Download PDF
ads:
UFRJ
A LUTA DESARMADA: A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA E O
DEBATE DA QUESTÃO DEMOCRÁTICA NOS ANOS 1970
Mario Almada Grabois
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Ciência Política.
Orientador: Aluizio Alves Filho
Rio de Janeiro
Dezembro de 2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
A LUTA DESARMADA: A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA E O
DEBATE DA QUESTÃO DEMOCRÁTICA NOS ANOS 1970
Mario Almada Grabois
Orientador: Aluizio Alves Filho
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção de título de
Mestre em Ciência Política.
Aprovada por:
____________________________________
Presidente, Prof. Aluizio Alves Filho
__________________________________
Prof. Lincoln de Abreu Penna
__________________________________
Profª. Ingrid Sarti
Rio de Janeiro,
Dezembro de 2007
ads:
iii
Grabois, Almada Mario.
A luta desarmada: a esquerda revolucionária
e o debate da questão democrática nos anos
1970/ Mario Almada Grabois – Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2007.
xi, 113: il,; 31cm.
Orientador: Aluizio Alves Filho
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política,
2007.
Referências bibliográficas: f. 110-113
1. Liberdades democráticas. 2. Esquerda
revolucionária. 3. Ditadura. 4. Anos 1970. 5.
Debate. I. Grabois, Almada MarioII. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política. III. A luta desarmada: a esquerda
revolucionária e o debate da questão democrática
nos anos 1970.
iv
RESUMO
A LUTA DESARMADA: A ESQUERDA REVOLUCIONÁRIA E O
DEBATE DA QUESTÃO DEMOCRÁTICA NOS ANOS 1970
Mario Almada Grabois
Orientador: Aluizio Alves Filho
Resumo da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção de título de Mestre em Ciência Política.
Após o fracasso da luta armada no início dos anos 1970, a chamada
esquerda revolucionária inicia um processo de autocrítica da tática e das posições
políticas até então adotadas e assume a bandeira por liberdades democráticas na
perspectiva de resistência e de luta contra a ditadura militar. O objetivo desse
trabalho é descrever e analisar o debate travado entre os partidos e organizações
comunistas sobre democracia, sua relação com o socialismo e as posições táticas
defendidas por essas organizações para o enfrentamento ao regime militar.
Palavras-chave: liberdades democráticas; esquerda revolucionária;
ditadura; anos 1970; debate.
Rio de Janeiro,
Dezembro de 2007
v
ABSTRACT
The disarmed struggle: the ´revolutionary left` and the
democratic debate in the seventies
Mario Almada Grabois
Orientador: Aluizio Alves Filho
Abstract da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção de título de Mestre em Ciência Política
.
After the failure of the armed struggle in the early 1970, the so-called
revolutionary left initiates a process of self-criticism of the tactics and political
positions hitherto adopted and took the flag for democratic freedoms in the context
of resistance and struggle against military dictatorship. The goal of this work is to
describe and analyze the debate between the communist parties and organizations
on democracy, its relationship with socialism tactics and positions taken by these
organizations to confront the military regime.
Key words: democratic freedoms, revolutionary left, dictatorship, the
seventies, debate
Rio de Janeiro,
Dezembro de 2007
vi
Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador Aluízio Alves Filho e a todos os
professores, professoras, amigos e amigas que, de alguma forma,
contribuíram para a realização desse trabalho.
vii
LISTA DE SIGLAS
ALN – Aliança Libertadora Nacional
APML – Ação Popular Marxista-leninista
ER- Esquerda revolucionária
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MEP-Movimento pela Emancipação do Proletariado
MR-8- Movimento Revolucionário 8 de Outubro
OSI- Organização Socialista Internacionalista
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PcdoB – Partido Comunista do Brasil
PEG – Política Educacional do Governo
PO – Política Operária
Polop – Política Operária
TL- Tendência leninista
viii
SUMÁRIO
Introdução 1
I Parte
Capítulo 1 4
Um momento do pensamento Político brasileiro
Sobre a esquerda
Origens e constituição da esquerda revolucionária
A luta teórica
Fundamentos para uma nova tática
Capítulo 2. Marxismo-leninismo e democracia 32
II Parte
Capítulo 3 42
O debate sobre democracia, socialismo e a resistência à ditadura
Do militarismo à luta por liberdades democráticas
Origens de um debate
A análise de conjunta da ER sobre o governo Geisel
A ER a o enfrentamento ao projeto de institucionalização
A ER a luta por liberdades democráticas
Democratistas x doutrinaristas
Capítulo 4 81
Mudanças conjunturais: uma nova etapa do debate sobre a
democracia (1978-1981)
O fracasso da institucionalização
Um novo e velho debate
O aprofundamento teórico
Considerações finais 108
Referências bibliográficas 110
Introdução
A presente dissertação estuda um momento da trajetória de organizações da
esquerda brasileira de doutrina e concepções político-ideológicas marxista-
leninistas, e cobre o período de 1974 até 1984, mas centrado, principalmente,
entre os anos de 1974 a 1979/1980. O objetivo é a análise, através da pesquisa em
documentos e textos da época que registram as discussões e os debates travados
entre essas organizações, das visões e posições políticas que elas possuíam acerca
da definição das bandeiras, do significado e da importância da luta e da conquista
das liberdades democráticas para o processo da revolução brasileira e de suas
respectivas concepções de democracia.
O processo de resistência à ditadura militar alcança consideráveis parcelas
da sociedade brasileira quando as oposições -e devemos destacar aí o papel dos
comunistas, uma das principais forças a impulsionar o processo- assumem que o
centro da resistência estava na denúncia dos aspectos mais acintosamente
repressivos e antidemocráticos do regime, isto é, seus aspectos mais indefensáveis,
e que o centro tático oposicionista era a luta por liberdades democráticas.
Diversos estudos
1
analisam a importância e o papel das idéias e das
posições do PCB na transformação do MDB de partido criado pela ditadura em
espaço-chave da oposição, na apresentação de um programa democrático de
oposição, na defesa da convocação da Assembléia Constituinte etc. O instrumental
teórico que fundamentava a visão de democracia que o PCB carrega para os anos
1960 e 1970 tinha origem na teoria da revolução em duas etapas, a Declaração de
Março de 1958 tornara-se um dos mais importantes documentos que expressava
essa concepção, ao criar as bases para as definições táticas veiculadas em
inúmeras resoluções do partido.
1
Ver MORAES, J. A evolução da consciência política dos marxistas brasileiros; SANTOS, R. e
SEGATTO, J. A valorização da política na trajetória pecebista: dos anos 1950 a 1991 e
MAZZEO, A. Sinfonia inacabada. A política dos comunistas no Brasil.
2
Do mesmo modo, já constitui uma abrangente bibliografia os estudos sobre
a dinâmica do processo de abertura iniciado no governo Geisel e do processo de
transição. No entanto, ainda são raros, os estudos sobre a participação e a atuação
da esquerda revolucionária nos anos 1970, após a luta armada. Essa dissertação
objetiva uma contribuição a esse campo de estudos.
A esquerda que se reivindicava revolucionária, em grande parte constituída
em crítica ao pensamento pecebista, vai tentar definir a revolução brasileira já
diretamente em sua etapa socialista. Para isso, será necessário tentar superar a
concepção que identificava democracia com democracia burguesa, liberdades
democráticas com liberdades públicas burguesas. A leitura, o estudo e o
aprofundamento teórico do leninismo empreendidos pela ER vão fornecer os
aspectos de fundamentação e de justificativa para as posições estratégicas e táticas
assumidas por cada uma das organizações e da relação que procuram estabelecer
entre revolução, democracia e socialismo.
Divido a dissertação em duas partes. Na I parte, proponho que o debate
deve ser visto na tradição do pensamento político brasileiro e dele fazendo parte.
Articulo essa argumentação com a discussão sobre a difícil questão que é definir
esquerda, de como caracterizar esquerda revolucionária e as transformações
históricas e políticas que vão propiciar a adoção de uma nova tática, centrada na
luta democrática, contraposta a uma ação tática centrada na luta armada.
Caracterizo o debate como uma luta teórica, de acordo com a tradição marxista-
leninista.
Em seguida, ainda que de modo resumido, discuto a relação do marxismo-
leninismo com o conceito de democracia e as muitas mudanças nessa relação ao
longo da história.
Na II parte, apresento o debate propriamente dito travado entre as
organizações de esquerda revolucionárias sobre a questão democrática. A divisão
também é em dois capítulos com subtítulos do mesmo modo que na I parte. Cada
capítulo corresponde a uma dos momentos do debate. O primeiro transcorre no
3
quadro de tentativa de institucionalização da ditadura; o segundo já no ambiente
de derrota desse projeto. A cada momento corresponde um conjunto distinto de
questões.
No primeiro capítulo da II parte, julguei importante apresentar a análise de
conjuntura do governo Geisel feita por organizações da ER. Essa análise possibilita
recuperar o contexto no qual o debate foi travado em grande parte; nos revela a
interpretação que as organizações realizavam daquele período, ao mesmo tempo
em que possibilita avaliar a correção das táticas propostas –e de seus resultados
concretos- para a resistência e a luta contra a ditadura.
Discuto ainda que, apesar de ter alcançado um significativo avanço teórico,
a esquerda revolucionária acabou por não conseguir construir um instrumental
teórico-analítico que possibilitasse superar as concepções tradicionais do
pensamento marxista brasileiro e, portanto, não reuniu as condições necessárias
para apresentar um projeto programático-estratégico que galvanizasse os amplos
setores democráticos e populares que lutavam contra a ditadura para um novo
bloco histórico pós-ditadura sob a hegemonia da classe operária.
I Parte
Capítulo 1
Um momento do pensamento político brasileiro
A questão proposta por essa dissertação situa-se uma fase que pode ser
considerada como de intermédio entre dois períodos do regime militar: o período da
repressão feroz e aberta cujo paradigma é o governo Médici (1969-1973),
repressão que é atenuada em alguns aspectos durante o governo Geisel (1974-
1978), e o período da efetiva fase da transição democrática que, de certo modo,
está associado aos acontecimentos que se seguem ao fim do AI-5, destacando-se a
promulgação da Lei da Anistia; a criação dos novos partidos; as eleições diretas
para os governos estaduais em 1982, a campanha das diretas já e, finalmente,
culminando com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, sua morte e a
posse do presidente José Sarney. Considera-se encerrada a transição democrática
com o processo de eleições diretas para presidente da República em 1989.
Essa fase que chamo de intermédio assinala, pelo lado da esquerda
revolucionária, o fim das ilusões em uma ação tática centrada na luta armada e no
militarismo
1
e a conseqüente decisão que ira priorizar novas formas de ação política
e de massas.
Os dois períodos entre os quais encontra-se esse intermédio, o período da
repressão aberta, por parte da ditadura, e da luta armada, assumida por boa parte
da esquerda brasileira e o período da chamada transição democrática, já foram, e
1
A palavra militarismo foi adotada pelas próprias organizações significando o ato de se
privilegiar a prática da luta armada em detrimento das chamadas ações de massas.
5
tem sido, objeto de constantes estudos por parte da ciência política, da história e
da sociologia brasileiras
2
.
O que chamo de intermédio corresponde a uma nova conjuntura política que
se abre no país com o fim do governo Médici e o início do governo Geisel e que se
caracteriza, por cima, pelo processo de tentativa de institucionalização da ditadura
em torno da chamada distensão ou abertura lenta, gradual e segura e, por baixo,
pela retomada, em um novo patamar, da luta oposicionista em diversos campos e
setores do movimento popular e democrático.
Essa conjuntura nacional apresenta inúmeros desafios e uma nova
problemática para as forças oposicionistas, em uma fase bastante específica para a
esquerda, em particular para os grupos que se auto-intitulavam de Esquerda
Revolucionária-ER.
É uma fase que vai se caracterizar por intensas atividades políticas nas quais
determinadas organizações de esquerda realizam um intenso e conflituoso processo
de autocrítica das posições que sustentavam no período da luta armada e passam a
adotar novas táticas que visam, fundamentalmente, acumular forças, reorganizar
partidos e militantes para uma ação que ocorre, em parte, ainda nos marcos da
clandestinidade, mas, também, nos espaços que vão sendo construídos no plano de
uma legalidade possível.
Os grupos de comunistas e círculos de militantes isolados vão procurar
superar a dispersão e o desânimo que se abateu sobre os sobreviventes -da derrota
e das prisões- da luta armada e das práticas militaristas no enfrentamento à
ditadura, em especial entre os anos de 1968 e 1972, exceção feita ao Partido
Comunista Brasileiro-PCB e outros grupos que, embora fossem igualmente
2
Os estudos sobre o período da luta armada já contam com uma razoável bibliografia. Entre
eles, podemos citar GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas; RIDENTI, Marcelo. O Fantasma
da Revolução Brasileira; REIS, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira. Imagens da Revolução.
Todos as obras citadas fazem parte da bibliografia da dissertação. Sobre a transição,
ROUQUIÉ, Alain; LAMOUNIER, Bolívar e SCHVARZER, Jorge. Como renascem as democracias.
6
perseguidos e atacados pela ditadura, adotavam outras táticas que rechaçavam a
luta armada naquele período.
Esse período de reorganização não alcançará apenas aqueles que haviam
participado da luta armada e encontravam-se dispersos, derrotados ou recuados,
mas, acima de tudo, atrairá milhares de novos militantes para as suas fileiras
proporcionando o surgimento de uma geração de ativistas e militantes que terá
participação chave e destacada nas lutas políticas e sociais do período e cujas
repercussões podem ser verificadas até os dias de hoje.
A experiência militarista deixou páginas de heroísmo e de demonstrações de
real compromisso político com o país e seu povo por parte de toda uma geração,
mas mostrou os erros e as inconsistências táticas, por um lado, e, por outro, expôs
dificuldades teóricas e deficiências do instrumental analítico das organizações para
conhecer, interpretar e analisar a realidade brasileira. Esses limites se
manifestaram tanto do ponto de vista de uma abordagem histórico-estrutural do
Brasil, como da capacidade de analisar as múltiplas determinações que conduziram
ao golpe militar.
É importante destacar, no entanto, que para sua devida compreensão, esse
período que chamo de intermédio deve ser percebido como resultante do momento
anterior, o da luta armada que, por sua vez, só pode ser compreendido a partir dos
acontecimentos ligados ao golpe militar de 1964. Ele deve ser analisado como parte
significativa da história dos partidos e organizações comunistas em nosso país e do
modo como evoluíram e têm evoluído no Brasil, através dos diversos períodos da
nossa história, as idéias e concepções marxistas.
Entendo que entre os anos de 1974 a 1979, quando é promulgada a Lei da
Anistia, até 1980, quando tem início a reorganização partidária, com o fim da
proibição de criação de novos partidos, pode ser caracterizado um período histórico
com identidade política diferenciada em relação a outros períodos da história do
marxismo no Brasil. No ponto de vista que apresento nesse trabalho, esse período
possui tanta importância e relevância quando comparado a outros momentos da
7
história dos comunistas brasileiros
3
, como, por exemplo, o curto período da
legalidade comunista entre 1945 e 1946; os anos que sucedem à Declaração de
Março de 1958 do PCB, que altera radicalmente a visão tática adotada até então
pelo partido e abre uma etapa de avanço da influência dos comunistas na sociedade
brasileira; ou o período da luta armada iniciada no final dos anos 1969 até o início
dos anos 1970, que assinala o declínio definitivo da influência do PCB sobre os
comunistas.
Não é meu objetivo aqui investigar o porquê dessa lacuna ou da importância
secundária que é atribuída a essa fase. Sem dúvida, o pensamento político marxista
no Brasil naqueles anos foi capaz de produzir um rico debate sobre a questão
democrática ao mesmo em que apontou com clareza e determinação a consigna
pelas liberdades democráticas como eixo fundamental em torno do qual se
organizou e avançou a resistência e a luta contra a ditadura militar. E mesmo
afirmações como a de Emir Sader, de que a derrota da resistência armada à
ditadura militar, na segunda metade dos anos 1960, abriu espaço para a
hegemonia liberal na oposição democrática
4
, devem ser vistas com alguma reserva,
pois a hegemonia liberal só se concretiza efetivamente a partir do início dos anos
1980 em torno de uma série de variáveis internas e externas que vão, aos poucos,
conformar uma nova conjuntura no país. Além disso, considerar a existência de um
possível vínculo direto entre a derrota da luta armada e a hegemonia liberal na
oposição democrática é ignorar, exatamente, a dimensão da discussão democrática
entre os comunistas e a esquerda, sua forte repercussão e a influência política
exercida por esse debate na oposição democrática como um todo ao longo dos anos
1970.
3
Mesmo em um importante projeto como História do marxismo no Brasil, o período de 1974
a 1980 não é enfocado, nem o debate entre as organizações e partidos comunistas sobre a
tática das liberdades democráticas é citado como um importante momento da história do
marxismo. MORAES, J.Q. e REIS FILHO, D.A. (orgs.). História do marxismo no Brasil, 2003.
4
No prefácio escrito por Emir Sader à edição brasileira ao livro de Perry Anderson,
Considerações sobre o marxismo ocidental, 2004, ao traçar uma breve história do
pensamento marxista no Brasil.
8
Mas, pesquisar a maneira pela qual um debate teórico-político ocorre entre
organizações comunistas e da esquerda revolucionária, investigar como ele
expressa as questões e os problemas colocados por uma conjuntura política
implica, também, levar o olhar para o modo como os inúmeros atores políticos
envolvidos procuravam articular teoria e prática, um dos mais caros princípios da
concepção política de militância marxista e do método do materialismo dialético.
Avalio que esse período, ainda insuficientemente pesquisado e analisado
pela historiografia e pela ciência política, contém imensa riqueza teórico-política
que constitui o patrimônio e o resultado dos debates e das discussões travadas
sobre a problemática da democracia e sua relação com o socialismo. Mas, tal
período não deve ser visto apenas na dimensão de um pensamento político que se
apresenta externo às lutas políticas concretas, produto apenas do debate teórico
entre facções da esquerda ou restrito a pequenos grupos de intelectuais; ao
contrário, mais do que o considerarmos uma luta de pensamento, é preciso
estabelecer o entendimento de que ele se dá, efetivamente, nos espaços de uma
tensão entre teoria e prática, e que reivindica uma ligação com a clássica tradição
do marxismo-leninismo da discussão política e ideológico entre militantes, correntes
e facções.
Nesse sentido, ao pretender construir como objeto de pesquisa àquele
momento histórico, assumo a advertência que Vamireh Chacon já assumira, na
introdução à primeira edição do seu livro História das Idéias Socialistas no Brasil:
Não nos esqueçamos das advertências de Marx contra a
História das Idéias, quando realizada como ‘História
Sagrada’, ao ‘transformar todas as lutas externas e sensíveis,
em lutas de pensamento’, opostas assim à ‘História profana’,
‘História dos homens’, em seus choques reais de interesses e
mesmo na colaboração visando concretos objetivos comuns
(Vide carta de Marx a Annenkov, em 28 de dezembro de
1846 e A Sagrada Família).
5
Portanto, se apresento esse debate em linha com a história do pensamento
político brasileiro em geral e, em particular, com a história do marxismo no Brasil,
não julgo adequado uma classificação que o situasse simplesmente em uma
5
CHACON, V. História das idéias socialistas no Brasil, 1981: 13
9
possível história das idéias de esquerda no Brasil. Entendo que a abordagem deve
observar as conexões recíprocas entre teoria e prática, e que ao debater a questão
democrática as organizações o faziam em resposta às necessidades impostas pela
realidade, buscavam a compreensão da realidade para poder definir como intervir e
atuar.
A conjuntura política brasileira a partir de 1974 impõe, portanto, para o
movimento oposicionista a necessidade de que ele encontre o caminho para o
enfrentamento à ditadura; coloca na ordem do dia a definição da tática e do
programa corretos do ponto de vista político, capaz de aglutinarem o maior número
possível de setores e grupos sociais em contradição com o regime militar.
A derrota da experiência armada e o duro processo de autocrítica põem em
perspectiva novamente para a esquerda o horizonte das lutas de massa, do
empenho na reorganização das entidades de representação dos trabalhadores,
profissionais liberais, estudantes etc.. A questão democrática torna-se prioritária,
isto é, lutar por direitos e garantias sufocados e reprimidos pelos militares volta a
ocupar o lugar central da prática política e social de militantes e ativistas políticos e
sociais. Organizar a resistência em torno da bandeira das liberdades democráticas
transforma-se no debate central daquele momento, e o desdobramento desse
processo irá desempenhar papel decisivo nos anos que se seguem.
Assim, podemos dizer que as condições conjunturais aliadas a uma nova
concepção e postura política das organizações de esquerda vão criar o ambiente
para existência das discussões que, por sua vez irão, necessariamente, refletir as
interpretações convergentes e divergentes dos diversos atores envolvidos a
respeito do entendimento que formulam dessa conjuntura, da tática e do programa
democrático que cada um avalia deve ser adotado.
É importante registrar que o fio que liga esses dois períodos, o da luta
armada e de sua derrota diante da ditadura e o da luta democrática a partir de
1974, nos ajuda entender a natureza dos debates tão intensamente travados por
aquela parte da esquerda.
10
No entanto, esse vínculo que não pode ser desfeito, nem escamoteado, sob
pena de se obscurecer o entendimento desse momento histórico. Também não
pode ser encarado como uma linha evolutiva da posterior restauração de uma
ordem liberal-democrática em nosso país, um desdobramento da luta por
liberdades democráticas, iniciada nos anos 1970 e cujo resultado final desaguaria
na defesa da formação do estado democrático conforme existente hoje no Brasil, tal
como muitas vezes a situação é descrita contemporaneamente por alguns autores.
Tais interpretações devem ser vistas com ressalvas para que não aceitemos, sem a
devida postura crítica, o discurso daqueles que, para legitimarem sua atuação
política atual, buscam adaptar o passado às suas conveniências e interesses.
6
Ao contrário, a articulação entre esses dois períodos é necessariamente
dialética, tornando-se impossível a compreensão do segundo sem a verificação de
sua intrínseca ligação com o primeiro. A derrota da luta armada, isto é, a derrota
de um conjunto de organizações políticas de esquerda com pensamentos e visões
muitas vezes antagônicas, inclusive sobre a própria maneira de conduzir as ações
militares, que divergiam em relação às analises estruturais e conjunturais do país
etc., mas que estavam unidas pela adesão à luta armada, vai se refletir no maneira
como as organizações sobreviventes, os grupos de militantes militaristas e os novos
militantes que chegam a partir dos anos 70, vão encarar o novo momento.
A conjuntura a partir de 1974 os obriga a novos comportamentos políticos,
mas a forma pela qual se movimentam nessa conjuntura não é linear, ao contrário,
ora é de avanço, ora de recuo, em um processo, cuja natureza é própria dos
processos políticos em geral, é marcado por erros e acertos, marcado por
permanente tensão e crítica, onde os participantes alternam suas posições, onde a
maioria de hoje pode se transformar na minoria de amanhã. Vive-se o processo de
6
Ridenti, assim como outros autores, entre eles Aarão Reis e Gorender, também verificam a
existência de interpretações eivadas de anacronismo e da tentativa de forçar uma
interpretação que apresente a forma de democracia atualmente existente no Brasil, como
uma idéia já presente nas lutas daquela época. Ridenti afirma que é um anacronismo
analisar aquele passado com base numa idéia de democracia estabelecida posteriormente e
consolidada no presente ( cujos limites os futuros historiadores também apontarão). Ridenti,
M. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura, 2004: 62.
11
crítica e autocrítica na tentativa de definir teoricamente a melhor tática e o melhor
programa, mas, acima de tudo, vive-se o esforço de levar e aplicar na prática tática
e programa, de verificar sua correção no confronto com a realidade.
Desse modo, não podemos considerar as discussões e as práticas políticas
conseqüentes que ocorrem naquele determinado momento possuindo uma relação
natural de desdobramento na direção da concepção hegemônica de democracia dos
dias de hoje.
A pesquisa e a verificação do que de fato ocorreu e o conhecimento das
estratégias, táticas e programas teorizados apontavam para caminhos e objetivos
que, em grande parte, contrariam e contestam as formas pelas quais as instituições
democráticas acabaram por serem estabelecidas em nosso país. Vale dizer,
inclusive, que essa situação é aprofundada mais significativamente a partir das
reformas que alteraram o texto constitucional de 1988 que, em parte, refletia
algumas das bandeiras defendidas nos anos 1970.
Sobre a esquerda
Antes de prosseguir, julgo importante tentar definir, ainda que em linhas gerais, a
esquerda que analiso nesse trabalho, qual sua origem e seus principais traços
distintivos, o que procurarei fazer nos subtítulos Sobre a esquerda e Origens e
constituição da Esquerda Revolucionária: por fora e por dentro do PCB.
A esquerda analisada neste trabalho é a esquerda comunista, que reivindica
uma orientação e uma tradição marxista-leninista, mas que se autodenomina de
esquerda revolucionária. Ao longo do texto, uso indistintamente, muitas vezes
como sinônimos, as palavras e expressões, esquerda, esquerda revolucionária,
esquerda proletária, revolucionários, comunistas, marxista-leninistas. Na maioria
das vezes, o contexto será suficiente para esclarecer a especificidade a que me
refiro, quando elas se referirem a situações particulares. Mas, os termos esquerda
revolucionária, esquerda proletária e revolucionários estarão mais associados à
12
esquerda revolucionária em si e comunistas em geral, incluindo aí, além da ER,
militantes do PCB e do PcdoB.
Faço esta delimitação inicial com o intuito de estabelecer o espaço no qual
realizo a pesquisa e especificar os objetivos do trabalho, ou seja, a esquerda que se
filia à tradição histórica da revolução socialista, identificada com o marxismo, e,
também, com as concepções leninistas, mas que rompe com os chamados partidos
comunistas tradicionais, os PCs, considerados reformistas e incapazes de dirigir a
revolução.
No entanto, a dissertação, embora centrada na esquerda revolucionária, não
se ocupa exclusivamente dela. No campo comunista dos anos 1970, o PCB joga
papel decisivo no debate da questão democrática, não só por suas as suas
históricas posições de compromisso democrático, especialmente após a Declaração
de Março de 1958, e, especialmente, a partir de 1978, com a publicação de uma
série de manifestos, declarações, textos e artigos sobre o tema, tendo por base a
influência que chegava ao Brasil das discussões que eram travadas na Europa em
torno do chamado eurocomunismo.
Do mesmo modo, o PcdoB, a outra legenda que reivindicava o legado
comunista desde 1922, assim como e as inúmeras organizações trotskistas
desempenharam papel importante no debate. Seria um equívoco ignorar esses
partidos e organizações, mesmo porque a esquerda revolucionária, em grande
medida, dialoga com o PCB, com o PcdoB e os grupos trotskistas.
Também julgo fundamental definir do que e de quem estou falando quando
uso a palavra esquerda, ao mesmo tempo em que situo os elementos que irão
permitir construir os contornos históricos e políticos do debate que investigo.
Nesse sentido, a esquerda que enfoco são as organizações e partidos de
orientação marxista-leninista, e que a partir dos anos 60 podem ser divididas em
dois grupos: as duas legendas que disputam o legado histórico e político que se
inicia com a fundação do partido comunista em 1922, isto é, o PCB e o PcdoB, e as
13
organizações da esquerda revolucionária, constituídas em sua maioria a partir de
1964, conforme já citado anteriormente.
Reconheço, no entanto, como bastante problemática nos dias de hoje, as
definições a respeito do que é esquerda, o que é ser de esquerda e sob quais
critérios podemos definir e caracterizar um partido, uma organização ou mesmo um
indivíduo como sendo de esquerda.
A expressão nova esquerda, por exemplo, é, também, bastante utilizada
por muitos autores para definir a esquerda que surge nos anos 1960 no mundo
inteiro e que no Brasil se fortalece na crítica e na oposição ao PCB, principalmente a
partir do golpe de 1964, e que alcança forte expansão exatamente a partir das
lutas democráticas dos anos 70 e 80. Na introdução de Imagens da Revolução,
Daniel Aarão Reis busca definir essa nova esquerda:
Com a expressão “Nova Esquerda” pretendemos abranger as
organizações e partidos políticos clandestinos que surgiam no
país em oposição e como alternativa ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e que se propunham a dirigir as lutas sociais
e políticas do povo brasileiro, encaminhando-as no sentido da
liquidação da exploração social, da dominação do capital
internacional e da construção de uma sociedade socialista. A
expressão “nova” quer significar, neste contexto, “diferente”,
e não devemos sugerir a impressão de que temos a intenção
de caracterizar as forças políticas até então existentes como
“velhas”, na acepção pejorativa do termo, ou seja,
ultrapassadas.
7
No entanto, evito essa expressão por não considerá-la adequada, nem de
significado preciso. Por outro lado, procuro usar o termo esquerda e palavras afins
do modo como eram usadas pelas próprias organizações que atuavam na época
estudada e da maneira como eram tratadas nos documentos e textos pesquisados.
