucionário, no seio de um novo
engajamento, inclusive, com o envolvimento “aux affaires politiques”
281
.
Em “Délires”, texto composto de duas partes, a experiência passada aparece
contada a partir de duas vozes distintas, a do próprio sujeito dos demais poemas e a de
uma figura designada como um seu companheiro de inferno, a “vierge folle”
282
. Em
conjunto, apresenta-se o perfil do danado, o objetivo de seu projeto poético e o caráter
de sua experiência, essencialmente transgressora, como o delírio.
Na primeira parte, ao falar de seu amado, a figura que assume o discurso afirma
se tratar de um demônio encolerizado (“C’est un Démon, vous savez, ce n’est pas un
homme
283
), que deseja subverter a ordem do mundo, os seus valores, com uma nova
lógica, que faria “de l’infamie une gloire, de la cruauté un charme”
284
. Em determinado
trecho, revela-se o olhar do poeta acerca das mulheres e do casamento, quando ele se
manifesta sobre a necessidade de se reinventar o amor: “L’amour est à réinventer, on le
279
RIMBAUD, 2002, p. 180. (nova nobreza).
280
RIMBAUD, 2002, p. 180. (com membros de ferro, a pele escura, o olhar furioso).
281
RIMBAUD, 2002, p. 180. (nos negócios políticos).
282
RIMBAUD, 2002, p. 187. (virgem louca).
283
RIMBAUD, 2002, p. 188. (Grifos do autor). (É um Demônio, sabeis, não é um homem).
284
RIMBAUD, 2002, p. 188. (da infâmia, uma glória, da crueldade, um encanto).
sait”
285
. Afirmando que não ama as mulheres (“Je n’aime pas les femmes”
286
), o danado
critica aquelas que, segundo ele, “ne peuvent plus que vouloir une position assurée”
287
,
lamenta-se por outras em que se vê “les signes du bonheur”
288
, mas que são “dévorées
tout d’abord par des brutes sensibles comme des bûchers”
289
, e diz ser um “froid
dédain”
290
o que alimenta o casamento. Em outra passagem, em que o companheiro
segue transcrevendo a voz do poeta, vê-se a vontade do sujeito de escapar das
limitações do mundo, transformando-se em uma espécie de bárbaro:
Je me ferai des entailles par tout les corps, je me tatouerai, je veux devenir
hideux comme un Mongol: tu verras, je hurlerai dans les rues. Je veux devenir
bien fou de rage. (...) Ma richesse, je la voudrais tachée de sang partout.
291
Ao mesmo tempo, entretanto, a figura destaca a bondade do amado, a sua
piedade, que se relaciona a uma forma de caridade enfeitiçada: “Enfin, sa charité est
ensorcelée”
292
. Mencionam-se os momentos em que ele socorria os bêbados, outros em
que andava com o ar gentil, como o de uma jovem indo ao catecismo (“Il s’en allait
avec des gentillesses de petite fille au catéchisme”
293
), outros, ainda, em que assumia
“manières de jeune mère, de soeur aimée”
294
. Dono de “délicatesses mystérieuses”
295
,
de um “pouvoir magique”
296
, o “divin Époux”
297
aspiraria a cumprir uma missão, a qual
implicaria percorrer um longo caminho. Em um momento relevante, no texto, é ele
285
RIMBAUD, 2002, p. 188. (O amor está para ser reinventado, sabe-se).
286
RIMBAUD, 2002, p. 188. (Não amo as mulheres).
287
RIMBAUD, 2002, p. 188. (Elas não podem mais do que desejar uma posição segura).
288
RIMBAUD, 2002, p. 188. (os sinais da felicidade).
289
RIMBAUD, 2002, p. 188. (devoradas desde o primeiro instante por brutos sensíveis como fogueiras).
290
RIMBAUD, 2002, p. 188. (frio desdém).
291
RIMBAUD, 2002, p. 189. Eis a versão de Mário Cesariny: “Eu, quero tornar-me horrendo como um
mongol, hei-de retalhar o corpo todo, cobri-lo de tatuagens. Verás como urrarei em plena rua. Quero
atingir a loucura raivosa. (...) Quem dera que a minha riqueza espirrasse sangue por todos os lados!”
(R
IMBAUD, 2007, p. 141).
292
RIMBAUD, 2002, p. 190. (Enfim, sua caridade é enfeitiçada).
293
RIMBAUD, 2002, p. 189. (Ele seguia com as gentilezas de uma menina indo ao catecismo).
294
RIMBAUD, 2002, p. 191. (maneiras de jovem mãe, de irmã amada).
295
RIMBAUD, 2002, p. 188. (delicadezas misteriosas).
296
RIMBAUD, 2002, p. 191. (poder mágico).
297
RIMBAUD, 2002, p. 187. (divino Esposo).
quem fala: “Parce qu’il faudra que je m’en aille, très-loin, un jour. Puis il faut que j’en
aide d’autres: c’est mon devoir”
298
. Mistura de anjo e demônio, a entidade teria como
projeto, na perspectiva de seu companheiro, mudar os costumes e as leis, ou, em sentido
mais amplo, simplesmente, “changer la vie
299
.
Na segunda parte, intitulada “Alchimie du verbe”, tem-se o próprio maldito
como a primeira pessoa do enunciado, a se manifestar em relação ao que o teria
condenado ao inferno. Neste ponto, identificado a um poeta, o sujeito se propõe a contar
a história de uma de suas loucuras, as quais se confundem com a criação poética.
Mencionando a sua afinidade com a alucinação (“Je m’habituai à l’hallucination
simple”
300
), assim como a propositada sacralização da desordem de seu espírito (“Je
finis par trouver sacré le désordre de mon esprit”
301
), o poeta lembra a sua condição de
marginal, de quem precisa se arrastar na imundície das ruas, distante dos bons
costumes, dos bons caminhos, para voltar a ser como um filho do sol: “Je me traînais
dans les ruelles puantes et, les yeux fermés, je m’offrais au soleil, dieu de feu”
302
. É no
afastamento da civilização, vivendo o que Jean-Pierre Richard chama de “pleno
desprendimento”
303
, ou “inquietante liberdade”
304
, que o sujeito encontraria a desejada
fusão com a natureza, tornando-se como uma “étincelle d’or de la lumière nature
305
.
Entre os restantes poemas do conjunto, ainda se destacam algumas passagens,
em que se observam concepções acerca dos homens e dos valores ocidentais. Em
“L’impossible”, o Ocidente se associa a uma espécie de pântano (“Les marais
298
RIMBAUD, 2002, p. 190. A tradução é de Mário Cesariny: “Porque é preciso que eu me vá, um dia,
para bem longe. Tenho de ajudar outros: é a minha obrigação” (RIMBAUD, 2007, p. 145).
299
RIMBAUD, 2002, p. 189. (Grifos do autor). (mudar a vida).
300
RIMBAUD, 2002, p. 194. (Eu me acostumei com a simples alucinação).
301
RIMBAUD, 2002, p. 194. (Eu acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito).
302
RIMBAUD, 2002, p. 195. (Eu me arrastava nas ruelas fétidas e, os olhos fechados, oferecia-me ao sol,
deus de fogo).
303
RICHARD, 1955, p. 197. (“plein dégagement”).
304
RICHARD, 1955, p. 197. (“inquiétante liberte”).
305
RIMBAUD, 2002, p. 196. (Grifo do autor). (centelha de ouro da luz natureza).
occidentaux”
306
), lugar de águas paradas, onde os homens são negociantes ou ingênuos
(“Le monde! les marchands, les naïfs!”)
307
, seres que se adaptam a tudo, mantendo a
polidez e as conveniências: “Mais nous sommes polis; nos relations avec le monde sont
très-convenables”
308
. Ao mesmo tempo, ressalta uma concepção do que seja o espírito.
Como sede de certos princípios morais, ou de certa forma de inteligência, cujo cultivo
se associa à religião, à arte, à ciência, define-se o que impede ao sujeito se alçar para
fora do mundo conhecido. Tem-se uma substância limitadora, de caráter autoritário: “–
L’esprit est autorité, il veut que je sois en Occident. Il faudrait le faire taire pour
conclure comme je voulais”
309
. No poema, contra tudo o que representa o Ocidente, o
poeta lança aquilo que Suzanne Bernard chama de uma “vociferação violenta”
310
:
“J’envoyais au diable les palmes des martyrs, les rayons de l’art, l’orgueil des
inventeurs, l’ardeur des pillards”
311
.
Em “L’éclair”, por fim, faz-se referência à crença de “Tout le monde
312
,
contemporaneamente, na ciência, como forma moderna de marcha para a conquista do
universo. A essa confiança, naturalmente, opõe-se o sujeito do enunciado, que afirma
não acreditar nem no trabalho, cuja força parece pouca para a ambição de seus anseios
(“Le travail paraît trop léger à mon orgueil”
313
), nem na ciência: “et la science est trop
lente”
314
. Como se vê em “Matin”, e de acordo com o projeto poético de Rimbaud, o
poeta só poderia acreditar mesmo em uma forma nova de trabalho, ligada a uma
306
RIMBAUD, 2002, p. 199. (Os pântanos ocidentais).
307
RIMBAUD, 2002, p. 199. (O mundo! os comerciantes, os ingênuos!).
308
RIMBAUD, 2002, p. 199. (Mas nós somos educados; nossas relações com o mundo são bastante
decentes).
309
RIMBAUD, 2002, p. 200. (– O espírito é autoridade, ele quer que eu esteja no Ocidente. Seria preciso
fazê-lo calar para concluir como eu gostaria).
310
A autora chama a atenção para a curiosa mistura de que seria feito Une saison en enfer: “Quel curieux
mélange, en effet, d’analyse lucide et de vocifération violente! (BERNARD, 1959, p. 166).
311
RIMBAUD, 2002, p. 200. (Eu mando ao diabo as palmas dos mártires, os brilhos da arte, o orgulho dos
inventores, o ardor dos que pilham).
312
RIMBAUD, 2002, p. 201. (Grifos do autor). (Todo mundo).
313
RIMBAUD, 2002, p. 202. (O trabalho parece muito fraco para o meu orgulho).
314
RIMBAUD, 2002, p. 201. (e a ciência é muito lenta).
sabedoria nova, que dependeria de uma conquista futura, a dar cabo tanto das
superstições quanto dos servilismos, tendo em vista a constituição de um novo mundo:
“Quand irons-nous, par delà les grèves et le monts, saluer la naissance du travail
nouveau, la sagesse nouvelle, la fuite des tyrans et des démons, la fin de la superstition
(...)”
315
. Tal conquista, aliás, é o que aparece no último poema do livro, intitulado
“Adieu”, quando chega a ser vista com esperança: “Et à l’aurore, armés d’une ardente
patience, nous entrerons aux splendides villes”
316
.
A perspectiva utópica, que se vê em alguns textos de Rimbaud, como em certas
passagens de Une saison en enfer, retorna, e com nova força, em Illuminations, no qual,
como afirma Bouillane de Lacoste, não haverá “o menor traço de inquietação
religiosa”
317
. Quanto à concepção do que seja o mundo, a civilização aparece,
novamente, como aquilo que mitiga as energias selvagens do homem, submetendo-o ao
domínio da rotina, da ausência de movimento, que impedem o avanço da humanidade a
novas formas de existência. Uma vez mais, o Ocidente é configurado como espaço em
que se não pode viver em liberdade, em que não se pode manter o vigor, a que se
associam, agora, elementos como a dança, o riso, a juventude, o excesso, o amor, a
fantasia e mesmo a crueldade, coisas que não se podem controlar.
Em muitos poemas, em especial naqueles em que se mantém um sujeito como
centro do discurso, destaca-se a luta deste contra o mundo. Apresenta-se um ser dotado
de uma sabedoria especial, caótica e inaudita (“Ma sagesse est aussi dédaignée que le
chaos”
318
), que se coloca contra a passividade e o contentamento dos homens comuns,
vistos como seres servis, débeis, indiferentes à própria impotência. Sugere-se a
315
RIMBAUD, 2002, p. 202. (Quando iremos, para além das praias e dos montes, saudar o nascimento do
trabalho novo, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demônios, o fim da superstição).
316
RIMBAUD, 2002, p. 204. (E ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, nós entraremos nas
esplêndidas cidades).
317
O trecho é de um artigo publicado no Mercure de France, em 1948: “les Illuminations ne portent plus
trace de la moindre inquiétude religieuse”. (LACOSTE apud BERNARD, 1959, p. 165).
318
RIMBAUD, 2002, p. 215. (Minha sabedoria é tão desdenhada quanto o caos).
superação das limitações do mundo por meio da destruição da ordem existente, a qual
daria lugar a uma nova harmonia, de caráter selvagem em relação à civilização que se
conhece.
Em “Matinée d’ivresse”, os valores do bem e do belo são relativizados, em um
modo de negação de seu suposto caráter absoluto, relacionado a uma justiça e a uma
beleza imutáveis. A frase inicial lembra o primeiro texto de Une saison en enfer: “Ô
mon Bien! Ô mon Beau! Fanfarre atroce où je ne trébuche point!”
319
. A fanfarra, que
remete ao toque de instrumentos de metal, seria a expressão de uma harmonia que se
abandona (“l’ancienne inharmonie”
320
), como se abandonam as convenções da
sociedade, em especial, aqueles pilares éticos e estéticos que estabelecem o que são o
bem e o belo. Seria a partir do afastamento destes valores que o sujeito se poria a trilhar
o caminho do que afirma procurar: “Hourra pour l’oeuvre inouïe et pour le corps
merveilleux, pour la première fois!”
321
.
Mais a frente, no texto, fala-se em um sofrimento, o qual, lembrando o martírio,
relaciona-se a uma extraordinária promessa: “Ô maintenant nous si digne de ces
tortures! rassemblons fervemment cette promesse surhumaine faite à notre corps et à
notre âme créés”
322
. Em seguida, sustenta-se a verdade de um método, quando se
afirma, igualmente, a fé em um veneno: “Nous t’affirmons, méthode! Nous n’oublions
pas que tu as glorifié hier chacun de nos âges. Nous avons foi au poison”
323
. Tem-se,
então, a imposição da retomada da crença no desregramento. Através dele seria possível
ir ao encontro de um poder que, associado à demência (“cette promesse, cette
319
RIMBAUD, 2002, p. 217. (Grifos do autor). A tradução é de Ivo Barroso: “Oh meu Bem, oh meu Belo!
Fanfarra atroz em que não mais tropeço!” (RIMBAUD, 2007, p. 231).
320
RIMBAUD, 2002, p. 218. (a antiga desarmonia).
321
RIMBAUD, 2002, p. 217. A tradução é de Mário Cesariny : “Hurrá pela obra inaudita e pelo corpo
maravilhoso, pela primeira vez!” (RIMBAUD, 2007, p. 37).
322
RIMBAUD, 2002, p. 218. Eis a tradução de Lêdo Ivo: “Ó agora nós tão dignos dessas torturas!
ponhamos em ordem, ardentemente, esta promessa sobrehumana feita ao nosso corpo e à nossa alma
criados: esta promessa, esta demência!” (R
IMBAUD, 1982, p. 96).
323
RIMBAUD, 2002, p. 218. (Nós te afirmamos, método! Não esquecemos que tu glorificaste, ontem, cada
uma de nossas idades. Temos fé no veneno).
démence!”), levaria a novas formas de pensamento e de julgamento. Com o exercício do
método, que não parece ser outro senão aquele que se concebera nas cartas ditas do
vidente, seria possível a abertura de um novo tempo, o qual, ao final do texto, aparece
como “le temps des Assassins
324
.
O fechamento de “Matinée d’ivresse”, mesmo que se evidencie, de acordo com
o que indicam alguns intérpretes, tratar-se de uma referência a uma seita de usuários de
haxixe, os Haschischins, sugere o problema da moral, uma vez que se identificam como
assassinos aqueles que dariam forma a um novo tempo. Aqui, entretanto, seria
interessante ter em mente o fato de a associação entre a grandeza e a imoralidade não
ser, propriamente, uma novidade. Segundo Hugo Friedrich, entre os franceses, Denis
Diderot já cogitava, por volta de 1760, a “coincidência da imoralidade com a
genialidade, da inaptidão social com a grandeza espiritual”
325
.
Em “Conte”, é o sentido desta associação o que se verifica. A personagem
principal é um príncipe, cujas aspirações se relacionam a uma verdade, a um desejo e a
uma satisfação essenciais (“Il voulait voir la vérité, l’heure du désir et de la satisfaction
essentiels”
326
), que seriam mais do que apenas “des générosités vulgaires”
327
.
Afastando-se de toda ética, a personagem se mostra cruel, e mesmo sanguinária, pois
mata as mulheres com quem tem relações (“Toutes les femmes qui l’avaient connu
furent assassinées”
328
), assim como todos aqueles que o seguem (“Il tua tous ceux qui le
suivaient, après la chasse ou les libations”
329
), divertindo-se a estrangular animais (“Il
324
RIMBAUD, 2002, p. 218. (Grifo do autor). (O tempo dos Assassinos).
325
FRIEDRICH, 1991, p. 25. As palavras de Friedrich remetem à discussão sobre o gênio, de Diderot, em
Le neveu de Rameau.
326
RIMBAUD, 2002, p. 212. (Ele queria ver a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais).
327
RIMBAUD, 2002, p. 211. (generosidades vulgares).
328
RIMBAUD, 2002, p. 212. A tradução é de Mário Cesariny: “Todas as mulheres que possuíra foram
assassinadas” (RIMBAUD, 2007, p. 19).
329
RIMBAUD, 2002, p. 212. (Matou todos aqueles que o seguiam, depois da caça ou das libações).
s’amusa à égorger les bêtes de luxe”
330
) e a esquartejar pessoas: “Il se ruait sur les gens
et les taillait en pièces”
331
.
Em determinado momento, o narrador relaciona a energia da destruição com a
força da juventude e com a crueldade: “Peut-on s’extasier dans la destruction, se
rajeunir par la crueté!”
332
. Vai-se ao encontro do que Henri Peyre chama de “ambição
desmesurada de ultrapassar o homem”, a que se relaciona o desejo de “ultrapassar as
noções de bem e de mal”
333
. É ao assassino, cujas pulsões não se controlam, que é
aberta a possibilidade de se experimentar uma “santé essentielle”
334
, justamente quando,
ao final do texto, a personagem se encontra com um gênio, ser “d’une beauté
ineffable”
335
, de cuja fisionomia emana a promessa “d’un bonheur indicible”
336
.
Entre os textos de Illuminations, sob outro aspecto, será proveitoso destacar
aqueles que tratam do tema da cidade, espaço de aglomeração humana que não pode
deixar de remeter à sociedade e ao mundo modernos. Embora, em alguns deles, o que se
vê seja a destruição do universo conhecido, através da expansão de uma fantasia
criadora sem muitos limites, em outros se observa uma postura mais de acordo com a
que tenho tentado salientar, neste capítulo. Revela-se uma posição crítica do sujeito, a
perspectiva negativa sobre um mundo do qual se deseja escapar.
Em “Ouvriers”, a aglomeração citadina é apresentada como o lugar da miséria
dos operários (“indigents absurdes”
337
), uma terra avara, mesquinha (“cet avare pays où
nous ne serons jamais que des orphelins fiancés”
338
), onde mesmo os jardins exalam
mau cheiro. Em um espaço como esse, seria difícil escapar a um destino coibitivo, que
330
RIMBAUD, 2002, p. 212. (Divertiu-se estrangulando os animais de luxo).
331
RIMBAUD, 2002, p. 212. (Jogava-se sobre as pessoas e as talhava em pedaços).
332
RIMBAUD, 2002, p. 212. (Podemos nos extasiar na destruição, rejuvenescermos pela crueldade).
333
PEYRE, 1983, p. 28.
334
RIMBAUD, 2002, p. 18 (saúde essencial).
335
RIMBAUD, 2002, p. 212. (beleza inefável).
336
RIMBAUD, 2002, p. 212. (felicidade indizível).
337
RIMBAUD, 2002, p. 220. (indigentes absurdos).
338
RIMBAUD, 2002, p. 221. (esta terra avara onde nós não seremos nunca senão noivos órfãos).
mina o exercício da força e do conhecimento: “l’horrible quantité de force et de science
que le sort a toujours éloignée de moi”
339
. Mais para o final do poema, à referência à
fumaça e aos barulhos da produção industrial, sinais da marcha para o progresso (“La
ville, avec sa fumeé et ses bruits de métiers”
340
), vem se juntar o desejo do encontro de
outro lugar, que seja algo como “l’autre monde, l’habitation bénie par le ciel et les
ombrages”
341
.
Em “Ville”, o sujeito se coloca como um cidadão comum, efêmero (“éphémère
et point trop mécontent citoyen d’une métropole crue moderne”
342
), mas que não deixa
de ser observador e crítico. Como quem conhece de perto o assunto, ele fala do
isolamento das pessoas, em meio à multidão (“Ces millions de gens qui n’ont pas besoin
de se connaître,”
343
), e da simplicidade a que teriam sido reduzidos bens humanos,
como a língua e a moral: “La morale et la langue sont réduites à leur plus simple
expression”
344
. Lembra-se, igualmente, a condição de fantasmas dos habitantes de um
espaço marcado pela sujeira, a que se associa a queima do combustível da primeira
revolução industrial: “je vois des spectres nouveaux roulant à travers l’épaisse et
éternelle fumée de charbon”
345
.
Em certa passagem, quando o sujeito do enunciado se remete a determinadas
estatísticas, destaca-se uma medida do tempo de vida das pessoas. Através da menção a
um método que lida com massas de dados numéricos, a que seriam reduzidos os
indivíduos, sugere-se a experiência, no ambiente da cidade, de uma vida vazia,
desprovida de energia vital, uma vida de que se encontrariam ausentes a sede e a fome
339
RIMBAUD, 2002, p. 221. (a horrível quantidade de força e de ciência que a sorte sempre afastou de
mim).
340
RIMBAUD, 2002, p. 220. (A cidade, com sua fumaça e os barulhos dos trabalhos).
341
RIMBAUD, 2002, p. 220. (o outro mundo, a habitação abençoada pelo céu e pelas sombras das árvores).
342
RIMBAUD, 2002, p. 221. (efêmero e não descontente demais cidadão de uma metrópole que crêem
moderna).
343
RIMBAUD, 2002, p. 222. (Estes milhões de pessoas que não têm necessidade de se conhecer).
344
RIMBAUD, 2002, p. 222. (A moral e a língua se reduziram a sua mais simples expressão).
345
RIMBAUD, 2002, p. 222. (vejo novos fantasmas, rolando através da espessa e eterna fumaça do carvão).
características do desejo, conforme outros poemas do autor: “ce cours de vie doit être
plusieurs fois moins long que ce qu’une statistique folle trouve pour les peuples du
continent”
346
. De modo significativo, no mesmo poema em que se faz referência ao
“plan de la ville”
347
, associado à pretensa modernidade da cidade (“métropole crue
moderne”
348
), afirma-se o descabimento (“statistique folle”) de uma medida
quantitativa, racional, matemática, impessoal, para medir o que seria qualitativo, como a
duração da vida de um sujeito.
Para além da abordagem mais ou menos crítica sobre a cidade, observa-se,
ainda, ao longo de Illuminations, como se via entre os primeiros poemas de Rimbaud,
um ataque disseminado à burguesia. A investida se insere no contexto da pretendida
ruptura com a sociedade, de um repúdio que alcançaria tanto o progresso material, a
civilização tecnológica, quanto o homem tido como positivo, admirador da ciência e do
dinheiro.
Em “Soir historique”, fala-se sobre uma experiência que seria vivida por uma
figura como um turista ingênuo. Embora possuidor de uma “vision esclave”
349
,
característica de uma condição servil, a personagem, desde que afastada dos “horreurs
économiques”
350
de seu tempo, poderia se deparar com as inusitadas manifestações de
uma dimensão excêntrica do mundo, a ser descortinada em meio à passagem de bandos
nômades e desordeiros: “des chasses et des hordes”
351
. É no quarto parágrafo da
composição, em que, de certo modo, o narrador esquece a sua personagem, que se faz
menção à burguesia:
346
RIMBAUD, 2002, p. 222. (a duração da vida deve ser muitas vezes menos longa do que aquela que uma
estatística louca encontra para os povos do continente).
347
RIMBAUD, 2002, p. 221. (plano da cidade).
348
RIMBAUD, 2002, p. 221. (metrópole que acreditam moderna).
349
RIMBAUD, 2002, p. 239. (visão escrava).
350
RIMBAUD, 2002, p. 239. (horrores econômicos).
351
RIMBAUD, 2002, p. 239. (Ele treme com a passagem dos caçadores e das hordas).
La même magie bourgeoise à tous les points où la malle nous déposera! Le plus
élémentaire physicien sent qu’il n’est plus possible de se soumettre à cette
atmosphère personnelle, brume de remords physiques, dont la constatation est
déjà une affliction.
352
A magia burguesa, como se vê, é apresentada como um poder que alcança todos
os lugares de um mundo limitado, o qual não pode ser outro senão aquele que o autor
associa a uma restritiva civilização ocidental. Aqui, uma atmosfera perniciosa atingiria a
todos, que viveriam subjugados, com a percepção constantemente abatida. Segundo a
lógica do poema, ter consciência sobre a constituição desse mundo, tomar conhecimento
da verdadeira qualidade de sua atmosfera, seria já causa de um grande tormento.
Talvez ainda mais expressivo, como crítica de uma cultura controlada pelo
pensamento e pela prática burgueses, seja o poema de nome “Solde”, com o qual
imagino ser pertinente encerrar esta parte do capítulo dedicada ao poeta francês. No
texto, enumera-se uma série de substâncias, todas elas tornadas objetos de consumo,
postos à venda. No segundo parágrafo, mencionam-se elementos que poderiam ser
associados ao que há de mais prezado em muitos outros poemas de Rimbaud: “Les Voix
reconstituées; l’éveil fraternel de toutes les énergies chorales et orchestrales et leurs
applications instantanées; l’occasion, unique, de dégager nos sens”
353
. Destaca-se a
referência às vozes, organizadas novamente, reconstituídas, ao despertar fraterno e à
energia da música, uma potência vital, em Illuminations. Juntas, estas seriam as
substâncias capazes de impulsionar um movimento súbito, repentino, como a ação
revolucionária, a qual se liga a possibilidade de se distender os sentidos.
352
RIMBAUD, 2002, p. 239. A tradução é de Mário Cesariny: “A mesma magia burguesa em qualquer lado
onde a mala-posta nos deixe! O físico mais elementar sente que já não é possível submeter-nos a esta
atmosfera pessoal, a esta bruma de remorsos físicos cuja constatação é já uma aflição” (R
IMBAUD, 2007,
p. 97).
353
RIMBAUD, 2002, p. 233. (As Vozes reconstituídas; o despertar fraterno de todas as energias corais e
orquestrais e suas aplicações instantâneas; a ocasião, única, de libertar nossos sentidos).
Em “Solde”, entretanto, todos estes elementos estariam à venda, anunciados
como se fosse possível obtê-los facilmente, sem maiores esforços, apenas com certa
quantia de capital. Entre tantas outras coisas, estariam à venda a anarquia para as massas
(“À vendre l’anarchie pour les masses”
354
), esplendores invisíveis (“Élan insensé et
infini aux splendeurs invisibles”
355
), o próprio movimento e o futuro (“le bruit, le
mouvement et l’avenir qu’ils font”
356
), assim como “les Corps sans prix”
357
e “les sauts
d’harmonie inouïs”
358
. Tem-se, então, uma completa liquidação, com que a sociedade se
desembaraçaria de tudo o que poderia lhe parecer estranho, absorvendo-o, dando-lhe um
preço. Na perspectiva do poema, em um mundo tomado pelo pensamento burguês, o
essencial seria apenas o poder de compra e o apetite pelos produtos que se desejem pôr
à venda.
4. Desde o início do capítulo, tenho procurado focalizar minha observação no
modo como se configuram as relações, nos textos de Rimbaud e de Sá-Carneiro, entre o
sujeito, ou os sujeitos dos enunciados, e o mundo. No que diz respeito à representação
dessas duas instâncias, o mundo, com seus poderes, suas convenções, seus hábitos, suas
instituições, e o sujeito, muitas vezes poeta, é possível notar uma significativa afinidade
entre os universos poéticos dos dois autores.
Em primeiro lugar, uma afinidade se evidencia porque, em ambos os poetas, o
mundo é um espaço de extremas limitações, estruturadas por uma ordem que formata
mentalidades desprovidas da capacidade de questionar e de imaginar, uma ordem que
fomenta o conformismo e a passividade diante das convenções, favorecendo a
mediocridade e glorificando a banalidade. Em segundo lugar, a afinidade existe porque,
em ambas as obras, configura-se uma espécie particular de sujeito, o qual se caracteriza,
354
RIMBAUD, 2002, p. 233. (À venda a anarquia para as massas).
355
RIMBAUD, 2002, p. 234. (Impulso insensato e infinito de esplendores invisíveis).
356
RIMBAUD, 2002, p. 234. (o ruído, o movimento e o futuro que eles fazem).
357
RIMBAUD, 2002, p. 233. (os Corpos sem preço).
358
RIMBAUD, 2002, p. 234. (os saltos de harmonia inauditos).
muitas vezes, pelo desejo de partir do mundo limitado e hostil, em direção a regiões que
não podem ser definidas precisamente, mas que se imagina existir, de algum modo, em
algum outro lugar, ou em algum outro tempo.
Tanto em Rimbaud quanto em Sá-Carneiro, destaca-se o fato de a burguesia ser
considerada como a classe responsável, em grande medida, pela situação de
depauperamento em que se encontraria a sociedade deles contemporânea, tornando-se
um objeto privilegiado da crítica. A essa classe, que o escritor português associa a seres
desprovidos de complicações psicológicas, o francês dedica o seu desprezo e a sua
violência, seja nas sátiras, entre os seus primeiros poemas, seja nos textos em prosa, em
que se vislumbra a distância entre o vigor dos malditos e a lassidão dos que dariam tudo
por uma vida apenas confortável. Tanto para um quanto para o outro autor, o termo
burguês assume o seu significado mais pejorativo. Trata-se daquele sujeito que não tem
nenhuma grandeza ou abertura de espírito, cujos horizontes estreitos estão a par com um
apego exclusivo à segurança, ao êxito material e ao bem-estar.
A hipocrisia dessa mesma sociedade, a sua moral falsa e mesquinha, são,
igualmente, alvos privilegiados de ambos os poetas. Quando Sá-Carneiro aponta, no
texto de “Loucura...”, a diferença entre o amor dos amantes e o amor dos esposos, um
em que se é “livre de todas as peias”, o outro “burocrata, membro da Academia”
359
, o
que se observa é a mesma dissimulação daqueles que, educados na igreja católica, a
qual prega o amor ao próximo, permanecem indiferentes aos que caem, pisoteados na
marcha da civilização, como se vê em “L’éclair”: “à la science, et en avant!’ crie
l’Ecclésiaste modern, c’est-à-dire Tout le monde. Et pourtant les cadavres des méchants
et des fainéants tombent sur le coeur des autres…”.
360
359
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 275.
360
RIMBAUD, 2002, p. 201. (Grifos do autor). A tradução é de Lêdo Ivo: “rumo à ciência, e para a frente!’
clama o moderno Eclesiastes, isto é, Todo mundo. E contudo os cadáveres dos maus e ociosos caem sobre
o coração dos outros...” (R
IMBAUD, 1982, p. 73).
A boa sociedade, os bons costumes, a que se relacionam uma educação
padronizada, a entediante vida dos salões e a vida provinciana, em Sá-Carneiro, ou a
submissão servil dos crentes e o apego ao conforto, em Rimbaud, são ligados a uma
moral tola ou perversa, assim como a uma beleza conservadora, sem consistência. Tem-
se uma sociedade que se dedica sistemática e regularmente a conter os ímpetos
originais, aqueles que diferenciam o indivíduo. Em Rimbaud, os caracteres bárbaros ou
selvagens, em Sá-Carneiro, os simplesmente bizarros, configuram-se como o que não
serve à perpetuação da ordem estabelecida.
Como tentei demonstrar, mais acima, os dois poetas evidenciam, em seus textos,
uma simpatia por sujeitos à margem da sociedade, como os assassinos, os loucos, os
suicidas. Nas narrativas do autor português, o crime não é, de modo algum, incomum
entre as personagens, sendo, inclusive, cercado de certa beleza e de alguma elevação.
Em um trecho de “Loucura...”, uma das reflexões do narrador procura, de certo modo,
justificar tanto o desejo criminoso do protagonista de desfigurar a sua mulher como o
seu suicídio:
A maior parte dos homens adotou um sistema determinado de convenções: É a
gente de juízo... Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objetos
com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneira diferente, encara
a vida de modo diverso. Como estão em minoria... são doidos...
361
A gente de juízo, na perspectiva da obra de Sá-Carneiro, não seria outra coisa
senão a generalidade das pessoas, os chamados “lepidópteros”
362
, seres inferiores, que
não conseguem deixar de se submeter às convenções. Em outras palavras, seria “a gente
361
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 278. (Grifos do autor).
362
É nas cartas a Pessoa que mais aparece este termo, como em correspondência enviada de Paris a
Lisboa, de junho de 1914: “Estive toda a tarde com o Pacheco, que lhe manda muitas recomendações –
insultando os lepidópteros daí e daqui. (Iniciei o Pacheco neste nosso termo paúlico – é claro)” (S
Á-
CARNEIRO, 1995, p. 805). Sá-Carneiro também fala em “lepidopteria”, como quando se refere,
criticamente, à ideia de que “‘o artista deve falar ao maior número possível’” (SÁ-CARNEIRO, 1995, p.
841).
média, a gente tranqüila”, a qual, conforme se lê em “Ressurreição”, “mal chegou à
existência, se domou aos usos e costumes, aos preconceitos”
363
. Neste conto, o narrador
deixa clara a admiração do protagonista, também um artista, um dramaturgo, por figuras
como os assassinos, os ladrões, os incendiários, sujeitos “que nunca se domaram, que
sempre estrebucharam”
364
. Na mesma passagem, menciona-se, por contraste, aqueles a
quem o artista dedicaria o seu desprezo, quais sejam, “os castrados: a gente digna e
sensata, os que nunca tiveram um gesto de cólera, que nunca ousaram ofender
ninguém”
365
.
Em Rimbaud, de modo semelhante, é a recusa do sujeito em ser mais um entre
os que se domam “aos usos e costumes”
366
, associada à potência contra o poder
instituído, ao ímpeto revoltoso, o que leva à identificação entre o poeta e o maldito.
Entre as composições do francês, “Mauvais sang”, de Une saison en enfer, é bastante
expressiva no que diz respeito à posição do sujeito quanto ao modo como vê o
criminoso condenado, em uma demonstração da mesma simpatia que se nota no poeta
português:
Encore tout enfant, j’admirais le forçat intraitable sur qui se referme toujours le
bagne; je visitais les auberges el les garnis qu’il aurait sacrés par son séjour; je
voyais avec son idée le ciel bleu et le travail fleuri de la campagne; je flairais sa
fatalité dans les villes. Il avait plus de force qu’un saint, plus de bon sens qu’un
voyageur – et lui, lui seul! pour témoin de sa gloire et de sa raison.
367
Ao mencionar o caráter intratável desse condenado, Rimbaud estabelece uma
espécie de modelo de sujeito que não só se encontra à margem da sociedade, mas que,
363
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
364
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
365
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
366
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
367
RIMBAUD, 2002, p. 181. (Grifos do autor). A tradução é de Mário Cesariny: “Ainda menino, eu
admirava o forçado intratável ante o qual se abre sempre a porta da cadeia; percorria os lugares que ele
santificara com o seu trabalho; via, com olhos seus, o céu azul e a florida laboração da terra; procurava,
nas cidades, a sua fatalidade. Ele era mais forte que um santo, mostrava mais bom-senso que um
viandante – e era ele, só ele, o único testemunho da sua glória e da sua razão” (R
IMBAUD, 2007, p. 124).
por sua força, resistência e integridade, pode ser associado a um santo, servindo a uma
causa sagrada, com sua razão superior. Também neste ponto, verifica-se a aproximação
entre o poeta francês e Sá-Carneiro, o qual estabelece a diferenciação de muitos dos
sujeitos de seus enunciados como algo que deve ser objeto de veneração, ainda que em
meio ao maior estranhamento. No já citado “Ressurreição”, a loucura, por ser atributo
daquele que se diferencia da gente normal, é considerada, pelo protagonista, “uma
sagração”, quando ele afirma: “‘Ser louco (...) é ter um pouco de Deus na alma’”
368
.
É aos seres à margem de uma sociedade hipócrita, fútil e mesquinha, isto é, aos
loucos, aos desequilibrados e desajustados, que pertence a potência para a descoberta do
novo, para uma ação de descortinar os mistérios, que tanto Sá-Carneiro quanto Rimbaud
associam a um modo particular de alargamento dos sentidos, de ampliação do universo
e do próprio ser. À margem é onde se coloca o poeta, que deve estar disposto a lutar
para alcançar o desconhecido.
Aliás, também aqui se apresenta uma afinidade entre os dois autores, que diz
respeito, justamente, à figuração da luta que trava o poeta para se afastar da realidade,
superando-a. Em comentário a um poema de Fernando Pessoa, Sá-Carneiro mostra o
seu gosto pela figura do poeta como aquele que “esgrime, brande o gládio contra o
desconhecido, o infinito, que quer abraçar, compreender, sintetizar”
369
. Em
“Escavação”, poema do primeiro volume do autor, vê-se a íntima associação entre a luta
e a arte: “Nada tendo, decido-me a criar: / Brando a espada: sou luz harmoniosa / E
chama genial que tudo ousa / Unicamente à força de sonhar...”
370
. Em “Escala”, de
Indícios de ouro, o desejo é o de retomar a luta, para a conquista das possibilidades da
fantasia: “Eia! Que empunhe como outrora a lança / E a espada de Astros – ilusória e
368
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
369
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 733. (Grifo do autor).
370
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 57.
nua!”
371
. Em Rimbaud, por sua vez, em um poema como “Adieu”, de Une saison en
enfer, é após a menção à qualidade do combate espiritual (“Le combat spirituel est aussi
brutal que la bataille d’hommes”
372
), que se tem a imagem da futura conquista da
cidade.
Tanto em um quanto no outro autor, o poeta se apresenta como um ser que se
encontra em um espaço limite entre o mundo e outra dimensão, a que só se pode ter
acesso por meio de uma experiência em que o gênio, categoria importante nas obras de
ambos, seja atuante. Mais acima, mencionei a aparição desta figura, em “Conte”, do
poeta francês. Agora, lembro, também, que o último poema de Illuminations se chama
“Génie”. Aqui, há uma sorte de espírito inspirador, uma potência que parece poder levar
o homem a ultrapassar os seus limites, sobrepujando quaisquer condicionamentos. A
entidade se liga à fecundidade do espírito, ao alargamento do universo (“Ô fécondité de
l’esprit et immensité de l’univers!”
373
), constituindo-se como algo que está dentro e fora
do homem, e que pode ser encontrado, ou reencontrado, e experimentado por ele: “ô
jouissance de notre santé, élan de nos facultés”
374
.
Em Sá-Carneiro, a ideia do gênio também aparece, relacionando-se a uma forma
de saber específica, que é atributo da diferenciação do sujeito. Em “Ressurreição”, texto
no qual se faz o elogio de todos os que “tiveram o gênio de arder, de dar o grande salto,
de mergulhar o abismo”
375
, caracteriza-se o protagonista como o genial escritor, cujas
“mãos sagradas”
376
são capazes de eternizar as “ânsias maravilhosas”
377
da imaginação.
Algumas vezes, como em “Asas”, a “intensidade excessiva”
378
do gênio corresponde a
um excesso de desequilíbrio, que marca a condição de inadaptado do artista. Em outras,
371
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 98.
372
RIMBAUD, 2002, p. 204. (O combate espiritual é tão brutal como a batalha dos homens).
373
RIMBAUD, 2002, p. 243. (Ó fecundidade do espírito e imensidão do universo!).
374
RIMBAUD, 2002, p. 243. (ó fruição de nossa saúde, impulso de nossas faculdades).
375
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
376
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 539.
377
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 539.
378
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 486.
como em uma passagem de “Eu-próprio o outro”, ressalta a concepção da infinita
distância que existiria entre o gênio e os homens comuns, aqueles que “se contentam
consigo próprios”
379
:
É inacreditável!
Quase todos se contentam consigo próprios – bastam-se. E vivem, e progridem.
Fundam lares. Há quem os beije.
Que náusea! Que náusea! Não se ter ao menos o gênio de se querer ter gênio!...
Miseráveis!
380
5. No que diz respeito à discriminação de um sujeito capaz de alguma revolta,
diante do mundo e de suas limitações, à configuração do sujeito que não se adapta, que
não se enquadra e se dispõe à luta, começam a aparecer, entretanto, algumas
importantes diferenças entre as poéticas dos dois autores. Quando se tem em vista a
obra do escritor português, não se pode deixar de observar como não se fala na
diferenciação de pessoas cujas atividades não têm algum caráter estético, ou
imaginativo, em sentido mais amplo. Em Sá-Carneiro, a maioria das pessoas é a
“subgente”
381
, seres inferiores, que se contentam com a vida e que nunca tiveram algum
desejo de evasão, como aquele que é próprio do poeta.
Muitas das personagens principais das narrativas do autor português são artistas,
parte de um grupo de “pessoas enigmáticas, incompreensíveis”
382
, que não se curvam às
convenções, como o escultor de “Loucura...”, Raul Vilar. As mulheres por quem as
bizarras personagens do escritor se apaixonam são atrizes, como a Júlia Gama, de “O
incesto”, dona de uma “beleza misteriosa”, com sua “cabeleira de fogo” e seus “olhos
de infinito”
383
, ou dançarinas, como a lúbrica figura do poema “Salomé”. Quando um
379
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 503.
380
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 503-504. (Grifos do autor).
381
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 839.
382
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 278.
383
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 303.
cientista é escolhido como protagonista da trama de um dos contos de Céu em fogo, em
“A estranha morte do professor Antena”, é a aproximação entre a ciência e a arte o que
vem justificar a escolha, marcando a diferença do protagonista em relação à “multidão
inferior das esquinas”
384
:
Com efeito um grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A
Ciência é talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural, a mais
irreal, a mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é Prever. Eis pelo
que Newton e Shakespeare, se se não excedem, se igualam.
385
Em Sá-Carneiro, a arte assume um papel tão importante, no sentido da
segregação do sujeito em relação aos seus pares, no sentido da separação entre seres
inferiores, que se contentam com a vida do dia a dia, e seres superiores, sempre
desejosos de ultrapassar as limitações do real, do tempo e do espaço conhecidos, que
tudo o que está fora de sua esfera, incluindo a própria vida real, tudo o que não diz
respeito a um fenômeno artístico, como manifestação da imaginação, passa a ser
desprezível. A única coisa que interessa, de acordo com um ponto de vista como esse,
seria uma arte que fosse como que extra-humana, que tratasse apenas de coisas infinitas,
fantásticas ou extraordinárias.
Observa-se, então, a mais grave consequência da perspectiva que vê apenas na
arte a possibilidade de o sujeito experimentar alguma elevação, distanciando-se do
mundo e alcançando alguma diferenciação. Sá-Carneiro, neste ponto, aproxima-se de
alguns dos princípios do simbolismo e do decadentismo, fazendo corresponder, a uma
espécie de “deificação do ato poético”
386
, o que Massaud Moisés identifica, em
“Langueur”, de Paul Verlaine, como o “desgosto da ação e a certeza de que a vida não
384
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 513.
385
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 513. (Grifo do autor).
386
MOISÉS, 2003, p. 221. Massaud Moisés, ao falar sobre a poesia de António Nobre, observa-a como um
“prenúncio da deificação do ato poético, preconizada e realizada pelo grupo de Orpheu, especialmente
por Mário de Sá-Carneiro, tão emotivo e hipersensível quanto o autor de ”.
vale a pena ser vivida”
387
. Ao contrário do que acontece em Rimbaud, não é apenas o
mundo o que se nega, no autor português, mas a própria vida, que seria como que
diluída em literatura
388
.
A postura de Raul Vilar, em “Loucura...”, quando, disposto a provar a “grandeza
sobre-humana”
389
do seu amor, afirma desprezar a existência, não é muito diferente do
que se vê nas cartas de Sá-Carneiro, em alguns dos poemas ou em outras narrativas
suas. Em correspondência dirigida a Ricardo Teixeira Duarte, o escritor fala sobre o
trabalho literário como a única coisa que “pode ornamentar a existência”
390
. Em outra
carta, dessa vez endereçada a Luís de Montalvor, identifica-se uma raça que “não foi
feita para viver a vida”, uma raça marcada por aquela divisão entre corpo e alma a que
me referi ao longo do capítulo, segundo a qual se teria, nas almas, uma chama imortal,
“sempre heróica em face do temporal, bêbada de céu, sonhando estrelas”, enquanto os
corpos seriam “arrastados na poeira, cheios de lodo”
391
.
Em “O incesto”, as reflexões do narrador estabelecem a arte como um refúgio,
sem o qual não poderia existir o verdadeiro artista, conforme o próprio enunciado do
texto: “se não fossem os belos livros da minha estante e as páginas de má prosa que
escrevo de quando em quando, há muito que eu teria dado talvez um tiro nos miolos”
392
.
O sujeito, nesse caso, é o típico inadaptado, que não sabe “estar numa sala” ou “falar
com senhoras”
393
. Dono de uma visão negativa do homem e do mundo, a qual faz com
que se considere a vida como um “sofrimento eterno”
394
, para ele, no “fundo da alma
387
MOISÉS, 2003, p. 208.
388
É Giorgio de Marchis quem, em O silêncio do dândi e a morte da esfinge, chamando a atenção para a
impossibilidade de se separar os planos da biografia e da ficção, em Sá-Carneiro, indica o processo do
autor como o de “diluir a sua vida em literatura” (M
ARCHIS, 2007, p. 30).
389
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 295.
390
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 1027.
391
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 1015.
392
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 307.
393
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 311.
394
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 328.
humana”
395
, estariam apenas o egoísmo e a covardia. “Bocejante, lazeirento”
396
, a figura
se mostra invejosa dos suicidas, os quais teriam a coragem que lhe falta, a de acabar
com a “doença física”
397
que lhe parece ser a vida. Curiosamente, nesse mesmo
momento, ultrapassando o campo da ficção, Sá-Carneiro, em carta a Luís de Montalvor,
está a pensar que “uma bala seria o remédio”
398
para o sofrimento a que associa a vida.
Com a perspectiva do autor português, aproximada da escolha que Edmund
Wilson associa ao conjunto de simbolistas cujo paradigma é Axel, o sujeito que,
permanecendo no mundo moderno, “recusa-se a participar de suas atividades”
399
,
levando a efeito, quando muito, uma crítica desinteressada, não orientada por uma
“imaginação criativa para as possibilidades da vida humana”
400
, tem-se uma oposição à
ação que não seja predominantemente estética. Giorgio de Marchis aponta a rejeição do
poeta a qualquer “estética militante e socialmente empenhada”
401
. Em 1915, era o
próprio Sá-Carneiro quem vinha a público manifestar a sua posição quanto ao caráter de
Orpheu como revista que se propunha a “uma ação exclusivamente artística”, afastada
da ideia de ter “qualquer opinião política e social – definitiva e coletiva”
402
.
De um projeto assim exposto, não pode deixar de se afastar uma articulação que
oponha a burguesia e o proletariado, ou a nobreza e os camponeses, em uma espécie de
luta de classes, o que se vê em alguns dos poemas de Rimbaud. No poeta francês,
ressalta o desejo de transformar não só o campo restrito da arte, mas a própria vida, a
395
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 321.
396
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 328.
397
Nesse ponto, vale a pena estender a citação: “Para a doença física em que a vida se me tornou, só
existe um remédio: o aniquilamento. No entanto, nunca terei a força de vontade necessária para absorver
esse temível elixir” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 328).
398
Com as palavras da carta, fica evidente como parte da ficção de Sá-Carneiro tem origem nos
sentimentos que ele próprio experimenta: “A doença física em que a vida se me transformara – como
escrevi no ‘Incesto’ – agrava-se hora a hora mesmo aqui neste meio anestesiante. Uma bala seria o
remédio. Mas decididamente não tenho força para tomar essa droga. E o tempo vai passando” (S
Á-
CARNEIRO, 1995, p. 1014).
399
WILSON, 1967, p. 201.
400
WILSON, 1967, p. 202.
401
MARCHIS, 2007, p. 74.
402
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 1037.
moral, o desejo. Aqui, nota-se o anseio por uma experiência de liberdade, o gosto por
uma vida experimentada com a máxima intensidade, na errância, o que se opõe à
persistente recusa da vida, conjugada ao repúdio a um movimento relativamente amplo
de renovação, visíveis em Sá-Carneiro.
Este último, com efeito, como bem evidencia Giorgio de Marchis, em sua
aproximação do autor com o Fradique Mendes, de Eça de Queirós, ambas figuras
representantes do dandismo, não poderia ser considerado um revolucionário, devendo,
antes, ser pensando, nos termos de Isabel Pires de Lima, como uma espécie de “rebelde
na passividade”
403
. Trata-se, aqui, de um sujeito que, em alguma medida, provoca, mas
não transgride e se revolta explicitamente, daquele que “zomba das regras ao mesmo
tempo em que ainda as respeita”
404
, ou que experimenta uma “rejeição sem
distanciamento da sociedade que despreza”
405
. Segundo o autor italiano, está-se, neste
âmbito, diante de sujeitos que, “aparentemente isolados, permanecem sempre no interior
do grupo que pensam dominar, mas do qual na realidade dependem”
406
.
Em alguns casos, a expressão do escritor português é tocada pela mesma
agressividade que se vê em poemas de Rimbaud, como quando ele fala sem reservas
sobre o que percebe como falsos artistas, no caso, provincianos portugueses, que
encontra em Paris: “Lepidópteros! Lepidópteros! Mereciam que os ungissem de bosta
de boi!... E não haver uma lei que proíba a exportação de semelhantes mariolas!...
Sujam, enchem Paris de escarros verdes!”
407
. Note-se, entretanto, que tal agressividade
não deixa de ter um caráter profundamente aristocrático e elitista
408
.
403
LIMA apud MARCHI, 2007, p. 46.
404
D’AUREVILLY apud MARCHI, 2007, p. 47.
405
MARCHI, 2007, p. 46.
406
MARCHI, 2007, p. 94.
407
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 805.
408
É interessante notar como Sá-Carneiro gosta de associar a riqueza do espírito à nobreza, à imagem do
fausto dos grandes palácios, ainda que arruinados, como se vê em alguns dos poemas de Indícios de ouro.
“Taciturno”, desse livro, em que o sujeito começa por falar do ouro que existe em si, da joia profunda que
é a sua alma, termina assim: “Há roxos fins de Império em meu renunciar – / Caprichos de cetim do meu
Sob outro aspecto, é preciso notar que a negatividade de Sá-Carneiro em relação
à vida levará, necessariamente, a um repúdio à natureza, o qual também vai ao encontro
de perspectivas simbolistas e decadentistas, como a que entende que “o natural é
detestável e só o artificial é fonte de beleza”
409
. Nesta questão, entretanto, acontece algo
interessante, quando se comparam os desdobramentos das obras de Rimbaud e do poeta
português.
