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UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA
E SOCIEDADE
DISSERTAÇÃO
AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DO CONSUMO E DA VIDA
COTIDIANA: UMA ETNOGRAFIA DAS PRÁTICAS DE COMPRA DE
ALIMENTOS ORGÂNICOS EM NOVA FRIBURGO/RJ
MARCELO CASTAÑEDA DE ARAUJO
2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DO CONSUMO E DA VIDA
COTIDIANA: UMA ETNOGRAFIA DAS PRÁTICAS DE COMPRA DE
ALIMENTOS ORGÂNICOS EM NOVA FRIBURGO/RJ
MARCELO CASTAÑEDA DE ARAUJO
Sob a Orientação da Professora
Maria de Fátima Ferreira Portilho
Dissertação submetida como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre
em Ciências, no Programa de Pós-
Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade.
Rio de Janeiro, RJ
Março, 2010
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631.5848153
C357a
T
Castañeda de Araujo, Marcelo.
Ambientalização e politização do consumo e da
vida cotidiana: uma etnografia das práticas de compra
de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ / Marcelo
Castañeda de Araujo, 2010.
135 f.
Orientador: Maria de Fátima Ferreira Portilho.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências
Humanas e Sociais.
Bibliografia: f. 118-122.
1. Ambientalização e politização do consumo –
Teses. 2. Práticas de compra Teses. 3. Alimentação
orgânica Teses I. Portilho, Maria de Fátima Ferreira
II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Instituto de Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
MARCELO CASTAÑEDA DE ARAUJO
Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências
no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade.
DISSERTAÇÃO APROVADA EM 08/03/2010
Maria de Fátima Ferreira Portilho. Dra. CPDA/UFRRJ
(Orientadora)
John Wilkinson. Dr. CPDA/UFRRJ
Lívia Barbosa. Dra. CAEPM/ESPM
“Já não me preocupo
Se eu não sei por que
Às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo
O mesmo que você...”
(Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Renato Rocha - Legião Urbana, 1986)
APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS
Esta dissertação de mestrado procura compreender as práticas de compra de alimentos
orgânicos em Nova Friburgo/RJ a fim de possibilitar evidências empíricas de processos de
ambientalização e politização do consumo e da vida cotidiana. Estes processos estariam em
curso nas sociedades contemporâneas, conforme assinalado, enquanto construção teórica, na
tese de doutorado da Dra. Fátima Portilho, minha atual orientadora.
Trata-se de um desafio pessoal que considero superado com a realização desta
pesquisa, pois grande parte das discussões acadêmicas sobre consumo assinala esta esfera
como “vilã” das sociedades contemporâneas, especialmente em relação aos problemas
socioambientais, convergindo, assim, para uma abordagem muito semelhante ao senso
comum midiático, por exemplo. Este trabalho serve como um contraponto à visão dos
fenômenos do consumo como mero e exclusivo reflexo da alienação, de uma fuga da
realidade ou mesmo do principal fator de degradação ambiental em uma modernidade em
constante mudança.
Para isso, busco me apoiar em teorias das práticas, mais particularmente na vertente
apresentada pelo sociólogo inglês Alan Warde, e no desenvolvimento de um trabalho de
campo de cunho etnográfico, muito inspirado na obra do antropólogo, também inglês, Daniel
Miller. Assim, nesta dissertação, estas duas abordagens são centrais para entender como os
consumidores desempenham as práticas de compra de alimentos orgânicos.
Devo destacar que este trabalho compreende o começo da realização de um sonho
pessoal, que foi pacientemente acalentado entre 2005 e 2007, envolvendo a possibilidade de
me tornar um pesquisador da área de ciências sociais. Neste período, atuei como coordenador
e pesquisador de um projeto, o Núcleo de Pesquisas e Projetos Sociais, desenvolvido na
Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia em Nova Friburgo/RJ, o que me foi de grande
aprendizado.
No final do mês de maio de 2007, o sociólogo inglês Alan Warde ministrou três
palestras no auditório do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BNDES, na cidade do Rio de Janeiro/RJ
1
. Depois de assistir os painéis Tendências da
alimentação contemporânea e Consumo e uma Teoria da Prática, na viagem de volta a
Nova Friburgo/RJ, comecei a pensar em possibilidades de articular as teorias das práticas,
consumo e alimentação.
Cabe destacar que, no início do ano de 2007, a “crise ambiental” despontava
efetivamente como grande preocupação global em função da divulgação dos resultados
alarmantes dos relatórios emitidos pelo Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC
2
,
1
O evento Pensando o consumo hoje: novas abordagens”, realizado entre os dias 21 e 23 de maio de 2007, foi
promovido pela Escola Superior de Propaganda e MarketingESPM, através de seu Centro de Altos Estudos de
Propaganda e Marketing CAEPM, e pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA/UFRRJ, através de seu Núcleo de Pesquisa Mercados,
Redes e Valores.
2
Trata-se do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, estabelecido em 1988 pela Organização
Metereológica Mundial OMM e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PNUMA para
fornecer informações científicas, técnicas e socioeconômicas relevantes para o entendimento das mudanças
em fevereiro de 2007. Nesta época, também atuava na coordenação da Agenda 21 Local de
Nova Friburgo, na vertente de ações que foram deflagradas na Bacia Hidrográfica do Rio
Macaé.
Tudo isso contribuiu para conceber um projeto que concorreu a uma vaga na seleção
de mestrado do CPDA/UFRRJ. O enorme título original foi aprovado: Ambientalização e
politização do consumo: perspectivas de engajamento em práticas de consumo social e
ambientalmente conscientes Estudo de caso sobre consumo alimentar de produtos
orgânicos em Nova Friburgo/RJ.
Não consumia e continuo sem consumir alimentos orgânicos. Apesar de ter adquirido
e consumido alguns legumes e verduras orgânicos durante a realização da pesquisa de campo,
não tinha o hábito, bem como não me tornei um adepto desta ideologia alimentar. Meu
interesse era entender se os processos de ambientalização e politização do consumo e da vida
cotidiana estavam realmente em curso e de que forma. Logo, acreditava, e continuo
acreditando, que seria mais viável observar o consumo de alimentos orgânicos, do que a
economia de água, luz, do uso do automóvel, da reciclagem do lixo ou mesmo da utilização
de sacolas plásticas, entre outras tantas práticas sustentáveis tão propagadas atualmente.
Neste sentido, uma consideração importante remete ao prazo para a realização do
mestrado. Afinal, dois anos voam! Longe de reclamar, agradeço a possibilidade de, ao longo
do mestrado, ter adquirido uma disciplina que não tinha em função dos prazos, sempre
curtos, para realizar os trabalhos e atividades propostas.
Muito mais que mero resultado de esforço pessoal, vejo que a presente dissertação de
mestrado é fruto da minha vivência e participação em redes de sujeitos, valores e
subjetividades. Devo considerar aqui, principalmente, as experiências que vêm se acumulando
desde o início da graduação em administração na Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, interrompida em 1997, passando pela graduação em ciências sociais na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro UERJ, concluída em 2005. Isso me faz destacar alguns dos
diversos sujeitos que compõe estas redes a fim de prestar justos e honestos agradecimentos,
sendo que me desculpo com quem minha memória tenha guardado.
Sem orientador não existe dissertação de mestrado. No entanto, trabalhar com uma
pessoa como Fátima Portilho, é algo fora do comum, indescritível, uma experiência que
somente quem vivencia pode sentir e ter idéia do que falo. É raro encontrar pessoas com
sensibilidade e sabedoria para orientar alguém tão indisciplinado quanto eu era sim, acho
que deixei de ser, por enquanto, ao menos! Mais que isso, com sua maneira tranqüila e serena
de lidar com as pessoas ao seu redor, e não comigo, me ensinou que seriedade, alegria,
bom humor e rigor podem andar juntos. Ao invés de impor ou persuadir, ela sempre me deu a
liberdade de fazer as escolhas, oferecendo caminhos e trilhas, sem atalhos, e respeitando
minhas escolhas. Meu desejo sincero e honesto é que essa nossa parceria continue por muito
tempo. Afinal, funciona!
Outra mulher que merece agradecimento especial é a jovem Maria Cândida, a
namorada que me acompanhou do início ao fim do mestrado. Com seu jeito quieto de menina,
Candinha me aturou carinhosamente (não encontrei outro verbo que fosse mais adequado...)
durante os dois anos de mestrado: transcreveu entrevistas, formatou textos, coloriu mapas,
climáticas. Seus impactos potenciais e opções de adaptação e mitigação. O IPCC é um órgão intergovernamental
aberto para os países membros do PNUMA e da OMM. O sítio eletrônico do IPCC é http://www.ipcc.ch/ (acesso
em 21/01/2010 às 13h18min).
entre outras tantas tarefas das menos gloriosas e mais trabalhosas. Até começou a falar mais!
Porém, cada vez mais fundamental é o amor e o carinho incondicionais presentes em nossa
relação. Estamos juntos!
Se não falar da família, ganho um belo puxão de orelhas! Afinal, Adílson e Clara,
meus queridos pais me possibilitaram quatro anos maravilhosos em Nova Friburgo/RJ. Sem o
apoio deles teria tido muitas dificuldades, acredito que até mesmo para ingressar no mestrado.
Além deles, devo agradecer à Alessandra, minha querida irmã, “coruja”, atolada, mas sempre
com uma palavra de incentivo.
Devo destacar o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior — CAPES do Ministério da Educação pela concessão de uma bolsa de pesquisa, que
foi muito importante para operacionalizar os caminhos que levaram a execução deste projeto
no prazo de dois anos.
Agradeço o enorme aprendizado que os professores do CPDA/UFRRJ me
possibilitaram. Apesar de considerar todos com quem interagi, seria injusto se não destacasse
o papel de Leonilde Medeiros, John Comerford e Renato Maluf (o “hirschmaniano”), dentro e
fora das salas de aula. Agradecimentos também devem ser dirigidos à banca de qualificação,
formada por Lívia Barbosa e John Wilkinson em maio de 2009, pelas dicas e contribuições
que foram importantíssimas para definir os rumos que esta dissertação assumiu. Não por
acaso que estiveram presentes na banca de defesa deste trabalho
Entre os colegas do CPDA/UFRRJ, nutro gratidão especial pelas trocas
enriquecedoras, acadêmicas ou não, com Renato Carvalheira, José Ferreira, Felipe
Comunello, Sérgio Barcellos, Manuela Cordeiro, Juliana Latini, Bernard Alves, Débora
Azevedo, Everton Picolotto, Fabrício Oliveira, Fernanda Ferreira, Betty Rocha e Carla Belas.
Também devo aqui mencionar o carinho e atenção que sempre me foram destinados por
Terêsa e Henrique, funcionários da Secretaria Acadêmica do CPDA/UFRRJ, bem como pelos
funcionários do Centro de Documentação Ivan Ribeiro, especialmente a Sílvia, Régis e Rita.
Também asmeninas” do café, Fátima e Adriana, que sempre me proporcionaram boas
risadas, mesmo que interiores.
Ainda na seara acadêmica, indo mais além do CPDA/UFRRJ, agradeço em especial à
Maria Luíza Süssekind Veríssimo Cinelli, tanto por me indicar o CPDA/UFRRJ como uma
instituição para prosseguir a jornada acadêmica, ainda em 2004, quanto pelos conselhos
sempre objetivos e válidos; à Alexandra Garcia, pelas recentes e profícuas trocas pedagógicas
na esfera virtual; à Myrian Sepúlveda dos Santos, uma vez orientadora, na graduação da
UERJ, sempre orientadora; assim como Luís Eduardo Potsch Carvalho e Silva, o pioneiro, no
sentido de me despertar para as possibilidades da pesquisa acadêmica enquanto ainda cursava
administração na UFRJ.
Entre os amigos mais chegados, devo agradecer à Lúcia, por estar sempre disponível
para o diálogo, bem como à galera que estudou comigo no Colégio Pentágono, gente como
André Góes e Rodrigo Carvalho (também por estarem presentes na defesa do mesmo),
Rodrigo Machado, Flávio El-Amme, Eduardo Thuler, Leonardo Botto, André Aragão,
Viviane Reis e Paula Oliva Costa Novo, que mantém a amizade acesa muito tempo, coisa
rara hoje em dia!
De forma geral, indiscriminada e desordenada, existem pessoas que conviveram
comigo e ajudaram na consecução deste trabalho, que cito da forma que a memória permite:
Michelle Duarte, Ana Paula Muller, Elaine Azevedo, Gustavo Monteiro, Eduardo
Refkalefsky, Eduardo Ribeiro, Maria Cybele, Deivison, Juju, João Gabriel, Fabíola Rocha,
Cristiane Herdy, Camila Sampaio, Roberta Zanatta, Dalmo Latini, Camila Batista, Paulo
Roberto de Souza, Thiago Mello, Maria Luíza Grey, Thiago Sartório, Luís Fernando Nunes,
Pedro Higgins, Mônica Zampieri, Laura Ferreira, João Alexandre Félix, Poliana Paiva,
Tatiana Bukowitz, José Rodrigues, Tayguara Torres, Teresa Cantuária, Paulo Tavares,
Rodrigo Franco, Flávia Galindo, Beth Goidanich, Ângela Viehmayer, Camila Lamarão,
Diogo Lyra, Marcelo Cardoso, Arthur Coelho, Roberto Grey, Daniela Carreira, Alexandre
Merrem, Paulo César (PC) Ribeiro, André Borges.
Devo também agradecer a todos os funcionários de supermercados que conversaram
comigo, me disponibilizando informações preciosas, desempenhando o papel de informantes
no melhor sentido antropológico do termo; ao pessoal da Feira Orgânica do Cônego
(Flavinho, Dejair e Renato Linhares); ao Dílson, que vendia alimentos orgânicos na Feira do
Suspiro; à Emiko, a “japonesa” do Challet das Plantas, que me recebia com todo carinho no
Challet das Plantas; bem como à Jovelina e Luiz Paulo, proprietários do Sítio Cultivar, que
sempre me incentivaram, desde quando cheguei à Nova Friburgo/RJ.
Por fim, este trabalho não seria possível sem a atenção dos consumidores de alimentos
orgânicos que encontrei nos locais de aquisição em Nova Friburgo/RJ, disponibilizando seu
precioso tempo para conversar comigo um estranho para eles enquanto compravam ou
mesmo, muitas vezes, me recebendo para que os entrevistasse. Desta forma, um abraço todo
especial para Aristóteles, Viviane, Nilson, Emília, Regina, Luciana, Paulo, Laudir, Alexandre,
Izabel, Fany, Bernardo, Paula, Luíza, Elida e Gracinha que me concederam a oportunidade de
ouvir e aprender sobre suas práticas de compra.
Enfim, agradeço, também, àquelas pessoas anônimas, aos que por ventura não foram
citados e os que demonstrarão interesse por este trabalho. Um agradecimento especial para
todos aqueles que sequer conheço, mas que não desistiram quando a primeira dificuldade
apareceu ou que, mesmo depois de errar o caminho, conseguiram retomá-lo, mantendo uma
atitude positiva perante a vida. É possível. Certamente me identifico com vocês!
RESUMO
CASTAÑEDA DE ARAUJO, Marcelo. Ambientalização e politização do consumo e da
vida cotidiana: uma etnografia das práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova
Friburgo/RJ. 2010. 135 p. Dissertação (Mestrado de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. 2010.
As práticas que podem caracterizar uma possível ambientalização e politização do consumo
surgem com a percepção do impacto dos padrões e níveis de consumo no meio ambiente
global. Com isso, a partir da década de 1990, determinadas práticas de consumo passaram a
ser reconhecidas como sendo social e ambientalmente responsáveis. A pesquisa teve como
objetivo geral refletir sobre os processos de ambientalização e politização do consumo e da
vida cotidiana no âmbito da sociedade brasileira contemporânea, enfatizando o multifacetado
campo da alimentação. Desta forma, as práticas de compra de alimentos orgânicos,
especialmente daqueles indivíduos que não estão organizados coletivamente em movimentos
sociais configuraram o objeto de pesquisa. A principal justificativa para seu desenvolvimento
era a lacuna existente nas ciências sociais brasileiras no que se refere aos estudos sobre as
perspectivas dos consumidores enquanto atores sociais e os diferentes usos que fazem de suas
práticas de consumo, em especial seu uso político. Os problemas centrais incluíam questões
como: as práticas de compra de alimentos orgânicos são percebidas e experimentadas pelos
consumidores como uma forma de ação política? De que maneiras os consumidores lidam
com os discursos e cobranças de responsabilidades pela crise ambiental? Ao procurar
respondê-las, através de uma etnografia das práticas de compra de alimentos orgânicos na
cidade de Nova Friburgo/RJ e da realização de entrevistas em profundidade com
consumidores, a pesquisa identificou um aumento da autonomia política individual no
encontro das esferas pública e privada que se dá no campo do consumo. A compra de
alimentos orgânicos é percebida e utilizada como um repertório de ação política “romântico-
individualista” na esfera pública. Estas práticas se mostram capazes de alimentar pontes com
a cidadania, abrindo possibilidades para a emergência de novos períodos de engajamento
coletivo em um contexto de reflexividade social e sociedade de risco global.
Palavras-chave: Ambientalização e Politização do Consumo, Práticas de Compra,
Alimentação Orgânica
ABSTRACT
CASTAÑEDA DE ARAUJO, Marcelo. Greenerism and politicization of consumption and
everyday life: an ethnographic study of shopping practices of organic food in Nova
Friburgo/RJ. 2010. 135 p. Dissertation (Master of Developing Social Science, Agriculture
and Society). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. 2010.
The practices that may characterize a potential greenerism and politicization of consumption
arise from the perception of the impact of standards and levels of consumption in the global
environment. From the 1990s, certain practices of consumption started being socially and
environmentally responsible. This research had as general objective to reflect on greenering
processes and the politicization of consumption and everyday life in the contemporary
Brazilian society, emphasizing the multifaceted field of food. The shopping practices of
organic food, especially from those individuals who are not organized collectively in social
movements configure the object of the research. The main reason for its development was the
gap in Brazilian social science in relation to studies on the consumers’ perspectives while
social actors and the different uses they perform on their practices of consumption, especially
the political use. The main questions included issues such as: Are the shopping practices of
organic food perceived and experienced by consumers as a form of political action? In what
ways do consumers deal with the discourses and responsibility charging for the environmental
crisis? When seeking to answer them through an ethnography of the shopping practices of
organic food in the city of Nova Friburgo/RJ and conducting in depth interviews with
consumers, this research has identified an increased political autonomy of the individual
against the public and private spheres, which occurs in the field of consumption. The shop of
organic food is perceived and used as a repertoire of "romantic-individualistic" political
action in the public sphere. These practices prove themselves capable of feeding bridges to
citizenship, enabling the emergence of new collective engagement periods in a context of
social reflexivity and global risk society.
Keywords: Greenering and Politicization of Consumption, Shopping Practices, Organic Food
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Normas básicas orgânicas ...................................................................... 26
Tabela 2: Etapas do trabalho de campo .................................................................
74
Tabela 3: Locais de aquisição de alimentos orgânicos visitados em Nova
Friburgo/RJ .............................................................................................................. 78
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Tendências da alimentação contemporânea ............................................ 38
Figura 2: A reconvergência neo-moderna ................................................................ 106
Figura 3: Alimento como campo retórico ................................................................. 125
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................
1
CAPÍTULO I - OS ALIMENTOS ORGÂNICOS NAS SOCIEDADES
CONTEMPORÂNEAS
9
I.1. Mercado ..................................................................................................................... 9
I.2. Movimento Social de Agricultura Alternativa .......................................................... 12
I.3. Certificação ................................................................................................................ 18
I.4. Imaginário dos Consumidores de Orgânicos ............................................................. 22
I.5. Tendências Alimentares e Consumo de Alimentos Orgânicos................................... 29
I.5.1. Medicalização ......................................................................................................... 30
I.5.2. Saudabilidade .......................................................................................................... 32
I.5.3. Valorização de origem............................................................................................. 35
I.5.4. Gastronomização .................................................................................................... 39
CAPÍTULO II - AS PRÁTICAS DE COMPRA DE ALIMENTOS ORGÂNICOS
43
I.1. Consumo: “Caixa Preta”dos Estudos sobre Cadeias Agro-Alimentares ................... 43
I.2. Consumo e Teoria das Práticas .................................................................................. 47
I.3. Esfera Individual e Multiplicidade de Práticas .......................................................... 50
II.3.1. Comunicação, marcação social e hostilidade cultural ........................................... 53
II.3.2. Resistência, revanche e vingança: uma produção escondida ................................ 54
II.3.3. Amor e devoção: compras como rituais de sacrifício ........................................... 55
I.4. O Trabalho de Campo: Observação Participante ...... 57
I.5. Etnografia das Práticas de Compra: Descrição Densa .............................................. 60
II.5.1. Feiras ..................................................................................................................... 66
II.5.2. Venda direta ........................................................................................................... 70
II.5.3. Supermercados ...................................................................................................... 73
CAPÍTULO III - AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE
CONSUMO
79
III.1. Neo-modernismo ..................................................................................................... 83
III.2. Ciclos do comportamento coletivo .......................................................................... 85
III.3. Consumo e cidadania .............................................................................................. 87
III.4. Reflexividade social e crise ambiental .................................................................... 88
III.5. Um novo ingrediente: políticas na mesa da cozinha?.............................................. 92
III.5.1. Especificidade política ......................................................................................... 93
III.5.2. Campo retórico ..................................................................................................... 97
III.5.3. Limites da politização entre consumidores de orgânicos ..................................... 98
III.6. Nexos de fazeres e discursos
das práticas de compra de alimentos orgânicos ......... 100
III.6.1.Auto-atribuição de responsabilidades socioambientais ........................................ 104
III.6.2. Ação política ........................................................................................................ 109
CONCLUSÕES
115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
118
ANEXOS
123
Anexo A - Localização geográfica e divisão distrital de Nova Friburgo/RJ...............
124
Anexo B Consumidores de alimentos orgânicos observados nos locais de
aquisição.............................................................................................................................
125
Anexo C – Roteiro de entrevista......................................................................................
129
Anexo D – Fotos do trabalho de campo..........................................................................
132
1
INTRODUÇÃO
As questões socioambientais podem ser entendidas como um conjunto de fatores e
variáveis existentes na interface entre sociedade e natureza, abrangendo aspectos biológicos,
éticos, estéticos, territoriais, políticos, sociais, culturais, econômicos e axiológicos
(PORTILHO, 2005). A partir da década de 1990, estas questões começaram a receber uma
atenção crescente no debate internacional contemporâneo sobre globalização em um período
de acentuada mudança social e paradigmática.
Neste período, transformações sociais dramáticas ocorreram no espaço-tempo,
configurando uma nova convergência do pensamento histórico e social. Um exemplo é a
“inesperada” transição do comunismo para o capitalismo na União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas URSS e Leste Europeu, entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990.
Alexander (1995) entende que esta mudança tornou anacrônicas as explicações sobre as
questões emergentes das sociedades contemporâneas desenvolvidas por cientistas sociais
referenciados única e exclusivamente na clássica abordagem teórica de superação do
capitalismo proposta e desejada por Karl Marx.
Para além da crítica à teoria marxista, Beck (2002) entende que estas questões não
podem mais ser analisadas e explicadas por qualquer perspectiva teórica que se limite apenas
aos “clássicos” das ciências sociais. Por isso, a intensificação da racionalização prevista por
Max Weber ou a diferenciação funcional vislumbrada por Émile Durkheim também não são
referências capazes de entender a contento este novo mundo.
Neste sentido, as dinâmicas de liberdade política, cidadania e sociedade civil
configuram um vetor analítico que permite explicar o perecimento de certezas tradicionais e
sua substituição por um individualismo legalmente sancionado “para todos”. Beck (2002)
assinala uma mudança paradigmática rumo à modernização reflexiva em uma sociedade de
risco global caracterizada por perigos e riscos. Este momento de transição para uma segunda
modernidade de múltiplas modernidades configura uma espécie de pano de fundo, que esta
dissertação considera como um contexto global em que as sociedades contemporâneas estão
inseridas.
A primeira modernidade simples, linear e industrial era baseada nos Estados-
Nação. As relações, redes sociais e comunidades se desenvolviam territorialmente. Suas
pautas coletivas de vida se relacionavam com as idéias de progresso e controle, pleno
emprego e exploração da natureza. No entanto, a mudança de paradigmas da modernidade
conforma uma segunda modernidade baseada em processos inter-relacionados de
globalização, individualização, “revolução” dos gêneros, subemprego e riscos globais, entre
os quais a crise ambiental e o colapso global dos mercados financeiros. Nesta segunda
modernidade, os desafios teóricos e políticos das sociedades contemporâneas se resumem a
responder, simultaneamente, a estes processos, que Beck (2002) entende como conseqüências
imprevistas da vitória da primeira modernização.
Esta segunda modernidade também pode ser definida como uma “alta modernidade”
aberta, contingente e mediada pela noção de risco. É deste modo que Giddens (1991)
entende as experiências cotidianas dos sujeitos como formas de mudanças e adaptações frente
a processos de invasão, ajustamento e reajustamento em um mundo cada vez mais
2
globalizado. Com isso, as práticas dos agentes sociais passam a ser examinadas e
reformuladas por informações renovadas sobre elas mesmas, provocando uma alteração de
seu caráter.
Como parte integrante deste contexto de transição global, o campo de debates e
práticas sobre o meio ambiente também apresentou mudanças significativas, entre elas o
deslocamento da percepção acerca dos impactos no meio ambiente global no âmbito do
pensamento ambientalista internacional
3
. Nos anos 1970 e 1980, a ênfase da luta contra o
agravamento dos problemas ambientais estava hegemonicamente voltada para os processos da
produção industrial capitalista. A partir dos anos 1990, Portilho (2005) assinala a emergência
e proeminência das percepções sobre a contribuição dos impactos ambientais dos elevados
padrões e níveis de consumo das sociedades contemporâneas para o agravamento destes
problemas.
Este deslocamento pode ser observado, por exemplo, na medida em que os Estados-
Nação, as empresas, os meios de comunicação, as organizações não-governamentais
ONGs e os movimentos sociais passam a usar termos que remetem à responsabilidade
socioambiental das práticas de consumo, tais como consumo verde, sustentável, consciente e
responsável, entre outros
4
. No Brasil, este fenômeno passa a ocorrer com maior intensidade
durante os anos 1990, mais especificamente após a realização da RIO92.
Os problemas socioambientais se agravaram, assumindo uma dimensão cada vez mais
global, e passaram a ser usualmente designados pela expressão “crise ambiental”. Atualmente,
os padrões insustentáveis de consumo, tanto individuais quanto institucionais, constituem uma
das causas centrais desta crise no âmbito do pensamento ambientalista internacional. No
entanto, para além do cenário institucional, os indivíduos também o cobrados e estimulados
a adotar práticas que reflitam uma auto-atribuição de responsabilidades socioambientais na
vida cotidiana.
De certa forma, uma análise do consumo nas ciências sociais ainda enfrenta muitas
dificuldades de cunho epistemológico. No entanto, o maior obstáculo a ser superado é o bias
produtivista desta área de conhecimento, ou seja, o “consumo” ainda aparece como um tema
irrelevante em relação à “produção”, considerada predominante inclusive na maioria das
próprias análises sobre “consumo”, que desconsideram a exterioridade deste campo em
relação à “produção” (BARBOSA & CAMPBELL, 2006).
Uma crítica consistente deste bias encontra-se na relação que Campbell (2001)
estabelece entre a ética romântica e o espírito do consumismo moderno, enfatizando, assim, a
anterioridade das revoluções do comércio e do consumo em relação à revolução industrial
5
.
3
Portilho (2005, p. 16) entende como pensamento ambientalista internacional “aquele produzido pelos meios
institucionalizados e legitimados socialmente, compostos pelos setores estatais dos países centrais, pelas
instituições intergovernamentais, pelos setores empresariais e pelas grandes ONGs que circulam nesse meio”.
4
O documento Agenda 21 constitui um exemplo deste deslocamento ao considerar que “as principais causas da
deterioração ininterrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção,
especialmente nos países industrializados. Motivo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção
provocam o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios” (CONFERÊNCIA das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, 1997, p. 39).
5
Campbell (2001) compreende a revolução do consumo como destino da ética protestante por ter sido
capitaneada por uma classe média comercial ou burguesia nascente, setor da sociedade inglesa com forte
tradição puritana. O autor aponta como elemento central desta revolução a evidente impossibilidade da burguesia
nascente (puritana, com arraigados valores de trabalho e frugalidade) construir imitações de uma aristocracia
(com seus condenáveis valores de luxo, ociosidade e indulgência) que considerava desprezível. Neste sentido,
3
Desta forma, o autor considera a relevância das três dinâmicas de mudança social e não
apenas da variante produtiva e industrial.
Neste ponto, cabe destacar como o termo “consumo” é considerado neste trabalho.
Nas sociedades contemporâneas, a tentativa de uma definição conceitual universal acaba
levando a uma miríade de possibilidades. Barbosa & Campbell (2006, p. 26) entendem que o
consumo compreende
ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de
provisão de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e
serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de
sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um bem; uma
estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir
diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma
categoria central na definição da sociedade contemporânea.
Uma definição mais restrita, como a perspectiva das teorias das práticas desenvolvida
por Alan Warde (2005), mostra que o termo “consumo” envolve um processo em que os
agentes estão engajados em atos de apropriação e apreciação de bens, serviços, desempenhos,
informações ou ambientes, comprados ou não. Desta forma, o consumo é um conjunto de
práticas nas quais os agentes participam, apresentando algum grau de discernimento para
atender a propósitos diversos, sejam eles utilitários, expressivos ou contemplativos, entre
outros.
Outro termo que deve ser explicado nesta introdução é “consumidor”. Diferentemente
do uso corrente na ciência econômica
6
, Warde (2005) rejeita a idéia de que as pessoas
encaram os momentos de consumo como atores racionais soberanos ou como ingênuos
manipulados. Este autor considera que a organização das práticas e os momentos de consumo
se impõem frente aos indivíduos. Assim, nas ciências sociais, os “consumidores” podem ser
entendidos como indivíduos que possuem direitos e deveres, bem como cidadãos que
interagem com o mercado.
Neste trabalho, o termo “consumidor” se refere àqueles indivíduos que participam de
práticas de compra, ou seja, aqueles agentes sociais que desempenhavam práticas de compra
de alimentos orgânicos nos locais de aquisição que freqüentei em Nova Friburgo/RJ, durante
o exercício etnográfico. Deste modo, como participantes em práticas de compra, os
consumidores criam e fortalecem identidades e sentimentos de pertencimento.
Além disso, alguns consumidores passam a perceber certas práticas como, por
exemplo, a compra de alimentos orgânicos ou a racionalização no uso doméstico cotidiano de
foram inovações culturais (leitura de romances, estilo gótico e culto ao amor romântico, entre outras) que
possibilitaram a emergência desta burguesia nascente como formadora do gosto da sociedade, dando “expressão
a valores e atitudes muito diferentes dos que há muito caracterizavam o estilo de vida da elite inglesa”
(CAMPBELL, 2001, p. 54).
6
Na ciência econômica, a “teoria do consumidor” desenvolvida pela economia neoclássica do século XIX,
atribui soberania a um consumidor indiferenciado, partindo do princípio de que os indivíduos sabem o que é
melhor para si e tomam decisões sem restrições com base no maior bem-estar possível para satisfazer
preferências. A partir dos anos 1930, esta teoria foi suplantada pela idéia de consumo agregado, de Keynes e
Kalecki, que desconsidera o consumidor. Entretanto, no final dos anos 1970, o consumidor volta às análises
econômicas com os estudos de dinâmica tecnológica que valorizam o consumo como elemento dinâmico da
economia. Começa, então, um processo de revalorização da demanda e dos mercados. Esta nota foi desenvolvida
com base nas anotações efetuadas durante a disciplina Teoria Econômica, ministrada pelo Prof. Dr. Renato
Maluf no segundo semestre de 2008 no CPDA/UFRRJ.
4
bens e serviços
7
, como água, energia, uso do automóvel, separação de resíduos (PORTILHO
& CASTAÑEDA, 2009), enquanto possibilidades de ação política para a melhoria ambiental
do planeta. Com isso, estes consumidores acreditam que podem contribuir por meio de ações
na esfera do consumo e da vida cotidiana a fim de enfrentar o agravamento dos problemas
socioambientais globais.
O uso das práticas de consumo como forma de “participação na esfera pública” e
“ação política” constitui questão emergente para a investigação das ciências sociais
contemporâneas. Estas questões se somam aos temas recorrentemente pesquisados nos
Estudos do Consumo, como destacado por Portilho (2008): a reprodução material e simbólica,
a construção, fortalecimento e marcação de identidades, a distinção social, a comunicação, o
pertencimento, a cidadania e a sociabilidade. Por isso, esta pesquisa pode ser justificada,
primeiramente, pela possibilidade de contribuir com as pesquisas empíricas sobre práticas de
consumo nas ciências sociais brasileiras e, mais especificamente, com aquelas relativas às
práticas de compra de alimentos orgânicos
8
.
Uma segunda justificativa envolve o renovado interesse das ciências sociais pela
participação social na medida em que o campo do consumo traz para o cotidiano uma agenda
ambiental e política. Alexander (1995) observa uma transição no padrão de ação política, ao
compreender a deflação das ações “radical-coletivistas”, características dos movimentos
sociais das décadas de 1960/70, e a emergência de ações “romântico-individualistas” na vida
privada, a partir da década de 1990. Estas formas emergentes de ação política seriam mais
realistas e pragmáticas, pois enfatizam a ação de indivíduos reais, e não de sujeitos históricos
coletivos, como as categorias “nação”, “classe social” ou “movimentos sociais”.
Na interface entre consumo e sustentabilidade, as ações políticas do tipo “romântico-
individualistas” podem ser interpretadas como parte dos processos de ambientalização e
politização do consumo e da vida privada e cotidiana em curso nas sociedades
contemporâneas. Uma auto-atribuição de responsabilidades individuais (EDEN, 1993)
inerente a estes processos é reforçada e fortalecida por estímulos e cobranças dos mercados,
Estados, organizações não governamentais, opinião pública e mídia para os indivíduos
considerarem variáveis ambientais nas suas preocupações e experiências cotidianas,
negociando, ética e politicamente, suas escolhas e ações (PORTILHO, 2005).
De acordo com Portilho (2005), a ambientalização e a politização do consumo são
processos que se caracterizam pela ambigüidade, compreendendo limitações para o
enfrentamento da crise ambiental, tais como (a) o fato dos consumidores representarem um
grupo latente de grandes dimensões e de difícil organização, configurando um público
7
Certas práticas cotidianas são frequentemente referenciadas pelo Estado, pelas empresas e pelas organizações
não governamentais, especialmente por intermédio dos meios de comunicação, como sendo social e
ambientalmente responsáveis. Um exemplo detalhado encontra-se nas “dicas” do Instituto Akatu para o
Consumo Consciente, (http://www.akatu.org.br/consumo_consciente/dicas, acesso em 21/01/2010 às 08h e 42
min).
8
Conforme apontado em Portilho & Castañeda (2008), apesar da lacuna de conhecimento produzido sobre o uso
dos alimentos orgânicos pelos consumidores, alguns estudos se dedicaram à análise da construção e
normalização do mercado de produtos orgânicos (FONSECA, 1999 e 2005) e do movimento social de
agricultura orgânica (DAROLT, 2000). A maioria das pesquisas sobre consumidores de alimentos orgânicos se
volta para a análise do perfil e das motivações (RUCINSKY & BRADENBURG, 2002; MORO & GUIVANT,
2006), da disponibilidade para pagar (ROPKE, 1999), das estratégias de fortalecimento da relação entre
produtores e consumidores (DAROLT & CONSTANTY, 2007) e do papel destes consumidores de orgânicos
para o desenvolvimento rural sustentável (DAROLT, 2005).
5
genérico e de difícil acesso; (b) a possibilidade de reforçar a oposição entre interesses
individuais e coletivos; (c) as restrições econômicas; (d) a racionalização do cotidiano; (e) as
controvérsias científicas acerca do que é mais sustentável e o controle sobre a vida diária, que
podem gerar dependência do conhecimento dos especialistas; e (f) a possibilidade de
manifestação da lógica do “carona”, segundo a qual os indivíduos tendem a não participar,
esperando que os demais se empenhem (OLSON, 1971 apud PORTILHO, 2005).
Apesar das limitações, Portilho (2005) se volta para as possibilidades de ação política
no campo do consumo. A autora entende que a superação dos problemas socioambientais
pode ser obtida por intermédio da ação coletiva, que depende da formação de uma identidade
e um sentimento de pertencimento e solidariedade a um grupo social. Por meio destes
sentimentos, os membros de um grupo latente e indefinido como os consumidores podem
apresentar-se vinculados a outros grupos ou redes sociais, decidindo, assim, participar de
ações coletivas e recusando a lógica do “carona”.
Apesar do potencial para deflagrar ações coletivas na esfera do consumo, com esta
pesquisa procuro entender como os processos de ambientalização e politização do consumo se
desenvolvem, assim como são vividos e experimentados na vida privada e cotidiana, por meio
da observação das práticas de compra com as quais os consumidores se percebem enquanto
atores sociais situados
entre o anonimato e a vontade de exercer um papel político, entre as preocupações
cotidianas da esfera privada e a vontade de participar de uma esfera pública mais
ampla, negociando os custos e benefícios desta participação. Trata-se de pessoas
que, por diversas razões, usam o consumo como forma de ação política e, em
alguns casos, não parecem se interessar pela participação em movimentos
institucionalizados, evitando explicitamente esta forma de participação
(PORTILHO, 2008, p. 3).
Neste sentido, o desempenho em práticas de compra de alimentos orgânicos pode
representar uma ampliação do campo político em direção à esfera privada e à vida cotidiana,
em uma sociedade reflexiva, configurando subpolíticas (BECK, 2002) ou políticas de vida
(GIDDENS, 1996). A escolha de pesquisar as práticas de compra de alimentos orgânicos pode
ser justificada em função das dimensões éticas e políticas que a alimentação possui,
evidenciadas pelo contexto de “crise ambiental” em uma sociedade de risco global.
Atualmente, os bitos alimentares incorporam elementos que permitem uma
abordagem política, ideológica e ética, transcendendo os aspectos nutricionais, simbólicos,
sociais e históricos associados à alimentação (BARBOSA, 2007). Por outro lado, cada vez
mais, as ansiedades dos consumidores em relação à confiança e aos riscos presentes nos
alimentos, por exemplo, transcendem a esfera privada, apresentando reflexos diretos na esfera
pública (LIEN, 2004).
Com isso, o problema central desta pesquisa pode ser expresso na seguinte questão: as
práticas de compra de alimentos orgânicos são percebidas e experimentadas pelos
consumidores adeptos como uma forma de ação política frente à crise ambiental e aos riscos
da alimentação contemporânea em relação à saúde humana, caracterizando, portanto, a
possibilidade de um processo de ambientalização e politização do consumo?
Um aspecto que reforça o sentido da ão política é a auto-atribuição de
responsabilidades, associada à percepção da eficácia da ação individual e da possibilidade de
algum controle que o indivíduo possa manter sobre o seu comportamento (EDEN, 1993).
6
Trata-se de “uma forma de materializar e dar concretude a valores, ideologias, sonhos e
utopias [...] um desejo de agir de forma renovadora no mundo em que está inserido,
conectando as esferas pública e privada” (PORTILHO, 2008, p. 16-17).
Desta maneira, um problema auxiliar remete à possibilidade de entender a auto-
atribuição de responsabilidade dos consumidores de alimentos orgânicos, ou seja: os
consumidores se auto-atribuem responsabilidades pela crise ambiental global e, portanto,
desempenham práticas de compra de alimentos orgânicos?
O caráter ambíguo do consumo se deve ao fato de operar na interseção entre a esfera
privada e a esfera pública. Esta ambigüidade fica evidente em uma análise que apresenta duas
vertentes interpretativas opostas acerca da expansão das Sociedades de Consumo: de um
lado, sinal de dissolução, morte ou declínio da política; de outro, emergência de uma nova
cultura política (PORTILHO, 2005). Portanto, o objetivo principal desta dissertação é
capturar os sinais da emergência desta “nova cultura política” na esfera do consumo e da vida
cotidiana através da compreensão dos nexos
9
e desempenhos das práticas de compra de
alimentos orgânicos.
Desta forma, a hipótese central da pesquisa é que os consumidores de alimentos
orgânicos perceberiam e experimentariam as práticas de compra destes alimentos como
forma de ação política frente aos problemas socioambientais globais e, portanto, tais práticas
seriam parte dos processos de ambientalização e politização do consumo no âmbito da
sociedade brasileira. Além disso, a preocupação com os riscos relacionados à saúde é cada
vez mais significativa no campo da alimentação contemporânea, influenciando as práticas de
compra de alimentos orgânicos. Neste sentido, ao contrário de um padrão egotrip
(GUIVANT, 2003), estas práticas remeteriam a uma posição política (LIEN, 2004) como
efeito da reflexividade social (BECK, 1997; GIDDENS, 1997) em uma sociedade de risco
global (BECK, 2002).
Uma hipótese auxiliar relaciona as práticas de compra de alimentos orgânicos à auto-
atribuição de responsabilidades dos consumidores frente aos problemas socioambientais.
Assim, a tomada de consciência em relação à crise ambiental influenciaria o desempenho
nestas práticas. Ao participarem destas práticas, os consumidores acreditariam que fazem a
“sua parte” para enfrentar o agravamento da problemática socioambiental contemporânea.
Deste modo, suas responsabilidades seriam expressas pela compra de um alimento, percebido
como produto de relações de produção que proporcionariam um impacto ambiental reduzido.
Com isso, também podem contribuir com a agricultura familiar ou a melhoria das condições
de vida dos pequenos produtores rurais.
A produção agrícola de Nova Friburgo/RJ é majoritariamente relacionada com uma
agricultura convencional que utiliza agrotóxicos de forma intensiva. Existe apenas uma
pequena produção de alimentos orgânicos, em grande parte consumida localmente. No
entanto, a cidade tem importância histórica para o movimento social de agricultores
orgânicos do estado do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo/RJ, cujo mapa encontra-se como
Anexo A desta dissertação, foram organizadas as primeiras feiras orgânicas do estado, no
início da década de 1980, que culminaram com a formação da Associação de Agricultores
Biológicos do Estado do Rio de Janeiro Abio, em 1984. Ao longo dos anos 1980, uma
efervescência social e cultural relacionada à “alimentação alternativa” caracterizava esta
9
Warde (2005) entende que os nexos de entendimentos, procedimentos e engajamentos compreendem a noção
das práticas como entidades coordenadas, como será explicado no Capítulo II desta dissertação.
7
cidade, com a abertura de restaurantes alternativos, como o Campo Verde e o Terra Azul, e o
funcionamento de uma cooperativa de consumidores de alimentos orgânicos, a Pacha
Mamma, uma espécie de entreposto da Associação Harmonia Universal COONATURA,
surgida no Rio de Janeiro, em 1979, com importante atuação na normalização do mercado de
orgânicos (FONSECA, 2005).
No entanto, a escolha de Nova Friburgo/RJ considerou, principalmente, a
possibilidade de acessar uma rede de relações que construí ao longo dos quatro anos em que
residi, entre 2006 e 2009, influenciando positivamente na consecução deste trabalho. Além
disso, por meio de uma pesquisa exploratória, constatei a existência de quinze locais de
aquisição de alimentos orgânicos
10
, sinalizando a existência de um potencial de consumidores
de alimentos orgânicos, o que reforçou a viabilidade de realização desta pesquisa nos limites
territoriais desta cidade.
Cabe destacar que esta pesquisa foi desenvolvida por meio de um trabalho de campo
etnográfico, compreendendo observação participante (BECKER, 1992) nos pontos de venda
de alimentos orgânicos e a realização de entrevistas em profundidade (PIOVANNI, 2007) em
Nova Friburgo/RJ.
Em uma primeira etapa, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, desenvolvi uma
observação participante nos locais de aquisição de alimentos orgânicos previamente
mapeados a fim de identificar consumidores. Ao fim deste período, tinha em mãos um
cadastro inicial com cerca de cinqüenta consumidores, compreendendo também indicações
das redes de relacionamentos que cada pessoa entrevistada possuía e disponibilizava, bem
como por meio das diferentes interações que desenvolvi no contexto de campo. Este cadastro
encontra-se como Anexo B desta dissertação.
Após dois pré-testes, defini um roteiro de entrevista em conjunto com minha
orientadora, que apresento como Anexo C neste trabalho. Entre os meses de fevereiro e junho
de 2009, realizei quinze entrevistas em profundidade com consumidores de alimentos
orgânicos. Este procedimento foi importante para aprofundar o entendimento dos nexos das
práticas de compra destes alimentos, ponto fundamental para analisar os problemas e as
hipóteses centrais desta pesquisa. Todas as entrevistas foram gravadas, sendo transcritas por
uma terceira pessoa.
Este trabalho pretendia acompanhar a compra, o preparo e o momento da refeição dos
consumidores de alimentos orgânicos. No entanto, o fato de ter conseguido acompanhar
apenas duas práticas de preparo e refeição fez com que o foco desta pesquisa tenha se voltado
essencialmente para as práticas de compra. Assim, considero apenas as práticas de compra,
com a consciência de que o campo do consumo envolve muito mais do que apenas a compra.
Trata-se da escolha de um campo analítico e do recorte do objeto de pesquisa. Com isso, entre
julho e outubro de 2009, desenvolvi uma nova etapa de observação participante,
exclusivamente voltada para as práticas de compra, de forma a configurar um exercício
etnográfico.
Por fim, deixo clara a forma pela qual sistematizei as observações derivadas do
trabalho de campo e das entrevistas em profundidade que realizei. No caso da observação
participante, mantive um diário de campo atualizado, facilitando bastante a elaboração de uma
10
Em julho de 2008, realizei uma entrevista aberta com Jovelina Fonseca, produtora de legumes e verduras
orgânicas, comercializadas com a marca Sítio Cultivar, que me apontou os principais pontos de venda dos seus
produtos. Além disso, observações in loco complementaram este mapeamento dos pontos de venda.
8
descrição densa (GEERTZ, 1978). No que se refere ao material coletado nas entrevistas em
profundidade, adotei como procedimento uma análise de conteúdo do tipo categorial
11
(BARDIN, 1977).
No primeiro capítulo da dissertação, analiso a emergência dos alimentos orgânicos nas
sociedades contemporâneas, considerando aspectos como o nicho de mercado, o movimento
social de agricultura alternativa, a certificação e o imaginário dos consumidores. Além disso,
relaciono as tendências da alimentação contemporânea (BARBOSA, 2009) com as
perspectivas dos consumidores de alimentos orgânicos que observei e entrevistei em Nova
Friburgo/RJ.
No segundo capítulo, apresento uma interpretação das teorias das práticas, baseado na
perspectiva de Alan Warde (2005). Com isso, destaco abordagens diferenciadas em relação às
práticas de consumo, desenvolvidas por autores como De Certeau (1984), Douglas (1987),
Miller (2002) e Douglas & Isherwood (2006). Desta forma, constituo uma base teórica
consistente para empreender uma descrição densa dos desempenhos em práticas de compra
observados no trabalho de campo.
No terceiro capítulo, a partir do referencial teórico desenvolvido por Portilho (2005),
defino o campo analítico do processo de politização do consumo nas sociedades
contemporâneas em estreita relação com o processo de ambientalização da vida cotidiana a
partir dos anos 1990. Além disso, estabeleço a especificidade política do multifacetado campo
da alimentação e destaco os nexos das práticas de compra, compreendendo questões como a
participação política e a responsabilidade socioambiental entre os consumidores de alimentos
orgânicos em Nova Friburgo/RJ.
Cabe destacar que optei por entremear as falas dos entrevistados e minhas observações
de campo ao aporte teórico utilizado nesta dissertação de mestrado. Desta forma, não fiz uso
de um capítulo teórico à parte.
Por fim, apresento conclusões relacionadas com o objetivo principal e as hipóteses
desta pesquisa, compreendendo se e em que sentido as práticas de compra de alimentos
orgânicos podem refletir uma forma de ação política frente à crise ambiental, assim como uma
auto-atribuição de responsabilidades socioambientais dos consumidores adeptos.
11
Segundo Bardin (1977), uma análise de conteúdo de tipo categorial compreende quatro operações: (a) a pré-
análise, que consiste em uma leitura flutuante, ou seja, uma leitura inicial das falas transcritas dos entrevistados,
de forma a ter uma idéia geral das entrevistas; (b) a codificação, que compreende estabelecer as unidades de
registro e de contexto, bem como proceder na enumeração, a fim de escolher índices e indicadores em função
das hipóteses, sendo realizada com a utilização de planilhas do programa MS-Excel neste projeto; (c) a
categorização, que remete a um procedimento de classificação analógica e progressiva dos elementos de forma a
definir o título da categoria ao final das operações efetuadas; (d) a inferência, que significa uma indução para
investigar causas a partir de efeitos, ou seja, “realizar uma análise do conteúdo sobre a análise de conteúdo
(BARDIN, 1977, p. 138), base da análise preliminar dos dados.
9
CAPÍTULO I
OS ALIMENTOS ORGÂNICOS NAS SOCIEDADES
CONTEMPORÂNEAS
Um estudo recente realizado no âmbito governamental brasileiro define os alimentos
orgânicos como “produtos de origem vegetal ou animal que estão livres de agrotóxicos ou
qualquer outro tipo de produtos químicos, pois estes são substituídos por práticas culturais
que buscam estabelecer o equilíbrio ecológico do sistema agrícola” (BRASIL, 2007, p. 14).
Neste capítulo, o objetivo é analisar algumas transições e permanências dentro de um
campo dialógico específico, que compreende os problemas ambientais e as questões inerentes
ao debate sobre sustentabilidade planetária, enquanto fatores importantes para fomentar e
estabelecer os alimentos orgânicos como um proeminente nicho no mercado agro-alimentar
contemporâneo. Trata-se de um campo em que diversos atores sociais atuam, sendo que, de
maneira breve, minha atenção se volta para certos aspectos dos segmentos empresariais,
principalmente as agroindústrias e os supermercados; dos movimentos sociais de agricultores
alternativos, em especial a agroecologia e suas variações como, por exemplo, a agricultura
orgânica; da esfera estatal brasileira, enfatizando os processos de normatização e sistemas de
conformidade, com destaque para a certificação; e dos consumidores, procurando evidenciar
aspectos de seu imaginário.
Feito isso, o exercício etnográfico realizado junto aos consumidores de alimentos
orgânicos em Nova Friburgo/RJ pode assumir um sentido capaz de identificar empiricamente
uma possibilidade, dentre várias, pela qual se materializam os processos de ambientalização e
politização do consumo que alguns teóricos entendem estar em curso nestas sociedades
(HALKIER, 1999 apud PORTILHO, 2005; PAAVOLA, 2001; PORTILHO, 2005; STOLLE
et ali, 2005).
Ainda neste capítulo, procuro entender a posição destes alimentos frente às tendências
da alimentação nas sociedades contemporâneas, conforme proposição de Barbosa (2009).
Com isso, relaciono os alimentos orgânicos com aquelas tendências que apresentam mais
destaque na sociedade brasileira contemporânea medicalização, saudabilidade, valorização
de origem e gastronomização. Esta relação é estabelecida à luz das perspectivas dos
consumidores de alimentos orgânicos que observei e entrevistei durante a pesquisa de campo
desenvolvida em Nova Friburgo/RJ.
Assim, este capítulo serve como uma espécie de aperitivo para melhor “saborear” as
práticas de compra de alimentos orgânicos, que são objeto de análise no Capítulo 2, vistas
como reflexo dos processos de ambientalização e polítização da vida cotidiana, abordados no
Capítulo 3 desta dissertação.
I.1. Mercado
A mudança de foco dos sistemas alimentares em direção à valorização da nutrição e da
comida saudável, bem como com o impulso da revolução da biotecnologia no sentido da
inovação industrial, como, por exemplo, no desenvolvimento recente dos alimentos
funcionais, tornou a posição das grandes indústrias alimentares menos segura. Wilkinson
10
(2002) entende a inesperada explosão dos alimentos orgânicos, enquanto importante nicho de
mercado e alternativa de recurso alimentar, como parte significativa das mudanças nos
sistemas agro-alimentares industrializados, ao forçar um abandono da estratégia de
substituição de tecnologias, tradicionalmente adotada pelas indústrias alimentares.
Apesar de considerar o eficaz reposicionamento das indústrias alimentares frente à
segmentação de mercado, ao menor ciclo de vida na inovação dos produtos e à globalização,
Wilkinson (2002) entende que um reajuste às regras hegemônicas do comércio em escala
mundial constitui o atual desafio para este segmento industrial. Um novo paradigma
biotecnológico e novos padrões de demanda alimentar surgem como desafios aos processos
de reestruturação global das principais indústrias alimentares frente a uma acentuada
vulnerabilidade das mesmas relacionada com as mudanças globais no sistema agro-alimentar.
A “escalada orgânica” associa-se, portanto, à atuação do setor supermercadista frente
ao setor industrial, bem como aos novos atores que passaram a ocupar importantes segmentos
dos componentes industriais da mudança do alimento orgânico. A aliança entre os
supermercadistas e os produtores orgânicos, neste sentido, representa o encurtamento de um
circuito comercial que diminuiu sobremaneira a importância da apropriação do produto
agrícola pelo setor industrial alimentar, beneficiando atualmente o setor supermercadista
(WILKINSON, 2002).