Além do que, já na época, existia uma polêmica sobre o uso da expressão nova
esquerda, conforme aparece no texto Contra o doutrinarismo e o economicismo –
Por uma tática proletária de combate à ditadura, de Daniel Terra, membro do
Comitê Central do MR-8, ao criticar o uso que a PO fazia da expressão:
A expressão “Nova Esquerda” não é de autoria da Esquerda
Revolucionária, ela surgiu nos meios jornalísticos liberais
burgueses para nos designar. Ela não é própria, pois nunca
7
REIS, D. Imagens da Revolução, 2006: 15
14
pretendemos ser uma esquerda “Nova”, mas tão somente
resgatar os princípios revolucionários enterrados pelo
reformismo.
8
Também Jorge Castañeda enfrenta a discussão metodológica sobre o
termo esquerda e seus adjetivos quando trata da passagem da esquerda latino-
americana das táticas da luta armada para novas táticas de luta. Castañeda
procura estabelecer critérios que possam englobar os diversos matizes de esquerda
e propõe uma classificação ideológica e política e outra funcional. Ele usa a
expressão organizações político-militares para se referir às inúmeras organizações
que surgem na América Latina a partir de 1959, no rastro da Revolução Cubana:
As organizações político-militares difundiram-se por toda a
América Latina em seguida à Revolução Cubana. Essas
organizações caracterizaram-se sobretudo por sua adesão à
“luta armada” e por sua afinidade ideológica quase universal
com Cuba e Fidel Castro. Além do mais, todas elas tenderam
a fazer dos Estados Unidos seu “inimigo principal”. A partir
de 1959, a principal questão que dividiu a nova esquerda
político-militar foi o modo pelo qual os dois componentes já
existentes na esquerda – comunistas e nacionalistas-
populistas – reagiram ao impacto da Revolução Cubana e às
novas organizações, táticas e teorias que ela fez surgir.
9
O tema, portanto, é polêmico e comporta modos diferentes de abordagem,
embora mantenha muitos pontos onde existe acordo. Não é minha intenção
aprofundar esse debate, mas apenas tentar caracterizar as vertentes da esquerda
envolvidas diretamente com o debate da questão democrática e a formulação de
estratégias e táticas daí decorrentes. Neste sentido, a compreensão, mesmo que
em linhas gerais, sobre cada uma dessas vertentes torna-se importante. Em
especial a definição da esquerda que se constitui na crítica ao PCB, sejam as
organizações que são criadas fora de sua estrutura orgânica, sejam as dissidências
ou os rachas a partir de suas bases e organismos dirigentes.
Portanto, a escolha da expressão esquerda revolucionária e outras que
integrem o mesmo campo de escolhas é feita pelo fato de serem expressões usadas
pelas próprias organizações e pode não refletir, necessariamente, um conteúdo
estritamente revolucionário, do ponto de vista marxista-leninista ou mesmo de uma
8
TERRA, D. Contra o doutrinarismo e o economicismo: 21
9
CASTAÑEDA, J. A utopia desarmada, 1994: 33
15
possível teoria da revolução. Do mesmo modo, que as expressões reformismo ou
populismo podem não corresponder exatamente a um determinado conteúdo, ou
mesmo a práticas políticas identificadas com as expressões.
Origens e constituição da Esquerda Revolucionária: por fora e por
dentro do PCB
O quase aniquilamento das organizações da Esquerda Revolucionária por parte da
repressão exercida pela ditadura militar conduziu a um profundo processo de
autocrítica da proposta de luta armada nas condições em que foram travadas no
país, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970.
Procurar estabelecer as origens da esquerda revolucionária no Brasil e
conhecer as determinações históricas e políticas que a conformam não é uma tarefa
secundária quando pretendemos estudar os debates travados ao longo dos anos 70
sobre concepções estratégicas e táticas que nortearam as práticas não só da
esquerda, mas, em muito casos, as práticas políticas da oposição à ditadura como
um todo.
A esquerda revolucionária ou proletária assim denominava-se em oposição
às concepções consideradas reformistas do PCB. O golpe de 1964 ensejou duras
críticas às posições e a linha política hegemônica do PCB, e aprofundou a luta
interna que ganhava corpo após o XX Congresso do PCUS, à Declaração de Março
de 1958 e as decisões do V Congresso, realizado em 1960.
Na medida em que as posições políticas do PCB eram consideradas
reformistas, uma vez que a tomada do poder pela via revolucionária fora
substituída pela possibilidade da via pacífica e eleitoral
10
, nem de suas práticas e
ações; que sua política de amplas alianças era criticada e pela percepção de que
10
Os comunistas consideram que existe hoje em nosso país a possibilidade real de conduzir,
por formas e meios pacíficos, a revolução antiimperialista e antifeudal. CARONE, E. O PCB-
1943 a 1964, 1982: 191
16
entregava a direção da revolução brasileira à burguesia nacional, a esquerda que se
formava fora do PCB, buscava diferenciar-se com clareza e determinação.
Nesse sentido, a esquerda comunista que se constituía em oposição aberta
ao velho partidão, considerava-se revolucionária porque não aceitava o reformismo,
e considerava-se proletária, para se opor à idéia de que caberia à burguesia
nacional a hegemonia da revolução em nosso país, e não ao proletariado. E, acima
de tudo, considerava que a profunda derrota infringida ao povo pelo golpe militar
de 1964 confirmara, de maneira insofismável, os erros das concepções pecebistas.
O processo de construção / constituição da esquerda revolucionária no Brasil
e na América Latina é determinado por um conjunto de fatores, mas, em parte,
podemos localizar uma variável inicial no ambiente político criado a partir do XX
Congresso do Partido Comunista da União Soviética- PCUS, em 1956, que deu
origem a fortes críticas, tanto à direita como à esquerda, às linhas políticas
estratégica e tática então majoritárias entre os partidos comunistas no mundo
inteiro, Brasil incluído, fortemente influenciadas pelas análises e proposições do
PCUS.
O relatório Kruschov repercutiu em todo o mundo e abalou profundamente a
vida dos partidos comunistas, abrindo caminho para uma série de revisões teóricas
e práticas.
Pietro Ingrao, dirigente histórico do Partido Comunista Italiano, no texto
Ainda sobre a virada do ano de 1956, publicado em As massas e o poder, situa o
período desta reviravolta, procurando apontar algumas das razões que abrem o
período de crise no monopolitismo soviético:
O XX Congresso, Poznan, a Hungria representam a explosão
de problemas que se haviam acumulado perigosamente nos
decênios precedentes e que o movimento comunista não
enfrentara. Segundo penso, encerrou-se naquela época uma
fase do movimento comunista mundial. No fragor daqueles
terremotos políticos, recolocou-se em discussão toda uma
estratégia e todo um corpo de doutrinas, uma análise do
capitalismo, visto essencialmente como estagnação e
degeneração progressiva; uma interpretação petrificada e
manipulada das relações entre democracia e socialismo; uma
concepção do internacionalismo baseada nos princípio do
17
Estado-guia e do partido-guia; uma visão monolítica do
campo socialista e da transição do socialismo, transferida na
prática a um único “modelo”. Foram esses cânones que
receberam um golpe mortal em 1956.
11
O rompimento com as concepções e as práticas então predominantes entre
os comunistas e a chamada desestalinização iniciam uma nova etapa na vida dos
partidos, das organizações e dos militantes comunistas, socialistas e de esquerda.
Inicia-se por parte das direções comunistas do PCUS e dos partidos aliados das
democracias populares da Europa oriental a política da coexistência pacífica, do
degelo e outras tentativas de convivência entre o mundo comunista e o mundo
capitalista que podem ser avaliadas como políticas mais à direita, que pregavam a
revolução pacífica e a conquista do poder através da via eleitoral.
Por outro lado, a quebra da unidade existente entre os partidos comunistas
fora da esfera de influência direta da União soviética, em especial o rompimento
entre URSS e China e o início do afastamento dos partidos comunistas europeus da
linha soviética vão contribuir para formar, também, o novo quadro político que
começa a ser criado.
No Brasil, o monopólio do PCB é quebrado em nível interno pela dissidência
do PCdoB e em nível externo com o surgimento de organizações como a POLOP e a
AP, fora da influência do antigo partidão e da tradição comunista no país
A Revolução Cubana e o novo ânimo que sua vitória exerce sobre militantes
e ativistas é um dos principais fatores que irão concorrer para o surgimento da
esquerda revolucionária na América Latina e no Brasil. Na origem da ER brasileira
encontra-se, desse modo, o rompimento radical com o reformismo do PCB e, em
parte, a crítica ao etapismo na maneira pela qual o partido conceberia o
desenvolvimento da revolução. A estratégia socialista no lugar da estratégia que
privilegiava uma etapa nacional e democrática como condição de passagem à etapa
socialista, não será assumida pelo conjunto da ER, mas, inicialmente apenas por
algumas organizações como a Polop e a Dissidência da Guanabara- DI-GB, que
daria origem, posteriormente, ao MR-8.
11
INGRAO, P. As massas e o poder, 1980: 88.
18
No entanto, a crítica ao caminho pacífico da revolução brasileira será um
traço comum de quase todas as organizações surgidas após o golpe de 1964 e que
fazem a opção pela via armada como tática de ação revolucionária para a luta
contra a ditadura militar e pela instauração de um novo poder no país.
Embora não possamos identificar estritamente a esquerda revolucionária
com o que se tem convencionado chamar de esquerdas armadas, podemos resumir
o ambiente nacional e internacional dos anos 1960 em que surge a ER a partir do
enfoque apresentado por Ridenti:
Se, no âmbito interno, a principal referência conjuntural em
que se inseriu a luta das esquerdas armadas dizia respeito à
ditadura, em termos internacionais destacavam-se as lutas
de libertação nacional, como a independência da Argélia, a
Guerra do Vietnã, os desdobramentos da Revolução Chinesa
(com o conflito sino-soviético e depois a chamada “Revolução
Cultural”, a partir de 1966) e particularmente a Revolução
Cubana. No contexto da Guerra Fria, surgiam esforços dos
países “não alinhados” para organizar autonomamente o que
então ficou conhecido como “Terceiro Mundo” (...) Ademais,
já no fim da década de 1960, eclodiu em todo o globo uma
onda de rebeldia e revolução, notadamente no ano de
1968.
12
Em síntese, identificamos duas origens para a constituição da esquerda
revolucionária no Brasil: a que se organiza, desde o início fora da estrutura
partidária do PCB, tal é o caso da Polop e da AP; e a que surge a partir das
dissidências do partido, como é o caso da ALN, do PCBR e do MR-8.
13
No plano nacional, o golpe de 1964 abre um processo de crítica irremediável
ao modelo do PCB, no plano internacional, a desestalinização, os movimentos
terceiro-mundistas e a Revolução Cubana criam o cenário no qual a esquerda
revolucionária se desenvolverá. Já no plano teórico, a clivagem se dá entre
partidários da estratégia democrático-burguesa e defensores da visão socialista de
revolução.
12
RIDENTI, M. Esquerdas armadas urbanas, 2007: 106.
13
Del Roio, também, aponta as divisões no comunismo brasileiro dessa forma: Esse contexto
de fortalecimento e diversificação dos atores sociais promoveu uma série de divisões no
comunismo brasileiro. Não somente no leito histórico do comunismo brasileiro teve origem o
PcdoB, em 1962, seguido em 1967-1968 pela formação da ALN, MR-8, PCBR e POC, como a
própria cultura política da esquerda revolucionária deu origem a novas vertentes, marxistas
ou católicas, como a Polop e a AP. DEL ROIO,M. De um século a outro: trajetória e
atualidade da questão comunista no Brasil, 2003: 286.
19
A luta teórica
Um viés importante pelo qual o debate democrático ocorrido nos anos 1970 deve
ser analisado é no que diz respeito a sua possível conceituação como luta teórica. A
concepção marxista destaca o papel da teoria para a educação política do
proletariado, a ligação indissolúvel entre teoria e prática e o significado da luta
teórica como instrumento de superação de contradições e síntese política e
programática.
Em uma célebre passagem de Que Fazer?,
14
Lenin debate a
importância da teoria para a social-democracia russa e mostra como a luta teórica é
uma das três formas pelas quais se expressa para o movimento revolucionário a
luta de classes, ao lado da luta econômica e da luta política.
A luta econômica estaria ligada às reivindicações salariais, à melhoria das
condições de trabalho e de vida em geral, seu espaço privilegiado de ação seria a
arena sindical, a política trade-unionista. A luta política seria definida nos embates
pela conquista da liberdade para a classe operária e seus aliados, por direitos e
garantias, por avanços democráticos, mas, fundamentalmente, no embate das
classes e frações de classes revolucionárias, dirigidas pela classe operária com o
objetivo de destruir o poder burguês e constituir o poder proletário. A luta teórica
seriam os esforços para a construção do conhecimento da sociedade pelo partido da
classe operária a partir da verificação dos interesses das várias classes, seja do
ponto vista histórico mais geral, seja em uma determinada situação tendo por
objetivo as formulações estratégica, programática e das táticas aplicadas a cada
momento concreto. A luta teórica travada pelos comunistas é dirigida contra a
dominação teórica e ideológica exercida pela burguesia sobre o conjunto da
14
Refiro-me ao tópico de letra D, intitulado Engels sobre a importância da luta teórica, do
capítulo I, de acordo com a edição V. I. Lenine - Obras escolhidas, em três tomos, publicada
pela Alfa-Ômega, 1979, a partir da edição russa preparada pelo Instituto de Marxismo-
Leninismo do antigo CC do PCUS.
20
sociedade e, em especial, sobre a classe operária. Para Lenin, é preciso criar as
condições de superação do nível espontâneo das lutas das massas e educá-las no
marxismo – sob a perspectiva de considerar o marxismo como a ciência social do
proletariado – para que pudessem alcançar a consciência social-democrata em
oposição à consciência trade-unionista.
A luta teórica deve enfrentar e superar o economicismo, que seria o nível
máximo que a consciência do proletariado atingiria de forma espontânea, isto é,
sem o concurso da teoria revolucionária que, necessariamente, deve ser introduzida
de fora, elaborada pelo partido, fato que ocorrera, de acordo com Lenin, como
resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os
intelectuais revolucionários socialistas.
15
A teoria revolucionária e a luta teórica que acontece no próprio
desenvolvimento do processo social da luta de classes visam formar a consciência
revolucionária e transformar o proletariado de classe em si em classe para si. Para
fundamentar sua defesa da importância do papel da teoria para o movimento
operário, Lenin recorre a Engels, que expõe a importância e o significado da teoria
para o movimento social-democrata no prefácio de As guerras camponesas na
Alemanha, ao discorrer sobre as vantagens que os operários alemães teriam sobre
os operários dos outros países da Europa pelo fato de conservarem o senso teórico
e por pertencerem ao povo mais teórico da Europa:
Sem o senso teórico dos operários eles não assimilariam
jamais o socialismo científico na escala em que o fizeram. E o
que prova a vantagem infinita disto é, de um lado, a
verificação de que a indiferença em relação a toda teoria é
uma das causas principais do pequeno progresso do
movimento operário inglês (...) Deve-se reconhecer que os
trabalhadores alemães souberam aproveitar-se de sua
situação com rara inteligência. Pela primeira vez, depois de
se formar o movimento operário, a luta se conduz em três
direções: teórica, política e econômica-prática (resistência
aos capitalistas), com muito método e coesão.
16
Mas, se a grande luta da social-democracia contra a burguesia, de acordo
com a expressão do dirigente comunista russo, estrutura seu eixo nas formas de
15
LENIN, V. Que fazer?, 1979: 101
16
ENGELS, F. As guerras Camponesas na Alemanha, 1977: 19-20
21
luta econômica, política e teórica, as discussões e debates internos nos partidos e
nas organizações políticas que reivindicam a representação operária e classista,
assim como as discussões travadas entre esses partidos e organizações, devem ser
considerados elementos indissociáveis da luta teórica mais geral.
É no confronto teórico aberto, na teorização que fundamenta as disputas
políticas, nas interpretações e análises divergentes sobre a mesma realidade que
avançam as formulações e a própria teoria. Buci-Glucksmann, ao procurar
reconstruir o ambiente de debates e discussões vivido na prisão, onde Gramsci
produziu grande parte de sua obra, cita trecho da carta no qual o comunista
italiano afirma que o debate entre adversários concretos é o fator capaz de
estimular e fazer avançar a teorização:
Normalmente, é necessário que eu me coloque de um ponto
de vista dialógico ou dialético, sem o que não sinto nenhum
estímulo intelectual. Como já lhe disse um dia, não gosto de
jogar pedras no escuro, quero perceber um interlocutor ou
um adversário concreto.
17
Buci-Glucksman aponta que a reflexão de Gramsci se constrói através da
discussão com seus adversários, Croce, Gentile ou Bukhárin e com seus
interlocutores, Lenin, Marx, Maquiavel etc. Reflexão, portanto, que podemos
considerar na dimensão de uma luta teórica, isto é, a teoria que só pode ser
formada a partir da discussão e da síntese dialética.
Moraes destaca a tradição comunista de luta teórica, do debate que é
disputa de posições, esclarecimento, educação político-teórica e instrumento de
formação da própria teoria. No texto A influência do leninismo de Stálin no
comunismo brasileiro, ao verificar as repercussões do stalinismo no PCB, o autor
levanta a questão da elaboração teórica a partir de uma perspectiva que a situa
como disputa, ao mesmo tempo em que é luta política e economicamente
motivada.
Tanto Lênin quanto Stálin consideravam o trabalho teórico
uma luta. É sobejamente conhecida a tripartição leniniana
entre luta teórica, luta política e luta econômica. Sem dúvida,
ambos consideravam política e economicamente motivada e,
17
Citado por Buci-Glucksmann. Gramsci e o estado, 1980: 23.
22
nessa medida, ambos são profundamente irritantes para os
intelectuais “puros”, isto é, aqueles que pretendem pensar e
elaborar teorias em total independência das condições sociais
(econômicas, profissionais, políticas, culturais) que
caracterizam sua existência como intelectuais.
18
(grifos e
aspas do autor)
A esquerda revolucionária, ao longo dos anos 1970, reconhecia a
importância chave da luta teórica e do debate para as definições estratégicas,
programáticas e táticas, ou seja, a conexão teoria-prática que reflete a
dependência das condições sociais e políticas; ao mesmo tempo em que defendia a
ocorrência do debate. No editorial da revista Brasil Socialista, de janeiro de 1976,
ao avaliar a conjuntura, verificava-se o avanço da oposição à ditadura e das idéias
de esquerda no país, mas, acentuava-se o ambiente de luta política interna e a
necessidade de fazer avançar as discussões das posições divergentes para que a
esquerda pudesse, de fato, ampliar sua influência e sua capacidade organizativa e
diretiva.
Na crise geral porque passa o país, as idéias de esquerda
encontraram um grande campo de crescimento dentro da
sociedade. Particularmente no seio da esquerda
revolucionária que se reorganiza em torno de uma
alternativa proletária, tivemos esse ano uma série de
acúmulos significativos; aumenta o número de forças que,
desenvolvendo seu processo autocrítico sobre a base de
referências revolucionárias, buscam se rearticular junto ao
movimento de massas, especialmente junto à classe
operária. Ao mesmo tempo, avança-se na organização do
debate unitário e na prática conjunta entre esses setores.
Desenvolve-se a luta política e ideológica centrada nas
questões candentes do momento. (grifos meus)
19
Fundamentos para uma nova tática
A reorganização vivida no início dos anos 70 pelas organizações é estrutural e
orgânica, mas, acima de tudo, é política, programática e estratégica. É determinada
exatamente pela nova conjuntura e coloca exigências concretas que as
organizações vão procurar responder em um esforço teórico que corresponde a um
18
MORAES, J. A influência do leninismo de Stálin no comunismo brasileiro, 2003: 127.
19
Comitê de redação da revista Brasil Socialista, 1976: 2.
23
momento significativo do pensamento político brasileiro de base marxista. São
necessárias respostas em diversos níveis:
- No nível estratégico, permanece na ordem do dia a discussão central para os
comunistas brasileiros sobre o caráter da revolução brasileira, se nacional e
democrática, como defendido, fundamentalmente, pelas posições tradicionais do
PCB
20
ou se socialista, como pretendido pelas organizações da esquerda
revolucionária. Essa discussão, que se origina ainda antes do golpe de 1964, em
organizações como a Polop e em pequenos círculos, ganha destaque com a
apresentação pela própria Polop do Programa Socialista para o Brasil-PSpB, em
1967, e com a entrada em cena de outras organizações que também vão defender
a estratégia socialista como o MR-8. O PSB, da Polop, em parte, vai cumprir o papel
de referencial teórico para a esquerda revolucionária que se constitui do final dos
anos 60 em diante;
- No nível tático e, naturalmente, como desdobramento da premissa acima, a
questão-chave para as organizações reside em definir qual deve ser o centro da
luta contra a ditadura e de como articular a luta pelo fim da ditadura com o próprio
fim da dominação burguesa e capitalista. O aprofundamento teórico para a
formulação da tática considerada justa e correta para ser aplicada na conjuntura
torna-se uma discussão acalorada a partir do instante em que algumas das
organizações da esquerda adotam a palavra de ordem pela conquista das
liberdades democráticas como eixo da luta contra a ditadura;
- No nível teórico, conseqüentemente, torna-se imprescindível o aprofundamento
de Marx, de Lenin e dos autores de orientação marxista em geral, aprofundamento
que, até então, não havia sido alcançado no nível superior necessário por essas
organizações, devido às concepções que privilegiavam a prática e a ação militarista.
As organizações, dissidentes ou não do PCB, também faziam severas críticas
ao que seriam desvios que enxergavam no partido, como o reunionismo e o
20
Na expressão de Prado Júnior, a teoria consagrada da revolução brasileira. Prado Júnior,
C. A revolução brasileira, 2004.
24
burocratismo, identificados como posturas acabavam por levar o partido ao
imobilismo, afastando os militantes das práticas combativas e revolucionárias.
Ainda durante o período da luta armada, alguns grupos e militantes
21
iniciaram o
processo de autocrítica do militarismo e do revolucionarismo pequeno-burguês
22
e
buscam retornar o trabalho de massas e de mobilização social ou, pelo menos,
apontar, em textos e documentos para a discussão, a importância de se combinar a
luta armada com o trabalho político em outras frentes. Embora os debates sobre a
importância de se combinar ações armadas com as chamadas ações de massas
estivessem presentes em todo o período, prevaleceram como se sabe atitudes
consideradas como praticismo, aliado às intensas necessidades humanas e
materiais requeridas pela guerrilha urbana que praticamente bloquearam o avanço
e a extensão da discussão entre as organizações que enveredaram pelo militarismo.
Afora o sectarismo e a rigidez das posições políticas extremadas que, muitas vezes,
acabavam por impedir o aprofundamento de determinados temas e assuntos.
Pode-se dizer que já é um consenso entre historiadores e cientistas sociais
considerar 1974 um ano divisor de períodos ao longo do tempo da ditadura. As
variáveis principais dessa consideração podem ser encontradas na alteração do
grupo militar dirigente representada pela mudança de Médici para Geisel; no fim do
milagre e na presença de uma crise econômica cada vez mais intensa; no início da
distensão como política de governo da ditadura e na vitória do MDB nas eleições
para o Senado e a expressiva votação para a Câmara dos Deputados. Não é de
menos importância à consideração de que 1974 seja o ano do abandono definitivo
21
Gorender identifica o início desse processo em 1971 e cita o documento do MR-8
Orientação para a Prática, onde a organização constata a redução das bases sociais da
esquerda armada e a dificuldade de recomposição dos quadros perdidos, ao mesmo tempo
em que propõe o retorno ao trabalho de massas, sob formas não-armadas. O autor identifica
o mesmo processo em outras organizações destacando como o mais importante, do ponto de
vista teórico, além do já citado, o processo vivido pela organização Ala vermelha
(GORENDER, J. Combate nas Trevas, 2003: 223-231)
22
A expressão revolucionarismo pequeno-burguês, cunhada por Lenin, que define: (...) o
revolucionarismo pequeno-burguês, parecido com o anarquismo, ou que adquiriu dele
alguma coisa, afastando-se, em tudo que é essencial, das condições e exigências de uma
conseqüente luta de classes do proletariado.LENIN, V.I. Esquerdismo: doença infantil do
comunismo, 2007: 9.
25
das ilusões armadas - que se encerram com a experiência da Guerrilha do
Araguaia, em fins de 1973 e início de 1974 - e a assunção definitiva por parte das
organizações revolucionárias da luta de massas e da luta democrática como
questões principais de sua atuação.
Por volta de 1974, o campo da esquerda marxista-leninista era constituído
por organizações da Esquerda Revolucionária-ER que, embora tenham participado
da experiência armada, não haviam sido completamente dizimadas e viviam, como
vimos acima, uma etapa de reorganização. Entre as organizações da chamada ER,
podemos destacar o Movimento Revolucionário 8 de Outubro-MR-8; a Ação Popular
Marxista-Leninista- APML e o Partido Comunista do Brasil; a Organização Comunista
Marxista-Leninista Política Operária-OCML-PO, ou simplesmente PO, originaria da
antiga Polop, fundada em 1961, mas que não havia participado diretamente da luta
armada embora tenha gerado inúmeros grupos armados a partir das suas
dissidências; Movimento pela Emancipação do Proletariado-MEP, dissidência mais
recente da PO e a Ala vermelha e o Partido Comunista Revolucionário-PCR,
dissidências do PcdoB. Faziam parte ainda do campo da esquerda alguns pequenos
grupos trotskystas como a Organização Socialista Internacional- OSI
23
e a
Convergência Socialista, os mais importantes entre outros agrupamentos. Além de
inúmeros grupos menores organizados, de grupos que viviam exilados no exterior e
muitos círculos de militantes independentes. Além, é claro, do Partido Comunista
Brasileiro e suas áreas de influência. De todo modo, as organizações acima citadas
constituem, sem dúvida, o pólo no qual os debates se desenvolveram e
influenciaram o conjunto da esquerda e, em grande parte, o conjunto da oposição
democrática e popular e mesmo os setores vinculados ao pensamento democrático
de tradição liberal.
Para estas organizações, naquela nova conjuntura que se abria no país em
1974, os debates sobre estratégia, tática e programa oposicionista tornam-se
23
No movimento estudantil era a tendência Liberdade e Luta, de atuação mais destacada no
estado de São Paulo, onde ficou conhecida como Libelu.
26
fundamentais e eram exatamente estas questões que traziam para a ordem do dia
os questionamentos sobre democracia e sua relação com a temática da revolução e
do socialismo, ao mesmo tempo em que constituíam o pano de fundo da própria
conjuntura. A derrota da via armada não modificara a visão dos grupos e dos
militantes que dela participaram e que defendiam o caráter socialista da revolução
brasileira - uma das diferenças fundamentais entre essas organizações e o PCB e o
PcdoB, que teorizavam a revolução em duas etapas -, e vinculavam a luta pelo fim
da ditadura com a fim da própria dominação burguesa no Brasil. Ao contrário, a
polêmica sobre o caráter da revolução ganha novos contornos e inúmeros aportes
teóricos, avançando em muito em relação ao debates dos períodos anteriores
24
.
Mas, as convergências de idéias entre as organizações da esquerda revolucionária
não iam muito além da visão que tinham sobre o caráter socialista da revolução, e
as divergências situavam-se desde o tipo de governo que deveria suceder a
ditadura ao programa político para a luta revolucionária e as táticas corretas para o
momento.
A definição da palavra de ordem pelas liberdades democráticas como eixo
tático da luta contra a ditadura e a proposta de voto participante ou voto
participativo nas eleições da ditadura, por parte do MR-8, da APML e de grupos
independentes de militantes já nas eleições de 1974, estão na origem das
divergências que vão principiar as polêmicas.
Para as organizações, a discussão sobre tática havia se tornado um
elemento crucial das definições urgentes e necessárias para a retomada do trabalho
nas diversas frentes de luta e para a inserção nas atividades oposicionistas como
um todo, já que subordinava a escolha do caminho e ser seguido e a definição das
24
O texto que, de certo modo, rompe com a visão etapista do PCB é A Revolução Brasileira,
de Caio Prado Júnior, publicado em 1966. Como foi visto anteriormente, outro texto
fundamental é o Programa Socialista para o Brasil-PSpB, da Polop, de 1967. No período, vale
registrar a publicação na revista Brasil Socialista, em janeiro de 1976, de Dialética da
Dependência, de Ruy Mauro Marini (de 1972), que procura fundamentar, apoiado na teoria
marxista, o caráter dependente da economia brasileira o que criaria os fundamentos da via
socialista da revolução brasileira; além dos muitos comentários e críticas produzidos por
dirigentes e militantes das organizações revolucionárias ao PSpB e publicados em boletins e
revistas editados clandestinamente ao longo dos anos 1970.
