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MILTON STANCZYK FILHO
À LUZ DO CABEDAL: ACUMULAR E TRANSMITIR BENS
NOS SERTÕES DE CURITIBA (1695 – 1805)
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História, Setor de Ciências
Humanas Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Luiza
Andreazza
CURITIBA
2005
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MILTON STANCZYK FILHO
À LUZ DO CABEDAL: ACUMULAR E TRANSMITIR BENS
NOS SERTÕES DE CURITIBA (1695 – 1805)
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em História, Setor de Ciências
Humanas Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Luiza
Andreazza
CURITIBA
2005
2
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TERMO DE APROVAÇÃO
À LUZ DO CABEDAL: ACUMULAR E TRANSMITIR BENS NOS SERTÕES DE
CURITIBA (1695 – 1805)
Milton Stanczyk Filho
Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em
História, Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades, da Universidade Federal do
Paraná – UFPR, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de
Mestre.
_________________________________________
Profª. Drª. Maria Luiza Andreazza – UFPR (Orientadora)
_________________________________________
Profº. Drº. Antonio Cesar de Almeida Santos – UFPR
_________________________________________
Profº. Drº. Ana Silvia Volpi Scott – UNISINOS
_______________________________________
Profº. Drº. Carlos Alberto de Medeiros Lima – UFPR (Suplente)
CURITIBA
2005
AGRADECIMENTOS
Durante os caminhos desta pesquisa, muitas pessoas e instituições
contribuíram para que fosse possível a realização da mesma: Arquivo Publico do
Paraná, Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte da Mitra Arquidiocesana de
São Paulo, Arquivos da Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz de
Curitiba; Arquivo do Estado de São Paulo; e, principalmente o Acervo do Centro de
Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses, séculos XV-XIX
– CEDOPE, do Departamento de História da UFPR.
O suporte financeiro foi essencial para o desenvolvimento do trabalho.
Assim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
CAPES.
À minha família, que compreendeu minhas dificuldades e sempre apoiou os
momentos difíceis: Milton, Marli, Rafael, Daniel e Melissa, muito obrigado!
À Fernanda pelo companheirismo, afeto e amizade dedicados ao longo de
sete anos.
Aos amigos da graduação e pós-graduação que estiveram continuamente
auxiliando a pesquisa e compartilhando de boas conversas. André, Jonas, Kowalski,
Billy, Hilton, César, Bruno, Rojas, Mara, Juliana, Rosângela, Júlia, Natália, Paula,
Georgiane, Renata, Juan, Andréa, Maurício, Helder, Rafael, Rodrigo... valeu
moçada!
Aos professores da Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades pelos
ensinamentos, críticas e sugestões que foram de fundamental importância para a
elaboração deste texto final. Em especial aos Professores Doutores Sergio Odilon
Nadalin, Magnus Roberto de Mello Pereira, Antonio Cesar de Almeida Santos, e
Carlos Alberto de Medeiros Lima.
À Antonia Schwinden, orientadora textual, pelo zelo com a correção
gramatical desta dissertação, mas principalmente pelos bons conselhos e ótimas
conversas nas últimas semanas.
iv
Finalmente, devo um agradecimento especial àquela pessoa que ao longo de 6
anos de convivência, desde a graduação até a pós-graduação, mostrou-me que é
possível seguir um caminho profissional sendo correto nas atitudes, firme nas
decisões (mesmo que em muitos momentos eu tenha deixado a desejar), verdadeiro
nas palavras amigas, nos “puxões de orelha”, mas acima de tudo sendo exemplo a
ser seguido. Professora Maria Luiza, muito obrigado!
v
SUMÁRIO
TERMO DE APROVAÇÃO iii
AGRADECIMENTOS iv
RESUMO viii
ABSTRTACT ix
LISTA DE TABELAS x
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO I – COMO OS MORADORES DOS SERTÕES DE CURITIBA
TRANSMITIAM SEUS BENS 18
1.1 O TESTAMENTO DE MARIA RODRIGUES 18
1.2 TRANSMISSÃO DE BENS E FAMÍLIA 23
1.3 TESTAMENTOS, INVENTÁRIOS POST-MORTEM E AUTO DE CONTAS: AS
PEÇAS JURÍDICAS DA TRANSMISSÃO DE BENS 29
1.4 A PRÁTICA DE TESTAR NOS SERTÕES DE CURITIBA 38
CAPÍTULO II – O TESTAMENTO COMO UM SISTEMA DE GARANTIAS: “E
POR QUANTO ESTA EH MINHA ÚLTIMA VONTADE” 52
2.1 QUE FOSSE EXECUTADO 56
2.2 QUE FOSSE PASSADO PARA QUEM LHE CONVIESSE 63
2.3 QUE SUAS CONTAS FOSSEM ACERTADAS (HONESTIDADE): “DECLARO
QUE DEVO... E QUE ME DEVEM...”. 68
2.4 MOMENTO DEVOCIONAL: CUIDADOS POST-MORTEM 73
CAPÍTULO III – AFORTUNADOS E DESAFORTUNADOS 77
3.1 HONRADOS E PROVIDOS 83
3.1.1 Uma base para a aventura 83
3.1.2 Prestígio nas Ordenanças 86
vi
3.2 DESPROVIDOS MAS HONRADOS 89
3.3 SINHAZINHAS DOTADAS 91
3.4 ATIVIDADES E ACUMULAÇÃO 93
CAPÍTULO IV – ACUMULAR RELACIONAMENTOS, TRANSMITIR SABERES:
OS RODRIGUES SEIXAS 98
4.1 MAIS UM REINOL EM TERRAS ALÉM-MAR 101
4.2 INSTITUIR AS JUSTIÇAS: JOÃO RODRIGUES SEIXAS E A CÂMARA
MUNICIPAL 105
4.3 A VIÚVA 112
4.4 OS FILHOS 117
4.4.1 A filha e sua descendência 117
4.4.2 O filho e sua descendência 118
4.5 MOBILIDADE DOS RODRIGUES SEIXAS 121
CONSIDERAÇÕES FINAIS 123
LISTA DE FONTES 126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 131
vii
RESUMO
Esta dissertação tem por objetivo analisar os processos de acumulação e transmissão
de bens nos sertões de Curitiba durante o setecentos. Para tanto, busca observar no
rol de testamentos, inventários post-mortem e auto de contas, tanto os procedimentos
legais (emanados das Ordenações Filipinas de 1603) quanto as modalidades de
vínculo social ou parental que o testador/inventariado tinha para com os demais
beneficiados em sua herança. A partir dos levantamentos realizados no Arquivo
Público do Paraná, Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra
Arquidiocesana de São Paulo e o Arquivo da Catedral Basílica Menor de Nossa
Senhora da Luz de Curitiba, o estudo apresenta dados referentes ao patrimônio e à
posição social dos 69 testadores e inventariados com a intenção de relacionar
atividades, cargos e, ou, ofícios com acúmulo de cabedal. Com isso e procurando
observar quais alianças – casamentos, relações parentais e sociais – levariam os
indivíduos a um bem viver, é possível reconstruir suas trajetórias de vida.
Palavras-chave: Acumulação e transmissão de bens; mobilidade social; Curitiba
setecentista.
viii
ABSTRTACT
This thesis has for objective to analyze the processes of accumulation and
transmission of land property in the inland of Curitiba during the eighteen century.
For in such a way, it searchs to observe in the roll of wills, inventories post-mortem
and auto of accounts, as much as the legal procedures (emanated from the
Ordinances Phillipino of 1603) as the modalities of social or parental bond that the
owner had in relation to the others benefited in its inheritance. From the surveys
carried through the Public Archive of the Paraná, Metropolitan Archive "Dom
Leopoldo Duarte", of the Arquidiocesana Miter of São Paulo and the Archive of the
Cathedral Basilica of "Nossa Senhora da Luz de Curitiba", the study presents given
referring to the patrimony and the social status of the 69 bequeathers and inventoried
with the intention to relate activities, positions and, or, charges with accumulation of
fund. With this, and looking for observing which alliances - marriages, parental and
social relations - would lead the individuals to a good living, are possible to
reconstruct its trajectories of life.
Key- words: Accumulation and transmission of land property; social mobility;
Curitiba during the eighteen century
ix
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Distribuição dos testamentos por período - 1695-1805. 39
Tabela 2 – Distribuição dos inventários post-mortem por período - 1697-1805. 39
Tabela 3 – Distribuição dos testamentos e inventários post-mortem por período –
1695-1805. 40
Tabela 4: A população de Curitiba. Evolução numérica de 1772 a 1800. 44
Tabela 5: Indivíduos em idade de testar, segundo o nº total de assentos – 1731-1796.
45
Tabela 6: Indivíduos que testaram, não testaram, ou que não foi declarado. 46
Tabela 7: Indivíduos que não deixaram testamento, segundo indicação do pároco,
1731-1796. 47
Tabela 8 – Distribuição dos testamentos segundo sexo e estado civil do testador
(1695-1805). 48
Tabela 9 – Distribuição dos inventários post-mortem segundo sexo e estado civil do
inventariado (n
os
abs) (1697-1805). 48
Tabela 10 – Distribuição dos testadores e inventariados segundo o sexo e estado
civil (n
os
abs) (1695-1805). 50
Tabela 11: Primeiros testamenteiros, segundo escolha de testadores – 1695 – 1805.
57
Tabela 12 – Beneficiários dos testadores que não tiveram descendência. (n
os
abs)
(1725-1801). 65
Tabela 13 – Beneficiários dos testadores que tiveram descendência. (n
os
abs) (1725-
1801). 65
Tabela 14: Comparação entre o tamanho dos espólios e a relação das dívidas com o
espólio bruto, 1697-1805. 70
Tabela 15: Origem dos testadores inventariados segundo o sexo. (1695-1805). 87
x
INTRODUÇÃO
O ato de migrar, de ocupar terras antes desabitadas é um ponto-chave para
compreendermos a História do Brasil e, por conseqüência, de todas as suas regiões.
Para a História do Paraná “o ponto de partida deverá se traduzir na polêmica
relacionado ao significado da ocupação e povoamento de um território que, de forma
nenhuma, caracterizava-se por um ‘vazio demográfico’. Tratava-se de uma ocupação
realizada por meio de um tipo de migrações – ‘espontâneas’ e/ou ‘dirigidas’ ”
1
que
atendiam, de uma forma ou de outra, os desígnios e interesses da metrópole
portuguesa.
Dentro desse contexto está inserida a vila de Nossa Senhora da Lux dos
Pinhais de Curitiba, fundada oficialmente em 29 de março de 1693. Entretanto, essa
data não corresponde à chegada dos primeiros povoadores, pois podemos considerar
que o primeiro ato de sua fundação aconteceu com a ereção de uma capela,
provavelmente na década de 1650. Esse fato pode ser observado em antigos mapas,
entre os quais um da Baía e da vila de Paranaguá, no qual aparece assinalada, acima da
serra, a indicação de uma cruz e um pelourinho já apontando a existência de uma
povoação denominada “Campos de Queraytiba”, como era genericamente conhecida
essa região
2
.
Os primeiros homens a chegarem na região sul do Brasil foram atraídos pela
notícia da descoberta de ouro em Paranaguá, feito atribuído a Gabriel de Lara.
3
E as
primeiras informações acerca da situação das minas recém-descobertas já davam conta
da existência dos campos de Curitiba.
Nos campos de Curitiba, sertão desta baía, se descobriram outros ribeiros de lavagem, onda
já estive e fiz experiência haverá 12 anos, vindo em visitas destas capitanias, por ordem do
Governador Salvador Correa de Sá e Benevides, de que lhes enviei amostras, e ora tenho
1
NADALIN, Sérgio Odilon. História do Paraná: ocupação do território, população. Curitiba : Seed ,
2001. p.10
2
MARCONDES, M. Documentos para a história do Paraná - 1
a
. série. Rio de Janeiro: Typ. Do
Annuario do Brasil, 1923.
3
Conforme atesta a ata de vereança, de 27 de novembro de 1649, da Câmara de São Paulo
BALHANA, A.; MACHADO, B. P. & WESTPHALEN, C. M. História do Paraná. Curitiba:
Grafipar, v. 1, 1969. p. 31.
11
mandado rever os ditos ribeiros e minas. Espera-se haverem (minas) da serra para o sertão,
como as há da serra para o mar desta costa
4
.
Esse relatório, feito por Heliodoro Ébano, sobre as minas de ouro recém-
descobertas foi requerido pelo governador da capitania do Rio de Janeiro, à qual estava
subordinada Paranaguá. Desta forma, é perceptível que a povoação do litoral e do
primeiro planalto paranaense esteve ligada ao descobrimento e à exploração do ouro.
Todavia se, por um lado, a povoação envolvida com a exploração das minas de ouro
avançava nos campos de Curitiba, sob a proteção dos governadores do Rio de Janeiro,
por outro lado, existiam também os paulistas que estavam mais interessados na captura
de índios do que na mineração. Para Brasil Pinheiro Machado, a ocupação da região de
Curitiba, já na primeira metade do século XVII, seria conseqüência da constante
procura de metais e da escravização de indígenas pelos bandeirantes. Aliavam-se a
esse panorama as dificuldades de transporte do ouro, feito nos ombros dos índios,
desde os campos de Curitiba até São Paulo: “obrigava-se os que procuravam ouro a
se fixar com residência nos Campos de Curitiba e no litoral de Paranaguá. Assim,
antes da fundação das vilas, já existiam povoados nesses lugares”
5
.
Com a então criação da vila, fez-se necessário demarcar seus extensos
limites, que iam “ao norte por Sorocaba e a leste por Paranaguá. Ao Sul e a Oeste, o
sertão de ninguém (do ponto de vista do colonizador)”
6
. Assim, a vila de Curitiba foi
composta por inúmeros e pequenos arraiais e freguesias povoados pelos mineradores
que vieram atrás de ouro no século XVII, mesmo que grande parte deles já tivesse
abandonado os campos de Curitiba no começo do século XVIII ante a escassez da sua
produção e a descoberta de novas minas na Capitania de São Paulo.
Grande parte dessa população que morava pelos arredores abandonou suas
antigas atividades de mineração e fixou residência em sítios e fazendas, nos quais
4
Museu do Arquivo Ultramarino Português – Cópia fotostática do I.H.G.E.P. – doc. n
o
. 01. Apud.
Idem, p. 32.
5
BALHANA, A.; MACHADO, B. P. & WESTPHALEN, C. M. Op. cit. p. 30.
6
PEREIRA, M. R. de M.; SANTOS, A. C. de A. O poder local e a cidade. A Câmara Municipal de
Curitiba, século XVII a XX. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. p. 28.
12
passaram a dedicar-se sobretudo a duas atividades: criação de gado e agricultura de
subsistência.
O comércio de gado viria a tornar-se a principal atividade econômica na
região, e foi o que determinou a ocupação e o contorno do território pertencente ao
termo da vila de Curitiba. A pecuária nos campos de Curitiba e o início da exportação
de seus produtos para São Paulo e outros centros consumidores antecedem, entretanto,
a produção das fazendas dos Campos Gerais. Em 1720, o Ouvidor Raphael Pires
Pardinho já observava os currais sendo situados nos arredores de Curitiba.
Com o estabelecimento de novos currais e a aquisição crescente de
sesmarias, o povoamento se expande aos campos contíguos dos primitivos campos de
Curitiba, e, conseqüentemente, novos caminhos se definem
7
. São esses os
denominados sertões de Curitiba, lugar entendido como “o interior, o coração das
terras”.
8
Durante os anos seguintes muitos outros povoados foram aparecendo e
também se destacando devido principalmente à importância do tropeirismo na região,
como no caso da freguesia de Santa Ana do Iapó e de Santo Antonio da Lapa, regiões
7
Ao sul da vila de Curitiba, atravessando o rio Iguaçu, cresce a povoação de São José dos Pinhais, em
torno da Capela do Senhor Bom Jesus dos Perdões, edificada em 1690, em antiga zona de mineração.
Desta povoação parte para leste o caminho do Arraial e para sudeste, o dos Ambrósios, ambos rumo às
regiões litorâneas. O caminho do Arraial levava ao Arraial Grande, antigo centro de mineração na
serra do mar. Já o Caminho dos Ambrósios era a estrada de comunicação entre Curitiba e São
Francisco do Sul, em Santa Catarina. Para o oeste da vila de Curitiba, os currais estabelecidos nas
redondezas do rio Barigui estendem-se para a região de Campo Largo até atingir a serra de São Luis
do Purunã, limite natural entre os campos de Curitiba e os Campos Gerais de Curitiba, conhecido
também como o 2
o
. Planalto Paranaense. Na região da Borda do Campo, para leste da vila, havia o
Caminho da Graciosa, usado até hoje ligando Curitiba a Antonina, este um antigo porto marítimo
paranaense. E finalmente, para o sul e sudoeste, iniciava-se o sertão de Curitiba. Ao longo deste
caminho foram crescendo muitas freguesias e povoados, e essas diversas localidades aparecem
registradas em alguns documentos camarários, mas principalmente nas listas de ordenanças. No
registro de 1766, por exemplo, estavam sujeitas a jurisdição da vila de Curitiba as seguintes
localidades: Atuba, Barigui, Piaçaúna, Boa Vista, Tatuquara, Botietatuba, Palmital, Arraial Queimado,
Borda do Campo, Campo Largo, rio Verde, freguesias de São José, Minas do Itambé, Descoberto da
Conceição, Registro e Campos Gerais. RODERJAN, R. V. Os curitibanos e a formação de
comunidades campeiras no Brasil Meridional. (Séculos XVI-XIX). Curitiba: Works Informática –
Editoração Eletrônica, 1992. p. 79.
8
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. Facsimile da 2ª ed. De 1813. Lisboa
: Typographia Lacérdina, 1922. p.803.
13
estratégicas no transporte de gado para São Paulo. Brasil Pinheiro Machado afirma
ainda que esta “fazenda de criar nos Campos de Curitiba e nos Campos Gerais, se
tornou a ‘empresa’ fundamentalmente da economia da comunidade paranaense,
durante todo o século XVIII e grande parte do seguinte concomitantemente a família
fazendeira adquiriu e mais alto status na sociedade
9
.
Com isso, houve a expansão tanto geográfica quanto populacional nos campos
de Curitiba. Somente a vila na segunda metade do século XVIII já contava com
aproximadamente 1.939 habitantes
10
, que moravam principalmente na área rural.
Fixadas à terra, essas pessoas encaminhavam suas vidas e de seus familiares,
acumulando muitas vezes patrimônio. As preocupações desses indivíduos quanto à
transmissão de seus bens estavam expressas em seus testamentos, inventários post-
mortem e auto de contas.
Pesquisar esse conjunto de fontes torna-se interessante na medida em que esses
processos deixam revelar, sob o olhar da História da Família, aspectos do viver
cotidiano e da economia doméstica. Tendo como base esses corpus documentais, esta
dissertação tem por objetivo analisar os processos pelos quais se acumulavam e
transmitiam bens nos sertões de Curitiba durante o setecentos.
A partir dos levantamentos realizados no Arquivo Público do Paraná, Arquivo
Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo e o
Arquivo da Catedral Basílica de Nossa Senhora da Luz de Curitiba, o estudo apresenta
dados referentes ao patrimônio e à posição social de 69 testadores e inventariados
entre 1695 a 1805. O método da construção de trajetórias de vida, utilizado para a
análise, consiste em redimensionar a noção do indivíduo deslocado para uma nova
subjetividade: a do ‘vivido’. E nele, não apenas observar os indivíduos planos, mas
sim sujeitos a transformação e como resultados de suas negociações, manipulações e
escolhas, tendo suas ações na coletividade transportadas ou assumidas mediante laços
sociais que conseguissem erguer durante suas vidas com outros indivíduos ou grupos.
De acordo com Giovanni Levi, “neste tipo de investigação, o historiador não está
9
BALHANA, A.; MACHADO, B. P. & WESTPHALEN, C. M. Op. cit. p. 30.
10
A vila de Curitiba no ano de 1772 possuía: 907 homens, 928 mulheres e 104 escravos. Ibid. p.117.
14
simplesmente preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir
as ambigüidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações
desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos
recursos materiais”.
11
Nessa perspectiva, entendemos relevante analisar se o conjunto de decisões
tomadas ao longo da vida de um determinado sujeito, especialmente aquelas relativas à
escolha do cônjuge, a organização da rede parental e a forma pela qual ele adquire
cabedal (tanto material quanto simbólico), assumiu importância na trajetória de sua
vida, a ponto de deter peso significativo na determinação de sua condição social.
Esse propósito impõe como primeiro passo observar a consonância entre o
cabedal matéria e simbólico. Pode-se adiantar que, naquela sociedade, um sujeito bem
situado, com prestígio social, com honra, não necessariamente possuía fortuna. Esta
especificidade não causa estranhamento na medida em que a historiografia vem
apontando que “ser economicamente poderoso não significava a certeza de ser
considerado um ‘homem bom’ ou de família principal’. Dentro do que se estabelecia
como status social de um indivíduo, inseriam-se normas de conduta e de
representação social que, muitas vezes, não refletiam a situação econômica dos
envolvidos. Pobreza e prestígio podiam, muitas vezes, andar juntos”
12
. Entretanto,
lembra-se que os mecanismos de acumulação também estavam mediados pela política,
isto é, pelo pertencimento à Câmara Municipal. Isto caracterizaria um “mercado
imperfeito” – conceito expresso por Witold Kula e utilizado por João Fragoso ao
analisar as especificidades sócio-econômicas da colônia
13
– na qual indivíduos teriam
oportunidades econômicas diferentes se tivessem acesso aos cargos em diferentes
instâncias da administração pública. Entretanto, vale dizer que não se pretende
11
LEVI, Giovanni. Ibid. pp. 136.
12
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. IN: CASTRO,
Hebe Maria Mattos de ; SCHNOOR, Eduardo (org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de
Janeiro : Topbooks , 1995. p.82.
13
KULA, Witold. Problemas y métodos de la historia económica. Barcelona : Península , 1974. p.
465 e FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial
do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). IN: Topoi. Rio de Janeiro , 2000 , nº 1. p 72.
15
considerar com este conceito que pudesse ter existido uma “economia perfeita” na
América portuguesa colonial, mas sim apreender toda a gama de significação,
sobretudo simbólica, que esse referencial pode suscitar.
Então, o trabalho que aqui se apresenta é, utilizando os testamentos e os
inventários post-mortem e os auto de contas, investigar a partir dos dados relativos à
acumulação e à transmissão de bens nos sertões de Curitiba essa “economia
imperfeita”, considerando que, na sociedade colonial, a ênfase para a nobilitação – ser
homem bom – originalmente situada no nascimento e na honra coexistia com outra
esfera de valores pautada no mérito pessoal e na fortuna.
Para encaminhar este estudo, foi necessário, primeiramente, conhecer os
aspectos legais da transmissão de bens. É assim que no Capítulo I está contemplado o
conjunto da documentação, testamentos, inventários e auto de contas que, como peças
jurídicas, possibilitam afirmar que, nos sertões de Curitiba nos setecentos, havia uma
população proprietária de bens que estava ciente da legislação de sucessão de heranças
e dela se utilizava para legar seu patrimônio.
O próximo passo consistirá em analisar o testamento como um mecanismo que
desvela as redes de relacionamento estabelecidas ao longo da vida do testador. É
possível perceber que, no momento de proferir suas últimas vontades, o indivíduo se
cercava-se de certas garantias que poderiam reforçar suas alianças tanto na sociedade
quanto no post-mortem.
No Capítulo III, retomam-se os três documentos para examinar os mecanismos
que levaram os indivíduos a amealhar bens ao longo de sua vida. O objetivo é observar
como o cabedal material pode ser analisado à luz dos cargos e ofícios e das alianças
matrimoniais erguidos ao longo da vida desses testadores e inventariados.
Finalmente, no Capítulo IV aprofundam-se as questões levantadas do capítulo
anterior. Para tal, recompõe-se a história de vida de um dos primeiros moradores da
vila de Curitiba, atento às relações sociais que ele estabeleceu na localidade e
analisando o peso que elas tiveram no encaminhamento de sua vida e de seus
descendentes, ao longo do século XVIII.
16
Em todo o estudo opera-se fazendo um jogo entre escalas de observação
14
. De
um lado reduzimos a análise da pesquisa ao indivíduo, atentos a perceber as
modalidades de suas relações profissionais e alianças familiares com outros
indivíduos. De outro, conduzimos a dimensão detalhada do enfoque e a escala
ampliada do contexto social. O estudo pretende entrever as brechas que uma
sociedade, em tese hierárquica e ordenada, oferecia para que indivíduos desprovidos
de nome e condição pelo seu nascimento empreendessem uma trajetória de mobilidade
social ascendente.
14
Ver: REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. IN: REVEL, Jacques (org). Jogos de
escalas : a experiência da microanálise. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998. E
LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. IN: BURKE, Peter. A escrita da história, novas
perspectivas. São Paulo : Editora UNESP, 1992.
17
CAPÍTULO I
COMO OS MORADORES DOS SERTÕES DE CURITIBA TRANSMITIAM
SEUS BENS
1.1 O TESTAMENTO DE MARIA RODRIGUES
Corria o ano de 1750. Mais especificamente dia 12 de outubro, a data escolhida
pela portuguesa Maria Rodrigues para fazer seu testamento
15
. Como se encontrava em
sua morada, na localidade chamada das Corujas, sertão dos Campos Gerais de
Curitiba, e a idade avançada
16
a impedia de ir até o tabelião, Maria solicitou a presença
do ‘Doutor Coronel’ José Serino da Fonseca para que lhe escrevesse seu testamento
cerrado
17
, já que ela não possuía domínio sobre as letras. Para dar legalidade às suas
últimas vontades, de acordo com a legislação portuguesa vigente no Brasil colônia
durante os setecentos (as Ordenações Filipinas de 1603)
18
, era necessária a assinatura
de cinco pessoas, podendo se incluir ou não o testador (‘mesmo que a rogo de
outrem’). Essa firma era um dos meios de estabelecer a verdade do que se atestava,
razão pela qual deveria ser dada por indivíduos notoriamente idôneos
19
para o Oficial
da Justiça, seja na pessoa do juiz ou do tabelião. Naquele ato solene, na casa da
testadora, estavam presentes, além de José Serino da Fonseca, Pedro da Silva, Antonio
José, Miguel Rodrigues e Francisco Pereira. Pessoas reconhecidas pelo tabelião.
15
Esta breve reconstituição da vida de Maria Rodrigues teve como fonte principal seu Processo de
Auto de Contas de 1750-1756 no qual está anexo seu testamento. Esse processo encontra-se no
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixa:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777.
16
Duas fontes apresentam, aproximadamente, sua idade. De acordo com o assento de falecimento,
encontrado no Livro 1 de Óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba, Maria
tinha 65 anos. Vale dizer que a data do assento é de 14 de julho de 1756, mas o pároco informa que
seu falecimento ocorreu aos 8 de fevereiro de 1756. Contudo, não é precisa essa data. Já no auto de
aprovação do testamento, José Serino da Fonseca argumenta ao tabelião Manoel Borges de Sampaio,
que a testadora estava ‘em saúde perfeita mesmo sendo mulher muito velha’.
17
As especificidades da legislação testamentária serão desenvolvidas no item 1.3.
18
Especialmente no Título LXXX do Livro 4.
19
Entendendo-se que “a idoneidade das testemunhas é o complexo das qualidades que o direito exige
delas, para que entendam as declarações do testador, verifiquem a observância das formalidades
exigidas e mereçam fé”. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Sucessões. (Edição Histórica – 1898).
Rio de Janeiro : Editora Rio , 1978. p. 217.
18
Maria, natural do Couto de São João da Foz, Bispado do Porto, havia se casado
com o português João da Silva Reis, natural de Lordelo. Esta aliança matrimonial deu-
se, como regra do direito português, sob o regime de comunhão de bens ou ‘carta a
metade’, o que significava a junção de todos os bens dos cônjuges quando do enlace
matrimonial. De igual modo, também sob o sacramento cristão, sua única filha Josefa
da Silva casou-se com o reinol João Pereira Braga. Todo esse núcleo familiar havia
emigrado do reino para os Campos Gerais de Curitiba, por volta de 1710, a pedido do
‘Sargento-Mor da Praça de Santos’ Manuel Gonçalves de Aguiar, tio de João Pereira
Braga, para que este pudesse administrar suas fazendas. Como tantos outros
portugueses, esta família, composta de pais, filha e genro, fixa-se a terra e, ao que se
sabe, nessa região Josefa deu a luz a seis filhos de João: Maria Pereira da Silva
Pacheco, João da Silva Reis, Domingos Pereira da Silva, Ana Pereira da Silva e Joana
Pereira da Silva.
No momento de informar sua vontade quanto à transmissão de seus bens, Maria
reiterou sua filha Josefa como sua legítima e universal herdeira, juntamente com
apenas dois de seus netos: João da Silva Reis (que levava o nome do avô) e Maria
Pereira. De outro lado, é importante destacar que Josefa, como filha única, tornou-se a
“herdeira necessária” e seus netos figuraram como legatários da terça parte dos bens
da avó, que poderiam ser entregue a quaisquer pessoas, dependendo exclusivamente da
vontade da testadora
20
. As Ordenações Filipinas dedicavam especial atenção à
transmissão de heranças, embora não obrigassem à eleição de um herdeiro, nem à
disposição da totalidade da herança (como prescrevia o Direito Romano)
21
.
Estabeleciam distribuições igualitárias, portanto, independente do gênero e idade.
Assim, as heranças paterna e materna dividiam-se entre todos os filhos, não havendo
privilégios. Logo, Maria Rodrigues seguiu rigorosamente a lei, deixando um terço de
sua herança para sua única filha (a herdeira forçada). Vale observar que essa lei
20
Ver: Ordenações Filipinas. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 (facsimile da edição
comentada de Cândido Mendes CÓDIGO PHILIPHINO. Rio de Janeiro : Typografia do Instituto
Philomático , 1870. Livro IV, Titulo LXXXII, p. 911.
21
Ibid.: Livro IV, Título LXXX, §1º, p. 900.
19
permitia aos pais o deserdamento
22
, e nas outras duas partes, em que podia impor suas
vontades, ela escolheu apenas dois netos e o restante, legou em obras pias, com missas
para a salvação de sua alma.