É importante ressaltar que, durante os anos 1980 e 1990, o sistema agro-alimentar
orgânico também passou por uma transformação, de uma fraca rede de produtores e
consumidores coordenada localmente para um sistema globalizado de comércio formalmente
regulado, capaz de conectar lugares espacialmente distantes de produção e consumo
(RAYNOLDS, 2004).
As primeiras iniciativas orgânicas envolviam valores cívicos domésticos de confiança,
conhecimento local, diversidade ecológica e justiça social por meio de redes de agricultores
em pequena escala, trocas face-a-face e consumidores politicamente engajados. Estes valores,
instituições e tipos de trocas foram, em grande parte, suplantados pelas convenções
comerciais da competição econômica por meio da certificação e adoção de normas industriais
burocráticas envolvendo padrões, auditagem e rotulagem.
Em 2004, as vendas orgânicas globais eram estimadas em US$ 26,5 bilhões por ano,
dos quais apenas US$ 100 milhões couberam ao Brasil, ou seja, menos de 0,4% (BRASIL,
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2007). Apesar de os produtos orgânicos
representarem uma parcela reduzida do mercado mundial de alimentação, a proliferação de
mercadorias certificadas e a crescente disponibilidade nos supermercados fazem deles o
segmento de mais rápido crescimento na indústria alimentar, com uma taxa estimada em 20%
anuais, capitaneado pelos mercados da América do Norte e Europa.
Raynolds (2004) analisa a globalização das redes agro-alimentares orgânicas,
indicando dois movimentos centrais no comércio internacional de alimentos orgânicos. O
primeiro, mais amplo, envolve o comércio entre países, que é dominado pelas exportações dos
EUA para a Europa e Japão, além do comércio entre países europeus e as exportações da
Austrália, Nova Zelândia e África do Sul para os principais mercados de consumo. O
segundo, mais periférico, engloba o comércio “Sul-Norte”, em que um crescente número de
produtores latino-americanos em especial da Argentina, do México e da República
Dominicana vendem seus produtos aos maiores mercados de consumo de alimentos
orgânicos do “Norte”.
11
Tomando como ponto de referência a periferia deste comércio internacional, Raynolds
(2004) aponta uma crescente distância social e espacial como característica do sistema agro-
alimentar orgânico global. Além disso, a autora ressalta o importante papel dos movimentos
sociais no desenvolvimento e regulação do comércio “Sul-Norte” de alimentos orgânicos e,
com isso, realça as contradições do comércio certificado global de alimentos orgânicos.
De um lado, convenções normatizadas dos mercados afluentes, baseadas em
eficiência, normatização e competição de preços; de outro, convenções de movimentos
alternativos, conectados a relações pessoais de confiança, diversidade ecológica e justiça
social. Raynolds (2004) entende que a globalização possibilitou a extensão das convenções de
mercado mais rapidamente do que a incorporação dos compromissos assumidos pelos
movimentos sociais, em especial pelas promessas de novas iniciativas, relativizando as
normas e práticas do movimento agroecológico em redes orgânicas globais.
Neste sentido, a desconfiança dos consumidores em relação aos sistemas agro-
alimentares industriais é apontada como um dos principais fatores do crescimento do mercado
de alimentos orgânicos em países do “Norte”. Entretanto, paradoxalmente, este crescimento
se deu quando as normas, práticas e relações de mercado deste mesmo sistema agro-alimentar
convencional se firmaram nas redes orgânicas nacionais e internacionais.
A bifurcação entre a orientação do sistema de distribuição e consumo de alimentos
orgânicos para o mercado e para o movimento social sinaliza a prosperidade dos movimentos
alternativos, que suprem pequenas quantidades de alimentos sem certificação, em função de
consumidores dedicados a promoverem convenções domésticas e cívicas. Isso pode ser
observado na proliferação de pontos de venda orgânicos alternativos, no crescimento de
consumidores politicamente engajados que adquirem produtos orgânicos e pelos pequenos
produtores rurais que continuam dominando a produção de alimentos orgânicos
(RAYNOLDS, 2004).
Neste sentido, Campbell & Liepins (2001) identificaram duas tendências teóricas
opostas que persistem no que se refere à emergência da agricultura orgânica no início dos
anos 1990. A primeira delas entende que a globalização e a corporativização dos sistemas
agro-alimentares são ameaças à promessa da agricultura orgânica enquanto manifestação
concreta de sustentabilidade agrícola. Trata-se de uma abordagem que traduz um pessimismo
em relação ao potencial transformador da agricultura orgânica por conta da sua apropriação e
submissão às forças corporativas, o que levaria, de forma quase linear, à comoditização da
produção de alimentos orgânicos
12
.
Por outro lado, uma segunda tendência teórica entende os alimentos orgânicos como
parte das novas configurações que ocupam os espaços até então pouco explorados pelos
sistemas agro-alimentares globalizados. Neste sentido, a agricultura orgânica coloca um
desafio às regras do sistema agro-alimentar global. Com isso, se a produção e o consumo de
alimentos orgânicos não são “revolucionários”, ao menos mostram como as tendências da
produção e consumo de alimentos não são lineares, inevitáveis ou incontestáveis.
12
Neste sentido, cinco aspectos levariam necessariamente à adoção de convenções de mercado: (1) as demandas
naturais e biofísicas da produção orgânica; (2) a reversão significativa das economias de escala de pequenos
produtores que se voltavam para nichos de mercado locais; (3) a presença residual do movimento social da
agricultura orgânica como resistência à comoditização; (4) a crítica dos consumidores em relação à segurança
alimentar, que aumentou a demanda pela produção orgânica; e (5) o renascimento da contestação discursiva dos
padrões da produção orgânica (BUCK, 1997; GUTHMAN, 1998 apud CAMPBELL & LIEPINS, 2001).
12
Para entender a agricultura orgânica, Campbell & Liepins (2001) propõem uma nova
agenda de pesquisas que deve atentar para pontos como a ressignificação da natureza como
traço da produção e consumo contemporâneos, envolvendo uma realidade biofísica e
construções discursivas; a evolução dos movimentos sociais desenvolvidos em torno da
agricultura, tais como os orgânicos e o comércio justo, e a relação tensa que estabelecem com
a agenda corporativa do sistema agro-alimentar; a importância do consumo e de fenômenos
sociológicos, como os medos alimentares, que fazem com que a emergência dos alimentos
orgânicos represente uma crítica ao padrão hegemônico de agricultura, parte importante das
crises de segurança alimentar nas sociedades ocidentais contemporâneas; e o fato de que a
produção orgânica está sujeita a regulação e regras, estabelecidas ou contestadas, que são
mais abertas a inspeções do que a agricultura convencional.
Assim, os autores contestam a linearidade da tendência de comoditização como fim
único para o desenvolvimento da produção e consumo de alimentos orgânicos. A
configuração deste nicho de mercado envolve um campo dialógico onde competem discursos
de uma natureza simbólica e biofísica — incorporada, dos movimentos sociais, dos
consumidores e seus medos, das políticas regulatórias e da competição gerada pelo
envolvimento corporativo, além das regras e dos significados que os alimentos orgânicos
assumem.
Neste sentido, reflito sobre estes discursos à luz de abordagens sociológicas sobre as
cadeias agro-alimentares e aspectos como os movimentos sociais, a certificação e o
imaginário dos consumidores de alimentos orgânicos. Com isso, a seguir, me volto para uma
descrição da trajetória dos movimentos sociais da agricultura alternativa, com ênfase na
agroecologia e na agricultura orgânica.
I.2. Movimento Social de Agricultura Alternativa
Nesta parte, começo com uma apresentação de duas perspectivas teóricas sobre os
movimentos sociais. Na seqüência, desenvolvo uma análise do movimento de agricultura
orgânica, destacando um panorama global e brasileiro.
Na visão de Cohen & Arato (2000), os movimentos sociais são vistos como um
elemento dinâmico de processos sociais que podem transformar em realidade os potenciais
positivos das sociedades contemporâneas. Os paradigmas da “mobilização de recursos” e dos
“novos movimentos sociais” o primeiro mais presente nos Estados Unidos e o segundo na
Europa Ocidental representaram um novo enfoque teórico em relação aos movimentos
sociais anteriores às cadas de 1960 e 1970. Estes dois paradigmas supõem que os
movimentos sociais se baseiam em conflitos entre grupos organizados com associações
autônomas e formas sofisticadas de comunicação, tais como redes e públicos.
Neste sentido, os movimentos sociais contemporâneos são significativamente novos,
pois partem de uma compreensão que abandona os sonhos revolucionários em favor de uma
reforma radical o orientada para o Estado. A ação coletiva, assim, se relaciona com as
formas de associação e estratégias próprias de uma sociedade civil pluralista moderna, em um
contexto que compreende os espaços públicos, os meios de comunicação de massa, os
direitos, as instituições políticas representativas e o sistema de leis.
Uma outra perspectiva é desenvolvida por Alexander (1998) ao entender que os
movimentos sociais são traduções da sociedade civil. O autor associa este termo a processos
não institucionalizados e grupos que os desencadeiam, além das lutas políticas, organizações e
13
discursos dos líderes e seus seguidores, que se juntam com o objetivo de mudar a distribuição
das sanções sociais, as formas de interação social e os grandes ideais culturais.
Neste sentido, os movimentos sociais se alimentam de um senso de comunidade total e
apresentam duas pretensões: primeiro, "representar" a sociedade como um todo, em seus
desejos e melhores interesses como, por exemplo, um grupo de defesa do meio ambiente ou
da cidadania; depois, falar diretamente a toda sociedade em nome de um interesse particular
como, por exemplo, um sindicato, ou um grupo de defesa dos afro-americanos ou das
mulheres. Mais do que simples respostas aos problemas existentes, os movimentos sociais
constituem possibilidades de construir "problemas" convincentes nas esferas da sociedade
civil e de transmitir essa "realidade" construída ao conjunto da sociedade.
A representação ética e uma moral solidária são elementos presentes na retórica dos
movimentos sociais como referência a uma comunidade extremamente idealizada, uma noção
utópica de comunidade. Com isso, atores racionais forjam, espontaneamente, vínculos que
são, ao mesmo tempo, auto-reguladores, solidários e emancipadores, além de independentes
das recompensas do mercado, da religiosa, do afeto familiar, da coerção do Estado e da
verdade científica.
Neste sentido, os movimentos sociais podem ser vistos como os mecanismos sociais
que constroem as traduções entre o discurso da sociedade civil e os processos institucionais
específicos de tipo mais particularista. Eles possuem uma natureza prática e histórica, mas
podem ter êxito se forem capazes de empregar a metalinguagem civil para relacionar esses
problemas práticos ao centro simbólico da sociedade e suas premissas utópicas.
Desta forma, existe uma grande distância destas duas interpretações para o modelo
clássico dos movimentos sociais, em especial em relação ao realismo, materialismo e
preocupação exclusiva com a derrubada do poder prático do Estado destes últimos.
Entretanto, a perspectiva de Alexander (1998) se distancia da teoria dos novos movimentos
sociais, pelo fato desta tratar os argumentos simbólicos como estratégias de defesa contra o
isolamento e a vulnerabilidade de atores que se defrontam com novas formas de dominação
técnica.
Em uma análise da trajetória do movimento agroecológico, Brandenburg (2003) indica
uma tríplice origem do movimento de agricultura alternativa
13
. No Brasil, como movimento
socialmente organizado, a agricultura alternativa surgiu durante os anos 1970 como um
contra-movimento à política de modernização agrícola brasileira, formado por grupos de
agricultores familiares em via de exclusão ou mesmo excluídos diretamente pelos
mecanismos de expropriação da política agrícola
14
.
13
Brandenburg (2003) se refere à agricultura biodinâmica e natural, surgida em 1924, na Alemanha; à
agricultura orgânica, em 1946, na Inglaterra; e à agricultura biodinâmica, em 1940, na França. No Brasil,
imigrantes europeus já haviam introduzido sistemas de produção e de gestão dos recursos naturais, sendo
marginalizados a partir dos anos 1960, no período de modernização verde. Os descendentes dos índios também
dominavam um saber que tinha por base as leis da natureza, configurando uma relação direta com os
ecossistemas naturais.
14
Estes grupos foram agentes de ação de órgãos ligados à ala progressista das Igrejas católica e protestante.
Brandenburg (2003) destaca as Comissões Pastorais da Terra e órgãos como a Associação de Estudos Orientação
e Assistência Rural ASSESSOAR, no Oeste do Paraná; a Associação de Hortigranjeiros do Município do
Turvo no Centro-Oeste do Paraná; o Centro Vianei de Educação Popular, em Santa Catarina; o Centro de Apoio
ao Pequeno Agricultor e o Centro de Tecnologias Alternativas e Populares CETAP, no Rio Grande do Sul.
Estas organizações desenvolveram um serviço de assistência aos agricultores em uma perspectiva política crítica
14
O surgimento da agricultura alternativa no Brasil coincide com o ressurgimento dos
movimentos alternativos nos Estados Unidos e Europa. No entanto, os contextos apresentam
algumas diferenças marcantes: nos Estados Unidos, tratava-se de uma agricultura adaptada
em um contexto de revalorização da propriedade familiar, enquanto na Europa, tinha-se um
modelo defendido pelos movimentos de contracultura e de contestação à sociedade capitalista
e de consumo. No Brasil, a agricultura alternativa surgiu em um contexto de política agrária
excludente, motivada por organizações politicamente engajadas na construção de uma
sociedade democrática e que tinham como objetivo a transformação social.
Em geral, a opção de agricultores pela prática de uma agricultura ecológica envolve
diversos motivos, com destaque para os fatores de ordem econômica, como a busca por maior
rentabilidade financeira; ética, tais como as atitudes de prevenção de doenças causadas por
intoxicação de agroquímicos; e socioambiental, como as orientações de princípios ou crenças
relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio do sistema natural.
Desta forma, o cruzamento entre categorias sociais e correntes do pensamento
ecológico forma uma rede complexa de interações, que dificulta a identificação de
agricultores com uma orientação ideológica autêntica na medida em que o pragmatismo e a
experiência distanciam diversos atores dos princípios ideológicos de origem. No entanto, estes
movimentos caracterizam uma forma de reação e contestação ao domínio técnico industrial,
sendo críticos à agricultura de insumos químicos e/ou associados à preservação da saúde ou a
um estilo de vida anticonsumista.
Autores como Hirschman (1983) e Alexander (1995) assinalaram que neste período
histórico, entre as décadas de 1970 e 1980, houve uma perda de poder dos movimentos sociais
em geral. O relativo sucesso do movimento social de agricultura alternativa chama atenção,
em especial pelas visões diferenciadas sobre as questões ambientais e a relação entre os seres
humanos e a natureza, que desafiam a forma com que as teorias sociais concebem a relação
entre natureza e cultura.
Em uma análise do movimento de agricultores orgânicos dinamarqueses nos termos da
modernidade, por exemplo, Kaltoft (2001) enfatiza o conceito de problemas ambientais, a
relação entre natureza e cultura e o papel da ciência. Esta autora fez uso das diferentes
percepções da modernidade envolvendo os termos “pré-moderno”, “moderno” e “pós-
moderno” — como lentes interpretativas deste movimento.
Neste sentido, um ponto de vista pré-moderno reflete um estilo de vida em que as
escolhas são praticamente impossíveis, pois inseparáveis da tradição. As organizações sociais
derivadas do movimento de agricultores orgânicos costumam demandar a viabilidade das
comunidades rurais, a redução da distância entre consumidores e produtores e a reciclagem de
nutrientes, como a integração entre cidades, sistemas agro-ecológicos e ecossistemas naturais.
Estas demandas são caracterizadas como “pré-modernas” por serem contrárias à direção dos
sistemas agro-alimentares globais na medida em que buscam uma relação diferenciada entre
seres humanos e natureza, que volte a entender e respeitar também a relação com o solo.
A interpretação moderna aparece de forma predominante na análise de Kaltoft (2001),
pois o processo de institucionalização da agricultura orgânica envolveu mudanças na relação
entre consumidores e produtores, que se tornou impessoal e mediada pelos mercados; nas
à modernização da agricultura. Desta forma, resgatavam práticas tradicionais conhecidas dos agricultores,
compondo um conjunto de estratégias para a reprodução social dos agricultores no campo.
15
atitudes frente às instituições científicas; e nas visões sobre a natureza. Com isso, a agricultura
orgânica perde seu caráter de movimento social, tendo em vista que suas práticas se
integraram às formas de conhecimento, especialidades e idéias de sustentabilidade das
instituições dominantes.
Assim, a agricultura orgânica torna-se parte integrante do sistema agro-alimentar
hegemônico globalmente, no qual o conhecimento científico especializado e a relação com
leis e especialistas conferem uma forte crença na capacidade da racionalidade ocidental
desenvolver um sistema de produção de alimentos racional e econômico. Em relação à
natureza, a agricultura orgânica passa a ser vista como um meio técnico de resolver problemas
ambientais usando contribuições da ecologia.
Por fim, em uma lente pós-moderna, o movimento de agricultores orgânicos também
pode representar uma evidência da modernização reflexiva e da individualização como forma
avançada de socialização. A transição da modernidade simples para a reflexiva define a
ciência e a tecnologia como problemas (BECK, 1997). As organizações do movimento
passam a se destacar no debate público, tornando-se um ator importante na política agrícola e
na administração estatal.
O movimento de agricultores orgânicos aparece, assim, como exemplo que expressa a
transição da modernidade tanto pela possibilidade do agricultor fazer sua própria vida, quanto
pela politização da ciência e do consumo. Desta forma, a agricultura orgânica, bem como a
interação entre o seu movimento e o restante da sociedade são elementos da modernidade
clássica relacionadas com a modernização reflexiva das sociedades contemporâneas
15
.
No Brasil, Brandenburg (2003) destaca três momentos distintos, mas não excludentes,
no desenvolvimento de uma agricultura ecológica ou alternativa, desde o seu aparecimento:
(a) sua gênese, como contra-movimento à modernização verde da década de 1960; (b) seu
reconhecimento, pela construção de uma identidade em torno de um projeto social; e (c) sua
institucionalização, mediante o crescimento da demanda dos consumidores e uma
sensibilização maior da sociedade frente as questões socioambientais.
O primeiro momento remete à gênese desta agricultura como contra-movimento ao
processo de industrialização da produção agrícola com uso de agrotóxicos na medida em que
todas as vertentes da agricultura alternativa ou ecológica, usualmente agregadas no termo
“agroecologia”, visam potencializar os recursos produtivos adotando técnicas de manejo que
consideram princípios ou leis naturais.
Cabe destacar que a agroecologia expressa uma relação entre os seres humanos e a
natureza, mediada por uma representação que não exclui a natureza do homem, ou seja, eles
permanecem ligados por elementos comuns, pois os seres humanos compreendem
subjetividade e racionalidade. Desta forma, Assis (2002) entende a agroecologia como uma
ciência que surge como base teórica para diversos movimentos de agricultura alternativa, pois
15
Kaltoft (2001), no entanto, indica os limites para que o conceito de sociedade de risco de Ülrich Beck rompa
com a dicotomia moderna entre natureza e sociedade na medida em que esta abordagem opta por dissolver a
natureza na sociedade. Ao adotar a perspectiva do ator-rede, de Bruno Latour, na qual humanos e não-humanos
são mobilizados na produção de híbridos (tecnologia) e fatos (conhecimento), a autora compreende a existência
de interdependência entre o conjunto de híbridos, dissolvendo assim a crença moderna de uma separação
ontológica entre natureza e cultura.
16
procura entender o funcionamento do agrossistema, preservando e ampliando sua
biodiversidade a fim de produzir auto-regulação e sustentabilidade.
A agroecologia traz uma mensagem ambiental e ecológica em que a relação homem-
natureza é mediada por uma representação que valoriza o ambiente. Diferentemente da
agricultura convencional, a natureza deixa de ser entorno para representar uma visão de
mundo na qual o homem integra o mundo natural e se identifica com ele. Além da
racionalidade instrumental, esta produção agrícola passa a ser orientada por diversas outras
racionalidades relacionadas com a natureza do homem, definindo um estilo ou modo de vida.
Uma dimensão mística ou de religiosidade presente na origem desta vertente
alternativa de agricultura confere ao movimento agroecológico uma mensagem “passadista ou
pré-moderna” que articula um sistema de vida que se orienta por múltiplas racionalidades
econômica, social, afetiva, ética, entre outras. Naquele momento inicial, o ressurgimento de
uma agricultura ecológica, em plena fase de expansão do mercado competitivo das sociedades
modernas, a manteve na marginalidade. Diversas categorias sociais participavam do
movimento agroecológico, comungando um projeto comum de reconstrução de novas
relações com a natureza e com a sociedade.
A ciência agroecológica procura resgatar, assim, a lógica das sociedades camponesas
tradicionais, especialmente daqueles conhecimentos que foram desprezados pela agricultura
moderna. A natureza reforça a dimensão natural dos seres humanos ao se identificar com eles.
Trata-se, com isso, de uma forma de vencer o desafio de estabelecer uma agricultura
sustentável na medida em que este resgate se torna possível pela integração de princípios
ecológicos, agronômicos e socioeconômicos para entender o efeito das tecnologias sobre a
produção agrícola e a sociedade como um todo (ASSIS, 2002).
Desta forma, Almeida (2003) caracteriza o campo da agroecologia pela fluidez,
ambigüidade e contradições, que muitas vezes estão circunscritas na exaltação ideológica e
moral de seus pressupostos, bem como nos pretensos benefícios e superioridade em relação à
ciência estabelecida. O autor considera que os movimentos sociais se afirmam em função de
suas razões sociais e políticas, ao invés dos méritos técnicos e morais de seu conjunto de
idéias. Neste sentido, as ações e manifestações agroecológicas podem ser enxergadas como
possibilidade de renovação do político e do sistema técnico-produtivo, conformando uma
fonte de mudanças culturais.
Entretanto, Almeida (2003) relaciona a fragilidade da exposição e da estratégia
agroecológica à desvalorização dos critérios sociopolíticos em benefício de critérios
fortemente culturais e técnico-econômicos, que distinguem e privilegiam as agriculturas
“camponesas” ou “indígenas”, de uma forma, muitas vezes, moralista e acrítica. Com isso, o
enfoque sociopolítico do movimento se volta para o plano da confrontação ideológica com
uma tendência de valorização dos princípios morais e técnicos da agroecologia. Assim, divide
mais que unifica a luta em torno de sua afirmação e generalização.
Com isso, o autor aponta um vácuo entre o discurso agroecológico, de caráter
fortemente ideológico, e a prática agroecológica, que se aproxima mais de uma agricultura
poupadora de insumos e menos impactante do meio ambiente. Desta forma, a agroecologia
17
pouco se distingue das múltiplas versões de “agricultura sustentável” muito em voga nos
meios oficiais e não-governamentais
16
.
No segundo momento do movimento agroecológico, Brandenburg (2003) destaca
uma identidade que se reafirma em torno de um projeto social, permitindo o reconhecimento
social do movimento em uma conjuntura de valorização da ecologia. As feiras e sistemas de
entregas de sacolões possibilitaram o surgimento de novos grupos e formas de organização
comercial, além de ampliarem o apoio de consumidores de uma forma mais organizada.
Desta maneira, o movimento experimentou uma expansão articulada, regional e
nacionalmente, no sentido de criar instituições e buscar apoio técnico e político. Este
crescimento em forma de rede preservou as diferenças e a autonomia das organizações locais
e diferentes tendências do movimento ecológico, diferentemente do que Kaltoft (2001)
caracterizou como um período “moderno” do movimento de agricultores orgânicos
dinamarqueses.
O terceiro momento se configura com o surgimento dos riscos sociais, o
desenvolvimento da idéia de uma crise ambiental em curso e a sensibilização cada vez maior
da sociedade com as questões ambientais e suas instituições. Atualmente, a agricultura
alternativa passa a ser cada vez mais reconhecida e demandada pelos consumidores, além de
ser contemplada nas políticas de desenvolvimento. A institucionalização da agricultura
ecológica como forma de produção é fomentada pelos aparelhos governamentais, o que requer
um ajustamento e uma reorganização das estruturas de beneficiamento e comercialização.
Brandenburg (2003) entende que a institucionalização da agricultura ecológica se
realiza nas formas e padrões da produção convencional. De um lado, ocorre uma dinamização
da produção, que permite o acesso de um maior número de consumidores a produtos de
qualidade ecologicamente superior. De outro, a produção ecológica começa a absorver a
lógica organizadora do sistema hegemônico ou do capital. Desta forma, o autor enfatiza a
diluição de alguns princípios da produção ecológica na medida em que a racionalidade do
capital privilegia a dimensão da rentabilidade, ou seja, a produtividade visando o lucro, em
detrimento da multidimensionalidade do sistema natural. Apesar disso, destaca a
permanência da produção agroecológica de comércio tradicional e seletivo.
Dentre diferentes correntes de agricultura alternativa, ecológica ou agroecológica,
Assis (2002) destaca a agricultura orgânica como a mais difundida, sendo, inclusive,
reconhecida pela maioria dos consumidores como sinônimo de todas estas outras na busca de
uma nova prática agrícola moldada em função do processo social em que se insere. Estas
práticas determinam diferentes modos de encaminhamento tecnológico e de inserção no
mercado, que influenciam diretamente no grau em que os limites teóricos da agroecologia são
respeitados.
Neste sentido, Assis (2002) destaca a necessidade de minimizar os impactos da
inserção da produção orgânica no mercado para que sua prática agrícola não se afaste dos
pressupostos teóricos da agroecologia, ou seja, de equilíbrio entre os parâmetros ecológicos,
agronômicos, econômicos e sociais. Para isso, o autor entende os sistemas familiares de
produção como os mais bem posicionados para implementar novas práticas agroecológicas
16
Almeida (2003) entende que as discussões em torno da sustentabilidade da agricultura ou da melhor
adaptabilidade dos novos padrões biotecnológicos a essas exigências de sustentabilidade parecem ignorar os
pressupostos, as estratégias e as experiências agroecológicas praticadas.
18
porque possuem estruturas de produção diversificadas, bem como um nível de complexidade
desejado, ambos passíveis de supervisão e controle do processo de trabalho.
Além disso, não infere a inviabilidade da agricultura orgânica para grandes produtores
empresariais. Porém, destaca que sistemas com estas características possuem maiores
restrições a um desenho produtivo diversificado o que determina que trabalhem próximo ao
limite inferior da complexidade desejada para não se afastar das premissas agroecológicas,
assegurando a sustentabilidade.
Desta forma, Assis (2002) entende a necessidade de adotar uma postura crítica em
relação ao mercado de produtos orgânicos a fim de encará-lo como um meio, e não objetivo
principal, do processo de desenvolvimento. Por isso, o autor defende o desenvolvimento dos
mercados a partir de ações locais que aproximem agricultores e consumidores.
Com isso, os agricultores orgânicos, especialmente os familiares, como participantes
da sociedade civil organizada, lutam pelo estabelecimento de processos de certificação
democráticos, sem inibir a participação do maior número possível de agricultores pobres neste
promissor mercado. Apresento, a seguir, um panorama da certificação de produtos orgânicos,
enfatizando o contexto brasileiro.
I.3. Certificação
O rótulo “orgânico” aplica-se aos produtos produzidos de acordo com normas de
controle, desde a produção até a manipulação, processamento e comercialização. Barbosa &
Lages (2006, p. 3) classificam os produtos orgânicos como “bens de crença”, uma vez que
apresentam atributos de qualidade altamente específicos, não-identificáveis
mediante simples observação. A qualidade orgânica está relacionada com a
confiabilidade na presença de propriedades específicas nos produtos, ou seja,
refere-se à confiança que os consumidores podem comprar determinados produtos
se estiverem buscando propriedades especificas. No caso dos produtos orgânicos,
estes atributos resultam do modo como foram produzidos, que não são,
necessariamente, visíveis ou prontamente identificáveis. Os consumidores não têm
capacidade para reconhecer estes atributos, seja na hora da compra, ou mesmo após
experimentar o produto.
Como “bens de crença”, seus atributos não podem ser facilmente identificáveis pelos
consumidores. Portanto, necessitam de algum sistema de confiança que credibilidade ao
produto. Neste sentido, considera-se que os consumidores não têm “acesso perfeito à
informação”, utilizando critérios de experiência e de crença para escolher produtos deste tipo
(FONSECA, 2005).
No Brasil, os sistemas de confiança e credibilidade dos produtos orgânicos, e suas
formas de regulação passaram por um conjunto de alterações dos valores ligados a
convenções sociais. Em especial, da confiança pessoal baseada nas interações face-a-face,
para os valores ligados a uma lógica industrial, como a padronização, a certificação e a
auditoria, constituindo um comércio formalmente regularizado de commodities.
Fonseca (2005) entende que, pelo menos até o início da década de 1980, não havia um
sistema formal de certificação e fornecimento de selos de garantia aos consumidores, já que as
feiras e as cestas a domicílio colocavam agricultores orgânicos e consumidores em contato
direto. No entanto, havia um acompanhamento de técnicos e agrônomos às associações e
cooperativas de agricultores e seus cultivos, na esteira dos movimentos de agroecologia. Essa
19
troca de experiências e conhecimentos possibilitou a criação de uma rede de geração de
credibilidade dos consumidores na produção e comercialização de alimentos orgânicos.
Durante os anos 1980, buscou-se uma integração em que diversos atores seriam
responsáveis, de forma associativa, pelo controle e pela qualidade do alimento orgânico. O
objetivo não era certificar nem fornecer um selo, mas garantir a credibilidade de uma forma
associativa o que pode ter influenciado a opção futura em construir, no Brasil, um sistema
de avaliação de conformidade alternativo à certificação por auditoria. A normalização era
estabelecida pelas cooperativas de agricultores, ONGs ligadas à agroecologia, cooperativas de
consumidores
17
e técnicos agrícolas, com regras baseadas em normas internacionais.
A partir da década de 1990, iniciaram-se trocas interestaduais e as garantias de que os
produtos eram orgânicos tiveram que passar a se basear nas relações construídas e
estabelecidas entre os atores dessas novas redes, sendo atestadas, por exemplo, através de
declarações emitidas por fornecedores e enviadas aos compradores. Com isso, Fonseca (2005)
entende que o processo de discussão sobre normalização e certificação da agricultura orgânica
desencadeado no âmbito do governo brasileiro tem relação com (a) a ocupação de uma
pequena, mas crescente, faixa do mercado de alimentos pelos produtos orgânicos; (b) a
pressão do mercado europeu e outros países importadores de produtos orgânicos brasileiros,
como Estados Unidos e Japão; (c) a demanda do mercado interno; e (d) a pressão de
organismos certificadores brasileiros voltados para exportação.
Segundo Meirelles (apud FONSECA, 2005), a certificação teve origem em dois fatos:
primeiro, o fato de que os produtos orgânicos, embora não se possa enxergar, são um alimento
“puro”, livre de agrotóxicos; segundo, a necessidade de sobrepreço
18
, pelo fato do alimento
ser mais “limpo”. Daí surge a necessidade de garantir ao consumidor que ele realmente
comprou o que esperava comprar.
Portanto, durante os anos 1990 foram construídas, no âmbito privado, redes de
produção, comercialização e consumo de alimentos com qualidade, observando princípios e
valores de respeito às pessoas e ao meio ambiente, preconizando a eliminação do uso de
fertilizantes, pesticidas químicos e organismos geneticamente modificados. Entretanto, a
institucionalização da agricultura orgânica no Brasil veio valorizar critérios que validam a
qualidade do produto orgânico final, ao contrário da definição de “produto orgânico” utilizada
nos primórdios dos movimentos sociais bem mais ampla –, que incluía a regulação dos
processos. Com o padrão de institucionalização e certificação adotado, a definição passa a ser
em torno de normas de produtos.
Dessa forma, surgiram obstáculos às garantias de conformidade dadas pelo produtor,
privilegiando-se a certificação do produto, e não do processo. Ao mesmo tempo,
desapareceram das regulamentações técnicas os critérios relativos aos aspectos sociais,
iniciando uma tensão entre os movimentos da agricultura orgânica e o processo de
institucionalização, levando alguns atores a buscar alternativas de comercialização.
17
FONSECA (2005) cita, como exemplo de cooperativa de consumidores atuantes na normalização do mercado
de orgânicos nesta época, a COOLMEIA (surgida no Rio Grande do Sul em 1978) e a COONATURA (surgida
no Rio de Janeiro em 1979).
18
Os preços dos produtos orgânicos variam muito no tempo, em razão das tendências da estação de produção e
consumo, bem como de um lugar de mercado para outro no mesmo país. Estimativas apontam que os produtos
orgânicos apresentam preços que são de 20 a 200% mais caros que os convencionais, dependendo do produto e
do ponto de venda, como resultado das diferenças nos custos de produção e de distribuição (BRASIL, 2007).
20
Tabela 1: Normas básicas orgânicas
Fontes: IFOAM (2002b), Codex Alimentarius Comission (2001a), FAO (2001) apud Fonseca
(2005).
Mais que uma simples estratégia de empresários agro-alimentares, Fonseca (2005)
considera a certificação como um fenômeno incorporado pelas indústrias e serviços dos
“países de alta renda”. A partir dos anos 1990, com a introdução dos procedimentos de
avaliação da conformidade, envolvendo normas públicas e privadas, e a entrada dos produtos
orgânicos certificados nos grandes canais varejistas e no círculo das trocas comerciais
internacionais, observa-se uma mudança na coordenação do sistema agro-alimentar e na
organização do mercado de produtos da agricultura orgânica.
Na maioria dos mercados dos países de alta renda, os sistemas de certificação de
produtos orgânicos funcionam através de um organismo, devidamente habilitado pelo
Estado ou por mecanismos regionais, como a União Européia que atesta, por meio de uma
avaliação de conformidade, que um produto preenche os critérios exigidos, cujas normas
básicas constam na figura 3. Fonseca (2005) entende que a proliferação de normas de
certificação constitui um entrave ao desenvolvimento do mercado de orgânicos na medida em
que aumenta custos, trabalho e tempo, criando dificuldades para o comércio mundial dos
produtos orgânicos, especialmente para os países de baixa renda.
No Brasil, o processo de regulamentação da Lei 10.831/2003, que dispõe sobre a
agricultura orgânica, evidenciou as tensões no seio dos movimentos sociais (FONSECA,
2005). De um lado, aceitar uma normalização construída e imposta por padrões externos,
tendo a certificação como única forma de garantia da conformidade dos produtos orgânicos.
De outro, estabelecer padrões nacionais de produção e transmissão da confiança aos
consumidores, baseados em processos históricos mais adequados aos pequenos produtores
dos países de baixa renda, com pouca, ou nenhuma infra-estrutura de apoio governamental ou
21
privado. A lei foi regulamentada pelo Decreto 6323/2007, cujo texto busca equilibrar as
diferentes formas de certificação, seja por auditoria
19
ou participativa
20
, abrindo espaço para a
comercialização diretamente pelo produtor, desde que cadastrado junto ao Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento — MAPA.
Mesmo assim, o ritmo de crescimento da produção orgânica certificada no Brasil
ainda é limitado tanto por problemas de oferta e de organização do mercado, quanto pelas
insuficiências das políticas de estímulo à conversão e à produção. Em uma análise que
considera desde as primeiras experiências de cunho prático com agricultura orgânica no Brasil
na década de 1970 até 1995, quando os produtos orgânicos começaram a ser vendidos nos
supermercados de São Paulo, e em 1996, no Rio de Janeiro, Dalrot (2000) conclui que seu
desenvolvimento ocorreu de forma muito lenta.
Torna-se interessante entender a percepção dos consumidores de alimentos orgânicos
em relação à certificação. Apesar dos alimentos orgânicos serem considerados “bens de
crença”, os significados que os entrevistados associam à certificação traduzem uma tensão
entre confiança e desconfiança, oscilando entre a confiança nas relações estabelecidas com os
produtores e a confiança nos selos de certificação.
Primeiro, seria uma forma de justificar um preço mais alto, e, a outra, de dar uma
garantia às pessoas. E como também tem tanta burocracia junto, acaba deixando os
produtos muito caros, e essa é uma justificativa para eles serem caros. Acho que
num grande centro, por exemplo, um supermercado na Barra da Tijuca já tem uma
seção de orgânicos. Então, se morasse na Barra da Tijuca, talvez fosse procurar
daquele selo. Aqui [em Nova Friburgo/RJ], que conheço e convivo com as
pessoas todos os dias, não procuro o selo (C23).
Acho que em cidade grande você tem que estar mais preocupado com a
certificação, mas aqui você conhece quem trabalha. Então você conhece a figura ou
o supermercado que tem daquele sítio tal que é orgânico. Mas não procuro tanto o
selo, não. Às vezes, vejo e compro (C29).
Para além desta tensão, a certificação teria, para os entrevistados, a função de
fiscalização dos padrões de produção e de informação aos consumidores, mesmo que
insuficientes, sobre a origem dos alimentos.
É uma garantia de que o produto realmente é orgânico (C6).
19
Consiste na inspeção e orientação da produção e processamento de alimentos por normas e práticas orgânicas
para garantir ao consumidor um alimento isento de toxinas, cuja produção respeite o meio ambiente. Esse
processo se através de auditorias independentes: um terceiro agente, que não é produtor nem consumidor,
garante a qualidade da produção orgânica (VIAN et ali, 2006). As certificadoras emitem um certificado com
validade de um ano e o produtor paga uma taxa para utilizar o selo. Esse processo pode ser individual ou em
grupo forma pela qual divide-se o custo total da certificação pelos produtores que estão sendo certificados. Os
custos de emissão do certificado variam de 0,5% a 2% do valor faturado para a mercadoria (CAMARGO &
FILHO (2004).
20
DAMBORIARENA (2001) refere-se a esse processo de certificação como um sistema de redes de
credibilidade, envolvendo organizações de agricultores e organizações não-governamentais de forma direta e
participativa, que compõe regras e normas, e trabalha com comissões de ética ao nível local e regional. Neste
caso, não existe a figura externa do certificador e do auditor. Este tipo de certificação vem sendo praticada, por
exemplo, pela Rede Ecovida/SC e pela COOLMEIA/RS compostas por ONGs, grupos informais e
profissionais ligados à agroecologia e consumidores. O objetivo desse processo é oferecer credibilidade sem
onerar a cadeia produtiva e como custos baixos (VIAN et ali, 2006). Estas iniciativas resgatam a valorização do
encontro entre os consumidores finais e os produtores, incentivando visitas dos consumidores às regiões
produtoras. De certa forma, esses produtores perseguem os mercados locais e suas estratégias não estão voltadas
à exportação.
22
Imagino que deva ter uma fiscalização dos produtos, eles têm que prestar contas da
forma como cultiva (C48).
Uma segurança em todos os sentidos, para a saúde, para voconsumir com mais
segurança. Acho que uma certificação traz junto toda uma pesquisa, e espero que
seja uma pesquisa bastante séria (C9)
Acho que é só informação de como é feito, é pouco. Podia ter mais (C46).
Por outro lado, apesar de alguns consumidores entrevistados fazerem referência aos
selos, especialmente na compra em supermercados, muitos disseram ser profundos
conhecedores do que compram, relatando a capacidade de diferenciar os alimentos orgânicos
por características como a textura, o sabor, o paladar, a maciez, o olfato e o tamanho.
Algumas coisas são mais saborosas. Por exemplo, a cenoura orgânica tem uma
coloração mais forte. Se conservar na geladeira, dura mais. Isso é uma coisa visível.
As verduras duram um pouco mais (C45).
No paladar que percebo diferença. Como te falei o negócio da alface, a alface
orgânica é mais macia. Você sente isso na hora em que você come. Você sente mais
sabor numa cenoura orgânica (C14).
Acho que é a prática. Você olha pela cor, é muito diferente [...] Já tenho essa
prática, olho aquela fruta e é assim: “me chamou”, eu levo. Você pode falar, “é
maluca!” Mas é uma cor, um lustre diferente (C9).
Portilho & Castañeda (2008) observaram que a confiança de consumidoras que
adquiriam alimentos orgânicos em uma feira certificada se constrói predominantemente a
partir de interações face-a-face e, em menor importância, através dos sistemas peritos de
certificação. Nesta pesquisa, no caso da compra direta com o produtor, por exemplo, o fato de
conhecê-lo prevalecia sobre o selo de certificação, no que se refere à confiança no caráter
orgânico dos produtos. Desta forma, o selo de certificação parece ter mais importância no
caso dos produtos adquiridos em lojas e supermercados.
De acordo com a abordagem de Warde (1997 apud CASTAÑEDA & PORTILHO,
2009), percebi algumas antinomias entre o alimento orgânico, associado por eles à “verdade”,
“sustentabilidade” e “manejo correto do solo”, e o não-orgânico, associado à “doença”,
“lucro”, “dinheiroe “produção em massa”. Neste sentido, grande parte dos consumidores
entrevistados afirma saber algo sobre sistema de certificação e considera os rótulos das
agências certificadoras nas suas escolhas, apesar de uns dizerem não prestar muita atenção ou
não detalharem o que dizem saber.
Com isso, apesar dos alimentos orgânicos serem considerados “bens de crença”, os
significados que os entrevistados associam à certificação parecem traduzir uma tensão entre
confiança e desconfiança, que oscila entre a confiança nas relações estabelecidas com os
produtores e a confiança nos selos de certificação. Para além desta tensão, a certificação teria
a função de fiscalização dos padrões de produção e de informação aos consumidores, mesmo
que insuficientes, sobre a origem dos alimentos.
I.4. Imaginário dos Consumidores de Orgânicos
Goodman et ali (2001) compreendem o remanejamento dos valores e compromissos
cotidianos que sustentam as escolhas de consumo em função de mudanças nos recursos
discursivos como elemento central para entender os imaginários sociais que permeiam a idéia
23
de “consumo sustentável”. Neste sentido, as mudanças de visão de mundo podem transformar
os hábitos de consumo, provocando mudanças significativas na demanda de mercado ao criar
possibilidades comerciais lucrativas para mercadorias produzidas de forma mais sustentável
como, por exemplo, os alimentos orgânicos.
Os autores indicam a existência de duas vertentes de possibilidades discursivas para
que os alimentos orgânicos sejam interpretados como reflexo de um processo de
ambientalização da sociedade. De forma mais restrita, a emergência dos orgânicos pode ser
vista como uma questão tecnológica, que estimula o processo de competição capitalista por
meio de políticas de incentivo estatais e códigos de investimento éticos. Isso aceleraria a
transição dos setores produtivos, das indústrias, e das economias capitalistas, de forma geral,
na direção de padrões de um desenvolvimento mais sustentável.
Por outro lado, de forma mais flexível, as racionalidades e formas de organização
alternativas podem co-existir com as dinâmicas do capitalismo, inclusive com potencial de
restringir as relações capitalistas. Esta vertente enxerga as escolhas dos agentes individuais
como forças de mudança social e ambiental que reordenam as relações sociais com a natureza
ao desenvolverem novas redes de produção e consumo baseadas em valores e compromissos
sociais compartilhados.
Com isso, o potencial transformador da idéia de consumo sustentável” não se assenta
em mobilizações sociais no sentido convencional, ou seja, associadas aos movimentos sociais
ou a um ativismo político coletivo. Apesar disso, a integração entre produção e consumo nas
redes de alimentação orgânicas parece competir cada vez mais com os discursos hegemônicos
e com o poder econômico que regula o sistema agro-alimentar. Neste sentido, o mapeamento
das diferenças entre os discursos e as práticas ecológicas constitutivos dos imaginários da
sustentabilidade depende da definição de capitalismo a ser considerada.
Assim, de um lado, Goodman et ali (2001) relaciona a tese da universalização a um
contexto no qual o capitalismo e a racionalidade instrumental permeiam todas as áreas de
interação humanas, configurando uma espécie de “colonização da vida”, como na expressão
cunhada por Jurgen Habermas. Neste sentido, pelo seu foco em relações técnicas ou nas
forças de produção e suas conseqüências ambientais, a idéia de “consumo sustentável”
aparece como forma de competição tecnológica. Como conseqüência desta competição, a
transparência da cadeia agro-alimentar e o estímulo à reflexividade parecem abrir
possibilidades para a expressão de demandas individuais e sociais em prol de uma menor
degradação ambiental.
De outro lado, se a racionalidade instrumental da economia capitalista não for
considerada universal, a comoditização seria desigual e as alternativas poderiam co-existir
com o padrão hegemônico. Desta forma, a idéia de “consumo sustentável” pode ser concebida
como uma alternativa que co-existe e expande a economia capitalista. Goodman et ali (2001)
entendem que ambas as perspectivas sobre a idéia em voga de “consumo sustentável” podem
interrogar a racionalidade, os valores e os objetivos que estruturam as relações sociais, bem
como as relações sociedade/natureza, sem abarcar grupos ou formas sociais homogêneas.
Em uma análise sobre os consumidores de alimentos orgânicos australianos, Lockie et
ali (2002) apontaram que a maioria das pessoas acredita serem os alimentos orgânicos
certificados mais saudáveis, bem como que ofereciam menos riscos. Este foi um fator
decisivo para o surpreendente crescimento nas vendas durante os anos 1990. Entretanto, a
escalada comercial dos orgânicos foi acompanhada de críticas na mídia e nos meios
24
científicos australianos, o que criou confusão e ambivalência entre os consumidores em
potencial envolvendo a melhoria da saúde ou os benefícios ambientais advindos da escolha de
alimentos orgânicos.
Estes autores entendem que o destaque do setor de alimentos orgânicos contribuiu para
incrementar um conjunto de significados, que não são exclusivos deles, mas também eram
inerentes aos “não-orgânicos”. Desta forma, desmistificaram o potencial dos orgânicos em
traduzir preocupações e desejos de uma reforma substancial da produção alimentar ou das
práticas de processamento e comércio.
Neste sentido, vegetais convencionais podem assumir significados de “frescos”,
“saudáveis” e “nutritivos”, mas tornam-se “contaminados”, “artificiais”, “insossos” e
“nutricionalmente inferiores” quando contrastados com os vegetais orgânicos. Por outro lado,
os vegetais orgânicos também podem ser vistos como “fraudulentos” e “manchados pela
dúvida”. Com isso, a proliferação dos discursos e significados pode agir a favor e contra, ao
mesmo tempo, à expressão do consumidor como agente.
Em outra perspectiva, Guthman (2002) considera uma disjunção entre as
representações da agricultura orgânica e a política econômica de provisão de alimentos
orgânicos. Com a absorção pelos mercados, os significados dos alimentos orgânicos teriam se
desestabilizado, afetando a distribuição de valores, com a valorização das prateleiras em
detrimento do metabolismo ecológico do solo.
Desta forma, a construção destes significados ao longo do processo de regulação dos
alimentos orgânicos foi elemento central para criar oportunidades de alta rentabilidade. Se, de
um lado, propiciou que os pequenos produtores prosperassem em outros mercados, de outro,
se baseou em barreiras de entrada legal e socialmente construídas. A produção orgânica
passou a envolver mecanismos em que todos os agricultores foram levados a intensificar o
uso da terra e a produtividade do trabalho.
Além disso, a autora estabelece parâmetros para o gosto dos alimentos orgânicos.
Neste sentido, uma elevada subjetividade e reflexividade caracterizam os praticantes de uma
alimentação orgânica. Eles demonstram a necessidade de superar a ansiedade social, fazendo
o que consideram ser a coisa certa, ou seja, optando pela saúde em detrimento da indulgência,
pelo cuidado ao invés da conveniência, pela extravagância sobre a economia, e pela novidade
ao invés da tradição.
No entanto, estes significados criam tensões na política econômica da produção de
alimentos orgânicos. Isso se dá, pois, para que o alimento orgânico esteja inserido em uma
estética presente, ele deve ser um produto precioso e limitado, localizado em um nicho de
mercado específico. Estas características não correspondem à expansão da produção orgânica.
Com isso, para satisfazer a necessidade de transparência e simplicidade ou mesmo privilegiar
o cuidado em relação à conveniência são cada vez menores as oportunidades de valor
agregado.
Disto resulta que os alimentos orgânicos apresentam dois principais e diferentes
sistemas de provisão. Um deles produz a baixos custos e processa os alimentos em mercados
de massa, apelando para os significados de saúde e segurança. O outro produz com alto valor
agregado para mercados diretos e apela para significados como os de organicidade, mudança
política e novidade.
25
Como o conceito ambiental imanente ao consumo de alimentos orgânicos remete à
antinomia natureza/técnica, em função de um uso menos intensivo da natureza, Guthman
(2002) assinala um paradoxo em relação ao cuidado com a terra, que tende a se basear no
melhor uso, sendo capitalizada pelo desenvolvimento de uma produção que seja a mais
intensa possível em um dado espaço. Com isso, as melhorias que a terra precisa passar ou
exibir para se converter em uma produção orgânica provoca variações de rentabilidade. Deste
modo, os processos de certificação da produção podem gerar diferentes rendas, criando um
potencial para o monopólio de rendas, tendo em vista que o produtor deve pagar um preço
pelo aluguel da terra para continuar a produzir uma mercadoria a fim de vender neste nicho de
mercado.
Desta forma, Guthman (2002) identifica uma maior implicação da rastreabilidade para
a mediação dos gostos, envolvendo “para onde” e “como” o alimento é produzido, comido,
metabolizado e disponibilizado. As contestações sobre a mediação atual da antinomia
natureza/técnica pelos alimentos orgânicos faz com que a “indústria do orgânico”, que
alimenta o crescimento do setor pela via dos mercados de massa, preste menos atenção aos
conceitos agroecológicos, ficando satisfeita ao redefinir as regras orgânicas de forma a fazê-
las mais amenas e voltadas para os interesses de uma agricultura mais industrializada.
Lockie et ali (2002) entendem como senso comum a crença de que o crescimento do
segmento orgânico se dá em função de consumidores atraídos tanto por atributos relacionados
com a saúde e segurança alimentar, bem como pelo elevado status dos alimentos orgânicos.
Isso é parcialmente verdadeiro, pois os impactos não são tão dramáticos quanto sugeridos
pelos estereótipos. Neste sentido, os consumidores de alimentos orgânicos parecem expressar
convicções e motivações em relação a questões ambientais, saúde animal e biotecnologia que
são tão fortes quanto aqueles que não consomem estes produtos.
Estes autores destacam que os consumidores não são confrontados com escolhas
simples entre certo e errado, ou entre um alimento orgânico bom, saudável,
ambientalmente amigo e um alimento convencional mal, prejudicial à saúde,
ambientalmente destrutivo. Ao invés disso, se vêem às voltas com desejos, preferências,
ansiedades e crenças que competem com questões práticas de avaliação, conveniência e custo.
Com isso, apesar de destacarem fortes correlações entre o consumo de alimentos orgânicos e
variáveis como elevada escolaridade e gênero feminino dos consumidores, Lockie et ali
(2002) sugerem que isso não seria suficiente para falar de uma ambientalização da sociedade.
Por outro lado, no Brasil, em pesquisa realizada na cidade de Curitiba/PR, Rucinski &
Brandenburg (2002) perceberam que os consumidores de alimentos orgânicos internalizam o
processo ambiental, pois acreditam que suas condutas não intervêm na natureza de forma
degradante na medida em que resgatam valores esquecidos pela sociedade moderna. Desta
forma, um resgate do “natural” por parte destes consumidores, com a reintegração de
práticas alternativas em seu cotidiano como uma tentativa de reorganizar o meio ambiente.
Neste sentido, a insegurança frente aos riscos causados pelas inovações tecnológicas
da sociedade industrial e suas inúmeras ameaças tornaria os indivíduos mais céticos em
relação à ciência e à tecnologia. Os consumidores de alimentos orgânicos demonstram
consciência acerca das incertezas científicas e dos riscos que os agrotóxicos causam à saúde
humana, percebendo estes alimentos como uma espécie de prevenção.
Desta forma, uma rede de mbolos ecológicos e não convencionais, juntamente com
fatores como freqüência e demanda, faz com que os consumidores de alimentos orgânicos
26
compreendam a alimentação como parte de um estilo de vida. Esta é uma demanda que
promove o mercado, cuja possibilidade de expansão pode concretizar uma outra agricultura,
além de valorizar a mão-de-obra do trabalhador rural. Os consumidores de alimentos
orgânicos parecem, assim, adotar um estilo de vida alternativo de sujeitos que percebem o
mundo sob uma nova ótica, recriando um modo de vida que procura se diferenciar do
universo moderno e suas implicações.
Durante as entrevistas em profundidade realizadas nesta pesquisa, os consumidores de
alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ falaram sobre sua iniciação a este tipo de consumo,
destacando as motivações e influências que os levaram a consumir rotineiramente estes
alimentos, bem como as qualidades e os benefícios que associavam a este consumo.
Neste sentido, a ausência de agrotóxicos aparece como principal motivação para a
iniciação ao consumo de alimentos orgânicos. Estes alimentos são considerados mais
saudáveis, traduzindo a consciência destes consumidores em relação à saúde pessoal, bem
como uma maior harmonia e atenção deles em relação à natureza.
Consumir um orgânico, uma fruta, a gente estava falando da banana; primeiro, acho
que aviva a relação do ser humano com a natureza, enquanto geradora do alimento
[...] vejo essa história da importância que dou a esse alimento vivo a importância
que é essa natureza pra mim, porque ela que é a mãe, ela é a geradora dos
alimentos. Então, se maltrato ela, eu não vou ter esses alimentos. (C9).