27
bandeiras de luta contra a ditadura. Sem as respostas para as chamadas questões
de política atual, as organizações percebiam que estariam fadadas a repetir a
dinâmica de uma prática política apartada da realidade e do real nível de
consciência dos trabalhadores, do povo e da sociedade em geral. Além disso, havia
uma questão que permanecia como não resolvida e que vinha ainda do período
anterior, quando do rompimento com o PCB, questão que, em grande parte, esteve
presente em toda a fase da luta armada e que as organizações buscavam superar:
tratava-se da crítica de que não possuíam propostas táticas para as situações que
se apresentavam na conjuntura, que não sabiam responder exatamente ao que
estava na ordem do dia, de que o trabalho que faziam acabava por se limitar à
propaganda da revolução e do socialismo em pequenos círculos de estudantes, de
setores intelectuais e de operários mais esclarecidos. A crítica que, uma vez
absorvida pelas organizações da esquerda revolucionária, vai transformar-se, no
período que analiso, em autocrítica, era carimbada como desvios de tipo
doutrinarista, esquerdista e voluntarista.
A discussão sobre alternativas táticas é definida, portanto, não apenas como
disputa teórica entre organizações e militantes, sobre a sua capacidade de produzir
os melhores raciocínios apoiados em um pretenso domínio do marxismo, mas,
acima de tudo, é uma discussão que funciona como base que vai informar as
inúmeras práticas e propostas políticas em relação ao movimento de massas
popular e democrático que se reorganizava e se reiniciava, como suporte e diretriz
às inúmeras novas frentes de luta abertas do movimento de resistência e oposição
à ditadura.
Por isso, vamos observar em textos fundamentais produzidos pela ER no
período a preocupação principal com essa problemática, dos quais são exemplos
destacados os textos Notas sobre a questão tática, de Raul Villa, da PO, de 1975;
Contra o doutrinarismo e o economicismo - Por uma tática proletária de combate à
ditadura, de Daniel Terra, do MR-8, de 1975; Tese sobre a tática, do MEP, também
de 1975, e o documento do comitê central do PCB, de abril de 1975, A luta pela
28
democracia e nossas principais tarefas. Em todos esses textos, onde são expostas
distintas visões e divergências, as questões táticas e estratégicas são debatidas sob
a perspectiva da revolução, de sua relação com o papel da consigna pelas
liberdades democráticas como centro da luta contra a ditadura e da relação entre
democracia e socialismo. No documento de Raul Villa fica claro para a ER brasileira
a relevância dos questionamentos sobre as possíveis insuficiências em relação à
tática:
Só há um modo da esquerda brasileira enfrentar suas
deficiências na definição tática, aplicando o marxismo-
leninismo para caracterizar as tarefas que se colocam no
momento atual. Só no encaminhamento prático da
formulação e aplicação da tática, será possível superar as
lacunas e chegar à linha de encontro entre os objetivos
estratégicos e a dinâmica imediata das forças sociais. E é por
isso que a discussão sobre tática domina a esquerda
proletária brasileira, os agrupamentos revolucionários que se
implantam no movimento operário para aí formar a base da
oposição política ao regime.
25
Sem dúvida, as discussões teóricas para a compreensão da conjuntura e
para a determinação da tática correta são traços distintivos do novo período e, em
torno dessa polêmica, todo um campo de convergências e divergências será
estabelecido. A extensão e a intensidade desse debate por parte das organizações
será, em grande parte, o elemento responsável e uma espécie de indutor do
aprofundamento teórico geral vivenciado pela esquerda brasileira no período a
respeito da realidade brasileira, do caráter da ditadura e do poder dos militares, da
situação econômica etc. Será responsável, também, por contribuir com um
conjunto de propostas que acabarão por constituir a plataforma comum da oposição
até o fim dos anos 70.
Desse modo, a esquerda revolucionária, inicialmente apenas uma parte dela
e, ao longo das discussões travadas, praticamente todas as organizações, vai
colocar no centro de sua ação, como questões nucleares da resistência à ditadura,
a luta pela revogação do AI-5, do decreto 477 e de todas as leis consideradas de
exceção; pelo fim da censura e por liberdades de manifestação, organização e
25
VILLA, R. Notas sobre a questão da tática, 1975: 13
29
partidária. Ao mesmo tempo em que amplifica a denúncia e a luta pelo fim das
prisões políticas, contra a tortura e por uma anistia ampla, geral e irrestrita; pela
convocação de uma assembléia constituinte, etc. ou seja, um programa de
conteúdo fundamentalmente orientado para a conquista de liberdades
democráticas. A ER mostra-se ser capaz de contribuir para aprofundar o debate
junto às outras forças políticas e sociais da oposição, apontar caminhos, disputar
posições e procurar atuar sobre o conjunto dos movimentos sociais, e não apenas
em grupos e segmentos reduzidos.
A influência e as repercussões dos debates travados na esquerda
revolucionária, sua prática e inserção junto às forças políticas e sociais em geral
que se opunham à ditadura é, portanto, um dos elementos de grande significação
no período.
A definição de importantes palavras de ordem, bem como do conteúdo de
determinadas bandeiras democráticas como a anistia, ampla, geral e irrestrita, que
se tornaria uma das mais importantes lutas nacionais; o esforço de teorização e de
formulação que permitiu encontrar os caminhos para a reorganização de entidades
representativas e de sindicatos de inúmeras categorias profissionais e de
trabalhadores, contou com a decisiva participação e a direção democrática da
esquerda revolucionária, apenas para ficar nesses dois exemplos. Tais ações terão,
também, reflexos profundos no período seguinte, o que se abre após o surgimento
dos novos partidos brasileiros em 1980.
Mas, não é apenas no terreno da definição programática dessas bandeiras,
que se tornaram bandeiras da luta unitária com as chamadas oposições pequeno-
burguesa e liberal, que a influência da esquerda revolucionária irá se manifestar.
Ela será verificada, também, em um outro tipo de influência tão importante quanto
àquela que se expressará no ritmo, na intensidade e nas formas assumidas pelas
lutas e pelas manifestações da oposição, ou seja, a esquerda revolucionária
transmitirá e levará para o conjunto das forças que combatem a ditadura sua
experiência e combatividade, agora, evidentemente, não mais no terreno da luta
30
armada, mas, sim, nos espaços democráticos que vão se abrindo e surgindo como
resultado dos avanços obtidos.
A tradição de firmeza nas discussões políticas e nos embates ideológicos e o
comportamento determinado nas ações práticas no movimento social, marcas da
esquerda revolucionária, serão um dos elementos que vão colaborar com a
oposição e a resistência à ditadura como um todo, e, contribuirão em muitas
ocasiões na disposição e na força necessárias para a denúncia, para o
aprofundamento das lutas e para o enfrentamento da opressão ditatorial e da
repressão policial.
Apesar da intensa repressão e da censura, as organizações e partidos de
esquerda conseguiam manter uma imprensa partidária clandestina, editar revistas
de debates, documentos teóricos e de análises dos vários problemas suscitados
pela prática, embora muitos desses materiais tivessem que ser produzidos e
impressos no exterior.
A revista Brasil Socialista, projeto suprapartidário e editada em conjunto
pelo MR-8, APML, PO, MIR Chileno e outras organizações da esquerda latino-
americanas; a revista Teoria e Prática, editada pelo MEP e a revista Marxismo
Militante, sob a responsabilidade da PO, foram espaços decisivos onde a esquerda
travou essa discussão de modo profundo e significativo; construiu os subsídios
necessários para a sua prática e avançou teoricamente na compreensão de
aspectos fundamentais do marxismo e da realidade brasileira. Além, é claro, dos
jornais, documentos emitidos pelos comitês e organismos partidários e impressos
em geral das organizações, como a Voz Operária, do PCB; Unidade Proletária, do
MR-8; a Classe Operária, do PcdoB entre outros. É importante citar, também, os
jornais da chamada imprensa alternativa, em especial, Em Tempo e Movimento,
que foram organizados e contavam com o apoio e a colaboração mais ou menos
aberta das organizações e militantes, e em cujas páginas esse debate foi travado
em seus muitos aspectos e pode repercutir para amplos setores dos movimentos
sociais e oposicionistas. Por último, vale destacar a revista Encontros com a
31
Civilização Brasileira, que publicou em primeira mão artigos e estudos de impacto
naquela conjuntura.
Capítulo 2
Marxismo-leninismo e democracia
O debate sobre república e democracia e sobre a relação entre democracia e
socialismo é parte integrante e constitutiva do pensamento marxista e um dos
grandes temas e preocupações que envolvem partidos, organizações e grupos
comunistas ao longo de toda a sua história. É, também, uma problemática
conectada diretamente à revolução e aos dilemas e questões vinculadas à conquista
e a organização do poder socialista.
Marx, no Manifesto do Partido Comunista e em o 18 Brumário de Luís
Bonaparte, bem como em As lutas de Classes na França e a Guerra Civil na França
e outras obras clássicas define as duas revoluções da era capitalista, a Revolução
Burguesa e a Revolução Proletária. A questão democrática, ou seja, a forma de
organização do poder e do Estado, a expressão das instituições políticas e da
relação entre as classes e frações de classes, será objeto de permanente atenção
de Marx e Engels, muito embora a problemática da república e da democracia no
século XIX fossem bem diferentes dos problemas presentes nos variados períodos
do século XX e atualmente.
É importante assinalar a relação entre revolução, república -nos termos em
Marx coloca a questão,- e democracia e liberdades democráticas, essas últimas,
idéias que serão avançadas por Lênin e pela geração de comunistas do início do
século XX.
O entendimento do caráter da revolução de um determinado país, em uma
determinada etapa do desenvolvimento de suas relações de produção, está na base
da discussão da questão democrática, no sentido em que a expressão política do
poder e seu conteúdo democrático representam as classes e forças sociais
portadoras da revolução naquele momento. Em o 18 Brumário, ao tratar das
33
condições das revoluções nos séculos XVIII e XIX, Marx faz uma distinção entre as
revoluções burguesas, que seriam as do século XVIII e as revoluções proletárias,
que seriam as do século XIX. Essa distinção estará associada, naturalmente, as
classes e frações de classes vitoriosas que tomarão o poder e o organizarão
dispondo das conquistas sociais e liberdades democráticas de acordo com seus
interesses e a correlação de forças concreta. Deste modo, Marx assinala, em linhas
gerais, distinções entre os possíveis conteúdos da república que é constituída após
a insurreição e como tal república não é algo dado por si mesmo, mas sim objeto
de disputa entre as classes que estão a frente da revolução:
Quando estalou o conflito de verdade, porém, quando o povo
levantou as barricadas, a Guarda nacional manteve uma
atitude passiva, o exército não ofereceu nenhuma resistência
séria e a monarquia fugiu, a república pareceu ser a
conseqüência lógica. Cada partido a interpretava a seu
modo. Tendo-a conquistado de armas na mão, o proletariado
imprimiu-lhe sua chancela e proclamou-a uma república
social. Indicava-se, assim, o conteúdo geral da revolução
moderna, conteúdo esse que estava na mais singular
contradição com tudo que (...) podia ser imediatamente
realizado. Por outro lado, as pretensões de todos os demais
elementos que haviam colaborado na Revolução de Fevereiro
foram reconhecidas na parte do leão que obtiveram no
governo.
1
Marx em seus artigos no Neue Rheinische Zeitung, em especial ao longo de
1848, ano em que a Europa foi sacudida pela onda revolucionária, a Primavera dos
Povos, analisa os vários aspectos da questão democrática em relação à revolução
que estava em curso. O conteúdo geral da revolução mostra afirma a república
democrática de caráter burguês em substituição ao poder da monarquia. Marx
demonstra como o proletariado e a burguesia democrática, que ele diferencia da
grande burguesia, são as classes que devem conduzir a revolução até as últimas
conseqüências de modo a conquistar um conjunto de liberdades fundamentais
(organização, manifestação, imprensa etc.) e instaurar um poder que combate a
reação e a contra-revolução.
Textier observa como, primeiramente, ao se falar de democracia em Marx
não se pode separar a questão da perspectiva da revolução:
1
MARX, K. O 18 Brumário, 1984: 24.
34
Em Marx e em Engels, a questão da democracia não se põe
diretamente ou de maneira isolada. Ela se põe em relação
com o problema da revolução, ou, para ser mais preciso, em
relação com o problema das revoluções. Com efeito, Marx e
Engels pensam que o século XIX é o século das revoluções
democráticas, por uma parte, e da revolução “social”, por
outra parte. O problema consiste, portanto, em saber, quais
são as relações da ou das revoluções com o princípio
democrático.
2
A preocupação central de Marx não parece ser a definição do caráter da
revolução, se democrática, no sentido que hoje discutimos, ou se socialista. Sua
preocupação maior é sobre quem deve dirigir o processo mais geral da luta, quais
classes e frações de classe devem estar no comando da revolução, se a revolução
deve ser levada até o fim sob uma direção popular, ou seja, na base de uma
aliança entre o proletariado, os camponeses e a burguesia democrática ou se sua
direção deve ficar nas mãos da grande burguesia que procura refazer sua aliança
com os setores reacionários e mais atrasados da sociedade e abandonar o
proletariado e os camponeses.
Lenin, que dedicou grande de seu esforço teórico aos debates sobre
definições estratégicas e táticas da revolução, aprofundou o tema em Duas táticas
da social-democracia na Revolução Democrática; O esquerdismo, doença infantil do
comunismo e Estado e revolução, entre tantos outros textos.
Em Duas táticas, o revolucionário russo polemizou com os mencheviques ao
defender que mesmo na revolução democrática burguesa caberia ao proletariado
um papel hegemônico e dirigente. Ao recuperar as idéias que Marx e Engels
defenderam no período revolucionário na Europa de 1848, Lenin procurou
demonstrar, também, que além do papel de direção que o proletariado deveria
ocupar na Revolução Burguesa, o governo formado neste processo deveria ser a
ditadura democrático-revolucionária do proletariado e dos camponeses e não um
governo comandado pela grande burguesia.
A polêmica com os mencheviques, portanto, dava-se em dois aspectos
políticos: a quem caberia o papel dirigente principal na revolução e qual a natureza
2
TEXTIER, J. Revolução de democracia em Marx e Engels, 2005: 166.
35
do governo revolucionário. Para Lenin, o proletariado não deveria temer a
possibilidade da burguesia se afastar dos objetivos de sua própria revolução e
deveria compreender que um governo que garantisse as liberdades democráticas
burguesas interessaria muito mais a ele, proletariado, do que a burguesia:
A burguesia na sua massa voltar-se-á inevitavelmente para o
lado da contra-revolução, para o lado da autocracia contra a
revolução, contra o povo, logo que sejam satisfeitos os seus
interesses estreitos e egoístas, logo que “se afaste” do
espírito democrático conseqüente (e já se está a afastar
dele). Fica o “povo”, isto é, o proletariado e o campesinato:
somente o proletariado é capaz de ir até ao fim, pois vai
muito além da revolução democrática. Por isso, o
proletariado luta nas primeiras pela república e repele com
desprezo os conselhos estúpidos e indignos dele dos que lhe
dizem para ter em conta a possibilidade de afastar a
burguesia.
3
As discussões sobre democracia e revolução, democracia e socialismo e
sobre as forma de organização do poder proletário, isto é, da ditadura do
proletariado, sempre foram objeto de intensas polêmicas entre partidos, teóricos e
militantes comunistas.
Sarti, ao analisar o papel dos partidos de esquerda ao longo do século XX,
faz um inventário de algumas importantes discussões que galvanizaram as
atenções de comunistas e socialistas durante os primeiros anos do poder soviético e
descreve o papel do pensamento social-democrata, inaugurado por Bernstein,
Kautsky e outros teóricos da II Internacional, nas democracias burguesas,
principalmente no que tange as possibilidades abertas pela convivência de
socialistas e comunistas nas democracias liberais. Dito de outro modo, aponta a
ruptura dos vínculos entre democracia e revolução nos moldes pensados por Marx,
Engels e, posteriormente, por Lenin, ao mesmo tempo em que discute as posições
da social-democracia na tentativa de construção de uma experiência socialista nos
marcos do capitalismo.
A adesão socialista aos processos eleitorais adquiriu o caráter
provisório de uma solução possível e imediata, sem a
3
LENIN, V. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, 1976: 442.
36
renúncia do objetivo fundamental: suspendia-se a revolução,
que permanecia, porém, utopia presente.
4
Por outro lado, diferentemente da época de Marx e Engels, o século XX foi o
tempo em que a democracia liberal-burguesa pode, de fato, se constituir e se
instaurar de forma acabada e institucionalizada, notadamente no período após a II
Guerra Mundial. Ao mesmo tempo em que o mesmo século XX conheceu as
experiências reais e concretas de países socialistas, em particular, o caso da União
Soviética.
Sob a pressão das injunções da Guerra Fria, a questão democrática foi
ganhando novos contornos, deixando de ser um debate sobre sua relação com a
revolução, com as limitações da burguesia em defender as suas próprias
liberdades, a partir das análises históricas das revoluções burguesas, em especial
da Revolução Russa de 1905, elaboradas por Lenin, em consonância com o
pensamento de Marx e de Engels e que colocava o proletariado como a classe
verdadeiramente interessada na existência do regime república e na constituição do
estado democrático.
A crise do stalinismo após o XX Congresso do PCUS, em 1956, e as suas
profundas repercussões não apenas no campo socialista, mas, também, no que
então era chamado de mundo ocidental, pode ser considerado o grande marco que
inaugura um novo debate sobre a relação democracia e socialismo. O ambiente da
Guerra Fria, opondo o bloco dos países socialistas ao bloco dos países capitalistas,
favorecia e estimulava que se opusesse democracia a socialismo, criando a idéia de
que socialismo e democracia eram incompatíveis.
A proposição de que o socialismo seria a existência de uma democracia para
as grandes maiorias, de que representaria um avanço em relação ao estado
burguês e suas limitadas liberdades burguesas, de que toda democracia, ou seja
todo estado, é uma ditadura e que, portanto, a ditadura do proletariado
representaria a democracia para a classe operária e o povo, perde força e forma-se
uma situação política, internamente ao campo socialista, e, principalmente, externo
4
SARTI, I. Da outra margem do rio- Os partidos políticos em busca da utopia, 2006: 20.
37
a ele, mas repercutindo de fora para dentro, de forte crítica ao que seria a ausência
ou forte limitação de direitos democráticos nos regimes socialistas.
Um novo debate ganha ímpeto e os países socialistas são duramente
criticados e questionados a partir de um ponto de vista em que são comparados
com o ambiente de liberdade sob o paradigma de uma conformação estatal liberal-
democrática.
Bobbio é um dos principais críticos do sistema soviético e do que seria a
ditadura do proletariado. Na célebre polêmica que uniu Bobbio e teóricos do Partido
Socialista Italiano de um lado e Ingrao, Occhetto, Berlinguer e outros membros do
Partido Comunista Italiano, de outro, a questão da relação entre democracia e
socialismo foi posicionada não mais centrada na abordagem leninista, mas em
torno de outros modos de pensar o socialismo. Para Bobbio, a síntese entre
democracia e socialismo não havia sido confirmada pela história e, além de ser um
tema político propriamente dito, essa relação deveria ser vista, também, como
tema teórico:
Um tema teórico, porque, até hoje, a história não confirmou
e nem permitiu que se tornasse realidade qualquer síntese
prática de democracia e socialismo. Se tivesse de fazer uma
história sobre as ilusões de nosso tempo (penso que alguma
coisa parecida com o livro de Sorel sobre as ilusões do
progresso), me limitaria a representar duas dessas ilusões: a
ilusão socialista das democracias (mesmo as mais
avançadas) e a ilusão democrática do bolchevismo (ou do
leninismo) (...) Lenin nunca dissociou o socialismo da
democracia e sempre sustentou que a ditadura do
proletariado seria uma forma mais avançada de democracia.
5
Tratava-se de um debate que se ampliava em um campo político, teórico e
ideológico no qual a correlação de forças entre o bloco socialista e o bloco
capitalista começava a pender, cada vez mais, em favor do mundo capitalista,
devido a uma série de fatores de ordem econômica, científica e tecnológica, que
não é objetivo desse trabalho discutir.
Mas, por outro lado, significava as tentativas do chamado marxismo
ocidental de procurar alternativas políticas e programáticas, a partir de novas
5
BOBBIO, N. Por que democracia, 2001: 77.
38
reflexões teóricas, mas, fundamentalmente, a partir da verificação concreta de
realidades distintas do caminho soviético para o socialismo.
No terceiro mundo, esse fenômeno também podia ser verificado a partir do
final dos anos 1950 e início dos anos 1960, desde as teorizações e formulações
políticas que buscavam fundamentar os movimentos de luta anti-coloniais como na
Argélia e outros países até as diversas iniciativas guerrilheiras e de luta armada. Na
América Latina, a Revolução Cubana desencadeara um novo pensamento que
tentava romper o esquematismo do que seria a ortodoxia soviética.
Deve-se registrar a influência recíproca entre as experiências de governos
socialistas na América Latina, como o caso do governo da Unidade Popular, no
Chile, chefiado por Allende, e os debates sobre democracia e socialismo que
ocorriam na Europa e na América Latina.
6
Na defesa da relação positiva entre democracia e socialismo apresentavam-
se duas posições: a dos chamados eurocomunistas, que reunia as direções dos
principais partidos comunistas europeus, cujo pensamento repercutiu fortemente
no Brasil, tendo a frente os partidos comunistas italianos e espanhol; a outra linha
procurava se manter fiel aos princípios leninistas, em especial a defesa da ditadura
do proletariado, e sua expressão principal estava entre intelectuais ligados ao
Partido Comunista Francês.
Pietro Ingrao, dirigente do PCI e um dos mais importantes expoentes do
eurocomunismo, ao responder a Bobbio, fazia a crítica à democracia representativa
e defendia a possibilidade da sociedade chegar ao socialismo a partir do
desenvolvimento exponencial da democracia ainda nos marcos do estado burguês,
uma das teses mais polêmicas que agitaram os debates nos anos 1970 entre os
comunistas do mundo inteiro.
Nós comunistas trabalhamos por uma perspectiva de avanço
para o socialismo e gestão socialista que prevê não a
6
André Tosel registra a repercussão da tragédia do Chile, após o golpe de Pinochet que
derrubou Allende, na elaboração da estratégia do compromisso histórico, defendida pelo PCI
nos anos 1970. TOSEL, A. Hegemonia e pluralismo: a elaboração teórico-política do
marxismo italiano, 1979: 81.
39
liquidação, mas a defesa e o aperfeiçoamento dos institutos
representativos indicados na Constituição. Mas esta linha
política não ignora a crítica profunda que Marx e Lenin, e
num certo sentido Rousseau, fizeram à democracia
representativa, mais precisamente à liberal-democracia:
inclusive esta linha exige que se tenha plena consciência
desta crítica, parte desta crítica para formular a questão da
renovação e do desenvolvimento das instituições
representativas para transformá-las, para livrá-las do
anquilosamento e restituir-lhes um lugar na corrente da
história.
7
Na outra vertente, Balibar, durante os debates que envolveram o Partido
Comunista Francês na realização do seu XXII Congresso, postulava a validade
teórica do conceito de ditadura do proletariado, e não apenas como uma saída
histórica encontrada pelo leninismo para a constituição do poder revolucionário em
uma situação específica determinada pela luta de classes na Rússia, no segundo
decênio do século XX.
De acordo com Balibar, a questão democrática sob a ótica do marxismo,
continuava vinculada à revolução, ao surgimento do poder proletário que rompe,
ainda que não necessariamente de uma forma violenta, com o poder burguês. O
teórico francês entendia que o debate sobre a relação democracia e socialismo não
estava enfocado, fundamentalmente, como crítica a possível ausência de liberdades
democráticas nos países socialistas nos moldes como os países capitalistas às
definiam e, em certa medida, do modo como os eurocomunistas respondiam à
críticos como Bobbio, isto é, incorporando a crítica de ausência de democracia no
países do chamado socialismo real, mas, antes de tudo, na superioridade
democrática da ditadura do proletariado, como democracia para as amplas massas,
sobre a democracia burguesa:
Quando Lenin diz que a democracia proletária é infinitamente
mais real que qualquer democracia burguesa, seja qual for o
progresso e o avanço que esta represente a respeito às
formas abertas, brutais, da ditadura de classe burguesa (em
nossos dias, por exemplo, o fascismo) quer dizer que não
existe entre elas uma simples diferença de grau, a diferença
entre uma democracia estreita e limitada e uma democracia
7
INGRAO, P. Sobre a relação entre democracia e socialismo, 1980: 125.
40
ampla ou ampliada, mas sim uma diferença de natureza
(...).
8
*
Articulada à problemática da ditadura do proletariado colocava-se o debate
sobre as formas de transição do capitalismo ao socialismo, da mudança do estado
burguês para o estado operário: se pela chamada via democrática ou pela via
revolucionária. Os que defendiam a chamada via democrática diziam ser possível a
ampliação da democracia burguesa até sua transformação em democracia de
massas, ao mesmo tempo em que tentavam identificar a chamada via
revolucionária com a ditadura do proletariado e o regime soviético. Os que
defendiam a via revolucionária contra-atacavam identificando seus opositores com
o reformismo e a rendição aos valores da liberal-democracia.
Os anos 1980 consolidaram a nova correlação de forças no mundo com a
prevalência das políticas neoliberais por toda parte, acirradas com o fim da União
Soviética, a derrocada dos países do Leste Europeu, a queda do muro de Berlim.
Esta nova conjuntura internacional criada a partir daí fixou a hegemonia das formas
liberais do estado democrático e, em larga medida, alijaram o marxismo dos
debates sobre democracia, liberdades e direitos democráticos. Guimarães constata
esse afastamento a partir dessas variáveis, mas avalia a importância do marxismo
reentrar no debate contemporâneo sobre democracia e enumera três pontos que
devem ser superados para que isso possa se dar satisfatoriamente:
Este esforço para reposicionar o marxismo no debate
contemporâneo sobre a democracia, sempre trilhando esse
duplo processo crítico e autocrítico, passa a nosso ver por
três desafios: 1) superar a interdição liberal que pesa sobre o
marxismo acerca da incompatibilidade de fundamentos com
a democracia, isto é, demonstrar a possibilidade de
convivência entre marxismo e democracia; 2) demonstrar a
centralidade do marxismo para refundar um campo analítico-
normativo do marxismo que projete a superação dos
impasses contemporâneos da democracia; 3) inverter, em
8
BALIBAR, E. Sobre a ditadura do proletariado, s/d: 104.
* Cuando Lenin dice que la democracia proletária es infinitamente más real que qualquier
democracia burgusa, sea qual sea el progresso e el adelanto que ésta represente respecto a
las formas abiertas, brutales, de la ditadura de classe burguesa (em nuestros dias, por
exemplo, el fascismo), quiere decir que no hay entre ellas uma simple diferencia de grado, la
diferencia entre uma democracia estrecha y limitada y uma democracia amplia e ampliada,
sino uma diferencia de natureza (...).
41
conseqüência, a afirmação de Norberto Bobbio de que há
uma relação de necessidade entre liberalismo e democracia,
demonstrando os fundamentos da dominação que presidem
esta visão de mundo.
9
Em síntese, é possível dizer que democracia e marxismo, e podemos dizer o
mesmo no tocante à relação entre socialismo e democracia, possuem um vínculo
indissociável, mas que não se comporta de forma retilínea ao longo da história do
próprio marxismo, ao contrário, é um debate e uma problemática que atravessa
importantes transformações.
Para Marx e Engels a questão da democracia, assim com a questão da
constituição da república está associada à revolução e ao poder que se instaura
com a vitória revolucionária. Lenin analisa a revolução democrática de 1905, de
natureza burguesa, mas aponta a importância do proletariado estar na direção da
revolução para que as conquistas democráticas possam ser as mais avançadas.
Posteriormente, já no período da Revolução de 1917, avança no conceito de
ditadura do proletariado como a verdadeira democracia, a democracia no
socialismo.
Ao longo do século XX, em especial no período posterior a Stálin, o debate
se volta para a verificação e a crítica do que seria a ausência de democracia nos
países socialistas e sobre a compatibilidade entre democracia, comunismo e
socialismo. Finalmente, os tempos neoliberais praticamente alijam o marxismo do
debate democrático.
9
GUIMARÃES, J. Marxismo e democracia: um novo campo analítico-normativo para o século
XXI, 2006: 222.
II Parte
Capítulo 3
O debate sobre democracia, socialismo
e a resistência à ditadura militar
Podemos separar os debates em dois momentos distintos, ou duas fases. Mas,
embora a periodização seja uma ferramenta de uso constante na literatura
marxista-leninista, julgo pertinente registrar a observação de Lenin sobre tal
ferramenta ao tratar, exatamente dessa questão, no texto Sob uma falsa bandeira:
Aqui, naturalmente, com em qualquer lugar da natureza ou
da sociedade, as linhas divisórias são convencionais e
variáveis, relativas, não absolutas. Nós pegamos os mais
destacados e impressionantes eventos apenas
aproximadamente, como marcos dos movimentos
historicamente importantes.