Como no ato de seu testamento encontrava-se viúva, é muito provável que já
havia passado a legítima de seu esposo à filha Josefa, uma vez que não há menção no
testamento de alguma dívida quanto à legítima paterna. Com efeito, a portuguesa
declarou as doações que deveriam ser feitas da terça parte de seus bens: deixava 5$000
réis à Ordem Terceira de São Francisco, outros 5$000 réis à Nossa Senhora da Luz e
mais 13$000 réis à Capela de Nossa Senhora da Conceição de Tamanduá. Mandou
dizer ainda duas missas de $640 réis cada uma, no altar de São Miguel na Igreja
Matriz de Nossa Senhora da Luz.
Quanto à outra parte destinada aos “herdeiros instituídos”, Maria arbitrou como
sucessores dois de seus seis netos: João e Maria, ambos solteiros. Para Maria Pereira a
avó deixava a metade do preço da venda de um escravo. Esse legado suscita uma
questão: até que ponto o fato de ela ser a primeira na sucessão feminina não lhe teria
dado essa vantagem sobre os demais irmãos? É sabido que Maria veio a se casar em
1753, três anos após a escrita do testamento, o que pode demonstrar que a avó
pretendia um bom casamento para a neta, provendo-lhe de dote. Já quanto aos bens
deixados ao neto. Maria põe uma condição: João deveria se ordenar sacerdote secular.
Se isso não viesse a ocorrer, sua mãe receberia as campinas chamadas de João Pereira
de Aguiar, com 30 vacas, 10 touros, 10 éguas com seu pastor e 1 negro da nação Guiné
(por nome Manoel). Comparativamente, seria um montante de maior valor do que o
destinado a sua irmã. No caso do João da Silva, sua escolha sugere que, encontrando-
se em idade de preparar-se para a carreira eclesiástica secular, talvez tivesse
demonstrado vontade ou disposição para aceitar esse ofício, e a avó providenciou,
dotando-o de um patrimônio. O dote clerical fazia parte das exigências para o ingresso
na vida religiosa.
Como forma de garantia de que suas vontades fossem cumpridas, a portuguesa
instituiu dois testamenteiros, ou seja, as pessoas encarregadas de dar execução ao
22
Ibid.: Livro IV, Título LXXXVIII, p. 927-934.
20
testamento. Em primeiro lugar seu neto João da Silva Reis e em segundo Manoel
Correa, que viria a se casar com Ana Pereira da Silva (outra neta de Maria) em 1768.
Disposições declaradas, Maria Rodrigues terminou por ditar seu testamento. O
‘Coronel’ José Serino da Fonseca assinou a rogo, juntamente com as quatro
testemunhas. O ato de ditar o testamento estava previsto na lei, mas não era a ação
final para lhe conferir legitimidade. Tanto em testamentos redigidos no tabelionato
quanto em casa, em ambas as situações sob a presença de testemunhas, impunha-se a
necessidade de lavrar a aprovação para ‘cerrar’ o documento, ou seja, fechá-lo para ser
aberto posteriormente. Quando feito no tabelionato, com a presença do testador, o
procedimento era cumprido da seguinte forma:
o oficial exaure o ato de aprovação, declarando nele que o testador lhe entregou o testamento
por ele considerado como bom, firme e valioso, que imediatamente após a ultima palavra
comece o instrumento de aprovação que deve ser lido e assinado pelo oficial, pelas
testemunhas e pelo testador [ou a rogo de] (...) e finalmente que o testador cerre o testamento
após concluir o instrumento de aprovação.
23
Já os realizados na moradia do testador, ficava a cabo do redator entregá-lo ao tabelião
para aprová-lo e cerrá-lo do mesmo modo.
O Coronel, agindo em conformidade com a lei, entregou o testamento ao
tabelião da vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, Manoel Borges de Sampaio, que
reconheceu as últimas vontades de Maria, assim como a idoneidade das testemunhas, e
deu validade ao testamento em 15 de abril de 1751, aproximadamente seis meses após
ter sido ditado.
Maria Rodrigues mostrou-se extremamente previdente quanto à feitura de seu
testamento, uma vez que ela veio a falecer somente em 1755.
24
Tal cautela, embora
23
DAUMARD, Adeline (et al.). História social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba : Editora
UFPR , 1984, p. 191.
24
É digno de nota que, de acordo com o Livro de Óbitos nº 1 dos Registros Paroquiais constantes do
acervo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, o assento que apresenta o
óbito de Maria está datado de 14 de julho de 1756. Entretanto, o pároco faz uma observação de que o
registro não foi feito no mesmo dia do falecimento, já que lhe faltava clareza de informações. O
Reverendo propõe então como data do óbito de 8 de fevereiro de 1756. Contudo, o processo de auto de
contas foi aberto em agosto de 1755.
21
presente em outros indivíduos, não foi a tônica verificada em outros testadores dos
sertões de Curitiba durante o século XVIII. Sua intenção ao deixar documentado que o
neto receberia terras, animais e escravos caso seguisse os desígnios da avó, foi,
provavelmente, uma forma de indicar que ele deteria um certo patrimônio. No entanto,
esta antecipação também pode indicar um senso prático: Maria fez seu testamento no
momento em que o neto estava se dirigindo para São Paulo para iniciar os estudos que
o habilitariam para a carreira eclesiástica. Assim, a precocidade do testamento em
relação a sua morte pode ser reflexo de uma personalidade bastante previdente, quanto
ao futuro da família. Fato é que, em 1756, quando da abertura do processo de
implementação de suas vontades, quem assumiu a função de testamenteiro foi Manoel
Correa, o segundo indicado pela testadora, pois nessa época João da Silva Reis
encontrava-se estudando na cidade de São Paulo. Diga-se de passagem, para ordenar-
se sacerdote secular.
25
Não se tem o inventário da Maria Rodrigues, mas o auto de
contas que Manoel Correa apresentou ao juiz de órfãos demonstra que ele deu cabo
das vontades de Maria Rodrigues. A herdeira necessária e os herdeiros instituídos
receberam o que lhes coube de direito, assim como foram quitadas as despesas com as
missas e os legados pios.
25
Sabe-se que foi nomeado por provisão de D. Frei Antonio de Madre Deus, em 17 de fevereiro de
1758, coadjutor do vigário de Curitiba, cargo que exerceu até 1767 na capela de Nossa Senhora da
Conceição de Tamanduá. LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico do Paraná.
Curitiba : Empresa Graphica Paranaense, 1994. Volume III. pp. 998-999.
22
1.2 TRANSMISSÃO DE BENS E FAMÍLIA
Na breve narrativa da trajetória de vida de Maria Rodrigues, suscitada a partir
de suas últimas vontades, transparecem diversos aspectos relativos ao viver familiar. A
historiografia há muito tempo vem apontando o papel do casamento e da organização
parental no período colonial. Neste trabalho, entende-se a concepção de família como
um arranjo horizontal entre parentes, ou seja
cada familia proviene de la unión de otras dos familias, lo cual quiere decir también que
proviene de su fragmentación: para que se funde una familia es necesario que dos se vean
amputadas de sus miembros (...) Este perpetuo movimiento de vaivén, que desagrega las
familias biológicas, transporta sus elementos a distancia y los agrega a otros elementos para
formar nuevas famílias, teje redes transversales de alianza en la que los fieles de la iglesia
‘horizontal’ ven lás líneas de fuerzaz que sirven de base e incluso engendran toda
organización social.
26
Essa concepção de família seria apropriada para fundamentar estudos que
focalizam a América portuguesa, pois, ao consultar o dicionário de Antonio de Moraes
Silva, de 1813, encontra-se a família definida como “as pessoas, de que se compõe a
casa, e mais propriamente as subordinadas aos chefes, ou pais de família. Os parentes
e aliados”.
27
Tendo isso em vista, observa-se que a ‘família’ exerceu importância
fundamental no funcionamento e na montagem das atividades econômicas, nas
relações sociais e políticas dos indivíduos, assim como em suas trajetórias de vida.
Mediante a escolha de Manoel Correa como seu testamenteiro, Maria apresenta
um laço de confiança com um indivíduo que seria posteriormente seu familiar. Uma
aliança já se mostrava presente num momento de extrema cautela. Parece correto
afirmar que “da ou para a família, não necessariamente a consangüínea, que todos os
aspectos da vida cotidiana ou pública se originavam ou convergiam”.
28
Em todo o
26
LÉVI-STRAUSS, Claude. Prólogo. IN: BURGUIÈRE, André et al. Historia de la familia. Madrid
: Alianza Editorial, 1988, p.12.
27
SILVA, Antonio de Moraes. Op. cit. 1813.
28
FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. IN: CARDOSO, Ciro
Flamarion ; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro : Campus, 1997, p. 256.
23
Antigo Regime
29
, a referência social ao indivíduo era frágil, sendo sua identificação
social quase sempre associada ao seu pertencimento a um grupo mais amplo. Note-se,
que o termo família aparece no verbete de Antonio Moraes Silva, mencionado
anteriormente, com elementos que extrapolavam os limites da consangüinidade,
entremeando-se à coabitação e à parentela, incluindo relações rituais e alianças
políticas.
Diante disso, pode-se inferir que, em muito, a família a que pertencesse o
indivíduo determinava sua condição social. No caso da família de Maria Rodrigues, é
patente reconhecer entre seus membros a distinção de ‘homem bom’ ou principais da
terra, uma vez que seu genro, seus netos e os maridos de suas netas figuravam atuando
na câmara municipal da vila de Curitiba. ‘Homem bom’ foi uma expressão utilizada na
América Portuguesa, que refletia uma atitude mental típica do Antigo Regime, incapaz
de considerar os indivíduos nascidos iguais e portadores dos mesmos direitos. Eram o
sangue, a linhagem, a ocupação e os privilégios que estabeleciam as diferenças. Assim
‘homem bom’ era aquele que reunia condições para pertencer a um estrato social,
distinto bastante para manifestar a sua opinião e exercer determinados cargos. Em
nosso caso, no Brasil Colônia, associava-se em particular àqueles que podiam
participar da “governança” municipal, elegendo e sendo eleitos para os cargos públicos
que, então, estavam reunidas nas câmaras, principais instâncias da representação locais
da monarquia.
30
A manutenção dos cargos camarários compreendia uma das estratégias de que
as famílias da América Portuguesa se utilizavam para assegurar a permanência de sua
posição social.
31
Entretanto, uma das formas principais de garantir o pertencimento a
um local social diferenciado seria a posse de recursos vinculados a terra. Estudos
29
Segundo Guilherme Pereira Neves, o Antigo Regime seria um “conceito para designar a dinâmica
das sociedades ocidentais entre os séculos XVI e XVIII, a qual, no entanto, tende a dissolver-se no
período [...]”. In.: DICIONÁRIO DO BRASIL COLONIAL (1500-1808). VAINFAS, Ronaldo. (org.).
Rio de Janeiro : Editora Objetiva, 2000. p. 43-46, p. 43.
30
DICIONÁRIO DO BRASIL COLONIAL (1500-1808). VAINFAS, Ronaldo. (org.). Rio de Janeiro :
Editora Objetiva, 2000. p. 284.
31
Ver: FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial
do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). IN: Topoi. Rio de Janeiro, 2000, nº 1.
24
evidenciam que a transmissão desse patrimônio familiar, no decorrer de muitas
gerações, apresenta um papel fundamental na manutenção do status dessas mesmas
famílias.
32
É assim que Maria e seus descendentes podem ser distinguidos como
honrados e providos, mesmo que a falta de seu inventário não permita que se saiba
quais eram os bens que compunham seu patrimônio pessoal. Contudo,
ser economicamente poderoso não significava a certeza de ser considerado um ‘homem bom’ ou
de ‘família principal’. Dentro do que se estabelecia como status social de um indivíduo,
inseriam-se normas de conduta e de representação social que, muitas vezes, não refletiam a
situação econômica dos envolvidos. Pobreza e prestígio podiam, muitas vezes, andar juntos.
33
É o que evidencia um dos primeiros trabalhos que se serviu de testamentos e
inventários post-mortem para as regiões paulistas. Na busca de reconhecer as
condições de vida material dos bandeirantes paulistas dos seiscentos e setecentos,
Alcântara Machado demonstra, através do comer, do mobiliário, do vestuário, da
higiene daquela população, um viver extremamente rústico mesmo entre os membros
das principais e mais ricas famílias de sertanistas de São Paulo de Piratininga, acerca
de seus bens.
34
Em situação oposta, situa-se a descrição do viver refinado dos senhores dos
grande canaviais, no nordeste açucareiro que são apresentados por Gilberto Freyre.
35
Se, por um lado, seu estudo volta-se para o reconhecimento da formação de uma
sociedade agrária na estrutura, escravocrata na exploração econômica e híbrida em sua
32
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba,
séculos XVIII e XIX. São Paulo : Annablume/Fapesp, 2001.
33
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. IN: CATRO, Hebe
Maria Mattos de; SCHNOOR, Eduardo (org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro :
Topbooks , 1995, pp. 63-97, p.82.
34
MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins , 1972. Esta obra teve
como caráter inovador não somente o rol de fontes primárias utilizado, mas principalmente a forma
como elas foram abordadas. Sobre essa documentação, o autor afirma: Só os linhagistas se atreviam
a exumá-los(...). Parecia mesmo que para outra cousa não serviam os autos centenários, senão para a
formação das árvores genealógicas do nosso patriciado. Redondo engano. A documentação encerra
subsídios inestimáveis para a determinação da época, do roteiro e da composição de muitas
‘entradas’(...). Constitui também generoso manancial de notícias relativas à organização da família,
vida íntima, economia e cultura dos povoadores” (p. 16).
35
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sobre o regime da
economia patriarcal. 19
a
. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978.
25
composição étnica e cultural, por outro reconhece as bases do latifúndio, da
monocultura de exploração e do trabalho escravo. Escravismo esse que situa dois
pólos na sociedade, colocando livres e escravos em esferas completamente distintas.
No entanto, alguns estudos vêm mostrando que os mestiços de toda ordem buscavam
‘alçar condição’, porque entendiam o sistema de classificação que ordenava a posição
das pessoas naquela sociedade.
36
Maria, reconhecendo o valor material e simbólico do
possuir escravos, passou à neta o valor que lhe cabia de um cativo.
Em se tratando de questões de herança, como é o caso das investigações de Ida
Lewkowicz
37
, esta observa que, apesar das condições do cativeiro, alguns escravos
libertos alcançaram níveis significativos de organização familiar, não destoando,
inclusive, dos padrões de riqueza vigentes para a sociedade da área mineradora no
século XVIII. Lewkowicz indica, também, que os casamentos, as heranças e os dotes
figuravam nas relações familiares dos forros em Minas Gerais, demonstrando, à
primeira vista, não haver existido um estilo de vida distinto dos forros com o da
restante população mineira colonial. De igual modo, Eduardo Paiva
38
, ao estudar as
Minas Gerais setecentistas, traz à tona o hibridismo cultural e a mobilidade social entre
homens e mulheres libertos nas Minas, onde participavam intimamente da organização
daquela sociedade.
Esse breve encaminhamento mostra muitas possibilidades em que o indivíduo
ou grupos de indivíduos encontram-se em esferas sociais diferentes que não refletem
apenas questões relativas ao sistema de herança do direito português. De qualquer
forma, é mister observar que legar as últimas vontades ou ter seus bens inventariados
eram atos presentes na vida dos indivíduos no Brasil colônia. Não apenas presentes,
mas é possível evidenciar que na América portuguesa havia preocupação de fazer
testamento. Vê-se que “quase todos tentavam e muitos conseguiam fazer testamento,
36
Ver: BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Op. cit., 2001; MONTEIRO, John Manuel. Negros
da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo : Companhia das Letras , 1994;
MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1982; FRANCO, Maria Sylvia de
Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo : Unesp, 1997.
37
LEWCOWICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século
XVIII. IN: Família e grupos de convívio, São Paulo, n. 17, p.101-114, set. 1988/ fev. 1989.
38
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789.
Belo Horizonte : Editora UFMG , 2001.
26
pois era um procedimento previsto pelos manuais de ‘bem morrer’, muito populares
na época”.
39
Desse ponto de vista pode-se mesmo dizer que havia necessidade de
“testar para bem morrer”.
40
Verifica-se, então, que fazia parte dos costumes da época algo que, “formada
pelo repetir de uma conduta (...) pelo seu caráter de essencialidade à vida civil, acaba
por criar no grupo social a consciência de sua obrigatoriedade”.
41
Há que se ter cuidado, porém, para não reduzir o sistema de sucessão colonial
unicamente à esfera das práticas consuetudinárias. É fato que desde o início da
colonização, Portugal transportou o seu sistema administrativo para a colônia
americana: “estudar a administração colonial no Brasil implica considerar,
necessariamente, as características do Estado português na época, pois a
administração na Colônia não passava de uma imagem refletida da metropolitana”.
42
Ou seja, toda esta transposição refletia um Estado de Direito e, como tal, buscava
ordenar a vida civil reconhecidamente por meio das Ordenações Afonsinas,
Manuelinas e as Filipinas.
As leis portuguesas sobre herança vigentes na colônia, as Ordenações Filipinas,
derivavam do direito romano e do direito consuetudinário. Estabeleciam distribuições
igualitárias entre os herdeiros, independente do gênero.
43
Assim, as heranças paterna e
materna dividiam-se entre todos os filhos, não havendo privilégios por idade ou sexo.
Isto porque, no Livro IV, título XLVI: “todos os casamentos feitos em nossos reinos e
senhorios se entendem serem feitos por carta de ametade: salvo quando entre as
partes outra cousa for acordada e contratada, e porque então se guardará o que entre
eles for contratado”.
44
Ou seja, os casamentos realizavam-se em regime de comunhão
39
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo : EDUSP ,
1984. p.98.
40
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998. p. 265.
41
SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português. Lisboa : Fundação Galouste
Gulbenkian , 2002. p.19.
42
SALGADO, G. (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 1985. p.19.
43
Embora seja a lei igualitária, a prática do dote e da terça permite verificar a existência de uma
diferença entre a legítima dos filhos e das filhas, tanto em Portugal como nos domínios luso-
americanos.
44
Ordenações Filipinas. Op. cit.. Livro IV, Título XLVI, p..832.
27
de bens, o que significava a junção de todos os bens dos cônjuges, no ato do
matrimônio. Havia outros regimes de bens, mas eram raros.
45
Quando da morte de um
dos cônjuges, a metade dos bens destinava-se ao sobrevivente e a outra era dividida
em três partes, duas para os “herdeiros necessários” e uma – a terça – para quem o
falecido deixasse em testamento, caso o fizesse. Na ausência de filhos (legítimos,
legitimados, naturais, ou adotivos), a ordem de sucessão era: descendente (netos),
ascendentes, cônjuges, colaterais até o décimo grau e o Estado,
46
tendo em vista que
as leis que regulam a herança no Império Português assentavam no princípio de que
os bens pertenciam à família, não ao indivíduo”.
47
45
Os outros sistemas de divisão de bens seriam o Contrato de Arras e o Morgadio. Ver: SILVA, M. B.
N. da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo : Edusp, 1984.
46
Ver: NAZZARI, Muriel. Op. cit. 2001 e FARIA, Sheila. Op. cit. 1998.
47
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit. 1984 , p.97.
28
1.3 TESTAMENTOS, INVENTÁRIOS POST-MORTEM E AUTO DE CONTAS: AS
PEÇAS JURÍDICAS DA TRANSMISSÃO DE BENS
Os testamentos, inventários e auto de contas constituem o conjunto de
documentos que, conforme o disposto no Livro V das Ordenações Filipinas,
legalizavam o processo de transmissão de bens entre uma pessoa falecida e seus
herdeiros. Porém, em sua natureza conformam peças jurídicas diferenciadas que
informam, pelas vias legais, os procedimentos a serem tomados após a morte do
indivíduo. Grosso modo informam sobre o andamento do processo de transmissão de
direitos ou de encargos, o montante a ser distribuído bem como a parcela que cabe a
cada herdeiro e, ainda, trazem um relatório dos encaminhamentos realizados para
efetivar a transmissão patrimonial. Nesse sentido, é importante observar que os três
documentos possuem a característica de produzirem atos jurídicos seqüenciados.
Idealmente, essa seqüência tem início quando da feitura do testamento. Como
foi apresentado no início deste capítulo, Maria Rodrigues optou por formalizar os
termos de seu testamento em data muito anterior à de sua morte. Outras pessoas
optavam por fazê-lo quando se viam doentes, idosas. Justamente nessa situação
colocam-se os termos que abrem um testamento feito em 1754:
Eu Jozepha Rodrigues Bicuda estando em meu perfeito Juizo e emtendimento que
noSso Senhor me deu doente na cama temendo me da morte, e dezejando por minha
alma no caminho da Salvação, por não Saber o que Deus noSso Senhor de mim quer
fazer, e quando Sera Servido de me Levar para Si, faço este testamento na forma
Seguinte.
48
De qualquer forma, mesmo não estando enfermas, muitas pessoas decidiam
fazer testamento na crença de que a vida e a morte fugiam da alçada humana e, por
isso, valia a pena tomar a precauções. Assim o realizou Izabel Fernandes da Rocha
que, em 1727, fechou testamento com os seguintes argumentos: “dezejando por minha
48
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. 1754-1756 – Auto de Contas de Josefa
Rodrigues Bicuda.Testamento em anexo de 1754.
29
Alma no Caminho da Salvação por não Saber o q Deoz NoSo Senhor de min quer
fazer E quando serâ servido de me levar [ileg. 1] Faco este Teztamento”.
49
Outros ditavam testamento quando iriam se embrenhar em atividades que
poderiam colocar suas vidas em risco. Nesse caso, Alcântara Machado indica que
muitos sertanistas, antes de adentrarem os sertões, tomavam a precaução de deixar
testamento. Na documentação que eu disponho ninguém explicitou esse motivo. Mas,
deve-se considerar que os sertões de Curitiba comportavam um bom contingente de
homens que se deslocavam com certa freqüência tanto pela atividade tropeira como
pelas sucessivas ordens dos capitães-generais em defender o território lusitano nas
querelas com os espanhóis. Logo, é possível pensar que ao menos uma parcela deles
tenha feito seus testamentos em fases da vida em que não necessariamente se “sentiam
a proximidade da morte”, tomavam apenas medidas de precaução.
Todavia, a precocidade de muitos em fazer seus testamentos acabava gerando
inúmeras alterações no teor do documento. Tal procedimento era previsto em lei e
recebiam o nome de codicilo. Com ele, o testador poderia modificar disposições
anteriores como, por exemplo, retirar o reconhecimento de uma dívida por tê-la
quitado; alterar herdeiros e até mesmo os testamenteiros e incluía ou excluía valores
referentes a obras pias. Enfim, os codicilos correspondiam às próprias transformações
na vida dos testadores que, caso entendessem pertinente, poderiam até deserdar um
herdeiro necessário.
O que é certo é que, ao longo do setecentos, a sociedade dos sertões de Curitiba
já assumira a conveniência de estabelecer suas vontades por meio de um instrumento
escrito, de caráter público que, por isso mesmo, detinha conseqüências jurídicas. Ao
testar, os indivíduos expunham disposições relativas a questões materiais e simbólicas
a serem tomadas após a sua morte. Tais disposições abrangiam, assim, indicações
relativas à distribuição, no todo ou em parte, de seus bens, a quitação de suas dívidas,
o reconhecimento de eventuais filhos ilegítimos, bem como medidas que favorecessem
a salvação de sua alma.
49
Ibid.: 1727 – Auto de Contas de Izabel Fernades da Rocha. Testamento em anexo de 1725.
30
As Ordenações Filipinas reconheciam três modalidades de testamentos: o
nuncupativo, o hológrafo e o público. A primeira modalidade corresponde a uma
enunciação oral do testador que, confirmada por testemunhas, adquiria legitimidade.
Era um recurso utilizado por pessoas que adoeciam subitamente, que morriam
distantes da vila ou que adiavam a ocasião de fazer o testamento perante o escrivão e
morriam de forma inesperada. Já, o hológrafo era um documento redigido e assinado
pelo testador, mas carecia de testemunhas e da aprovação do tabelião. Finalmente, a
última modalidade era o testamento público, aquele escrito pelo tabelião da vila.
50
Independentemente da modalidade do testamento, ele trazia informações que
identificavam o testador. Normalmente, essa indicação continha sua naturalidade e
filiação. Portanto, é comum encontrar frases como:
DeCLaro que Sou natural da villa de Cananea Filho Ligitimo de Joam Rodrigues
Sexas e de Sua molher Maria maSiel BarboZa –
51
Declaro que Sou natural da villa de Itu[?] filha de Gaspar[?] Rodrigues Vitto e de
Sua molher Izabel Bicuda legitima
52
Outra forma de o testador identificar-se era indicando o nome de seu cônjuge e,
em havendo, nomeando os filhos:
DeCLaro que Sou Cazado Com Maria Soares de Cujo Matrimonio tive Coatro
filhos a Saber duas femias e dous machos /// DeCLaro que estas duas femias
chamaSe Ignes ja defunta Cazada que foý Com Manoel Rodrigues Lisboa e outra
JuLiana Rodrigues molher de ALexandre de morais franCo os Coais lhe deý Seu
dote que lhe permite não [cor.] delles Couza alguma /// DeCLaro que os dous filhos
machos chamaSse Joam e Manoel
53
50
DAUMARD, Adeline (et al.). Op. cit. , 1984. p. 190-193.
51
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. 1736 – Auto de Contas de Antonio
Rodrigues Seixas. Testamento anexo de 1733.
52
Ibid. 1754-1756 – Auto de Contas Josefa Rodrigues Bicuda. Testamento em anexo de 1754.
53
Ibid. 1736 – Auto de Contas de Antonio Rodrigues Seixas.Testamento em anexo de 1733.
31
Além da preocupação em nomear os filhos ‘machos’ e ‘fêmeas’, os maiores e os
menores de idade, os testamentos acabavam por motivar, particularmente quando feito
in-extremis, o reconhecimento de filhos ilegítimos, adulterinos ou expostos.
Nessa situação está o texto do testamento de Sebastião Cardoso Serpa, de 1789,
ao expor:
Declaro que nunca fui Cazado porem morando eu a mais de vinte annos No Rio
grande de minas Cumarca do Rio das mortes Antonia Pereira que vivia de huma
venda ou Caza de pasto, tendo Varios filhos hú chamado Manoel Cardozo E outra
chamada FeLiçia Per.
a
diçe ella Serem meus filhos o que poderia Ser mas eu ignoro
Sejão por que ella moraria em Sua Caza Com Liberdade da Sua Comua vida: E eu
andava de viagens Sem aSistencia Confinada no mesmo ArraaL; e nesta villa tive eu
filho por nome João, havido de Maria Solteira, Escrava do Cap.
am
Manoel GLz’
Guimarais
54
Em geral, incluem as súplicas de ordem religiosa, com invocações, rogações,
petições e encomendações da alma à Santíssima Trindade, Jesus, Maria e aos santos
protetores. Estabelecem determinações a serem observadas quanto ao corpo, ao
sepultamento, ao funeral e aos cuidados espirituais post-mortem. Felipe de Souza de
Amaral, em 1756, pede:
Primeiramente emcomendo minha aLma a SantiSima trid.
e
que a creou, e Rogo ao
Padre, eterno pella morte e Paixam de Seu unigenito filho a queira ReSeber como
ReSebeo a Sua estando para morrer na arvore da verd Crux e a meu Senhor JEzu
Christo PeSso por Suas divinas chagas que ja que me fes merce dar Seu preciozo
Sangue e mereSsimento de Seus trabalhos me faça tambem m.
ce
na vida que
esperamos dar[?] o premio delles que he a gloria, e peSso e Rogo a glorioza Virgem
Maria Senhora NoSsa e Madre de Deos e a todos os Santos da Corte Sellestial
particullarmentes ao meu Anjo da goarda e ao Santo de meu nome S. Philipe e a S.
Bento e a virgem N. Senhora da ComSeiSam a quem tenho devoSão queiram por mim
imterSeder e Rogar a meu Senhor JEzu Christo agora e quando m.
a
alma deste Corpo
Sahir porque como verdadeiro Christam protesto viver[?] e morrer em a Santa fe
CatoLica, crer o que teme e cre a Santa Madre Igreja de Roma e a minha fê[?]
[apagadas ± 3 pal.] minhal Alma [f. 3v] ALma não por meus mereSimentos mais pello
do SamtiSsimo do unigenito filho de Deos (...)
54
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-06 – Processos gerais antigos – 1789-1805. 1795 – Auto de Contas de Sebastião
Cardoso Serpa. Testamento em anexo de 1789.
32
Meu corpo Sera Sepultado na Igreja Matris de N. Sr.
a
da Lux[?] desta villa em habito
de Sam Fran.
co
aCompanhado com todas as Cruxes das comfrarias que ouver e todos
os SaSerdotes que Se acharem na villa
Por minha Alma deixo Se diga Seis miSsas de Corpo prezente no dia de meu
falleçimento, e quando Se não poSsam dizer no mesmo dia Se dira no dia Seguinte
deixo mais Se me diga hua miSa a virgem N. Senhora da ComSeiSsão e outra ao meu
Anjo da goarda, e outra ao Santo do meu nome deixo mais hum ofecio de nove
Leçoms tûdo por minhâ alma.
55
No momento de declarar seus bens móveis e imóveis – ou de raiz – suas dívidas
ativas e passivas, o testador dispõe enumerando os herdeiros, indicando as respectivas
legalizações dos bens, bem como sobre os legados pios, assim como o valor das
dívidas e seus credores. Paula Luiza Tigre, em 1737, testou seus bens e dividendos da
seguinte forma:
meya Legoa d' terras emtre o palmitar, e bacaxihu das quoais tem hua escritura aSim
mais hú Citio omatuba na mesma meya Legoa Com hua caza d' telha aSim mais duás
cazas na V.
a
Sitas[?] na Rua[?] da capela d' N.
a
S. do Terso parede e meya Co as
cazas de Jozeph de Mendonsa aSim mais oito egoas entre mansas e bravas dond'
entrão dous potros tres[?] Colheres de prata, hú anel d' ouro, dous pratos de estanho,
duas cazas, Coatro emchadas, a hú machado, Seis frascos[?]