Eles partilham da crença de que desempenham um papel importante no equilíbrio da
sociedade em função de sua consciência aberta e em expansão. Com isso, estes consumidores
são capazes de reconhecer o excesso de veneno nos alimentos devido à utilização
descontrolada de agrotóxicos no processo produtivo dos sistemas agro-alimentares. Esta
consciência faz com que consumam rotineiramente os alimentos orgânicos. Para eles, estes
alimentos possuem uma qualidade superior, sendo melhores para a saúde, além do paladar e
sabor diferenciados.
Desta forma, os alimentos orgânicos também fazem parte de uma busca pela saúde
individual, do corpo e da mente, bem como da unidade familiar como um todo. Ao adotarem
uma nova postura de vida, os consumidores passam a procurar por um alimento saudável,
denotando sua preocupação com um manejo ecologicamente correto da produção por meio de
suas práticas de compra.
A energia do alimento é outra. A energia do alimento não orgânico é lucro,
dinheiro, produção em massa. O alimento orgânico é sustentabilidade, manejo, uma
coisa mais sustentável (C50).
Para alguns consumidores, a alimentação orgânica representa uma questão de
sobrevivência frente aos riscos e malefícios dos agrotóxicos para a saúde. Neste sentido,
quanto mais debilitada a saúde, maior parecia ser a preocupação em minimizar os efeitos de
resíduos tóxicos no organismo por meio da alimentação.
Hoje, tenho a saúde debilitada por uma série de fatores: tabagismo, que larguei em
91 [...] Hoje, se fizesse exames de sangue e de urina, constataria a presença de
alguns produtos tóxicos no organismo. convivi, em atividade, com lavouras que
empregavam o agrotóxico. Aquilo você inspira, você tem alguns produtos desses
com efeitos residuais que o organismo não vai eliminar, tipo metais pesados,
chumbo, mercúrio. Acredito que isso tenha contribuído para debilitar a saúde.
Acredito que ela tenha se estendido mais porque procurei a alimentação orgânica.
Ela, num certo ponto, é positiva. Ela não consegue anular os efeitos de muitos
27
daqueles resíduos tóxicos que estão no organismo, mas minimizou muita coisa
(C34).
O fato de se tornar mãe também aparece como um fator importante para a iniciação e
manutenção do consumo de alimentos orgânicos entre as consumidoras entrevistadas.
Quando tive filho, ia procurar todos os legumes que fossem orgânicos, para não dar
para ela veneno nenhum. Quando a gente vira mãe é diferente. Passou a fazer parte.
Tem orgânico sempre na minha casa (C46).
Fiz o início da macrobiótica, não me aprofundei muito, não. Eu dei uma iniciada, aí
fiquei grávida, toda a gravidez foi sem agrotóxico. estava bem envolvida com
alimentação integral e vegetariana. Juntou a homeopatia, alimentação vegetariana e
a idéia de que o agrotóxico iria prejudicar a minha saúde (C29).
Por fim, alguns consumidores também associam seu consumo de alimentos orgânicos
fundamentalmente a uma preocupação social e ambiental, considerando a qualidade de vida
de uma forma mais ampla. Neste sentido, as questões sociais aparecem em sintonia com o que
pensam sobre a vida e o mundo a fim de melhorar a situação do planeta em relação aos
problemas socioambientais.
Não lembro exatamente quando comecei a consumir orgânicos, porque tenho uma
preocupação grande com a questão do meio ambiente, sempre fui ligada a isso [...]
E acho que a questão do consumo de orgânicos vai se encaixar, porque também tem
uma questão social, que não é o produto que não agrotóxico, tem toda uma
filosofia. Isso casa comigo, com o que eu penso do mundo, da vida (C14).
O fato destes alimentos não conterem agrotóxicos torna-os mais naturais e melhores
para a saúde pessoal e do solo. Entre estes consumidores também existe uma marcante
preocupação com o pequeno produtor rural, que eles consideram uma espécie de despertar de
consciência.
Não tem agrotóxico, é melhor para a saúde. Também pelo fato de ser o pequeno
produtor, eu acho importante a gente se preocupar. A gente pode pagar dois reais a
mais, mas vai ajudar um cara que precisa disso pra viver (C51).
Entre as influências que estes consumidores consideram fundamentais para a iniciação
no consumo de alimentos orgânicos, o histórico do movimento social de agricultura orgânica
em Nova Friburgo/RJ perpassa boa parte dos discursos.
Naquela época, Friburgo para mim era referencial de uma alimentação diferenciada.
Você tinha ali o Campo Verde, você tinha mesmo o Pacha Mamma, dentro daquele
entreposto do Pacha Mamma tinha um restaurante. Quando eu chegava aqui, eu
falava que era a minha praia (C9).
Cheguei em Friburgo, terminei a faculdade e vim pra cá, tinha especialização em
homeopatia, isso foi em 85. Logo que cheguei, tive oportunidade de conhecer
pessoas que faziam a macrobiótica, indo a restaurantes e tal. Logo fiquei sabendo
da feirinha. tinha uma feirinha no Suspiro, que era na praça, não era no local
que é agora. Era na pracinha, e pessoas que tinham aquele selo da Abio, eram três
ou quatro produtores da região, pessoas muito legais, e que a gente começou a
comprar com eles (C29).
Fui morar perto de um alemão que tinha uma horta orgânica, comecei a ir uma
vez por semana na horta dele e comprar com ele. Durante muitos anos fazia isso.
Depois ele vendeu o terreno, se mudou de Friburgo [...] foi um dos fundadores da
Abio em Friburgo, há uns vinte e pouco anos atrás. Antes disso, a gente também
28
conhecia algumas pessoas que tamm foram fundadoras desse grupo. Mas, assim,
comia se tivesse; se não tivesse, também não comia, não ficava procurando. Depois
da comodidade de ter o vizinho da gente é que a gente passou a ficar exigente e não
querer comer do outro. A minha iniciação foi pela comodidade por ter o vizinho,
além da preocupação com a alimentação desde a adolescência e ter parado de
comer carne. (C23).
Assim, o clima cultural da feirinha da Abio e da cooperativa de consumidores Pacha
Mamma, ambas extintas; a comodidade de acesso aos produtores; a amizade com integrantes
e, em alguns casos, o próprio ingresso no movimento agroecológico são aspectos que fizeram
de Nova Friburgo/RJ uma referência no que se refere a restaurantes e cooperativas que tinham
o alimento orgânico no centro das atenções nos anos 1980.
O vegetarianismo é outro fator de influência que perpassa todos os tipos, com mais
força entre aqueles que têm na saúde a motivação principal para consumir alimentos
orgânicos. Da mesma forma, aspectos relacionados com o aumento da oferta de produtos
orgânicos no mercado e maior veiculação de notícias sobre alimentação orgânica na mídia
também configuram influências importantes para todos os consumidores que entrevistei
21
.
Entre as qualidades percebidas, os consumidores de alimentos orgânicos ressaltam o
aspecto mais saudável destes alimentos, que “fazem bem”, pois não possuem veneno. Por não
possuírem aditivos quimicados, os alimentos orgânicos são considerados “naturais”,
“verdadeiros” e mais nutritivos, traduzindo uma idéia de verdade e pureza. Além disso, os
consumidores identificam mais sabor e gosto nos alimentos orgânicos, bem como maior
durabilidade e uma textura diferenciada.
O fato de te dar uma garantia de saúde. A questão da preocupação com a saúde é
uma coisa muito presente em mim. A importância de a gente cuidar bem do corpo.
E se é uma condição para você cuidar bem do corpo consumir esses produtos, e
deixar de consumir outros, eu fico convencido de que é por aí (C6).
O orgânico você produz sem adicionar nenhum aditivo químico mesmo, então, é
tudo o mais natural possível. Aquilo que a terra de nutrientes, eles vão ter um
conteúdo saudável, não vai ter adição química. É mais isso. É em relação à química
mesmo (C29).
O alimento orgânico é verdadeiro, porque ele está trazendo os nutrientes da terra
[...] te oferece toda essa parte nutritiva e não prejudica a sua saúde, porque ele não
tem pesticidas. Ele vai te nutrir e trazer saúde (C50).
O sabor é diferente. Você sente diferença, parece que o orgânico é mais saboroso.
Por exemplo, na feirinha tem uma batata que é maravilhosa, uma batata doce,
21
Entre outros fatores de influência citados pelos consumidores que entrevistei posso relacionar: (a)
personalidades como Vandana Shiva, George Harrison, Serge Raynaud de la Ferrière; (b) amizade com pessoas
do movimento agroecológico, como Nélson Barba; (c) pessoas próximas, como o namorado ou a mãe; (d) cursos
e palestras como, por exemplo, sobre suco de clorofila e importância dos orgânicos, medicina chinesa e shiatsu,
qualidade dos alimentos, no restaurante Vegan Vegan, graduação em agronomia na UFRRJ, especialmente as
aulas do professor Raul Lucena, Vandana Shiva e Ana Primavesi; (d) leituras de livros de autores como, por
exemplo, Steve Sproutman (o “homem-broto”) e Steiner ou títulos como “Do jardim do Éden à era de aquário” e
folhetos sobre produtos orgânicos e naturais como forma de obter saúde; (e) filmes como, por exemplo, "A carne
é fraca"; (f) práticas como, por exemplo, filosofia oriental, homeopatia, budismo, física quântica, medicina
chinesa, meditação, contato com estilo de vida alternativo em Visconde de Mauá/RJ na década de 1970, contato
com lavradores, morar na Inglaterra, refundação do Grupo de AgroEcologia (GAE/UFRRJ), participação na
ECO 92, trabalhar na Coonatura, fiscalizar plantações que usam agrotóxicos pela FEEMA, e a macrobiótica, este
último em especial entre aqueles que consomem há mais de 20 anos.
29
que é diferente de tudo o que já comi. Então, você tem essa diferenciação, além da
questão do prazer de você saber que está comendo uma coisa que não tem remédio,
que não vai te fazer mal. Isso tudo colabora para ser bem mais interessante (C14).
Entre os benefícios associados ao consumo de alimentos orgânicos, o principal é a
saúde que estes alimentos trazem para o corpo humano, traduzida em pontos como o bem-
estar e a energia. Presentes em menor escala, o “fazer a coisa certa” ou “fazer a sua parte”,
como reflexos de uma valorização da relação com a natureza ou da ajuda ao pequeno produtor
rural, também aparecem como benefícios para os consumidores de alimentos orgânicos
entrevistados.
Me sinto com mais energia, não sei nem se tem relação, mas acho que sim. Acho
que é uma coisa mais viva, mais natural (C14).
I.5. Tendências Alimentares e Consumo de Alimentos Orgânicos
Com base no trabalho de campo realizado em Nova Friburgo/RJ, considero as
observações relacionadas ao consumo de alimentos orgânicos em relação a cada uma das
tendências da alimentação, identificadas por Barbosa (2009). Saudabilidade, cientificação,
valorização de origem e gastronomização são as tendências que apresentam os mais
significativos impactos para as práticas alimentares brasileiras
22
.
A saudabilidade e a cientificação refletem mudanças dos conteúdos de hábitos
alimentares. A primeira é central para entender as mudanças no processo produtivo e na
valorização de meios tradicionais e artesanais de produção de alimentos, também valorizados
pela tendência da cientificação, que considera a doença como fruto do processo de produção e
industrialização dos alimentos. Por outro lado, as duas outras remetem a mudanças de atitudes
em relação ao comer e à alimentação. A gastronomização incentiva a melhoria do sabor, que é
um dos argumentos em favor dos produtos da agricultura orgânica, contribuindo, assim, para
a valorização de origem.
A figura 1, a seguir, sintetiza a interligação existente entre estas quatro tendências a
fim de balizar o restante da análise de cada uma delas em relação ao consumo de alimentos
orgânicos, valorizados pela sua origem e forma de produção.
22
Barbosa (2009) ressalta que, no Brasil, estas tendências se destacam frente às demais: conveniência,
indulgência, individualização da ingesta, nostalgia do rural, aumento da diversidade, diminuição das diferenças
entre os segmentos sociais e as transformações das refeições e o tempo gasto no comer.
30
Figura 1: Tendências da alimentação contemporânea
Fonte: adaptação própria, a partir de Barbosa (2009).
Desta forma, a partir da interpretação de Barbosa (2009), as quatro tendências
aparecem interligadas pela valorização de origem. Com isso, se reforçam e ganham espaço na
sociedade brasileira, ampliando a responsabilidade individual em relação à saúde, ao corpo,
ao meio ambiente e ao próximo. A partir deste ponto, apresento a relação de cada tendência
com o consumo de alimentos orgânicos que observei em Nova Friburgo/RJ.
I.5.1. Medicalização
A cientificação é uma tendência do consumo que se origina do impacto da ciência nas
sociedades contemporâneas, assegurando aos consumidores que certos produtos o melhores
31
e mais seguros
23
. Minha atenção se volta para a medicalização, uma das três dimensões desta
tendência no campo da alimentação
24
.
A medicalização
25
traduz a predominância do discurso nutricional e médico no campo
da alimentação, enfatizando o alimento em detrimento da comida. Este discurso passa ao
largo de aspectos como sabor, gosto e tradição dos alimentos, ou a sociabilidade no âmbito da
vida social. Neste sentido, alguns consumidores entrevistados em Nova Friburgo/RJ parecem
compartilhar desta tendência em relação ao seu consumo de alimentos orgânicos:
O principal é que você não está consumindo veneno e, segundo, o alimento
orgânico tem uma qualidade de nutrientes melhor, quando ele é bem produzido.
Não adianta fazer um orgânico mal produzido e que ele vai ser raquítico. Às vezes a
gente vê produtos orgânicos que são sem veneno, mas são subnutridos (C49).
O orgânico você produz sem adicionar nenhum aditivo químico mesmo, então, é
tudo o mais natural possível. Aquilo que a terra de nutrientes, eles vão ter um
conteúdo saudável, não vai ter adição química. (C29).
O alimento orgânico oferece toda essa parte nutritiva e não prejudica a sua saúde,
porque não tem pesticidas. Ele vai te nutrir e trazer saúde (C50).
Neste sentido, a dieta cotidiana e tradicional é avaliada, pelos entrevistados, pela
composição de nutrientes e benefícios ou malefícios que pode trazer para a saúde. Os
alimentos são percebidos como instrumentos da promoção de saúde ou doença, sendo
hierarquizados dos saudáveis aos não saudáveis, classificação esta que oscila
permanentemente, conforme a divulgação de novas pesquisas científicas.
Ao aproximar as fronteiras entre culinária, nutrição e medicina, o discurso nutricional
aumentou a responsabilidade individual acerca do que se come. Cada um se torna responsável
pelo próprio corpo ao escolher o que irá comer, fazendo com que o dilema do onívoro
(FISHLER, 1993 apud BARBOSA, 2009) seja percebido de forma mais intensa na relação
das pessoas com o discurso médico nutricional:
A coisa da alimentação é aquela agonia de querer escolher o melhor (C46).
A gente cortou muita coisa dento de casa, as dietas da [nome da esposa] são
muito rigorosas [...] Sempre fui chegado a uma fritura, a um bacon, e ela controla
(C34).
Entretanto, segundo Barbosa (2009), na sociedade brasileira, este dilema parece não
gerar tanta angústia ou desorientação. Algumas pessoas decidem não se deixar dominar e
orientar por todas as informações sobre alimentação disponíveis, fazendo as combinações e
23
Apesar da profícua discussão pós-moderna sobre a validade do discurso científico, partilho com Barbosa
(2009) a idéia de que a ciência ainda legitima as tomadas de decisões em várias áreas da vida cotidiana.
24
No campo da alimentação, Barbosa (2009) compreende outras duas dimensões desta tendência: a
desconstrução gastronômica, representada pelo catalão Ferran Adriá; e a gastronomia molecular, como parte da
ciência dos alimentos capitaneada por físicos e químicos. Por não estarem relacionadas com as questões que
emergiram do trabalho de campo com os consumidores de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ, estas
dimensões estão restritas a esta nota de rodapé.
25
Barbosa (2009) percebe a difusão desta tendência no Brasil, especialmente devido ao aumento de doenças
cardiovasculares e do entendimento da obesidade como epidemia. Porém, destaca que a permeabilidade deste
discurso é distinta entre os grupos sociais, sendo mais visível entre idosos e pessoas com maior poder aquisitivo,
ao contrário dos jovens, que dão menos importância à questão.
32
adaptações que julgam adequadas. Os mesmos consumidores de orgânicos, também citados
acima, demonstram bem isso:
Tenho esses altos e baixos [...] Bebo pra caramba, encho a cara. Paro de prestar
atenção na minha alimentação. Se me convidar para um churrasquinho... Não sou
vegetariana, mas gostaria de ser. (C46).
Gosto muito de um cozido. São os legumes todos, coloca-se uma carne magra, às
vezes, até um peito. Mas o peito que costuma ser gorduroso, a gente escolhe um
peito magro ou uma outra carne. Aí, há a liberação de uma lingüicinha (C34).
Em decorrência desta tendência, uma mudança importante é a diminuição da distância
entre o alimento e o remédio, com o aparecimento dos nutracêuticos ou alimentos
funcionais
26
. Apesar de não serem remédios, os alimentos orgânicos parecem ter a capacidade
de prevenir ou reduzir os riscos de algumas doenças. Isso pode ser constatado entre alguns
consumidores de alimentos orgânicos entrevistados durante o trabalho de campo:
[Quando teve processos de doença] é curioso que a cenoura sempre veio como
aquele meu alimento salvador. Depois, vim saber que ela tem uma propriedade
antibiótica e outras coisas (C9).
Tem que falar que [o alimento orgânico] é um remédio. A comida é um remédio. Se
como um rabanete, aquilo é bom para o sangue. Não tomo remédio (C45).
A gente consome muito alface, principalmente, orgânica, que é uma maravilha.
Porque ela tem propriedades terapêuticas que a gente não imagina ter,
principalmente, como calmante (C34).
Apesar da tendência de medicalização da alimentação se fazer presente em alguns
discursos, a tendência mais marcante entre os consumidores de alimentos orgânicos que
entrevistei em Nova Friburgo/RJ, no que diz respeito aos hábitos alimentares, é a
saudabilidade, que analiso a seguir.
I.5.2. Saudabilidade
Tendo em vista que a medicalização destaca o valor nutricional dos alimentos e do que
faz bem à saúde para evitar ou prevenir doenças, a tendência da saudabilidade está
intimamente ligada a ela. Entretanto, sua perspectiva é mais holística, incluindo a noção de
bem-estar e de energia, que transcendem aspectos nutricionais, bem como as questões
ambientais, a forma de produção dos alimentos e a criação dos animais, entre outras.
Com isso, a saudabilidade propõe uma reformulação da sociedade contemporânea, do
corpo e da alimentação pela adoção de uma postura “saudável”. Barbosa (2009, p. 29) destaca
que, nesta perspectiva, “não basta ter saúde, se faz necessário estar bem física e
espiritualmente, conectado com quem produz, como produz e com o meio ambiente”. Neste
sentido, as noções de equilíbrio, harmonia, bem-estar e disposição são fundamentais no
discurso da saudabilidade, como observei em grande parte dos consumidores de alimentos
orgânicos em Nova Friburgo:
26
Barbosa (2009) destaca tratar-se de alimentos que, além de funções nutricionais básicas, alegam produzir
efeitos metabólicos, fisiológicos e/ou benéficos à saúde, seja através da adição de um elemento bio-ativo no
alimento ou da identificação de uma nova função num alimento convencional, como parece ser com os alimentos
orgânicos.
33
Por conta de alguns estarem na inércia, na preguiça, na indolência, outros têm que
trabalhar muito para tentar manter um equilíbrio nesse funcionamento desse corpo
social. Acho que cada um que busca isso, tem um papel social muito além de pagar
contas, comer e beber. Acho que é uma contribuição além. Nós não somos os
salvadores do mundo, estou me colocando nesse grupo. Falo por mim, não me sinto
salvadora do mundo, mas acho que nós temos um papel a cumprir. E preciso estar
muito bem para poder cumprir, fazer aquilo que tenho que fazer, dentro de toda a
consciência que tomei até agora e ainda hei de tomar (C48).
Você começa a pensar numa coisa maior, na saúde como um todo, em todo um
esquema que foi criado para acabar com a saúde de todo mundo. comecei a ter
consciência de tudo o que estava relacionado à saúde e a um modo de vida de mais
harmonia com a natureza, de mais observação (C46).
Diferentemente da medicalização, a saudabilidade se apóia em uma “ciência
alternativa” contrária ao discurso da ciência estabelecida, associando-se a debates políticos e
ideológicos. O objetivo é restaurar a pureza do planeta e dos corpos humanos deteriorados
pelos resíduos incorporados por uma alimentação industrializada e uma agricultura de alta
produtividade baseada em defensivos agrícolas. Trata-se de uma proposta de retorno ao ritmo
da natureza na produção de animais e alimentos, bem como ao “local”, tanto quanto possível.
É um projeto de vida conseguir aumentar o percentual de consumo de orgânicos
[...] A energia do alimento o orgânico é lucro, dinheiro, produção em massa. O
alimento orgânico é sustentabilidade, manejo, uma coisa mais sustentável (C50).
A idéia que se tem, pelo menos a que percebo, é de se colher coisas saudáveis e que
realmente sejam bacanas para o organismo, ao contrário da agricultura tradicional
(C40).
Quanto mais se produzir o alimento orgânico, menos vai estar sendo despejado no
solo os produtos químicos e poluentes. Isso é uma coisa só. Quando como o
alimento orgânico, não penso só na minha saúde, estou pensando na saúde do
planeta (C46).
Barbosa (2009) identifica uma ligação íntima desta tendência com a agricultura
orgânica, a agricultura familiar e determinadas ideologias alimentares que preconizam a
reformulação do comer em várias perspectivas. A saudabilidade contribui, assim, para que a
natureza e o natural sejam vistos como moralmente superiores ao artificial e industrial, pois
remete à ausência de “química” na produção, conservação e preparo dos alimentos.
Com isso, além da hierarquização das diferentes técnicas de cocção, na qual alimentos
fritos e industrializados materializam todos os aspectos negativos do comer contemporâneo,
tais como “gordura trans, açúcar, aditivos, fritura, entre outros”, a saudabilidade pode traduzir
uma feminilização
27
da alimentação, que consiste na seguinte hierarquia: legumes, verduras e
frutas na frente de ovos, laticínios e carnes; entre estas, carnes brancas na frente das
vermelhas, e os peixes na frente de todas as demais.
O objetivo é um “gosto natural, sem máscaras”, ou seja, com intervenção cultural
mínima. Assim, a “comida boa é aquela que deixar aflorar o sabor dos alimentos e não o
escamoteia através da adição de elementos industriais” (BARBOSA, 2009, p. 31).
A gente percebe até o sabor que é diferente, é muito mais gostoso. Se você prestar
atenção, a cenoura é mais doce, a beterraba é muito mais doce, a folha tem mais
27
Barbosa (2009) entende que legumes, verduras e frutas estão culturalmente associados mais à alimentação das
mulheres do que à dos homens, e dos idosos mais do que à dos jovens.
34
sabor. Acho que o não-orgânico todos m o mesmo gosto. O orgânico tem o
paladar mais apurado, você vai sentir o sabor mais forte daquele alimento. Isso é o
que a gente percebe na prática (C23).
O sabor é diferente. Você sente diferença, parece que o orgânico é mais saboroso.
Por exemplo, na feirinha tem uma batata que é maravilhosa, uma batata doce,
que é diferente de tudo o que eu comi. Então, você tem essa diferenciação, além
da questão do prazer de você saber que está comendo uma coisa que não tem
remédio, que não vai te fazer mal. Isso tudo colabora para ser bem mais interessante
(C14).
Desta forma, a medicalização e a saudabilidade se reforçam mutuamente,
preconizando uma hierarquia dos alimentos, por motivos diferentes. Se a saudabilidade se
preocupa com o desgaste que os alimentos podem proporcionar ao organismo e ao planeta, a
medicalização aponta a necessidade de todos ingerirem de tudo um pouco para equilibrar a
qualidade e a quantidade de nutrientes necessários o funcionamento correto do corpo humano.
A saudabilidade compreende uma ideologia que reposiciona a comida na vida das
pessoas. A alimentação passa a desempenhar um papel importante na construção da
identidade e na postura política, especialmente em relação ao meio ambiente, aos métodos de
produção dos alimentos e à criação dos animais. Com a centralidade desta tendência, a
comida deixa de ser uma questão de tradição, de gosto ou de automatismo para se constituir
em uma escolha consciente, um estilo de vida e uma ética. Desta forma, escolher
conscientemente se torna uma obrigação em si mesma, transformando a alimentação em mais
um campo de lutas por identidades.
O alimento com agrotóxico é desenvolvido em série, eles querem mais é fazer lucro
em cima daquilo, os agricultores, e eles é que recebem menos. Os atravessadores
acabam ganhando mais. E os agricultores têm um tremendo trabalho, acordam às
cinco da manhã e vão para o campo. Eles vivem disso. Ali tem uma outra energia,
que é um alimento cultivado para alimentar a pessoa e não para, simplesmente, ser
vendido e gerar dinheiro. Tudo contém energia, tudo fica impregnado de energia. A
gente está num momento de física quântica, a gente pode falar naturalmente de
energia, sem sermos esotéricos (C48).
Se o interesse é ganhar dinheiro, você aplica os hormônios no frango caipira e,
em tempo recorde, comparado com o que a natureza precisaria para que aquele
frango estivesse no ponto de ser consumido, você consegue tê-lo artificialmente
pronto para o consumo, independente dos prejuízos que isso vai estar trazendo para
a natureza e para as pessoas que vão consumi-lo [...] Então, acredito que ao fazer
essa opção [de consumir alimentos orgânicos], é uma opção de vida, porque além
de cuidar bem do meu corpo, também dessa forma como uma formiguinha -
estou ajudando por um planeta melhor. Por isso que te disse que é uma opção de
vida, porque está presente em mim 24 horas por dia, aonde quer que esteja. (C6).
Esta tendência enfrenta dois desafios para se estabelecer como prática no âmbito da
sociedade brasileira. O primeiro é a oposição simbólica criada entre alimento saudável e
alimento gostoso. Uma pesquisa recente (BARBOSA, 2007) constatou que o alto grau de
consciência acerca da maior ou menor saudabilidade dos alimentos entre os consumidores
brasileiros não encontrava uma contrapartida na prática. Além disso, a saudabilidade parece
impor uma restrição à sociabilidade e à comensalidade.
Ambos os desafios colocam limites para a tese da gastro-anomia (FISCHLER, 1980;
LEVENSTEIN, 1988 e 1993 apud BARBOSA, 2007), ou seja, um estado de angústia dos
indivíduos porque não sabem mais o que comer ou que orientação alimentar seguir devido às
35
contradições das sociedades contemporâneas mediante diferentes fontes de informação sobre
a comida, tais como a ciência e as ideologias alimentares. Barbosa (2007) indica uma
aproximação entre o sistema alimentar brasileiro e esta tese, pois, de fato, um
reconhecimento da contradição das fontes de informação.
Por outro lado, ela também percebe um evidente distanciamento, pois as pessoas citam
claramente os alimentos que consideram saudáveis, o que gostam de comer e as estratégias
que usam frente às contradições identificadas. Neste sentido, três estratégias são empregadas:
(a) a manutenção de uma postura de comer o que sempre comeram, mesmo diante de fatos e
informações contraditórias; (b) a adoção de um equilíbrio, caracterizado pelo discurso de que
“tudo demais faz mal”; e (c) o discurso de que “não se pode ter tudo”, ou seja, um equilíbrio
que alterna e controla a restrição com a liberalização.
Neste sentido, a tensão/irritação que se apresenta nas escolhas do cardápio doméstico,
por exemplo, não parece refletir uma angústia/dúvida sugerida pela tese da gastro-anomia,
mas uma rotina/obrigação diária, particularmente de mulheres e donas de casa, envolvidas na
decisão de um cardápio familiar. Com isso, no geral, a comida representa uma “fonte de
prazer, de união familiar e comensalidade”, sendo difícil ver o processo de escolha alimentar
no Brasil como tenso, angustiante ou frustrante” (BARBOSA, 2007, p. 110-11).
No entanto, alguns dos consumidores de alimentos orgânicos entrevistados
demonstraram tensões, angústias ou frustrações relacionadas com o processo de escolha
alimentar, especialmente na relação entre mãe e filhos.
Com ela, tem conflito total. Ela não gosta de comer verdura, legume, fruta. Tenho
até uma certa inveja desse pessoal de antigamente, porque eram mais xiitas,
moravam numa comunidade isolada; então, os filhos viviam com as crianças que
estavam sendo criadas lá, aí ficava mais fácil (C46).
Com eles [filhos] já é conflito com comida mesmo. Eles não querem comer nada. É
um saco, porque eles querem comer chocolate, biscoito, chiclete. A questão do
orgânico ou do não-orgânico eles nem sabem (C12).
Com isso, as duas tendências relacionadas com as mudanças nos hábitos alimentares
brasileiros foram identificadas entre os consumidores de alimentos orgânicos que entrevistei
em Nova Friburgo/RJ, sendo que a saudabilidade aparece com maior intensidade do que a
medicalização. A seguir, passo a entender as duas outras tendências, mais relacionadas com as
mudanças de atitudes frente à comida, começando pela valorização de origem.
I.5.3. Valorização de origem
Na esfera do consumo, a indicação de origem nos rótulos dos produtos cada vez mais
apresenta reflexos nas atitudes de compra na medida em que permite aos consumidores
estabelecer uma relação entre as dimensões ambientais, as preocupações sobre pandemias
alimentares e as suas cosmologias em particular. Barbosa (2009) compreende três significados
da valorização de origem de produtos e serviços nas sociedades contemporâneas: a fruição, a
politização do mercado e a rastreabilidade.
A valorização de origem como fruição redefine o consumo, que passa a ser encarado
como uma experiência. Neste sentido, um indivíduo consome por conta de seu desejo de
participar em atos criativos de expressão da individualidade e não pela preocupação
permanente com a imagem, o estilo de vida e a identidade a fim de manipular propriedades
simbólicas dos produtos, conforme autores como Featherstone (1996) e Baudrillard (1995).
36
A idéia do consumo como experiência torna essa atividade uma prática desalienante
28
,
que transmuta um objeto genérico em um artefato investido de significados e conotações
particulares, que são inseparáveis do contexto desta transformação realizada pelo consumidor.
Desta forma, o consumidor humaniza os objetos, assimilando-os em um mundo de sentido
que lhe pertence, e é diferente dos demais (MILLER, 2000).
Neste sentido, as sociedades podem ser vistas dentro de um continuum que iria de um
pólo onde tudo poderia ser comoditizado transformado em mercadoria e outro onde
nada poderia ser trocado, onde a equivalência entre as coisas não existiria porque tudo seria
considerado específico e único” (KOPYTOFF, 1986 apud BARBOSA, 2009, p. 38). Com
isso, Barbosa (2009) estabelece uma relação dialética permanente entre a singularização e a
comoditização da realidade, considerando que o fortalecimento de um pólo implicaria em uma
reação oposta e equivalente do outro.
Campbell (2007 apud Barbosa, 2009) compreende que a tensão entre estas duas forças
serve como explicação para a emergência de um novo tipo de consumo e consumidor, uma
espécie de “artesão” que busca novas formas de combate dos efeitos de um contexto
comoditizado. Este processo se realiza pela projeção da individualidade do consumidor nos
produtos.
Assim, a emoção, a capacidade de realização, a criatividade e o conhecimento
investidos em um benefício não decorrem da posse ou materialidade dos produtos, mas do
desempenho de objetos em contextos e projetos de vida específicos. Isso pode ser percebido
por meio das mudanças de atitudes ou da “onda” que alguns consumidores entrevistados em
Nova Friburgo/RJ sentem:
Quando fui para a Inglaterra, comecei a passar por algumas mudanças de percepção
da vida e me tornei vegetariano lá. Essa coisa do orgânico lá, isso em 2003 [...]
comecei a ser mais seletivo nos meus alimentos, até por uma questão de filosofia de
vida, não comer qualquer coisa. Não só pela saúde, mas acredito que a qualidade do
alimento interfere na qualidade do seu pensamento, não só do seu corpo (C50).
É uma onda comer um orgânico. Na minha casa, tiro onda. A gente come uma
salada com tudo orgânico (C45).
Se a agenda neoliberal promoveu uma certificação da sociedade pelo mercado,
paralelamente registrou-se um movimento inverso: da sociedade para o mercado e as
empresas. Assim, a valorização da origem como politização do mercado emerge durante os
anos 1980 como efeito do movimento de certificação do mercado pela agenda social no
período da revolução contra-cultural nas sociedades ocidentais contemporâneas na década de
1960. O mercado e as empresas passaram a ser avaliados por critérios éticos, políticos e
morais, que afetam desde as relações de produção até os processos produtivos, tornando
indissociáveis o produto e sua produção.
Atualmente, além da qualidade do produto, os consumidores se importam com
questões como uma vida digna dos produtores por meio de seu trabalho, equidade do
comércio entre as partes, ética de justiça social nas relações Norte-Sul, “comércio justo”,
28
Desta forma, Barbosa (2009) entende a valorização de origem como fruição como um contraponto à
interpretação da economia clássica, que pressupõe o consumidor como um ser racional, capaz de alocar
cuidadosamente seus recursos. O contraponto se torna mais evidente em relação às visões marxista e
conservadora, que enxergam o consumidor como um súdito das forças de mercado, alguém que é manipulado
pelos interesses dos capitalistas e profissionais de marketing.
37
entre outras. Na ausência de regulamentação global que imponha regras morais, são os
próprios atores do mundo econômico que inscrevem questões políticas no mercado a partir da
pressão dos consumidores.
Muitas vezes, o homem do campo ao usar o agrotóxico sem as informações
devidas, não está fazendo mal pra gente, está fazendo pra ele também. uma
incidência significativa de intoxicação, por conta do uso inadequado de agrotóxico.
Então, seria bom para ele porque estaria consumindo um produto de melhor
qualidade e não estaria se envenenando. É bom para todo mundo (C6)
Pelo fato de ser o pequeno produtor, acho importante a gente se preocupar. A gente
pode pagar dois reais a mais, mas vai ajudar um cara que precisa disso pra viver. É
diferente do cara que se você comprar duas cenouras a mais, ou não, ele não está
nem aí; pois ele produz em larga escala. Ao mesmo tempo que para ele não faz
diferença as duas cenouras que você vai comprar a mais, ele está deixando
agrotóxico no solo, enfim. Causa vários danos ao meio ambiente, talvez em
proporção maior que à saúde (C51).
Boicotes, buycotts e atividades discursivas são instrumentos com os quais o
consumidor condena ou recompensa empresas ao comprar ou não seus produtos em função de
suas ações em prol do meio ambiente, das populações tradicionais e carentes e pela adoção de
meios e relações de produção mais justas. O que está em jogo é a venda de um conteúdo
político dos produtos e não um marketing das causas sociais. Desta forma, inverte-se o
fetichismo da mercadoria de Marx: a venda de produtos se apóia na ruptura deste, sendo que a
relação de produção passa a ser fetichizada, servindo como parte do argumento comercial.
Isso aparece nas falas de alguns consumidores entrevistados que fazem referência à empresa
Monsanto:
Geralmente, as fazendas e produtoras orgânicas são obrigadas a seguir uma política
de ética trabalhista, de não empregar menor, uma série de coisas que você sabe que
o seu dinheiro está indo para quem está trabalhando direito, e não para um mega
produtor que está passando ali de avião a borrifando porcaria, porque ele quer
colher mais e mais, independente da qualidade do produto. Seleciono muito o que
compro. Não quero dar o meu dinheiro para a Monsanto ou para grandes
multinacionais (C50).
Os agrotóxicos intoxicam as águas, a terra e os animais que estão na área. Então, se
você estimula uma produção orgânica, você está evitando que mais agrotóxico seja
jogado no ambiente. Isso é fundamental [...] Monsanto é o grande produtor de
agrotóxico, de remédios e tal... Por que o governo não estimula a agricultura
orgânica da maneira eu deveria estimular? Porque tem as grandes empresas que
financiam esses políticos, que dão a grana... (C49).
Desta forma, o mercado se torna um campo de batalha por conta dos seus próprios
abusos. A criação de um novo tipo de produto, oriundo de uma economia de qualidade,
agrega qualidades objetivas dos bens e serviços, bem como considera questões éticas e
socioambientais. Desta forma, a escolha de um alimento em função de sua origem remete a
um novo tipo de consumo e de consumidor.
Com isso, critérios tradicionais, como gosto, sabor, preço são submetidos a outros que
se afastam dos significados que o alimento culturalmente representou. Barbosa (2009)
compreende que os consumidores adicionam aos critérios nutritivos e funcionais uma
dimensão dos processos e relações de produção, e apresentam-se dispostos a pagarem mais
por eles. Deste modo, ao colocarem estes produtos em seus pratos, metaforicamente, estão
votando nas empresas e nos mercados virtuosos em detrimento dos demais.
38
No princípio, eles [alimentos orgânicos] eram bem caros, então consumia
ocasionalmente. Agora, vou à feirinha, compro para a semana e, hoje em dia, até
levo para a minha família, para a minha mãe, para as pessoas que moram na minha
casa e que nunca se preocuparam com isso. E é legal que eles vêem e notam a
diferença. Foi assim, dentro dessa perspectiva de reciclagem de lixo, que faço
também. Então, tem toda essa história envolvendo a preocupação com a qualidade
de vida, foi aí que comecei a consumir o orgânico.
Não tem uma contaminação do solo [com a produção orgânica]. É exigido que você
utilize uma água boa, de qualidade, então você tem que ter nascente [...] É uma
garantia ambiental você jogar uma água boa no terreno, você não colocar o
fertilizante que vai para o lençol freático e contamina, você não jogar um
agrotóxico... (C45).
O corpo é outro aspecto que recebe a influência da valorização de origem, que informa
detalhadamente o que se coloca dentro dele. Desta forma, “quanto menos industrializados e
quanto mais artesanais e locais forem os ingredientes mais valorizados são os produtos que se
tornam autênticos, originais e naturais perante os nossos olhos, mesmo quando fabricados e
vendidos em grandes metrópoles” (BARBOSA, 2009, p. 42).
Este tipo de consumo não ocorre de forma isolada e autônoma, pois as pessoas não
compram apenas produtos ecológicos, socialmente responsáveis e “autênticos” de um ponto
de vista histórico. Desta maneira, parece ocorrer uma combinação entre produtos orgânicos,
industriais e tradicionais. Assim, no mesmo prato, colocamos legumes e frutas orgânicas
com carne criada de forma tradicional e uma salada de muzzarela de búfala feita de maneira
artesanal” (BARBOSA, 2009, p. 42).
Entre as razões para esta “contradição” estão o preço, a distribuição dos produtos e a
legitimidade destas categorias. Estas questões apareceram em minha pesquisa de campo:
Aqui em Friburgo não é em qualquer lugar que você encontra. Às vezes, você quer
alguma coisa e é difícil de achar. Acho que a maior dificuldade é essa (C14).
As opções ainda são restritas, acho. Aqui no interior a gente não tem muita opção,
não tem muita variedade, não tem muitos pontos de venda. O orgânico aqui é mais
caro do que o tradicional, o que leva algumas pessoas de menor poder aquisitivo a
não consumir. Conheço algumas pessoas que dizem que usariam se fosse mais
barato, mas, devido ao orçamento apertado, têm que optar pelo mais barato (C6).
Por fim, a valorização da origem como forma de rastreabilidade está relacionada com
a capacidade de identificação da origem e trajetória de um alimento. Trata-se de uma medida
cada vez mais necessária e fundamental para a segurança alimentar das sociedades
contemporâneas, por conta de um conjunto de fatores como a contaminação dos alimentos, a
expansão da globalização e o perigo de pandemias e dos desenvolvimentos científicos e
tecnológicos.
Assim, a rastreabilidade possibilita sustar a propagação de um problema eventual de
forma mais eficiente, tendo em vista tratar-se de um processo mecânico que documenta todos
os estágios da produção, processamento e distribuição. Este procedimento está intimamente
associado com a rotulagem, que indica a “biografia” daquele produto. Desta forma, a
qualidade dos produtos é assegurada por processos de certificação que garantem a realização
de determinadas especificações e exigências do processo produtivo de acordo com padrões
socioambientais, de segurança alimentar e de qualidade.
39
Apesar deste conjunto de vantagens, a rastreabilidade não é um consenso entre os
países na medida em que muitos julgam que este processo não garante a qualidade do
alimento nem mesmo o correto manuseio dos produtos, além de se tratar de um processo
extremamente dispendioso. Durante o trabalho de campo, a desconfiança estava presente
mesmo com a indicação de certificação:
Não é possível 100% orgânico. Não sei se o arroz integral que comi hoje é 100%
orgânico, apesar do rótulo. A gente não sabe o que vem por trás disso (C48).
Nem sempre [tem confiança]. Se não sei a origem... Tem algumas certificadoras,
que não me lembro de cabeça, em São Paulo, que até confio porque conheço (C34).
A rastreabilidade ainda é um tema distante do contexto brasileiro, mesmo que a
sociedade esteja mais atenta à qualidade dos alimentos, como indica o aumento do consumo
de produtos orgânicos. Barbosa (2009) acredita que a pressão internacional sobre as empresas
brasileiras influencie no surgimento de uma nova cultura do setor industrial que transborde
para o consumidor. A tendência é que este se torne mais consciente e exigente em relação à
“biografia social” do que come.
Acho que é dar uma informação ao consumidor que se interessa, de como aquele
alimento foi cultivado ou processado. Falei da agricultura natural do Korin, o
frango deles não usa antibiótico, não usa hormônio. Quando vejo Korin, sei que
são os frangos que não usam hormônio, que não usam antibióticos, mas usa, de
repente, um certo tipo de ração, que o orgânico não usa. Acho que é informação
de como é feito, é pouco. Podia ter mais (C46).
I.5.4. Gastronomização
A gastronomia é resultante da fruição na valorização de origem dos alimentos. A
identificação de procedência de um produto de sua forma de produção, bem como das
diferentes modalidades e tipos deste produto potencializa a experiência do consumo ao
juntar conhecimento e experiência em cosmologias, onde o mundo externo e material
relaciona-se com o mundo íntimo e particular. Estetização, ritualização, valorização do sabor
e do prazer nos atos de comer e de cozinhar caracterizam a tendência de gastronomização da
alimentação, verificada nas últimas três décadas.
A passagem da alimentação como ato cotidiano, automático e apressado para prazer,
lazer, sociabilidade e comensalidade configura uma conseqüência do boom da gastronomia.
Este movimento se caracteriza pela popularização dos prazeres da mesa e pelo alargamento
dos horizontes culturais em função da globalização, das mídias tradicionais e das novas
mídias, como a Internet, disseminando tradições culinárias, novos ingredientes e novas
dimensões estéticas e sensoriais.
A ênfase no prazer no campo da alimentação está associada a transformações
epistemológicas, sociais, econômicas, teológicas e ideológicas ocorridas a partir da segunda
metade do século XX, que alteraram as fontes de conhecimento, assim como a noção de corpo
e da subjetividade. Barbosa (2009) mostra como o pós-industrialismo, o pós-fordismo e o
pós-modernismo alteraram a estrutura do capitalismo contemporâneo, promovendo a crise de
instituições sociais que tradicionalmente foram sua base de sustentação, como a família, a
reprodução e a propriedade privada.
Estas transformações refletiram na emergência de um novo tipo de subjetividade e
sujeito que passaram a privilegiar a autorrealização, o autoconhecimento e o individualismo, o
40
hedonismo e o consumo de bens e prazeres. Este deslocamento do corpo substituiu a visão
foucaultiana de um corpo domesticado em benefício de corpos e sentidos enquanto espaços
privilegiados de experiências, superfícies de inscrição da identidade, da relação com o espaço
público, do anúncio, da propaganda, da estigmatização e dos prazeres.
Do ponto de vista filosófico e religioso, este deslocamento responde a modificações
em algumas matrizes do pensamento da filosofia grega e do ascetismo cristão, que
enfatizavam a capacidade racional dos homens, tendo em Descartes um símbolo: (a) corpos e
sentidos eram veículos e janelas para os pecados; e (b) conhecer era apreender o mundo do
ponto de vista cognitivo sem ser enganado pelos sentimentos, paixões, emoções.
Um rompimento marcante se com a fenomenologia de Husserl e a defesa de busca
da verdade a partir da experiência, entendida como intuição das essências. Com isso, as
“tecnologias do eu” passaram a enfatizar sensações, emoções e experimentação, invertendo o
pensamento de Foucault, não por serem menos disciplinares, pois também ensinam a
identificar, conhecer, classificar e interpretar sensações e emoções, mas por serem mais
íntimas que públicas, menos punitivas e mais libertadoras, mais includentes do que
excludentes, além de serem voltadas para celebrar a vida e não para a punição.
Desta forma, o consumo pode proporcionar uma gama enorme de experiências, pois as
reações aos bens e serviços possibilitam conhecer um pouco mais sobre cada “ser-no-mundo”.
Neste sentido, Campbell (2006) entende que, nos dias atuais, expressões tais como “sinto,
logo sou” ou “compro, logo existo” substituem o clássico “penso, logo existo”, de Descartes.
Assim, o corpo, o pelo, o gosto, a audição, a visão, o tato e o olfato compõem a base
de uma sociedade multissensorial, na qual os produtos e serviços são concebidos para
proporcionar cada vez mais experiências que ensinem sempre mais sobre cada “ser-no-
mundo”. Inúmeras sensações e experiências configuram possibilidades infindáveis em todos
os lugares e, ao invés de aguçarem a crise de identidade, ajudam a resolvê-la, bem como a
cada um se revelar e se desvendar perante a si próprio.
A gastronomização é a tendência que sintetiza o reposicionamento do corpo e dos
sentidos no campo da alimentação. O alimento e a bebida deixam de ser pensados como
nutrientes ou combustíveis para serem tratados como comida, prazer, gosto, cultura e tradição.
A estética dos pratos também é alterada para que todos os sentidos sejam mobilizados em uma
única garfada e olhada, como na descrição efetuada por uma consumidora que entrevistei:
Gosto de inventar. Fazer bode shitake, fica bom pra caramba, é igual a um bo
mesmo... coloca azeite de dendê. Outro dia, fiz uma moqueca vegetariana, peguei a
berinjela e inventei. O acompanhamento era moqueca de banana da terra com essa
berinjela fatiada, parecia até uns peixinhos, com azeite de dendê, pimentão, tomate,
cebola, coentro pra caramba. Ficou uma delícia. Ainda fiz um molho com leite de
coco, fiz eu mesmo, e um pinguinho de azeite de dendê; ficou aquele molho
amarelo, meio leitoso, para colocar naquele peixinho, que não era peixinho. O
negócio ficou bom pra caramba (C46).
A gastronomização do comer transforma este ato em lazer e o ato de cozinhar em
hobby e instrumento de sociabilidade, ambos constituindo elementos importantes na
construção de identidades em determinados contextos. Ao contrário da saudabilidade, que a
41
entende pelo que a pessoa come, a identidade se constrói ancorada no que cada um sabe sobre
o comer, o fazer da comida, onde buscar os melhores ingredientes ou como harmonizá-los e
apresentá-los. Com isso, reforça-se a valorização da origem, como na busca dos ingredientes
para se preparar o Suco Vivo:
A gente gosta de fazer aquele suco da luz do sol, da Ana Branco, que é um suco que
a gente bate couve, pepino, maçã, cenoura e beterraba no liquidificador, você côa
num pano e toma. a gente começou a ficar empolgado, porque tinha quase tudo
orgânico para fazer o suco, faltava a maçã. Tudo isso a Jovelina [produtora de
alimentos orgânicos, proprietária do Sítio Cultivar] produz. quando fui no
sítio dela e vi que ela plantou oitenta pezinhos de maçã, agora vai estar completo
[...] para fazer com praticamente 100% orgânico, tirando a maçã, mas você
pode colocar lima da Pérsia (C50).
Dentre os principais fatores envolvidos na verticalização da gastronomização que
impregna distintamente os cotidianos socioeconômicos, Barbosa (2009) destaca (a) a oferta de
possibilidades gastronômicas que antes não existiam, como a variedade de temperos exóticos
disponíveis nos supermercados; (b) os programas de televisão e shows de gastronomia e
culinária, que difundem conhecimentos e práticas que eram circunscritas a determinados
círculos; e (c) os encartes de jornais e as revistas de culinária de alta circulação, que
“adaptam” receitas caras para todos os bolsos.
Entre as transformações na vida cotidiana das sociedades contemporâneas
relacionadas com esta tendência estão (a) o aumento da presença masculina na cozinha
doméstica e da feminina nos restaurantes na medida em que a cozinha da casa se aproximou
da cozinha da rua e houve uma troca de posição entre homens e mulheres nas cozinhas da
casa e da rua; (b) as práticas de hospitalidade decorrentes da chegada do homem na cozinha: o
local de sociabilidade deixou de ser a sala e passou a ser a cozinha, caracterizando um
processo interativo baseado na mudança de um “receber” feminino silencioso, discreto, que
contava apenas com o agradecimento para um “receber” masculino, público, barulhento, com
expectativa de aplauso; (c) o reposicionamento da cozinha: não mais um espaço dos
“inferiores estruturais”, como escravos, empregadas e mulheres, mas um espaço da casa
junto, mas separado das áreas públicas e sociais da casa, cada vez mais misturada aos demais
ambientes da casa, ganhando status.
Fiz uma reforma na minha cozinha, então a cozinha é o point da casa. Minha
cozinha está maravilhosa, agora eu recebo minhas visitas na cozinha. Hora de
comer é hora de conversar, não tem televisão na cozinha (C31).
A minha casa é no formato de chalé e embaixo é mais ou menos emendada a
cozinha, a copa e uma sala que tem a televisão. É basicamente um ambiente
(C23).
Lá no sítio, é essa situação especial: já projetei a casa para a refeição ser o
momento ápice. A mesa é maravilhosa, o visual é maravilhoso, tem fogão a lenha...
(C46).
Barbosa (2009) entende que esta tendência se altera no convívio com outras tendências
no sentido de um “esverdeamento” e de uma politização. Primeiro, pela redefinição de
gastronomia como um “saber interdisciplinar”, envolvendo conhecimentos da antropologia,
sociologia, ecologia, entre outros, além dos conhecimentos populares. Segundo, pelo
engajamento de chefs no movimento ecológico, buscando uma alimentação sustentável ao
considerar que o conhecimento gastronômico se vincula a uma natureza preservada que
propicia a produção da melhor alimentação possível.
42
* * *
Como visto neste primeiro capítulo, os alimentos orgânicos constituem um
proeminente nicho de mercado, constituindo um dos principais desafios globais
contemporâneos às poderosas indústrias agro-alimentares, em especial por conta das alianças
entre produtores orgânicos e supermercadistas. O contraponto aos atores econômicos
hegemônicos constitui um elemento de politização destes alimentos que conforma este
mercado emergente.
A rápida absorção dos alimentos orgânicos pelo mercado também provocou uma
tensão no interior do movimento social de agroecologia. A agricultura orgânica passou por
uma transição de uma fraca rede de produtores e consumidores coordenada localmente para
um sistema globalizado de comércio formalmente regulado, capaz de conectar lugares
espacialmente distantes de produção e consumo. Esta transição se deu de forma global e faz
parte da interessante “dialética sem síntese” entre os movimentos sociais e o mercado
(WILKINSON, 2006).
A realização desta pesquisa na cidade de Nova Friburgo/RJ também serviu para
mostrar como os padrões identificados por análises sociológicas (GUIVANT, 2003;
FLEXOR, 2008) não são homogêneos. O setor supermercadista transnacional, grande
beneficiado pela vulnerabilidade das indústrias agro-alimentares frente aos novos desafios
mercadológicos, não se apresenta com força nesta cidade do interior do estado do Rio de
Janeiro. Da mesma forma, a articulação dos pequenos produtores orgânicos locais não parecia
ser tão pujante como na década de 1980, quando a efervescência de um estilo de vida
alternativo, que compreendia a alimentação orgânica, atraiu alguns consumidores que
participaram da abordagem desenvolvida nesta pesquisa.
Esta transição levou ao surgimento de instrumentos de normalização e garantia da
qualidade. Neste sentido, a certificação constitui o principal mecanismo de garantia de
conformidade das normas que os consumidores acreditam estarem sendo adotadas nos
processos produtivos em contextos distanciados dos locais de aquisição dos alimentos
orgânicos que consomem. Parece que o selo de uma certificação por auditoria se torna cada
vez mais importante para aqueles consumidores que desempenham suas compras nos
supermercados, na sua maioria sem conhecer os produtores.
Ainda neste capítulo, procurei mostrar como o imaginário dos consumidores de
alimentos orgânicos aponta que este consumo mais sustentável remete tanto a uma idéia
restrita de uma mera tecnologia de produção quanto a um reordenamento das relações sociais
com a natureza por meio da esfera do consumo. Ao explorar os discursos dos consumidores
destes alimentos em Nova Friburgo/RJ, a ausência de agrotóxicos constitui o principal fator
para a iniciação destes consumidores, sendo que o vegetarianismo e o aumento das
informações também foram importantes para que alguns consumidores começassem a
consumir alimentos orgânicos.