Em um primeiro momento, ambos os autores estão em acordo, no que diz
respeito a certo elogio do que seria natural, quando partem de um pressuposto comum, o
de que a sociedade, com suas convenções e costumes, considerados estúpidos, mitigam
o crescimento do sujeito. A figura do artista Cesário, em “Amizade”, é emblemática de
uma posição com a qual são repudiadas as limitações que a sociedade impõe ao livre
exercício dos impulsos animais do homem, como ao desejo sexual, que é sufocado por
uma moral tola. O que se vê em “O incesto”, onde o narrador fala que “a natureza ainda
é uma das raras coisas que não vale a pena aperfeiçoar”
410
, e em boa parte de
“Loucura...”, ambos de Princípio, não é muito diferente.
Ao se observar o desenvolvimento da obra de Sá-Carneiro, nota-se, contudo,
como procurei evidenciar, ao longo do capítulo, que a perspectiva inicialmente um tanto
naturalista dos primeiros textos vai sendo abandonada, à medida que ganha consistência
a exaltação do mundo da fantasia, emanação de um mundo interior alargado, que
permitiria ao sujeito ultrapassar os limites do real. Em “O homem dos sonhos”, a
negação da natureza alcança pontos extremos. A personagem principal só encontra a
felicidade no afastamento do mundo real, a que se identifica o mergulho no mundo dos
desdém Astral... / Há exéquias de heróis na minha dor feudal – / E os meus remorsos são terraços sobre o
Mar...” (SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 88).
409
PEYRE, 1983, p. 67.
410
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 322.
sonhos. No discurso a seguir, supostamente transcrito pelo narrador da história, vê-se a
posição do protagonista:
A vida, no fundo, contém tão poucas coisas, e é tão pouco variada... Olhe, em
todos os campos. Diga-me: ainda se não enjoou das comidas que lhe servem
desde que nasceu? Enjoou-se, é fatal; mas nunca se recusou porque é um
homem, e não pode nem sabe dominar a vida. Chame os mais belos cozinheiros.
Todos lhe darão legumes e carnes – meia dúzia de espécies vegetais, meia dúzia
de espécies animais. Mesmo, na Terra, o que não for animal ou vegetal é sem
dúvida mineral... Eis o que demonstra bem a penúria inconcebível da
Natureza!
411
A figura que considera “a vida humana (...) uma coisa impossível”
412
, aquele que
afirma que “o maior vexame que existe é viver a vida”
413
, em suas viagens ao exótico
universo dos sonhos, chega a imaginar um “mundo perfeito onde os sexos não são dois
só”
414
, assim como uma forma de relação sexual em que seria possível experimentar
“outros espasmos que residem noutros órgãos”
415
, como nos olhos, através dos quais se
viveria uma relação, ao mesmo tempo, física e imaterial. Mais ou menos da mesma
linhagem seria o Inácio de Gouveia, de “Ressurreição”, que imagina a distinção entre
artistas e pessoas comuns, nestes termos: “A ‘natureza’ é para a gente-sadia, a subgente
normal...”
416
.
Ainda sobre este aspecto, é preciso observar como o ponto de vista que daria
origem a poemas como “Le bateau ivre” (“Les Fleuves m’ont laissé descendre où je
voulais”
417
), ou “Bannières de mai” (“À toi, Nature, je me rends”
418
), onde é sugerida a
associação entre o contato íntimo do sujeito com a natureza e a fuga das limitações do
mundo conhecido, não poderia se adequar a um espírito cosmopolita, como o de Sá-
411
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 476.
412
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 477.
413
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 477.
414
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 478.
415
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 480.
416
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 569. (Grifos do autor).
417
RIMBAUD, 2002, p. 122. (Os Rios me deixaram baixar onde eu queria).
418
RIMBAUD, 2002, p. 154. (A ti, Natureza, eu me entrego).
Carneiro. Este, um entusiasmado pela Europa e por Paris, lugar onde se teria alcançado,
positivamente, o apogeu da civilização ocidental, distancia-se bastante de uma
perspectiva predominante, em Rimbaud, o qual veria, no retorno a uma espécie de
natureza selvagem, um caminho para a superação das limitações do mundo
contemporâneo.
Neste sentido, não se pode imaginar o escritor francês a ratificar palavras como
as de Ricardo de Loureiro, de A confissão de Lúcio, quando faz a exaltação da grande
cidade: “Só posso viver nos grandes meios. Quero tanto ao progresso, à civilização, ao
movimento citadino, à atividade febril contemporânea!...”
419
. O poeta francês se sentiria
pouco confortável na presença de uma “criatura européia e vibrante, civilizada na sua
conversa, na sua arte e na sua vida”
420
, como é descrito o protagonista de
“Ressurreição”, exaltado com as parisienses “vibrações de Progresso”
421
.
Quando se pensa na separação entre mundano e espiritual, a qual, muitas vezes,
faz com que, nos textos de Sá-Carneiro, o corpo seja visto como algo infame,
igualmente, os dois autores se afastam. Na obra do escritor português, não são poucos
os momentos em que o corpo é repelido, em nome de algo mais etéreo, como a fantasia,
de preferência aquela que é vaga, imprecisa, impalpável. “Ressurreição” talvez seja o
momento em que esta repugnância atinge um ponto máximo.
No conto, o protagonista manifesta uma desilusão com o contato físico,
infinitamente inferior às fantasias que o antecediam, quando ele ainda não conhecia o
que chama de “o horror dos sexos”
422
. A separação entre o corpo e a alma, indício de
um homem duplo, observa-se, entre muitos outros momentos, quando Inácio de
419
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 371.
420
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 573. (Grifo do autor).
421
Em um trecho elaborado com uma sucessão de imagens justapostas, vislumbra-se o que há de
Futurismo em Sá-Carneiro: “Longes de torres de aço, altas chaminés das oficinas – pontes, andaimes,
guindastes, cremalheiras – fábricas titânicas, silvos de locomotiva – vibrações de Progresso, murmúrios
de Amanhã...” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 544).
422
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 546.
Gouveia é qualificado como uma “alma sensível”, que despreza as “coisas peganhentas
e úmidas, malcheirosas, repugnantes”
423
, as quais associa à relação sexual. A negação
do contato entre os corpos chega a fazer do onanismo uma prática privilegiada, com a
qual se experimentariam “carícias solitárias, limpas e agudas”
424
. Tentando evitar a
“lembrança do mundo real, sexualizado e infame”
425
, o protagonista procura atingir um
“êxtase fantástico, de vibrações infinitas
426
, produto de uma imaginação que não pode
se deixar corromper, de uma alma que não deve se deixar afetar pelo mundo.
O escritor português, como se viu mais acima, localiza, frequentemente, na
alma, os anseios que levam o artista ao desejo de elevação. Haveria, aqui, o que Maria
Aliete Galhoz identifica como uma “luta pela afirmação da superioridade do espírito”,
projetando-se a alma como “o mito fundamental” de uma “integridade não dispersa”
427
.
Em Rimbaud, de modo significativo, acontece algo diferente. A postura crítica do poeta
francês não deixa de atingir a própria noção de alma, sobretudo, quando esta se
identifica ao espírito, à inteligência ou a certo refinamento. Lembre-se, neste sentido, o
comentário que fiz a “L’impossible”, de Une saison en enfer, quando destaquei a
formulação com a qual se concebe o espírito como fruto de um conjunto de dogmas,
criação de uma civilização, o Ocidente, de onde o sujeito sente ser impossível escapar,
apesar da consciência de que é preciso fazê-lo para que se realize o seu desejo.
Na obra do autor de “Ressurreição”, é verdade que há momentos nos quais se
valoriza a experiência sensível, como forma de ampliação da consciência e de
transformação do próprio sujeito, de modo semelhante ao que acontece em Rimbaud,
em poemas como “Sensation”. Basta reparar os muitos momentos em que o escritor
português faz uso da sinestesia, em seus textos, para identificar como aí tem lugar uma
423
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 546.
424
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 549.
425
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 549.
426
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 550.
427
GALHOZ, 1963, p. 105.
exploração das possibilidades dos sentidos físicos, através dos quais, afinal, torna-se
concretizável qualquer reconhecimento sensível, qualquer “provação sensitiva”
428
, para
usar os termos de Galhoz. Em A confissão de Lúcio, tem-se um bom exemplo desse uso.
A festa na casa de uma “americana bizarra”
429
, ainda na primeira parte da narrativa,
propicia ao narrador uma série de sensações inusitadas, como a de sentir o cheiro de
“uma brisa cinzenta com laivos amarelos
430
, ou a de sentir a luz, mais do que vê-la,
uma luz que não impressiona a vista, mas sim o tato.
Em termos comparativos, entretanto, enquanto a experiência dos poemas de
Rimbaud tendem a ser vivenciadas no contato do sujeito, como corpo e alma, com o
mundo, em Sá-Carneiro predomina uma tendência a esfumar toda concretude, segundo
a lógica de que o caráter misterioso do impalpável tem um valor sempre superior. Em A
confissão de Lúcio, mesmo o episódio da festa, cheia de voluptuosidades
extraordinárias, refere-se a uma “orgia de carne espiritualizada em ouro”
431
, em que os
sujeitos não se “excitavam fisicamente em desejos lúbricos e bestiais”
432
, por se tratar
de uma “ânsia de alma”
433
. O narrador, o próprio Lúcio, explica-se: “Sim, todos esses
elementos se fundiam num conjunto admirável que, ampliando-a, nos penetrava a alma,
e que só a nossa alma sentia em febre de longe, em vibrações de abismos. Éramos todos
alma”
434
. Não se pode deixar de reparar a distância disso em relação à formulação que
encerra Une saison en enfer, quando o sujeito se exalta com a vitória sobre o sofrimento
428
GALHOZ, 1963, p. 117. Considerando o autor como “um poeta místico”, pelo apego ao mistério, ao que
não se dá segundo as leis naturais ou físicas, Maria Aliete Galhoz explora, mais do que eu o faria, a
fixação de Sá-Carneiro no “mito de ‘eros’, na provação sensitiva”.
429
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 356.
430
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 361. (Grifos do autor).
431
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 361.
432
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 363.
433
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 363.
434
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 363.
do inferno, prevendo que lhe será possível, após o término da cruel estadia, “posséder la
vérité dans une âme et un corps
435
.
435
RIMBAUD, 2002, p. 204. (Grifos do autor). (possuir a verdade em uma alma e um corpo).
Capítulo II
A ascensão
*
1. Sá-Carneiro e Rimbaud têm, ambos, um poema intitulado “Partida”, em
francês, “Départ”. A composição do escritor português abre o seu primeiro volume de
poemas, Dispersão, como uma espécie de pórtico para o conjunto de que faz parte. O
autor, em carta a Fernando Pessoa, que acompanha o processo de surgimento dos
poemas do livro, à distância, através da correspondência do amigo em Paris, afirma que
o texto “será como que um prefácio, uma razão de ser do que se segue”. São quatorze
estrofes, todas com quatro versos decassílabos, que dão ao poema o “talhe clássico” a
que o autor se refere na mesma carta, adotando a ideia de que “a toada certa facilita o
trabalho”
436
. Como se verá, a composição tem lugar central no que diz respeito à
apresentação da ascensão, na obra do escritor português, cujos limites são
constantemente marcados pela possibilidade da queda, da estagnação, do afrouxamento
dos anseios que impulsionam o poeta para o alto.
O poema “Départ”, de Rimbaud, incluído entre os textos de Illuminations, não
tem, no contexto da obra do autor, a mesma centralidade que “Partida” tem na obra do
outro. A composição, entretanto, pode ser afiliada ao que Louis Forestier, como se disse
no capítulo anterior, chama de uma “poétique (...) du départ”
437
, da qual se veriam sinais
muito antes de o poeta ter escrito os textos do que seria o seu último livro.
Em “Départ”, composição de apenas quatro linhas, em um único parágrafo, que está
bem distante da “toada certa” de que fala Sá-Carneiro, destaca-se o impulso para que
não se abandone o caminho da busca por novas descobertas, novos afetos, novos sons.
Aqui, é com “l’affection et le bruit neufs”
438
que se constitui a partida, a qual se
relaciona a uma vontade de superação do que já se conhece, no seio de um constante
436
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 779. (Grifo do autor).
437
In: RIMBAUD, 2002, p. 282. (poética (…) da partida).
438
RIMBAUD, 2002, p. 216. (a afeição e o ruído novos).
processo de aprendizagem, necessário para fazer frente ao labirinto das limitações cuja
imagem tentei fornecer no capítulo anterior.
2. A fim de se observar como se trata o problema da ascensão, em primeiro
lugar, na obra de Sá-Carneiro, será interessante recuar um pouco no tempo, para antes
da publicação de Dispersão, em que se encontra o poema “Partida”. Valerá a pena fazer
um breve comentário sobre algumas narrativas de Princípio, as quais, não sendo ainda
parte da obra mais sólida do autor, revelam algumas de suas concepções iniciais. Nos
contos mais curtos, há momentos em que se menciona algum tipo de evasão do mundo
real, relacionada a uma insatisfação subjetiva. Embora tocados por certa ironia, com que
o autor pretende se afastar dos lugares comuns do romantismo, os textos já trazem as
personagens que de algum modo se sentem desconfortáveis ou limitadas pelas
circunstâncias da vida concreta.
439
Na narrativa que abre o livro, “Em pleno romantismo”, o protagonista se
apaixona por uma mulher de saúde extremamente frágil, destinada a uma vida curta. O
sujeito tem em mente que está a “amar a morte”
440
, sentindo-se atraído pela figura de
uma “formosura etérea, que já não é deste mundo”
441
. Após o falecimento da amada, o
jovem apaixonado acredita poder voltar a vê-la, imaginando a morte não como um fim
absoluto, mas como um espaço aberto para além da vida. As últimas anotações de seu
diário fazem explícita menção ao desejo de evasão do mundo concreto. Em um trecho
específico, utiliza-se o verbo partir: “Faz hoje um mês... Quero vê-la... quero vê-la!...
Quero beijar-lhe a boca... quero estreitar o seu corpo contra o meu... quero confundir a
sua alma com a minha... Quero-a! Quero-a! Vou partir...”
442
.
439
Sá-Carneiro dizia que, neste livro, “apesar do erro das digressões e da realidade da forma”, explorava-
se “loucura – que é um outro infinito” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 752). (Grifo do autor).
440
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 253.
441
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 252.
442
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 254.
Em outro dos contos mais curtos do volume, “Página dum suicida”, da mesma
sessão do primeiro, intitulada “Diários”, observa-se a exposição do desejo de
“desvendar o misterioso véu”
443
da morte. Na narrativa, em que, segundo o autor,
embora sendo uma das “menos valorosas do livro”, haveria já uma “ampliação
completa”
444
, destaca-se o perfil de um sujeito que se define como um “arrojado
descobridor de mundos”, um “espírito aventuroso e investigador por excelência”
445
.
Levado por uma simples curiosidade (“Não posso resistir à ‘curiosidade’! Vou partir
portanto!...”
446
), de quem parece se enfastiar com as limitações da vida terrena, o
protagonista está decidido a se transportar para outra dimensão, onde se daria o encontro
com o desconhecido.
No discurso de despedida da personagem, ressalta, mais uma vez, a presença do
verbo partir: “Parto apenas para uma exploração arrojada, cheia de perigos e donde não
poderei voltar, é certo...”
447
. A figura que se orienta pelo impulso de desvendar
mistérios, de se abrir a outras formas de experiência, aquele que, segundo seu criador,
deseja “à força (...) partir para o desconhecido”
448
, aproxima-se do tipo mais comum do
artista, em Sá-Carneiro. Note-se, entretanto, que, não sendo um artista, a personagem
não vê outra forma de evasão que não seja a morte.
Dentre os contos de Princípio, será em “Loucura...”, mais timidamente, e em “O
incesto”, de modo um pouco mais consistente, que se verá apontar, na obra do autor, a
fundamental articulação que falta nos textos anteriores, aquela entre o desejo de evasão
do mundo real e as faculdades criativas. Tem-se, aqui, um momento central, na
trajetória desta obra, quando se define a associação entre a arte e a elevação. O novo
443
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 262.
444
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 752.
445
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 262-263.
446
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 262. (Grifo do autor)
447
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 263.
448
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 752.
arranjo permitirá ao sujeito que deseja deixar a vida, espaço da limitação ou do tédio,
não ver apenas na morte o lugar para o qual partir.
No primeiro dos textos, a novidade se mostra de modo apenas tangencial, uma
vez que o protagonista da trama, o escultor Raul Vilar, embora alçado a um “pedestal de
bizarria”
449
, não chega a fazer de sua arte um instrumento para alcançar outros mundos,
do mesmo modo que não o faz o narrador. É em “O incesto”, não por acaso a
composição mais recente e a mais extensa do livro, que as coisas vão mais longe.
Na narrativa que tem como protagonista o dramaturgo Luís de Monforte,
enfatiza-se a glória almejada pelo artista, a qual o narrador chama, em uma primeira
passagem, de “quimera de ouro, astro radiante, divindade temível”, e mais a frente, de
“a deusa luminosa imersa no azul, a grande encantadora”
450
. Apresenta-se o processo da
criação artística como o que deixa o sujeito em um estado de alheamento, “como se
andasse constantemente bêbedo”, “numa grande tensão de espírito”
451
. Nas reflexões do
narrador, cujo vocabulário e imagens são já os dos livros posteriores, associa-se o prazer
de criar a uma “alegria inefável”
452
, assim como a loucura a um arroubo da alma, que
deseja alçar voo, “bater asas pelo azul”, “perder-se no infinito”
453
. Ao final do texto, em
um trecho singularmente estranho, aparentemente desligado do restante da narrativa, o
qual parece ser uma espécie de alegoria, apresenta-se a figura do artista como um
“arquiteto sublime”, construtor de torres destinadas a sua subida “às cumeadas”
454
, onde
se encontraria a glória:
449
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 274.
450
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 308.
451
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 302. É do mergulho neste estado que, em um determinado momento, no
percurso do protagonista da narrativa, terá origem uma “obra-prima singular e perturbadora” (SÁ-
C
ARNEIRO, 1995, p. 339), de nome “Céu em fogo”.
452
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 306.
453
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 339.
454
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 348.
O arquiteto sublime, o grande construtor das torres, acumulara andares sobre
andares, e a torre maravilhosa tocava quase o céu. Quisera subir às cumeadas...
E fora escalando sempre triunfante a ladeira da vida. Do alto da sua torre, do alto
da cúpula de aço refulgente, debruçava-se para ver o seu triunfo. E via a
Glória.
455
Ao se ler a passagem, não se pode deixar de lembrar a figura de Dédalo, o
mitológico arquiteto, construtor do labirinto e das asas que permitiriam dele escapar.
Como no mito de Ícaro, é um desejo de ascensão o que aqui se manifesta. O arquiteto,
figura que toma o lugar do dramaturgo da trama do conto, constrói torres, em especial,
uma “torre maravilhosa”
456
, que parece poder tocar o céu. Deseja-se subir ao ponto mais
alto, numa escalada constante, ao longo da vida. Do alto de sua torre, o arquiteto
atingiria o grau mais elevado de um percurso vertical que se inicia no chão, de onde ele
se desloca até o extremo superior, o vértice.
Tendo sequência o texto, entretanto, oblitera-se a conquista. Ecoa a espécie de
loucura que teria atingido o protagonista do enredo: “Mas de súbito houvera um bater
de asas negras. Ao mesmo tempo, as nuvens áureas, turbilhando, cegaram-lhe a vista: se
olhava para a terra, o solitário do azul não via a terra, se olhava para o céu, não via o
céu...”. Novamente lembrando o mito de Ícaro, tem-se a menção às asas, mas se trata de
asas negras, que apontam para um lado sombrio da experiência artística, em que o
sujeito sente perder a sua lucidez ou a sua integridade: “Em vez de luz, as trevas
impenetráveis; em vez das alturas, a profundidade”
457
. Aos momentos de ascensão, os
quais se experimentam por intermédio da criação artística, segue-se uma inevitável
queda, quando o sujeito parece se dissipar, cedendo à loucura ou à morte.
A associação entre a arte e a ascensão, vislumbrada em “O incesto”, aparecerá
com mais clareza em Dispersão, livro em que, desde o início, já se reconhece, na
455
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 348.
456
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 348.
457
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 348.
fantasia, na criação, a forma por excelência de elevação do artista. Na emblemática
composição que abre o volume, nota-se de maneira clara quais são os anseios do poeta e
o que ele acredita ser o seu destino. Não posso deixar de transcrever todo o poema:
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.
Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam refletir.
A minha alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.
Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.
É subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.
Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...
Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de sutil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão – Altura!
E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...
Miragem roxa de nimbado encanto –
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.
Sei a Distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...
....................................................................
....................................................................
O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor – é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus...
*
* *
Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...
458
Após as três primeiras estrofes, em que se mostra certa tensão entre a aceitação
da vida comum, com suas “águas certas”, e a escolha de uma vivência extraordinária,
identificada a uma espécie de salto na bruma, destaca-se a menção a um movimento em
sentido vertical, através do qual se poderia alcançar uma região inexplorada, um lugar
fora do tempo e do espaço comuns. Atingir esse lugar, naturalmente, só poderia
acontecer por meio da criação poética, a qual implicaria uma transformação do sujeito,
com a quebra dos limites que o prendiam a si mesmo. Com a alma ampliada, a se
expandir, como se diz em dois dos versos mais expressivos do autor (“E numa extrema-
458
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 55-56.
unção de alma ampliada, / Viajar outros sentidos, outras vidas”), o poeta se abre à
experimentação de algo supostamente mais intenso, mais vasto do que aquilo que se
conhece.
Na oitava e na nona estrofes, versos justapostos remetem a uma sucessão de
formas assumidas pelo sujeito, por aquele que se lança ao salto poético. Evidencia-se,
na pluralidade dos elementos nomeados, a dispersão do que antes seria uma unidade
subjetiva, inteira em si mesma. Quando se apontam as formas de disseminação do
sujeito, faz-se referência ao voo, à ascensão: “Asa longínqua a sacudir loucura, / Nuvem
precoce de sutil vapor, / Ânsia revolta de mistério e olor, / Sombra, vertigem, ascensão
– Altura!”. É com o movimento da asa, a figurar, metonimicamente, o voo,
impulsionado por uma ânsia fora do comum, que se atinge a altura, à qual se entrega o
poeta: “E eu dou-me todo neste fim de tarde / À espira aérea que me eleva aos cumes”.
Na décima primeira estrofe, conjuga-se, mais uma vez, a extraordinária vivência,
de caráter poético, e a expansão. O sujeito se alarga, estende-se, propaga-se, triunfante,
para além de todos os limites: “Alastro, venço, chego e ultrapasso”. A transformação dá
lugar, do mesmo modo que antes, a elementos diversos: “Sou labirinto, sou licorne e
acanto”. A experiência é associada, ainda, a uma forma única de conhecimento, a qual,
por sua vez, reforça a transfiguração.
A décima segunda estrofe se inicia com o verbo saber, conjugado na primeira
pessoa do singular, no presente, no verso que traz, igualmente, o verbo compreender,
pertencente ao mesmo campo semântico. Cria-se uma relação entre o conhecimento e o
salto poético: “Sei a Distância, compreendo o Ar”. A estrofe, que fecha uma primeira
parte do poema, termina com a repetição do verbo ser, na mesma pessoa e no mesmo
tempo dos verbos anteriores, em uma identificação entre o saber e a expansão
transformadora do ser: “Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; / Sou taça de cristal
lançada ao mar, / Diadema e timbre, elmo real e cruz...”.
Após as duas linhas contínuas de pontos finais, é ainda o triunfo do artista o que
se vê, a sua apoteose, que se acompanha da mudança de seu estado, da expansão de seus
sentidos, que se abrem a novas percepções, a novas formas: “Que apoteose imensa pelos
céus! / A cor já não é cor – é som e aroma!”. Em seguida, surge um verso de que o autor
diria gostar, especialmente, por apresentar o que chama de certo “orgulho desmedido”,
o de julgar ter sido Deus, “em face do turbilhão de maravilhas”
459
em que sente o seu
espírito se lançar, no auge da criação poética. Ultrapassando todas as medidas, seria
possível ultrapassar o próprio homem, no sentido da conquista de um poder
excepcional, de caráter sublime, etéreo.
Nos dois primeiros versos da última estrofe, o sujeito do enunciado volta a
afirmar o que é o seu destino, a sua missão de artista: “Ao triunfo maior, avante pois! /
O meu destino é outro – é alto e é raro”. Na sequência, entretanto, surge a nota de
desencanto. O poeta reconhece o preço que deve pagar por estar destinado a não ser
como os outros, como as pessoas comuns, em dois versos que já foram alguma vez mal
interpretados: “Unicamente custa muito caro: / A tristeza de nunca sermos dois...”. Ao
final do poema, confirma-se, em tensão com a exaltação anterior, a solidão a que estaria
destinado o poeta, e o sofrimento que isto lhe causa.
Poderia ser de se esperar, com um pórtico como “Partida”, que, nos demais
poemas de Dispersão, houvesse uma recorrência da conjugação entre a vivência estética
e a ascensão, no sentido da abertura de espaço a uma forma de descoberta do que ainda
não se conhece. Embora essa associação esteja sempre presente, entretanto, o que se
verifica é que o sucesso da experiência costuma ser frágil demais. Na quase totalidade
459
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 749.
dos poemas do livro, ressaltam breves referências a momentos passageiros em que
alguma elevação teria sido possível, em meio ao predomínio da sensação de fracasso, do
tédio, do vazio ou de uma forte desolação.
Em um poema como “Além-tédio”, faz-se menção à partida, inclusive com uma
referência à ascensão, a que se relacionam, em específico, duas forças, uma mais
prospectiva, a ambição, e outra retrospectiva, a nostalgia. Destaca-se o entusiasmo para
a conquista do novo, do desconhecido, que parece levar a uma espécie de sublimação,
como aquela que se via em “Partida”: “Outrora imaginei escalar os céus / À força de
ambição e nostalgia, / E doente-de-Novo, fui-me Deus / No grande rastro fulvo que me
ardia”
460
. A experiência, entretanto, além de ser associada ao passado, teria durado
muito pouco, restando a melancolia que dá o tom geral da composição: “Parti. Mas logo
regressei à dor. / Pois tudo me ruiu... Tudo era igual”
461
. Em outro poema, “Escavação”,
associa-se a potência do sonho à geração de uma luz harmoniosa, mas, novamente, o
que se tem é um triunfo bastante efêmero: “Mas a vitória fulva esvai-se logo... / E
cinzas, cinzas só, em vez de fogo...”
462
.
Além de “Partida”, o fato é que apenas mais dois textos de Dispersão figuram
com certo alcance a ascensão. “Álcool”, a quarta composição do conjunto, é um deles.
Na segunda estrofe do poema, são mais uma vez as asas, agora de auréola, que servem
de metonímia para o voo, com o qual se vivencia um alargamento sinestésico dos
sentidos: “Batem asas de auréola aos meus ouvidos, / Grifam-me sons de cor e de
perfumes”. Figura-se uma intensa agitação, geradora de um impulso que, ao provocar
certa expansão, força os limites do sujeito, não podendo deixar de implicar a sua
460
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 69.
461
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 69.
462
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 57.
dispersão: “Ferem-me os olhos turbilhões de gumes, / Desce-me a alma, sangram-me os
sentidos”
463
.
Na sequência do poema, menciona-se a ação do sujeito do enunciado sobre si
mesmo (“Respiro-me no ar que ao longe vem”), a qual é carregada de uma espécie
muito particular de luz: “Da luz que me ilumina participo”. Esta, agora, entretanto,
aparece revestida de algo ameaçador, uma vez que, no verso seguinte, o que se expressa
é o desejo de se conter a dissipação: “Quero reunir-me, e todo me dissipo”. Nesse
momento, o poeta se mostra temeroso, desejoso de resistir ao que sente como uma
perda. A vivência se torna infernal (“Que droga foi a que me inoculei? Ópio de inferno
em vez de paraíso?...”), quando o sujeito não suporta abandonar a própria estabilidade, o
reconhecimento de si mesmo como unidade: “Corro em volta de mim sem me
encontrar... / Tudo oscila e se abate como espuma...”. Diante da possibilidade da
ascensão, que se vislumbra em um horizonte próximo, tem-se um recuo. O poeta, como
que antecipando o momento da queda, deseja afastar os riscos que deve enfrentar: “Um
disco de ouro surge a voltear... / Fecho os meus olhos com pavor da bruma...”
464
.
Algo um pouco diferente acontece em “Rodopio”, o penúltimo texto do livro,
em que é também uma forma de agitação vertiginosa o que se experimenta, uma espécie
de delírio, o qual configura “o equilíbrio do desequilíbrio artístico da composição”
465
,
conforme o autor o define, em carta a Fernando Pessoa. Os versos do poema são um
exemplo único, na obra de Sá-Carneiro. Dessa vez, não se manifesta a tensão entre a
permanência da identidade e a sua desintegração, que se vê em “Álcool”, assim como
não se observa a nota melancólica do final de “Partida”. Falta, agora, a expressão de
algo que seja exterior à vertigem em que se encontra o sujeito, uma vez que tudo o que
463
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 59.
464
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 59.
465
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 781.
existe se movimenta no interior de seu universo mais íntimo, positivamente múltiplo e
convulso.
Na composição, volteia, dentro do sujeito do enunciado (“Volteiam dentro de
mim, / Em rodopio, em novelos”), uma série de elementos díspares, algumas vezes
opostos uns aos outros (“Há missas e bacanais”), mas todos compondo um conjunto do
que o texto denomina “maravilhas”. O rodopiar de substâncias tão variadas como
“uivos”, “castelos”, “faróis”, “madeixas ondeantes” e “cartas rasgadas
466
, as quais não
se alinham em nenhuma unidade, equivale à dispersão, tanto dos objetos como do
sujeito, naquilo que o autor designa, como se viu mais acima, ao comentar um verso de
“Partida”, como um “turbilhão de maravilhas”
467
.
Em todo o poema, destaca-se a quantidade de verbos a indicarem movimentos
mais ou menos dispersivos. Ainda na segunda estrofe, diz-se que “ondeiam lanças e
mastros”, como se estes se espalhassem em ondas, propagando-se, através do mesmo
espaço em que há “estátuas de heróis” e “promontórios”, esta última uma palavra que
sugere o alto, a elevação
468
. Na sequência, são “cortejos de luz” que “singram”,
“estilhaços” que se “precipitam”, “luas de oiro” que “se embebedam”, “círios” que se
“contorcionam”, “neblinas” que “rangem
469
. Tem-se uma diversidade de movimentos
que não convergem para nenhum ponto, configurando, sobretudo, a deslocação
vertiginosa, a dispersão das variadas substâncias.
466
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 70-71.
467
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 749. Na verdade, o comentário é feito quando “Partida” ainda se encontrava
em sua versão inicial, com o nome de “Simplesmente”. O verso comentado, entretanto, permanece
inalterado, como muitos outros, quando se estabelece a versão definitiva.
468
A palavra promontório, segundo a primeira definição do dicionário Houaiss, significa: parte mais alta;
saliência, proeminência, elevação. Outra referência à ascensão, ainda que de modo apenas sugestivo,
aparece na segunda estrofe, quando se diz que “Ascendem hélices, rastros...” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p.
70). O trecho não deixa de ser significativo, tendo em vista a relação entre as hélices e objetos
propulsores, cuja forma evoca um movimento em espiral, como aquele que, em “Partida”, conformava a
“espira aérea” que levava o poeta aos cumes.
469
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 70-71.
Com o procedimento da justaposição, identificado, pelo autor, em uma de suas
cartas, como “a junção bizarra de coisas que não têm relação alguma”
470
, deixa-se em
suspensão, como em um equilíbrio instável, ao mesmo tempo, os objetos e o sujeito,
que se mostra indefinível, dissipado, na multiplicidade de elementos que entram em sua
composição. A vertigem, que lembra os turbilhões, um desvario em que tudo oscila, é
mencionada mais de uma vez, como se não bastasse a sua presença no movimento do
poema. Na quarta estrofe, tem-se a referência mais cheia de sentido, por dizer respeito a
uma alteração do ambiente, a uma intersecção dos planos de uma estrutura geométrica:
“Planos, quebras e espaços / Vertiginam em segredo”
471
.
Outro dado importante, também se observa, no poema, a referência às cores, aos
sons e aos perfumes, substâncias recorrentes, na poesia de Sá-Carneiro: em um
momento se diz que “Zebram-se armadas de cor”; em outro, fala-se que “Listas de som
enveredam...”; em outro, ainda, mencionam-se os “Perfumes de longes ilhas”
472
. Com a
expansão desordenada dos sentidos, das sensações, tem-se, pela primeira vez, na obra
do autor, a expressão do que Fernando Cabral Martins aponta como sendo uma das
facetas da poética interseccionista, caracterizada por uma “multiplicação de estratos de
sentido”, pela “sobreimpressão” e “síntese de imagens”
473
. No plano da dispersão
subjetiva, apresenta-se como que o desdobramento de um mundo interior alargado, de
contornos indefinidos, em que a integridade do sujeito parece prestes a se perder, dessa
vez, desfazendo-se, antes positiva do que negativamente, conforme as palavras do texto,
em “vislumbres de não-ser”
474
.
De Dispersão, são os versos de “Rodopio”, certamente, os que melhor
manifestam a sensação de desbaratamento, de incoerência, de uma vertigem que poderia
470
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 780.
471
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 70.
472
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 70-71.
473
MARTINS, 1994, p. 151.
474
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 71.
ameaçar o equilíbrio em um centro estável, em uma identidade fixa, concentrada em si
mesma. Hegel, segundo Emil Staiger, diria que “o eu não é apenas duração permanente,
ou subsistência indefinida”, mas algo que se conquista, como individualidade, “quando
se concentra e se volta para si mesmo”
475
. No poema, entretanto, tendo em vista esta
definição, não se pode deixar de notar que acontece algo curioso. Ao mesmo tempo em
que, para usar as palavras de Staiger, concernentes a uma caracterização do fenômeno
lírico, “os contornos do eu (...) não são firmemente delineados”
476
, tudo acontece, desde
o início, “dentro” do universo interior do sujeito, como se esse ainda permanecesse
como o eixo da rotação.
Na mesma época em que Sá-Carneiro publica o seu primeiro livro de poemas,
edita-se, também, A confissão de Lúcio. No texto, em uma passagem específica,
brevemente mencionada, no capítulo anterior, destaca-se a descrição de uma forma de
ascensão cuja perspectiva é um pouco diferente do que se viu até aqui. A experiência,
tão extraordinária como as demais, é vista por dois ângulos diferentes. Por um lado,
tem-se a vivência do artista como produtor, por outro, a representação de algo
vivenciado por um sujeito como receptor, como uma espécie de espectador privilegiado.
O espetáculo, que acontece na festa da jovem excêntrica americana, em Paris,
provoca, nos que a ele assistem, uma ampliação dos sentidos, quando se misturam
“luzes, corpos, aromas, o fogo e a água”
477
. Para descrever o excepcional fenômeno, o
narrador utiliza o mesmo vocabulário de que Sá-Carneiro lança mão para se referir aos
momentos de elevação, em seus poemas da época, quando se fala em uma espécie de
apoteose, experimentada em meio à vertigem dos turbilhões. Na descrição do contato
com a iluminação da festa, a referência à ascensão é explícita:
475
STAIGER, 1972, p. 31.
476
STAIGER, 1972, p. 66.
477
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 361.
(...) sorvíamos essa luz que, num êxtase iriado, numa vertigem de ascensão, se
nos engolfava pelos pulmões, nos invadia o sangue, nos volvia todo o corpo
sonoro. Sim, essa luz mágica ressoava em nós, ampliando-nos os sentidos,
alastrando-nos em vibratilidade, dimanando-nos, aturdindo-nos... Debaixo dela,
toda a nossa carne era sensível aos espasmos, aos aromas, às melodias!...
478
No ambiente transfigurado, os convidados da americana estão a experimentar
uma espécie de êxtase, uma forma de transporte mágico para outra realidade, em que se
tornam mais agudos os sentidos, abertos a percepções antes impensadas. A atmosfera,
tocada por uma luz sobrenatural, embora produzida pelo artifício humano, faz com que
se ampliem as sensações. Em meio ao assombro, os presentes se sentem como que
espalhados no espaço e no tempo, dispersados, ascendendo, em uma vibração
absolutamente fora do comum.
A apoteose final do espetáculo, entretanto, tem lugar quando entra na sala,
dançando, em um “misticismo escarlate”, a própria anfitriã. Em um primeiro momento,
ela dança se aproximando das chamas que se tinham ateado atrás dela, como que a
“querer-se dar ao fogo”. Em seguida, é como se ela possuísse o fogo, ao invés de ele a
possuir: “esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as:
emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia”. Por fim, a dançarina,
“vermelha de brasas”, mergulha na água, “numa ânsia de se extinguir, possessa”, para
ali morrer: “num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou
heráldico sobre as águas douradas – tranqüilas, mortas também...”. A personagem que
mergulha na experiência artística, como produtora, encontra aquilo por que ansiava, a
extinção. Da parte dos espectadores, por sua vez, quando regressa a luz normal, resta a
vertigem: “Mulheres debatiam-se em ataques de histerismo; homens, de rostos
congestionados, tinham gestos incoerentes”
479
.
478
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 362.
479
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 364. (Grifo do autor).
Em Indícios de ouro, haveria também uma composição em que se sugere um
modo de expansão dos sentidos relacionado à recepção de uma manifestação artística
alheia, ao menos, supostamente, alheia. No poema, de nome “Salomé”, a lúbrica dança
da figura feminina, misto de emanação sublime e destruidora, atrai o sujeito do
enunciado: “Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me”. Envolvendo-o, em uma
sorte de encantamento, que apresenta algo de macabro, a dançarina provoca um desejo,
o qual leva o sujeito a querer se perder no contato com o seu corpo. Os limites entre as
duas figuras, então, mostram-se borrados: “Golfa-me os seios nus, ecoa-me em
quebranto... / Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me”
480
.
Associa-se a dança a uma substância etérea, a uma “Luz morta de luar, mais
Alma do que a lua”, a qual provoca o frio e o medo, ao mesmo tempo em que altera o
ambiente, misturando sentidos: “O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou... /
Tenho frio... Alabastro!... A minha Alma parou...”. Ao final do poema, o sujeito é
levado a uma ação, em direção ao contato com o corpo da dançarina, que implicaria a
aceitação de uma espécie de iluminação profana. Na última estrofe, ressalta a utilização
do verbo partir: “Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me / Na boca imperial
que humanizou um Santo...”
481
. O antigo espectador, confundido com o objeto de seu
desejo, consome-se no encontro com um corpo extraordinário, na qual se misturam a
fantasia, o prazer dos sentidos e a perturbação do mundo concreto, através do que,
segundo a lógica do poema, seria possível alcançar alguma sorte de êxtase.
No mesmo livro, curiosamente, há, ainda, mais duas composições que fazem
menção à figura da dançarina, como uma segunda ou terceira pessoa do enunciado.
Agora, entretanto, não é mais como espectador que o sujeito se coloca, mas como
aquele que se utiliza da figura feminina, apenas vagamente recordada, ou toda absorvida
480
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 77.
481
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 77.
pela fantasia, para se desdobrar em uma experiência de caráter excepcional. Traz-se
para o mundo interior o objeto do mundo exterior, que deixa de existir como tal, mesmo
que apenas no campo da representação, como acontecia em “Salomé” ou no episódio da
festa, em A confissão de Lúcio. Ao absorver os objetos do mundo real, potencializando
uma vaga lembrança, transformando-a, a imaginação assume o lugar do que daria ensejo
às diferentes formas de expansão dos sentidos.
Em “Certa voz na noite, ruivamente...”, a mulher é como que diluída, tornando-
se apenas um vestígio. O sujeito do enunciado afirma se recordar não de uma figura
humana definida, de um objeto concreto, de uma imagem com contornos mais ou menos
precisos, mas de uma voz, que é como se viesse de outro estrato da realidade, de um
lugar indeterminado: “Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada / Em sons cor de
amaranto, às noites de incerteza, / Que eu lembro não sei de Onde – a voz duma
Princesa / Bailando meia nua entre clarões de espada”. O corpo, inexistente, entretanto,
ganha atributos formais, de modo a atuar sobre a sensibilidade do poeta. Do mesmo
modo que em “Salomé”, o texto se tinge de uma componente erótica: “Leonina, ela
arremessa a carne arroxeada; / E bêbada de Si, arfante de Beleza, / Acera os seios nus,
descobre o sexo... Reza / O espasmo que a estrebucha em Alma copulada...”
482
.
O objeto do desejo, quanto mais vago, quanto mais impreciso (“Não lhe desejo a
carne – a carne inexistente...”), mais parece poder se submeter ao domínio da fantasia, a
qual, ao expandir os seus limites, ampliaria, igualmente, os limites do sujeito. Com a
ausência, a dançarina, uma figura etérea, uma “bailadeira astral”, adquire uma dimensão
insustentável, como uma “voz-total”, um corpo indefinido, em que o sujeito afirma
poder se dispersar. O verbo do último verso não é outro senão esvair, cujo primeiro
482
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 81.
sentido é desvanecer, dissipar, evaporar: “E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz total, / É
que eu sonho esvair-me em vícios de marfim...”
483
.
Com o fechamento do poema, apresentam-se duas leituras possíveis. Segundo a
primeira, mais de acordo com os anseios de elevação que se observam na obra de Sá-
Carneiro, o sujeito se dissiparia, materialmente, perdendo a sua integridade física, o seu
peso, a sua consistência. Segundo a outra, mais terrenamente, o sujeito apenas
ejacularia, despejando-se, como em uma prática onanista, a qual, entretanto, não
deixaria de ser, conforme as palavras do protagonista de outro texto, uma
voluptuosidade da alma, mais precisamente, a “voluptuosidade máxima da Alma”
484
.
Em “Bárbaro”, tudo começa como se a distinção entre uma primeira pessoa e
uma segunda fosse nítida. Tem-se o contato entre o sujeito do enunciado, que é como
um “César”, situado em seu palácio, onde é dono de um “trono de esfinges”, e uma
figura feminina. Destaca-se uma forma de interlocução rara nos poemas de Sá-Carneiro,
como quando se diz: “O ar apodreceu da tua perversão... / Tenho medo de ti num
calafrio de espadas”. A mulher nua, uma “Salomé asiática”, torpe e debochada (“Como
bailas o vício, ó torpe, ó debochada”), dança em meio a “virgens supliciadas”, “carne a
arder” e “dentes rangendo”
485
.
Lascivo e macabro, o bailado, como o da outra dançarina, em “Salomé”, ou
mesmo o da americana, em A confissão de Lúcio, à medida que se desenvolve, provoca
a modificação do estado do sujeito, no sentido de uma difusão. Diminui-se a distância
entre as duas figuras: “Os teus coleios vis, nas infâmias que finges, / Alastram-se-me
em febre e em garras de leão”. Em um crescendo, mais para o final do texto, a primeira
pessoa se mostra transtornada, com os sentidos todos alterados. A difusão faz com que
483
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 81.
484
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 570. Não se esqueça como, em “Ressurreição”, o protagonista não se cansa de
elogiar a masturbação.
485
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 91.
sejam como que interseccionados os planos do interior, subjetivo, e do exterior,
objetivo: “Arqueia-me o delírio – e sufoco, esbracejo... / A luz enrijeceu zebrada em
planos de aço... / A sangue, se virgula e se desdobra o espaço... / Tudo é loucura já
quanto em redor alvejo!...”. Em seguida, como se não conseguisse mais suportar a
existência daquela outra figura, assim como a própria experiência, o sujeito pratica o
assassinato: “Caio sobre a maldita... Apunhalo-a em estertor...”
486
.
Seguem-se, então, duas linhas contínuas de pontos finais, após o que se
apresentam, como que em uma explicação do sentido alegórico do poema, em uma
espécie de “decifração da simbologia”
487
, os últimos dois versos, a exprimirem uma
dúvida. Com eles, paradoxalmente, deixa-se clara a associação entre a dançarina e a
alma do poeta. Tudo o que há de delirante na composição se descortina como um
produto do espírito do sujeito do enunciado: “– Não sei quem tenho aos pés: se a
dançarina morta, / Ou a minha Alma só, que me explodiu de cor...”
488
.
A esta altura, na obra de Sá-Carneiro, encontrava-se definida a figura do artista
como aquele que se fecha em seu mundo, o qual deseja sempre alargado, segundo o
critério da ampliação, solidificado como um norte estético. Em “Bárbaro”, aconteceria o
que Maria da Graça Carpinteiro chama de uma “síntese exterior-interior”, em que o
primeiro elemento, desintegrado, seria “plenamente assimilado ao segundo, não vivendo
senão para ele e em função dele”
489
. A fantasia se reafirma, neste momento, como a
forma de ampliação por excelência, seja da alma, seja dos sentidos.
Entre as narrativas reunidas em Céu em fogo, o elogio da imaginação será
recorrente, assim como será recorrente a sua associação com a possibilidade de
elevação. O próprio título do volume parece remeter a uma concepção teológico-cristã,
486
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 91.
487
PEREIRA, 1990, p. 188.
488
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 92.
489
CARPINTEIRO, 1960, p. 54.
segundo a qual o céu de fogo seria a verdadeira transcendência, necessariamente,
transformadora do espírito que ascende. Ao comentar um poema de Baudelaire, de
nome “Élévation”, Hugo Friedrich se reporta ao esquema “do que em termos cristãos se
chama a ascensio ou elevatio”, na mesma passagem em que afirma: “Segundo a
doutrina teológico-cristã, o céu superior é a transcendência verdadeira, o céu de fogo, o
empíreo”
490
. Nos textos de Sá-Carneiro, revelam-se centrais, por um lado, as imagens e
as ideias da elevação, da transcendência e da transfiguração, como objetivos a serem
alcançados, e, por outro, a noção de fantasia, como um instrumento para sua
consecução.
Em “O homem dos sonhos”, opõe-se, à penúria e às limitações do mundo real, a
capacidade demiúrgica de se criar outros mundos, relacionada ao fim de se “conhecer
outras cores, outras paisagens, além das que existem”
491
. A personagem principal
lembra o protagonista de “Página dum suicida”, de Princípio, abordado mais acima.
Ambos se aproximam, em sua ânsia de infinito. As diferenças, entretanto, são mais
importantes. Enquanto, no primeiro conto, não se via senão na morte a “região
misteriosa”
492
que se pode desejar descobrir, no segundo, revela-se a fantasia como o
caminho para tornar o mundo, nas palavras do texto, um “universo que aumenta sem
cessar, que sem cessar se alarga”
493
. Nas últimas linhas da narrativa, fica clara a
associação entre o sonho e a transcendência, quando se usa o vocabulário que, em Sá-
Carneiro, figura a ascensão: “Ele derrubara a realidade, condenando-a ao sonho. E vivia
o irreal. Poeira a ascender quimerizada... Asas d’ouro! Asas d’ouro!...”
494
.
Em Céu em fogo, vê-se também a presença de um “Bailado”, que, juntamente
com “Além”, teria sido composto pelo poeta russo Petrus Ivanowitch Zagoriansky,
490
FRIEDRICH, 1991, p. 48. (Grifos do autor).
491
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 477.
492
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 263.
493
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 479.
494
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 482.
protagonista de “Asas”. Ambos os textos, escritos em um estilo fragmentário, que
seriam, como diz Dieter Woll, “verdadeiras obras líricas”, “com reduzido elemento
narrativo”
495
, procuram sugerir momentos em que se teria acesso a outra dimensão, para
além do limitado mundo físico e concreto. Em ambos, articula-se a ascensão a uma sorte
de sagração. O termo, recorrente, na obra de Sá-Carneiro, remeteria ao que Octavio Paz
chama de uma “deliberada vontade de criar um novo sagrado
496
, a qual acabaria por
provocar uma sorte de deificação do processo de criação poética.
Em “Além”, como se via em “Rodopio”, quando se falava em “vislumbres de
não-ser”, observa-se o desejo do encontro de uma forma de insubstância, que seria
como o avanço, ou o regresso, a um “diverso tipo de realidade, descarnado da condição
humana”
497
, a que não deixa de se associar a dispersão. As primeiras duas partes do
texto são aquelas em que se vê a ascensão. Na primeira, faz-se menção a uma “tarde
loira”, em que erravam “eflúvios roxos d’Alma e ânsias de não-ser”
498
. Na segunda,
quando o sujeito antevê a sagração, sua alma está a se dispersar, tornando-se como “um
disco d’ouro”
499
. Na terceira parte, ainda se faz referência à sagração, ao instante
mesmo que a antecederia, mas o que sobrevem é o desencanto: “... E foi então quando
eu já me sentia entrelaçado d’Ouro, sagrado d’além-Cor, quando era todo encanto em
laivos de infinito – que o instante abateu e me desencantei...”
500
.
O outro texto, “Bailado”, traz lampejos de algo que não pode ser definido com
precisão, embora se possa dizer que se trata de uma experiência subjetiva. Na primeira
parte, faz-se referência a uma “Apoteose”, ao “Oriente”, a espiras que ascendem, a
hélices que vertiginam (“Ascendem espiras... vertiginam hélices”), a uma luz que emana
495
WOLL, 1968, p. 7.
496
PAZ, 1982, p. 142. (Grifo do autor).
497
MOISÉS, 2003, p. 223. As palavras de Massaud Moisés, aqui deslocadas, referem-se à poética de
Camilo Pessanha. Este, não por acaso, seria um dos autores, com António Nobre, por cuja poesia Sá-
Carneiro mais nutriria admiração.
498
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 497.
499
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 498.
500
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 498.
do sujeito e que o faz divergir de si mesmo, lembrando os elementos da ascensão que se
viam em “Partida” ou em “Rodopio”, inclusive com a dispersão subjetiva: “(Luz
singular! / É luz que eu espasmo!) // Divirjo em lira, iriadamente”. Na segunda parte,
iniciada com imagens que remetem a um movimento vertiginoso (“Em volta da esfinge
tudo é inconstância... (...) De súbito, esvai-se num meteoro a silvar...”
501
) volta-se a
sugerir, como em “Além”, a própria sagração, que é uma espécie de clímax do
movimento. O trecho a seguir é como que uma subdivisão da segunda parte do texto:
Em jorros de asas a crescer, alteia-se o órgão santo...
O altar-mor vibra de lindo...
O turíbulo inunda o Som...
– Nossa Senhora da Cor!
A nave sagra-se em ânsia...
Ergue-se o cálice-Auréola...
E a hóstia da comunhão comunga nos seios doirados...
........................................................................................
O Imperador foi sagrado!
(Festivais da coroação.)
502
A sagração do poeta, no altar da arte, com suas cores e seus sons fantásticos,
confirma-se na quinta e última parte do texto, na qual, em meio a muitas imagens que
permanecem obscuras, ressalta uma curiosa descida. Esta, ao contrário do que se
poderia esperar, ao invés de representar o fim da ascensão, representa o seu contrário,
sendo elevação, a qual se liga a difusão do sujeito: “E agora desço a escadaria, toda a
ascender em além-Sombra... / Mas a descida só me exalça: / Sou eu, um Só – e
difusão!”