Declaro q' me he devedor Diogo da Costa meya aRoba e hú par de livras[?] d' to
Sinco[?], aSim mais huá pancha d' mantega e duas Ro.
as
[?] de canela. Deve [cor.] de
Lemos Bicudo Sinco Rezes q.' as emtregou a[?] João da Sylva Pinheiro, Nastacio
Roiz. deve as[?] Seg.
tes
[?], o Tenente Coronel 8000 digo 12000 o cedido de hú Potro
Declaro q' devo a M.
a
Roiz.' da Gama duas p.
las.
.
56
Outros ainda, como Josefa Rodrigues Bicuda, em 1754, deixavam claros os
acontecimentos que levaram ao pouco cabedal adquirido:
Declaro que Sou natural da villa de Itu[?] filha de Gaspar[?] Rodrigues Vitto e de
Sua molher Izabel Bicuda legitima, declaro que fui cazada Com Bentho[?] Romeu[?]
Nunes nesta villa de Coritiba, e deste meu Matrimonio nam tivemos filho algum, e
55
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. 1753 – Auto de Contas de Felipe de
Souza de Amaral.Testamento em anexo de 1751.
56
Ibid. 1740 – Auto de Contas de Paula Luiza Tigre.Testamento em anexo de 1737.
33
deste Matrimonio antes do fallecimento do dito meu Marido por parte da Justiça
fizeram confisco em todos os bens delle.
57
Também constituía a nomeação do testamenteiro ou testamenteiros, ou seja,
aqueles que dariam conta dos desígnios do testador num processo denominado auto de
contas. Trazem os testamentos, as informações sobre seu nome, o sexo e a relação
familiar com o testador.
DeCLaro que para Satisfazer meus Legados ad Cauzas Pias aqui deCLaradas e dar
expediente ao mais que neste meu Testamento ordeno trono a pedir a meus filhos
Joam Rodrigues e Manoel Rodrigues – [f. 5] meu Genrro[?] ALexandre de [cor.]
franCo[?] meus Testamenteros por ServiSo de Deos noSso Senhor e por me fazerem
merCe queiram aSeitar Serem meus Testamenteirros Como no prinSipio deste meu
Testamento peSo aos Coais e a Cada hum in Solidum dou todo o poder que em direito
poSso e for neSeSario pera de meus bens, tomarem e venderem o que neSeSario for
para meu emterramento e Comprimento de meus Legados e paga de minhas dividas.
58
Para ter validade, o testamento necessitava de alguns requisitos quando de sua
feitura. De acordo com as Ordenações, exigia-se que fosse escrito e assinado pelo
testador ou outra pessoa a seu rogo. Devia ser feito em presença de cinco testemunhas,
lido diante delas e, depois de lido, assinado por elas. O próximo passo seria levar
diante do tabelião (caso não fosse ele quem tivesse escrito o documento). O oficial
deveria reconhecer as testemunhas e o testador, assim como dar validade as suas
últimas vontades.
Verifica-se que os testamentos levantados para os sertões de Curitiba passaram
por esse processo, logo, tiveram a validade da lei. Alguns escritos com mais
pormenores pelo tabelião, outros nem tanto, tiveram sua aprovação, demonstrando o
zelo da população em formalizar a transmissão patrimonial sob a forma da lei. Um dos
processos que mais exemplifica esse trâmite legal do termo de aprovação do
testamento, incluso no auto de contas, é o de Jerônimo da Veiga Cunha, ocorrido em
1745.
57
Ibid. 1754-1756 – Auto de Contas de Josefa Rodrigues Bicuda.Testamento em anexo de 1754.
58
Ibid. 1736 – Auto de Contas de Manoel Rodrigues Seixas.Testamento em anexo de 1733.
34
Em nome de Deos amen / Saybão quantoz este publico instrumento de aprovaSsão de
Sedulla de Testamento Virem que no anno do NaSsimento de NoSo Senhor Jezus
christo de mil e SeteCentoz e quarenta e Sinco annoz aoz dezoyto dias do mes de
Janeyro do dito anno em o Bayrro de São Jozeph em cazas e moradas de Paullo da
Rocha Dantas estando ahy doente o Sargento Mor Hieronimo da veiga e cunha em
Seu perfeyto juizo e intendimento pello qual Logo me foý dito a min Manoel Borges de
São Paýo escrivão nesta Villa de Curitiba estando prezentes as Testemunhas aodiente
nomeadas que elle tinha mandado fazer esta Sedulla de Testamento para descarga de
Sua ConSiençia e bem de Sua alma para o qual me Requeria aprovaSse o dito
Testamento o qual elle Testado me entregou de Sua mão a minha estando em Seu
perfeyto Juizo, e intendimento o qual Testamento esta escripto em duas meýas folhas e
metade de outra Sem ter borrão [cor.] nem entrelinhas e fica Serrado [cor. + - 4 pal.]
e lacrado [cor. + - 5 pal.] tambem [cor. + - 5 pal.] outorgou [f. 6] Outorgou por Seu
Testamento e hultima vontade, e quer e manda que quanto nelle esta escripto Se
cumpra e goarde inteýramente como nelle Se contem e manda que não seja aberto
nem Lido nem publicado Thê que noSso Senhor o Leve para Sý da vida prezente, e
diSse que Rogava digo que Revogava quaizquer outroz Testamentoz e condeSillioz
que antes deste tinha feytoz em qualquer maneyra e forma que Seja para que não
valhão Se não este que dentro das ditaz folhas esta escripto o qual mandou que valha
por Seu Testamento ou condiSsillio ou por aqueLa via que de direyto mais pode, e
deve valler por que tudo, o nelle contheudo he Sua hultima vontade em Testemunho do
qual mandou fazer este Instrumento de aprovaSsão que aSignou Sendo prezentes por
testemunhas chamadas Estevão Ribeýro Baýão e Domingos cardozo de Leão e Jozeph
da veiga de Godois, e veriSsimo da veiga, e Antonio da veiga, e eu Manoel Borges de
São Paýo Tabalião do publico e Judicial desta dita villa de NoSa Senhora da lus dos
Pinhais de curitiba que fis e escrevy esta aprovaSão que aSigneý aqui de meu propio
Signal tal hé como abayxo [cor. + - 3 pal.]
59
Já os inventários post-mortem são os processos judiciais para a legalização da
transferência de bens. De acordo com as Ordenações, eram legalmente obrigatórios em
quatro casos: quando ao falecer um dos cônjuges ficassem com filhos ou netos
menores de 25 anos, mesmo que ilegítimos, sob a pena de perder o usufruto dos bens
destinado aos menores, caso o inventário não fosse aberto no prazo máximo de 30 dias
após o falecimento do cônjuge; quando os interessados estivessem ausentes; quando o
falecido não deixasse herdeiros; quando houvesse bens dos pródigos, órfãos e
mentecaptos. Contudo, era recorrente a abertura de inventário mesmo que os herdeiros
fossem maiores, pois havia interesse em reconhecer a real situação patrimonial dos
falecidos. E, em não havendo herdeiros necessários forçados, interessava à Coroa e
também a terceiros possíveis direitos na herança.
59
Ibid. 1752 – Auto de Contas de Jeronimo da Veiga Cunha. Testamento em anexo de 1745.
35
Os inventários deveriam ser procedidos por um juiz ou escrivão de órfãos,
porém, caso estes estivessem ausentes, poderiam ser executados pelo tabelião. Márcia
Graf pontua que “o inventário dos bens deixados por falecimento podia ser requerido
pelos herdeiros, pelo testamenteiro ou qualquer outra pessoa que o desejasse”.
60
Precedendo às partilhas, os inventários têm por fim apurar o que constitui a
herança, os haveres, tais como terras, casas, escravos, gado, ferramentas, móveis,
armas, tecidos, roupas, livros, jóias, objetos de uso pessoal e do doméstico, entre
outros. Esses bens são avaliados individualmente por peça, por um, ou dois,
avaliadores indicados para esse fim.
As partilhas fazem cessar o estado de comunhão sobre todos os bens da
herança, distribuindo-a entre os herdeiros. Os inventários, além do inventariante, em
geral indicam o nome do inventariado, a data do óbito, o local do mesmo e a causa-
mortis, bem como o estado civil do falecido, o nome do cônjuge, a filiação, a
existência de herdeiros, o seu número, se diretos ou colaterais, os seus nomes, o sexo,
o estado civil, a idade, o grau de parentesco, legitimidade, entre outros. Incluem, como
vimos, a descrição pormenorizada dos bens móveis, imóveis, das dívidas ativas e
passivas, suas respectivas avaliações judiciais, o total do espólio, os impostos de
tramitação, entre outros. Após a partilha, que é principiada pelos bens móveis,
passando aos bens de raiz e depois às dívidas ativas, o escrivão faz as entregas aos
herdeiros na forma das cotas ordenadas pelo juiz. Os herdeiros colocam-se de posse
das respectivas porções, determinadas nas partilhas que, para efeito, lhes foram
passadas. O documento é encerrado com as assinaturas dos inventariantes e dos
herdeiros, que, em muitos casos, são os mesmos.
Vale dizer que os testamentos e os inventários post-mortem são de grande valia
porque seus formatos sofreram poucas alterações no correr dos séculos XVI ao XIX.
Portanto, tais documentos se prestam-se a estudos que permitem comparações entre
parentes, famílias e bens nesse período, já que apresentam aproximadamente o mesmo
tipo de informação. Deixam revelar, não só os bens que significam rendimentos, mas
60
GRAF, Márcia Elisa de Campos. Os Testamentos. In.: DAUMARD, Adeline (et al.). Op. cit., 1984,
p.179.
36
também as questões da vida em família, as divergências, as disputas, os contornos
afetivos das ligações dentro do lar e as amizades, que, além das determinantes
econômicas e sociais, influenciaram as estratégias familiares.
37
1.4 A PRÁTICA DE TESTAR NOS SERTÕES DE CURITIBA
Assim como para as demais regiões das terras lusitanas na América,
encontramos testamentos e inventários post-mortem nos sertões de Curitiba. Do
período que se estende de 1695 a 1805, foram levantados 32 inventários junto ao
Arquivo Público do Paraná, nas caixas dos processos judiciários do Juízo de Órfãos de
Curitiba, 10ª Vara Cível (JP-01, JP-02, JP-03 e JP-04). Vale notar que, dois processos
foram encontrados em “caixas avulsas”, sem numeração. Do total, cinco tinham, em
anexo, a transcrição do testamento do indivíduo e um trazia em anexo um outro
testamento.Teve que se transcrever ou fichar todos, à exceção do inventário de
Baltazar Carrasco dos Reis
61
.
Já os testamentos encontram-se em fundos diferentes. Apenas um deles estava
impresso e foi retirado do Diccionário Histórico e Geográfico do Paraná.
62
No Arquivo
Público do Paraná foram encontrados oito processos de auto de contas com os
testamentos em anexo ao processo. E no Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo
Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo, foram recolhidos 28 Processos de Auto
de Contas, todos manuscritos, totalizando para o período estudado 42 testamentos.
Unindo testamentos e inventários post-mortem somam-se 74 documentos.
63
Contudo, esses processos não se distribuem uniformemente por todas as
décadas entre 1695 e 1805, pois 83,2% deles foram produzido na segunda metade do
século XVIII, conforme tabela 1.
61
Peças do Inventário do Capitão Povoador Baltazar Carrasco dos Reis – 1697 – Edição do Arquivo
Público do Paraná, 1986.
62
LEÃO, Op. Cit. 1994. Matheus Martins Leme. Volume III. pp. 1268-1274.
63
Ver Lista de Fontes.
38
Tabela 1 – Distribuição dos testamentos por período - 1695-1805.
Nº deTestamentos Período
Abs. %
Ano dos Testamentos
1695-1700 1 2,4 1695
1701-1710 0 0,0
1711-1720 1 2,4 1711
1721-1730 1 2,4 1725
1731-1740 2 4,8 1733-1737
1741-1750 2 4,8 1745-1750
1751-1760 2 4,8 1751-1754
1761-1770 14 33,3 1761-1763-1763-1763-1764-1764-1765-1766-1767-
1767-1767-1767-1768-1769
1771-1780 6 14,2 1771-1771-1771-1774-1774-1776
1781-1790 2 4,8 1784-1789
1791-1800 6 14,2 1792-1793-1795-1797-1797-1799
1801-1805 5 11,9 1801-1801-1801-1802-1805
TOTAL 42 100,0
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805; Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo
de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível; LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico
do Paraná. Curitiba : Empresa Graphica Paranaense , 1994. Volume III. pp. 1268-1274
Já a distribuição dos inventários post-mortem por período mostra irregularidade
maior ainda, como se pode observar na tabela 2.
Tabela 2 – Distribuição dos inventários post-mortem por período - 1697-1805.
Nº de Inventários Período
Abs. %
Ano dos Inventários
1697-1700 1 3,1 1697
1701-1710 0 0,0
1711-1720 4 12,5 1711-1720-1729-1729
1721-1730 0 0,0
1731-1740 0 0,0
1741-1750 0 0,0
1751-1760 0 0,0
1761-1770 1 3,1 1769
1771-1780 0 0,0
1781-1790 22 68,8 1781-1781-1782-1783-1783-1784-1785-1785-1785-
1785-1786-1786-1786-1787-1787-1787-1787-1787-
1788-1788-1789-1789
1791-1800 4 12,5 1792-1794-1795-1798
1801-1805 0 0,0
TOTAL 32 100,0
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª
Vara Cível
39
Dado o fato de que optei por classificar a documentação pela década de sua
elaboração, a tabela 2 deixa claro que para vários períodos não restou nenhum
inventário. Convém lembrar que, ao longo de sua história, o Arquivo Público do
Paraná sofreu alguns incêndios, o que pode ter contribuído para a perda desse tipo de
documentação. Com efeito, boa parte dos 32 inventários está escurecida e, ou, com as
bordas chamuscadas pelo fogo. Porém, há que se considerar que problemas de
armazenamento do material, a ação do tempo, tiveram seu papel na perda desse
material, pois se constata que a grande maioria dos documentos preservada concerne à
segunda metade do século XVIII, mais especificamente o último quarto do século, ao
qual corresponde 81,3% dos documentos consultados para essa pesquisa.
Mas, como um dos objetivos da pesquisa é investigar a respeito da acumulação
e da transmissão de bens nos sertões curitibanos, a união dos dois corpos documentais,
mostrou-se fecunda para dimensionar quem acumulou e repassou patrimônio nessa
região bem como balizar os períodos para os quais se dispõe de maior número de
informações.
Tabela 3 – Distribuição dos testamentos e inventários post-mortem por período - 1695-1805.
Nº de Documentos
Período
Abs. %
Ano dos Documentos
1691-1700 2 2,7 1695-1797
1701-1710 0 0,0
1711-1720 5 6,8 1711-1711-1720-1729-1729
1721-1730 1 1,3 1725
1731-1740 2 2,7 1733-1737
1741-1750 2 2,7 1745-1750
1751-1760 2 2,7 1751-1754
1761-1770 15 20,3 1761-1763-1763-1763-1764-1764-1765-1766-1767-1767-
1767-1767-1768-1769-1769
1771-1780 6 8,1 1771-1771-1771-1774-1774-1776
1781-1790 24 32,4 1781-1781-1782-1783-1783-1784-1784-1785-1785-1785-
1785-1786-1786-1786-1787-1787-1787-1787-1787-1788-
1788-1789-1789-1789
1791-1800 10 13,5 1792-1793-1795-1797-1797-1799-1792-1794-1795-1798
1801-1805 5 6,8 1801-1801-1801-1802-1805
TOTAL 74 100,0
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805; Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de
40
Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível; LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico do
Paraná. Curitiba : Empresa Graphica Paranaense , 1994. Volume III. pp. 1268-1274.
Como se observa na tabela acima, o esforço de conjugar testamentos e
inventários por décadas favoreceu uma melhoria na distribuição temporal das
informações, mesmo que não se tenha suprido a lacuna da década de 1710 e a segunda
metade do século XVIII contenha maior volume de documentação. Deve-se notar,
contudo, que a distribuição de documentos não equivale ao número de indivíduos
considerados nesse trabalho, uma vez que em cinco inventários foram encontrados
transcritos os testamentos. Assim, contamos com 74 documentos (entre inventários e
testamentos) relativos a 69 indivíduos.
Além disso, ao comparar o número absoluto, tanto de testamentos quanto de
inventários setecentistas encontrados para a vila de Curitiba e arredores com os que se
mantêm arquivados em outras regiões,
64
verifica-se que a quantidade de fontes de que
dispomos é bem menor. Ainda assim e mesmo considerando o quadro lacunar da
documentação abarcado, efetuamos um exercício para avaliar a representatividade
dessas fontes remanescentes, estabelecendo uma relação entre ela e a população do
planalto curitibano no século XVIII.
Os dados de população da dita localidade são esparsos para o século XVII até
meados da segunda metade do século XVIII. Em 1693, o número de homens adultos
em Curitiba, “por oje ser mui crescido por passarem de noventa homens”,
65
foi o
bastante para o requerimento da criação e instalação das Justiças do Reino, isto é, a
implantação da câmara municipal.
64
Alguns autores que realizaram trabalhos a partir de inventários e testamentos são dignos de nota:
Muriel Nazzari, para a cidade de São Paulo, levantou um total de 294 inventários divididos entre os
séculos XVII a XIX. Sheila de Castro Faria utilizou-se de 224 inventários e 87 testamentos do século
XVIII para a Capitania da Paraíba do Sul. Para Campinas, no período de 1774 a 1850, Paulo Eduardo
Teixeira faz o uso de 590 processos entre testamentos e inventários. Já Sílvia Maria Jardim Brüegger,
em estudo sobre São João Del Rei, utilizou-se de 420 documentos entre inventários e testamentos. A
Província da Bahia gerou, para o estudo de Kátia Mattoso, 493 inventários, apenas 30% do total
disponível para o período (1860-1888) depositado no Arquivo do Estado da Bahia. Finalmente, para as
Comarcas setecentistas de Rio das Velhas e Rio das Mortes, Eduardo Paiva utilizou-se de 858
documentos entre os citados.
65
BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Fundação da Villa de Curytiba. Vol. 1,
1668 á 1721. Curitiba : Typ. E lith. A vapor Impressora Paranaense , 1906. p. 04.
41
Com o intuito de organizar as vilas do sul, entre fins de 1719 e meados de 1721,
vem ao extremo sul da capitania de São Paulo o Ouvidor Raphael Pires Pardinho.
66
Por incumbência de seu cargo, que “no Brasil os ouvidores exerciam, de acordo com
os regimentos, as funções atribuídas aos corregedores na Metrópole”
67
, o Ouvidor
promoveu nas vilas de: Santo Antonio da Laguna, Nossa Senhora do Desterro da Ilha
de Santa Catarina, Rio de São Francisco, Nossa Senhora da Luz de Curitiba e de Nossa
Senhora do Rosário de Paranaguá, correições. Esse Ouvidor veio a relatar as condições
das vilas ao Rei e instituir Provimentos que as ordenariam. Os Provimentos continham,
entre outras determinações, “a maneira pela qual a justiça ordinária deveria agir;
também cuidou em instruir os vereadores na boa administração dos bens dos
Concelhos, de modo que aquelas povoações fossem bem governadas e que se
assegurasse o ‘bem comum’ delas”
68
. Pardinho, em carta ao Rei, de 7 de junho de
1720, estimava a população do planalto curitibano informando que “haverá nas duas
freguesias de Curitiba 200 cazaes, mais de 1.400 pessoas de confissão”
69
. Ou seja,
neste cálculo foram incluídos apenas aqueles indivíduos maiores de sete anos e livres,
uma vez que Pardinho utilizou-se dos róis de confessados para informar o número de
moradores das duas freguesias (Nossa Senhora da Luz de Curitiba e a de São José e
Bom Jesus dos Perdões), portanto, excluindo a população infantil, além dos escravos e
índios administrados.
Se, como se observou, até a primeira metade do século XVIII os dados relativos
aos habitantes são fragmentados e pontuais, para a segunda metade do setecentos
verifica-se neles uma certa consistência. Ao que tudo indica, isso seria resultado das
medidas tomadas por dom Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de
Mateus. Nomeado em 1765 para governador e capitão general da capitania de São
66
Sobre a atuação do ouvidor Raphael Pires Pardinho ver: PEREIRA, M. R. de M.; SANTOS, A. C.
de A. Para o Bom Regime da República: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial.
Monumenta, Curitiba, vol 3, nº 10 : Aos Quatro Ventos, p. 01-19, 2001. LACERDA, Arthur Virmond
de. As Ouvidorias do Brasil colônia. Curitiba, : Juruá, 2000.
67
Cf. SALGADO, G. (org.). Op. cit., 1985. p.74.
68
PEREIRA, M. R. de M.; SANTOS, A. C. de A. Para o Bom Regime da República: ouvidores e
câmaras municipais no Brasil colonial. Monumenta, Curitiba, vol 3, nº 10 : Aos Quatro Ventos, p. 01-
19, 2001. p. 12.
69
MARCONDES, Moyses. Documentos para a história do Paraná. Rio de Janeiro : Typographia do
anuário do Brasil , 1923. p.20-23.
42
Paulo durante o período em que houve um gradual declínio do ouro nas Minas, entre
as décadas de 1760 e 1770, o Morgado de Mateus tinha o intuito de restaurar a
economia e o prestígio de São Paulo. Preocupou-se com a expansão territorial, com a
urbanização e com a preparação de uma infra-estrutura política e econômica, que
somente fez-se sentir no final do século XVIII.
Imprimindo a sua gestão um cunho militar, ordenou a contabilidade sistemática
da população por meio das Listas Nominativas. Estas tinham por objetivo conhecer a
composição da população visando a uma melhor arrecadação de impostos e à
identificação das potencialidades militares da população em função das disputas de
fronteira com a Espanha. É assim que cada vila foi reorganizada em Companhias de
Ordenanças com base na quantidade das populações. Curitiba foi dividida em cinco
Companhias: primeira e segunda Companhias da vila de Curitiba, a freguesia do
Patrocínio de São José (terceira Companhia ); a freguesia de Santo Antonio da Lapa
(quarta Companhia) e a freguesia de Sant’Ana do Yapó (quinta Companhia). Os
primeiros censos consideraram apenas a população livre. Entretanto, a partir da década
de 1770, todos os habitantes foram incluídos nas listas, à exceção dos indígenas, cuja
maioria escapava ao controle das autoridades portuguesas.
Com base nesses censos, Maria Ignes Mancini De Boni indica que entre 1776 e
1785 houve um crescimento de 91,0% da população. Se, em 1776, havia 2.098
indivíduos livres e 407 escravos, num total de 2.505 moradores na vila de Curitiba, em
1785 esse número passa para 4.566, sendo 3.517 livres e 1.049 escravos. Esse
crescimento resulta do fato de o número de escravos quase triplicar nesse período e do
acréscimo de território, em função do surgimento de novos bairros.
70
Ana Maria Burmester também constrói um quadro com base nas listas
nominativas, desagregando a população curitibana na segunda metade do setecentos
em livres e escravos.
70
DE BONI, Maria Ignez Mancini. A população da Vila de Curitiba segundo as listas nominativas
de habitantes, 1765-1785. Dissertação de mestrado. Curitiba, 1974. p. 50.
43
Tabela 4: A população de Curitiba. Evolução numérica de 1772 a 1800.
Anos Livres Escravos Total
1772 1.835 104 1.939
1776 2.098 407 2.505
1778 2.791 491 2.283
1782 2.948 815 3.763
1783 3.427 948 4.375
1785 3.517 1.049 4.566
1786 3.497 1.018 4.515
1792 4.324 1.045 5.368
1798 5.393 1.172 6.565
1800 5.470 1.188 6.658
Fonte: BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A população de Curitiba no século XVIII – 1751-
1800, segundo os registros paroquiais. Curitiba : Dissertação de mestrado/UFPR , p.12.
Ao confrontar os dados populacionais com o número de testadores e
inventariados, à primeira vista, pode-se inferir que, dentre o universo dos livres, essa
cifra ainda é pequena comparada com a população. Entretanto, esses valores abarcam
um elevado número de indivíduos que ainda não estavam em idade de testar. Segundo
as Ordenações Filipinas, não estavam aptos a fazer testamento “o Varão menor de 14
annos e a fêmea menor de doze”.
71
Ao lado disso, um outro cruzamento nominativo de fontes apresentou-se como
uma possibilidade para dar dimensão ao corpo documental de testamentos e
inventários. Como essas fontes são características de um momento crucial da trajetória
do indivíduo, qual seja, o do final de sua vida, foi-se observar nos Registros Paroquiais
de Óbito quais indivíduos que faleciam estavam em idade de testar. De imediato deve-
se ter em vista que “das séries paroquiais, estes registros são os que mais apresentam
problemas, variando o conteúdo das atas, a correção das informações, as
possibilidades de identificação do falecido etc., em função da época, do lugar, do
sacerdote que fez o registro, e assim por diante”.
72
As principais críticas a serem
feitas a essa fonte referem-se quanto ao alto grau de sub-registros, principalmente para
a mortalidade infantil e o problema da não-identificação da causa mortis nas atas de
71
Ordenações Filipinas. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 (facsimile da edição
comentada de Cândido Mendes CÓDIGO PHILIPHINO. Rio de Janeiro : Typografia do Instituto
Philomático , 1870. Livro IV, Título LXXXI, p. 908.
72
NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas :
Associação Brasileira de Estudos Populacionais – ABEP , 2004. p.60.
44
sepultamento. Contudo, um dado pode servir de baliza: além de informações como a
data do falecimento, o nome, a idade, a filiação e estado civil do indivíduo, o
recebimento de sacramentos e o local do sepultamento, algumas vezes o pároco fazia
referência à existência ou não de testamento e transcrevia as partes destinadas às obras
pias junto ao registro de óbitos. Quanto aos Livros de Curitiba, vale pontuar que para o
ano de 1764 e o período de 1780 a 1783 não há registros dos sepultamentos nos livros
dos brancos.
De posse dessa informação, realizou-se um levantamento para identificar
quantos indivíduos dos falecidos estavam em idade de testar, comparando ao número
total de óbitos por período. Os resultados foram os seguintes:
Tabela 5: Indivíduos em idade de testar, segundo o nº total de assentos – 1731-1796
Nº de Assentos Em Idade de Testar
Períodos
Abs. % Abs. %
1731-1739 91 9,7 50 8,6
1740-1749 125 13,3 92 15,8
1750-1759 195 20,7 126 21,7
1760-1769 83 8,8 52 9,0
1770-1779 113 12,0 73 12,6
1784-1796 334 35,5 188 32,3
Total
941 100,0 581 100,0
Fonte: Livro de Óbitos de Brancos da Catedral Metropolitana Basílica de Curitiba, nº 1 (1731-
1796)
De um total de 941 falecimentos entre 1731 e 1796, 61,7% dos indivíduos (581)
estavam em idade de testar, de acordo com a legislação vigente. E sobre eles o pároco
informava se havia ou não havia testado. De igual modo, muitas vezes não declarava
nada.
45
Tabela 6: Indivíduos que testaram, não testaram, ou que não foi declarado
Em Idade de
Testar
Testou Não Testou Não declarado
Períodos
Nº Abs % Nº Abs % Nº Abs % Nº Abs %
1731-1739 50 8,6 7 1,2 30 5,1 13 2,2
1740-1749 92 15,8 8 1,4 63 11,0 21 3,6
1750-1759 126 21,7 6 1,0 79 13,6 41 7,1
1760-1769 52 9,0 13 2,2 17 2,9 22 3,9
1770-1779 73 12,6 9 1,6 46 7,9 18 3,1
1784-1796 188 32,3 18 3,1 94 16,1 76 13,0
Total 581 100,0 61 10,5 329 56,6 191 32,9
Fonte: Livro de Óbitos de Brancos da Catedral Metropolitana Basílica de Curitiba, nº 1 (1731-
1796).
Nesse ponto o cruzamento de fontes teve papel fundamental para que se
pudesse enriquecer a perspectiva de análise. Ora, se de um universo de 581 indivíduos
possíveis de testar, apenas 61 deles haviam feito testamento, não seriam irrelevantes os
42 documentos encontrados
73
. E, se este número parece baixo em comparação às
outras regiões do Brasil colônia, torna-se significativo quando analisado em sua
própria localidade. Note-se que esses 42 testamentos corresponderiam a 68,8% do total
de testamento.
Por outro lado, vê-se que de 191 indivíduos (32,9%), não se sabe se haviam tido
ou não bens. Mesmo assim pode-se inferir que, segundo essa fonte, eles detinham
algum cabedal, ainda que pouco. Diz-se isto, pois, dentre os 56,6% que não testaram, o
reverendo enfatizava o motivo da ausência de suas últimas vontades. Vê-se que a
qualificação (ou o qualificativo) da pobreza variava entre os mais carentes, deixando
perceber distintos níveis de pobreza. Isto pode ser observado na tabela 7, construída a
luz dos assentos paroquiais de óbito.
73
Mesmo observando que há datas não cobertas pelos registros paroquiais.
46
Tabela 7: Indivíduos que não deixaram testamento, segundo indicação do pároco, 1731-1796.
Não Testou Não Fez Não fez por ser pobre
Não fez por ser
muito pobre
Não fez nem tinha
de que
Períodos
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1731-1739 30 9,1 9 2,8 2 0,6 3 0,9 9 2,8
1740-1749 63 19,1 22 6,7 7 2,1 20 6,0 5 1,5
1750-1759 79 24,0 12 3,6 22 6,7 24 7,2 13 3,9
1760-1769 17 5,2 6 1,9 1 0,3 6 1,9 0 0,0
1770-1779 46 14,0 10 3,0 6 2,1 27 8,3 1 0,3
1784-1796 94 28,6 40 12,1 38 11,3 5 1,5 10 3,0
Total
329 100,0 99 30,1 76 23,1 85 25,8 38 11,5
Não fez nem tinha de
que por ser muito
pobre
Não fez por ser
filho família
Não fez por ser religioso de
ordem mendicante
Não fez porque
morreu sem fala
Não fez nem teve
lugar
Não fez por ser
notoriamente
pobre
Períodos
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
1731-1739 6 1,9 1 0,3 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0
1740-1749 6 1,9 0 0,0 1 0,3 1 0,3 1 0,3 0 0,0
1750-1759 7 2,1 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,3 0 0,0
1760-1769 3 0,9 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,3 0 0,0
1770-1779 2 0,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0
1784-1796 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 0,3
Total
24 7,4 1 0,3 1 0,3 1 0,3 3 0,9 1 0,3
Fonte: Livro de Óbitos de Brancos da Catedral Metropolitana Basílica de Curitiba, nº 1 (1731-1796)
47
Com tudo isso, não se pode caracterizar a sociedade dos sertões curitibanos
como desprovida de bens materiais. Isto porque, as fontes paroquiais (no caso registro
de batismo) apontam um volumoso número de escravos africanos e administrados
recebendo tal sacramento, e nos livros do Primeiro Tabelionato de Notas de Curitiba,
verificam-se registros de compra e venda de terras (com suas moradias). Por certo,
indicadores que dão conta das posses dos moradores à época.