A relação entre os alimentos orgânicos e as tendências da alimentação com maior
destaque na sociedade brasileira contemporânea (BARBOSA, 2009), estabelecida no final
deste capítulo, estimula a análise das práticas de compra de alimentos orgânicos como parte
dos processos de ambientalização e politização do consumo. No entanto, antes disso, torna-se
interessante entender as práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ à
luz das teorias das práticas (WARDE, 2005).
43
CAPÍTULO II
AS PRÁTICAS DE COMPRA DE ALIMENTOS ORGÂNICOS
Em uma recente análise da sociologia do consumo, Warde (2005) assinalou tratar-se
de um campo de estudos que ainda busca uma consolidação teórica. Os trabalhos
desenvolvidos neste campo se caracterizam por uma “bipolaridade”, pois se baseiam, em sua
maioria, em estudos de caso detalhados ou em teorias sociais abstratas e especulativas
29
.
Assim, geram um entendimento parcial acerca dos fenômenos que analisam.
Neste capítulo, começo conferindo um destaque a perspectivas teóricas que acenam
com a possibilidade de integrar as categorias “produção” e consumo” nas análises
sociológicas dos sistemas agro-alimentares (GOODMAN, 2002; LOCKIE, 2002;
GUTHMAN, 2002). Trata-se de um ponto fundamental para entender as dinâmicas inerentes
ao campo dialógico dos alimentos orgânicos exposto no Capítulo 1.
Na seqüência, apresento a proposta
30
de “teorias das práticas” desenvolvida pelo
sociólogo inglês Alan Warde (2005), que procura entender porque as pessoas fazem o que
fazem e o que sentem e pensam quando fazem. Ao compartilhar desta perspectiva, procuro
enfatizar seus insights sobre a organização do consumo e o modo com que as práticas de
compra podem ser analisadas de forma a evitar, nesta dissertação, uma abordagem
metodológica individualista dos consumidores. Neste sentido, destaco a diferenciação social
das práticas, seus desempenhos e trajetórias, enfatizando, com isso, um entendimento
diferenciado da esfera individual e a multiplicidade das práticas de consumo.
Por fim, apresento abordagens sobre as práticas de consumo construídas por autores
como Douglas & Isherwood (2006), De Certeau (1984) e Miller (2002) a fim de destacar, na
seqüência, a análise derivada da observação participante das práticas de compra de alimentos
orgânicos que desenvolvi junto aos consumidores destes alimentos em Nova Friburgo/RJ.
II.1. Consumo: “Caixa Preta” dos Estudos sobre as Cadeias Agro-Alimentares
Cada vez mais, a manifestação de sintomas de ansiedades sistêmicas sobre a provisão
de alimentos ocasiona turbulências políticas. Isso faz com que a esfera do consumo constitua
uma questão proeminente, que não pode mais ser evitada nos estudos sobre as cadeias agro-
alimentares. Apesar disso, esta esfera permanece como uma “caixa-preta” nestes estudos.
Desta forma, torna-se fundamental repensar a relação entre a produção e o consumo de
29
Warde (2005) aponta uma distorção dos estudos de caso em função da preferência por temáticas específicas,
como a moda, a propaganda, os significados simbólicos e a formação da identidade. De certa forma, estes temas
recebem forte influência de abstrações teóricas refinadas, como as desenvolvidas por Anthony Giddens e
Zigmunt Bauman, que apresentam o consumidor como um indivíduo que não tem escolha a não ser escolher e
que é analisado pela adequação simbólica das suas escolhas “forçadas”. Trata-se de estudos desenvolvidos a
partir de modelos teóricos que atribuem uma elevada autonomia individual aos consumidores, além de uma
excessiva preocupação com a comunicação simbólica.
30
Warde (2005) entende que, apesar de um renovado interesse nas teorias da prática, com variações importantes
desenvolvidas por autores como Giddens, Bourdieu, Lyotard e Charles Taylor, ainda não uma síntese das
mesmas.
44
alimentos em uma perspectiva integrada, tendo em vista que estas categorias analíticas
raramente se articulam de forma holística.
Goodman (2002), por exemplo, entende que o viés marxista de muitas análises sobre o
complexo agro-industrial contribui para esta desarticulação teórica e analítica. Uma análise
sobre a problemática agrária baseada no marxismo clássico caracteriza-se por apresentar o
poder localizado na esfera da produção, a política definida pelo conflito de classes e
exploração da mão-de-obra pela mais valia. Nesta perspectiva, os consumidores aparecem
como atores sociais sem agência, pois são fetichizados pelas mercadorias.
No entanto, este autor destaca esforços recentes no sentido de inserir o conceito de
“sistemas de provisão”, que passam, assim, a evidenciar uma corrente de interesses
confluentes entre consumo e produção. Por outro lado, os estudos que se baseiam em uma
análise estruturalista da política econômica agrária também parecem limitados quanto à
possibilidade de uma perspectiva integrada entre produção e consumo. Esta vertente teórica
desconsidera tanto as práticas dos atores sociais e seus conhecimentos quanto uma cultura de
negociação que define o significado do alimento nos processos de mudanças sociais.
Porém, o crescimento dos estudos sobre qualidade, incluindo a produção orgânica,
entre outras redes agro-alimentares alternativas, os esquemas de segurança e as estratégias
territoriais de valorização da produção local, contribuíram para destacar a esfera do consumo,
mesmo que tendo como principal referência, ainda, a produção.
De certa forma, a negligência e a desvalorização teórica do consumo enquanto objeto
de investigação são evidentes quando se observa que este campo analítico é tratado como uma
categoria estrutural exógena, geralmente encarada em termos economicamente abstratos
como, por exemplo, a “demanda” (GOODMAN, 2002).
Assim sendo, “produção” e “consumo” aparecem como categorias autônomas e
purificadas da vida social, conectadas apenas pelo ato de compra. Uma perspectiva integrada,
ao contrário, pode conferir um peso maior aos recursos e à organização relacional das redes
sociais e materiais coexistentes nestes “dois mundos” nas análises dos sistemas agro-
alimentares. Goodman (2002) indica que o alinhamento entre as relações de poder e as ações
e conhecimentos dos consumidores, enquanto atores que constituem os circuitos agro-
alimentares, configura o principal desafio analítico para superar as assimetrias e linearidades
teóricas presentes nas análises destes circuitos.
Neste sentido, Lockie (2002) defende que uma integração satisfatória da esfera do
consumo aos estudos agro-alimentares demanda uma reconceitualização das categorias
“consumo” e “produção”. Ao entender como as pessoas são construídas e mobilizadas como
consumidores, este autor sugere que a explosão da demanda dos consumidores surge como
grande responsável pelo crescimento recente do segmento de mercado constituído pelos
alimentos orgânicos.
Uma perspectiva integrada na análise de sistemas de mercado, envolvendo “consumo”,
“design de produtos” e “produção” em uma esfera semi-autônoma de distribuição e troca,
caracteriza-se por (1) considerar a variedade de processos de construção de valores; (2)
incorporar unidades de produção não comoditizadas, como trocas domésticas e comunitárias;
(3) entender o impacto das novas relações de autoridade como, por exemplo, aquelas
estabelecidas pela ciência da nutrição; (4) focar em processos de trocas de valores simbólicos;
45
e (5) enfatizar o papel da mulher ao longo dos processos (DIXON, 1999 apud LOCKIE,
2002).
Em um ambiente social radicalmente relacional, aspectos como ação, intencionalidade,
consciência, subjetividade e moralidade derivam das relações entre as entidades e suas redes,
em oposição ao indivíduo ou à totalidade
31
. Neste sentido, Lockie (2002) assinala que os
alimentos desempenham papel central nas redes sociais, pois a ação social se expressa através
de “coletivos híbridos”, que envolvem pessoas, natureza e tecnologia. Assim, este autor
sugere seguir os atores “onde” e “o que” estejam fazendo ao estabelecer suas pontes com
outros a fim de dissolver a dicotomia entre macro” e “micro” nas análises sociológicas.
Isso se torna possível porque se as práticas estão situadas em um tempo-espaço
32
, as relações
não, que os agentes constroem ativamente e seguem representações macro-sociais mesmo
quando se engajam em práticas situadas.
De outra forma, em uma análise do gosto e seus reflexos na produção, troca e
consumo como sensações ou desempenhos, Guthman (2002) evidencia uma economia
simbólica da comida na interseção da vida social do alimento com a política econômica. Os
nexos de fazeres e discursos relacionados aos valores e gostos são considerados como vetores
analíticos que formam uma ponte entre economia e cultura. Com isso, a produção e o
consumo de alimentos orgânicos configuram circuitos comerciais alternativos, com valores e
significados estéticos modificados.
A sociologia do gosto de Warde (1997 apud GUTHMAN, 2002; BARBOSA, 2007)
enfatiza o desenvolvimento das ansiedades sobre as propriedades sociais do alimento e seus
significados. A culpa e a inquietação em torno da alimentação estariam relacionadas a quatro
antinomias: (a) novidade e tradição; (b) saúde e indulgência; (c) economia e extravagância;
(d) conveniência e cuidado. Neste sentido, cada oposição legitima as escolhas alimentares,
sendo que suas contradições indicam uma profunda ansiedade estrutural da modernidade.
Guthman (2002) acrescenta a antinomia entre natureza e técnica referente à angústia
sobre a vingança da natureza por conta da manipulação humana sobre o ambiente. A autora
critica a ênfase exclusivamente voltada para o valor de uso simbólico por deixar as escolhas
de consumo em aberto. Além disso, destaca que é preciso entender quem gosta de
determinado gosto, assim como estabelecer valores relacionados com a tradução destes gostos
na medida em que se trata de um aspecto que não se modifica facilmente.
No contexto da sociedade brasileira, em uma análise da seleção dos cardápios,
Barbosa (2007) observa três antinomias presentes em várias dimensões da vida cotidiana: (a)
praticidade/improvisação versus planejamento/preferências individuais; (b) restrição versus
liberdade, subdividida em (b.1) saudabilidade/beleza versus prazer/sabor; e (b.2) economia
versus extravagância; e (c) rotina/tradição versus variedade/novidade. Estas antinomias não
são excludentes entre si e podem se combinar no interior de uma mesma refeição, sendo que
umas são mais enfatizadas que outras de acordo com cada tipo de refeição, dia da semana ou
31
Lockie (2002) chama atenção para a teoria do ator-rede, que coloca como possibilidade a dissolução de
dicotomias entre (a) macro e micro níveis da análise sociológica; (b) o papel de agência e estrutura na
constituição social; e (c) as várias idéias de “social” e “natural”, como esferas distintas e independentes. A
resolução destes dualismos configura uma espécie de materialismo relacional, uma semiótica da materialidade
que concebe todos os objetos em termos de suas relações com os outros.
32
Desta forma, Lockie (2002) considera que mesmo um fenômeno aparentemente “macro” como a globalização
resulta da extensão das relações sociais por meio de interações face a face.
46
datas festivas
33
.
Guthman (2002) estabelece conexões entre a produção e consumo de alimentos como
parte da transição dos gostos, cujos significados são atribuídos e derivados dos alimentos.
Desta forma, considera três gostos com valores simbólicos específicos, nomeados aqui.
O gosto reflexivo possui o conhecimento e/ou a confiança como valores simbólicos.
Geralmente está associado às práticas de consumidores que não são ativistas sociais, ou seja,
que não se mostram necessariamente comprometidos politicamente da forma mais
convencional. Porém, este gosto reacende um senso de ação nas escolhas de consumo, que
passam a envolver aspectos como conhecimento, avaliação e discernimento. Neste caso, o
aumento do conhecimento sobre as mercadorias no exercício das preferências dos
consumidores funciona como uma forma de distinção social e cultural.
Um gosto distintivo possui valores simbólicos relacionados à estética e/ou raridade.
Apesar de também envolver a reflexividade dos consumidores, esta se volta para traduzir
sensações em percepção e conhecimento. Em um contexto de renascimento da estética, o
gosto receberia menos consideração do que a visão e a audição. Por isso, os consumidores
exploram a estética da alimentação com representações artísticas de banquetes e da literatura
gastronômica. Assim, a distinção do alimento se volta para a predominância do valor
simbólico sobre o material, bem como do estético sobre o metabólico.
Por fim, um gosto mediador remete à simplicidade dos consumidores, cujos valores
simbólicos remetem à transparência e/ou fuga, incorporando as noções de antinomia e
paradoxo na medida em que a comida pode exercer, ao mesmo tempo, atração e repulsa. A
necessidade de mediar polaridades indica que este tipo de gosto opera manifestações
emocionais e corporais, regulando o apetite como norma social ou necessidade corporal.
Desta maneira, os gostos alimentares geram conseqüências materiais que não se
restringem à sensação e reprodução da vida do corpo, mas também incorporam o trabalho
para a provisão do alimento. Com isso, os gostos alimentares relacionados com o consumo de
alimentos orgânicos parecem não serem produzidos apenas pelas representações ou
significados culturais, mas também pelo trabalho e processos ecológicos de transformação do
material biológico de um estado para outro (GUTHMAN, 2002).
Tendo em vista que estas perspectivas sinalizam a integração entre as categorias
“produção” e “consumo” como um aspecto crucial para analisar o consumo de alimentos
orgânicos, destaco, a seguir, o aporte teórico que Alan Warde (2005) constituiu sobre as
teorias das práticas. Com isso, este autor buscou consolidar uma alternativa teórica que
enfatiza a contribuição das práticas para o desenvolvimento de uma sociologia do consumo.
Trata-se de um referencial teórico que escolhi para entender as práticas de consumo de
alimentos orgânicos observadas em Nova Friburgo/RJ.
33
Barbosa (2007) compreende que as refeições podem ser divididas em três subsistemas: (I) semanal, vigora de
segunda-feira pela manhã até a hora do almoço de sexta-feira, nele predomina o primeiro lo das antinomias
(a), (b.1), (b.2) e (c); (II) fim de semana, começa na sexta-feira e se estende até domingo à noite, nele predomina
o segundo pólo das antinomias (a), (a.1), a.2) e (c); e (III) ritual, pode ser dividido entre coletivo (festas
comemoradas por toda a sociedade) e doméstico (comemorações familiares ou individuais), nele predomina o
primeiro pólo da antinomia (c) com intensificação do segundo pólo das antinomias (b.1), (b.2) e (c).
47
II.2. Consumo e Teorias das Práticas
A ordem social e a individualidade resultam das práticas. Deste modo, as teorias das
práticas procuram entender a constituição da vida social de uma forma pluralista e flexível, ou
seja, como um contraponto às unidades estáticas e ordens enraizadas em contextos locais ou
mesmo às complexidades acomodadas, diferenças e particularidades (SCHATZKI, 1996 apud
WARDE 2005). Com base nas contribuições de Warde (2005), apresento alguns conceitos
que possibilitam explorar as implicações das teorias das práticas para uma análise do
consumo.
Inicialmente, destaco a distinção que o autor faz entre prática (practice) e práticas
(practices). Uma prática, no singular, remete à práxis, uma descrição da ação humana que
contrasta com a teoria ou o pensamento. Não é este o sentido que considero aqui. Interesso-
me pelas práticas, no plural, aqueles comportamentos rotinizados que conectam certos
elementos a outros por meio de nexos, ou seja, os significados pelos quais fazeres e discursos
permanecem juntos e coordenados, compreendendo atividades corporais e mentais, coisas e
seus usos, conhecimento acumulado e inteligível, saber e estados de emoção e motivação.
Assim, se as práticas compreendem fazeres e discursos, uma análise sociológica deve se
voltar para as atividades práticas e suas representações (SCHATZKI, 1996 apud WARDE,
2005).
Neste sentido, duas noções se mostram centrais ao conceito de práticas. A primeira é a
noção de entidade coordenada, que compreende os nexos de fazeres e de discursos
desdobrados no tempo e dispersos no espaço. Tais nexos se conectam por meio de três
elementos: os entendimentos sobre o que dizer e fazer; os procedimentos explicitados por
meio de regras, princípios, preceitos e instruções; e os engajamentos em estruturas
teleológico-afetivas que compreendem fins, projetos, questões, propósitos, crenças, emoções e
ânimos.
A outra noção é a de desempenho, ou seja, os diferentes modos de compreender uma
multiplicidade de ações simples e constantes que se reproduzem nas práticas. Neste sentido, o
indivíduo pode ser entendido como um agente corporal e mental que segue práticas muito
diferentes sem que apresentem necessariamente uma coordenação entre si (RECKWITZ, 2002
apud WARDE, 2005).
As atividades mentais convencionadas como entendimentos, conhecimentos e desejos
configuram elementos e qualidades das práticas nas quais os indivíduos participam, e não uma
qualidade individual. Deste modo, Warde (2005) compreende as práticas como entidades
coordenadas que requerem um desempenho para existirem, bem como que existe
desempenho relacionado às práticas.
Desta forma, na perspectiva de Warde (2005), as práticas são entendidas como formas
sociais
34
rotinizadas, com as quais é possível compreender o movimento dos corpos, o
manuseio dos objetos, o tratamento dos sujeitos, a descrição das coisas e o entendimento do
mundo. Uma ampliação deste conceito envolve a distinção entre práticas dispersivas e
integrativas.
34
Com isso, para Warde (2005), torna-se tautológico falar em “práticas sociais” tendo em vista que todas as
práticas são sociais ao envolver as crenças e entendimentos que aparecem em diferentes locais e pontos do
tempo, levadas pelos diferentes corpos e mentes denominados indivíduos.
48
A descrição e formulação de regras, a explicação e imaginação na vida social
caracterizam o desempenho em práticas dispersivas. Este desempenho exige, de início, um
entendimento sobre as formas de se apropriar de uma explanação. Além disso, certas
habilidades se fazem necessárias para identificar uma explanação, quando esta acontece, a fim
de elaborar outra explanação que responda àquela apropriada inicialmente. Neste caso, o
entendimento inicial destas práticas remete a um “como fazer algo”, bem como à capacidade
de partilhar práticas coletivas. Trata-se de um desempenho em contextos específicos e uma
série de entendimentos comuns que constituem uma esfera de reconhecimento de um ato
particular como explicação.
Por outro lado, as práticas integrativas são as “mais complexas encontradas,
constitutivas de domínios particulares da vida social” (SCHATZKI, 1996, p. 98 apud
WARDE, 2005). Entre elas, Warde (2005) relaciona o cultivo agrícola, a compra, o cozinhar e
a condução de negócios. Em algumas formas especializadas, também podem incluir práticas
dispersivas, como, por exemplo, uma parte dos discursos e fazeres do entendimento das
práticas de cozinhar ou mesmo a habilidade de seguir as regras destas práticas e seus
engajamentos particulares.
Os elementos destacados acima remetem a um aporte filosófico das práticas, que se
caracteriza pela idealização, abstração e pouca atenção dada aos processos sociais de criação e
reprodução das práticas. Entretanto, a sociologia lida com situações de permanência e
mudança das práticas e de seus participantes. Por isso, a perspectiva de Warde (2005) torna-se
importante para o desenvolvimento desta pesquisa ao assinalar os diferentes nexos de fazeres
e discursos presentes nos desempenhos de indivíduos e grupos em práticas semelhantes, assim
como os conflitos sociais e alianças políticas inerentes ao desempenho e reorganização das
práticas.
Desta maneira, uma análise dos fenômenos do consumo à luz de teorias das práticas
envolve noções não-instrumentalizadas de conduta que observam as regras da rotina, da
emoção, do materialismo e do desejo
35
. Muitas práticas estão envolvidas no consumo, que,
portanto, não pode ter uma definição restrita, considerando apenas a troca nos mercados. Com
isso, Warde (2005, p. 137) entende que o “consumo não é uma prática, mas um momento em
praticamente todas as práticas”.
O consumo pode ser entendido como um processo em que os consumidores
constituem os agentes das práticas de consumo e se engajam em atos de apropriação e
apreciação de bens, serviços, experiências, informações ou ambientes, comprados ou não.
Para tal, apresentam algum grau de discernimento para atender a propósitos diversos:
utilitários, expressivos ou contemplativos, entre outros. Assim, o consumo é considerado uma
prática dispersiva porque ocorre frequentemente e em diferentes lugares, muito além do que
as pessoas podem registrar ou refletir.
Além disso, as declarações envolvendo o termo “consumo” frequentemente fazem
referência a compras e aquisições. As práticas de compra são integrativas porque envolvem
nexos de fazeres e discursos que estão relacionados tanto com o que as pessoas gostam ou
odeiam comprar, quanto com a disposição de algumas pessoas em evitar comprar. Por outro
35
Cabe destacar neste ponto que Warde (2005) critica tanto Giddens, por considerar os estilos de vida em uma
análise voluntarista da ação individual, quanto Bourdieu, por oscilar entre os sentidos de práticas e práxis sem
distinguir entre um e outro.
49
lado, o consumo constitui um fenômeno inescapável e momentâneo, que ocorre
frequentemente e sem muita importância para grande parte das pessoas.
As práticas também se diferenciam internamente em muitas dimensões. Elas não
representam um plano uniforme em que os agentes participam da mesma forma, mas um
domínio de especialização e dedicação que compreende diferentes competências e
capacidades.
Para uma análise das capacidades dos agentes, Warde (2005) propõe sete diferentes
antinomias, que diferenciam os participantes de práticas: (a) antigos e iniciantes; (b) teóricos e
técnicos; (c) generalistas e especialistas; (d) conservadores e radicais; (e) visionários e
seguidores; (f) exímios conhecedores e relativamente ignorantes; (g) profissionais e amadores.
Estas antinomias parecem ser relevantes para entender aspectos como o papel dos
participantes ou a estrutura de suas posições nas práticas que participam.
Além das antinomias, o autor indica que existe uma diferenciação na base da
contribuição potencial dos participantes para a reprodução e desenvolvimento das práticas.
Com isso, lança mão de categorias como insiders, regulares, turistas e estrangeiros para
caracterizar os diferentes níveis de investimento de cada um dos agentes em qualquer
universo particular de práticas com um valor específico
36
. Assim, as diferenças entre os nexos
de fazeres e discursos
destes participantes seus entendimentos, os procedimentos que eles
adotam e os engajamentos que aspiram podem variar, independentemente de um ou outro
elemento destes nexos, dentro dos grupos de participantes, em função das suas diferentes
formas de aprendizagem.
A proposta analítica de Warde (2005) passa pela necessidade de empreender um
exame detalhado de como os nexos entendimentos, procedimentos e engajamentos são
adquiridos e, então, adaptados para desempenhos específicos. Neste sentido, as práticas
possuem desenvolvimentos e histórias que podem oferecer respostas para entender, por
exemplo, porque as pessoas fazem o que fazem e da forma que fazem.
Por serem socialmente construídas, envolvendo regras de aprendizado coletivo na
construção de competências, as práticas têm no poder um elemento importante na formação
de condutas justificáveis. Com isso, a implicação principal das teorias das práticas é que os
recursos de mudança de comportamento aparecem espalhados no desenvolvimento das
práticas, cujo conceito combina a capacidade de ser simultaneamente responsável pela
reprodução e pela inovação na sociedade.
O potencial de reprodução social das práticas pode ser encontrado nas codificações
formais e informais que governam as condutas sem que seus participantes apresentem
reflexão ou consciência, caracterizando certa inércia. Nas teorias das práticas
37
, a ênfase em
36
Ao compreender as disputas sobre o gosto como resultado da diferenciação interna das práticas, Warde (2005)
se distancia de Bourdieu, que foca o contraste da classificação social como um processo de acesso e assimilação
às práticas e os recursos externos que remetem a posições diferentes nos campos. A crítica de Warde (2005)
mais atenção que Bourdieu aos efeitos de disposições genéricas e transitórias em detrimento da organização das
práticas, encobrindo a distinção entre entendimentos, procedimentos e engajamentos na medida em que as
disputas sobre o gosto parecem ter suas dinâmicas independentes das práticas.
37
Giddens (1984 apud WARDE, 2005), por exemplo, destaca o papel central das rotinas, mesmo sem uma
capacidade de monitoramente reflexivo do desempenho, com o que a disposição dos agentes para a ação em
práticas específicas apresenta-se consolidada e incorporada. Com isso, as rotinas são emocionais e corporais
tanto quanto a base cognitiva do comportamento. O conceito de habitus de Bourdieu também apresenta um
50
processos como bitos, rotinas, consciência prática, conhecimento tácito e tradição, entre
outros, torna o desempenho em determinadas práticas algo que não é completamente
consciente nem refletido.
Por outro lado, Warde (2005) assinala que práticas semelhantes podem apresentar
desempenhos diferenciados se os elementos dos nexos de fazeres e discursos
entendimentos, convenções e aspirações se distribuírem diferentemente entre os
participantes. Assim, estes desempenhos podem ser observados como um conjunto de práticas
satisfatórias ou ótimas, adequadas ou melhores que outras. Isso indica que as práticas também
possuem um potencial de inovação em função de dinâmicas pelas quais as pessoas adaptam,
improvisam e experimentam em diversas situações.
Este duplo potencial, e em especial a possibilidade de inovação, muda a perspectiva
pela qual a produção afeta o consumo e vice-versa. Desta forma, o aporte teórico proposto por
Warde (2005) permite entender que os efeitos da produção sobre o consumo, e vice-versa, são
mediados pelos nexos de fazeres e discursos das práticas. Entretanto, qual a posição dos
indivíduos nas teorias das práticas?
II.3. Esfera Individual e Multiplicidade das Práticas
O antropólogo inglês Daniel Miller ressalta a impossibilidade de generalizações ou
teorias simples sobre o consumo em função (a) do caráter diverso da soma total de
mercadorias disponíveis; (b) da variedade das origens da produção; (c) da pouca uniformidade
dos interesses envolvidos nas fases de concepção, produção, design e promoção das
mercadorias; e (d) dos diferentes contextos social e cultural do uso e consumo dessas
mercadorias (MILLER, 2001 apud PORTILHO, 2005).
Por outro lado, o aporte teórico de Warde (2005) aponta o engajamento individual
como o elemento capaz de explicitar a natureza do consumo e a manifestação das práticas. O
consumo contribui mais para acessar um conjunto de recursos variados do que para satisfazer
um fim em si. As conexões entre as mudanças das práticas e da demanda por mercadorias
revelam um campo de forças em que as práticas surgem como caminho e razão dos benefícios
advindos dos momentos de consumo. Com isso, se as práticas oferecem diferentes recursos,
os efeitos do consumo estabelecem significados através dos desempenhos em práticas,
tornando possível uma avaliação sistemática.
De um lado, os recursos internos das práticas podem ser considerados em função de
sua complexidade. A tradição da psicologia, por exemplo, indica que a proficiência das
práticas se dá por meio de recursos psicológicos, fazendo com que algumas práticas sejam
vistas como mais complexas do que outras, especialmente quando oferecem maiores
oportunidades de participação em suas experiências.
No extremo oposto, os recursos externos acessados pelos participantes podem se
relacionar com o prestígio das práticas que eles acessam. O reconhecimento da arbitrariedade
do componente cultural das práticas faz com que, no campo do poder, os grupos dominantes
excluam os demais da possibilidade de envolvimento em atividades que representam algo
importante para eles porque se trata de uma experiência social pessoalmente prestigiosa que
gera distinção social (BOURDIEU, 1994).
sentido de disposições incorporadas e estruturadas, que vê as convenções como um elemento central para
entender o significado do engajamento nas práticas.
51
Entretanto, apesar da força apresentada por ambas as vertentes acima destacadas, os
agentes individuais não parecem ser tão autônomos ou idiotizados a ponto de se conformarem
às normas e entender o mundo e a eles próprios de acordo com práticas particulares
(RECKWITZ, 2002 apud WARDE, 2005). Pelo fato de existirem diversas práticas e porque
todo agente individual se envolve com uma multiplicidade de práticas, a esfera individual
pode muito bem ser vista como o ponto de cruzamento das práticas e rotinas corporais e
mentais.
O indivíduo aparece como um ponto de interseção de muitas práticas e se estas são
alicerces do consumo, então surge uma nova perspectiva para entender o comportamento dos
consumidores na medida em que todo indivíduo adquire bens para participar de diferentes
práticas. Assim, os padrões de consumo usos, gastos, posses, atividades culturais, entre
outros podem ser explicados e atribuídos, em parte, ao volume destas práticas e o
comprometimento com as mesmas.
Desta forma, engajamentos seqüenciais e simultâneos em práticas diferentes o
caracterizam necessariamente uma tendência de fragmentação do self. Warde (2005) descarta
a possibilidade de dissolução, fratura ou saturação do self, como sugerido pela abordagem
pós-moderna, bem como a adaptação psicológica a um mundo pós-moderno. Para ele,
dependendo da extensão das redes sociais e consistência das normas de práticas diferentes
entre si, estes desempenhos são conseqüências da organização social das práticas, que
compreendem múltiplos nexos de fazeres e discursos, bem como locações diferenciadas em
uma pluralidade de práticas. Isso mostra a importância de reconhecer a variedade de
extensões em que as práticas são partilhadas e entendidas por um público.
Warde (2005) enxerga as práticas como os principais elementos do consumo, que
configuram o principal recurso explanatório deste campo, constituindo o primeiro recurso do
desejo, do conhecimento e do julgamento. Por isso, uma mudança nas posições das práticas
tem como reflexo uma mudança correspondente nas formas de consumo de objetos e
experiências. Neste sentido, as convenções e os padrões das práticas dirigem os
comportamentos, enquanto as práticas, mais do que os desejos individuais, criam os
“quereres”. Assim, mais do que uma decisão individual ou pessoal sobre uma conduta,
práticas expressam a natureza e o processo do consumo, que ocorre dentro e no fim das
mesmas na medida em que os itens consumidos são usados no curso do desempenho de
práticas particulares.
Esta visão é consistente tanto com a abordagem do consumo como rotina ordinária,
coletiva e convencional, características inerentes à maior parte dos consumos, quanto com a
diferenciação interna das práticas, na qual pessoas, em diferentes situações, participam de
uma mesma atividade de forma diferenciada. Com isso, Warde (2005) apresenta três
importantes considerações para o desenvolvimento de uma sociologia do consumo.
Primeiramente, muitos desempenhos em uma mesma prática não são idênticos. O
autor enfatiza o desenvolvimento coletivo dos modos de conduta da vida cotidiana em
detrimento das escolhas individuais. Deste modo, o foco analítico muda das necessidades
insaciáveis dos indivíduos, expressões pessoais e escolhas constrangidas para convenções
institucionalizadas da cultura, competências sociais e participações disciplinadas.
A própria idéia genérica de “consumidor”, desenvolvida pela disciplina da economia,
mas que seduz grande parte dos sociólogos e cientistas políticos, desaparece que a
organização das práticas e os momentos de consumo se impõem frente aos indivíduos. Warde
52
(2005) rejeita a idéia de que as pessoas encaram os momentos de consumo como atores
racionais soberanos ou como ingênuos manipulados. Mesmo assim, apesar das teorias das
práticas compreenderem algumas características locais, desarticuladas e compartimentalizadas
do mundo social, são identificadas no diagnóstico da condição pós-moderna, elas não
renunciam à dimensão analítica.
Por sua vez, o consumo não é uma atividade coerente e unificada, nem mesmo uma
prática integrativa na medida em que a diferenciação social evidencia um contraste de
entendimentos, de níveis de competência prática e de graus de envolvimento que geram
variações de comportamento. Desta forma, a hierarquia das práticas torna-se uma questão
empírica de investigação sobre os benefícios internos e externos maiores para pessoas em
posições particulares em práticas como, por exemplo, a compra de alimentos orgânicos.
Uma segunda consideração se refere à diferença entre as teorias das práticas e as
abordagens que entendem o consumo essencialmente como uma forma de comunicação. O
paradoxo do reconhecimento faz com que as pessoas possam acreditar que emitem uma
mensagem através de seus comportamentos e adereços e, mesmo assim, esta mensagem pode
se tornar incompreensível para grande parte da audiência que observa o seu desempenho
(CAMPBELL, 1995 apud WARDE, 2005).
A limitação da capacidade comunicativa do consumo se relaciona com a constatação
de que mensagens dirigidas a estranhos podem falhar, pois (1) uma ação pode ser inteligível
sem ter um significado agregado; (2) possuir um significado não é a mesma coisa que
constituir uma mensagem; e (3) receber uma mensagem não leva à existência de uma intenção
de enviar uma mensagem (CAMPBELL, 1995; 1998 apud WARDE, 2005). As teorias das
práticas compreendem e acomodam estes pontos sem romper com a apreciação dos
significados e entendimentos, know-how e julgamentos.
Uma terceira consideração envolve a construção interna de juízos de desempenho. As
pessoas se envolvem em práticas que apresentam uma proeminência crescente e, para tal,
requerem a utilização de diferentes níveis de recursos internos e externos. Paradoxalmente, as
pessoas procuram por ganho material, mesmo que aparentemente sejam “menos exibidas”
socialmente. O lugar em práticas diferenciadas, pagando pela posse e controle de bens e
serviços, continua sendo a base para o contentamento, a aceitação social e o reconhecimento.
Neste sentido, a multiplicidade das práticas indica o entendimento de pessoas que o
mostram descontentamento mesmo sem ter acesso a práticas caras ou que confiram status,
pois independente de onde as práticas desenvolvam uma hierarquia de prestígio, existem
benefícios internos que derivam dos seus participantes individuais.
Warde (2005) defende que um olhar sobre as práticas aponta para a importância das
seguintes problemáticas de pesquisa: em que práticas os diferentes indivíduos se engajam?
Quais as combinações típicas de práticas? Como os indivíduos se posicionam nas práticas
sociais em que participam? Como suas posições são homólogas nestas práticas? Que nível de
compromisso é demonstrado em diferentes práticas?
Desta forma, o consumo pode ser entendido como um fenômeno social
multidimensional que se manifesta como um conjunto de práticas. Warde (2005) explica a
natureza e os processos deste fenômeno pela participação individual em práticas que podem
assumir diferentes significados. A seguir, destaco três abordagens que apresentam sintonia
com o proposto neste trabalho: a comunicação de mensagens, a marcação de relações sociais e
53
a hostilidade cultural (DOUGLAS, 1987; DOUGLAS & ISHERWOOD, 2006); as táticas
criativas de bricolagem que exprimem resistência, revanche ou vingança (DE CERTEAU,
1994); e o amor e a devoção nas práticas de compra, vistas de forma análoga aos rituais de
sacrifício (MILLER, 2002).
II.3.1. Comunicação, marcação social e hostilidade cultural
Os bens podem ser considerados como manifestações concretas de práticas e rituais
sociais de seus usuários, tendo como finalidade principal servir à comunicação na medida em
que conseguem tornar visíveis e estáveis as categorias culturais. Com isso, Douglas &
Isherwood (2006) percebem o consumo como parte integrante do sistema social e da
necessidade social de mediar o relacionamento entre as pessoas por meio dos bens,
constituindo um ritual cuja função é dar sentido ao fluxo dos acontecimentos, sendo que os
bens são assessórios deste ritual.
O ato de comprar e a distribuição das compras pela casa são recursos que podem ser
usados para pensar o corpo, a instável ordem social e as interações incertas com os
participantes da cena social. Neste sentido, uma análise dos bens como conjuntos de
significados coerentes e intencionais possibilita afirmar a hierarquia de valores de quem os
escolheu. A análise estrutural procura um padrão total do consumo como comunicação, o que
faz como que o significado de cada bem apareça em relação ao “todo”. Desta forma, os
bens são neutros, mas seus usos são sociais e, portanto, podem ser usados como pontes ou
cercas (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2006).
Como pontes, os bens fornecem serviços de marcação em rituais de consumo, tais
como a amizade e a integração social, pois seu uso público é dotado de valor pela
concordância dos outros consumidores. Cada pessoa constitui, simultaneamente, uma fonte e
um objeto de julgamentos, e encontra-se inserida em um esquema de classificação que, em
parte, é estabelecido por meio de suas próprias discriminações. Assim, o principal objetivo de
um consumidor passa a ser ganhar ou manter o controle das fontes de informação,
assegurando suas interpretações racionais.
Desta forma, os bens integram a cultura material, pois a racionalidade humana
negocia as estruturas organizadoras na medida em que o ser humano é responsável por recriar
continuamente o universo em que a escolha pode acontecer. Os seres humanos conseguem
dar sentido ao mundo, interpretando-o sensivelmente. Por isso, os bens constituem um
sistema de informações em que todos são portadores de significado, mas nenhum o é por si
mesmo, pois o significado está nas relações entre todos os bens.
Como cercas, as escolhas de consumo também se relacionam à hostilidade cultural.
Os bens podem ser usados para criar barreiras, pois a cultura é um conjunto de princípios que
justificam reunir apoio e solidariedade e um conjunto de sinais de “entrada proibida”
(DOUGLAS, 1997). Neste sentido, o protesto é um aspecto do consumo que revela a
coerência de um consumidor que age racionalmente.
Se uma cultura é composta por uma miríade de escolhas individuais, os bens
aparecem como contribuições positivas para a vida racional, pois um “pensar racionalmente”
depende de um mundo inteligível, que se materializa através de objetos suas marcas
visíveis. As culturas e os estilos de vida estão sempre em conflito entre si na medida em que
54
a escolha de bens é uma escolha entre culturas, onde escolher uma, significa rejeitar as
outras
38
.
II.3.2. Resistência, revanche e vingança: uma produção escondida
O consumo pode ser entendido como uma prática que envolve revanche ou vingança.
De Certeau (1984) procura entender tanto as estratégias sofisticadas adotadas por “forças
militares dominantes” do campo da produção, que “miram” seus adversários, os
consumidores, quanto as manobras ou táticas empregadas neste “campo subordinado” do
consumo como forma de resistência
39
.
Nesta perspectiva, quem se encontra no “campo subordinado” não capitaliza
proveitos, prepara extensões ou mesmo assegura sua independência, pois, está em um “não-
lugar” e depende do tempo para captar possibilidades de ganho, que não consegue guardar.
Com isso, transforma conhecimentos em ocasiões nas quais os fracos tiram partido de forças
que lhe são estranhas por meio da combinação de elementos heterogêneos em uma síntese
intelectual, que compreende, ao mesmo tempo, uma decisão, um ato e uma maneira de
aproveitar a ocasião.
A relação social surge como determinante da individualidade, sendo vista como uma
esfera de atuação de determinações relacionais, caracterizada por uma pluralidade incoerente.
De Certeau (1994) procura explicitar as combinatórias desta “cultura ordinária do fraco”,
procurando os modelos de ão característicos dos consumidores, que o entendidos mais
como usuários do que como dominados.
O autor percebe uma produção específica dos consumidores, que vai além da
formalidade das práticas, possuindo duas determinações que permitem sua articulação. Uma
delas é o consumo visto como uma “produção escondida”
40
, astuciosa, dispersa, silenciosa e
quase invisível, pela qual os usuários fazem uma bricolagem com e na economia cultural
dominante através de metamorfoses da lei, segundo seus interesses e regras, compreendendo
procedimentos, efeitos, bases e possibilidades. A outra envolve os modos de proceder da
criatividade humana, ou seja, as “maneiras de fazer”, as práticas de reapropriação do espaço
organizado pelas técnicas de produção sociocultural por meio de uma multiplicidade de
táticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano.
38
Douglas (1997) destaca uma tipologia de quatro estilos de vida: (a) o individualista, competitivo, que se
insere em redes abertas de relacionamento, sendo adepto de novas tecnologias e entretenimentos arriscados,
rejeita os outros três estilos; (b) o hierárquico, formal, que adere a tradições e instituições estabilizadas,
mantendo uma rede de relacionamentos que se define pela família e velhos amigos; (c) o igualitário, que rejeita
os dois estilos de vida anteriores e as instituições autoritárias, sendo contra formalidades, pompa ou
artificialidades, preferindo a simplicidade, a franqueza, a intimidade, a amizade e os valores espirituais; e (4) o
eclético, fechado em si mesmo, imprevisível, isolado, que escapa de amizades e custos impostos pelos outros
estilos de vida, sendo, ao mesmo tempo, livre e alienado.
39
Para De Certeau (1994), a estratégia é o cálculo das relações de forças, que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer-poder é isolável de um ambiente qualquer e, desta forma, postula um
lugar capaz de ser um “próprio”, que denota uma vitória do lugar sobre o tempo e serve de base a uma gestão de
suas relações com uma exterioridade distinta. Por outro lado, a tática remete a um cálculo que não pode contar
com um campo “próprio”, nem com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível, pois tem
por lugar o do outro e aí se insinua fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro nem retê-lo à distância.
40
De Certeau (1994) destaca que esta produção encontra-se disseminada em regiões definidas ou ocupadas pelos
sistemas da “produção” totalitária que não deixa aos “consumidores” um lugar para que possam marcar o que
fazem com os produtos.
55
Todo este conjunto forma uma “antidisciplina”, que combina os modos de proceder
com as astúcias dos consumidores. De Certeau (1994) entende que as táticas do consumo
podem configurar engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, caracterizando uma
politização das práticas. Neste sentido, os consumidores aparecem como produtores
desconhecidos de trajetórias que desenham astúcias de interesses e desejos. Com isso, não
podem ser determinados ou captados pelos sistemas que desenvolvem os produtos
consumidos por eles. Este contexto deriva da bricolagem, da inventividade artesanal e da
discursividade, que combinam os elementos recebidos, utilizando-os em uma trajetória que
evoca um movimento e a projeção de uma redução sobre um plano, ou seja, uma transcrição
em atos.
O autor identifica uma multiplicação destas táticas nas sociedades contemporâneas
devido ao esfacelamento das estabilidades locais, que saem de órbita e tornam-se errantes.
Com isso, o estatuto de atomização social dos indivíduos confere pertinência política ao
sujeito, pois os consumidores passam a criar maneiras de se reapropriar do sistema
produzido, constituindo terapêuticas de socialidades deterioradas por meio de técnicas de
reemprego, onde se reconhecem os procedimentos das práticas.
De Certeau (1994) elabora uma política das astúcias como representação política de
alianças microscópicas, multiformes e inumeráveis, entre a manipulação e o gozo, presentes
na realidade fugidia e massiva de uma atividade social que joga com a sua ordem. Assim, o
ordinário surge como um novo (anti) herói.
II.3.3. Amor e devoção: compras como rituais de sacrifício
Em uma etnografia das compras, Miller (2002) seguiu os participantes de práticas de
compra em uma rua no norte de Londres, interpretando o ato de comprar de forma homóloga
ao ritual do sacrifício na medida em que estes atos dependem da intermediação dos objetos e
possuem três estágios. O primeiro remete a um discurso do excesso com uma visão de
consumo transgressivo e destrutivo. O segundo estágio nega o primeiro e operacionaliza o
habitus da devoção, no caso do sacrifício, pelo envio da fumaça até a divindade, sendo que,
no caso da compra, isso se pela transformação do dispêndio em poupança. Por fim, o
terceiro estágio retorna aos relacionamentos profanos do amor e da ordem social.
O sacrifício, da mesma forma que um ato de consumo, evoca o dispêndio do que foi
criado ou coletado como uma transformação que confirma a interposição do sagrado na
transcendência dos processos produtivos em consumo. Deste modo, representa a destruição
violenta de um recurso que poderia ser útil de outra forma em um ato de dispêndio.
Embora o ritual evoque um discurso de transgressão
41
, “sua finalidade é negar essa
possibilidade e garantir que o sacrifício volte a ser um relacionamento ordenado com o
divino” (MILLER, 2002, p.107).
O primeiro estágio consiste na simples retirada de materiais e ações do mundo profano
a fim de prepará-los para sua entrada no reino do sagrado. Entretanto, como o sacrifício deve
ser considerado como um todo, seu começo violento ou transgressor passa a constituir um rito
41
A transgressão representada pelo consumo profano de mercadorias e pela destruição violenta das vítimas como
espetáculo, é evitada com a realização do sacrifício, pois o rito subjuga e suprime a transgressão potencial.
56
dedicado ao restabelecimento da ordem e das estruturas convencionais do mundo. Neste
sentido, o sacrifício é uma prática que nega o próprio discurso
42
.
Miller (2002) critica o movimento ecológico em função da imagem de violência
evocada em um discurso do sacrifício, que transforma o consumismo na imagem primordial
da destruição do mundo. O consumo representa, assim, um violento saque dos recursos
naturais da Terra, uma destruição desprovida de sentido. No discurso ecológico os
consumidores deixam de ser vítimas iludidas do capitalismo e são vistos como irresponsáveis
que pilham e exaurem o planeta para satisfazer seus desejos insaciáveis, além de se tornarem
coniventes com o capitalismo, que é considerado um meio para alcançar seus fins.
Entretanto, para ser análogo ao sacrifício, o ato de comprar deve passar por uma cisão
entre a preocupação com as conseqüências profanas ou sociais e a constituição de uma meta
transcendental equivalente ao receptor divino do sacrifício. Deste modo, a essência do ato de
comprar deve ser separada dos elementos mundanos e das conseqüências do comprar.
Portanto, a economia entendida como poupança cria o sentido geral de uma
meta mais importante do que uma gratificação imediata como, por exemplo, uma força
transcendental ou um propósito futuro que justifique o adiamento. A poupança pode ser tão
profana que se torna mais eficaz no repúdio do mero utilitarismo do que a destruição do
primeiro estágio. Desta forma, o segundo estágio envolve uma separação entre a preocupação
com as finalidades sociais e profanas. Com isso, estabelece uma preocupação superior,
direcionada a uma consciência centrada no divino.
O terceiro estágio é marcado pelo distanciamento do relacionamento com o divino e
um retorno às relações com a sociedade profana e conseqüências sociais do sacrifício. Neste
estágio final do consumo, o poder transcendental confirma e reifica as relações sociais do
grupo. A economia, como elemento transcendental de devoção generalizada, se transforma na
expressão de um amor devocional, que é direcionado pela mulher como instrumento contínuo
de amor a quem ela devolveu as sobras do sacrifício sob a forma de compra. Assim,
dialeticamente, o amor passa a ser a transformação particular de uma devoção generalizada.
O ato de comprar e o ritual do sacrifício surgem como atividades que constroem o
divino frente a um sujeito que deseja. A compra pode, assim, constituir relações importantes
para as donas-de-casa, que se sentiam responsáveis ao selecionarem mercadorias educativas,
edificantes e moralmente superiores. A compra praticada para o abastecimento rotineiro do lar
consiste em um dos meios fundamentais para construir relacionamentos de amor e carinho na
vida prática. Com isso, se uma compradora deseja que os outros queiram e apreciem o que ela
leva para o seu lar, o ato de compra pode refletir uma busca residual por um relacionamento
transcendental.
Desta maneira, o ato de “comprar é antes de mais nada um ato de amor” (MILLER,
2002, p.32), refletindo um modo maior de manifestar e reproduzir o amor como valor
cosmológico e transcendental na medida em que decisões diárias são consideradas como
questões morais sobre as ões. As relações da compradora refletem suas crenças mais gerais
sobre como as relações sociais devem parecer e como devem ser levadas. Ainda que sua
compra se dirija para outras pessoas, a cosmologia e a transcendência sugerem valores
duradouros, que são contrários às contingências cotidianas.
42
Neste ponto, o trabalho necessário para obter o dinheiro que será gasto poderá estar carregado com
ressentimentos, conquistas e outras experiências provenientes do trabalho, pois “todo esse trabalho prévio é
primeiramente reduzido à abstração do dinheiro” (Miller, 2002, p. 108).
57
O amor representa um tipo particular de identificação e ligação que se relaciona com
um retorno às práticas devocionais, cosmológicas e religiosas. O autor assinala um
deslocamento da atenção das práticas de compra como expressão de subjetividade individual
e identidade para uma manifestação de parentesco e outros tipos de relacionamento, cujos
ideais são assegurados pelo amor.
Miller (2002) mostra que quando as mercadorias foram alienadas pelas forças de
produção e distribuição, elas emergiram com flexibilidade e abundância, reificando os
relacionamentos. Entretanto, atualmente, depois de se tornarem transitórios e ambivalentes, os
relacionamentos passaram a saturar as mercadorias com seus projetos de criação de valor por
meio do consumo. Deste modo, não é a oferta que importa na escolha das mercadorias, mas a
habilidade de quem consome em lidar com as ambivalências e ansiedades dos
relacionamentos em que se insere.
O autor entende uma articulação entre os atos de compra e o capitalismo, que é
mediada por relações sociais flexíveis, tendo nas mercadorias um meio de constituição
expressiva. Com isso, o sentido de valor em direção aos consumidores se amplia quando são
entendidos como sujeitos do capitalismo, mesmo sem expressar um espírito capitalista, que
este sistema possui uma lógica própria e independente de expansão.
Neste sentido, Miller (2002, p. 169, grifo do autor) compreende o consumo de
mercadorias como atos de amor e devoção das compradoras:
O ato de comprar pode ser muitas coisas dentro de contextos diversos. Neste
ensaio, a etnografia de uma rua da zona norte de Londres forneceu a base para se
resistir à tendência de usar o ato de comprar como mero motivo para se generalizar
sobre o Zeitgeist ou para simbolizar distinções sociais. A asserção foi que o ato de
comprar pode ser também uma prática ritual. Sua fundamentação é uma lógica
sacrificial cujo propósito é constituir sujeitos que desejam. O sacrifício era baseado
em um rito similar que transformava o consumo em devoção. O ato de comprar se
inicia com um rito similar, que anula o mero dispêndio para obedecer aos
propósitos mais elevados da economia. Termina como um trabalho de constituição
tanto do imediatismo como das dinâmicas das relações específicas de amor.
II.4. O Trabalho de Campo: Observação Participante
Conforme exposto acima, Daniel Miller (2002) concebeu uma teoria que entende as
compras como estruturas análogas aos rituais de sacrifício. Compartilho com este antropólogo
inglês e com o sociólogo também inglês Alan Warde, a idéia de que o ato de compra
não deve ser compreendido como um ato individualista ou individualizante. Estes autores
mostram que o ato de compra não se relaciona apenas com a subjetividade, além de raramente
ser dirigido pela individualidade do consumidor que pratica a compra. Neste sentido, procurei
observar a compra de alimentos orgânicos como rituais contemporâneos, considerando as
duas formas de alteridade que Miller (2002, p. 27) relaciona com a compra de mercadorias
para o abastecimento rotineiro do lar:
A primeira delas expressa uma relação entre o comprador e outro indivíduo particular
como criança ou parceiro, podendo estar presente no domicílio, ser desejado ou
imaginado. A segunda é uma relação com um objetivo mais geral que transcende
qualquer utilidade imediata e é mais bem compreendida como cosmológica à medida
que assume forma não de sujeito ou de objeto, mas dos valores aos quais as pessoas
desejariam se dedicar.
58
Considerando a riqueza dos detalhes, optei por elaborar e manter um detalhado diário
de campo. Desta forma, desenvolvi um trabalho de campo etnográfico que envolveu
observação participante junto aos consumidores de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ
no ato da compra. Estes alimentos eram comercializados em supermercados, feiras,
estabelecimentos especializados em hortifruti, lojas de produtos artesanais e naturais,
padarias, delicatessens e lojas de conveniência. Neste sentido, passei a freqüentar os locais de
aquisição nesta cidade a partir do dia 02/12/2008. A tabela 2, abaixo, apresenta um panorama
das atividades desenvolvidas no trabalho de campo.
Tabela 2 – Etapas do trabalho de campo
Período Atividades
Primeira Etapa
Dezembro de 2008
a
Janeiro de 2009
Visitas aos locais de aquisição de produtos
orgânicos
Interações com consumidores de
alimentos orgânicos
Segunda Etapa
Julho a Outubro
de 2009
Visitas aos locais de aquisição para
observar práticas de compra de alimentos
orgânicos
Resumo das
ações
desenvolvidas
26 visitas a locais de aquisição
Aproximadamente 80 interações com consumidores nos
locais de aquisição
15 entrevistas em profundidade
A observação participante que desenvolvi pode ser dividida em duas etapas. A
primeira etapa se desenrolou entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, período em que
visitei os locais de aquisição previamente mapeados
43
e interagi com os consumidores que
encontrava nestas incursões com o objetivo de marcar entrevistas com alguns deles. A
segunda etapa aconteceu entre julho e outubro de 2009, quando somente efetuei visitas aos
locais de aquisição que apresentavam maior fluxo de práticas de compra de alimentos
orgânicos, com o objetivo de observá-las.
Assim, nestes cinco meses não seqüenciais efetuei um total de 26 visitas aos locais de
aquisição. Estas visitas me possibilitaram observar e interagir com cerca de 80 consumidores,
sendo que, com alguns deles, interagi em mais de uma ocasião. Neste universo, realizei 15
entrevistas em profundidade
44
.
Lembro bem da primeira observação que efetuei neste trabalho de campo. Era uma
terça-feira, entre oito e nove horas da manhã. Um casal praticava compra no Tuti Fruti, um
mercado especializado em hortaliças e frutas. Tratava-se de um caso raro, pois, ao longo do
43
Além de observações pessoais, uma entrevista aberta com Jovelina Fonseca, realizada em julho de 2008,
contribuiu de maneira fundamental para organizar esta primeira fase.
44
Em relação às entrevistas, cabe destacar: (1) três delas foram realizadas com s que faziam parte do meu círculo
de relações pessoais, que compreendia somente dez dos cerca de oitenta s com os quais interagi; (2) duas delas
foram realizadas com s indicados por outros s, que conheci durante o trabalho de campo; (3) uma delas foi
realizada com um que interagi na rede de relacionamentos Orkut, depois de me chamar a atenção durante um
debate na comunidade Nova Friburgo sobre vegetarianismo e crise ambiental, no mês de janeiro de 2009, sendo
que, posteriormente, este entrevistado me possibilitou acompanhar o preparo do Suco Vivo em praça pública.