1
O primeiro momento que tem início com o fim da perspectiva da luta armada
nas condições em que estava sendo travada, é um debate travado,
fundamentalmente entre organizações da esquerda revolucionária. Ele é o resultado
da autocrítica de organizações como o Movimento Revolucionário Oito de Outubro-
MR-8 e a Ação Popular Marxista Leninista-APML e outras que passam a colocar a
importância da luta pelas liberdades democráticas como eixo norteador do combate
à ditadura e pelo socialismo. Esse debate é travado, principalmente, com a
Organização de Combate Marxista Leninista Política Operária-PO e o Movimento
pela Emancipação do Proletariado-MEP, e tem repercussões no conjunto da
esquerda revolucionária e dos comunistas e na oposição como um todo.
1
Here, of course, as everywhere in Nature and society, the lines of division are conventional
and variable, relative, not absolute. We take the most outstanding and striking historical
events only approximately, as milestones in important historical movements. LENIN, V.
Under a false flag, 2007. (tradução minha). Aqui, naturalmente, com em qualquer lugar da
natureza ou da sociedade, as linhas divisórias são convencionais e variáveis, relativas, não
absolutas. Nós pegamos os mais destacados e impressionantes eventos apenas
aproximadamente, como marcos dos movimentos historicamente importantes. LENIN, V.
Under a false flag, 2007.
43
Este primeiro momento se caracteriza pela busca de afirmação do eixo
democrático em oposição a propostas que rejeitam a questão democrática.
O segundo momento do debate, ou segunda fase, parte de um quadro no
qual já é hegemônica a tática de luta pelas liberdades democráticas entre a
esquerda revolucionária, os comunistas como um todo e a oposição democrática
em geral. As posições que rejeitam a luta pelas liberdades democráticas são
derrotadas, isto é, não logram conquistar um número significativo de adeptos ou
então as organizações e militantes que as defendiam mudam de posição, ou mesmo
aceitam alguns aspectos da luta pelas liberdades democráticas e rejeitam outros.
O novo debate não será mais sobre a importância da luta pelas liberdades
democráticas em si, posição já amplamente majoritária na esquerda, mas, sim,
sobre os significados mais profundos e estratégicos da democracia, debate esse que
já estava presente anteriormente, mas que adquire novo significado com o avanço
em si da luta oposicionista, a intensificação da crise da ditadura e a contribuição
teórica de grupos de militantes vinculados ao Partido Comunista Brasileiro que
começam a retornar do exílio trazendo na bagagem as idéias então em voga nas
discussões na Europa.
O debate, neste segundo momento, é travado entre diversos interlocutores,
mas, neste trabalho, enfocarei aspectos dessa discussão como luta interna no PCB,
discussões entre o PCB e o MR-8, PCdoB, algumas organizações trotskystas e
grupos de esquerda que propõe a construção de um partido alternativo ao PMDB e
ao PTB (posteriormente o PDT) e que dará origem ao Partidos dos Trabalhadores.
Do militarismo à luta por liberdades democráticas
Os estudos sobre o período que compreende as iniciativas de luta armada no Brasil
após o golpe militar de 1964, dos quais são exemplos referenciais as obras de
Ridenti, Aarão Reis e Gorender
2
, procuram identificar esse período com a idéia de
que foi um momento especial, único, na história brasileira, no qual grupos e
2
Cito esses três autores, embora considere que Gorender trate o tema da luta armada de
um modo menos idealizado e subjetivista do que o observado nas exposições de Ridenti e
Aarão Reis.
44
organizações de estudantes, intelectuais, operários, militares, tentaram fazer a
revolução através do enfrentamento armado à ditadura. A ação das organizações
armadas é analisada como essa tentativa em si, pois se estavam lutando de armas
nas mãos aí deveria estar a idéia de se fazer a revolução, aí estava, na prática, a
realização da utopia revolucionária, uma vez definida teoricamente e efetivamente
levada à prática pelas organizações militaristas em uma tática de combate à
ditadura militar que colocava no centro a luta armada.
Aquele período transforma-se em um dos momentos de coroamento dos
sonhos de uma geração de brasileiros que propugnaram por uma revolução que
não aconteceu, e, por que não aconteceu, acaba por torna-se uma projeção e não
mais uma possibilidade real. Transforma-se em um fantasma, isto é, deixa de
existir como coisa vivente, concreta, ao mesmo tempo em que, como um fantasma,
se recusa a desaparecer, morrer de vez e completamente; e com suas várias faces
sai por aí assombrando os vivos e pregando sustos nos desavisados. Para Ridenti, a
utopia ou a idéia da revolução transformou-se nesse fantasma:
O “fantasma da revolução brasileira” tem várias faces, as
quais muitos não querem reconhecer, o que faz o fantasma
assombrar ainda mais: a face do projeto de revolução
democrática derrotado em 1964, da proposta comunista
putschista de 1935, a da guerra de guerrilhas em suas várias
vertentes entre 1968 e 1972 etc.
3
Era um momento de profundas transformações políticas, sociais,
comportamentais por todo o mundo, os anos 60, quando grandes debates teóricos,
ideológicos e doutrinários envolveram os partidos comunistas, as organizações e os
militantes de esquerda por toda a parte e só podia ser, portanto, este momento
único, um tempo revolucionário. E, encerrado o período, parecia encerrar-se,
também, a chama da revolução, uma vez que se tornou lugar comum a
exacerbação da importância que teve a experiência armada como paradigma da
disposição, vontade e do protagonismo de toda uma geração em alcançar a utopia
da revolução.
3
RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira, 1993: 22.
45
Uma linha de investigação que, de certo modo, encerra a perspectiva de luta
revolucionária com a derrota do militarismo, acaba por rebaixar a importância dos
outros períodos para a devida compreensão de uma parte significativa da história
dos comunistas brasileiros, das lutas sociais e democráticas no país, em particular a
do período imediatamente posterior à luta armada, que vai de 1973/1974 até o
início dos anos 80.
Os anos que se seguem à luta armada, no entanto, compreendem inúmeras
conquistas e feitos políticos concretos, que contaram com a participação decisiva,
quando não da direção efetiva da esquerda, sejam as organizações da esquerda
revolucionária, sejam os partidos comunistas tradicionais, o PCB e o PcdoB. Maria
Paula Araújo registra o papel dirigente desempenhado pela esquerda naqueles
anos, em especial a partir da adesão de parte das organizações marxista-leninistas
ao apoio do centro tático em torno da luta pelas liberdades democráticas; mesmo
considerando às inúmeras divergências existente elas sobre a maneira de encarar
essa palavra de ordem:
Apesar destas diferenças políticas no interior do bloco que se
formou, a articulação de partidos e organizações de esquerda
em torno da luta pelas liberdades democráticas permitiu que
essa esquerda se somasse e, em muitos casos liderasse, o
movimento civil contra a ditadura militar que começava a
ganhar expressão em meados da década de 1970.
4
Deve-se destacar, entre as muitas lutas do período, a conquista da anistia, o
fim da censura, a extinção do AI-5, o fim da proibição de novos partidos, a
reconstrução das entidades representativas dos trabalhadores, dos estudantes e
dos profissionais da classe média etc.
O período da luta armada muitas vezes é visto sob uma ótica que hiper
valoriza a sua especificidade política, além de ser apresentado envolto em uma
moldura que o isola do que vem imediatamente depois. Essa abordagem estreita
dificulta, em primeiro lugar, o entendimento de que a etapa que se segue a da luta
armada foi fundamental, do ponto de vista histórico, no processo de oposição,
denúncia e resistência à ditadura e, em segundo, que os dois períodos, o da luta
4
ARAÚJO, M. A luta democrática contra o regime militar na década de 1970, 2004: 166-167.
46
armada e aquele ao qual estamos identificando como depositário de um dos mais
importantes debates sobre democracia e socialismo em nosso país, são
apresentados como dois momentos que parecem desconectados entre si e não
guardando uma estreita relação de continuidade
Os inúmeros debates, discussões e, principalmente, as práticas, ações e
movimentos políticos que marcaram os anos que são objetos da pesquisa até o
momento em que começa efetivamente a chamada transição, não são percebidos
em suas verdadeiras dimensões política e teórico-política, em grande parte
superiores ao dos anos antecedentes. Os debates teóricos, abrangendo questões
doutrinárias, estratégicas, táticas e organizativas travados entre as organizações
marxista-leninistas, militantes, ativistas e intelectuais de esquerda, ainda
necessitam de uma avaliação mais detida e consistente para serem compreendidos
em toda a sua riqueza e não podem ser desconhecidos, negligenciados ou
subestimados como muitas vezes acontece. Do ponto de vista das posições
comunistas e revolucionárias, os tempos da guerrilha e dos feitos guerrilheiros são
apresentados de tal modo engrandecidos que as lutas políticas que acontecem a
seguir são minimizadas e apresentadas como coisas secundárias, diante do que foi
o enfrentamento em armas à ditadura.
No entanto, ao lado da observação das especificidades de cada um dos
períodos é necessário, também, o detalhamento das linhas de continuidade, de
ruptura e das transformações que são determinadas pela situação anterior, não
apenas em seus aspectos formais, mas procurando revelar a dinâmica concreta
existente entre os períodos.
Ao longo dos anos 60, a definição do caráter socialista da revolução
brasileira, que rompe com a visão pecebista de etapa nacional e democrática, e o
debate sobre a via pacífica ou a via armada cresce e desenvolve-se entre os
comunistas e revolucionários em geral. Embora fazer a revolução, colocando-a na
ordem do dia da prática das organizações da ER e recuperar a iniciativa perdida
com o golpe de 1964, torne-se o centro das preocupações imediatas dos militantes
47
daquela época, o debate sobre estratégia e sobre tática ocupava um espaço
fundamental e nele o papel da luta por liberdades democráticas, pelo fim da
ditadura militar, por democracia e pelo socialismo.
Ao analisar a relação de ex-guerrilheiros com o seu passado militarista,
Aarão Reis registra os deslocamentos de sentidos históricos que teriam sido
promovidos pelos ativistas da Anistia para buscar legitimar uma posição política
posterior desses guerrilheiros na sociedade como participantes da resistência
democrática à ditadura. Reis defende que, na época, a luta democrática não estava
em primeiro plano para as esquerdas armadas, mas, sim, a luta pela revolução:
Um primeiro deslocamento de sentido, promovido pelos
partidários da Anistia, apresentou as esquerdas
revolucionárias como parte integrante da resistência
democrática, uma espécie de braço armado dessa
resistência. Apagou-se, assim, a perspectiva ofensiva,
revolucionária, que havia moldado aquelas esquerdas. E o
fato de que elas não eram de modo algum apaixonadas pela
democracia, francamente desprezada em seus textos.
5
Ridenti debate com Aarão Reis sobre a mistificação da luta armada, se ela
deve ser considerada como resistência e se a resistência pode ser chamada de
resistência democrática. Não é meu propósito aqui o aprofundamento do debate
sobre tal mistificação, mas, sim, extrair da discussão as visões que dizem respeito
à controvérsia sobre os vínculos da esquerda revolucionária com as idéias
democráticas e o conteúdo dessas idéias.
Em um ponto que julgo polêmico os autores parecem concordar: o de que as
esquerdas não eram democráticas nos 60
6
e que essa preocupação só começaria a
ocorrer em meados dos anos 70. De fato, um dos aspectos mais importantes
ocorridos entre os comunistas brasileiros nos anos 70, talvez o mais importante,
seja justamente o debate sobre democracia, o papel desempenhado pela classe
operária e o povo na luta democrática e a sua relação com o socialismo, articulado
às definições táticas do combate pelo fim da ditadura. No entanto, as discussões
5
REIS, D. Ditadura militar, esquerdas e sociedade, 2005: 70.
6
RIDENTI, M. Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas
para os pesquisadores, 2004: 63.
48
sobre a importância das lutas democráticas e as lutas de massas não era estranha
às organizações dedicadas ao combate armado.
Reis parece avaliar como secundária ou mesmo inexistente, no período da
luta armada, essas discussões, o que acaba por reforçar uma visão de democracia
que a identifica unicamente como expressão de democracia burguesa. A pesquisa
documental demonstra que o conceito de democracia entre as organizações da ER,
no período da luta armada, não se restringia unicamente às visões que seriam
herdadas do reformismo com seu etapismo, que preconizava primeiramente a
etapa democrático-burguesa, ou seja, um ponto de vista político que previa a
ampliação das liberdades democráticas no âmbito de um necessário estado burguês
antes da etapa socialista. Algumas organizações e grupos de militantes já
caminhavam no sentido de uma maior compreensão da importância da luta
democrática e da relação socialismo e democracia, o que, contudo, e é importante
deixar claro, só alcançaria verdadeira maturidade a partir de 1974.
Mas, na discussão sobre a mistificação da resistência armada à ditadura,
Ridenti, embora considerando que as esquerdas armadas fizeram parte da chamada
resistência à ditadura, diferentemente de Aarão Reis, avalia que não se deve
justapor o adjetivo democrática ao substantivo resistência, para que se evite
enveredar pela discussão intrincada do que seria democracia
7
:
Enfim, para evitar a confusão e a mistificação, parece mais
adequado usar apenas o substantivo resistência, sem o
adjetivo democrática, para caracterizar a luta das esquerdas
em armas contra a ditadura – desde que essa discussão não
se torne apenas nominal.
8
Ao contrário de Ridenti, penso que devemos enveredar por essa intricada
discussão, não apenas no período onde, efetivamente e principalmente, esse
debate ocupou o proscênio, a partir de 1974, mas, também, durante a luta armada.
Resgatar e recuperar as múltiplas visões de democracia, tão debatidas nos
anos 60, 70 e 80 é uma tarefa da pesquisa histórica e da ciência política. Idéias
7
Idem: 59
8
Idem.Ibidem.
49
como democracia popular, democracia de massas, democracia proletária,
discussões que ocuparam grande parte das preocupações da esquerda mundial, não
estão esgotadas, nem anacrônicas, ao contrário, constituem um campo específico
de reflexão que deve ser retomada. A questão democrática no geral, e não apenas
o debate e a reflexão dos aspectos institucionais e técnicos do modelo liberal-
burguês vitorioso em boa parte do planeta, continua na ordem do dia em muitos
países, em particular, no contexto da América Latina.
Deve-se ressaltar, todavia, que do mesmo modo como Ridenti critica o
deslocamento histórico - realizado posteriormente -, isto é, o aspecto mistificador
de se considerar que, no final das contas, o objetivo das esquerdas armadas seria o
retorno à democracia da forma como existe atualmente, deve-ser criticar os que
consideram que o objetivo da esquerda revolucionária, após a luta armada,
também seria a redemocratização ou a democracia conforme existente hoje no
Brasil.
A proposição político-teórica fundamental da esquerda revolucionária, a
partir de 1974, apresentava uma estratégia socialista, e o fim da ditadura deveria
coincidir do fim da dominação capitalista e burguesa no país. O correto raciocínio
aplicado por Ridenti em relação aos anos de luta guerrilheira, serve, igualmente,
para o período posterior de luta democrática:
O aspecto mistificador consiste na omissão de que as
esquerdas armadas nunca propuseram um mero retorno à
democracia nos moldes do pré-1964. tampouco algo que
prefigurasse a institucionalidade que viria a se constituir no
Brasil depois do final da ditadura. Essa ideologia tende
tacitamente a reduzir a luta pela revolução nos anos 60/70 a
uma fase preparatória para a democracia brasileira tal qual
está hoje estabelecida, legitimando assim o passado de
muitos ex-guerrilheiros.
9
Recuperar, portanto, o rico debate ocorrido entre as inúmeras organizações
a partir de 1973/1974 demonstrará que também nesses anos debatia-se e lutava-
se desde uma perspectiva revolucionária, e que as discussões de natureza
9
Idem: 58.
50
democrática que envolveu a todos só adquirem o seu verdadeiro sentido quando
articuladas e solidamente ligadas a essa perspectiva.
Origens de um debate
É possível perceber os sinais de mudança da perspectiva armada para a luta de
massas e democrática sob uma estratégia revolucionária já em 1971, a partir da
divulgação de alguns documentos de análises e propostas políticas das
organizações ou de tendências e grupos discordantes das direções, que se
formavam na época. Assim é, entre outros, com a constituição da Tendência
Leninista, que surge entre os militantes da ALN; com as críticas ao desvio
militarista por parte de militantes que, também, reivindicavam posições leninistas
na VPR
10
e com as Resoluções do Pleno dos militantes do MR-8, realizada em 1972,
conhecidas como Teses 72 ou Resoluções 72.
A Tendência Leninista da ALN, TL/ALN, criticava a teoria debraysta do foco
guerrilheiro não apenas do ponto de vista de uma concepção técnica equivocada de
luta armada, mas, acima de tudo, por sua visão artificial de revolução que não
levava em conta que, para o seu sucesso, era necessária a ampla mobilização do
proletariado, que só através da intervenção das massas trabalhadoras e populares
seria possível desenvolver o processo da revolução.
A estratégia da Tendência Leninista seguia a idéia original da ALN e do
próprio PCB, do qual era dissidente, de revolução nacional-libertadora e
democrática.
11
Desse modo, as bandeiras democráticas e a conquista de um regime
de caráter democrático estavam no centro da estratégia e da tática de sua
proposta.
É importante ressaltar o caráter democrático do programa de
nossa revolução, tendo em vista a sistemática repressão que
a ditadura militar exerce não somente sobre as forças
10
MORAES, J. VPR: os leninistas e os outros, 2003: 227.
11
SANTOS, J. Uma autocrítica necessária (para discussão), 2006: 297.
51
motrizes da revolução, mas também sobre os políticos da
burguesia que levantam teses progressistas, sobre os setores
intelectualizados da classe média urbana e também sobre os
setores avançados da Igreja Católica.
12
Do ponto de vista teórico mais geral, o que diferenciava fundamentalmente
a TL/ALN do PCB era a definição não apenas nominal do papel hegemônico que
caberia à classe operária na revolução, mas, sim, a partir da direção de classe na
prática concreta no movimento de massas e nas lutas sociais. A luta armada não
estava descartada nesse horizonte político, mas levava em conta a necessidade de
organização de um Exército Revolucionário do Povo, isto é, o rompimento e a
superação do desvio foquista e sua realização de ações armadas que teriam por
base um amplo apoio da classe operária e do movimento de massas.
A TL/ALN propunha um programa unitário dirigido a todas as forças que
políticas e sociais interessadas no fim da ditadura e na instalação de um novo
poder, democrático e revolucionário. Ao lado de proposições nacionalistas e
antiimperialistas, já constavam as propostas de convocação de uma Assembléia
Constituinte, liberdade de organização partidária e amplos direitos democráticos.
13
O MR-8 desde o seu surgimento, ainda como dissidência do PCB
14
, apesar
de sua adesão ao militarismo, sempre manteve um vínculo estreito com o
movimento de massas e foi uma das principais organizações a liderar as
movimentações estudantis e operárias em 1968. Embora sendo uma dissidência do
PCB, assim como a ALN e o PCBR, seu rompimento com o Partido Comunista deu-
se, também, na visão dualista da revolução brasileira que, de certo modo, as outras
duas organizações mantiveram. O MR-8 procura desenvolver uma teoria e um
programa socialistas para a Revolução Brasileira e se aproxima das posições que a
Polop defendia, principalmente a partir da publicação, em 1967, do Programa
Socialista para a Revolução Brasileira.
12
Idem: 299-300.
13
Idem: 301.
14
Uma breve história da organização pode ser vista em GORENDER, J. Combate nas trevas,
2006; ou em RIDENTI, M. O fantasma da revolução, 1993.
52
Em 1972, já na fase final do período militarista, o MR-8 realiza um pleno de
seus militantes no qual, mesmo sem romper naquele momento com o militarismo
ainda corrente, assinala em sua análise do quadro político conjuntural e, também,
em relação a uma perspectiva mais ampla sobre o caráter da ditadura militar, a
importância de uma tática de combate à ditadura que tivesse como centro político a
luta pela conquista das liberdades democráticas.
Contudo, enquanto a TL/ALN deixava claro que o fim da ditadura abriria no
país a etapa democrático-burguesa, ainda que sob a hegemonia social e política da
classe operária, o MR-8 defendia que o embate contra a ditadura poderia avançar
para uma luta pelo fim da própria dominação burguesa no Brasil, embora naquele
momento, 1972, o proletariado ainda não possuísse nível de consciência e
organização que pudesse fazer valer sua posição de classe na formação social
brasileira, nem reunisse condições políticas para alterar, significativamente, a
correlação de forças em seu favor.
Nas Resoluções de 72, portanto, o MR-8 já defendia, uma tática de combate
à ditadura centrada na luta democrática como aquela capaz de agrupar um amplo
campo oposicionista, uma vez que o proletariado naquele momento não tinha
forças para abrir uma luta direta pelo poder:
Nesse sentido, o centro tático político geral capaz de
expressar os objetivos táticos para o momento coloca-se nas
lutas democráticas, anti-ditadura e antiimperialista (...) O
centro tático anti-ditadura e antiimperialista materializa-se
num programa tático onde se inscrevem as lutas pela
liberdade de organização e de expressão, pelo direito de
greve, pela aplicação e ampliação da legislação trabalhista no
campo, pela terra, contra o arrocho, contra o AI-5, contra a
repressão policial militar e outras.
15
Tratava-se de um programa oposicionista que destacava a importância-
chave de se propugnar por bandeiras democráticas em um momento no qual a
esquerda revolucionária ainda não empreendera, de modo amplo e profundo, a
autocrítica do militarismo e do revolucionarismo pequeno-burguês; até porque os
anos de 1972, 1973 e 1974 são marcados muito mais pela derrota, massacre
15
TERRA, D. Contra o doutrinarismo e o economicismo – Por uma tática proletária de
combate à ditadura, 1975: 24.
53
político, recuo organizativo, prisões e exílio do que por polêmicas ou por um debate
ideológico, político e doutrinário. Esse debate ganhará ímpeto e sua verdadeira
importância a partir de 1974, quando uma nova conjuntura política e econômica
começa a se constituir no país.
Mas, deve-se registrar que esses anos que muitas vezes parecem de pouco
significado, diante da intensidade e do desprendimento heróico do período do
militarismo, embora marcados pela derrota e pela dispersão, foram, exatamente, o
tempo da autocrítica
16
e da busca por novas formas políticas e organizativas
capazes de reagrupar a esquerda revolucionária para o decisivo período que se
seguiu.
É importante, também, ressaltar que a reflexão sobre estratégica e tática
dos marxista-leninistas no tocante ao papel das lutas democráticas ainda no
período do militarismo, e elas, naturalmente, não se esgotam nas discussões
verificadas nas organizações citadas acima, revela a permanência dessa
problemática ao longo da história dos comunistas brasileiros, e que ganha novos
contornos entre a esquerda revolucionária surgida nos anos 60.
E sobre a nova conjuntura que se abre a partir de 1974 é importante que
tracemos, ainda que em linhas gerais, as suas mais destacadas características.
A análise de conjuntura da esquerda revolucionária
sobre o governo Geisel (1974-1978)
Para além da descrição de fatos, acontecimentos e movimentações políticas,
econômicas e sociais, recuperar os aspectos mais significativos e relevantes da
nova conjuntura brasileira que se conforma com o início do governo Geisel não é
tarefa das mais simples, embora o período tenha sido relativamente bem estudado
pelas ciências sociais brasileiras. Procuro descrever e traçar algumas das principais
16
O MR-8, por exemplo, faz a autocrítica do militarismo em 1973, durante uma reunião
realizada no Chile.
54
tendências explicativas sobre o período, mas, a intenção central dessa seção do
trabalho é expor, fundamentalmente, os pontos de vistas e as análises produzidas
pela esquerda revolucionária e pelos partidos comunistas tradicionais. Esse objetivo
se prende a idéia de que para propiciar a compreensão mais aprofundada possível
das posições táticas defendidas pelos marxista-leninistas e das discussões sobre
liberdades democráticas e democracia é preciso saber como essas correntes
políticas analisavam a conjuntura, isto é, de que modo interpretavam
acontecimentos, cenários, atores, relação de forças e a articulação entre as
dimensões estrutural e conjuntural
17
-como vinculavam à conjuntura as idéias e as
concepções que possuíam mais ligadas ao caráter estrutural do processo histórico
brasileiro -.
Do ponto de vista marxista, análise de conjuntura e proposição tática
articulam-se dialeticamente, constituindo um sistema de identidade, luta e
conexões recíprocas cujo objetivo é procurar dar respostas às questões de política
atual, na célebre frase de Lenin.
Antes de passar às análises de conjuntura da ER, no entanto, é importante
apresentar alguns pontos gerais sobre o período.
É comum a idéia de que o governo Médici foi aquele que, politicamente,
entrou para a história como ditadura aberta, escancarada, alcunhado de anos de
chumbo etc., e, do ponto de vista econômico, tornou-se reconhecido como o
governo do milagre econômico, por suas altas taxas crescimento. Já o governo
Geisel teria se caracterizado por promover a distensão e a abertura, ainda que
marcada por um ritmo definido pelo próprio ditador como lento, gradual e seguro;
teria sido, também, o governo da ditadura que pavimentou o caminho para o
retorno à democracia burguesa, decisão continuada por seu sucessor general
Figueiredo, embora, no nível econômico, Geisel tenha atravessado séria crise
resultante do esgotamento do milagre.
17
Utilizo nessa enumeração dos elementos básicos para uma análise de conjuntura uma
sugestão de metodologia oferecida por Herbert José de Souza em Como se faz análise de
conjuntura, 1984.
55
Geisel inicia seu mandato em 15 de março de 1974 propagando a idéia de
que realizaria a chamada distensão lenta, gradual e segura ou abertura, termos
que, então, começavam a ganhar espaço nos debates travados no Congresso
Nacional, na imprensa, na universidade e nos ambientes políticos em geral.
Naquele momento os militares e as classes sociais e frações de classes
burguesas que dirigiam o país viviam alguns dilemas que precisavam ser resolvidos
para manter sua coesão, garantir a unidade do bloco de poder e o projeto de
permanência do regime, mesmo que ao custo de algumas mudanças que, no
essencial, não lhe alterasse a estrutura e a forma de dominação exercida.
A economia não alcançava mais os índices espetaculares do período Médici e
cresciam as fissuras entre os grupos burgueses beneficiários do milagre, a unidade
de classe que garantira os anos de coesão já não funcionava do mesmo jeito. A
primeira crise do petróleo em 1973, ainda sob a ditadura Médici, vai se refletir,
principalmente, no ano seguinte e, associada à segunda crise do petróleo, a crise
do endividamento, aos problemas decorrentes com a balança de pagamentos e ao
aumento da inflação, mostrará os limites do modelo adotado pelos militares que, se
por um lado incentivava o setor estatal da economia como uma das principais
alavancas para o crescimento, por outro lado, privilegiava os monopólios e as
grandes empresas estrangeiras em um processo de aprofundamento da
dependência em relação aos capitais internacionais e ao endividamento externo.
A crise amplia dificuldades e começa a criar desequilíbrios nos interesses
econômicos constituídos no bloco do poder. Setores da grande burguesia que
detinham a hegemonia da economia e setores do médio empresariado, que antes
marchavam juntos no apoio ao regime, começavam a dar sinais de que poderiam
tomar caminhos diferentes. A burguesia no seu conjunto, mas, em especial, os
setores menos privilegiados pelo regime, vão reclamar maior influência nas
decisões de política economia e financeira, maior espaço público para intervir no
debate e propor alternativas, isto é, buscam formas e maneiras de extravasar
56
posições distintas e divergências sobre aspectos dos programas econômicos e
políticas de governo.
A grande burguesia brasileira associada ao capital internacional e as cúpulas
das empresas multinacionais instaladas no Brasil colocam na ordem do dia uma
crítica à forte estatização da economia, o chamado estatismo, ao mesmo tempo
em que reclamam por privatizações; vão falar em nome de um pretenso liberalismo
econômico – e mesmo político - e propor abertamente a diminuição da intervenção
do governo na economia. O II Plano Nacional de Desenvolvimento- II PND é a
resposta da ditadura, no campo econômico, para tentar reforçar a unidade com os
setores da grande burguesia nacional e da burguesia estrangeira instalada no país;
a chamada distensão, que na verdade é a tentativa de institucionalização da
ditadura, é a resposta no campo político as dificuldades de natureza econômica. O
próprio presidente Geisel, na longa entrevista concedida a Maria Celina D’Araújo e
Celso Castro, no livro Ernesto Geisel, fala sobre as condições existentes e os
conflitos que precisavam ser respondidos durante este período:
O desenvolvimento que o II PND pretendia alcançar era um
desenvolvimento integrado, não apenas econômico, mas
também social. Além do aumento da produção nacional,
nossa preocupação era, tanto quanto possível, assegurar o
pleno emprego, evitando o agravamento dos nossos graves
problemas sociais e promovendo melhorias na sua solução.
Por essa razão, considerada a principal entre muitas outras,
o Brasil deve sempre empenhar-se efetiva e prioritariamente
no seu desenvolvimento em todos os setores da atividade.