Deste ponto em diante busca-se observar o perfil dos testadores e inventariados.
Ao distribuir os testadores segundo o sexo e estado civil, tem-se:
Tabela 8 – Distribuição dos testamentos segundo sexo e estado civil do testador (1695-1805)
Casado
Solteiro
1
as
núpcias 2
as
núpcias
Viúvo Total
Homem
6 18 2 2 28
Mulher
2 2 2 8 14
Total
8 20 4 10 42
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805; Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de
Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível; LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico do
Paraná. Curitiba : Empresa Graphica Paranaense , 1994. Volume III. pp. 1268-1274.
Observa-se que, dos 42 testamentos, 28 foram homens, contra 14 testadoras.
Dentre os homens, a maior freqüência apresentou-se entre os casados em primeiras
núpcias, com 18 casos. Já entre as mulheres, as viúvas eram maioria entre as
testadoras, com 8 casos verificados. Essa mesma distribuição para os inventariados
encontra-se na tabela 9.
Tabela 9 – Distribuição dos inventários post-mortem, segundo sexo e estado civil do inventariado
(n
o
abs.) (1697-1805).
Casado
Solteiro
1
as
núpcias 2
as
núpcias
Viúvo Total
Homem
4 12 2 4 22
Mulher
0 5 3 2 10
Total
4 17 5 6 32
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª
Vara Cível.
O predomínio de autos de inventário masculino supera os femininos
praticamente na mesma porcentagem (se para os testamentos verificou-se 66,6% de
testadores homens contra 33,4% de mulheres, nos inventários têm-se 68,7% de
inventariados homens versus 31,3% de mulheres inventariadas). De igual modo
mantém-se a freqüência de homens casados em primeiras núpcias. Isso também se
verifica para as mulheres, com metade dos casos encontrados, diferenciando-se do
predomínio das viúvas testadoras.
Ao unir o corpo documental, observa-se que as proporções se mantêm.
Contudo, aqui também vale a ressalva quanto ao número total de indivíduos. Há cinco
processos de inventário em que está anexado o testamento, sendo que dizem respeito a
dois homens casados em primeiras núpcias, dois homens solteiros e um homem viúvo.
Então, do total de indivíduos abarcados, os já mencionados 69, temos 45 homens e 24
mulheres.
Tabela 10 – Distribuição dos testadores e inventariados, segundo o sexo e estado civil (n
o
abs.)
(1695-1805).
Casado
Solteiro
1
as
núpcias 2
as
núpcias
Viúvo Total
Homem
8 28 4 5 45
Mulher
2 7 5 10 24
Total
10 35 9 15 69
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805; Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de
Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível; LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico do
Paraná. Curitiba : Empresa Graphica Paranaense , 1994. Volume III. pp. 1268-1274
É extremamente interessante destacar que essa disparidade entre homens e
mulheres não traduz uma equação da sociedade local naquele período. De acordo com
Maria Ignes Mancini de Boni, a população livre de Curitiba, segundo a Lista
Nominativa de Habitantes de 1785, totalizava 3.517 habitantes, sendo 1.709 homens e
1.808 mulheres. Se esses dados podem balizar a quantidade de pessoas livres que
viviam na vila e seus arredores, o rol de 69 indivíduos que constituem a amostra desse
trabalho, possibilita afirmar que nos sertões de Curitiba nos setecentos, havia uma
50
população proprietária de bens que estava ciente da legislação de sucessão de heranças
e dela se utilizava para legar seu patrimônio. O próximo passo consistirá em analisar o
testamento como um mecanismo que desvela as redes de relacionamento estabelecidas
ao longo da vida do testador.
51
CAPÍTULO II
O TESTAMENTO COMO UM SISTEMA DE GARANTIAS:
“E POR QUANTO ESTA EH MINHA ÚLTIMA VONTADE”
O testamento, bem como todos os demais documentos que acompanham a
transmissão patrimonial, é um instrumento legal regulado como matéria jurídica. De
fato, a organização do direito, desde muito cedo, ocupou-se em garantir a
inviolabilidade da propriedade particular. Para Clóvis Beviláqua, a transmissão de
herança no ‘direito antigo’, pré-romano, “a posse da propriedade continuava
inalteráveis, depois da morte do chefe do grupo; apenas mudava a pessoa do
administrador da fortuna doméstica”.
74
No caso do direito português, Arno Wehling e Maria José Wehling, ao
investigarem as transformações no direito sucessório no período pré e pós-pombalino,
afirmam que as mudanças determinadas pela lei de 1769, sobre os bens hereditários,
acompanhavam as tendências das ‘leis modernas’ da Europa e estavam preocupadas
com os fomentos econômicos mercantilistas. Nesse caso, a sucessão deveria objetivar
a consolidação do patrimônio dentro da organização familiar.
75
Todavia, o processo
sucessório tinha a seu dispor outras estratégias.
Neste capítulo, pretende-se analisar o testamento numa perspectiva da história
social, utilizando-os para observar quão reveladores podem ser a respeito dos
relacionamentos que os testadores estabeleceram ao longo de suas vidas.
Assim, parte-se da premissa em que os testamentos, pari e passu sua natureza
legal, permitem observar aspirações pessoais e laços sociais que os indivíduos
construíram ao longo de sua vida. De fato, o momento de testar pode ser equiparado a
um balanço da própria existência. Não apenas no que se refere aos aspectos materiais,
em torno do qual é construído o documento testamentário, mas, no período
setecentista, seria uma ocasião estratégica de acionar mecanismos com vistas na
implementação de determinados planos para certos membros da família. Planos estes
74
BEVILÁQUA, Clóvis. Op. cit. p. 27.
75
WEHLING, Arno e Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o tribunal da relação do Rio
de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro : Renovar, 2004, p. 515-520.
52
voltados a aplicar partes do patrimônio na aquisição ou manutenção da honorabilidade
para as gerações posteriores.
Para que fossem efetivamente “feitas às últimas vontades”, o indivíduo
necessitava das garantias estipuladas da legislação. Mas, ao que tudo indica, era
também primordial fazê-lo assegurando-se que suas determinações seriam levadas a
cabo. Assim, a elaboração de um testamento parece ter sido acompanhada por uma
avaliação da rede de relacionamentos familiares e sociais. De um lado, essa avaliação
destinava-se a refletir a respeito da possibilidade, da necessidade ou da vantagem de
estabelecer beneficiários de partes diferenciadas do patrimônio. De outro, era a ocasião
de efetuar uma estimativa, no interior de própria rede de relacionamentos, com vistas
em calcular os indivíduos que apresentavam qualidades e condições de o executar
quando se apresentasse o momento.
Com esse quadro, pode-se pensar que a formalização do testamento exigia uma
série de ponderações por parte do testador. Dadas suas implicações, acabava
acionando um verdadeiro sistema de garantias entre os indivíduos. Um compromisso
de ordem moral nas sociedades relacionais e que, na hora da morte, refletia “uma
atitude mental que passa pelo crivo de um conjunto de relações sociais imperativas
que são, de fato, muito mais importantes do que o morto que se foi e dos vivos que
ficaram e com ele mantinham elos indissolúveis”.
76
Um primeiro componente desse sistema, como já se sabe, residia na
formalização do testamento seguindo rigorosamente as formas previstas nas
Ordenações Filipinas. Porém, ressalta-se que, para além da instrução correta nos
termos jurídicos, o testador incluía na formalização testamentária outras garantias de
caráter sociológico. Isso se verifica na escolha das testemunhas que o assinavam,
dando-lhe o aval de legalidade e, sobretudo, na indicação dos testamenteiros.
Principalmente esses, como será explorado adiante, eram pessoas do rol mais próximo
dos relacionamentos do testador, não necessariamente familiares consangüíneos. Os
testamenteiros eram personagens centrais no sistema de garantias acionado pelo
testador, pois a eles cabia a responsabilidade de, com correção e lisura, levar a termo
76
MATTA, Roberto da. A casa & a rua. Rio de Janeiro : Rocco , 1997. p. 137.
53
as disposições testamentárias. Eram eles que executariam, a mando do juiz de órfãos,
as instruções testamentárias, e assim essa escolha exigia muita ponderação do testador
para ter a certeza de que seus bens seriam passados para quem lhe conviesse, ou seja,
que fossem reconhecidos quem eram seus beneficiários. De igual modo, a preocupação
quanto ao acerto de suas dívidas e quanto os cuidados devocionais reiteram essas
garantias, que assegurassem, no final de sua vida, seus anseios póstumos, assim como
o cumprimento de seus desígnios.
Contudo, algumas vezes as indicações e rogações não garantiam a efetivação de
suas vontades conforme deixadas em testamento. De fato, a transmissão do patrimônio
era, por excelência, um momento conflituoso, pois nem sempre os herdeiros
necessários, bem com os beneficiados, concordavam ser justa a parte que lhes cabia.
Muriel Nazzari, ao analisar essa questão, destacou a tensão presente nesses momentos
nas organizações familiares; as acirradas contendas de irmãos contra irmãs, pais contra
filhos e avós contra netos. Conforme a interpretação da autora, essas disputas em torno
do legado patrimonial seriam reivindicações “em prol dos direitos dos indivíduos (...)
contra o direito do patriarca [ou matriarca] de decidir o que era melhor para a
família”.
77
As leituras dos testamentos feitas pelos herdeiros, ou por aqueles que se
julgavam no direito de herdar, na maioria das vezes estava ligada à questão do dote
dado às filhas. O dote era um contrato pré-nupcial, estabelecendo um arranjo conjugal
de bens. Ele era o cabedal que a mulher levava para o casamento. Permanecendo
separado dos bens do marido, e na maioria das vezes administrado por ele, não podia
ser alienado ou hipotecado porque devia ser devolvido à viúva. Em grande parte, o
dote dado era a antecipação da legítima, ou seja, a parte do espólio que cabia a cada
herdeiro forçado. Dois terços do espólio líquido, ou todo ele (no caso de mortes
abintestado
78
) de uma pessoa que morrera, eram destinados aos herdeiros forçados e
divididos pelo número de tais herdeiros para dar o valor da legítima de cada um.
77
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudanças social em São
Paulo, Brasil 1600-1900. São Paulo : Companhia das Letras, 2001, p. 128.
78
Sem deixar testamento.
54
Quando se verificava uma certa diferença entre a legítima dos filhos em relação ao
dote ou doações recebidos anteriormente, percebendo-se aí uma flutuação econômica
no que diz respeito aos momentos da vida do testador, era necessário abrir um
processo de colação. Neste processo judicial o dote ou a doação voltava para o espólio
para fins contábeis quando da morte de um dos genitores. Assim, os herdeiros, ou
beneficiários, deveriam receber a diferença entre sua herança e o dote ou doação. Os
dramas e conflitos se davam, nem sempre é claro, quando os filhos “com a ajuda de
advogados e juízes procuravam fazer cumprir as disposições da lei relativa a
igualdade dos herdeiros”.
79
79
NAZZARI, Muriel. Op. cit., 2001. p.128.
55
2.1 QUE FOSSE EXECUTADO
Ao focalizar as estratégias acionadas pelo testador com vistas na plena
execução de suas vontades, há que destacar que uma das indicações mais relevantes do
testamento, quanto à garantia de execução, situava-se na escolha do testamenteiro.
Este seria o encarregado de dar cumprimento às vontades, assim que recebia do
falecido “todo o poder que em direito poSso”.
80
Seria uma incumbência considerável
ser testamenteiro, haja vista que a ele caberia abrir o processo de auto de contas do
testamento. Ao dar cabo das últimas disposições, deveria anexar neste processo os
recibos confirmando que as vontades do testador foram cumpridas, o que, dependendo
da complexidade dos pedidos, estendia-se por muitos anos e tornava o processo bem
volumoso.
Para tal, a escolha desse sujeito que deteria o poder sobre os bens do falecido,
parece indicar para algumas regras da ação social pautadas principalmente na
confiança, na segurança e na honra. É principalmente esta última que dá primazia a
uma hierarquia social baseada na reputação e induz a procura da ‘boa identidade’.
Segundo Pitt-Rivers, é a honra que os outros lhe concedem: "o valor que uma pessoa
tem aos seus próprios olhos mas também aos olhos da sociedade. É a sua apreciação
de quanto vale, da sua pretensão ao orgulho, mas é também o reconhecimento dessa
pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito ao orgulho”.
81
O sistema de garantias estava pautado numa representação das relações sociais
que impunha e pressupunha obrigações mútuas. Além do mais, o testador assumia um
compromisso social que só iria ser cumprido quando uma das partes que estabeleceu o
pacto já estava em outra dimensão, não mais a terrena, mas a transcendente. Logo,
numa sociedade que acatava a interferência do transcendente no cotidiano esse
compromisso adquiria uma faceta de certa sacralidade. Assim, num dado momento
80
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. 1754-1756 – Auto de Contas de Josefa
Rodrigues Bicuda.Testamento em anexo de 1754.
81
Pitt-Rivers, J. (1965). Honra e posição social. In: J. G. Peristiany (Org.), Honra e vergonha.
Lisboa: Fundação Capouste Gulbenkian. pp. 11-60, p.13.
56
“pode desaparecer a relação pessoal entre um determinado morto e os sobreviventes
e relações, mas não desaparece a relação complementar e compensatória entre o
mundo dos mortos e o mundo dos vivos como dois planos fundamentais da
existência”.
82
O que pode ser verificado para os sertões de Curitiba é que, assim como
verificado, por exemplo, para os campos dos Goitacazes
83
, norte fluminense, as
funções de cumprimento das determinações testamentárias eram, em princípio,
familiares.
Tabela 11: Primeiros testamenteiros, segundo escolha de testadores – 1695 – 1805
Casado Viúvo Solteiro
Testamenteiro
Abs. % Abs. % Abs. %
Cônjuge 8 19,0
Genro 4 9,5 2 4,7 1 2,3
Filho 2 4,7 2 4,7 1 2,3
Compadre 1 2,3
Irmão 1 2,3
Cunhado 1 2,3
Sobrinho 1 2,3
Neto 1 2,3
Primo 1 2,3
Não
Identificado 7 16,6 4 9,5 5 12,0
Total 24 100,0 10 100 8 100,0
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805; Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de
Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível; LEÃO, Ermelino de. Diccionário Histórico e Geográfico do
Paraná. Curitiba : Empresa Graphica Paranaense , 1994. Volume III, pp. 1268-1274.
É compreensível que as escolhas dos testamenteiros girassem em torno da
família. Sheila de Castro Faria propõe que a indicação de um dos cônjuges na
preferência para executar as vontades do outro sugeriria uma vida comum, sem
grandes conflitos. Porém, Faria encontrou para preferência na escolha dos cônjuges
como primeiro testamenteiro um percentual de 76%. Ora, um outro olhar para os
82
MATTA, Op. cit. 1997, p. 155.
83
FARIA, Op. cit. 1998, p. 276.
57
sertões curitibanos pode levar a supor que o zelo quanto ao destino dos bens da família
estivesse mais reservado às preocupações da representação com os parentes e aliados.
A relação com o genro sobrepujava no dobro das escolhas dos próprios filhos.
Acredita-se que estas opções, quanto ao primeiro testamenteiro, não signifique um
conflito dentro do núcleo familiar. Na maioria das vezes a família não residia no
mesmo fogo. Nota-se isto, pois, nos processos de auto de contas, apenas em 1 (um)
caso houve uma querela entre irmãos, mas tratava-se de um caso de legitimidade.
Outras questões são feitas quanto ao número de indivíduos que não tiveram a
identificação de seu parentesco com o testador. Contudo, é mister observar que, nos 16
casos, foram solicitados como primeiros testamenteiros 3 (três) Capitães, 3 (três)
Sargentos-mores e, por 3 (três) vezes, o Doutor Lourenço Ribeiro de Andrade. Mas, o
que se percebe é que determinados jogos de trocas e de obrigações se faziam apenas
entre iguais. Desta forma, normalmente os que não foram contemplados nesse quesito
eram indivíduos desclassificados naquele ordenamento social. Além disso, solicitaram
a pessoas que estavam muitos degraus acima deles a função de testamenteiro. Pode ser
observado tal conduta quando investigamos o testamento de Sebastião Cardoso Serpa.
Natural da freguesia de Santo Antonio, da Ilha do Pico, ao que demonstra a
documentação, a sorte não sorriu a este português já que no final de sua vida
encontrava-se solteiro e vivendo com poucos trastes. Contudo, Serpa indicava ter um
filho com a escrava do Capitão Manoel Gonçalves Guimarães. Ainda alegavam ser
dele mais dois filhos no caminho das minas, o que ele não reconhecia. Não legava
terra alguma, e confirmava sua passagem pelo Rio Grande, Taubaté, São João Del
Rey, Rio de Janeiro e Minas Gerais por meio das dividas que deixou. Admitiu ainda,
uma sociedade em um “negócio de sola” com Antonio Teixeira Álvares. Esses
fragmentos da vida de Serpa mostram claramente como um aventureiro que não
conseguiu se distinguir em nenhum dos espaços em que transitou na sociedade
colonial. Seus relacionamentos parecem ter sido todos com pessoas que pertenciam a
uma grau inferior na sociedade: teve filhos com cativas ou com mulheres
desqualificadas, o que lhe permitia colocar em dúvida a atribuição de paternidade que
elas lhe imputavam. São raras as atividades que menciona haver exercido, mas parece
58
ter se ligado a ofícios poucos nobilitantes, dando-lhe o ‘defeito mecânico’ como no
caso de ter um negócio de sola.
Entretanto, no momento de escolher seus testamenteiros, Sebastião
simplesmente solicita que sejam nomeados o “Snr’ Sargento Mor Francisco Xavier
Pinto ou o Snr’ Cap.
am
Mor Lourenço Ribr.
o
de Andr.
e
ou Ao Snr’ Cap.
am
Luis Ribr.
o
da S.
a
que por ServiSso de Deos E por me fazerem merçe queirão Ser meos
testamenteiros”.
84
Ora, Serpa indicou três homens-bons da vila reconhecidos por seus
destacados serviços na administração e sua proeminência na sociedade local. Dada a
escolha, resta pensar que Serpa imaginou que ao menos após a sua morte ele poderia
atar um relacionamento mais estreito com homens em posição superior a sua. Talvez,
em função da parca mobilidade social que conseguiu em vida, ele tenha acreditado
naquilo que Roberto da Matta chamou de ‘verdadeira isonomia’ presente nas
representações brasileiras do “outro mundo”. Nesse espaço em muito construído
com base na cosmologia católica no qual seria possível construir compensações para
o que jamais conseguimos realizar nesse mundo.
85
Serpa enganou-se, porém, em imaginar que os laços que pressupunha ter com
tais homens da ‘nobreza local’ tivessem consistência para obrigá-los a ocupar-se com
sua demanda, pois, quando do seu falecimento os três testamenteiros não assumem o
cargo. Quando da abertura do testamento, o Sargento-mór Francisco Xavier Pinto não
aceita “por não andar com Saude pois ando tambem pera dar contas a deos”.
Lourenço Ribeiro de Andrade responde: “PaSse ao 3.
o
nomeado”. E, para infelicidade
do testador, “Como os primr.
os
não aSeitam e o teceiro esta Auz.
te
nomeio p.
a
Testamtr.
o
dativo Ao Ten.
te
Estevão Joze como Procurador de Auzentes”.
Muito possivelmente, em função de sua condição subalterna naquela sociedade,
Sebastião Cardoso Serpa não conhecesse os meandros que sustentavam o sistema de
garantias. O primeiro deles parece ter sido a escolha de testamenteiros de forma
84
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-06 – Processos gerais antigos – 1789-1805. 1795 – Auto de Contas de Sebastião
Cardoso Serpa.Testamento em anexo de 1789.
85
DA MATTA, Roberto. Morte: a morte nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso
braileiro. IN: DA MATTA, R. Op. cit., 1997, pp. 151-152.
59
isogâmica, de preferência no interior do círculo das alianças parentais. As recorrências
nos testamentos para os sertões de Curitiba demonstram que a aliança familiar era
mais uma vez a salvaguarda das vontades de um parente. Dentre alguns casos nota-se
o de Antonio Rodrigues Seixas. Disse ele: “Rogo a meu filho Joam Rodrigues Sexas e
a meu filho Manoel Rodrigues Sexas e a meu genrro Alexandre de morais franco[?]
por ServiSso de noSso Senhor e por me fazer merÇe queiram Ser meus
Testamenteiro”.
86
Nesse caso, o testador era um escrivão público, homem que ao
longo da vida dedicou-se a registrar as inúmeras querelas decorrentes de conflitos em
torno dos direitos a terras, a bens e a escravos. Assim, é modelar sua escolha de
testamenteiros, pois confia a execução das últimas vontades a seus dois filhos,
nomeando-os conforme sua posição na ordem de filiação, e ao genro, último homem a
entrar no circuito íntimo da família. Quem assume como testamenteiro é o filho
Manoel.
Outros exemplos mostram estratégias diferenciadas para a escolha dos
testamenteiros como garantia de salvaguardar a correta transmissão do patrimônio e de
todas as demais disposições testamentárias. Se for verdadeiro que o mais recorrente
era solicitar o encaminhamento do processo testamentário a membros da parentela,
essa restrição não foi possível para aqueles testadores que tinham interesses
monetários que os ligavam a diversas localidades.
Esse foi o caso do Sargento-mor Simão Gonçalves de Andrade, cujo
testamento, de 1711, evidencia que ele tinha ‘negócios’ nos mais diversos rincões da
América Portuguesa. Simão era de Funchal, na Ilha da Madeira, e segundo Ermelino
de Leão, descendia pelo lado materno da família Câmara, descobridores e povoadores
daquela Ilha, e gozavam os foros de fidalguia e privilégios. Quando transferiu morada
para o América portuguesa estabeleceu-se na vila de Itu e ali foi assíduo irmão da
Ordem de São Francisco. Em Curitiba, Andrade casou-se com Escolástica Soares do
Vale, filha do Capitão João Ribeiro do Vale e de Isabel Paes, incorporando-se, assim, à
86
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:
Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. 1736 – Auto de Contas de Antonio
Rodrigues Seixas.Testamento em anexo de 1733.
60
família de um dos primeiros povoadores de Curitiba, Baltazar Carrasco dos Reis. Em
Curitiba fundou a Ordem Terceira de São Francisco, exercendo o cargo de mestre de
noviços. Quando surgiu a luta entre reinóis (forasteiros) e paulistas (arraigados),
tomou partido destes últimos chefiando a oposição ao governo de D. Luiz de
Mascarenhas e combatendo o chefe dos forasteiros, o vigário Padre Domingos Leitão,
com quem já havia tido séria divergência sobre a posse da capela de Nossa Senhora do
Terço. Leão é enfático ao dizer que Simão foi indicado para o cargo de depositário dos
bens confiscados aos jesuítas por gozar do “bafejo da fortuna” e “o único homem
abonado da terra”.
87
Fato é que, em seu inventário de 1789, o espólio líquido que se
divide entre as duas filhas é de 5:578$250, entre bens móveis, imóveis e de raiz em
diversas vilas do Brasil colonial.
Portanto, ele se viu obrigado a indicar inúmeros responsáveis por dar conta de
suas vontades acionando para tanto uma ampla rede de relacionamentos, tendo o
cuidado de mencionar no mínimo dois nomes para cada uma das dez vilas – Jundiaí,
Itu, cidade de São Paulo, Parnaíba, Sorocaba, Santos, Conceição, Iguape, Paranaguá e
Curitiba – em que tinha alguma dívida a quitar, algum filho a reconhecer, algum
crédito e mesmo algum donativo a conceder. A relação de inúmeros testamenteiros,
então, não era algo incomum; porém, mais presente nos testamentos de homens de
posses como era o Sargento-mor Simão Gonçalves de Andrade, que assim os
enunciou:
Villa de Jundiay o Sargento mor Antonio Jorge de Godoiz e Jozê de Crasto Pereira e
Caetano Vieira, na Villa de Itû Francisco Novais de Magalhains, e Francisco da Crus
e na Cidade de São Paulo [f. 36v] Paulo Amaro Antunes da Silva Manoel Antonio de
Araujo, Manoel Simoens Penalmo[?], na Villa de Jundiay digo na Villa de Parnaiba
João Francisco Guimarains Antonio Barboza Fagundes, na Villa de Sorocava
Caetano Jozê Prestes João Dias Vieira na Villa de Santos Antonio Rodrigues Silva o
Sargento mor João Pereira de Oliveyra, na Villa da Conceição o Reverendo Vigario
que Rezedir e na Villa de Iguape o Sargento mor Gregorio Jozê Gambino e o
Reverendo Vigario que Rezeder na Villa de Parnagua o Capitão mor Joze Carneiro
87
LEÃO. Op. cit., p. 2235-2237.
61
dos Santoz João Francisco Correa Balthuzar Velozo da Silva e na Villa de Curitiba
Matheos Corea Simoins Manoel Soares do Valle.
88
Chama a atenção no rol dos testamenteiros eleitos pelo Sargento-mor a escolha
de dois ‘anônimos’, dado o fato de ele indicar o pároco residente nas vilas de
Paranaguá e na de Conceição. Essa modalidade de indicação estaria em desacordo com
o princípio que venho defendendo de que o testador acionava um sistema de garantias.
Contudo, essa exceção não invalida o argumento na medida em que os párocos,
mesmo anônimos, foram incluídos no sistema de garantias para assegurar o
comprimento dos donativos destinados a obras pias. Desse ponto de vista, a natureza
de seu encargo no conjunto das disposições testamentárias permitia que ele não
estivesse alheio à rede de relacionamentos pessoais do testador.
88
Arquivo Público do Paraná. Caixa PJI-02 – Processos Judiciários Inventários nº 02. 014 – 1783 –
Auto de Inventário do Sgto-mor Simão Gonçalves de Andrade. Testamento em anexo de 1771.
62
2.2 QUE FOSSE PASSADO PARA QUEM LHE CONVIESSE
O testamento, não custa relembrar, era elaborado por uma pessoa ainda viva.
Assim sendo, ele expressava as aspirações, as disposições, as intenções de alguém que
ao redigi-lo estava interagindo socialmente. Nessa condição, tinha plena consciência
da natureza das ligações que o unia às diversas pessoas que integravam sua rede de
relacionamentos e, da mesma forma, podia avaliar seus compromissos morais e
religiosos. É a única peça do processo de transmissão patrimonial produzida com o
legatário presente, ativo e consciente para determinar o que pretendia que fosse feito
com seus bens. Os demais processos legais de transmissão de bens possuíam como
condição de sua existência, a morte da pessoa.
Assim, como buscamos demonstrar, o testamento compunha peça fundamental
para acionar o sistema de garantias sugerindo estar presente na transmissão de bens. E,
desse ponto de vista, ressalta-se outra preocupação dos testadores quando organizavam
seus testamentos: de não ser questionado seu valor legal. Essa garantia de não haver
dúvidas quanto à legalidade da peça jurídica trazia consigo outra garantia: a de que a
distribuição dos bens aos beneficiários pretendidos seria feita conforme a vontade do
testador.
Nos testamentos que foram analisados neste estudo pode-se observar uma
estreita obediência à seqüência dos atos legais o que pode ser interpretado como uma
engrenagem do sistema de garantias, pois tal fidelidade torna patente a vontade de que
fosse passado para quem lhe conviesse. Isso porque, embora fosse a lei igualitária, em
algumas práticas, como o dote, poderia haver uma diferença entre a legítima dos filhos
e filhas. Muriel Nazzari, ao abordar tais atitudes, salienta essa disparidade, fato,
entretanto, não privilegiado neste estudo, que analisa a saída, ou manutenção, da terça
das mãos da família. Além disso, é possível perceber uma certa flutuação econômica
no que diz respeito aos momentos da vida do indivíduo, desde a elaboração do
testamento até o inventário. Desse modo, ao se observar a quem se transmite os bens,
outro aspecto que poderia demonstrar desigualdade entre os herdeiros, no que tange ao
63
recebimento da herança, seria a distribuição, por parte do testador, da “terça parte” de
seus bens, que ficariam sob sua vontade. De acordo com as tabelas 12 e 13, vê-se a
quem se destinava essa parte dos bens, na medida em que corria pelo exclusivo arbítrio
do testador.
64
Tabela 12 – Beneficiários dos testadores que não tiveram descendência. (n
os
abs) (1725-1801)
TESTADOR CÔNJUGE PAIS IRMÃO SOBRINHO AFILHADO AFILHADA POBRE IGREJA OUTROS
NÃO
INDICADO
HOMEM
1
1
1 1
SOLTEIRO
MULHER
1 1
HOMEM
5 2 4 1 1 1
CASADO
MULHER
1 1 1 1
HOMEM
1 1
VIÚVO
MULHER
1 1
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos
– 1727-1777; Testamentos 05-01-06 – Processos gerais antigos – 1789-1805.
Tabela 13 – Beneficiários dos testadores que tiveram descendência. (n
os
abs) (1725-1801)
TESTADOR CÔNJ. FILHO FILHA NETO PAIS GENRO SOBR.
O
AFILH.
O
ENJEIT. POBRE IGREJA OUTROS
NÃO
INDICADO
HOMEM
1
SOLT.
MULHER
1
HOMEM
5 20 12 2 1 1 1 1 6 3
CAS.