503
.
Entre as narrativas de Céu em fogo, há, ainda, outro modo de se tratar a
possibilidade de transformação do sujeito. Em “A grande sombra” e em “Eu-próprio o
501
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 499-500. Em alguns momentos, o tamanho e a disposição das linhas da
composição me faz tratá-la como um poema.
502
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 500.
503
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 501.
outro”, apresenta-se o encontro com uma espécie de “identidade sublime”
504
, que se
pode associar à ideia de uma “vida em potência”
505
. Maria da Graça Carpinteiro
identifica as personagens principais, dos dois contos, como aqueles que melhor refletem
“a agitação movediça própria”
506
do mundo de Sá-Carneiro. Tem-se, aqui, algo
semelhante ao que Octavio Paz chamaria de a “experiência do Outro”
507
, em que os
homens “afundam-se ou se elevam verticalmente”
508
, em uma “mudança fulminante da
natureza”
509
. Os contos, entretanto, revelam perspectivas diferentes, acerca de uma
vivência que parece ser a mesma, a de uma sorte de metamorfose.
A última das narrativas, sobre a qual farei um comentário mais sucinto,
apresenta-se como uma espécie de viagem de transfiguração, iniciada em Lisboa e
encerrada em São Petersburgo. O protagonista se mostra descontente consigo próprio,
tendo a impressão de ser um sujeito embotado, que é como se fosse mais, em potência,
do que realmente é, na prática. Nele, continente e conteúdo não se adéquam: “Não me
posso preencher. Sobejo-me. Chocalho dentro de mim”
510
. A personagem tem
consciência de sua grandeza, mas se sente impotente para realizá-la: “Ah! se eu fosse
quem sou... Que triunfo!...”
511
. No desenvolvimento da narrativa, surge, então, a figura
de um russo, uma misteriosa personagem, que “é todo intensidade, é todo fogo”
512
.
Seria este quem o protagonista imagina ser, de fato, o que ele gostaria de ser: “Aquele,
sim, aquele é que me saberia ser”
513
.
504
RUBIM, 2003, p. 86.
505
MONTEIRO apud CARPINTEIRO, 1960, p. 101. A expressão é retirada de um comentário de Adolfo
Casais Monteiro a Jogo da cabra-cega, romance de José Régio, que, segundo Carpinteiro, faz vir à tona
alguns dos “temas trazidos à literatura portuguesa por Mário de Sá-Carneiro” (C
ARPINTEIRO, 1960, p.
101).
506
CARPINTEIRO, 1960, p. 43.
507
PAZ, 1982, p. 155.
508
PAZ, 1982, p. 151.
509
PAZ, 1982, p. 146.
510
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 505.
511
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 504.
512
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 507.
513
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 505.
Ao final do conto, o processo de fusão entre as duas personagens se mostrará
inevitável, em que pese ao desejo daquele que assume a autoria da narrativa, composta
das anotações de um diário: “Quero fugir, quero fugir!... Haverá tortura maior? Existo, e
não sou eu!...”. A transformação eminente provocaria, por parte deste último, uma
resistência. Ele chega a considerá-la como uma maldição, destinada a levá-lo ao
encontro de um abismo: “Em meu redor tudo são destroços de mim. Fios d’oiro me
puxam para um abismo”
514
.
Prevalecendo o horror, diante do que Octavio Paz, com Rudolf Otto, chamaria
de um “mistério tremendum
515
, a experiência do desaparecimento (“Já não existo.
Desapareci da vida”
516
) que é, também, a de um transbordamento, levando o sujeito a
sair de si, excedendo os seus próprios limites, seria absorvida, dessa vez, como algo
negativo: “A verdade, a verdade temível, é esta: Hora a hora resvalo de mim-próprio.
Transbordo”
517
. As últimas anotações do diário são, justamente, as que dão conta da
decisão do narrador de assassinar o outro: “Enfim – o triunfo! Decidi-me! Matá-lo-ei
esta noite... quando Ele dormir...”
518
.
Em “A grande sombra”, as imagens da ascensão são, novamente, relacionadas à
fantasia, cuja vivência se faz acompanhar de uma série de sensações vertiginosas, as
quais acarretam a transfiguração do sujeito, dotado de sentidos predispostos, segundo
ele próprio, “a fremir em destrambelho”
519
. No conto, destaca-se a fascinação pelo
desconhecido, por aquilo que escapa à “certeza tosca, material”
520
. Agora, ao contrário
514
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 510.
515
OTTO apud PAZ, 1982, p. 156. (Grifo do autor).
516
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 511.
517
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 510.
518
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 512. (Grifos do autor).
519
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 430.
520
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 420.
do que acontece na narrativa anterior, tem-se o elogio do mistério, de sua “suntuosidade
inigualável”
521
, a par da condenação da lucidez.
É na nona parte do texto que se alcança o que é nomeado como um triunfo:
“Enfim! Enfim! O triunfo – a Ouro o triunfo! Como fazia mal em desesperar! Vibro
hoje apoteoses”
522
. A experiência tem início em uma festa de carnaval, em Nice, em um
cassino, ambiente propício para os sentidos vibrarem “em confusa dispersão”
523
. Após o
encontro com uma mulher misteriosa, que diz ser “talvez a Princesa velada...”
524
, o
protagonista se observa em uma “difusão entorpecedora”
525
, que o leva, em determinado
momento, a se sentir enlevado, em um mundo de sonhos: “A partir daí, com efeito,
transmigrei-me a um mundo de sonhos. Volveu-se-me relativa a realidade – todos os
meus pensamentos e os meus gestos foram meras projeções de movimentos sutis
executados noutros planos”
526
.
Em um estágio mais avançado da experiência, na mesma noite, o sujeito tem
uma relação sexual com a mulher misteriosa, a qual acaba por assassinar, em seguida a
desfigurando, a fim de não deixar escapar o momento daquele encontro. Para o
assassino, nada mais tem valor senão a obra que imagina criar:
Mas que vale tudo mais em frente da obra a Diamantes-mármore que ascendi?...
Sutilizei-me em Astro... vibro de Sortilégios... Finquei-me em Saudade e
Beleza...
Eu próprio sou o Mistério. Tremo de pavor, esvaecidamente. Translucidez
afilada!
É tudo sombra – Sombra, enfim, à minha volta!
O triunfo maior: o Triunfo!...
527
521
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 420.
522
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 435.
523
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 436.
524
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 436.
525
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 438.
526
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 438.
527
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 441-442.
Passados dois anos da grande conquista, que é como uma vitória na “luta
impossível contra a realidade”
528
, o narrador vem a falar em como se sente
transformado. São várias as frases em que se manifesta uma nova consciência: “Como
hoje vivo Outro – indeciso, longínquo; insensível a tudo quanto me contempla”; “Deixei
de ser Eu-mesmo em relação ao que me envolve”; “Não oiço os meus passos; mal vejo
os meus gestos”
529
. A distância de si mesmo, a sua transfiguração, teria aberto ao sujeito
a porta para outras dimensões, em que se manifesta o que está para além da realidade:
“É que, verdadeiramente, a partir da Hora-imperial, a minha existência tornou-se
sensível a outras dimensões”
530
. Passado mais algum tempo, entretanto, parte da lucidez
que havia sido abandonada retorna, em que pese ao desejo e aos esforços da
personagem para que isso não aconteça: “A minha vida parece regressar às antigas
dimensões. Oh, mas é necessário ter força, não deixar diluir o quebranto!”
531
.
Enquanto, na narrativa, vai aumentando a sensação de claridade, que dissipa as
sombras alcançadas pelo narrador, dá-se um segundo encontro importante, dessa vez
com uma “interessante e bizarra”
532
figura, a de um lorde inglês, chamado Ronald
Nevile. Desenvolvendo-se, a relação entre as duas personagens faz com que o
protagonista comece a experimentar uma “tortura incessante”
533
, quando o primeiro
triunfo, aquele alcançado com o assassinato da mulher misteriosa, dá lugar a um
segundo, agora “maldito”
534
.
O narrador sente ser absorvido, de uma estranha forma, pela figura do lorde,
vendo o seu mundo interior se dissipar: “De resto, já sem mundo-interior, deportado
528
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 432.
529
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 442.
530
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 444.
531
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 447.
532
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 446.
533
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 453.
534
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 454.
dele para sempre, só de muito longe (e a muito vago) sentia”
535
. Manifesta-se, então, a
fusão entre as personagens, que não deixa de ser, naturalmente, uma forma de
transfiguração. A partir de determinado momento, na narrativa, não será possível
distinguir quem é o narrador e quem é o lorde, quem era a mulher assassinada (“– O
LORDE É A MORTE DA RAPARIGA MASCARADA”
536
), quais são os espaços por
que circulam as personagens, o que é a suposta realidade e o que é fantasia.
Em meio à confusa articulação das imagens e dos acontecimentos, ao final do
conto, em que se tem uma atmosfera toda tomada pelo enigma, o narrador faz referência
ao seu diário, instrumento para a captação do que ele chama de “Maravilha”. O
protagonista afirma estarem as suas anotações “confiadas à Altura”, sugerindo a
associação entre a estranha experiência, em que toda concretude se dissolve, assim
como acontece com o próprio sujeito, e a ascensão. Nas últimas frases do texto, que o
distanciam bastante de “Eu-próprio o outro”, mais uma vez, recorre-se ao vocabulário
que Sá-Carneiro elegeu como aquele que apresenta a partida para outros mundos, ao
encontro de dimensões que não podem ser abarcadas entre os limites do real: “O grande
salto!... ao Segredo... na Sombra... para sempre... e a Ouro!... a Ouro!... a Ouro!...”
537
.
Ainda no seio de Céu em fogo, será interessante mencionar uma última forma de
ascensão, dessa vez ligada ao amor, a qual será observada em “Mistério”, o segundo
conto do livro. Em carta a Fernando Pessoa, o autor já havia falado sobre a ideia que,
alguns meses depois, daria origem à narrativa. Nas palavras do trecho, ressalta a
continuidade da presença de uma concepção sobre o amor que já se via, anos antes, em
alguns dos primeiros poemas do escritor, assim como em “Amizade” e em “Loucura...”,
de Princípio:
535
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 458.
536
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 456. (Grifo do autor).
537
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 460-461.
Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam
mutuamente tudo quanto nelas vive – não existem. Nem poderiam existir. No dia
em que se compreendessem totalmente – ó ideal dos amorosos! –, eu tenho a
certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
538
O foco da narrativa recai sobre a figura de um artista, do qual o narrador não
chega a se distanciar, com o uso predominante do discurso indireto livre. O
protagonista, de início, aparece como quem vive em constante sofrimento, com um
“espírito sempre redemoinhante”, que se acompanha de um desejo de descansar, um
“desejo insaciável de viver de olhos cerrados”
539
. Curiosamente, a personagem, para
expressar seu sofrimento, em determinada passagem, lança mão de uma imagem que
lembra algo de “Le bateau ivre”, de Rimbaud. Figura-se “um barco sem amarras que vai
bêbado ao sabor das correntes”
540
. Mais a frente, a imagem reaparece, quando o artista
fala de si como quem vai “vogando ao sabor da corrente, barco sem amarras, ébrio de
ouro sobre a água profunda, lodacenta, amarga”
541
. Como ao espírito que redemoinha se
opõe o desejo de descansar, à sensação de embriaguez do barco será oposto o desejo de
aportar, de conseguir, nos termos do texto, “lançar âncoras”
542
.
Na terceira parte da narrativa, justamente quando a necessidade de aportar do
artista vai alcançando um limite, dá-se um acontecimento central. O protagonista
encontra, em um “estrangeiro distante”
543
, uma alma que sente ser como a sua, cheia
dos mesmos grandes ideais e torpores. Na sequência, não muito depois, tem lugar um
segundo encontro, quando o estrangeiro apresenta ao amigo a sua irmã mais velha. Para
sua surpresa, o protagonista vê, na jovem de “corpinho lindo e fútil”, “a velada sutil”
544
,
538
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 737. (Grifo do autor).
539
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 463.
540
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 465.
541
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 470.
542
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 465.
543
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 469.
544
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 471.
“alguém que lhe sentia toda a alma como se sente uma obra genial”
545
. Refutada a
crença de que os homens são “perpétuos isolados”
546
, a ideia de que seria impossível
duas almas se conhecerem inteiramente, o artista sente não mais estar só, pois teria
lançado “pontes sobre o abismo insuperável”, encontrando um “ponto de referência”
547
,
onde lançar as suas amarras. Neste momento, que aparece como uma vitória do
protagonista, um triunfo, destaca-se uma passagem, em que Sá-Carneiro descreve o que
parece vislumbrar como o amor, cuja falta, aliás, sempre retorna, em sua obra:
Hoje, porém, vencera. Irrealidade! – tinha o que sonhara! Tinha uma doce
companheira a cujos braços débeis se podia confiar silencioso e que, em
silêncio, adivinhava os segredos da sua alma – as pequeninas coisas
veladas que se não sabem dizer (...).
548
Nas últimas páginas do texto, menciona-se a villa em que o artista e a esposa
teriam ido habitar, “moradia encantada”, isolada e tranquila. É ali que, certa noite,
rompe-se, enfim, a “tênue rede áurea” que ainda se interpunha entre os noivos, quando
se consuma a comunhão definitiva, em um “último triunfo”
549
. Fantasticamente, nesse
momento, as almas dos amantes deixam os corpos, escapando para outra dimensão, em
um arranjo que faz da morte, nessas condições, um salto para o além.
Como último indício da ascensão, apresenta-se, ainda, a figura de um poeta
louco, que testemunha o extraordinário acontecimento. Supostamente em sintonia com
outra dimensão, a personagem afirma ter visto sair pela janela do quarto dos amantes
“uma grande e estranha chama”, “uma forma luminosa que galgara o parapeito e que,
num espasmo arqueado, numa ondulação difusa, ascendera, voara perdida...”
550
. Na
clara imagem da ascensão, vê-se a fusão entre as almas, propiciada pelo que se imagina,
545
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 473. (Grifos do autor).
546
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 466.
547
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 472-473.
548
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 472-473.
549
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 472-474.
550
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 474.
então, como o verdadeiro amor, nada mais nada menos do que uma completa
comunhão.
551
O comentário mais acima feito a respeito dos poemas que envolvem as figuras
das dançarinas, em Indícios de ouro, certamente, não seria suficiente para esgotar as
tensões que envolvem a ascensão, neste livro. Do mesmo modo que em Dispersão,
nota-se, aqui, uma constante sensação de fracasso, de impotência, a qual corresponde,
agora, a certo ceticismo, que tende a identificar a própria fantasia a uma forma de
ilusão. De modo geral, nos textos do livro, o presente representa um espaço de diluição
negativa do sujeito, de perda do impulso para a ascensão, enquanto, no passado,
estariam as formas da elevação, da riqueza, do brilho. As composições realizadas a
partir de agosto de 1915, por sua vez, são já aquelas em que se manifesta mais
nitidamente a prática da autodepreciação.
Os poemas “Apoteose” e “Distante melodia” ilustram bem o caráter pretérito da
experiência de ascensão. No primeiro deles, cuja matéria contradiz o título, veem-se
certas ânsias, cobertas por concreto armado (“Lajearam-se-me as ânsias brancamente”),
sem que possam vir à tona, sem que tenham potência para impulsionar um movimento,
como em um “jardim estagnado”
552
. No último, fala-se nas “lembranças doutro Tempo
azul”, “um tempo esguio e leve, um tempo-Asa”
553
. A segunda estrofe da composição
dialoga com o final de “Apoteose”: “Então os meus sentidos eram cores, / Nasciam num
551
A concepção do amor como uma completa comunhão, observa-se, de certa maneira, também em
“Ressurreição”, a última narrativa de Céu em fogo. Aqui, identifica-se o amor a uma mútua compreensão,
à “comunhão de sensações” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 578). O encontro, no caso, é entre dois homens
(“sem saberem como, seus corpos nus, masculinos, se entrelaçaram”) (SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 581),
Inácio, o protagonista, e Etienne, um ator, que experimentam um pelo outro, ex-amantes da mesma
mulher, uma grande ternura, “singular e capitosa, sutil de crispada” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 577), nas
palavras do texto. Ao final da narrativa, os termos usados lembram, senão a transcendência alcançada em
“Mistério”, pelo menos o descortinar de uma dimensão insuspeitada, em que é possível o contato com a
amante morta, em uma sorte de intersecção entre o real e o além: “E então foi a Vitória, nesse abraço
limpo, unissexuado (...). Além-Ressurreição! Ultra-Realidade só a Alma! Fora em Milagre sentiu o
artista – como se no mútuo desdobramento psíquico da Saudade comum, a força sexual de ambos,
astralmente, lograsse, conjugada, ressuscitar entre os seus corpos – para A esvair – Paulette, ela-própria,
toda nua e sutil, arfando luar...” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 581) (Grifos do autor).
552
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 84.
553
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 85.
jardim as minhas ânsias, / Havia na minha alma Outras distâncias – / Distâncias que o
segui-las era flores...”. Na quinta, sublinha-se o reconhecimento da perda definitiva:
“Balaústres de som, arcos de Amar, / Pontes de brilho, ogivas de perfume... / Domínio
inexprimível de Ópio e lume / Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...”
554
.
Sendo a regra geral, no livro, entretanto, os sentimentos de desilusão, de
impotência ou de irrisão não predominam em um texto, em específico, cujas
circunstâncias de redação são bastante relevantes. Trata-se de “Escala”, escrito quando
Sá-Carneiro retorna a Paris, pela última vez, em julho de 1915. Em uma espécie de
parada temporária, deixa-se de lado o pessimismo dos outros textos, para se imaginar,
novamente, a possibilidade de ascensão. Recupera-se, então, uma sorte de esperança,
que se acompanha do desejo de lutar e de vencer os desafios que o poeta apresenta a si
mesmo.
Desde o início do poema, o que faz o sujeito do enunciado é se incitar a
vivenciar a criação, que se configura como uma espécie de delírio, pessoal e
intransferível: “Oh! regressar a mim mesmo profundamente / E ser o que já fui no meu
delírio”. Na segunda estrofe, manifesta-se o desejo de luta e de conquista: “Cinja-me de
novo a grande esperança, / E de novo me timbre a grande Lua! / Eia! que empunhe
como outrora a lança / E a espada de astros – ilusória e nua!”. Na sexta, fala-se da
atitude que o poeta deve assumir para voltar a se elevar acima do mundo e das pessoas
comuns: “Me erga imperial, em pasmo e arrogância”. Na oitava, a luta se relaciona ao
desejo de renovação: “Vamos! por terra os reposteiros velhos – / Novos brocados para o
novo ataque”
555
. As três últimas estrofes fecham o poema, no mesmo tom, com o qual
se recupera um entusiasmo perdido:
554
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 85.
555
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 98-99.
Eh-lá! mistura os sons com os perfumes,
Disparata de cor, guincha de luz!
Amontoa no palco os corpos nus,
Tudo alvoroça em malabares de lumes!
Recama-te de Anil e destempero,
Tem Coragem – em mira o grande salto!
Ascende! Tomba! Que te importa! Falto
Eu, acaso?... Ânimo! Lá te espero.
Que nada mais te importe! Ah! segue em frente
Ó meu Rei-lua o teu destino dúbio:
E sê o timbre, sê o oiro, o eflúvio,
O arco, a zona – o Sinal de Oriente!
556
A alteração do modo como se organiza o discurso, o qual se torna uma
interlocução, com o uso dos verbos no imperativo, não modifica a direção do texto.
Enumera-se uma série de ações, as quais seriam necessárias para se atingir a ascensão, o
objetivo do artista. No trecho, a primeira coisa que se nota é a menção à mistura dos
sentidos, um procedimento estético que se refletiria na vivência mais imediata, em que
se associam a cor ao disparate, os sons de um guincho à luz. Trata-se de uma
experiência de descomedimento, de desvario, que implica a transformação do sujeito.
Seria por força de um arrebatamento excessivo que se daria o grande salto, rumo a uma
transcendência que é a única coisa que deve importar.
Ao final do poema, sugere-se a multiplicação da identidade, quando os limites
entre sujeito e objeto deixariam de ter contornos definidos. Multiplicado, o artista
encontraria um destino não propriamente ambíguo, como se poderia cogitar pelo uso do
termo “dúbio”, mas vago, impreciso, quando assume formas distintas, que contradizem
a ideia de unidade. Com os dois últimos versos, em que se tem a enumeração de
elementos variados, não se pode deixar de lembrar textos como “Partida” e “Rodopio”,
momentos maiores da apresentação da ascensão, assim como da multiplicação do
sujeito, entre os poemas de Sá-Carneiro.
556
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 99.
Após “Escala”, “Sete canções do declínio” é um poema que ainda merece um
comentário, entre os de Indícios de ouro. Trata-se de uma composição que alguns
autores consideram marcar o início de uma segunda fase, na obra do poeta, na qual a
figura idealizada do artista passaria a ser desmistificada, “com amargo acinte”
557
. O
texto traz momentos em que se coloca em questão a real intensidade do processo
artístico vivido, em um registro mais prosaico do que o de outros poemas (“– Num
programa de teatro / Suceda-se a minha vida: / Escada de Oiro descida / Aos pinotes,
quatro a quatro!...”
558
), com um final tocado por uma expressão entre autoirônica e
melancólica: “– Caiu-me a Alma ao meio da rua, / E não a posso ir apanhar!”
559
.
A composição, entretanto, em que pese às notas depressivas, ainda chega a
manifestar algo em relação à possibilidade de ascensão, o que é preciso, neste momento,
ressaltar. O poema faz sentir a presença da morte, ou, ao menos, a de uma perda da
energia vital. Mesmo assim, o sujeito afirma a sua vontade de fazer subsistir a potência
da criação, identificando a arte e a vida: “– Embora num funeral / Desfraldemos as
bandeiras: / Só as Cores são verdadeiras – / Siga sempre o festival!”
560
. Em um trecho
específico, no qual se sugere o problema da tensão entre o sujeito e aquela espécie de
“identidade sublime” a que me referi mais acima, manifesta-se o anseio pela
recuperação de certa intensidade do desejo: “Quero ser Eu plenamente: / Eu, o possesso
do Pasmo. / – Todo o meu entusiasmo, / Ah! que seja o meu Oriente!”
561
.
Vislumbra-se, então, ainda uma vez, o encontro daquele destino “alto” e “raro”
que se abriria ao artista por força do exercício das faculdades criativas, que distinguem
o gênio. Na quarta parte do texto, em que o poeta recusa a “vilania” de ser como os
“inferiores”, indica-se a vontade de se recuperar a grandeza e a força para a ascensão:
557
LOPES, 1971, p. 24.
558
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 101.
559
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 106.
560
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 101.
561
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 100.
“Os Grandes, partam – dominem / Sua sorte em suas mãos: / – Toldados, inúteis, vãos, /
Que o seu Destino imaginem! // Nada nos pode deter: / O nosso caminho é de Astro! /
Luto – embora! – o nosso rastro, / Se pra nós Oiro há-de ser!...
562
.
Em seguida a esta incitação, em toda a quinta parte do poema,
significativamente, a maior das sete, tem-se um acúmulo de imagens, sem uma conexão
clara entre si, segundo o procedimento da justaposição, de que o autor lançara mão em
outros textos importantes, como em “Rodopio”. Misturam-se elementos distintos,
dispersos, a partir de uma imaginação liberta de maiores constrangimentos. Tem-se
desde um intenso “baile russo a mil cores” ou uma vaga “porta de cristal aberta / sobre
sonhos que esqueceram”, até referências a um ambiente cosmopolita, com a “confusão
de music-hall” e a “manchete de sensação / transmitida a todo mundo”. Ao final desta
parte, afirma-se o gosto do sujeito em viver a vida de artista, mesmo em meio aos
sofrimentos que a ela acompanham: “Seja enfim a minha vida / Tarada de ócios e Lua: /
Vida de Café e rua, / Dolorosa, suspendida – // Ah, mas de enlevo tão grande / Que
outra nem sonho ou prevejo...”
563
.
Na sexta parte do texto, o sujeito se apresenta como “um barco de vela que
parou / em súbita baía adormecida”. A ideia da estagnação, entretanto, dessa vez, não
parece ser negativa. É neste espaço, no qual o poeta se figura, também, como “a estátua
‘que nunca tombará’”, que se esboça uma cidade de sonho, “enlanguescida e preciosa”,
“instável, dúbia, pressentida, alada”, com suas fantásticas “cúpulas de sombra cor-de-
rosa”, “avenidas de sedas deslizando”, e “torres de platina e de saudade”. Aqui, a
fantasia, que não se distancia do delírio (“Um frenesi hialino arrepiou / Pra sempre a
minha carne e a minha vida”
564
), reconfigurando o sujeito e dando novas formas ao
562
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 102.
563
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 103-104. (Grifos do autor).
564
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 105. (Grifo do autor).
mundo exterior, afirma-se, mais uma vez, como a força para a ampliação, instrumento
para a dispersão, para a elevação que se quer possível.
Para além de Indícios de ouro, mas ainda no campo da poesia, o último texto de
Sá-Carneiro que abordarei, no contexto deste capítulo, será “Manucure”, a sua
composição futurista, escrita um pouco antes das “Sete canções de declínio”, em maio
de 1915. Ao falar do poema, Dieter Woll reconhecia o seu caráter de exceção, no
conjunto da obra do autor. No que diz respeito a aspectos formais, destaca-se, na
composição, mais do que o uso dos versos livres, raros no poeta português, uma
inusitada exploração dos arranjos tipográficos. No que tange ao fundo, observa-se a
apresentação de “uma abundante matéria tirada da realidade”
565
. Para o crítico
germânico, neste último sentido, o poeta teria buscado, no poema, dar uma ideia da
civilização técnica, com sua “mágica contemporânea”
566
, ao mesmo tempo em que
sugeria a sua “predisposição psíquica para gozar plenamente os encantos múltilpos”
567
daquela civilização.
Na composição, o sujeito do enunciado se situa em um café, sozinho, em meio a
uma vida cotidiana (“Entanto eis-me sozinho no Café: / De manhã, como sempre, em
bocejos amarelos”), em um entediante dia de maio, “brutal, provinciano e
democrático”
568
. Mesmo os seus supostos amigos, escritores, como ele, encontram-se
distantes de sua personalidade. A uma realidade enfadonha, a figura dedica o seu
desprezo, mostrando-se nauseada.
(...) Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes –
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –
565
WOLL, 1968, p. 83.
566
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 140.
567
WOLL, 1968, p. 85.
568
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 135.
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De pêros ou de sardinhas fritas...
569
A experiência poética tem início, no texto, quando o sujeito mergulha em si
mesmo, onde se encontram os elementos para uma sorte de alucinação. As sensações se
tornam mais sutis, ampliando-se, ao mesmo tempo em que se amplia o mundo
circundante. Curiosamente, neste caso, é uma ternura, que vai se intensificando, o que
parece fazer a figura voltar sobre si. Desde o início do poema, já se esboça este
movimento de introversão: “Na sensação de estar polindo as minhas unhas, / Súbita
sensação inexplicável de ternura, / Todo me incluo em Mim – piedosamente”. É na
segunda estrofe, entretanto, quando aumenta o enternecimento (“Vou-me mais e mais
enternecendo / Até chorar por Mim
570
), que se marca o início da vivência do delírio.
Em oposição ao lugar comum da vida cotidiana, experimentam-se, então, a vibração, a
expansão, o movimento, que não deixam de lembrar o mudo moderno, cosmopolita:
“Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes, / Brumosos planos desviados, / Abatendo
flechas, listas volúveis, discos flexíveis”
571
. Com a velocidade e o deslocamento,
“interseccionistamente”
572
, como diria Dieter Woll, cruzam-se superfícies, a serem
experimentadas a partir de uma percepção claramente alterada: “Inatingível
deslocamento... / Veloz faúlha atmosférica... // E tudo, tudo assim me é conduzido no
espaço / Por inúmeras intersecções de planos / Múltiplos, livres, resvalantes”
573
.
Na composição, fica evidente como a ideia da alteração da percepção se associa
às noções de ampliação e de expansão, as quais, por sua vez, implicam a transfiguração
569
SÁ-CARNEIRO, 2005, p. 51. Por causa da diferença de um acento, em pêros, escolho, para a
transcrição, a edição portuguesa organizada por Fernando Cabral Martins, ao invés da outra, da editora
Nova Aguilar, que uso nas demais citações.
570
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 135.
571
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 135.
572
WOLL, 1968, p. 84.
573
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 136.
da realidade. Ao longo do poema, por força de um processo perceptivo ampliado, uma
simples chávena de porcelana “ascende num vértice de espirais / que o seu rebordo
frisado a ouro emite...”
574
, enquanto o som da queda de uma bandeja dá origem a “um
novo turbilhão de ondas prateadas [que] / se alarga em ecos circulares, rútilos,
farfalhantes”
575
. Concomitantemente, o sujeito vivencia a própria transformação,
aderido ao movimento vertiginoso do que vê e ouve, fantasticamente, ao seu redor:
“Eia! Eia! / Singra o tropel das vibrações / Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados! /
Eu próprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos! Eia! Eia! Eia!...”
576
.
A experiência da alteração dos sentidos, que corresponde ao anseio de
ultrapassar uma realidade limitada, à vontade do sujeito de ultrapassar a si mesmo,
relaciona-se, por outro lado, à busca de uma nova beleza. Posicionando-se como poeta,
o sujeito do enunciado associa o seu delírio ao desejo de, com ele, fazer uma poesia
nova, habilitada a abarcar novas sensações: “E solto meus olhos a enlouquecerem de
Ar! / Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta, / Varar a sua Beleza – sem suporte,
enfim! – / Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna / Alastra e expande em
vibrações”
577
. Da nova beleza, podem-se já ver alguns lampejos, os quais a mostrariam
“desconjuntada, emersa, variável sempre / e livre – em mutações contínuas, / em
insondáveis divergências...”
578
. A ela teria acesso, apenas, aquele que possuiria os
sentidos predispostos para o delírio, aquele que tem os “olhos ungidos de Novo”, ou
ainda, em referências mais explícitas à estética contemporânea, “olhos futuristas”,
“olhos cubistas”, “olhos interseccionistas”
579
.
574
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 138.
575
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 139.
576
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 140.
577
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 136.
578
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 138.
579
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 138.
Antes do término do poema, ressalta um lamento. O sujeito do enunciado se
acredita derrotado, por crer não poder cantar, em seus versos, aquilo que teria
experimentado no café, aquela “Beleza inatingível”, uma “Beleza pura”: “– Ó sonho
desprendido, ó luar errado, / Nunca em meus versos poderei cantar, / Como ansiara, até
ao espasmo e ao Oiro, / Toda essa Beleza inatingível, / Essa Beleza pura!”. A sequência,
entretanto, de certo modo, oblitera esta sensação de impotência. A extraordinária
vivência, desdobrada ao longo da maior parte do poema, tendo provocado uma espécie
de transfiguração irreversível, impediria que o poeta voltasse a ser o que era. Ao final da
composição, é com “os dentes a ranger, os olhos desviados, / sem chapéu, como um
possesso”, que o sujeito sai do café, “aos pinotes e aos gritos
580
, já incapaz de articular
palavras, como que alheio à realidade, às convenções, aos limites da identidade, do
mundo e da linguagem.
3. No início do capítulo, foi com a ideia da partida que eu imaginei poder dar
entrada ao problema da ascensão, nas obras de Sá-Carneiro e de Rimbaud. Para começar
a discuti-lo, agora, no âmbito da poética deste último, será interessante voltar à
composição referida naquele momento. “Départ” é um poema curto, mas bem
significativo:
Assez vu. La vision s’est rencontrée à tous les airs.
Assez eu. Rumeurs des villes, le soir, et au soleil, et toujours.
Assez connu. Les arrêts de la vie. – Ô Rumeurs et Visions!
Départ dans l’affection et le bruit neufs!
581
Como se vê, no texto, destacam-se alguns elementos, com o uso das maiúsculas
iniciais. Os rumores e as visões se mostram, no terceiro verso, como aquilo que o
580
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 143.
581
RIMBAUD, 2002, p. 216. A tradução é de Lêdo Ivo: “Visto demais. A visão foi reencontrada em todos
os ares. Possuído demais. Rumores das cidades, à noite, e ao sol, e sempre. Conhecido demais. As
paradas da vida. – Ó Rumores e Visões! Partida na afeição e no ruído novos!” (R
IMBAUD, 1982, p. 93).
sujeito parece desejar, aquilo pelo que ele gostaria de ser tocado. Apresenta-se uma
sorte de convocação, a qual corresponderia ao anseio de se superar um tipo de vida que
teria esgotado as suas possibilidades de renovação. Os rumores retornam no último
verso, como “bruit”, a que se acrescenta a afeição, o afeto, elementos que o sujeito
deseja novos, desconhecidos. Rumores, visões e afetos, ou, para pensar em caracteres
poéticos, sons, imagens e sentimentos, revelam-se, ao mesmo tempo, como o que
impulsiona a partida e como o que se deseja encontrar, quando se parte dos lugares
conhecidos, onde as possibilidades da experiência, sobretudo de uma experiência que se
quer poética, seriam esvaziadas.
Recuando um pouco no tempo, pode-se notar que alguns dos elementos de
“Départ” se encontram, senão plenamente desenvolvidos, de algum modo, esboçados,
entre os primeiros poemas do autor. Convivendo com textos de cunho mais social, ou
com aqueles em que se explora a sátira e o grotesco, quando a ação do poeta se volta
para o mundo conhecido, do qual ele se faz crítico, poemas como “Ophélie” antecipam
uma poética que fará da busca pelo contato com outras esferas da existência um de seus
caracteres essenciais. Na composição, em que se retoma a personagem de Shakespeare,
destaca-se uma referência aos sons que, como no texto anterior, seriam, ainda,
desconhecidos, portadores de uma estranha harmonia: “C’est qu’un souffle, tordant ta
grande chevelure, / À ton esprit rêveur portait d’étranges bruits”
582
.
Em “Ophélie”, é através do contato com uma região oculta da existência, o qual
acontece apenas com a figura que traz em si algum traço de loucura, que é uma
sonhadora (“Quel rêve, ô pauvre Folle”
583
), e que, no mundo, não pode ter outro destino
senão a morte, ainda na juventude, que se tem acesso ao que escapa ao discurso, pois
seria da ordem do que não se sabe dizer com palavras. Certas visões, no caso, associam-
582
RIMBAUD, 2002, p. 57. Eis a versão de Ivo Barroso: “É que um sopro, envolvendo os teus cabelos
longos, / À tu’alma sonhadora estranhos sons levou” (RIMBAUD, 1995, p. 53).
583
RIMBAUD, 2002, p. 57. (Que sonho, ó pobre Louca).
se a uma ampliação do espaço, que se torna um ameaçador infinito: “Tes grandes
visions étranglaient ta parole / – Et l’Infini terrible effara ton oeil bleu!”
584
.
Na obra de Rimbaud, entretanto, seriam as duas cartas ditas do vidente que
estabeleceriam os princípios do que pode ser imaginado como o desejo de ascensão do
poeta, ainda que o autor francês não faça uso desta palavra. Jean-Pierre Richard
relaciona o que chama de “ascese rimbaudiana”
585
a uma ideia que se expressa em
ambas as cartas, e que eu mesmo já mencionei, no capítulo anterior. Trata-se da noção
de que o poeta se faria vidente “par un long, immense et raisonné dérèglement de tous
les sens
586
. Para Richard, a desordem dos sentidos seria um exercício, que visaria
“sacudir o ser”
587
, dando-lhe a “ocasião de se desprender”
588
, com um objetivo último, o
de revelar “um tipo de nova regra”
589
, uma espécie de nova harmonia.
Na segunda das cartas, vincula-se a vontade de descobrir o novo, em termos
artísticos, que dizem respeito à invenção de novas ideias e de novas formas
(“demandons aux poètes du nouveau, – idées et formes”
590
), à descoberta do que os
homens ainda não teriam sido capazes de ver, por estarem limitados a viverem sob uma
ordem e sob uma lógica muito restritas. Em uma passagem central, fala-se na
necessidade de o sujeito cultivar a sua alma, para conhecer a si mesmo de uma forma
absoluta, a fim de se tornar algo como “le suprême Savant”
591
, chegando “à
584
RIMBAUD, 2002, p. 57. A tradução é de Ivo Barroso: “Tuas grandes visões sufocaram-te a fala / – E o
Infinito aterrou os teus olhos azuis!” (RIMBAUD, 1995, p. 55).
585
RICHARD, 1955, p. 190. (“ascèse rimbaldienne”).
586
RIMBAUD, 2002, p. 88. (Grifos do autor). (por um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos
os sentidos).
587
RICHARD, 1955, p. 190. (“secouer l’être”).
588
RICHARD, 1955, p. 190. (“l’occasion de se dégager”).
589
RICHARD, 1955, p. 191. (“une sorte de règle nouvelle”).
590
RIMBAUD, 2002, p. 92. (Grifos do autor). (exijamos dos poetas o novo – ideias e formas).
591
RIMBAUD, 2002, p. 89. (o supremo Sábio).
l’inconnu”
592
. Logo em seguida, fala-se, ainda, em um salto, um “bondissement par les
choses inouïes et innommables”
593
.
As expressivas imagens das cartas revelam grande analogia com as que Octavio
Paz utiliza para falar da experiência religiosa, de acordo com ele, semelhante à poética.
Para o poeta mexicano, seria através de um “salto brusco”
594
, em que se superam as
“leis de gravidade, naturais e morais”
595
, que se chegaria a algo como a “grande
sabedoria”
596
. Está-se, aqui, na esfera da “experiência do sobrenatural”, ou da
“experiência do Outro”
597
, que se mencionou, mais acima, em que se romperia “a cadeia
das causas e efeitos”, abrindo-se, ao homem, um mundo “que é efetivamente outro
mundo”
598
. A ideia de uma experiência do outro, por sinal, também se encontra em
Rimbaud, em especial, nas formulações das cartas.
Em ambas as missivas, lê-se a conhecida expressão do poeta, de acordo com a
qual “Je est un autre”
599
. Na segunda, o autor desenvolve mais o seu raciocínio,
afirmando: “Cela m’est evident: j’asssiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je
l’écoute: je lance un coup d’archet: la symphonie fait son remuement dans les
profondeurs, ou vient d’un bord sur la scène”
600
. De acordo com Manuel Gusmão,
Rimbaud estaria, neste momento, assim como no desenvolvimento de sua obra, de
modo geral, dando forma a um tipo de “poética da alterização”, a qual corresponderia à
crise do sujeito cartesiano, “entendido quer como um sujeito psicológico, quer como um
592
RIMBAUD, 2002, p. 89. (ao desconhecido).
593
RIMBAUD, 2002, p. 89. (um salto para as coisas inauditas e indizíveis).
594
PAZ, 1982, p. 146.
595
PAZ, 1982, p. 151.
596
Octavio Paz se refere a antigos ensinamentos chineses, segundo os quais a experiência central do
budismo seria a de se chegar a “Mahaprajnaparamita”, um termo que significaria “grande-sabedoria-
outra-margem-alcançada” (P
AZ, 1982, p. 147).
597
PAZ, 1982, p. 155.
598
PAZ, 1982, p. 151.
599
RIMBAUD, 2002, p. 88. (Eu é um outro).
600
RIMBAUD, 2002, p. 88. (Isto me é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento: eu o olho, eu o
escuto: eu lanço um golpe do arco: a sinfonia faz seu deslocamento nas profundezas, ou vem de um salto
sobre a cena).
ego transcendental, garantido ontologicamente pela propriedade do seu pensamento,
sujeito idêntico a si mesmo, fonte do saber”
601
. Nas formulações do poeta, evidencia-se
uma compreensão acerca da falta de unidade do sujeito, não constituído como uma
substância, mas como o que se transforma a cada momento, como diria Jean-Pierre
Richard, na sua possível “metamorfose em uma multiplicidade”
602
.
São da mesma época da redação das cartas duas das mais comentadas
composições do poeta francês, as quais incorporam algo das concepções acima
descritas. A mais antiga delas é a famosa “Voyelles”, o soneto das vogais, que não
poderia estar ausente dessa discussão. Nela, supostamente, através da criação de um
novo verbo poético, com ritmos instintivos (“avec des rythmes instinctifs”
603
), com os
quais se regraria a forma e o movimento de cada consoante (“Je réglai la forme et le
mouvement de chaque consonne”
604
), teria sido possível, segundo o que se verá, mais
tarde, em “Alchimie du verbe”, captar o inexprimível. Eis o texto:
A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes:
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,
Golfes d’ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lance des glaciers fiers, rois blancs, frissons d’ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;
U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d’animaux, paix des rides
Que l’alchimie imprime aux grands fronts studieux;
601
GUSMÃO, Manuel. Anonimato ou alterização? Revista Semear, Rio de Janeiro, n. 4.
Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4Sem_18.html>. Acesso em 27 nov. 2006.
602
Richard, quando utiliza a expressão transcrita, está a falar sobre a manifestação do outro, destacando
como Rimbaud o concebe, saltando sobre a cena: “Un autre, on ne sait comment issu du JE, mais qui
‘bondit’ d’un seul coup de la profondeur intérieure sur ‘le devant de la scène’ et l’emplit de sa frénésie.
L’ancienne, la morose unité du moi élcate soudain et se métamorphose en une multiplicité véhémente”
(R
ICHARD, 1955, p. 190).
603
RIMBAUD, 2002, p. 192. (com ritmos instintivos).
604
RIMBAUD, 2002, p. 192. (Regulei a forma e o movimento de cada consoante).
Ô, Suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des Mondes et des Anges:
– O l’Oméga, rayon violet des Ses Yeux! –
605
No poema, um primeiro ponto a se notar é a intenção do sujeito, expressa no
segundo verso, de dizer algo que não se encontra manifesto, mas apenas latente, como o
que está presente, mas invisível. O poeta, cuja figuração lembra a associação com o
vidente, como um intermediário entre mundos distintos, propõe-se a buscar o contato
com uma esfera oculta da realidade, que só seria possível acessar, certamente, em
condições muito especiais. Sugere-se algo como um modelo da poética que alguns anos
depois daria origem ao simbolismo, no qual se concebe como missão da arte, segundo
Henri Peyre, “tecer vínculos entre o visível e o invisível”
606
, captando, “para além de
um espetáculo concreto, o segredo das coisas”
607
. Neste caso, o poeta se tornaria,
através da imersão no que Baudelaire identificava como “estados quase sobrenaturais da
alma”
608
, uma sorte de “decifrador de hieróglifos”, ou o tradutor de uma “analogia
universal”
609
.
Ainda na primeira estrofe da composição, começa a enumeração das vogais e de
suas cores, as quais se acompanham das imagens que lhes forneceriam seus atributos.
No primeiro quarteto, cuja unidade semântica se conclui apenas no segundo, apresenta-
se o negro. Associando-o a moscas (“corset velu des mouches”), a um odor
desagradável (“puanteurs cruelles”), às sombras (“Golfes d’ombre”), sugere-se um
momento de ausência de vida humana, que remete à própria ausência de cores. Ao
605
RIMBAUD, 2002, p. 114. A tradução é de Ivo Barroso: “A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul:
vogais, / Um dia hei de dizer vossas fontes latentes. / A, negro e veludoso enxame de esplendentes /
Moscas a varejar em torno aos chavascais, // Golfos de sombra; E, alvor de tendas tumescentes, / Lanças
de gelo altivo, arfar de umbelas reais; / I, púrpuras, cuspir de sangue, arcos labiais / Sorrindo em fúria ou
nos transportes penitentes; // U, ciclos, vibrações dos mares verdes, montes / Semeados de animais
pastando, paz das frontes / Rugosas de buscar alquímicos refolhos; // O, supremo Clarim de estridores
profundos, / Silêncios a esperar pelos Anjos e os Mundos: / – O, o Ômega, clarão violáceo de Seus
Olhos!” (R
IMBAUD, 1995, p. 171).
606
PEYRE, 1983, p. 14.
607
PEYRE, 1983, p. 22.
608
BAUDELAIRE apud PEYRE, 1983, p. 22.
609
PEYRE, 1983, p. 15.
contrário do que se poderia esperar, entretanto, o negro não se configura como a cor em
que se manifesta uma falta absoluta de luz. No terceiro verso, com a adjetivação das
moscas (“mouches éclatantes”), indica-se a possibilidade de alguma existência não
apenas ruidosa, mas, também, luminosa, ainda que em meio às sombras.
No quarteto seguinte, explora-se o contraste, associando-se o branco, reunião de
todos os tipos de luz, emitidos conjuntamente, a imagens relativamente opostas às
anteriores, com as quais se vinculam ideias como as de candura e de leveza: “E,
candeurs des vapeurs et des tentes”. A referência a certos objetos, como às tendas e às
umbelas, parece remeter à presença do homem, o qual, entretanto, estaria presente como
algo vaporoso, translúcido, como a imagem que se tem da alma. Fala-se, na mesma
passagem, em reis brancos, como que em uma referência a um poder terreno, o qual,
aproximado do que se qualifica como orgulhoso, altivo ou elevado, parece se espalhar,
revestindo os objetos e a natureza de algumas das esferas do mundo: “Lances des
glaciers fiers, rois blancs, frissons d’ombelles”.
Fechando os quartetos, após a referência ao branco, menciona-se não o
vermelho, mas a púrpura, uma cor mais intensa, que se relaciona ao corpo humano, ao
sangue e aos lábios, assim como à beleza: “I, pourpres, sang craché, rire des lèvres
belles”. Ao mesmo tempo, faz-se referência a uma disposição violenta, à cólera (“la
colère”), e a uma espécie de embriaguez, a qual, relacionada à penitência (“les ivresses
pénitentes”), uma palavra do vocabulário religioso, parece poder ter algo de sagrado.
Chega ao termo o que se poderia pensar como uma primeira sessão do poema. Com a
referência à púrpura, sugere-se a intensidade que a vida alcançaria, a partir de uma
conjugação entre o que seriam as potências humanas, físicas e afetivas, tornadas
indistintas, em um movimento que aponta para o ultrapassar de certas limitações, as de
uma ordem alheia a todo êxtase.
Seguem-se os dois tercetos da composição. O primeiro, em que se fala da cor
verde, e da letra U, começa com uma referência a um movimento circular (“U, cycles”),
após o que surge uma imagem sugestiva de uma forma de alargamento dos horizontes,
de uma ampliação, quando se mencionam as vibrações divinas dos mares: “vibrements
divins des mers virides”. Fala-se, no mesmo momento, em uma sorte de paz, que parece
ser como que uma superação de antinomias, a qual se associa aos animais no pasto
(“Paix des pâtis semés d’animaux”) e à sabedoria depuradora de um velho alquimista:
“paix des rides / Que l’alchimie imprime aux grands fronts studieux”.
O segundo terceto, por fim, traria o auge do desenvolvimento do poema. Quando
se fala na letra ligada ao azul, uma cor que, com frequência, associa-se ao céu,
descortina-se um espaço de transcendência. Confundem-se o som (“strideurs étranges”)
e o silêncio, no momento em que se revela uma ordem estranha à compreensão humana,
realizada no âmbito de uma abertura a outros mundos, habitados por outros seres, como
os anjos: “Silences traversés des Mondes et des Anges”. O verso final faz referência à
última letra do alfabeto grego, que representaria o fim de todas as coisas. No contexto
da composição, é aí que se manifesta o clarão fantástico e incompreensível dos olhos de
uma figura divina, os quais se tingem de uma última cor, a violeta, resultado da união
entre o vermelho e o azul, entre a cor das formas humanas e aquela que se pode associar
a um plano transcendental: “O l’Omega, rayon violet des Ses Yeux!”.
No seio de um percurso ascensional, segundo o qual, como diz Álvaro Cardoso
Gomes, “as vogais e as cores indicariam uma ordem”, que culminaria com “um clímax”,
em uma “linha progressiva”
610
, vai-se, no poema, das moscas à divindade, do baixo ao
alto, do pequeno à imensidão, sem que se desconsidere a importância da passagem por
todas essas dimensões, necessária ao homem e ao poeta que desejem ultrapassar os seus
610
GOMES, 1989, p. 46-47.
próprios limites. O sujeito, aqui, posiciona-se como aquele que tem um contato íntimo
com diferentes esferas da existência, absorvendo as emanações de todas elas. Quando
chega ao estágio que almeja, elevando-se, restaria o conhecimento e a tradução de uma
estranha harmonia, como se diria em “Alchemie du verbe” (“Je réservais la
traduction”
611
), para além da lógica, da qual se pode fornecer a imagem, mas a que não
se poderia, jamais, explicar. Ultrapassando as limitações do homem, o poeta se tornaria
capaz, em “Voyelles”, de dar forma a um anseio específico, o de expressar, como diz
Henri Peyre, “alguma grande força cósmica”, a qual ele “teria sentido em si mais
intimamente do que o comum dos mortais”
612
.
Com “Le bateau ivre”, considerada uma das obras-primas do autor, encerra-se
uma primeira fase da poesia de Rimbaud, antes de sua primeira estada mais prolongada
em Paris, a convite de Paul Verlaine. No texto, veem-se tomar forma, mais uma vez,
alguns dos pressupostos das cartas. O desprendimento assume um lugar central, assim
como o desregramento, que antecedem a ascensão. Esta se figura como o momento em
que se abre a possibilidade de se experimentar o encontro com o que permanece oculto
aos homens, o encontro com um mistério, quando se descortinam formas insuspeitadas
do mundo, antes nunca vistas.
A composição tem como sujeito o próprio barco. Desde a primeira estrofe, é ele
quem se vê entregue à experiência da evasão, quando se encontra livre dos elementos
externos que o dominavam, regendo o seu caminho. A embarcação, que servia a
propósitos comerciais, de nações da Europa, pois transportava trigo flamengo ou
algodão inglês, é atacada por índios, selvagens que fazem da tripulação prisioneira,
exterminando-a, em seguida. É o que se vê nas duas primeiras estrofes do poema:
611
RIMBAUD, 2002, p. 192. (Eu reservava a tradução).
612
PEYRE, 1983, p. 26-27.
Comme je descendais des Fleuves impassibles,
Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:
Des Peaux-rouges criards les avaient pris pour cibles
Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.
J’étais insoucieux de tous les équipages,
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages
Les Fleuves m’ont laissé descendre où je voulais.
613
A evasão se relaciona ao encontro do sujeito com o seu desejo, como se nota, no
último verso citado. A partir daí, quando o barco se vê solto, em um movimento
agitado, em contato com as águas do rio, primeiro, e com as águas do mar, em seguida,
teria lugar uma transformação. Desprendendo-se das formas de orientação conhecidas,
afastando-se de seu domínio, a embarcação sente alterado o seu estado. Antes
desprovido de uma maior abertura perceptiva, limitado em seu desenvolvimento, o
sujeito se torna ágil, vigoroso, capaz de dançar sobre as ondas, desafiando todo o risco.
A experiência, associada a uma expansão dos sentidos, a uma grande convulsão,
corresponderia a uma fusão com a força da natureza, que adquire um caráter claramente
purificador. Vejam-se as estrofes terceira, quarta e quinta do poema:
Dans les clapotements furieux des marées,
Moi, l’autre hiver, plus sourd que les cerveaux d’enfants,
Je courus! Et les Péninsules démarrées
N’ont pas subi tohu-bohus plus triomphants.