Contudo, não há no país capitais disponíveis. Existem ricos,
mas estão pouco dispostos a enfrentar esses problemas, e
assim há relativamente pouco dinheiro para promover o
desenvolvimento. Cabe então ao próprio governo, com os
meios de que pode dispor, inclusive o crédito externo,
assumir a tarefa. Passamos então a ser acusados, pelos
teóricos que nada produzem, de estatizantes!
18
A crise econômica que impõe a necessidade de se encontrar canais de ajuste
e de diálogo entre os setores hegemônicos da burguesia, os militares e a burocracia
do poder aparece, portanto, como uma das condicionantes fundamentais do projeto
de distensão e permite uma interpretação menos subjetiva das verdadeiras causas
que justificam e dão início a esse processo, muitas vezes centrado em fatores
18
D’ARAÚJO, M. e CASTRO, C. Ernesto Geisel, 1997: 290.
57
eminentemente de ordem política e vinculados a um plano prévio de
redemocratização e entrega do poder aos civis, que seria elaborado por Geisel,
Golbery e outros.
O fim do milagre inaugura o longo período de desgaste da ditadura e, a
partir daí, as disputas internas entre castelistas e a linha dura, os problemas
relacionados com as tentativas de controlar e limitar os poderes da chamada
comunidade de segurança, os atritos e conflitos com os inúmeros setores da
sociedade, como a Igreja e a imprensa e, acima de tudo, com os movimentos da
oposição popular e democrática que começavam a ganhar corpo, vão dar o tom e a
dinâmica do processo político e do período que entrou para a histórica com o nome
de abertura.
Pois bem, mas como as organizações das esquerdas revolucionária e
tradicional viam a conjuntura? Como a analisavam, como interpretavam as
movimentações políticas dos militares e das classes dominante? O que
consideravam sobre o movimento operário e popular? Quais eram as suas
concordâncias e as suas divergências?
Existem variados documentos e textos das organizações e partidos
comunistas editados no período com análises de conjuntura
19
relativas ao período
compreendido entre os anos de 1974 e 1978, que aqui estamos considerando uma
conjuntura específica e determinada, conforme sustentamos anteriormente.
Para nortear e referenciar a exposição e o confronto de idéias que faço a
seguir, escolho o texto Notas sobre a atual conjuntura, assinado pelo Comitê de
Redação da revista Brasil Socialista, publicado em janeiro de 1976, que apresenta
as posições que tinham em comum, naquele tempo, o MR-8 e da APML. Por ser um
texto de maior fôlego, avalia com bastante consistência a situação política
19
Podemos citar inúmeras análises publicadas na Revista Brasil Socialista, com posições do
MR-8, da APML e da PO; na Revista Marxismo Militante, da PO; na Revista Teoria e Prática,
do MEP; em várias declarações e documentos avulsos ou publicados no jornal Voz Operária,
do PCB, entre outros. Grande parte dessa documentação pode ser consultada no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ e em arquivos organizados no IFCS.
58
existente, ao mesmo tempo em que critica as posições de outros segmentos da
oposição, incluindo as correntes comunistas.
Em torno de Notas sobre a atual conjuntura, creio ser possível traçar um
painel das múltiplas visões conjunturais da esquerda, e também de algumas outras
correntes de pensamento, naqueles anos de ditadura.
A título de esclarecimento, julgo pertinente fazer, à guisa de um fichamento,
resumo do texto em questão, ainda que bastante sintético. Ele é composto de uma
pequena abertura e várias partes identificadas por subtítulos:
- Pequena abertura onde se caracteriza o período, justifica-se porque discutir a
conjuntura e são colocadas as questões que devem ser esclarecidas
- (subtítulo) A crise econômica, a filha do “milagre” – Nessa parte é analisado o
processo econômico aberto pela ditadura em 1964, em torno da hegemonia do
grande capital, de um novo modo de acumulação capitalista que exacerba a
superexploração do trabalhador, abre as portas ao capital estrangeiro e ao
endividamento externo aproveitando-se das condições internacionais favoráveis.
Mas, a crise do petróleo encerraria essa fase, o milagre econômico, e abriria uma
nova etapa, cuja tentativa de recuperação estaria no lançamento do II PND. A
seguir é feita uma longa apreciação dos resultados da implementação desse plano
econômico.
- (subtítulo) Contradições sociais decorrentes – São verificadas as repercussões da
crise econômica sobre as várias classes e frações de classes, o efeito e as
contradições geradas pelas políticas do governo Geisel.
- (subtítulo) O impasse da distensão – As movimentações dos segmentos
integrantes do bloco do poder, os projetos políticos dos grupos Geisel e Médici; e a
natureza, os objetivos e limites da distensão; os conflitos entre as facções do
poder; as posições das diversos setores da oposição diante do projeto de distensão,
são os pontos debatidos nessa seção do texto.
- (subtítulo) O movimento de massas – Aqui, o texto aborda o quadro em que se
encontra o movimento de massas em geral e nos seus vários níveis: os
59
movimentos operário, estudantil, do campo, das camadas médias (pequena-
burguesia) e outros. Verifica-se uma reanimação, mas o quadro ainda é de
resistência e tímida reorganização
- (Subtítulo) A esquerda – São descritas as posições táticas do PCB, do PcdoB e das
organizações da ER, com destaque à crítica à PO.
- (Subtítulo) – Conclusões
A seguir, passo a exposição e aos comentários dos pontos mais relevantes
das Notas e que caracterizam a visão da esquerda revolucionária.
Creio que o eixo geral das análises da ER parte de uma idéia em relação ao
golpe de 1964 que devemos considerar, a princípio, em um nível estrutural: o golpe
inicia um período de contra-revolução no país, ou seja, o golpe paralisa mudanças
em curso na estrutura econômica do país que apontaria para uma perspectiva
revolucionária. A contra-revolução se consolidaria em 1968/1969 com e edição do
AI-5, situação que perdurava no governo Geisel.
O entendimento de que se abre no país a contra-revolução tem como
corolário teórico a constatação de que proletariado e o povo sofrem uma derrota na
etapa vigente da luta de classes e que, mesmo diante dos sinais de reanimação
oposicionista que se verificava no governo Geisel, prevalecia a fraqueza conjuntural
diante da fração burguesa hegemônica, a grande burguesia financeira associada ao
imperialismo, e da forma de poder implantado para a sua dominação, a ditadura
militar.
Mas, a mesma ditadura que detém a força e o poder de iniciativa começa a
viver a crise econômica que repercute no plano político, e, por isso, precisa
encontrar formas de rearranjar o bloco do poder para seguir mantendo o seu
domínio. Além disso, Geisel precisava, também, controlar e reduzir a força da
chamada linha dura, o grupo de militares ligado ao ex-presidente Médici, alojados
no aparato de segurança e que dispunha de poderosos instrumentos no aparelho
de estado.
60
Na visão da esquerda revolucionária, o projeto de institucionalização era a
resposta de Geisel e dos círculos próximos a esses dilemas. Impedir que tal projeto
avançasse era fundamental para a ER, uma vez que o proletariado e o povo ainda
não reuniam as condições para o enfrentamento direto ao regime militar, a fase
ainda era de acumulação de forças. Sobre isso, dizia o texto das Notas:
Nesse sentido, a questão da institucionalização da ditadura
militar ainda é aquela que preside a arena política e
sobredetermina o conjunto das lutas atuais. É evidente que
para a classe operária não se trata de discutir as vias de
institucionalização propostas pela ditadura militar, nem de
sugerir novas vias. Trata-se, isso sim, de aproveitar todas as
brechas geradas pela atual situação, de modo a impulsionar
firmemente a luta pelas conquistas de plenas liberdades
democráticas, colocando de modo crescente a questão que
realmente lhe interessa: a da derruba da ditadura militar e
da liquidação de suas bases de sustentação.
20
A institucionalização era compreendida pela ER, portanto, como o processo
pretendido pelo governo Geisel de estabilizar uma forma de dominação que
reservaria um papel preponderante aos altos mandos militares, ao mesmo tempo
em que criaria alguns canais para o jogo político das diversas frações burguesas
que reclamavam maior participação nos centros decisórios. Em outras palavras, o
final do processo de institucionalização, do qual a distensão seria apenas o seu
início, não passava pela implantação de algum tipo de democracia liberal nos
moldes clássicos, isto é, um regime de liberdades democráticas formais; no
máximo constituiria um regime alcunhado pelo próprio Geisel como democracia
relativa.
O combate à institucionalização aparecia como o principal ponto da
resistência democrática, mas a ER combatia, também, a proposta de
redemocratização levada a cabo por setores da maioria moderada do MDB, por
segmentos liberais e democráticos da sociedade e por organizações como a OAB, a
ABI e outras. Naquele momento, no início de 1976, a idéia de redemocratização
reclamada por tais setores ainda parecia oscilar entre o retorno à Constituição de
1946 e a adesão a uma possível auto-transformação da ditadura, em direção a um
20
Comitê de Redação da revista Brasil Socialista. Notas sobre a atual conjuntura, 1976: 4.
61
regime que garantisse algumas liberdades e direitos políticos. O editorial
comentava, então:
O MDB visa aberturas políticas que lhe dêem condições de
representar em sua plenitude os interesses de um
desenvolvimento capitalista fundado na ampliação do
mercado interno de massa e na colocação de certos freios à
monopolização e à dominação imperialista. Mas, ele não pode
ameaçar o sistema. Jogando com a procuração popular, ele
deve negociá-la com a ditadura. Sua linha implícita e a da
utilização de sua base de apoio como fonte de
convencimento sobre os militares. Por isso mesmo, seu
momento ótimo foi aquele em que o êxito eleitoral
combinou-o com o empenho “distensório” de Geisel.
21
A ER vinculava o MDB, pelo menos sua maioria moderada, como
representante ideológico de parcelas da burguesia que estariam em oposição à
ditadura, mas em um nível que deixasse margem para uma composição política
com os militares, apesar do sucesso eleitoral alcançado pelo partido dois anos
antes, nas eleições de 1974.
Em relação ao movimento de massas, a ER assinalava um crescimento da
oposição e registrava o aumento das mobilizações em várias frentes operárias,
estudantis e comunitárias em geral, além da movimentação de entidades como a
CNBB, a OAB, sindicatos etc., mas considerava que a conjuntura era marcada
fundamentalmente por uma situação de resistência e de acúmulo de forças, em um
grau incipiente de organização e capacidade de luta. As Notas alertavam que não se
devia superestimar, nem alimentar ilusões com esses pequenos avanços:
Não há porque superestimar todos esses avanços,
pretendendo ver uma situação de ofensiva generalizada onde
existe apenas um processo de recomposição de forças
marcado por sucessivas idas e vindas, avanços e recuos em
cima de novos combates dentro dos quais o movimento
operário e popular vai recuperando a confiança no caminho
da luta, forjando lideranças e canais de expressão,
reconhecendo seus inimigos, etc. (...) Portanto, essa é uma
situação que deve ficar perfeitamente clara: trabalhamos
dentro de uma situação de reanimação e acúmulo de
forças.
22
Um longo caminho de resistência e de luta até o fim da ditadura era o que
avaliava a esquerda revolucionária.
21
Idem: 19
22
Idem: 20.
62
A percepção clara da existência de uma correlação de forças desfavorável e
a necessidade de denunciar e desmascarar os dois projetos que giravam em torno
do governo Geisel, a institucionalização e a redemocratização como forma de
deslocar do centro da oposição a maioria moderada do MDB, atrair a pequena-
burguesia democrática e mesmo parcelas da média burguesia, e, ao mesmo tempo
fazer avançar o movimento operário e popular para que ele pudesse ocupar uma
posição de liderança no combate à ditadura, são os pontos nevrálgicos da análise
de conjuntura da esquerda revolucionária:
Dentro desse quadro, a tática da esquerda revolucionária,
em linhas gerais, deve consistir em aprofundar o isolamento
da ditadura militar, impedindo sua institucionalização; em
desmascarar e deslocar do centro da oposição a média
burguesia, neutralizando sua posição moderada; em atrair a
pequena burguesia democrática, levando-a a ultrapassar sua
posições “redemocratizadoras”; em unir o conjunto das
massas trabalhadoras em torno da classe operária,
ampliando e organizando sua resistência na luta pelas
liberdades democráticas e em defesa de seu nível de vida,
fazendo-as convergir para a derrubada da ditadura militar e
a liquidação de suas bases de sustentação.
23
Julgo ser importante abrir um pequeno espaço de discussão para verificar
certos aspectos da análise de conjuntura da esquerda revolucionária quando
confrontados com interpretações e posicionamentos de alguns outros autores.
Se considerarmos que movimentações, ações e práticas políticas muitas
vezes decorrem das análises e das concepções que são subjacentes, que as forças
políticas intervém socialmente de acordo com o arsenal teórico, político e ideológico
que são inerentes, então será possível verificar, a partir dessas análises, a
influência concreta que a esquerda revolucionária possa ter exercido na condução e
na dinâmica do movimento de oposição à ditadura como um todo.
A esquerda revolucionária e o enfrentamento
ao projeto de institucionalização
23
Idem: 26.
63
Como vimos, a ER colocava como o principal na sua análise de conjuntura, em
1976, a derrota do processo de institucionalização
24
da ditadura, considerando que
ele representava a tentativa de organizar o regime e o estado brasileiro, em torno
de um novo consenso que garantisse a hegemonia do grande capital aliado ao
imperialismo sob o mando das cúpulas militares e com alguns canais de expressão
e manifestação – liberdades e direitos restritos – para os setores dominantes.
O jornalista e professor R.A. Amaral Vieira, em Crônica dos anos Geisel,
coletânea dos artigos que publicou ao longo dos anos 70, no Jornal do Commercio e
outros jornais dos Associados, assinala em muitos textos a posição dos empresários
em relação à abertura do governo Geisel que, em parte, corrobora a perspectiva da
esquerda revolucionária em relação ao processo de institucionalização. O artigo
Distensão, primeiro passo para a recuperação econômica, de 05/11/75, é um dos
quais a questão é explicitada:
Aos empresários é importante o clima de distensão,
exatamente para tornar viável o debate em torno da política
econômica. Não cabe mais questionar a autoridade do
desafio, nem argüir qualquer propósito de oposição ao
sistema. De fato, como poderiam os empresários intentar o
desfalecimento do regime, se o modelo econômico lhes tem
assegurado lucros, segurança paz social e garantia de
retorno dos investimentos, desconhecidos nos períodos de
turbulência que precipitaram o 31 de março?
Contrariamente, eles propugnam a manutenção dessas
regras, mas advertem que se sentem ameaçados pela
ausência de diálogo com os comandados da política
econômica. Daí a abertura que forçaria o diálogo perdido.
25
A ação política de setores da burguesia para ganhar espaço no
sentido de influenciar o núcleo decisório do regime militar pode ser considerada,
portanto, um dos impulsos iniciais mais importantes do processo de distensão, e
esse, por sua vez, representava um grande perigo, na visão da ER, porque poderia
levar a um desarme do movimento oposicionista que começava a se fortalecer e
acabar desaguando em um processo de legitimação da ditadura.
24
Embora seja possível analisar, também, a distensão como o início do processo de
institucionalização, creio que o mais correto é considerá-los como o mesmo processo,
nominados de forma diferente.
25
VIEIRA, A. A. Crônica dos anos Geisel, 1987: 362.
64
Vista de hoje, essa problemática pode parecer secundária e desnecessária,
mas na época significou um importante divisor de opiniões na apreciação dos traços
políticos distintivos do governo Geisel, do projeto de distensão e de qual a tática
correta para se enfrentar o regime.
Em Os partidos e as eleições no Brasil, coletânea de ensaios sobre as
eleições de 1974, em seu artigo intitulado Partidos e deputados em São Paulo (O
voto e a representação Política), Fernando Henrique Cardoso usa a expressão
democracia elitista ou democracia restrita para se referir ao que seria um tipo de
regime, ou de ordem democrática, do governo Geisel, que parece ser até hoje o
horizonte de opções que mesmo os mais liberais entre os detentores do poder
colocam como aspiração.
26
Para o autor, seria possível considerar, a partir da existência de um processo
eleitoral nos marcos da ditadura e de todas as implicações políticas e sociais
advindas desse fato, a existência de alguma forma de democracia, ainda que sob a
alcunha de “restrita”.
Bolívar Lamounier, no artigo Comportamento eleitoral em São Paulo:
passado e presente, do mesmo livro, segue na mesma linha explicativa de Cardoso,
de reconhecimento de uma situação de mudança determinada principalmente pela
vontade do governo. Lamounier sustentava que seria evidente que o governo
Geisel operava mudanças no processo político, porém muito mais em função do
governo perceber a necessidade de fazer as mudanças, do que submetido ao jogo
das inúmeras variáveis conjunturais da luta política em seus diversos níveis:
É evidente que o governo Geisel introduziu importantes
alterações no processo político brasileiro. Embora o processo
de distensão, além de gradual, esteja sujeito a idas e vindas,
pelo menos se deu início a uma etapa em que o
desenvolvimento das instituições políticas deixa de ser tabu e
passa a figurar entre as prioridades. O novo grupo dirigente
dá mostras de haver percebido que os sistemas puramente
26
CARDOSO, F. Partidos e deputados em São Paulo (O voto e a representação Política),
1978: 74
65
autoritários tendem a alimentar-se de suas próprias fantasias
e não demoram a pisar em falso.
27
Mesmo considerando as idas e vindas do processo de distensão, que não
seriam outra coisa que o desenrolar da luta oposicionista na sua dinâmica de
avanços e recuos, e mesmo reconhecendo uma mudança, ainda que muitíssimo
sensível, nas expectativas da população em relação ao regime, Lamounier parece
atribuir demasiada importância a uma certa subjetividade do governo que estaria
chegando à consciência de que era preciso alterar o regime para que ele deixasse
de ser puramente autoritário.
Em relação ao debate da institucionalização, Lamounier apresenta a idéia de
que esse processo se prendia mais a uma expansão, a uma descompressão geral
dos espaços de participação política na sociedade, do que a tentativa de
(re)construir a coesão dos setores dominantes para alcançar maior legitimação do
regime ditatorial e seguir com o mesmo modelo acrescido de mudanças
cosméticas
28
, conforme a interpretação da esquerda revolucionária.:
O que os cientistas políticos tem chamado de
institucionalização não é, afinal de contas, mera ficção
acadêmica, e tem como correlato fundamental uma contínua
expansão do sistema de participação política, através de
canais apropriados. Sem atribuir aos tais policy makers
virtudes de onisciência, parece provável que o acontecimento
eleitoral de novembro último (refere-se às eleições de 1974)
se inscreve num quadro de mudança política induzida,
prevista e desejada.
29
O enfrentamento que a esquerda revolucionária – e, também, o PCB
e o PcdoB – fez ao projeto de institucionalização ou de distensão, e mesmo em
relação à idéia de redemocratização da maneira como foi colocada inicialmente
pelos chamados moderados do MDB e por outros setores sociais, significou, na
prática, uma direção concreta que colocava na ordem do dia, de modo direto e sem
rodeios, a luta por liberdades democráticas e pelo fim da ditadura.
27
LAMOUNIER, B. Comportamento eleitoral em São Paulo: passado e presente, 1978: 43
28
A expressão é de Ulysses Guimarães.
29
Idem: 43
66
Mas, existe uma importante questão que se desdobra do debate sobre o
enfrentamento ao projeto de institucionalização: o papel desempenhado pelas
várias classes sociais nesse processo e a influência recíproca entre as chamadas
ações de cima – os conflitos no bloco do poder – a as ações de baixo – a
movimentação do movimento oposicionista.
A institucionalização pode ser considerada a tentativa do regime em
encontrar um novo arcabouço formal-legal para responder às necessidades de
acomodação do bloco dominante diante da crise do poder, e não o início de um
processo de abertura e concessão paulatina de direitos democráticos à sociedade.
Mas, ao caminhar por essa via, o regime necessariamente acaba abrindo as brechas
por onde o movimento de massas e de oposição intervém no sentido de paralisar as
ações ditatoriais, conquistar direitos ainda que parciais e, principalmente, derrotar
o próprio projeto de institucionalização e, aos poucos, impor o seu objetivo de pôr
fim da ditadura. Em outras palavras, a institucionalização necessariamente
acontece submetida à dinâmica global da luta de classes que ocorre na sociedade.
Embora as razões imediatas que lhe dão início possam estar concentradas nas
disputas e conflitos internos ao poder, é a participação das massas o fator
determinante do processo.
Muitos aspectos da análise que Nicos Poulantzas faz da crise das ditaduras
de Portugal, Espanha e Grécia, podem ser identificados, também, na crise da
ditadura brasileira e no papel jogado pelas massas. Ele verifica a relação do papel
das massas na eclosão da crise e na posterior derrubada dos regimes:
(...) o papel das massas populares não foi somente o de
determinar as contradições internas que contribuíram
diretamente para a derrubada dos regimes de ditadura. Foi
um duplo papel. De fato, as contradições internas marcaram
certamente o começo decisivo, mas o começo do que foi um
real “processo” de democratização durante o qual, tanto na
Grécia como em Portugal, as massas populares participaram
através de lutas obstinadas (...) Ou seja, as contradições
internas desses regimes – que são efeitos das próprias lutas
das massas populares – parecem ter igualmente funcionado
67
como a ocasião que permitiu a intervenção direta dessas
massas, uma vez desencadeado o processo.
30
Nesse sentido, podemos, por analogia, considerar que, no Brasil, as massas
jogaram papel decisivo, também, na eclosão da crise da ditadura – que
aparentemente, pareceria restrita a conflitos internos – e que, a intervenção das
massas acaba por invadir as brechas abertas por esses conflitos, transformando
completamente o que seria o projeto inicial dos militares.
Em a Utopia Fragmentada – As novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 70, Araújo também aponta a relação entre essas duas dimensões:
O projeto de distensão política teria sido, portanto, idealizado
no interior do governo, em resposta a questões e conflitos
internos (em especial ao choque entre duros e moderados);
mas, no processo político concreto da abertura, a sociedade
(através de organizações da sociedade civil e de mobilizações
de massa) teria interferido decisivamente.
31
Werneck Vianna defende essa interpretação da dupla determinação, por
cima, a partir dos conflitos internos entre as frações militares e civis no poder, por
baixo, o movimento de massas democrático e popular impondo, aos poucos, um
novo ritmo e ocupando, cada vez mais, um espaço decisivo na conjuntura.
Sustento que a proposta de distensão não pode ser considerada como o
início de um projeto dos militares cuja conclusão seria a redemocratização ou a
implantação de um governo democrático, com o retorno dos civis ao poder, dando
a entender que, desde o início, isto é, desde o golpe de 1º de abril de 1964, havia a
intenção de defender e restaurar democracia, livrando o país do caos. Embora sem
uma articulação acabada e, a priori, sem a definição clara de um programa e de
uma estratégia para o país, o que foi sendo construído em um processo
contraditório, por um lado, mas orientado por uma finalidade, por outro, os
militares e as classes e frações de classes para a qual governavam, procuraram,
através da ocupação do estado e com o uso dos meios da repressão e de controles
30
POULANTZAS, N. A crise das ditaduras – Portugal, Grécia, Espanha, 1976: 62-63.
31
ARAÚJO, M. Utopia Fragmentada – As novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de
70, 2000: 117.
68
sociais, institucionalizar o seu novo poder, isto é, reorganizar, moldar e adaptar as
instituições em função e em benefício dos seus interesses, privilégios e objetivos.
Nas entrevistas que realizou com Geisel e Golbery, Alfred Stepan procura
determinar as razões que conduziram os dois generais ao processo de abertura, e
mostra, também, a intenção de permanência no poder e de construção –
institucionalização – de um novo tipo de poder. Stepan lista cinco temas que teriam
emergido de suas entrevistas com Geisel sobre a relação do presidente com o
processo de abertura. No que seria o quinto tema, o autor registra:
Em quinto lugar, quando tentei analisar seus objetivos a
longo prazo quando desencadeara a distensão, deu um de
seus raros sorrisos, como se a própria pergunta tivesse
intuitos dissimulados. Ele me perguntou “Qual o primeiro
princípio de Maquiavel? Que os governos devem lutar para
manter o poder. Pessoalmente não disse que queria manter o
poder para sempre, mas nenhum governo diz a seus aliados
que quer entregar o poder para a oposição”.
32
Stepan avança em sua interpretação e coteja a entrevista de Geisel com as
entrevistas que fizera com Golbery para buscar a compreensão sobre a real
intenção que eles teriam com a abertura:
Apesar de minhas entrevistas com Geisel e Golbery eu ainda
não estou certo a respeito da visão da polis brasileira ideal
que eles tinham. Nenhum dos dois disse explicitamente que
almejavam uma democracia sem restrições. Entretanto, pelo
menos, numa perspectiva comparativa, pareciam ter alguma
coisa em comum com os conservadores politicamente
astutos da Inglaterra em 1832 ou da Espanha em meados de
1970 que tentaram manter e estabilizar seu poder
reconstituindo suas fundações. Parte desta reconstituição era
tornar os militares e o aparato de inteligência, instituições
hierárquicas e outra parte era abrir-se para a sociedade.
33
(os segundos grifos são meus)
Também Werneck Vianna verifica essa disposição dos militares em
permanecer no poder, em construir novas instituições para de alguma maneira
refundar o Estado nos moldes político-ideológicos que eles avaliavam mais
32
STEPAN, A. Os militares: da abertura à Nova República, 1986: 47
33
Idem: 47-48.
69
adequados ao país. Vianna qualifica essa disposição como um objetivo de perpetuar
a reprodução do regime.
34
Sustento a hipótese de que a esquerda revolucionária e os comunistas, a
partir de uma análise de conjuntura que foi capaz de definir e precisar com clareza
a necessidade premente de derrotar a proposta de institucionalização do regime e
da luta por liberdades democráticas, foram capazes, por intermédio de sua
atividade no movimento social e no MDB, de influenciar os setores mais
significativos da oposição em torno dessa proposição tática.
Assim, as concepções táticas defendidas pela esquerda marxista-leninista
tiveram influência decisiva na oposição democrática e popular no momento
fundamental de virada da conjuntura –primeiros anos do governo Geisel-, logrando
a coesão dos setores mais combativos do MDB - os autênticos e grupos próximos –
e dos movimentos sociais organizados. Quando a oposição assume a bandeira da
luta pelas liberdades democráticas como eixo tático de combate à ditadura, o
projeto de institucionalização começa a ser inviabilizado, perde o rumo e acaba não
tendo mais condições de se sustentar, abrindo caminho para o irreversível processo
que culminou com a fim da ditadura.
A esquerda revolucionária e a luta pelas liberdades democráticas
Mesmo correndo o risco de alguma imprecisão, é possível estabelecer-se uma
periodização da história da esquerda revolucionária onde podemos considerar o ano
de 1974 como aquele que assinala a retomada mais sistemática e organizada de
suas atividades, após a derrota do militarismo.
As polêmicas entre a PO -e grupos sobre a sua influência com- o MR-8 e a
APML, discussões essas que englobavam diferentes visões sobre a ditadura,
conjuntura, papel da vanguarda e dos partidos comunistas, concepções de luta
34
Citado por Maria Paula Nascimento Araújo. ARAÚJO, M. Utopia Fragmentada – As novas
esquerdas no Brasil e no mundo na década de 70, 2000: 117
70
política, econômica, sindical e que têm como fundamento a elaboração teórica da
estratégia mas, principalmente, a proposição tática para o enfrentamento concreto
à ditadura, ganha intensidade e vai se constituindo, de fato, ao longo dessa etapa
das lutas sociais brasileiras em um debate expressivo e consistente.
Essas organizações formam o núcleo principal da ER pós-luta armada e são
elas que, em conjunto, vão sustentar, entre os anos de 1974 e 1978, a luta política
contra o chamado reformismo do PCB e contra o populismo revolucionário do
PcdoB. E são elas que, entre si, travam o debate sobre a importância da tática
centrada na conquista das liberdades democráticas.
Esse debate que, avalio, ainda não foi apreciado pela ciência política em
toda a sua magnitude, deve ser considerado e qualificado nos moldes da tradição
marxista-leninista dos grandes debates travados entre as correntes comunistas, em
diferentes países e diferentes períodos, ao longo da história. Deve ser colocado
como luta teórico-política, relacionada diretamente à perspectiva de prática
militante e contornos claros, que expõe visões e posições divergentes de fundo
sobre o país, sobre os caminhos para se derrotar a ditadura e as alternativas de
poder após a sua queda.
Seguindo, portanto, a periodização sugerida, assinalamos as eleições de
1974 como um dos primeiros momentos em que a esquerda revolucionária e,
notadamente, as organizações que lideraram o processo de retomada política e
organizativa, PO, MR-8 e APML, testam, mesmo que de forma incipiente, a
aplicação de duas diferentes táticas: voto nulo ou voto participação.