59
período de observação, o desempenho das práticas de compra se dava predominantemente de
forma individualizada. Os consumidores praticavam compra sozinhos, ou seja, sem qualquer
acompanhante. Naquele momento, observava um homem que conduzia o carrinho de compras
enquanto sua mulher efetuava as escolhas de compra, ou seja, ela pegava as coisas e as
colocava no carrinho.
Enquanto os observava, posicionado estrategicamente próximo à gôndola que abrigava
as verduras e legumes orgânicos daquele estabelecimento comercial, não havia diálogo, ao
menos verbal, entre ambos. Nem mesmo se olhavam. Este posicionamento de espreita, focado
na gôndola, se tornou um padrão das minhas incursões aos supermercados e seus corredores
apertados, uns mais que outros, mas em geral apertados.
No momento em que os vi colocando uma verdura orgânica no carrinho, fiquei ali
pensando em como iniciar minha abordagem. Ainda desajeitado e sem o traquejo necessário,
procurei interagir com este casal justamente no momento em que chegavam ao caixa para
efetuar o pagamento de sua compra. Dirigi-me ao homem, me apresentei como pesquisador e,
quase que de imediato, perguntei sobre a possibilidade de entrevistá-lo para esta pesquisa. Ele
respondeu de forma apressada, dizendo que seria difícil encontrar tempo para ser entrevistado
por mim. Ainda assim prolonguei a interação, perguntando se poderia me disponibilizar o
endereço eletrônico. Ele o fez, mas preferi não o acionar.
As complicações iniciais de uma entrada no campo envolvem dilemas sobre como
abordar a “tribo” que se pretende analisar. Estes dilemas são bem destacados por muitos
etnógrafos, em especial aqueles que empreenderam seus trabalhos de campo em contextos
urbanizados e contemporâneos (FOOTE-WHITE, 2005; MILLER, 2009).
Comigo não foi muito diferente. Logo me dei conta de que não seria bem sucedido se
abordasse os consumidores de alimentos orgânicos em supermercados na “boca do caixa”.
Além disso, naquele primeiro momento fiquei com a sensação de que enfrentaria muitas
dificuldades em encontrar informantes dispostos a serem entrevistados. Mesmo com toda a
preparação e tentativa de planejar tudo nos mínimos detalhes, a partir daquele momento não
tive mais dúvidas de que as coisas acontecem no campo, bem como é nele que se aprende o
exercício etnográfico.
Neste primeiro dia, ainda visitei mais dois pontos de venda menores na parte da tarde.
Estava muito cansado para caminhar de volta para casa e tomei um ônibus, encontrando uma
colega. Sentei ao lado dela que fez uso da função fática da linguagem, corriqueiramente
utilizada entre pessoas que não tem muita intimidade e não se vêem tempos,
perguntando o que eu estava fazendo da vida. Fiz referência ao meu primeiro dia de pesquisa
de campo junto aos consumidores de alimentos orgânicos.
Para minha surpresa, ela começou a relatar sua recente conversão radical ao consumo
de alimentos orgânicos. Disse-me que comprava semanalmente na Feira do Suspiro,
mostrando grande preocupação com a questão ambiental, mas também com sua saúde. Ao
comentar que deixara de consumir carne por causa do desmatamento na “longínqua”
Amazônia fez referência a ridicularização que enfrentava em seus círculos de amizade por
conta da sua escolha.
60
Esta colega aceitou a abordagem da pesquisa
45
, que envolveria um acompanhamento
das suas práticas de compra e uma entrevista em profundidade. Além disso, se propôs a
indicar algumas pessoas. Este encontro casual sinalizou que não seria apenas nos locais de
aquisição ou em meu amplo círculo de relações pessoais que encontraria os consumidores de
alimentos orgânicos que procurava. A partir daí, passei a ficar atento a todo e qualquer sinal
que constituísse uma pista a ser seguida, configurando uma aplicação prática do paradigma
indiciário (GINZBURG, 1989).
Não posso deixar de mencionar o sentimento de frustração que me tomava conta
quando saía de um ponto de venda depois de esperar por quase duas horas até que uma
compra de produto orgânico fosse praticada, para então tentar uma abordagem. Por outro
lado, ficava radiante de felicidade quando, por exemplo, terminava uma entrevista de quase
duas horas com um consumidor que abordei depois de esperar por uma hora e meia
observando a gôndola de um supermercado.
Certamente, este tipo de espera não foi pior do que quando ninguém praticava
qualquer compra de alimento orgânico. Isso aconteceu numa dada manhã em que fiquei
observando tão somente a gôndola que os ofertava em um supermercado. Nesta ocasião,
refleti sobre as limitações de perseguir as pessoas com “perguntas obtusas” (GEERTZ, 1978),
o que me levou a valorizar as observações que efetuei (BECKER, 1992; MILLER, 2002),
dando-lhes a mesma importância que os discursos transcritos das entrevistas em profundidade
que consegui coletar “objetivamente”.
Portanto, o desenvolvimento deste trabalho de campo compreendeu sensações de
frustração/desânimo e de intensa felicidade/esperança como pólos reais, e não tipos ideais,
tendo em vista que passei por situações que me remetiam a ambas as sensações, em maior ou
menor grau. Assim, às seguidas frustrações se alternaram esperanças e iluminações profanas
que me possibilitaram desenvolver aqui uma descrição densa (GEERTZ, 1978), baseada na
observação participante (BECKER, 1992; MILLER, 2002) junto aos consumidores de
alimentos orgânicos com os quais me deparei nos locais de aquisição em Nova Friburgo/RJ.
Desta forma, a seguir, descrevo os locais de aquisição de alimentos orgânicos em
Nova Friburgo/RJ, explicitando as escolhas que fiz ao longo do trabalho de campo. Na
seqüência, contando com o aporte dos dados das entrevistas em profundidade realizadas,
apresento uma descrição densa das observações sobre as práticas de compra destes alimentos,
com destaque para locais de aquisição como supermercados, feiras e canal de venda direta,
analisando o que os consumidores entrevistados falavam sobre as práticas que eles
desempenhavam.
II.5. Etnografia das Práticas de Compra: Descrição densa
Neste trabalho, minha observação se concentrou nas práticas de compra de alimentos,
especialmente verduras e legumes, que fossem identificados pelos consumidores como sendo
orgânicos. Esta escolha se relaciona com a idéia de que a compra voltada para o
abastecimento rotineiro do lar (MILLER, 2002) constitui uma forma de configurar
possibilidades concretas para acessar hábitos e cosmologias dos que as praticavam.
45
Devo destacar que, nesta primeira fase do trabalho de campo que se estendeu até o final de janeiro de 2009,
configurei um padrão de abordagem: depois de estabelecer conversação no próprio local de aquisição, procurava
convencer os consumidores de alimentos orgânicos a participar da proposta desta pesquisa.
61
As entrevistas em profundidade confirmaram as práticas de compra de alimentos
orgânicos como elementos integrantes do abastecimento rotineiro dos lares de seus adeptos
em Nova Friburgo/RJ. Neste sentido, minha análise destaca questões como a freqüência, a
individualização, os locais de aquisição preferidos, as dificuldades de encontrar estes
alimentos e as táticas desenvolvidas pelos consumidores a fim de lidar com estas dificuldades.
Os quatorze locais de aquisição visitados em dezembro de 2008 se concentravam no 1º
e 8º distritos que compunham a estrutura político-administrativa do município de Nova
Friburgo/RJ, destacada no mapa do Anexo A. A Tabela 3, abaixo, relaciona os locais de
aquisição de alimentos orgânicos que visitei durante o trabalho de campo, bem como os dias
da semana em que funcionavam ou recebiam entregas destes alimentos.
Tabela 3: Locais de aquisição de alimentos orgânicos visitados em Nova Friburgo/RJ
Local Tipo Distrito Funcionamento
Feira Orgânica do
Cônego
Feira certificada Sábados pelas manhãs
Feira do Suspiro Barraca certificada Sábados pelas manhãs
Challet das Plantas
Venda direta do
produtor
Quartas e sextas pelas manhãs
Casa Friburgo Supermercado
Diariamente, entregas às terças,
quintas e sábados
Cavalo Preto Supermercado
Diariamente, entregas às terças,
quintas e sábados
Tuti Fruti
Mercado de
hortifrutis
Diariamente, entregas às terças,
quintas e sábados
Grão da Serra Supermercado
Diariamente, entregas aos
sábados
Gama Supermercado
Diariamente, entregas aos
sábados
Superpão Padaria e delicatessen
Diariamente, entregas às terças,
quintas e sábados
Riacho Sereno
Loja de produtos
artesanais
Diariamente, entregas aos
sábados
Paraíso Verde Padaria
Diariamente, entregas aos
sábados
Plantar e Colher
Loja de produtos
naturais
Segunda a sábado, entregas às
terças, quintas e sábados
Mundo Verde
Franquia de rede de
lojas de produtos
naturais
Segunda a sábado, sem entregas
de alimentos in natura orgânicos
Casa Natural
Loja de produtos
naturais
Segunda a sábado, sem entregas
de alimentos in natura orgânicos
As visitas foram realizadas tanto nos dias em que os locais de aquisição funcionavam,
no caso das feiras e do canal de venda direta, quanto nos dias em que recebiam entregas de
alimentos orgânicos, no caso dos estabelecimentos comerciais.
62
As práticas de compra, principalmente de legumes e verduras costumavam ser
desempenhadas em uma freqüência semanal, especialmente aos sábados, mas também nos
dias de entregas destes produtos pelo Sítio Cultivar, o principal fornecedor local. Esta
freqüência mostra como as aquisições de alimentos orgânicos se voltam para o abastecimento
rotineiro do lar, ou seja, fazem parte da alimentação cotidiana destes agentes.
A gente normalmente compra as verduras no Tuti Fruti, que no sábado tem feira de
orgânico (C51).
Compras, uma vez por semana [...] Os orgânicos, encontro na feira e no
mercado. Dou preferência a encontrar na feira [...] Verduras frescas, na feira ou no
mercado (C31).
Toda semana compro alface, rúcula, espinafre. Normalmente, o que eu acho. Agora
no hortifruti [Tuti Fruti] já tem, então compro sempre. Pepino também compro com
bastante regularidade [...] Pelo menos uma vez por semana, eu compro aquela
cenoura, que ainda é um pouquinho mais cara (C40).
Sempre tenho coisa de orgânico na minha geladeira. Uma vez por semana compro
alguma coisa. Por exemplo, tenho comido alface [...] é uma verdura fácil de lavar,
tem que ser prático (C45).
No entanto, algumas variações podem ser identificadas em certos relatos. Uma
entrevistada, por exemplo, pratica compra em uma freqüência quinzenal por conta da grande
distância entre a sua residência e os locais de aquisição de alimentos orgânicos na cidade de
Nova Friburgo/RJ.
Saio daqui [Lumiar, quinto distrito de Nova Friburgo/RJ] de quinze em quinze dias,
faço a feirinha onde você foi, na cooperativa dos agricultores. Eu sei as barracas
que m a produção orgânica e compro. Encho a geladeira e fico tranqüila [...]
Como estou morando sozinha, para encher a geladeira e consumir neste espaço
[de tempo] (C9).
Outra variação parece estar associada às práticas de compra de cereais e grãos
orgânicos. Uma entrevistada pratica compra de itens como arroz integral, molho de soja e
massa de soja (o missô) mensalmente em uma loja de produtos naturais. Outro consumidor
adquire grandes quantidades de farinha e açúcar orgânicos, dando maior intervalo entre uma
compra e outra, feitas por meio da rede mundial de computadores.
Compro, de vez em quando, grãos na cerealistahelena.com.br. Compro pela
internet, em quantidade, e eles te entregam. vale a pena comprar 20 quilos, 30
quilos, coisa para três ou quatro meses, porque você tem que pagar frete e uma série
de coisas. Geralmente, compro farinha orgânica, açúcar orgânico, que, aqui em
casa, a gente faz bolo e pão. Na casa da minha noiva a gente faz mais pão e
biscoito, para não ter que ficar comprando (C50).
As lojas de produtos naturais também são referenciadas, mas com menos intensidade
que os supermercados, as feiras e o canal de venda direta, especialmente quando se referem à
compra de grãos e cereais.
A soja, e essas coisas orgânicas, é no Plantar e Colher ou Mundo Verde, mas
prefiro comprar no Plantar e Colher por ser uma loja menor e o Mundo Verde é
uma rede já [...] tenho medo dessas coisas pequenas irem acabando. E está
diminuindo, era uma loja de dois andares e agora é uma esquina pequenininha.
Eu gosto dessas relações, desses lugares pequenos, assim as pessoas se conhecem.
É diferente do Mundo Verde que, por mais que não seja enorme, é menos flexível
em algumas coisas (C51).
63
Neste sentido, parece existir uma clara preferência pela Plantar e Colher em
detrimento do Mundo Verde. Isso parece ter relação com o fato desta última ser franquia de
uma grande rede enquanto aquela configura uma loja local, o que remete a uma espécie de
resistência frente à expansão das grandes redes varejistas.
Compro no Plantar e Colher muitos e muitos anos, acho que é o que vem
mantendo essa qualidade dos produtos; em outras épocas foi maior, agora está
reduzida. Penso no que vai acontecer com a gente, porque sinto também que alguns
anos atrás você tinha muito mais opção de entrepostos naturais. Não sei se essa
absorção da própria alimentação diferenciada pelos supermercados, não sei se isso
dificultou manter esses entrepostos que tinham uma proposta [...] Não sou uma
cliente do Mundo Verde, às vezes, alguma coisa que não encontro em outro lugar
ou quero comparar preço (C9).
Cabe ressaltar que fui indicado para entrevistar uma consumidora pelo atendente de
uma das lojas de produtos naturais que visitei. Este funcionário me sugeriu, inclusive, afixar
um pequeno cartaz no mural da loja, avisando sobre a pesquisa que estava realizando. Devo
reconhecer que o instrumento não foi tão eficaz quanto à abordagem do atendente. Com isso,
se nem tudo foram flores, não houve somente espinhos pelo caminho.
Um caso que também me chamou atenção envolve consumidores que praticam compra
de alimentos in natura orgânicos em rios dias da semana e em menor quantidade para
consumi-los sempre “frescos”. Com isso, o desempenho da compra se tanto em um local
de aquisição que freqüentam habitualmente, dependendo do tempo disponível para tal, quanto
percorrendo vários locais de aquisição ao longo da semana.
Procuro comprar em vários dias da semana, porque acho que não é legal comprar
em maior quantidade uma vez na semana. Na medida do possível, quando eu
tenho tempo, eu prefiro comprar em menor quantidade (C6).
Vou uma ou duas vezes por semana ali do lado da igreja [Challet das Plantas], vou
à feira procurar aquelas pessoas – mesmo que não seja 100% orgânico – que trazem
as coisas do próprio sítio. Como vou ao Plantar e Colher comprar as coisas
integrais, às vezes eu olho alguma coisa que não tem em outros lugares e que
apareceu, compro lá. Se o tiver ido à feira [do Suspiro], por qualquer motivo,
procuro alguma coisa do Sítio Cultivar, que eles põem no Plantar e Colher e no
Cavalo Preto e, às vezes, na Casa Friburgo (C23).
A maioria das práticas de compra é desempenhada apenas pelos próprios agentes, que
geralmente estão sozinhos, ou seja, desacompanhados no momento em que compram.
Entretanto, suas escolhas não parecem constituir uma mera opção individual feita nos locais
de aquisição, como crê a economia neoclássica.
Alguns, inclusive, faziam questão de praticar compra para seus lares porque se sentem
mais habilitados para escolher os alimentos orgânicos in natura do que qualquer outra pessoa
da casa. Este ponto ficou evidente durante a análise dos dados coletados, quando constatei que
apenas uma entrevistada referenciou a empregada doméstica como alguém que também
poderia comprar estes alimentos, não sem antes ser devidamente orientada.
Gosto de fazer as compras e escolher, mas nem sempre dá; talvez, por causa do
tempo. A [nome da empregada doméstica] já tem essa manha, eu falo para ela ir
sempre nos orgânicos. Eu passei muito tempo comprando e ela vendo o que eu
comprava (C46).
64
Além disso, as práticas de compra, que à primeira vista podem ser apressadamente
caracterizadas como simplesmente individualizadas, se inserem em contextos que vão muito
além de uma mera ida ao local de aquisição desacompanhado de um familiar, companheiro ou
amigo. Desta forma, os consumidores, mesmo os que moram sozinhos, comumente
referenciam suas práticas de compra em relação a pessoas de seu ambiente familiar ou círculo
de relações mais íntimas da vida cotidiana. Com isso, pude identificar a alteridade do ato de
compra destacada por Miller (2002):
Normalmente, vou sozinha. Procuro levar, também, a sacola de algodão. Vou feliz.
É uma coisa super prazerosa ir lá e comprar os produtos orgânicos [...]Eu moro com
a minha mãe e tem uma pessoa que trabalha , ela que prepara. Ocasionalmente,
faço alguma coisa diferente, tipo um suflê de cenoura. Quando comecei a comprar,
todo mundo sentiu a diferença, a alface é mais macia, mais gostosa, todo mundo
comenta. Eles adoram quando eu vou à feirinha (C14).
Geralmente, consumo mais orgânicos na casa da minha noiva. A gente compra
junto, ou antes, de ir para lá, pergunto se está precisando de alguma coisa (C50).
Geralmente, vou sozinho. Vejo o que está faltando em casa. Fim de semana, que é
sábado e domingo, minha mulher tem que ficar mais presa cuidando da mãe, então,
é aos sábados e domingos [que compra] (C34).
Normalmente, faço sozinha. é chato, ainda carregar alguém junto é demais [...]
Quando cresci e fiquei independente, a primeira coisa que fiz foi não ir à feira,
comprava tudo em mercado. Mas aí, veio a minha gravidez e a minha preocupação;
acabei voltando para a feira por opção. Hoje, a fonte de alimentação nossa é a feira;
é a principal. Eu me acostumei a ir à feira cedo, no sábado, porque os meus filhos
estudavam sete horas. Eu acordava, levava eles para a escola e ia para a feira.
Mantive esse hábito. Sábado, não tendo mais filhos em casa, acordo cedo e vou
para a feira (C31).
Neste sentido, o desempenho em práticas de compra em geral parece traduzir uma
negociação no seio da unidade familiar:
Gostaria muito de ir acompanhada. Durante muito tempo eu sonhei em ser
acompanhada nas minhas compras, mas não consigo achar ninguém que queira.
me habituei a ir sozinha (C12).
A observação das compras confirmou a idéia da mulher como compradora
especializada na função de abastecimento rotineiro do lar (MILLER, 2002), que apareceu
mais diretamente quando entrevistei um consumidor que me foi indicado por uma outra
entrevistada. A indicação era para que entrevistasse um casal e optei por entrevistar o homem.
Durante a entrevista, o mesmo mostrou aversão à prática de compra, referenciando a esposa
como uma pessoa que “gostava de comprar”:
Eu consumo [os alimentos orgânicos], mas a prática da compra fica com a [nome
da esposa]. Às vezes vou à feira, mas sempre com ela. Ela se preocupa mais em
comprar, e eu menos. Mas isso não é em relação à compra de alimentos
orgânicos, mas com a compra geral da casa. Não gosto de ir a supermercado,
detesto ficar em fila. A [nome da esposa] tem a cultura da mãe dela, que ia à feira
todo domingo fazer compra. Quando era pequeno, também ia, mas depois nunca
mais fui fazer compra. Acho que isso vem da cultura do homem e da mulher, que é
um pouco diferente. Às vezes, a mulher acompanha mais tempo a mãe nessa
questão da casa, eu acho. Porque, no caso dela, tem isso. Ela gosta de ir à feira, ver
aquela coisa toda, as verduras. É um passeio, é uma coisa boa, prazerosa. Também
gosto de ir à feira, acho bonito, mas não é uma coisa que me estimula (C49).
65
Além do sobrepreço, que se tornou uma marca dos alimentos orgânicos, os
entrevistados apontavam muitas dificuldades para encontrar estes alimentos, principalmente
quando procuram frutas como, por exemplo, a maçã, um ingrediente fundamental para
aqueles que preparavam o Suco Vivo
46
. Da mesma forma, relatam não encontrar itens como
vinho, morango, pêssego e até mesmo pão orgânico nos locais de aquisição que freqüentam
em Nova Friburgo/RJ.
Apesar disso, os consumidores encontram o “básico” nos locais de aquisição onde
desempenham suas práticas, o que é suficiente para que os alimentos orgânicos estejam
presentes nos cardápios dos seus lares durante a semana. Este “básico” compreende o arroz
integral e a lentilha, não orgânica, que geralmente são adquiridos em lojas de produtos
naturais, bem como as verduras e os legumes, adquiridos com maior freqüência nas feiras e
supermercados.
A falta de diversidade de alimentos orgânicos comercializados em Nova Friburgo/RJ
faz com que estes consumidores adotem pelo menos cinco posicionamentos diferenciados.
Um destes, o mais passivo, é adotado por aqueles que simplesmente aceitam o fato de que não
encontram o que procuram. Assim, se limitam a constatar as limitações da única produtora
local e a pouca oferta de produtos orgânicos.
Entretanto, grande parte dos consumidores de alimentos orgânicos que observei
desenvolve pelo menos quatro táticas para lidar com a impossibilidade de uma compra
planejada mediante a escassez e baixa diversidade dos itens comercializados. A primeira
consiste em ir ao ponto de venda sem planejamento e adquirir os alimentos disponíveis:
É assim: vou e vejo o que está bonito, não vou predeterminada a comprar x ou y,
vou e vejo o que está bom. Esta é a minha prática: comprar o que está bonito [...]
Elaboro o cardápio em função do que tem. (C46).
Não tenho esse negócio eu vou buscar uma cebola orgânica”, vou ver o que tem e
como o que tem [...] Vou procurando alimentos. O que tem e o preço for bom,
levo e faço comida com eles. em casa, a minha mulher come qualquer parada
que colocar. Ela come pouco, ela é magrinha. Então, lá em casa a gente faz,
normalmente, uma proteína e salada crua. (C45).
Outra tática envolve buscar informações sobre os dias de entrega dos alimentos
orgânicos, em quais locais de aquisição eles são comercializados, bem como quais são as
“épocas” de cultivo de cada alimento.
Tem coisas que não dá para ficar planejando muito. Sei que terça e quinta chegam
as verduras, aí eu já passo e levo (C9).
No Cavalo Preto, chegam sempre as terças, quintas e sábados. Na medida do
possível, vou as terças, quintas e sábados e compro na terça o que para terça e
quarta; quinta, pra quinta e pra sexta; sábado, para o final de semana para mantê-
los mais frescos (C6).
Em relação às folhas, sim. Sempre tem. Às vezes, não têm os três que eu gosto
mais. Mas sempre tem alface; sempre tem a rúcula; pepino, às vezes tem, às vezes,
46
Segundo uma entrevistada, este suco contém maçã, alface, couve, pepino e cenoura. Para ela, a maçã “dá um
sabor diferente”, que adoça o suco, mas geralmente não é orgânica por ser difícil de encontrar. Se tiver um broto,
ela também coloca no preparo. Outro entrevistado também acrescenta a beterraba e, às vezes, troca a maçã pela
lima da pérsia orgânica, de forma que o suco fique “totalmente orgânico”.
66
não. Legume, propriamente dito, no hortifruti [Tuti Fruti] você não acha nenhum.
Nem a cenoura você consegue achar. A cenoura, acho mais no Cavalo Preto, ou
então em algum outro local que ainda não tenha visto (C40).
As frutas é difícil de achar o orgânico, mas às vezes acha. Está na época do caqui,
do abacate, aí você acha alguma coisa. A banana a gente também acha em Friburgo,
mas a maçã e outras frutas levam agrotóxico, a gente acaba comendo mesmo, acho
que é melhor do que não comer a fruta [...] A cenoura, que é o alimento básico e
que compro toda semana, tem mês que não tem a cenoura orgânica. A rúcula no
momento não está tendo, mas talvez em dez meses do ano tenha a rúcula. Tem
umas coisas que a gente já sabe que vai ter quase o ano inteiro e outras naquele
período (C23).
Neste sentido, parece que o horário de chegada ao local de aquisição também é
importante.
É o que te falei, tem época que não tem e às vezes acaba. Se for à feira mais tarde,
acabou [...] Antes, meu filho estava tendo aula sábado,eu ia à feira sete e meia
da manhã, era o melhor horário. Tudo fresquinho... dava vontade de comprar tudo!
Uma terceira tática observada entre eles envolve uma opção pelo adiamento de sua
compra ao invés de substituir por um produto convencional. Por fim, alguns tomam a
iniciativa de plantar ou produzir alguns itens dentre aqueles que eles gostariam de consumir,
mas não encontram facilmente nos locais de aquisição, como as frutas, o tomate e queijos.
Lá no sítio a gente já tem o caqui, que nunca usou veneno. Tem o caqui da Jovelina
[proprietária do Sítio Cultivar], mas ela tem poucos pés. no sítio a gente tem,
hoje, pêra, banana (C50).
Esse tomatezinho que planto lá em casa, as cascas do que a gente consome vão para
essa terra, a compostagem (C6).
Na minha casa tem criação de cabras, queijo e leite são orgânicos de casa
(C23).
A partir de janeiro de 2009, minhas visitas se concentraram nas duas feiras e no canal
de venda direta do produtor, bem como nos três supermercados. Esta escolha se deu em
função da percepção de que eram os locais de aquisição com maior fluxo de práticas de
compra de alimentos orgânicos a serem observadas, sendo que percebi uma ligeira preferência
pelas feiras.
Desta forma, a seguir, apresento uma descrição densa das observações que efetuei em
cada local de aquisição visitado, bem como dos discursos que os consumidores proferiram
sobre suas práticas de compra. Esta separação se justifica porque cada um destes locais de
aquisição apresenta um padrão diferenciado de práticas de compra de alimentos orgânicos,
mesmo que alguns consumidores freqüentem todos esses pontos de venda.
II.5.1. Feiras
Em Nova Friburgo/RJ, duas feiras comercializam alimentos orgânicos. A Feira
Orgânica do Cônego e a Feira da Cooperativa dos Agricultores, referenciada pelos
consumidores como Feira do Suspiro, funcionam aos sábados pela manhã, sendo certificadas
pela Abio, com preço cerca de 30% menor do que nos supermercados e no Tutti Frutti.
67
A Feira Orgânica do Cônego possui apenas duas barracas, montadas em uma praça da
localidade que lhe o nome, reunindo poucos pequenos produtores, além do Sítio Cultivar,
que também comercializa seus produtos neste local. Ali consegui encontrar e interagir mais
facilmente com consumidores de alimentos orgânicos por se tratar de uma local de aquisição
que comercializa apenas estes produtos. Desta forma, procurei estar presente desde cedo,
chegando lá sempre entre sete e oito horas da manhã.
Em pelo menos duas visitas, encontrei com um consumidor extremamente falante,
sendo que entabulamos conversas que, acredito, não teriam acontecido nos supermercados.
Desta forma, pude compreender que sua prática de compra de alimentos orgânicos se
relaciona com o fato de considerar esses produtos mais saudáveis, nutritivos, sem agrotóxico.
Para ele, a alimentação é um campo arriscado, o que influencia na compra destes alimentos.
Além disso, disse-me que não tinha qualquer preocupação ambiental que o levasse ao
consumo de alimentos orgânicos.
Em outra interação, uma consumidora estava acompanhada de sua mãe e de duas
sobrinhas. Disse-me que freqüentava a Feira Ecológica e Cultural da Glória, na cidade do Rio
de Janeiro/RJ, morava no Rio e possuía uma propriedade em Nova Friburgo/RJ. Para ela, a
prática de compra do alimento orgânico está relacionada “com o universo, com o que
acontece ao planeta”.
Com isso, ela tenta passar questões como a alimentação orgânica e o uso racional da
água para seu círculo de relações sociais e, especialmente, para as sobrinhas que a
acompanhavam. Esta consumidora também considera a alimentação um risco e sua prática de
compra constitui uma reação a esse risco. Sua mãe mencionou que prepara e usa o Suco Vivo
dez anos, bem como percebe as pessoas que consomem alimentos orgânicos como seres
humanos melhores
47
.
Uma professora que se define como vegetariana disse ter parado de comer carnes por
conta da presença de toxinas neste alimento. Depois disso é que passou a consumir alimentos
orgânicos, por conta da presença dos agrotóxicos. Esta consumidora adquire estes alimentos
semanalmente e, com isso, acredita que atua em prol do meio ambiente e dos pequenos
produtores rurais. Além disso, também a alimentação como um campo arriscado, mas
acredita no alimento como uma energia vital, algo espiritual.
Na Feira Orgânica do Cônego, os consumidores se mostram atraídos pela
possibilidade de estabelecer um contato com os produtores, ou seja, pela possibilidade de
interagir com quem produz os alimentos orgânicos. Desta forma, eles sentem que estão
apoiando aquele pequeno produtor, além de demonstrar certeza de que encontram apenas
produtos orgânicos naquele local de aquisição.
Ultimamente, eu tenho comprado lá na feirinha do Cônego. Vou toda semana, faço
a compra para toda a semana [...] Todo sábado. Lá é o lugar que eu prefiro comprar.
(C14).
Prefiro comprar na Feirinha do Cônego, porque posso conversar, tem o Ocimar,
que é produtor, tem o Flávio [comerciante da barraca, que também era funcionário
47
Neste caso, percebi a capacidade de distinção associada ao consumo de alimentos orgânicos, no sentido de
Boudieu (1994). Entretanto, por não se tratar do ponto central deste trabalho, optei apenas por destacar nesta
nota de rodapé.
68
do Sítio Cultivar], às vezes, a Jovelina [proprietária do Sítio Cultivar] vai
também (C50).
Quando compro na feirinha, eu compro melhor. Quando não tem como, compro
aqui [na cidade do Rio de Janeiro/RJ] (C45).
Procuro comprar ali. Primeiro, para prestigiar o pequeno produtor. Acho que a
gente tem que apoiar o pequeno produtor. O produto orgânico se torna mais caro no
grande comércio varejista, porque você tem intermediário. A intermediação tem a
ganância do lucro. Isso ainda é um impedimento grande na comercialização dos
orgânicos (C34).
Um destes entrevistados, que pratica compra de alimentos orgânicos preferencialmente
neste local de aquisição, também fez referência à possibilidade de encontrar seus amigos e
entrar em contato com suas raízes. Isso poderia confirmar a feira como ponto de encontro e
desenvolvimento da sociabilidade (PORTILHO, 2009).
Na feira de Friburgo é onde tenho amigos. Então, encontro e marco com meus
amigos lá (C45).
No entanto, parece que esta não é uma idéia generalizada. Outra entrevistada, que foi
citada como referência por alguns consumidores que conheci durante o trabalho de campo,
deixou de praticar compra de alimentos orgânicos em função do alto preço, incompatível com
seu padrão de renda no momento. Além disso, se mostra decepcionada com a Feira Orgânica
do Cônego porque
Mais importante que o produto em si [...] é o que acontece. Falei: “vou dar aula de
tai chi ali do lado da feirinha, aí o pessoal faz tai chi, já faz feira”. Estou dando aula
até hoje, mas o negócio não decolou, na minha visão. Ficou o ponto de encontro
de venda mesmo. O melhor dia foi no dia da comemoração de um ano, que teve
coisas acontecendo junto com a feirinha. Hoje não consumo. Não estou podendo
consumir orgânico. Vou na feira de Olaria. Com vinte reais que vou nessa feira
aqui, compro cinco ou seis itens. Com vinte reais que vou na feira de Olaria, faço a
feira pra semana inteira (C12).
Para ela, não existe mais o clima cultural que tanto lhe atraíra nas primeiras feiras do
movimento de agricultores orgânicos em Nova Friburgo/RJ, durante a década de 1980.
O que mais me encantou na feira não eram os produtos, era o clima cultural que
reinava ao redor da feira. Isso foi inesquecível para mim até hoje. Era um dos
lugares que eu ia e que acontecia uma coisa diferente. Principalmente aqui na
cidade de Friburgo, que na época [década de 1980] era tudo muito dentro de um
padrão. A partir daí, não deixei mais de consumir orgânico e nem de freqüentar a
feira. A feira ficou ali um tempo e depois ela foi para o Suspiro. melhorou
muito, porque incluiu outras coisas na feira. A gente tinha aula de ginástica na feira,
a gente tinha exposições, era muito legal. Tinha um pouco de tudo. E tinha as
barracas de orgânico; geralmente, o preço era um pouco mais caro do que nas
outras feiras, nos outros mercados, mas valia a pena pelas pessoas que produziam.
Valia a pena não pelo produto ser bom, não era uma coisa para mim, não. Era
uma coisa para o grupo mesmo (C12).
Neste sentido, cabe destacar que tive a oportunidade de participar da festa do primeiro
aniversário da Feira Orgânica do Cônego, comemorado em 06/12/2008. Neste dia, fiz muitos
contatos, aproveitando a festa, que tinha várias barracas com degustação de Suco Vivo e café
orgânico, venda de sacolas ecológicas, receitas orgânicas, oficina de Origami, um
“minhocário” e representação local da Pesagro e Embrapa. Além das barracas, ocorreram
69
palestras sobre cosméticos orgânicos e aula de Tai Chi Chuan, com direito a distribuição de
bolo orgânico no final.
Neste dia festivo, depois de experimentar o Suco Vivo, interagi com quatro pessoas
que não conhecia e um casal. Também aproveitei o momento final da palestra sobre
cosméticos orgânicos, para comunicar a realização desta pesquisa. Dentre estas pessoas,
entrevistei uma delas e recorrentemente encontrei outra consumidora na Feira do Suspiro.
No caso da feira do Suspiro, a sociabilidade em relação às práticas de compra de
alimentos orgânicos não é tão marcante. Além da sua localização mais central, os
consumidores destacam como aspectos principais deste local de aquisição o fato de saberem
quais são as barracas que vendem produtos orgânicos, bem como procurarem “aquelas
pessoas que trazem as coisas do seu próprio sítio”.
Compro aonde eu prefiro comprar, tem as barracas certas na feira, tem a japonesa.
Agora, se por algum motivo eu não conseguir comprar aí, compro em outro lugar.
Me disponho a no sábado de manhã acordar cedo para ir à feira. É uma rotina
estabelecida. se tiver viajado e não estiver no sábado em Friburgo que não vou à
feira (C23).
Conheço o produtor, por isso compro em feira (C31).
Em certa ocasião, ao percorrer o espaço do galpão onde se localiza esta outra feira,
guiado por uma consumidora, pude perceber que ela identificava algumas barracas que não
são certificadas como “convencionais conscientes”. Trata-se de uma referência a não
utilização de agrotóxicos pelos produtores, traduzindo confiança na relação face-a-face com o
produtor. Esta consumidora praticava compra em todas as barracas “orgânicas e conscientes”
e me apresentou duas consumidoras, uma das quais entrevistei nesta pesquisa.
A Feira do Suspiro funciona no mesmo horário da Feira Orgânica do Cônego, aos
sábados pela manhã. Trata-se de um local espacialmente bem maior, onde predominam as
barracas que comercializam os hortifrutis “convencionais”. existia apenas uma barraca
orgânica certificada em dezembro de 2008, a “do Dílson”, um produtor de Bom Jardim/RJ,
cidade vizinha. Quando voltei ao campo entre junho e outubro de 2009, havia mais uma
barraca de produtor orgânico certificado.
Na barraca do Dílson, observei um diálogo entre um casal de consumidores que
parecia não saber que esta barraca é especializada em produtos orgânicos. O homem atribui à
ausência de agrotóxicos a sua prática de compra, no que a esposa complementa, dizendo que
“é melhor”. Neste dia, pude interagir com outra consumidora de forma rápida. Ela se mostrou
um tipo interessante para esta pesquisa ao revelar que não gosta de levar a sacolinha de
plástico, pois se preocupa com o planeta. Posteriormente, vim a entrevistá-la.
Em outra visita, um idoso disse que compra muitas “cabeças” de alface, bem como
come esta hortaliça pura, pois “basta lavar”. O motivo principal para comprar a alface
orgânica é sua saúde, mas também acredita que ajuda o meio ambiente e os pequenos
proprietários rurais ao adquirir estes alimentos. Em outra interação com um idoso nesta
barraca, sua maior preocupação é o valor total da compra. Disse-me que pratica compra
porque a esposa “manda”, em função da ausência do agrotóxico nos alimentos orgânicos. Este
consumidor não apresentava qualquer motivação ambiental.
70
Neste local de aquisição, pude interagir com um consumidor que é médico, tendo
referenciado a influência da macrobiótica para falar sobre sua participação no início do
movimento de agricultura orgânica em Nova Friburgo/RJ, na década de 1980. Revelou-me
que foi preso no dia em que aconteceu a primeira feira orgânica, por causa da utilização de
uma balança medieval, de sua posse. Percebi que conversei com um personagem folclórico
dos primórdios da comercialização de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ. Ele
distingue a denominação “orgânica”, como algo atual, do que antes era natural e que agora
“virou lixo”. Lembrou do Terra Azul, antigo restaurante natural, e de como a efervescência da
alimentação alternativa influenciou sua vinda para Nova Friburgo/RJ.
Este consumidor acredita que o orgânico não é caro, pois a pureza do alimento garante
a sua saúde e da família, além de trazer benefícios para a terra, ao não poluir, gerando um
ciclo perfeito, ideal. Quando indagado sobre certas abordagens que consideram os
consumidores de orgânicos como sendo egotrip
48
, respondeu-me que se quem compra
orgânicos é considerado egoísta pela sua preocupação com a saúde, acredita que “todo mundo
deveria ser egoísta assim, pois estaríamos salvos”. Para ele, de uma forma geral, o alimento
significa “manter a existência e promover a evolução”.
Ao interagir com outro consumidor na barraca que se instalou posteriormente na Feira
do Suspiro comercializando alimentos orgânicos, ele disse-me que consome estes alimentos
por conta da poluição gerada pelos agrotóxicos e da sua saúde. Além disso, sua compra
contém uma preocupação ambiental, sendo interessante perceber que ele confiava mais na boa
fé de quem lhe vendia do que em qualquer selo.
II.5.2. Venda direta
A “venda direta” de alimentos orgânicos envolve práticas que são desempenhadas
junto a agricultores conhecidos pelos consumidores, associadas freqüentemente a um
encurtamento da cadeia, que, segundo eles, tende a “valorizar a energia do alimento”.
Também tem outros lugares, às vezes, uma amiga que planta. Ou mesmo chega a
figura [agricultor] daqui [Lumiar, quinto distrito de Nova Friburgo/RJ] e fala:
“Dona [nome da entrevistada], não boto nada, boto o esterco”. dou
preferência para comprar com ele o inhame [...] até porque, dentro da alimentação
vegetariana, eles falam muito isso da questão da energia. Você poder comer um
alimento que não passe por muitos atravessadores, que tem essa radiação energética
(C9).
48
A partir de estudos de Guillon & Willequet (2003), Guivant (2003) enfatiza que as escolhas de alimentos pelo
consumidor de produtos orgânicos em supermercados se orientam pela procura de um estilo de vida mais
saudável, sem implicar em adoção de práticas sociais e ambientais coerentes, que caracteriza o estilo de vida de
um consumidor ego-trip. Diferentemente, as escolhas de consumo de alimentos orgânicos orientadas por atitudes
e valores assumidos frente ao meio ambiente ou à sociedade caracterizaria o estilo de vida de um consumidor
ecológico-trip. Com isso, destaca que “numa sociedade mais individualista, a experiência de riscos ambientais
pode ter muito pouco a ver com ‘salvar o planeta’ e muito mais com assuntos da vida cotidiana, no aqui e agora.
Desta maneira, o encontro com o meio ambiente passa a ser mais personalizado. Seguindo este interessante
argumento, poderíamos considerar o consumidor ecológico-trip como um tipo de consumidor ego-trip, que atinge
outros planos nas suas práticas de consumo” (GUIVANT, 2003, p.15). Neste sentido, a autora aponta uma
tendência pela qual o estilo de vida egotrip despontaria como hegemônico entre os consumidores de alimentos
orgânicos.
71
No entanto, alguns consumidores demonstram certa desconfiança quanto ao rótulo
“orgânico” que aparece em alguns locais de aquisição, especialmente na modalidade “compra
direta com produtor”.
Às vezes, faço alguma aquisição dentro de um supermercado que tenha orgânico,
uma banca de orgânico. Mas sempre com um na frente e outro atrás, se estou
comprando gato por lebre. teve uma determinada pessoa aqui que vendia como
orgânico, mas sendo da agricultura convencional. Isso ainda tem muito. É preciso
uma certificação séria. Quer dizer, veja bem, hoje o que compro e o que consumo,
eu conheço os produtores. Mas a gente precisa ter cuidado (C9).
Também tenho as minhas dúvidas. Ele garante que não usa agrotóxico, mas tenho
minhas dúvidas. Às vezes compro cenoura com ele, às vezes uma fruta (C29).
Esta modalidade de comercialização acontece às quartas e sextas-feiras no horto
Chalet das Plantas, que tem como referência principal a Igreja Matriz, de orientação católica,
da qual é um anexo. Por não ser certificada, caracteriza uma “venda direta” do produtor ao
consumidor, apresentando grande fluxo de consumidores.
Neste local de aquisição, o preço único da porção pré-preparada de legumes e verduras
corresponde a algo entre 20 e 40% menor do que o praticado nas outras duas feiras, e entre 40
e 70% menor do que os praticados pelos supermercados, dependendo do item. As visitas ao
Challet das Plantas me levaram a conhecer e, posteriormente, entrevistar uma consumidora
de alimentos orgânicos que aparece como referência para muitos outros consumidores com os
quais interagi durante o trabalho de campo.
O movimento no Challet das Plantas é intenso com variados desempenhos em práticas
de compra entre as oito e dez horas da manhã. Não consegui sequer quantificá-las na primeira
visita. Muitos consumidores chegam lá, separam os alimentos e passam depois para pagar e
levá-los, com receio de não encontrar os produtos se passarem mais tarde. Depois das dez
horas, a compra de alimentos orgânicos se reduz bastante e as plantas voltam ser o produto
principal do horto.
Em certa ocasião, por exemplo, uma consumidora chegou às nove horas da manhã e
reclamou quando viu que “acabou tudo”. Interessante que esta mulher perguntou à produtora
se ela produzia inhame e se espantou com a informação de que demorava um ano para
produzir este item. Ela disse-me que consome orgânicos pensando em sua saúde, tendo em
vista que se trata de um produto sem agrotóxico. Entretanto, ressalta que o termo “saúde”
possui uma conotação global para ela, compreendendo o meio ambiente.
Ao entabular conversação com outra consumidora, ela citou outras práticas
ambientalmente amigas tais como a separação do lixo e a colocação do lixo “seco” nos
Ecopontos. Desta forma, ela se sente responsável, pois com estas práticas se contribuindo
para enfrentar os problemas ambientais.
A produtora que vende os alimentos diretamente neste local de aquisição foi receptiva
à minha proposta de entender a compra de alimentos orgânicos por meio da pesquisa. Ela o
se identifica como uma “vendedora” de alimentos orgânicos, pois vende um produto que não
é considerado orgânico, por causa da ausência de um selo de certificação. Disse-me que se
recusa a pagar pela certificação, mas sua propriedade encontra-se de “portas abertas” para que
qualquer pessoa interessada a visite.
72
Para esta produtora e comerciante, o mais importante é garantir um preço bom e
honesto para os consumidores de alimentos produzidos com “o uso de ervas e adubos de boi e
galinha para evitar o agrotóxico”. Isso me bastava para incluir o Challet das Plantas nesta
pesquisa, pois meu interesse é, sobretudo, na crença demonstrada pelos consumidores de que
os alimentos são orgânicos.
Desta forma, o preço “baixo” aparece como principal fator de atração deste local de
aquisição:
Compro aqui na igreja, que vem de Conquista, e são mais baratos os alimentos
ali da feira do que esses do Sítio Cultivar que estão nos supermercados (C48).
Numa visita, encontrei com uma das pessoas com quem havia praticado Tai Chi
Chuan naquele sábado festivo da Feira Orgânica do Cônego. Esta mulher aparenta ter cerca
de 60 anos e, de imediato, me tratou com desconfiança, mas assim que me reconheceu,
passamos a entabular uma conversa enquanto esperávamos o Challet das Plantas abrir.
Ela se define como praticante da macrobiótica e diz freqüentar academia. Ao fazer
referência aos germinados, fala sobre a vida presente nos grãos e como “essa vida passa para
quem consome”. Também cita frequentemente nomes de pessoas que ministram cursos nesta
área. Esta consumidora traz sua sacola plástica de casa e disse que isso é resultado do
incentivo da japonesa responsável por este ponto de venda de alimentos orgânicos.
Uma conversa interessante foi travada com uma consumidora nissei que não come
carne vermelha, apenas peixe e frango. Disse-me que faz sushis e compra alimentos orgânicos
porque eles preservam o sabor. Ela aceitou a abordagem da pesquisa, tendo possibilitado
inclusive um acompanhamento das suas práticas de preparo e refeição.
Neste local de aquisição, a pressa também se faz presente. Uma consumidora, que
apesar de ter sido extremamente simpática e receptiva, recusou a abordagem de pesquisa no
sentido de acompanhar suas práticas de preparo e momento de refeição, alegando falta de
tempo. Enquanto ela escolhia jiló, que disse adorar porque é um alimento sem agrotóxico, me
passou várias dicas e receitas de preparo, mas disse que tem muita dificuldade com o
gerenciamento do seu tempo cotidiano. Ainda entre as pessoas apressadas, outra disse que
consome alimentos orgânicos e compra uma cesta neste local de aquisição, fazendo uma
reserva antecipada com a japonesa. Em um breve contato, falou-me que seu estilo é
“natureba”.
Uma consumidora, fotógrafa, que conhecia, disse-me consumir alimentos orgânicos
por causa da ausência de agrotóxicos. Ela não demonstrou qualquer preocupação ambiental ao
comprar e se mostrou desiludida com a política. Neste sentido, externou um incômodo, pois
se antes se considerava muito engajada, atualmente se sente egoísta em função do que
considera seu individualismo.
Ao interagir com um consumidor que comprava seus alimentos, ele disse que o fazia
“para se alimentar melhor”, mas demonstrava preocupação com os problemas ambientais,
bem como com os pequenos produtores. Este homem consumia alimentos orgânicos desde
que sua filha de 8 anos nasceu, quando ainda morava em Curitiba/PR. Fazia três anos que
mudara para Nova Friburgo/RJ, sendo interessante que disse sempre procurar comentar com
outras pessoas sobre a relação que via entre o alimento orgânico e a preservação do meio
ambiente.
73
II.5.3. Supermercados
Mesmo tendo entrevistado apenas um consumidor que abordei no desempenho de suas
práticas de compra em supermercados, estes locais de aquisição aparecem como referência
marcante
49
. Assim, os consumidores de alimentos orgânicos que entrevistei destacam o Tutti
Frutti, o Cavalo Preto, a Casa Friburgo e o Grão da Serra.
Procuro entrar nos supermercados que sei que tem esses cantinhos de orgânico. O
Cavalo Preto tem; o Tuti Fruti tem; tem uma feirinha na igreja [Challet das
Plantas] que chega orgânico às quartas e sextas; quando dá, passo lá. É uma
questão de trajeto, por onde estou passando naquele dia e onde fica mais perto
entrar e comprar, nos locais que sei que tem os legumes e verduras orgânicos
(C48).
Na maioria das vezes, [compro] no Tuti Fruti. A não ser, quando estou com um
pouco de pressa, que passo no Cavalo Preto que ainda tem algumas coisas. E estou
pra ir nessa feira do Cônego, que é só mesmo de produtos orgânicos, mas ainda não
deu para ir (C40).
Nestes locais de aquisição, concentrei minhas observações em práticas de compra
desempenhadas no Cavalo Preto, em uma das três lojas da Casa Friburgo e no Tuti Fruti, um
mercado especializado em frutas, legumes e verduras que aqui insiro na categoria
“supermercado”
50
. Estes três pontos de venda estão localizados no primeiro distrito,
comercializando verduras e legumes orgânicos produzidos pelo Sítio Cultivar
51
. Este recorte
se justifica porque estes estabelecimentos recebem entregas deste produtor em três dias da
semana (terça, quinta e sábado), enquanto o Grão da Serra, no primeiro distrito, e o Gama, no
distrito de Mury, as recebem apenas aos sábados.
Os principais motivos para praticar compra nos supermercados envolvem a
comodidade, pela proximidade das residências destes consumidores, bem como a praticidade
de encontrar os alimentos orgânicos em mais dias durante a semana em meio à “correria” da
vida cotidiana contemporânea. Neste sentido, apesar de demonstrar preferência pela feira,
certos consumidores também, e em alguns casos principalmente, desempenham suas práticas
de compra nestes locais de aquisição.
Eu prefiro lá [Feira Orgânica do Cônego], mas na prática, eu compro mais no
Cavalo Preto, no Tuti Fruti, Casa Friburgo, porque a minha noiva mora ali na [rua]
Monsenhor Miranda [localizada no centro da cidade] (C50).
São os lugares mais perto da minha casa, os lugares mais convenientes (C40).
49
Esta constatação confirma a tendência de que os supermercados sejam os pontos de venda predominantes na
compra de alimentos, inclusive dos orgânicos (GUIVANT, 2003).
50
Quando uso o termo “supermercado” neste trabalho me refiro à terminologia adotada pelos estabelecimentos
localizados em Nova Friburgo/RJ, e não ao que autores como Guivant (2003) e Flexor (2008) se referem quando
escrevem sobre os supermercados. Como não se trata de um trabalho sobre o setor supermercadista, deixo claro
que me refiro a lojas de médio porte, algumas configurando pequenas redes de até três lojas, como a Casa
Friburgo. O grupo o de Açúcar é a única grande rede de supermercados com filial da bandeira ABC em Nova
Friburgo/RJ. Visitei esta loja no mês de dezembro de 2008 e, ao perceber que trabalhava apenas com produtos
orgânicos industrializados, como sucos e o açúcar Native, optei por me concentrar nos locais em que existia
oferta de legumes e verduras orgânicas, mais relacionadas com o abastecimento rotineiro de consumidores
adeptos.
51
Principal fornecedor de legumes e verduras orgânicas em Nova Friburgo/RJ, o Sítio Cultivar é certificado pela
Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (Abio) e efetua entregas nos locais de
aquisição do distrito central às terças, quintas e sábados, enquanto os que se situam no distrito de Mury recebem
seus produtos aos sábados. Além disso, é um dos fornecedores e organizadores da Feira Orgânica do Cônego.
74
No Cavalo Preto, que é onde eu mais compro porque fica mais próximo da minha
residência (C6).
Enfrentei muitas dificuldades para interagir com os consumidores que, em geral,
eles se mostram apressados no desempenho de compra nos supermercados. Mesmo assim,
entabulei muitas conversas, que apesar de rápidas me foram por demais proveitosas. Para
simbolizar esta pressa característica, descrevo a abordagem que efetuei junto a uma
consumidora de alimentos orgânicos na Casa Friburgo.
Ao começar uma conversa próximo à gôndola em que desempenhava sua compra, ela
disse que também compra os alimentos “convencionais”, bem como é sua empregada que
cuida do preparo. Tudo isso foi dito muito rapidamente, da mesma forma que disse ser “muito
apressada”, “sem tempo”, que estava ali, mas havia deixado sua loja aberta e, por isso,
“morria de pressa”. Assim, recusou a abordagem da pesquisa, dizendo algo do tipo “você tem
que procurar pessoas que gostam de passear pelo mercado, pesquisando preços”.
Os orgânicos ocupam gôndolas ou mesmo espaços reduzidos nas seções de alimentos
da Casa Friburgo e do Cavalo Preto, denominada “quitanda” neste último. Não houve
qualquer alteração na posição destes alimentos entre o final de 2008 e junho de 2009, quando
iniciei a segunda fase do trabalho de campo, voltando aos locais de aquisição a fim de
observar mais detidamente as práticas de compra.
A exceção ficou por conta do Tuti Fruti. No entanto, por meio de interação com o
gerente deste estabelecimento, entendi que estas mudanças se relacionam com a
disponibilidade de espaço nas gôndolas e não com qualquer estratégia de promoção desta
linha de produtos em função do fluxo de clientes naquele estabelecimento.
Em relação aos preços de venda nos supermercados, comparei a diferença de valores
entre os alimentos orgânicos e os convencionais ao longo do trabalho de campo.
Considerando apenas verduras e legumes, pude perceber que o sobrepreço dos orgânicos
vendidos em Nova Friburgo/RJ varia entre 100 e 1000%, dependendo do local de aquisição e
do alimento em questão — muito além da estimativa de 20 a 200% (BRASIL, 2007).
Um consumidor com quem interagi no Cavalo Preto, posteriormente entrevistado,
disse-me ser o principal comprador da casa e que só consome alimentos orgânicos. Ele aponta
a restrição econômica como um problema para se consumir estes alimentos, mesmo que isso
não o atinja, pois sua renda lhe possibilita confortavelmente esta opção. Também afirmou que
o preço baixou bastante e que, provavelmente, se as pessoas comprarem mais, o preço
também abaixará mais.