La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu’un bouchon j’ai dansé sur les flots
Qu’on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l’oeil niais des falots!
Plus douce qu’aux enfants la chair des pommes sures,
L’eau verte pénétra ma coque de sapin
Et des taches de vins bleus et des vomissures
613
RIMBAUD, 2002, p. 122. Eis a versão de Ivo Barroso: “Como descesse ao léu nos Rios impassíveis, /
Não me sentia mais atado aos sirgadores; / Tomaram-nos por alvo os índios irascíveis, / Depois de atá-los
nus em postes multicores. // Estava indiferente às minhas equipagens, / Fossem trigo flamengo ou algodão
inglês. / Quando morreu com a gente a grita dos selvagens, / Pelos Rios segui, liberto desta vez.”
(R
IMBAUD, 1995, p. 203).
Me lava, dispersant gouvernail et grappin.
614
Na sequência, após se achar banhado no que o texto designa como o “Poème de
la Mer”
615
, o barco tem acesso a visões do que jamais alguém teria visto. A um primeiro
momento, em que se apresenta a evasão do sujeito, segue-se, então, a apresentação da
experiência do conhecimento, que é a ascensão, embora não representada nestes termos,
ao desconhecido. Abre-se ao sujeito a possibilidade de ultrapassar limites: “Et j’ai vu
quelquefois ce que l’homme a cru voir”
616
. Da oitava estrofe à décima terceira, o que
mais se repete é a expressão “J’ai vu”, que se faz acompanhar de outras, como “J’ai
rêvé” (“J’ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies, / Baiser montant aux yeux des mers
avec lenteurs, / La circulation des sèves inouïes, / Et l’eveil jaune et bleu des
phosphores chanteurs!”
617
), e “Je sais”: “Je sais les cieux crevant en éclairs; et les
trombes / Et les ressacs et les courants: je sais le soir, / L’Aube exaltée ainsi qu’un
peuple de colombes”
618
.
Até a vigésima estrofe da composição, ainda se observam as imagens da
aventura do barco, algumas, inclusive, em que se nota um nítido sentido de elevação,
como na décima quinta, em que se fala em ventos inefáveis que dão asas ao sujeito, por
instantes (“– Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades / Et d’ineffables vents m’ont
614
RIMBAUD, 2002, p. 123. A tradução é de Ivo Barroso: “No iroso marulhar dessa maré revolta, / Eu, que
mais lerdo fui que o cérebro de infantes, / Corria agora! e nem Penínsulas à solta / Sofreram convulsões
que fossem mais triunfantes. // A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas. / Como uma rolha andei
das vagas nos lençóis / Que dizem transportar eternamente as vítimas, / Dez noites sem lembrar o olho
mau dos faróis! // Mais doce que ao menino os frutos não maduros, / A água verde entranhou-se em meu
madeiro, e então / De azuis manchas de vinho e vômitos escuros / Lavou-me, dispersando a fateixa e o
timão.” (R
IMBAUD, 1995, p. 203).
615
RIMBAUD, 2002, p. 123. (Poema do Mar).
616
RIMBAUD, 2002, p. 123. (E vi alguma vez o que o homem pensou ver).
617
RIMBAUD, 2002, p. 123-124. A tradução é de Ivo Barroso: “Sonhei com a noite verde em neves
infinitas, / Beijo a subir do mar aos olhos com langores. / Toda a circulação das seivas inauditas / E a
explosão auriazul dos fósforos cantores!” (R
IMBAUD, 1995, p. 205).
618
RIMBAUD, 2002, p. 123. Ivo Barroso traduz assim: “Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas, /
Ressacas e marés; eu sei do entardecer. / Da Aurora a crepitar como um bando de pombas” (RIMBAUD,
1995, p. 205).
ailé par instants”
619
), ou na décima oitava, em que são também os ventos de uma forte
tempestade o que alça ao céu a embarcação: “Or moi, bateau perdu sous les cheveux des
anses, / Jeté par l’ouragan dans l’éther sans oiseau”
620
. Concomitantemente, entretanto,
vai-se destacando a grandeza e a força do mar, que sugere o seu caráter de substância
sublime, diante do que o barco se mostra frágil, como na estrofe décima sexta: “La mer
dont le sanglot faisait mon roulis doux / Montait vers moi ses fleurs d’ombre aux
ventouses jaunes / Et je restais, ainsi qu’une femme à genoux...”
621
.
Na vigésima primeira estrofe, em sentido contrário ao do movimento que se
vinha assistindo, até aqui, o sujeito revela a sua fraqueza, manifestando o desejo de
retornar ao lugar de onde havia partido, à Europa de onde se evadira: “Je regrette
l’Europe aux anciens parapets!”
622
. O caráter radical do que se vivencia acaba por se
mostrar doloroso, aterrador, como se fosse o mergulho em uma mistura de sonho e
pesadelo, em que se vislumbraria aquilo que Octavio Paz, com Rudolf Otto, falando
sobre a “experiência do sobrenatural”, chama de uma “inacessibilidade absoluta”
623
.
Diante de uma espécie de “mistério que faz tremer”, o que se tem é “estranheza,
estupefação, paralisia do ânimo”
624
.
Na estrofe seguinte do poema, ainda se repete a expressão “J’ai vu” (“J’ai vu des
archipels sidéraux! et des ilês / Dont les cieux délirants sont ouvertes au vogueur”
625
),
mas a ela se acrescenta uma interrogação. Sugere-se algo que faltaria para que o sujeito
se mantivesse firme na busca do que não se conhece, algo como uma energia, uma
619
RIMBAUD, 2002, p. 124. Eis a versão de Ivo Barroso: “A espuma em flor berçou-me à saída de
enseadas / E inefável o vento alçou-me por instantes.” (R
IMBAUD, 1995, p. 207).
620
RIMBAUD, 2002, p. 125. A tradução é de Ivo Barroso: “Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
/ Jogado por tufões no éter de aves ausente” (RIMBAUD, 1995, p. 207).
621
RIMBAUD, 2002, p. 124. (O mar cujo suspiro fazia meu balanço doce / Ergueu em direção a mim suas
flores de sombra de ventosas amarelas / E eu ali fiquei, como uma mulher de joelhos).
622
RIMBAUD, 2002, p. 125. (Tenho saudades da Europa dos antigos parapeitos).
623
PAZ, 1982, p. 155-156.
624
PAZ, 1982, p. 155-156.
625
RIMBAUD, 2002, p. 125. (Vi arquipélagos siderais! e ilhas / cujos céus delirantes estão abertos ao
vogador).
potência fora do comum, que a poesia de Rimbaud, em muitos outros momentos, parece
querer encontrar: “– Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t’exiles, / Million
d’oiseaux d’or, ô future Vigueur?”
626
.
Em um último segmento do texto, reforça-se, ainda, a ideia de um intenso
sofrimento, que se acompanha do abandono do impulso para a viagem da descoberta, do
esgotamento do enleio da ascensão. A nota depressiva, contrária ao sentido de elevação
de momentos anteriores, é o que toma conta das três últimas estrofes, em que se revela
como teria sido atroz o processo do desprendimento. Ao desejo de conhecer, de abertura
a horizontes mais amplos, opõe-se, enfim, a sensação de impotência, o recolhimento, a
desistência, a fragilidade e o desejo de morte:
Mais, vrai, j’ai trop pleuré! Les Aubes sont navrantes,
Toute lune est atroce et tout soleil amer:
L’âcre amour m’a gonflé de torpeurs enivrantes.
Ô que ma quille éclate! Ô que j’aille à la mer!
Si je désire une eau d’Europe, c’est la flache
Noire et froide où vers le crépuscule embaumé
Un enfant accroupi plein de tristesses, lâche
Un bateau frêle comme un papillon de mai.
Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, ô lames,
Enlever leur sillage aux porteurs de cotons,
Ni traverser l’orgueil des drapeaux et des flammes,
Ni nager sous les yeux horribles des pontons!
627
Entre os poemas escritos em 1872, destaca-se, em continuidade com as
perspectivas que vinham dos primeiros poemas, o papel da natureza, a qual se confirma
como lugar onde o homem poderia recuperar uma força perdida, onde poderia voltar a
626
RIMBAUD, 2002, p. 125. (É nestas noites sem fundo que tu dormes e te exilas, / Milhão de pássaros de
ouro, ó futuro Vigor?).
627
RIMBAUD, 2002, p. 125-126. A tradução é de Ivo Barroso: “Certo, chorei demais! As albas são
cruciantes. / Amargo é todo sol e atroz é todo luar! / Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes: / Que
minha quilha estale! e que eu jaza no mar! // Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa, / Fria
e escura poça, ao crepúsculo em desmaio, / A que um menino chega e tristemente lança / Um barco frágil
como a borboleta em maio. // Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas, / A esteira perseguir dos
barcos de algodões, / Nem fender a altivez das flâmulas pressagas, / Nem vogar sob a vista horrível dos
pontões.” (R
IMBAUD, 1995, p. 209).
experimentar a intensidade máxima da vida, o seu movimento, a sua potência. A ideia
da ascensão, adquire, então, um significado particular, uma vez que o contato com o
sobrenatural, a “experiência do sobrenatural”, de que fala Octavio Paz, conjuga-se à
afirmação da imanência das possibilidades de transformação, de metamorfose do
sujeito. Recusa-se, agora, qualquer transcendência de caráter metafísico, como aquela
que ainda poderia sugerir um poema como “Voyelles”, para se afirmar uma forma de
ascensão em sentido, por assim dizer, mais horizontal, que teria lugar não no encontro
com alguma substância etérea ou divina, mas no espaço da imanência, de um universo
experimentado em toda a sua concretude.
“L’éternité” é um dos poemas em que se assume esta última perspectiva. Na
composição, também comentada no capítulo anterior, sugere-se a possibilidade de se
encontrar a eternidade não na promessa de uma vida após a morte (“Là pas d’éspérance,
/ Nul orietur”)
628
, ou em qualquer além fora do mundo, mas, justamente, no seio do
espetáculo da natureza: “Quoi? – L’Éternité. / C’est la mer allée / Avec le soleil”
629
.
Indica-se, no poema, a relação entre o abandono do que se chama de comuns sufrágios
humanos, dos seus rogos, de suas aprovações, e a libertação do indivíduo, que se figura
como um voo, um movimento ascensional: “Des humaines suffrages, / Des communs
élans / Là tu te dégages / Et voles selon”
630
. Escapando do mundo comum, de acordo
com o impulso de buscar a si mesmo, o sujeito encontraria, apenas na natureza, a
humana possibilidade de se experimentar algum êxtase, algum enlevo ou transporte, que
fosse, embora extraordinário, natural.
Em outro texto da mesma época, “Comédie de la soif”, a recusa do mundo, tal
como se o conhece, relaciona-se, mais uma vez, a uma forma de libertação, a que se
628
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Lá, nenhum orietur).
629
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Quem? – A Eternidade. / É o mar que se vai / com o sol).
630
RIMBAUD, 2002, p. 156. (Dos humanos sufrágios, / Dos comuns ardores / Lá tu te libertas / E voas
como queres).
associa, igualmente, o encontro com a natureza. Aparece, agora, entretanto, um novo
elemento, a morte, a qual adquire uma significação particular. Trazida para o espaço da
vida, ela se tornaria como a possibilidade de um novo começo, de um novo nascimento,
de acordo com um movimento em que “qualquer coisa é destruída para que qualquer
outra coisa seja produzida”
631
. Tudo se conforma, aqui, como se o sujeito estivesse a
tomar consciência de fazer parte de uma sorte de dinâmica do cosmos, cuja harmonia
corresponderia a um processo em que a lei maior seria a de uma transformação
incessante. No poema, dividido em cinco partes, tem-se a exposição de vozes, as quais,
de diferentes maneiras, dirigindo-se a um mesmo sujeito, estariam lhe indicando
caminhos a seguir. Um após o outro, todos eles serão recusados.
Na primeira parte da composição, a voz que fala é a dos parentes, dos avós, ou
seja, a voz do ambiente familiar, que o sujeito, designado “MOI”
632
, repele, dizendo
desejar, como se disposto a empreender as mais arriscadas viagens, “mourir aux fleuves
barbares”
633
. Na segunda, fala o espírito, cuja voz se recusa, quando se recusam lendas e
figuras tradicionais, associadas a “boissons pures”
634
, a uma pureza convencional. Na
terceira, são os amigos que falam, chamando o sujeito para saciar a sua sede com o
absinto. A eles, este último responde dizendo preferir “pourrir dans l’étang, / sous
l’affreuse crème, / près des bois flottants
635
. Na quarta parte, o que se ouve é a voz de
um sonho, vinculado ao desejo de encontrar a tranquilidade (“Peut-être un soir m’attend
/ Où je boirai tranquille”
636
), uma velhice segura, uma morte contente (“Et mourrai plus
content”
637
), distante de todo mal (“Si mon mal se résigne”
638
), abandonada toda a busca
631
Jean-Pierre Richard, discorrendo sobre o que representa a aurora, em Rimbaud, é quem fala no
momento em que “quelque chose se détruit (...), pour que quelque chose d’autre se produise” (RICHARD,
1955, p. 189). A analogia me pareceu pertinente.
632
RIMBAUD, 2002, p. 149. (EU).
633
RIMBAUD, 2002, p. 149. (morrer nos rios bárbaros).
634
RIMBAUD, 2002, p. 150. (bebidas puras).
635
RIMBAUD, 2002, p. 151. (Apodrecer no lago, / Sob a horrível nata, / Junto à ramagem flutuante).
636
RIMBAUD, 2002, p. 151. (Talvez uma tarde me espere / Em que beberei tranquilo).
637
RIMBAUD, 2002, p. 151. (E morrerei mais contente).
(“Si j’ai jamais quelque or”
639
), a que responde o poeta: “– Ah! songer est indigne //
Puisque c’est pure perte!”
640
.
A quinta e última parte do poema oferece ao leitor uma conclusão, que passa das
negativas anteriores, às vozes de outros, a uma afirmativa, a da voz da primeira pessoa
do enunciado. Ao afirmar a intensidade de sua sede, o sujeito indica a vontade de se
fundir à natureza. Manifesta-se, então, o que pode ser pensado como um anseio de
dissolução do “sentimento de individualidade”
641
, em “uma mistura de vida e matéria”,
a que Jean-Pierre Richard associa a metamorfose, momento em que se experimentaria
um “êxtase de permeabilidade cósmica”
642
. Os dois últimos versos indicam o desejo de
morrer, o qual implicaria um novo nascimento, agora, sob o signo do frescor e da
liberdade: “Mais fondre où fond ce nuage sans guide, / – Oh! favorisé de ce qui est
frais! / Expirer en ces violettes humides / Dont les aurores chargent ces forêts”
643
.
Em “Bannières de mai”, a primeira parte de “Fêtes de la patience”, o que se tem,
muito claramente, é, também, a imagem de uma fusão. Em um registro notadamente
lírico, o sujeito do enunciado expressa o seu desejo de partida do mundo comum, de um
mundo desprovido da energia geradora de movimento, de uma energia transformadora,
capaz de impulsionar a renovação das formas da vida. Na primeira estrofe do texto,
aparecem os versos:
Que notre sang rie en nos veines,
Voici s’enchevêtrer les vignes.
Le ciel est joli comme un ange.
638
RIMBAUD, 2002, p. 152. (Se meu mal se resigna).
639
RIMBAUD, 2002, p. 152. (Se não tenho nunca qualquer ouro).
640
RIMBAUD, 2002, p. 152. (– Ah! sonhar é indigno // Pois que é pura perda!).
641
A expressão é de Emil Staiger, quando fala sobre o estado em que se encontra o poeta, na poesia lírica:
“O sentimento de individualidade dissolve-se. Chegamos na linguagem lírica ao conceito de ‘fusão’
(Schmelz). Fusão é o diluir da consistência” (S
TAIGER, 1972, p. 66).
642
Eis o trecho de Richard: “La métamorphose aboutit alors à un mélange de vie et de matière; elle
épouse une extase de perméabilité cosmique” (RICHARD, 1955, p. 197).
643
RIMBAUD, 2002, p. 152. (Mas fundir-se onde se funde essa nuvem sem guia, / – Oh! favorecido por
isso que é fresco! / Expirar nessas violetas úmidas / De que as auroras carregam essas florestas).
L’azur et l’onde communient.
Je sors. Si un rayon me blesse
Je succomberai sur la mousse.
644
O vigor, como o do sangue que ri nas veias, o qual se experimenta no contato
íntimo com a natureza, quando se dá a comunhão de dois de seus elementos mais
vastos, o azul do céu e as ondas do mar, é o que se deseja. Ferido pelos raios do sol, que
é como uma “potência criadora”, uma “corrente”, que o atravessa, um “sopro mesmo
que o anima”
645
, como diz Georges Poulet, o sujeito se expõe ao risco, à aventura. A
partida implicaria a recusa de uma experiência comum, como a de muitos que
morreriam, pelo mundo afora, sem terem experimentado uma verdadeira vida: “Au lieu
que les Bergers, c’est drôle, / Meurent à peu près par le monde”
646
.
Na segunda e na terceira estrofes do poema, manifesta-se o anseio de se cumprir
um destino que se imagina carregado da mesma pulsão que se experimenta na dimensão
em que se dá a fusão com a natureza. Aberto ao risco, o sujeito decide abraçar o que
chama de seu infortúnio, o qual deve estar em movimento, liberto, conforme o gosto das
estações, em cujo universo fecundo a única lei seria a da metamorfose. Na fusão com a
natureza, que não deixa de ser figurada como uma espécie de morte, abre-se a
possibilidade de o sujeito se tornar outro, que é aquilo por que se anseia, mesmo que
este seja, para usar as palavras de Jean-Pierre Richard, “radicalmente novo”, ou
“incompreensivelmente estrangeiro”
647
:
Je veux que l’été dramatique
Me lie à son char de fortune.
644
RIMBAUD, 2002, p. 154. A tradução é de Ivo Barroso: “Que ria o sangue em nossas veias, / Eia se
enrosquem, verguem vinhas. / O céu é rico igual a um anjo. O azul e o mar se comunicam. / Eu saio. Se
um raio me rasga / Irei sucumbir sobre o musgo” (R
IMBAUD, 1995, p. 227).
645
Poulet fala em “la puissance créatrice dont il subit l’influx (...), le courant qu’il sent passer en lui, le
souffle même qui l’anime” (POULET, 1980, p. 96-97), acrescentando que não se trata de uma intervenção
transcendente, mas de um fenômeno essencialmente imanente.
646
RIMBAUD, 2002, p. 154. Ivo Barroso traduz assim: “Enquanto os Pastores, que absurdo, / Quase que
morrem pelo mundo” (RIMBAUD, 1995, p. 227).
647
RICHARD, 1955, p. 193. (“radicalement neuf, incompréhensiblement étranger”).
Que par toi beaucoup, ô Nature,
– Ah moins seul et moins nul! – je meure.
(...)
Je veux bien que les saisons m’usent.
À toi, Nature, je me rends;
Et ma faim et toute ma soif.
Et, s’il te plâit, nourris, abreuve.
Rien de rien ne m’illusionne;
C’est rire aux parents, qu’au soleil,
Mas moi je ne veux rire à rien;
Et libre soit cette infortune.
648
Sob o ângulo de um movimento vertical, Une saison en enfer seria, a princípio,
um momento de queda, uma vez que se trata do relato de uma descida aos infernos. De
modo geral, no livro, supostamente um “carnet de damné”
649
, o sujeito repudia o seu
passado, o qual, em sua perspectiva renovada, teria sido vivido no abandono da verdade,
no afastamento da sabedoria. Aquela espécie de elevação imaginada por meio da
degradação, como pregavam as cartas ditas do vidente, é contraposta, agora, a um
desejo de salvação, ansiada por quem se teria tornado um maldito. Como eu dizia, no
capítulo anterior, entretanto, deve-se ter em mente que o volume é marcado por “uma
espécie bem particular de oscilação”, ou por aquilo que Hugo Friedrich, com maior
autoridade, chamaria de “um desconcertante vaivém
650
. É isto, precisamente, o que faz
com que mesmo a vivência colocada em questão apareça revestida de uma intensidade
excepcional.
Em algumas passagens do livro, o poeta expressa, ainda que a contrapelo, um
entusiasmo pelo próprio desregramento, ou por seu veneno, por aquilo que, a princípio,
teria um caráter corruptivo, causando prejuízo moral ou perturbando as funções vitais
648
RIMBAUD, 2002, p. 154. Eis a versão de Ivo Barroso: “Mas quero que o verão dramático / Prenda-me
ao carro da fortuna / Por ti ao menos, Natureza, / – Ah! menos só e nulo! – eu morra. (....) Que as estações
bem me consumam. / Ó natureza, a ti me entrego; / E a minha fome e toda a sede. / Nutre-a, sacia-a, se
puderes. / Nada de nada mais me ilude; / Bem ri aos pais quem ri ao sol, / Mas eu não quero rir a nada; / E
livre seja este infortúnio” (R
IMBAUD, 1995, p. 227; 229).
649
RIMBAUD, 2002, p. 178. Mário Cesariny traduz a expressão por “diário de danado” (RIMBAUD, 2007,
p. 117), Lêdo Ivo por “caderno de réprobo” (RIMBAUD, 1982, p. 46), e Ivo Barroso por “caderno de
maldito” (RIMBAUD, 2007, 133).
650
FRIEDRICH, 1991, p. 68.
do organismo. Acontece, então, com o sujeito do enunciado, o mesmo que acontecia
com Baudelaire, quando, em seus comentários sobre a experiência com o haxixe, a qual
condena, não deixava de notar como a substância poderia se estender “sobre toda a vida
como um verniz mágico”
651
, dotando o homem “de uma maravilhosa aptidão para
compreender o ritmo imortal e universal”
652
.
Em determinada passagem de “Mauvais sang”, que lembra algumas das posições
assumidas nos poemas de 1872, fala-se na necessidade de uma aceitação incondicional
do risco: “Tu ne sais ni où tu vas ni pourquoi tu vas, entre partout, réponds à tout. On ne
te tuera pas plus que si tu étais cadavre’”
653
. É a uma experiência como esta, a qual se
poderia pensar como a única digna de ser vivida, que se associa, como se fazia, nas
cartas, uma espécie de alucinação, configurada como uma forma de expansão da
consciência. Sob o influxo de uma sorte de delírio, que se vincula a uma fantasia
desregrada, os objetos e os seres do mundo adquirem formas inusitadas. Como no
trecho a seguir, é este o momento em que se dá o contato do sujeito com riquezas as
quais o comum dos homens sequer sonharia em conhecer:
Dans les villes la boue m’apparaissait soudainement rouge et noire, comme une
glace quand la lampe circule dans la chambre voisine, comme un trésor dans la
forêt! Bonne chance, criais-je, et je voyais une mer de flammes et de fumée au
ciel; et, à gauche, à droite, toutes les richesses flambant comme un millard de
tonnerres.
654
651
BAUDELAIRE, 1999, p. 59.
652
BAUDELAIRE, 1999, p. 61. No capítulo anterior, quando comentava “Matinée d’ivresse”, de
Illuminations, chamei a atenção para o final do poema, em que se fala na emergência de um “temps des
Assassins”, podendo ser este último termo, como salientei, referência a uma seita de usuários de haxixe,
os Haschischins. É no mesmo poema que se fala em um veneno, no qual o sujeito do enunciado afirma ter
fé. Ao discorrer sobre o haxixe, também Baudelaire o trata como um veneno, sem que isso o impeça de
observar os seus extraordinários efeitos. Para o autor de Les fleurs du mal, a experiência com a droga
seria a de uma “embriaguez misteriosa” (B
AUDELAIRE, 1999, p. 20), ou “ultra-poética” (BAUDELAIRE,
1999, p. 33).
653
RIMBAUD, 2002, p. 181. Lêdo Ivo traduz assim: “Não sabes nem para onde vais, nem por que vais;
entra em toda parte, responde a tudo. Não te matarão mais do que se fosses um cadáver’” (R
IMBAUD,
1982, p. 51).
654
RIMBAUD, 2002, p. 181-182. A tradução é de Lêdo Ivo: “Nas cidades a lama me aparecia subitamente
vermelha e negra, como um espelho quando uma lâmpada circula no quarto vizinho, como um tesouro na
Na sequência do livro, após “Nuit de l’enfer”, aparecem as duas partes de
“Délires”, em que se encontram alguns sinais, não só das práticas que agora se quer
abandonar, mas, também, de um projeto que parece se preservar. Em “Alchimie du
verbe”, a segunda parte do conjunto, retorna ao enunciado a figura do maldito, que
relata o que teria vivido, no passado. Outra vez, têm-se indícios do que caracterizaria
aquele momento, com destaque para a menção a uma série de práticas que estariam
relacionadas ao contato com outras esferas da percepção.
Recorda-se, no texto, a vivência dos sonhos (“Je rêvais croisades, voyages de
découvertes dont on n’a pas de relations, républiques sans histoires, guerres de religions
étouffées, révolutions de moeurs, déplacements de races et de continents”
655
), a crença
na magia (“je croyais à tous les enchantements”
656
), a que se associa a possibilidade de
se anotar o inexprimível (“je notais l’inexprimable”
657
), de captar vertigens: “Je fixais
des vertiges”
658
.
Segundo o relato, seria por meio do desregramento, então considerado sagrado,
que teria sido possível acessar um universo de visões fantásticas (“je voyais très
franchement une mosquée à la place d’une usine, une école de tambours faite par des
anges, des calèches sur les routes du ciel, un salon au fond d’un lac; les monstres, les
mystères”
659
), assim como entrar em contato com outras vidas, para além daquelas que
os próprios seres viventes seriam capazes de reconhecer: “Ce monsieur ne sait ce qu’il
floresta! Boa sorte, gritava, e via um mar de chamas e de fumaça no céu; e, à esquerda, à direita, todas as
riquezas ardendo como um bilhão de raios” (R
IMBAUD, 1982, p. 51).
655
RIMBAUD, 2002, p. 192. Eis a versão de Ivo Barroso: “Sonhava cruzadas, viagens de descobertas cujos
relatos não existem, repúblicas sem história, guerras de religião reprimidas, revoluções de costumes,
deslocamentos de raças e de continentes (R
IMBAUD, 2007, p. 161).
656
RIMBAUD, 2002, p. 192. (acreditava em todos os encantamentos).
657
RIMBAUD, 2002, p. 192. (anotava o inexprimível).
658
RIMBAUD, 2002, p. 192. (Eu fixava vertigens).
659
RIMBAUD, 2002, p. 194. A tradução é de Lêdo Ivo: “via realmente uma mesquita no lugar de uma
fábrica, uma escola de tambores feita por anjos, carruagens nas estradas do céu, um salão no fundo de um
lago; os monstros, os mistérios” (R
IMBAUD, 1982, p. 65).
fait: il est un ange. (...) Devant plusieurs hommes, je causai tout haut avec un moment
d’une de leurs autres vies”
660
.
A impressão de intensidade, relativa à experiência pregressa, apesar do
movimento geral de repúdio a ela, observa-se, também, no último poema do volume,
“Adieu”, o qual parece ser, ao mesmo tempo, um adeus ao passado e a afirmação da
continuidade da busca por uma verdade maior, por uma vida menos limitada. Em que
pese à recusa dos enganos cometidos no tempo pretérito (“Enfin, je demanderai pardon
pour m’être nourri de mensonge”
661
), vislumbra-se algo da potência da criação, assim
como da imaginação, as quais, dando origem a “uma liberdade ilimitadamente
criativa”
662
, nas palavras de Friedrich, tornariam possível a descoberta do que não se
conhece, ou seja, a ascensão ao desconhecido. Ainda que se pense ser a primeira parte
do poema o que mais se aproxima, na obra do poeta, de um adeus à literatura, dali não
se deixa de fora o virtual poder das visões:
Quelquefois je vois au ciel des plages sans fin couvertes de blanches nations en
joie. Un grand vaisseau d’or, au-dessus de moi, agite ses pavillons multicolores
sous les brises du matin. J’ai créé toutes les fêtes, tous les triomphes, tous les
drames. J’ai essayé d’inventer de nouvelles fleurs, de nouveaux astres, de
nouvelles chairs, de nouvelles langues.
663
Não por acaso, a segunda parte seria aquela em que, como diz Adalberto Luis
Vicente, após um “breve balanço de sua empreitada poética”
664
, com os modos de um
vidente, o sujeito prevê que seja possível, sob “les influx de vigueur et de tendresse
660
RIMBAUD, 2002, p. 197. A versão mais fiel me parece ser a de Mário Cesariny: “Este senhor não sabe
o que faz: é um anjo. (...) Em presença de muitas pessoas, falei em voz alta com momentos de suas outras
vidas” (R
IMBAUD, 2007, p. 159).
661
RIMBAUD, 2002, p. 204. (Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado de mentira).
662
FRIEDRICH, 1991, p. 81.
663
RIMBAUD, 2002, p. 203. A tradução é de Lêdo Ivo: “Algumas vezes vejo, no céu, praias infinitas
cobertas de brancas nações em júbilo. Um grande navio de ouro, acima de mim, agita suas bandeiras
multicores ao sabor das brisas matinais. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei
inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas” (R
IMBAUD, 1982, p. 76).
664
VICENTE, Adalberto Luis. Modernidade, futuro e progresso em Arthur Rimbaud. Texto poético, v. 6,
jan-jun. 2009. Disponível em http://www.textopoetico.org/index.php?option=com_content
&task=view&id=102&Itemid=5. Acesso em 28/08/2009.
réelle”
665
, entrar, vitorioso, “aux splendides villes”
666
. Aqui, a experiência passada,
embora superada, ainda parece ser o que poderia fornecer alguns dos elementos que
abririam ao sujeito as portas de um novo mundo, ou de um novo tempo (“l’heure
nouvelle”
667
), em que o poeta se disporia a sustentar a atenção e a força para perseverar
no avanço, na partida, em busca de alguma elevação, ou, em sentido mais terreno, em
busca de uma renovação das formas da vida.
De certa maneira, seria sob os influxos da vivência que se narra em Une saison
en enfer, ainda que revista, transformada, ultrapassada, que se constituiriam os poemas
do livro seguinte de Rimbaud. Aquele passado de criação desregrada, em que a
alteração dos sentidos desempenhava papel central, volta à tona na estruturação dos
textos de Illuminations, onde não se fala mais em salvação, nem em pecado, nem em
vícios mortificantes, mas abundam referências a elementos como as “élévations
harmoniques”
668
, de “Veillées”, as “merveilleuses images”
669
, de “Après le déluge”, o
sopro que “disperse les limites”
670
, de “Nocturne vulgaire”, ou os “tourbillons de
lumière”
671
, que encerram os versos de “Marine”.
No contexto de um novo posicionamento do sujeito, vislumbra-se, agora, algo
como uma nova razão, cujo caráter transformador traria ao mundo uma nova harmonia,
um novo amor, novos homens. Através da modulação do discurso como uma
interlocução com uma segunda pessoa, tão indefinida quanto fantástica, é isto o que se
vê nas primeiras três frases de “À une raison”:
Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la
nouvelle harmonie.
665
RIMBAUD, 2002, p. 204. (os influxos de vigor e de ternura real).
666
RIMBAUD, 2002, p. 204. (nas esplêndidas cidades).
667
RIMBAUD, 2002, p. 204. (a hora nova).
668
RIMBAUD, 2002, p. 227. (elevações harmônicas).
669
RIMBAUD, 2002, p. 207. (maravilhosas imagens).
670
RIMBAUD, 2002, p. 229. (dispersa os limites).
671
RIMBAUD, 2002, p. 230. (turbilhões de luz).
Un pas de toi c’est la levée de nouveaux hommes et leur en-marche.
Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, – le nouvel amour!
672
Entre os textos do volume, há alguns que parecem corresponder a um anseio do
poeta de voltar ao percurso de sua vida, à sua infância, à sua formação. Estas
manifestações de um tempo pretérito seriam, dessa vez, entretanto, vistas não mais sob
o peso da condenação. Abandona-se o prisma dos questionamentos que informavam o
livro anterior, em nome do filtro de uma sorte de fantasia, a qual, distorcendo os
elementos por que passa, acabaria por ampliá-los, em boa medida, no sentido de torná-
los indefinidos. Apresentam-se, então, poemas como “Enfance”, em que o próprio
sujeito se multiplica, como a dar forma àquilo que Friedrich chama de uma
“multiplicidade dissonante de vozes”
673
:
Je suis le Saint, en prière sur la terrasse, – comme les bêtes pacifiques paissent
jusqu’à la mer de Palestine.
Je suis le savant au fauteuil sombre. Les branches et la pluie se jettent à la
croisée de la bibliothèque.
Je suis le piéton de la grand’route par les bois nains; la rumeur des écluses
couvre mes pas. Je vois long-temps la mélancolique lessive d’or du couchant.
Je serais bien l’enfant abandonné sur la jetée partie à la haute mer, le petit valet,
suivant l’allée dont le front touche le ciel.
674
Em “Vies”, seria também o passado o que viria à tona, sobretudo, na terceira e
última parte do poema, em que se destacam referências a um tipo de processo de
aprendizagem, um tanto mágico: “Dans un grenier où je fus enfermé à douze ans j’ai
672
RIMBAUD, 2002, p. 217. A tradução é de Mário Cesariny: “Um toque do teu dedo no tambor dispara
todos os sons e começa a nova harmonia. Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua
arrancada. Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, – o novo amor!” (R
IMBAUD, 2007, p. 35).
673
FRIEDRICH, 1991, p. 69.
674
RIMBAUD, 2002, p. 210. Eis a tradução de Lêdo Ivo: “Sou o santo, orando no terraço, – como os
animais pastam até o mar da Palestina. Sou o sábio, na cátedra sombria. Os ramos e a chuva lançam-se à
janela da biblioteca. Sou o transeunte da estrada real pelos bosques anões; o rumor das represas abafa
meus passos. Vejo, por muito tempo, a melancólica barrela de ouro do poente. Eu bem seria a criança
abandonada no cais que partiu para o alto-mar, o pequeno sevo andando pela alameda cuja fronte toca o
céu” (R
IMBAUD, 1982, p. 85).
connu le monde (...). Dans un cellier j’ai appris l’histoire (...) “Dans un vieux passage à
Paris on m’a enseigné les sciences classiques”
675
.
“Jeunesse”, um texto dividido em quatro partes, em que se acompanha uma
sucessão de momentos da vida de um mesmo sujeito, seria, entre os poemas do volume,
o que de modo mais claro delineia certa trajetória subjetiva. A descrição das fases que o
poeta atravessa, culminando com a menção ao encontro de formas do desconhecido,
justifica a extensão do comentário a seguir.
Na primeira parte da composição, denominada “Dimanche”, tem-se uma espécie
de retrato, com imagens que parecem ter como origem a mente do sujeito (“la tête et le
monde de l’esprit”
676
), quando criança. Veem-se, a partir desse lugar, realidades
justapostas, todas elas imaginárias: “Une misérable femme de drame, quelque part dans
le monde, soupire après des abandons improbables. Les desperadoes languissent après
l'orage, l’ivresse et les blessures. De petits enfants étouffent des malédictions le long des
rivières”
677
. No discurso, o sujeito aparece somente na última frase do fragmento,
dirigindo-se a si mesmo, como uma primeira pessoa do plural. Concentrada em seus
estudos, a criança não deixa de ser sensível aos barulhos do mundo exterior, como,
aliás, acontecia em “Le poètes de sept ans”: “Reprenons l’étude au bruit de l’oeuvre
dévorante qui se rassemble et remonte dans les masses”
678
.
Na segunda parte, intitulada “Sonnet”, observam-se dois tempos diferentes. O
primeiro parece remeter à puberdade, quando o corpo começa a se transformar e o
675
RIMBAUD, 2002, p. 216. Lêdo Ivo traduz assim: “Num sótão em que me encerraram aos doze anos,
conheci o mundo (...). Num celeiro aprendi a história. (...) Numa velha travessa em Paris, ensinaram-se as
ciências clássicas” (R
IMBAUD, 1982, p. 92).
676
RIMBAUD, 2002, p. 235. (a cabeça e o mundo do espírito).
677
RIMBAUD, 2002, p. 235. A tradução é de Lêdo Ivo: “Uma miserável mulher de drama, em alguma
parte do mundo, suspira após improváveis abandonos. Os desesperados enlanguescem após a tempestade,
a embriaguez e as feridas. Criancinhas reprimem maldições ao longo dos rios” (R
IMBAUD, 1982, p. 125).
678
RIMBAUD, 2002, p. 235. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Retomemos o estudo ao rumor da obra devoradora
que se concentra e sobe nas massas” (R
IMBAUD, 1982, p. 125).
desejo sexual se manifesta. Tem-se o tempo do corpo, “un trésor à prodiguer”
679
,
associado a um primeiro impulso, ainda confuso, para o amor (“ô aimer, le péril ou la
force de Psyché?”
680
) e para o encontro do mundo: “le monde votre fortune et votre
péril”
681
. O segundo tempo é o espaço do presente, posterior a um aprendizado, ao
acúmulo de vivências, a tarefas já cumpridas. Sugere-se a conquista de uma espécie de
sabedoria e de uma sorte de naturalidade, devidas à integração entre o poder de
invenção e certa forma de razão. O sujeito, através do seu corpo, faz, de uma mescla
entre a impaciência e a moderação, positivamente, a sua voz e o seu movimento, como
se tivesse encontrado a si mesmo:
Mais à présent, ce labeur comblé, – toi, tes calculs, – toi, tes impatiences – , ne
sont plus que votre danse et votre voix, non fixées et point forcées, quoique d’un
double événement d’invention et de succès (...) une raison, – en l’humanité
fraternelle et discrète par l’univers sans images; – la force et le droit
réfléchissent la danse et la voix à présent seulement appréciées.
682
Em seguida, retrata-se o que seria um período avançado da adolescência do
sujeito, em “Vingt ans”. Fala-se em uma aquietação do corpo (“L’ingénuité physique
amèrement rassie...”
683
), em um ritmo menos precipitado: “Adagio”
684
. Mencionam-se a
volta aos estudos, um egoísmo e um otimismo renovados: “Ah!, l’égoïsme infini de
l’adolescence, l’optimisme studieux”
685
. O mundo, ao mesmo tempo em que parece
ganhar em vitalidade, florescer (“que le monde était plein de fleurs cet été!”
686
), é lugar
679
RIMBAUD, 2002, p. 236. Lêdo Ivo traduz assim: “um tesouro para ser dissipado” (RIMBAUD, 1982, p.
126).
680
RIMBAUD, 2002, p. 236. (ó amar, o perigo ou a força de Psique?).
681
RIMBAUD, 2002, p. 236. (o mundo, vossa fortuna e vosso perigo).
682
RIMBAUD, 2002, p. 236. A tradução é de Mário Cesariny: “Hoje, porém, cumprido êste labor, tu, os
teus cálculos, tu, as tuas impaciências, não são mais que a vossa dança e a vossa voz, não forçadas, não
fixas, ainda que em duplo evento de invenção e de êxito uma razão, na humanidade fraternal e discreta de
um universo sem imagens; – o direito e a força reflectem a dança e a voz só agora apreciadas” (R
IMBAUD,
2007, p. 89; 91).
683
RIMBAUD, 2002, p. 236. (A ingenuidade física amargamente serenada).
684
RIMBAUD, 2002, p. 236.
685
RIMBAUD, 2002, p, 236. (Ah!, o egoísmo infinito da adolescência, o otimismo estudioso).
686
RIMBAUD, 2002, p. 236. (como o mundo estava cheio de flores naquele verão!).
em que se experimenta a impotência, a sensação de vazio: “Les airs et les formes
mourant... – Un choeur, pour calmer l’impuissance et l’absence!”
687
. A estas, entretanto,
acompanha uma música noturna (“Un choeur de verres, de mélodies nocturnes...”
688
),
que anunciaria o momento próximo de um novo e mais intenso desregramento. A última
frase do texto aponta para o início de uma nova etapa, para o romper de uma nova
aurora, em que o sujeito, comandado por seus nervos, iria se pôr à caça, retomando o
caminho do desvio: “En effet les nerfs vont vite chasser”
689
.
Por fim, na parte que fecha o poema, a única que não recebe título, encontra-se a
crença na conquista futura de outro mundo, de outras possibilidades de vida. O trecho
começa com a referência à tentação de Santo Antônio, uma figura que, na história do
cristianismo, teria adotado um modo de vida solitário, no deserto, estando sempre
tentado pelo demônio, mas a ele resistindo. Citam-se quatro formas de pecado, que
acometeriam, ainda, no presente, o sujeito do enunciado, o qual se dirige a si mesmo:
“L’ébat du zèle écourté, les tics d’orgueil puéril, l’affaissement et l’effroi”
690
. A
“tentation d’Antoine”
691
, no caso, de acordo com Matthieu Letourneux, seria “a da
passividade e, portanto, a da preguiça”
692
. Rejeitá-la significaria se colocar ao trabalho,
abdicando-se, inclusive, do repouso dominical, que se sugeria na primeira parte da
composição.
687
RIMBAUD, 2002, p. 236. (Os ares e as formas morriam... – Um coro, para acalmar a impotência e a
ausência!).
688
RIMBAUD, 2002, p. 236. (Um coro de vidros, de melodias noturnas...).
689
RIMBAUD, 2002, p. 236. (Com efeito, os nervos vão logo se pôr à caça). É Louis Forestier quem, em
suas notas ao poema, indica o significado de chasser como “desviar do caminho” (dévier du chemin) (In:
R
IMBAUD, 2002, p. 328).
690
RIMBAUD, 2002, p. 237. A tradução é de Maria Gabriela Llansol: “O curtir do zelo abreviado, os tiques
do orgulho pueril, a prostração e o pavor” (RIMBAUD, 1998, p. 113).
691
RIMBAUD, 2002, p. 237. (tentação de Antônio).
692
O autor ainda indica a relação do Santo Antônio do poema com a personagem de Flaubert: “‘la
tentation d’Antoine’, c’est-à-dire celle de saint Antoine telle que l’a recréée Flaubert, c’est la tentation de
la passivité et donc de la paresse” (L
ETOURNEUX, 2004, p. 62).
Na sequência do poema, o que se afirma é, justamente, a crença no trabalho
(“Mais tu te mettras à ce travail”
693
), que se relaciona, exclusivamente, ao impulso
criador, a ser alimentado por dois elementos, em específico, a memória e os sentidos:
“Ta mémoire et tes sens ne seront que la nourriture de ton impulsion créatrice”
694
. Seria
esta conjunção o que permitiria ao sujeito aceder, em um desejado futuro, a “toutes les
possibilités harmoniques et architecturales”
695
, em contato com outras esferas da
realidade, habitadas por “êtres parfaits, imprévus”
696
.
Ao final do texto, menciona-se, ainda, o término da experiência, destacando-se o
seu caráter transformador. Saindo dela, o sujeito veria transfigurados os objetos e os
seres ao seu redor. O próprio mundo seria visto para além das aparências, por força da
ampliação proporcionada pela criação, com a qual se ultrapassam os condicionamentos
restritivos, aderidos à visão dos homens. Embora não se saiba o que se verá, o sujeito
pode afirmar, de certo modo, triunfante: “En tout cas, rien des apparences actuelles”
697
.
Sob outro aspecto relevante, em alguns poemas do livro, tem-se o retorno de um
antigo anseio manifesto na poesia de Rimbaud, aquele da fusão entre o sujeito e a
natureza, a qual, agora, aparece, ao mesmo tempo, como o que pode dar ao poeta uma
nova sensibilidade e uma nova visão de mundo, e como o que, de certo modo, fornece a
ele um princípio de composição, em que se ressalta um gosto pela transformação, o
apego ao sentido do devir, que se vê na exploração da ideia da metamorfose. Esta daria
origem, entre outros, a um poema como “Bottom”, em que o sujeito é ora um urso (“Je
fus (...) un gros ours aux gencives violettes et au poil chenu de chagrin”
698
), ora um
693
RIMBAUD, 2002, p. 237. (Mas tu te aplicarás a esse trabalho).
694
RIMBAUD, 2002, p. 237. (Tua memória e teus sentidos serão o alimento de teu impulso criador).
695
RIMBAUD, 2002, p. 237. (todas as possibilidades harmônicas e arquiteturais).
696
RIMBAUD, 2002, p. 237. (seres perfeitos, imprevistos).
697
RIMBAUD, 2002, p. 237. (Em todo o caso, nada das aparências atuais).
698
RIMBAUD, 2002, p. 240. Lêdo Ivo traduz assim: “Fui (...) um gordo urso de gengivas violetas e de pêlo
encanecido pela amargura” (R
IMBAUD, 1982, p. 133).
asno: “Au matin (...) je courus aux champs, âne, claironnant et brandissant mon
grief”
699
.
Em “Guerre”, esboça-se, em uma oposição entre dois tempos distintos, a
imagem de uma sorte de iniciação, na infância, quando se teria dado um
aperfeiçoamento do olhar, no contato com a natureza (“Enfant, certains ciels ont affiné
mon optique”
700
), em uma relação de reciprocidade, em que os fenômenos naturais
também se manifestam, em função do sujeito: “Les Phénomènes s’émurent”
701
. Em
“Fleurs”, parece ser, justamente, este olhar aperfeiçoado, o qual alça o sujeito a uma
classe superior de seres, o que lhe permite ver, em uma natureza viva e ativa, algo que o
comum dos homens não veria:
D’un gradin d’or, – parmi les cordons de soie, les gazes grises, les velours verts
et les disques de cristal qui noircissent comme du bronze au soleil, – je vois la
digitale s’ouvrir sur un tapis de filigranes d’argent, d’yeux et de chevelures.
702
Em “Aube”, a mesma relação se mostra mais desenvolvida, quando se tem a
descrição de uma espécie de encontro amoroso entre um sujeito e uma deusa, a aurora.
O relato tem como tempo o passado, e, como sujeito, até a penúltima frase do texto,
uma primeira pessoa, a qual afirma ter tido, nos seus braços, “l’aube d’été”
703
.
Descreve-se, de início, um momento de ausência de movimento, quando a luz ainda não
se fez, as águas ainda não se puseram a correr: “Rien ne bougeait encore au front des
699
RIMBAUD, 2002, p. 240. A tradução é de Lêdo Ivo: “De manhã (...) corri para os campos, asno,
trombeteando e brandindo minha injúria” (RIMBAUD, 1982, p. 133).
700
RIMBAUD, 2002, p. 235. Ivo Barroso traduz assim: “Menino, certos céus aguçaram-me a visão”
(R
IMBAUD, 2007, p. 279).
701
RIMBAUD, 2002, p. 235. (Os Fenômenos se comoveram).
702
RIMBAUD, 2002, p. 229. A tradução é de Lêdo Ivo: “De um pequeno degrau dourado –, entre os
cordões de seda, os cinzentos véus de gaze, os veludos verdes e os discos de cristal que enegrecem como
bronze ao sol –, vejo a digital abrir-se sobre um tapete de filigranas de prata, de olhos e de cabeleiras”
(R
IMBAUD, 1982, p. 113).
703
RIMBAUD, 2002, p. 228. (a aurora de verão).
palais. L’eau était morte. Les camps d’ombres ne quittaient pas la route du bois”
704
. A
primeira ação é a do sujeito, cujo movimento desperta os elementos ao redor: “J’ai
marché, réveillant les haleines vives et tièdes, et les pierreries regardèrent, et les ailes se
levèrent sans bruit”
705
.
Na sequência do texto, tem-se uma “première entreprise”
706
, quando uma flor diz
o seu nome ao caminhante (“une fleur qui me dit son nom”
707
), a que se sucede o
encontro e a interação com uma cascata (“Je ris au wasserfall blond qui s’échevela à
travers les sapins”
708
), e, por fim, o encontro e o reconhecimento de uma entidade
feminina, referida como uma deusa: “à la cime argentée je reconnus la déesse”
709
. No
encontro entre os dois, o sujeito retira os véus da figura (“Alors je levai un à un les
voiles”
710
), como se estivesse a descobrir, apenas ele, um imenso segredo da natureza,
ou, para dizer de outro modo, uma espécie de fórmula do cosmos
711
.
Em uma estruturação que desdenha as coerências temporal e espacial, são
referidos lugares distintos. Simultaneamente, ou não, está-se em uma espécie de bosque
(“Dans l’allée, en agitant les bras”
712
), em uma planície (“Par la plaine, où je l’ai
dénoncée au coq”
713
), e em uma grande cidade, onde a entidade foge, com o sujeito se
pondo a persegui-la: “À la grand’ville elle fuyait parmi les clochers et les dômes, et
704
RIMBAUD, 2002, p. 228. A tradução é de Lêdo Ivo: “Nada se movia ainda na fachada dos palácios. A
água estava morta. Os campos de sombras não deixavam o caminho do bosque” (RIMBAUD, 1982, p.
111).
705
RIMBAUD, 2002, p. 228. A tradução é de Mário Cesariny: “Caminhei, despertando os hálitos vivos e
tépidos, e as pedrarias olharam, e as asas ergueram-se sem ruído” (RIMBAUD, 2007, p. 67).
706
RIMBAUD, 2002, p. 228. Mário Cesariny traduz por: “primeira aventura” (RIMBAUD, 2007, p. 67).
707
RIMBAUD, 2002, p. 228. (uma flor que me disse o seu nome).
708
RIMBAUD, 2002, p. 228. A tradução é de Lêdo Ivo: “Ri à loura cascata que desceu desgrenhada através
dos pinheiros” (RIMBAUD, 1982, p. 111).
709
RIMBAUD, 2002, p. 228. (no cimo prateado reconheci a deusa).
710
RIMBAUD, 2002, p. 228. Mário Cesariny traduz assim: “Então, um a um, tirei-lhe os véus” (RIMBAUD,
2007, p. 67).
711
Lembro como, em “Vagabonds”, o texto termina com a indicação do sujeito de sua pressa em “trouver
le lieu et la formule” (RIMBAUD, 2002, p. 226). (encontrar o lugar e a fórmula).
712
RIMBAUD, 2002, p. 228. (Na alameda, agitando os braços).
713
RIMBAUD, 2002, p. 228. (Pela planície, onde a denunciei ao galo).
courant comme un mendiant sur les quais de marbre, je la chassais”
714
. Em um quarto
lugar, ainda, que é um sítio de elevação, ao menos topograficamente, uma vez que se
trata do alto de uma estrada (“En haut de la route”
715
), o sujeito do enunciado volta a
cobrir a deusa com os véus (“je l’ai entourée avec ses voiles amasses”
716
), quando
menciona ter sentido “un peu son immense corps”
717
.
Na frase seguinte, muda-se o foco narrativo. Surge uma terceira pessoa, a
criança, mas esta não parece ser senão o mesmo sujeito, visto por outro ângulo, ou
apenas transformado, quando se lhe restitui uma suposta naturalidade infantil. A criança
e a aurora caem, juntas, no bosque, como se tivessem adormecido, depois de um ato de
amor: “L’aube et l’enfant tombèrent au bas du bois”
718
. Na última frase, em que já não
há mais sujeitos definidos, fala-se em um despertar, em uma referência temporal, a
única da composição, que lhe encerra: “Au réveil il était midi”
719
.