MULHER
2 2 1 2 1
HOMEM
2 1
VIÚVO
MULHER
2 1 1 1
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixas:Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos
– 1727-1777; Testamentos 05-01-06 – Processos
gerais antigos – 1789-1805.
Com os dados delimitados, verificou-se um número relativamente expressivo
de testadores, tanto homens quanto mulheres, que não tinham herdeiros forçados
(filhos ou filhas) para legar. Desses testadores, ao verificar quem eram os
beneficiários de seus bens, observou-se que os testadores solteiros, homens e
mulheres, priorizaram beneficiar seus irmãos(ãs) e sobrinhos, como é o caso de
Catarina da Costa Rosa que declara não ser casada e tem “por erdeiroz meo Irmão
José da Costa Roza e suas filhas”.
89
Já entre os casados, todos beneficiaram suas
esposas, mas a recíproca não é verdadeira. Elas preferiram legar a seus pais,
irmãos(ãs) ou a outros indivíduos não declarados como parentes do que a seus
cônjuges.
Verificou-se também que, entre os casados, dois indivíduos deixaram
esmolas para os pobres: Domingas de Siqueira Cortes e Joaquim Vicente. Ambos
foram casados. Domingas pedia a seus testamenteiros que repartisse o que ficasse de
sua meação entre os pobres e Joaquim requeria que se comprassem 4 peças de
algodão para se repartir entre seus afilhados e por alguns pobres mais necessitados.
Os testamenteiros distribuíram essas peças entre 17 afilhados do falecido e 63 “mais
pobres”.
90
Um outro indivíduo, Tomás Leme do Prado
91
deixou o que sobrasse de
sua meação em missas pela sua alma e pelas do purgatório, o que foi identificado
como legados pios à Igreja.
Já entre as viúvas – porque o único homem viúvo tinha filhos – Josefa
Rodrigues Bicuda deu preferência a um indivíduo que não demonstrava ser parente e
Margarida Fernandes dos Reis, ao que se percebeu, não instituiu em seu testamento
nenhum herdeiro.
Com relação aos beneficiários dos testadores que tinham filhos, como a
legislação pontuava, verifica-se uma freqüência em legar aos filhos quando os
89
Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas:Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777. Auto de Contas de Catarina
da Costa Rosa datado de 1768. Testamento anexo ao processo, redigido em 18 de Outubro de 1766.
90
Op. Cit. Caixa: 05-01-06. Processo de Auto de Contas de Joaquim Vicente, datado de 1803.
91
Op. Cit. Caixa 05-01-06. Auto de Contas de Tomás Leme do Prado datado de 1773. Testamento
anexo ao processo, redigido em 12 de Agosto de 1760.
66
testadores deixavam descendência, tanto entre os solteiros, os casados e viúvos.
Nota-se também entre os casados que seus cônjuges tomam parte da herança, ora
pela meação que era de direito, ora recebendo legados da terça parte dos bens. Em
ambas as tabelas apresentadas observa-se que os beneficiários eram aqueles
pertencentes a família do testador.
67
2.3 QUE SUAS CONTAS FOSSEM ACERTADAS (HONESTIDADE):
“DECLARO QUE DEVO... E QUE ME DEVEM...”.
Uma das maiores preocupações dos testadores era quanto às possíveis dívidas
que viessem a ter com outros indivíduos. Como se viu, envolto num ritual de ‘bem
morrer’, a prática testamentária servia para firmar no momento final da vida do
sujeito, que ele estava em débito com alguém a quem ‘temia ter prejudicado’ e com
o qual deveria quitar suas pendências para ‘se estar em paz com a consciência’.
Sheila de Castro Faria enfatiza que “o reconhecimento de dívidas tornava-se mais
importante do que estabelecer sufrágios pela alma”.
92
Ao que tudo indica,
acreditava-se que o reconhecimento dos débitos, na hora da morte, e a tentativa de
reparação do erro contavam a favor do testador no julgamento final. Em todos os
testamentos dos sertões de Curitiba, esta inquietação mostrou-se presente, quer
quanto às dividas, quer quanto aos créditos que lhe deviam.
Por outro lado, a tônica acerca do pagamento e/ou da cobrança das dívida,
mostra que isso fazia parte dos relacionamentos dos indivíduos numa
sociedade cujos contratos ainda eram feitos com base nos relacionamentos pessoa a
pessoa, na confiança. Novamente é possível entrever dentro de um sistema de
garantias o comprometimento moral dessa sociedade relacional.
Para o período, tal fato era muito comum, pois na sociedade colonial havia
circulação restrita de moeda, gerando assim, um sistema de créditos, que seria a
forma mais comum de transação comercial, tanto para comerciantes quanto para
grandes senhores rurais. Praticamente todas a transações eram realizadas com base
no crédito, e os inventários são as melhores fontes para analisar as transações
operadas no interior na colônia, permitindo descobrir quem devia a quem, e avaliar a
rede de fiadores e credores.
92
FARIA, op. cit., p. 269.
68
Deve-se ter em conta, no entanto, que esses sistemas crediciários não eram
uma exclusividade da sociedade colonial americana, encontrando-se presente em
outras formações sociais do Antigo Regime. Fernand Braudel traz à tona, por
exemplo, a longa e complexa rede de endividamento existente na Europa que
permite a existência, no século XVI, da chamada feira de Plaisance, onde se dava o
encontro das dívidas passivas e ativas da elite mercantil européia de então, formada
principalmente por genoveses. Ainda que os valores envolvidos nas transações
fossem bastante elevados, a quantidade de dinheiro necessário para a liquidação das
contas era relativamente pequena, graças exatamente às grandes redes de
endividamento em que todos os seus participantes estavam envolvidos.
93
Já quanto ao estudo do sistema de crédito existente no período colonial tem-
se mostrado de grande importância para a compreensão da sociedade da América
Portuguesa, de acordo com Antonio Carlos Jucá de Sampaio, dada a relevância de
seu papel no interior da mesma. Ao estudar o mercado carioca de crédito entre 1650-
1750, nota que essa relevância resulta de três fatores fundamentais. O primeiro diz
respeito à existência de um controle dos fluxos monetários por parte de uma
pequena elite, intensamente envolvida na atividade mercantil. Conforme Sampaio
esta elite “situa-se no cume de um sistema creditício que, em sua base, encontra-se
extremamente capilarizado, entranhando-se em todos os segmentos sociais”.
94
Outro fator que estimulava o mercado de crédito era motivado pelo caráter
agrário da economia colonial naquele período, que tinha como uma de suas
principais conseqüências o descompasso entre o ciclo agrícola “de caráter anual” e
as necessidades quase diárias de insumos e alimentos. “Esse descompasso era
compensado pelo sistema de contas-correntes, em que o comerciante adiantava
para o produtor as mercadorias de que esse necessitava, em geral em troca de sua
93
BRAUDEL, Fernand. 1983. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II.
Lisboa : Martins Fontes , 1983. pp. 552-556.
94
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. O mercado carioca de crédito:da acumulação senhorial à
acumulação mercantil (1650-1750). IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 29, 2002. p.
69
safra futura”.
95
Finalmente o terceiro fator a apontar a importância do crédito é a
forma de aquisição da mão-de-obra.
Nos sertões curitibanos, é muito provável que esses três fatores que
influenciariam os mecanismos crediciários fossem semelhantes. Contudo, o que foi
possível visualizar no rol de inventários post-mortem analisados, foi a porcentagem
das dívidas contraídas, em relação ao total bruto de seu espólio. Segundo a tabela
14, vê-se que, comparativamente, quanto maior o patrimônio, menor as dívidas.
Cabedais acima de 1:000$000 tinham dívidas que correspondiam a no máximo 25%
do espólio bruto. Essa situação deve ser observada relacionando a atividade exercida
pelo inventariado: todos os sete indivíduos que se encontravam nesta faixa de
riqueza eram ‘homens bons’ da vila que tinham seus rendimentos ligados às
atividades mercantis, sobretudo no comércio de gado. Desta feita, o que se observa é
que ao invés de eles figurarem como fiadores, eles são vistos freqüentemente como
credores dos outros indivíduos. Já quanto ao Padre José Cardoso, seu maior
rendimento estava ligado ao acúmulo de metais. Em seu inventário de 1785, a
receita de ouro em barras e em pó foi de 2:420$625, mais da metade do valor de seu
espólio bruto.
Tabela 14: Comparação entre o tamanho dos espólios e a relação das dívidas com o espólio
bruto, 1697-1805.
Inventariados Espólio bruto Dívidas
% das dívidas
em relação ao
espólio bruto
Espólio Líquido
Antonio Gomes de Campos 11:409$985 Não possuía 11:409$985
Simão Gonçalves de Andrade 5:869$815 291$565 5% 5:578$250
Pe. José Cardoso 4:167$130 436$511 10,5% 3:730$619
Francisco Dias de Carvalho 3:739$150 941$440 25,18% 2:797$710
Pedro Antonio Moreira 2:445$149 604$032 24,7% 1:841$117
Manoel Alves Pedroso 1:464$600 111$610 7,6% 1:352$990
Antonio Rodrigues Seixas 1:015$392 40$000 4% 975$392
Izabel da Costa 848$207 88$144 10,4% 721$063
Maria Pires de Camargo 830$770 325$433 39,1% 505$337
Anna Pereira da Silva 792$460 87$365 11% 705$095
Maria Thereza de Jezus 789$875 Não possuía 789$875
95
Ibid. p. 3
70
Izabel Maria de Andrade 541$900 256$795 47,4% 285$105
Ignes Chaves das Neves 429$906 112$926 26,3% 316$980
Maria Bicudo Camacha 417$660 28$200 6,7% 389$460
Luiz Rozado 391$720 34$560 8,8% 375$740
José Rodrigues 378$540 >monte-mor
Arrematado
378$540 para o
pagamento das
dívidas
Joseph da Costa Vasconcelos 348$240 130$220 37,4% 218$240
Diogo Gonçalves Ribeiro 329$000 149$906 45,5% 179$094
Sebastião Fernandes Pinto 220$000 114$610 52,1% 136$610
Pedro de Siqueira Cortes 185$660 53$340 28,7% 132$320
Maria Antonia 171$540 73$472 42,9% 104$468
Arcangela Maria dos Santos 159$980 14$200 8,8% 145$780
Maria José de Jezus 157$400 19$400 12,3% 138$000
Sebastião Teixeira de Azevedo 144$470 71$728 49,6% 72$742
João Cordeiro Matoso 139$150 45$830 33% 93$230
Baltazar Carrasco dos Reis 129$466 22$810 17,6% 106$650
Manoel Inácio da Fonseca 125$580 17$960 14,3% 107$620
Manoel de Oliveira de
Assumpção
104$060 Não possuía
Domingos Cardozo de Leão 38$000 32$753 86,2% 5$247
Alexandre da Costa 35$500 8$220 23,1% 27$280
Pedro Ribeiro de Andrade 459$666 284$901 62% 174$765
Manoel Ribeiro Lopes 139$100 >monte-mor
Arrematado
139$100 para o
pagamento das
dívidas
Fonte: Arquivo Público do Paraná. Processos Judiciários do Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara
Cível
O que se revela, portanto, é que são os homens de negócio, junto com as
instituições coloniais que controlam a liqüidez da economia colonial. Ao controlar o
crédito, os homens de negócio definem as novas feições das relações econômicas. E
isso porque ele é estratégico numa sociedade com baixa liquidez, como era a
colonial. Nessa situação, aquilo que João Fragoso e Manolo Florentino
denominaram cadeia de adiantamento/endividamento possui um papel
evidentemente crucial para o estabelecimento da hierarquia nas relações entre os
71
diversos grupos sociais.
96
Em outras palavras, essa nova elite mercantil passa a
controlar a própria reprodução da economia colonial, ditando seus ritmos e sua
evolução em longo prazo.
96
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo G. 1993. O arcaísmo como projeto: mercado
atlântico: sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro :
Diadorim , 1993. pp. 89-100.
72
2.4 MOMENTO DEVOCIONAL: CUIDADOS POST-MORTEM
Uma outra garantia que o indivíduo buscaria através do testamento seria a de
que sua alma alcançasse a salvação. Em todos os testamentos analisados, um dos
pontos em que há maior preocupação é quanto aos cuidados post-mortem. Isto
porque, para os homens e mulheres do setecentos, a morte representava uma
passagem para o outro mundo. Contudo, a alma tida como imortal, após o fim da
vida, partiria para outro local, o Além, onde poderia ser alocada em diferentes
instâncias.
Nessa perspectiva, a hora da morte implica um acerto de contas e uma relação
direta com o sagrado ou ainda mais diretamente com Deus. No momento de
trespasse para o outro mundo, ocorreria o julgamento individual e seria este que
condenaria ou exaltaria a alma do defunto, demarcando também o local onde ela
ficaria encerrada, se no inferno, no paraíso ou no purgatório. O que o fiel buscava
era a ‘boa morte’ que “significava que o fim não chegaria de surpresa para o
indivíduo, sem que ele prestasse contas aos que ficavam e também os instruísse
sobre como dispor de seu cadáver, sua alma e de seus bens terrenos”.
97
O modo mais seguro de organizar a passagem para o além-mundo seria
redigir o testamento. Como sugere Philippe Ariès, este documento deixa
transparecer um conjunto de elementos como as prescrições relativas ao cortejo do
falecido, cultos em intenção da alma, distribuições de esmolas, que acenavam para o
cuidado com relação ao destino do testador:
Era neste ponto que intervinham os legados piedosos, que dão ao testamento, da Idade
Média ao século XVIII, o seu sentimento profundo. (...) O moribundo encontrava-se em
dificuldades que não nos são fáceis de compreender hoje, e que o testamento vai permitir
superar. Essas dificuldades ligam-se ao seu igual apego as coisas do aquém e do além. (...)
na existência cotidiana completamente nua, os dois sentimentos coexistiam e até mesmo
pareciam conformar um ao outro.
98
97
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo : Companhia das Letras , 1991. p.92.
98
ARIÈS, P. O homem diante da morte. V. I. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, p. 202.
73
Deixar previamente organizados e garantidos os sufrágios para após a morte
eram medidas que davam segurança. Nos testamentos, com o intuito da salvação,
prescreviam-se com clareza quais seriam os atos piedosos praticados logo após o
falecimento do cristão. A ‘encomendação da alma’ ocupava grande parte da redação,
invocando-se a interseção de santos e anjos para a defesa da alma no Juízo. Paula
Luiza Tigre, em 1740, pediu em seu testamento:
Primeiram.
te
emcomendo minha Alma a SantiSsima Trindade q' a criou: e Rogo ao
P. eterno pela morte e Paixão de Seu Unigenito Filho a queira Receber Como
recebeu a Sua estando p.
a
morrer na Alvore da Vera Crus: e a noso Snr' JEZUS
Christo pesso pelas Suas Divinas chagas q' já q' nesta vida me fes m.
ce
de me dar
Seu precioso[?] Sangue em merecim.
to
de Seus trabalhos, me fasa tambem na vida
q' esperados[?] dar o premio deles q' hé a Gloria; e peso e Rogo a inferioza[?]
Semper[?] Virgem M.
a
N.
a
Senhora, e Madre de D.
s
, e a todos os Santos da Gloria
Selestial, particularm.
te
ao Anjo de minha guarda, e ao S.
to
de meu nome e a nosa
Snr.
a
da Lus e as almas, a Virgem da Concepção, e aos mais S.
tos
, e Santas Pq.
o
tenho devoção queirão por mim interceder, e Rogar agora e q.
do
minha Alma desta
Corpo Sahir; porq' Como Verdadeira Christâ protesto viver, e morrer em a S.
ta
Catolica, e creio[?] tudo o q' fim[?], e fas[?] a S.
ta
Madre Igreja d' Roma; e em
esta Sancta fé espero Salvar minha Alma não por meus mericim.
tos
mais p.
lo
da
SantiSsima Paixão do Unigenito Filho d' D.
s 99
As escolhas tantos dos Santos quanto dos sufrágios de missas para outras
almas – geralmente de parentes já falecidos –, não ocorriam de maneira aleatória. A
utilização dessas relações era recorrente, pois a existência do Purgatório, como
espaço intermediário, possibilitava o uso de laços de solidariedade, entre mortos e
vivos, como forma de abreviar a purgação. “Os sufrágios pelos mortos supõem a
formação de longas solidariedades de um lado e de outro da morte, relações estreitas
entre vivos e defuntos, a existência, entre uns e outros, de instituições de ligação que
pagam os sufrágios – como os testamentos – ou fazem deles prática obrigatória –
99
Op. Cit. Caixa 05-01-05. Auto de Contas de Paula Luiza Tigre datado de 1740. Testamento
anexo ao processo, redigido em 1737.
74
como as confrarias”.
100
Nessa perspectiva, a trama da salvação comportava uma
grande complexidade que envolvia vivos e mortos em prol de um objetivo comum: a
salvação.
Previa-se também no testamento a forma do funeral, a escolha da mortalha,
da sepultura até mesmo a quantidade de missas e do acompanhamento das
irmandades de quem o testador fosse irmão. Izabel Fernandes Buena testou em
1799:
Declaro que Sou Soltr.
a
e nunca fui cazada e falecendo eu na Sobred.
a
Freguezia de
S. Jozê tenho deZejos de que meo Corpo foçe conduzido para esta Villa para ser
enterrado na Capella da Veneravel Ordem terçeira do meo Sarafico Patriarca São
Francisco de quem Sou indigna filha isto hê no cazo que poSsa Ser que havendo
empoçiblid.
e
Serâ meo corpo interrado na Igr.
a
da Sobred.
a
Freguezia
aCompanhado pelo R.
do
Vigr.
o
della e pellos mais Saçerdotes que Se acharem neSse
tempo na Sobred.
a
Freg.
a
e todos me dirão MiSsa [f. 1v] De corpo prezente, e meo
Corpo Amortalhado no abito do meo Patriarca São Fran.
co
havendo na oCazião, e
Se não no que ouver mais prompto:
101
Os cuidados post-mortem a preocupação com os bens da alma, como
salienta Ana Silvia Volpi Scott ao analisar comunidades do norte Português
setecentistas e oitocentistas, não ocupavam um lugar importante somente no nível
religioso. Fortes traços de distinção social e econômica poderiam ser observados,
pois “ao falecer, não era só necessário garantir a passagem para a vida eterna com
o ‘apoio de toda corte do céu e de todos os santos’, como também cumprir, diante
da comunidade, no mínimo, os usos e os costumes da esfera social em que estavam
integrados”.
102
100
LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório Lisboa: Estampa, 1993. p. 26.
101
Op. Cit. Caixa 05-01-06. Auto de Contas de Izabel Fernandes Buena datado de 1800.
Testamento anexo ao processo, redigido em 1799.
102
SCOTT, Ana Sílvia Volpi. Famílias, formas de união e reprodução social no noroeste
português (séculos XVIII e XIX). Guimarãe : NEPS , 1999. p.328.
75
Vistas essas particularidades no testamento, retomam-se a seguir os três
documentos em análise para examinar os mecanismos que levaram os indivíduos a
amealhar bens ao longo de sua vida.
76
CAPÍTULO III
AFORTUNADOS E DESAFORTUNADOS
Distinção. Esta era uma das principais metas que grande parte das famílias do
Antigo Regime almejavam dispor. Mesmo nos mais longínquos rincões da América
Portuguesa, não se pouparam esforços para alçar ou para manter posições dentro da
sociedade a fim de gozar de prestígio e distinção social. Entretanto, ser livre não era
suficiente para o gozo de reconhecimento. “Para tal era preciso ser ‘homem bom’;
‘um dos principais da terra’; ‘andar na governança’; ‘viver à lei da nobreza’;
‘tratar-se nobremente’; ‘ser limpo de sangue’; ‘não padecer de acidentes
mecânicos’.”
103
Diversos autores tem destacado o transplante desses valores comuns às
sociedades européias para as terras americanas. Dentre eles, pode-se citar Evaldo
Cabral de Mello, ao analisar em plano plurissecular, o zelo social pelo nome,
levando-os inclusive a produzir fraudes para eliminar vestígios desabonadores. Vale
destacar que a importância do nome para aquelas pessoas não se dava por seu
sentido individualizante. Ao contrário, o nome servia como testemunho de
pertencimento a uma determinada família. Nesse sentido ele ressalta o poder da
memória genealógica nas sociedades da época, pois a “genealogia era, na realidade,
um saber vital, pois classificava ou desclassificava o indivíduo e a sua parentela
aos olhos dos seus iguais e dos seus desiguais, garantindo assim a reprodução dos
sistemas de dominação.”
104
A idéia do ‘ser nobre’ atuava no sentido de conformar oposições distintas,
que acabava criando uma miríade de pequenos traços distintivos entre as pessoas,
que eram zelosamente cultivados por quem os conquistava, independendo da
maneira pela qual foi conquistado. Afinal estávamos em uma sociedade multi-racial
103
MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil colônia. IN: Estudos
econômicos. IPE/USP v.13 , 1983. p.799.
104
MELLO, Evaldo Cabral de . O nome e o sangue: uma fraude genealógica no pernambuco colonial. São
Paulo : Companhoia das Letras, 1989. P. 11
77
e desde o primeiro momento, conforme destaca muito bem Gilberto Freyre, os
portugueses não tiveram o menor pudor em atuar no sentido de criar uma sociedade
mestiça.
Vê-se que nobre, no dicionário de Antonio de Moraes Silva, está definido
como “conhecido e distinto pela distinção, que a lei lhe dá dos populares, e
plebeus, ou mecânicos, e entre os fidalgos por grandes avoengos, ou ilustres
méritos.”
105
Remete, portanto, para a existência de dois tipos de nobreza: uma
calcada no sangue, na linhagem, que passava de pai para filho, formada estritamente
pela alta aristocracia; e outra que estava assentada em serviços prestados à Coroa,
fosse pelo bom exercícios de funções públicas ou, particularmente após a expansão
marítima, aos feitos prestados à monarquia lusa na própria construção do Império
Português.
106
Como aponta Maria Beatriz Nizza da Silva em conformidade com o
tratadista luso Luís da Silva Pereira Oliveira, uma seria a ‘nobreza natural’ e a outra
a ‘nobreza civil ou política’.
107
Na medida que a nobilitação era um ideal disseminado na sociedade que se
organizou na América portuguesa e que no novo mundo havia brechas para alçá-la,
muito dos homens que se radicaram nos sertões de Curitiba desenvolveram
estratégias com vista a conquistar sua própria distinção. Um dos caminhos mais
recorrentes para o enobrecimento apontados pela historiografia foi percorrido por
aqueles que se empenharam em associar-se a grupos de elite, particularmente pela
via matrimonial.
Inúmeros estudos apontam nesaa direção revelando que muitas vezes via-se
na união de duas famílias uma porta de acesso tanto para a ascensão social como
para o ‘embranquecimento’ dos indivíduos.
105
SILVA, Antonio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa. Facsimile da 2ª ed. De 1813. Lisboa :
Typographia Lacérdina , 1922.
106
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (org.). O Antigo Regime
nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Introdução. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2001.
107
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo : Editora UNESP , 2005. p.16.
78
Se aos mestiços o casamento hipergâmico podia ter esse efeito, ele foi muito
usado por homens do reino que emigravam para a América e aqui contratavam
núpcias com moças da terra. Um dos estudos pioneiros nesse sentido foi o de Muriel
Nazzari demonstrando, numa perspectiva de ampla duração o quanto esses jovens
portugueses se valeram de seu capital simbólico branco e reinol para enobrecer e
conferir honorabilidade social à descendência das filhas e netas dos principais
sertanistas paulistas. Focalizando o espaço social paulistano, Nazzari mostrou os
vultosos dotes conferidos aos genros e seu papel capital na organização da
hierarquia local.
108
Outro caminho para situar-se numa esfera privilegiada se dava com a posse de
terra. Evidentemente, ao homem livre e pobre que arrendava um pedaço de terra ou
mesmo que adquirisse sua propriedade via concessão de sesmarias de tamanho
regular, não era concedido um diferencial social significativo, unicamente por
possuir ‘seu chão’. Ele detinha condição melhor do que muitos outros, mas ainda,
sendo um lavrador, um dentre tantos outros que ‘plantava para comer’ mantinha-se
em situação inferior à medida que exercia ofício mecânico. A verdadeira ‘nobreza
da terra’ na colônia era aquela que obtinha vastos latifúndios, como foi o caso de
tantos senhores de engenho ao longo da área litorânea nordestina ou os grandes
pecuaristas instalados em áreas centrais dessa região e mesmo na esfera de
influência paulista.
Além das porções doadas pela Coroa a determinadas famílias lusitanas, muitos
dos que já estavam radicados na América entenderam o princípio nobilitante
conferido pela posse de áreas maiores e desenvolveram estratégias para,
conjugando-se requerimentos de sesmarias, angariar um patrimônio familiar
considerável. Casos dessa natureza podem ser ilustrados com as sesmarias
concedidas à família Taques nos Campos Gerais que formaram um enorme
latifúndio, envolvendo os atuais municípios de Jaguariaíva, Piraí do Sul, Castro e
108
NAZZARI, Muriel. Op. cit. p.69-73.
79
parte de Ponta Grossa.
109
Porém, dada a vastidão das terras a serem ocupadas, já
houve época em que se asseverou que elas teriam pouco valor na colônia. Alcântara
Machado observou, nessa linha, que até boa parte do século XVII, no momento da
partilha, nos montes sequer se avaliava seu valor
110
. Todavia, neste caminho vale
recuperar uma síntese efetuada por Simonsen, ao afirmar que, como
observa Alcântara Machado, de acordo, aliás com Oliveira Viana, que é porém a
propriedade rural que classifica e desclassifica o homem; sem ela não há poder definido,
autoridade real, prestígio estável. Fora das grandes famílias arraigadas ao chão, o que se
encontra é a classe de funcionários, é uma récua de aventureiros, é a arraia miúda dos
mestiços, é o rebanho dos escravos. Em tal ambiente, a figura central que domina
realmente, pela fora irreprimível das coisas, e a do senhor de engenho, do fazendeiro, do
dono da terra. Conforme observava de Oliveira Viana, os que não possuem sesmarias ou
não conseguem assegurar terras se acham deslocados na própria sociedade em que
vivem.
111
Essa percepção da importância extra-econômica da terra já pela historiografia
tradicional é indicador da alteridade dos signos de diferenciação social numa
sociedade monetarizada, porém em que nas relações econômicas concorriam
fortemente fatores não econômicos. Giovanni Levy, ao analisar a comercialização de
terras na América colonial, observa que seu preço variava de acordo com o
relacionamento de parentesco entre as partes contratuais.
112
Ou seja, o que dava
prestígio, poder e nobilitação ao indivíduo não era somente a posse da terra, mas sim
o reconhecimento dentro de um círculo de relacionamentos, aliado à posse de outros
homens. Este é o caminho da ‘nobreza da terra’, ou seja, daqueles que assentavam
os esteios de seu prestígio a terra, muitas vezes pelas sesmarias e do número de
escravos possuídos.
109
RITTER, Marina Lourdes. As sesmarias do Paraná no século XVIII. Curitiba : IHGB , 1980. Ver
também: htttp://www.diariodoscampos.com.br/20040319/campos.htm
110
MACHADO, Alcântara. Op. cit. 1972.
111
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil (1500-1820). (8ª. edição) sAo Paulo : Companhia
editora navional, 1978, p. 221
112
LEVY, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo : Ed. Unesp , 1992. pp. 133-161. p.141.
80
Na região paulista, constata-se que muitos habitantes ligados a esse estrato
social mantiveram a atividade de preação, colocando os ameríndios como seus
administrados.
113
Para Ilana Blaj,
o primeiro sinal de distinção social era o estatuto de homem livre e, em seguida, o de
proprietário de terras e de escravos. Se a monopolização desses dois últimos caracteriza o
grande senhor, a elite colonial, por outro lado, possuir dois ou três escravos e uma pequena
propriedade não era tarefa impossível para os demais. Mentalmente, a posse de uma faixa
de terra e de alguns escravos (mesmo que fossem indígenas) permitia o sonho da ascensão
para as demais camadas de homens livres do mundo colonial.
114
Contudo, aqui devemos abrir um parêntese: para a colônia, não é raro a
historiografia explicitar que “ser economicamente poderoso não significava a
certeza de ser considerado um ‘homem bom’ ou de família principal’. Dentro do
que se estabelecia como status social de um indivíduo, inseriam-se normas de
conduta e de representação social que, muitas vezes, não refletiam a situação
econômica dos envolvidos. Pobreza e prestígio podiam, muitas vezes, andar
juntos”
115
.
A proposta que ordena este capítulo é a de observar os indivíduos que
amealharam bens na vila de Curitiba, mas estando atento que as pessoas não
detinham apenas um papel social. Especialmente em áreas mais distantes, nas
franjas da colônia portuguesa a pobreza e o prestígio muitas vezes caminhavam lado
a lado. De outro modo, muitos dos sujeitos acumularam cabedal na região, o
fizeram ao largo das formas nobilitantes, mas, ao mesmo tempo, eram essas as
pessoas que formavam o conjunto dos homens bons na localidade. É nesse momento
que se percebe que as oportunidades apresentadas a boa parte da população
imprimiam muita flexibilidade aos critérios de nobilitação. “Nem todos os homens
113
Ver: MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo : Comapnhia das Letras , 1994. Em especial o capítulo 4 intitulado “A administração particular”.
Pp.129-153.
114
BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São
Paulo: Humanitas/Fapesp, 2002. P.326-327.
115
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. IN: CATRO, Hebe Maria
Mattos de ; SCHNOOR, Eduardo (org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro : Topbooks ,
1995. p.82.
81
bons cumpriam todos os requisitos, mas contavam com o beneplácito e com o
testemunho dos demais membros da elite para serem aceitos pela mesma.”
116
Dado o conjunto documental disponível de testamentos, inventários e auto de
contas, busca-se analisar as atividades que esses indivíduos tiveram durante a vida –
tendo em vista o total do patrimônio amealhado – e em quais garantias se apoiavam
para adquirir um determinado cabedal, seja ele simbólico ou material. Ora, é sabido
que a categorização de um indivíduo como pertencente a um determinado grupo
quer de homens honrados, providos, desprovidos, quer de comerciantes, lavradores e
sinhazinhas, sobretudo em regiões fronteiriças como os dos sertões curitibanos, pode
se tornar um tanto quanto arriscada. Isto porque mesmo que a legislação coibisse
certas atividades, sobretudo as camarárias por parte dos comerciantes e daqueles que
padeciam de ofício mecânico, observa-se na vila de Curitiba um ambiente
relativamente flexível no que diz respeito a inserção de seus integrantes.