Na Casa Friburgo, por exemplo, observei uma compra desempenhada por uma
empregada doméstica que cuida de idosos. Ela mostrou a percepção do quão caro são os
alimentos orgânicos, pois ficou visivelmente inconformada, devolvendo os três pequenos
pepinos orgânicos que estavam sendo vendidos a R$ 2,30. Usando da ironia, disse que talvez
sua “patroa” esteja com mais ou menos 100 anos porque consome este tipo de alimento.
Disse-me que considera os orgânicos muito caros em função de não terem agrotóxico, mas
com uma ponta de desconfiança me perguntou, quase que confidencialmente: “mas deve ter,
né?”.
Entretanto, as dificuldades para desempenhar as práticas de compra de alimentos
orgânicos nos supermercados parecem ir além do preço alto e se relacionam também com a
exposição e disponibilidade destes produtos, o que ficou claro quando entrevistei alguns
75
destes consumidores. Este é um ponto importante para a questão principal deste trabalho,
tendo em vista que explicita a determinação dos consumidores para praticar compra destes
alimentos.
Além de não apresentar qualquer sinalização específica, os orgânicos ficam
misturados aos demais alimentos, o que gera dificuldades para todos os tipos de
consumidores, seja de alimentos orgânicos ou convencionais. No Tuti Fruti, mesmo expostos
em uma gôndola separada e afastada, também não são sinalizados, sendo acondicionados no
nível mais baixo da prateleira, o que faz com que fiquem praticamente “escondidos”. No
Anexo D, algumas fotos ilustram bem estas características.
Neste sentido, alguns consumidores que desempenham práticas de compra de
alimentos orgânicos nos supermercados demonstram saber previamente que estes locais de
aquisição recebem tais produtos em determinados dias. Desta forma, procuram praticar sua
compra nestes dias, configurando uma tática (DE CERTEAU, 1984) frente às dificuldades
que encontram para adquirir estes alimentos.
Desta forma, os alimentos orgânicos não ocupam um lugar de destaque nos
supermercados de Nova Friburgo/RJ. Estes estabelecimentos parecem não ter qualquer
interesse em promover a comercialização destes produtos como forma de agregar valor ao mix
marketing. Com isso, parecem estar na contramão de certo padrão das grandes redes de
supermercados instaladas nas metrópoles brasileiras, que promovem esta linha de produtos
em função da alta rentabilidade obtida com a sua venda, como destacado em alguns estudos
(GUIVANT, 2003; FLEXOR, 2007).
Esta constatação foi reforçada pelo que ouvi de um gerente de supermercado sobre as
dificuldades envolvendo a comercialização dos produtos orgânicos: “vende pouco, poucas
pessoas compram, tem uma troca alta”. No entanto, no próprio Tuti Fruti me deparei com um
contraponto ao pensamento do gerente deste estabelecimento ao conversar com o funcionário
que cuidava da reposição dos alimentos. Ele afirmou que “se o orgânico fosse mais barato
venderia muito mais”, bem como “tem muita gente que procura produtos orgânicos e, às
vezes, não encontra”. Neste sentido, uma consumidora, por exemplo, enquanto adquiria uma
couve orgânica, disse-me que acha estes alimentos mais saudáveis, que os compra quando
estão bonitos, mas isso não acontece sempre, pois “não é sempre que tem”.
Alguns consumidores interagem com os funcionários dos supermercados ou lojas de
produtos naturais com certa desenvoltura, dialogando e pedindo dicas. Naquela primeira
manhã do trabalho de campo, uma consumidora desempenhava práticas de compra no Tuti
Fruti. Depois de interagir com alguns funcionários, conversando com desenvoltura e simpatia,
colocou cenoura, beterraba, brócolis americana e couve-flor orgânicas no carrinho de compras
que empurrava.
Apresentei-me, fui muito bem recebido por ela e ficamos cerca de dez minutos
conversando. Esta mulher me relatou a preocupação com a saúde da família, especialmente
das suas três filhas, como motivação principal para adquirir alimentos orgânicos. Por fim,
deixou seu telefone celular para contato. Sem perceber que ainda a observava, retornou à
gôndola dos produtos orgânicos, comprando mais dois ramos de couve.
A partir daí, o diálogo de consumidores com funcionários dos supermercados passou a
funcionar como um sinal para minhas abordagens. Se o consumidor demonstrasse certa
abertura para o diálogo no momento em que desempenhava sua compra, procurava abordá-lo,
76
tendo em vista que o padrão era de um desempenho apressado das práticas de compra nestes
estabelecimentos. Por outro lado, também passei a entabular conversas com os funcionários
responsáveis pela exposição dos alimentos orgânicos sempre que possível, como se fossem
meus informantes frente a uma tribo estranha. E, afinal, era disso mesmo que se tratava.
A interação com funcionários destes estabelecimentos foi proveitosa por conta das
interações diretas que desenvolvem com os consumidores de alimentos orgânicos durante e
como parte de seu trabalho. As percepções destes “informantes” remetem à idéia corrente de
que “pobre não compra” estes alimentos. Alguns apontam a falta de informação como
dificuldade para o desempenho de práticas de compra destes alimentos.
Uma consumidora que observei na Casa Friburgo mostrou empatia pela pesquisa e fez
referência à ambigüidade das informações sobre alimentação como forte influência para
comprar alimentos orgânicos. Ela disse que “não sabe mais o que come”. Além disso, faz a
compra, mas o preparo fica a cargo da empregada, o que ouvi de forma recorrente entre os
que praticam suas compras nos supermercados.
Neste sentido, uma idosa com quem interagi no Tuti Fruti durante seu desempenho na
prática de compra disse que era bióloga formada pela “nacional”, atual UFRJ, adorando ler
todos os artigos que conseguia nesta área do conhecimento e, com isso, se sentia muito bem
informada. O fato de ser amiga de um dos sócios do Sítio Cultivar influencia no sentido de
comprar alimentos orgânicos. Ela se recusou a fornecer seus contatos para uma entrevista,
mas disse que consome estes alimentos mais pelo seu bem-estar do que propriamente pela
saúde que lhe proporcionam, apesar de também considerar isso importante. O fato de não
suportar o gosto de agrotóxico é o principal motivo para comprar estes alimentos. Aproveitei
a interação no local de aquisição para abordar sua visão sobre os problemas ambientais
globais, que ela atribui à ganância.
Um cardiologista que praticava compra no Tuti Fruti também chamou atenção para o
alto preço dos orgânicos. Ele comprava uma bandeja de alimentos orgânicos processados, que
começou a ser comercializada nos supermercados durante meu trabalho de campo, sendo que
pude perceber esta novidade quando voltei a visitar os locais de aquisição em julho de 2009.
Durante nossa conversa, comprou mais uma. Este consumidor demonstra uma visão mais
científica, citando publicações como a American Scientific, que a fim de se manter
informado. De certa forma, preocupava-se em citar fontes científicas da área médica como
forma de aparentar estar “bem informado”, legitimando, assim, sua escolha.
Ele disse que pratica compra de alimentos orgânicos processados porque acredita que
estejam de fato lavados, dando menos trabalho e proporcionando comodidade. Sua
preferência é por legumes e verduras, mas não deixa de comer carne de vez em quando,
apontando sua origem gaúcha como razão para tal. Como médico, se preocupa mais com a sua
saúde e disse que não nutre qualquer preocupação ambiental. Entretanto, chamou atenção para
os riscos da alimentação contemporânea: “não sabemos mais o que comemos”.
Neste sentido, cabe destacar uma compra de rúcula orgânica que observei no Cavalo
Preto. O consumidor em questão disse que consome por causa da saúde de sua esposa, que
teve câncer. Neste caso, houve uma recomendação médica para que procurasse consumir
alimentos sem agrotóxicos, o que vinha acontecendo um ano. Ele falou da dificuldade de
encontrar estes itens e do preço alto dos mesmos como obstáculos. Por isso, pensa em
estruturar uma horta em sua casa. Quando lhe perguntei se pensava nos problemas ambientais
77
ao praticar esta compra, ele disse que deveria pensar no meio ambiente ou mesmo no pequeno
produtor rural, mas que se preocupa apenas com sua saúde e da esposa.
Um funcionário do Cavalo Preto apontou a necessidade de reposição dos alimentos
orgânicos, pois a entrega não é acompanhada por qualquer promoção das vendas ou mesmo
arrumação dos mesmos. Este mesmo funcionário explicou que algumas pessoas sempre
desempenham práticas de compra de alimentos orgânicos naquele estabelecimento, inclusive
algumas ligam pedindo para ele guardar alguns produtos mais difíceis de encontrar, como os
ovos orgânicos, por exemplo. Apesar disso, percebia que grande parte destas pessoas compra
o produto orgânico pelo fato de ser considerado sadio, não levar agrotóxicos e ter um gosto
melhor. No entanto, ele disse que alguns consumidores desconfiam da ausência de produtos
químicos nestes produtos.
Enquanto freqüentei os supermercados, uma observação recorrente era a consumidora
que pegava a verdura ou o legume orgânico, olhava seu aspecto físico, procurava o preço e o
devolvia à gôndola, geralmente quando identificava a diferença de valor. Ao interagir com
uma destas consumidoras, que chegou a colocar uma verdura orgânica no carrinho de
compras e, depois de prosseguir na compra isso mesmo: estes consumidores não iam ao
supermercado apenas para comprar os alimentos orgânicos, meu interesse de pesquisa
devolveu o produto à prateleira. Quando conversei com ela, a mesma disse ter percebido que a
aparência da verdura hidropônica estava mais agradável” e que acreditava que, com isso,
suas filhas demonstrariam menor resistência em comê-la, além de destacar a percepção de um
gosto amargo na verdura orgânica.
Assim, pude perceber que nem sempre o fator preço é o elemento determinante, bem
como o afeto de uma mãe também não compra apenas o que percebe ser o melhor para a
saúde de seus filhos, desconsiderando por completo suas preferências de gosto alimentar,
como neste caso.
Uma questão que também me chamou atenção entre os consumidores de produtos
orgânicos nos supermercados visitados era o fato deles também comprarem muitas frutas,
legumes e verduras convencionais. Isso remete a uma espécie de negociação da
responsabilidade, reforçando a ambigüidade que caracteriza as práticas de consumo.
Neste sentido, um caso interessante aconteceu no Tuti Fruti quando observava dois
idosos que pararam próximos a uma consumidora que escolhia alimentos orgânicos e
começaram a conversar com ela falando sobre o preço alto destes alimentos. Isso não
influenciou na prática de compra de hortaliças como a salsa, a alface, a couve e o brócolis.
Ao interagir com ela, inicialmente disse-me ser vegetariana e que pratica compra de
orgânicos, pois são alimentos mais saudáveis e não contêm agrotóxicos ou pesticidas,
apresentando, assim, um gosto melhor. Esta consumidora se auto-atribui uma maior
responsabilidade pela escolha do alimento devido ao fato de ser mãe, demonstrando
preocupação com os problemas ambientais quando perguntada sobre isso. Além disso, disse
que sua prática de compra se vincula a um estilo de vida, tendo em vista que é professora de
ioga e de educação física. Com isso, enfatizou que, anteriormente ao consumo, estão suas
preferências de vida. Neste sentido, considera o preparo e os momentos da refeição como
extensões da compra que pratica.
Esta consumidora também considera importante o local de aquisição, sendo que
prefere comprar no Tuti Fruti porque é um local limpo e organizado. Em relação à confiança
78
na origem do alimento orgânico, ela destaca que o selo “só conta fora de Nova Friburgo”, pois
conhece os produtores do Sítio Cultivar, bem como quando faz suas refeições fora de casa,
não come verduras, pois não confia na procedência.
No entanto, ela compra os orgânicos disponíveis, sendo que quando não encontra um
item, compra do “convencional”. Esta consumidora disse que “faz o que pode devido a
pouca variedade da oferta de orgânicos. A ambigüidade do seu discurso ficou evidente
quando disse comer peixe, mesmo que somente em restaurante japonês, sendo radical apenas
ao não comer carne vermelha. Desta forma, não se trata de uma vegetariana radical, mas de
alguém que negocia este status. Apesar disso, se considera uma consumidora consciente, pois
busca informações através de pesquisas, Internet ou televisão. Com isso, não se considera
manipulada ou alienada, apesar de acreditar que existem muitas pessoas que o são.
* * *
Neste capítulo, com base na perspectiva de Warde (2005) sobre as teorias das práticas,
desenvolvi uma análise das práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ
que observei em um exercício etnográfico. Estas práticas configuram um elemento inerente ao
abastecimento rotineiro dos lares de consumidores destes alimentos, o que se confirma pela
freqüência semanal do desempenho de compra.
Além do sobrepreço característico dos alimentos orgânicos, estes consumidores
reclamam da pouca variedade de produtos ofertados, apontando dificuldades que enfrentam
para encontrar o que gostariam de adquirir. Neste sentido, enquanto uns apenas constatam
estas dificuldades, outros desenvolvem táticas específicas para lidar com elas.
Ao contrário de consumidores aparentemente solitários que compram em locais de
aquisição, o desempenho individualizado nestas práticas configura, de fato, uma dupla
alteridade (MILLER, 2002).
Com isso, posso destacar que as práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova
Friburgo/RJ não são dirigidas de forma autônoma pelos consumidores que as desempenham.
Tais práticas se voltam para outras pessoas, integrantes das redes cotidianas dos consumidores
de alimentos orgânicos, bem como parecem se relacionar cosmologicamente com a
preservação do meio ambiente e o apoio ao pequeno produtor rural.
Neste último sentido, os nexos de fazeres e discursos das práticas de compra de
alimentos orgânicos compreendem uma auto-atribuição de responsabilidades, com a qual os
consumidores são atores sociais capazes de adotar novas formas de ação política nas esferas
do consumo e da vida cotidiana, enfrentando o agravamento dos problemas ambientais. É
deste aspecto específico presente na dupla alteridade do ato de compra dos alimentos
orgânicos que trato no capítulo seguinte.
79
CAPÍTULO III
AMBIENTALIZAÇÃO E POLITIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE
CONSUMO
Neste capítulo, compreendo os processos de ambientalização e politização das práticas
de consumo como uma possibilidade de constituição de um campo temático a ser explorado
empiricamente no desenvolvimento de uma sociologia do consumo, conforme identificado
por teóricos contemporâneos (HALKIER, 1999 apud PORTILHO, 2005; HALKIER, 2004;
PAAVOLA, 2001; PORTILHO, 2005). Tais processos têm sido interpretados à luz de
perspectivas teóricas como o neomodernismo (ALEXANDER, 1995) e os ciclos de
comportamento coletivo (HIRSCHMAN, 1983), que abrem caminhos para enfatizar a ponte
existente entre consumo e cidadania (CANCLINI, 1995), bem como a reflexividade social
(GIDDENS, 1997; BECK, 1997), conforme explorado anteriormente em Portilho &
Castañeda (2009).
A lente teórica, inicialmente desenvolvida por Portilho (2005), me permitiu interpretar
o engajamento nas práticas de compra de alimentos orgânicos, observadas em Nova
Friburgo/RJ, como parte dos processos mencionados e em curso nas sociedades
contemporâneas. Ainda como construção deste campo analítico-teórico, destaco a
especificidade da alimentação como uma das esferas do consumo capaz de abrigar fenômenos
políticos e socioculturais nas sociedades contemporâneas.
Por fim, retomo os problemas centrais que animaram a realização desta pesquisa,
empreendendo uma análise das percepções dos consumidores de alimentos orgânicos
entrevistados em Nova Friburgo/RJ sobre esta prática alimentar. Com isso, busco enfrentar a
questão central proposta na introdução deste trabalho, ou seja, as possibilidades de ação
política e participação cidadã (PORTILHO, 2008).
* * *
A politização da esfera do consumo se refere à percepção e ao uso das práticas e
escolhas de consumo como uma forma de participação na esfera pública. Trata-se de uma
tentativa de dar concretude à adesão a valores em prol de melhorias sociais e ambientais,
materializando-os e tornando-os públicos (HALKIER, 1999 apud PORTILHO, 2005;
PORTILHO, 2005; STOLLE et ali, 2005).
Com isso, as ações e escolhas mais triviais e cotidianas passam a ser percebidas como
capazes de influenciar os rumos globais, ao mesmo tempo em que se tornam globalmente
influenciadas (GIDDENS, 1997). Ações como boicotes e buycotts
52
(STOLLE et ali, 2005),
além das diversas formas de racionalização no uso doméstico de bens e serviços, como água,
energia, automóvel, separação de resíduos, entre outros (PORTILHO & CASTAÑEDA,
52
O neologismo buycott tem sido utilizado na língua inglesa como contraponto à noção de boycott. Enquanto
este último refere-se à negação da compra como forma de protesto, uma ação de buycott refere-se à opção
consciente de compra de produtos e serviços percebidos como social e ambientalmente responsáveis (Portilho &
Castañeda, 2009)
80
2009), destacam-se como práticas politizadas, em um contexto neomoderno (ALEXANDER,
1995).
A vida privada parece se tornar o lócus de um novo tipo de ação política, constituída
pela percepção da inter-relação entre o microcosmo das condutas pessoais e o macrocosmo
dos problemas globais (BECK, 1997). Neste sentido, “consumidores difusamente
politizados”
53
passam a se perceber como atores sociais situados entre o anonimato e a
vontade de exercer um papel político, entre as preocupações cotidianas da esfera privada e a
vontade de participar de uma esfera pública mais ampla (PORTILHO, 2008).
Apesar do uso político do consumo não constituir propriamente uma novidade, estas
táticas tornam-se específicas e predominantes nas sociedades contemporâneas; são mais
individuais do que coletivas
54
e voltam-se para a defesa e a escolha de um modo de vida
(PORTILHO, 2005; STOLLE et ali, 2005; PORTILHO & CASTAÑEDA, 2009); podem ser
encaradas como uma reinvenção da política, de seus temas e atores e do próprio campo
político (ALEXANDER, 1995; GIDDENS, 1996; BECK, 1997; PORTILHO, 2009).
Stolle et ali (2005) entendem que estas práticas de consumo configuram formas
relevantes de participação política e ativismo nas sociedades contemporâneas, constituindo
caminhos efetivos e, muitas vezes, bem-sucedidos de mudança das políticas governamentais e
corporativas. Um bom exemplo envolve os efeitos nos padrões de produção industrial e a
criação de esquemas de certificação e rotulagem.
Desta forma, as práticas de consumo político deflagradas por estes atores sociais não
organizados podem representar uma ampliação do campo político em direção à esfera privada
e à vida cotidiana, o que poderia configurar uma sub-política (BECK, 2002). Entre os
exemplos, estão as preocupações e sentimentos de responsabilidade social e ambiental
presentes em táticas como “votar com a carteira” (DOBSON, 1991 apud PORTILHO, 2005),
“votar com o garfo” (NESTLE, 2002 apud AZEVEDO, 2009) ou as ações da “agenda da
mesa da cozinha” (HALKIER, 1999).
Por outro lado, a politização do consumo está diretamente associada a um outro
processo, de ambientalização da vida cotidiana e do consumo, que começou a ser percebido
mais intensamente a partir do início dos anos 1990, com o aumento da percepção do impacto
ambiental dos elevados padrões de consumo das sociedades e classes afluentes. Tal processo
provocou um deslocamento, da produção para o consumo, na percepção, no discurso e na
definição dos problemas ambientais contemporâneos, caracterizando uma perda de espaço da
preocupação com os “problemas ambientais relacionados à produção” (MURPHY, 2001 apud
PORTILHO, 2005).
No que diz respeito às mudanças em decorrência da modernização ecológica das
organizações, com ênfase nas dimensões socioambientais do comportamento do consumidor,
Paavola (2001) destaca os limites das estratégias de consumo verde ou responsável para
transformar os padrões de consumo. Estas estratégias tornam-se importantes porque apontam
os efeitos das escolhas dos consumidores para o meio ambiente e seu potencial de aliviar os
problemas ambientais.
53
Esta é uma expressão que devo ao Prof. Dr. John Wilkinson, que fez uso dela na qualificação do projeto que
deu origem à presente dissertação e a quem agradeço as valiosas contribuições a esta reflexão.
54
Portilho & Castañeda (2009) entendem que continua existindo um potencial para o exercício do consumo
político através de ações coletivas pela via dos movimentos sociais institucionalizados.
81
Ao considerar a interdependência das escolhas de consumo, Paavola (2001) estas
escolhas como decisões de agentes com valores plurais, que agem na construção social de
identidades e conhecimentos. Assim, as preferências não se explicam apenas pela busca do
bem-estar pessoal, como no modelo da escolha racional da “teoria do consumidor”
desenvolvida pela economia neoclássica, mas também por suas conseqüências não utilitárias,
bem como por questões éticas e morais. Neste sentido, os agentes escolhem entre diferentes
valores na mesma situação e em diferentes contextos, ou seja, as preferências não refletem
exclusivamente o bem-estar pessoal, mas também as convicções morais pelas quais os
consumidores escolhem realizar seus valores.
O consumo verde apresenta, assim, um potencial maior de realização em contextos de
agentes com valores plurais. Nesta situação, os consumidores escolhem produtos
ambientalmente amigos, que podem custar mais caro que os demais. No entanto, segundo
Paavola (2001), este valor de custo maior pode configurar um problema, na medida em que
são os indivíduos que mais se importam com a crise ambiental que assumem os custos da
melhoria do meio ambiente. Desta forma, se outras parcelas de responsabilidade se ocultam e
viola-se o princípio de compensação ambiental, propicia-se a manifestação da lógica do
“carona”. Com isso, o autor destaca que a estratégia de consumo verde não oferece
oportunidade dos agentes concordarem coletivamente e, sem isso, não existe necessariamente
um confronto destes consumidores com dilemas morais. Além disso, uma vanguarda
ambiental engajada em estratégias de consumo verde pode sofrer perdas substanciais caso
não consiga um suporte que seja suficiente para transformar a sociedade.
Por outro lado, os consumidores que adotam conceitos de proteção ambiental no
desempenho de suas práticas de consumo se mostram dispostos a fazer sacrifícios pessoais
por esta causa, sendo que, muitas vezes, suas escolhas são feitas à custa do seu bem-estar
pessoal a fim de realizar valores percebidos que geram um bem-estar em sua própria sub-
cultura. A distância entre a sub-cultura “verde” e o padrão cultural de consumo das
sociedades aparece como desafio para configuração de um movimento coletivo a partir do
consumo verde.
Com isso, fica evidente o risco de que as estratégias de consumo verde resultem
apenas em mais um nicho de mercado, fomentando um estilo de vida verde e elitizado.
Paavola (2001, p. 92) entende que a “emergência de uma cultura verde elitista é uma
possibilidade problemática porque demanda estilos de vida ambientalizados e os nichos de
mercado podem não estar preparados para dar o suporte necessário para uma transformação
de toda a sociedade”.
Desta forma, o processo de ambientalização da vida cotidiana remete a certa
ambivalência e limitação, pois atribui uma parte significativa das responsabilidades por
melhorias ambientais aos consumidores individuais. Entretanto, também pode apresentar
algumas vantagens quando se pensa que pode ocorrer um aumento da participação cidadã na
esfera pública em decorrência desta atribuição de responsabilidades (PAAVOLA, 2001;
PORTILHO, 2005).
Halkier (1999 apud PORTILHO, 2005) observa três tipologias desta ambivalência da
responsabilidade socioambiental entre os jovens dinamarqueses. Alguns rejeitam as
exigências por considerações ambientais, acreditando que a responsabilidade é do Estado e de
atores como empresas, meios de comunicação e organizações não governamentais, entre
outros. Existem aqueles que negociam estas exigências com as que constituem sua
82
experiência cotidiana. Por fim, também os que integram totalmente estas exigências na sua
vida diária.
Apesar das conseqüências potenciais para a participação na esfera pública serem
ambivalentes, elas podem significar tanto um aumento de controle do Estado e de outros
atores sobre a vida diária quanto um aumento da autoridade do consumidor. Com isso, o
debate sobre a relação entre consumo e meio ambiente envolve não apenas uma questão de
escolha individual ou de políticas públicas. A ambivalência característica da ambientalização
do consumo faz com que esta discussão não seja deixada exclusivamente para os
consumidores ou, no extremo oposto, para os especialistas, públicos e privados, envolvidos
na provisão de bens e serviços (PORTILHO, 2005).
Se as atividades de consumo operam na interseção entre a esfera pública e privada,
Portilho (2005) entende que este debate pode recuperar as pontes entre estas esferas que
envolve questões inerentes a ambas. Quando as inovações e experimentações tecnológicas de
uma sociedade de risco global passam a ameaçar a vida privada e cotidiana, esta se torna o
lócus de novos conflitos e novas formas de ação política (BECK, 2002). Daí, tanto a
atividade social do consumo, quanto o papel do consumidor podem ser percebidos como
constituídos por sujeitos sociais ativos, que viabilizam um “retorno” do cidadão
comprometido com preocupações sociais, mesmo em espaços aparentemente privados de
ação (PORTILHO, 2005).
Neste sentido, a atual sensibilidade ecológica pode contribuir para incrementar as
práticas e os debates, permitindo e estimulando uma invasão da política na esfera privada
(BECK, 2002). Este processo tem como conseqüência, por exemplo, as experiências de
alianças, cada vez mais freqüentes, entre os movimentos ambientalistas e os de defesa do
consumidor. Da mesma forma, o crescimento vertiginoso e algumas importantes vitórias do
movimento internacional de consumidores se apresentam como possibilidades concretas de
ampliação das oportunidades de criar conhecimentos e resistências, além de viver sobre bases
mais autônomas com maior poder de negociação.
Portilho (2005) compreende este movimento como uma possibilidade de fortalecer a
participação na esfera pública nas sociedades contemporâneas, gerando uma ética da
responsabilidade reflexiva capaz de romper com as rotinas “silenciosas”
55
ao difundir novos
valores e comportamentos nas redes sociais de uma esfera micro-pública onde as demandas e
as ações são discutidas e negociadas. Desta forma, podem ser construídas as experiências
coletivas em torno dos dilemas e conflitos relacionados às políticas ambientais. O desafio
passa a ser, então, a comunicação de mensagens entre essas micro-esferas privadas e uma
esfera pública mais ampla.
Com isso, procuro entender a seguir os processos de ambientalização e politização da
esfera do consumo a partir de três abordagens teóricas sobre as sociedades contemporâneas
55
O cenário mais limitado também é vislumbrado por Portilho (2005) no caso dos consumidores
experimentarem considerações ambientais em seu cotidiano de forma “silenciosa” e individual. Ao não discutir
este assunto em seus grupos ou redes sociais, esse movimento pode reforçar a redução da esfera pública bem
como a dependência dos consumidores em relação aos produtores (PAAVOLA, 2001). Com isso, a estratégia de
um consumidor individual como principal ator para resolver os problemas ambientais pode gerar uma perda do
sentimento de comunidade e coletividade, além de fazer com que os consumidores dependam de lógicas
institucionais como, por exemplo, o conhecimento dos especialistas e dos mecanismos de mercado (HALKIER,
1999 apud PORTILHO, 2005).
83
capazes de contextualizar e ajudar a compreender o surgimento de ações políticas que buscam
enfrentar, na esfera do consumo e da vida cotidiana, o agravamento dos problemas
ambientais.
III.1. Neo-Modernismo
Na perspectiva neo-moderna desenvolvida por Jeffrey Alexander (1995), a imagem do
mercado se transforma e deixa de ser visto como uma esfera essencialmente capitalista e
exploradora como no período entre o início dos anos 1960 e meados dos 1970 em que
predominou a teoria anti-modernização para envolver uma relação social e interativa em
que a narrativa heróica reaparece por meio de movimentos sociais com uma ampla variedade
de motivações para construir novos direitos e formas de ação
56
.
Figura 2: A Reconvergência neo-moderna
Fonte: Portilho & Castañeda (2009), a partir de Alexander (1995).
A Figura 2 mostra como, para Alexander (1995), a partir de 1945, as teorias da
mudança social configuraram ideologias, ou seja, sistemas simbólicos que servem para
explicar o mundo de forma racional e para interpretá-lo, de forma a prover significados e
funcionar como uma metalinguagem que orienta as pessoas a viver. Neste sentido, o autor
define quatro períodos teórico-ideológicos do pensamento social recente, atribuindo um
código binário específico para cada um, composto por uma estrutura sagrado/profano, em que
o elemento sagrado de cada período vem seguido do profano.
O primeiro período se inicia após a Segunda Guerra Mundial, com predomínio da
teoria da modernização e da ideologia do liberalismo romântico, cujo código binário se
organiza em torno do moderno/tradicional. Naquele momento, o mundo ocidental
56
Alexander (1995) considera o renascimento de teorizações sobre a democracia e a sociedade civil,
fundamentais para a manutenção de um estado democrático na perspectiva neomoderna, como uma evidência
desta mudança.
1949 até meados dos
anos 1960
Meados dos anos
1960 até final dos
anos 1970
Final dos anos 1970
até início dos anos
1990
Teoria da
modernização
moderno/tradicional
Teoria da
anti-modernização
socialista/capitalista
Teoria
pós-moderna
pós-moderno/moderno
Teoria
neo-moderna
democracia e
mercado/nacionalismo
A partir dos anos 1990
84
romantizava o progresso, que poderia ser mais ou menos continuamente alcançado por meio
de prováveis melhorias pensadas pelos intelectuais. A ênfase da teoria da modernização
estava nos indivíduos e mudanças incrementais em detrimento dos grupos e das possibilidades
de mudança revolucionária que dominaram o período precendente (até os anos 1930).
A partir de meados da década de 1960, este código binário se inverteu e passou a ser
definido como socialista/capitalista, caracterizando um período em que predominaram as
teorias anti-modernização e as ideologias radical-coletivistas heróicas. Desta forma, a “morte”
do liberalismo foi anunciada e os mercados passaram a ser vistos como inimigos e a
modernidade interpretada de forma mecanicista. Alexander (1995) destaca, por um lado, a
forte crítica ao ascetismo religioso ocidental e, por outro, a sacralização das religiões místicas.
No final dos anos 1970, a teoria pós-moderna e uma ideologia da indiferença cômica
passam a predominar em um período com um código binário pós-moderno/moderno. As
características predominantes eram privatização, fragmentação, perplexidade, fatalismo,
resignação, expectativas reduzidas, subjetivismo, particularidade e localismo. O declínio das
grandes narrativas revolucionárias do período anterior gerou um vazio alimentado por
“diagnósticos” como a “morte” do sujeito (Foucault e Derrida), os simulacros da realidade e o
fim do socialismo, acompanhados por uma valorização da pluralidade e da diferença.
Finalmente, para Alexander (1995), a teoria neo-moderna e uma ideologia da
reconvergência, que combina elementos das três narrativas anteriores, passa a predominar no
decorrer dos anos 1990 com um código democracia e mercado/nacionalismo. De certa forma,
o neomodernismo é uma tentativa de teoria social universalista como possibilidade decorrente
do revival da democracia e dos mercados em escala mundial.
Desta forma, a reconvergência pode ser percebida, por exemplo, quando se
compreende a importância das críticas dos movimentos sociais da década de 1960
57
para a
contestação por reconhecimento ou redistribuição. Neste sentido, uma análise das estratégias
rurais frente à marginalização e apropriação geradas pela industrialização dos sistemas agro-
alimentares indica um processo de endogeneização, pelo qual o mercado e os movimentos
sociais se retroalimentam por meio de uma “dialética sem síntese” (WILKINSON, 2006).
Em um contexto de globalização e mudanças institucionais, Wilkinson (2006) entende
que o mercado, e não mais o Estado, passa a ser o objetivo central de movimentos sociais
econômicos multifacetados
58
, que envolvem em suas estratégias de mobilização circuitos
alternativos, convencionais e campanhas políticas, correndo os riscos ambíguos da exclusão e
cooptação. Em função de suas perspectivas de reposicionamento permanente, tais
movimentos sociais passaram a redefinir o mercado e os valores em jogo.
O neo-modernismo procura representar o “novo espírito dos tempos em um caminho
mais imaginativo”, com o reaparecimento de uma teoria social dos mercados positiva como a
“forma teórica individualística, moldura quase-romântica da teoria da escolha racional”
(ALEXANDER, 1995, p. 32). Como abordagem teórico-ideológica, o autor sugere que as
57
Neste sentido, Alexander (1995) relaciona os movimentos pela revolução pacífica em escala mundial, os
movimentos ambientalistas, os movimentos negros e latino-americanos, as rebeliões indígenas, a emergência de
uma cultura jovem e o movimento feminista.
58
Wilkinson (2006) destaca movimentos como o Comércio Justo (Fair Trade), a produção/consumo de
orgânicos e o Slow Food, bem como os mecanismos de governança e regulação ou certificação de forma a
caracterizar este momento da relação entre os movimentos sociais e os mercados.
85
sociedades contemporâneas possuam e aspirem a uma zona política distintiva, um campo
institucional de domínio universal que transcenda o mercado econômico.
Neste sentido, Alexander (1995) traz como ponto de referência empírico comum um
código familiar de cidadão/sagrado e inimigo/profano que permite à história ser narrada, mais
uma vez, de maneira teleológica, fortalecendo o drama da democracia. Deste modo, o autor
também permite entender uma possível transição no padrão de ação política nas sociedades
contemporâneas, caracterizada, de um lado, por uma relativa deflação das ações radicais-
coletivistas, hegemônicas no período anti-modernização dos anos 1960/1970 e, de outro, pela
emergência de ações romântico-individualístas, que parecem predominar atualmente.
A reconvergência neo-moderna torna-se importante pela ênfase no (re)ssurgimento de
uma narrativa emancipatória do mercado em um contexto capitalista cada vez mais global nas
sociedades contemporâneas. Com isso, a perspectiva de Alexander (1995) oferece uma nova
abordagem das teorias sociais contemporâneas, possibilitando chaves interpretativas que
permitem considerar a esfera do consumo como um campo propício para o surgimento de
ações políticas de tipo romântico-individualistas (PORTILHO & CASTAÑEDA, 2009).
A teoria do ciclo privado-público-privado do comportamento coletivo (HIRSCHMAN,
1983) abordada na seqüência aponta o rompimento com o padrão espasmódico das
manifestações públicas coletivas como o principal desafio da ação política nas sociedades
ocidentais contemporâneas. A seguir, apresento esta teoria, que aproximou as esferas do
consumo e da cidadania, uma idéia posteriormente intensificada com o aporte teórico de
Canclini (1995).
III.2. Ciclos do Comportamento Coletivo
A perspectiva teórica de Albert Hirschman guarda sintonia com a proposta neo-
moderna (ALEXANDER, 1995) porque este autor abordou a decadência do padrão radical-
coletivista heróico dominante nos anos 1960 sem ser influenciado pelo vazio da morte dos
sujeitos e do simulacro característicos das teorias pós-modernas que predominaram entre o
fim dos anos 1970, quando o autor escreveu, e o início dos anos 1990.
Com a abordagem do ciclo de comportamento privado-público-privado, Hirschman
(1983) enfatiza a existência de oscilações nas sociedades ocidentais contemporâneas entre
períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros caracterizados pelo maior
envolvimento com o bem-estar individual. A dicotomia público/privado pode ser entendida
como uma competição permanente pelo tempo e atenção dos indivíduos, e tais oscilações
seriam conseqüências da mudança de ênfase da vida pública para a vida privada
59
.
A partir de uma análise micro-social, o autor rejeita a possibilidade de perda do espaço
público, considerando que as mudanças coletivas o determinadas por fatores endógenos, ou
seja, um ciclo se origina naquele que o antecede
60
. Na medida em que as ações na esfera
privada fazem parte de um ciclo privado-público-privado, elas tendem a voltar a pender para
59
A partir do século XIX, a luta por interesses materiais particulares tornou-se uma conduta humana legítima.
Trata-se de uma opção frente ao intenso envolvimento em questões da esfera pública, que passou a ser vista
como “uma arena privilegiada para as mais perigosas paixões do homem, como ambição, inveja e a
irresponsável perseguição ao poder e à glória” (HIRSCHMAN, 1983, p.12).
60
A ênfase de Hirschman (1983) em fatores endógenos não o leva a desconsiderar a importância da história e de
fatores exógenos (grau/mudanças das pressões e repressões externas) para entender mudanças de comportamento
coletivo.
86
as ações coletivistas, ainda que espasmódicas, o que a torna uma abordagem importante para
entender as ações políticas na esfera do consumo.
As oscilações entre períodos de intensa preocupação com questões públicas e outros
de quase total concentração no desenvolvimento e bem-estar individuais podem ser
entendidas a partir das opções de afastamento (saída) ou manifestação (voz) de grandes
massas de indivíduos que avaliam seus envolvimentos em uma das duas esferas. Desta forma,
Hirschman (1983) constrói uma fenomenologia de engajamentos e decepções que considera
tanto a dedicação aos atos de consumo privado quanto o envolvimento em questões públicas
como práticas que geram satisfação e decepção.
Desta forma, o ciclo privado-público-privado de comportamento coletivo compreende
duas mudanças fundamentais e cíclicas ao longo do tempo. A primeira é a passagem da
dedicação às atividades privadas para a dedicação às atividades da esfera blica. As atitudes
de afastamento e manifestação surgem como reações à decepção com a dedicação às
atividades de consumo em busca da felicidade, que, frequentemente, desembocam em ações
na esfera pública.
A segunda envolve a decepção com o processo de participação na vida pública na
medida em que os indivíduos que se dedicam a atividades públicas não distinguem
claramente entre lutas e conquistas, ou entre custos e benefícios, das ações coletivas. Desta
forma, a própria luta pode ser vista como benefício da dedicação a uma atividade política
quando esta é considerada agradável e realizadora do desenvolvimento individual.
Entretanto, Hirschman (1983) mostra como a dedicação em ações coletivas pode se
tornar excessiva e frustrante, causando decepção, especialmente quando estas atividades
tomam mais tempo do que um indivíduo esperava antes de se envolver com elas. Este erro de
projeção dos indivíduos, entre a expectativa de uma atividade agradável e a experiência real,
faz com que eles retornem à esfera privada, fechando o ciclo privado-público-privado.
O autor entende que as pessoas tendem a subestimar o tempo necessário para atingir
objetivos em atividades públicas. Isso acontece por conta de ilusões, tais como as suposições
de que as idéias de uma causa serão facilmente assimiladas e seus pontos de vista são os
únicos a fazer sentido; assim como o estabelecimento de metas utópicas e a conseqüente
perda de controle dos rumos previstos, com a descoberta de que uma atividade envolvente
pode levar ao vício e provocar reações para se livrar desta dependência ao reordenar suas
vontades de segunda ordem. Neste sentido, as mudanças da vida privada para a pública e seu
retorno àquela são marcadas por expectativas exageradas, total fascinação e súbitas
reviravoltas.
Hirschman (1983) assinala que a individualização corresponde a uma tendência de
ocupação total da vida por atividades privadas, que não deixa espaço para as atividades de
natureza pública, desestimulando, assim, o envolvimento dos indivíduos em assuntos
públicos. Ao mesmo tempo, chama atenção para o papel das instituições políticas no sentido
de impedir a manifestação da intensidade total dos sentimentos dos cidadãos.
Neste sentido, a instituição democrática do voto, parte necessária, integrante e central
do processo democrático, também pode gerar decepção e despolitização. O voto garante a
todos uma parcela mínima no processo de decisão pública e estabelece um teto máximo que
não permite aos cidadãos registrarem as diferentes intensidades de percepção das suas
convicções e opiniões políticas. Hirschman (1983) enfatiza a ambigüidade desta instituição
87
que, se por um lado, é elemento essencial de uma estrutura institucional de defesa contra um
estado excessivamente repressivo, por outro, serve como proteção contra uma coletividade
excessivamente expressiva.
O autor acredita que a apatia política e a decepção com a ação política são
socialmente induzidas quando as decisões políticas importantes o tomadas somente através
do voto. A inadequação do voto como expressão de sentimentos políticos fica evidente com a
ocorrência de outras formas de ação política, tais como greves, passeatas, atos e abaixo-
assinados, toda vez que ressurgem sentimentos políticos mais exacerbados.
Partindo da idéia, desenvolvida por Adam Smith e boa parte do pensamento liberal,
de que ganhos e satisfações privados contribuem para a felicidade pública, Hirschman (1983)
entende que a atração da vida privada passa pela capacidade de tolerância que esta esfera
possui em relação à incorporação de motivos públicos. Por outro lado, a hipocrisia da
atividade blica torna o deslocamento em direção à esfera privada uma forma de contato
com a realidade, a sinceridade e a humildade quando a busca de poder passa a ser percebida
pelos indivíduos como meta exclusiva da atividade pública.
Assim, a separação entre privado e público surge, simultaneamente, como
característica, problema e dilema das sociedades contemporâneas.
III.3. Consumo e Cidadania
De certa forma, a aproximação dos cenários cotidianos do consumo e da cidadania é
capaz de reformular a questão das identidades em conseqüência das condições multiculturais
derivadas da transnacionalização econômica e social. Neste sentido, a globalização da
produção e do consumo faz com que Canclini (1995), em uma análise macro-social mais
recente, diferencie as identidades modernas territoriais e quase sempre monolinguísticas
— daquelas pós-modernas — trans-territoriais e multilinguísticas.
O cidadão atual surge, assim, mais como um habitante da cidade do que da nação e a
cultura nacional, mesmo permanecendo, passa a designar a continuidade de uma memória
histórica instável que se reconstrói pela interação junto a referências culturais transnacionais.
As identidades se remodelam em práticas de consumo padronizadas e plurais de bens que se
renovam pelo uso de objetos próprios e importados, sobretudo porque incorporam uma aura
de distinção que os impregna. Neste sentido, o consumo pode ser definido como “conjunto de
processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos”
(CANCLINI, 1995, p. 42-43). Os atos de consumo transcendem os exercícios de gostos,
desejos e compras irrefletidas, dos juízos moralistas ou das atitudes individuais exploradas
nas pesquisas de mercado.
Além da racionalidade econômica, o consumo envolve uma racionalidade
sociopolítica interativa, pois remete à participação em um cenário de disputas pelo que a
sociedade produz e pelas maneiras de usar esta produção. Assim, o consumo constitui uma
esfera de interação, em que produtores e emissores buscam seduzir os destinatários, mas
precisam também justificar-se racionalmente. O consumo surge, então, como um campo de
diferenciação e distinção entre classes e grupos. Por isso, também apresenta uma
racionalidade integrativa e comunicativa da sociedade. Deste modo, os aspectos simbólicos e
estéticos da racionalidade consumidora configuram uma lógica de construção dos signos e
das maneiras de comunicá-los. As maneiras de se vestir, os lugares que se freqüentam, as
88
formas de uso da língua e linguagens da cidade conectam os extremos da sociedade ao
reproduzir e construir uma lógica que vincula e constitui uma cidade.
A transformação das relações entre o público e o privado pode constituir uma
mudança das condições para o exercício de um novo tipo de responsabilidade civil.
Entretanto, para que o consumo seja pensado neste sentido, Canclini (1995) apresenta alguns
requisitos: (a) uma oferta vasta e diversificada de bens e mensagens representativas da
variedade internacional dos mercados, que sejam de fácil acesso e eqüitativo para as
maiorias; (b) a existência de informação multidirecional confiável sobre a qualidade dos
produtos, cujo controle seja efetivamente exercido por consumidores capazes de refutar
pretensões e seduções da propaganda; e (c) a participação democrática dos setores da
sociedade civil nas decisões de ordem material, simbólica, jurídica e política na organização
do consumo.
Para Canclini (1995, p. 54), “alguns consumidores querem ser cidadãos”. Isso
representa a possibilidade de uma reconquista imaginativa dos espaços públicos e do
interesse pelo público para que o consumo seja uma esfera de valor cognitivo útil a fim de
pensar e atuar significativa e renovadoramente na vida social. A politização do consumo
pode ser entendida à luz desta teoria do ciclo do comportamento coletivo como uma forma de
traduzir insatisfações pessoais em questões públicas. Assim, formular, expressar, justificar e
reivindicar uma insatisfação a torna coletiva e pública (PORTILHO, 2005).
Ao compreender o consumo e a cidadania como questões de comunicação em uma
perspectiva latino-americana, Canclini (1995) reconhece que um sentido social é pensado,
elegido e reelaborado por meio das práticas de consumo, permitindo, com isso, analisar a
apropriação de bens e signos como uma forma ativa de participação. Assim, ao consumir
sustentamos, alimentamos e constituímos um novo modo de cidadania. Com isso, Canclini
(1995) aponta a necessidade de aceitar que o espaço público transborda da esfera das
interações políticas clássicas.
A abordagem de Canclini (1995) se soma a de Alexander (1995) e Hirschman (1983)
no sentido de valorizar a esfera privada como espaço de luta pela emancipação, bem como de
protesto e manifestação. Se o conceito de política significava deixar a esfera privada para
dedicar-se à pública, estes aportes teóricos possibilitam uma análise da politização do
consumo como uma espécie de invasão do político na esfera privada. Mais do que a perda do
espaço político ou a redução do cidadão a simples consumidor, este processo parece apontar
para formas inovadoras de ação política na esfera privada (PORTILHO, 2005).
Desta forma, aquelas experiências que já foram, e ainda são, consideradas como
declínio ou morte da política podem ser pensadas como uma espécie de reposicionamento do
político (BECK, 1997 e 2002; GIDDENS, 1991, 1996 e 1997). Assim, ainda no processo de
construção de um contexto teórico que permite analisar o surgimento de ações políticas na
esfera do consumo em um período neo-moderno, de acordo com a acepção de Jeffrey
Alexander, considero a seguir o período de alta reflexividade social, de acordo com a
concepção de Anthony Giddens e Ülrich Beck.
III.4. Reflexividade Social e Crise Ambiental
A teoria da reflexividade social, na perspectiva desenvolvida por autores como Ülrich
Beck e Antony Giddens associada aos conceitos de globalização e destradicionalização,
89
políticas de vida e subpolíticas também pode fornecer um suporte analítico útil para a
compreensão da incorporação de valores nas tomadas de decisão cotidianas.
Giddens (1997) explica as mudanças na ação política de nossos dias, incorporando a
categoria “reflexividade”. Desta forma, a crise ambiental parece evidenciar diversos dilemas e
oportunidades de recuperação de valores positivos, como a autonomia, a solidariedade e a
busca da felicidade e do bem-estar, especialmente quando passa a ser percebida e associada às
práticas da vida cotidiana. Neste sentido, o consumo político pode ser compreendido como
um novo ativismo, fundamental para a renovação da ação e do escopo da política.
A perspectiva deste autor ajuda a entender o crescimento da importância do papel
político dos consumidores como conseqüência de diversos fatores que têm transformado a
sociedade nas últimas cinco décadas, como a globalização, a destradicionalização e a
reflexividade social (PORTILHO, 2005). Estes acontecimentos são particularmente
importantes nos países industrializados
(STOLLE et ali, 2005), mas têm um impacto cada vez
mais mundial.
Além de um fenômeno econômico, a globalização pode ser entendida também como
uma transformação do espaço e do tempo, que está ligada a mudanças nos contextos locais e
nas experiências sociais na medida em que
nossas atividades cotidianas são cada vez mais influenciadas por eventos que
acontecem do outro lado do mundo. De modo oposto, hábitos dos estilos de vida
locais tornaram-se globalmente determinantes. Dessa forma, minha decisão de
comprar um determinado artigo de vestuário tem implicações não só para a divisão
internacional do trabalho, mas também para os ecossistemas terrestres (Giddens
(1997, p. 13).
Como resultado direto da globalização, Giddens (1997) vislumbra a emergência de
uma ordem social pós-tradicional, caracterizada por uma natureza transformada pela
intervenção humana em socialização da natureza na medida em que uma intensificação da
especialização descentralizada radicaliza os mecanismos de desincorporificação. Além disso,
a perda de autoridade da ciência provoca conseqüências libertadoras e perturbadoras, pois a
compulsividade torna-se uma confiança congelada, ou seja, um compromisso sem objeto e
uma simples urgência repetitiva.
A especialização substitui a tradição e a reflexividade social da modernidade subverte
a razão. Giddens (1991, p. 40) enxerga um “mundo que é inteiramente constituído através de
conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar
seguros de que qualquer elemento dado deste conhecimento não será revisado”. Se antes, as
tradições não precisavam ser justificadas, pois continham sua própria verdade, sendo
afirmadas como correta por todos que nela acreditavam, numa sociedade globalizada, ao
contrário, as tradições são “descobertas”, sendo necessário oferecer-lhes razões ou
justificativas e não simplesmente aceitá-las como dadas.
Estas mudanças refletem o caráter experimental e reflexivo da vida cotidiana. Os
indivíduos cada vez mais têm que aprender a refletir e filtrar as informações sobre distintos
aspectos rotineiros da vida privada, tomando decisões com base nessas reflexões e não mais
na segurança da tradição. As ações cotidianas passam, portanto, a ser monitoradas
reflexivamente por conhecimentos especialistas distribuídos na sociedade.
90
Giddens (1997) aponta uma tendência de mudança da participação política, da esfera
pública para a privada, com a constituição de uma nova cultura política. Tal mudança
relaciona-se a uma substituição dos canais de participação e influência coletiva por canais
individuais.
Neste sentido, muitos problemas coletivos têm sido enfrentados na esfera individual
por meio das políticas de vida
61
, que surgem como reações e engajamentos em relação a um
mundo em que a tradição deixou de ser tradicional e que a natureza não é mais natural. Elas
tratam dos desafios que a humanidade coletiva enfrenta e não apenas das formas que os
indivíduos tomam suas decisões frente à variedade de opções que antes não existia. As
questões ambientais, por exemplo,
não podem ser entendidas como relacionadas apenas ao meio ambiente. Elas o
um sinal e uma expressão da centralidade dos problemas da política de vida.
Propõem, com especial vigor, as questões que devemos enfrentar no momento em
que o “progresso” se tornou bastante ambíguo, temos novas responsabilidades em
relação às futuras gerações e existem dilemas éticos que os mecanismos de
crescimento econômico constante nos fazem colocar de lado ou reprimir
(GIDDENS, 1996, p. 108).
A politização do consumo parece estar associada às políticas de vida, sendo que
“comprar alimentos orgânicos, por exemplo, pode ou não ter um significado político, que
depende da motivação para isso, bem como dos efeitos deste ato” (STOLLE et ali, 2005, p.
254). De certa forma, os indivíduos que se engajam nestas ações estão provavelmente mais
bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania (GIDDENS,
1997). Com isso, a cultura do consumo constitui um campo privilegiado na medida em que
nele se situam as reivindicações do sujeito (CAMPBELL, 2006).
Nesta perspectiva, não existem soluções naturalizadas para os problemas sociais.
Apesar de uma tendência de naturalização da sociedade, a interdependência global e a
socialização da natureza devem ser cada vez mais consideradas na resolução dos problemas
sociais. O signo positivo dos riscos de grandes conseqüências encontra-se relacionado com o
fato de que complicações reflexivas apenas confirmam que as dificuldades de uma civilização
científico-tecnológica não podem mais se resolver pela introdução de mais ciência e
tecnologia. Apesar disso, os debates ambientais contemporâneos ainda se baseiam em uma
lógica de natureza controlada, denotando um potencial revelador dos problemas ecológicos
sobre a confiança da civilização moderna no que se refere ao controle e ao progresso
econômico enquanto formas de repressão dos dilemas existenciais básicos da vida.
Giddens (1996) interpreta as questões ecológicas pela lente da modernização reflexiva
em um contexto que compreende globalização, destradicionalização, destruição da natureza,
avanço da ciência e crescimento econômico. Assim, os problemas morais, que antes estavam
61
“Política de vida” é uma política de identidade e de escolha, de forma que um desenvolvimento alternativo
para a emancipação passa a exigir um enfrentamento das questões de estilo de vida e ética. Giddens (1996, p.
182-183, grifo do autor) entende que “uma reação à pobreza hoje não pode mais ser considerada puramente
econômica. A questão sobre ‘como viver’ em um meio globalizante no qual a cultura local e os recursos
ambientais estão sendo desperdiçados possui, na verdade, uma importância específica para os pobres. Uma luta
por autonomia, por autoconfiança, é também uma luta pela reconstituição do local como o meio primordial,
muitas vezes o único, para evitar a privação e o desespero endêmicos”. Neste sentido, uma estrutura de política
radical pode ser desenvolvida a partir de um “realismo utópico”, relacionando quatro dimensões da
modernidade: o combate à pobreza; a restauração da degradação ambiental; a contestação dos poderes
arbitrários; e a redução da força e da violência na vida social.
91
ocultos na naturalidade da natureza, hoje afloram em riscos associados à incerteza artificial,
comprometendo uma orientação para o controle da modernidade simples.
Assim, a “política ecológica é uma política de perdas a perda da natureza e da
tradição —, mas também é uma política de recuperação” (GIDDENS, 1996, p. 257), pois,
individualmente, uma humanidade coletiva pode remoralizar as vidas por meio de uma
aceitação positiva da incerteza artificial. Como expressão material dos limites da
modernidade, a política ambiental torna-se fundamental para a renovação política, pois a
restauração do ambiente danificado não pode mais ser entendida como um fim em si mesmo.
O mundo pode ser percebido como um sistema de auto-ameaças ambiental-industriais
que transforma a moralidade, a religião, o fundamentalismo, a desesperança, a tragédia, o
suicídio e a morte em um drama universal, caracterizando um teatro da vida real, com a
presença de ingredientes como a salvação e a ajuda. Assim, Beck (2002) destaca que, em uma
sociedade de risco global, os desafios produzidos pela civilização não podem ser delimitados
socialmente.
Os problemas ambientais são inerentes à sociedade e não ao meio ambiente ou ao
mundo que nos rodeia. Com isso, Beck (2002) procura superar o dualismo entre sociedade e
natureza ao enfatizar a incerteza fabricada
62
por meio de noções como risco, perigo, efeitos
colaterais, seguridade, individualização e globalização — como contraponto às idéias de
natureza, de ecologia e de meio ambiente.
A escala e a urgência da crise ambiental podem variar de acordo com percepções e
avaliações intra/interculturais na medida em que os perigos se convertem em questões
políticas se as pessoas passam a ter consciência deles, ou seja, são construções sociais que se
definem, se ocultam ou se dramatizam estrategicamente na esfera pública. com ajuda de
materiais científicos providos pela definição, ocultamento ou dramatização destes perigos.
Desta forma, a crise ambiental aparece como um discurso de auto-confrontação que exige a
reconsideração das práticas institucionais que o produziram.
A forma direta com que as pessoas falam da natureza e da sua destruição na vida
cotidiana parece esconder uma estratégia paradoxal de construção da desconstrução, na
medida em que se destrói reflexiva e poderosamente a impressão de que este discurso foi
construído, produzindo-se uma aparência de realidade em si. Ao invés de tratar de “problemas
do meio ambiente”, Beck (2002) opta por tratar de uma profunda crise institucional da
primeira fase da modernidade industrial.
Neste sentido, o advento da crise ambiental e a consciência em relação a uma
sociedade de risco global abrem os objetivos da política, que são expandidos, repensados e
recompostos. A incompletude do conhecimento e o fato de que o acúmulo de conhecimento
apenas supõe mais incerteza caracterizam a tomada de decisões nas atuais condições de
incerteza fabricada. Estes aspectos evidenciam uma inter-relação entre os conflitos e as
62
Em uma perspectiva de reflexão institucional (GIDDENS, 1991), as incertezas fabricadas surgem como uma
mistura de risco, conhecimento, desconhecimento e reflexividade, configurando um novo tipo de risco. Ao tratar
de riscos não-seguráveis, Beck (2002) destaca que a sociedade moderna aborda as incertezas fabricadas auto-
geradas por meio de uma distinção entre (a) riscos que dependem de decisões e podem ser controlados e (b)
perigos que escaparam ou neutralizaram os requisitos de controle da sociedade industrial, tanto (b.1) falhas das
normas e instituições da sociedade industrial, como, por exemplo, quando os seguros são desprezados por setores
que não tem acesso a ele; quanto (b.2) o modelo de decisões da sociedade industrial e a globalidade de suas
conseqüências agregadas, ao identificar normas e irresponsabilidade organizada, em um movimento circular
entre a normalização simbólica e as ameaças permanentes e de destruição material.
92
lógicas de distribuição dos bens e dos males produzidos pela sociedade do risco, superando os
fundamentos do cálculo de risco
63
.
A sociedade de risco global é, portanto, autocrítica e política e necessita reinventar o
diálogo transnacional da política, da democracia e da sociologia para discutir as questões
emergentes das sociedades contemporâneas. Beck (2002) descreve uma sociedade
individualista e moralista, a partir do momento em que a ética da auto-realização e do sucesso
individual se tornou a corrente mais poderosa para escolher, decidir e configurar os indivíduos
que desejam ser autores de sua vida e criadores de suas identidades.
Este processo surge, então, como possibilidade de reinvenção da política,
caracterizando uma condição universal fundamental da existência humana no período de
modernização reflexiva. Em uma era de incerteza e ambivalência, a ameaça constante de
desastres de novas magnitudes pode reinventar as instituições políticas e inventar novas
formas de ão política em lugares sociais que eram considerados apolíticos. Com isso, a
destruição e o protesto passam a ser simbolicamente mediados pela “crise ambiental”,
gerando uma nova consciência cultural e uma atuação contra a destruição ambiental que faz
com que todo mundo seja seu próprio inimigo.
Beck (2002) identifica a emergência de subpolíticas, à margem e além das instituições
políticas dos Estados-Nação, compreendendo políticas diretas, que envolvem a participação
individual nas decisões políticas, muitas vezes sem uma proteção jurídica como a que é
oferecida por partidos políticos e sindicatos. Com isso, as práticas de compra, entre outras,
podem fazer parte de um sentido de participação global que se estabelece na medida em que a
política se converte em parte integral da atividade cotidiana e, ao mesmo tempo, se mostra
ativamente integrada em uma ordem-desordem cosmopolita.
Assim, em contraposição ao esvaziamento político das instituições tradicionais,
assistimos a um renascimento não institucional do político que “permite que os agentes
‘externos’ ao sistema político ou corporativo apareçam no cenário do planejamento social”,
uma vez que “não somente os agentes sociais e coletivos, mas também os indivíduos,
competem com este último e um com o outro pelo poder de conformação emergente do
político” (BECK, 1997, p.34).
III.5. Um Novo Ingrediente: Políticas na Mesa da Cozinha?
Nas últimas décadas, o campo da alimentação adquiriu importância e visibilidade, mas
também como ato político e ideológico, como lazer e experiência multissensorial
(BARBOSA, 2009), indo além de práticas relacionadas com a satisfação de necessidades
individuais vitais, modeladas pela cultura e imprescindíveis para a vida e a sobrevivência
humanas (CANESQUI & GARCIA, 2005).
Enquanto Douglas & Isherwood (2006) destacaram a capacidade de fazer sentido
como função essencial do consumo, Lien (2004) aponta a capacidade de efetuar conexões
como a característica que confere especificidade política às práticas alimentares nas
sociedades contemporâneas. Neste sentido, as conexões marcam politicamente o campo da
63
Beck (2002) destaca, como exemplo, a impossibilidade de superação financeira dos danos com milhões de
desempregados e pobres ou de um seguro contra a recessão global ou a catástrofe ecológica. Por outro lado, as
conseqüências sociais dos riscos financeiros globais compreendem mudanças culturais e políticas que solapam as
burocracias, desafiam o domínio da economia clássica e do neoliberalismo e proporcionam um
redimensionamento das fronteiras e frentes de batalha da política contemporânea.
93
alimentação, indicando possibilidades de “dissolver muitas distinções preconcebidas entre
natureza e cultura, produção e consumo, moral e mercado, família e sociedade, individual e
coletivo, corpo e mente” (LIEN, 2004, p. 9).
Como isso se dá?
Lien (2004) entende que o campo da alimentação se torna político na medida em que
muitas relações de poder se constituem nele, bem como por meio dele. Desta forma, a
alimentação passa a configurar um campo de disputas específicas que conectam o corpo
individual a comunidades abstratas e inovações técnico-científicas de conceitos morais,
evidenciando dilemas acerca dos riscos e do controle que caracterizam a produção de
alimentos nas sociedades contemporâneas.
Barbosa (2009) assinala uma transição do ato de comer como a passagem de uma
atividade corriqueira, prazerosa, privada e familiar para uma prática altamente consciente,
regulada e política. Neste sentido, indica as origens da complexidade atual no campo da
alimentação em múltiplas esferas, tais como (a) o conhecimento científico sobre a nutrição
humana e a medicina; (b) o movimento ecológico, que pauta as implicações ambientais
decorrentes do tipo de consumo alimentar que as sociedades ocidentais contemporâneas
adotaram; (c) os movimentos sociais em defesa de populações que vivem de métodos
tradicionais de produção, e encontram-se ameaçadas pelas transformações ocorridas no
campo; (d) os movimentos em defesa dos animais; (e) o processo de globalização; e (f) o
desenvolvimento das ciências sociais no sentido de abordar os fenômenos de forma mais
processual e relacional, analisando as redes ao invés de individualizá-los analiticamente.
Com isso, cada garfada parece aglutinar experiências locais, particulares e subjetivas
do ato de comer a eventos que ocorrem no cenário global. Este novo papel da alimentação nas
sociedades contemporâneas se relaciona fundamentalmente com (a) a consciência das
questões que envolvem o que comemos; (b) as responsabilidades derivadas desta consciência;
(c) as implicações da globalização; e (d) o teor político e ideológico destas questões
(BARBOSA, 2009).
A seguir, destaco alguns aspectos relevantes para uma abordagem política do campo
da alimentação. Para tanto, começo descrevendo a transição no campo da alimentação, a fim
de estabelecer a especificidade política deste campo nas sociedades contemporâneas (LIEN;
NERLICH, 2004). Feito isso, passo a uma análise do campo retórico da alimentação em uma
sociedade de risco global (JACOBSEN, 2004) e dos limites da politização frente aos riscos
alimentares e ambientais (HALKIER, 2004).
III.5.1. Especificidade política
Em um passado não muito distante, uma abordagem política da alimentação teria um
lugar restrito à atuação da burocracia estatal em questões como segurança alimentar,
desigualdade social e política nutricional e agrícola. Até meados dos anos 1980, o foco se
voltaria, no máximo, para o acesso à comida em diferentes níveis, considerando preferencial e
fundamentalmente os aspectos nutricionais. As políticas se limitavam ao “fazer” institucional.
Durante os anos 1990, Lien (2004) assinala um transbordamento da política no campo
da alimentação. Com isso, a esfera da vida cotidiana passa a incorporar um sentido político a
partir do momento em que questões como controvérsia, hegemonia, resistência e conflitos de
interesse passaram a permear as escolhas alimentares dos consumidores. Os indivíduos
94
começaram a desenvolver uma nova percepção em relação à comida associada a uma
desconfiança nas instituições políticas, especialmente com a emergência da noção de risco em
decorrência de seguidas epidemias e escândalos alimentares
64
, além da introdução dos
alimentos transgênicos na pauta de discussões públicas
65
.
Portanto, os anos 1990 representaram uma virada histórica na configuração da
alimentação como campo político. O alimento deixou de ser apenas um recurso material que
supre a necessidade básica de sobrevivência ou um importante elemento cultural e passou a
incorporar a necessidade de equilíbrio entre os gastos monetários e os riscos e desconfianças
dos consumidores. O alimento e a comida se tornaram politizados tanto como mercadoria para
consumo quanto pelo crescente interesse em sua rastreabilidade
66
(LIEN, 2004).
Uma abordagem política do campo da alimentação implica, portanto, discutir a noção
de alimento e o seu “dever-ser”, indo além das políticas públicas dos Estados-nação para se
conectar a inovações e discursos de arenas transnacionais da ciência, da tecnologia e do
mercado. Além do acesso e produção dos alimentos, certos engajamentos políticos e morais
distanciados como, por exemplo, aqueles desempenhados em boicotes, petições on-line e
ações do ativismo ambiental global evidenciam o teor político neste campo.
Lien (2004) compreende, assim, um movimento duplo de mudança, que envolve um
desencaixe local e um reencaixe global
67
, com um impacto cada vez maior de eventos locais
em contextos distantes de uma ordem globalizada. Assim, certos consumidores passam a se
auto-atribuir responsabilidades (EDEN, 1993) frente a relações distantes, complexas e
abstratas, inserindo a vida cotidiana no campo político. Por outro lado, os consumidores
globais ficam vulneráveis às práticas, regulações e rotinas originadas em regiões distantes e
desconhecidas. Com isso, as negligências, fraudes e adulterações do complexo agro-alimentar
industrial hegemônico passam a representar riscos para todos os consumidores de alimentos.
No entanto não é o fato da comida se tornar globalizada que faz da alimentação um
campo político, nem mesmo a ampliação dos interesses, relações e instrumentos regulatórios
envolvidos na trajetória do alimento da produção ao consumo. Um potencial maior de
interesses divergentes e conflitantes torna as relações políticas do alimento e da comida mais
significativas, pois cada alimento passa a ser reconhecido como um produto que possui uma
história e implicações mais complexas e profundas do que se pensara até então.
Lien (2004) entende que o espaço entre “o que sabemos” e o que poderíamos saber”
confere à segurança e à transparência um caráter fundamental nas análises sobre a
alimentação contemporânea. Por isso, uma abordagem política do campo da alimentação é, ao
64
Entre as epidemias e os escândalos alimentares, Lien (2004) relaciona o “mal da vaca louca”, a febre aftosa e a
questão da salmonela no frango. Mais recentemente, a epidemia de “gripe suína” vem reforçar este sentido, bem
como, por exemplo, no Brasil a descoberta recente de soda caústica no leite.
65
Entretanto, mesmo considerando os debates recentes sobre transgênicos, o trabalho de campo realizado em
Nova Friburgo/RJ aponta a presença de agrotóxicos nos alimentos como sendo a preocupação mais candente
entre os consumidores de alimentos orgânicos brasileiros.
66
Lien (2004) entende a rastreabilidade como a trajetória do alimento: desde o modo de produção até a cozinha e
o momento das refeições, com implicações no preparo da comida e no cuidado com a família.
67
Nas últimas décadas, em decorrência da globalização da comida e dos sistemas nutricionais, Lien (2004)
compreende que as grandes distâncias percorridas pelos alimentos provocaram uma deslocalização, entendida
como reflexo do crescimento em extensão das redes globais, da intensidade e do impacto das interconexões
globais, bem como da velocidade dos fluxos globais. Neste caso, interpretei o termo deslocalização como um
dos desencaixes da modernidade, que teve seu conseqüente reencaixe na alta modernidade, nos termos da análise
efetuada por Giddens (1991).
95
mesmo tempo, silenciosa e expositiva na medida em que envolve o poder de controlar o que
será declarado e a definição do foco de debate público, assim como o que deixará de ser
declarado.
As relações abstratas entre produtores e consumidores, o enfraquecimento da
autoridade especialista e a divulgação freqüente dos escândalos alimentares na mídia são
aspectos que fazem com que os consumidores sintam mais fortemente a impossibilidade de
ser e estar bem informado, resultando em um déficit de conhecimento (LIEN, 2004).
Mesmo que entre os consumidores de alimentos orgânicos que observei e entrevistei
em Nova Friburgo/RJ, apenas uma pequena parcela se considere plenamente informada para
efetuar as melhores escolhas alimentares, a maioria deixa clara a necessidade de buscar
incessantemente por mais informações, quando não assumem uma desinformação parcial:
Ainda falta muito [...] acho que as coisas precisam ser mais divulgadas, faladas,
informadas com muita veracidade. Não ter medo de perder aquele consumidor (C
9).
Sempre falta ter mais informações. Nunca acho que a informação que a gente tem
seja suficiente, estou sempre buscando mais. Por exemplo, a gente cozinha os
legumes no vapor, até três meses atrás a gente não fazia isso. A partir de uma
matéria que a gente leu, a gente mudou. Então, a gente está sempre aberto a novas
informações, para ir aperfeiçoando isso aí (C 6).
Desta forma, a politização do campo da alimentação parece ir além de um processo
seletivo de escolha por um alimento específico dentro de uma miríade de possibilidades. A
questão sobre qual item deve ser politizado por si só se tornou um instrumento político em
função dos dilemas e ambigüidades envolvidos nas escolhas cotidianas dos consumidores.
Com base em Mary Douglas, Nerlich (2004) entende que a escolha dos riscos que
mais preocupam está associada a formas sociais específicas, pois são simultâneas às escolhas
dos estilos de vida
68
. O risco não é construído apenas de uma forma científica, social e
cultural, mas envolve uma questão individual cada vez mais importante, bem como,
ultimamente, uma questão de moralidade que se materializa nas escolhas dos consumidores.
Com isso, as reflexões cotidianas passaram a incluir aspectos como a globalização, a
responsabilidade individual, o julgamento científico e as pressões socioeconômicas. Os riscos,
que à primeira vista pareciam somente uma tragédia humana e animal, passaram a abrir
janelas de oportunidades políticas no campo da alimentação (NERLICH, 2004).
Além da globalização dos sistemas agro-alimentares, a provisão e o consumo dos
alimentos se dão em contextos culturais, sociais e morais essencialmente locais que atuam
como um filtro para a emergência de questões alimentares na esfera pública, formando um
campo capaz de construir, interpretar, discutir e absorver estas questões. Neste sentido, as
controvérsias que, a princípio, são parte de um discurso transcultural estão, de fato,
fortemente inseridas em valores e distinções extremamente específicas e localizadas.
68
Em referência à Mary Douglas, ao analisar os discursos sobre as causas da febre aftosa na esfera pública
inglesa, Nerlich (2004) observou razões de ordem cultural, histórica e semântica interagindo com as incertezas
científicas. A autora configurou os seguintes pares opostos em que a “comida barata” aparece como ruim” e a
“comida cara” como “boa”: inseguro/seguro, contaminado/descontaminado, natural/artificial, saudável/doentio,
devagar/rápido, orgânico/processado, local/global, incomum/comum.
96
Na era da alimentação globalizada, as fronteiras entre os contextos locais e global
apresentam-se cada vez mais “borradas” (LIEN, 2004). Desta maneira, a alimentação
constitui um fenômeno político único, pois o alimento é mais profundamente absorvido por
complexas relações do que qualquer outro produto em três sentidos.
Primeiramente, Lien (2004) aponta as implicações biológicas da alimentação: o
alimento faz parte do corpo humano devido à necessidade humana fisiológica de se alimentar
diariamente. Historicamente, os sistemas agro-alimentares foram desenvolvidos para
assegurar o suprimento estável de alimentos de diversas formas: domesticação, exploração,
reciprocidade e comércio. Esta relativa estabilidade tornou os seres humanos vulneráveis,
fracos e fáceis de controlar, o que torna o campo da alimentação parte de estruturas de
subordinação, governança e dominação.
Em segundo lugar, a alimentação caracteriza uma rotina cotidiana, um meio
conveniente de expressar distinções sociais e cerimoniais que naturaliza relações comunitárias
ou hierárquicas. O significado simbólico da comida em um contexto social pode ser visto
como sedimentação de estruturas históricas de poder e desigualdade que operam ao longo de
gerações (BOURDIEU, 1994; MINTZ, 1985 apud LIEN, 2004). Desta forma, a alimentação
se torna uma força estrutural e estruturante.
Por fim, o campo da alimentação passa a ser entendido como “ciência nutricional” a
partir do momento em que a nutrição se tornou um dos mais significativos campos da
medicina preventiva e um agente estruturante das escolhas alimentares contemporâneas. No
entanto, a nutrição científica contraria, ao mesmo tempo, os interesses agrícolas, da indústria
alimentar, da comida nacional e das políticas nutricionais (LIEN, 2004). As conexões entre o
alimento e o corpo evidenciam conflitos entre diferentes interesses: políticos, de negócios e da
ciência.
Desta forma, uma abordagem política do campo da alimentação passa ao largo das
instituições estatais formais, especialmente pela crise de legitimidade que as atinge, em geral,
bem como pela desregulamentação e liberalização que afetam o campo da alimentação, em
particular. A visão de Lien (2004) torna-se importante para o desenvolvimento deste trabalho
ao se voltar para as práticas sociais, os discursos, as controvérsias e as convenções, que nem
sempre são classificadas como políticas.
Neste sentido, a contestação das relações de poder existentes pode assumir diversas
formas, muitas vezes pelos caminhos menos óbvios, como os da vida cotidiana. Lien (2004)
destaca quatro conexões nas relações de poder do campo da alimentação: (1) entre os sentidos
e as experiências, uma vez que a alimentação evoca e estimula a memória; (2) o conceito de
governamentalidade, definido por Michel Foucault
69
; (3) a reflexividade institucional
(GIDDENS, 1991), sociedade de risco (BECK, 2002) ou termos como “dúvida radical”,
69
Lien (2004) destaca que este conceito remete à governança de um complexo de homens e coisas através de um
conjunto de técnicas para conhecimento sobre populações séries estatísticas, medicina, demografia — e
gerenciamento de populações através destes conhecimentos. A comida pode funcionar como mediadora das
relações entre Estado e indivíduos ou entre a nação e os corpos humanos. Desta forma, a governamentalidade no
campo da alimentação envolve a socialização dos membros da família enquanto bons parentes, boas crianças e
bons cidadãos na construção de sujeitos éticos.
97
“incerteza” e “falta de confiança”, que se referem ao conjunto de dilemas sentidos
contemporaneamente
70
; e (4) a comida como natureza
71
.
Por fim, a autora aponta a necessidade de atentar para as políticas da natureza
englobadas discursivamente pelo termo ambientalismo, pois compreende que não há uma
natureza única e singular, mas uma diversidade de naturezas contestadas e constituídas através
de vários processos políticos, sociais e culturais. Assim, quando um alimento é visto como
mais ou menos “natural”, produzido de um modo mais ou menos “sustentável” ou
harmoniosamente adaptado a certas noções de natureza, o que se tem, de fato, é a inserção dos
debates em um campo onde o que prevalece é a dúvida. Por isso, torna-se importante a
abordagem de Jacobsen (2004), que apresento a seguir.
III.5.2. Campo retórico
Com sua perspectiva holística sobre o multifacetado campo retórico da alimentação,
Jacobsen (2004) compreende a natureza, a cultura e a mercadoria como aspectos integrantes
deste campo, que são inseparáveis na medida em que a forma física e a substância da comida
dividem um mesmo significante: a substância material da comida. Estes aspectos se conectam
por meio das práticas de agricultores e cozinheiras nos lugares onde a comida é processada,
preparada e consumida.
As diferentes definições de alimento parecem estar associadas a repertórios retóricos e
questões específicas que remetem a constantes conflitos acerca do que o alimento, a produção
de alimentos e o consumo de alimentos são e deveriam ser. Desta forma, o autor procura
entender os recursos retóricos, como metáforas e metonímias, que ajudam a estruturar
pensamentos, atitudes e ações constantemente acionados nas discussões sobre alimentação.
Desta forma, o alimento é um híbrido genuíno, uma mistura social e natural, como mostra o
esquema da Figura 3, abaixo.
Se o alimento é parte da natureza, a comida pode ser entendida como um veículo para
os nutrientes, interagindo com os corpos para prover a sustentação fisiológica da vida. Desta
forma, Jacobsen (2004) percebe que o alimento envolve um conjunto de valores, sentimentos,
associações e planos de ação que têm relação com a nutrição humana, aparecendo como um
símbolo carregado de ideologia e emoção.
Por outro lado, a comida é sentida, percebida e consumida de acordo com categorias
culturalmente definidas, sendo regulada e distribuída através de sistemas institucionais
normativamente sancionados. Assim, é matéria para a representação de identidades coletivas e
individuais. O autor indica que o simbolismo da comida está relacionado com atividades
70
Para Lien (2004) as práticas do campo da alimentação transcendem a constituição do corpo, sendo mais
sentidas em termos dos riscos e da confiança, pois as relações abstratas, distanciadas e constantemente mais
imaginadas que reais geram incerteza sobre a alimentação e a comida. Assim, as políticas do campo da
alimentação são discursivas, fazendo com que o poder de dividir a agenda pública, fomentar o debate e silenciar
os oponentes sejam recursos importantes. Neste sentido, as metáforas (JACOBSEN, 2004), a distribuição dos
tabus e da vergonha (NERLICH & LIEN, 2004), bem como as regras da mídia na divulgação de riscos abstratos
de forma a serem percebidos como reais ou relevantes pelos consumidores ordinários (HAUKANES &
HELLER, 2004) são aspectos que assumem uma importância ímpar nas sociedades contemporâneas.
71
Lien (2004) enfatiza as conexões entre alimentação e meio ambiente, entre a alimentação e uma imagem
idealizada da natureza, como oposição à cultura e à tecnologia. Apesar da fabricação e manipulação de alimentos
com intervenção dos seres humanos são várias as referências à natureza na publicidade de alimentos, no discurso
culinário e no debate público. Uma obsessão com a natureza afeta o pensar das relações ambientais de produção
dos alimentos, como no caso da produção orgânica, e a forma de atuação da comida em nosso organismo.
98
humanas expressivas e com amplos significados de “nacional”, “regional”, “local” e
“identidade étnica”.
Além disso, o alimento é uma mercadoria produzida, distribuída e vendida nos
mercados, que é transportada por longas distâncias, ordenada, processada e distribuída por
intermediários que possuem interesses econômicos e agendas institucionais próprias. Neste
sentido, apresenta uma forte carga ideológica quando usado como ponto de apoio para
posições morais e políticas específicas (JACOBSEN, 2004).
Figura 3: Alimento como campo retórico
Fonte: tradução e adaptação próprias, a partir de Jacobsen (2004).
O autor destaca limites inerentes a cada um destes aspectos. Desta forma, o alimento
não tem valor como mercadoria se for concebido como algo perigoso, assim como a cozinha e
a tradição são limitadas pela natureza e pelo potencial mercadológico dos alimentos, da
mesma forma que a biologia “natural” do alimento também é cultural e economicamente
fabricada e ajustada. Por fim, o processo de desenvolvimento de qualquer produto sempre se
vincula a um mercado com compradores potenciais.
Na alta modernidade, Jacobsen (2004) entende a comoditização do alimento como
tendência dominante na esfera pública, ou seja, parte da economia capitalista privada e da
dominação dos canais de distribuição por intermediários, como indústrias processadoras e
grandes comerciantes. Como contraponto, na esfera privada o alimento tende a ser
naturalizado e culturalizado porque se encontra imerso em práticas como compra e preparo de
refeições. Neste sentido, a dominação do campo de mercadoria na esfera pública baseia-se em
um entendimento realista ou instrumental sobre a natureza e o meio ambiente, no qual a
ciência aparece como única interpretação legítima da natureza.
III.5.3. Limites da politização entre consumidores de orgânicos
A partir de uma pesquisa com consumidores de alimentos orgânicos na Dinamarca,
Halkier (2004) compreende que os riscos da alimentação permeiam o entendimento da vida
cotidiana, tendo em vista que surgem como importantes fatores de compra destes produtos,
junto com a preocupação com a saúde. Os riscos associados à alimentação inserem-se em
teias sociais e culturais mais complexas e diversificadas do que supõe a racionalidade
instrumental dos debates públicos, em especial por parte das instituições políticas.
99
Com isso, a autora contesta a crença de que, a partir da obtenção de uma informação
“correta”, os consumidores passariam a evitar os riscos e participar da implantação de
soluções para resolver os problemas ambientais através de mudanças de comportamento.
Neste sentido, os riscos faziam parte da ambivalência inerente às experiências da vida
cotidiana moderna e estavam inseridos nas negociações das normas sociais.
Em sua análise, Halkier (2004) demarca as diferentes formas de enxergar os riscos,
colocando, de um lado, pesquisadores, políticos e administradores que enfatizam questões
como qualidade, segurança e ética alimentar e, de outro, o público em geral que se volta mais
para as normas sociais práticas que governam o consumo de alimentos.
Assim, no momento em que os consumidores se dão conta dos riscos associados ao
consumo de alimentos, ingressam na arena política que, no campo da alimentação, se
caracteriza pelo crescente número de escândalos alimentares e conflitos de controle e
regulação, bem como pelo grande número de discursos conflituosos. Desta forma, alguns
consumidores constroem suas práticas de consumo de alimentos como estratégia de ação
política mais individualizada, local e orientada para uma solução em relação aos riscos que
percebem (HALKIER, 2004).
Em outra pesquisa sobre as formas com que os consumidores dinamarqueses lidam
com os riscos ambientais presentes no consumo de alimentos, Halkier (2004) indica três
tipologias de tratamento dos riscos alimentares na esfera da vida cotidiana.
A primeira tipologia refere-se aos consumidores preocupados, que acompanham com
interesse o debate público sobre saúde e meio ambiente, obtendo informação sobre as
diferentes questões que consideram problemáticas. Eles se sentem intimidados pelos riscos,
quando estes são assuntos discutidos nas mídias de massa, em suas casas e redes sociais,
envolvendo negociação e conversação.
Estes consumidores se veêm como atores sociais capazes de agir e “fazer a diferença”
através de suas escolhas de consumo e expressam desconfianças nas relações institucionais
que envolvem autoridades públicas, produtores, comerciantes, especialistas e mídia. Por outro
lado, demonstram confiança nas suas redes sociais, que são compostas por diferentes tipos de
relações sociais.
Um segundo tipo compreende os consumidores irritados, que associam o risco às
comunicações da mídia, campanhas e folhetos recebidos, bem como às comunicações
interpessoais relacionadas com o tratamento de relações cotidianas sobre a autonomia pessoal
de decidir o que deseja comer. Neste tipo, duas subdivisões imperativas da moderna cultura
comercial são marcantes: a liberação de controle e a autodisciplina imposta.
Estes consumidores apreciam a comida como parte importante das relações sociais e
acompanham marginalmente o debate público, se mostrando frustrados com os dilemas da
vida cotidiana para os quais não vêem solução, criados pelo acesso que têm aos riscos por
meio das comunicações. Neste caso, uma perda de confiança se expressa em relação a
determinadas instituições e atores, mas o risco parece esquecido em grande parte do tempo.
Enfim, existem os consumidores pragmáticos, para os quais o risco é um problema do
cotidiano, como vários outros, ou seja, a alimentação é, mais que uma questão a ser
conversada, algo a fazer e comer juntos. O risco aparece como um problema potencial, que
surge em uma relação sensitiva de uma vida cotidiana agitada.
100
Tais consumidores o rejeitam o risco quando o percebem de forma importante
como, por exemplo, em relação à saúde das crianças. Eles depositam confiança nas
autoridades públicas e nas pessoas que conhecem, além de estabelecerem rotinas práticas que
os ajudam a evitar uma reflexão mais aprofundada sobre os riscos para que não se envolvam
emocionalmente. A preocupação é manter uma vida cotidiana funcional sem qualquer
pretensão de influenciar a sociedade com suas escolhas de consumo.
Halkier (2004) conclui que, entre as várias formas de lidar com os riscos da
alimentação, os consumidores não usam simplesmente o consumo alimentar como uma
estratégia de ação política, podendo constituir parte de uma governamentalidade relacionada
ao gerenciamento do risco nas áreas da sociedade relacionadas com a comida. A perspectiva
da governamentalidade procura entender como o pensamento das pessoas opera caminhos
organizados das práticas. Os sinais da governamentalidade no campo dos riscos alimentares
ficam visíveis com as tentativas dos consumidores em conformar suas próprias práticas em
padrões particulares que são considerados de menor risco.
Quando os consumidores negociam as normas sociais das práticas ao gerenciar riscos
no consumo alimentar, eles estão negociando o controle de suas próprias práticas de consumo.
Com isso, Halkier (2004) compreende as normas pelas quais os consumidores lidam com os
riscos no consumo de alimentos orgânicos como parte de uma operação de campos de
conhecimento e opinião particulares no sentido de gerenciar os riscos do setor alimentar.
III.6. Nexos de Fazeres e Discursos das Práticas de Compra de Alimentos Orgânicos
Por meio das entrevistas realizadas procurei entender a percepção dos entrevistados
sobre a relação entre a compra de alimentos orgânicos, o meio ambiente e a vida no campo.
Com isso, nesta parte final, enfatizo sua percepção acerca da responsabilidade frente aos
problemas ambientais, as dificuldades e dilemas que encontram para desempenhar suas
práticas de compra, bem como se e de que forma participam em prol de melhorias sociais e
ambientais.
A relação entre a compra de alimentos orgânicos e o meio ambiente aparece como
uma forma dos consumidores incentivarem a produção de alimentos em uma cadeia
sustentável, com práticas agrícolas ecológicas que não agridem o ambiente. Neste sentido, a
produção orgânica aparece como sendo capaz até mesmo de recuperar os solos e os lençóis
freáticos, que não são contaminados, sendo assim preservados, além de desmatar menos que a
agricultura convencional.
O alimento orgânico é sustentável e o não-orgânico não é sustentável, por toda a
cadeia produtiva. O alimento orgânico você faz manejo, você está sempre
recuperando o solo. Tem uma série de coisas que não agridem o meio ambiente. Se
não, ele nem obteria a certificação, porque você tem que tomar certas posturas
ecológicas dentro da sua propriedade (C50).
Se cada vez mais pessoas utilizarem os produtos orgânicos, teremos menos
agressão à natureza, na medida em que teremos menos uso do agrotóxico que, além
de poluir o solo, polui as águas. Já teríamos aí uma contribuição importante (C6).
Quanto mais se produzir o alimento orgânico, menos vai estar sendo despejado no
solo os produtos químicos e poluentes. Isso é uma coisa só. Quando eu como o
alimento orgânico, não penso na minha saúde. Estou pensando na saúde do
planeta (C46).
101
A cultura do orgânico tem todo um cuidado com a natureza, por exemplo, planta-se
um período aqui e, depois de um certo tempo, não se planta mais aqui, deixa o solo
descansar e vai se plantar num outro local. Que na maioria dos casos, não foi
desmatado. É um espaço que existe naturalmente. Isso aí, por si só, preserva o
meio ambiente (C40).
Os consumidores de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ acreditam que suas
compras representam uma forma de contribuírem, intencionalmente ou não, para a
preservação do meio ambiente e, portanto, para a melhoria do planeta em que vivem.
Os agrotóxicos intoxicam as águas, a terra e os animais que estão na área. Então, se
você estimula uma produção orgânica, você está evitando que mais agrotóxico seja
jogado no ambiente. Isso é fundamental (C49).
Tem a ver com a questão da preservação do ambiente. A minha intenção, na
verdade, foi egoísta, foi pensando na minha saúde. Mas é claro que isso tem uma
perspectiva de ambiente, com certeza (C23).
Se você começar a pensar um pouco no caminho que o produto fez para chegar até
ali e você começa a unir esse caminho com o efeito no meio ambiente, já é um
produto que valoriza mais o meio, é um produto que danifica menos o meio (C12).
Além de saúde, tem alguma preocupação ambiental também. Acho que isso acaba
demonstrando que essa consciência ambiental está crescendo nas pessoas. Elas
aceitam pagar mais caro para poder ter uma coisa que não usa agrotóxico e que faz
bem à saúde (C51).
Com isso, o aumento da demanda por alimentos orgânicos é visto pelos informantes
como um fator que pode acelerar a transição da atual hegemonia da produção convencional,
com utilização de agrotóxicos e desmatamento de florestas, para uma outra, por eles
considerada ideal: a produção orgânica.
Se aumentar a produção do orgânico, e é a tendência, em uma, duas, ou três
décadas, obviamente que você não vai ter mais contaminação (C34).
Não me incomodo de pagar mais caro, porque vejo que um dia isso pode ser
barateado. Se ninguém consumir porque é caro, acabou. Ninguém mais vai
produzir. Me sinto no compromisso de comprar, para continuar havendo essa
demanda. A demanda aumentando, vai se plantar mais, cada vez mais no sistema
orgânico. Isso está diretamente ligado ao meio ambiente (C46).
Procurando um alimento orgânico, você está favorecendo o plantio orgânico, você
estimulando mais ainda. O Dílson, por exemplo, que trabalha na feira há vinte anos.
Acredito que se as pessoas não fossem comprar, ele não ia ter porque continuar
produzindo (C29).
A demanda é de baixo para cima, da base da pirâmide para o topo. Enquanto as
pessoas não ligarem para o orgânico, é lógico que o cara vai produzir o não-
orgânico (C50).
Estes consumidores entendem que suas práticas de compra de alimentos orgânicos
constituem uma contribuição para a “melhoria do planeta”. As referências feitas por eles à
integração entre os seres humanos e a natureza demonstram que este entendimento deriva de
uma idéia de respeito aos limites da natureza no processo de produção orgânica, visando o
equilíbrio ambiental e a produção de um alimento de qualidade.
102
Se você consumir orgânico, é óbvio que você vai estar contribuindo para esse cara
[produtor rural] vender, produzir e investir na roça dele. Investir na roça não é jogar
veneno no orgânico, é cuidar da terra (C45).
A gente está integrado no meio ambiente, você tem que se colocar como um ser que
faz parte desse meio, já está trazendo benefícios estar consumindo um alimento sem
o remédio. Para o meio ambiente, ter produtos que estão sendo produzidos sem o
remédio e que utilizam métodos naturais, que são relacionados com o ciclo da
natureza, só por isso já é um ganho enorme para o meio ambiente (C14).
A preservação do meio ambiente com alimentos orgânicos é a não poluição do
ambiente, feita pelos agrotóxicos; a forma de cultivo, que a gente tem percebido
que os agrônomos e os agricultores voltados para essa cultura do orgânico não estão
dando ênfase mais para a monocultura, que é uma coisa que deixa o solo muito
pobre, mas uma cultura diversificada, alimentos plantados com outros tipos de
vegetação, coexistindo todos num mesmo ambiente [...] O alimento orgânico, por
ser feito em pequena escala, ele é menos evasivo. Não vai destruir tanto como uma
agricultura de alimentos com agrotóxico, que pega uma extensão muito grande e
vai deixando aquele solo estéril (C48).
Por outro lado, a relação entre a compra destes alimentos e a vida no campo não é tão
evidente. Uma parcela considerável dos consumidores entrevistados acredita que a produção
orgânica é ética porque oferece mais saúde ao homem do campo. Esta percepção se relaciona
com o fato dos produtores não precisarem lidar com os agrotóxicos, além de se tratar de um
processo produtivo que precisa de mais mão-de-obra e é “ecologicamente correto”. Assim,
uma parcela significativa acredita que um aumento do consumo de alimentos orgânicos pode
ter como conseqüência tanto a diminuição da migração do campo para a cidade quanto uma
maior geração de renda para as zonas rurais.
Compro orgânico porque sei que é um alimento melhor para a minha saúde e o meu
dinheiro está indo para uma pessoa que está “ecologicamente correta”, que está
manejando bem a sua propriedade [...] O alimento orgânico precisa de mais mão-
de-obra que o convencional. Se você tem mais demanda de produto orgânico, você
tem menos imigração de pessoas que estão vindo de Salinas [localidade rural de
Nova Friburgo/RJ] para cá, trabalhar de balconista, deixando toda uma história da
família, de produtor, e vindo para a cidade. Talvez, se estivesse produzindo
orgânico, estava ganhando mais do que trabalhando na cidade, produzindo uma
coisa de qualidade e sem ter um problema de saúde. O consumo faria com que
essas pessoas do campo não precisassem lidar com esse tipo de química. É muito
fácil a gente fechar os olhos, os caras estão lá o dia inteiro borrifando coisa no jiló e
no tomate porque a gente está comprando o não-orgânico (C50).
Você evita que um ser humano fique se intoxicando também. Você estimulando
isso pode ampliar a visão dos outros agricultores, para também plantarem
organicamente (C49).
Só do cara que está trabalhando não lidar com o agrotóxico, que é uma coisa
prejudicial para a saúde. em Macaé de Cima [localidade da zona rural de Nova
Friburgo/RJ], tive alunos, quando trabalhei lá, que tentaram o suicídio. E eles
relacionaram isso ao consumo de agrotóxico. Então, é uma coisa muito pesada,
muito negativa. Só de não ter que lidar com isso, já é um ganho enorme (C14).
No entanto, alguns consumidores apontam dificuldades para conceber esta relação
como sendo positiva, pois percebem que a produção orgânica parece ser mais interessante
para eles do que para os homens do campo. Além disso, existem aqueles que não acreditam na
força desta relação porque consideram que a maioria das pessoas que produz estes alimentos
103
não depende dessa atividade para viver ou aferem grandes lucros, de forma a caracterizar
apenas mais um negócio.
Quem está consumindo está pensando no seu estômago, não está pensando no
homem do campo. O homem do campo é que tem que se cuidar. Pode parecer
grosseiro. Na verdade, todos têm que pensar no meio ambiente. O homem do
campo tem que se cuidar; se ele está usando alguma coisa que é veneno, que se
cuide, ele está manipulando veneno. Está custando para ele, custa caro e ele está na
mão do produtor, que normalmente não são empresas nacionais. Vendem a
semente, depois vendem o defensivo e com o preço que quiser. Isso é um problema
do produtor rural, é uma opção dele como ele vai trabalhar. Para mim, não diz nada.
Não estou nem aí para ele, na verdade (C31).
Isso é complicado, principalmente, pelo fator financeiro. Quem planta orgânico,
normalmente, são pessoas que tem ou já tiveram uma outra atividade, não depende
muito daquela coisa do lucro (C40).
Vejo pessoas que são produtoras ou que têm contato direto com produtor que
vendem o produto duas vezes mais caro que um produto de uma feira [...]
Agricultor que é agricultor vai dar o preço de agricultor. O que acontece é que essas
pessoas eram pessoas da classe média que saem de um mercado e querem manter
aquele padrão de vida à base dos produtos que vão vender. Eu incentivo o
agricultor e não o carinha que é empresário, que entra nesse mercado e faz do
produto orgânico um produto de luxo (C49).
De uma forma geral, os aspectos destacados até agora refletem uma percepção das
práticas de compra de alimentos orgânicos como um processo de comoditização das relações
de produção
72
. Neste sentido, um consumidor que atuava profissionalmente como certificador
de propriedades produtoras de alimentos orgânicos destaca limites práticos desta idéia
fortemente cultivada entre grande parte dos consumidores que praticavam compra de
alimentos orgânicos entrevistados em Nova Friburgo/RJ.
Você indiretamente está desenvolvendo uma agricultura que, teoricamente, tem
uma exigência ambiental forte. que existe uma realidade e uma teoria. Tem
coisas da legislação que você como certificador alerta nas regiões de agricultura
orgânica, que são 90% nas montanhas. O que é a montanha? Relevo acidentado e as
áreas férteis que são nas beiras dos rios, as pequenas planícies das beiras dos
córregos, que é aonde a terra veio, fruto de erosão. E é terra boa que está na beira
da margem. A parte fértil está na beira do rio, se você tampar trinta metros, você
inviabiliza a agricultura. Consumir favorece? Favorece. É muito difícil você fazer
cobertura viva do solo, talvez tenha um que faça [...] essas empresas têm um nicho.
Elas sabem o que elas vendem. O que é fácil, elas produzem. Pra que vai comprar
de você? Pra que vai comprar um brócolis, uma salsa, alface? Todos eles têm seus
meeiros, suas terras (C45).
Para além de uma relação de produção com menor impacto ambiental ou mesmo da
preocupação com os produtores rurais, alguns consumidores enxergam que suas práticas de
compra de alimentos orgânicos refletem sintomas de mudanças mais amplas.
É um fator de transformação do homem. Do planeta também, um pouco (C12).
72
Barbosa & Campbell (2006, p. 25) destacam que “as relações de produção por trás de uma mercadoria são
partes integrantes daquilo que é oferecido no mercado em um processo de ‘comoditização’ e consumo crescente
das relações de produção”. Sobre comoditização das relações de produção, ver também Cochoy (2004) e
Wilkinson (2006).
104
Quem come orgânico por questões ambientais tem um outro tipo de pensamento
(C51).
Com seu consumo do produto orgânico, você não está envenenando o ambiente em
que vive, o ambiente do planeta. Você passa a ter uma melhor qualidade de vida no
ambiente em que vive, no ambiente do planeta e do seu próprio corpo, sua própria
matéria (C34).
Ao fazer essa opção, é uma opção de vida, porque além de cuidar bem do meu
corpo, eu também, dessa forma, como uma formiguinha, estou ajudando por um
planeta melhor. Por isso que te disse que é uma opção de vida, porque está presente
em mim 24 horas por dia, aonde quer que esteja (C6).
Quem tem essa coisa do alimento orgânico ou natural, propriamente dito, tem uma
forma de proceder perante o mundo que é menos nociva ao meio ambiente [...]
Normalmente, são pessoas mais pacíficas, pessoas engajadas com coisas mais
legais e que tem a ver, não só com a proteção do meio ambiente, mas do ser
humano como um todo (C40).
III.6.1. Auto-atribuição de responsabilidades socioambientais
Através das suas práticas de compra de alimentos orgânicos, alguns praticantes
parecem se identificar como atores importantes no processo de mudança social e ambiental.
Desta forma, eles se auto-atribuem responsabilidades e deveres (EDEN, 1993; PORTILHO,
2008) e, assim, o ato de comprar “se transformou num meio de conferir objetividade a certos
valores” (MILLER, 2002, p. 79).
Uma complexa transição de comportamentos relacionados com a responsabilidade
socioambiental parece estar em curso. Eden (1993) mostra como uma responsabilidade
percebida parece dar lugar a uma auto-atribuição de responsabilidades pelos indivíduos,
ativistas ou não. A responsabilidade socioambiental passa a depender cada vez mais da auto-
identificação de indivíduos que se percebem como agentes social e ambientalmente úteis ou
eficazes e agem de acordo com um comportamento utilitário. Isso constitui um problema
para a promoção da idéia de responsabilidade socioambiental na medida em que seus
promotores apelam ao público por meio dos mais altos valores morais, que seriam
enfraquecidos se forem reorientados no sentido da utilidade.
Neste sentido, o processo de ambientalização e politização do consumo e da vida
cotidiana se desenvolve na medida em que as escolhas diárias, e não a compra, passam a
envolver materializações cotidianas de valores políticos, morais e ecológicos. Com isso, estas
escolhas constituem um dos principais meios para o exercício concreto da solidariedade e da
ética da responsabilidade, sendo por meio delas que os indivíduos se sentem diretamente
responsáveis por melhorar o meio ambiente e a vida de outras pessoas.
Esta auto-atribuição de responsabilidades socioambientais pode significar um
aumento da autoridade dos consumidores sobre a vida cotidiana, já que buscam se apropriar
de conhecimentos, habilidades e competências perdidas para os especialistas (EDEN, 1993).
Ao perceber o significado e as conseqüências de suas ações no meio ambiente e em outros
grupos sociais, os nexos de fazeres e discursos das práticas de compra podem representar um
aumento dos sentimentos de cidadania e pertencimento a uma “comunidade imaginária” que
ajuda a tornar estas práticas mais úteis e significativas (PORTILHO, 2008).
Em sua pesquisa, realizada no início dos anos 1990, Eden (1993) identificou que o
reconhecimento pelo público se mostrava implícito e fracamente articulado, apesar do uso
105
explícito da responsabilidade socioambiental por parte do governo, das empresas e
organizações não-governamentais. Neste caso, os indivíduos ingleses reconheciam o que era
socialmente definido como comportamento social e ambientalmente aceitável, mas não
pareciam estar preparados para racionalizar os motivos pelos quais eram “a favor” do meio
ambiente.
A auto-atribuição de responsabilidade frente aos problemas socioambientais (EDEN,
1993; PORTILHO, 2008) aparece de forma explícita entre os consumidores de alimentos
orgânicos que observei e entrevistei em Nova Friburgo/RJ. Para eles esta responsabilidade é
“de todos nós”, das pessoas de um modo geral, ou seja, algo inerente a esfera individual, de
cada um dos seres humanos.
Primeiro, das pessoas individualmente. Das pessoas no dia-a-dia. Acho que a
questão governamental, ONG’s ou qualquer instituição que esteja relacionada com
isso, o papel deles é a educação do povo, porque vai mudar no dia-a-dia se cada
um praticar no seu dia-a-dia. Não adianta ter um monte de leis e implementações se
isso não fizer parte das pessoas (C23).
Somos nós os responsáveis e acho que, se cada um começar a fazer alguma coisa,
por isso que também penso que estou fazendo um pouquinho. Sei que é pouco, mas
se cada um fizer um pouquinho, acho que para, não digo resolver, mas amenizar
a situação que a gente está vivendo em relação à questão do meio ambiente (C14).
Seria de todas as pessoas existentes no planeta. Porque acho que passa pelo
individual, o individual vai criar o coletivo. Então, acho que a responsabilidade
não tem um órgão, não tem uma instituição que seria responsável por isso. Isso é
uma escolha individual (C12).
É de todos nós. Acho que é daquele que planta, daquele que compra, daquele que
consome (C48).
Apesar desta auto-atribuição de responsabilidades socioambientais, os consumidores
de alimentos orgânicos entrevistados também associam uma parcela importante de
responsabilidade pelos problemas ambientais àqueles que “detêm o poder”, em especial os
empresários, bem como governos e legisladores, colocados no poder pelo “povão”. Alguns
deles ainda evidenciam claramente o sistema capitalista como um modelo problemático que
reúne consumismo, gasto energético e busca do lucro, que possui grande responsabilidade
por esta problemática.
A responsabilidade acaba sendo de todos, mas, principalmente, de quem tem o
poder na mão. Acho que falta vontade de quem tem o poder, porque isso alimenta o
bolso dos poderosos, as indústrias grandes, quem manda no mundo. Mas acho que a
responsabilidade, de fato, é de todos (C46).
De todos, na medida em que as pessoas que optam por esse tipo de esquema são
colocadas no poder por todos, ou pela maioria, pelo menos nas eleições. Então, eles
são colocados no poder e têm como opção privilegiar esses grupos econômicos, que
normalmente são os grupos que patrocinam as campanhas políticas, mas são
colocados no poder pelo povão (C6).
A questão de comprar orgânico em vez de você comprar um produto com
agrotóxico, enfim, saber os impactos que as suas decisões m. Por mais que a
responsabilidade seja do governo, mas se ele não está fazendo, não vou deixar de
fazer por causa disso (C51).
106
A responsabilidade é nossa, totalmente nossa, das pessoas, de uma forma geral, do
sistema em que a gente vive, o sistema capitalista, que tem esse processo de
consumismo, de gasto energético, de lucro e o que visa isso (C14).
Entretanto, apenas uma pequena parcela destes consumidores enxerga, de um lado, a
existência de vários níveis de responsabilidade na questão dos problemas ambientais e, de
outro, uma auto-atribuição de responsabilidades total por meio de atitude restrita ao “fazer a
sua parte”, especialmente por meio de escolhas de consumo “ambientalmente corretas”.
Na verdade, tem vários níveis. Na minha participação pessoal, economizando água,
luz, não jogando qualquer tipo de lixo, me preocupando com o que vai acontecer
com a pilha do radinho ou do celular; essa é a minha preocupação pessoal, mas é
um grão de areia. Faço a minha parte, realmente faço a minha parte (C31).
É uma superpopulação das grandes cidades, ocupação urbana e a agricultura. A
agricultura com um desmatamento absurdo e a cidade com essa poluição
monstruosa. A agricultura, com certeza, é um agente de degradação em enormes
proporções, catastróficas proporções (C45).
São várias questões. Tem a questão que acho que é das próprias pessoas, falta
consciência nas pessoas. Porque uma pessoa que joga o lixo na rua está
contribuindo para isso. São coisas pequenas, mas a pessoa valor quando
uma coisa maior, um rio poluído, que aí a pessoa vai se preocupar (C29).
Os entrevistados consideram seu desempenho em práticas de compra de alimentos
orgânicos como um elemento importante para a resolução dos problemas ambientais
contemporâneos. Alguns deles condicionam a importância deste desempenho a um nexo de
preservação ambiental, enquanto outros enfatizam a informação como componente
fundamental para uma postura mais consciente e exercício de pressão.
Se comprasse mais orgânico, ia contribuir para menos degradação, mais saúde, com
certeza, porque ia vender mais, ia ter mais agricultores querendo plantar o orgânico.
Ou seja, para você ter água boa, você tem que ter mata, você tem que preservar,
conservar (C45).
Se só consumisse orgânico, acho que aí sim teria uma diferença. Uma pessoa que se
propusesse a consumir orgânico, o fato do consumo em si faria diferença. O fato
de a pessoa consumir alguns itens orgânicos, se ela o faz pensando na própria
saúde, com um objetivo bem individual, não acredito que faça diferença nenhuma
para o planeta. Se ela faz tentando exercitar essa capacidade consciente de
consumo, já faz toda a diferença (C12).
As pessoas mais esclarecidas vão se informando e vão se convencendo de que o
importante é voltar ao natural, até porque elas percebem que grande parte dos
problemas pelos quais elas estão passando e o mundo está passando tem a ver com
esse esquema furado do qual elas se convencem que devam se livrar (C6).
Acho que é uma grande responsabilidade, chega a desanimar. A gente tem um
poder de pressão [...] Acho que também tem todo um tempo que a gente está
vivendo. Vai chegar num momento que ou muda ou morre. Acho que esse é o
grande ensinamento que a natureza está mostrando pra gente (C9).
Cada ato nosso tem conseqüência, por mais que sejam pequenas ou grandes. Você
deixar de comprar o orgânico para comprar um produto não-orgânico, você está
deixando de fortalecer a idéia dos orgânicos (C51).
Neste sentido, um aspecto importante envolve a relação entre a informação que os
consumidores em geral possuem e a consciência necessária desempenhar práticas de compra
107
de alimentos orgânicos. A fraqueza desta relação aparece como uma restrição para que mais
pessoas pratiquem compra destes alimentos. Os consumidores apontam a necessidade de o
público em geral obter mais informações para assumir responsabilidades frente aos problemas
ambientais a partir de suas práticas de compra de alimentos.
Você precisa ter duas coisas: precisa ter a condição financeira e precisa ter a opção
cognitiva, conceitual de comprar melhor. O que é mais barato sai rapidamente;
agora, para comprar mais caro, você precisa parar e pensar: por que estou
comprando isso? Por que isso é bom? (C31).
A partir do momento que se tem conhecimento e informação sobre a coisa, acho
que é uma grande responsabilidade [...] quem tem acesso à informação, passa a ter
responsabilidade [...] parece que não é todo mundo que está preparado para
entender a informação, processar e colocar na vida. Até porque, nós não temos
condições mesmo. Acho que pode ser responsável por isso quem tem a informação,
a capacidade e poder de decidir, mas não decide [...] Esse cara é responsável pra
caramba, porque tem toda a condição de ser mais um consumidor que vá demandar
a produção da coisa orgânica, da coisa mais certa ecologicamente. Acho que o
consumidor que faz essa escolha está sendo responsável e está apoiando, está dando
um apoio a esse tipo de produção (C46).
Porém alguns consumidores optam por reagir através de um consumo que consideram
“o mais correto possível”, na medida em que percebem que a preocupação com a própria
saúde através da alimentação orgânica está intrinsecamente relacionada com as melhorias no
meio ambiente.
É reagir no consumo, em tudo [...] consumir um eletrodoméstico que consome mais
energia ou vai adquirir um veículo automotor que não tenha um catalisador, vou
consumir uma impressora que contenha tinta xica, vou consumir um tecido
sintético, vou ter um consumo desenfreado? A sociedade do descartável! (C34).
Um produto orgânico, por exemplo, não usa agrotóxico, procura ser feito de forma
a não ferir o ambiente. Normalmente, onde se planta orgânico, não houve
desmatamento, porque as áreas que são necessárias são cada vez menores. Então, à
medida que faço a opção por produtos orgânicos, ou seja, produtos mais corretos,
vai haver uma demanda menor por espaço e, consequentemente, vai haver menos
desmatamento, menos uso de agrotóxico (C40).
Desta maneira, o aumento da oferta aparece como principal entrave para aumentar a
demanda por alimentos orgânicos, que, para eles, constitui o principal fator de pressão para
imprimir mudanças no mercado agro-alimentar.
Se pudesse ampliar, acho que seria uma vitória de tudo isso que vivo vinte
anos. Então, se você tiver mais disponível e com o preço mais acessível, acho que
você tem até mais facilidade de propor a outras pessoas usarem também (C29).
A dificuldade é a oferta de produtos. A oferta é pequena (C31).
Mesmo com todas as dificuldades apresentadas, os consumidores de alimentos
orgânicos se sentem social e ambientalmente responsáveis em suas práticas.
Procuro questionar certas coisas que pratico. procuro evitar, me policiar nesses
problemas de embalagem. Procurar comprar o melhor, para não ter que comprar
duas vezes. Procuro me policiar, fazer o melhor possível para ser um consumidor
consciente (C34).
108
Quando passo de carro na estrada para a minha casa e vejo que alguém colocou
fogo no mato ali, eu vou sair do carro, vou brigar, vou tentar apagar o fogo ou
chamar alguém para apagar o fogo. Me sinto responsável (C23).
Pelo menos tento estar bem consciente na hora da compra tanto de medicamento
quanto da alimentação. Também tenho preocupação com o tipo de embalagem dos
produtos (C29).
Dentro desses degrauzinhos que já caminhei, e olho para trás e vejo como sou hoje,
realmente sou uma consumidora consciente, responsável (C46).
Entretanto, eles apontam dificuldades em exercer esta responsabilidade em todos os
momentos da vida cotidiana. Com isso, evidenciam forte auto-crítica e certa culpabilização
(EDEN, 1993), pois acreditam que “deixam a desejar” em algumas escolhas, com especial
destaque para a utilização de sacolas plásticas, uma prática que é declaradamente importante
para muitos deles, mas que, na maioria das vezes, é deixada de lado.
Poderia fazer mais. Por exemplo, quando saio de carro, até levo uma bolsa, por essa
questão das sacolas, pra ter uma sacola fixa para andar no carro, mas não consigo
pegar a sacola, eu esqueço. Acho que tenho que ser mais ligada nisso, que é uma
coisa que acho importante e que vou me sentir bem se fizer. Quando vou à feirinha,
sempre levo a sacola. Quando vou fazer outra compra, não lembro de levar [...] A
única coisa que não evito é andar de carro. Em Friburgo, a gente é muito mal
servido de transporte urbano. Infelizmente, fica difícil. Hoje poderia, porque vim
pra cá, tem como vir de ônibus e voltar, mas acho ônibus aqui em Friburgo muito
complicado. Fico irritadíssima (C14).
Não sou uma consumidora responsável [...] Teve um ano na minha vida em que
separei 100% do meu lixo, foi uma experiência muito legal. Tudo o que comprava,
quando chegava na minha casa ia para o lixo determinado. Foi uma loucura a minha
vida. Fiquei morando no meio de um lixo, foi horrível. Depois deu rato e não sabia
o que fazia. Foi numa época em que ninguém reciclava. peguei e joguei tudo
numa caçamba de lixo comum [...] Hoje vim a de casa. Quando tenho que ir na
cidade levar os meu filhos, tenho ido de carro ao invés de ir de ônibus. Eu sempre
fui de ônibus, mas a passagem está um absurdo. Se for de ônibus para a cidade,
gasto o dobro do que gasto indo de carro. A questão econômica pega muito hoje
para mim. Como é que pode o transporte coletivo ser mais caro que o transporte
individual? (C12).
Na medida do possível, sim. Não como deveria [...] Porque a gente ainda consome
coisas que a gente sabe que faz mal ao meio ambiente. Você ainda consome
plástico e a gente sabe que não é bom. Ainda falta muita coisa pra fazer. Até
porque, a preocupação não é que faça bem a mim, mas que faça bem ao planeta.
Como a gente está interligado, a gente faz parte do planeta. o adianta achar que
estou consumindo o orgânico e está fazendo bem para o meu corpo, mas se estou
consumindo plástico sei que está fazendo mal ao meio ambiente (C6).
A desejar. Por exemplo, no supermercado, eu mesmo pego a sacola. Às vezes,
estou de mochila e coloco na mochila. Às vezes você quer colocar na mochila, mas
o cara fez a gentileza de colocar a sacola. Hoje sei que a Nokia é a mais “verde”,
mas escolhi a Motorola. Às vezes, estou comprando o que não é orgânico e sei que
o meu dinheiro está indo. Então, está a desejar ainda (C50).
Não sou totalmente engajada. Por exemplo, para comprar uma roupa, eu não
poderia entrar numa loja, é uma coisa que faço cada vez menos, comprar uma roupa
pela marca. Nunca fiz isso. Mas, de repente, é mais fácil do que comprar o tecido,
dar para uma costureira fazer, vou estar ajudando ela e a família dela. Isso seria
mais engajado. Até a gente perceber da onde veio aquele tecido, é nacional ou não?
(C48).
109
Desta forma, a auto-atribuição de responsabilidades identificada nos nexos de fazeres
e discursos das práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ parece
constituir um contexto para a emergência de novas possibilidades de ação política frente aos
problemas ambientais na esfera da vida cotidiana e no consumo. Neste sentido, a seguir,
apresento uma caracterização detalhada das formas de ação política que estes nexos
configuram.
III.6.2. Ação política
A politização do consumo compreende “escolhas de consumo de produtores e
produtos com base em considerações políticas ou éticas” (STOLLE et ali, 2005, p. 246).
Neste sentido, certos consumidores politizados escolhem determinados produtos e produtores
na medida em que buscam mudanças institucionais ou, de forma cada vez mais intensa, das
práticas de mercado.
De forma individual ou coletiva, as escolhas destes consumidores politizados mostram
que estes percebem os produtos escolhidos em um contexto normativo de uma complexidade
social. Com isso, o declínio de grupos políticos tradicionais parece ser compensado por um
relativo aumento de importância de organizações informais, de ações individualizadas e de
redes de mobilização. Stolle et ali (2005)
destacam como exemplos deste aumento de
importância: (a) a participação em grupos locais informais, (b) a politização do consumo, (c)
as assinaturas regulares em petições on line e (d) a organização espontânea, e por vezes
individualizada, de protestos.
Neste sentido, um aspecto que merece destaque, inicialmente, são as dificuldades que
os consumidores encontram para ter acesso aos alimentos orgânicos. Ao contrário do que
possa parecer em função dos altos preços característicos destes produtos, remetendo à idéia de
estarem sempre disponíveis para compra, os consumidores tinham que superar outros
obstáculos para adquiri-los em Nova Friburgo/RJ, tais como a baixa oferta e variedade de
alimentos.
Desta forma, a superação destas dificuldades reforça a auto-atribuição de
responsabilidade destes consumidores frente aos problemas socioambientais e, assim,
caracteriza sintomas de um movimento de politização em uma esfera mais “individualizada”
(ALEXANDER, 1995; BECK, 2002).
Oferta e preço. Gosto de comer uma cebola orgânica, mas não posso porque é R$
9,90 três cebolas. Não vou comprar. Faltam coisas com preços acessíveis [...] Não
sou rico. Chega dia vinte e pouco do mês eu estou freando. A vida é muito
complicada (C45).
As opções ainda são restritas, acho. Aqui no interior a gente não tem muita opção,
não tem muita variedade, não tem muitos pontos de venda. O orgânico aqui é mais
caro do que o tradicional, o que leva algumas pessoas de menor poder aquisitivo a
não consumir (C6).
O fato de não ter em todos os lugares o orgânico, o fato de não ser o senso comum,
o fato de ser mais caro, faz com que você pense antes de consumir. Esse ato de
pensar antes de consumir, para mim, é o mais importante. Esse ato é o que faz a
diferença (C12).
A dificuldade é a oferta, que é pequena em relação aos outros alimentos. Isso é
realmente triste. Vovai a um supermercado e tem uma área de não sei quantos
110
metros de alimentos não-orgânicos e alguns centímetros quadrados de alimento
orgânico. A oferta é muito menor (C46).
Entre os consumidores de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ, as práticas
cotidianas constituem uma das principais formas de manifestação política em relação aos
problemas socioambientais. Este aspecto traduz os processos de ambientalização e politização
da vida cotidiana (PORTILHO, 2005) refletidos na racionalização do uso doméstico de bens e
serviços, como água, energia, automóvel, separação de resíduos e utilização de “sacolas
ecológicas”, entre outros (PORTILHO & CASTAÑEDA, 2009).
Acho que consumindo produtos orgânicos, fazendo a reciclagem do lixo, evitando
sair de carro: tem uma série de coisas que a gente pode fazer, e que são coisas
simples, que acho que para ajudar um pouco a melhorar a situação do planeta.
Economizando energia, economizando água, enfim. Dentro dessa perspectiva me
interessei também pela questão dos orgânicos, que está nesse processo de estar
ajudando de alguma forma [...] A questão das sacolas plásticas, que são uma das
maiores fontes poluidoras; as pessoas vão ao supermercado, vão à loja e milhões de
sacolas. Isso está contribuindo para aumentar o lixo, com certeza. E a questão do
agrotóxico, das pessoas não criarem consciência do quanto é prejudicial, como
afeta a saúde, de um modo geral (C14).
Os [resíduos] orgânicos, os animais consomem e os que eles não consomem, coloco
num lugarzinho lá de inorgânico. Separo vidro e lata, às vezes tem algumas latinhas
de cerveja, que vai para o [lixo] específico [...] Em relação à água, ninguém fica
escovando o dente com a água rolando. São coisas que a gente vai incorporando.
Onde a gente mora, o ônibus tem horário muito irregular. Então, depender de
ônibus é difícil. O que a gente procura fazer é coincidir os horários de todo mundo.
Todo mundo usa um carro só. Aqui na cidade, a gente anda a pé (C23).
Separo [lixo]. Não tenho carro. A forma de lavar a louça... Então são essas
pequenas coisas que a gente tem que passar essa prática. Por exemplo, ensabôo
tudo para depois, quando abrir a água, enxaguar. Isso uma maior economia,
do que ficar com a torneira aberta. Mas acho que ainda tem muito que avançar
nessa história (C9).
Praticamente não se usa lâmpada incandescente, é mpada fria, isso ajuda a
diminuir a temperatura, tem maior durabilidade, consome menos. Uma lâmpada
dessas tem três, quatro vezes, até dez vezes a vida de uma lâmpada incandescente
(C34).
Às vezes saio de um lugar que a luz está apagada e acendo sem querer. Sou muito
neurótica com torneira pingando (C51).
No que se refere ao engajamento e à militância em ONGs ambientalistas, entre os
entrevistados predominam os que não estavam engajados nestas instituições
73
. Eles destacam
a ausência de vínculos institucionais, especialmente quando dizem que não efetuam doações
ou mesmo que deixaram de doar dinheiro para ONGs.
73
Considerando os quinze entrevistados, três deles disseram fazer parte de ONGs ambientalistas. Destes, apenas
um exercia função de direção na Fundação Natureza, uma disse ser colaboradora da Oficina Escola Mãos de Luz
e o outro encontrava-se licenciado da União das Árvores porque exercia uma função pública gratificada. Os doze
consumidores de alimentos orgânicos restantes que entrevistei não faziam parte de qualquer organização
diretamente relacionada com as questões ambientais. Cabe ressaltar que uma entrevistada era presidente da
Associação Macaé de Cima, outra fazia parte do Rotary Club e uma terceira disse estar filiada ao Partido dos
Trabalhadores (PT). Da mesma forma, um dos entrevistados fazia parte do Grupo de Agricultura Orgânica de
Nova Friburgo, parte do movimento de agricultores orgânicos no estado do Rio de Janeiro.
111
Dôo trabalho, sou voluntário na ONG [...] Tendo a doar dinheiro para coisas que
vejo que estão funcionando. Não dôo meu dinheiro para o Greenpeace. Apoio o
que eles fazem, mas acho a estrutura absurda [...] Acho um absurdo dar vinte mil
reais para ser gerente de uma ONG ou gerente de projetos de uma ONG. Acho que
tem que ser uma coisa compatível (C50).
Doar dinheiro para essas ONG’s grandes, não. Só ali para a escolinha de Macde
Cima, mas acho que isso tudo também está ligado. Voinveste numa comunidade
que é parceira da conservação. Mas não nessas grandes, WWF... (C46).
Tinha uma época que tinha uma coisa do Greenpeace, que colocava o dinheiro todo
mês. Por um ano, um ano e pouco dei um dinheiro para eles, depois parei de dar
(C23).
Fiquei pouco tempo com o Greenpeace [...] fiz doação na ECO 92. Fui e
participei com eles, comecei a ser uma colaboradora durante alguns anos. Depois,
me distanciei. Hoje, procuro, em todo projeto que desenvolvo na minha área de
pesquisa com plantas medicinais, encontrar soluções para o meio ambiente, dentro
da minha atividade. Eu não estou ligada a nenhuma ONG, mas tenho projetos que
têm essa preocupação (C48).
Para além do engajamento em uma organização institucionalizada, todos os
entrevistados relatam uma participação ativa em benefício do meio ambiente. Neste sentido,
entre as novas formas de ação política, os abaixo-assinados virtuais surgem como importantes
repertórios de ação política destes consumidores.
Faço parte de dois grupos. É mais relacionado a questões que acontecem no mundo,
questões sociais que estão acontecendo no mundo: petição por causa do Zimbábue,
por causa da Faixa de Gaza, por causa de alguma coisa que acontece na Antártida...
então eles passam um petição, falam do que está acontecendo e a gente assina on
line (C14).
[assinei] bastante. Eu acho a internet fantástica para acessar esses movimentos. É
o mundo todo focado no mesmo assunto e marcando essa posição (C9).
Sim, sempre participo. Mas os que são organizados, esses aí que não são
organizados nem olho, porque é besteira (C50).
Em relação às pessoas comerem menos carne, para haver um desmatamento menor
[...] Eu entrei no www.mundoverde.com.br e apareceram aquelas pesquisas,
coloquei que votaria a favor de diminuir o meu consumo de carne vermelha, no
sentido de não favorecer a agropecuária, se é que se pode dizer assim (C40).
Cabe aqui destacar a percepção das práticas de compra de alimentos orgânicos em
Nova Friburgo/RJ como buycott. Mesmo que nenhum consumidor destes alimentos tenha
identificado suas práticas de compra com este termo, as observações efetuadas me levam a
concluir que estas práticas constituem uma inovadora forma de ão política na esfera do
consumo frente à crise ambiental. Para grande parte dos consumidores, a compra de alimentos
orgânicos materializa uma opção preferencial por um alimento que vai de encontro à
hegemonia dos padrões produtivos do sistema agro-alimentar global.
Em Nova Friburgo/RJ, o buycott parece ser reforçado em função de um contexto
adverso para a compra de alimentos orgânicos. Os consumidores que observei e entrevistei
apontam várias dificuldades para desempenhar estas práticas, tais como preços elevados,
baixa oferta e pouca variedade de produtos no mercado, bem como pouca e contraditória
informação sobre a alimentação orgânica. Desta forma, estas práticas materializam um caráter
112
político e de resistência que compõem uma obstinada preocupação destes consumidores, tanto
com a própria saúde, quanto com a “saúde do planeta”.
Os boicotes também são colocados em prática, mesmo que por uma parcela menor dos
entrevistados, sendo que alguns destacam a esfera do ciberespaço, mais particularmente da
rede de relacionamentos Orkut, assim como a frente contra os transgênicos e a rede de fast
food McDonald’s.
Nunca entro no McDonald’s para comprar nada, por exemplo. É uma postura que é
do dia-a-dia (C23).
fiquei sem comer produtos da Nestlé durante muitos anos. Até hoje não gosto de
algumas coisas da Nestlé. deixei de usar couro, não comprava nem sapato de
couro (C12).
Boicote a Unilever, mas uma coisa mais de Orkut. Tento não comprar nada da
Unilever. Tento não dar o meu dinheiro para certas empresas. Protesto é mais [na
esfera] virtual (C50).
Tento, na medida do possível, não comprar coisas transgênicas [...] Protesto contra
o McDonald’s, uma vez, no dia mundial do boicote ao McDonald’s. A gente queria
ter feito no dia do Mc Dia Feliz, aquele dia que ajuda as crianças com ncer, mas
ia ter pouca gente e as pessoas não têm consciência que as coisas que elas compram
lá também dão câncer. Então, não adianta dar dinheiro para o Instituto do Câncer se
o próprio McDonald’s está servindo comidas não-saudáveis (C51).
Isso não quer dizer que as ações coletivas desapareceram, como se nota nos discursos
de alguns deles:
A própria Fundação Natureza, aonde a gente atua. Tem a qualidade de vida das
pessoas que é o próprio Fórum Permanente de Direitos Humanos e o Movimento
Nacional de Direitos Humanos, que a gente participa. Contatos com algumas outras
organizações a nível nacional e internacional, tipo WWF, o Greenpeace, Fundação
O Boticário, SOS Mata Atlântica (C34).
O partido político que eu faço parte hoje é o PT. Só o fato de o Minc estar como
ministro do meio ambiente, acho que ajuda bastante na questão do meio
ambiente planetário [...] Já militei no CECNA [Centro de Estudos e Conservação da
Natureza], já fui membro do CECNA. Fui fundadora do Partido Verde, lá em
Niterói. participei de uma ONG que se chama Educaterra, que é uma ONG de
educação voltada para o meio ambiente. Acho que só (C12).
Sou presidente da Associação Macaé de Cima. Estou totalmente em prol do meio
ambiente. É um trabalho focado numa região, mas, da mesma forma que acho que a
minha prática individual reflete em todo o universo, quando estou ali tentando
defender a preservação, a conservação e a manutenção da saúde daquele local onde
vivo, e tem o ideal de transformar aquilo num modelo, num exemplo a ser seguido
em outras regiões tanto no entorno, em Nova Friburgo, como em todo o planeta,
porque ali é um exemplo de que se é possível viver dentro da natureza preservada e
em harmonia, sem estar degradando. Hoje em dia acho que tenho um trabalho
voluntário, que dá muito trabalho (C46).
Estou ligada à Oficina Escola Mãos de Luz, que é uma associação sem fins
lucrativos. E lá, dentro da proposta da Mãos de Luz, além de você estar
reconhecendo e preservando essa sabedoria do povo daqui, na questão da tradição
oral e da memória, a gente tem a possibilidade de reintegrar o ser humano ao seu
meio ambiente (C9).
113
Enfim, a transição do padrão de ações políticas do tipo radical-coletivistas para
aquelas romântico-individualistas (ALEXANDER, 1995) parece se materializar entre os
consumidores de alimentos orgânicos que observei em Nova Friburgo/RJ.
Não [participo de protesto, boicote, manifestação]. Mas produto que tem
transgênico, por exemplo, não como de jeito nenhum (C45).
Boicote não estou lembrando de nenhum em especial, mas com certeza já deixei de
usar algum produto por algum motivo (C31).
As coisas do dia-a-dia. A vivência da gente [...] Da minha prática do dia-a-dia, se
alguém me perguntar sobre alimentação, vou falar a minha visão. Não pertenço a
nenhuma ONG (C23).
Individualmente, participo bastante [...] não vou dizer nada direcionado, não tenho
um grupo de militância em meio ambiente. Acho que a minha conduta de vida
passa pela proteção ao meio ambiente [...] Hoje em dia a minha prática está bem
individual. Hoje consumo muito pouco. Procuro comprar muita coisa usada, tentar
reaproveitar. Gostaria que a minha casa fosse toda de reaproveitamento. Estava
com esse carro e queria escrever para o Luciano Huck, para pedir a ele para
transformar em um carro ecológico (C12).
Sou mais de fazer isso com naturalidade, do que ficar batalhando [...] a pessoa se
interessa e passo dicas e idéias, acho que o protesto fica mais aí, dentro do meu
convívio, não faço alvoroço. Mas, dentro do meu convívio, vou fazendo aos
pouquinhos (C29).
Me sinto na condição de uma formiguinha que, através dessas práticas, está dando
uma contribuição a si e ao meio ambiente. Na medida do possível, conversando
com pessoas (C6).
* * *
Neste capítulo, por meio das entrevistas realizadas, procurei mostrar como os nexos de
fazeres e discursos das práticas de compra compreendiam valores relacionados com a
preocupação socioambiental dos consumidores de alimentos orgânicos. Uma alteridade
cosmológica do ato de compra se faz presente entre os consumidores de alimentos orgânicos,
o que pode ser percebido pela importância que a preservação ambiental e a vida no campo
assumem para estes atores sociais.
A auto-atribuição de responsabilidade destes consumidores aparece com força.
Entretanto, isso não quer dizer que os consumidores de alimentos orgânicos assumam toda a
responsabilidade pelos problemas socioambientais. Apesar de explicitar certa culpa pelo fato
de não conseguirem ser “totalmente responsáveis”, eles identificam claramente a
responsabilidade de outros atores, identificados por eles como os “poderosos” (empresários,
governos) na configuração destes problemas. Desta forma, estes consumidores estabelecem
suas pontes com a cidadania na esfera do consumo (CANCLINI, 1995).
Em função desta responsabilidade percebida, os consumidores parecem adotar ações
políticas do tipo “romântico-individualista” (ALEXANDER, 1995), fazendo uso de posturas
que remetem à reflexividade social (BECK, 1997; GIDDENS, 1997). Neste sentido, as
práticas de compra de alimentos orgânicos levam a pensar em táticas de buycott, ou seja, de
uma preferência de compra politicamente correta e ambientalmente amiga. Além disso, estes
atores sociais acreditam participar ativamente da construção de soluções para os problemas
114
socioambientais globais por meio de repertórios como as práticas cotidianas de racionamento
de bens e serviços e os abaixo-assinados virtuais.
115
CONCLUSÕES
A pesquisa abordou variados desempenhos de práticas de compra de alimentos
orgânicos em Nova Friburgo/RJ. A análise dos nexos de fazeres e discursos destas práticas
indica valores e propósitos de participação política e auto-atribuição de responsabilidades
socioambientais entre os consumidores pesquisados. A posição destes alimentos nas
sociedades contemporâneas e a etnografia das práticas de compra assinalam que esta auto-
atribuição de responsabilidades é constantemente negociada, constituindo um elemento
fundamental na configuração de novas formas de ação política frente aos problemas
ambientais. Trata-se de ações individualizadas, desenvolvidas na esfera do consumo, como o
buycott, e da vida cotidiana, como a racionalização do uso de bens e serviços.
Nas sociedades contemporâneas, o entendimento da posição dos alimentos orgânicos a
partir da construção de um campo dialógico multidimensional sobre os problemas
socioambientais e a questão da sustentabilidade planetária envolve dimensões por vezes
conflituosas, tais como o mercado, o movimento social de agricultura alternativa, a
certificação e o imaginário dos consumidores. Atualmente, estes alimentos estão inseridos no
mainstreaming mercadológico, em função da intensa e crescente comercialização pela via dos
supermercados e da absorção de padrões agroindustriais, aspectos que são objeto de uma
crítica agroecológica mais radical. Apesar disso, o movimento agroecológico mantém um
dinamismo, que pode ser verificado pela manutenção de espaços de comercialização como as
feiras orgânicas certificadas e os canais de venda direta, apesar da, cada vez mais evidente,
hegemonia dos supermercados, especialmente nos grandes centros.
Considerando o contexto de uma sociedade de risco global (BECK, 2002) e o
imaginário dos consumidores, os alimentos orgânicos representam uma relação de produção
sustentável, saudável, solidária, ética e responsável, entre outras. Logo, por meio das práticas
de compra destes alimentos, os consumidores acreditam contribuir para evitar os riscos da
produção escondida e misteriosa das indústrias agro-alimentares ou dos alimentos produzidos
pela agricultura intensiva convencional, com base na utilização de pesticidas e agrotóxicos.
A medicalização, a saudabilidade, a valorização de origem e a gastronomização são
tendências que perpassam o consumo de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ. Os
discursos dos consumidores pesquisados refletem estas tendências da alimentação
contemporânea de maior impacto na sociedade brasileira (BARBOSA, 2009), analiticamente
interligadas pelo elemento de valorização de origem e suas três dimensões a fruição, a
politização e a rastreabilidade.
Desta forma, os processos de ambientalização e politização do consumo e da vida
cotidiana se materializam nas práticas de compra de alimentos orgânicos, tendo em vista que,
por meio da compra, os consumidores buscam incentivar relações de produção que
proporcionam um impacto reduzido no meio ambiente, caracterizando a comodotização da
produção orgânica. Além disso, esta opção preferencial de compra de um alimento (buycott)
tem sua faceta de politização reforçada em função da reflexividade social sobre os riscos
alimentares contemporâneos à saúde humana.
116
O trabalho de campo realizado em Nova Friburgo/RJ indicou as práticas de compra de
alimentos orgânicos como elemento inerente ao abastecimento rotineiro dos lares dos
consumidores adeptos. Este aspecto foi confirmado pelo desempenho semanal e contínuo
nestas práticas, na maioria dos casos observados. Como esperado, os altos preços destes
alimentos foram destacados como problema e obstáculo pelos consumidores pesquisados. No
entanto, além do fator preço, característico dos alimentos orgânicos, as dificuldades de
desempenho da compra envolvem aspectos como a baixa oferta e a pouca variedade de
produtos ofertados.
Além disso, supermercados de menor porte e afastados das metrópoles como os
locais de aquisição que freqüentei em Nova Friburgo/RJ não parecem enxergar os
alimentos orgânicos como um fator de alta rentabilidade e valor agregado, tendo em vista que
estes produtos ficam praticamente escondidos e/ou mal posicionados nas gôndolas. Todo este
contexto adverso para o desempenho das práticas de compra tem seu contraponto na
persistência e obstinação dos consumidores no sentido de superar obstáculos para comprar
alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ. Com isso, as dificuldades encontradas pelos
consumidores aparecem como mais um sinal de politização destas práticas na medida em que
não bastava ter condições financeiras para praticar a compra, mas também desenvolver táticas
específicas para comprar estes produtos.
Como muito bem identificado por Miller (2002) e Portilho (2009), uma dupla
alteridade também marca as práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova Friburgo/RJ.
Apesar do desempenho individualizado dos consumidores na compra, esta não é praticada de
forma isolada, como pressupõe uma abordagem da economia neoclássica, pois se volta para
outras pessoas do círculo de relações pessoais destes consumidores. Da mesma forma,
cosmologicamente, a compra também é dirigida pela possibilidade de contribuir com a
preservação do meio ambiente e a “melhoria do planeta” e com menos intensidade da
vida dos produtores rurais. Esta dupla alteridade caracteriza as práticas de compra de
alimentos orgânicos e marca, de forma crucial, o desenvolvimento dos processos de
ambientalização e politização no contexto pesquisado. Desta forma, a análise dos nexos de
fazeres e discursos das práticas de compra confirma ambas as hipóteses desenvolvidas na
introdução desta pesquisa.
A auto-atribuição de responsabilidades frente aos problemas socioambientais é
evidente entre os consumidores de alimentos orgânicos pesquisados em Nova Friburgo/RJ. Os
nexos analisados mostram que a responsabilidade é de “todos nós”, ou seja, algo que deveria
ser inerente a cada um dos seres humanos que vivem no planeta. Isso faz com que eles se
sintam responsáveis pela preservação ambiental ao praticar o buycott, por meio da compra de
alimentos orgânicos, ou racionalizar o uso cotidiano de bens e serviços.
Entretanto, estes agentes também entendem que uma parcela significativa, e talvez até
maior, desta responsabilidade é daqueles que “detém o poder”, compreendendo um conjunto
que envolve as empresas transnacionais, cadeias de lojas, empresários, governos e até, como
não poderia faltar, o sistema capitalista. Além disso, se mostram culpados, exercendo uma
forte auto-crítica quando verificam que não conseguem ser tão responsáveis quanto gostariam.
Os consumidores não incorporam totalmente as responsabilidades socioambientais que
os governos, as ONGs, as empresas, a opinião pública e a mídia, de uma forma geral, lhes
imputam. Eles negociam estas responsabilidades e se consideram, em grande parte, co-
responsáveis (HALKIER, 1999 apud PORTILHO, 2005). Ao destacar que podem “fazer a sua
117
parte”, mas não irão resolver os problemas socioambientais sozinhos, eles demonstram um
misto de posturas preocupadas e pragmáticas, como apontado por Halkier (2004).
A importância que os consumidores conferem ao acesso à informação como
instrumento de uma tomada de consciência que eles consideram necessária para desempenhar
práticas de compra de alimentos orgânicos reforça a saída que Portilho (2005) vislumbra para
a “crise ambiental”. Apesar de reconhecer a importância das ações individualizadas cotidianas
nos processos de ambientalização e politização do consumo e da vida cotidiana, a autora
destaca que a eficácia global destes processos depende de um transbordamento comunicativo
entre as micro-esferas cotidianas capaz de construir uma esfera pública globalizada que
transcenda o tradicional e, cada vez mais, ineficiente diálogo transnacional e
interinstitucional, incorporando novos atores e redes não institucionalizadas.
Por fim, a ação política dos consumidores frente aos problemas socioambientais
contemporâneos compreende repertórios que mesclam ações inovadoras e tradicionais de
posicionamento político.
Entre as ações inovadoras, de cunho mais individualizado na micro-esfera do
cotidiano, as práticas de compra de alimentos orgânicos configuram um exemplo de buycott.
Estas práticas constituem uma ação política individualizada, desencadeada na esfera do
mercado, em função dos riscos da alimentação contemporânea para a saúde humana e da
crença dos consumidores em contribuir para a preservação ambiental e a vida no campo ao
comprar estes alimentos. Entre os consumidores de alimentos orgânicos, as práticas cotidianas
de racionalização do uso de bens e serviços como água, energia, e automóvel; de separação de
resíduos; e de utilização de sacolas ecológicas são mencionadas com bastante intensidade.
O posicionamento político por meio da assinatura de abaixo-assinados on line
constitui um repertório que posiciona a internet como proeminente esfera de participação
ativa em benefício do meio ambiente e da solidariedade nas sociedades contemporâneas. Por
outro lado, os boicotes foram citados menos intensamente, apontando para o fato de que este é
um repertório de protesto pouco usado nas mobilizações brasileiras na esfera do consumo.
Ainda assim, os consumidores destacaram alguns boicotes contra redes de fast food,
multinacionais e produtos que usam sementes transgênicas.
A atuação em instituições como ONGs, associações, governos, clubes de serviço e
partidos políticos também pode ser encontrada por meio das entrevistas em uma pequena
parcela dos consumidores de alimentos orgânicos pesquisados em Nova Friburgo/RJ. Desta
forma, a pesquisa confirma a transição dos padrões de ão política dos movimentos radicais-
coletivistas para ações romântico-individualistas, caracterizando um período neo-moderno
(ALEXANDER, 1995).
No entanto, a análise das práticas de compra de alimentos orgânicos em Nova
Friburgo/RJ como parte integrante dos processos de ambientalização e politização do
consumo e da vida cotidiana aponta para o estabelecimento de pontes entre consumo e
cidadania (CACLINI, 1995). Desta forma, um novo período de engajamento público coletivo
(HIRSCHMAN, 1983) pode ser iniciado, desde que as micro-esferas cotidianas se
comuniquem, provocando a emergência de novas ações comunicativas em uma dinâmica e
renovada esfera pública global (PORTILHO, 2005).
118
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123
ANEXOS
Anexo A: Localização geográfica e divisão distrital de Nova Friburgo/RJ
Anexo B: Consumidores de alimentos orgânicos observados nos locais de aquisição na
primeira fase do trabalho de campo
Anexo C: Roteiro de entrevista
Anexo D: Fotos do trabalho de campo
124
Anexo A - Localização geográfica e divisão distrital de Nova Friburgo/RJ
125
Anexo B Consumidores de alimentos orgânicos observados nos locais de aquisição na
primeira fase do trabalho de campo
Código
Breve desrcrição da interação e dos consumidores
C1
Não consome com muita freqüência, apesar de reconhecer a importância desta
opção de alimentação. o conhecia, é professor do curso de Geografia da
Faculdade Santa Dorotéia e funcionário do IPRJ/UERJ. Aproximadamente 40
anos.
C2 Contato breve, muita resistência, alegando falta de tempo.
C3
Foi muito atenciosa, disse comprar pela saúde de sua família. Pediu que entrasse
em contato em fevereiro de 2009. Parece disposta a aceitar todo processo, tenho
dúvidas em relação ao acompanhamento do preparo das refeições apenas.
Aproximadamente 40 anos. Conheci no Tutti Frutti.
C4
a conhecia de uma reunião da Agenda 21 em Lumiar, encontrando-a no Plantar
e Colher, mostrou-se disposta a participar de todo o processo de pesquisa. Passou
a impressão de entender a alimentação de forma mais ampla que apenas a
melhoria da saúde. Aproximadamente 50 anos.
C5
Consome somente orgânicos, parou de comer carne, compra frequentemente,
mostra preocupação com a questão ambiental associada ao seu consumo de
alimentos. Aceitou a abordagem de pesquisa. Pode indicar mãe, vizinha e
professora de yoga. Entre 20 e 30 anos. Já a conhecia, tendo encontrado no ônibus.
C6
Principal comprador da casa, casado, funcionário público do Poder Judiciário. Se
dispôs a participar da pesquisa. Entre 30 e 40 anos. compra orgânicos. Conheci
no Cavalo Preto. Foi entrevistado.
C7
Pode ser um casal a ser entrevistado, disse consumir orgânicos e me conhece
muito superficialmente. Aproximadamente 50 anos. Aceitou participar da pesquisa
quando encontrei-os na loja Plantar e Colher.
C8
Médico, foi indicado pelo atendente da loja Plantar e Colher. Entrei em contato
com ele, reside em São Pedro da Serra, a princípio aceitou participar da
abordagem de pesquisa, com dificuldade de precisar a sua freqüência de compras.
C9
Foi muito atenciosa ao telefone, se dipôs a participar de todo o processo de
pesquisa, é professora aposentada do município do Rio, mora há 15 anos em
Lumiar e uma das razões de sua mudança foi a existência de um movimento
agroecológico e de alimentação natural que existia no município. Indicação do
atendente da loja Plantar e Colher. Foi entrevistada.
C10
Pesquisador da Embrapa em Nova Friburgo, tem tese de mestrado sobre o perfil
dos consumidores de orgânicos pela UFRuralRJ, na área de agronomia. Se
mostrou disposto a dialogar, e até participar da pesquisa. Tenho dúvidas. Entre 40
e 50 anos. Encontrei na Feira Orgânica do Cônego.
C11
Empresária, proprietária da Reserva Fólio, empresa que comercializa cosméticos
orgânicos. Mostrou-se disposta a participar da pesquisa, exceto o
acompanhamento do preparo, pelo horário tardio. Entre 40 e 50 anos. Conheci na
Feira Orgãnica do Cônego.
C12
Professora de Tai-Chi, disse estar limitando as compras de orgânicos por questões
econômicas, mas mostrou-se disposta a participar da pesquisa. Já me conhece,
temos empatia. Tem entre 40 e 50 anos.
126
C13
Casal que conheço e se mostrou disposto a participar quando encontrei-os na Feira
Orgânica do Cônego. Ela é funcionária pública do TJ, respondendo pela EMERJ
em Nova Friburgo, enquanto ele é médico e dirige o Instituto Girasol, que é
voltado para jovens com problemas com uso de drogas. Ela tem entre 40 e 50 anos
e ele tem aproximadamente 60 anos.
C14
Conheci na Feira Orgânica do Cônego, através de observação. É geógrafa, mora
no Cônego, disse comprar frequentemente, encheu duas sacolas de compras.
Aceitou participar do processo de pesquisa. Tem aproximadamente 30 anos. Foi
entrevistada.
C15
Trabalha com adequação para certificação de propriedades rurais. Disse que passa
a semana fora de Nova Friburgo, mas aceitou participar do processo de
certificação. É agrônoma, tem entre 20 e 30 anos.
C16
Funcionária pública da Previdência Social em Cordeiro (RJ). Encontrei-a algumas
vezes posteriormente à Feira de Orgânicos do Cônego e trata-se de um caso
bastante interessante que acredito posso ser classificada como radical. Aceitou
participar do processo de pesquisa. Entre 50 e 60 anos
C17
Conheci durante uma palestra sobre cosméticos orgânicos na Feira Orgânica do
Cônego. É aposentada e mostrou-se disposta a participar da pesquisa.
Aproximadamente 60 anos.
C18
Trata-se de um casal, ele é músico e ambos toparam participar da pesquisa. Entre
40 e 50 anos. Também conheci na Feira Orgânica do Cônego.
C19
Pediu que ligasse após janeiro, mas aceitou participar da pesquisa, disse que sua
filha também é adepta, fez referência à questão das informações, pois "não sabe
mais o que come". Entre 50 e 60 anos. Conheci na Casa Friburgo.
C20
Casal que foi abordado na Casa Friburgo, disse que sempre compram juntos,
mostraram uma certa resistência à abordagem da pesquisa, mas deixaram seus
contatos.
C21
Pode ser considerada uma radical (pelo menos é considerada uma "chata" pelos
comerciantes. Diz ser macrobiótica, frequenta academia, tem aproximadamente 60
anos. Depois de muita resistência vencida, aceitou disponibilizar seus contatos. É
um tipo interessante de ser entrevistado. Conheci praticando Tai-Chi na Feira
Orgânica do Cônego, mas estreitei relação no Horto Chalet das Plantas.
C22
Japonesa; comercializa produtos no Chalet das Plantas, disse também consumir o
que planta. Pode ser um tipo interessante, pois também possui um restaurante
(Recanto Sukará), que fica na zona rural de Nova Friburgo. Não falei sobre a
participação dela na pesquisa. Tem entre 50 e 60 anos.
C23
Médica homeopata, foi citada por outras pessoas como sendo uma pica
consumidora orgânica. Encontrei-a no Chalet das Plantas e vim a reconhecer que é
mãe de um conhecido meu (João). Tem entre 50 e 60 anos e aceitou partiicipar da
pesquisa.
C24
Alegou falta de tempo, mas aceitou participar dentro de seus limites, também
conheci no Chalet das Plantas, tem entre 50 e 60 anos.
C25
Trata-se de uma nissei, tem entre 50 e 60 anos e também conheci no Chalet das
Plantas, foi muito atenciosa, disse que comprava orgânicos para preservar o sabor.
Parece que prepara sushis. Aceitou participar da pesquisa.
C26
Aceitou a abordagem, e disse consumir orgânicos pelo seu estilo de vida
"natureba". Comprou uma cesta reservada no Chalet das Plantas. Entre 40 e 50
anos.
127
C27
Conheci-o no Superpão, viúvo, é economista, administrador e aceitou a
abordagem da pesquisa, disse somente comprar e com freqüência. Na ocasião
somente adquiriu uma cenoura...Entre 60 e 70 anos.
C28
Revisora de livros e teses, tem entre 60 e 70 anos, disse que não compra sempre os
produtos, mas que tem alguns cultivos na casa que tem em Mury. Disse que estava
disposta a participar, mas que eu teria que lembrá-la novamente quando entrasse
em contato.
C29
Foi apresentada por outra consumidora, de forma rápida, na Feira da Vila Amélia.
Creio que não entendeu o propósito da pesquisa, mas parece consumir bastante
tempo. Tem entre 40 e 50 anos. Foi entrevistada.
C30 Também apresentada por outra consumidora. Tem entre 50 e 60 anos.
C31
Conheci na Feira da Vila Amélia, mostrou-se aberta ao diálogo, mas um tanto
reticente quando se falou em contato posterior. Mostrou ser do tipo que quer
"salvar o planeta". É um tipo interessante. Aproximadamente 50 anos. É
empresária do setor de segurança privada. Foi entrevistada.
C32
Culinarista vegano, conheci na Feira Orgânica do Cônego, tendo reencontrado na
Feira da Vila Amélia. Aceitou interagir. Tem entre 30 e 40 anos.
C33
Extencionista da EMATER em Nova Friburgo. Tem entre 50 e 60 anos, contato de
relações pessoais. Pede à Jovelina do Sítio Cultivar para que entregue orgânicos
"processados". Ainda não o contatei para participar da pesquisa.
C34
Um casal que conheço desde que cheguei em Nova Friburgo, logo, com bastante
proximidade, ele sempre atuando pela Fundação Natureza e o FOPEDH; ela,
depois de sair da ONG Ser Mulher, atua como presidente do CONSEA em Nova
Friburgo. Ari tem aproximadamente 70 anos e Laura aproximadamente 60 anos.
Aceitaram a abordagem da pesquisa. Pode ser uma opção para a fase de testes. Foi
entrevistado como segundo pré-teste, posteriormente aproveitado para análise de
dados.
C35
Professora do curso de História da Faculdade Santa Dorotéia, me conhece faz
três anos, se mostrou disposta a participar, mas não consome com freqüência. Tem
entre 50 e 60 anos.
C36
Jornalista, conheci em uma campanha política que participei. Mencionou que
não compra mais tanto os alimentos orgânicos pelo alto custo dos mesmos, mas se
mostrou disposta a participar. Tem entre 40 e 50 anos.
C37
Trabalhou comigo em uma campanha política que participei. Tem entre 50 e 60
anos e se mostrou disposta a participar desde que comentei com ela sobre meu
tema de mestrado, por volta de agosto de 2008. Parece consumir com freqüência.
C38
Foi um dos primeiros técnicos da ABIO, além de ter sido proprietário do Natureba
até meados da década de 1990. Parece que ainda consome orgânicos.
C39
Grande amiga, que consome com frequência, aceitou participar da fase de teste.
Faz doutorado na COPPE/UFRJ, Engenharia Civil, conheci durante a Agenda 21.
Foi entrevistada como primeiro pré-teste, descartado.
C40
Garçom, aproximadamente 40 anos, me conhece, consome orgânicos com
frequência semanal, aceitou participar da pesquisa. Foi entrevistado.
C41
Empresária, dona de loja. Tem entre 40 e 50 anos e adquire na Feira Orgânica do
Cônego. Mostrou interesse.
C42
Administradora, aproximadamente 30 anos e adquire na Feira Orgânica do
Cônego. Disse que aceita participar da pesquisa.
C43
Dono de loja, consome orgânicos e adquire na Feira Orgânica do Cônego. Tive
uma interação maior com ele, aceitou participar. Tem aproximadamente 50 anos.
128
C44
Tem 35 anos (dito pela própria), não consome regularmente, mas disse que aceita
participar, de forma até empolgada. Conheci na Feira Orgânica do Cônego.
C45
Trabalha com certificação de orgânicos, conheci na Feira Orgânica do Cônego,
tem aproximadamente 40 anos, e aceitou participar do processo de pesquisa. Fica
mais tempo no Rio de Janeiro. Foi entrevistado.
C46
Tem entre 40 e 50 anos, conheci na Agenda 21, mora entre Macaé de Cima e Rio
de Janeiro, foi indicada por outra consumidora. Foi entrevistada.
C47
Casal, sendo que ele trabalhou comigo, mas foi a esposa dele que disse, de
forma empolgada, que consome orgânicos, e que conhece várias pessoas para
indicar. Ambos em torno dos 30 anos.
C48 Indicação de uma consumidora entrevistada. Foi entrevistada.
C49 Indicação de uma consumidora entrevistada. Foi entrevistado.
C50
Conheci no Orkut, em um debate sobre vegetarianismo e o futuro do planeta. Foi
entrevistado.
C51
Indicação de um consumidor entrevistado. Consome 4 anos, tem 17 anos. Foi
entrevistada.
C52 Esposa de um consumidor entrevistado.
C53 Namorada de um consumidor entrevistado.
129
Anexo C – Roteiro de entrevista
cpda
PROJETO DE PESQUISA - MESTRADO
Ambientalização e politização da vida cotidiana: uma etnografia do engajamento em práticas de
consumo de alimentos orgânicos
Roteiro de entrevista semi-estruturada a ser aplicada com consumidores de alimentos orgânicos
APRESENTAÇÃO
Sou sociólogo e estou fazendo uma pesquisa para meu projeto de mestrado em Ciências
Sociais, que iniciei em março de 2008 no CPDA/UFRRJ. Esta entrevista servirá, juntamente com
outras tantas, para elaborar minha dissertação que deverá ser defendida em fevereiro de 2010.
O objetivo da pesquisa é compreender as práticas de consumo de alimentos orgânicos na vida
cotidiana ao buscar o entendimento sobre quem são esses(as) consumidores(as), porque consomem
alimentos orgânicos, seus estilos de vida e perspectivas perante a sociedade em que vivem, bem como
de sua visão sobre o consumo deste tipo de alimentos.
Interessante destacar que as pesquisas sobre alimentos orgânicos, em sua maioria, relacionam-
se à produção, certificação, apoio ao pequeno produtor e até à comercialização ou o perfil do público
consumidor. Entretanto, pouca atenção se ao campo das práticas de consumo e do comportamento
do consumidor. Por isso, é importante que o(a) Sr. (a) se sinta totalmente à vontade para responder
exatamente aquilo que pensa e como prefere agir. O/A Sr.(a) não é obrigado(a) a responder o que não
quiser, ou seja, se desejar pular ou deixar de responder uma pergunta, poderá fazer sem problemas.
Além disso, o/a Sr.(a) pode mencionar outros temas que julgar importante, dentro da temática da
pesquisa. Enfim, gostaria que você se sentisse a vontade.
Os dados desta pesquisa serão utilizados apenas por mim e o confidenciais. Isso significa
que seu anonimato será preservado e que, em hipótese alguma, será citado o seu nome. Suas respostas
serão utilizadas sempre em conjunto com as respostas de outras pessoas que também aceitaram
participar da pesquisa.
Vale dizer que, no início desta pesquisa, freqüentei os pontos de venda de orgânicos entre
dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Nesta fase inicial, conheci 15 (quinze) pontos de venda de
alimentos orgânicos em Nova Friburgo (RJ), entre supermercados, mercados, hortifruti, lojas
especializadas em produtos naturais, feiras, delicatessens e padarias. A fase atual da pesquisa envolve
entrevistas com as pessoas que conheci nestes pontos de venda.
A metodologia de pesquisa adotada não se baseia em questionários tradicionais, mas em uma
entrevista que se assemelha a uma conversa informal. Esta técnica de coleta de dados possibilita maior
espontaneidade e naturalidade à conversação, já que não possui uma seqüência pré-definida de
perguntas, mas apenas tópicos gerais. Além disso, o uso do gravador permite que eu preste mais
atenção ao que você fala do que se procurasse anotar toda sua fala durante o tempo da nossa interação.
Por isso, peço licença para usar o gravador.
1. Iniciação ao consumo de alimentos orgânicos:
Faça um histórico da sua relação com os alimentos orgânicos, conte como você começou a
consumir esses produtos.
Por que?
Há quanto tempo?
Alguém / algo o/a influenciou?
Principal motivo?
Freqüência? (só orgânicos; às vezes orgânicos, mas também convencionais)
Quais alimentos? (mostrar Anexo I)
Que qualidades associa aos alimentos orgânicos?
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Quais benefícios percebe?
2. Práticas de consumo:
Fale sobre o ato de comprar os alimentos orgânicos.
Freqüência de compra?
Com quem faz compras?
Onde compra? X Onde prefere comprar?
Sempre encontra os alimentos que procura?
Fale sobre os usos que você faz dos alimentos orgânicos.
No preparo das refeições?
Que pratos são preparados?
Quem prepara esses pratos?
Existem conflitos com sua família por conta da preferência pelos alimentos
orgânicos?
Fale sobre os momentos das refeições.
Quem compartilha estes momentos?
Os alimentos orgânicos estão presentes em todos os dias da semana?
Os alimentos orgânicos estão presentes em todas as refeições?
Os alimentos orgânicos estão presentes em ocasiões especiais, como natal,
aniversários, páscoa, entre outras?
Em que parte da casa ocorre?
3. Confiança nos alimentos orgânicos:
Que diferença existe entre os alimentos orgânicos e os outros?
Como sabe que é orgânico?
Conhece algum sistema de certificação? (mostrar Anexo II)
O que significa certificação?
4. Responsabilidade socioambiental:
Caso a relação entre os alimentos orgânicos e a questão ambiental não apareça: qual a
relação entre a produção e o consumo de alimentos orgânicos e o meio ambiente?
De quem é a responsabilidade pela resolução dos problemas ambientais?
Qual é o papel dos consumidores em relação aos problemas ambientais?
Os produtos orgânicos são ou deveriam ser um direito dos consumidores?
Você já ouviu falar em consumo verde, consumo responsável ou consumo consciente?
Sabe o que é?
Como você vê?
Essas idéias têm conseqüências concretas para a melhoria dos problemas
ambientais e sociais?
Você se sente um consumidor responsável?
Como você obtém informações sobre alimentação orgânica?
Você acredita ter informações suficientes para fazer as melhores escolhas
de consumo alimentar?
Que dificuldades você encontra em ser um consumidor de alimentos
orgânicos?
Qual a importância do consumo de alimentos orgânicos para a preservação ambiental?
Qual a importância do consumo de alimentos orgânicos para a vida no campo?
Você participa de alguma atividade em prol do meio ambiente?
Engajamento e militância em ONGs ambientalistas;
Doação a essas instituições;
Participação em manifestações, protestos, boicotes, manifestações políticas;
Abaixo-assinados pela internet;
Separação de lixo para reciclagem;
Leituras sobre o tema;
Consumo responsável;
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Hábitos cotidianos: trocar as lâmpadas, apagar a luz, fechar a torneira,
evitar andar de carro etc.
5. Você tem alguma outra questão que acredite ser relevante e que não foi perguntada?
DADOS PESSOAIS
Se possível, gostaria que você informasse alguns dados pessoais básicos que possam ajudar no
levantamento do perfil dos consumidores de alimentos orgânicos da amostra de pesquisa.
Nome: _____________________________________________
Gênero: ( ) feminino ( ) masculino
Faixa etária: ( ) menos de 20 ( ) 20 a 30 ( ) 30 a 40 ( ) 40 a 50 ( ) mais de 50
Escolaridade:
( ) 1º grau ( ) incompleto ( ) completo
( ) 2º grau ( ) incompleto ( ) completo
( ) 3º grau ( ) incompleto ( ) completo _______________________________
( ) pós-graduação __________________________________
Profissão: _________________________ Religião: _________________________________
Renda familiar: _________________________________________
Estado civil: ( ) solteiro ( ) casado/união estável ( ) separado/divorciado
Filhos: ( ) sim – quantos: ______ ( ) não
Quantas pessoas moram na residência:
( ) 1 ( ) 2 ( ) 3 ( ) 4 ( ) mais de 4
Tipo de residência: ( ) Casa ( ) Apartamento ( ) Outros
Residência: ( ) Própria (financiada ou quitada) ( ) Alugada
Qual o gasto médio semanal com compras de alimentos orgânicos? _______________________________
ENCERRAMENTO
Você conhece outras pessoas que também consomem alimentos orgânicos e que aceitariam
participar deste projeto através da sua indicação?
As práticas sociais de consumo consistem nas motivações, crenças e valores que levam um
indivíduo a consumir um determinado produto e compreendem desde a ida a um local de aquisição, o
ato de compra e as escolhas inerentes a cada uma dessas práticas; no caso específico dos produtos
alimentícios, o preparo da comida e o momento das refeições também são práticas sociais de consumo.
Como parte da pesquisa, quero verificar a sua disponibilidade para que eu lhe acompanhe nessas
práticas cotidianas.
Agradeço sua disponibilidade em colaborar com este projeto de pesquisa e espero que possa
comparecer a defesa do mesmo, muito provavelmente em fevereiro de 2010.
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Anexo D – Fotos do trabalho de campo
Foto 1: Feira Orgânica do Cônego
Foto 2: Venda direta no Challet das Plantas
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Foto 3: Exposição dos alimentos orgânicos no Cavalo Preto, em meio aos convencionais,
sem sinalização específica. Os orgânicos estão embalados em plástico, expostos na prateleira
superior.
Foto 4: Exposição dos alimentos orgânicos na Casa Friburgo, mesmo padrão, misturado e
sem sinalização. Os orgânicos estão embalados em plástico, expostos no canto esquerdo da
foto.
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Foto 5: As bandejas de alimentos orgânicos processados, sem qualquer estratégia de
promoção de venda, “escondidos”.
Foto 6: Na loja Plantar e Colher, os alimentos orgânicos se posicionam no canto e no chão.
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Foto 7: O selo dos alimentos orgânicos produzidos pelo Sítio Cultivar, certificado pela Abio.
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