O contexto político dessas organizações ainda é o de fraqueza orgânica e de
pequena inserção popular, mas, sem dúvida, o debate por elas travado a respeito
da definição de boicote -defesa do voto nulo- ou de voto em candidatos do MDB
expressa, em grande parte, uma dúvida real dos eleitores naquele momento
histórico do país. A polarização atinge as organizações da ER, militantes, ativistas
sociais e uma ampla camada da população que, de uma forma ou de outra, era
influenciada pela esquerda. O debate sobre o voto nulo ou não em 1974, do
71
mesmo modo que em 1976 e 1978, será um dos principais espaços de
aprofundamento das discussões em torno da tática de defesa das liberdades
democráticas na luta pelo fim da ditadura.
Para a esquerda revolucionária, que se constituiu e se afirmou desde o início
dos anos 60 na crítica às posições e práticas do PCB, incluindo aí a participação nos
processos eleitorais, a defesa do boicote às eleições organizadas pela ditadura era
quase que uma posição de princípio até 1974, quando as direções do MR-8 e da
APML decidem que é possível o apoio a certos candidatos que se mostrassem
verdadeiramente comprometidos com a classe operária e a derrubada da ditadura.
Já a PO, que não se origina de uma dissidência do PCB (caso do MR-8), nem tem
uma trajetória mais aberta tanto em nível teórico, como em relação às
possibilidades do movimento de massas (caso da APML), mantêm a proposta de
voto nulo coerente com sua visão de rejeição à tática de conquistas democráticas.
O que estava em jogo para as organizações era o papel que as eleições
poderiam cumprir para o aumento do nível de consciência política das massas,
como oportunidade de ampliar a denúncia contra a ditadura e na perspectiva de
transformar os mandatos em trincheiras de resistência, denúncia e estímulo às
lutas e a organização dos trabalhadores e do povo.
A APML deixava claro que o apoio não era ao MDB, já que esse fazia
oposição só até certo ponto, e desde que não atingisse diretamente a ditadura. O
MDB era considerado parte da farsa que a ditadura montara para tentar demonstrar
que existia democracia no país. O candidato apoiado deveria dar mostras de efetivo
compromisso com a classe operária, em denunciar a ditadura e suas práticas,
colocar-se ao lado das lutas e manifestações populares:
Trata-se aqui de entrar efetivamente na denúncia da
ditadura militar, no enfrentamento real de sua senha
repressiva e no desnudamento do papel de classe que
desempenha, ou seja, como garante a dominação burguesa,
como garante a superexploração dos trabalhadores, como
serve não somente ao imperialismo, mas também à
burguesia brasileira; de denunciar as manifestações
concretas de repressão aos trabalhadores, aos estudantes,
72
aos artistas e intelectuais; de denunciar os assassinatos
políticos, as torturas e os torturadores.
35
E nos locais e regiões onde não existissem candidatos com o perfil e as
condições necessárias, seria defendido o voto nulo:
Logicamente, onde não apoiamos ninguém (certamente será
o caso mais geral), a posição de voto nulo estaria justificada
inteiramente, podendo coexistir como o voto em branco.
36
O MR-8 defendia posição próxima a APML e sua fundamentação apoiava-se,
do mesmo modo que a APML, na teorização leninista sobre eleições e participação
nos parlamentos burgueses. No entanto, enquanto a APML conferia uma ênfase
maior no aspecto tático da participação eleitoral, o MR-8 relacionava a necessidade
dessa participação com o nível de consciência do proletariado e de sua crença na
instituição parlamentar, ou seja, enquanto existisse por parte do operariado a
ilusão com o parlamento, ele deveria ser denunciado e, ao mesmo tempo, utilizado
como espaço e tribuna política. No documento Contra o doutrinarismo e o
economicismo, por uma tática proletária de combate à ditadura, de 1975, Daniel
Terra, dirigente do MR-8, polemizava com a PO e defendia a importância da
participação e da intervenção da esquerda revolucionária no processo eleitoral a
partir dessa concepção:
Será que o quase poder nulo do Congresso será razão para
que não participemos das eleições burguesas? Se pensasse
assim Lenin não teria definido a participação na Duma
czarista, que possuía uma parcela de pode ainda mais
reduzida. Nossa decisão não é tomada em função do que é
objetivamente o Parlamento, mas pela representação
subjetiva que as massas tem dele.
37
Na polêmica, Daniel Terra combatia o que seria o imobilismo da PO que
avaliava não ser possível influir no resultado das eleições e que a participação
através do voto acabaria por confundir e criar mais ilusões ainda nas massas,
diante das propostas de institucionalização ou de redemocratização:
35
APML. Na denúncia da farsa eleitoral, ampliar a resistência à ditadura, 1975: 63.
36
Idem: 62.
37
TERRA, D. Contra o doutrinarismo e o economicismo, por uma tática proletária de combate
à ditadura, 1975: 30
73
Portanto, a verdadeira questão que se colocava era: Como
poderíamos, durante as eleições, melhor denunciar a
“institucionalização” e a “redemocratização” e divulgar
nossas perspectivas?! Duas alternativas existiam: através de
uma campanha clandestina – e necessariamente restrita ao
extremo, hoje – de voto nulo; ou, paralelamente ao trabalho
clandestino, trabalhar também ao nível legal, recomendando
criticamente o voto em alguns representantes
suficientemente avançados da burguesia democrática, e
propagandeando e divulgando nossas posições,
evidentemente de forma indireta.
38
O debate, portanto, articulava-se em dois níveis, evidentemente que
reciprocamente influenciados. Um nível teórico mais geral em que se discutia o
significado da democracia, as ilusões das massas nas instituições do estado
burguês como o parlamento, as diferenças entre democracia burguesa e
democracia proletária e a relação entre luta por liberdades democráticas, revolução
e socialismo; e um nível tático no qual se procurava fazer a intermediação entre a
teoria e um programa socialista de ordem geral e as necessidades da atividade
política concreta, isto é, como mobilizar e organizar as massas contra a ditadura e
a própria dominação burguesa.
No início de 1975, o campo político e ideológico constituído pelas
organizações e áreas de influência da ER ganha contornos mais nítidos e as
divergências se cristalizam entre dois pólos definidos. O MR-8 e a APML formam o
pólo que defende que o movimento de massas se organizará em torno das lutas de
resistência democrática e de defesa das condições de vida da classe operária e do
povo
39
; a PO e o MEP, dissidência da PO que se constitui como organização própria,
consideravam que adotar a palavra de ordem pelas liberdades democráticas como
principal significava o rebaixamento da agitação política, da estratégia e do próprio
programa político
40
ao nível da democracia pequeno-burguesa.
Democratistas x doutrinaristas
38
Idem: 31
39
TERRA, D. Socialismo e liberdades democráticas, 1977: 64
40
MELO, J. O programa revolucionário, o momento atual e o democratismo, 1976: 60.
74
Como indiquei anteriormente, a luta política entre as organizações que integravam
a ER tem raízes nas divergências entre elas cuja origem remonta ao início dos anos
60, quando são criadas a Polop e a AP, nas diferentes motivações que conduzem
aos inúmeros rachas que sofreu o PCB a partir do golpe militar, no debate sobre a
natureza da Revolução Brasileira, se democrático-burguesa ou socialista, na crítica
às práticas consideradas reformistas, ou seja, em um conjunto de questões
ideológicas, doutrinárias e políticas.
O ponto principal que unia e dava a identidade da esquerda revolucionária
era a defesa do caráter socialista da revolução brasileira, e essa compreensão era
considerada não só um avanço teórico em relação à interpretação clássica de
revolução em duas etapas, defendida pelo PCB e pelo PcdoB, mas significava,
também, a tentativa de superação do reformismo do PCB e do populismo
41
do
PcdoB; a materialização do compromisso verdadeiro com a revolução através da
construção de sua direção proletária.
A ER avaliava que o reformismo era o principal oponente que deveria ser
derrotado no conjunto da esquerda para que ela pudesse, de fato, assumir posições
conseqüentes a frente da classe operária e do movimento de massas. Mas, para
poder realizar esse objetivo, a ER avaliava ser necessário superar primeiro aquele
que era considerado o principal desvio de sua prática política: o doutrinarismo. No
documento Contra o doutrinarismo e o economicismo – Por uma tática proletária de
combate à ditadura, Daniel Terra define o que seria doutrinarismo:
O doutrinarismo despreza o fato de que a consciência política
das massas só se produz pela experiência concreta, e tenta
“substituir” essa experiência (que o dogmático jamais poderá
estimular e dirigir) pelo proselitismo da vanguarda as
massas.
42
41
O chamado populismo revolucionário do PcdoB, como era classificado o partido pela ER,
não se confunde com o populismo associado ao modelo dos governos Vargas e Jango, de
acordo com as teorizações de Weffort, Ianni e outros autores. Tratava-se de associar o
PcdoB às correntes políticas chamadas de populistas na Rússia czarista, que atribuíam um
papel revolucionário preponderante às massas camponesas.
42
Idem: 16.
75
Para o MR-8 e a APML, o processo de autocrítica promovido por suas
organizações não se esgotava no militarismo e no chamado revolucionarismo
pequeno-burguês, mas deveria ser estendido, também, às definições táticas
adotadas até então de um modo geral, aos desvios considerados esquerdistas que
desde o início acompanharam a ER e a aspectos relativos às práticas concretas
dessas organizações no movimento de massas. Realizar em profundidade a
autocrítica do doutrinarismo representava, portanto, a continuidade e o
aprofundamento de um longo processo de depuração de desvios políticos e
ideológicos, ao mesmo tempo em que marcava a afirmação e a disputa pela direção
por parte de uma corrente marxista-leninista, em seu conjunto, a ER, no campo da
esquerda como um todo. O MR-8 e a APML localizavam na PO, e também no MEP, a
expressão do doutrinarismo que procuravam combater:
Sem dúvida, desde que assumimos – ao lado de outras
Organizações como a APML – a luta contra o doutrinarismo,
este teve que recuar para posições cada vez mais
secundárias no conjunto da Esquerda. Mas é incorreto
acreditar que a luta teórica contra o doutrinarismo já está
esgotada. O doutrinarismo continua sendo o principal desvio
interno que impede a Tendência Proletária de assumir
conseqüentemente a lua contra seus principais oponentes no
seio da Esquerda, o reformismo e o populismo. Enquanto não
se depurar do doutrinarismo, a TP não conseguirá ser uma
alternativa conseqüente ao reformismo e ao populismo.
43
Daniel Terra explicita a visão do MR-8 do que seriam as intenções de fundo
da luta política entre as organizações da esquerda revolucionária, derrotar o
doutrinarismo para, desse modo, poder ser derrotado o oponente principal da ER no
conjunto da esquerda, o reformismo.
A superação do doutrinarismo estava diretamente ligada à questão tática,
uma vez que a tática era definida nos debates como a mediação, a concretização
dos preceitos estratégicos aplicados a uma determinada conjuntura, e aí se
colocava a defesa da luta pelas liberdades democráticas como centro tático da
resistência à ditadura e ao projeto de institucionalização do governo Geisel. As
organizações consideradas doutrinaristas, ao recusar essa tática, permaneceriam,
43
Idem: 65.
76
na prática, apenas no nível de promover a propaganda geral e abstrata de um
programa socialista, na maioria das vezes incapaz de ser compreendido pelas
massas no nível de consciência que então possuíam.
Desse modo, a definição de formas e de bandeiras de lutas que, de acordo
com o nível de consciência da classe operária e do povo, pudessem acumular forças
e fazer avançar o movimento de massas em oposição à ditadura e contra a
dominação burguesa/capitalista, traduziria a mediação necessária entre a
estratégia e a conjuntura, ou seja, a bandeira das liberdades democráticas como
eixo de luta e de unidade da oposição no combate ao regime militar.
Para a PO e para o MEP, o MR-8 e a APML incorriam em um desvio
democratista, estariam deixando de lado a estratégia socialista e, em relação ao
movimento anti-ditadura, o desvio democratista significava uma submissão política
às idéias e posturas da pequena-burguesia democrática. O erro político não era
apenas devido aos motivos conjunturais de definição de um possível programa
democrático de oposição, mas mostrava, também, que as duas organizações não
levavam em conta uma interpretação histórica que mostrava o fracasso da
democracia burguesa no Brasil, uma vez que a luta pelas liberdades democráticas,
na concepção da PO e do MEP, acabaria por conduzir, necessariamente, a
implantação de uma democracia de caráter burguês como conseqüência do fim da
ditadura, e não de um governo revolucionário que abrisse caminho ao socialismo.
Em uma análise de conjuntura e do quadro da esquerda
44
no país, publicada
na revista Brasil Socialista, em abril de 1975, a PO criticava o que seria o desvio
democratista de parte da esquerda revolucionária (MR-8 e APML), apontava que o
que seriam limitações políticas dessas organizações e atribuía e esse desvio e a
estas limitações muitas das dificuldades de se constituir no interior do movimento
operário e de massas uma alternativa proletária.
Um fenômeno contudo vem ocorrendo e enfraquecendo
potencialmente a viabilidade desta alternativa: grande parte
44
O documento intitula-se A conjuntura nacional e é datado de set/out de 1974, embora na
Brasil Socialista tenha sido publicado na edição de abril de 1975.
77
da esquerda revolucionária, e inclusive parte das forças que
aproximaram recentemente do programa socialista, embarca
agora no movimento pela redemocratização. Este lamentável
espetáculo revela, de um lado, a reafirmação das estratégias
claramente reformistas e populistas e, de outro, indica que
as forças que realmente evoluíram no sentido de posições
proletárias, apenas mantém os olhos voltados para os
horizontes proletários, enquanto continuam com os pés
presos no pântano pequeno-burguês. Este desvio tem que
ser combatido com a mesma violência como combatemos o
militarismo; estamos afinal diante do delineamento de mais
uma oportunidade histórica para fazer avançar o movimento
revolucionário, e que progressivamente se aproxima,
enquanto as forças revolucionárias se alinham junto ao
movimento pequeno-burguês pela redemocratização.
45
À crítica feita pelo APML e, principalmente, pelo MR-8 de que o
doutrinarismo era o principal desvio ao desenvolvimento da esquerda revolucionária
como alternativa ao reformismo e que os doutrinaristas limitavam-se ao
propagandismo de vagas idéias socialistas e não compreendiam a importância da
luta pelas liberdades democráticas, a PO opunha à crítica ao desvio democratista e
ao perigo de abandono da estratégia socialista.
O aspecto principal da crítica que a PO fazia aos democratistas era que a
plataforma democrática assumida por parte da esquerda revolucionária escondia o
caráter classista da ditadura, omitia o fato do regime ser uma forma de dominação
burguesa. Desse modo, lutar simplesmente pelo fim da ditadura sem explicitar o
seu caráter de classe, sem deixar claro que a ditadura militar era a ditadura aberta
e indireta da burguesia, seria agir de acordo com as idéias pequeno-burguesas de
redemocratização que acabavam por fortalecer a própria dominação burguesa. A
PO considerava ainda o equívoco de se lutar por liberdades democráticas e por um
programa fundamentalmente anti-ditadura, uma vez que a etapa atual da
revolução brasileira seria socialista e não democrático-burguesa:
Num país onde a revolução burguesa não está mais na
ordem do dia, onde a “revolução será socialista ou não será
revolução”, o proletariado só terá consciência de classe,
quando educado em torno de metas finais de sua luta,
45
PO. A conjuntura nacional, 1975: 65
78
quando oposto a todas as formas de ditadura burguesa,
também a democrática.
46
(aspas dos autores)
A concepção que a possuía de democracia associava-a diretamente a sua
forma liberal-burguesa, ao mesmo tempo em que defendia a idéia de que tal forma
de estado –a democracia liberal- demonstrara-se historicamente inviável no Brasil
como modo de poder político predominante de dominação da burguesia. A
conseqüência lógica desse raciocínio era considerar a ditadura o ponto de
confluência e unidade do bloco dominante: se constitui na única forma de poder
político capaz de conciliar suas contradições sem fazer perigar o sistema
de dominação.
47
(negrito do autor)
O MEP, por sua vez, concordava com a PO na essência da crítica feita ao que
seria o democratismo da APML e do MR-8, mas, por outro lado, procurava criticar o
doutrinarismo da própria PO, aspecto indefensável do seu comportamento político e
marca registrada da organização desde a sua fundação em 1961. O MEP procurava
se equilibrar em uma posição centrista no tocante ao forte debate travado entre o
MR-8 e a PO nos anos de 1974 e 1975.
José Carlos de Melo, dirigente do MEP, no documento O programa
revolucionário, o momento atual e o democratismo, define o que seria o
democratismo na visão da organização e critica, também, o doutrinarismo da PO:
Os democratistas (assim chamados porque lançam mão das
liberdades democráticas, da supressão do AI-5, na defesa
das eleições diretas e livres etc. como bandeiras de lutas
para o momento) e os doutrinaristas (que hoje consideram
ser impossível colocar o problema da ditadura na prática
política, porque só em outra conjuntura as massas vão
desejar a queda da ditadura e que em virtude disso passam
a defender uma bandeira de lutas mais ou menos
sindicalista, uma prática política baseada numa tática de
lutas ideológica contra o populismo) querem para o conjunto
da esquerda revolucionária discussões que giram em torno
de princípios com os quais, de certo modo, todos concordam
em torno do significado literário da palavra democracia, em
torno de jogos de palavras como por exemplo “quem não
46
PO. Resolução, 1975: 87. Esta resolução é uma carta enviada pela PO ao Comitê de
Redação, da revista Brasil Socialista - do qual também era integrante - onde critica
posicionamentos adotados da revista.
47
PO. Conjuntura e tática: 40. Citado por Daniel Terra, no documento Contra o
doutrinarismo e o economicismo, por uma tática proletária de combate à ditadura: 21.
79
defende a luta pela supressão do AI-5 é porque é a favor
dessa lei repressiva !” etc.
48
A organização considerava, assim como a PO, que colocar no centro do
trabalho político e de agitação bandeiras como o fim do AI-5, direito ao habbeas
corpus, fim da censura e liberdade de imprensa, eleições livres e diretas e outras
palavras de ordem democráticas, era conferir a esse programa uma motivação
estritamente conjuntural e não levar em conta às condições históricas do país. E
procurava esclarecer quais seriam essas limitações históricas da democracia
burguesa no país e porque não era aceitável uma tática cujo centro fosse a
conquista das liberdades democráticas:
Historicamente, as “liberdades democráticas” estão
identificadas com as liberdades burguesas e em nossa
revolução a liberdade política para as massas trabalhadoras
torna-se incompatível com a dominação burguesa, se de fato
lutarmos para que ela se efetive no plano político, abrindo-se
um período de transição.
49
Mas a crítica ao doutrinarismo proposta pelo MEP era um aspecto secundário
do debate e não articulava-se em profundidade com a problemática mais geral das
definições táticas, conforme faziam o MR-8 e a APML. A PO, inclusive, reforçava
suas teses nas discussões apoiando-se nas argumentações apresentadas pelo MEP
na revista Teoria e Prática, publicação oficial da organização. Em Marxismo
Militante, órgão oficial da PO, os argumentos convergem para o fortalecimento de
posicionamentos comuns no debate político:
(...) Teoria e Prática demonstra porque não interessa para
nós hoje defender liberdades democráticas em geral, mas
sim a mais completa liberdade de manifestação e
organização para os trabalhadores(...)
(...) Pois os democratistas embora não considerem que
estejamos em uma etapa da Revolução Burguesa, ainda
assim – e contraditoriamente - vão colocar a luta por
liberdades políticas numa “etapa conjuntural” de cunho
democrático, quer dizer, compatível com o liberalismo
burguês, procurando pontos comuns com os liberais
burgueses para alimentar a ilusão de já iniciar um combate
mais efetivo (quer dizer, mais ofensivo) à ditadura.
50
O ponto nevrálgico da divergência de fundo entre as organizações da
esquerda revolucionária naquela dada conjuntura brasileira estava exatamente na
compreensão que cada uma das vertentes possuía a respeito da relação entre
revolução, democracia e socialismo, uma vez que todas, pelos menos
48
MELO, J. O programa revolucionário, o momento atual e o democratismo, 1976: 3.
49
Iderm: 62.
50
PO. Marxismo Militante, 1977: 9.
80
nominalmente, defendiam a estratégia socialista para a revolução brasileira. A
definição da tática justa e adequada que permitisse a organização e a mobilização
as mais amplas possíveis -e sob a hegemonia da classe operária- de resistência à
ditadura militar estava amarrada a esse entendimento geral da questão. Por isso,
as discussões suscitadas em torno da luta, ou não, por liberdades democráticas
movimentava de uma maneira tão vigorosa as organizações e grupos da ER.
No entendimento da PO e do MEP, a teoria marxista informava que a
mobilização classista em torno de um programa democrático deveria estar
subordinada à determinadas condições históricas que marcassem claramente a
etapa da revolução como democrático-burguesa e, já que não era esse o caso da
realidade brasileira, qualquer tática que levasse em conta o eixo principal pelas
liberdades democráticas acabaria por submeter e conduzir a classe operária ao
encontro do liberalismo burguês.
Por isso, à acusação de desvio democratista somava-se, muitas vezes, a
acusação de retorno ao reformismo, que estaria sendo levado à prática, ainda que
de um modo incipiente e não assumido no nível teórico, evidentemente. A acusação
era dirigida principalmente aos militantes do MR-8, por ser este movimento, como
se sabe, originário de uma dissidência do PCB.
Capítulo 4
Mudanças conjunturais: uma nova etapa do debate entre os
comunistas sobre a democracia (1978-1980)
O fracasso da institucionalização
A partir de 1978, a conjuntura brasileira começa a se alterar de um modo que
podemos considerar irreversível em favor dos oposicionistas ao regime militar, com
a afirmação definitiva do movimento de massas democrático e popular e a entrada
na cena política nacional do movimento sindical e a realização das grandes greves
do ABC em 1978, 1979 e 1980.
Cabe esclarecer que essa mudança que identifico, no entanto, liga-se à linha
de análise que procura descrever a dinâmica da conjuntura de acordo com o modo
pelo qual as organizações e partidos marxista-leninistas a interpretavam, e não de
acordo com algum tipo de tendência teórico-analítica produzida posteriormente
pelos vários autores que estudaram o período.
Aarão Reis que verifica, também, as mudanças ocorridas na conjuntura e
propõe, inclusive, o ano de 1979 como o marco do que seria o encerramento da
ditadura em relação às suas manifestações repressivas mais acintosas. Seria o
início efetivo de uma nova etapa que poderia ser enquadrada como de transição. É
o momento quando, segundo o autor, deixou de existir o estado de exceção, com a
revogação dos Atos Institucionais, e foi aprovada a anistia, ensejando a volta do
exílio dos principais líderes das esquerdas brasileiras
1
. Para Aarão Reis, a partir
desses acontecimentos, a ditadura se transforma, vive um processo de alterações e
de extinção paulatina:
(...) redefinindo-se , transformando-se, transitando para uma
democracia sob formas híbridas, mudando de pele como um
camaleão muda de cores, em uma lenta metamorfose que
1
REIS, D. Ditadura militar, esquerdas e sociedade: 11.
82
até hoje desencadeia polêmicas a respeito de quando,
efetivamente, terminou.
2
Procuro destacar, de acordo com as leituras dos documentos da época, que
as organizações e partidos consideravam que, embora a conjuntura apresentasse
sinais de mudanças em razão do avanço do movimento oposicionista e do fracasso
do processo de institucionalização, e que uma sucessão de importantes conquistas
democráticas começassem de fato a se consolidar, o sistema de dominação
ditatorial continuava intacto e que um longo caminho ainda teria que ser
percorrido até o seu fim definitivo. O avançar do processo de transição não era uma
garantia de que o fim da ditadura seria alcançado.
O projeto de institucionalização do governo Geisel, pode-se dizer, não
consegue se impor enquanto alternativa capaz de coesionar os setores
descontentes da burguesia. O II PND embora impulsione alguns setores da
economia, não consegue desencadear um novo ciclo de expansão capitalista, antes
ao contrário, a crise econômica se aprofunda ampliando as áreas de conflito e
desgaste no interior bloco do poder. As fissuras e as brechas no aparato do pode
aumentam, o que contribui, ainda mais, para a luta pelo fim da ditadura militar e
para o avança do movimento oposicionista, que se aproveitam de cada novo espaço
conquistado para aprofundar a crise do regime.
O ano de 1978 assinala, também, a afirmação completa e, nesse momento,
já inquestionável, da consigna das liberdades democráticas como o eixo aglutinador
do conjunto da oposição. Os poucos grupos da esquerda revolucionária que ainda
resistem em assumir a luta democrática, reduzidos a alguns remanescentes da PO,
não conseguem mais exercer influência em qualquer setor significativo do
movimento operário, estudantil, comunirio, etc. Avalio que o fracasso e o
desmascaramento do projeto de institucionalização ou distensão são um dos mais
importantes traços dessa conjuntura de mudanças.
2
Idem, Ibdem.
83
O PCB, na Resolução Política de novembro de 1978, registra as crescentes
dificuldades da ditadura em manter vivo o seu projeto de institucionalização,
quando, inclusive, boa parte dos setores da burguesia que lhe davam sustentação
ou que, então, ainda mantinham esperanças na idéia de era possível o regime se
auto-reformar, já abandonam suas ilusões:
O descontentamento com a atual situação manifesta-se
não só entre as forças da oposição, incluindo o MDB, cujo
papel na luta contra a ditadura tem-se acentuado, mas
inclusive em setores até pouco tempo ligados ao regime ou
com ele comprometidos, formando um movimento difuso,
que abrange até elementos da ARENA. (...)
O regime tenta apresentar-se como “democratizante”,
mas já não consegue enganar nem mesmo a setores que até
há pouco acreditavam na sua “lenta, gradual e segura
distensão”. Todos os setores oposicionistas já denunciam “as
reformas”, substituição do A.I. no 5 por dispositivos como
“estado de sítio”, “estado de emergência” e medidas de
emergência”, sendo que estas últimas não têm limitação no
tempo e conservam os poderes ditatoriais (...)
3
O ano de 1978 assinala, portanto, além das grandes manifestações
operárias que tem início no ABC paulista, o avanço exponencial do movimento pela
Anistia, que será promulgada no ano seguinte no governo Figueiredo, ainda que
não alcançado a dimensão de uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, como
reivindicava o movimento democrático e popular, além de ver o fim do AI-5,
decretado no final daquele ano.
O MR-8, na resolução do seu II Congresso, realizado no final de 1979,
registra as mudanças verificadas na situação política do país a partir de 1978:
As grandes greves operárias de 1978 marcam o início de um
período de ascenso massivo do movimento popular em nosso
país. A polarização política principal em nosso país – que foi
claramente até então a existente entre a ditadura militar, de
um lado, e a oposição liberal burguesa, de outro – começa a
se deslocar para a contradição entre a ditadura militar, por
uma parte, e o movimento popular, por outro. (...) O ano de
1979 foi marcado por grandes batalhas no terreno político e
sindical através das quais o movimento operário e popular
cresceu aceleradamente.
4
3
PCB. Resolução Política (novembro de 1978), 1982: 235
4
MR-8. Resolução do 2
o
Congresso, 1980: 49
84
Também o MEP, que em 1978 mudara de posição abandonando a defesa do
voto nulo e apoiara candidatos do MDB -nas eleições daquele ano, embora
continuasse a não concordar com a defesa das liberdades democráticas como
centro tático contra a ditadura- constatava, do mesmo modo que o PCB e o MR-8,
as alterações no quadro político nacional:
Apesar da lei de greve da ditadura, os operários, os médicos,
os professores e outros vão realizando os movimentos
grevistas; apesar da máquina repressiva se manter em pé,
como também se mantém a legislação de combate à
atividade da esquerda, diversas correntes da esquerda vêm
manifestando seus pontos de vista na imprensa legal – a
imprensa alternativa; apesar da legislação partidária em
vigor, surge a Convergência Socialista, a Tendência Socialista
no MDB no Rio Grande do Sul, a Frente Popular Eleitoral no
Rio de Janeiro, a Frente Nacional pela Redemocratização... A
legislação e as instituições da ditadura não se alteraram, mas
vai se alterando a correlação de forças e esta, e não aquelas,
que possibilita e exige uma tática diferente uma nova tática
de intervenção na realidade política.
5
O novo quadro é captado em seus traços principais de maneira semelhantes
pelas organizações da ER e pelo PCB, apesar das muitas divergências existentes
entre as siglas, e caracteriza, de uma forma geral, o acerto das posições da
esquerda revolucionária e dos partidos comunistas históricos, PCB e PcdoB, em
colocar no centro da resistência à ditadura a mobilização contra o projeto de
institucionalização, em torno do eixo tático democrático e da denúncia aos aspectos
mais acintosamente indefensáveis do regime militar como a repressão, a tortura, a
censura e o cerceamento das liberdades democráticas.
Em grande parte, como assinalei anteriormente, julgo ser possível creditar,
a derrota do projeto de institucionalização ou distensão às posições da ER -e dos
partidos comunistas- e a capacidade que demonstraram de produzir uma análise
coerente e justa politicamente, em explicitá-la teórica e praticamente, em torná-la
um debate público, e, assim, conseguir atrair, ainda que em graus e níveis
diferentes, importantes setores do MDB, dos movimentos de massas, da imprensa
alternativa e de parcelas decisivas da oposição em geral.