116
BLAJ, Ilana. Op. cit. p.328.
82
3.1 HONRADOS E PROVIDOS
3.1.1 Uma base para a aventura
Sob um certo prisma, as terras lusitanas na América podem ser
compreendidas como um espaço por onde os indivíduos se movimentam. Se o ato de
migrar está associado à procura de algo melhor, mais adiante, sertanistas buscavam
o ‘remédio para sua riqueza’ nos metais e nas pedras preciosas, nos índios para
prear, nos produtos naturais para extrair e nas terras para o plantio ou para o
criatório
117
. A colonização faz-se por meio dessas migrações: às vezes articulada à
cata de riqueza fácil e rápida, o triunfo da busca da “aventura”, outras à procura de
uma “dificuldade a vencer”, ou seja, à procura da riqueza obtida pelo trabalho. Na
acepção de Sérgio Buarque de Holanda, classificam-se “homens de grandes vôos”
como indivíduos do tipo aventureiro em que “o objeto final, a mira de todo esforço,
o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por
secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será
colher o fruto sem plantar árvore”
118
. Em contraposição, o indivíduo do tipo
trabalhador seria “aquele que enxerga primeiro a dificuldade de vencer, não o
triunfo a alcançar”
119
empreendedor de esforços “lentos, persistentes, pouco
compensadores, mas, que no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e
sabe tirar o máximo proveito de insignificante”
120
.
O ‘aventureiro’ Antonio Bicudo Camacho, “capitão e notável
bandeirante”
121
chegou nos sertões de Curitiba em finais do século XVII e aqui se
radicou juntamente com sua mulher, Maria da Rocha e suas duas filhas, Izabel
117
NADALIN, Sérgio Odilon. História do Paraná: ocupação do território, população. Curitiba :
Seed , 2001. p.10.
118
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras , 1995. p.
44-45.
119
Id.
120
Id.
121
LEÃO, op. cit. 1994 , p. 73.
83
Fernandes da Rocha e Anna Fernandes da Rocha. Suas filhas também vieram para as
novas terras casadas e acompanhadas de seus cônjuges: Isabel, com o Capitão
Antonio Bueno da Veiga (natural de São Paulo) e Anna, com Simão da Costa
Colaço.
Mesmo sendo neto de Antonio Bicudo Carneiro, fidalgo português que foi
ouvidor da comarca de São Vicente em 1585, e nobre da terra e de sangue, Camacho
deslocou-se da vila litorânea de Itanhaem em direção ao sul em busca de ouro. A
historiografia mostra que esse foi um dos movimentos populacionais responsáveis
pela a ocupação do planalto curitibano: “já no final do século XVI, em 1585, os
moradores de S. Vicente, Santos de São Paulo, precisando a renovação de sua
escravaria, pediam ao Capitão-Mor a organização de bandeiras para caçar os
índios carijós dos territórios hoje paranaense e catarinense”
122
. Este era o
movimento característico dos bandeirantes paulistas que iam em busca de seu
sustento (metais e gentios da terra) nas fronteiras lusitanas da América.
Conhecido minerador, em 1699 Camacho encontrava-se lavrando ouro em
Santa Cruz do Sutil nas terras de Palmeira juntamente com seu genro, Antonio
Bueno da Veiga. Proprietário de uma sesmaria nos Campos de Meringuava em São
José dos Pinhais, em 1719
123
, Veiga acompanhou seu genro à busca do Eldorado.
Ambos buscavam enriquecer nos sertões indo atrás de minas e escravos
administrados, vivendo longe de sua morada por anos a fio. De acordo com Leão,
quando Izabel faleceu, em 1717, seu marido Antonio Bueno da Veiga achava-se nas
minas de Goitacás. Por um lado, corrobora-se esta data, pois o ano do testamento de
Izabel é de 1725. Mas o que deve ser observado é que esta família (sogro e genro)
seguia o caminho das descobertas de ouro nos caminhos de Goiás no início do
século XVIII, como tantos outros sertanistas.
124
122
BALHANA, Altiva Pilatti, MACHADO, Brasil Pinheiro; WESTPHALEN, Cecília Maria. História do
Paraná. Vol.1. Curitiba : Grafipar , 1969. p.27.
123
RITTER, Marina Lourdes. Op. cit. , 1980. p. 231.
124
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado & BRIOSHI, Lucila Reis (org.). Na Estrada do Anhanguera:
uma visão regional da história paulista. São Paulo : Humanitas FFLCH/USP , 1999. 36-41.
84
Após a morte de Izabel, Antonio contraiu segundas núpcias nas Minas Gerais
com Maria de Aguiar e Castro. Deste consórcio, recebeu de dote 1.000 oitavas de
ouro, de acordo com o livro de notas de 1724-1731 do 1º tabelionato de Curitiba. O
que se pode sugerir é que a aliança entre Izabel Fernandes da Rocha e Antonio
Bueno da Veiga facilitou para que seus filhos fizessem casamentos de mobilidade
social ascendentes, levando-os a participarem da governança municipal.
Amador Bueno da Rocha, filho do casal, foi Juiz, principal cargo na câmara
nos anos de 1728, 1736, 1750, 1754 e 1757. Com as andanças do pai, Amador
estabeleceu morada junto à sua mãe, resguardando o patrimônio nas terras de São
José. Já a filha Maria Buena casou-se com o capitão João Carvalho de Assumpção,
filho do capitão Manoel Picão de Carvalho, ambos pai e filho, sertanistas dedicados
às atividades de exploração de metais e pedras preciosas. A união das duas famílias
fazia-se presente tendo em vista que João e seu sogro Antonio mineravam junto às
lavras dos Goitacás em 1718. Esta era uma aliança de terras e poder camarário já
que João Carvalho de Assumpção foi vereador no ano de 1747 e seu pai Manoel, foi
procurador em 1714, juiz em 1695 e ainda figurava sem informação nos anos de
1699, 1704, 1709, 1716, e 1717.
Quanto aos haveres adquiridos com as entradas percorridas junto aos centros
mineradores, como Mina e Cuiabá, a família ainda contava com 18 servitos que
foram transmitidos pela mãe – Izabel Fernandes Buena – de acordo com o que foi
declarado em seu testamento em 1725. Se comparados com a posse média de índios
levantados por John Manuel Monteiro para a região de São Paulo entre 1600 a 1729
– média de 24,3 carijós variando de 9,3 a 37,9
125
– esses 18 índios tornam-se
representativos para os sertões de Curitiba.
O patrimônio amealhado pelos homens da família através da constante
movimentação, de seus ‘grandes vôos’, como diria Buarque de Holanda, serviu para
assegurar a condição de ‘família dos principais da terra’, uma vez que este status foi
mantido pelo núcleo residente em São José, e ampliados num jogo de alianças
125
MONTEIRO, John. Op. cit. p.80.
85
matrimoniais de resultados ‘lentos e persistentes’. Esta posição no encaminhamento
da família retoma a idéia de que, segundo Laura de Mello e Souza, “numa
hierarquia de sedimentação aluvional, as honrarias e patentes consolidavam-se as
hierarquias. Sem fortuna, contudo, estas dificilmente seriam mantidas por muito
tempo e não chegariam a beneficiar as famílias”.
126
São as andanças atrás do ouro
que os tornaram proprietários de servitos, mantendo-os providos e honrados.
3.1.2 Prestígio nas Ordenanças
Exercer um ofício ou cargo público na administração colonial concedidos
pelo Rei, dentro de uma sociedade de ordens, era uma das dignificações que mais
traziam “prestígio, honras e privilégios, não apenas no nível mundano, mas com
resultados sociais práticos”,
127
constituindo um fator de enobrecimento para seu
ocupante e seus descendentes.
Para ser recrutado, alguns requisitos eram comuns a todos os pretendentes:
ser maior de 25 anos ou emancipado, ser mentalmente capaz, ser católico e pertencer
ao sexo masculino. Dependendo dos cargos, somava-se às condições a
impossibilidade de o candidato de exercer atividades manuais, de não padecer de
‘sangue infecto’, de possuir boa condição econômica e o de ser alfabetizado.
128
Um dos cargos que mais nobilitavam eram aqueles ligados às funções de
guerra, compreendidas nos militares profissionais organizados nos terços, nos
regimentos, nas milícias e nas ordenanças. Uma vez que eram cargos remunerados
ou que favoreciam a “propinas”, de acordo com Arno e Maria José Wehling, muitas
vezes retiravam-se remunerações em “serviços de funções adicionais”.
129
126
SOUZA, Laura de Mello.Famílias de sertanistas: expansão territorial e riqueza familiar em Minas.
IN: Nizza da Silva, Maria Beatriz. Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa:
Livros Horizonte, 2002. p. 210
127
WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. O funcionário colonial entre a sociedade e o Rei. In: DEL
PRIORE, Mary. Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história.Rio de Janeiro :
Campus , 2000. pp. 139-159. p.143.
128
Ibid. p.151.
129
Ibid. p.156.
86
Na vila de Curitiba, veremos a trajetória do Capitão de Ordenanças Pedro
Antonio Moreira, focalizando o olhar a seu ofício e cabedal. Natural de Lisboa,
Pedro era filho dos reinóis Antonio Martins e de Thereza Maria. Segundo Ermelino
de Leão, Pedro Antonio Moreira veio para o Brasil ainda muito jovem. Esse fato não
causa estranhamento na medida que muitos portugueses fizeram o mesmo trajeto.
Carlos Bacellar aponta que encontrou um total de 966 homens naturais de Portugal
que viviam na capitania de São Paulo no ano de 1801. Desses, o autor assinala que,
66% (637 indivíduos) estavam casados. Mais interessante é observar que quase a
totalidade (mais de 97% ou 620 indivíduos) havia contraído matrimônio com
mulheres naturais do Brasil.
130
Quando agrupamos os dados relativos às origens dos testadores e
inventariados, observamos dentre o rol dos 69 indivíduos que amealharam bens ao
longo dos setecentos, que há um maior número de imigrantes que detentores de
patrimônio (23,1%). Já quanto às mulheres, as nascidas na própria vila de Curitiba
são a maioria dentre as 24 mulheres com 23,2 % do total de indivíduos (ver tabela
15).
Tabela 15: Origem dos testadores inventariados segundo o sexo. (1695-1805).
Homens Mulheres
Origem
Abs. % Abs. % Total %
Portugal e Ilhas 16 23,1 3 4,3 19 27,4
‘Brasil’ 11 16,0 1 1,5 12 17,5
‘Curitiba’ 12 17,4 16 23,2 28 40,6
Não definido 6 8,7 4 5,8 10 14,5
Total
45 65,2 24 34,8 69 100
Fonte: Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo e Silva, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Caixas: Testamentos 05-01-05 – Processos gerais antigos – 1727-1777; Testamentos 05-01-06 –
Processos gerais antigos – 1789-1805
130
SCOTT, Ana Silvia Volpi. Op. cit. Apud. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. A colonização em São
Paulo às vésperas da Independência. In: ROWLAND, Robert (coord.). Contexts of long-distance migration:
Portugal and Brazil (papers presented to the XVII International Congress of Historical Sciences, Madrid ,
1990). Firenze, Departament of History and Civilization, European University Institute, 1990a, 51p.
87
Quando em terras lusitanas na América, Pedro Antonio Moreira estabeleceu
morada na freguesia de São José dos Pinhais, no planalto curitibano. Lá conheceu a
filha de Ignácio Preto, natural da terra, e sua mulher Luiza Cardosa. Pedro e Joanna
Franco casaram em 1732 na mesma freguesia e, entre 1734 e 1752 tiveram 9 filhos.
No fluxo da vida de Pedro Antonio Moreira, a ênfase para a nobilitação de sua
família esteve muito em torno do seu pertencimento aos principais cargos
camarários: vereador em 1764 e, nos anos de 1746 e 1752, exerceu o maior ofício da
câmara municipal, o de juiz ordinário.
Ao que se observa, não foi o pertencimento à câmara que levou Pedro a
acumular cabedal. Mas, foi muito em função de seus bens, do seu sangue português
e de sua honra que o colocou numa esfera distinta o bastante para torná-lo com todos
os requisitos necessários para que recebesse um cargo na ordenança local, qual seja,
o de Capitão. Se, por um lado, os militares profissionais dos terços e dos regimentos
eram considerados como “profissionais especializados”
131
, por outro, os postos das
milícias e ordenanças “acabaram sendo mais propriamente títulos de prestígios
para a promoção social do que cargos públicos”.
132
Quando Moreira faleceu em 1785 e os bens de seu inventário foram abertos
pela viúva Joanna, pode-se ver que, mesmo não sendo sesmeiro, o cabedal do
Capitão era o 5º maior em espólio bruto da região, com 2:445$149. Seus bens
contavam com um bom número de rezes (600 entre vacas, bois, cavalos, éguas,
novilho e touros), 2 bois carreiros, 2 campos, 1 casa e 1 sítio, 8 escravos e mais os
trastes domésticos. Neste estudo sobre o Capitão, confirma-se que homens honrados
não adquiriram prestígio, poder e nobilitação somente com a posse de campos para
criar, mas sobretudo mediante o reconhecimento dentro de um círculo de
relacionamentos diferenciados na sociedade, aliado à posse de outros homens.
131
DEL PRIORE, Mary. Op. cit. 2000. p. 150.
132
Ibid. p. 151.
88
3.2 DESPROVIDOS MAS HONRADOS
Como estamos vendo ao longo deste capítulo, a distinção era a tônica a ser
alcançada pelos indivíduos na sociedade colonial. Para alçar condição dentro dessa
sociedade estamental, vimos que eram necessárias estratégias diversas para ascender
socialmente: fazer uma aliança matrimonial vantajosa, pertencer à nobreza da terra,
deter a posse de outros homens. Ou seja, queria-se pertencer à elite, ter prestígio.
Diversos autores apontam que uma estratégia do casamento serviria para reforçar o
poder das elites e conseqüentemente elevar-se entre os indivíduos:
A prática do casamento no seio da própria família ou entre as mesmas famílias era uma das
formas de preservar a propriedade no âmbito do clã. Antonio Cândido chama a atenção para
o fato de que os casamentos constituíam uma política para reforçar os grupos parentais e,
dessa forma, preservar o status e os bens econômicos.
133
Determinadas famílias estavam conformadas à nobreza da terra e pertenciam
à câmara municipal desde o momento em que ela se institucionalizou.
134
Elas
conseguiram manter um dos ramos nobres, com distinção social ao longo de todo o
período observado. Entretanto, como já havíamos nos deparado na historiografia,
muitas vezes o nome, o prestígio, a honra, andava em mãos opostas à riqueza.
Alguns indivíduos providos de honra e estima eram desprovidos de bens materiais.
Um dos capitães povoadores de Curitiba, Mateus Martins Leme, pode ser
característico desse rol de indivíduos. Paulista, natural de Santo Amaro, Leme
possuía em sua terra natal um sítio denominado Boi-mirim. Filho de paulista com
moça da terra – Thomé Martins Bonilha com Leonor Leme – a família era
possuidora de uma sesmaria. Participantes da elite local, circulando na vereança nos
mais diversos casos, parece que a sorte não sorriu para esta família no que diz
respeito à acumulação de bens. Sertanista que percorreu no século XVII o interior da
capitania de São Vicente e Santo Amaro, era bandeirante muito respeitado e
133
BLAJ, Ilana. Op. cit. 2002. p. 186.
134
E pertenciam, de acordo com João Fragoso formação da primeira elite local. Ver: FRAGOSO, João;
BICALHO, Fernanda ; GOUVEA, Maria. Op. cit. 2001.
89
conhecido por ser “possante em peças”, ou seja, detentor de enorme escravaria de
indígenas.
Contudo, no momento em que resolve fazer seu testamento, em 1695,
Matheus declara muitos poucos bens: “duas colheres de prata e hua tomoladera que
possa ter quatro patacas de peso mais ou menos”, a quem deviam as ditas à Manoel
Picam de dote. Sita ainda uma espingarda, e 4 pessas do gentio. Leme faz ainda um
adendo a seu testamento em 1697 – o codicilo – e aumenta seu espólio em apenas
uma serva, uma espingarda e demais trastes caseiros.
135
Mesmo sendo de família
honrada e pertencente ao alto círculo de relacionamentos da vila, Mateus Martins
Leme era desprovido de bens.
135
LEÃO, Ermelino de. Op. cit. 1288-1284.
90
3.3 SINHAZINHAS DOTADAS
A história da mulher na colônia, sobretudo a partir de estudos realizados na
década de 1980, veio transpor aquela visão quase monolítica da mulher
enclausurada, submissa e religiosa veiculada principalmente por Gilberto Freyre.
136
A historiografia passou a questionar a alegada submissão feminina e de imediato
reviu aqueles estereótipos extremamente patriarcais. Novos estudos acabaram por
apresentar que havia diferenças entre o modelo ideal da conduta feminina e que não
se traduzia mais como submissão.
Para dar voz, corpo e o patrimônio dessas mulheres, faz-se necessário retomar
os dados relativos às testadoras e às inventariadas mulheres que figuraram no rol da
documentação. De imediato, temos que 24 mulheres amealharam bens nos sertões
de Curitiba durante o setecentos. Destas, 10 eram viúvas, 7 eram casadas em
primeiras núpcias, 5 casaram em segundas núpcias e finalmente, 2 eram solteiras.
No momento em que se observam estes documentos, a situação de uma delas torna-
se exemplar para poder dialogar com a historiografia.
Izabel Fernandes da Rocha escreveu seu testamento em 2 de Janeiro de 1799.
Filha do capitão Amador Bueno da Rocha
137
, Izabel afirma que mesmo não sendo
casada expôs quatro filhos. Instigante questão para qual ainda nos faltam indicadores
que possam apontar as causas que teriam levado essa nobre sinhazinha para o
enjeitamento desses seus quatro filhos. Instigante também é a questão de o porquê
Izabel não se casou, já que tinha, aos nossos olhos, uma família que enobreceria a
linhagem com a qual fosse se aliar matrimonialmente.
Quanto à situação específica da Izabel, reitera-se que a testadora optou pela
situação de identificar-se como solteira, mas não é descabido imaginar que ela
poderia ter uma união afetiva com alguém a quem não pudesse assumir socialmente.
Daí a recorrência da exposição dos filhos em casas de parentes, criando uma
136
FREYRE, Gilberto. Op. cit.
137
Ver: Neste Capítulo, item “Honrados e providos”.
91
situação de cumplicidade familiar, particularmente das famílias de elite, em torno de
segredos que poderiam manchar a honra do grupo. Conhecendo que um dos códigos
máximos dessa sociedade era a honorabilidade, ou seja, a condição para se manter
na posição de distinção social, um ato errado dentro do seio familiar poderia
prejudicar a honra de todos.
138
O encaminhamento da vida de Izabel vem reforçar os estudos recentes da
historiografia sobre a mulher na colônia. Verifica-se que não se traduzem a idéia da
mulher recatada e passiva na colônia tal qual apresentados por Freyre. Elas tinham
mecanismos de escolhas, de vontades e, sempre que a ocasião permitisse, elas
colocavam em ação estratégias para fazer valer os seus desejos. O testamento seria
uma dessas ocasiões.
138
PITT-RIVERS, J. Op. cit. 1965. pp. 11-60.
92
3.4 ATIVIDADES E ACUMULAÇÃO
Durante o século XVIII, o poder das grandes fortunas curitibanas estavam
concentrados nas mãos de poucas famílias. De maneira geral, sua posição de
destaque foi conquistada por seus envolvimentos com o apresamento de índios, a
descoberta de ouro e o pertencimento à câmara municipal. O capital acumulado
esteve direcionado em muito para o comércio de gado.
Ao observar o dono do maior cabedal encontrado para a região do planalto
curitibano, o Capitão Antonio Gomes Campos, é possível verificar que dentre suas
atividades, o comercio de gado apresentava-se como a mais rentável. O espólio do
bruto do Capitão é de 11:409$985. No inventário, o avaliador dá conta que Gomes
Campos tinha nas mãos de um de seus condutores, 685 bestas, 55 cavalos e 95 rezes
nos caminhos para Sorocaba.
Fato que chama a atenção é que, no testamento do dito Capitão, de 1797, o
mesmo se reconhece solteiro, sem herdeiros e filho de mãe solteira.
Declaro que fuy morador na Freguezia de NoSsa Senhora da [f. 12] da Caxueira
Continente do Rio grande e natural da Cidade do Rio de Janeiro baptizado na
Freguezia de NoSsa Senhora da Candelaria Filho natural de Anna Maria da
Conceição Solteira ja falecida e Segundo Ma dizia de João Gomes de Campos o
qual nunca me Reconheceu nem tratou por Filho Declaro que Sou Solteiro e nunca
fuy Cazado e não tenho Erdeiro neceSsarios e por iSso me fica Livre a dispozição
de meus bens Ordeno
139
Como não deixou descendência, todo o restante dos bens de Campos foi
recolhido pela Coroa.
pelo q.’ mandei, que Se houveSse por incorporada no Patrimonio da Real Coroal
os Restos da herança do Cpp.
am
Antonio Gomes Campos, falecido na me.
ma
V.
a
vistoque não havia herdeiros habilitados nem os há antes pertendendoSse habilitar
há tres annos aesta p.
te
huns Sogeitos do Rio de Janeiro, e outros de Viamão, não
139
Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível - 138 – 1797 –
Auto de Inventário do Cap. Antonio Gomes de Campos. Testamento em anexo de 1797.
93
puderao mostrar nem plenam.
te
provar o parentesco, p.
o
por este meio de annular
otestam.
to
dom.
mo
Capp.
am
no qual dispôs a Sua herança p.
a
MiSsas, esmolas,
elegados Pios e profanos e deste modo instituhiu a Alma por herdeiro.
140
Já grande parte dos inventariados e testadores do período estudado dedicava-
se às atividades agrícolas, voltadas para a produção de gêneros alimentícios de
primeira necessidade. Esses dados assemelham-se aos encontrados para Sorocaba,
onde “dependiam, em sua maior parte, da mão-de-obra familiar, auxiliado por
algum agregado ou escravo”.
141
Vemos nas trajetórias de dois indivíduos ligados à atividade agrícola, que eles
nem fizeram alianças matrimoniais vantajosas, nem pertenciam aos quadros da
governança municipal. É o caso de Felipe de Souza Amaral, natural da ilha de São
Miguel freguesia de São Roque. Casado com Thereza Tavares de Almeida, nem
Felipe, nem seu pai Manoel de Souza Rocha, nem seu filho Francisco de Souza
Rocha, muito menos seus dois genros João de Araújo Dantas e Lorenço Dias
figuram no poder camarário. O mesmo ocorre com Ângelo Gonçalves Padilha.
Natural da vila de Curitiba, que se identifica em testamento como lavrador, não lega
nenhum instrumento de trabalho mas possuía quatro escravos. Nem Ângelo nem
nenhum de seus parentes eram homens bons.
Outros dois casos, apresentam uma colônia mais “esfumaçada” em suas
hierarquias e acúmulo de cabedais simbólicos e materiais. O primeiro é o caso de
Sebastião Cardoso Serpa, cujo testamento é de 1789. Natural da freguesia de Santo
Antonio da Ilha do Pico, ao que transparece em seu testamento, vive de trabalhos
esparsos. Declara que possui três vacas, uma égua com cria, dois boizinhos e pouca
roupa. Não lega terra alguma, mas indica que tinha uma sociedade com Antonio
Teixeira Álvares, um “negócio de sola”.
Esse indivíduo deixa entrever em sua fala que pertencia ao vasto grupo
daqueles que tentavam a sorte em diversas partes da colônia, afinal moveu-se por
140
Arquivo do Estado de São Paulo. Ouvidores e Juizes. Petição do Ouvidor Geral da Comarca de Paranaguá.
1804. Caixa 2.
141
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Op. cit. 2001. p.129.
94
inúmeras regiões coloniais. Sua passagem pelo Rio Grande e por Taubaté, suas
dividas com indivíduos da vila de São João Del Rey, Rio de Janeiro e dos Caminhos
das Gerais suscitam esta idéia. Ademais Serpa, nem seu pai e outros parentes
figuravam na câmara. Mas outro ponto chama atenção na documentação, como
vimos, o caso de ele ter uma filha com uma escrava, assim como o provável pai de
outras duas crianças.
O que se apresenta para estes dois indivíduos é que as atividades por eles
realizadas não interessavam aos homens com maiores patrimônios. Essas foram as
oportunidades que se apresentaram a esses dois homens livres.
Finalmente passamos para as atividades mecânicas. Um inventariado
reconhecido como alfaiate foi Manoel Ignácio da Fonseca. Este caso ganhou força à
medida que foi estudado por Mara Fabiana Barbosa
142
quando de seu interesse no
comércio e no mercado de Curitiba.
Natural da vila de Curitiba e alfaiate desde os 21 anos, Manoel casou com
Ana Maria de Andrade. Segundo Barbosa, “teve uma carreira aparentemente
estável, mesclando em apenas dois anos, oficialmente, ofício mecânico e comércio.
Foi o único entre os homens que entraram para a família Ribeiro de Andrade a ter
como fiador um outro membro da família, o também artesão Antonio Teixeira de
Freitas, e isso apenas uma única vez no ano de 1778”.
143
Quando de seu falecimento, com 30 anos, em seu inventário arrolado em
1785, nota-se que, além da escrava de nome Francisca, com 14 anos de idade em,
seus demais pertences, acumulados em aproximadamente dez anos de exercício de
seu ofício foram:
huma morada de Cazaz nesta Villa cobertaz de Telha com Sinco portaz mas [?]
com fexaduraz tudo no Vallor de Sincoenta e hum mil duzentos reiz com que Se
Sahe 51200
huma crioula esCrava por nome Francisca de idade de quatorze annos pouco
maiz ou menoz no Vallor de Secenta e quatro mil reiz com que Se Sahe
142
BARBOSA, Mara Fabiana. Terra de negócio: o comércio e o artesanato em Curitiba na segunda metade
XVIII. Curitiba : Dissertação de mestrado DEHIS/UFPR , 2003. p. 87-113.
143
Ibid. p. 110.
95
64000
hum par de fivellas de prata de Calção no Vallor de Seizcentoz reiz com que Se
Sahe 600
hum calção de bactam vermelho no Vallor de mil Seizcenttoz reiz com que Se
Sahe 1600
hum par de meyas de algodão com seu uzo no Vallor de trezentoz e Vinte reiz
com que Se Sahe 20
huma Vestia preta com bastante uzo no Vallor de novecentoz secenta reiz com
que Se Sahe 960
hum par de brincoz de ouro com o pezo de huma oitava no Vallor de mil
duzentoz reiz com que Se Sahe 1200
huma Tezoura grande de Alfayate no Vallor de quatrocentoz e oitenta reiz com
que Se Sahe 480
Soma
120360
ahum catre no Vallor de Seiz e quarenta reiz com que Se Sahe
640
hum machado Velho no Vallor de trezentoz e Vinte reiz com que Se Sahe
320
hua cerra pequena no Vallor de SeizCentos e quarenta reiz com que Se Sahe
640
hua encho no Vallor de oittocentoz reiz com que Se Sahe
800
hua duzia de Taboaz de forro no Vallor de mil duzentos e oitenta reiz com que
Se Sahe 1280
hua caxa de quatro palmoz de 900
hum bofete Lizo pequeno no Vallor de Seizcentoz reiz digo no Vallor de
Seizcentoz e quarenta reiz com que Se Sahe 640
Somão os benz aqui Lançadoz e aValliadoz a emportancia de cento Vinte e Sinco
mil quinhentoz e oitenta reiz Salvo erro com que Se Sahe
25580
144
Observa-se que entre os bens do falecido sua escrava Francisca era o mais
valioso, além da casa e uns poucos bens de metal precioso, dos quais ressalta um par
de brincos de ouro e uma fivela de prata. A única ferramenta utilizada em seu oficio
a ser arrolada foi uma tesoura grande de alfaiate.
Quanto a suas dívidas, Manoel deixou 7 delas – 4 registradas e outras 3
reclamadas após sua morte – das quais cinco foram com outros comerciantes e
144
Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível Caixa PJI-03 –
Processos Judiciários Inventários nº 03. 023 – 1785 – Auto de Inventário de Manoel Ignácio
Fonseca. Fl 03 e 03v.
96
artesãos da vila: o sargento-mor Francisco Xavier Pinto, os tenentes Estevão José
Ferreira e José Bernardino de Souza, Brás Álvares Natel e o sapateiro Francisco
Teixeira Camelo. Suas outras dívidas foram com Miguel Rodrigues Seixas e para “a
Fabrica desta Igr.
a
Matriz”
145
. Dos seus credores, todos aqueles que pertenciam ao
grupo dos comerciantes e artesãos poderiam ser considerados como bem-sucedidos,
visto que todos eram donos de vários escravos, salvo o tenente José Bernardino de
Souza, dono de apenas dois escravos.
As dívidas do falecido Manoel, que somavam 17$910 réis, foi saldada graças
ao valor da jovem escrava que possuía, já que não deixou quantia alguma em
dinheiro. O Caso de Manoel é bom exemplo para demonstrar que os indivíduos dos
sertões curitibanos que transmitiram bens foram pessoas alheias aos ofícios
mecânicos. Diz-se isso pois os bens inventariados eram poucos e a coisa de maior
valor, sua escrava, serviu para quitar dívidas. Logo, mesmo inventariado, ele não
transmitiu nada. Seu inventário foi apenas a salvaguarda de seus credores.
145
Ibid. f. 14.
97
CAPÍTULO IV
ACUMULAR RELACIONAMENTOS, TRANSMITIR SABERES:
OS RODRIGUES SEIXAS
As ocupações profissionais denotam o grau de implicação social do indivíduo
durante o Antigo Regime. Atividades mecânicas tendiam a “denegrir” a imagem do
indivíduo, porquanto tais o aproximavam de elementos considerados os ‘mais
baixos’ na estratificação social. Entretanto, ofícios existiam que, ao contrário,
acabavam por servir de impulso ao indivíduo para ascensão social em determinada
comunidade. Nesse caso, a origem européia, auxiliada por “saberes” pouco
desenvolvidos na sociedade colonial luso-americana, funcionava como característica
primordial para a inserção e desenvolvimento do indivíduo recém-emigrado.
Certos “saberes”, como o domínio sobre as letras, constituíam um “valor
simbólico” e poderiam servir para integrar tal emigrado em esferas de poder que
seriam dificilmente ocupadas pela maioria dos colonos. Entre as instâncias
profissionais a serem exercidas por esses membros “mais aptos” da sociedade, ou
por serem reinóis, ou por dominarem os ditos “saberes”, estavam as funções
administrativas.
Tratando-se de uma sociedade de ordens, o ofício [cargo público/administrativo] era visto
como uma dignidade atribuída pelo monarca a que correspondiam prestígio, honras e
privilégios, não apenas ao nível mundano, mas com resultados sociais práticos. O exercício
do cargo público dava ao indivíduo uma concreta preeminência na sua comunidade e
perante os órgãos públicos. Assim, a ocupação pelo pai ou avô de um ofício real, mesmo
modesto, era considerado fator favorável ao ingresso em vários cargos. Constituía-se, desta
forma, num elemento de ascensão social.
146
Podendo ser considerado como uma “mercê”, o cargo administrativo atribui
àquele que o exerce, muitas vezes, uma certa “onipresença” social. Tabelião e
Escrivão da Câmara, participante do momento de ereção da Vila de Curitiba, João
Rodrigues Seixas é um dos reinóis agraciados com tamanha distinção oficial.
146
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Op. cit., p. 143.
98
Esse personagem aportou em terras luso-americanas em meados do século
XVII, época em que a grande concentração das pessoas se dava no litoral, em função
da atividade açucareira. Maria Luiza Marcílio nos dá conta disso, ao informar que
“enquanto o açúcar brasileiro se manteve como principal produto de exportação,
do final do século XVI ao fim do século XVII [...] aproximadamente 70% dos
brasileiros estavam distribuídos pelas principais zonas canavieiras, demarcadas ao
sul pela área da em volta da Bahia (o Recôncavo) e ao norte pelo Rio Parnaíba.
147
Assim, Rodrigues Seixas optou por se estabelecer numa região alheia à grande
lavoura, mas que adquirira algum significado no período em que ele emigrou. É
nesse período que, no litoral sul da Capitania de São Vicente, foi descoberto ouro de
aluvião na região da baía de Paranaguá, particularmente no rio Cubatão e em seus
afluentes.
É atribuído, ao projeto de desenvolvimento de D. Francisco de Souza, a
intensificação de incursões com vistas em encontrar metais e pedras preciosas na
América Portuguesa. Governando o Brasil na passagem do século XVI para o XVII,
ele acentuou o apoio oficial aos sertanistas paulistas, ‘devidamente estimulado pela
lenda tupiniquim de Itaberaba-açu, uma serra resplandecentes que, para muitos,
localizava-se nas cabeceiras do Rio São Francisco’.
148
Nessa direção, armou
inúmeras expedições, que deram mostras de possibilidades concretas de encontrar-se
tais riquezas. Em muito colaborou para seus planos, o fato de, em 1608, alçar a
condição de governador do Sul e Superintendente das Minas. Seu projeto,
propunha articular os setores de mineração, agricultura e industria, todos
sustentados por uma sólida base de trabalhadores indígenas’.
149
É nessa fase que
se encontram as pepitas de ouro nas águas do rio Cubatão.
A trajetória de vida de João Rodrigues Seixas não indica ter sido ele o tipo de
aventureiro que teria se deslocado do Reino em busca do Eldorado para fazer sua
147
Marcílio, Maria Luiza.. A população do Brasil colonial. In: Bethell, Leslie. (org) . A América
Latina colonial. São Paulo : Edusp, 1999, Pp. 334
148
MONTEIRO, J. Op. cit., p. 59
149
Ibid.
99
fortuna. Mas, é fato que ele se estabelece numa região onde muitas pessoas estão
acreditando nessa possibilidade. Todavia, pensar nos motivos que o levaram a
emigrar passa apenas por especulações uma vez que é difícil definir a motivação
quando se individualiza a análise. Mesmo em tempos mais próximos, como é o caso
de imigrantes do século XIX que deixaram memórias e diários, as razões por eles
indicadas como propulsoras de suas emigrações mostraram-se filtradas pelas
experiências posteriores.
150
Nesse caso, todo o esforço dessa investigação se deu no
sentido de recompor a história de vida de um reinol, João Rodrigues Seixas, que
aportou no Brasil na metade do século XVII, em idade que não foi possível precisar,
mas certamente ao iniciar sua juventude. A intenção, como foi apontado acima, foi
observar como um imigrante comum, qual seja, aquele que se radicou no Brasil por
vontade própria estruturou sua vida na América Portuguesa. Ele, ao que tudo indica,
se instalou na Colônia sem contar com uma rede de parentesco e sem as vantagens
iniciais dos que vinham no âmbito da “economia política de privilégios”. Veio
jovem, sem cargos, sem funções pré-definidas. Mesmo assim, como veremos a
seguir, ele conseguiu uma mobilidade social notável.
150
MACHADO, Cacilda. De uma família imigrante. Curitiba : Aos Quatro Ventos, 1998.
100
4.1 MAIS UM REINOL EM TERRAS ALÉM-MAR
João Rodrigues Seixas, nasceu no Reino, na pequena vila medieval de Vianna
do Castelo, situada à margem da foz do Rio Lima, na região do Alto-Minho. Era
filho do Capitão Antonio Rodrigues Seixas e de sua mulher Catharina Martins. A
documentação que compulsada não nos permite saber se ele veio para os domínios
ultramarinos acompanhado de familiares ou não, apenas, como já foi dito, que ele
emigrou muito jovem.
Aqui chegando, estabeleceu morada inicialmente em Cananéia, no litoral da
capitania de São Vicente. Essa localidade já agrupava população desde o início da
chegada dos portugueses na América e era um centro razoavelmente importante no
contexto regional. Em Cananéia, segundo a interpretação espanhola, passaria o
meridiano de Tordesilhas e, portanto, os portugueses se ocuparam de incentivar
fixação populacional bem como de que ela se irradiasse pelo litoral sul, com vistas
em garantir sua dominação territorial. Além do mais, o intenso tráfego de navios
portugueses, espanhóis e de outras nações européias, particularmente no século XVI,
acabou concentrando desde muito cedo nessa região náufragos (o mais famoso dele,
o “bacharel de Cananéia”) e pessoas banidas do reino que, interagindo com a
população ameríndia, vão produzindo a população mestiça, marca do caiçara
paulista.
Até onde avançou a investigação, João Rodrigues Seixas ali residiu por
aproximadamente 30 anos e nesse período conheceu e casou-se com Maria Maciel
Barbosa. Como tantos outros portugueses, casou-se com moça da terra, e pouco
depois esta deu à luz um menino, o primogênito Antonio Rodrigues Seixas, que
recebeu o nome do avô paterno.
Por algum motivo, talvez o de buscar melhores condições de vida e novas
oportunidades, João partiu de Cananéia e rumou com sua família mais para o sul
transpondo a serra do mar e se fixando em área do planalto. Naquela época eram
poucos que faziam isso com vistas a fixar-se, até porque eram poucas as vilas
101
estabelecidas no interior da América Portuguesa até meados do século XVII.
Estabeleceu morada nos campos de Curitiba por volta de 1689. Vale notar que é
possível que ele partilhasse expectativas próprias dos inúmeros reinóis que tentavam
a vida em alguma parte dos domínios portugueses além-mar. Vê-se que a presença
constante de lusos, não somente na região sul, mas em toda a América portuguesa
traz consigo uma gama de valores do Antigo Regime. A este respeito já foi indicado
que
Os indivíduos que foram para o ultramar levaram consigo uma cultura e uma experiência de
vida baseadas na percepção de que o mundo, a “ordem natural das coisas” era
hierarquizado; de que as pessoas, por suas “qualidades” naturais e sociais, ocupavam
posições distintas e desiguais na sociedade. Na América, assim com em outras partes do
Império, esta visão seria reforçada pela idéia de conquista, pelas lutas contra o gentio e pela
escravidão. Conquistas e lutas que, feitas em nome del Rey, deveriam ser recompensadas
com mercês – títulos, ofícios e terras.
Nada mais sonhado pelos “conquistadores” – em sua maioria homens provenientes de uma
pequena fidalguia ou mesmo da “ralé” – do que a possibilidade de um alargamento de seu
cabedal material, social, político e simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo – assim como
vários outros territórios e domínios ultramarinos de Portugal – representava para aqueles
homens a possibilidade de mudar de “qualidade”, de ingressar na nobreza da terra e, por
conseguinte, de “mandar” em outros homens – e mulheres.
151
João Rodrigues Seixas, com qualquer outro emigrante voluntário que vinha
para a América, integrava a gama dos indivíduos que vinham tentar a sorte. No
entanto, há indicadores de que sua família de origem pertencesse à pequena e
empobrecida fidalguia do Reino, haja vista que seu pai, Antonio Rodrigues Seixas,
era Capitão na vila de Vianna do Castelo. Mesmo não sendo possível aferir se esse
título referia-se a seu pertencimento ao oficialato das tropas auxiliares ou das tropas
pagas, ele indica que sua família, e ele por extensão, não pertencia à aludida ‘ralé
lusitana’.
151
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (org.). O Antigo
Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Introdução. Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira, 2001. p.24
102
A região para a qual ele se dirigiu, os campos de Curitiba, já vinha sendo
ocupada desde o início do século XVII, por uma população luso-paulista oriundos
de São Vicente, São Paulo de Piratininga, Santos e Cananéia. Os diversos estudos
que se dedicaram ao movimento de ocupação do atual Estado do Paraná convergem
ao indicar essas vilas e povoados como locais de irradiação da população que se
radicou no planalto curitibano.
152
Nesse sentido, o deslocamento geográfico de João
Rodrigues Seixas não configurava nenhuma exceção no conjunto dos movimentos
migratórios que ocorreram no século XVII. É nesse período e em função desses
pequenos fluxos migratórios que se constituiu a sociedade nos campos curitibanos,
formada originalmente por faiscadores e mineradores de ouro que vieram tentar a
sorte no planalto. Visto que o ouro não era mais encontrado nas veias dos rios
litorâneos, configurou-se como um contingente populacional diminuto e disperso.
Esses habitantes, morando provisoriamente choças cobertas com folhas de palmeira,
“vasculhavam os cascalhos dos riachos à procura de pequenas pepitas de ouro, tão
avaramente cobiçadas”.
153
Alguns estudos sugerem, contudo, que por volta de 1639 iniciou-se o
povoado de Nossa Senhora da Luz, com vistas à exploração agro-pastoril. Mas era
uma região pobre, afastada das atividades econômicas ligadas à exportação, e foi
com a agricultura de subsistência que essa gente sobreviveu, com uma condição de
vida descrita como sendo “miseráveis e primitivas”.
154
Curitiba teve, então, sua
população formada por lusos, paulistas e seus descendentes que possuíam alguns
escravos, poucos índios e que conviviam com aqueles primeiros povoadores que
vieram à cata de ouro e, não o encontrando, se fixaram na região. Prova da sua
fixação é a construção de uma capela, provavelmente na década de 1650. Vale dizer
152
BALHANA, A. et al. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969; NADALIN, Sergio O.
História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas : ABEP, 2004; WACHOWICZ,
Ruy. História do Paraná. Curitiba : Imprensa Oficial do Paraná, 2001.
153
WACHOWICZ, Ruy. Op. cit., p. 69.
154
MACHADO, Brasil Pinheiro. Formação da estrutura agrária tradicional dos Campos
Gerais. Boletim da Universidade do Paraná. Departamento de História, n.3, jun. 1963, p. 4.
103
que “à época, Curitiba era o extremo meridional da ocupação portuguesa na
América”.
155
155
PEREIRA, Magnus .R.de Mello. ; SANTOS, Antonio Cesar A. 300 anos : Câmara Municipal de
Curitiba : 1693-1993. Curitiba : Câmara Municipal, 1993. p.19.
104
4.2 INSTITUIR AS JUSTIÇAS: JOÃO RODRIGUES SEIXAS E A CÂMARA
MUNICIPAL
João Rodrigues Seixas estabeleceu-se com sua família no povoado de Nossa
Senhora da Luz, e aí nasceu sua filha, Isabel Rodrigues. Radicou-se num momento
em que os povoadores requeriam de Portugal a institucionalização do povoado.
Embora o Pelourinho já estivesse levantado desde 1668, somente vinte e cinco anos
depois é que o povoado de Curitiba foi elevado à categoria de vila. Os moradores
requeriam a criação das justiças, “paz quietasão e bem comum deste povo, e por ser
já oje mui crecido por passarem de noventa homes”.
156
O Capitão-mor de
Paranaguá Francisco da Silva Magalhães, sabendo que Gabriel de Lara
157
já havia
autorizado esse ato em 1668, concordou e deu ordens para o Capitão-povoador
Mateus Leme deferir o pedido. Aos 29 de março de 1693, na pequena capela de
Nossa Senhora da Lux e Bom Jesus dos Pinhais, reuniram-se os “homens bons” para
escolherem seus eleitores. Estes indicarem os membros da Câmara Municipal, os
juízes, o procurador da Câmara e o escrivão, organizando assim, politicamente a vila
de Curitiba.
Dadas essas condições, é possível entrever as possibilidades que surgiam
para os indivíduos com a criação de uma vila. Esse momento se configurava como
uma ocasião propícia para as pessoas tentarem uma inserção no núcleo de poder da
sociedade, já que ela própria estava em processo de redefinição das posições sociais.
O reinol João Rodrigues Seixas era aceito e transitava nesse espaço, pois detinha um
saber precioso para essa localidade (como para toda a América seiscentista): sabia
ler e escrever, ou seja, ele dominava as letras. Possuía assim uma competência que
156
BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA. Fundação da Villa de Curytiba.
Vol.1, 1668 á 1721. Curitiba : Typ. E lith. A vapor Impressora Paranaense , 1906. p.4.
157
“Capitão-mór, ouvidor e alcaide mor da capitania de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá e
das quarenta legoas da costa do sul, loco-tenente perpetuo do donatário Marquez de Cascaes” In:
LEÃO, Ermelino de. DICIONÁRIO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARANÁ. Curitiba :
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense, 6v ,1994. p. 729
105
não era tão comum na população das vilas coloniais, visto serem repletas de homens
analfabetos.
158
Mais do que isso, a habilidade de ler e escrever estendia-se a seus
familiares, pois seu filho primogênito Antonio foi quem redigiu a ata de elevação do
povoado de Curitiba à condição de vila. Por seu lado, Desde a primeira eleição
camarária da nova vila, em 1693, João Rodrigues Seixas foi convocado pelos “seis
omens de sam comsiensa (...) Agostinho de Figueiredo, Luiz de Góis, Garsia
Rodrigues Velho, João Leme da Silva, Gaspar Carrasco do Reis (e) Paulo da Costa
Leme” para ser o primeiro escrivão da Câmara, cargo que exercerá até a sua morte.
Os ofícios de escrivão, de tabelião, contador, inquiridor, porteiro, carcereiro,
integravam a estrutura do oficialato da justiça local. Porém, esses cargos
compunham o quadro dos funcionários menores da administração local em cujo
ápice estavam os juízes e os vereadores
159
. Deve ser destacado que, aos trabalhos de
escrivão, João acumulava as funções de tabelião de notas e escrivão de órfãos,
recebendo o ordenado anual de 6$000 réis.
160
Vale notar que em Portugal esse cargo parecia ter sido reservado para gente
nobre de poucos recursos, ou empobrecidos, pois permitia enriquecimento ora pela
remuneração anual recebida, ora pelos ganhos advindo do pagamento dos custos
para a elaboração dos diversos tipos de registros, bem como pelo encaminhamento
de processos diversos ou de inventários. Com base nos estudos de Antonio Manuel
Hespanha, atenta-se para a importância dos oficiais de justiça (notários, tabelião e
escrivães), não somente pelos rendimentos que eram recebidos, mas pela
centralidade dos seus ofícios no conjunto da estrutura administrativa do poder local.
Embora menores na hierarquia, eram postos estratégicos, pois esses oficiais
detinham em suas mãos os documentos principais da sociedade, visto que:
158
NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D.
Maria e D. João V. Lisboa : Editorial estampa, 1993.
159
SALGADO, Graça. Op. cit., 1985. p. 47-72.
160
LEÃO, Op. Cit. p. 996.
106
Os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias decisivas, desde o estatuto
pessoal aos direitos e deveres patrimoniais. As cartas régias de doação (v.g., de capitanias)
ou de foral, as concessões de sesmaria, a constituição e tombo dos morgados, as vendas e
partilhas de propriedades, os requerimentos de graças régias, a concessão de mercês,
autorizações diversas (desde a de desmembrar morgados até à de exercer ofícios civis),
processos e decisões judiciais, tudo isto devia constar de documento escrito, arquivado em
cartórios que se tornavam os repositórios da memória jurídica, social e política (...) De fato,
parece que muitas compras se destinavam justamente à remuneração de favores ou a atos de
proteção; com que, além do mais, se recebia em troca a garantia de que os papéis, cômodos
ou incômodos, estavam em boas mãos.
161
Dado que a estrutura administrativa da América Portuguesa fazia-se nos
moldes das existentes no Reino
162
, é possível transpor essas observações para a
realidade colonial. Nos domínios americanos, além de serem, em sua maioria, os
“homens bons” da vila iletrados, é a partir da instalação da Câmara que a sociedade
curitibana se vê inserida às justiças, nos trâmites da burocratização da época. Aqui
fica o indício de que João Rodrigues Seixas tinha sua importância, pois, pelo próprio
fato de ser reinol, trazia consigo uma noção de ordenamento jurídico, representação
que deveria ser incomum no planalto curitibano, ocupado em grande parte por
população nascida na colônia e onde a criação das justiças vai se dar apenas em
1693. Como morou por 30 anos em Cananéia, ponto regionalmente importante nos
contatos com o reino e que era vila desde meados do século XVI, fundada por
Martin Afonso de Souza, é possível pensar que, mais do que do Reino, sua vivência
em Cananéia tenha lhe ensinado os valores da vivência cívica, pois aquela vila,
como foi dito anteriormente, já contava com Senado da Câmara desde o século XVI.
Some-se a isso o domínio das letras e pode-se ver que ele detinha uma posição
privilegiada no conjunto dos homens bons da vila de Curitiba. Mesmo sendo uma
161
HESPANHA, António Manul. A constituição do Império português. Revisão de alguns
enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de
Fátima. (org.). Op. Cit. p.186. ; HESPANHA, As vésperas do Leviathan: instituições e poder
político – Portugal, século XVII. Coimbra : Almedina , 1994. p.160-230.
162
De fato, o funcionamento administrativo do amplo império português, se fez, com a duplicação e
devidas adaptações das instituições portuguesas pelas diversas partes mantidas sob o domínio
lusitano. Dentre os estudos que pioneiramente destacaram esse fator de unidade do império
português situam-se os de Boxer. Cf. BOXER, Charles. O império colonial português: 1415-1825.
Lisboa: Edições 70, 1969. particularmente na Segunda Parte, capítulo XII.
107
das funções menores da administração pública, o ofício de escrivão consistia no
posto mais alto de sua categoria e certamente na trama das relações da ‘coisa’
pública, seu local social pode sugerir o sentimento de pertencimento ao reino e mais
do que isso, confere a João Rodrigues Seixas o trânsito neste espaço social por seu
sangue português e por regular em seu ofício os atos sociais.
É então no espaço da Câmara Municipal e, sobretudo pelo exercício dos
ofícios de escrivão e de tabelião, que podemos tentar recompor traços e analisar
aspectos da trajetória de vida de João Rodrigues Seixas. Um primeiro ponto a ser
destacado é que ele foi uma pessoa que circulou na administração camarária
curitibana desde a sua criação. Em função do cargo que ocupava, ele detinha posição
estratégica para observar o jogo social da região do planalto curitibano, tendo acesso
a informações e à documentação que selava ou que rompia alianças entre os
poderosos da localidade e, sobretudo, muitos elementos para avaliar a quem deveria
aliar-se e a quem deveria evitar o estreitamento das relações. Pois é na Câmara onde
circulam os indivíduos que organizam o espaço público. “Obviamente havia pouca
coisa na vida colonial que a câmara não considerasse atribuição sua (...) seria
natural que a câmara definisse bem comum como aquilo que beneficiaria os grupos
econômicos dominantes aos quais pertenciam os conselheiros”
163
. Sendo que a
própria sociedade curitibana está em formação, é na Câmara que ocorre a criação
das próprias hierarquias entre os indivíduos, suas necessidades, principalmente
aquelas que darão aos sujeitos maior prestígio e maior privilégio. É nesse espaço que
João Rodrigues Seixas atua desde sua formação em 1693 até a sua morte em 1700.
Entretanto, o que se observa é que não seria apenas um espaço que
diferenciaria os indivíduos. Mas, sobretudo na instauração da Câmara da vila de
Curitiba em fins do século XVII, parece ter sido entre os seus integrantes que
ocorrem as alianças que aumentariam os relacionamentos entre os indivíduos,
163
LOCKHART, James; SCHWARTZ, Stuart. A América Latina na época colonial. Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira , 2002. p. 287-288.
108
recentemente estabelecidos como da “nobreza da terra” e que tenderiam a organizar
suas alianças.
Tendo em vista que, em todo o Antigo Regime, a referência social ao
indivíduo era frágil, sendo sua identificação social quase sempre associada ao seu
pertencimento a um grupo mais amplo e que, para a capitania de São Paulo num
geral, eram escassos os recursos e a população possuía somente bens e produtos de
consumo básicos para a sobrevivência, era fundamental instituir relações de
afinidade para melhor se estabelecer. Segundo Elizabeth Kuznesof, nos séculos XVI
e XVII
O que era importante para os paulistas era a proximidade do grupo social no qual eles se
baseavam para obter ajuda e realizar a troca – o clã familiar. A precária economia de
subsistência, a agricultura, apoiava-se e protegia-se através de um sistema de troca de grupo
e ajuda mútua. Essas não eram relações de mercado, nem relações baseadas em um sistema
de reciprocidade específico, mas sim, um sistema de apoio generalizado para todos os
membros do grupo.
164
O caminho mais eficaz para suprir essa carência e solidariedade seria,
justamente, a instituição do casamento, que pela união de duas famílias permitia a
configuração de um relacionamento de proteção mútua. Além disso criava, num
certo sentido, uma relação de dependência entre os cônjuges e os membros das duas
famílias de origem de ambos os cônjuges. O desejo era que essa aliança não somente
garantisse estabilidade das famílias, mas também que mantivesse sua posição e, ou,
o alçasse algum degrau na escala social. Nem sempre as coisas ocorriam a contento,
mas naquele contexto, o matrimônio definia em muito a posição social e os ganhos
sociais, materiais e simbólicos advindos da escolha correta.
A tais interesses eram acompanhados ainda o de adquirir, com o tempo,
maior representação social e política na sua localidade. Desse modo, era importante
164
KUZNESOF, Elizabeth Anne. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e
estrutura social (São Paulo, 1700-1980). Família e grupos de convívio, São Paulo, n. 17, p.37-63,
set. 1988/ fev. 1989. p.40.
109
escolher os cônjuges que favorecessem os interesses das famílias de ambos os
noivos. O casamento religioso era a condição fundamental para a busca de status,
ascensão social e obtenção, em muitos casos, de posições administrativas.
Assim, o casamento era não tanto um assunto pessoal quanto era um assunto de família, e
isso favorecia a família de muitos modos. (...) Além disso, o casamento de um filho dava a
sua família como um todo uma aliança com a família da noiva, acrescida de uma nova
unidade produtiva, instalada, em sua maior parte, com o dote da noiva. Inversamente, pelo
casamento de uma filha, a família ganhava um novo sócio, que podia colaborar para a
expansão do empreendimento familiar.
165
Um primeiro indicador de que o cargo na Câmara Municipal favoreceria a
mobilidade social de uma família pode ser exemplificado com as alianças que João
Rodrigues Seixas obteve ao casar seus filhos: Antonio Rodrigues Seixas e Isabel
Rodrigues. Ambos fizeram casamentos hipergâmicos, e pode-se pensar que isso
decorreu do relacionamento de João Rodrigues Seixas com as pessoas de melhor
qualidade na vila de Curitiba, desde o momento em que a vila se organizou. Ainda,
não se pode desdenhar do capital simbólico que ele detinha por ser homem branco e
do Reino e até, por que não, de um certo carisma que João Rodrigues Seixas
detivesse, favorecendo suas relações. O fato é que os matrimônios de seus filhos
foram celebrados com pessoas de posição social e econômica superior à dele e,
assim, com os casamentos de seus filhos, do ponto de vista familiar, ele empreendeu
uma negociação que lhes garantiu mobilidade social ascendente.
Essa é uma das marcas da sociabilidade colonial, que mesmo configurada sob
os códigos de uma sociedade estamental, detinha a especificidade de permitir
trânsito no interior da hierarquia social. No caso que estamos examinando, para
mobilidade desse reinol que migrou jovem para a América, ao que tudo indica,
contribuiu em muito para sua família ascender socialmente, o fato de ele ter
decidido, já em idade adulta, migrar para uma exatamente no momento de sua
165
NAZZARI, Muriel. Op. cit. , 2001. p.66.
110
institucionalização. Para o bom funcionamento de uma instância específica da
administração municipal, como já foi indicado, ele detinha saberes específicos que
foram preciosos para a sua inserção no espaço camarário. Além disso, mesmo que o
povoamento da região não fosse recente, a criação da Câmara Municipal trouxe
consigo a necessidade de sedimentar a hierarquia entre os povos radicados no sertão
de Curitiba, nos moldes do Antigo Regime. Com ela, para além da clivagem jurídica
entre livres e cativos, a sociedade local se viu diante da necessidade de distinguir os
homens bons. Certamente, nessa classificação, mesmo que em suas franjas
inferiores, João Rodrigues Seixas foi inserido.
Desta feita, vale retomar a indicação de Fernando Novais quando observou
que “a sociedade da Colônia, ao mesmo tempo, estratificava-se de forma
estamental e apresentava intensa mobilidade; o que provavelmente, criava uma
situação de ambigüidade, pois a junção dessas duas características envolvia,
simultaneamente, tendência de aproximação e distanciamento entre as pessoas”.
166
A trajetória de João em Curitiba sugere que ele tenha se valido deste capital
simbólico, tendo em vista que não era sesmeiro e nem tinha um grande número de
índios administrado. Deixou pouco em bens materiais, mas, ao que tudo indica,
legou para a mulher e ao casal de filhos algo precioso nas representações do Antigo
Regime: respeito e honorabilidade social, conferidos a ele tanto pela pureza de
sangue como por não ter, ao longo da vida, se maculado com ofícios mecânicos.
Soube manipular bem esse capital simbólico e prova disso foi sua permanência
como escrivão e, sobretudo, como tabelião da vila até morrer.
166
NOVAIS, Fernando. Condições da privacidade na colônia. In: História da vida privada no
Brasil: cotidiano e vida privada da América portuguesa. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.
p.13-39.
111
4.3 A VIÚVA
A historiografia demonstra que, nas sociedades do Antigo Regime, era muito
mais fácil a um viúvo estabelecer novas núpcias do que a uma viúva. No entanto,
Maria Maciel Barbosa, a viúva de João Rodrigues Seixas escapou do destino de
tantas viúvas e retomou a vida conjugal após a morte de seu marido. Naquele
momento, seus dois filhos já estavam casados e, sem fontes que forneçam algum
indicador a respeito, podemos imaginar que ao morrer seu marido ela tenha passado
a chefiar seu domicílio, acompanhada de alguns escravos, ou, com maior
probabilidade, de alguns “servidos”, pois no início do século XVIII eram mais
comuns a escravidão indígena na região do planalto curitibano. Seu segundo marido
foi Luiz Rodrigues Velho, irmão do capitão Garcia Rodrigues Velho. Não há
documentação que permita identificar a idade em que ela ficou viúva nem com
quantos anos ela recasou. No entanto, ela deveria estar entre 35 e 45 anos de idade, à
medida que, com seu segundo marido, ela teve mais um filho.
Conhecido sertanista da região, Garcia Rodrigues tornou-se detentor de um
número significativo de servitos – índios – nas últimas décadas do século XVII. Isto
pode ser observado analisando a presença de grande número de índios de sua
propriedade que recebiam o sacramento do batismo. Segundo os registros de
batismo do período de 1688 a 1691, Garcia Rodrigues Velho possuía um total de 17
servitos. Destaca-se que outros notáveis moradores da vila, como Mateus Martins
Leme, João Rodrigues Seixas, Manoel Soares, Baltazar Carrasco dos Reis, também
possuíam índios em suas propriedades, num número considerável, porém inferior ao
de Garcia Rodrigues Velho.
A historiografia tem apontado que o aprisionamento indígena manifestou-se
como “elemento básico na formação e reprodução da sociedade colonial e sua
manutenção garantiu e legitimou a continuidade de escravização dos povos
112
indígenas”.
167
Em São Paulo e no Rio de Janeiro no seiscentos, ao menos, a
montagem das fortunas das famílias mais poderosas da região dependeu da guerra
contra o gentio em prol de conquistas de novos espaços e de mão-de-obra para as
atividades agrícolas ou extrativistas que eram desenvolvidas. Desse modo, a posse
de indígenas tornou-se um dos mecanismos fundamentais na formação do processo
produtivo colonial.
Segundo João Fragoso, o patrimônio agrário carioca – que posteriormente
teve nos escravos africanos a mão-de-obra principal – num primeiro momento
“constituiu-se e reproduziu-se pela doação de sesmarias, índios e créditos, aos
quais [as famílias mais poderosas] tinham acesso exatamente por suas estreitas
relações com o poder, o que lhes conferia a possibilidade de ocupar importantes
cargos de comando na colônia”.
168
Já de acordo com Stuart Schwartz “os índios
constituíam também o principal recurso da capitania. Os portugueses de São Paulo
mediam sua riqueza pelo número de escravos e partidários a que podiam recorrer.