Em “Aube”, manifesta-se, com bastante evidência, um traço que se estende por
vários poemas de Illuminations. Em muitas das composições do livro, com efeito, não
se estabelece a coerência, nem temporal, nem espacial, nem no que diz respeito à
identificação dos sujeitos dos enunciados, cuja figuração tende a ir ao encontro de uma
sorte de princípio de indeterminação. Articulando-se a ascensão ao desconhecido com o
desdobramento da fantasia, cujos princípios maiores seriam, em Rimbaud, conforme
Friedrich, a decomposição e a deformação, capazes de efetivar uma sorte de “passagem
ao irreal”
720
, dá-se origem a formas inusitadas, planos que se misturam, tempos que não
se sucedem em acordo com uma razão cronológica linear. De certo modo, torna-se
714
RIMBAUD, 2002, p. 228. A tradução é de Lêdo Ivo: “Na grande cidade, ela fugia entre os campanários
e as cúpulas e, correndo como um mendigo sobre os cais de mármore, eu a perseguia” (RIMBAUD, 1982,
p. 111).
715
RIMBAUD, 2002, p. 228. (No alto da estrada).
716
RIMBAUD, 2002, p. 228. A tradução é de Ivo Barroso: “envolvi-a com seus véus amarfanhados”
(RIMBAUD, 2007, p. 259).
717
RIMBAUD, 2002, p. 228-229. (um pouco seu imenso corpo).
718
RIMBAUD, 2002, p. 229. (A aurora e a criança caíram na orla do bosque).
719
RIMBAUD, 2002, p. 229. (Ao acordar era meio-dia).
720
FRIEDRICH, 1991, p. 76.
efetivo, então, o procedimento que se propunha nas cartas ditas do vidente, quando se
dizia, a respeito da ação do poeta, tendo em mente a ideia de “trouver une langue”
721
:
“si ce qu’il rapporte de là-bas a forme, il donne forme; si c’est informe, il donne de
l’informe”
722
.
Sob este último aspecto, valerá a pena destacar, no conjunto dos poemas, dois
objetos, em específico. Em primeiro lugar, eu chamaria a atenção para as imagens das
cidades, as quais, ao contrário daquelas a que me referi, no capítulo anterior, não são
vistas de modo crítico, mas como espaços para o exercício de uma fantasia sem limites,
para a construção de corpos e formas mágicas, antes nunca vistas, onde se repele, como
diz Friedrich, “tudo o que é familiar”
723
.
No primeiro “Villes”
724
, descreve-se uma cidade fabulosa, marcada pelo
excesso, pela desmesura. Toda a urbe é o produto de “un goût d’énormité singulier”
725
,
capaz de ultrapassar “les conceptions de la barbarie moderne les plus colossales”
726
.
Neste espaço, concebido por uma ordem que escapa a tudo o que se conhece, toda lei
seria estranha demais para se tentar compreender, todo o reconhecimento, para o
homem contemporâneo, seria impossível: “Pour l’étranger de notre temps la
reconnasissance est impossible”
727
.
No segundo, vê-se uma sucessão de imagens variadas, em que elementos
díspares têm uma existência compartilhada, no mesmo universo. Apresenta-se como
721
RIMBAUD, 2002, p. 91. (Encontrar uma língua).
722
RIMBAUD, 2002, p. 91. (Grifos do autor). (Se aquilo que ele traz de longe tem forma, ele lhe dá
forma; se é informe, ele lhe dá o informe).
723
FRIEDRICH, 1991, p. 66.
724
As edições portuguesa e brasileira trazem uma ordem diferente daquela em que Louis Forestier dispõe
os dois “Villes”, na edição Gallimard, de 2002. Nas primeiras, o que Forestier considera o segundo
“Villes” aparece antes, com o outro vindo após “Vagabonds”. Na versão de Maria Gabriela Llansol, que
também segue o padrão dos outros tradutores, há uma indicação de que o poema que vem primeiro seria,
na verdade, o segundo, pois ela o nomeia “Cidades (II)”. Quanto a mim, a ordem que sigo é a de
Forestier.
725
RIMBAUD, 2002, p. 223. (um gosto singular pela enormidade).
726
RIMBAUD, 2002, p. 223. (as concepções da barbárie moderna as mais colossais).
727
RIMBAUD, 2002, p. 223. (Para o estrangeiro de nosso tempo, o reconhecimento é impossível).
que a descrição de uma região de sonho, de onde se originariam os impulsos de alguns
dos movimentos do sujeito: “cette région d’où viennent mes sommeils et mes moindres
mouvements”
728
. Em um universo encantado, sem limites discerníveis, há, “Au-dessus
du niveau des plus hautes crêtes une mer troublée par la naissance éternelle de
Vénus”
729
, no mesmo espaço onde, em uma referência ao que não se conhece, “des
châteaux bâtis en os sort la musique inconnue”
730
. O caráter positivo dessa cidade, cheia
de vida e energia, reflete-se na presença dos selvagens, a dançar “sans cesse la fête de la
nuit”
731
, ou dos operários, a cantar “la joie du travail nouveau”
732
.
Este mesmo movimento de deformação do real, que equivaleria a uma ascensão
ao desconhecido, dando origem a “novas superrealidades”
733
, no dizer, mais uma vez,
de Hugo Friedrich, revela-se, igualmente, quando se apresenta, nos poemas, uma série
de figuras tão fantásticas e enigmáticas como os próprios textos. Tem-se, então, seres
como a Helena, de “Fairy”, para quem se teriam conjurado “les sèves ornamentales dans
les ombres vierges et les clartés impassibles dans le silence astral”
734
; ou a Hortense, de
“H”, que teria sido “à des époques nombreuses, l’ardente hygiène des races”
735
; ou a
moça de lábios cor de laranja (“la fille à lèvre d’orange”), cuja nudez é coberta por “les
arcs-en-ciel, la flore, la mer”
736
, em “Enfance”; ou, ainda, a “mère de beauté”
737
, de
“Being beauteous”, com seu “corps adoré”
738
e suas “chairs superbes”
739
, em luta contra
728
RIMBAUD, 2002, p. 225. (esta região de onde vêm meus sonos e meus menores movimentos).
729
RIMBAUD, 2002, p. 225. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Acima do nível dos mais altos cumes, um mar
perturbado pelo nascimento eterno de Vênus” (RIMBAUD, 1982, p. 103).
730
RIMBAUD, 2002, p. 225. A tradução é de Lêdo Ivo: “dos castelos construídos em osso sai a música
desconhecida” (RIMBAUD, 1982, p. 104).
731
RIMBAUD, 2002, p. 225. (sem cessar a festa da noite).
732
RIMBAUD, 2002, p. 225. (a alegria do trabalho novo).
733
FRIEDRICH, 1991, p. 82.
734
RIMBAUD, 2002, p. 234. (as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis no
silêncio astral).
735
RIMBAUD, 2002, p. 240. Lêdo Ivo traduz assim: “em numerosas épocas, a ardente higiene das raças”
(RIMBAUD, 1982, p. 134).
736
RIMBAUD, 2002, p. 208. (os arco-íris, a flora, o mar).
737
RIMBAUD, 2002, p. 214. (mãe de beleza).
738
RIMBAUD, 2002, p. 214. (corpo adorado).
739
RIMBAUD, 2002, p. 214. (carnes soberbas).
o mundo (“les sifflements mortels et les rauques musiques que le monde, loin derrière
nous, lance sur notre mère de beauté”
740
), em um conflito que poderia dar origem a um
“nouveau corps amoureux”
741
.
Em meio a todas estas figuras fantásticas, a que talvez mais se destaque,
entretanto, seja a de “Génie”, texto sobre o qual fiz um breve comentário, no capítulo
anterior, agora, merecedor de um prolongamento. No poema, tem-se um ser que é,
simultaneamente, “l’affection et le présent”
742
, “l’affection et l’avenir”
743
. A entidade
não se adéqua ao tempo conhecido (“lui qui nous aime pour sa vie infinie...”
744
), não
pode ser localizada em um espaço definido (“lui qui est le charme des lieux fuyants et le
délice surhumain des stations”
745
), nem ter os seus contornos precisados: “Son pas! les
migrations plus énormes que les anciennes invasions”
746
.
Ainda no primeiro parágrafo da composição, apresenta-se a relação entre a
figura e um sujeito no plural, uma primeira pessoa, que vê passar, “dans le ciel de
tempête et les drapeaux d’extase”
747
, aquele que é, simplesmente, “la force et
l’amour”
748
. Do amor, ainda se fala no parágrafo seguinte, definindo-o como uma
“mesure parfaite et réinventée”
749
, uma “raison merveilleuse et imprévue”
750
. A
formulação, não por acaso, ecoa tanto o suposto anseio do danado, no discurso de seu
companheiro, em “Délires”, quando se lhe atribuía o objetivo de reinventar o amor, o
740
RIMBAUD, 2002, p. 214. (os silvos mortais e as roucas músicas que o mundo, longe atrás de nós, lança
sobre a nossa mãe de beleza).
741
RIMBAUD, 2002, p. 214. (novo corpo amoroso).
742
RIMBAUD, 2002, p. 243. (a afeição e o presente).
743
RIMBAUD, 2002, p. 243. (a afeição e o futuro).
744
RIMBAUD, 2002, p. 243. (ele que nos ama por sua vida infinita...).
745
RIMBAUD, 2002, p. 243. (ele que é o encanto dos lugares fugidios e a delícia sobre-humana das
estações).
746
RIMBAUD, 2002, p. 244. A tradução é de Mário Cesariny: “O seu passo! migrações mais vastas do que
as antigas invasões” (RIMBAUD, 2007, p. 113).
747
RIMBAUD, 2002, p. 243. Lêdo Ivo traduz assim: “no céu de tempestade e nos estandartes de êxtase”
(R
IMBAUD, 1982, p. 140).
748
RIMBAUD, 2002, p. 243. (a força e o amor).
749
RIMBAUD, 2002, p. 243. (medida perfeita e reinventada).
750
RIMBAUD, 2002, p. 243. (razão maravilhosa e imprevista).
desejo de mudar a vida, quanto o poema com que iniciei esta parte do capítulo, “À une
raison”, com sua menção a um “nouvel amour”.
À figura fantástica, cujo sopro, no texto, é referido mais de uma vez (“Ô ses
souffles, ses têtes, ses courses; la terrible célérité de la perfection des formes et de
l’action”
751
), relaciona-se a saúde e a impulsão do que no homem haveria de potência, o
que se associa ao desejo de transformação, de modificação, aqui, particularmente,
através da sensibilidade e do afeto. Em um trecho já citado no capítulo anterior,
acentua-se a ligação entre o gênio e a possibilidade de renovação, de impulsão das
faculdades do espírito e de alargamento dos limites do universo: “Ô fécondité de l’esprit
et immensité de l’univers!”
752
. Seria sob este influxo que se desprenderia uma força
extraordinária, uma violência nova, essencialmente transformadora, que se
acompanharia de uma nova harmonia, uma “musique plus intense”
753
, a qual, como diz
o texto, recolocando, de certo modo, o problema da moral, seria “chant clair des
malheurs nouveaux”
754
.
Ao final da composição, o sujeito faz referência, ainda, ao que seria uma forma
de sabedoria, consistente em saber seguir a figura fantástica, em saber receber o seu
influxo, mas, igualmente, em saber deixá-lo. O sujeito do enunciado, como já vindo de
uma vivência anterior, a qual implicaria um aprendizado, a que, aliás, muitos poemas do
livro fazem referência, acredita poder retornar ao contato, ainda que passageiro, ou
mesmo instantâneo, com um poder sobrenatural, com a força, a harmonia e o amor que
do gênio emanam. Porventura se dirigindo aos outros homens, é dele a voz que termina
por dizer, no último momento do texto, o qual também encerra o livro: “Sachons (...) le
751
RIMBAUD, 2002, p. 243. A tradução é de Maria Gabriela Llansol: “Oh!, os seus sopros, as suas
cabeças, as suas corridas; a terrível celeridade da perfeição das formas e da ação” (RIMBAUD, 1998, p.
131).
752
RIMBAUD, 2002, p. 243. (Ó fecundidade do espírito e imensidão do universo!).
753
RIMBAUD, 2002, p. 244. (música mais intensa).
754
RIMBAUD, 2002, p. 244. (canto claro das desgraças novas).
héler et le voir, et le renvoyer, et sous les marées et au haut des déserts de neige, suivre
ses vues, ses souffles, son corps, son jour”
755
.
4. No início do capítulo, foi com a ideia de partida que eu tentei começar a
sugerir uma proposta pertinente às poéticas de Sá-Carneiro e de Rimbaud, no que diz
respeito a certa dinâmica ascensional, aquela em que se vê o impulso em direção a uma
vida incomum, cujo objetivo é o de levar o homem para além de seus limites. Naquele
momento, eu pensava a partida como um primeiro movimento para a ascensão, a qual só
poderia acontecer quando o sujeito escapa do mundo restritivo em que vivem os seus
pares, condicionados por uma série de valores e de crenças que o poeta deseja superar.
Em muitos pontos das obras dos dois autores, observa-se a importância que se dá
aos desejos de evasão, os quais se acompanharão de ânsias e aspirações mais ou menos
constantes, a impulsionar a conquista de outras formas de vida e de arte. Em Rimbaud,
entre vários outros momentos, lembre-se aquele em que se faz a “vierge folle”
756
caracterizar a intensidade do desejo de fuga do esposo: “À côte de son cher corps
endormi, que d’heures des nuits j’ai veillé, cherchant pourquoi il voulait tant s’évader
de la réalité. Jamais homme n’eut pareil voeu”
757
. Em Sá-Carneiro, é algo semelhante o
que acontece quando se revela, em um conto como “Ressurreição”, a exclusividade da
admiração do protagonista pelas pessoas que teriam sido “capazes duma evasão, duma
revolta, duma ânsia”
758
.
Neste último texto, como se viu, no capítulo anterior, o raciocínio da
personagem principal leva a que se pense o verdadeiro artista como quem teria
afinidades apenas com figuras como os assassinos, os ladrões, os incendiários, e,
755
RIMBAUD, 2002, p. 244. A tradução é de Ivo Barroso: “Saibamos (...) convocá-lo e vê-lo, e o mandar
de volta, e sob as marés e no alto dos desertos de neve, seguir suas vistas, seus sopros, seu corpo, seu dia”
(R
IMBAUD, 2007, p. 303).
756
RIMBAUD, 2002, p. 187. (virgem louca).
757
RIMBAUD, 2002, p. 189. A tradução é de Mário Cesariny: “Junto ao amado corpo adormecido, quantas
horas da noite passei tentando compreender porque queria ele, com tanta obstinação, fugir do mundo real.
Nunca homem algum fez semelhante voto” (R
IMBAUD, 2007, p. 143).
758
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
especialmente, os loucos. De acordo com a lógica da narrativa, seria entre estes seres,
localizados fora do âmbito da boa sociedade, que estariam os homens com a coragem
necessária para realizar uma experiência limite, a de “dar o grande salto, de mergulhar o
abismo”
759
. Os termos não podem deixar de lembrar aquela vivência da “outra
margem”, de que fala Octavio Paz, na qual, através de um “salto brusco”, o homem
seria “desenraizado como uma árvore e lançado para além
760
.
Ao falar, justamente, de “Além”, narrativa que integraria Céu em fogo, Sá-
Carneiro utiliza a expressão “súbitos mergulhos no azul”
761
, indicando o seu parentesco
com algo que designa como “os desequilíbrios do espírito, os vôos da imaginação”
762
.
Tem-se, aqui, uma sugestão do vínculo entre certa instabilidade subjetiva, os poderes da
fantasia e uma forma de elevação. Não por acaso, esta seria uma das composições
atribuídas ao protagonista de “Asas”, em que o poeta, após atingir a perfeição, com os
poemas que se evolam, vencendo a lei da gravidade, é tomado pela loucura, em meio a
“crises estranhas, convulsas, (...) desconhecidas por todos os alienistas”
763
.
Tanto na obra de Rimbaud quanto na do autor português, os momentos em que
se atinge algum tipo de elevação, frequentemente, identificados a uma espécie de
delírio, a uma forma de vertigem, são aqueles em que tem lugar, também, a dissipação
da unidade subjetiva. Como uma impulsão do sujeito para fora de si mesmo, a ascensão
seria parte de um processo que implicaria uma transfiguração, a qual levaria à perda da
estabilidade, do juízo ou da identidade. O poeta forçaria os limites de sua própria
constituição, a fim de ultrapassar aquilo que se define, seja como uma substância,
759
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 545.
760
PAZ, 1982, p. 148.
761
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 741.
762
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 741.
763
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 495.
determinável e consistente, seja, em termos um tanto psicanalíticos, como uma
“organização coerente de processos mentais”
764
.
Ambos os autores, neste campo, ainda que de modos e com intensidades
distintas, estariam implicados no questionamento a respeito da ideia de sujeito como
algo determinado, o qual tenderia a se tornar um corpo de intensidades dispersas, ou
“um fundo indiferenciado de excitações dispersas”
765
. Aqui, valeria a pena lembrar um
comentário de Dieter Woll, sobre a dispersão, em Sá-Carneiro, que se poderia aplicar,
igualmente, ao poeta francês. Para o crítico alemão, neste movimento dispersivo, “o ‘eu’
do poeta espalha-se para além de todos os limites, ‘estende-se’ sobre as coisas”, mas
“perde com isto a sua coesão própria (...), perde em firmeza e consistência”
766
.
Nas palavras de Woll, Sá-Carneiro teria como uma das preocupações
permanentes, em sua obra, a de “transpor os limites da experiência humana normal”,
atingindo “um estado psíquico que (...) [tornasse] possível uma experiência supra-
real”
767
. Hugo Friedrich fala, a respeito da poesia de Rimbaud, que ali se daria forma a
uma lírica “desumanizada”
768
, quando se criam “imagens que se podem contemplar,
mas que são de tal forma que o olho humano nunca poderia encontrá-las”
769
. Fernando
Pessoa, por sua vez, ressaltaria certa dureza da poesia de Sá-Carneiro, cuja obra seria
“toda ela atravessada por uma íntima desumanidade, ou melhor, inumanidade”, de modo
a não apresentar nem “calor humano nem ternura humana”
770
. Ambos os autores
estariam dando continuidade ao projeto de despersonalização da lírica moderna, em que,
segundo Friedrich, desde Baudelaire, atribuindo-se à poesia uma “tarefa extra-humana”,
764
FREUD apud WINOGRAD, 1998, p. 117.
765
WINOGRAD, 1998, p. 116.
766
WOLL, 1968, p. 105-106. (Grifos do autor).
767
WOLL, 1968, p. 100.
768
FRIEDRICH, 1991, p. 70.
769
FRIEDRICH, 1991, p. 80.
770
PESSOA, 2004, p. 65.
isto é, a tarefa de ultrapassar o próprio homem, o poeta substituiria “a capacidade de
sentir do coração” pela “capacidade de sentir da fantasia”
771
.
Tendo em vista o desejo de ampliação, nas obras dos dois poetas, vislumbra-se o
poder de uma espécie muito particular de fantasia, desenvolvida no seio do que seria
uma “poiesis modernista”, a qual teria tomado dos sonhos princípios de “criação de
realidade”
772
, como diz Fernando Cabral Martins. Este tipo de elaboração se tornaria,
desde Baudelaire, “uma capacidade criativa superior”, consistente na “transformação e
desrealização do real”
773
. Neste sentido, quando Sá-Carneiro identifica um protótipo do
artista que atinge o seu objetivo à personagem de “O homem dos sonhos”, o qual teria
conseguido “tornar infinito o Universo – que todos chamam infinito, mas que é para
todos um campo estreito e bem murado”
774
, não estaria se distanciando muito de
Rimbaud. Nas palavras de Friedrich, seria a fantasia, transformada em “um ato de
violência”
775
, no poeta francês, o que promoveria a emergência de uma nova ordem, a
qual se tornaria algo como “a epifania sensível do mistério invisível”
776
.
Sob outro aspecto, no que diz respeito às semelhanças entres os dois poetas,
seria interessante lembrar a ênfase que ambos dariam ao trabalho sobre o campo dos
sentidos, sobre a percepção sensorial, virtualmente capaz de levar a uma alteração da
consciência das coisas, da razão e do discernimento. Na obra do escritor português, mais
do que o uso constante da sinestesia, cujos exemplos se espalham por toda parte,
destacam-se os momentos em que se imagina o universo dos sentidos como aquele
através do qual se abriria a oportunidade para que o poeta ampliasse a sua consciência,
assim como todo o universo ao seu redor. No já comentado episódio da festa, na casa da
771
BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, 1991, p. 37.
772
MARTINS, 1994, p. 143. (Grifo do autor).
773
FRIEDRICH, 1991, p. 53.
774
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 480. (Grifo do autor).
775
FRIEDRICH, 1991, p. 81.
776
FRIEDRICH, 1991, p. 83.
jovem norte-americana, de A confissão de Lúcio, menciona-se o momento em que se
vive uma “vibração de abismos”
777
. Eis a ocasião para que os sentidos, aturdidos,
sofram uma ampliação: “Sim, essa luz mágica ressoava em nós, ampliando-nos os
sentidos, alastrando-nos em vibratilidade, dimanando-nos, aturdindo-nos...”
778
.
Em “A estranha morte do professor Antena”, não é outro o projeto do cientista
senão, conforme uma “verdadeira ambição de Deus”, o de “adaptar os seus sentidos a
uma outra vida”, o de conseguir, “duma existência, tornar os seus órgãos sensíveis a
outra”
779
. Em “Asas”, Zagoriansky afirma que seus poemas seriam “para se
interpretarem com todos os sentidos”
780
, como, de modo muito parecido, fazia o sujeito
de “Alchimie du verbe”, quando mencionava a sua busca pela criação de “un verbe
poétique accessible, un jour ou l’autre, à tous les sens”
781
.
Em “A grande sombra”, Sá-Carneiro se aproxima ainda mais daquela
formulação que talvez seja a que alcança o maior destaque, nas cartas ditas do vidente,
quando se fala na possibilidade “d’arriver à l’inconnu par le dérèglement de tous les
sens
782
. O narrador, cuja insatisfação com o real só é diluída, parcialmente, através da
imaginação, por força da fantasia, focaliza, em dois momentos de seu diário, em um
trabalho com os sentidos, a possibilidade de se chegar ao desconhecido.
Em um primeiro momento, a figura afirma se esforçar para que seus sentidos
“vibrem diversamente: desengonçadamente, noutras direções de crispado”
783
. Em
seguida, um tanto contraditoriamente, a mesma personagem reconhece que tudo o que
de fantástico sente e imagina não é senão fruto de sua singular constituição: “Que, de
resto, não nos criemos ilusões, eu sinto tudo isto sincera e naturalmente. Não eduquei os
777
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 363.
778
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 362.
779
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 527.
780
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 491.
781
RIMBAUD, 2002, p. 192. (um verbo poético acessível, mais cedo ou mais tarde, a todos os sentidos).
782
RIMBAUD, 2002, p. 84. (Grifos do autor). (de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os
sentidos).
783
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 428. (Grifo do autor).
meus sentidos a fremir em destrambelho... Eles é que, por si, se desarticularam – de
tanto oscilar em oco, de tanto girar em falso...”
784
.
Seja na assunção do desregramento, como método, o que se vê em Rimbaud,
seja na exploração de certa desarticulação, natural ou voluntária, o que se parece
procurar, nas obras dos dois autores, são novas perspectivas, as quais seriam pensadas
tanto em relação à experiência pessoal como em relação à experiência poética. O
escritor português, que imaginava pertencer, com Fernando Pessoa, a uma “geração
superior”
785
, ansiava encontrar uma arte cuja beleza fosse, quando conquistada, em
momentos de elevação, “uma ampliação, um lançamento no infinito, no azul, na
irrealidade”
786
. Para Rimbaud, de modo não muito distante, à poesia nova
corresponderia a capacidade de “inspecter l’invisible et entendre l’inouï”
787
. Se o sujeito
dos poemas do primeiro tem como meta “viajar outros sentidos, outras vidas”
788
, para
saber sondar o além, o impalpável, o invisível (“Sei a Distância, compreendo o Ar”
789
),
o vidente, de Rimbaud, entrega-se ao processo de desregramento para se transformar,
nada mais nada menos do que em “le suprême Savant”
790
.
5. Para além das semelhanças entre os dois autores, importa notar, agora,
algumas diferenças relevantes entre eles, no que diz respeito, sobretudo, a dois aspectos
centrais. Em primeiro lugar, deve-se reparar em algumas singularidades quanto ao modo
como é configurada a natureza da ascensão, que nas duas obras se almeja alcançar. Em
segundo, é preciso destacar as particularidades quanto à maneira como se avalia, nestas
obras, a dispersão, a dissipação do sujeito, muitas vezes, como se viu, ao longo do
capítulo, relacionadas a uma forma de transfiguração.
784
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 430.
785
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 725.
786
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 750.
787
RIMBAUD, 2002, p. 93. (inspecionar o invisível e perceber o inaudito).
788
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 55.
789
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 56.
790
RIMBAUD, 2002, p. 89. (o supremo Sábio).
Um ponto inicial a se ressaltar, no que diz respeito ao primeiro dos aspectos
mencionados, seria o fato de que a própria ideia de ascensão, como estado do que está
em ascendência, movendo-se para cima, tem mais presença no contexto da obra de Sá-
Carneiro do que na de Rimbaud. É na prosa e na poesia daquele autor que se vê, mais
explícita e reiteradamente, o estabelecimento de uma íntima relação entre a arte, a
ascensão e o contato com o desconhecido, a definir o objetivo do poeta, a condição de
sua existência como tal.
No quadro geral da obra do escritor português, faz-se da elevação uma meta
muito clara. Em torno dela, a ser conquistada por intermédio da arte, não só como
produção de objetos artísticos, mas como forma de vida, giram as ânsias e as angústias
de muitas das personagens e dos sujeitos dos poemas do autor, os quais se mostram
obcecados na busca por momentos de iluminação (vitória, triunfo, sagração, apoteose,
para usar termos próprios), que permitiriam o acesso a outros planos da existência. A
elevação, diferentemente do que faria Rimbaud, torna-se, então, como um assunto de
muitos dos textos, como um problema que se coloca, mais ou menos objetivamente,
para o artista, o qual se representa em constante tensão, entre o mundo comum e o seu
além.
A isso acresceria o fato de que a possibilidade da ascensão, com seus desafios,
seus dramas, seria, na obra de Sá-Carneiro, vivenciada de um modo que talvez se possa
considerar mais lírico, em sentido tradicional, do que no poeta francês. O foco centrado
no universo do sujeito, com uma psique relativamente definida, em que pese às
potencialidades da dissipação, não deixaria margem para que se abordasse algo além
das ânsias vividas no seio de um mundo interior, em que o artista se isola, tornando-se,
como se diz em A confissão de Lúcio, um “imigrado no seu mundo interior”
791
.
791
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 374.
Relacionada a uma concentração na experiência do sujeito, uma figura que faria
de seu tema principal, como diria Hegel, “o livre movimento dos seus próprios
sentimentos e meditações”
792
, em um discurso que, não raro, adquire tons confessionais,
a elevação, no autor português, deixaria de ser acompanhada de outra meta que não
fosse ela própria, como um fim em si mesmo, o que, particularmente, acabaria por levá-
lo a se distanciar do projeto do outro escritor, muitas vezes, mais amplo, mais aberto
para a vida e para a revolução de suas formas coletivas.
Na primeira das cartas ditas do vidente, Rimbaud criticava o seu professor,
Georges Izambard, por fazer apenas o que ele imaginava ser uma poesia subjetiva,
quando seria necessário, para a renovação das formas antigas, segundo o poeta, uma
poesia objetiva: “Un jour, j’espère, – bien d’autres espèrent la même chose, – je verrai
dans votre principe la poésie objective, je la verrai plus sincèrement que vous ne le
feriez!”
793
. Na segunda carta, que poderia esclarecer o que o autor teria desejado dizer,
aponta-se o erro dos poetas tradicionais quanto a uma concepção de poesia em que se
destacaria, em particular, uma falsa ideia a respeito do ‘eu’: “les vieux imbéciles
n’avaient pas trouvé du moi que la signification fausse”
794
.
Vale lembrar, neste sentido, que uma das coisas que chama a atenção, em
Illuminations, é o fato de que muitos dos textos não permitem ao leitor a identificação
de uma unidade subjetiva, como fonte do enunciado. Diferentemente do que acontece
nas composições de Sá-Carneiro, não haveria, neste conjunto de poemas, algum ponto
de referência que se pudesse manifestar como o centro de todo o discurso, sua origem e
seu organizador. Mesmo que se possa imaginar a existência de uma figura que
elaboraria as imagens, são estas o que assume o primeiro plano, com a estranha
792
HEGEL, 1964, p. 303.
793
RIMBAUD, 2002, p. 83. A tradução é de Alexandre Ribondi: “Um dia, espero – outros esperam a
mesma coisa – verei em seu princípio a poesia objetiva, eu a verei com mais sinceridade que o senhor
mesmo!” (R
IMBAUD, 1983, p. 34).
794
RIMBAUD, 2002, p. 88. (os velhos imbecis não encontraram do eu senão a significação falsa).
harmonia que procuram estabelecer, com suas formas, frequentemente, inusitadas. Aqui,
seria com a ordenação do discurso segundo uma lógica fora do comum, e não com a
problematização da ascensão, como faria, muitas vezes, o autor português, que se abriria
espaço para o contato com um novo mundo, como ele se mostra em “Scènes”, de que
transcrevo um fragmento:
Des oiseaux des mystères s’abattent sur un ponton de maçonnerie mû par
l’archipel couvert des embarcations des spectateurs.
Des scènes lyriques accompagnées de flûte et de tambour s’inclinent dans des
réduits ménagés sous les plafonds, autour des salons de clubs modernes ou des
salles de l’Orient ancien.
795
Em Une saison en enfer, embora haja um sujeito como centro do discurso, uma
vez que tudo gira em torno do drama pessoal daquele que se considera um proscrito,
nota-se a tentativa de se ultrapassar certos limites, a fim de se configurar o que seria o
produto de um mundo específico, cujos contornos a poesia evidencia, mostrando-se
como um processo de conhecimento de caráter especial. Em um movimento no sentido
oposto da concentração do drama em uma unidade subjetiva, o sujeito se estende no
tempo e no espaço, como se vê em uma passagem de “Mauvais sang”:
Je me rappelle l’histoire de la France fille aînée de l’Église. J’aurais fait, manant,
le voyage de terre sainte; j’ai dans la tête des routes dans les plaines souabes,
de vues de Byzance, des remparts de Solyme; le culte de Marie,
l’attendrissement sur le crucifié s’éveillent en moi parmi mille féeries
profanes. – Je suis assis, lépreux, sur les pots cassés et les orties, au pied d’un
mur rongé par le soleil. – Plus tard, reître, j’aurais bivaqué sous les nuits
d’Allemagne.
Ah! encore: je danse le sabbat dans une rouge clairière, avec des vieilles et des
enfants.
796
795
RIMBAUD, 2002, p. 238. A tradução é de Lêdo Ivo: “Pássaros dos mistérios precipitam-se sobre um
pontão de alvenaria movido pelo arquipélago coberto das embarcações dos espectadores. Cenas líricas,
acompanhadas de flauta e tambor, inclinam-se nos retiros dispostos sob os tetos, em torno dos salões dos
clubes modernos ou das salas do Oriente antigo (R
IMBAUD, 1982, p. 130).
796
RIMBAUD, 2002, p. 179. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Evoco a história da França, filha mais velha da
Igreja. Devo ter feito, como camponês, a viagem à Terra Santa; tenho na memória as estradas das
planícies suábias, panoramas de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o culto de Maria, a compaixão do
Crucificado despertam em mim entre mil magias profanas. – Sentei-me, leproso, sobre os vasos
Em Rimbaud, o cultivo da alma, que favoreceria uma compreensão mais vasta
do mundo, de seu passado, de seu presente e de seu futuro, não se processaria apenas
através da introspecção, posicionamento que, em Sá-Carneiro, parece tomar conta de
toda experiência, segundo a concepção de que mais vale criar, fazendo as coisas, as
vidas alheias, existirem no mundo interior do sujeito, do que viver. Se a ascensão, neste
último, é sempre um movimento do artista consigo mesmo, o qual teria como objetivo
maior algo como aumentar extraordinariamente a sua estatura, no outro se revela uma
procura que parece ter em conta um escopo mais amplo.
Apresenta-se, na poética do escritor francês, um entendimento segundo o qual o
sujeito estaria inserido em um processo dialético, a reger a história dos povos, das
nações e dos indivíduos. Neste caso, a diferença que se observa é aquela para a qual
Dieter Woll havia chamado a atenção, quando comparava a perspectiva do “crítico
cultural”
797
Rimbaud e a da lírica “a-histórica”
798
de Sá-Carneiro. Para o autor, enquanto
o primeiro teria se posicionado “no grande contexto do conflito poético com o
positivismo”
799
, no outro, todo o conflito expresso seria revestido de um “caráter
puramente individual”
800
.
Na segunda das cartas ditas do vidente, como se viu no capítulo anterior, o
sujeito do enunciado se coloca como responsável pela coletividade, estabelecendo como
sua função cuidar “de l’humanité, des animaux même”
801
. Não se pode deixar de notar
como seria estranha esta intenção à ideia de elevação do escritor português, a qual, por
outro lado, seria também refratária a uma formulação como aquela em que se pede à
quebrados e as urtigas, junto a um muro roído pelo sol. – Mais tarde, cavalariano, devo ter dormido ao
relento, nas noites da Alemanha. Ah! mais ainda: danço o sabá numa rubra clareira, entre velhas e
crianças” (R
IMBAUD, 1982, p. 48).
797
WOLL, 1968, p. 67.
798
WOLL, 1968, p. 68.
799
WOLL, 1968, p. 68.
800
WOLL, 1969, p. 66.
801
RIMBAUD, 2002, p. 91. (Grifo do autor). (encarregado da humanidade, dos animais mesmo).
poesia, tornada uma forma especial de conhecimento, que aponte os caminhos do
futuro, assumindo a vanguarda da ação, da revolução, da transformação do mundo: “La
Poésie ne rythmera plus l’action; elle sera en avant
802
.
Em Rimbaud, enfim, se, por um lado, a ascensão não se estabelece apenas como
um projeto pessoal, pois implicaria colocar em movimento o mundo em derredor,
destinado a adquirir novas formas, tocadas por uma nova e mais sábia harmonia, por
outro, ela não se tornaria um objetivo definido, precisado. Para o poeta francês, o acesso
ao desconhecido, os estados de consciência alterados, com que a identidade sofreria
como que um deslocamento, estariam relacionados à integração do sujeito a uma nova
ordem, em que o tempo, como um fluxo permanente, estaria sempre se abrindo à
emergência de novos movimentos, novos afetos.
Quanto ao valor da dispersão, o segundo ponto que afirmei querer abordar, antes
de terminar o capítulo, tem-se, igualmente, algumas diferenças importantes entre os dois
autores. Não por acaso, algumas delas dizem respeito, justamente, ao modo como os
poetas tratam a questão do tempo, a qual interfere na maneira como os sujeitos se
colocam no mundo e na forma como se portam em relação a si mesmos.
Em Sá-Carneiro, há alguns momentos em que se observa uma aceitação da
inconstância característica da vida, da passagem do tempo e da modificação do sujeito,
não determinado, como algo fixo e imutável, mas como forma que se encontra em devir.
Em “Felicidade perdida”, pequeno texto de Princípio, manifesta-se um pouco esta
postura, quando o sujeito do enunciado, em um primeiro momento, apaixonado e
prestes a morrer de amor, em um segundo, consegue rir da sua paixão, já
completamente esquecida, não fossem as anotações de um diário:
802
RIMBAUD, 2002, p. 91. (Grifos do autor). (A Poesia não mais ritmará a ação; ela virá antes).
Reli agora mesmo os capítulos LV e LVIII. Por eles soube que no começo do
ano amava... uma desconhecida, e que estava louco de dor por não a poder
encontrar... É curioso! Se não fosse tê-lo assentado nessas páginas nem sequer
me recordaria do “trágico sucesso”...
Ah! Ah! Ah!
803
Algo análogo, embora com muito mais consistência e direção, acontece, como se
viu mais acima, em “Partida”, em que a ascensão, através da qual o sujeito deixa o
mundo comum, equivale à transfiguração de quem deixa, também, de ter uma
identidade fixa, multiplicando-se, transformando-se em muitas outras coisas: “Sou
chuva de ouro e sou espasmo de luz; / Sou taça de cristal lançada ao mar, / Diadema e
timbre, elmo real e cruz...”
804
. No início do poema “16”, de Indícios de ouro, a
inconstância, referida a um sujeito específico, é vista como algo positivo: “Esta
inconstância de mim próprio em vibração / É que me há-de transpor às zonas
intermédias, / E seguirei entre cristais de inquietação, / A retinir, a ondular... Soltas as
rédeas”
805
A aceitação da transformação, que daria base a uma visão de mundo menos
melancólica, entretanto, encontra-se, em Sá-Carneiro, em tensão permanente com forças
que atuam em sentido contrário. Observa-se, na obra do autor, em muitos momentos,
por um lado, uma necessidade de fixar o instante, de eternizar a experiência, retirando-a
do fluxo do tempo, e, por outro, o anseio de encontrar alguma identidade profunda, que
desse ao sujeito alguma base onde se ancorar, em meio às inconstâncias de seu percurso
e de seus afetos.
Em “Escavação”, poema que se segue a “Partida”, destaca-se o anseio do sujeito
por encontrar uma identidade, onde, dialeticamente, encontra-se apenas o vazio: “Numa
ânsia de ter alguma coisa, / Divago por mim mesmo a procurar, / Desço-me todo, em
803
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 256-257.
804
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 56.
805
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 83.
vão, sem nada achar, / E a minha alma perdida não repousa”
806
. Em “Como eu não
possuo”, do mesmo livro, relacionam-se o desejo do sujeito de se fixar e a dolorosa
ausência da identidade: “Castrado de alma e sem saber fixar-me, / Tarde a tarde na
minha dor me afundo... / – Serei um emigrado dentro do mundo / Que nem na minha
dor posso encontrar-me?...”
807
.
Na obra do escritor português, manifesta-se uma tensão entre a dispersão e a
concentração, que marca um movimento ambíguo, vivenciado entre as possibilidades de
transfiguração e certo anseio pela consolidação de uma individualidade diferenciada e
igual a si mesma. Em alguns momentos, o poeta pode lutar consigo mesmo para conter
a própria dissipação, como acontece em “Álcool”: “Respiro-me no ar que ao longe vem,
/ Da luz que me ilumina participo; / Quero reunir-me, e todo me dissipo – / Luto,
estrebucho... Em vão! Silvo pra além...”
808
.
A mesma vivência, a da dispersão, reveste-se, então, de sinais opostos, conforme
a composição. O movimento essencial da criação artística, o seu clímax, que se
identificaria à dispersão, com o sujeito se desenraizando, enfrenta uma contrapartida
dolorosa, que é motivo de desolação. Em carta a Ricardo Teixeira Duarte, o escritor
afirma: “Para vivermos meu velho, é preciso estarmos ‘enraizados’, presos a
sentimentos, hábitos e afetos. Eu não estou preso a coisa alguma. É este também um dos
motivos da minha desolação. Bóio na vida, nunca me consegui fixar...”
809
.
Neste ponto, a diferença essencial entre “Eu-próprio o outro” e “A grande
sombra”, comentada mais acima, seria bastante ilustrativa. Nos dois contos, destaca-se
um sofrimento, que acompanha o processo de fusão entre dois sujeitos, o qual
implicaria a dissipação de um deles, em uma forma de transfiguração. Se, na primeira
806
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 57.
807
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 67.
808
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 59.
809
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 1024. (Grifo do autor).
das narrativas, entretanto, a solução final do narrador, a de matar o outro, é tomada em
nome da preservação de sua personalidade, daquilo que definiria a sua individualidade,
diferenciando-o de todos os demais, na segunda, a dor daria lugar uma experiência
desejada, cuja realização seria motivo de orgulho, uma vez que corresponderia ao
“grande salto”
810
, ao “Triunfo”
811
, ao acesso à “Maravilha”
812
.
Na obra de Sá-Carneiro, não se deixa de observar certo elogio do movimento,
como da agitação parisiense, em “Ressurreição”, quando o narrador fala do que o
protagonista necessitaria para curar as suas dores (“Movimento, agitação, mudança – eis
do que o seu espírito precisava. A todas as suas dores tinham sido estes sempre os
melhores bálsamos”
813
), ou das viagens, em “A grande sombra”: “– O movimento... as
viagens... (...) Depois de vagabundear incerto algum tempo por outros países, esqueço-
me de quem sou, quase (...) Viajo, viajo, erradamente... Assim me modifico, em fantasia
pelo menos”
814
.
A este elogio se opõe, entretanto, em muitos momentos, um desejo de
estabilidade, equivalente à vontade de fixar, seja o tempo, seja a identidade, seja a
própria elevação. Entre outros textos, é este desejo o que se vê em “Vontade de dormir”,
no qual se nota a oposição entre a dispersão, ainda que acompanhada de certa grandeza,
a remeter à elevação (“Fios de ouro puxam por mim / A soerguer-me na poeira – / Cada
um para o seu fim, / Cada um para o seu norte...”
815
), e a estagnação do movimento, em
que o sujeito concentra o seu desejo: “Quero dormir... ancorar...”
816
.
Em termos vagamente filosóficos, estaria presente, na obra do autor português, o
que Maria Aliete Galhoz identifica como uma “angústia durativa”, associada à
810
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 461.
811
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 460.
812
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 460.
813
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 574.
814
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 427.
815
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 60.
816
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 60.
“precariedade imediata da matéria”, que “pesa como uma condenação fatal”. Diante
desta angústia, seria, em muitos momentos, a alma o que se apresentaria como uma
“transcendência perdurativa”, afirmando-se como resposta à “necessidade de ultrapassar
a duração finita”
817
, ao desejo de estancar todo o escoamento.
Em “O fixador de instantes”, narrativa de Céu em fogo, o protagonista persegue
o segredo para deter a passagem do tempo, para fazer durar a beleza de um instante
único. Para aquele que diz ter descoberto uma nova arte, a “glória máxima”
818
seria “dar
forma, persistência, a todos os momentos belos”
819
, de modo a fazê-los durar
eternamente. No conto, a personagem diz ter encontrado o caminho para embalsamar o
instante, petrificá-lo, de modo que ele não escape, como seria de sua natureza, a de algo
que “minuto a minuto se esgueira em rodopio alucinante”
820
.
Ao se apaixonar por uma dançarina, que corresponde ao seu sentimento, o artista
se preocupa com o que pode acontecer depois que houver consumado a relação sexual,
momento culminante de êxtase, que se não deseja perder. No clímax da história, ele
assassina a mulher, com o intuito de fixar o instante da posse, segundo o raciocínio de
que seria “infame aquele que, tendo vivido tão admirável sonho, o deixasse esvair”
821
.
Matando a mulher, a personagem alcança o que imagina ser a maior das vitórias:
Vitória! Vitória!
Nunca mais esquecerei os teus beijos, pois logo os perdi; nunca mais olvidarei
os teus seios, pois mal os conheci. Fundi a saudade universal na saudade do teu
corpo – saudade que só eu edifiquei, pois só eu o detive.
Tu perdoas-me! Perdoas-me! Foi para te rezar que te dourei de morte.
Ó estátua da hora!, ó minha cor, ó meu som, ó meu aroma – sempre te hei-de
sentir, e fremir, e divagar...
817
GALHOZ, 1963, p. 118-119.
818
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 531.
819
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 531.
820
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 530.
821
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 537.
Vês tu: Nem teve fim a nossa vitória. Pois eu não fixei apenas o instante
luminoso. Fiz mais: desci da vida – hoje sou eu próprio essa auréola. Sou o
Instante.
822
A interrupção da continuidade da experiência impediria que ela se
transformasse, como seria natural, assim como seria natural que o sujeito se
transformasse, com a sucessão das experiências. Esse desejo de fixar o instante, o
tempo, vê-se, de forma emblemática, não só em “O fixador de instantes”, mas também
em “Loucura...”, quando Raul Vilar fica obcecado com a futura degradação da beleza de
sua amada, e em poemas como “A queda”.
Na última composição de Dispersão, o desejo de fixar, remetendo a todo o
conjunto composto pelos doze textos do livro, relaciona a obra de arte ao sujeito, como
se a obra pudesse ser a manifestação de uma identidade, mesmo que convulsa: “E eu
que sou o rei de toda esta incoerência, / Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la”
823
.
Neste sentido, a própria homogeneidade de Dispersão, assim como a continuidade de
seus temas e tensões em Indícios de ouro e em outros textos do autor apontariam para
um sentido de coerência, do qual não escapa a obra de Sá-Carneiro, mesmo quando
tocada pela irrisão de alguns dos últimos poemas.
Em Rimbaud, no que diz respeito à experiência do tempo e de sua ação, no
campo das possíveis tensões entre a dispersão e a concentração, as coisas parecem ser
um tanto diferentes. Tem-se, aqui, uma visão de mundo em que ressalta um gosto mais
amplo pela transformação, pelo movimento. O próprio processamento do conhecimento,
como algo dinâmico, nesse caso, dependeria da capacidade do sujeito de mudar sempre
de estado, não permanecendo imóvel, como os assentados de “Les assis”.
A passagem do tempo, o ciclo das estações, assumem, na obra do escritor
francês, um lugar de destaque. De acordo com a perspectiva que se coloca em
822
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 537. (Grifos do autor).
823
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 72.
“L’éternité”, comentado no capítulo anterior, em que a eternidade é comparada ao
movimento do mar, acompanhado pelo sol, elementos que remetem à energia da
natureza, onde a metamorfose, a transformação, a mudança de estado são contínuas e
incessantes, também a transfiguração se estabelece como um momento, um instante
passageiro. Este, o poeta não anseia tornar eterno, não o concebendo como definitivo,
mas como forma de salto para outro nível de consciência, que transforma o sujeito, em
um processo contínuo, infindável, alheio a toda e qualquer fixação.
São muitos os textos do autor em que se nota o desapego a conclusões
definitivas, o desprezo pela situação estável, que se aparenta ao conformismo, ao tédio.
O poeta como que “tira proveito do desequilíbrio”, o qual a sua própria poesia gera, nas
palavras de Matthieu Letourneux, “para colocar em movimento a dinâmica da
criação”
824
. Em “Après le déluge”, composição que abre Illuminations, a descrição se
concentra no momento seguinte ao dilúvio, ou à sua ideia (“Aussitôt que l’idée de
Déluge se fut rassise”
825
), que é a da convulsão e a da limpeza da terra. Ao final do
texto, entretanto, é o desejo de novos dilúvios o que se manifesta, precisamente, contra a
estagnação, contra a aridez, na imprecação do poeta:
Sourds, étang, – Écume, roule sur le pont, et par-dessus les bois; – draps noirs et
orgues, – éclairs et tonnerre, – montez et roulez; – Eaux et tristesses, montez et
revelez les Déluges.
Car depuis qu’ils sont dissipés, – oh les pierres précieuses s’enfouissant, et les
fleurs ouvertes! – c’est un ennui!
826
824
Vale a pena estender a citação, para abarcar o que o autor chama de “celebração do desequilíbrio”: “la
poésie de Rimbaud profite du déséquilibre qu’elle génère pour mettre en route la dynamique de création,
et l’achèvement du poème, loin de consacrer une stabilité enfin conquise, célèbre au contraire le
déséquilibre à sa cime” (L
ETOURNEUX, 2004, p. 99).
825
RIMBAUD, 2002, p. 207. (Assim que a ideia do Dilúvio se aquietou).
826
RIMBAUD, 2002, p. 208. A tradução é de Ivo Barroso: “Surde, charco, – Espuma, rola sobre a ponte e
por cima dos bosques; – negros pálios e órgãos, – raios e trovões, – surgir e rolai; – Águas e tristezas,
erguei-vos e restaurai os Dilúvios. Pois assim que se dissiparam, – oh! as pedras preciosas se enterrando,
e as flores abertas! – que tédio!” (R
IMBAUD, 2007, p. 203; 205).
Em “Royauté”, texto em que se dá a transformação da condição dos sujeitos,
manifesta-se a noção de que a ascensão, agora figurada como a elevação ao trono,
destinado à realeza, não precisa ser eterna, não precisa ser fixada, mas tão somente
experimentada, com toda a intensidade do momento, com toda a força do desejo. A
transfiguração do sujeito, que é uma espécie de dissipação, quando desaparece uma
forma para dor origem à outra, não se reveste de um sinal negativo, uma vez que se
apresenta como uma sorte de conquista, no seio de uma aventura de conhecimento, a
qual não poderia, por sua própria natureza, encontrar um fim:
Un beau matin, chez un peuple fort doux, un homme et une femme superbes
criaient sur la place publique: “Mes amis, je veux qu’elle soit reine!” “Je veux
être reine!” Elle riait et tremblait. Il parlait aux amis de révélation, d’épreuve
terminée. Ils se pâmaient l’un contre l’autre.
En effet ils furent rois toute une matinée où les tentures carminées se relevèrent
sur les maisons, et toute l’après-midi, où ils s’avancèrent du côte des jardins de
palmes.
827
Diferentemente do que acontece com Sá-Carneiro, o sujeito, em Rimbaud, não
estaria atrás de alguma coerência, pois essa mesma seria negada como produto de uma
mentalidade específica, aquela que se gera no seio da civilização ocidental. Na poesia
do autor francês, as mudanças de perspectiva seriam consequência das experiências que
o sujeito vivencia, na errância de quem recusa a estagnação, o conformismo ou a
simples necessidade de conservação.
Ao se acompanhar a trajetória dessa obra, chama a atenção como o poeta se
transforma, em meio a avanços e recuos. Em um momento, trata-se de um
revolucionário que se alinha às classes oprimidas, insubmisso ao poder da Igreja, da
827
RIMBAUD, 2002, p. 216-217. A tradução é de Ivo Barroso: “Numa bela manhã, num país de gente
muito amável, um homem e uma mulher magníficos gritavam na praça pública. ‘Meus amigos, quero que
ela seja rainha!’ ‘Quero ser rainha!’ Ela ria e tremia. Ele falava aos amigos sobre revelação, uma prova
concluída. Desfaleciam agarrados um ao outro. De fato, foram reis durante toda a manhã, quando as
tapeçarias carmesins voltaram a recobrir as casas, e toda a tarde, quando se encaminharam para os jardins
plantados de palmeiras” (R
IMBAUD, 2007, p. 227).
burguesia, da nobreza. Em outro, tem-se o arrependido que, em meio a tensões
indissolúveis, vislumbra o consolo da crença em Deus como caminho da salvação. Em
outro, ainda, o sujeito é aquele que se abandona a uma espécie de razão mágica, uma
sabedoria caótica, que poderia dar origem a uma nova harmonia, antecipando a
constituição de um novo homem, o qual, entretanto, estaria sempre por se refazer. Tem-
se, então, uma poesia fundamentalmente dinâmica, que recusa a estabilidade e se
reinventa constantemente, interrogando-se e colocando-se em crise, construindo-se,
como afirma Letourneux, “ao mesmo tempo, sobre as experiências passadas, e contra
elas”
828
.
828
Vale a pena estender a citação de Letourneux: “la poésie, sans jamais se fixer, paraît se construire à la
fois sur les expériences passées et contre ces dernières” (L
ETOURNEUX, 2004, p. 64).
Capítulo III
A queda
*
1. Os sonhos de grandeza e genialidade, em Sá-Carneiro, o desejo de dar forma a
um novo mundo, a uma nova harmonia, e de experimentá-los, em Rimbaud, a vontade
de ultrapassar os limites da vida humana comum, em ambos os autores, enfrentam, a
todo o momento, forças contrárias, obstáculos de variada ordem, os quais geram uma
importante tensão. A partir do intervalo entre o que se ambiciona e o que se pode vir a
atingir, apresentam-se duas formas mais gerais da queda, as quais definem, em sua
relação com o impulso da elevação, parte da experiência essencial para ambos os
poetas.
De acordo com uma lógica mais comum, a queda seria o movimento que
sucederia à ascensão. O termo se refere, antes de tudo, ao ato ou efeito de cair, o que,
naturalmente, só pode acontecer quando se alcança alguma altura. Como no mito de
Ícaro, o que se teria, nesse caso, seria a destruição do sujeito, quando, depois de
levantado o voo, sobrevém o tombo, seja sobre o mar, seja sobre a terra, onde se
encontra a morte. Com um sentido próximo do que se observa no universo da tragédia
antiga, insinua-se, aqui, o sentido da desmedida, associado à ambição de se ultrapassar
os limites do homem.
No caso desta primeira forma de queda, equivalente à destruição do sujeito,
destaca-se, na obra do escritor português, uma articulação um tanto quanto paradoxal.
Em muitos momentos, a própria ascensão, sempre ansiada, identifica-se à queda,
quando a dissipação da unidade subjetiva, resultante do movimento de elevação, de
multiplicação do sujeito, reveste-se de um sinal negativo. São estes os momentos em
que se repudia a dissolução, o que acontece, sobretudo, quando, implícito ou manifesto,
apresenta-se o desejo do sujeito de se fixar, de lançar âncoras sobre algum porto seguro,
a fim de conter o movimento dispersivo.
No poeta francês, tal articulação não seria algo estranho. Lembre-se, por
exemplo, entre os primeiros poemas, “Le bateau ivre”, quando, após o contato com o
desconhecido, o barco passa a desejar a sua destruição, recusando a permanência em um
estado anímico extraordinário, cujo caráter aterrador se mostra insuportável. De maneira
análoga, em um livro como Une saison en enfer, às implicações da transfiguração e da
dissipação do sujeito, vivenciadas, em um tempo pretérito, em nome da elevação ao
desconhecido, opõe-se, no presente, o sentimento de culpa e o desejo de salvação, como
se oriundo da sensação de que algo se perdeu e precisa ser recuperado.
De forma distinta, por outro lado, observa-se que o sentido da queda, em ambas
as obras, manifesta-se, inclusive, com maior persistência, quando se abandona aquilo
que se tornara o objeto de desejo do sujeito, aquilo que se ambiciona, sobretudo,
porque, em si mesmos, os poetas não encontram forças suficientes para o enfrentamento
dos desafios a que se propõem. Tal abandono, tendo em vista a importância do desejo,
assim como a incapacidade de mudar o objeto, revela-se a marca de uma agonia. Tem-
se, então, uma espécie particular de dinâmica em torno da idealidade, a qual Hugo
Friedrich, ao discorrer sobre a obra de Baudelaire, afirmava ser algo “hiperbolicamente
ambicionado, mas jamais atingido”, que, “despertando uma tensão excessiva para cima,
repele o homem que está em tensão para baixo”
829
.
No poema “A queda”, de Sá-Carneiro, ao final da segunda estrofe, aparece um
emblemático verso, que muito diz sobre a obra do autor, por evidenciar a distância entre
uma desmedida ambição e o que dela se poderia conquistar. Trata-se da linha em que o
poeta diz morrer “à míngua, de excesso”
830
, a qual Mário Cesariny recupera, ao traduzir,
829
FRIEDRICH, 1991, p. 48.
830
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 72.
livremente, “l’ennui n’est plus mon amour”
831
por “viver à míngua, de excesso, já não é
comigo”
832
, a partir de uma passagem de “Mauvais sang”, em que o danado recusa a
vertigem, “la folie”
833
, do passado. Embora identificando a expressão de Sá-Carneiro ao
tédio, uma espécie de morte em vida, o que Cesariny faz é aproximar a experiência do
danado, antes do arrependimento, àquela tensão que se coloca entre o desejo de se
exceder, de passar da medida, dos padrões da normalidade, e a escassez do que se
alcança, sempre pouco diante do que se almeja.
Em um campo de tensões como este, verifica-se que quanto maior a ambição de
se ultrapassar o real, de ser mais do que o comum dos homens, maior viria a ser a
sensação de penúria, de fraqueza, que mitigaria toda a potência do sujeito. Com efeito,
nem sempre seria possível lançar mão do que Rimbaud, na segunda das cartas ditas do
vidente, chamaria de “toute la force surhumaine”
834
, aquela que, no seio de uma
existência que coloca a elevação como meta, poderia levar adiante o desejo de se
ultrapassar a série de condicionamentos que estabelece o domínio a que os homens
comuns se submetem.
Em “Mauvais sang”, quando se fala das provações por que teria passado o poeta,
após haver assumido um destino errante, o de fuga do Ocidente e de seus valores,
caracteriza-se o martírio, que se acompanharia de uma abnegação e de uma coragem
extraordinárias. Indica-se, então, a necessidade de uma difícil escolha, entre a força e a
fraqueza: “Sur les routes, par des nuits d’hiver, sans gîte, sans habits, sans pain, une
voix étreignait mon coeur gelé: ‘Faiblesse ou force: te voilà, c’est la force”
835
. Se, nesse
momento, em específico, a força parece ser recuperada, o que acontece, em muitos
831
RIMBAUD, 2002, p. 183. (o tédio não é mais meu amor).
832
RIMBAUD, 2007, p. 129.
833
RIMBAUD, 2002, p. 183. (a loucura).
834
RIMBAUD, 2002, p. 89. (toda a força sobre-humana).
835
RIMBAUD, 2002, p. 181. A tradução é de Lêdo Ivo: “Nas estradas, em noites de inverno, sem abrigo,
sem roupas, sem pão, uma voz me oprimia o coração gelado: ‘Fraqueza ou força: vê, é a força”
(R
IMBAUD, 1982, p. 51).
outros, tanto na obra de Rimbaud quanto na do autor português, é que ela se torna,
precisamente, o que falta, conformando a segunda forma da queda a que me referi, uma
espécie de queda anterior à ascensão, que se mostra inalcançável.
2. Entre as primeiras composições em verso, de Sá-Carneiro, há um poema,
traduzido de Heinrich Heine, de nome “Lorelei”, que talvez seja interessante lembrar,
neste momento, tendo em vista dar início à discussão sobre a questão da queda, na obra
do escritor português. No texto, em muitos sentidos, uma composição sem maior
importância, no conjunto da obra do autor, vê-se um indício de certa relação entre a
alucinação, o êxtase, a que o canto poderia levar, e a destruição daquele que estaria sob
o seu influxo. Tem-se, ainda que de modo incipiente, algo próximo das formas de
ascensão que descrevi, no capítulo anterior, ao falar de “Salomé” ou do bailado da
norte-americana, na festa de A confissão de Lúcio, em que o sujeito, submetido a uma
sorte de encantamento, é levado a ultrapassar os limites da realidade e do mundo
comuns.
No poema, de estrutura narrativa, encontram-se duas personagens, Lorelei,
donzela de uma beleza extraordinária, e um pescador, que navegava calmamente pelo
rio Reno, “levado p’la corrente”, cantando “cantos d’amor”. Após a referência ao
momento em que o homem vê a moça (“De súbito a sua vista / Demorou-se fascinada”)
e ouve a sua canção, uma “doce melodia”, que “comovia o coração”, precipita-se a
sequência do enredo, cujo desfecho é mortal: “O barqueiro alucinado / Não olhava p’ros
escolhos / Pois pregado tinha os olhos / Na donzela, extasiado!... // E num instante (oh!
horror) / O lindo barco abismou-se. / Com ele junto afogou-se / O infeliz pescador”
836
.
Ao final do texto, as duas últimas estrofes, de certa maneira, reflexivas,
estabelecem a relação entre aquele canto, excepcionalmente atraente, com sua imensa
836
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 179-180.
harmonia, e a morte. Se, em outros poemas, o objeto, de algum modo, numinoso, com o
qual entram em contato os sentidos da personagem, levaria à dispersão, aqui, é a
completa destruição do sujeito, sem qualquer transcendência, o que se vê. O acesso ao
objeto, de beleza extraordinária, implica a morte, como no contato entre o homem e a
mitológica sereia: “O canto de Lorelei / É doce e é comovido. / Se por alguém é ouvido
/ Esse alguém por certo atrai; // Outro assim como ele não há, / A todos fascina, encanta
/ A sua harmonia é tanta... / Mas somente a morte dá!...”
837
.
Do conjunto destes primeiros poemas, haveria apenas mais um a merecer um
comentário, dessa vez, entretanto, um texto mais significativo, em que se observa algo
dos anseios e do vocabulário que marcariam mais fundamente a obra de Sá-Carneiro.
“A um suicida” é uma das últimas composições desse momento, um poema no qual se
vê, através de uma série de comparações, entre o sujeito do enunciado e um amigo
suicida, o perfil derrotista do primeiro, retratado como aquele que desiste, antes da luta,
como se o ideal fosse alto demais para a sua potência de realização.
Na terceira estrofe da composição, o sujeito indica os anseios que partilhava com
o amigo, ressaltando a diferença que os separava: “A nossa amante era a Glória / Que
para ti – era a vitória, / E para mim – asas partidas. / Tinhas espr’anças, ambições... / As
minhas pobres ilusões, / Essas estavam já perdidas...”
838
. Na sétima, volta-se a falar
nesse objeto de desejo, a glória, com a ênfase, mais uma vez, nas comparações:
Enquanto tu vencerias
Na luta heróica da vida
E, sereno, esperarias
Aquela segunda vida
Dos bem-fadados da Glória
Dos eternos vencedores
Que revivem na memória –
Sem triunfos, sem amores,
837
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 180.
838
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 240.
Eu teria adormecido
Espojado no caminho,
Preguiçoso, entorpecido,
Cheio de raiva, daninho...
839
As ambições de ambos são, mais a frente, claramente, descritas como anseios de
artistas, que imaginam alcançar a fama através de “um livro impresso, um drama em
cena, o nome nos jornais...”. A referência à partida, que, em seguida, seria a ideia chave
do pórtico de Dispersão, também se mostra presente, no texto: “Ao pé de ti, voltava-me
a coragem: / Queria a Glória... Ia partir! / Ia lançar-me na voragem! / Ia vencer ou
sucumbir!...”
840
.
O que se reafirma, entretanto, ao final do poema, é a fraqueza do sujeito, muito
superior à força para enfrentar o risco: “Eu por mim, continuei / Espojado, adormecido.
/ A existir sem viver”
841
. Ao contrário do amigo, que ao menos teria tido a coragem para
deixar a vida, espontaneamente, em um ato de valor, que é, sempre, o suicídio, em Sá-
Carneiro, o sujeito do enunciado permaneceria sem energias para sair do lugar em que
se encontra, onde não seria possível qualquer diferenciação em relação à gente comum:
“... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte, / E há tantos como eu que não
alcançam nada...”
842
.
Entre as narrativas de Princípio, o narrador de “O incesto” seria quem melhor
estabelece a forma de uma permanente desilusão, relacionada à impossibilidade de
realização de todo o ideal, o qual se configura como algo sempre maior do que o que se
alcança. Não por acaso, a figura se assemelha àquele que fala em “A um suicida”, um
sujeito que se vê sob uma ótica pessimista e negativa, como um “miserável”
843
, que não
crê em coisa alguma, invejando os que acabam com a própria vida. Como escritor, o
839
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 241.
840
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 241.
841
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 241.
842
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 242.
843
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 328.
narrador problematiza a natureza de seu ideal, identificando-o com a busca da
“conquista vã duma quimera de ouro”
844
. Em sua lógica, a alma do artista, uma “criança
louca, sempre em busca de ilusões”
845
, nunca poderia ter o que ambiciona, uma vez que
“suas conquistas, por maiores e mais completas, desiludem-na sempre”, sendo,
tragicamente, “sempre menos famosas do que imaginara antes de as possuir”
846
.
Em Dispersão, as imagens da queda serão mais recorrentes, fazendo jus à ideia
de que se trata de obra mais significativa e bem acabada do que as anteriores, no seio do
conjunto da produção do autor. Dos poemas comentados nos capítulos precedentes,
destacam-se, no que diz respeito à tensão que constitui o sentido da queda, passagens
como a que encerra “Vontade de dormir”, em que se vê o desejo do poeta de abandonar
todo o seu anseio de grandeza, o seu ideal de artista, quando se reconhece impotente
para realizar o que almeja. A certeza da fraqueza dá origem a uma súplica, sem destino
certo: “Arranquem-me esta grandeza! / – Pra que me sonha a beleza, / Se a não posso
transmigrar?...”
847
.
Em “Como eu não possuo”, são expressivos os versos em que se manifesta a
distância entre o que o sujeito, em potência, poderia alcançar, e o que de fato
experimenta. Na segunda estrofe, a referência a uma “teoria”, que se distingue,
naturalmente, de toda a prática, como a fantasia se distingue da realidade, acrescida à
presença do verbo no futuro do pretérito, indica, justamente, esta distância: “Roça por
mim, em longe, a teoria / Dos espasmos golfados ruivamente; / São êxtases da cor que
eu fremiria, / Mas a minha alma pára e não os sente!”. Em outros dois versos bastante
expressivos, em seguida, fica evidente o lugar que o poeta atribui a si mesmo, como
aquele que permanece a meio caminho entre a experiência comum dos homens, a qual
844
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 328.
845
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 337.
846
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 331.
847
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 60.
rejeita, e a experiência extraordinária da ascensão, que ele próprio, voltando sobre si
mesmo, sente ser incapaz de levar a efeito. O que resta é a falta: “Falta-me egoísmo pra
ascender ao céu, / Falta-me unção pra me afundar no lodo”
848
.
Em “Além-tédio”, também comentado no capítulo anterior, é, novamente, a
“vontade de dormir”, para lembrar o título do outro poema, o que se manifesta. A
desistência, a percepção aguda da impotência, a expressão do cansaço e da descrença
são associadas ao próprio ideal do artista, que faria, virtualmente, da fantasia, faculdade
de uma alma inquieta e desejosa de vivências incomuns, o instrumento para superar as
limitações da realidade: “Como eu quisera, enfim de alma esquecida, / Dormir em paz
num leito de hospital... / Cansei dentro de mim, cansei a vida / De tanto a divagar em
luz irreal”
849
. Ao final do poema, tem-se, no tom melancólico que caracterizaria muito
da obra do autor, a referência explícita à queda, a qual deixaria ao sujeito o vazio de um
cotidiano sem a menor intensidade, em que o melhor que há é saber que o tempo passa,
indiferente:
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
850
O poema que dá título ao livro, “Dispersão”, é o maior do conjunto,
encontrando-se localizado em seu centro. A par de muitos dos outros, além de
apresentar o problema da ausência de força, tendo em vista a realização de uma
848
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 67.
849
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 69.
850
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 69.
pretendida ascensão, o texto atualiza o questionamento a respeito da destinação do
sujeito para a experiência que se almeja, ou que se idealiza. Retorna, aqui, a dúvida que
assaltava o poeta ao final de “Partida”, quando este se lamentava da solidão a que
estaria destinado. Em uma das estrofes, indica-se a certeza de que a vida em comum não
é para o artista: “Porque um domingo é família, / É bem-estar, é singeleza, / E os que
olham a beleza / Não têm bem-estar nem família”
851
. Em outra, mais a frente, é isto o
que se lamenta: “Tristes mãos longas e lindas / Que eram feitas para se dar... / Ninguém
mas quis apertar... / Tristes mão longas e lindas...”
852
.
Como o título sugere, “Dispersão” poderia vir a ser um momento de se dar
largas à transfiguração que acompanharia o movimento de ascensão do poeta a outras
esferas da realidade, de ratificar a positividade da multiplicação do sujeito, da perda da
identidade, a qual se vislumbrava em “Partida”. O que acontece, no poema, entretanto,
não é bem isso. Em todo o texto, ressalta a sensação do vazio, da falta, decorrente da
percepção de que uma virtual grandeza não chega a se concretizar, como o ideal que não
se realiza. Na primeira estrofe da composição, destacam-se dois tempos, o de um
passado e o de um presente. Neste último, o sujeito sente estar distante do que imagina
ter sido, ou, mais precisamente, segundo a lógica geral do poema, distante do que
imagina que poderia ter sido: “Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto, / E
hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim”
853
.
Em seguida, o poeta se refere às suas ânsias, que se relacionam, naturalmente,
em Sá-Carneiro, como se viu nos capítulos anteriores, ao desejo de se ultrapassar
limites, de escapar do mundo comum, de encontrar o desconhecido. Trata-se das
mesmas ânsias que, agora, são vistas como o que afasta o sujeito de sua própria vida, da
vida que, talvez, não fosse a grandeza de um ideal obsedante e enlouquecedor, seria
851
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
852
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
853
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
realmente possível viver: “Passei pela minha vida / Um astro doido a sonhar. / Na ânsia
de ultrapassar, / Nem dei pela minha vida...”
854
. O poeta, no tempo presente, sem forças,
sem vitalidade, figura-se através da imagem de uma alma morta: “Regresso dentro de
mim / Mas nada me fala, nada! / Tenho a alma amortalhada, / Sequinha, dentro de mim.
// Não perdi a minha alma, / Fiquei com ela, perdida. / Assim eu choro, da vida, / A
morte da minha alma”
855
.
A ideia que parece predominar, no poema, é a de uma experiência que poderia
ter sido vivida, mas que não foi (“Ai, como eu tenho saudades / Dos sonhos que não
sonhei!...”
856
), a que se liga o lamento pela certeza de que algo, que não se pode
precisar, faltou para se atingir o ideal: “Pobre menino ideal... / Que me faltou afinal? /
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...”
857
. Na estrofe seguinte a esta, é a percepção da
ausência de vitalidade, no presente, o que se volta a afirmar, em nova referência à alma:
“Desceu-me na alma o crepúsculo; / Eu fui alguém que passou. / Serei, mas já não me
sou; / Não vivo, durmo o crepúsculo”
858
.
Ainda antes do encerramento da composição, antes de duas linhas contínuas de
pontos finais, que separam o último dístico, há nova referência a uma derrota, que
refletiria a ausência da dispersão. O que restaria seria uma sorte negativa de
permanência, uma loucura limitada, menor do que outra, idealmente mais elevada. O
primeiro verso da penúltima estrofe (“Perdi a morte e a vida”
859
) parece dialogar com
outros, anteriores, em que se falava de um “pobre moço das ânsias” e de uma “grande
ave dourada”, figura que, como em “A um suicida”, representaria aquele que teria tido a
coragem para se precipitar em um abismo: “Tu, sim, tu eras alguém! / E foi por isso
854
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
855
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 62.
856
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 62.
857
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
858
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
859
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
também / Que te abismaste nas ânsias”
860
. Na penúltima estrofe, o lamento é o do
sujeito que, por contraste, não teria tido a mesma fibra para bater “asas para os céus”
861
:
“E, louco, não enlouqueço... / A hora foge vivida, / Eu sigo-a, mas permaneço...”
862
.
O último dístico, por sua vez, traria duas imagens como que soltas das restantes,
em que se nota, de maneira clara, a percepção de uma grandeza, de uma potência, que
não chegam a se tornar efetivas. No primeiro dos versos, são castelos o que aparece,
como imagem que sugere um poder, real ou senhorial. O adjetivo que a acompanha,
entretanto, indica uma ruína, a qual equivaleria a uma queda, como a de castelos que
seriam deitados abaixo. Trata-se, com efeito, de “castelos desmantelados”
863
. No outro
verso, é, novamente, a imagem da grandeza o que chama a atenção, inclusive, com a
sugestão do voo, do que poderia impelir a ascensão. Os “leões alados”, aqui, contudo,
estão destituídos de um dos sinais de sua força, de sua majestosa imponência, pois são
leões “sem juba”
864
. A ideia da falta, da contradição entre a virtual grandeza e a sua
atualização, é o que dá fim ao texto.
Entre os que apontam para a queda, em Dispersão, outro poema digno de nota
seria aquele que se intitula “Quase”. Agora, o fato de o sujeito ter chegado próximo
daquela ansiada elevação, não a tendo alcançado, revela-se como algo extremamente
negativo, como se fosse preferível, tendo em vista o caráter incompleto da experiência,
não haver sequer iniciado o seu movimento. Este, mostrando-se inconcluso, torna-se
fonte da mais forte desilusão, de um fracasso que se amplia, dando origem a uma
condição existencial insuportável. Por mostrar, de modo exemplar, aquele segundo tipo
de queda, a que me referi no início do capítulo, valerá a pena transcrever toda a
composição:
860
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
861
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 61.
862
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
863
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
864
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 63.
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão...
Mas na minha alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de heróis, sem fé, acorbadadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
........................................................................
........................................................................
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
865
865
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 65-66.
Logo na primeira estrofe, que se repete, com alterações do tempo verbal, ao final
do texto, indica-se a condição do sujeito, como quem permanece entre dois lugares, os
quais podem ser vistos, respectivamente, como o espaço da elevação, o “além”, e o
espaço da vida comum, o “aquém”, de que o poeta, como artista, tem a necessidade de
se afastar. Aponta-se o que teria faltado para que a ascensão fosse completa. Sob os
influxos da luz do sol, da imensidão do céu azul, que parecem sugerir a ideia de uma
ampliação ao infinito, o poeta teria podido alçar voo. Percebendo tais influxos como
insuficientes, entretanto, o sujeito é levado a afirmar o seu desejo de não ter sequer
imaginado o voo, permanecendo, como o comum dos homens, sem as ânsias que
inquietam o artista.
Na segunda estrofe, aprece a palavra “quase”, vinculada à dor de não se ter
podido viver o que se nomeia como um “grande sonho”, o qual, depois de despertado,
nas zonas do mistério, da “bruma”, acaba por se dissipar, frustrando os anseios do
sujeito. Na sequência, repete-se o termo “quase”, não uma, mas três vezes,
relacionando-o a elementos entre os quais se destacam a “chama”, em paralelo à
“brasa”, do primeiro verso do poema, o “triunfo”, que é o que não se alcança,
efetivamente, a “expansão”, equivalente da dispersão e da elevação, no quadro geral da
obra do autor, e “o princípio e o fim”, a indicar a incompletude da experiência. Esta, por
uma espécie de defeito de constituição do sujeito, em cuja “alma tudo se derrama”, não
seria levada a cabo, tendo tido um princípio, palavra que remete ao nome do primeiro
livro do escritor, mas não um fim.
O último verso da terceira estrofe se liga ao primeiro da quarta, ao afirmar que a
vivência de que trata o poema não teria sido uma ilusão, mas algo que, de fato, como
indicam outros versos, teria chegado a ser iniciado, embora não concluído. É no seio da
consciência desta suposta realidade que se constituiria a dor do poeta, o qual, agora,
revela claramente a sua sensação de fracasso, de quem não corresponderia nem mesmo
às suas próprias expectativas de diferenciação em relação aos outros homens. Ao final
da quarta estrofe, repercute, ainda, quando se fala na vontade do poeta, malograda, de
fixação dos seus anseios, algo que cheguei a comentar, anteriormente, ao me remeter ao
desejo de se fixar o instante, ou mesmo, paradoxalmente, dada a sua natureza
dispersiva, a própria elevação.
Antes do término do texto, há ainda dois momentos que merecem destaque. Na
sexta estrofe, faz-se menção a certos heróis, os quais, significativamente, como os
“leões alados sem juba”, do outro poema, seriam heróis sem heroísmo. Trata-se de
figuras “sem fé”, que se acovardam, impedindo o salto “sobre os precipícios”, os quais
não seriam senão aqueles saltos rumo ao além, à ascensão. Na penúltima estrofe,
ressaltam mais dois pontos. Em primeiro lugar, tem-se a referência a uma força, que
poderia ser violenta, mas que, como um “ímpeto difuso”, parece durar pouco, de modo a
não ser suficiente para a sustentação do movimento de elevação. Em segundo, destaca-
se a afirmação do sujeito acerca do torpor de seu estado, no presente, quando se
encontra imerso em um forte desencanto. Seria este, como aquilo que “resta” de todo o
anseio e de todo o movimento de elevação do poeta, como algo que parece irrevogável,
o que justificaria, inclusive, a mudança do tempo verbal, na última estrofe, a reforçar a
ideia de um passado, inexoravelmente, findo.
Certamente, não poderia ficar de fora, desse momento de comentários sobre os
poemas de Dispersão, o texto que encerra o livro, “A queda”, em que, como se viu,
encontra-se a expressão que dá título a este trabalho. Em meio a um jogo de contrastes,
torna-se difícil, aqui, discernir o caráter de positividade ou de negatividade das
experiências a que o sujeito do enunciado faz referência: “Se acaso em minhas mãos
fica um pedaço de ouro, / Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...”
866
. Ainda
assim, apresenta-se, na composição, uma espécie de solução para o problema da
distância entre os ideais de elevação do poeta e a dificuldade de sua realização, a qual se
aproxima da relação que se estabelece, em outros textos, entre a ascensão e a destruição
do sujeito.
Na terceira estrofe do poema, fica clara a tensão que se gera, no seio de um
universo interior, a partir dos anseios de elevação. No primeiro verso, destaca-se o
verbo altear, como ação do sujeito sobre si mesmo, a qual é impulsionada por uma
força, uma sorte de encantamento, não propriamente benéfico: “Alteio-me na cor à força
de quebranto”. No segundo, indica-se o desejo de ampliação, o qual, entretanto, associa-
se à ausência da conquista do que se anseia: “Estendo os braços de alma – e nem um
espasmo venço!...”. No verso seguinte, que remete a um desejo de fixar, expresso no
início do poema (“E eu que sou o rei de toda esta incoerência, / Eu próprio turbilhão,
anseio por fixá-la”), têm-se imagens que reportam à dispersão, ao que impede a
concentração do sujeito, justamente, a fixação de sua própria experiência: “Peneiro-me
na sombra – em nada me condenso...”. No último, indica-se, ainda que em contradição
com certa negatividade, o caráter luminoso do que se experimenta: “Agonias de luz eu
vibro ainda entanto”
867
.
Na sequência, tem-se a solução acima referida, em que se observa um
movimento ambíguo, através da conjugação entre o momento do ápice, de uma última e
completa elevação, e o momento da queda. Para a força da lógica das imagens, o poeta
trabalha com o contraste entre a luz, que lembra o fogo, a “brasa” de “Quase”, e o gelo,
no qual se apagariam os anseios do sujeito. Revela-se a estreita ligação entre a vitória e
a queda, como se só fosse possível atingir a elevação tendo em vista, e aceitando, a sua
866
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 72.
867
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 72.
consequência, o seu reverso, o tombamento do sujeito sobre si mesmo. Do alto, não
haveria outro lugar para o qual se tentar algum deslocamento, senão para baixo.
A impossibilidade de permanência, no estado da ascensão, acompanha-se de
uma sorte de destruição dos anseios do sujeito, o qual, ao fim e ao cabo, seria destituído
do que o levaria, virtualmente, a vibrar de modo mais intenso, a se dispersar, enfim, em
outras formas, em outros sentidos:
Não me pude vencer mas posso-me esmagar,
– Vencer é o mesmo que tombar –
E como inda sou luz num grande retrocesso,
Em raivas ideais ascendo até ao fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
..............................................................................
..............................................................................
Tombei...
............................................................................
E fico só esmagado sobre mim!...
868
Nos textos em prosa de Céu em fogo, há também alguns momentos em que se
observa a ausência de força para que se concretize a ascensão, assim como outros em
que a dispersão é o que se associa a uma forma de destruição do sujeito. Quanto a estes
últimos, algumas observações foram feitas, no capítulo anterior, quando tratei da
ascensão, em textos como “Eu-próprio o outro”, em que a dispersão é sentida não como
um triunfo, mas como uma perda da unidade subjetiva. O mesmo acontecimento que,
outras vezes, identifica-se à ampliação da alma, a uma desejada transfiguração, é visto,
aqui, como aniquilamento, a que o sujeito sente ser necessário opor as suas forças:
“Devo reagir. Sinto a minha personalidade abismar-se”
869
.
868
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 72.
869
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 507.
No outro caso, mais comum, entre as composições do livro, destacam-se as
caracterizações das personagens como figuras melancólicas, sempre imersas em um
grande tédio, que as deixa desoladas, sem confiança em si mesmas e em seu poder de
superar as dificuldades que as afastariam da realização de seus ideais, frequentemente,
ideais de artistas. Em “A grande sombra”, aos dois momentos de ascensão, de triunfo,
aos quais me referi, no capítulo anterior, antecede a certeza do narrador a respeito do
abismo que separaria o modelo idealizado e a parca realidade de sua própria arte. Em
certo trecho, é o suposto caráter sagrado que a personagem atribui à criação o que a
deixa prostrada, sem forças para se lançar à aventura de criar: “Ah!, por uma
incoerência, por um medo de sacrilégio, talvez, em face da obra que deveria executar –
sou todo ceticismo abandonado, desilusão de esforço, marasmo de renúncia...”
870
.
Em outro momento significativo, no mesmo conto, ressalta o lamento do
protagonista por se encontrar irremediavelmente afastado da infância, período da vida
em que a fantasia não encontraria obstáculos para o seu livre desenvolvimento. No
presente, quando fala de sua arte, a personagem revela a consciência da distância entre a
obra que se realiza e a que se almeja realizar:
Embora toda a minha Arte se fixe em Mistério, cingidamente – jamais me nimbo
de Além. Terei deixado sombra – pode ser –, sombra diademada, nos meus
livros: sombra de artifício, porém; sombra imóvel, sombra morta, que me não
vibra: que eu crio, mas que não me envolve; que só projeto de requinte.
871
Em outros textos do livro, vê-se a mesma discrepância entre a potência e a
realidade, a qual, não raro, daria origem à sensação de fraqueza, de falta de vitalidade,
para a qual se vislumbrarão, no contexto da obra, diferentes soluções. Na primeira linha
de “Eu-próprio o outro”, aquele que seria o autor do diário afirma, colocando a tensão
870
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 434.
871
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 424.
nas próprias imagens de seu discurso: “Sou um punhal d’ouro cuja lâmina embotou”.
Ainda nas anotações referentes ao mesmo dia, fala-se de covardia: “Não sou covarde
perante o medo. Apenas sou covarde em face de mim próprio”. Incapaz de realizar a sua
potência, a figura se envergonha (“Envergonho-me, de grande que me sinto”),
consciente de ser um sujeito cujas ambições são sempre frustradas, pois o que tem
início, como que motivado por um impulso inicial, não chega ao seu fim: “Às vezes
ainda me decido a partir. E parto. Mas nunca venço seguir”
872
.
Mesmo em “Ressurreição”, narrativa em que se tem, muito provavelmente, o
artista mais confiante em si mesmo, entre as personagens de Sá-Carneiro, notam-se
incertezas expressivas. Nos momentos iniciais da história, em que se caracteriza a
personagem, observa-se que ela chega a pensar a ausência de uma sorte de dor genial,
que outrora a consumia, como o anúncio do alcance de um limite, o qual se identificaria
a uma “esterilidade sem remédio”, associada ao “estancar do seu gênio”
873
. Mais a
frente, o que se manifesta é o receio, embora temporário, de que aquilo que se designa,
no conto, como “apoteoses íntegras, rutilantes de orgulho”, não seja “mais afinal do que
outro estado psíquico que se decidira – outra pobre ilusão...”
874
.
Em “Mistério”, também antes do momento de ascensão, que acontece ao final da
narrativa, o protagonista, cansado de uma tortura incessante, a qual não se descola do
que constitui os anseios do artista, é tocado pela vontade de se instalar em “um quarto
de hospital, muito branco, aonde, para não mais se erguer, se deitasse num grande leito,
muito branco também
875
. Aos anseios do sujeito, que é como se fosse talhado para
ultrapassar a realidade, opõe-se um segundo movimento, de recuo, o qual o leva a
cogitar dar fim à própria vida, não propriamente para alcançar um espaço além do
872
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 503.
873
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 542.
874
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 566.
875
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 464.
mundo real, mas, sobretudo, tendo em vista encerrar o seu sofrimento: “Muitas vezes o
artista, para remédio da sua angústia, pensava no suicídio”
876
.
Esta espécie de choque entre os desejos orgulhosos de ascensão e uma ineficaz
capacidade de realização, de execução dos projetos que se idealiza, o qual levaria o
sujeito a se imaginar impotente e fracassado, como se lançado ao espaço de uma queda
irremissível, assumirá, nas composições de Indícios de ouro e nos Últimos poemas, as
suas formas mais agudas. É entre estes que se encontram alguns dos textos mais
conhecidos ou elogiados do autor, como “7”, “Cinco horas” e “Caranguejola”.
Indícios de ouro começa com uma epígrafe que já adianta bastante do que virá a
seguir, quando o sujeito do enunciado, como a falar da própria obra, afirma: “Aqui, tudo
já foi... Em sombra estilizada, / A cor morreu – e até o ar é uma ruína...”
877
. Em outros
poemas, acumulam-se as imagens que figuram a distância entre um passado de supostas
conquistas e um presente de ausência de energia, em que o sujeito se mostra como se
afastado daquilo que, nele mesmo, constituiria o sinal da diferença e da grandeza. Em
“Distante melodia...”, cujo próprio título indica este afastamento, vê-se o sujeito como
um “Rei exilado, / vagabundo dum sonho de sereia...”
878
. Em “O lord”, tem-se uma
figura cuja nobreza pertence a um tempo passado, ao espaço “de Escócias doutra vida”,
o qual “hoje arrasta (...) a sua decadência, / sem brilho e equipagens”
879
.
Em “Apoteose”, brevemente mencionado, no capítulo anterior, destaca-se a
imagem de um sujeito que é como se faltasse a si mesmo, como se estivesse desprovido
de sua própria capacidade de movimentação, de impulsão. Na primeira estrofe, em que
ressalta o último verso, lê-se: “Mastros quebrados, singro num mar de Ouro / Dormindo
fogo, incerto, longemente... / Tudo se me igualou num sonho rente, / E em metade de
876
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 465.
877
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 75.
878
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 86.
879
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 113.
mim hoje só moro...”. Na terceira, apresenta-se uma descida, relacionada ao abandono
dos sinais da elevação: “Desci de mim. Dobrei o manto de Astro, / Quebrei a taça de
cristal e espanto, / Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...”. Em seguida, fala-se em
um fim (“Findei”), a que se associa, na última linha do poema, a imagem de pântanos,
lugares de águas paradas, a representar o estado do sujeito: “– Ó pântanos de Mim –
jardim estagnado...”
880
.
Em “7”, o mesmo problema da tensão entre a elevação e a queda, entre o que se
almeja e o que se alcança, apresenta-se de outro modo, o qual, entretanto, como se viu
anteriormente, não chega a se configurar como uma exceção, na obra de Sá-Carneiro.
Aqui, trata-se do desdobramento do sujeito em uma espécie de identidade idealizada, a
qual, projetando-se sobre uma realidade limitada, com ela contrasta. O poema tem
apenas quatro versos, os quais repercutem nos últimos quatro de “Ângulo”, que valerá a
pena comentar, logo a seguir. Eis, primeiro, o quarteto de “7”:
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
881
Como se vê, tem-se, na composição, um sujeito inicial que começa por negar a
sua identidade consigo mesmo, de modo idêntico ao que faz em relação a um “outro”,
como se o que importasse, neste momento, fosse negar toda identidade. Tal
procedimento, geraria, entretanto, no plano discursivo, um problema insolúvel. O
segundo verso começa com o verbo ser, na primeira pessoa do singular, o que
estabelece a identificação do sujeito como um intermediário, entre ele próprio e um
“Outro”. Este, na sequência do texto, é assinalado com a inicial maiúscula, a sugerir o
880
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 84.
881
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 82.
que parece ser aquela espécie de “identidade sublime”
882
, para voltar a uma expressão
utilizada no capítulo anterior.
O sujeito do enunciado, em contradição com o movimento inicial de recusa da
identidade, identifica-se, no terceiro verso, não apenas ao tédio, uma espécie de vazio,
mas, igualmente, ao pilar de uma relação de passagem, de uma sorte de travessia. A
partir daí, pode-se conjecturar que se esta viesse a se concretizar, provavelmente,
haveria a transfiguração do sujeito. A travessia, entretanto, não chega a ser levada a
cabo, uma vez que a identidade que permanece, e que dá voz ao discurso, não seria a
daquele “Outro” idealizado, mas a da figura que fica em um lugar intermédio. No
encerramento do poema, resta, então, a falha do movimento, a interrupção de sua
continuidade, o que, efetivamente, impediria qualquer elevação.
Na estrofe final de “Ângulo”, recupera-se o símbolo da ponte, assim como as
imagens da fragmentação ou da multiplicação da unidade subjetiva: “– Por sobre o que
Eu não sou há grandes pontes / Que um outro, só metade, quer passar / Em miragens de
falsos horizontes – / Um outro que eu não posso acorrentar”
883
. Marcando-se este
primeiro “eu” com a inicial maiúscula, o texto remeteria àquela substância idealizada, a
qual se localiza para além do que configuraria a realidade do sujeito. Este espaço,
relacionado a “miragens de falsos horizontes”, seria o lugar do que, sob o ponto de vista
da figura que fala, considera-se ilusão, mas o qual poderia ser, sob outro ângulo,
justamente, o lugar da elevação, da transfiguração.
Constitui-se, no poema, um conflito, entre duas figuras, mas que não envolve
apenas estas. O sujeito que assume o discurso desejaria “acorrentar” um “outro”, que se
movimenta à sua revelia, ansiando ultrapassar os limites que o levariam ao encontro de
uma terceira figura, o “eu” grafado com a maiúscula inicial. Um primeiro sujeito, então,
882
RUBIM, 2003, p. 86.
883
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 93.
assumiria a posição daquele que, em outras composições do autor, procura conter o
movimento de dispersão, enquanto um segundo, por contraste, identifica-se aos
impulsos de travessia, e um terceiro, ainda, coloca-se como o ‘eu’ ideal, uma projeção
idealizada do ‘eu’ em um plano superior, o qual se mostra inatingível.
Do mesmo modo que no poema anterior, pode-se conjecturar que se o sujeito
que se deseja acorrentar anulasse o outro, certamente, o ângulo sob o qual o texto se
comporia seria diferente. É de acordo com a perspectiva desiludida do primeiro,
entretanto, que a composição adquire o tom que lhe é conferido, em que predomina a
impossibilidade de uma verdadeira travessia. Na penúltima estrofe, apresentam-se, mais
uma vez, as imagens da ponte e da interrupção do movimento, a qual não se pode deixar
de associar à queda, uma vez que se trata da frustração de todo o projeto de ascensão:
“Detive-me na ponte, debruçado, / Mas a ponte era falsa – e derradeira. / Segui no cais.
O cais era abaulado, / Cais fingido sem mar à sua beira...”
884
.
Entre os demais poemas de Indícios de ouro, outro que mereceria um comentário
mais pormenorizado seria “Desquite”, cujo título sugere não apenas a tensão a que
venho me referindo desde o início da discussão sobre a queda, em Sá-Carneiro, mas a
própria separação entre partes de um mesmo sujeito, vislumbrada nos textos acima. Seis
quartetos dão forma à composição:
Dispam-me o Oiro e o Luar,
Rasguem as minhas togas de astros –
Quebrem os ônix e alabastros
Do meu não me querer igualar.
Que faço só na grande Praça
Que o meu orgulho rodeou –
Estátua, ascensão do que não sou,
Perfil prolixo de que ameaça?
884
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 93.
... E o sol... ah, o sol do ocaso,
Perturbação de fosco e Império –
A solidão dum ermitério
Na impaciência dum atraso...
O cavaleiro que partiu,
E não voltou nem deu notícias –
Tão belas foram as primícias,
Depois só luto o anel cingiu...
A grande festa anunciada
A galas e elmos principescos,
Apenas foi executada
A guinchos e esgares simiescos...
Ânsia de Rosa e braços nus,
Findou de enleios ou de enjôos...
– Que desbaratos os meus vôos;
Ai, que espantalho a minha cruz...
885
Logo de início, vê-se o tom de súplica que assume o discurso, quando o sujeito
do enunciado, dirigindo-se a uma imaginária primeira pessoa do plural, uma força a ele
exterior, pede que o façam se despojar daquilo que constituiria a sua grandeza, o “Oiro”,
o “Luar”, as “togas de astros”, “os ônix e alabastros”, elementos que se associam a um
desejo do sujeito de superar a si mesmo, de se tornar diferente de si.
A esta súplica, segue-se, na segunda estrofe do poema, uma pergunta, a qual se
relaciona ao que o poeta teria criado, certamente, por força da fantasia, instrumento e
fonte do orgulho do artista, capaz de construir a “grande Praça” a que o texto se refere.
No centro desta, estaria o próprio poeta, a “Estátua”, edificada em um movimento de
ascensão, o qual, agora, entretanto, seria, justamente, o que se problematiza. Na terceira
estrofe, destaca-se uma imagem crepuscular, com a referência ao “sol do ocaso”, a que
se acrescentam as ideias de um “Império” (aliás, comum, no livro, em que aparece,
frequentemente, como algo que se encontra em ruínas), da solidão dos lugares ermos e
da inadequação entre o sujeito e o tempo.
885
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 120.
Em seguida, surgem duas estrofes mais claras e significativas, quando se
contrastam, através de imagens distintas, mas próximas, dois movimentos, um inicial,
promissor, e um segundo, frustrante. Na primeira das estrofes, a imagem do poeta
encontra analogia na do “cavaleiro”, que chega a partir, mas se depara apenas com o
“luto”. Na segunda, a que já me referi, no primeiro capítulo do trabalho, chama a
atenção o contraste entre a imagem da nobreza, que a inicia, e o grotesco, que a encerra,
apontando, uma vez mais, para a distância entre o que se busca e o que se alcança.
Na última estrofe da composição, ressalta um verbo já observado em outro
poema (findar), o qual anuncia, precisamente, um fim, parecendo remeter ao
esgotamento da “ânsia” do poeta. Entre indecisões ou supostos êxtases, a que pode
remeter a palavra “enleios”, e os “enjôos”, que aparecem logo depois, o que restaria,
aqui, seria a ruína dos projetados voos do sujeito. Agora, a própria dor, aquela dor de
artista, tão insistente, em outros textos, não passaria de um artifício, ou, pior ainda, não
seria mais do que uma coisa imprestável, como o “espantalho”, a que se liga a “cruz” do
final do poema.
O sentido da desilusão, da fraqueza, que assola os desejos e as esperanças dos
sujeitos dos textos de Indícios de ouro, como se observa, seria a marca mais forte do
livro, a qual, certamente, aproxima-o dos Últimos poemas, em que o sentimento geral é
o de derrocada de tudo o que constituía aquilo por que o poeta teria lutado. Com efeito,
observa-se uma relação de continuidade entre as composições escritas mais para o fim
da vida do autor, sejam as que se reúnem em Indícios de ouro, sejam as que se
encontram entre os Últimos poemas, todas elas marcadas pelo que Óscar Lopes
chamaria de um “árido e brusco desencanto final”
886
.
886
LOPES, 1987, p. 528.
Dieter Woll, o crítico alemão, localiza, em “Elegia”, o início de uma segunda
parte da lírica de Sá-Carneiro, em que o vocabulário e as imagens seriam “tirados cada
vez mais do domínio da realidade quotidiana, banal”, a fim de refletir “a existência dum
homem-artista que já não vê possibilidade de se elevar acima da trivialidade da vida e
que adapta as suas expressões” a uma “situação de indigência”
887
. Coisa não muito
diferente constataria José Carlos Seabra Pereira, ao identificar, nesse momento da obra,
o “testemunho da desqualificação, da depressão e do vazio”
888
.
Em “Cinco horas”, ainda de Indícios de ouro, observa-se um tom prosaico
bastante particular, que se repete em “Caranguejola” ou em “Crise lamentável”. No
poema, ressalta o contraste entre as promessas de um futuro de elevação e um destino
malogrado, a que se acrescenta a diminuição extrema da estatura do ideal do artista. O
que eram os desejos de glória do poeta são reduzidos ao pequeno anseio de se viver
como que morto para a vida, isolado e sem energia, no pequeno espaço do café,
conforme se vê nas últimas quatro estrofes do texto:
(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...).
Nos Cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
– Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.
Passar o tempo é meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.
– Cafés da minha preguiça,
Sois hoje – que galardão! –
Todo o meu campo de ação
887
WOLL, 1968, p. 233.
888
PEREIRA, 1990, p. 174.
E toda a minha cobiça.
889
Em “Caranguejola”, cujo título já indica a falta de firmeza, o desequilíbrio da
constituição do sujeito que se dará a conhecer, no poema, é também a atmosfera
prosaica o que toma conta, do início ao fim da composição. O texto, que Fernando
Pessoa, estabelecendo toda uma tradição editorial, havia retirado de Indícios de ouro,
quando restituído a ele confirmaria a relação de continuidade, apontada acima, além de
marcar a inclinação deste último momento da obra do autor mais para o lado da
“dissonância vanguardista” do que da “sobrevivência do decadentismo”
890
, segundo os
termos de Fernando Cabral Martins.
Na primeira estrofe, mostra-se um desejo de recolhimento, o desejo por um
isolamento que não é mais aquele próprio do artista, avesso ao mundo comum, mas o de
um ser que parece querer anular a si mesmo. A interlocução com uma segunda pessoa,
que dá início ao texto, não serve senão para marcar mais um afastamento: “– Ah, que
me metam em cobertores, / E não me façam mais nada... / Que a porta do meu quarto
fique para sempre fechada, / Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores”
891
.
Como a reforçar a mesma redução dos anseios que se via em “Cinco horas”,
aponta-se, em seguida, no poema, o que seriam os banais objetos de desejo do poeta,
dentre os quais se excluem, não por acaso, os livros: “Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem
calafetado... / Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira – / Façam apenas que eu tenha
sempre a meu lado / Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira
892
.
Ao desejo de ser esquecido, de encontrar o sossego (“Larguem-me! Deixem-me
sossegar...”), de estar alheio a todo movimento, a toda transformação (“Sim: ficar
sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –”), que se expressa nas estrofes seguintes,
889
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 110.
890
In: SÁ-CARNEIRO, 2005, p. 257.
891
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 125.
892
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 125. (Grifo do autor).
acrescenta-se, na sexta, o que pode ser interpretado como um gesto de desvelamento do
que estaria por trás de um mundo de artifícios, por trás da própria fantasia, vinculada à
experiência artística. O poeta se apresenta, então, simplesmente, como Mário: “Deixa-te
de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo – / E não penses no resto. É já bastante, com
franqueza...”
893
.
Na sequência da composição, é o sentido da desistência o que se reforça, a partir
da certeza de que todo antigo anseio seria inútil: “Desistamos. A nenhuma parte a minha
ânsia me levará. / Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?”. Do
mesmo modo, reforçando-se a desmistificação da figura do artista, voltam ao texto
elementos referentes à vida do escritor, os quais se sobrepõem a imagens recorrentes, na
obra fictícia, como a do quarto de enfermaria onde poderia repousar o atormentado
poeta: “Tenham dó de mim. Coa breca! levem-me pra enfermaria – / Isto é: pra um
quarto particular que o meu Pai pagará. // Justo. Um quarto de hospital – higiênico, todo
branco, moderno e tranqüilo”
894
.
Ao final do poema, quando retorna a interlocução com aquela segunda pessoa,
apenas mencionada no início do texto, o que se manifesta não pode ser outra coisa senão
o sentido do fim, de uma vida que se encerra: “– Quanto a ti, meu amor, podes vir às
quintas-feiras, / Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou. / Agora no meu quarto
é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras: / Nada a fazer, minha rica. O
menino dorme. Tudo o mais acabou”
895
.
Em “Crise lamentável”, já um texto dos Últimos poemas, em que, novamente,
predomina o registro prosaico, destaca-se um desejo recorrente, na obra de Sá-Carneiro.
O poeta, cansado de seu sofrimento de artista, de suas frustradas tentativas de elevação,
afirma querer ser como toda a gente. Fala-se de sua vontade de se relacionar com
893
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 125. (Grifo do autor).
894
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 125-126.
895
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 126.
mulheres (“Não ter receio de seguir pequenas / E convidá-las para me pôr nelas”), do
seu impulso para sair de um fantástico e afetado isolamento: “À minha Torre ebúrnea
abrir janelas”. Separa-se, contra o projeto estético do autor, o que seria a arte e o que
seria a vida: “Viver em casa como toda a gente – / Não ter juízo nos meus livros – mas /
Chegar ao fim do mês sempre com as / Despesas pagas religiosamente...”
896
.
Coloca-se em xeque, então, a própria angústia do poeta, a certeza de sua
diferença, da grandeza de seus ideais, os quais, agora, aparecem como coisa sem valor,
puro artifício ou divagação sem sentido, na ótica de quem, no presente, deseja “não
fazer mais cenas”, não mais “viver na lua”: “Levantar-me e sair – não precisar / De hora
e meia antes de vir pra rua. / – Pôr termo a isto de viver na lua, / – Perder a frousse das
correntes de ar”. Ao final da composição, é aquela “fantasia alada”, outrora instrumento
para a ansiada ascensão ao desconhecido, o que se mostra como o que se deve
abandonar. Eclode, irrevogável, a consciência de que as “histórias melindrosas” que o
poeta se acostumou a imaginar não passariam de uma espécie de ouro falso, o qual,
sempre, “em chumbo se derrete”
897
.
Em “Aquele outro”, com o qual encerro esta parte do capítulo, haveria, por fim,
uma intensificação e uma espécie de fechamento, como em um anticlímax, da visada
derrisória do sujeito, a incidir não apenas sobre uma fração menos nobre dele mesmo,
mas sobre a figura idealizada que se projetava, em outros textos, como a realização de
uma extraordinária potência íntima. Quando aquele que se imaginara grande, às voltas
com a busca da elevação, passa a ter plena consciência do que seria a sua verdadeira
condição, muito aquém do que fantasiara, a tensão que o impelia para cima passa a
puxá-lo para baixo, de modo a que o sublime se revele como grotesco. Apesar de já ter
896
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 127.
897
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 127. (Grifo do autor).
mencionado alguns dos termos do texto, no primeiro capítulo do trabalho, valerá a pena
voltar a eles, transcrevendo o soneto:
O dúbio mascarado – o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito.
O Rei-lua postiço, o falso atônito –
Bem no fundo, o cobarde rigoroso.
Em vez de Pajem, bobo presunçoso.
Sua Alma de neve, asco dum vômito –
Seu ânimo, cantado como indômito,
Um lacaio invertido e pressuroso.
O sem nervos nem Ânsia – o papa-açorda,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal.
O raimoso, o corrido, o desleal,
O balofo arrotando Império astral:
O mago sem condão – o Esfinge gorda...
898
A mesma figura que se pensara, como se lê em “O pajem”, do livro anterior,
“Asa de rendas que entre cardos só flutua”
899
, associa, agora, a sua “alma” ao que causa
desprezo e aversão. O “ânimo, cantado como indômito”, revela-se algo sem dignidade,
sem firmeza e altivez, atributos que a ele só teriam sido dados por força de uma fantasia
ilusória. O poeta, que se imaginara espiritualmente diferente, fora e além de todo
padrão, concentra em um traço corporal a sua anormalidade, referindo-se,
repetidamente, à sua figura obesa. O “balofo arrotando Império astral”, enfim, não
passaria de um triste e patético ser, sem qualquer qualidade especial, horrendo, como a
“Esfinge gorda”.
Com uma perspectiva negativa como essa, Sá-Carneiro atinge o que havia mais
prezado, em outros momentos de sua obra, ou seja, a própria fantasia idealizada de ser
um sujeito mais potente, mais belo, como um ser divino, capaz de criar universos,
898
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 130.
899
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 117.
suscitar a vivência de outros sentidos, entrar em contato com outras esferas da
existência. Está-se, aqui, em pleno “processo de chacota em causa própria, de
autodepreciação do sujeito narcísico, de autodesmistificação do suposto génio”
900
, para
o qual José Carlos Seabra Pereira chamaria a atenção, ao falar do final da obra do autor.
O impulso de negação do real, em nome de algo mais elevado, é, agora, submetido a
uma espécie de inversão, a qual faz com que se negue não só a fantasia, concebida como
um reles subterfúgio, mas o próprio poeta, o seu orgulho, a sua diferença, indícios de
uma estúpida inadequação.
3. Entre os primeiros poemas de Rimbaud, aqueles em que se manifesta, de
modo enfático, o espírito satírico do autor, a sua veia antimonárquica, anticlerical,
antiburguesa, não se encontram momentos de muita tensão, no que diz respeito às
dinâmicas da ascensão e da queda. Em grande parte dos poemas, em que predomina
uma perspectiva crítica, descritiva, o apontar, nos outros, a falta de energia, equivalente
ao conformismo e a uma total impossibilidade de elevação, não se acompanha de uma
reflexão sobre a própria experiência subjetiva. Nos textos em que se observa a sugestão
de um movimento de elevação, como em “Voyelles”, ou mesmo o de fuga do mundo
conhecido, como em “Sensation”, por sua vez, não se abre espaço para a manifestação
de um movimento contrário, que poderia gerar alguma resistência.
Em uma passagem da segunda das cartas ditas do vidente, entretanto, delineia-se
a relação entre a ascensão e a destruição, no momento em que se fala da enorme
quantidade de força necessária para se chegar ao desconhecido. No salto do sujeito em
direção aos espaços onde se encontrariam as coisas inauditas e inominadas, haveria um
despedaçamento: “qu’il crève dans son bondissement”
901
. Este, por um lado, poderia ser
vivido como algo positivo, como um desdobramento natural do movimento, uma
900
PEREIRA, 1990, p. 174.
901
RIMBAUD, 2002, p. 89. (que ele se despedace no seu salto).
espécie de clímax da ascensão, em que o sujeito, perdendo a sua identidade, acabaria
por se fundir a uma sorte de harmonia cósmica, de estrato superior. Aconteceria, então,
algo parecido com o que Emil Staiger associa ao ideal de vivenciar uma “ininterrupta
existência lírica”, que levaria “à total desintegração do eu”
902
, ou com o que Jean-Pierre
Richard relaciona a um êxtase, o da integração do sujeito na “unidade mística do
mundo”
903
, a qual implicaria o sacrifício daquela parte da vida que distingue cada ‘eu’,
fazendo-o existir como indivíduo particular
904
.
Por outro lado, observa-se que o mesmo movimento poderia ser revestido de um
sinal negativo, como acontece em parte de “Le bateau ivre”. Ao final do poema, como
se viu, no capítulo anterior, verifica-se um desejo contrário ao da ascensão, que se
mostra insuportável. Na penúltima estrofe do texto, destaca-se a redução da intensidade
e da grandeza dos anseios do sujeito, que reflete uma recusa do movimento em direção à
ampliação da experiência: “Si je désire une eau d’Europe, c’est la flache / Noire et
froide où vers le crépuscule embaumé / Un enfant accroupi plein de tristesses, lâche /
Un bateau frêle comme un papillon de mai”
905
. A esta recusa, relaciona-se a falta de
uma força, que, virtualmente, manteria o sujeito no caminho escolhido. É esta lacuna o
que se sugere quando se fala, no próprio texto, em um “future Vigueur”
906
, o qual se
902
STAIGER, 1972, p. 29. Na perspectiva do crítico alemão, não se pode conceber a experiência lírica sem
algum grau de desintegração da unidade subjetiva. É ele quem afirma que “para o poeta lírico não existe
uma substância, mas apenas acidentes, nada que perdure, apenas coisas passageiras”. A poesia seria, a
partir deste ângulo, o universo das “visões que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as
relações de espaço e tempo” (S
TAIGER, 1972, p. 45).
903
RICHARD, 1955, p. 219. (“unité mystique du monde”).
904
Richard, falando na primeira pessoa do plural, afirma que, para se experimentar tal êxtase, é preciso
“que nous acceptions, à chaque minute de notre vie, de sacrifier cette vie, ou du moins que nous soyons
prêts à abandonner tout ce qui en elle marque une différence, nous distingue, et nous fait exister comme
des individus particuliers” (R
ICHARD, 1955, p. 219).
905
Não custa citar, novamente, a tradução de Ivo Barroso: “Se há na Europa uma água a que eu aspire, é
a mansa, / Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio, / A que um menino chega e tristemente lança /
Um barco frágil como a borboleta em maio” (R
IMBAUD, 1995, p. 209).
906
RIMBAUD, 2002, p. 125. (futuro Vigor).
revela inatingível, a dormir, desterrado (“tu dors et t’exiles”
907
), em “nuits sans
fonds”
908
.
No âmbito das composições escritas em 1872, a tensão entre o movimento de
elevação e o de queda não se mostra muito explícito. Observam-se, entretanto,
momentos em que se torna patente o abandono do impulso para o encontro do
desconhecido, a perda da fé neste movimento, o que acabaria por limitar, nivelando por
baixo, toda a experiência subjetiva
909
. Neste caso, vislumbra-se aquela outra sorte de
queda, a que me referi no início do capítulo.
Aqui, como salienta Letourneux, o enraizamento se apresenta como uma força
oposta à “vontade de emancipação poética”
910
, assim como à vontade de se abandonar o
lar e a família, as quais corresponderiam “à errância e ao voo do poeta”
911
. Quando os
principais objetos de desejo do sujeito são deslocados de seu horizonte de expectativas,
sua existência se iguala a dos demais homens, o que, para quem repudia a mediocridade,
não poderia ser mal maior.
No primeiro capítulo do trabalho, fiz um comentário sobre três das quatro partes
de “Fêtes de la patience”, chamando a atenção para a diferença entre as primeiras, em
que se destaca a recusa às relações cotidianas e aos sistemas pré-estabelecidos, e a
última, “Âge d’or”, a cujo tom pouco grave se associa uma espécie de falta de energia
para se manter o impulso da revolta. Com efeito, neste último texto, em sentido
contrário ao dos demais, o sujeito aceita integrar o seu canto a uma harmonia familiar,
907
RIMBAUD, 2002, p. 125. (tu dormes e te exilas).
908
RIMBAUD, 2002, p. 125. (noites sem fundo).
909
É Matthieu Letourneux quem afirma que, nos poemas de 1872, o poeta, à medida que passa a aspirar
mais do que aspirava no passado, sente “mais forte a ameaça do fracasso”: “Le poète aspire à autre chose
qu’à cette simplicité, en même temps qu’il sent plus fort la menace de l’échec” (L
ETOURNEUX, 2004, p.
84).
910
LETOURNEUX, 2004, p. 84. (“volonté d’émancipation poétique”).
911
LETOURNEUX, 2004, p. 84. (“à l’errance et à l’envol du poète”).
alheia a toda procura, aos questionamentos e mesmo às desgraças (“Vis et laisse au feu /
L’obscure infortune”
912
) que fariam dele uma constituição singular.
Na segunda estrofe da composição, em nome do apaziguamento, o sujeito do
enunciado se abre para a voz de quem diagnostica o seu mal, sugerindo o caminho para
o fim das torturas: “Ces mille questions / Qui se ramifient / N’amènent, au fond, /
Qu’ivresse et folie”
913
. Na quarta, o poeta aceita cantar junto com a sua família, um
canto alegre e fácil, limitado a tocar apenas o que se vê, o que, no mundo, haveria de
concreto e bem estabelecido: “Puis elle chante. Ô / Si gai, si facile, / Et visible à l’oeil
nu... / – Je chante avec elle”
914
. Ao final do poema, o que se marca é a redução do
escopo do desejo do poeta, o qual aceita, embora um tanto quanto ironicamente,
revestir-se de um tipo acanhado de glória: “Environnez-moi / De gloire pudique...
etc...”
915
.
Em outro texto do mesmo conjunto, “Mémoire”, destacam-se as duas últimas
estrofes, que formam a quinta parte da composição. O poema, obscuro, costuma ser
interpretado como a evocação de uma cena familiar, em que figurariam o pai do poeta
(“Hélas, Lui, comme / mille anges blancs qui se séparent sur la route, / s’éloigne par-
delà la montagne!”
916
), aquele que abandona a família, e a mãe, que é abandonada:
“Elle, toute / froide, et noire, court! après le départ de l’homme!”
917
. Para a discussão
que tenho em mente, entretanto, isso não importa muito. O que vale ressaltar, neste
caso, seria o sentido de uma estagnação, contrária ao movimento, condição para a
realização de todo o desejo. Não havendo a impulsão para o deslocamento, o que resta é
912
RIMBAUD, 2002, p. 158. (Vive e larga ao fogo / O obscuro infortúnio).
913
RIMBAUD, 2002, p. 157. (Estas mil questões / Que se ramificam / Não trazem, no fundo, / Senão
embriaguez e loucura).
914
RIMBAUD, 2002, p. 157. (Aí ela canta. Ó / Tão alegre, tão tranquila, / E visível a olho nu... / – Eu canto
com ela).
915
RIMBAUD, 2002, p. 158. (Envolvei-me / de uma glória pudica... etc...).
916
RIMBAUD, 2002, p. 147. A tradução é de Ivo Barroso: “Oh! Ele, como / mil anjos brancos que se
separam pelo caminho” (RIMBAUD, 1995, p. 257).
917
RIMBAUD, 2002, p. 147. Eis a versão de Ivo Barroso: “Ela, inteiramente / fria, e sombria, corre! após a
partida do homem!” (R
IMBAUD, 1995, p. 257).
a mesma espécie de queda que se observa no poema anterior, associada, mais uma vez,
à impossibilidade de fugir ao ambiente da família.
Na última parte da composição, o poeta se mostra sem forças, sem a capacidade
para tomar uma iniciativa, para tomar em suas mãos as rédeas da própria vida, deixando
para trás o poder que o subjuga. Destacam-se, então, em primeiro lugar, a imagem de
uma canoa imóvel, que em tudo contrasta com a experiência extraordinária vista em “Le
bateau ivre”, quando o sujeito escapava dos constrangimentos do mundo conhecido, e,
depois, a imagem da impotência, de um braço curto demais para alcançar os objetos que
o seu desejo lhe apresenta: “Jouet de cet oeil d’eau morne, je n’y puis prendre, / ô canot
immobile! oh! bras trop courts! ni l’une / ni l’autre fleur: ni la jaune qui m’importune, /
là; ni la bleue, amie à l’eau couleur de cendre”
918
.
Na estrofe final, salienta-se a repetição da imagem do olho-d’água, o qual, no
trecho anterior, era o que fazia do poeta o seu joguete, submetendo-o ao seu poder.
Reaparece, também, a imagem da canoa, estanque. Nos últimos dois versos, o que se vê
é a relação entre os dois elementos, um preso ao outro, o sujeito acorrentado às águas,
ao seu fundo, sem que possa vislumbrar alguma possibilidade de escapar desse
ambiente, em direção a uma margem qualquer: “Mon canot, toujours fixe; et sa chaîne
tirée / Au fond de cet oeil d’eau sans bords, – à quelle boue?
919
Ainda entre os poemas de 1872, valeria a pena mencionar um terceiro texto, já
tendo em vista os desdobramentos que se anunciam no livro seguinte, Une saison en
enfer, o qual será, no que diz respeito à ideia da queda, na obra de Rimbaud, o ponto
central do trabalho. O poema em questão se chama “Honte”, e traz o mesmo tom irônico
que se vê em “Âge d’or”, como se a perspectiva assumida, na composição, não fosse a
918
RIMBAUD, 2002, p. 147. A tradução é de Ivo Barroso: “Joguete desse olho d’água melancólico, não
posso agarrar, / ó canoa imóvel! oh! braços curtos demais! nem uma flor / nem outra: nem a flor amarela
que me importuna, / ali; nem a azul, amiga na água cor de cinza” (R
IMBAUD, 1995, p. 259).
919
RIMBAUD, 2002, p. 147. Ivo Barroso traduz assim: “Minha canoa, sempre fixa; e a amarra atirada / Ao
fundo desse olho d’água sem margens, – a que lama?” (R
IMBAUD, 1995, p. 259).
do poeta, mas a de uma coletividade, que o tomaria por objeto. O sujeito, uma terceira
pessoa, é visto como aquele que envergonha os seus pares, a sua família, em sentido
largo, como “l’enfant / gêneur, la si sotte bête”
920
, que poderia “empuantir toutes
sphères”
921
.
Até aí, o texto não traria nada de propriamente novo, pois o que se tem é a ação
típica do réprobo, condizente com o perfil do que o poeta queria para si mesmo. Ao
final do poema, entretanto, lança-se uma imprecação, que parece destinada à salvação
do sujeito: “Qu’à sa mort pourtant, ô mon Dieu! / S’élève quelque prière!”
922
.
Vislumbra-se, ainda que sob a roupagem de uma ambígua ironia, uma nova perspectiva,
a de quem, segundo Antoine Adam, “já não se orgulha de seus vícios nem de proclamar
sua revolta”, esperando que, “à sua morte, uma prece se eleve a Deus, um Deus no qual
não crê, mas do qual também não zomba”
923
.
Descortinam-se, a partir deste arranjo, dois caminhos, que virão à tona, com toda
a força, em Une saison en enfer. Por um lado, tem-se a associação entre a possibilidade
de acesso ao desconhecido e a necessidade de o sujeito se tornar um maldito, adquirindo
uma forma como que monstruosa, destinada a perturbar a norma, a acabar com o
equilíbrio da vida comum. Neste caso, relaciona-se a ascensão à fuga dos valores do
mundo conhecido, dos quais se destacam, em particular, os valores religiosos. Em
sentido contrário, por outro lado, aponta-se para a possibilidade de uma salvação, cuja
perspectiva implicaria uma espécie de retorno do sujeito sobre os próprios passos.
Agora, o que se busca passa a ser o que Jean-Pierre Richard diria ser “uma esperança
920
RIMBAUD, 2002, p. 164. (a criança / importuna, a tão tola besta)
921
RIMBAUD, 2002, p. 165. (empestar todas as esferas).
922
RIMBAUD, 2002, p. 165. A tradução é de Ivo Barroso: “Que à sua morte, entanto, ó Deus, / Possa
erguer-se alguma prece!” (RIMBAUD, 1995, p. 255).
923
In: RIMBAUD, 1995, p. 362.
fixa, uma vida enraizada”, opostas “ao voo e à metamorfose”
924
. Tendo em vista o
projeto poético do autor, e isto é o que importa frisar, uma inflexão como essa não
representaria senão a capitulação, ou a própria queda, ante as dificuldades da tarefa a
que se imaginava lançar o poeta.
É sob a concepção dessa diferença, entre um movimento em direção ao
desconhecido, ensejado pela negação dos valores do mundo ocidental, que levaria a uma
transformação radical não apenas do sujeito, mas da própria vida, e um movimento
contrário, de retração e de negação desse processo, que se poderiam interpretar muitas
das passagens do “carnet de damné”
925
, de Rimbaud. Assumindo, como núcleo do
desejo do poeta, não a esperança da salvação, ou a da elevação para o encontro de Deus,
que atrelaria a poética do autor a um pensamento cristão, mas um projeto que se coloca,
em grande medida, justamente, contra esse pensamento, é que se pode entender o
sentido de renúncia de um momento como o que, em “Mauvais sang”, leva o sujeito a
se referir a Cristo como quem lhe poderia dar a nobreza e a liberdade: “L’Esprit est
proche, pourquoi Christ ne m’aide-t-il pas, en donnant à mon âme noblesse et
liberté”
926
.
De modo geral, em Une saison en enfer, ressalta a figura de um sujeito que se
encontra perdido, sem rumo, afirmando, em um momento, o que nega, em seguida, para
voltar a afirmar, na frase sucessiva. O poeta, concentrado na agonia de seu drama
pessoal, em um drama de consciência, pergunta-se a quem adorar, a quem seguir, por
que lutar: “À qui me louer? Quelle bête faut-il adorer? Quelle sainte image attaque-t-
924
Transcrevo a frase completa: “Il lui faut un espoir fixe, une vie enracinée, encadrée, qui soit comme un
refus opposé à l’envol et à la métamorphose” (RICHARD, 1955, p. 223).
925
RIMBAUD, 2002, p. 178. (caderno de danado).
926
RIMBAUD, 2002, p. 180. A frase é interrogativa, apesar de lhe faltar o ponto que indique isto. Lêdo Ivo,
em sua versão, acrescenta-o: “O Espírito está perto, porque Cristo não me ajuda, dando nobreza e
liberdade a minha alma?” (R
IMBAUD, 1982, p. 49).
on? Quelles coeurs briserai-je? Quel mensonge dois-je tenir? – Dans quel sang
marcher?”
927
.
Para estas perguntas, a resposta será oscilante, ora indicando a aceitação de uma
razão católica, ora negando-a, em nome da afirmação da individualidade: “Plus besoin
de dévouement ni d’amour divin (...) Chacun a sa raison, mépris et charité”
928
. A tensão
essencial do livro se manifestaria, então, entre uma nova perspectiva e aquela antiga
vocação para a revolta, que se constituíra em princípio poético, nas cartas ditas do
vidente. É neste contexto que toma corpo uma experiência aflitiva, expressa no
contraste entre a exigência da insubmissão e o impulso para abandoná-la, uma
experiência que se torna tanto mais angustiante quanto mais intenso seria o momento de
fragilidade atravessado pelo sujeito.
Em muitas das composições do livro, ressaltam os trechos em que o poeta
menciona a sua fraqueza, cuja intensidade corresponderia, em proporção, à quantidade
de força necessária para o cumprimento das tarefas a que ele se propõe. Marcam-se,
aqui, os momentos em que ocorre o que Jean-Pierre Richard chamaria de uma “falta de
convicção interna”
929
, a qual se associa à indolência, para Rimbaud, segundo o mesmo
autor, equivalente a uma forma de “queda espiritual”
930
.
Ao final de “Mauvais sang”, em que o sujeito do enunciado se vê como uma
figura incapaz de manter a constância da ação (“Je suis trop dissipé, trop faible”
931
), faz-
se referência a um combate, que poderia sugerir a antiga luta por se escapar das
927
RIMBAUD, 2002, p. 181. A tradução é de Lêdo Ivo: “A quem me alugar? A que animal é preciso
adorar? Contra que santa imagem investir? Que corações quebrarei? Que mentira devo sustentar? – Em
que sangue caminhar?” (R
IMBAUD, 1982, p. 50).
928
RIMBAUD, 2002, p. 184. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Não tenho mais necessidade de abnegação ou de
amor divino. (...) Cada um tem sua razão, desprezo e caridade” (R
IMBAUD, 1982, p. 53).
929
RICHARD, 1955, p. 228. (“manque de conviction interne”).
930
O crítico francês faz uma comparação entre Rimbaud e Baudelaire: “A l’inverse de Baudelaire qui
aimait dans l’indolence une heureuse vaporisation d’être et voyait en elle l’instrument de conquête d’une
horizontalité glorieuse, Rimbaud identifie la paresse à une retombée spirituelle. Il l’associe à des images
d’eau morte et d’énergie éparpillée” (R
ICHARD, 1955, p. 228).
931
RIMBAUD, 2002, p. 184. (Sou muito dissipado, muito fraco).
limitações do mundo. Para este combate, entretanto, não há forças: “Où va-t-on? au
combat? Je suis faible! les autres avancent”
932
.
Em “L’éclair”, o sujeito fala de uma obrigação pessoal, de um dever, não como
quem está disposto a cumpri-lo, mas como quem deseja, igualando-se aos seus pares,
deixá-lo de lado: “J’ai mon devoir, j’en serai fier à la façon de plusieurs, en le mettant
de côté”
933
. O poeta se sente desprovido de vitalidade, disposto a seguir despreocupado
um caminho que ele consentiria apenas fingir ser o seu: “Ma vie est usée. Allons!
Feignons, fainéantons, ô pitié!”
934
.
No penúltimo dos textos do volume, “Matin”, o sujeito do enunciado fala,
explicitamente, em queda, perguntando-se sobre o que seria a causa de sua debilidade,
no presente, a qual em tudo contrasta com os indícios promissores do passado.
Considerando-se incapaz de falar, é a uma segunda pessoa do plural, uma coletividade
indeterminada, que ele pede que explique a sua inércia:
N’eus-je pas une fois une jeunesse aimable, héroïque, fabuleuse, à écrire sur des
feuilles d’or, – trop de chance! Par quel crime, par quelle erreur, ai-je mérité ma
faiblesse actuelle? Vous qui prétendez que des bêtes poussent des sanglots de
chagrin, que des malades désespèrent, que des morts rêvent mal, tâchez de
raconter ma chute et mon sommeil. Moi, je ne puis pas m’expliquer que le
mendiant avec ses continuels Pater et Ave Maria. Je ne sais plus parler!
935
Uma nova perspectiva, em relação aos poemas anteriores, assim como em
relação ao projeto das cartas ditas do vidente, seria, então, consequência da fraqueza, da
932
RIMBAUD, 2002, p. 184. A tradução é de Lêdo Ivo: “Ir para onde? para o combate? Sou fraco! os
outros avançam” (RIMBAUD, 1982, p. 54).
933
RIMBAUD, 2002, p. 201. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Tenho minha obrigação; como vários outros, eu
me orgulharei em pô-la de lado” (RIMBAUD, 1982, p. 73).
934
RIMBAUD, 2002, p. 202. (Minha vida está gasta. Vamos! finjamos, vadiemos, ó piedade!).
935
RIMBAUD, 2002, p. 202. (Grifos do autor). Nesse caso, escolho a tradução de Mário Cesariny, ainda
que, como de costume, seja ela menos literal do que a de Lêdo Ivo: “Fui eu que tive, um dia, uma
juventude adorável, heróica, fabulosa, digna de ser escrita em lâminas de oiro? – excessiva ventura! Por
que crime, por que erro mereço a minha fraqueza de hoje? Vós, que julgais que os bichos soluçam de dor,
que os doentes desesperam, que a morte tem pesadelos, contai a minha queda e o meu estupor. Eu, não
me explico melhor do que um pedinte a entaramelar Paters e Ave-Marias. Já não sei falar!” (R
IMBAUD,
2007, p. 171).
capitulação ante um intenso sofrimento, que fazem com que o poeta se mostre rendido,
entregue ao poder que antes recusava. Observa-se, a partir dessa premissa, o lamento de
quem se teria mantido alheado do bom caminho, vivendo em meio ao vício, ao pecado,
como teriam feito os seus ascendentes gauleses, de quem se herda “l’idolâtrie et l’amour
du sacrilège”
936
, “tous les vices, colère, luxure, (...) surtout mensonge et paresse”
937
.
Em “Nuit de l’enfer”, em que reiteradas vezes se fala em cansaço (“Je meurs de
lassitude”
938
), o sujeito menciona o que agora considera os falsos encantos do passado,
“magies, parfums faux, musiques puériles”
939
, dos quais teria feito uso. Fala-se em um
orgulho desmedido, associado à antiga crença de quem teria se imaginado um vidente,
possuidor da verdade e conhecedor da justiça. Tal crença, soberba, mostra-se causa do
que se julgam as merecidas dores do inferno: “– Et dire que je tiens la vérité, que je vois
la justice: j’ai un jugement sain et arrêté, je suis prêt pour la perfection... Orgueil. – La
peau de ma tête se dessèche”
940
.
É nos momentos em que o poeta se encontra tomado pelo medo, dispondo-se ao
arrependimento, que se ouve o apelo à força divina, em um movimento contrário àquele
que, nas cartas ditas do vidente, fazia-o negar o mundo e voltar sobre si mesmo, a fim
de se conhecer e de se transformar: “Pitié! Seigneur, j’ai peur”
941
. Em “Nuit de l’enfer”,
destaca-se a súplica, através da qual o sujeito, considerando-se incapaz de se manter por
conta própria, curva-se a um poder outrora execrado: “Mon Dieu, pitié, cachez-moi, je
me tiens trop mal!”
942
. O Deus, que antes se recusava, torna-se a única fonte de força,
936
RIMBAUD, 2002, p. 178. (a idolatria e o amor ao sacrilégio).
937
RIMBAUD, 2002, p. 178. (todos os vícios, cólera, luxúria, (...) sobretudo mentira e preguiça).
938
RIMBAUD, 2002, p. 187. (Morro de lassidão).
939
RIMBAUD, 2002, p. 185. (magias, perfumes falsos, músicas pueris).
940
RIMBAUD, 2002, p. 185. A tradução é de Lêdo Ivo: “– E dizer que possuo a verdade, que vejo a justiça:
tenho um julgamento são e firme, estou pronto para a perfeição... Orgulho. – Meu couro cabeludo se
resseca” (R
IMBAUD, 1982, p. 56).
941
RIMBAUD, 2002, p. 185. (Piedade! Senhor, eu tenho medo).
942
RIMBAUD, 2002, p. 187. A tradução é de Lêdo Ivo: “Meu Deus, piedade, ocultai-me, não estou em
condições de proteger-me!” (R
IMBAUD, 1982, p. 57).
digna de todos os louvores, como se vê em uma passagem de “Mauvais sang”: “Dieu
fait ma force, et je loue Dieu”
943
.
Em “Alchimie du verbe”, a segunda parte de “Délires”, faz-se menção ao terror,
relacionado ao desregramento, o qual é visto, agora, apenas negativamente, como o que
ameaça a constituição do sujeito, fomentando a sua destruição. Fala-se, no poema, em
sonhos aflitivos, na debilidade (“ma faiblesse”
944
), na saúde enfraquecida: “Ma santé fut
menacée. La terreur venait. Je tombais dans des sommeils de plusieurs jours, et, levé, je
continuais les rêves les plus tristes”
945
. Estas seriam as consequências diretas de uma
desmedida vontade de evasão da realidade, em direção a uma amplidão que se vincula
ao delírio, a “la folie qu’on enferme”
946
.
Ao final da composição, a referência a uma viagem, por mar, indica o desejo e a
esperança do poeta de poder lavar o que considera como manchas em sua trajetória, a
sua oportunidade de poder “distraire les enchantements assemblés”
947
. Como em outros
textos do livro, vislumbra-se a redenção, quando se vê, em meio ao mar, “se lever la
croix consolatrice”
948
. Assinala-se, através do objeto símbolo do cristianismo, o limite
entre duas estações, a possível abertura para um novo período, em que o sujeito não
mais viveria a alucinação, tendo aprendido a “saluer la beauté”
949
.
943
RIMBAUD, 2002, p. 183. (Deus faz minha força, e eu louvo Deus).
944
RIMBAUD, 2002, p. 197. (minha fraqueza).
945
RIMBAUD, 2002, p. 197. Lêdo Ivo traduz assim: “Minha saúde ficou ameaçada. Surgia o terror.
Passava dormindo vários dias e, acordado, continuava os mais tristes sonhos” (RIMBAUD, 1982, p. 68).
946
RIMBAUD, 2002, p. 197. A tradução é de Lêdo Ivo: “a loucura que leva ao hospício” (RIMBAUD, 1982,
p. 68).
947
RIMBAUD, 2002, p. 197. (distrair os encantamentos reunidos).
948
RIMBAUD, 2002, p. 198. (erguer-se a cruz consoladora).
949
RIMBAUD, 2002, p. 198. (saudar a beleza). É muito expressiva a diferença entre a perspectiva do
passado, em que o sujeito se coloca contra a beleza e a justiça, como se vê no primeiro texto de Une
saison en enfer, e este final de “Alchimie du verbe”. Do mesmo modo, ressalta a diferença entre o ângulo
de visão deste poema e o que se vê no início de “Le bateau ivre”. Enquanto, neste, fala-se na experiência
da dispersão (“L’eau verte pénétra ma coque de sapin / Et (...) / Me lava, dispersant gouvernail et
grappin”) (R
IMBAUD, 2002, p. 123) (“A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então / (...) / Lavou-
me, dispersando a fateixa e o timão.” (RIMBAUD, 1995, p. 203), do abandono do mundo conhecido, no
outro, trata-se de ir ao encontro, ainda no mar (“Sur la mer, que j’amais comme si elle eût dû me laver
d’une souillure, je voyais se lever la croix consolatrice”) (R
IMBAUD, 2002, p. 197-198) (Sobre o mar, que
São dignos de nota, entre os poemas de Une saison en enfer, os momentos em
que o sujeito imagina a possibilidade de adquirir uma nova consciência, uma nova
razão, que lhe permitiria reverter a sua condição, mudar o seu caminho. Em “Nuit de
l’enfer”, afirma-se o vislumbre da conversão: “J’avais entrevu la conversion au bien et
au bonheur, le salut”
950
. É uma compreensão desta possibilidade o que daria ao réprobo
o ensejo para se transformar, em pensamento e em ação, como se vê em “Mauvais
sang”: “La raison m’est née. Le monde est bon. Je bénirai la vie. J’aimerais mes
frères”
951
. Decidido a abandonar o que o afastaria da noção de homem que o catolicismo
idealiza, o poeta se mostra disposto a dar o passo essencial para o encontro de uma
pureza perdida: “Sans doute la débauche est bête, le vice est bête; il faut jeter la
pourriture à l’écart”
952
.
Em certa passagem do mesmo “Mauvais sang”, é o amor divino, a se elevar “du
navire sauveur”
953
, através de um “chant raisonnable des anges”
954
, o que se manifesta
como o que poderia dar ao sujeito uma nova vida. À medida que se rejeita o que se
passa a considerar erros, associados a falsos ideais, a quimeras, restaria aceitar este
amor, imaginado como o caminho para a verdadeira sabedoria: “L’amour divin seul
octroie les clefs de la science. Je vois que la nature n’est qu’un spetacle de bonté. Adieu
chimères, idéals, erreurs
955
.
amava como se fosse lavar-me de uma mancha aviltante, via erguer-se a cruz consoladora” (RIMBAUD,
1982, p. 69), do mais conhecido símbolo do cristianismo.
950
RIMBAUD, 2002, p. 185. A tradução é de Lêdo Ivo: “Eu percebera a conversão ao bem e à felicidade, a
salvação” (R
IMBAUD, 1982, p. 55).
951
RIMBAUD, 2002, p. 183. A tradução é de Lêdo Ivo: “A razão nasceu em mim. O mundo é bom.
Abençoarei a vida. Amarei meus irmãos” (RIMBAUD, 1982, p. 53).
952
RIMBAUD, 2002, p. 183. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Sem dúvida, a devassidão é estúpida, o vício é
estúpido; é preciso jogar de lado a podridão” (RIMBAUD, 1982, p. 52).
953
RIMBAUD, 2002, p. 183. (do navio salvador).
954
RIMBAUD, 2002, p. 183. (canto acertado dos anjos).
955
RIMBAUD, 2002, p. 183. Mário Cesariny traduz assim: “Só o amor divino outorga as chaves da ciência.
Vejo que a natureza não é senão espectáculo de bondade. Adeus quimeras, erros, ideais!” (RIMBAUD,
2007, p. 127).
Outros trechos de Une saison en enfer ainda podem esclarecer, antes de se
passar para o próximo livro, o que está a acontecer com o sujeito dos textos do volume.
Em “Nuit de l’enfer”, ressalta a consciência de que o inferno não faz parte da realidade
dos pagãos (“L’enfer ne peut attaquer les païens”
956
), ou seja, a certeza de que é preciso
acreditar no inferno para sentir as suas penas: “Je me crois en enfer, donc j’y suis”
957
.
Tal esclarecimento, certamente, poderia fornecer as chaves para uma sorte de liberdade,
para uma espécie de autonomia, como se fosse uma luz a dissipar as trevas de uma
crença obscurantista.
No mesmo momento em que se aventa essa possibilidade, entretanto, afirma-se a
sua interdição. O poeta, quando enfraquecido, debilitado pelas torturas que
acompanhariam o desregramento, encontra-se sem poderes para se libertar da educação
católica, dos valores de sua família: “Parents, vous avez fait mon malheur et vous avez
fait le vôtre
958
. Sua perspectiva, como se reconhece em “Mauvais sang”, não poderia,
neste estado em que ele se encontra, ultrapassar os limites do mundo conhecido: “Je ne
me souviens pas plus loin que cette terre-ci et le christianisme”
959
.
Hugo Friedrich é quem sugere que, no “carnet de damné”, o que, na poesia de
Rimbaud, havia começado como revolta, impulsionado por uma “fome desmedida”
960
,
de liberdade, de independência, de autonomia, passaria a ser submetido ao “martírio de
não poder escapar à coação da herança cristã”
961
. O sujeito dos textos do livro não
poderia se livrar do fato de que a sua oposição, a sua indignação contra os poderes
956
RIMBAUD, 2002, p. 185. (O inferno não pode atacar os pagãos).
957
RIMBAUD, 2002, p. 185. A tradução é de Ivo Barros: “Eu me creio no inferno, logo estou nele”
(RIMBAUD, 2007, p. 147).
958
RIMBAUD, 2002, p. 185. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Pais, fizestes a minha desgraça, e também a vossa”
(R
IMBAUD, 1982, p. 55).
959
RIMBAUD, 2002, p. 179. A tradução é de Lêdo Ivo: “Não me lembro de nada que ultrapasse esta terra e
o cristianismo” (RIMBAUD, 1982, p. 48).
960
Vale a pena completar a citação, com a transcrição do trecho em que a expressão aparece: “O mais
duro obstáculo ao mundo foi, para ele, a herança cristã, que não saciava sua fome desmedida do supra-
real e lhe aparecia limitada, como toda coisa terrena” (F
RIEDRICH, 1991, p. 69).
961
FRIEDRICH, 1991, p. 67.
instituídos, seria uma daquelas “que ficam sob o domínio justamente daquilo contra o
qual se insurgem”
962
.
Em “L’impossible”, de maneira significativa, associa-se a sonhada possibilidade
de uma fuga do Ocidente, em direção ao Oriente, onde se encontraria “la sagesse
première et éternelle”
963
, a um “rêve de paresse grossière”
964
. O poeta reconhece, por
meio do imaginado diálogo com as vozes de outros, “les gens d’Église”
965
, que o seu
sonho de réprobo, o de encontrar algo como “la patrie primitive”
966
, não seria senão um
sonho gerado no seio dos valores do Ocidente, em que se cria a fantasia do Éden, o
paraíso cristão.
O desejo de fuga, presente em tantos outros textos do autor, não deixa de existir,
também aqui, em Une saison en enfer. No livro, são patentes os momentos em que o
poeta expressa o seu desprezo pelos valores da tradição em que se formou. Em
“L’éclair”, tem-se um trecho em que ressalta a afirmação de que teria sido perversa a
educação de sua infância, cuja associação com os rituais da igreja é sugerida através da
imagem de “l’odeur de l’encens”
967
: “Je reconnais là ma sale éducation d’enfance”
968
.
Não conseguindo escapar dos constrangimentos do espaço limitado em que
nasceu, o qual se configura como o lugar de origem de uma raça inferior, incapaz para a
revolta (“Il m’est bien évident que j’ai toujours été race inférieure. Je ne puis
comprendre la révolte”
969
), restaria ao sujeito, em grande parte dos momentos do livro,
entretanto, uma agitação que acabaria apenas por ferir a ele mesmo, o qual se torna
vítima de sua própria fraqueza. É esta, aumentada, na mesma proporção, mas em
962
FRIEDRICH, 1991, p. 67.
963
RIMBAUD, 2002, p. 200. (a sabedoria primeira e eterna).
964
RIMBAUD, 2002, p. 200. (sonho de preguiça grosseira).
965
RIMBAUD, 2002, p. 200. (os chefes da Igreja).
966
RIMBAUD, 2002, p. 200. (a pátria primitiva).
967
RIMBAUD, 2002, p. 201. (o odor do incenso).
968
RIMBAUD, 2002, p. 202. A tradução é de Lêdo Ivo: “Reconheço, ali, a sórdida educação que recebi na
infância” (RIMBAUD, 1982, p. 73).
969
RIMBAUD, 2002, p. 179. Ivo Barroso traduz assim: “É de todo evidente que sempre fui raça inferior.
Não consigo compreender a revolta” (R
IMBAUD, 2007, p. 135).
sentido inverso, ao da força não menos do que extraordinária que o sujeito gostaria de
ter, o que o lança ao chão, impedindo qualquer elevação, qualquer libertação ou
ampliação da consciência, para além do universo familiar, cristão e restritivo, sob cuja
opressão, diz-se, em “Nuit de l’enfer”: “Je suis esclave de mon baptême”
970
.
A primeira diferença que se nota entre o conjunto de textos que compõem
Illuminations e os poemas de Une saison en enfer é a ausência, no primeiro, do drama
concentrado em uma unidade subjetiva, a qual permaneceria, no segundo dos livros,
ainda que em meio à falta de coesão entre impulsos diversos e contraditórios. Em
muitos dos textos da obra final de Rimbaud, predomina uma sorte de indeterminação
generalizada, que corresponderia ao princípio de uma nova sabedoria, de uma nova
razão, bastante distante da razão católica, a que se recorria, no livro anterior, como
instrumento para a salvação.
Em Illuminations, a angústia, a fraqueza, a impressão de que seria impossível
escapar dos valores e das formas do mundo conhecido, cederiam espaço para um
impulso de maior vitalidade, o qual implicaria a retomada da tarefa a que se tinha
proposto o poeta, sobretudo, nas cartas ditas do vidente. Agora, não só os sujeitos dos
textos, mas as imagens, fantásticas, que neles se descortinam, refletem a disposição para
a dissipação, para o excesso. Renova-se o objetivo de se cumprir aquela “promesse
surhumaine”
971
, que se vê em “Matinée d’ivresse”, ecoando, como eu já dizia, no
primeiro capítulo do trabalho, o antigo projeto do desregramento: “cette promesse, cette
démence!”
972
. Mais uma vez, então, o que se tem em vista volta a ser o encontro do que
não se conhece, como “l’oeuvre inouïe”
973
e “le corps merveilleux”
974
, objetos presentes
naquele último poema, que se assemelham a muitos outros, no universo do livro.
970
RIMBAUD, 2002, p. 185. (Sou escravo do meu batismo).
971
RIMBAUD, 2002, p. 218. (promessa sobre-humana).
972
RIMBAUD, 2002, p. 218. (esta promessa, esta demência!).
973
RIMBAUD, 2002, p. 217. (a obra inaudita).
Em que pese a esta dinâmica própria, que se pode considerar a tônica geral das
composições do conjunto, nas quais se retoma a força para a ascensão ao desconhecido,
entretanto, podem-se localizar, em alguns pontos específicos do volume, um contraste
entre espaços e experiências de diferente teor. Seriam estes os momentos em que se
identificariam estados opostos aos que ensejam o movimento de elevação, de
transcendência em relação ao mundo conhecido e de ampliação da consciência.
Em alguns poemas, tais estados não seriam mais do que breves referências à
conservação dos lugares comuns da vida, cuja esterilidade é acentuada. Seria isto o que
se veria, por exemplo, no início de “Conte”, quando se faz referência à vergonha do
príncipe (“Un Prince était vexé”
975
), ocupado em aperfeiçoar “générosités vulgaires”
976
,
quando, por contraste, o seu desejo seria o de encontrar “la vérité, l’heure du désir et de
la satisfaction essentiels”
977
. A mesma realidade, apática, é sugerida no final da primeira
parte de “Enfance”, quando se menciona algo que lembra um ambiente familiar,
marcado pelo tédio: “Quel ennui, l’heure du ‘cher corps’ et ‘cher coeur’”
978
. Trata-se,
em ambas as passagens, de momentos vinculados à ausência do movimento de
transformação, à ausência de vitalidade, sem o que se conservaria a vulgaridade da vida
comum e a mediocridade da experiência pessoal.
No poema que abre o livro, “Après le déluge”, o último parágrafo indica,
justamente, a vivência do tédio, que se relaciona ao fim dos dilúvios, os quais são
apontados como movimentos de renovação. O desaparecimento das chuvas torrenciais,
que implicaria a restituição de certo apaziguamento, é associado à impossibilidade de se
ter acesso ao que não se conhece, a uma sabedoria que poderia ser transmitida por uma
974
RIMBAUD, 2002, p. 217. (o corpo maravilhoso).
975
RIMBAUD, 2002, p. 211. Lêdo Ivo traduz assim: “Um Príncipe se envergonhava” (RIMBAUD, 1982, p.
86).
976
RIMBAUD, 2002, p. 211. (generosidades vulgares).
977
RIMBAUD, 2002, p. 212. (a verdade, a hora do desejo e da satisfação essenciais).
978
RIMBAUD, 2002, p. 209. Eis a versão de Ivo Barroso: “Que tédio, a hora do ‘caro corpo’ e do ‘caro
coração’” (R
IMBAUD, 2007, p. 207).
figura que surge, no texto, como uma rainha, uma feiticeira, imagens que associam a
magnanimidade, o poder e a magia: “Car depuis q’ils se sont dissipés, (...) c’est un
ennui! et la Reine, la Sorcière qui allume sa braise dans le pot de terre, ne voudra jamais
nous raconter ce qu’elle sait, et que nous ignorons”
979
.
No caso de uma composição como essa, observa-se que não se trata de uma
experiência pessoal, como a que se relatava em Une saison en enfer, em que a presença
da unidade subjetiva circunscrevia mais claramente a tensão entre a ascensão e a queda.
Está-se, aqui, no âmbito daquela sorte de poesia objetiva, a que me referi, no capítulo
anterior, ao me remeter a uma colocação da segunda das cartas ditas do vidente. O que
importa perceber, neste ponto, entretanto, não é esta qualidade, mas como se configura a
oposição entre dois distintos momentos, um primeiro, marcado por certa animação, em
que se veriam “les fleurs qui regardaient”
980
, “les merveilleuses images”
981
, “l’éclatante
giboulée”
982
, e um outro, no qual se interdita a possibilidade de conhecimento, sem a
qual resta apenas o vazio do tédio. É esta oposição o que indicaria a natureza e as
consequências tanto do movimento ascensional quanto do processo existencial que se
firma pela sua ausência.
Outro poema do conjunto, “Angoisse”, merece uma análise mais detalhada. Na
composição, a tensão, entre a possibilidade da ascensão, equivalente ao processo de
uma vida mais intensa, e a queda, ou a permanência em um lugar comum insatisfatório,
mostra-se mais evidente. O texto tem alguma obscuridade, a qual, contudo, não impede
que se observem algumas de suas direções
983
. No primeiro parágrafo, lê-se: “Se peut-il
979
RIMBAUD, 2002, p. 208. A tradução é de Mário Cesariny: “Pois, desde que êles se foram, (...) é o
tédio! E a Rainha, a Feiticeira que esperta o seu lume na frágua de barro, nunca quererá contar-nos o que
sabe e nós ignoramos”. (R
IMBAUD, 2007, p. 11).
980
RIMBAUD, 2002, p. 207. (as flores que olhavam).
981
RIMBAUD, 2002, p. 207. (as maravilhosas imagens).
982
RIMBAUD, 2002, p. 207. (o cintilante aguaceiro).
983
Como se verá, os resultados a que chego, em minha interpretação, são um pouco contrários ao que
afirma Hugo Friedrich sobre o poema, ressaltando o seu caráter de “poesia (...) desumanizada”: “O que se
percebe [em “Angoisse”] é uma intensidade indeterminável, mesclada com toda a sorte de elementos, de
qu’Elle me fasse pardonner les ambitions continuellement écrasées, – qu’une fin aisée
répare les âges d’indigence, – qu’un jour de succès nous endorme sur la honte de notre
inhabileté fatale?”
984
.
Como está claro, trata-se de uma pergunta, em que se destaca a referência a uma
figura feminina, que parece poder atuar sobre o sujeito do enunciado. Esta atuação se
apresenta como podendo ser de modo a fazê-lo perdoar a si mesmo, desculpar-se por
não levar a cabo a conquista de suas próprias ambições. Sob o signo da
condescendência, fala-se em uma compensação, em uma reparação, relacionada a um
estado de comodismo, o qual, apontando para a facilidade, para a adequação, seria
sobreposto ao sofrimento da indigência. Em seguida, refere-se um êxito, não
impulsionador, como seria de se esperar, mas adormecedor, cujo efeito seria o de
escamotear uma vergonhosa falta de habilidade.
A este primeiro parágrafo, marcado por uma sugestão do abandono da ambição,
pela insinuação de que se substitua o sofrimento, a carência, por uma situação
confortável, embora menos vital, opõe-se um segundo, que aparece entre parênteses:
“(Ô palmes! diamant! – Amour! force! – plus haut que toutes joies et gloires! – de
toutes façons, partout, – Démon, dieu, – Jeunesse de cet être-ci; moi!)”
985
. O contraste
não poderia ser mais evidente. À ausência de ambição, ao estado de dormência, que se
sugere na passagem anterior, opõe-se o anseio por uma vitória sem medida, maior, mais
alta do que alegrias e glórias comuns, irredutível às ideias do bem e do mal, sem limites,
esperança, ruína, júbilo, trejeito, dúvida – tudo dito rapidamente e rapidamente superado de novo, até que
o texto desemboca em feridas, suplícios, torturas, dos quais não se sabe o que querem dizer, nem de onde
nascem. (...) Mesmo se com a emoção se entenda a angústia, esta está tão livre dos contornos normais da
vida sentimental que já não pode levar o nome humano de ‘angústia’” (F
RIEDRICH, 1991, p. 70). (Grifo do
autor).
984
RIMBAUD, 2002, p. 231. A tradução é de Lêdo Ivo: “Será possível que Ela me faça perdoar as
ambições continuamente esmagadas, – que um fim cômodo compense as idades de indigência, – que um
dia de êxito nos adormeça sobre a vergonha de nossa fatal inabilidade?” (R
IMBAUD, 1982, p. 117).
985
RIMBAUD, 2002, p. 231. Mário Cesariny traduz assim: “(Oh palmas! diamante! – Amor, fôrça! – mais
alto que todas as alegrias e glórias! – de todas as maneiras, em todo o lado – demónio, deus, – juventude
deste ser; eu!)” (R
IMBAUD, 2007, p. 77).
sem forma definida. Ainda que espremido em um terreno exíguo, revela-se, então, o
desejo de ascensão, o desejo do sujeito de, em busca do amor, da força, da juventude,
encontrar a si mesmo.
O segundo parágrafo da composição não se encontra entre parênteses por acaso.
Na sequência do texto, volta a pergunta, com a qual se imagina outra escamoteação,
através do que se confundiria algo essencial, e mais necessário, com algo menos
fundamental, e, por isso mesmo, mais passível de ser louvado, não pelo sujeito do
enunciado, mas por uma coletividade indeterminada, que parece figurar o mundo
comum. Para se entender a pergunta, é preciso sobrepor a ela o início da anterior, o “se
peut-il”, que, aqui, encontra-se em elipse: “Que des accidents de féerie scientifique et
des mouvements de fraternité sociale soient chéris comme restitution progressive de la
franchise première?...”
986
.
Na continuação do poema, tem-se uma segunda referência à personagem
feminina. Dessa vez, ela aparece designada como uma vampira, imagem de uma forma
de castração
987
, que se pode pensar ser a de um tipo de vida, a mesma do parágrafo
inicial, a qual se mostra antagonista em relação ao desejo mais íntimo daquele que fala.
É esta figura, que faz de sua ocupação sugar o sangue dos vivos, extrair-lhes a
vitalidade, quem tiraria do sujeito toda a potência de insubmissão, tornando-o delicado,
gentil. É ela quem ordena que o sujeito do enunciado se satisfaça com o que tem, que se
divirta com o pouco que lhe resta, o que, afinal, não seria muito diferente do que
condená-lo a uma sorte de estado de idiotia: “Mais la Vampire qui nous rend gentils
986
RIMBAUD, 2002, p. 231. A tradução é de Lêdo Ivo: “Que acidentes de magia científica e movimentos
de fraternidade social sejam prezados como restituição progressiva da franqueza primeira?...” (R
IMBAUD,
1982, p. 117).
987
Segundo Ivo Barroso, é Jean-Luc Steinmetz quem sugere a relação entre tal figura e a castração, ao
reconhecer, nela, “a castradora imagem da mãe” (In: R
IMBAUD, 2007, p. 395).
commande que nous nous amusions avec ce qu’elle nous laisse, ou qu’autrement nous
soyons plus drôles”
988
.
Faltando, embora, um parágrafo para o término do texto, já é possível
compreender do que se trata. A angústia, que dá título à composição, manifesta-se como
inquietação diante da estreiteza do espaço que é dado ao sujeito habitar. Sob o domínio
das condições de vida que aqui se revelam, haveria, forçosamente, uma redução de todo
o desejo. Neste espaço, não se deve pensar em ampliação, em acesso a outras esferas da
existência, mas, antes, conformar-se, adequar-se, submeter-se ao jugo, o que, para o
sujeito em questão, não pode significar senão o aniquilamento.
Como em nenhum outro texto de Illuminations, é a resistência à ascensão, como
se vê, o que se manifesta em “Angoisse”. Vislumbra-se, no poema, a presença de uma
pressão que impediria qualquer elevação, forçando o abandono ou a diminuição de todo
anseio. Quando se tem isto em vista, importaria menos que, no último parágrafo da
composição, o sujeito voltasse a mostrar o seu inconformismo, a sua disposição para o
combate, contradizendo a limitação que se lhe apresentava como forma de vida da qual
não se poderia escapar: “Rouler aux blessures, par l’air lassant et la mer; aux supplices,
par le silence des eaux et de l’air meurtriers; aux tortures qui rient, dans leur silence
atrocement houleux”
989
.
Antes de passar à comparação entre Sá-Carneiro e Rimbaud, no que diz respeito
à ideia da queda, valeria a pena, ainda, comentar algo sobre “Veillées”, poema
composto de três partes, das quais se destaca a diferença entre a primeira, que sugere o
repouso, e as duas outras, que indicam o movimento, mais de acordo com o título do
988
RIMBAUD, 2002, p. 231. Ivo Barroso traduz assim: “Mas a Vampira que nos faz gentis ordena que nos
divirtamos com o quanto nos deixa, ou então que sejamos ainda mais palermas” (RIMBAUD, 2007, p.
269).
989
RIMBAUD, 2002, p. 231. A tradução é de Ivo Barroso: “Rolar nas feridas, no ar exausto e no mar; nos
suplícios, pelo silêncio das águas e do ar assassinos; nas torturas que riem, em seu silêncio atrozmente
encrespado” (R
IMBAUD, 2007, p. 269).
texto, a apontar para o estado de quem está desperto. O contraste entre estes dois
estados, o do repouso e o do movimento, seria, nesse caso, o que poderia configurar não
exatamente uma tensão entre a ascensão e a queda, mas o caráter de necessidade da
própria tensão, sem a qual não haveria impulso em direção ao desconhecido.
No âmbito da discussão que venho levando a cabo, neste capítulo, o que mais
importaria perceber seria como se qualifica a primeira parte do poema, em contraste
com as outras duas. Nesta primeira parte, tem-se uma enumeração de elementos, aos
quais se relacionam atributos que, curiosamente, colocam-nos como substâncias em
equilíbrio, como se estivessem postadas entre o excesso e a míngua, para utilizar os
termos que dão título ao trabalho. Veja-se o início do poema:
C’est le repos éclairé, ni fièvre ni langueur, sur le lit ou sur le pré.
C’est l’ami ni ardent ni faible. L’ami.
C’est l’aimée ni tourmentante ni tourmentée. L’aimée.
L’air et le monde point cherchés. La vie.
– Était-ce donc ceci?
– Et le rêve fraîchit.
990
Na primeira linha, como se pode notar, é o repouso o que se coloca entre a febre
e o langor. A oposição entre o que poderia ser tomado como um desejo ardente, uma
ânsia de ter, de possuir, por um lado, e a fraqueza, a apatia, por outro, parece sofrer
como que uma anulação. Encontra-se uma espécie de síntese, cujo espaço seria o da
indiferença, o de um estado de tranquilidade, para o qual, significativamente, não
importa o lugar sobre o qual se coloque o sujeito.
990
RIMBAUD, 2002, p. 226. A maior parte das versões que consultei, para este texto, apresenta
“iluminado” como tradução para “éclairé”. A meu ver, esta primeira forma de iluminação não seria a
mesma que aparece na segunda parte da composição, como “éclairage”. Prefiro pensar a primeira palavra
com o sentido de algo que é tornado compreensível. A versão que transcrevo é a de Ivo Barroso: “É o
repouso iluminado, nem febre nem langor, sobre o leito ou sobre o prado. É o amigo nem ardente nem
fraco. O amigo. É a amada nem atormentante nem atormentada. A amada. O ar e o mundo não buscados.
A vida. – O caso era esse? – E o sonho arrefece” (R
IMBAUD, 2007, p. 253).
Na frase seguinte, a referência é ao amigo, não a um em específico, mas à ideia
do amigo, a qual se concebe, mais uma vez, a partir da anulação da diferença, da
ausência da predicação. Em nova síntese, recusa-se a mesma oposição do período
anterior, entre o ímpeto, o ardor, de um lado, e o abatimento, a falta de intensidade, do
outro. A estrutura se repete, ainda, na terceira linha do poema, quando se fala na amada.
Esta, em contradição com a ideia de potência que se associa ao amor, em outros textos
do livro, aparece desprovida da capacidade de causar qualquer incômodo, assim como
de se incomodar, de se afligir. Salienta-se, ainda mais, a indiferença, que poderia ser
entendida, tomando um de seus sentidos, como o estado de quem não se deixa conduzir
por sentimentos arrebatadores, como o próprio amor, o ódio ou a raiva.
É a partir dessa síntese entre opostos, da qual restaria o equilíbrio, um todo
congruente, mas sem vitalidade, que se enuncia, então, o fim de uma demanda, sugerido
na quarta linha da composição. Descortina-se um estado em que, ao que tudo indica,
não são objetos específicos que deixariam de ser procurados, como o ar e o mundo a
que o texto se refere, mas o próprio desejo o que deixaria de existir. Ao se apagarem
contradições e tensões, seriam os anseios, os impulsos o que perderia a sua razão de ser,
não restando qualquer exigência ou necessidade de se ir além do que se conhece, do
espaço de uma vida, mediocremente, igual a si mesma.
Ao final desta primeira parte do poema, ainda se tem uma pergunta, a qual
parece refletir uma decepção do sujeito, como se uma série de projetos, desejos,
inquietações, vivenciados no passado, agora, fossem resumidos a algo sem o menor
interesse. A resposta à interrogação, que aparece em seguida, não seria bem uma
resposta, mas uma constatação. A vida, tal como ela se apresenta, limitada e restritiva,
seria o que sobra, a partir do momento em que o sonho arrefece, esgotando não só a
fantasia, mas, também, todo o anseio e toda a esperança.
Sem a tensão entre o excesso e a falta, sem a desmedida, constituinte desta
relação, o que ficaria seria a resignação, a morte em vida, o tédio. A justificar o espírito
que preside as Illuminations, as partes seguintes do poema farão valer o movimento, o
impulso do sonho, a procura de uma nova harmonia. É quando se abandona o repouso,
esterilizante, que se abre o caminho para a imersão na vertigem, na experiência do
delírio, do desregramento:
L’éclairage revient à l’arbre de bâtisse. Des deux extrémités de la salle, décors
quelconques, des élévations harmoniques se joignent. (...) Rêve intense et rapide
de groupes sentimentaux avec des êtres de tous les caractères parmi toutes les
apparences.
991
4. Para a comparação entre os momentos em que se daria forma a algum tipo de
queda, em Sá-Carneiro e em Rimbaud, penso ser interessante começar com uma
passagem retirada de uma carta do autor português, assinada do último dia de 1912,
quando o poeta se encontrava em Paris, para a sua primeira estada mais prolongada:
É que no instante atual atravesso um período de anestesiamento que me impede
de explanar idéias. Este anestesiamento resume-se em levar uma vida oca, inerte,
humilhante – e doce contudo. (...) Consigo expulsar a alma. E a vida não me dói.
Acordo momentos, mas logo ergo os lençóis sobre a cabeça e de novo
adormeço.
992
A passagem daria margem à discussão de alguns pontos importantes. Destaca-se,
antes de tudo, a referência a um “anestesiamento”, o qual tornaria o poeta insensível à
própria dor, como se dela fosse possível se afastar. Associa-se este estado, esta ausência
de dor, à possibilidade de se levar uma vida “doce”, despreocupada, tranquila, a qual,
991
RIMBAUD, 2002, p. 227. A tradução é de Lêdo Ivo: “A iluminação volta à árvore da obra em
construção. Das duas extremidades da sala, cenários quaisquer, elevações harmônicas se juntam. (...)
Sonho intenso e rápido de grupos sentimentais com criaturas de todos os caracteres entre todas as
aparências” (R
IMBAUD, 1982, p. 108).
992
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 730. (Grifo do autor).
entretanto, equivaleria a uma sensação de inércia, de vazio. O sujeito, no mesmo
momento em que deixaria de sofrer, deixaria, também, de experimentar, na vida,
alguma intensidade, algum movimento. Trata-se de um estado que seria mais do que o
sono, como uma dormência em que cessa toda atividade, todo anseio, toda busca.
A partir deste arranjo, observa-se a concepção de que existiria um sofrimento
necessário para que haja a criação, para que tenha lugar a transformação do sujeito, o
ultrapassar de seus próprios limites. Sem ele, vivencia-se uma forte restrição, que
impede o poeta até mesmo de “explanar” suas “idéias”.
Em Rimbaud, acontece algo semelhante. Concebe-se uma dor inerente ao
processo por meio do qual o sujeito chegaria a se transfigurar, quando se experimenta,
nas palavras de Georges Poulet, “uma dissolução e uma recriação total do ser, no
mesmo momento”
993
. Em alguns textos, fala-se em infortúnio, como o que se relaciona
à sede e à fome do poeta, à sua diferença, ao seu desejo revoltado, como se vê em
“Fêtes de la faim”: “Mes faims, c’est les bouts d’air noire; / L’azur sonneur; / – C’est
l’estomac qui me tire. / C’est le malheur”
994
. Em outros, trata-se da dor que
acompanharia o despedaçamento, a perda da identidade, a qual se manifesta como algo
negativo, sobretudo, em Une saison en enfer, onde se vislumbra, através da esperança
da salvação, a possibilidade de alívio das penas provocadas pelo desregramento.
O que importa notar, neste ponto, entretanto, não é, propriamente, a concepção
de uma dor essencial ao artista, aliás, mencionada, brevemente, no primeiro capítulo do
trabalho. Mais do que isso, interessa observar como, em muitos momentos, é em relação
a este sofrimento que se marca a recorrência de um movimento de capitulação, de
desistência, de renúncia, como acontece, na obra do poeta francês, em alguns dos
poemas de 1872, quando se nota, como se viu mais acima, uma rendição aos poderes
993
POULET, 1980, p. 100. (“une dissolution et une recréation totale de l’être dans le même moment”).
994
RIMBAUD, 2002, p. 163. A tradução é de Ivo Barroso: “Minhas fomes, são o ar negro; / O azul sineiro;
/ O estômago é que me instiga. / É o desespero”. (R
IMBAUD, 1995, p. 249).
familiares e sociais, ao lugar comum, onde cessa o impulso para a experiência
extraordinária. Em Sá-Carneiro, são ainda mais frequentes estes momentos, os quais,
como em Rimbaud, parecem ser acompanhados de uma reflexão, implícita ou explícita,
tanto sobre o ideal que anima o poeta quanto sobre a sua capacidade, ou incapacidade,
de realizá-lo.
Em ambas as obras, em passos nos quais se insinua esta reflexão, não se mostra
estranha a emergência de uma dúvida a respeito do real valor daquilo que constituiria o
objetivo do sujeito. Trata-se dos momentos em que se coloca sob suspeita a própria
fantasia do poeta, da qual se teria feito um instrumento para o embate contra a realidade,
uma força para a superação de seus limites. Nestas passagens, frequentemente, ao invés
de ser louvado e ardentemente desejado, é o ideal o que se descortina como um objeto
ilusório, artificial, ao menos, no que diz respeito à possibilidade de ser atingido.
Associa-se, então, a fraqueza, consequência da percepção da distância a separar o que
almeja o poeta da sua capacidade de realização, e a dúvida quanto ao caráter de
concretude do ideal que se poderia gerar, no seio de um processo em que se misturariam
o delírio e a fantasia.
Em Rimbaud, não há nada tão consistente, neste sentido, como o conjunto de
textos de Une saison en enfer. É ali que o sujeito pensa e pesa os atos do passado, cujos
objetivos, assim como os métodos escolhidos para alcançá-los, são colocados em
questão, e mesmo negados, em um momento de grande sofrimento, quando o poeta
sente estar imerso no fogo do inferno, a pagar pelos seus pecados. Insuportável, será
este sofrimento, relacionado à debilidade física e espiritual, o que fará com que o sujeito
dos textos se mostre pronto a abandonar o que, antes, eram suas crenças. Sob uma nova
perspectiva, como se viu, ao longo do capítulo, nega-se o percurso anterior. Recusam-se
os propósitos e os meios para atingi-los, a partir do momento em que tanto uns quanto
os outros são vistos como o que afastaria o sujeito daquilo que, agora, considera-se o
caminho correto a ser percorrido, o único e verdadeiro.
No que diz respeito à obra de Sá-Carneiro, deve-se lembrar, no rumo deste
questionamento, a associação entre os passos em que se vê a tentação do poeta de
abandonar a sua busca, debilitando-se o impulso ascensional, e os momentos em que ele
se volta contra si mesmo, duvidando de sua arte. Nos poemas escritos mais para o fim
da vida, constrangido por sua impotência, imerso em dúvidas com respeito ao seu ideal
(“A escada é suspeita e perigosa: / Alastra-se uma nódoa duvidosa”
995
), o poeta se exibe
como se tivesse atingido a condição mais baixa, inclusive, em relação aos homens
comuns, marcados pela mediania.
Como se viu no primeiro capítulo do trabalho, aproximando-se do fim, o poeta
português passa a destinar a si mesmo uma forte ironia, que atinge a sua produção
literária, considerada, agora, uma “fantochada”
996
, ou seja, uma ação ridícula, uma
encenação. Afastadas de um modelo ideal que se revela inatingível, as composições do
poeta passam a ser vistas conforme o modelo que se constitui a respeito de “Aquele
outro”, do qual se fala em carta a Pessoa. Trata-se não apenas de um poema
“estapafúrdio e torcido”, termos que remetem à excentricidade, à incoerência, mas de
um “estaferminho”
997
, isto é, algo que causa, apenas, o estorvo.
Nas obras de ambos os autores, é, frequentemente, quando se manifesta como
algo insuportável a tensão entre a meta e a sua concretização, a qual pode reverberar na
sugestão do caráter ilusório do ideal, que se tem a expressão do abatimento, da
debilidade do poeta. As cartas do escritor português, em particular, são abundantes nas
referências à desistência, com a qual se projeta a desvalorização do sujeito.
995
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 128.
996
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 948.
997
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 952.
Na correspondência que se data de novembro de 1912, o autor afirma a falta de
crença em si mesmo, mostrando-se disposto a “sepultar”, dentro de si, “ambições e
orgulhos”
998
. Em outra correspondência, de fevereiro de 1913, ao comentar um poema,
o escritor associa a ilusão à sensação de poder “ainda ascender num espasmo de azul”, e
a “desilusão” à própria “queda”
999
. Em outra, ainda, mais para o fim da vida, fica
evidente o desejo do poeta de ser como toda a gente, afastando-se de seu ideal: “Hoje
apenas, juro-lhe, se me fosse possível, apagaria o oiro...”
1000
.
Imagem desta espécie de desistência, o desejo de dormir, recorrente, em Sá-
Carneiro, como se viu, ao longo do capítulo, seria o oposto de um impulso fundamental
para ambos os escritores. Quanto a este problema, é digna de nota a afirmação de
George Poulet, quando diz que um dos maiores anseios da poética de Rimbaud seria o
de se poder viver a experiência de uma atenção, de uma excitação que não se
interrompesse, como um despertar que tivesse “o poder de se prolongar
indefinidamente, sem se enfraquecer”
1001
. Tal experiência exigiria uma espécie de
“energia ilimitada”
1002
, a qual, entretanto, seria, em alguns momentos, justamente, o que
falta, dando origem a um estado em que o sujeito como que se esvazia, tornando-se
muito menos do que gostaria de ser.
É neste contexto que se delineia um impulso contrário ao da ascensão, no qual se
observa algo como o que o autor português chamaria, em carta a Fernando Pessoa, de
um “sufocamento de todos os ideais e de todas as ânsias”
1003
. Estes, a partir do
momento em que passam a ser vistos atrelados a objetivos inalcançáveis, tornam-se a
marca de um sujeito frustrado, apenas desejoso de acabar com o seu sofrimento. No seio
998
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 722.
999
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 745.
1000
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 946. (Grifo do autor).
1001
POULET, 1980, p. 87. (“le pouvoir de se prolonger indéfiniment sans fléchir”).
1002
Poulet fala de uma energia que, encontrada na natureza, teria uma essência divina: “l’intervention
d’une énergie illimitée, sise dans la nature, et qui est d’essence divine” (POULET, 1980, p. 92).
1003
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 725.
de um processo que se dá a contrapelo da dinâmica da elevação, às ideias de dispersão,
multiplicação, metamorfose e movimento, opõem-se, então, em ambos os poetas, no
sentido de uma retração, o desejo de ancorar, a ideia de subtração do sujeito (“vivendo
em verdade até hoje só em metade de mim”
1004
), a permanência, a estagnação.
Em carta de 1914, após a sua chegada a Paris, pouco antes da guerra, fica claro
como Sá-Carneiro associa as ânsias, os ideais e o sofrimento ao impulso criativo, o qual,
sem o suporte destes elementos, revela-se como ilusão:
Creia, meu querido Fernando Pessoa, percamos por completo as ilusões: eu toco
o fim – um fim embandeirado, mas em todo o caso um limite. Acabei já – acabei
após a minha chegada aqui. (...) Estados de alma, ânsias, tristezas, ideais,
grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso acabou... Ilusões de
glória, “de espanto” já não existem em mim.
1005
5. A primeira diferença marcante, que se pode perceber quando se comparam as
obras de Sá-Carneiro e de Rimbaud, parece-me ser o fato de que as imagens da queda,
assim como as da ascensão, conforme se observou no capítulo anterior, são mais
presentes entre os textos do autor português do que entre os do francês. Nestes últimos,
como se viu mais acima, embora se possam notar formas de rendição, equivalentes à
aceitação de valores estranhos ao desejo mais íntimo do sujeito, em alguns dos poemas
de 1872, as imagens da destruição, em “Le bateau ivre”, e as referências a um estado de
apatia, em passagens de Illuminations, a ideia da queda se concentra no conjunto das
composições de Une saison en enfer.
Tendo este leque de poemas em vista, e colocando-o frente ao restante da obra
do escritor, destaca-se um embate entre perspectivas de tal modo distintas que a noção
de queda apresentada acaba por assumir diferentes sentidos, escapando às formulações
mais ou menos constantes de Sá-Carneiro. Se, para este autor, a ascensão é, sempre,
1004
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 804.
1005
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 819. (Grifo do autor).
relacionada à arte, à criação, enquanto a queda se manifesta, sobretudo, como retorno ao
mundo comum, ou como certeza da incapacidade de o sujeito se desprender deste
mesmo mundo, o arranjo do outro comporta mais oscilações.
No que diz respeito, em específico, aos movimentos contraditórios do “carnet de
damné”, se, por um lado, ressalta certa valorização do desregramento, do que, a partir
dele, seria possível vivenciar de extraordinário, por outro, não se pode esquecer que a
própria experiência que se relata comporta uma expectativa que, atrelada à ideia de
salvação, não descarta a possibilidade de elevação, ainda que no seio de um conjunto de
valores que o poeta, antes, recusava.
Em um trecho de “L’impossible”, fala-se em uma forma de se alcançar a
sabedoria não através do desregramento, mas por meio de um estado de atenção, o qual,
opondo-se à dormência, relaciona-se à ideia de espírito, concebido, ainda que, no
mesmo texto, em contradição com perspectiva oposta, como manifestação de uma
substância própria para se atingir a salvação: “S’il était bien éveillé toujours à partir de
ce moment, nous serions bientôt à la vérité, qui peut-être nous entoure avec ses anges
pleurant!... (...) – Si’il avait toujours été bien éveillé, je voguerais en pleine
sagesse!...”
1006
. Ao se colocar acerca do espírito, desse modo, o poeta recua sobre uma
determinação anterior, a de deixar de lado uma noção associada ao Ocidente, que o
impediria de seguir um caminho próprio, independente. Não se recusa, entretanto, ao
menos em parte, o objetivo que se formulava, no passado, o de se chegar à sabedoria.
As oscilações presentes em Une saison en enfer, no que diz respeito a uma
mudança de perspectiva, em relação ao que predomina nos outros poemas, apontam
para dois caminhos complementares. Por um lado, declina-se da vivência
transformadora que se propunha em associação ao desregramento dos sentidos. Neste
1006
RIMBAUD, 2002, p. 201. A tradução é de Lêdo Ivo: “Se ele tivesse sempre desperto a partir daquele
momento, cedo atingiríamos a verdade, que talvez nos rodeia com os seus anjos chorando!... (...) – Se ele
sempre tivesse ficado desperto, eu vogaria em plena sabedoria!...” (R
IMBAUD, 1982, p. 72).
caso, tal vivência acaba por receber um sinal negativo, uma vez que a ideia da
destruição do sujeito, relacionada a uma saída do espaço da vida comum, passa a
representar, justamente, a queda, e não mais a ascensão. Por outro lado, imagina-se a
possibilidade de salvação, a qual, em alguns momentos, não parece ser uma simples
renúncia aos desafios de uma tarefa extraordinária, mas algo que implica um acúmulo
de força e a disposição para a resistência, como se vê em “Adieu”, em um trecho que
lembra a provação de Jesus, no deserto: “Point de cantiques: tenir le pas gagné. Dure
nuit! le sang séché fume sur ma face, et je n’ai rien derrière moi, que cet horrible
arbrisseau!...”
1007
.
Se, ao contrário de como eu fiz, ao longo do capítulo, a perspectiva da salvação
não fosse considerada como uma capitulação, o que se teria, no “carnet de damné”,
seria, antes de tudo, uma mudança de rumos. Não haveria, então, na obra de Rimbaud,
uma verdadeira desistência, em relação ao ideal de elevação, embora, tendo em vista o
conjunto dos textos do poeta, como eu tentei demonstrar, seja isto o que se apresenta,
em partes consideráveis de Une saison en enfer. De acordo com este raciocínio, a
possibilidade de que o sujeito dos poemas do escritor francês se disponha a aceitar Deus
como princípio da verdade e do caminho a ser seguido, acabaria por revelar outro modo,
outro método para a ascensão. Daí a inquietação que marca os movimentos oscilatórios
do livro, assim como a intensidade do sofrimento que ali se manifesta.
Em Sá-Carneiro, nos textos em que se nota a mesma percepção negativa do
movimento de transformação do sujeito, ao qual se acrescenta a noção de sofrimento,
implicado no processo, em que se ameaça ou se dissipa a identidade, o que se sugere,
como alternativa, é a renúncia. Ao movimento ascensional se opõe a aceitação da vida
comum, de uma espécie de horizontalidade, a qual representa a acomodação do sujeito,
1007
RIMBAUD, 2002, p. 204. Eis a versão de Lêdo Ivo: “Nada de cânticos! Não arredar o pé do terreno
conquistado. Dura noite! O sangue ressequido fumega no meu rosto, e nada tenho atrás de mim a não ser
este horroroso arbusto!...” (R
IMBAUD, 1982, p. 77).
a sua desistência, não apenas de seu ideal, mas de si mesmo, uma vez que as duas coisas
não se podem separar. Observa-se, então, entre os dois autores, uma fundamental
diferença. Enquanto Rimbaud pode chegar a imaginar, ainda que momentaneamente,
como alternativa ao desregramento, a salvação, que é, também, uma forma de
libertação, de triunfo, o que resta ao escritor português, via de regra, seria voltar-se para
a felicidade da vida em família, a qual, entretanto, não se vislumbra como verdadeira
possibilidade para o poeta, sendo, antes, a marca de sua anulação.
Valeria a pena ressaltar, ainda, antes de encerrar o capítulo, um último aspecto
deste exercício comparativo, o qual me permitirá retomar uma noção apresentada no
início do trabalho. O caso é que, embora Sá-Carneiro não se coloque em uma relação de
dependência com um pensamento cristão, a sua visão de mundo parece tributária
daquela divisão a que me referi anteriormente, citando Victor Hugo e sua concepção de
um homem duplo. Está-se no âmbito de uma separação entre o sublime e o grotesco,
que pode acrescentar algo a respeito das diferenças entre as obras dos dois autores, em
particular, neste momento, a respeito das dinâmicas da ascensão e da queda.
O que importaria notar, aqui, é que, na poética do escritor português, enquanto a
elevação se relaciona à criação da beleza, os momentos associados à queda são, tanto
com mais frequência quanto maior se torna a descrença do poeta em si mesmo, aqueles
em que se manifestam as imagens do que se presta ao riso ou à repulsa. Quando, logo
mais acima, citei o termo “fantochada”, usado pelo autor, em uma carta, com referência
à sua produção, apontava, justamente, para o sentido da associação entre o
rebaixamento do sujeito e a as imagens do disforme, do ridículo.
Mais para o fim da obra do poeta, com efeito, fica evidente o caráter do que
Maria Aliete Galhoz chamaria de um universo “trágico e funambulesco”
1008
, que se
1008
GALHOZ, 1963, p. 125.
estabelece como consequência de uma “tensão devastadora”
1009
, a qual, vinculada à
busca por uma altura nunca atingida, resolve-se através do encontro de uma espécie de
redenção expiatória. Deixando de lado o seu orgulho, o poeta consente em desvelar uma
trajetória pessoal na qual, ao elemento trágico, acrescenta-se o burlesco. Aquele que,
antes, via-se como uma espécie de imperador, sagrado no altar da arte, agora se revela,
inversamente, como figura a mais próxima do que simboliza o palhaço, em que, “à
majestade, substituem-se a chalaça e a irreverência; à soberania, a ausência de toda
autoridade; (...) à vitória, a derrota; aos golpes dados, os golpes recebidos; às cerimônias
as mais sagradas, o ridículo”
1010
.
Em Rimbaud, no que diz respeito ao uso do grotesco, acontece algo
completamente diferente, com a exceção, ainda assim, parcial, dos textos do “carnet de
damné”, em que o poeta se arrepende da sua condição de réprobo. Na obra do escritor
francês, o que causa repugnância é provido de uma força para o acesso ao desconhecido
que não há na beleza, justamente, porque esta se limita pelo crivo da convenção. Nos
poemas do autor, é notória, desde as suas primeiras composições, a força de choque que
têm as imagens repugnantes, as quais se associam ao próprio método que se imagina
para se chegar ao desconhecido.
Nas cartas ditas do vidente, como lembra Matthieu Letourneux, poemas como
“Mes petites amoureuses” (“Pouah! mes salives desséchées, / Roux laideron, / Infectent
encor les tranchées / De ton sein rond!”
1011
) e “Accroupissements” (“Le bonhomme
mijote au feu, bras tordus, lippe / Au ventre: il sent glisser ses cuissses dans le feu (...)
Quelque chose comme un oiseau remue un peu / À son ventre serein comme un
1009
Segundo a autora, trata-se de uma tensão resultante da “inconformidade entre a altura e a potência,
que vem de um desvio nos níveis procurados para a sua satisfação”, uma “tensão devastadora, de
apaziguamento ùnicamente trágico” (G
ALHOZ, 1963, p. 103).
1010
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain, 1988, p. 680.
1011
RIMBAUD, 2002, p. 90. A tradução é de Ivo Barroso: “Minhas salivas derradeiras, / Ruiva coruja, /
Ainda infectam-te as trincheiras / Das mamas sujas.” (R
IMBAUD, 1995, p. 137).
monceau de tripe!”
1012
) insistem nos valores do baixo, no escatológico, no que provoca
o nojo e a repugnância
1013
, dando concreção ao que o estudioso denomina uma “estética
do disforme e do grotesco”
1014
.
Já em uma composição anterior à redação das cartas, como “Vénus
Anadyomène”, o que Ivo Barroso chamaria, em sua tradução, de “bela hediondez”,
assume o lugar do que poderia provocar a ruptura com o gosto convencional, forçando
os limites da percepção que se acomoda, no sentido de fazê-la atravessar as margens em
que se situa. Letourneux diria ser o texto, com sua “visão degradada”
1015
, um bom
exemplo da “estética da paródia”
1016
adotada pelo poeta francês:
Comme d’un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D’une vieille baignoire émerge, lent et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;
Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; les dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l’essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates;
L’échine est un peu rouge, et le tout sent um goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu’il faut voir à la loupe...
Le reins portent deux mots gravés: CLARA VENUS;
– Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
1012
RIMBAUD, 2002, p. 94-95. (O sujeito cozinha ao fogo, braço torcido, beiço / No ventre; ele sente
escorregar suas coxas no fogo (...) Alguma coisa como uma pássaro remexe um pouco / Em seu ventre
sereno como um montão de tripa!).
1013
Leia-se o trecho do estudo de Matthieu Letourneux, que associa os poemas ao conteúdo das cartas, no
que diz respeito à poética que ali se estabelece: “Ces poèmes ne sont pas neutres, ils insistent de façon
obsessionnelle sur les valeurs du bas, convoquant scatologie, vomissements et laideur, illustrant
concrètement cette idée d’un homme s’‘implantant et se cultivant des verrues sur le visage’
(L
ETOURNEUX, 2004, p. 72).
1014
LETOURNEUX, 2004, p. 75. (“une esthétique du laid et du grotesque”).
1015
O autor aponta os modelos dos quais Rimbaud teria feito uso, com o evidente intuito de ultrapassá-
los: “la ‘Vénus anadyomène’ se presente comme une vision dégradée de certains poèmes de Sully
Prudhomme (‘Naissance de Vénus’) ou de Coppée (‘Les dieux sont morts’) (L
ETOURNEUX, 2004, p. 67).
1016
No mesmo trecho, afirma-se a continuidade, na obra futura do poeta, da exploração deste viés
paródico: “Cette esthétique de la parodie va rester par la suite l’un des traits récurrents de son oeuvre
(L
ETOURNEUX, 2004, p. 67).
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.
1017
Nada revela melhor a dimensão desta diferença entre os dois autores, entretanto,
do que uma comparação entre os últimos poemas de Sá-Carneiro e algumas das
composições de Illuminations, as últimas de Rimbaud. Entre estas, pode-se destacar,
dos que ainda não mencionei, no percurso do trabalho, um texto como “Parade”, em que
se veem “des drôles très solides”
1018
, caracterizados por suas “facies déformés, plombés,
blêmis, incendiés”
1019
. São estes seres estranhos, capazes de transformar “le lieu et les
personnnes”
1020
, os que trazem algo novo ao mundo: “Dans des costumes improvisés
avec le goût du mauvais rêve ils jouent des complaintes, des tragédies de malandrins et
de demi-dieux spirituels comme l’histoire ou les religions ne l’ont jamais été”
1021
.
No caso da obra de Sá-Carneiro, o desejo frustrado de ascensão, sem poder se
desprender do conceito que relaciona a arte à elevação e à beleza, ainda que esta seja
uma “beleza errada
1022
, acaba por lançar o sujeito, em particular, no final da vida do
1017
RIMBAUD, 2002, p. 47. (Grifos do autor). A tradução é de Ivo Barroso: “Qual de um verde caixão de
zinco, uma cabeça / Morena de mulher, cabelos emplastados, / Surge de uma banheira antiga, vaga e
avessa, / Com déficits que estão a custo retocados. // Brota após grossa e gorda nuca, as omoplatas /
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce; / Depois a redondez do lombo é que aparece; / A banha sob a
carne espraia em placas chatas; // A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar / Horrendo
estranhamente; há, no mais, que notar / Pormenores que são de examinar-se à lupa... // Nas nádegas
gravou dois nomes: Clara Vênus; / – E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa / Com a bela
hediondez de uma úlcera no ânus. (R
IMBAUD, 1995, p. 81).
1018
RIMBAUD, 2002, p. 212. A tradução é de Lêdo Ivo: “pândegos muito sólidos” (RIMBAUD, 1982, p.
88).
1019
RIMBAUD, 2002, p. 213. Eis a versão de Lêdo Ivo: “fisionomias deformadas, cor de chumbo, lívidas,
incendiadas” (RIMBAUD, 1982, p. 88).
1020
RIMBAUD, 2002, p. 213. (o lugar e as pessoas).
1021
RIMBAUD, 2002, p. 213. Lêdo Ivo traduz assim: “Em trajos improvisados com o gosto do pesadelo,
representam lamentações, tragédia de ladrões e semideuses espirituais como a história ou as religiões
jamais o foram” (R
IMBAUD, 1982, p. 88).
1022
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 767. É em carta a Fernando Pessoa, de abril de 1913, que o poeta fala, pela
primeira vez, nesta “beleza errada”. Alguns anos mais tarde, em 1915, retoma-se a expressão, em uma
passagem que indica o objetivo da obra do autor: “Para mim basta-me a beleza – e mesmo errada,
fundamentalmente errada. Mas beleza: beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos,
convulsa de mil cores – muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e
corpos nus. Medo e sonambulismo, destrambelhos sardônicos cascalhando através de tudo. Foi esta a
mira da minha obra.” (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 894). Em outro trecho da correspondência, associa-se o
erro à própria vida do poeta, ao seu destino, quando ele fala em “Pied-de-nez” como um soneto “sobre o
eterno Erro, astro diretriz” da sua sorte (S
Á-CARNEIRO, 1995, p. 928) (Grifo do autor).
poeta, a um espaço de restrição, em que ele apenas se pode dar ao riso, o qual se mostra
como instrumento para a revelação da condição farsesca de sua trajetória
1023
.
À consciência do caráter artificioso das conquistas do passado se relacionam
imagens que remetem ao contexto de uma espécie de perverso divertimento, adequado a
um sujeito que teria levado a vida como uma sucessão de cambalhotas: “Às
cambalhotas desato, / E salto sobre o piano...”
1024
. Os poemas são apresentados como se
tivessem a sua importância e estatura diminuída, afirmando-se como objetos de quem,
infantilizado, identifica a arte a um recreio. É o que se vê, justamente, em “O recreio”,
do qual transcrevo duas estrofes: “Na minha Alma há um baloiço / Que está sempre a
balouçar – / Balouço à beira dum poço, / Bem difícil de montar... // (...) Se a corda se
parte um dia, / (E já vai estando esgarçada), / Era uma vez a folia: / Morre a criança
afogada...”
1025
. A esta altura, o poeta está a considerar o que escreve como o que se
produz em um estado de “pleno destrambelho”, o qual refletiria, no encontro com a
derrisão, a “desarticulação sarcástica” de sua “alma atual”
1026
.
É frente a um ideal que nunca deixara de ser associado às ideias de elevação, de
sublime, agora desacreditadas, que se desnuda, então, um sujeito rebaixado, grotesco.
São estes os momentos, na obra de Sá-Carneiro, em que, como se viu mais acima,
apresenta-se a figura de um ser “raimoso”, um “balofo arrotando”, um “falso atônito”,
um “bobo presunçoso”, “o cobarde rigoroso”
1027
de “Aquele outro”. O repulsivo, ao
invés de ser arma para a formulação de uma poética que permitiria o contato com o
1023
Em uma nota, no primeiro capítulo do trabalho, citei uma definição de Henry Miller sobre o
monstruoso. Valeria a pena acrescentar, agora, que o autor se refere à esfinge, presença recorrente, na
obra de Sá-Carneiro, como um dos seres monstruosos da mitologia, marcados pela anomalia, pela falta,
pelo excesso, pela inconsistência. Se, em um poema como “Partida”, tais caracteres têm alguma
positividade (“Doido de esfinges o horizonte arde”), como sinal de uma diferença, ligado à experiência
extraordinária, mais para o final da obra do poeta o que chama a atenção é o caráter repulsivo que passa a
revestir a anomalia, presente em uma expressão como “o Esfinge gorda”.
1024
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 115.
1025
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 114.
1026
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 924.
1027
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 130.
desconhecido, ganha funcionalidade quando reveste a confissão de um fracasso, no seio
de uma poesia que nunca deixa de girar em torno do mundo interior do poeta, mesmo
que diminuído ao extremo:
O mundo exterior não me atinge, quase – e, ao mesmo tempo, afastou-se para
muito longe o meu mundo interior. Diminuiu, diminuiu muito, evidentemente, a
minha psicologia. Sou inferior – é a triste verdade – de muito longe inferior ao
que já fui. Saibo-me a um vinho precioso, desalcoolizado agora, sem remédio.
Estou muito pouco interessante. E não prevejo o meu regresso a mim (...).
1028
1028
SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 879.
Epílogo
*
1. Há um livro de José Ortega y Gasset, chamado A desumanização da arte, que
me parece interessante abordar para fazer um último comentário, em termos
comparativos, mas, agora, tendo em vista um escopo mais amplo, a respeito dos
impulsos, manifestos tanto na obra de Sá-Carneiro quanto na de Rimbaud, em direção a
uma superação da experiência humana mais comum, da experiência ordinária da vida.
No texto do autor espanhol, publicado em torno de 1925, falava-se em uma vontade,
expressa fortemente nos artistas modernos, de “deformar o real, desrealizar”
1029
, à qual
corresponderia um desejo de “ampliar (...) fronteiras”, contra a comum obstinação do
homem em se manter dentro de um horizonte habitual, em uma postura que espelharia
“fraqueza, decadência das energias vitais”
1030
.
Em certa altura de seu ensaio, o filósofo lembra que o termo autor vem de
auctor, significando “aquele que aumenta”, o que os latinos identificavam com o
“general que ganhava para a pátria um novo território”
1031
. No campo da arte, ao autor
caberia a missão de “inventar o que não existe”, aumentar o mundo, acrescentando, ao
real, “um irreal continente”
1032
.
A desumanização, tal como aí se imaginava, a partir de uma observação sobre as
manifestações artísticas da contemporaneidade, às quais se associavam termos como
1029
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 47.
1030
Vale a pena transcrever mais longamente a passagem do texto: “Nossas convicções mais arraigadas,
mais indubitáveis são as mais suspeitosas. Elas constituem o nosso limite, nossos confins, nossa prisão.
Pouca coisa é a vida se não bate pé por um afã formidável de ampliar as suas fronteiras. Vive-se na
proporção em que se anseia viver mais. Toda obstinação em nos mantermos dentro do nosso horizonte
habitual significa fraqueza, decadência das energias vitais. O horizonte é uma linha biológica, um órgão
vivo do nosso ser; enquanto gozamos de plenitude, o horizonte emigra, dilata-se, ondula elástico quase ao
compasso da nossa respiração. Ao contrário, quando o horizonte se fixa, é que se anquilosou e que nós
ingressamos na velhice” (O
RTEGA Y GASSET, 2005, p. 46).
1031
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 11.
1032
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 54.
“nova sensibilidade”
1033
, “arte jovem”
1034
e “gente nova”
1035
, implicaria, com seu
caráter revolucionário, uma forte recusa do que promovia a arte romântica, realista e
naturalista do século dezenove, em particular, na concepção que esta tinha de si mesma
como “reflexo da vida”, “natureza vista através de um temperamento”, ou,
simplesmente, “representação do humano”
1036
.
De acordo com o raciocínio de Ortega y Gasset, as novas obras, muito
propositada e conscientemente, tornariam “impossível a convivência” entre autor e
espectador ou leitor, uma vez negados os aspectos de realidade vivida que
transportariam estes últimos para um “mundo habitual”
1037
. Negando toda “participação
sentimental”
1038
, a arte acabaria por se retrair sobre si mesma, libertando-se da matéria
humana, em nome de certa purificação, a qual afastaria o público mais comum, sem os
dons de compreensão do que se pensa como uma “aristocracia instintiva”
1039
.
Com uma “eliminação progressiva dos elementos humanos”
1040
, que faria o
prazer estético emanar de uma sorte de “triunfo sobre o humano”
1041
, os jovens artistas
triunfariam, igualmente, sobre o “bom burguês”, supostamente, “incapaz de
sacramentos artísticos, cego e surdo a toda a beleza pura”
1042
. Esvaziada do “patetismo
humano”
1043
, o que outrora fora coisa “de alto calibre”, de que se esperava “pouco
menos que a salvação da espécie”
1044
, restaria, agora, como “arte, sem mais
pretensão”
1045
.
1033
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 52.
1034
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 39.
1035
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 49.
1036
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 45.
1037
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 41.
1038
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 36.
1039
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 23.
1040
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 29.
1041
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 43.
1042
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 23.
1043
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 82.
1044
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 80.
1045
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 82.
2. A ideia de uma autonomia do campo da estética, assim como a de conquista
de uma arte superior ao gosto médio, que teria como consequência natural um
afastamento entre ela e o público, poderia ser pensada como uma ambição comum à
maior parte dos poetas modernos, entre eles, sem dúvida, Sá-Carneiro e Rimbaud. No
interior deste grupo, ao qual pertenceriam os dois escritores, entretanto, seria possível
distinguir algumas nuances, cujas características não deixariam de tocar a relação com a
ideia de desumanização, tal como a apresenta o citado filósofo espanhol.
Marcel Raymond, focalizando a poesia moderna, separa os poetas “artistas”,
como Mallarmé, e depois, Valéry, dos “videntes”, como Rimbaud, e depois, os “últimos
aventureiros”
1046
, os surrealistas. Os escritores do primeiro grupo, segundo a perspectiva
assumida pelo autor suíço, seriam aqueles que, voltando-se, antes de tudo, para o
problema da eficácia da linguagem, buscariam uma palavra “pura como no primeiro dia,
solitária, divinamente inútil”
1047
. O discurso, nesse caso, apareceria desprovido ao
máximo de função expressiva, o menos pessoal possível, tendo em mente a criação de
uma sorte de absoluto, de um “objeto intangível”
1048
.
Mallarmé teria conseguido, de acordo com as palavras de Ortega y Gasset,
anular toda “ressonância vital” de suas composições, transformando-se em uma “voz
anônima que sustém no ar as palavras, verdadeiros protagonistas da empresa lírica”
1049
,
a qual, agora, não teria mais nada de humano, nada de patético. Valéry, em um dos seus
escritos, afirmaria, por sua vez, o caráter da poesia como um instrumento de “prazer
intelectual”
1050
, concebendo a obra como o resultado de uma ação que visaria à fuga “da
instabilidade, da incoerência, da inconsequência”
1051
, e a arte como uma defesa contra a
1046
RAYMOND, 1997, p. 11. (Grifos do autor).
1047
RAYMOND, 1997, p. 27.
1048
RAYMOND, 1997, p. 25.
1049
ORTEGA Y GASSET, 2005, p. 55.
1050
VALÉRY, 1991, p. 182.
1051
VALÉRY, 1991, p. 195.
“irregularidade do momento”
1052
. Para o autor, almeja-se, com a poesia, retirar, da
linguagem comum, “uma Voz pura, ideal, capaz de comunicar sem fraquezas, sem
aparente esforço, sem atentado ao ouvido (...), uma idéia de algum eu maravilhosamente
superior a Mim”
1053
.
Os autores do segundo grupo, apesar de pertencerem à mesma modernidade,
seriam aqueles que, como Rimbaud, relacionariam, de modo mais íntimo, a arte e a
vida, procurando experimentar, com a poesia, tornada um meio “de descoberta”
1054
,
uma espécie de “estado de clarividência
1055
, em que se ultrapassariam, nas palavras de
Raymond, “as possibilidades que parecem destinadas ao homem e não são na verdade
senão o pobre fruto de seus hábitos e de sua preguiça”
1056
.
Sá-Carneiro, muito provavelmente, pertenceria a este segundo grupo, com a
visão poética “órfica e afetiva” que Maria Aliete Galhoz lhe atribui, visão de alguém
que, no limite, recusaria “à arte, detentora dos conteúdos poéticos mais humanos, o
malabarismo, ainda que sábio, de gráficos formais privados de significação”
1057
. Não é
por acaso que o autor se apresenta, no imaginário dos surrealistas portugueses, de modo
semelhante a como estes imaginam a figura de Rimbaud. Trata-se, aqui, do
inconstante, irrefreável, inquieto e inquietante cartógrafo dos sonhos, o que o exílio e a
‘decadência’ do presente conduzem à lembrança de outros lugares, o que se dissipa e se
perde no delírio de uma imaginação incontrolável”
1058
. Mário Cesariny, membro do
primeiro grupo surrealista português, e tradutor das Illuminations, teria lhe admirado a
1052
VALÉRY, 1991, p. 198.
1053
VALÉRY, 1991, p. 218.
1054
RAYMOND, 1997, p. 34.
1055
RAYMOND, 1997, p. 33. (Grifo do autor).
1056
RAYMOND, 1997, p. 33.
1057
GALHOZ, 1963, p. 121.
1058
MARTINHO, 1990, p. 82-83. (Grifos do autor). Os termos são de Fernando J. B. Martinho, o qual
investiga o que, de Sá-Carneiro, teria interessado a José Régio, à geração de 50 e aos surrealistas, em
Portugal.
“radical rejeição”
1059
de todo um sistema, tornada exemplar com o ato final do
suicídio
1060
.
3. Para Marcel Raymond haveria um poeta que pertenceria, ao mesmo tempo, às
duas linhagens que imagina próprias da poesia moderna. Este não poderia ser outro
senão Baudelaire, o qual, embora concebendo, como diria Hugo Friedrich, as “forças
formais” como “meios de salvação, buscados ao máximo num estado espiritual
extremamente inquieto”
1061
, empenhando-se para alcançar, através do cálculo, uma
“exatidão matemática”
1062
, ou procurando uma impessoalidade que o afastasse da
“vontade de simples expressão”
1063
, teria sido capaz de explorar, em poemas como “Le
voyage”, o valor e o caráter da experiência que se assenta no desejo, subjetivo, humano,
e, por vezes, misterioso, de partir em direção ao que não se conhece:
Mas les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent
Pour partir; coeurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s’écartent
Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!
Ceux-lá dont les désirs ont la forme de nues,
Et qui rêvent, ainsi qu’un conscrit le canon,
De vaste volupté, changeantes, inconnues,
Et dont l ésprit humain n’a jamais su le nom!
1064
É com o autor de As flores do mal que se definiria, com efeito, a missão da
poesia como a de “abrir uma janela” para “o além espiritual”, outro mundo, em que se
1059
MARTINHO, 1990, p. 71.
1060
Os críticos de Presença, em especial, José Régio, concebiam uma oposição entre Pessoa e Sá-
Carneiro, o primeiro dotado de “superioridade intelectual” (RÉGIO apud LISBOA, 1990, p. 217), mas o
segundo é que verdadeiramente tocado pelo gênio poético, relacionado a uma “necessidade”, a uma
“fatalidade orgânica”, as quais seriam, segundo Régio, “toda a força das excentricidades de Rimbaud ou
Poe, de Gomes Leal ou Sá-Carneiro, de Faulkner ou Cocteau” (R
ÉGIO apud LISBOA, 1990, p. 219).
1061
FRIEDRICH, 1991, p. 40.
1062
FRIEDRICH, 1991, p. 42. (Grifos do autor).
1063
FRIEDRICH, 1991, p. 41.
1064
BAUDELAIRE, 1985, p. 442. Eis a versão de Ivan Junqueira: “Mas viajantes de fato apenas são aqueles
/ Que partem por partir; o coração flutuante, / Jamais hão de aceitar ser outros senão eles / E, sem saber
por quê, ordenam sempre: Adiante! // Os que ao prazer dão a fugaz forma das nuvens / E sonham, como
sonha o canhão um recruta, / Volúpias sem limite, ignotas e volúveis, / Cujo nome jamais o ouvido
humano escuta!” (B
AUDELAIRE, 1985, p. 443).
tornaria possível “ao eu escapar a seus limites e dilatar-se até ao infinito”
1065
. É com ele
que se manifestaria o desejo de, “no limite do desconhecido (...) encontrar o novo
1066
.
É com ele que se iniciaria o que Friedrich chama de a “despersonalização da lírica
moderna”
1067
, quando se prescinde “de todo sentimentalismo pessoal a favor de uma
fantasia clarividente”
1068
. É ele quem consolida a ideia da anormalidade como “premissa
do poetar moderno”
1069
. É ele, ainda, o poeta moderno que concebe o homem como um
ser hiperbólico, “sempre propenso para o alto, numa febre espiritual”, em sua “sede de
infinidade
1070
.
Para além de Baudelaire, entretanto, manifesta-se a opção radical de
experimentar a arte como vida, o que se observa em Sá-Carneiro, apesar de sua
decadentista “opção esteticista”
1071
, e em Rimbaud. As consequências desta escolha,
repercutidas, seja na morte pelo suicídio, seja no abandono da literatura, lança os dois
escritores em sentido oposto ao que vivenciaram poetas como Valéry e Mallarmé,
aproximando-os, por contraste, daquelas figuras da mitologia as mais humanas,
demasiadamente humanas, com as quais é possível alguma identificação.
Em A hora dos assassinos, Henry Miller afirmava que, diante de uma sociedade
que não se comove mais com “advertências transmitidas por palavras”, o que se espera
“são atos, atos suicidas talvez, mas prenhes de sentido”, os quais seriam como
1065
RAYMOND, 1997, p. 20.
1066
BAUDELAIRE apud RAYMOND, 1997, p. 17. Trata-se de parte do último verso de “Le voyage”. Ficam,
aqui, as últimas três linhas do poema: “Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, / Plonger au fond
du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe? / Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!” (B
AUDELAIRE,
1985, p. 452). (Grifo do autor). A tradução é de Ivan Junqueira: “Queremos, tal o cérebro nos arde em
fogo, / Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? Para encontrar no Ignoto o que ele tem de
novo!” (B
AUDELAIRE, 1985, p. 453).
1067
FRIEDRICH, 1991, p. 36.
1068
FRIEDRICH, 1991, p. 37.
1069
FRIEDRICH, 1991, p. 44.
1070
FRIEDRICH, 1991, p. 46. (Grifos do autor).
1071
PEREIRA, 1990, p. 170. Transformando a herança decadentista, Sá-Carneiro teria concebido e
praticado, a partir desta “opção esteticista”, a noção de “teatralidade”, tornada, nas palavras de Fernando
Cabral Martins, um “modo de ligação entre a poesia e a vida” (In: S
Á-CARNEIRO, 2005, p. 12). Também
Giorgio de Marchis salienta essa relação, ao discorrer sobre um paradoxo da obra do autor português, o
qual, por um lado, acolheria “a absoluta exigência de separação da arte da vida prática”, e, por outro,
tentaria organizar “uma nova práxis da vida através da arte” (M
ARCHIS, 2007, p. 20).
sacrifícios feitos “no altar da criação
1072
. É o mesmo Miller quem fala sobre a renúncia,
pensando, evidentemente, no abandono da literatura, por parte de Rimbaud, como ato
que “visa a um só objetivo: alcançar outro nível”
1073
. É ele, também, quem, ao falar
daqueles sujeitos que são, ao mesmo tempo, rebeldes e fracassados, afirma que estes
seriam “humanos-demasiado-humanos”, figuras as quais o próprio Deus colocaria
“acima de todo os demais”, por serem “o campo de provas do espírito”
1074
.
Maria Madalena Jorge Dine e Marina Sequeira Fernandes, por sua vez,
evocando os mitos de Orfeu, Prometeu e Ícaro, falam, remetendo-se à poesia de Sá-
Carneiro, sobre “esse desejo tão especificamente humano de ultrapassar os seus naturais
limites, de avançar sem cessar no conhecimento e na descoberta, de, pela perfeição do
sonho, se aperfeiçoar e superiorizar à imperfeita e precária condição humana”
1075
.
Com o excesso e a míngua, que se experimentam nas obras de Sá-Carneiro e de
Rimbaud, penso que se estabelece, de fato, uma tensão fundamentalmente humana. A
contrapelo da suposta desumanização da arte, o ato poético, então, torna-se, como diria
António Ramos Rosa, um “processo de humanização”. Através dele, o homem se
realiza, bem ou mal, “projetando-se e renovando-se numa permanente procura”
1076
,
revelando, como sua condição, uma natureza, por mais que se queira fixá-la e apaziguá-
la, essencialmente, dinâmica, inquieta e insatisfeita.
1072
MILLER, 1983, p. 88.
1073
MILLER, 1983, p. 68.
1074
MILLER, 1983, p. 76. (Grifos do autor).
1075
DINE; FERNANDES, 2000, p. 69.
1076
ROSA, 1986, p. 31.
Um pouco mais e brotar-me-iam asas...
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WOLL, Dieter. Realidade e idealidade na poesia de Mário de Sá-Carneiro. Lisboa:
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