5
MEP. Teoria e Prática, 1976: 12
85
Mas, a nova conjuntura que vai se formando no país supera as discussões
que até então polarizavam a ER e que já se mostravam resolvidas, uma vez que a
tática de denúncia do arbítrio ditatorial e a adoção da bandeira das liberdades
democráticas revelaram-se corretas e adequadas a uma realidade que se
transformava aceleradamente.
Novas exigências são postas na ordem do dia, novas polêmicas têm início
em decorrência dessa nova realidade emergente e das necessidades que lhe são
conseqüência. Mas, devem-se registrar, os novos debates surgirão como
continuação e desdobramento teórico das polêmicas do momento anterior.
Diferentemente das discussões entre os anos de 1974 e 1978, travadas
fundamentalmente entre as organizações da ER que, saídas do ambiente do
militarismo e do revolucionarismo, precisavam encontrar suas novas formas de
atuação no período que se iniciava, então, com o governo Geisel, agora a polêmica
é travada em um novo campo onde se movimentavam as forças políticas
identificadas com o pensamento marxista.
O bloco das liberdades democráticas, como muitas vezes eram chamadas as
organizações que defendiam a tática democrática era constituído pelo MR-8, APML,
PCB, PcdoB, grupos independentes de comunistas e organizações trotskistas. A
palavra bloco era usada apenas como uma maneira de se dirigir, indistintamente,
aos militantes e organizações no sentido de identificá-los no espectro político da
esquerda. Não possuía nenhum significado político que pudesse indicar alguma
forma de coalizão ou unidade mais profunda entre as organizações, nem mesmo de
definir uma possível tendência política, uma vez que o processo de aproximações e
distanciamentos políticos entre as organizações foi múltiplo e variado ao longo de
todos aqueles anos
6
.
6
Podemos registrar, contudo, um percurso de aproximações e afastamentos pontuais entre
determinadas organizações em razão de objetivos mais imediatos e mesmo em relação a
algumas discussões que foram travadas entre algumas dessas organizações e partidos sobre
possíveis unidades orgânicas e fusões. Tal foi o caso da aproximação entre a APML e o MR-8
até 1978 ou do MR-8 e a corrente prestista do PCB em 1980/1981, entre outros.
86
As fundamentações estratégicas e as formulações táticas em relação ao
papel da luta pelas liberdades democráticas, à democracia e a sua relação com o
socialismo, como temos analisado ao longo da dissertação, também eram distintas
entre essas agremiações políticas. E, embora concordando na percepção que
tinham das mudanças conjunturais e na importância que conferiam às lutas
democráticas, divergiam em pontos que podemos considerar fundamentais.
Mas, em torno de quais aspectos deve ser considerado o novo debate a
respeito da democracia e suas implicações na análise estratégica e tática das
organizações e partidos de esquerda?
Um novo e velho debate
Uma vez aceita pela maioria da esquerda comunista, já que a própria vida, mais do
que qualquer debate, se encarregara de demonstrar que esse era o caminho
correto nos embates com a ditadura, a luta por liberdades democráticas, pela
derrubada da ditadura e as discussões concernentes à questão democrática
ganharam um novo curso.
Diferentemente dos anos anteriores em que o centro dos debates entre a ER
estava na aceitação em si do significado e da importância da luta por liberdades
democráticas, agora tratava-se de avançar no sentido de definir mais precisamente
as formas de organização e de luta contra a ditadura em uma conjuntura mais
favorável, ao mesmo tempo que avançavam os debates sobre a natureza, os
conteúdos e os limites da democracia desejada.
A correta política de alianças dependia da análise sobre os interesses em
jogo das classes sociais fundamentais, do comportamento dos vários segmentos
econômicos e políticos diante das políticas da ditadura e do reconhecimento de
quem eram, ou poderiam ser, os aliados táticos, estratégicos ou meramente
pontuais
87
Os problemas e as indagações que serão enfrentados nesse novo período,
como não poderiam deixar de ser, já estavam contidos no que se debatia no
período anterior: o conceito de democracia, se burguesa ou proletária, de acordo
com o marxismo-leninismo; a problemática da transição do capitalismo para o
socialismo; o papel das liberdades democráticas no processo da luta contra a
ditadura e no processo da luta revolucionária em geral.
Essas questões têm reflexos na formação dos programas de oposição, na
decisão sobre as principais bandeiras a serem adotadas e, acima de tudo, nas
concepções que a esquerda revolucionária e os comunistas desenvolveriam de
frentes políticas e de coalizões oposicionistas com instrumentos da resistência e da
luta contra a ditadura.
Como vimos, no primeiro período, os esforços se concentravam na luta
teórico-política para que a esquerda revolucionária assumisse a luta democrática
como uma questão sua e como um eixo-chave para o enfrentamento à ditadura.
Agora, novas respostas eram exigidas para as mesmas e velhas perguntas.
Em seu texto clássico publicado no período, A democracia como valor
universal, Coutinho, ao definir as premissas para a sua intervenção no debate que
então já estava em curso, procurava delimitar um campo teórico-analítico no qual
se expressariam visões diferenciadas sobre a democracia e a luta democrática.
Coutinho parte, exatamente, da verificação de que o centro tático em torno das
liberdades democráticas já estava afirmado no movimento oposicionista como um
todo e que uma nova discussão estava colocada:
Não creio que nenhuma formação popular responsável ponha
hoje em dúvida a importância dessa unidade em torno da
luta pelas liberdades democráticas tais como são definidas,
entre outros, no atual programa do MDB. Todavia, há
correntes e personalidades que revelam ter da democracia
uma visão estreita, instrumental, puramente tática; segundo
tal visão, a democracia política – embora útil à luta das
massas populares por sua organização e em defesa de seus
interesses econômico-corporativos – não seria mais, em
última instancia e por sua própria natureza, do que uma
nova forma de dominação da burguesia, ou, mais
88
concretamente, no caso brasileiro, dos monopólios nacionais
e internacionais.
7
A constatação de Coutinho sobre a consolidação da luta oposicionista em
torno do eixo das liberdades democráticas apenas demonstra um quadro no qual a
maior parte da esquerda revolucionária
8
, o PCB, o PcdoB e a esquerda como um
todo já vivenciava a adesão a consigna das liberdades democráticas. O autor
aponta corretamente para o novo campo que se abria à discussão: as distintas
visões de democracia.
Essa unidade em torno da luta pelas liberdades democráticas, contudo,
havia sido conquistada pela maioria dos setores oposicionistas ao regime militar,
sob uma difícil, intensa e acesa luta teórica, política e ideológica, conforme nossa
análise tem demonstrado.
No terreno agora comum entre organizações da ER e os partidos
comunistas, PCB e PcdoB, da luta anti-ditatorial sob uma perspectiva democrática,
isto é, o reconhecimento de que a luta democrática era chave para a derrocada da
ditadura, a questão central era saber de que democracia cada um falava e de como
disputar entre si e com as outras forças políticas, nas melhores condições possíveis,
a liderança do processo.
Mais uma vez, as visões estratégicas sobre o caráter da Revolução
Brasileira, se socialista ou democrático-burguesa e da via do capitalismo ao
socialismo, se revolucionária ou democrática, vão presidir as posições defendidas
pelos vários atores políticos. Um outro ponto é o modo como cada uma das forças
de esquerda concebia ou imaginava o que poderia ser uma organização
democrática do estado socialista e a polêmica sobre a ausência, ou o
enfraquecimento, das liberdades democráticas nos países do chamado socialismo
real.
7
COUTINHO, C. A democracia como valor universal, 1979: 34
8
Deve-se registrar que entre os exilados a questão das liberdades democráticas também foi
igualmente enfrentada, em especial pela Revista Debate, criada por João Quartin de Moraes,
em Paris, em 1970. Ver ROLLENBERG, D: Debate no exílio. In: RIDENTI, M e REIS, D (org.).
História do marxismo brasileiro. Campinas: Unicamp, 2007: 291-339.
89
As propostas para a conjuntura também variavam em razão das visões que
as sustentavam. Para uma parcela da esquerda revolucionária, que defendia a
derrubada revolucionária da ditadura, a frente oposicionista deveria ser na essência
uma frente popular que deveria lutar pela constituição de um governo popular que
sucedesse a ditadura. O governo popular deveria ser composto por todos os setores
que participassem da oposição, mas sob a hegemonia da classe operária e seus
aliados históricos.
Esse governo seria a expressão política de uma determinada concepção de
estado democrático ainda nos marcos burgueses, no qual a classe operária e seus
aliados estariam em condições de disputar o poder abertamente com a burguesia e
seus aliados. Tal governo criaria as condições sociais que permitiram a mobilização
e a organização do povo até a consecução da revolução e a instauração da
verdadeira democracia, isto é, o socialismo, a ditadura do proletariado. Essa
posição era vocalizada principalmente pelo MR-8 que, no seu 2º Congresso,
realizado em 1979, deixava claro a visão leninista de democracia e a sua crítica da
democracia burguesa:
A classe operária e o povo não lutam por um aborto
“democrático”, por um arremedo de democracia. Lutam para
jogar por terra todo entrave à liberdade de expressão e de
organização, lutam por uma liberdade completa. A grande
burguesia brasileira –débil, submissa e dependente até os
cueiros do imperialismo – já deixou claro inúmeras vezes que
nada tem a oferecer ao povo além de ditaduras ferozes e
sanguinárias, ou verdadeiros simulacros de democracia,
atrasados, mesmo para os padrões clássicos da democracia
burguesa.
9
Caberia a Frente Popular ser o instrumento da unidade política e
programática que juntaria o conjunto dos setores oposicionistas em torno de um
programa democrático, popular e antiimperialista e que essa frente seria a
responsável por organizar o governo popular como o poder constituído a partir da
derrubada da ditadura:
Nosso interesse é lutar para que a Frente Popular se
constitua convergindo para esse programa, pela derrubada
9
MR-8. Resolução do 2º Congresso, 1979: 52.
90
revolucionária da ditadura militar e pela constituição de um
Governo Popular.
10
Frente popular e governo popular representariam, portanto, a visão de um
governo e de um regime democráticos, ainda sob o capitalismo e o estado burguês,
mas sob a hegemonia da classe operária e do povo, ou seja, uma via democrático-
revolucionária possível para o socialismo.
A APML que caminhara junto com o MR-8 nos anos anteriores, quando as
duas organizações lideraram no seio da ER a luta pela afirmação do centro tático
das liberdades democráticas, fazia um movimento de afastamento do antigo aliado
e se aproximava do MEP. Para a AP, o MR-8, em sua atuação nas frentes de massas
estaria combatendo e criticando com mais intensidade as posições políticas dos
integrantes do campo em que se situava a própria esquerda revolucionária do que
as posições do reformismo e do populismo, que seriam os principais desvios que a
ER deveria combater para fazer avançar a consciência, a organização e a
mobilização do proletariado e do povo.
Nessa época, as duas organizações, APML e MR-8 travaram um acirrado
debate sobre suas divergências em relação não só às questões táticas propriamente
ditas, mas sobre um conjunto de aspectos que envolviam a prática conjunta de
ambas, na perspectiva de uma possível fusão que, naquela altura, já era uma
proposta condenada ao fracasso.
A APML criticava a possível aproximação do MR-8 do PCB e PcdoB, ou seja,
aproximação do pensamento e das posições reformistas e populistas, como um
desvio da concepção estritamente revolucionária da luta pelas liberdades
democráticas. O fundamento da crítica eram as duas diferentes estratégias para a
revolução. Em carta assinada pelo Secretariado Nacional- SN da APML ao MR-8, a
organização explicitava suas divergências:
Por outro lado, apesar da coincidência semântica entre nós e
as forças reformistas e populistas, ao definirem a luta por
liberdades democráticas como eixo central da tática, existem
diferenças substanciais entre nós e estas forças, ao nível da
10
MR-8. Idem: 53.
91
tática, e não somente na estratégia. Enquanto eles defendem
esta luta a serviço de uma etapa democrático-burguesa da
revolução e de uma tática de frente ampla com setores
vários da burguesia, nós, ao encaminharmos a luta por
liberdades democráticas o fazemos a serviço de uma
estratégia de revolução socialista-proletária e de uma tática
que tem como seu elemento central a organização da
resistência dos trabalhadores no sentido de acúmulo de
forças no rumo da constituição da força social revolucionária
e da construção do partido de vanguarda.
11
A AP mais uma vez procurava reafirmar a seu modo o vínculo entre a luta
por liberdades democráticas, centro tático da resistência à ditadura militar, e a
estratégia revolucionária socialista, em oposição à visão reformista que preconizava
a etapa democrático-burguesa e, como decorrência, atrelava liberdades
democráticas à democracia burguesa.
Conseqüentemente, a crítica se estendia, também, à política de alianças
mais correta que o proletariado deveria realizar, tanto na dimensão estratégica,
como tática, do ponto de vista das forças sociais interessadas na transformação
revolucionária. Por outro lado, embora participasse do processo eleitoral desde o
pleito de 1974, apoiando os chamados candidatos populares, a APML não via no
MDB a possibilidade de que ele se transformasse no instrumento frentista
privilegiado da oposição.
Como foi dito acima, o MR-8 defendia que a resistência à ditadura deveria
ser organizada em torno da constituição de uma frente popular, e que o MDB
poderia se transformar nessa frente, na medida em que os setores populares
ampliassem o seu peso político no partido, fossem vitoriosos na luta pela
hegemonia dentro do MDB e transformassem a qualidade de sua atuação, de modo
que ele expressasse principalmente um programa democrático-popular e não
liberal-burguês.
Para a AP, naquele momento da conjuntura, era totalmente equivocada a
idéia de que o MDB pudesse se constituir em frente popular, nos moldes das frentes
populares propostas pela III Internacional na época da ascensão do fascismo, na
11
Citação extraída do documento Carta aberta aos companheiros da APML, no qual o Comitê
Central do MR-8 responde às críticas da Carta enviada pelo SN da APML ao MR-8, do qual a
citação aqui apresentada faz parte. MR-8. Carta aberta aos companheiros da APML, 1978:18.
92
Europa, conforme a fundamentação teórica feita pelo MR-8, a partir da
caracterização de regime fascista que era atribuída à ditadura brasileira.
12
Ao longo de 1978, a discussão sobre democracia foi mais ampliada ainda
com os debates sobre a criação de novos partidos. A proposta de organização de
um partido dos trabalhadores começava a empolgar uma parte da ER. A APML se
aproximou do MEP, que já defendia o surgimento de um partido dos trabalhadores,
uma vez que não aceitava participar do MDB, nem reconhecia no partido papel
fundamental no processo da luta revolucionária.
Para o MEP, o MDB era um partido dominado pela burguesia liberal e pela
pequena-burguesia e era inútil qualquer tentativa de mudar essa situação. Cabia às
organizações da esquerda revolucionária construir um partido que pudesse
representar a classe operária e os trabalhadores, aproveitando-se, para isso, da
abertura que se avizinhava com o fim da restrição à constituição das novas
agremiações partidárias, ainda que tal tarefa fosse realizada nos marcos da
ditadura militar, isto é, de acordo e em respeito às possibilidades legais do regime
militar.
O partido dos trabalhadores, para o MEP, deveria ser uma espécie de frente
política das massas exploradas e oprimidas congregando diversos grupos,
organizações e correntes de pensamento de esquerda. O MEP não aceitava a crítica
que MR-8, PCB, PcdoB e outros agrupamentos de esquerda faziam a reforma
partidária da ditadura por promover a divisão e o enfraquecimento da oposição:
Setores da esquerda responderam à reforma partidária
colocada em prática pelo governo gritando pela unidade e
pelo fortalecimento do MDB.(...) Ao contrário, os
revolucionários combatem a reforma partidária do governo
não porque ela gerou a discórdia e maiores divisões no MDB,
mas porque esta reforma não trouxe nenhum benefício às
classes trabalhadoras, estas continuarão debaixo de leis e da
máquina policial voltadas contra seu direito à liberdade e de
organização política. Os revolucionários se colocam contra a
12
A caracterização de regimes fascistas às ditaduras militares da América Latina foi
defendida por uma série de pensadores e organizações comunistas e de esquerda latino-
americanas. Carone registra que já em 1970, o Comitê Estadual da Guanabara, do PCB,
caracterizava a ditadura como fascista. CARONE, E. O PCB- 1964 a 1982, 1982. Ver também
SANTOS, T. El fascismo dependiente y sus contradicciones, 1978. MARINI, R. El estado de
contrainsurgencia, 1978.
93
reforma partidária e os interesses dos novos partidos
burgueses, levando à prática, de um lado, o fortalecimento
do PT, a luta pela sua legalização e para fazer dele uma
frente política das massas exploradas e oprimidas; de outro
lado, levando à prática um grande esforço para acelerar a
construção do partido revolucionário da classe operária.
13
Convém lembrar que o MEP defendeu o voto nulo até as eleições de 1976,
rechaçando a participação eleitoral e o apoio aos candidatos populares do MDB. Nas
eleições estaduais de 1978, apoiou candidatos lançados pela APML, o que
demonstra a aproximação das duas organizações também na questão eleitoral.
Podemos considerar que as distintas concepções de frentes de oposição à
ditadura podem ser um importante instrumento de verificação das concepções
subjacentes sobre luta por liberdades democráticas e relação entre revolução,
democracia e socialismo.
O PCB, por sua vez, empenhava-se na constituição do que seria uma frente
democrática de oposição que convergisse o fim da ditadura militar com a
implantação de regime democrático de caráter burguês, o que estava em sintonia
com a concepção histórica do partido de revolução em duas etapas, sendo a
primeira uma etapa democrático-burguesa. Essa posição de defesa da frente
democrática é sistematizada em vários documentos ao longo do ano de 1978, entre
elas e Resolução Política do Comitê Central, de novembro de 1978
14
, e supera a
posição anterior de defesa de organização de uma frente patriótica, quando o
partido propunha uma análise da ditadura que a classificava, em seus traços mais
significativos, como uma ditadura de caráter fascista.
15
Logo após o golpe, passada a surpresa e o desânimo iniciais, o PCB
sustentou que o caminho para a resistência seria a formação de uma frente que
pudesse reunir todos os setores que estivessem em oposição à ditadura, uma
frente cujo programa, do ponto de vista político, estaria centrado na defesa das
liberdades democráticas.
13
MEP. A questão partidária, 1980: 12
14
CARONE, E. O PCB- 1964 a 1982, 1982: 236.
15
Idem: 144-149.
94
A defesa da bandeira democrática não era estranha ao PCB, ao contrário,
era o corolário de sua estratégia democrático-burguesa, que identificava
democracia com democracia-burguesa. Em importantes períodos de sua trajetória e
da história do Brasil, o PCB esteve a frente das lutas nacionais em defesa da
democracia e das liberdades democráticas.
Ao discutir a valorização da política na trajetória pecebista, Segatto e Santos
abordam o que já foi chamado de a questão comunista, momento em que, ao longo
dos anos 1970, as discussões sobre a presença e a intervenção dos comunistas
ganhavam novas nuances na Europa, em especial na Itália, a partir da derrota de
Allende no Chile e de suas repercussões no ambiente de esquerda da época.
Segatto e Santos verificam a postura de moderação e de responsabilidade política
que o PCB procurava adotar, particularmente após o fracasso de 1964, ao
identificar elementos que balizaram a atuação da agremiação naquela época. Eles
destacam o espírito frentista do partido:
A outra baliza que orienta os comunistas no pós-64 é a
obsessão pela montagem da frente única em torno das
liberdades democráticas, exemplar no episódio anteriormente
citado de defesa da continuidade do MDB nos piores
momentos da legenda.
16
Por volta de 1978, a luta política interna no PCB se intensifica. As duas
correntes principais são as que se alinham à posição majoritária do Comitê Central-
CC –a corrente do CC propriamente dita e os eurocomunistas- e os que se alinham
em torno da liderança de Luiz Carlos Prestes, que ficam conhecidos como
prestistas.
17
A divisão entre as duas correntes principais abrangia uma série de aspectos
da vida política, ideológica e organizativa do partido. E, também, como não poderia
de deixar de ser, uma significativa divergência em relação a respeito da luta por
liberdades democráticas, a relação democracia e socialismo e a análise do
16
SEGATTO, J. e SANTOS, R. A valorização da política na trajetória pecebista, 2007: 40.
17
Carone identifica três posições políticas no PCB a partir de 1978/1979: a posição do
Comitê Central, que é a posição oficial; os eurocomunistas e a posição de Prestes. CARONE,
E. O PCB- 1964 a 1982, 1982.
95
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Os aportes teóricos do chamado grupo
eurocomunista, tendo a frente os textos de Carlos Nelson Coutinho, Leandro
Konder, Armênio Guedes e outros aprofundaram as divergências entre as duas
facções.
Em 1980, Prestes lança a Carta aos Comunistas, documento no qual expõe
uma pesada crítica ao métodos anti-democráticos que estariam predominando no
partido e contesta as linhas política e tática em geral. A partir daí, o partido passa a
viver uma luta política e ideológica aberta que praticamente sela a saída do
Cavaleiro da Esperança do PCB, dois anos mais tarde.
Na carta, Prestes critica a visão que estaria predominando no PCB desde a
Declaração de Março de 1958 de que a sociedade brasileira, quando vista em sua
perspectiva histórica, estaria, cada vez mais, se democratizando, vivendo um
processo de avanços democráticos, processo esse que teria sido interrompido pelo
golpe de 1964 e cabia ser retomado agora, em novas bases, na luta por liberdades
democráticas e, após o fim da ditadura, com a implantação de um regime
democrático. De acordo com a Carta aos Comunistas devia-se acentuar que no
Brasil sempre predominaram regimes políticos autoritários. Mesmo nos melhores
períodos da constituição de 1946 (...).
18
Ou seja, historicamente o país não estava
se democratizando, ao contrário, o que predominavam era o autoritarismo e a
democracia para as elites.
No documento, Prestes rompe, ainda que não de modo radical, com a visão
etapista de revolução do PCB e vincula expressamente democracia, revolução e
socialismo:
Vejo a luta pela democracia em nossa terra como parte
integrante da luta pelo socialismo. É no processo de
mobilização pela conquista de objetivos democráticos
parciais, incluindo as reivindicações não apenas políticas,
mas também econômicas e sociais, que as massas tomam
consciência dos limites do capitalismo e da necessidade de
avançar para formas cada vez mais desenvolvidas de
18
PRESTES, L. Carta aos Comunistas, 1980: 9.
96
democracia, inclusive para a realização da revolução
socialista.
19
No mesmo documento, ele esclarece sua proposta de frente política de
oposição à ditadura que vinha sendo criticada por integrantes do Comitê Central
que o acusavam de propor uma frente de esquerda no lugar de uma frente
democrática, que teria uma composição social e política mais ampla e que,
portanto, estaria em melhores condições de lidera a oposição à ditadura.
A polêmica sobre o caráter da frente, que envolveu o Comitê Central do PCB,
os prestistas e o MR-8, é um dos elementos que nos ajudam a compreender as
concepções democráticas que essas correntes políticas possuíam e as saídas que
preconizavam para o fim da ditadura.
Na entrevista que concedem ao Jornal do Brasil, em fevereiro de 1980,
Hércules Corrêa e Salomão Malina criticam as forças políticas que estariam
defendendo uma frente de esquerda cujo objetivo imediato de luta contra a
ditadura seria a formação de um governo popular em transição para o socialismo:
H. Corrêa: Consideramos grave erro político, que resultará
em inevitável atraso, na luta pela democracia (...) a proposta
de uma frente de esquerda. (...) As pessoas e organizações
que sustentam essa proposta partem do ponto de vista de
que o objetivo imediato das massas na luta contra a ditadura
deve ser um governo popular, de transição para o socialismo.
Acreditam que colocando um objetivo supostamente mais
avançado do que a luta pela democracia farão ir mais rápido
e mais adiante o processo revolucionário brasileiro.
20
Com essa declaração, Corrêa procurava atingir Prestes e seu grupo político e
o MR-8, já que os prestistas e a organização da esquerda revolucionária viviam um
período de aproximação e de ações conjuntas no movimento de massas, nos anos
de 1980 até 1982. Essa aproximação tinha por base uma forte crítica às concepções
democráticas que a corrente eurocomunista trazia para o debate, e que eram
consideradas como a negação do salto revolucionário que deve representar a
19
Idem: 9-10
20
A entrevista é reproduzida por CARONE, E. O PCB- 1964 a 1982, 1982: 255-263.
97
passagem do capitalismo ao socialismo, ou seja, da democracia burguesa à
democracia socialista.
21
Para o MR-8, o PCB –ou seja, as posições majoritárias e predominantes no
órgão dirigente do partido- confundia propositadamente a essência do significado
da frente popular e do governo popular, e acusava erroneamente tanto a
organização, quanto Prestes, por uma posição que, na verdade, não defendiam. O
que estava por trás da divergência era a crença na possibilidade, ou não, de uma
saída revolucionária para a crise da ditadura.
Na resposta a Hércules Corrêa, a partir de sua entrevista ao Jornal do Brasil,
o MR-8 aponta, exatamente, essa divergência:
Ele não admite a possibilidade de uma solução popular e
revolucionária para a crise do regime e, por isso, termina
vendo um fim mais ou menos próximo para da ditadura
através das mãos da própria burguesia. Para Corrêa, a classe
operária e o povo devem se contentar em ser um ponto de
apoio- importante, mas apenas um ponto de apoio – para as
facções burguesas “descontentes” com o regime.
22
Mais uma vez predominava a clivagem que distinguia esquerda
revolucionária e partidos comunistas tradicionais, entre reforma ou revolução, entre
revolução socialista ou democrático-burguesa.
O aprofundamento teórico da esquerda revolucionária
A definição que proponho dessa discussão como debate em torno da relação
entre revolução, democracia e socialismo sob à ótica da esquerda
revolucionária tem por objetivo apontar uma questão central entre um conjunto de
preocupações e dilemas que movimentaram e ER nos anos dos governos Geisel e
Figueiredo. Ao mesmo tempo em que permite que se crie um eixo estruturador em
torno do qual outras questões e acontecimentos gravitam e, também, procura
21
PRESTES, A. A que herança os comunistas devem renunciar, s/d: 30.
22
UNIDADE PROLETÁRIA. Duas táticas dos comunistas na luta contra a ditadura. Março/
1980.
98
conferir um sentido político para um importante momento da história das
organizações marxista-leninistas em nosso país.
Como vimos as discussões e polêmicas ocorriam como resposta às
necessidades reais e concretas que as organizações passaram a enfrentar quando
romperam com as práticas militaristas e revolucionaristas. Ao concentrar suas
energias e militância no trabalho de organizar, mobilizar e fazer avançar a
resistência à ditadura, através da ação junto aos movimentos populares,
democráticos e oposicionistas, tornou-se imprescindível não só estabelecer a tática
correta para o momento, mas aprofundar o conhecimento sobre o marxismo-
leninismo e sobre a realidade brasileira. Até porque o aprofundamento teórico era
condição indispensável para a formulação da tática.
A relação entre democracia e socialismo não era, portanto, pelo menos
nessa primeira parte do período alcançado pela pesquisa que realizei, um tema
teórico específico posto em debate, mas, sim, uma discussão estreitamente
amarrada a uma perspectiva de prática política. De alguma forma, o debate de
cunho mais estritamente teórico, e que assim foi tratado por intelectuais e
acadêmicos influenciados pelo PCB, sobre democracia e socialismo, e já
incorporando as concepções que chegavam ao país trazidas do exílio por seus
dirigentes, em torno das idéias do eurocomunismo - e da sua reconhecida fonte
teórica no pensamento de Gramsci -, terá mais peso efetivamente em um momento
posterior.
Nesse novo período, a partir de 1978, o programa em torno da conquista
das liberdades democráticas já estará consolidado como ponta de lança do
movimento oposicionista à ditadura como um todo, e outras questões, então,
estarão na ordem do dia entre os comunistas, a esquerda e as oposições em geral.
A definição do eixo de resistência à ditadura em torno das liberdades
democráticas originava-se, como vimos anteriormente, em uma discussão que se
iniciara no início dos anos 60, dentro e fora do PCB, sobre o caráter da revolução
brasileira, mas que ganhava novos contornos e fundamentos. Por outro lado, a
99
compreensão da existência de um debate entre organizações que até pouco tempo
atrás estavam empenhadas no desafio militarista, sobre liberdades democráticas e
táticas de enfrentamento e resistência à ditadura, só pode ser clareada se o
consideramos imposto, exatamente, por estas circunstâncias históricas
determinadas, no caso, a nova conjuntura que se abre a partir do governo Geisel
com o seu projeto de institucionalização, o recrudescimento do movimento
oposicionista, a vitória do MDB em 1974 e a organização de um movimento de
resistência ao regime militar e contra o seu projeto de institucionalização.