‘Ricos em flecheiros’ era uma descrição comum dos cidadãos mais proeminentes do
planalto”.
169
Ainda que não conste nenhum registro de batismo cujo proprietário de
servitos fosse Luiz Rodrigues Velho, sua ligação com seu irmão Garcia Rodrigues
era visível na medida em que obtiveram conjuntamente com seu pai, Domingos
Rodrigues da Cunha, uma sesmaria em 1668, uma das doze que foram doadas no
século XVII na vila de Curitiba. Assim, neste caso específico, não somente o pai,
mas também o irmão de Luiz Rodrigues Velho garantia a viabilidade de uma aliança
matrimonial que se apresentava bastante interessante para ambas as famílias. Ainda
que fosse escasso o número de mulheres brancas e livres para o casamento nesse
167
ALMEIDA,Maria Regina Celestino de. Considerações sobre a presença indígena na economia
do Rio de Janeiro colonial. In: Cativeiro & Liberdade. Rio de Janeiro, v. 4, p. 46-58, jul. / dez.
1996.
168
FRAGOSO, João. A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do
Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII). IN: Topoi. Rio de Janeiro , 2000 , nº 1.p. 54.
169
SCHWARTZ, Op. Cit. p. 313
113
período
170
, Maria Maciel Barbosa apresentou-se como uma das possibilidades que
trazia benefícios para as duas famílias, já que era branca e tinha sido casada com um
reinol. Enquanto a família Rodrigues Velho possuía bens materiais, o grupo dos
Rodrigues Seixas possuía o sangue português, os bons relacionamentos na Câmara,
pois Antonio Rodrigues Seixas assume como escrivão após a morte de seu pai e
contava com o domínio das letras.
Tendo em vista que os integrantes desta intrépida família de sertanistas
haviam, ao que a documentação demonstra, sido comerciantes de índios e estarem
bem estabelecidos na vila, agora não necessitavam de alianças matrimoniais que
suprissem carências econômicas. Como sugere John Manuel Monteiro “no contexto
econômico de São Paulo seiscentista, tão dependente do trabalho indígena, as
perspectivas de ascensão para os jovens colonos restringiam-se ao acerto de um
vantajoso dote, ao recebimento de uma boa herança ou, finalmente, à participação
numa rentável expedição de aprisionamento.”
171
. O irmão mais novo dos Rodrigues
Velho (ou da Cunha) interveio com uma aliança política vantajosa em que a
agregação de novos membros garantisse uma certa proteção e uma melhor inserção
social, visto que o aprisionamento indígena estava sendo coibido pelo reino. Como
podemos observar nos Provimentos do Ouvidor Raphael Pires Pardinho para a vila
de Curitiba em 1721, no título 72:
Proveo que os Juizes e Off.
es
da Câmera pello q’tóca prohibão que nenhua pessoa
entre pelo certão a corre o Gentio pêra os obrigarem a seu serviço, por ser contra
as Leis expresas de Sua Magestade, q’Deus G.
de
, e ainda contra o serviço de Deus,
em que muito em carregão suas conciencias. E em nenhù cazo se pod vender ao d.
o
Gentio e hindios, das campanhas, armas alguas de qual quer gênero que sejão quer
offencivas, quer defencivas por ser prohibido pellas Leis do Reyno, e expeciais
neste Estado, Subpenna de morte natural e de perdimento de todos os seus bens a
metade para cativos (sic) e a outra para quem os acusar, em q’em corre quem as
170
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade
escravista. In: História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada da América
portuguesa. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. p.221-273. ; SCHWARTZ; LOCKHART,
Op. Cit. p.305-316.
171
MONTEIRO, John Manuel. Op. cit. , 1994. p.86.
114
ditas armas vender. Os Juises e Off.
es
de Justiça que antes nelles serviram
proguntarão por este caso como se declara no auto que se fez a dita devasa este
anno.
172
Assim, manter um relacionamento com um membro da Câmara favorecia, se
é que podemos aferir, num maior contato com a legislação vigente e suscitando as
brechas possíveis para que esses sertanistas não sofressem alguns percalços.
Podemos transpor que Hespanha indicou para Portugal sobre a importância das
letras que, sobre elas, os desígnios da Coroa deveriam ser colocados em prática na
municipalidade, atento que o escrivão detinha em suas mãos os papéis, fossem eles
cômodos ou incômodos a determinadas famílias.
173
Vê-se também que, em 1713, quando já participavam de um mesmo grupo de
parentes, Garcia Rodrigues constituiu como seu procurador Antonio Rodrigues
Seixas, filho de Maria Maciel Barbosa. Este, em Curitiba, tratava de representá-lo no
inventário e herança por testamento de sua primeira esposa, Izabel de Lara.
174
Percebem-se, assim, alguns indícios que podem ter determinado a escolha de
Antonio nesse processo. Além de implicar uma relação de confiança entre dois
envolvidos, ou como sugere Elizabeth Kuznesof, um principio de lealdade pessoal
175
, verificou-se também pelo lado prático, ou processual, que exigia tal operação.
Ou seja, era preciso saber ler para fazer cumprir o que determinava tal documento. A
proximidade entre os membros das famílias, ainda que não demandasse nenhuma
consangüinidade direta entre eles, fundamentava-se num relacionamento de
colaboração contínua e de troca de favores.
Além do mais, vale enfatizar que essa mulher soube muito bem negociar a
posição e o capital simbólico que o marido, João Rodrigues Seixas, havia deixado a
ela e a seus filhos quando morreu. Na prática, sua herança material foi exígua:
poucos escravos, não tinha terras etc. Mas, no tempo em que exerceu seus cargos na
172
Apud: BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, Op. Cit. p.25.
173
HESPANHA, Op. Cit. , 2001 , p. 186.
174
(Apud: BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1924 : 49)
175
KUZNESOF, Op. Cit. , 1988/1989 , p. 45.
115
Câmara Municipal de Curitiba esse homem parece tê-los usado para
estrategicamente se inserir no espaço dos homens bons. Essa astúcia no jogo social
foi, assim, reatualizada pela viúva, que a desdobrou para garantir sua posição social
e, como se verá adiante, assegurar uma efetiva mobilidade social para os seus
descendentes.
116
4.4 OS FILHOS
4.4.1 A filha e sua descendência
A descendência de João Rodrigues Seixas tomou dois rumos distintos. Assim,
Antonio Rodrigues Seixas deu prosseguimento ao sobrenome que herdou do pai,
desdobrando-o em sua filiação. Já sua irmã Isabel Rodrigues, no entanto, gerou
descendência que adotava tanto a nominação recebida paternalmente quanto
maternalmente. Isabel Rodrigues casa-se com o reinol Lourenço de Andrade
(nascido na vila de Ornellas) filho de Marcos de Andrade e Catharina Luiz. Assim
como João Rodrigues Seixas, Lourenço veio ainda jovem aos domínios portugueses
no ultramar, vindo se estabelecer na vila de Curitiba na segunda metade do século
XVII. Participou da corpo político da vila, exercendo os cargo de vereador nos anos
de 1706,1707, 1708, 1712. Vale notar que ele também aparece na Câmara sem
informação sobre seu cargo nos anos de 1701,1704, 1710, 1714, mas que, pelo
período, intercala-se com o de seu cunhado Antonio Rodrigues Seixas. Nota-se,
portanto, um ciclo de vereação no qual uma relação de parentesco fazia-se presente.
O casal Lourenço de Andrade e Isabel Rodrigues teve três filhos. O
primogênito Antônio Rodrigues de Andrade casou-se com Maria do Valle em 25 de
outubro de 1734. Ela era filha de João Ribeiro do Valle e Izabel Soares Paes.
A segunda, e única filha Maria Rodrigues de Andrade, casou-se com Miguel
Rodrigues Ribas, nascido em São Miguel de Villa Franca, Arcebispado de Braga
176
,
mais um reinol que integrava a família. Miguel também foi membro da Câmara,
sendo juiz nos anos de 1729, 1741, 1743, 1747,1749, 1773 e aparece sem função
definida no ano de 1753. Tiveram seis filhos, sendo que os mais notáveis foram o
Capitão Miguel Ribeiro Ribas e o Dr. Lourenço Ribeiro de Andrade.
O Capitão Milguel foi juiz nos anos de 1755,1774, 1779, 1783, 1784,1787, e
vereador no ano de 1748.
176
LEÃO, Op. Cit. ,1994 , p. 1309-1310
117
O Dr. Lourenço Ribeiro de Andrade, provavelmente o primeiro desta região a
estudar em Portugal, mais especificamente na cidade de Coimbra, recebeu o título de
licenciado por volta de 1747
177
. Volta, ao que demonstra a documentação, em 1750,
quando exerce a função de juiz ordinário na Câmara de Curitiba.Em 1754 exerce
novamente esse cargo. Em outros períodos aparece circulando pela Câmara, nos
anos de 1756, 1780. Mas sobressai-se esta figura, principalmente, por se tornar o
Capitão-mor da vila em 1765, cargo máximo a que se poderia chegar, e nesta
condição permaneceu até seu falecimento em 1799.
Já o último filho do casal Lourenço de Andrade e Isabel Rodrigues foi
Agostinho de Andrade, que se casou com Gertrudes Pereira Telles. Ela, filha do
sargento-mor Francisco Diniz Pinheiro, reinol de Cascaes e de Clara Pereira Telles,
natural de Nazareth, São Paulo, também residiam em Curitiba.
4.4.2 O filho e sua descendência
O Capitão Antonio Rodrigues Seixas nasceu em Cananéia por volta de 1670 e
vem com a família para região de Curitiba. Como já dissemos, assim como seu pai,
Antonio sabe ler e escrever. Casa-se com Maria Soares Paes, filha de Manoel Soares
e Maria Paes. Manoel Soares, lisboeta que emigrou ao Brasil vindo estabelecer-se
em Curitiba no último quartel do século XVII, obteve em 1686, do Capitão-mor
governador Thomaz Fernandes de Oliveira, a sesmaria de Butiatuba, sendo vizinha a
de seu sogro na Campina D. Rodrigo e o rio Passaúna. Seu sogro era o capitão
Baltazar Carrasco dos Reis, um dos povoadores dos campos de Curitiba, que se
instalou aqui pouco antes de 1661, ano em que pede ao Capitão-mor governador do
Rio de Janeiro Salvador Correa de Sá e Benevides uma sesmaria, pois “...nam tem
177
Ibid. p. 1168-1169.
118
therras para laurar e agasalhar seu gado tanto vacum como cavalar nem choins
para edificar sua morada de casa...
178
Sertanista, Carrasco dos Reis em 1645 já havia feito entradas no sertão à
busca de índios. Antes de vir para os Campos de Curitiba, morou na vila de S. Anna
de Parnahyba, onde exerceu o cargo de juiz de órfãos. Teve três filhos homens e
cinco mulheres e faleceu entre março e abril de 1697 sendo seu inventário um dos
mais antigos documentos existentes no cartório de órfãos de Curitiba. Seu genro
Manoel Soares (que será sogro de Antonio Rodrigues Seixas) exerceu também
vários cargos públicos, sendo um dos primeiros juízes escolhidos para a eleição da
Câmara em 1693, vereador em 1700, 1703, e procurador em 1701, 1704. Vale notar
que ele também aparece na Câmara sem informação sobre seu cargo nos anos de
1694, 1696, 1697.
O Capitão Antonio Rodrigues Seixas exerceu os cargos de vereador nos anos
de 1713, foi a também almotacé no ano de 1704 e procurador do concelho nos anos
de 1716, 1717, 1726. Vale lembra que ao procurador cabia cuidar dos bens da
municipalidade, sendo auxiliado pelo tesoureiro, e a cada ano as contas deveriam ser
submetidas ao controle do provedor da capitania, o qual poderia rejeitá-las,
obrigando os vereadores a restituírem à Câmara o que considerasse dispêndio ilegal
179
. Foi também, em 1710, 1720, juiz ordinário, principal cargo da Câmara, ao qual
competia, além da aplicação da lei na instância do município, a fiscalização dos
demais funcionários municipais, como os almotacés, quadrilheiros, meirinhos,
alcaides-pequenos, tabeliães, escrivães e outros ilegais
180
. Ele também aparece na
Câmara sem informação sobre seu cargo nos anos de 1698, 1701, 1703, 1705.
De seu casamento com Maria Soares Paes nasceram, ao que se sabe, quatro
filhos: João Rodrigues Seixas, Manoel Rodrigues Seixas, Ignez Rodrigues Seixas e
Juliana Rodrigues. Caso interessante ocorre com Manoel e João, pois os dois irmão
se casam com duas irmãs, Izabel Martins Valença e Francisca Maciel de Sampaio,
178
Ibid. p. 159
179
SALGADO, Op. Cit. 1855 , 71
180
Ibid. p. 70-71.
119
respectivamente. Filhas de Manoel Martins Valença e Joana Maciel de Sampaio, ao
que tudo indica, moravam nos Campos Gerais. Contudo, o pai das jovens deteve
certa importância na vida local, visto que Valença foi comerciante em Curitiba e
exerceu o cargo de procurador da câmara. Foi para Goiás abandonando sua mulher e
cinco filhos, para tentar fazer fortuna, pois “o negócio ia cada vez mais ruinoso”.
Entretanto, ao que indica Leão, apesar de ter vivido penosamente em Goiás por mais
de vinte anos, a sorte não lhe sorriu. Joana requer em 1752, uma procuração para
chamá-lo de volta ou arrecadar seus bens caso tivesse morrido. Dizia que o marido
estava carregado de anos e de moléstias e desejava que Deus dispusesse da sua vida
na sua presença e por isso solicitava licença para continuar ausente do lar.
Observamos que, na lista nominativa de 1775, Manoel continua ausente de casa, e
suas filhas, nessa época, já se encontravam casadas.
Mas os infortúnios da vida do sogro não impediram que tanto Manoel quanto
João participassem do círculo camarário. João, alferes desde 1728, exercia o cargo
de vereador em 1728, 1735. Já seu irmão mais moço também partilhava cargos nas
milícias com os da Câmara. O Tenente Manoel foi eleito almotacé em 1737 e 1742,
vereador em 1739 e procurador do concelho em 1743.
Participantes da elite camarária, João morava no rocio da vila e Manoel no
bairro do Passaúna, nas proximidades onde moravam os antigos povoadores. Não
eram sesmeiros, mas possuíam terras e bens de valor para a época. Por exemplo
Manoel, em 1765, na primeira lista nominativa da vila de Curitiba, indica possuir 2
armas, 1 pique e 11 escravos. No decorrer de sua vida, percebemos que sobrevivia
de suas lavouras e sempre contava com a força do braço escravo, alternando-se em
posse entre 4 e 13 escravos.
120
4.5 MOBILIDADE DOS RODRIGUES SEIXAS
Neste acompanhamento da trajetória da família Rodrigues Seixas,
observamos alguns aspectos que não configuram de maneira alguma uma conclusão
final sobre matrimônio, mobilidade social e elite local. Mas podemos perceber que,
para esta família, a mobilidade social ascendente que adquiriram ao longo dos
séculos XVII e XVIII, esteve em muito relacionada com o posicionamento do
patriarca João Rodrigues Seixas na Câmara Municipal da vila de Curitiba. É nela
que verificamos um espaço que apresenta as brechas que uma sociedade em
formação, em tese hierárquica e ordenada, oferecia para que indivíduos desprovidos
de nome e condição empreendessem trajetória de mobilidade social ascendente.
Como vimos, João transita nesse espaço social em que emergia uma
sociedade institucionalizada. O ofício que ocupou então, permitiu que estivesse em
contato com a maioria dos atores sociais da recém-criada vila. Sendo o escrivão e o
tabelião um oficial menor da Câmara, tinha um posicionamento estratégico, visto
que ficava sob suas mãos o conhecimento das leis de Portugal, e também o
conhecimento sobre a situação dos indivíduos da vila.
A inserção de João Rodrigues Seixas no poder público parece ter facilitado
que ele estabelecesse alianças matrimoniais de seus filhos principalmente com os
notáveis homens de posse da vila. Se pelo seu ofício ele conhecia os indivíduos,
saberia quem eram aqueles com quem deveria manter relações de afinidade. De fato,
seus dois filhos se casaram com descendentes dos primeiros povoadores e sesmeiros
dessa região. Essa integração permitiu que seus dois filhos constituíssem casamentos
hipergâmicos, fazendo com que a primeira geração dos Rodrigues Seixas adquirisse
mobilidade social ascendente.
Já num outro momento, a segunda geração se vê participante da elite
camarária. Percebe-se que suas alianças matrimoniais eram feitas num
relacionamento de troca de favores configurando uma aliança política vantajosa para
ambas as famílias, tendo em vista que os netos de João Rodrigues Seixas faziam
121
parte de uma elite camarária que circulava entre os cargos municipais. Ao longo de
mais de cem anos, os “saberes” dos Rodrigues Seixas garantiram alianças cada vez
mais estáveis.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao conseguirmos pinçar da malha social as trajetórias de homens e mulheres
nos sertões de Curitiba, que conseguiram amealhar ao longo da vida um cabedal,
alguns pontos merecem: nos meandros de uma sociedade, à primeira vista,
hierárquica e ordenada, brechas de mobilidade social e de acúmulo de cabedal estão
sempre presentes. De acordo com Giovanni Levi, “o discurso sobre a estratificação
social não pode, portanto, ficar limitado às dimensões das propriedades e nos
conduz à compreensão de estratégias familiares complexas, sobre as quais
funcionavam mecanismos fatais, que filtravam o sucesso e o insuceso, a
sobrevivência e o desaparecimento”.
181
Como vimos, podemos à luz do rol de testamentos, inventários post-mortem e
processos de autos de contas, observar que as contradições presentes na sociedade
monetarizada apontam para uma economia imperfeita. Ou seja, os mecanismos de
acumulação, mesmo no âmbito econômico, estariam mediados pela política, gerando
assim diferentes oportunidades entre os indivíduos coloniais.
O que se observou nas sociabilidades desenvolvidas pelos indivíduos
analisados foi um jogo complexo de equilíbrio, na qual se interpenetravam
diferentes estratégias para alçar notoriedade no seio da sociedade. Contudo, deve-se
observar que não existiu uma formação social única nos trópicos. É possível
depreender o hibridismo existente nos princípios organizadores da sociedade
colonial, em que a ênfase para a nobilitação – ser um homem bom – originalmente
situada no nascimento, na honra e na etnia coexistia com outra esfera de valores
próprios de uma sociedade de classes, pautada no mérito pessoal, na riqueza e na
fortuna.
Chamam a atenção também os diferentes caminhos percorridos por aqueles
que acumularam e transmitiram um cabedal mais significativo. Os testadores da
181
LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira, p. 96.
123
primeira metade do século XVIII são, basicamente, pessoas nascidas fora dos limites
dos sertões curitibanos. Ao mesmo tempo, são indivíduos com inserções sociais
muito diferenciadas e que, é possível pensar, nem sempre conseguiram a posição de
homens bons em vida. Mas, à exceção dos forasteiros (os dois casos dos pobres que
andaram por toda a parte), eles legaram para seus descendentes a condição de
homens bons.
Outro aspecto a ser levantado é o de que era mais comum as pessoas com bens
fazerem testamento. Em outros termos, não era uma prática comum uma vez que
não alcançava todos os indivíduos. E mesmo dentre esses que amealharam bens, vê-
se que era uma sociedade de pequena monta, em que as relações deveriam se dar no
face a face. Apresentam ainda um viver rústico, característico da área paulista, onde
os indivíduos viviam com o mínimo necessário. Assim, confirma-se nesta localidade
a presença de muitos ‘homens bons’, com honras e privilégios, algo típico das
sociedades marcadas pela pobreza. Dessa forma, a estratégia da aliança matrimonial
poderia se realizar com maior facilidade pela carência de indivíduos tidos como
aptos.
As pessoas que conseguiram acumular bens, de forma geral, encontravam sua
unidade em alguns aspectos: primeiramente pode-se observar que eram reinóis ou
descendentes diretos de portugueses nascidos no reino. Em segundo, que a estratégia
mais recorrente para alçar condição, quando esses reinóis chegavam solteiros, foi
casar com moças de boas famílias locais o que significava adquirir honorabilidade
pelo casamento. E finalmente que, dentre aqueles que deixaram bens, o mais comum
era serem proprietários de terras e de homens que necessitavam serem transmitidas
às gerações futuras. Ou seja, detinham e transmitiam tanto seu cabedal simbólico
quanto patrimonial.
Logo, as pessoas que transmitiram bens foram pessoas alheias aos ofícios
mecânicos. O alfaiate Manoel, serve de exemplo, pois os bens inventariados eram
poucos e a coisas de maior valor que possuía, sua escrava, serviu para quitar dívidas.
124
Mesmo inventariado, ele não transmitiu nada. Seu inventário serviu como
salvaguarda de seus credores.
O sangue e o nascimento também não bastavam para alçar o indivíduo a
condição privilegiada na sociedade. Sebastião Cardoso Serpa, reinol da ilha do Pico,
não ascendeu socialmente, transitou por esferas inferiores da sociedade e não
conseguiu distinção nem no momento da sua morte. Seus testadores não aceitaram
assumir tal função. Diferentemente de João Rodrigues Seixas, este português,
mesmo detentor do saber das letras e do sangue (cabedal simbólico) não tomou
posição estratégica na sociedade que o tornasse uma peça importante dentro da
trama dos relacionamentos.
Muito embora essa sociedade seja marcada por tendências quanto ao acúmulo
e a transmissão patrimonial, tendo como fator principal a rede de relacionamentos e
as atitudes tomadas até a hora da morte, os dados apontam que as possibilidades de
transitar por entre esferas sociais, são muito díspares. Se, por um lado, o cabedal
simbólico tem peso significativo para o enriquecimento familiar, por outro, percebe-
se que a vida dos indivíduos era marcada por momentos-chave dentro da teia social.
O casamento seria o ato que visava tanto à manutenção da do status quo quanto a
busca de alianças que fortaleceriam as redes de parentais. Para além disso tudo,
pode-se vislumbrar como pano de fundo da sociedade constituída nos sertões de
Curitiba nos setecentos a permanente circulação dos indivíduos entre diferentes
esferas da coletividade.
125
LISTA DE FONTES
1. Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível
Documentos Impressos:
001 – Peças do Inventário do Capitão Povoador Baltazar Carrasco dos Reis – 1697 –
Edição do Arquivo Público do Paraná, 1986.
Documentos Manuscritos:
Caixa PJI-01 – Processos Judiciários Inventários nº 01
002 – 1711 – Auto de Inventário de Manoel Alves Pedroso. Testamento em anexo
de 1711
003 – 1720 – Auto de Inventário de José da Costa de Vasconcelos
004 – 1729 – Auto de Inventário de Maria Bicuda Camacha
005 – 1729 – Auto de Inventário de Luiz Rozado
006 – 1769 – Auto de Inventário de Pedro Ribeiro Andrade
007 – 1781 – Auto de Inventário de João Cordeiro Matoso
009 – 1782 – Auto de Inventário de Pedro Siqueira Cortes
Caixa PJI-02 – Processos Judiciários Inventários nº 02
014 – 1783 – Auto de Inventário do Sgto-Mór Simão Gonçalves de Andrade.
Testamento em anexo de 1771.
017 – 1783 – Auto de Inventário de Maria Thereza de Jesus
018 – 1783 – Auto de Inventário de Domingos Cardoso Leão
021 – 1785 – Auto de Inventário de Pedro Antonio Moreira
126
022 – 1785 – Auto de Inventário de Pe. José Cardoso
Caixa PJI-03 – Processos Judiciários Inventários nº 03
023 – 1785 – Auto de Inventário de Manoel Ignácio Fonseca
024 – 1786 – Auto de Inventário de Manoel Ribeiro Lopes. Em anexo “Lembrança
q’ faço da m.ª vida p.ª q não me Corra em debaLde.” Sem data.
025 – 1786 – Auto de Inventário de Izabel da Costa
026 – 1786 – Auto de Inventário de Maria José de Jesus
027 – 1785 – Auto de Inventário de José Rodrigues. Testamento em anexo de 1776.
Codicilo em anexo de 1784.
028 – 1786 – Auto de Inventário de Ignez de Chaves das Neves
029 – 1787 – Auto de Inventário de Sebastião Teixeira Azevedo
030 – 1787 – Auto de Inventário de Maria Antonia Ayres
033 – 1787 – Auto de Inventário de Maria Pires de Camargo
Caixa PJI-04 – Processos Judiciários Inventários nº 04
034 – 1787 – Auto de Inventário de Arcamgela Maria dos Santos
036 – 1787 – Auto de Inventário de Sebastião Fernandes Pinto
037 – 1788 – Auto de Inventário de Izabel Maria de Andrade
038 – 1788 – Auto de Inventário de Manoel de Oliveira Assumpção
040 – 1788 – Auto de Inventário de Anna Pereira da Silva
042 – 1789 – Auto de Inventário de Alexandre da Costa
043 – 1792 – Auto de Inventário de Diogo Gonçalves Ribeiro
045 – 1795 – Auto de Inventário de Antonio Rodrigues Seixas
Processos de Inventários – Avulsos
127
138 – 1797 – Auto de Inventário do Cap. Antonio Gomes de Campos. Testamento
em anexo de 1797.
[SEM NUMERAÇÃO] – 1798 – Auto de Inventário de Francisco Dias de Carvalho.
Testamento em anexo de 1793.
Processos de Auto de Contas – Avulsos
JP4742 CX 161 0017 – Processo de Auto de Contas de Francisco Lopes dos Santos
– 1764. Testamento em anexo de 1764.
JP5063 CX 169-B 0032 – Processo de Auto de Contas de Antonio Ferreira de Faria
– 1773. Testamento em anexo de 1767.
JP5021 CX 168 0017 – Processo de Auto de Contas de Joana Rodrigues – 1773.
Testamento em anexo de 1768.
JP5033 CX 169 0002 – Processo de Auto de Contas de José Dias Cortes – 1773.
Testamento em anexo de 1767.
JP1223 CX 061 – Processo de Auto de Contas de Anna de Mello Coutinha – 1779.
Testamento em anexo de 1774.
[SEM NUMERAÇÃO] – Processo de Auto de Contas de Francisco Borges de
Andrade – 1804. Testamento em anexo de 1802.
[SEM NUMERAÇÃO] – Processo de Auto de Contas de Maria do Nascimento de
Jesus – 1804. Testamento em anexo de 1801.
128
Libelo:
012 CX 002 – 1782 – “Libelo cível entre Antonio José Teixeira, como tutor dos
órfãos de Francisco de Linhares, e os Protetores da Irmandade.” Testamento de
Francisco de Linhares, de 1767, em anexo.
2. Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo e Silva, da Mitra Arquidiocesana de
São Paulo.
Documentos Manuscritos:
Caixas 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas –
1727-1777
1727 – Auto de Contas de Izabel Fernandes da Rocha.Testamento em anexo de
1725.
1736 – Auto de Contas de Antonio Rodrigues Seixas.Testamento em anexo de 1733.
1740 – Auto de Contas de Paula Luiza Tigre.Testamento em anexo de 1737.
1754-1756 – Auto de Contas de Josefa Rodrigues Bicuda.Testamento em anexo de
1754.
1750-1756 – Auto de Contas de Maria Rodrigues.Testamento em anexo de 1750.
1752 – Auto de Contas de Jerônimo da Veiga Cunha.Testamento em anexo de 1745.
1753 – Auto de Contas de Felipe de Souza de Amaral.Testamento em anexo de
1751.
1762 – Auto de Contas de Izabel Soares.Testamento em anexo de 176(1ou2).
1768 – Auto de Contas de Catarina da Costa Rosa.Testamento em anexo de 1766.
1763 – Auto de Contas de Miguel Gonçalves Lima.Testamento em anexo de 1763.
1773 – Auto de Contas de Bento de Magalhães Peixoto.Testamento em anexo de
1765.
1773 – Auto de Contas de Francisco dos Reis.Testamento em anexo de 1767.
129
1773 – Auto de Contas de Luiz de Souza de Menezes.Testamento em anexo de
1763.
1773 – Auto de Contas de Maria de Lemos Conde.Testamento em anexo de 1763.
1773 – Auto de Contas de Tomas Leme do Prado.Testamento em anexo de 1769.
1774 – Auto de Contas de Antonia Rodrigues de Assunção.Testamento em anexo de
1771.
1777 – Auto de Contas de Brás Domingues Velozo.Testamento em anexo de 1774.
Caixas 05-01-06 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas –
1789-1805.
1789 – Auto de Contas de Simão Gonçalves de Andrade.Testamento em anexo de
1771.
1792 – Auto de Contas de Domingas de Siqueira Cortes.Testamento em anexo de
1792.
1795 – Auto de Contas de Sebastião Cardoso Serpa.Testamento em anexo de 1789.
1795 – Auto de Contas de Antonio Pires Leme.Testamento em anexo de 1784.
1797 – Auto de Contas de Miguel Ribeiro Ribas, capitão.Testamento em anexo de
1767.
1797 – Auto de Contas de Patrício Ribeiro do Vale.Testamento em anexo de 1795.
1799 – Auto de Contas de Ângelo Gonçalves Padilha.Testamento em anexo de
1799.
1800 – Auto de Contas de Izabel Fernandes Bueno.Testamento em anexo de 1799.
1802 – Auto de Contas de Manoel Simões, alferes.Testamento em anexo de 1801.
1803 – Auto de Contas de Joachim Vicente, alferes.Testamento em anexo de 1801.
1805 –Auto de Contas de Margarida Fernandes dos Reis.Testamento em anexo de
1794.
130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Tempo , 1987. pp.53-66.
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Janeiro : Nova Fronteira, 1990.
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ARIÈS, P. O homem diante da morte. V. I. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981, p. 202.
ARQUIVO: BOLETIM HISTÓRICO E INFORMATIVO. São Paulo. V. 3 , n. 2 ,
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BACELAR, Carlos de Almeida Prado.Viver e sobreviver em uma Vila Colonial:
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Imprensa da UFPr. , 1968.
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1988.
BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A população de Curitiba no século XVIII
– 1751-1800 – segundo os registros paroquiais. Curitiba , Departamento de
História UFPR : Dissertação de mestrado , 1974.
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