Portanto, a mudança de conjuntura verificada do governo Médici para o
governo Geisel e seu aprofundamento no governo Figueiredo abre ao movimento
oposicionista em geral, e à esquerda em particular, a necessidade de se estabelecer
a tática capaz de aglutinar os mais amplos setores contra a ditadura, ao mesmo
tempo em que deveria se disputar a direção desse amplo movimento que se
construía, ou seja, a tentativa de que a condução do movimento de resistência à
ditadura pudesse estar nas mãos da esquerda, ou pelo menos que sua influência
pudesse ser sentida. A luta pelas liberdades democráticas deve ser compreendida
dentro desse esforço do mesmo modo que o esforço por definir a proposta do tipo
de poder que sucederia à ditadura.
As organizações da ER, como o MR-8 e a APML, tinham que explicitar,
portanto, no plano da teoria marxista-leninista como se dava a articulação entre
luta democrática pelo fim da ditadura militar e a estratégia socialista que defendiam
para a revolução brasileira, o que implicava no aprofundamento de várias
problemáticas: elucidação da natureza política e dos interesses econômicos e de
classe expressos pelo regime militar instalado no país, do tipo de dominação e do
arranjo de poder entre as várias frações da burguesia; da política de alianças
possível e necessária à luta da oposição; da importância da participação dos
comunistas no parlamento burguês; sobre a relação entre lutas econômicas,
sindicais e políticas, entre outras. Eram as dificuldades que precisavam ser
equacionadas, problemas concretos impostos pela realidade política e pela prática,
100
que necessitavam de respostas e orientações seguras; e esse conjunto enredava-se
com a disputa política e ideológica entre as organizações para influenciar a
esquerda e disputar a direção das várias frentes do movimento oposicionista.
No texto Socialismo e liberdades democráticas, Daniel Terra, representando
a posição do MR-8, procurava avançar teoricamente e demonstrar que para o
proletariado e o povo a luta por direitos democráticos e pela democracia não
deveria se realizar apenas em sua dimensão tática, expressa em um programa
democrático geral pelo fim da ditadura. Lutar pela conquista da democracia e pela
ampliação dos direitos democráticos seria uma ação permanente do proletariado
em todas as fases do processo revolucionário:
Assim, a palavra de ordem geral “pelas liberdades
democráticas” tem que ser levantada pelo proletariado
justamente porque não se refere a esta ou aquela etapa da
luta, mas porque representa uma posição de princípio do
proletariado lutar pelo avanço da democracia seja na
sociedade burguesa, seja na proletária, pois “o proletariado,
se não for educado na luta pela democracia, é incapaz de
realizar uma revolução econômica”.
23
(aspas do autor)
A luta e as conquistas democráticas constituiriam um verdadeiro
princípio da práxis proletária, e não deveriam ser reduzidos simplesmente a uma
proposição de intervenção em determinada conjuntura, embora naquele momento
político pelo qual atravessava o país, deveriam ser afirmados como alternativa da
esquerda proletária ao projeto de institucionalização da ditadura, promovido por
Geisel e ao projeto de redemocratização, defendido pelos moderados do MDB e
setores da burguesia liberal.
Para o proletariado, de acordo com Terra, liberdades democráticas não
deveriam ser compreendidas apenas como expressão de direitos burgueses
existentes na democracia liberal, como um resultado da submissão político-
ideológica a uma posição democratista do povo ou do atraso da consciência de
classe do operariado brasileiro, como diziam os doutrinaristas; mas, deveriam ser
compreendidos como a expressão de uma articulação dialética existente entre
23
Idem: 9.
101
democracia burguesa e democracia proletária. Para demonstrar essa articulação,
Terra recorreria ao arsenal leninista e, em especial, aos textos em que o autor
russo debate a problemática da democracia como em O estado e a revolução, A
revolução proletária e o renegado Kautsky e outros. É em O estado e a revolução
que Lenin faz as clássicas definições sobre democracia, papel da luta democrática
na revolução e que democracia deve entendida como uma forma de estado e, desse
modo, será sempre a aplicação organizada, sistemática, da coerção aos homens.
24
Na explicação leninista, o proletariado, em um certo grau de seu
desenvolvimento, no decorrer da luta de classes, pode alcançar uma situação
caracterizada de revolucionária, na qual encontra condições para destruir o aparato
estatal burguês, sua burocracia, forças armadas, polícia, instituições parlamentares
etc., ou seja, a própria democracia burguesa. Abre-se a possibilidade de ser
erguida a democracia proletária, isto é, a ditadura do proletariado; tal processo, na
visão de Lenin, é considerado um salto de qualidade, uma transformação dialética,
aonde a democracia burguesa dá lugar à democracia proletária.
Lutar por liberdades democráticas, assim, de acordo com a concepção
leninista e a tradição marxista, não se restringiria a uma questão de ordem tática,
conjuntural, e muito menos seria uma bandeira exclusivamente burguesa ou
apenas relativa a uma possível etapa democrático-burguesa da revolução. Os
textos da ER demonstravam o esforço da elaboração teórica que procurava resgatar
as conexões pensadas por Marx e Engels entre democracia e revolução.
Para o MR-8, que buscava compreender a tradição e se identificar com ela,
era fundamental assumir a luta pela democracia porque estaria ligada intimamente
à revolução socialista. No mesmo texto, Terra defendia essa posição:
Assumir a democracia é compreender que a revolução social
não pode ser obra de um punhado de intelectuais, mas
somente poderá ser lavada a cabo quando for assumida
pelas massas, significa da nossa parte assumir o mais
completo compromisso com as massas. Mas, o individualismo
24
LENIN, V. O estado e a revolução, 1980.
102
pequeno-burguês dos doutrinaristas não lhes permite
assumir este compromisso.
25
A maneira como um importante segmento da esquerda revolucionária
procurou avançar o problema de pensar a luta por democracia, a construção e o
alargamento de novos espaços democráticos que iam se abrindo para a sociedade
brasileira na resistência à ditadura significou um importante desenvolvimento
teórico para esses grupos. Significou um esforço para superar as polarizações do
pensamento marxista típico da ER que colocava revolução e socialismo de um lado
e democracia de outro. Pensamento que só concebia a idéia de democracia como o
estado representativo de uma etapa burguesa da revolução; que não considerava
liberdades democráticas um instrumento tático necessário ao enfrentamento do
regime militar por não aceitar a idéia da inevitabilidade de que qualquer liberdade
em uma sociedade burguesa é, necessariamente, uma liberdade burguesa. Ao
mesmo tempo em que este segmento da esquerda revolucionária rompia, em
grande medida, com os esquemas interpretativos usuais adotados pelos marxista-
leninistas, tanto entre os partidos tradicionais, PCB e PcdoB, como entre as
organizações mais recentes.
A concepção esquerdista, por seu turno, afirmava que o eixo correto estava
em se lutar por liberdades políticas para a classe operária e o povo e não por
liberdades democráticas. Tal proposta deveria ficar explícita e clara em torno de
uma palavra de ordem que exigisse liberdade políticas para os explorados pelo
capitalismo, isto é, fundamentalmente a classe operária e seus aliados, mas que
alcançasse também setores oprimidos pela ditadura. Julgava-se que a palavra de
ordem liberdades democráticas diluía a perspectiva de classe, pois ela não deixava
claro que as liberdades pretendidas não eram para toda a sociedade, mas sim para
as classes verdadeiramente exploradas e oprimidas pelo regime militar. A
concepção esquerdista também identifica democracia com democracia burguesa.
Havia, também, o esforço de aprofundar o conhecimento do leninismo e de
outros importantes autores marxistas
26
em geral e não apenas como teoria
25
Idem: 9-10.
103
exemplar de uma revolução vitoriosa, a Revolução Russa. Buscava-se o leninismo
como instrumental teórico-político capaz de orientar o esforço analítico para o
conhecimento da realidade brasileira, da conjuntura e da formulação de propostas
nos vários níveis da atividade das organizações políticas da ER.
É possível avançarmos na hipótese de que o próprio estudo do marxismo e
do leninismo, dos textos e da obra de Lenin entre os comunistas, assim como dos
outros autores, conheceu um momento de expansão nessa época. Ao longo da
história do comunismo no Brasil, a leitura e o estudo de Marx e da obra do dirigente
revolucionário russo, no sentido de ser tomado como instrumental teórico-analítico,
nem sempre esteve no centro da formação de militantes e do debate político.
Julgo ser importante fazer esse registro, pois revela uma das características
importantes do ambiente político que se formou na época. Por um lado, procurava-
se superar o reformismo e romper com chamado imobilismo, crítica feita ao que
seria uma postura do PCB, e, por outro lado, com o praticismo, a conduta de
exacerbar a prática política e considerar secundário o estudo e a preparação
teórica.
Quartim de Moraes analisa que ainda durante o período do militarismo já se
forma uma consciência entre alguns grupos de militantes da necessidade de
aprofundar Lenin ao considerá-lo uma referência teórica central. Moraes relata que
a aproximação da esquerda revolucionária do leninismo foi uma tentativa de se
romper o cerco em que se encontravam as organizações militaristas durante os
anos duros da luta armada. A teoria leninista cumpriria a função de proporcionar os
meios teóricos que proporcionassem a construção de uma nova tática, de um novo
caminho para a luta revolucionária. Ele aponta as tentativas que ocorreram na VPR
e cita, também, a constituição da Tendência Leninista da ALN:
Embora longe de serem predominantes entre os exilados, as
posições leninistas serviram de referência para a formação,
em 1971, de uma tendência da ALN (a TL/ALN) que tentou,
com sério empenho, embora sem mais sucesso que os
26
Tal foi o caso de inúmeros autores e dirigentes comunistas como Gramsci, Dmitrov, Mao,
Balibar, Ingrao etc.
104
leninistas da VPR, romper a situação de cerco e
aniquilamento em que se encontravam os grupos armados
remanescentes.
27
A busca pela fundamentação em Lenin, um dos traços do debate entre as
organizações da ER a partir de 1973/1974, terá a sua origem, potanto, nas
discussões e posições já assumidas, ainda que embrionariamente, durante o
período militarista, do mesmo modo que a tática baseada na luta por liberdades
democráticas. É possível inclusive observar que aqueles que buscam o leninismo
ainda durante os anos da luta armada serão, em grande parte, os grupos e
organizações que procuram construir uma tática que contemplasse, além da
perspectiva armada, um viés democrático. Esses grupos e organizações serão
muitos dos que irão liderar, no momento seguinte, as posições de defesa das
liberdades democráticas como centro de luta contra a ditadura.
No texto Notas sobre a questão da tática, escrito já na fase posterior à luta
armada, de Raul Villa, militante da PO
28
, a defesa do resgate do leninismo também
é feita no sentido de se considerar o instrumental teórico-analítico formulado pelo
revolucionário russo como fundamental para ser aplicado ao conhecimento da
realidade e à formulação estratégica e tática:
Temos várias e significativas contribuições para o
pensamento revolucionário, mas nem uma logrou ainda dar
conta da globalidade dos problemas da nossa época, do
modo como fez Lenin nas primeiras décadas do século.
Nenhuma atualização do leninismo foi capaz de resgatar sua
herança e enriquecê-la dos ensinamentos mais ricos que a
prática do movimento revolucionário nos ofereceu depois.
29
Deve-se ressaltar o fio que liga organizações e suas definições de posições
teóricas e táticas entre os dois períodos como um dos elementos que permitem a
compreensão da evolução, ou da transformação, desses debates no país e sua
interferência no conjunto do movimento oposicionista.
27
Idem: 231.
28
De acordo com Maria Paula Nascimento Araújo em A luta democrática contra o regime
militar na década de 1970, 2004.
29
VILLA, R. Notas sobre a questão da tática, 1975: 9
105
A empreitada teórica significou a tentativa de construção de um novo
entendimento sobre a sociedade brasileira, assim com a tentativa de superação do
que Caio Prado Júnior chamou de a teoria consagrada da revolução brasileira, ou
seja, o modelo de revolução em etapas defendido pelo PCB, a partir da influência
das teses para a América Latina da Internacional Comunista.
Mazzeo reporta esta influência originária das resoluções do VI Congresso da
Internacional Comunista, que seriam referendadas depois na conferência dos
partidos comunistas da América Latina, em 1929, e que formam a matriz do
pensamento histórico pecebista sobre o caráter da Revolução Brasileira:
Com a definição do caráter da revolução brasileira, no
contexto da visão da revolução em etapas, institucionalizada
no VI Congresso da IC, desdobram-se formas de luta que
deverão estar correspondendo ás táticas subordinadas à
estratégia definida pelo Komintern. No caso do Brasil, a
construção de um referencial em consonância com as
diretrizes teórico-políticas da IC irá conformar a linha política
histórica do Partido Comunista, condicionando desse modo o
que poderíamos chamar de Weltanschauung política
hegemônica na esquerda brasileira, pelo menos até o V
Congresso do PCB, em 1960, quando aparecem as teses de
Caio Prado Júnior, questionando a teoria do feudalismo e,
conseqüentemente, o conjunto tático-estratégico do núcleo
dirigente comunista, como veremos mais adiante.
30
O processo de crítica às posições teóricas hegemônicas do PCB na esquerda
brasileira tem início com as primeiras formulações políticas alternativas produzidas
por organizações marxistas, que se constituem ainda no final da década de 50, do
qual a Polop é exemplo e que ganha aporte teórico definitivo com a publicação de A
revolução Brasileira, de Prado Júnior. O livro rapidamente torna-se a principal
referência teórico-política a contestar o modelo adotado pelo PCB e abre espaço
para inúmeras outras formulações teóricas e publicações de textos como o
Programa Socialista da Revolução Brasileira, da mesma Polop, em 1967; de
Dialética da Dependência
31
, de Ruy Mauro Marini, além de uma série de
30
MAZZEO, A. O partido comunista na raiz da Via Colonial do desenvolvimento capitalista,
2003: 159.
31
Em Dialética da Dependência, Marini empreende no nível econômico uma análise em que
contesta a visão tradicional do PCB sobre o Brasil. A influência de Prado Júnior sobre Marini é
significativa, e deve-se registrar o esforço do autor no tratamento rigoroso das categorias
marxistas que servem de material.
106
documentos de outras organizações igualmente significativos no momento em que
foram publicados, ao longo dos anos 1960, sobre o caráter socialista da Revolução
Brasileira, sobre a análise da formação social do páis e de suas conseqüências para
os conceitos de estratégia política.
Mas, sem dúvida, será ao longo dos anos 1970, a partir dos debates
iniciados entre as organizações da esquerda revolucionária e depois ampliados para
o conjunto da esquerda, que ocorrerá a tentativa mais sistemática de
aprofundamento em Lenin, e em outros autores marxistas, de construção de um
novo instrumental político-teórico capaz de ser uma alternativa ao esquema teórico
do PCB.
As discussões sobre liberdades democráticas e sobre a formação de um
programa democrático e popular de resistência e oposição à ditadura, a partir de
uma fundamentação estratégica que definia como socialista a revolução brasileira,
em oposição ao etapismo do PCB se, por um lado não foi capaz de construir uma
teorização que, de fato, pudesse se constituir em alternativa histórica à teoria
consagrada, por outro lado, foi capaz de produzir uma importante literatura sobre a
relação entre revolução, democracia e socialismo.
As releituras de inúmeros autores marxistas, mas, principalmente, do
próprio Marx e de Lenin, abriram caminhos que tiveram repercussões decisivas na
conjuntura da época e na trajetória posterior da esquerda brasileira.
Mazzeo destaca que assim como o PCB mostrou-se incapaz de romper com
os instrumentos teórico-analíticos herdados de décadas anteriores e não foi capaz
de construir uma alternativa política que unificasse a frente oposicionista em um
projeto de caráter histórico, também a esquerda revolucionária
32
não teria se
mostrado capaz da tarefa teórica:
Além disso, a esquerda em seu conjunto, dado os
instrumentos teórico-analíticos utilizados, que oscilavam
entre as teorias das etapas do processo revolucionário, que
32
Embora Mazzeo trate a esquerda revolucionária de modo um tanto reducionista e não seja
seu propósito a discussão das posições teorizadas por suas organizações, é correta sua
constatação.
107
determinavam a realização da etapa democrático-burguesa
da revolução, de conteúdo nacional-libertadora –
característica histórica das interpretações teóricas do PCB e
determinado para seu deslocamento em apoio à transição
pelo alto-, e o imediatismo voluntarista, informado por visões
analíticas profundamente influenciadas pelas teorias
foquistas e vanguardistas dos anos 60, não foi capaz de
construir uma alternativa que unificasse os segmentos
democráticos e populares da sociedade num bloco de caráter
histórico (...)
Podemos resumir considerando que a esquerda revolucionária, ao procurar
novas táticas de resistência e combate à ditadura, após fazer a autocrítica dos seus
desvios políticos e doutrinários, empreendeu um importante esforço de elaboração
teórica e de compreensão da relação entre luta democrática e socialismo cuja base
principal era o pensamento de Lenin. Esse esforço levou a ER a adotar
corretamente um centro tático de resistência à ditadura, que contribuiu
decisivamente para o avanço do movimento oposicionista brasileiro e para a luta
pelo fim do regime militar.
Contudo, não foi capaz de conduzir sua evolução teórica e política a um nível
em que pudesse, efetivamente, construir um instrumental teórico-analítico capaz
de, não apenas superar o modelo pecebista, mas dotar a esquerda brasileira de
uma alternativa concreta que pudesse organizar a classe operária e o movimento
democrático e popular para uma saída revolucionária da ditadura e a consecução da
pretendida estratégia socialista.
Considerações finais
Os anos 1990 representaram uma profunda mudança na correlação de forças entre
socialistas e comunistas e o mundo do capitalismo. Como sabemos, a derrocada da
União Soviética e dos países das democracias populares do Leste Europeu
alteraram de tal modo a posição ocupada pelo pensamento marxista na sociedade
que praticamente foi alijado dos debates sobre democracia, políticas públicas e
estado. As ilhas de resistência ao pensamento único de corte neoliberal têm
aumentado, mas ainda estão longe de representar ameaça real em torno de uma
mudança que possa, pelo menos, abrir caminho para um novo equilíbrio mundial
que resgate e recupere valores e idéias que já desempenharam importante papel
nos movimentos sociais, políticos e na vida intelectual como um todo.
Mas, os anos 1990 foram implacáveis, também, com uma outra grande
conquista da práxis política e do ativismo marxista-leninista em particular: a
militância política que integrava dialeticamente teoria e prática, prática e teoria em
um corpo único da ação individual e coletiva dos partidos, organizações e
movimentos comunistas e socialistas.
Ao trazer o debate e as controvérsias sobre democracia e liberdades
democráticas entre a esquerda revolucionária brasileira nos anos 1970,
recuperamos um dos importantes momentos em que a esquerda empreendeu um
esforço teórico de compreensão da sociedade brasileira e da conjuntura política a
partir do marxismo-leninismo.
Na luta para juntar teoria e prática, a esquerda revolucionária e os
comunistas foram capazes de manter uma interlocução e um diálogo que
congregava todas as correntes de um modo coletivo, malgrado os sectarismos
correntes, com o objetivo de avançar em termos teóricos, políticos e ideológicos,
em torno do interesse comum de dar fim à ditadura militar.
A autocrítica da luta armada levada a cabo pelas principais organizações da
ER foi uma das marcas do ambiente político no início dos anos 1970 e linha
109
divisória entre a fase esquerdista e revolucionarista e o entendimento definitivo da
importância da reorganização e da mobilização das massas como a condição básica
da resistência à ditadura. A superação definitiva da perspectiva de luta armada nas
condições em que eram travadas e a nova conjuntura iniciada na mudança do
governo Médici para Geisel, moldaram as condições para que a ER iniciasse o
debate sobre o centro tático em torno da luta por liberdades democráticas.
A ER buscava a prática política norteada pelo processo de crítica e
autocrítica, um dos princípios da doutrina marxista-leninista que permite a criação
e o avanço da teoria revolucionária e baliza a intervenção coletiva do partido e, sem
dúvida, esse foi uma conquista que também se perdeu nos anos seguintes.
Mas, os instrumentos analíticos, as armas da teoria, mostraram-se
insuficientes e acabaram por não dar conta de complexidade dos momentos
políticos que se seguiram.
Referências bibliográficas
ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LA URSS – Instituto del Movimiento Obrero
Internacional. El leninismo y el movimiento obrero revolucionário mundial. Moscou:
Progresso, 1979, 2ª ed.
ANDERSON, Perry. Consideração sobre o marxismo ocidental. Nas trilhas do
materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal,2001, 8
a
ed.
AMADEO, Javier e MORRESI, Sergio. Republicanismo e marxismo. In: BORON, Atílio
A. (org.). Filosofia política contemporânea. Controvérsias sobre civilização, império
e cidadania. Buenos Aires/ São Paulo: Clacso/Departamento de Ciência Política –
USP, 2006: 99-121.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. Política, esquerda e imprensa alternativa no
Brasil dos anos 70: Objeto e fontes históricas. Trabalho para o Laboratório de
Estudos do Tempo Presente do Depto. de História do IFCS, Rio de Janeiro, 1999.
______. A luta democrática contra o regime militar na década de 70. In: REIS,
Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). O golpe e a
ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru, SP: Edusc, 2004.
______. A ditadura militar em tempo de transição (1974-1985). In: MARTINHO,
Francisco Carlos Palomares (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2006.
______. A utopia fragmentada. As novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 70. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985, 7ª ed.
BALIBAR, Étienne. Sobre la dictadura del proletariado. México: Siglo Veintiuno,
1977.
BASMÁNOV, M. e LEIBZÓN, B. Vanguardia revolucionaria. Problemas de la lucha
ideológica. Moscou: Progresso, 1978.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção
política. São Paulo: Unesp, 2001, 2ª ed.
______Qual socialismo? Discussão de uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001, 4ª ed.
BOFF, Clodovis e BOFF, Leonardo. Comunidades cristãs e política partidária.
Encontros com a Civilização Brasileira, n
o
3, 1978: 11-25.
BRITO, Alves; SANTOS, G.R.; DIAS, G; CORREIA, H. e MORAES, S. Os comunistas
e as eleições do Estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Juruá, 1981.
BUCI-GLUCKSMANN, Christianne. Gramsci e o estado. São Paulo: Paz e Terra,
1980.
CARDOSO, Fernando Henrique. As idéias e seu lugar. Ensaio sobre as teorias do
desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993, 2ª ed.
______CARDOSO, Fernando Henrique e LAMOUNIER, Bolívar (orgs.). Os partidos e
as eleições no Brasil. São Paulo: Cebrap / Paz e terra, 1978, 2ª ed.
CARONE, Edgar. O PCB-1943 a 1964. São Paulo: Difel, 1982, vol. 2
______.O PCB-1964 a 1982. São Paulo: Difel, 1982, vol. 3
111
CASTAÑEDA, Jorge G. Utopia desarmada – Intrigas, dilemas e promessas da
esquerda latino-americana. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CHILCOTE, Ronald H. O Partido Comunista Brasileiro. Conflito e integração, 1922-
1972. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Encontros com a
Civilização Brasileira, n
o
9, março 1979.
DAHL, Robert A. Poliarquia. Participação e oposição. São Paulo: Edusp, ?
______ Democracy and its critics. New Haven/Londres: Yale University Press, ?
D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1997, 2ª ed.
DA SILVA, Antonio Ozai. História das tendências no Brasil (origens, cisões e
propostas). São Paulo: Proposta, s/d., 2ª ed
DEL ROIO, José Luiz. Zarattin. A paixão revolucionária. São Paulo: Ícone, 2006.
ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo,
1977.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras: 2002.
______A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras: 2003.
GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo: Ática, 1999.
______ Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, 6ª Ed.
GRAMSCI, Antonio. Apuntes sobre la política de Maquiavelo.
www.gramsci.org.ar.
acesso em 2006
______ Cadernos do cárcere. In: COUTINHO, Carlos Nelson (org.). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, vol. 2.
______Escritos políticos. In: COUTINHO, Carlos Nelson (org.). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
GUIMARÃES, Juarez. Marxismo e democracia. Um novo campo analítico-normativo
para o século XXI. In: BORÓN, Atílio A. (org.). Filosofia política contemporânea.
Controvérsias sobre civilização, império e cidadania. Buenos Aires/São Paulo:
Clacso/ Departamento de Ciência Política – USP, 2006: 221-237
INGRAO, Pietro. As massas e o poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
LENINE, V.I. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática. In:
Obras escolhidas, tomo I. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.
______Que Fazer ? In: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979, tomo I.
______O Estado e a revolução. In: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega,
1979, tomo II
______O imperialismo, fase superior do capitalismo. In: Obras escolhidas. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1979, tomo I.
______Um passo em frente, dois passos atrás. In: Obras escolhidas. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1979, tomo I.
______Esquerdismo: doença infantil do comunismo. Rio: Global, s/d, 5ª ed.
______Under a false flag.
Marxist Internet Archive www.marxists.org. acesso em
outubro de 2007.
MARCHAIS, George. O desafio democrático. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro,
1974.
112
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1974.
______Critica del Programa de Gotha. Marxist Internet Archive.
www.marxists.org.
acesso em 10/5/2007.
______Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes,
1977.
______e Friedrich ENGELS. Manifesto do partido comunista. Marxist Internet
Archive.
www.marxists.org. acesso em 10/5/2005
______e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia inacabada. A política dos comunistas no Brasil.
São Paulo: Boitempo, 1999.
______e LAGOA, Maria Izabel (Orgs.). Corações vermelhos. Os comunistas
brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003.
MIRANDA, Nilmário e TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e
desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado.
São Paulo: Boitempo/Fundação Perseu Abramo, 1999.
MR-8. Resolução do II Congresso. São Paulo: Quilombo, 1980.
PONOMARIOV, Boris. O comunismo num mundo em mudança. Lisboa: Avante,
1985.
POULANTZAS, Nicos. A crise das ditaduras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
______As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
PRESTES, Anita Leocádia. A que herança os comunistas devem renunciar. Revista
Oitenta de Porto Alegre, n
o
4, s/d: 1-32
PRESTES, Luiz Carlos. Problemas atuais da democracia. Rio de Janeiro: Vitória, s/d.
TEXIER, Jacques. Revolução e democracia em Marx e Engels. Rio de Janeiro: UFRJ,
2005
TOSEL, André. Hegemonia e pluralismo. A elaboração teórica do marxismo italiano.
Encontros com a Civilização Brasileira, n
o
13, julho 1979: 77-96.
TRASPADINI, Roberta e STEDILE, João Pedro (org.). Ruy Mauro Marini. Vida e obra.
São Paulo: Expressão Popular, 2005.
REIS FILHO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005, 3ª ed.
______ e FERREIRA DE SÁ, Jair (orgs.) Imagens da revolução. Documentos
políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. São
Paulo: Expressão Popular, 2ª ed.
______e MORAES, João Quartin. História do marxismo no Brasil. O impacto das
revoluções. Campinas: Unicamp, 2003, 2ª ed., vol. 1.
______e RIDENTI, Marcelo. História do marxismo no Brasil. Partidos e movimentos
após os anos 1960. Campinas: Uunicamp, 2007, 2ª ed., vol 6.
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Unesp, 1993.
DEL ROIO, M. De um século a outro: trajetória e atualidade da questão comunista
no Brasil. In: MAZZEO, Antonio Carlos e LAGOA, Maria Izabel (orgs.). Corações
vermelhos. São Paulo: Cortez, 2003: 281-300.
ROUQUIÉ, Alain, LAMOUNIER, Bolívar e SCHVARZER, Jorge. Como renascem as
democracias (orgs.). São Paulo: Brasiliense, 1985.
113
SADER, Emir (org.) Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro
Marini. Petrópolis/Buenos Aires: Vozes/Clacso, 2000.
SARTI, Ingrid. Da outra margem do rio. Os partidos políticos em busca da utopia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará/Faperj, 2006.
SEGATTO, J.A. e SANTOS, R. A valorização da política na trajetória pecebista. In:
RIDENTI, M e REIS, D. A. (orgs). História do marxismo no Brasil. Campinas:
Unicamp, 2007: 13-62.
SODRÉ. Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1963, 2ª ed.
STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à Nova República. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984, 2ª ed.
VIEIRA, Roberto Átila Amaral. Crônica dos anos Geisel. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária/Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, 1987.
Revistas, textos avulsos e documentos das organizações
BRASIL SOCIALISTA, n
os
2, 5, 8 e edição especial.
JORNAL O TRABALHO, n
o
11.
PO. MARXISMO MILITANTE, n
o
3.
MEP. TEORIA E PRÁTICA, n
os
4, 6 e 7.
MR-8. Carta aos companheiros da APML, 1978.
PO. Em defesa do voto nulo, s/d.
PRESTES, Luiz Carlos. Carta aos comunistas, s/d.
REVISTA DO PMDB. Esperança e Mudança. Uma proposta de governo para o Brasil.
Rio de Janeiro: Fundação Pedroso Horta, n
o
4, out./nov., 1982.
UNIDADE PROLETÁRIA, n
os
17 e 38.
VILLA, Raul. Notas sobre a tática, s/d.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo