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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ALUNO E PROFESSOR NO CONTEXTO DE AULAS DE CANTO:
A VOZ E A EMOÇÃO PARA ALÉM DO DOM E DA TÉCNICA
Aluna: ADRIANA LUÍSA PINTO BRAGA
Brasília, 2009.
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1
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ALUNO E PROFESSOR NO CONTEXTO DE AULAS DE CANTO:
A VOZ E A EMOÇÃO PARA ALÉM DO DOM E DA TÉCNICA
Aluna: ADRIANA LUÍSA PINTO BRAGA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade de Brasília/UnB como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre.
Brasília, 25 de maio de 2009.
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
ALUNO E PROFESSOR NO CONTEXTO DE AULAS DE CANTO:
A VOZ E A EMOÇÃO PARA ALÉM DO DOM E DA TÉCNICA
Aluna: ADRIANA LUÍSA PINTO BRAGA
Orientadora: Profa. Dra. MARIA CARMEN VILLELA ROSA TACCA
Banca Examinadora:
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria Carmen Villela Rosa Tacca (Orientadora)
___________________________________________
Prof. Dr. Afonso Celso Tanus Galvão (Examinador)
____________________________________________
Profa. Dra. Albertina Mitjáns Martínez (Examinadora)
______________________________________________
Prof. Dr. Paulo Sérgio de Andrade Bareicha (Suplente)
3
A meus pais, José e Usma, pelo
carinho, pelo amor e dedicação, e por
tornarem possível a realização de
mais esse sonho.
4
AGRADECIMENTOS
Ao único Deus, criador do céu e da terra, que, na sua infinita sabedoria, derrama a cada
dia sobre mim a capacitação para realizar todos os projetos. Louvado, Glorificado,
Bendito e Engrandecido seja o nome do Senhor, para todo sempre!
A minha abençoada família: meus pais (José e Usma), meus irmãos (Isabel, Ricardo e
Ana), meus cunhados (Cláudio, Rogério e Maria), meus sobrinhos (Amanda, Beatriz,
Júlia, Larissa, Matheus e Gabriela) e minha avó (Zina), pelo amor diário e apoio
constante nas minhas empreitadas.
Às amigos Maria, Cláudia, Bianca, Catarina, Yara, Patrícia, Regina, Henriqueta, Rejane e
Vera, pela força na realização deste trabalho.
Às amigas do MODA, ao Jabes, aos membros do grupo familiar e do Coral da IPA, à
minha mãe, por me sustentarem em orações.
A todos os participantes - professores e alunos, e à direção da escola, que abriu às
portas para que fosse possível a realização desta pesquisa.
Aos colegas, professores, funcionários e à direção do Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação – FE/UnB.
A minha querida orientadora, Maria Carmen Tacca – escolhida especialmente por Deus!
– que com muita dedicação, paciência e tranqüilidade, qualidades inerentes a uma
pedagoga de alto nível, me conduziu na elaboração deste trabalho.
Às professoras Albertina Mitjáns Martínez e Cláudia Costa, e aos professores Afonso
Galvão e Paulo Bareicha, por compartilharem seus conhecimentos e me ajudarem na
composição deste trabalho.
Aos meus alunos, coristas e colegas de profissão com quem compartilho todo este
aprendizado.
A todos que, de alguma forma, tenham contribuído para a construção desta pesquisa.
5
Eu diria que os educadores são como as velhas
árvores. Possuem uma face, um nome, uma “estória”
a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale
é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada
aluno é uma “entidade” sui generis, portador de um
nome, também de uma “estória”, sofrendo tristezas e
alimentando esperanças. A Educação é algo pra
acontecer nesse espaço invisível e denso, que se
estabelece a dois. Espaço artesanal. (RUBEM
ALVES).
6
RESUMO
Tendo em vista o processo ensino-aprendizagem de canto, pretendemos investigar,
neste trabalho, como aparece a integração entre conteúdos técnicos e musicais com
emoções e vivências presentes no contexto das aulas, e suas implicações nos avanços
dos alunos. Tivemos como objetivos: conhecer as bases de organização do espaço de
ensino-aprendizagem em canto; apreender os aspectos que o professor de canto prioriza
para definir suas ações pedagógicas; identificar de que formas o próprio aluno organiza e
expressa seu processo de aprender canto, e como ele se posiciona em relação às ações
do professor e dos próprios colegas; investigar como se configuram as relações, a
comunicação dialógica entre professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso
participa da aprendizagem. Para tanto, utilizamos uma abordagem qualitativa, na qual se
desenvolveu um processo de construção interpretativa de produção do conhecimento.
Como procedimentos, fizemos uso de indutores escritos (questionários), conversações
formais e informais, e observações de aulas. Participaram da pesquisa 2 professoras e 4
alunas de canto de uma escola pública de música de nível profissionalizante, localizada
no Distrito Federal. Os resultados obtidos revelaram que, a despeito de os aspectos
técnicos e musicais exercerem grande força no momento de definição das ações
pedagógicas dos professores, nas relações sociais que compõem o contexto ensino-
aprendizagem de canto também há espaço para emoções e vivências, para o diálogo e a
aprendizagem reflexiva, para negociações, bem como para compartilhar o objeto de
conhecimento e para a colaboração entre os sujeitos que compõem o ambiente de sala
de aula.
Palavras chave: Canto; Ensino-aprendizagem; Relação Social; Emoção; Técnica Musical.
7
ABSTRACT
Taking into account the teaching-learning process of singing, we intend to investigate in
this work, how the integration arises between technical and musical contents with
emotions and experiences in the class environment as well as its implications in
students’ progress. We focused on the following aspects: to know the basis of the
organization of the teaching-learning environment in singing, learn what aspects the voice
teacher prioritizes in order to define his pedagogical actions. We also intended to identify
how the student himself organizes and express his learning process, how he reacts before
the teacher’s actions and his classmates investigate how the relations are shaped, the
communication between the teacher and the student in the singing environment and what
this aspect participates in the learning process. Therefore, we use a qualitative approach,
in which a process of interpretative production of knowledge was developed. We used
some procedures such as printed inducer (questionnaires), formal and informal
conversions and class observations. Two professors and four voice students from a
professional training public school in Distrito Federal-Brazil participated in the research.
The results expressed that the musical and technical aspects played a major role in the
definition of professors’ pedagogical actions, in the social relations that compose the
singing teaching and learning context. There is also an opportunity for experiences and
feelings for the dialog and reflexive learning, negotiations as well as sharing experiences
of the subject and cooperation between the agents that compose the class environment.
Key words: Singing; Teaching-Learning; Social Relation; Emotion; Musical Technique.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................9
1. O CANTO EM PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM: ALGUMAS
ESPECIFICIDADES A SE CONSIDERAR..............................................................................16
2. ALGUMAS PARTICULARIDADES DA FORMAÇÃO E PRÁTICA DO PROFESSOR DE
MÚSICA ..................................................................................................................................23
2.1
A MÚSICA ENQUANTO HABILIDADE....................................................................................27
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM COM
BASE NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL.............................................................35
OBJETIVOS DA PESQUISA: .................................................................................................47
O
BJETIVO GERAL ...................................................................................................................47
O
BJETIVOS ESPECÍFICOS .......................................................................................................47
4. METODOLOGIA..................................................................................................................48
4.1 SOBRE AS QUESTÕES METODOLÓGICAS ............................................................................48
4.2
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA .............................49
4.3
A ENTRADA NO CAMPO .....................................................................................................52
4.3.1 O local escolhido para a pesquisa..........................................................................52
4.3.2 A seleção dos participantes....................................................................................53
5. DOS RESULTADOS ...........................................................................................................57
5.1
A ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE CANTO...................................57
5.1.1 O espaço físico.......................................................................................................57
5.1.2 O ingresso dos alunos na instituição ......................................................................60
5.1.3 O percurso das professoras participantes ..............................................................63
5.1.4 O espaço pedagógico.............................................................................................66
5.2
OS ASPECTOS QUE O PROFESSOR DE CANTO PRIORIZA PARA DEFINIR SUAS AÇÕES
PEDAGÓGICAS
.......................................................................................................................73
5.2.1 Questões técnicas e musicais ................................................................................73
5.2.2 Dos aspectos pedagógicos.....................................................................................82
5.3
COMO O PRÓPRIO ALUNO ORGANIZA E EXPRESSA SEU PROCESSO DE APRENDER CANTO; DE
QUE FORMAS ELE SENTE
, COMPREENDE E SE POSICIONA EM RELAÇÃO ÀS AÇÕES DO PROFESSOR E
DE SEUS COLEGAS
.................................................................................................................90
5.3.1 Sobre as motivações para o ingresso das alunas participantes no contexto do
Canto...............................................................................................................................90
5.3.2 Questões técnicas e musicais ................................................................................95
5.3.3 Dos aspectos pedagógicos.....................................................................................99
5.4
COMO SE CONFIGURAM AS RELAÇÕES, A COMUNICAÇÃO DIALÓGICA ENTRE PROFESSOR E
ALUNO NO CONTEXTO DE CANTO
, E DE QUE FORMA ISSO PARTICIPA DA APRENDIZAGEM DO ALUNO
..........................................................................................................................................108
6. CONCLUSÕES .................................................................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................121
REFERÊNCIAS .................................................................................................................122
ANEXO
1 QUESTIONÁRIO INICIAL DA PESQUISA (ALUNOS) ..................................................125
ANEXO
2 - QUESTIONÁRIO INICIAL DA PESQUISA (PROFESSORES).........................................126
ANEXO
3 GUIA PARA CONVERSA COM ALUNOS PARTICIPANTES ..........................................127
ANEXO
4 GUIA PARA CONVERSA COM PROFESSORES PARTICIPANTES ................................128
ANEXO
5 ORGANOGRAMA DA ESCOLA..............................................................................129
9
INTRODUÇÃO
O conceito de música, na academia, foi elaborado por diferentes autores. Aqui
selecionamos uma definição na qual Keldïsh apud Nettl (2001) faz uma relação entre
música e fala, uma das formas de expressão da voz. Assim, na concepção do autor
temos que música é:
Uma forma de arte que reflete a realidade e tem um efeito no ouvinte
por meio de resposta intelectual e combinações sonoras. [...] Ao
expressar imagens mentais e emoções em forma auditiva, a música
pode ser identificada como forma de comunicação humana e como
influência no estado psicológico da mente. Esta influência é possível por
causa da harmonia física e biológica da sensibilidade musical dos seres
humanos (mais do que em outros seres vivos) e da psicologia humana,
especialmente as emoções, e dos sons enquanto estímulo e sinal de
atividade. De certa forma, há uma analogia entre música e fala,
especialmente a entonação da fala, na qual os sentimentos
interpessoais e atitudes para com o mundo exterior são expressos com
alterações de altura e por outros sons vocais expressivos
característicos. Esta analogia faz com que seja possível identificar a
natureza da música de acordo com a entonação (p. 432)
1
.
A palavra ‘música’, vem do Grego ‘mousikē e referia-se originalmente aos
produtos ou trabalhos das nove Musas. O seu uso foi se restringindo paulatinamente para
as artes, em geral relacionado ao termo moderno, o que sugere uma concepção de
música como a quintessência de artes e ciências na qual as Musas eram patronas,
embora nenhuma das deusas fosse explicitamente associada com música em seu
sentido moderno. Para se incluir a palavra ‘música’ em um dicionário de música é
necessário que se tenha uma definição autorizada ou um tratamento devidamente
compreensivo do conceito de música, em todos os locais, em todas as épocas e em
todos os sentidos. Este último requer discussões a partir de vários pontos de vista,
incluindo o biológico, lingüístico, psicológico, histórico, filosófico, teológico, antropológico,
além de médico e jurídico, juntamente com o musical no sentido mais amplo (NETTL,
2001).
1
O texto acima é tradução livre do trecho que se segue: “A form of art that reflects reality and has an effect on
the listener through the intellectual response and sound combinations…. By expressing mental images and
emotions in aural form, music can be identified as a form of human communication and as an influence on the
psychological state of mind. This influence is possible because of the physical and biological harmony of the
musical sensitivity of human beings (as many other living beings) and human psychology, especially
emotions, and of sound as a stimulus and signal for activity. In some ways, there is an analogy between music
and human speech, especially speech intonation, where the intrapersonal feelings and emotional attitudes
towards the outer world are expressed by alterations of pitch and by other characteristic expressive vocal
sounds. This analogy makes it possible to identify the nature of music according to intonation” (Yuri Keldïsh, in
the Russian music encyclopedia Mizïkal’ naya entsiklopediya, Moscow, 1973-82).
10
A música é parte da cultura do ser humano. Desde o período de gestação, por
meio das batidas do coração, pelo contato com os sons externos à barriga da mãe, o
ritmo, os sons, a música, tendem a provocar reações do bebê. No momento do
nascimento, o choro, e a referência auditiva que muda em relação ao mundo, agora é
percebido de outra forma. A fala de outros, os sons emitidos por animais, as cantigas de
ninar, a música ambiente, os brinquedos sonoros, os diversos ruídos do dia-a-dia, tudo
contribui para estimular a percepção auditiva da criança. Desta forma, o mundo dos sons
se apresenta ao ser humano ainda quando pequeno e aos poucos a música passa a
fazer parte de sua vida.
No decorrer dos anos, o contato do indivíduo com a música varia de acordo com a
forma como ele a vivencia. Alguns se relacionam com ela preponderantemente como
ouvintes – ou apreciadores, por meio de músicas veiculadas em rádios, TVs,
computadores, CDs, DVDs, shows ao vivo, concertos, festas, entre outros. Há aqueles
que têm a oportunidade de vivenciá-la um pouco mais de perto em aulas de Educação
Musical, ou ingressando em corais, bandas, orquestras, dentro de colégios, faculdades,
empresas públicas ou privadas, ou mesmo em grupos alternativos. Outros, ainda,
buscam uma escola de música a fim de poder se dedicar ou de obter mais atenção de um
professor que, comumente, trabalha em sistema de aulas individuais.
Em nosso entendimento, assim como existem formas diferentes de se vivenciar a
música, pode haver diferentes formas de ‘ser músico’. Existe, por exemplo, aquele que se
dedica à prática musical diariamente, podendo estar (ou ter estado) vinculado a uma
instituição formal de ensino, ter buscado ajuda de um professor particular, ou de colegas
mais adiantados, o que também caracteriza uma vivência prática, ainda que não formal,
como cantor ou instrumentista.
Há ainda aquele que poderia ser comparado ao ‘atleta de fim-de-semana’, como é
o caso, por exemplo, de algumas pessoas que participam de grupos de música em
igrejas, ou mesmo os que tocam em ‘rodinhas de violão’, ou seja, praticam a música
quando são ‘solicitados’ ou quando é do seu interesse fazê-lo. Não é nossa intenção
esgotar essas possibilidades aqui, tão pouco julgar o mérito de umas em detrimento de
outras. Neste trabalho, no entanto, tratamos da primeira forma de ‘ser músico’
apresentada, ou seja, daquela pessoa que busca a prática musical em uma instituição.
Aqueles que optam pelo ensino formal em escolas de música freqüentemente se
deparam com uma concepção que se perpetua no meio musical de que para ser músico
é necessário possuir o chamado ‘dom’ ou ‘talento’. Volta e meia se ouve: “esse aí não
11
tem jeito... ele não nasceu com o dom da música... não tem talento... é melhor procurar
outra coisa para fazer”.
De acordo com Schroeder (2004), “parece haver um consenso em relação ao fato
de que todo músico demonstra um forte ‘talento musical’, às vezes também denominado
‘musicalidade’ e que, via de regra, é detectado bem cedo” (p. 111). Segundo a autora,
conceituados educadores musicais possuem concepções inatistas de termos como
‘talento’, ‘musicalidade’, ‘dom’, ainda que divirjam um pouco na definição destes
conceitos.
Conforme Schroeder (2004), Violeta Gainza concebe o ‘talento musical’ como
“uma musicalidade precocemente madura” (p. 111); e Edgar Willems afirma que “o dom
musical não tem nada de absoluto, [...] é relativo e [...] se pode representá-lo
esquematicamente por uma escala de cifras que vão do zero ao infinito” (p. 112).
Schroeder ainda analisou outros autores, dentre os quais Dalcrose, Howard, e Schafer; e,
em suas palavras, “todos eles de algum modo reafirmam a crença na musicalidade como
algo natural, intrínseco ao ser humano, a ser despertado pela educação” (p. 112, nota de
rodapé).
Estamos de acordo de que existam indivíduos cujas condições para se
desenvolver musicalmente extrapolam, por assim dizer, o comum. Entretanto, o fato de
haver pessoas com condições que favoreçam o aprendizado, a execução musical –
como, por exemplo, configurações anatomofisiológicas – não anula a possibilidade de se
tornarem bem-sucedidos aqueles que não possuam as mesmas condições.
Outro pensamento comum que guarda relação com os conceitos ‘talento’, ‘dom’,
‘habilidade musical’ é: ‘aquele que nasceu desafinado, vai morrer desafinado’. Em
pesquisa realizada sobre desafinação vocal, Sobreira (2002) afirma que geralmente os
adultos que se consideram desafinados estão convencidos de que não possuem nenhum
talento ou habilidade musical. Ainda assim, segundo a autora, eles buscam se aproximar
do mundo musical por meio de ingresso em corais ou em aulas de canto, o que
demonstra a sua necessidade em vivenciar experiências musicais.
Sobreira (2002) alega que, embora o conceito ‘desafinação’ abranja vários
significados, a relação entre ‘ser desafinado’ e ‘não possuir talento ou habilidade musical’
é freqüente na cultura ocidental. Ela também esclarece que os padrões de
afinação/desafinação estudados pela física, especificamente pela acústica, não são
12
suficientes para explicar todos os aspectos referentes a este tema, uma vez que
dependem em grande parte do fator cultural
2
.
Entretanto, a crença no ‘talento’ ou ‘dom’ parece ser tão arraigada na cultura que,
às vezes, aquele que sempre sentiu vontade de cantar, de tocar um instrumento e, de
início, necessitava de certa ajuda e incentivo, acaba desistindo, certo de que ‘não tem
jeito pra coisa’. Uma tentativa frustrada pode significar uma atitude de distanciamento em
relação à música.
Mas será que a ‘deusa’ música é tão inatingível? O que pode levar uma pessoa a
achar que o fazer musical é só para alguns? Talvez o fato de ela se sentir meio
descoordenada quando tenta reproduzir determinado ritmo; ou porque de início ela ‘não
tenha um ouvido muito apurado’, o que pode dificultar a reprodução de melodias ao
cantar ou ao tocar um instrumento; ou ainda a razão de que, para ser um grande virtuose,
o indivíduo precise estudar muitas horas por dia. Não pretendemos aqui esgotar as
possibilidades de resposta para tal questionamento.
De fato, pensamos que qualquer indivíduo que intenta aprender música pode
fazê-lo: cada um do seu jeito, por razões ou sentimentos que ele próprio elege como
relevantes. Nem todos se tornarão músicos profissionais. Não por falta de capacidade ou
‘talento’, como alguns preferem dizer, mas, por terem motivações diferentes ao buscarem
se relacionar com a música.
Um quer estudar com o fim de “fazer terapia, relaxar”; outro, “quero tocar – ou
cantar – para mim mesmo”; um terceiro, “porque eu quero poder compartilhar a música
com os amigos em uma ‘rodinha’ de violão”; há aquele que, mesmo não se dedicando em
tempo integral, tem a música como uma segunda opção de trabalho; e há quem decida
fazer da música a sua profissão. Assim, a música pode ser vivenciada de diversas
formas, não sendo, desse modo, uma mais importante que outra, mas apenas enfoques
diferentes.
Por haver diferentes formas de se vivenciar a música, entendemos, também, que
há formas diferentes de aprendizagem, de execução musical. Uma pessoa que una
‘talento’ e dedicação diária ao instrumento ou voz provavelmente terá um resultado
musical superior ao que só possua ‘talento’, mas que não se dedique, ou àquele que
pratica diariamente, mas que não seja dotado de ‘talento’.
2
De acordo com Sobreira (2002), uma pesquisa desenvolvida pelo antropólogo John Messenger (conforme
Kingsbury, 1988) sobre os Anang Ibibio (Nigéria) revela que o conceito “desafinação” não existe na língua
Anang, uma vez que para eles, apesar de alguns cantores serem considerados mais hábeis do que outros,
todos podem cantar bem. A autora também cita uma pesquisa feita por Roberts e Davies (1976), na qual é
revelado que povos que utilizam idiomas de variações de alturas, como os do Vietnã, também desconhecem
a desafinação (p. 31).
13
Sendo ou não possuidor de ‘dom’, ‘talento’, ‘musicalidade’, um dos espaços que o
indivíduo interessado encontra para vivenciar a música mais de perto é a escola
especializada, na qual aquele que ensina muitas vezes é responsável por introduzi-lo
formalmente à música. Deste modo, a maneira de o professor conduzir os trabalhos, o
que parece refletir a forma como ele apreende intelectual e afetivamente o aluno, talvez
seja determinante na relação que se estabelece entre o aprendiz e o objeto de
aprendizagem, no caso em discussão, a música, especificamente, o canto.
O professor se encontra em uma posição privilegiada de poder criar condições
favorecedoras para que esta relação seja estabelecida de forma prazerosa, permitindo,
assim, que um desenvolvimento impactante aconteça. É ele quem, comumente, decide o
que será prioridade na seqüência das ações ligadas ao programa curricular, define as
questões técnicas e musicais, bem como orienta o repertório – conjunto de peças
musicais – a ser desenvolvido.
Talvez possamos dizer que, quanto mais iniciante é o aluno, mais dependência
ele tem das ações do professor, e que, por conseqüência, a relação de confiança
estabelecida entre eles cria uma atmosfera promissora para o processo ensino-
aprendizagem, no qual um dos principais objetivos é devolver ao aluno as decisões
relativas ao contexto de sua própria aprendizagem, possibilitando, assim, que o processo
de aprender também se desenrole de forma crítica e reflexiva.
A maneira como se desenvolve esta relação de confiança está vinculada ao
contexto das relações sociais constituídas em sala de aula. Aluno e professor trazem
uma bagagem de vivências, emoções, formas particulares de dialogar, experiências
ligadas ao processo ensino-aprendizagem, entre muitos outros aspectos que fazem parte
da história de vida de cada um.
Desta forma, pode haver um sujeito que intenta aprender a cantar a despeito de
ter sido rotulado como “desafinado”; ou alguém que procure aulas de canto mesmo
estando convicto de “não possuir uma boa voz”; ou, ainda, aquele que pertence ao grupo
dos que, apesar de nunca terem passado por um estudo formal de canto, “possuem uma
voz privilegiada”, e busque ajuda a fim de aprimorar suas condições vocais.
Pode haver também aquele professor que, por experiência própria, pensa que o
“desafinado” nunca poderá cantar bem; ou que um dos requisitos para se aprender a
cantar é possuir a priori um “bom material vocal”; pode haver ainda o professor que
prefere um aprendiz totalmente inexperiente a fim de, por exemplo, perceber no
desenvolvimento deste aluno, as suas contribuições.
14
O contexto de aulas de canto é, então, permeado por emoções, significados e
vivências que compõem a relação estabelecida entre professor e aluno, no alcance dos
objetivos propostos. Se, por exemplo, o professor entende que, para se tornar cantor, o
indivíduo necessita possuir, a priori, uma ‘voz privilegiada’, trabalhar com aquele que
necessita de ajuda para desenvolver o aparato vocal pode se tornar um problema.
Da mesma forma, pode haver complicações no contexto das aulas se um
indivíduo ‘desafinado’ intenta aprender a cantar com um professor que concebe a
afinação como condição inata e, por esta razão, desconsidere a possibilidade de tal
indivíduo ser bem-sucedido como cantor. Assim, a sintonia entre as emoções, as
vivências, os significados entre professor e aluno poderá influenciar no desenrolar das
aulas e, por conseqüência, no desenvolvimento do próprio aluno.
Deste modo, questionamos: Como essas formas de ver e compreender o aluno
e suas potencialidades estão presentes na situação de sala de aula, no sentido de
auxiliar ou de dificultar o processo de aprendizagem do aluno em canto? De que forma o
professor de canto apreende e considera as vivências, as emoções, as formas de
comunicação trazidas pelo aluno? O que o professor prioriza para definir as suas ações
pedagógicas no âmbito desta área de estudos? O que ele entende como sendo a sua
função enquanto professor desta habilidade musical? Como e quais as ações do
professor de canto possibilitam avanços do aluno? E o aluno, como compreende as suas
formas de aprender a cantar? Será que ele coloca somente nas ações do professor de
canto as suas possibilidades de aprendizagem?
Tendo como norte questões como estas é que desenvolvemos este trabalho.
Assim, intentamos investigar como se configuram as relações, a comunicação dialógica
entre os professores e alunos nas aulas de canto, de modo a caracterizar a forma como
aparece a integração entre os conteúdos técnicos e musicais com as emoções, as
vivências desses sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem de canto.
Pretende-se também identificar quais as expectativas e os aspectos priorizados pelos
professores ao definir suas ações pedagógicas e, em contrapartida, conhecer como o
aluno apreende – afetiva e intelectualmente – as suas possibilidades de aprender
mediante as ações do professor.
Partindo de nossa convivência na prática, temos a indicação de que o meio
musical, aqui representado pelo contexto de aulas de canto, ainda é permeado por uma
concepção inatista na qual, como já discutimos, para que a aprendizagem musical seja
bem-sucedida, é necessário possuir “dom”, “talento”, “musicalidade”.
15
Dentro desta concepção ainda se encontra, como condição sine qua non para o
sujeito que almeja aprender canto, a necessidade de que saiba, a priori, cantar
afinadamente e de que possua um “bom material vocal”. Em um contexto assim
configurado é comum que tanto aluno quanto professor estejam em busca de uma
especialização técnica e musical, cujo objetivo maior é o aprimoramento constante em
busca de uma performance o mais próxima possível da perfeição.
Desta forma, tanto as questões subjetivas, as emoções, o diálogo, as vivências,
e o próprio contexto relacional da aprendizagem, como o pensamento reflexivo, parece
que têm, para os professores, pouca relevância no momento de ensino-aprendizagem de
canto. O espaço pedagógico assim constituído cria barreiras para que o aluno seja
incentivado a ter avanços promissores no que intenta aprender e até mesmo a guiar a si
próprio em seu processo de desenvolvimento.
Para as discussões aqui propostas, o trabalho está dividido em cinco partes: a
primeira trata do processo ensino-aprendizagem do canto; a segunda, da formação e da
prática do professor de música, além de aspectos ligados à habilidade musical, nos quais
se inserem o professor de canto e a habilidade vocal, respectivamente; em terceiro estão
características do processo ensino-aprendizagem conforme o pensamento histórico-
cultural, perspectiva na qual se apóia o presente trabalho; a seguir se encontra a
metodologia utilizada no desenvolvimento desta investigação; por fim, estão a
interpretação e a análise dos resultados, que foram relacionados à literatura pertinente,
bem como as conclusões e considerações finais.
16
1. O CANTO EM PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM:
ALGUMAS ESPECIFICIDADES A SE CONSIDERAR
O processo ensino-aprendizagem de canto envolve considerações muito
particulares a respeito da voz. O fato de a voz ser um instrumento que faz parte do corpo
do próprio indivíduo pode favorecer e, ao mesmo tempo, tornar a aprendizagem de canto
mais complicada. Favorece no sentido de ser um instrumento no qual não há
dependência direta de objetos externos para ser executado. Entretanto, o fato de o
aparelho vocal estar localizado no próprio corpo, pode dificultar a execução tanto por
problemas físicos que o sujeito possa apresentar, quanto no âmbito emocional. No
âmbito físico, por exemplo, podem ocorrer tensões desnecessárias que apareçam
durante o ato de cantar, o que pode acarretar dores, rouquidão prolongada, entre muitos
outros problemas. O ato de cantar também pode sofrer interferências de aspectos
emocionais, uma vez que a voz manifesta o estado emocional do sujeito. É fácil perceber,
por exemplo, quando uma pessoa de nosso convívio não está bem emocionalmente
apenas pelo primeiro “alô” dito ao telefone. Da mesma forma, ao se cantar, o estado
emocional pode influenciar diretamente a performance, tanto para melhor, quanto para
pior.
Uma das peculiaridades da voz, de acordo com Behlau e Pontes (2001), é o fato
de ser “uma espécie de expressão sonora absolutamente individual”, o que pode ser
comparado à impressão digital (p. 15). Os autores explicam que o tipo de voz que o
indivíduo possui é, em parte, devido as suas características anatômicas, porém, a sua
identidade vocal se forma ao longo de sua vida, sofrendo modificações de acordo com a
história pessoal, os relacionamentos interpessoais, a idade, as condições ambientais, a
saúde física, a situação e o contexto de comunicação.
Behlau e Ziemer (1987) parecem ir além deste conceito quando argumentam ser a
voz o veículo da inter-relação do ser humano, de comunicação, um meio para se atingir o
outro. Segundo os autores, “a voz só existe porque existe o outro” (p. 72). Eles utilizam o
conceito formulado por Bonnier no qual a voz é considerada como “tato à distância”, o
que pode levar a uma reflexão sobre a razão pela qual algumas vozes nos “tocam” mais
do que outras, permitindo que a mensagem seja comunicada mais profundamente.
Na concepção de Costa e Silva (1998), “a voz é emoção”. Independente de ser
falada, cantada ou desprovida de sentido, ela revela o estado emocional do indivíduo (p.
164). Na mesma linha de argumentação Coelho (1999) observa que “a voz é também um
código de expressão da alma”, uma vez que revela as impressões mais profundas do
17
indivíduo através de sua forma de emissão, seu timbre (qualidade da voz: aveludada,
rouca, estridente, entre outras) e seu volume (intensidade: forte/fraca) (p. 11). Assim, é
possível dizer que a voz é uma representação muito forte do ser humano e uma das
projeções mais intensas de sua personalidade (BEHLAU; ZIEMER, 1987; BEHLAU;
PONTES, 2001).
Nas palavras de Behlau e Rehder (1997), “a voz é o som mais complexo e
sofisticado produzido pelo nosso corpo, de tal modo voluntário que podemos modificá-lo
e exercer sobre ele um controle excepcional” (p. 2). Uma das formas de se exercer
controle sobre a voz acontece durante o ato de cantar. Segundo as autoras, a produção
da voz cantada difere um pouco da voz falada:
Para a voz cantada, utilizamos as mesmas estruturas que produzem a
voz falada, porém, com diferentes ajustes devido às necessidades do
canto. De modo simplificado, a respiração passa a ser mais profunda,
as pregas vocais produzem ciclos vibratórios mais controlados e com
maior energia acústica, as caixas de ressonância estão expandidas e
introduzem uma maior amplificação ao som básico (p. 4).
Para Zander (2003), cantar é deveras complicado, visto que este ato sofre
interferências de fatores técnicos, humanos e psicológicos. De acordo com o autor, “o
cantor tem o instrumento mais natural de todos mas, ao mesmo tempo, um instrumento
complicado e difícil de dominar: a sua própria voz” (p. 198).
Essas particularidades da voz durante o ato de cantar se refletem, especialmente,
no processo ensino-aprendizagem. Uma delas é o fato de haver uma concepção de “voz
bonita”, cuja idéia central é que se a pessoa não nasce com uma “voz privilegiada”, ela
jamais poderá se destacar como cantora. Esta visão ainda parece ser compartilhada por
diversos professores de canto e, talvez, por ser politicamente incorreta, permaneça
velada. Costa (2001), por exemplo, quando discorre sobre o processo ensino-
aprendizagem do canto, declara que:
[...] o trabalho é realmente penoso e, por isso, será preciso reunir uma
série de fatores complementares, além de bom material vocal, quais
sejam: inteligência para o canto, musicalidade, boa saúde e disposição
para aceitar os rigores do ensino (p. 16). [grifo nosso]
A expressão “bom material vocal” parece estar próxima de “voz bonita” ou “voz
privilegiada”. A “inteligência para o canto” pode estar relacionada à facilidade que o
indivíduo “precisa ter” para entender e dominar os aspectos técnico-vocais, o que sugere
a interpretação de que alguns podem cantar, outros não. E a “musicalidade” parece estar
18
novamente ligada a uma concepção inatista, uma vez que faz parte da “série de fatores
complementares” que o indivíduo “precisa reunir” para poder aprender a cantar.
O discurso de Delanno (2000) difere do anterior. Às pessoas que se interessam
em estudar canto, ela explica que, mesmo quando se pensa que cantar bem ou mal é
definido antes de nascer, com “uma correta orientação, aliada a sua própria determinação
e experiência, é possível aprender e desenvolver as habilidades necessárias para o
canto” (p. 14). Sobre o fato de haver pessoas que, a despeito de nunca terem estudado
técnica vocal, cantam muito bem, a autora alega que existem pessoas que têm mais
facilidade para desenvolver as habilidades do canto, assim como em qualquer outra área.
Ela complementa sua argumentação dizendo que:
Normalmente essas pessoas desde criança já gostavam de cantar,
prestavam muita atenção às músicas, gostavam de imitar os cantores,
mesmo brincando já estavam pesquisando e aprendendo sobre suas
vozes (p 59).
Este argumento parece ter sintonia com o exposto anteriormente, de que o tipo
de voz não depende apenas das características anatômicas do sujeito, mas também de
sua história, contexto cultural, das relações interpessoais (BEHLAU; PONTES, 2001).
Entretanto, é relevante salientar que possuir uma ‘voz privilegiada’ parece ter relação
direta com a base anatomofisiológica do indivíduo. De acordo com Coelho (1999),
A constituição de cada pessoa tem suas próprias particularidades e
determina suas características vocais. Essas características não podem
ser fabricadas por nenhum professor de canto em nenhum aluno, nem
mesmo pelo próprio aluno em si mesmo, pois são elementos inerentes à
sua estrutura vital. No entanto, podem ser pesquisadas, descobertas e
exploradas até o seu ponto mais belo e produtivo (p. 12).
Falar em “pesquisar a voz” nos remete à técnica vocal. É de praxe que o cantor,
além de trabalhar o repertório, faça uso de exercícios técnicos para desenvolver e
conservar suas habilidades vocais. Dentre eles se encontram os de relaxamento, os de
respiração e os chamados ‘vocalises’, que são exercícios cantados, elaborados
usualmente com vogais, consoantes, sílabas, palavras e frases (MARSOLA; BAÊ, 2001).
De acordo com Coelho (1999), “vocalisar é exercitar e desenvolver possibilidades
técnicas da habilidade vocal” (p. 67). Os vocalises podem assumir diversas funções.
Servem, por exemplo, para aquecer a voz antes de executar o repertório – como, por
exemplo, um jogador de futebol necessita aquecer os músculos antes de entrar em
campo; têm a função de trabalhar a articulação das palavras, com o intuito de melhorar a
19
dicção; servem para melhorar a afinação das notas musicais entoadas. Eles também
auxiliam no posicionamento da voz (impostação) de acordo com o estilo musical a ser
executado, por exemplo: um cantor de ópera posiciona sua voz de forma diferente de um
cantor de rock, sendo este um dos principais fatores que nos permitem distinguir os
estilos de um e de outro. Para Coelho (1999), os vocalises podem ser de aquecimento
trabalhando principalmente a ressonância e a articulação, e de virtuosidade – com ênfase
na extensão e a agilidade vocal.
Os vocalises também são usados para se fazer a classificação geral de uma
voz, como no caso de um primeiro contato do professor de canto com seu aluno.
Segundo Costa (2001), a classificação vocal exige do professor uma experiência
considerável e não deve ser feita apressadamente. Sobre este aspecto, o autor alega
que:
Os fatores absolutos para se classificar a voz são o timbre e a tessitura.
Os elementos relativos definem-se pela constituição do indivíduo [...] As
vozes classificam-se em baixo, barítono, tenor, para os homens e
contralto, meio-soprano e soprano, para as mulheres, havendo entre as
mesmas uma subdivisão, considerando o timbre de cada uma (p. 67).
O autor dispôs as vozes, tanto masculinas quanto femininas, da mais grave para
a mais aguda. O termo ‘tessitura’ se refere à região de conforto e brilho de uma voz,
diferente da ‘extensão’, que é a distância entre o som mais agudo e o mais grave que a
voz (ou um instrumento musical) pode atingir.
Um fato que guarda relação direta com as habilidades
3
vocais é que o seu
desenvolvimento também depende de treinamento, o que parece estar ligado à
consciência técnica-vocal que o sujeito necessita desenvolver para avançar na execução
musical propriamente dita. Entretanto, a preocupação excessiva com a técnica vocal
pode gerar cantores pouco expressivos, o que é bem ilustrado pelos argumentos de
Coelho (1999):
Muitas vezes o cantor apresenta postura, respiração, articulação e
ressonância corretas; no entanto, canta como se estivesse anestesiado,
apático, absolutamente indiferente e distante do que está fazendo.
Outras vezes, excessivamente preocupado com o próprio virtuosismo.
[...] A comunicação expressiva faz parte do perfeito mecanismo vocal:
saber o que está falando ou cantando, dar um sentido específico a cada
momento da emissão, envolver-se emocional e afetivamente e não
com a técnica (p. 12).
3
O capítulo dois deste trabalho traz uma discussão a respeito de habilidades musicais, na qual poderão ser
obtidos mais esclarecimentos sobre o tema.
20
É fato que o cantor depende do controle de suas habilidades vocais durante a
performance. Entretanto, talvez ele consiga avançar mais se a técnica for posta a serviço
da própria música.
Outro aspecto relevante no contexto ensino-aprendizagem de canto é a
afinação. Como já mencionado, é comum se encontrar pessoas que não atinjam o padrão
cultural de afinação durante o ato de cantar. Por isso são chamados ‘desafinados’. É
desafiador convencer alguém que passou a vida ouvindo “você desafina muito! Cante
baixinho, ou melhor, duble, senão poderá atrapalhar os outros”, que é possível aprender
a cantar de forma afinada.
Temos diversos exemplos de alunos, coristas, e até colegas com um nível de
desafinação vocal bastante acentuado, que conseguiram aprender a cantar afinadamente
após a utilização de exercícios técnicos associados aos aspectos singulares do sujeito
envolvido.
Um destes casos aconteceu durante a graduação, quando prestávamos serviços
de monitoria na disciplina Percepção Musical. Ao final dos trabalhos – que duraram dois
semestres, ficamos surpresas em presenciar um dos alunos sendo muito bem-sucedido
ao fazer correções na afinação de outra pessoa. É importante ressaltar que, durante as
aulas procurávamos buscar as formas de pensar, de sentir dos alunos, bem como
respeitar as singularidades envolvidas no processo de aprendizagem.
Outra situação interessante foi a de um corista que participava de um grupo no
qual atuávamos como regente. Ele tinha muita perseverança e vontade de cantar, mas se
sentia inseguro por se achar ‘desafinado’. Combinamos, então, que faríamos, meia hora
antes dos ensaios do grupo, um trabalho para melhorar a sua afinação. Depois de algum
tempo de exercícios de treinamento, sempre procurando resgatar a sua autoconfiança
mesmo diante dos equívocos ocorridos durante os exercícios propostos, e atentando
para o seu modo de entender e sentir todo o processo, quando era solicitado ao grupo
que ajustasse a afinação – durante ensaios ou apresentações, era ele quem conseguia
fazê-lo com mais precisão.
Sobre problemas de afinação vocal encontramos as seguintes argumentações
de Marsola e Baê (2001):
Acreditamos que todas as pessoas que não possuem problemas físicos
de audição, podem cantar afinadas. Existem, também, problemas
psicológicos frente ao ato de cantar, falta de estímulo, ironias de amigos
e parentes que comparam pessoas de uma mesma família, crença no
DOM – que com certeza existe –, mas a educação do ouvido e
desenvolvimento da percepção musical são possíveis (p. 48). [grifo de
Marsola e Baê].
21
Ainda que ressaltem a existência do ‘DOM’, aqui as autoras parecem voltar o
olhar para as possibilidades do sujeito que necessita de ajuda para desenvolver o ouvido
musical e, conseqüentemente, cantar de forma afinada.
Outra peculiaridade do processo ensino-aprendizagem de canto é o fato de o
sujeito ter que lidar com sensações internas do corpo durante a execução vocal. Em
pesquisa que realizamos (BRAGA, 2007) sobre como se dá a relação entre corpo e voz,
de acordo com a compreensão de coristas, dois entre seis dos entrevistados alegaram
que o fato de o aparelho vocal estar localizado, em grande parte, dentro do corpo, faz
com que a aprendizagem se torne mais complicada. Um dos participantes lembrou a fala
da professora quando disse ser a voz “o único instrumento invisível”. O outro, quando
comparou o estudo de um instrumentista ao de um cantor, ressaltou que a execução pelo
tato, como acontece ao se tocar um instrumento musical, pode favorecer a
aprendizagem. Por esta razão, é possível afirmar que o ato de cantar envolve muitas
análises no âmbito das sensações internas do corpo.
Um dos problemas que deriva dessa necessidade de consciência corporal
durante o ato de cantar é o fato de o indivíduo não se ouvir da mesma forma que os
outros o ouvem. De acordo com Behlau e Pontes (2001), nós nos ouvimos por via
externa e interna. Em síntese, nos ouvimos por via externa quando a nossa voz sai pelos
lábios e/ou nariz, entra pelas orelhas e chega ao cérebro; por via interna, quando o som é
conduzido até as orelhas pela vibração dos ossos, principalmente da cabeça e do
pescoço.
Por isso, Behlau e Rehder (1997) argumentam que, além de dar as instruções
técnicas, o professor de canto precisa funcionar como um ouvido exterior capaz de
oferecer ao aluno um retorno de como a sua voz realmente está se processando. A
despeito de compreendermos que estas autoras são fonoaudiólogas e que,
provavelmente por isso, as suas argumentações giram em torno de funções técnicas do
professor, pensamos que as ações do professor de canto precisam ir além de dar
instruções técnicas e/ou funcionar como um ouvido externo. Um professor que procura
conhecer seus alunos, que busca, por meio do diálogo, as bases para as suas ações,
pode proporcionar grandes avanços na aprendizagem.
Esta forma de conduzir os trabalhos, no entanto, não é consensual entre os
professores de canto. Costa (2001), por exemplo, traz uma argumentação destoante da
anterior quando alega que o ensino do canto deve considerar
[...] a capacidade de assimilação e condições morfológicas de cada
aluno. As regras são as mesmas, embora os alunos sejam diferentes, e
22
resta ao professor aplicar seus conhecimentos didáticos para que o
discípulo entenda o que foi explicado. Não existe um método particular
e sim didática e conotações diferentes; o mais importante, porém, é
alcançar o resultado desejado. Será necessário exteriorizar com
máxima clareza as explicações, para que o aluno assimile os
ensinamentos. Deve-se também revelar suas experiências como cantor,
para que possam servir-lhe de exemplo (p.110).
Formulações como “as regras são as mesmas, embora os alunos sejam
diferentes”, e “o mais importante [...] é alcançar o resultado desejado”, sugerem uma
concepção mais tecnicista de ensino, na qual conhecer as particularidades e as
possibilidades singulares de cada aluno assume pouca relevância, o que também pode
ser percebido quando o autor afirma a necessidade de “exteriorizar com máxima clareza
as explicações, para que o aluno assimile os ensinamentos”.
Outro ponto a se ressaltar diz respeito às experiências como intérprete que,
segundo o autor, devem ser reveladas para que sirvam de exemplo ao aluno. Estudar
com professores que são prioritariamente intérpretes e que colocam a docência,
comumente, em segundo plano, pode acarretar problemas
4
.
Um exemplo disto vem de Coelho (1999) quando alega ser comum o professor
de canto transformar seus alunos em platéia para si mesmo, provocando, assim, um
clima de estrelismo extremamente desfavorável para o processo ensino-aprendizagem.
Em suas palavras, “educador é aquele que está comprometido com a aprendizagem de
seu educando; livre, portanto, da própria necessidade de auto-afirmação como cantor” (p.
16).
O que significa, então, ser “comprometido com a aprendizagem de seu
educando”? Como e quais são os requisitos necessários para que um músico, seja ele
cantor ou instrumentista, se torne professor? Como a formação técnica e musical
participa da prática docente deste? Partindo destes questionamentos nos encaminhamos
para o próximo capítulo, reservado à exposição de peculiaridades na formação e prática
do professor de música, da qual participa também o professor de canto.
4
Este tema será abordado de forma mais abrangente no próximo capítulo.
23
2. ALGUMAS PARTICULARIDADES DA FORMAÇÃO E PRÁTICA
DO PROFESSOR DE MÚSICA
O tema “formação e atuação docente do músico” é bastante polêmico e envolve
discussões de autores como Del Ben (2003), Hentschke (2003), Penna (2007), Borém
(2006), Pederiva (2005), Lacorte (2006), Requião, (2002), Gohn (2003), Schroeder
(2004), além de muitos outros. Questões sobre este tópico são levantadas, dentre outras
razões, por haver divergências na concepção de docência entre aqueles que se
capacitam para atuar como professores de música – os licenciados – e os que atuam
como professores, entretanto possuem apenas formação de músico-intérprete – os
bacharéis.
Um dos pontos discutidos é o fato de haver professores de música,
especialmente os que escolhem os cursos de formação para intérpretes, que se tornam
docentes não por opção, mas por necessidade de trabalho. Estes comumente concluem
seus cursos carentes de preparo pedagógico, uma vez que nos currículos de
bacharelado não existe grande preocupação com a formação de pessoas capacitadas
para a docência (PEDERIVA, 2005; BRAGA, 2007).
O pouco preparo pedagógico do músico-intérprete pode ser observado através
dos argumentos de Pederiva (2005) quando questiona: “[...] como está sendo realizada a
formação dos professores de música, ‘bacharéis-licenciados’, que estão atuando na
escola de música profissionalizante?” Ela explica que neste contexto existe o bacharel
que, a princípio, é preparado para ser instrumentista, mas que, ao concluir o curso,
“percebe que o mercado não contempla oferta para esse profissional, acaba se
engajando no ensino em tempo parcial ou total”. Por isso, o recém-formado busca cursar
disciplinas que possam capacitá-lo legalmente para atuar como docente, ao menos como
professor de instrumento.
Segundo a autora, o grande problema enfrentado pelo bacharel em música,
agora licenciado, é que as disciplinas de licenciatura não contemplam a didática do
instrumento musical, mas são direcionadas a ‘educadores musicais’, ou seja, professores
que atuam em escolas do ensino fundamental e médio. A autora ainda argumenta que “a
busca de um equilíbrio entre competências pedagógicas e músico-instrumentais seria
pré-requisito para a formação deste profissional” (p. 115, 116).
Sobre este tema encontramos a opinião de Hentschke (2003) que afirma haver
uma disparidade entre o chamado ‘educador musical’ e o músico instrumentista ou
musicólogo que trabalha como docente em cursos de graduação. Segundo a autora, o
24
educador musical, além de possuir “uma formação pedagógica sólida”, continuamente se
atualiza com o intuito de melhorar sua prática docente; enquanto que, “por outro lado,
tradicionalmente, o músico docente universitário (daí falo como estereótipo) tem praticado
uma proposta educacional mais tecnicista e tradicional de educação” (p. 54).
A disparidade também pode aparecer em relação ao aprofundamento técnico-
instrumental ou vocal. Comparado aos bacharéis, é comum que licenciados em música
tenham menos domínio instrumental ou vocal, visto que os seus cursos, em geral, não
contemplam uma formação sólida de instrumento ou voz. De acordo com Pederiva
(2005), “as competências pedagógicas seriam encontradas na licenciatura e a
competência músico-instrumental no bacharelado” (p.116).
Entretanto, Penna (2007), quando analisa propostas curriculares de três
licenciaturas em música – da Universidade Federal da Paraíba (UFPB/2005), da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/2003) e da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU/2006) – observa que ambas incluem, por sete ou oito períodos em seu
currículo, uma disciplina específica de caráter obrigatório nas áreas de canto ou
instrumento, com o intuito de reforçar o domínio e a vivência da linguagem musical, “o
que envolve experienciá-la significativamente de diferentes maneiras”. Segundo a autora,
“na licenciatura também se toca, embora sem o mito do virtuosismo, que ainda
permanece como uma meta ideal na maioria dos bacharelados” (p. 53).
A discussão sobre o tema pode ser enriquecida pela pesquisa de Requião
(2002), na qual a autora denominou de músico-professor aquele que
[...] teve uma formação profissional voltada para o desenvolvimento de
atividades artísticas na área de música, e que coloca a atividade
docente em segundo plano no escopo de suas atividades profissionais,
apesar dessa ser, freqüentemente, a atividade mais constante e com
uma remuneração mais regular em seu cotidiano profissional (p. 64).
A autora revela em sua investigação que o músico-professor é considerado um
docente capacitado uma vez que “sua competência produtiva é comprovada através de
sua atuação artística”. De acordo com Requião (2002), para o aluno, “o saber-fazer
comprovado do músico professor é o que legitima sua atividade docente” (p. 66). Ela
ainda observa que a atuação do músico-professor enquanto docente acontece
prioritariamente em escolas de música alternativas e em aulas particulares, e que estes
desenvolvem trabalhos especialmente através da música popular brasileira.
Entretanto, pode-se dizer que isto também ocorre no contexto da música erudita.
Como exemplo, citamos Del Ben (2003) quando afirma que, assim como muitos
25
bacharéis
5
, foi professora particular e de escolas específicas de música por nove anos, e
que sentiu falta de um preparo pedagógico para atuar como docente, uma vez que este
não era o objetivo de seu curso.
Todavia, afirma ela, “assim como a grande maioria de meus colegas, atuava
como professora e não como pianista” (p. 32). Assim, a argumentação da autora, bem
como a nossa própria experiência e de muitos outros colegas que conhecemos, nos
servem de respaldo para considerar esta uma situação comum tanto ao meio da música
popular quanto da erudita.
Outras informações partem de Lacorte (2006) em pesquisa feita sobre a
formação do músico popular. Nela, a autora explica que grande parte destes músicos,
assim que decidem por se profissionalizar, começam a ensinar alunos menos adiantados
e que, muitas vezes, a atuação docente acontece mesmo antes de o músico ter uma
formação sólida.
De acordo com a autora, os entrevistados destacaram que nos dias de hoje o
músico profissional necessita ser muito versátil e que, além de ter que tocar em locais
variados, como bares e shoppings, freqüentemente necessitam ministrar aulas de
instrumento no período diurno. Segundo os participantes, isto “ocupa [...] muito tempo e
acaba prejudicando um pouco o desempenho instrumental” (p. 112).
Lacorte (2006) ainda alega que a opção por se tornarem professores, mesmo
não tendo uma formação musical sólida, deve-se, especialmente, ao fator financeiro. Em
suas palavras, “segundo alguns músicos, o dinheiro recebido em shows e trabalhos na
noite nem sempre era suficiente para a sustentação e aprimoramento de seus estudos”
(p. 71).
Del Ben (2003), por sua vez, argumenta que o indivíduo deveria fazer a opção
pela docência em música por escolha própria, e não por falta de espaço profissional para
os bacharéis em música e/ou musicistas. Para ela, aqueles que se interessam por cursos
de licenciatura porque intentam atuar como professores de instrumento parecem pensar
que o ensino “exige o domínio de saberes específicos, diferentes daqueles oferecidos
pelo bacharelado” (p. 31).
A autora ainda discorre sobre a necessidade de um professor de música ter
tanto sólidos conhecimentos pedagógicos quanto musicológicos, seja ele professor de
5
A autora é Bacharel em Música (Curso na área de Música Erudita) pela Universidade Estadual de Campinas
– UNICAMP (1991). Possui curso-técnico profissionalizante em Música – Instrumento Piano
pelo Instituto
Metodista Educacional de Ribeirão Preto (1987), bem como os títulos de Mestre em Música (1997) e Doutora
em Música (2001), ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor adjunto
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
26
instrumento ou de educação básica. Em suas palavras,
Para ensinar música [...] não é suficiente somente saber música ou
somente saber ensinar. Conhecimentos pedagógicos e musicológicos
são igualmente necessários, não sendo possível priorizar um em
detrimento do outro [...] Precisamos estar atentos para buscar o
equilíbrio e uma maior articulação entre os campos da música e da
educação na formação de professores, sejam professores de educação
básica ou de instrumento [...] (DEL BEN, 2003, P. 31).
Assim, parece ser um equívoco achar que aquele que é um excelente
profissional em determinada área – médico, arquiteto, advogado, por exemplo – será, por
extensão, um ótimo educador. Da mesma forma, um prodigioso intérprete musical não
será, necessariamente, um exímio professor. Pederiva (2005) compartilha do mesmo
pensamento quando alega que o fato de o indivíduo apenas saber tocar um instrumento
não o torna preparado para ensinar. Em suas palavras, “o sucesso do ensino não provém
automaticamente do sucesso na execução musical” (p. 117).
Um dos problemas advindos dessa lacuna na formação de professores de
música é a adoção, pelos mestres, de métodos e/ou técnicas frutos de sua experiência
enquanto aprendizes, ou ainda, como intérpretes. Como exemplo, explicito uma situação
muito comum: o fato de haver professores que entendem ser suficiente apenas
demonstrar como se executa determinada peça musical, seguros de que o processo de
aprendizagem do aluno funciona somente pela repetição do que vê e/ou ouve.
Ensinar música, então, seria fazer o aluno simplesmente reproduzir aquilo que o
professor ou outro intérprete é capaz de executar? Segundo a concepção de Olson e
Bruner (2000),
Geralmente as práticas imitativas “simplesmente evoluem na forma de
hábitos” e não estão ligadas a uma teoria explícita nem são submetidas
à discussão [...] Sabe-se que simplesmente demonstrar “como fazer” e
proporcionar prática no fazer não são suficientes. Estudos demonstram
que apenas saber executar bem não faz com que um aprendiz alcance
o mesmo nível de habilidade real que aquele obtido quando se aprende
a executar bem, e ao mesmo tempo sabe-se, de algum modo conceitual
e consciente, porque se executa assim... (p. 27)
Penna (2007) também se pronuncia a respeito quando argumenta que o ensino da
música distancia-se da simples transferência de conhecimentos técnico-musicais no qual
se ensina da forma como se aprendeu, “[...] sem maiores questionamentos”,
reproduzindo “[...] um modelo de música [...]; um modelo de fazer musical; [...] um modelo
de ensino” (p. 51).
27
Um bom exemplo de professor ‘reprodutor de modelos’ veio de um colega de
curso de graduação que estudava com um pianista bastante renomado – um grande
intérprete. Ele narrou certa vez que por estar com dúvidas na parte técnica da execução
de determinada peça musical perguntou ao professor de que forma poderia resolver tal
dificuldade. O professor, então, passou a executar o trecho, entendendo, provavelmente,
que a simples demonstração pudesse esclarecer todas as suas dúvidas, encerrando, ao
final da execução, a sua interferência ‘pedagógica’. O colega saiu perplexo da aula e,
certamente, precisou da ajuda de outra pessoa para poder resolver o problema.
Esta concepção do professor de que a demonstração e a imitação são
suficientes para o processo de ensinar e aprender pode ter suas origens no fato de a
execução musical depender de habilidades específicas, conseguidas, entre outros
fatores, por meio de treinamento. Assim sendo, pensamos ser relevante uma discussão
sobre a natureza e a aprendizagem de habilidades, especialmente no que tange ao
contexto ensino-aprendizagem de música.
2.1 A Música Enquanto Habilidade
Krech e Crutchfield (1963) definem habilidade como “uma seqüência organizada
de ações, executada corretamente e que geralmente apresenta uma padronização
temporal sistemática flexível” (p. 116). Estes autores explicam que há uma extraordinária
variedade de habilidades quanto a sua natureza e a sua complexidade.
Como exemplo, eles citam habilidades verbais (falar, ler, escrever), habilidade
social (exercer uma função de líder em uma reunião), habilidades médicas (fazer
diagnósticos, realizar cirurgias), habilidade mecânica (consertar uma torneira que vaza), e
habilidades artísticas (pintar, tocar piano). Os autores também observam que:
Embora uma habilidade seja composta de reações condicionadas,
memorizações e respostas selecionadas, cada uma delas, quando
integrada numa habilidade, se torna modificada; o padrão da habilidade,
considerado como um todo, adquire características próprias e
inconfundíveis. [...] uma habilidade não é apenas “destreza muscular”,
nem deve ser descrita como uma “tradução muscular” de conhecimento
anterior, adquirido através da leitura ou da audição. Uma habilidade
envolve realização efetiva, e por isso o conhecimento que não inclui o
“conhecimento da realização” é apenas parte do conhecimento que
constitui uma habilidade. A execução de uma realização hábil pode
refletir conhecimento adquirido através de leitura, audição, gustação,
olfação e cinestesia (p. 106, 107, 108).
Assim, o domínio de uma habilidade não acontece apenas de forma mecânica,
28
mas é resultado de uma combinação de fatores que têm relação direta com as
características específicas da habilidade que a pessoa desenvolve, e com o
conhecimento e prática do próprio indivíduo em relação à mesma.
Para Klausmeier e Goodwin (1977), uma habilidade é definida operacionalmente
como “o nível de proficiência atingido ao se conduzir seqüências de ação de um modo
consistente (p. 384). Fitts, conforme os autores, explica que há três fases na
aprendizagem de habilidades: a primeira, fase cognitiva, na qual o indivíduo observa um
modelo, percebe instruções, descreve a habilidade para si mesmo e aprende a fazer as
respostas exigidas; na fase organizadora, “há menos ênfase no aspecto cognitivo e mais
no motor. Isto é, o controle é transferido para um programa interno”
6
; na última fase, de
aperfeiçoamento, “as habilidades altamente complexas são desempenhadas em um nível
automático” (p. 389).
Pelo contexto acima se pode dizer que há uma pequena distinção entre estes
autores e Krech e Crutchfield (1963), uma vez que, apesar de não lidarem com aspectos
culturais, históricos, emocionais, em alguns momentos Klausmeier e Goodwin (1977)
apontam para situações em que um ou mais destes aspectos poderiam fazer diferença.
Exemplo disso é: quando discorrem sobre a diferença de força física entre
meninos e meninas de 6 a 18 anos, medida a partir do aperto de mão, os autores
declaram que “a influência de fatores culturais sobre essa diferença entre os sexos, na
idade em que nenhum aumento adicional em força ocorre, não é conhecida” (p. 395). Ou
quando explicam a última fase da aprendizagem de habilidades (modelo de Fitts), o
aperfeiçoamento, eles ressaltam que “a combinação precisa de características motoras,
cognitivas e afetivas que produz esta estabilidade e este aperfeiçoamento contínuo não
foi claramente compreendida” (p. 389).
Entretanto, a simples menção destes fatores não parece ser suficiente para
diferenciá-los da perspectiva anterior, na qual o estudo de habilidades é centrado na
forma como acontecem os movimentos mecânicos do indivíduo.
Tratando especificamente do contexto da música, diversos autores
desenvolveram o tema “habilidades”. Aqui selecionamos alguns dos que, por vezes,
associam “habilidade” a conceitos como “treinamento”, “técnica”, “aptidão”, “talento”,
“genialidade”, “musicalidade”. Desta forma, estaremos discutindo um pouco a respeito
6
Segundo os autores, a perspectiva sobre aprendizagem de habilidades utilizada neste livro tem base em
teóricos de processamento de informação (Fitts, 1964, 1965; Miller, Galanter & Pribram, 1960; Posner &
Keele, 1973), “que indicam que o que é adquirido durante a aprendizagem de habilidades não é uma cadeia
de unidades ER [conforme outra perspectiva], mas um plano ou programa interno, análogo a um programa
que orienta a operação de um computador” (p. 383).
29
das concepções trazidas por estes autores, intentando enriquecer o debate sobre a
música enquanto habilidade.
Quando discorre sobre aprendizagem musical, Gohn (2003) propõe que se faça
uma transposição dos termos “quantitativo” e “qualitativo” para dois momentos da
aprendizagem: o primeiro seria um “treinamento puramente técnico”; enquanto que, no
segundo, haveria “um desenvolvimento mais amplo”. Sobre o primeiro momento, o autor
explica:
A prática técnica de habilidades instrumentais possibilita que o aprendiz
execute uma tarefa que resulta em som. Este treinamento, no entanto,
prepara o aluno apenas para repetir aquela mesma atividade
indefinidamente, sempre com as operações propostas. É um
adestramento mecânico que habilita o indivíduo a realizar movimentos
em uma determinada seqüência ou combinação que têm conseqüências
em um instrumento musical (p. 34, 35).
O autor argumenta que o aprendizado passa a ser qualitativo (segundo
momento) quando o aprendiz já não apenas reproduz uma experiência, mas é capaz de
“gerar suas próprias experiências” (p. 35). Em suas palavras encontramos o seguinte
esclarecimento:
Os processos de aprendizado podem progressivamente ampliar
capacidades do aluno ou fechar o estudo apenas neste aspecto
[técnico], diferenciando o estudo que proporciona um treinamento
daquele que oferece formação. A formação musical, além de
habilidades motoras, desenvolve a capacidade de analisar, criticar,
recombinar, improvisar e compreender o universo musical mais
amplamente (p. 35). [grifo do autor]
Concordamos com o autor na medida em que sabemos que a aprendizagem
musical depende de treinamento, entre outros fatores, para que a habilidade técnica seja
desenvolvida. É importante ressaltar, no entanto, que ele se utiliza dos princípios de
aprendizagem enumerados por Carl Rogers para dar base teórica a sua pesquisa sobre
auto-aprendizagem musical; princípios estes nos quais se encontram aspectos, com
relação ao sujeito, que assumem certa relevância. As palavras de Gohn (2003), quando
comenta sobre os referidos princípios, podem aclarar estas argumentações:
Segundo estes preceitos, a auto-aprendizagem é possível devido a
características inatas e inerentes ao aprendiz. O indivíduo que decide
aprender música sozinho tem total interesse na matéria e relaciona o
estudo com as informações presentes em seu cotidiano. Procura
elementos na sua vida diária que acrescentem e contribuam com o
processo. Estabelece para si as condições para desenvolver seu
30
potencial – objetivando independência, criatividade e autoconfiança – e
combina sentimentos e inteligência para obter resultados (p. 31).
Em pesquisa sobre a relação entre a compreensão musical e a técnica, Cavalieri
França (2000) alega que, com freqüência, os alunos sofrem pressão para ir além do limite
técnico que eles dominam; isto acontece em razão das demandas do repertório
instrumental. A autora afirma que “nessas circunstâncias o ensino pode resultar em um
mero treinamento, que não oferece oportunidade para decisão criativa e exploração
musical expressiva” (p. 59).
Segundo Cavalieri França (2001), o fazer musical abarca tanto a compreensão
dos elementos importantes na obra quanto “as habilidades técnicas necessárias para
identificá-los e controlá-los”. Ela considera a técnica “como o conjunto das competências
funcionais necessárias à realização de atividades musicais específicas” e alerta para o
cuidado de se “evitar que o desenvolvimento técnico se sobreponha ao desenvolvimento
da própria musicalidade, ofuscando-a” (p. 37).
A autora ainda explica que se um indivíduo não possui as habilidades técnicas
necessárias para executar determinada peça, ainda que tenha uma “concepção musical
refinada [...] pode não ser capaz de demonstrar sua compreensão”, e que este indivíduo
“pode inclusive saber o que deve fazer (o andamento ideal da peça, por exemplo), mas
não ser capaz de realizá-lo (e ter que tocá-la mais devagar)” (p. 39).
Ivan Illich (1973), por sua vez, parece ir além da concepção desses autores
quando argumenta não ser suficiente que o ensino de habilidades inventivas e criativas
[como o de música] tenha suas bases somente em exercícios práticos, mas que, neste
contexto, é fundamental considerar-se o indivíduo, a relação dele com o outro e o meio
ao qual ele está inserido:
A maior parte das habilidades são adquiridas e aperfeiçoadas por
exercícios práticos, porque implica o domínio de um proceder definido e
previsto. O ensino de habilidades pode basear-se, por isso, na
simulação de circunstâncias em que será usada. Mas a educação do
uso de habilidades criativas e inventivas não pode basear-se em
exercícios práticos. A educação pode ser o resultado de uma instrução,
mas de um tipo de instrução totalmente distinto de treino prático. Deriva
de uma relação entre colegas que já possuem algumas das chaves que
dão acesso à informação memorizada e acumulada na e pela
comunidade. Baseia-se no esforço crítico de todos os que usam estas
memórias criativamente. Baseia-se na surpresa da pergunta inesperada
que abre novas portas para o pesquisador e seu colega. (ILLICH, 1973,
p. 45).
31
Para o autor, o ensino de habilidades, especialmente as criativas e inventivas,
mesmo dependendo de exercícios práticos, não deve ter como base um ensino
reprodutivo, onde o professor funciona como um modelo a ser copiado e o aluno, sem
reflexão, repete aquilo que vê e/ou ouve. A colaboração entre colegas é fator
fundamental, segundo ele, para que a educação do uso de habilidades inventivas e
criativas se realize.
Borém (2006) é outro autor que discursa a respeito da técnica musical, desta
vez, no contexto de materiais didático-pedagógicos utilizados em cursos de graduação e
pós-graduação. Ele argumenta que os pedagogos da performance musical necessitam
produzir novos materiais, uma vez que os métodos de aprendizagem mais utilizados na
atualidade “não explicitam a lógica por trás de cada estudo técnico-musical e como este
levará ao passo seguinte”.
Desta forma, segundo o autor, “ainda predomina a prática instrumental repetitiva,
exaustiva, aleatória e não consciente, onde os erros muitas vezes não são antecipados
ou controlados” (p. 51). Apesar de demonstrar uma concepção de aprendizagem “em
camadas”, na qual cada estudo técnico musical deve, necessariamente, conduzir o
aprendiz ao “passo seguinte”, este autor parece esboçar uma preocupação com aspectos
singulares do aluno quando explica que:
No ensino de instrumentos musicais, canto e regência, o professor deve
perceber as diferenças no ritmo de aprendizagem e nos diferentes
significados da música para cada aluno e seus dilemas (como música
erudita versus música popular), não atropelando os desníveis pontuais
em cada um dos parâmetros que compõem a sua musicalidade e em
cada expectativa e limites de seu desenvolvimento (p. 48).
Entretanto, o uso de expressões como “ritmo de aprendizagem”, “limites de seu
desenvolvimento” sugerem pouca flexibilidade nos aspectos percebidos pelo professor e
um possível enquadramento do aluno que, desta forma, passa a ser visto mais em uma
perspectiva de seus limites do que de suas possibilidades.
Gordon (2000), autor de uma Teoria de Aprendizagem Musical, apresenta
algumas formulações sobre “aptidão musical”:
Uma das descobertas mais importantes que fiz nessa época
7
foi, talvez,
que a aptidão musical é o produto da conjugação de um potencial inato
com as influências ambientais, formais e informais. Se o nível de
aptidão musical com que uma criança nasce não for constantemente
incrementado por um bom ambiente musical, essa aptidão irá
7
De 1972 a 1979, enquanto era docente na Universidade Estadual de Nova Iorque, em Buffalo.
32
diminuindo e, com toda a probabilidade, estará praticamente perdida.
Além disso, se o potencial inato duma criança não for desenvolvido até
aos nove anos – e quanto mais cedo melhor –, as influências do meio
ambiente deixarão de ter qualquer efeito sobre esse potencial. Depois
dos nove anos, a aptidão musical deixa de ser passível de
desenvolvimento, porque estabiliza. [...] Independentemente da
qualidade do meio musical em que vive uma pessoa, esse facto, a partir
dos nove anos, deixa de ter qualquer influência no nível de aptidão
musical de cada um. O potencial que uma pessoa pode atingir na
música permanece, através da vida, o que era aos nove anos. (p. 9, 10,
65).
Conceber a aptidão musical como produto da junção de ‘potencial inato’ e
‘influências ambientais’ nos parece um pensamento consideravelmente rígido, visto que,
neste caso, os que não possuíssem tal potencial estariam excluídos da possibilidade de
se desenvolver musicalmente.
Outro ponto que nos parece reducionista é quando o autor afirma que o
desenvolvimento musical só pode ocorrer em crianças de até nove anos e, depois dessa
idade, nem um ambiente musical favorável exercerá influência sobre este
desenvolvimento. Essa perspectiva coloca ponto final no desenvolvimento do sujeito, o
que parece ser bastante equivocado, pois, como indica a Psicologia Histórico-cultural, o
desenvolvimento nunca é estanque, mas está em contínuo movimento e mudança.
Schroeder (2004), que se posiciona de forma diferente de Gordon (2000),
explica que:
Se adotarmos a tese de que no processo de desenvolvimento do
homem primitivo até o homem culturizado não houve nenhuma
mudança significativa no seu aparato biológico, então a música (ou
musicalidade) não pode ser parte integrante desse aparato, visto que,
das supostas músicas ritualísticas do homem primitivo às músicas de
hoje, consideráveis mudanças ocorreram (p. 116).
A autora ainda observa que o fato de a música não fazer parte da natureza –
inclusive da natureza humana – qualquer aptidão musical só pode ser entendida “a partir
da linha de desenvolvimento histórico-cultural que [...] na criança aparece entrelaçada ao
desenvolvimento orgânico, mas de modo algum pode ser reduzido a ele” (p. 116).
Borém (2006), por sua vez, critica o mito da ‘musicalidade inata’ e argumenta
que este “tem impedido muitos professores de instrumento e canto de buscarem
metodologias mais eficientes no ensino da música”. Ele ainda alega que “em função
disso, muitos professores de instrumento desenvolvem uma atitude passiva
característica” (p. 47).
33
Contudo, um pouco adiante o autor parece revelar uma concepção inatista de
aprendizagem quando argumenta que “a cada processo seletivo do vestibular, além de
um ou dois talentos excepcionais, nos chega às mãos um número muito maior de alunos
cuja musicalidade está embotada ou pouco desenvolvida” (p. 47, 48).
Esta questão nos remete de volta a Schroeder (2004) quando argumenta que,
de acordo com Vigotski, “no caso específico das crianças-prodígio [...] há um
desenvolvimento prematuro anormal que [...] está bem próximo do patológico”. Isso
significa que a criança que apresenta uma maturidade musical muito precocemente não
pode servir como exemplo para “um modelo de desenvolvimento da musicalidade”. Da
mesma forma que a criança que apresenta qualquer tipo de deficiência “não ilustra o
modo de aquisição da capacidade que lhe falta”.
A autora segue dizendo que, de acordo com Vigotski, assim como na criança
deficiente não acontece a fusão entre os dois planos de desenvolvimento (biológico e
cultural), ou seja, que eles ocorrem de modo divergente, “o que acaba causando uma
alteração orgânica, modificando o curso do desenvolvimento e obrigando a uma
reestruturação total desse processo, assentado agora sobre novas bases”, na criança
precoce, analogicamente, “possíveis divergências no curso do desenvolvimento
provocaram não uma deficiência, mas uma habilidade prematura”.
Segundo Schroeder (2004), “o próprio Vigotski considera o defeito o pólo
negativo do talento” (p. 116). A autora ainda afirma que:
Essa análise parece de acordo com a constatação de que, na verdade,
a precocidade infantil se refere sempre, pelo menos no caso da música,
à parte puramente técnica – geralmente virtuosismo instrumental e,
mais raramente, composicional. A maturidade artística, mesmo nos
gênios, nunca ocorre na infância.
(p. 116, 117).
Em seu discurso, Schroeder (2004) também alega que não se trata de negar a
existência do “talento”, da “genialidade”, da “musicalidade”, mas que, em qualquer área,
eles são exceções. Porém, de acordo com a autora, no meio musical é comum que estas
qualidades sejam consideradas “condição sine qua non para o sucesso” (p. 118). A
autora acrescenta que
[...] isso, educacionalmente, é extremamente desastroso, pois, provoca,
de antemão, uma classificação dos alunos em “musicais” ou “não
musicais” e uma conseqüente apatia por parte de muitos educadores
em relação aos considerados menos favorecidos, que geralmente são
levados em “banho-maria” até que desistam, por se verem totalmente
inaptos para a música (p. 118).
34
Assim, entendemos que o ensino da música, aqui representado pelo de canto,
não deve ser direcionado a alunos classificados como “musicais” em detrimento daqueles
rotulados como “não musicais”. Esta separação poderia ocasionar decepção e
distanciamento do sujeito rotulado em relação à música, já que ele tenderia a se
considerar “não apto” para a prática musical.
Utilizamos, ainda, as argumentações de Vieira (2003), que, em nossa opinião,
tece comentários consistentes sobre formas de aprender e ensinar música:
Sem dúvida, há muitas maneiras de ensinar e aprender música,
dependendo de variáveis históricas, culturais, sociais, econômicas.
Partindo desses aspectos, a questão deixa de ser “se há outro jeito de
ensinar” e passa a consistir em “de que modo devo ensinar”, mantendo
a coerência em relação à realidade do aluno (p. 78).
Por entendermos, então, que no ensino da música, direcionado aqui para o
contexto de canto, além da transmissão de conhecimentos técnicos e musicais estão
integradas as vivências, as emoções, as singularidades trazidas para a sala de aula,
tanto pelo aluno quanto pelo professor, nos conduzimos ao próximo capítulo que faz
considerações a respeito do processo ensino-aprendizagem apoiado na perspectiva
histórico-cultural da psicologia.
35
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO ENSINO-
APRENDIZAGEM COM BASE NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-
CULTURAL
O presente trabalho tem suas bases na Psicologia Histórico-Cultural, cujo
principal representante é Liev Semionovich Vigotski (1896-1934). Optamos por esta
vertente por reconhecer neste autor e em alguns de seus seguidores um suporte
consistente para as nossas idéias a respeito de como se dá a aprendizagem e o
desenvolvimento do ser humano, particularmente considerando a arte de cantar.
Para isso assumimos a importância da relação aluno e professor, do papel do
diálogo e a forma como se consideram as vivências e emoções trazidas por ambos para
o ambiente de sala de aula, entre outros aspectos ligados à constituição do processo
ensino-aprendizagem, aqui representado pelo ensino do canto.
Nas formulações de Vigotski encontramos alguns conceitos que podem nos
ajudar a esclarecer de que forma a perspectiva histórico-cultural contribui para os estudos
sobre o processo ensino-aprendizagem. O primeiro deles é que “a aprendizagem e o
desenvolvimento não coincidem imediatamente, mas são dois processos que estão em
complexas inter-relações” (VIGOTSKI, 1934-2001
8
, p. 334).
Para o autor, a boa aprendizagem só acontece quando ela está à frente do
desenvolvimento, uma vez que desta forma ela serve para motivar e desencadear
diversas funções psicológicas que estavam em fase de amadurecimento e na Zona de
Desenvolvimento Proximal - um segundo conceito formulado pelo autor.
Sobre isso, Vigotski (1934-2001) explica que a discrepância entre a idade mental
real (ou o nível de desenvolvimento atual) da criança, definida a partir dos problemas que
ela consegue resolver de forma autônoma, e o nível que ela atinge quando consegue
resolver os problemas sem autonomia, ou com a colaboração de outra pessoa, determina
a zona de desenvolvimento proximal. Em suas palavras,
[...] a zona de desenvolvimento proximal [...] é a distância entre o nível
de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução
independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a orientação de um
8
Esta obra foi publicada originalmente em russo, em 1934. Em 2001 foi traduzida do russo para o português
por Paulo Bezerra.
36
adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes
(VIGOTSKI, 2007
9
, p. 97).
Outro ponto de fundamental importância para o pensamento histórico-cultural é
“que o comportamento humano se forma a partir de peculiaridades e condições
biológicas e sociais de seu desenvolvimento” (VIGOTSKI, 1926-2003
10
, p. 75). Portanto,
se o comportamento do ser humano se forma a partir de fatores biológicos e sociais,
estes fatores também estarão presentes no contexto ensino-aprendizagem.
O fator biológico determina a base, o fundamento, das reações
herdadas, de cujos limites o organismo não pode sair e sobre as quais
se constrói o sistema de reações aprendidas. Ao mesmo tempo, é
evidente que esse novo sistema de reações é totalmente determinado
pela estrutura do ambiente no qual o organismo cresce e se
desenvolve. Por esse motivo, toda educação tem inevitavelmente um
caráter social (VIGOTSKI, 1926-2003, p. 75).
Segundo Vigotski (1926-2003), a experiência pessoal do educando é de
fundamental importância para o trabalho pedagógico, uma vez que “o único educador
capaz de formar novas reações no organismo é a própria experiência” (p. 75). O
professor, então, de acordo com o autor, tem a função de organizar o ambiente social,
porque do ponto de vista científico, a rigor, não se pode influenciar diretamente e produzir
mudanças em outro organismo, mas “só é possível educar a si mesmo, isto é, modificar
as reações inatas através da própria experiência” (p. 75).
Por esta razão ele chega a uma síntese de como se dá o processo educativo: “A
educação é realizada através da própria experiência do aluno, que é totalmente
determinada pelo ambiente; a função do professor se reduz à organização e à regulação
de tal ambiente” (p. 77).
Estamos de acordo que a experiência, as vivências, as emoções trazidas pelo
aluno sejam de grande relevância para o processo educativo. Entretanto, não fica claro o
9
Este livro, segundo seus organizadores, é uma coletânea de ensaios de Vigotski. Duas das obras utilizadas
aqui foram traduzidas preliminarmente por Alexander Luria: “O instrumento e o símbolo no desenvolvimento
das crianças”, de 1930, que nunca havia sido publicada; e “A história das funções psicológicas superiores”,
que foi publicada no 2º volume dos escritos de Vigotski em Moscou, 1960. Outras duas obras foram utilizadas
para compor o presente livro: partes de uma coletânea de ensaios intitulada “O desenvolvimento mental das
crianças e o processo de aprendizado” (1935) e “O brinquedo e
seu papel no desenvolvimento psicológico da
criança”, uma palestra apresentada em Conferência do Instituto Pedagógico de Leningrado (1933), publicada
posteriormente em Problemas de Psicologia (1966).
10
De acordo com René van der Veer, que faz a apresentação da Edição Brasileira do livro Psicologia
Pedagógica, “este foi o primeiro livro publicado por Liev S. Vigotski. Embora só tenha aparecido em 1926,
diversos motivos levam a crer que o livro já estava totalmente terminado em 1924” (VIGOTSKI, 2003, p. 5).
37
que o autor está propondo quando indica que a função do professor se reduz a “organizar
e regular” o ambiente social.
Por isso surgem perguntas: qual seria o conteúdo desta organização? O que
significa, para o autor, a função de regular o ambiente social? O “organizar” e o “regular”
estariam mais ligados a uma função meramente instrumental ou a uma função
mediadora, interventora do professor, ou será que ele considera uma relação
estabelecida entre professor-aluno, aluno-aluno, a forma como se constitui o diálogo em
sala de aula e, por meio deste, o professor estaria organizando e regulando o ambiente
social?
Ainda que as idéias expressadas por Vigotski não estejam claras, pensamos ser
possível concluir, por meio de desdobramentos feitos por autores que seguem a
perspectiva histórico-cultural, que neste “organizar” e “regular” podem estar incluídas a
colaboração, a comunicação dialógica, as emoções, bem como a própria experiência dos
sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Na própria experiência, nas vivências trazidas pelos sujeitos que participam
deste processo estão contidos os aspectos históricos e culturais do indivíduo, o que nos
remete a outro ponto bastante relevante do pensamento histórico-cultural: uma das
grandes diferenças entre os seres humanos e os animais é que os primeiros não só se
organizam socialmente, mas fazem parte de uma cultura, cuja comunicação é
mediatizada pela linguagem.
De acordo com Vigotski (1934-2001), a comunicação dos animais acontece de
forma mais primitiva e em dimensões mais limitadas, e nem sequer merece ser chamada
de comunicação, “devendo antes ser chamada de contagio”, porquanto se diferencia da
comunicação humana que é “estabelecida com base em compreensão racional e na
intenção de transmitir idéias e vivências” (p. 11).
Assim, a comunicação humana é estabelecida, entre outras formas, pela
linguagem intelectual; esta é constituída pela organização de palavras providas de
sentido e significado, dois conceitos que, para Vigotski (1934-2001) assumem funções
diferentes. O autor se utiliza da diferenciação dos termos introduzida por Paulham
11
,
segundo a qual
[...] o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos
que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma
formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de
estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do
11
Nem o autor, nem o tradutor fazem menção de quando e em que obra Paulham teria introduzido a
diferença entre os conceitos sentido e significado.
38
sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e,
ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata (p. 465).
Deste modo, dependendo do contexto em que estamos a palavra facilmente
muda de sentido; ao contrário do significado, um ponto mais fixo que permanece com
certa estabilidade mesmo quando há mudança de sentido da palavra, estando esta em
diferentes contextos (VIGOTSKI, 1934-2001). Em Luria (1986) encontramos o seguinte
esclarecimento:
[...] a mesma palavra possui um significado, formado objetivamente ao
longo da história e que, em forma potencial, conserva-se para todas as
pessoas, refletindo as coisas com diferente profundidade e amplitude.
Porém, junto com o significado, cada palavra tem um sentido, que
entendemos como a separação, neste significado, daqueles aspectos
ligados à situação dada e com as vivências afetivas do sujeito (p. 45).
Vigotski (1934-2001) também discute outro ponto relevante para o processo
ensino-aprendizagem: a relação entre cognição e afeto, a respeito da qual ele afirma ser
um grande erro fazer-se uma separação entre a parte intelectual da consciência humana
e sua parte afetiva e volitiva. Para ele, ao se analisar esta relação é necessário
decompor-se “a totalidade complexa em unidades”, uma vez que esta forma de análise
permite mostrar que
[...] existe um sistema semântico dinâmico que representa a unidade
dos processos afetivos e intelectuais, que em toda idéia existe, em
forma elaborada, uma relação afetiva do homem com a realidade
representada nessa idéia. [A análise que decompõe a totalidade
complexa em unidades] permite revelar o movimento direto que vai da
necessidade e das motivações do homem a um determinado sentido do
seu pensamento, e o movimento inverso da dinâmica do pensamento à
dinâmica do comportamento e a atividade concreta do indivíduo
(VIGOTSKI, 1934-2001, p. 16, 17).
Em outro momento, de acordo com González Rey (2004), Vigotski define a
unidade cognição e afeto não mais como uma “unidade pontual”, mas como o “princípio
de organização dos sistemas de sentido” que integram os diversos sistemas da psique
humana (p. 13). Os comentários analíticos do autor têm base no seguinte trecho:
De forma geral o problema não é a unidade de afeto e intelecto como
tal, mas a realização desta unidade na forma de um “sistema dinâmico
de sentidos” que abarque a “dinâmica de pensamento” (intelecto) assim
como a “dinâmica do comportamento” e da atividade concreta da
personalidade (VIGOTSKI, conforme GONZÁLEZ REY, 2004, p. 13).
39
Para González Rey, um dos autores de grande relevância da Psicologia
Histórico-Cultural na atualidade, a idéia de “sentido” aqui já não está mais ligada à
palavra – sentido/significado – como anteriormente, mas “começa a se expressar como
um tipo de unidade principal para a compreensão da psique, idéia que Vygotsky não
conseguiu terminar” (GONZÁLEZ REY, 2004, p. 13).
De acordo com o autor, pelo fato de Vigotski não ter concluído a categoria de
sentido em sua obra, bem como em razão de, após sua morte, a mesma ter sido
retomada por Leontiev como sentido pessoal, e passado a ser compreendida nos termos
da atividade, categoria que dirige o pensamento deste autor, González Rey elaborou em
seus trabalhos a categoria sentido subjetivo com o intuito de “reafirmar o caráter subjetivo
desta categoria, e continuar seu desenvolvimento dentro de uma teoria da subjetividade
de caráter histórico-cultural” (GONZÁLEZ REY, 2003, p. 79), sobre o que nos deteremos
mais adiante.
Consideramos importante esta abordagem dos conceitos de sentido-significado,
cognição-afeto e sentido subjetivo, na medida em que eles nos remetem para os
processos de ensinar e aprender como sistemas dinâmicos, nos quais o sujeito aparece
de forma integrada em todas as funções.
De acordo com González Rey (2006), a aprendizagem permeia diferentes áreas
do conhecimento, sendo a psicologia uma das que contribui de forma significativa para
produções teóricas neste campo. Para ele, algumas teorias psicológicas enfatizaram o
caráter operacional da mente no processo de aprendizagem, como a psicologia cognitiva
e a teoria de Piaget; e outras que influenciaram de forma significativa esta área foram
teorias, segundo o autor, que “negavam a mente”, como o behaviorismo (p. 29). Estas
teorias ainda exercem grande influência nas concepções de professores sobre como o
aluno aprende.
Nesta linha de argumentação González Rey (2006) destaca dois aspectos da
aprendizagem que são bastante diferenciados: primeiramente, “o caráter singular do
processo de aprender” que, segundo ele, requer o rompimento da concepção de ensino
na qual o professor meramente expõe o assunto a ser estudado, estimulando o papel
passivo-reprodutivo do aluno.
No segundo aspecto – “a compreensão da aprendizagem como uma prática
dialógica” – o autor argumenta que o desenvolvimento de relações através do diálogo
favorece o posicionamento ativo e reflexivo dos alunos. Aqui o autor nos traz aspectos
subjetivos da aprendizagem. Em suas palavras,
40
O trabalho pedagógico tem muito a ver com a organização da sala de
aula como espaço de diálogo, reflexão e construção [...] A exposição
como centro de nossas práticas pedagógicas influencia fortemente um
posicionamento passivo do aluno que, no intuito de compreender, não
reflete nem questiona o que ouve. O posicionamento reprodutivo é
cumulativo, o que dificulta as sínteses e recortes necessários que uma
aprendizagem reflexiva implica. [...] O aluno torna-se sujeito de sua
aprendizagem quando é capaz de desenvolver um roteiro diferenciado
em relação ao que aprende e a se posicionar crítica e reflexivamente
em relação à aprendizagem (p. 30, 38, 40).
No entanto a escola parece estar na contramão dessas idéias, crítica que
aparece nas argumentações de Tacca (2006b) quando discorre a respeito da forma
padronizada como a escola, comumente, compreende os alunos, não os reconhecendo
como sujeitos singulares. De acordo com a autora,
Não convém encobrir que, muito comumente, na escola, os alunos não
são reconhecidos como sujeitos que produzem sentidos nas relações
que estabelecem e nas atividades que executam, ao contrário, são
compreendidos muito mais como portadores de características fixas,
para o que alguns aspectos mostram-se determinantes, como por
exemplo a procedência familiar, tanto pelas possibilidades que cria
como pelas limitações que impõe. Essas avaliações impedem que
alunos sejam vistos nas muitas possibilidades que seu processo de
desenvolvimento podem alcançar (p. 69).
Segundo a autora, a forma como o professor concebe educação, a visão dele a
respeito de quem são, como pensam e quais as possibilidades dos alunos, são indícios
significativos de como o docente constitui as relações com eles, e de como e a partir de
quais objetivos seleciona conteúdos e métodos.
Assim sendo, passa-se a pensar o eixo do processo ensino-aprendizagem “a
partir de significações e entrelaçamentos que o professor faz entre o seu conhecimento
sobre o aluno, sobre si mesmo e sobre o próprio conhecimento a ser explorado, incluindo
também o contexto vivido por ele” (TACCA, 2006a, p. 47).
Desta forma, argumenta-se aqui que cada ser humano é único e traz as suas
significações de modo muito particular, de onde se pode concluir que cada indivíduo tem
a sua forma característica de aprender. Em consonância com este pensamento, Tacca
(2000) faz uma abordagem a respeito das atividades reflexivas motivadas na sala de aula
que, segundo ela, serão as que unem pensamento e sujeito.
Neste contexto, a autora argumenta existirem certos tipos de comportamentos
que se processam de forma mecânica, mas que “na aprendizagem de conteúdos
41
escolares, o sujeito não pode limitar-se a reproduzir informações” e que ele precisa
“integrá-las ao seu sistema personológico para poder, então, utilizá-las” (p. 23).
Para González Rey (2006), “recuperar o sujeito que aprende implica integrar a
subjetividade como aspecto importante desse processo, pois o sujeito aprende como
sistema e não só como intelecto”. O autor define aprender como sendo “uma produção
subjetiva cuja qualidade não está definida apenas pelas operações lógicas que estão na
base desse processo” (p. 33, 37).
González Rey (2006) também explica que a categoria sentido subjetivo, da
forma como ele a tem desenvolvido, representa um sistema que integra os processos
simbólicos e as emoções em constante desenvolvimento, no qual cada aspecto se evoca
de forma recíproca, sem que exista entre eles uma relação causal, o que provoca
desdobramentos constantes e imprevisíveis que conduzem a novas configurações de
sentido subjetivo. Nas palavras do autor, encontramos o seguinte esclarecimento:
Os sentidos subjetivos constituem verdadeiros sistemas motivacionais
que – diferente das teorias mais tradicionais da motivação – permitem-
nos representar o envolvimento afetivo do sujeito em uma atividade, não
apenas pelo seu vínculo concreto nela, mas como produção de sentidos
que implica em uma configuração única, sentidos subjetivos, emoções e
processos simbólicos resultantes de subjetivação que integram
aspectos da história individual, como os diferentes momentos atuais da
vida de cada sujeito concreto (GONZÁLEZ REY, 2006, p. 34).
Para se conseguir realizar o processo de ensinar e aprender concebendo o
sujeito integrado, produzindo sentido subjetivo a partir de suas vivências, a sala de aula
precisará estar aberta para o diálogo, o que aparecerá de forma inequívoca nas relações
professor-aluno. Nesse sentido, Tacca (2006) argumenta que uma relação entre
professor e aluno que tenha suas bases no diálogo poderá favorecer o processo ensino-
aprendizagem:
[...] a estratégia pedagógica necessária aos processos de ensino-
aprendizagem tem seus alicerces nas relações com a utilização plena
do diálogo no trabalho compartilhado. O diálogo é o cerne da relação na
aprendizagem, em que as partes envolvidas fazem trocas e negociam
os diferentes significados do objeto de conhecimento, o que dá
relevância ao papel ativo e altamente reflexivo, emocional e criativo do
aluno e do professor (p. 50).
Assim, o espaço relacional no contexto da aprendizagem poderá ser
verdadeiramente constituído se houver, da parte do professor e do aprendiz, a
disponibilidade em dialogar. De acordo com González Rey (2006), o diálogo, a
42
conversação entre professor e aluno estimula o envolvimento do aprendiz, bem como
favorece uma aprendizagem reflexiva. Deste modo, “o aluno vai entrando em um
caminho que o obrigará a assumir posições, processo facilitador da emocionalidade na
atividade de aprender” (p. 39).
Tunes, Tacca e Bartholo (2005) também ressaltam a importância do diálogo e da
colaboração no momento da aprendizagem:
A promoção do desenvolvimento de funções psicológicas admite a
anterioridade do processo de aprender, que acontece na relação com
um parceiro mais capaz, que oferece ajuda. Ajudar é possibilitar o fazer
com; é dialogar, portanto. Se o ajudante for um professor, a ajuda é
planejada e sistemática, pois o seu impacto no aluno é esperado como
realização [...] Logo, é preciso conhecer o que já há; novamente, o
diálogo. (p. 694).
Entender os processos de pensamento do aluno através do diálogo e favorecer
a aprendizagem agindo em colaboração com ele pode proporcionar o desenvolvimento
daquele que aprende. Assim sendo, as possibilidades de aprendizagem do sujeito
poderão ser trabalhadas de melhor forma se o professor atuar como um colaborador, em
sintonia com o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Sobre isto vamos
encontrar o seguinte esclarecimento de Tacca (2006):
Entendemos que trabalhar a Zona de Desenvolvimento Proximal só é
possível quando o sujeito mais experiente atua por meio de estratégias
que, de fato, significam encontrar os processos de pensamento do
aluno e suas bases motivacionais. Nessa conjuntura, poderá ocorrer
uma aprendizagem que inclui o pensamento reflexivo. Para isso, haverá
um sujeito menos experiente que encontra não simplesmente um “outro
social” com quem interage realizando uma tarefa, mas um “outro” que
lhe apresente apoio operacional coerente com seus processos de
significação, no sentido de lhe possibilitar um salto qualitativo (p. 65).
Tunes e Bartholo (2004) também explicitam o conceito de Zona Proximal de
Desenvolvimento formulado por Vigotski, bem como tratam da diferença estabelecida por
ele entre ensinar e treinar:
[...] a aprendizagem precede o processo de desenvolvimento e diz
respeito à possibilidade de realizar, com a colaboração de outro, o que,
no futuro, poderá ser realizado sozinho ou de forma independente. [...]
Ensinar implica, necessariamente, a promoção do desenvolvimento por
meio da realização de atividade em colaboração, isto é, por meio do
oferecimento de ajuda que é efetivamente usada como tal. Não sendo
assim, não há ensino, mas puro treinamento (p. 52, 53).
43
Ao atuar como colaborador, o professor pode favorecer o processo ensino-
aprendizagem, uma vez que trabalhar em colaboração implica mutualidade entre aquele
que ensina e o que aprende, bem como a constante busca dos aspectos singulares do
aprendiz e suas formas particulares de pensar, de agir, de sentir.
Segundo Tacca (2004), o espaço relacional deve ser trabalhado tanto pelo
professor quanto pelo aluno, com o intuito de que seja estabelecida uma relação plena.
Em suas palavras,
Se o professor não se colocar de forma inteira no encontro com o aluno,
e se este também não se mostra em sua inteireza, a relação não ocorre;
o processo fica truncado, esvaziado, comprometido, não realizado
plenamente. Ao entrarem em relação, o espaço de ensino-
aprendizagem torna-se único, pois nasce do encontro de pessoas que
criam, a partir de suas características próprias, o contexto relacional em
que atuarão e que passa a ter, também, características próprias e
diferenciadas de qualquer outro. [...] Entrar em relação, assim, implica
assumir e ter compromisso prolongado com o outro. Na sala de aula, as
relações serão estabelecidas se professores e alunos dispuserem-se ao
encontro, assumirem um compromisso de responsabilidade, interesse
mútuo, disponibilidade (p. 108, 109).
Para que haja colaboração, mutualidade, entre os sujeitos envolvidos no
processo ensino-aprendizagem, é necessário que o diálogo extrapole a mera
comunicação verbal. Discorrendo sobre o diálogo e a comunicação no processo de
aprendizagem, Tacca (2006b) explica que a comunicação acontece além da dimensão
das palavras:
Falar de interação entre pessoas é falar de formas e tipos de
comunicação, tendo-se em vista, principalmente, que ela não se
restringe apenas a uma dimensão verbal, mas incorpora uma complexa
rede de dimensões figurativas e simbólicas (não verbais, por
excelência), que transitam no momento relacional. [...] Desta forma
estará em jogo no processo comunicativo/interativo a posição e papel
que cada um ocupa, a história relacional e o objetivo para o qual a
interação acontece. [...] O processo ensino-aprendizagem implica em
um contínuo e profundo processo de relacionamento, no qual todos os
aspectos analisados lhe são constitutivos. Professor e aluno devem
compor um espaço relacional em que fique criada uma atmosfera de
compromisso e responsabilidade, na consecução dos objetivos
educativos (p. 61, 62, 64).
Assim, o espaço relacional favorecido por uma comunicação que se dá além da
dimensão verbal se torna condição preponderante para que aconteça a aprendizagem.
Nesta linha de argumentação a autora alega que:
44
Interessa [...] considerar que ensinar e aprender só acontecem na
possibilidade de haver comunicação entre as partes envolvidas e, da
mesma forma, na necessidade de reciprocidade e confiança mútua, na
verdadeira intenção de compreender o pensamento do outro, o que se
entrelaça com sua base afetivo-volitiva. É para que apareça esta
possibilidade que evidenciamos a necessidade do diálogo, de
processos comunicativos abertos que permitam negociações e ajustes
quanto aos objetivos a serem alcançados (TACCA, 2006b, p. 66).
Ela ainda argumenta que o processo de aprendizagem só pode ser pensado
dentro de uma relação entre pessoas, no qual o eixo é o diálogo, e que a participação em
sala de aula não está em empreender uma seqüência de ações, “mas na possibilidade de
as pessoas que compartilham esse espaço expressarem seus pensamentos e ouvirem a
comunicação do outro, tendo em vista uma construção conjunta de conhecimento”
(TACCA, 2006, p. 49).
É necessário, portanto, que no processo ensino-aprendizagem sejam
consideradas as formas de pensar, de sentir do aprendiz, manifestas a partir dos
processos de comunicação, especialmente do diálogo, a fim de que haja confiança
mútua, reciprocidade e colaboração entre quem ensina e quem aprende e,
conseqüentemente, mais avanços na aprendizagem.
Explicando de que forma se desenvolve a comunicação entre seres humanos,
González Rey (1995) afirma que “as relações estáveis de comunicação configuram
formações subjetivas da personalidade” e que “estas configurações subjetivas formam
uma parte essencial da historicidade do processo de comunicação, pois representam sua
memória histórica”. O autor ainda argumenta que o caráter subjetivo da comunicação
humana é definido por estas configurações da personalidade (p. 5).
Esta argumentação encontra apoio nas formulações de Vigotski (1926-2003)
quando discorre sobre a relação entre o comportamento social e o desenvolvimento da
criança e afirma que:
Tudo pode ser educado e reeducado no ser humano por meio da
influência social correspondente. A própria personalidade não deve ser
entendida como uma forma acabada, mas como uma forma dinâmica de
interação que flui permanentemente entre o organismo e o meio (p.
200).
Vigotski (1926-2003) ainda complementa esta argumentação quando alega que o
professor precisa se transformar em organizador do ambiente social uma vez que
“sempre que ele age como um simples propulsor que lota os alunos de conhecimentos,
pode ser substituído com êxito por um manual, um dicionário, um mapa ou uma
45
excursão” (p. 296). Tacca (2006), por sua vez, encontra suporte no autor quando
argumenta que:
O conhecimento, assim, distancia-se de uma perspectiva mecanicista
ou cognitivista que enfatiza quase que exclusivamente o produto de
aprendizagem, ficando entendido como uma dinâmica que se constrói
na confluência dialética entre o individual e o social, tendo em vista o
desenvolvimento integral dos sujeitos envolvidos na educação (p. 50).
O fato de o professor buscar as formas de pensar do aluno, considerando seus
aspectos emocionais, poderá contribuir para que haja mais entrosamento entre eles, o
que possivelmente favorecerá avanços na aprendizagem.
Isto nos remete a Olson e Bruner (2000) quando alegam que “ensinar [...] está
inevitavelmente baseado nas noções dos professores sobre a natureza da mente de
quem aprende” e que “avanços no entendimento sobre a mente das crianças são
fundamentais para uma pedagogia melhor” (p. 22, 25).
Ressaltamos, no entanto, que a necessidade de se “entender a mente das
crianças” para que haja uma “pedagogia melhor” não significa que todas as crianças
pensam de forma igual, ou que existe uma forma padronizada de se enxergar o sujeito
que aprende. Compreender a diversidade dos sujeitos, manifesta na singularidade do
processo de aprender, pode contribuir para mais avanços na aprendizagem.
Na mesma linha de argumentação, Tunes e Bartholo (2004) aprofundam o
conceito sobre ensinar que, segundo eles,
[...] Significa [...] abdicar do controle e, mais do que isso, requer
vulnerabilidade de quem ensina a quem aprende, visto que somente se
pode falar de ajuda quando esta corresponde àquilo de que necessita
quem está sendo ajudado. Ensinar, verdadeiramente, não comporta,
portanto, generalizações; significa, antes de tudo, o voltar-se para o
diferente, o particular, o singular; o reconhecimento da alteridade do
outro e sua irredutibilidade (p. 53).
Assim sendo, o avanço de um aluno pode ser apreendido pela sua trajetória,
pelas suas possibilidades, pelo seu esforço, pelas mudanças que ocorreram desde o
início dos estudos e não mais pelo resultado que o professor coloca como meta e espera
que ele atinja.
Os argumentos de autores como González Rey (2006), Tacca (2006a; 2006b),
Tunes e Bartholo (2004), aparecem de forma coordenada com a abordagem histórico-
cultural – introduzida por Liev S. Vigotski no início do século passado – ao fazerem
desdobramentos no âmbito dos estudos científicos da aprendizagem.
46
Consideramos que as discussões teóricas apresentadas até aqui são aquelas
que nos apóiam na investigação sobre o processo ensino-aprendizagem em canto. Os
conteúdos técnicos de aprendizagem musical só podem alcançar expressão articulados
com um sujeito que produz sentido subjetivo em cada experiência sua; sujeito este que
vivencia sua voz de forma reflexiva e sempre carregada de emocionalidade, agregando
novos sentidos na sua interpretação musical.
47
OBJETIVOS DA PESQUISA:
Objetivo geral
Investigar de que forma aparece a integração entre os conteúdos técnicos e
musicais com as emoções e as vivências presentes no processo ensino-aprendizagem
de canto, e suas implicações nos avanços dos alunos.
Objetivos específicos
- Conhecer as bases de organização do espaço de ensino-aprendizagem de
canto na escola;
- Apreender os aspectos que o professor de canto prioriza para definir suas
ações pedagógicas;
- Identificar como o próprio aluno organiza e expressa seu processo de
aprender canto, bem como de que formas ele sente, compreende e se
posiciona em relação às ações do professor e dos próprios colegas;
- Investigar como se configuram as relações, a comunicação dialógica entre
professor e aluno no contexto de canto, e como isso participa da
configuração da aprendizagem do aluno.
O próximo capítulo é reservado à apresentação da parte metodológica, na qual
serão detalhados os procedimentos por meio dos quais desenvolvemos esta pesquisa.
48
4. METODOLOGIA
4.1 Sobre as questões metodológicas
Esta é uma pesquisa com abordagem qualitativa, na qual usamos como referência
a Epistemologia Qualitativa formulada por González Rey (2002; 2005). De acordo com o
autor, a pesquisa qualitativa se desenvolve por meio de um processo de construção e
interpretação do conhecimento. Ela “avança por caminhos individuais que caracterizam a
manifestação dos diferentes sujeitos estudados e incorpora novas informações sobre o
estudado a amplos sistemas de interações que adquirem sentido por meio das
construções do pesquisador” (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 110, 111).
Segundo ele, “a construção da informação [...] segue o curso progressivo e aberto
de um processo em construção e interpretação que acompanha todos os momentos da
pesquisa”, diferente do que acontece na pesquisa tradicional, a qual se apóia na coleta
de dados (2002, p.106).
Assim, para González Rey (2005a), os instrumentos utilizados na pesquisa
tornam-se apenas indutores que facilitam a expressão dos sujeitos estudados, deixando
de ser fornecedores de resultados, o que permite “descentralizar as formas dominantes
que vão tomando o processo de comunicação por meio de diálogos que se desenvolvem
no curso da pesquisa” (p. 48).
O autor explica que a investigação gera diálogos formais e informais entre
pesquisador e participantes, bem como entre os próprios participantes, o que os torna [os
diálogos] muito relevantes uma vez que “neles se desenvolve a identificação dos
participantes com o problema, assim como a identificação deles como grupo” (2002, p.
85). Ele alega que
“os sistemas conversacionais [...] permitem ao pesquisador deslocar-se
do lugar central das perguntas para integrar-se em uma dinâmica de
conversação que toma diversas formas e que é responsável pela
produção de um tecido de informação o qual implique, com naturalidade
e autenticidade, os participantes” (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 45)
[grifos do autor].
Deste modo, o diálogo e a forma como se relacionam pesquisador e pesquisado
se tornam de fundamental importância para o desenvolvimento da pesquisa.
González Rey (2005a) também argumenta que a construção da informação se dá
por meio de ‘indicadores’. Em suas palavras encontramos o seguinte esclarecimento:
“Um indicador é uma unidade de significação construída pelo pesquisador, a qual está
49
acima da informação disponível e sobre a qual se pode elaborar uma hipótese que
permita dar seguimento a um eixo de significação no processo de construção teórica” (p.
48).
Assim, apoiados nessas premissas e intentando oferecer diferentes possibilidades
de expressão dos participantes, utilizamos instrumentos de expressão oral e escrita,
desenvolvidos em momentos diferentes, além de anotações diárias nos momentos de
aula e de conversas informais. Tais premissas também nos serviram de base para
conseguimos reunir e construir informações que levaram ao alcance dos objetivos da
pesquisa, sobre os quais passamos a relatar de forma mais detalhada.
4.2 Procedimentos metodológicos e desenvolvimento da pesquisa
A nossa primeira ida à instituição se deu em junho de 2008. Tentamos contato
com a direção, sem sucesso. Tivemos que retornar à escola em outro dia, quando
conseguimos conversar com a vice-diretora. Esta se mostrou bastante receptiva à
pesquisa, e apenas solicitou a documentação necessária para a que se formalizasse o
trabalho. Como já se tratava do final de semestre, preferimos aguardar o início do
próximo para retornar à campo e iniciar, de fato, os contatos com os possíveis sujeitos
participantes da pesquisa.
Retomamos os trabalhos no mês de agosto. Antes de iniciarmos a busca pelos
participantes planejamos contatar primeiramente cada professor e, por meio de sua
indicação, chegar aos alunos. A estratégia foi iniciar os contatos com os alunos a partir
das observações de suas aulas, com o intuito de permitir que eles se acostumassem com
a nossa presença, se familiarizem, aos poucos, conosco, e se sentissem mais à vontade
para participar dos outros momentos da pesquisa. A forma como se deu a escolha dos
professores e alunos participantes será detalhada no item ‘A seleção dos participantes’.
No momento seguinte à seleção dos alunos e professores fizemos uso de
indutores escritos, com o intuito de compor as primeiras informações sobre os mesmos.
Para tanto elaboramos um questionário, diferenciado para professores e alunos. Deste
modo, assim que se definia um participante, este recebia o ‘Questionário Inicial da
Pesquisa’
12
.
Pensamos nestas questões como forma de proporcionar aos participantes um
momento no qual eles pudessem se expressar livremente e descrevessem opiniões,
12
O modelo destes questionários encontra-se na seção de Anexos.
50
sentimentos, situações que nos auxiliassem na construção das informações relevantes
para o nosso objeto de estudos, sem que houvesse a interferência direta da
pesquisadora.
Também era de nossa intenção que as informações prestadas nos fornecessem
um norte para as observações dos momentos de contato com os participantes, dentro e
fora do contexto de sala de aula, sem, no entanto, desprezar outros caminhos que se
apresentassem a nós à medida que se desenvolvesse a pesquisa.
O próximo passo foi agendar, com cada participante, um momento de
conversação formal. Para tanto formulamos um ‘Guia para Conversa com os
Participantes’
13
, tendo como base as informações contidas nos questionários, também
diferenciado para professores e alunos. Estes guias foram adaptados ao contexto de
cada aluno ou professor, de acordo com algumas de suas particularidades.
Faz-se relevante acrescentar que também foram incluídos nesses ‘guias’
questionamentos que surgiram a partir de conversas informais e da observação de
situações ocorridas dentro e fora do contexto da sala de aula, e que, durante as
conversações formais, outros questionamentos emergiram e nos serviram para
enriquecer a construção de informações necessárias à pesquisa. Todas as conversações
formais foram registradas por meio de um gravador do tipo MP3. Obtivemos um total
aproximado de 320 minutos, ou 5 horas e 20 minutos de conversa.
Estivemos em campo por um período de dois meses. Neste tempo ocorreram
alguns incidentes que acarretaram o cancelamento de aulas, como problemas de saúde
do professor ou do aluno, faltas configuradas como ‘abonos’, imprevistos familiares,
feriado/recesso no calendário da escola. Ao todo conseguimos observar vinte aulas –
simples ou duplas, seguindo a configuração de horário de cada professor/aluno
pesquisado.
Dos alunos observados, quatro tiveram conosco um momento de conversação
formal, concedidos individualmente. Os outros contribuíram para a pesquisa por meio de
conversas informais e de manifestações espontâneas durante os momentos de aula, o
que nos ajuda a compor o quadro de observações das professoras e alunas nas quais
tivemos a oportunidade de conversar mais profundamente.
No total, sete alunos preencheram o questionário inicial da pesquisa. As duas
professoras participantes, além de preencherem o questionário, também nos
concederam, individualmente, um momento de conversação formal.
13
Na seção de Anexos se encontra o modelo dos guias utilizadas com professores e alunos, sem as
adaptações feitas para cada caso.
51
Faz-se necessário observar que as conversações informais também fizeram parte
de nossas anotações, escritas em um diário de campo, e que também foram utilizadas no
confronto das informações.
A pesquisa foi desenvolvida integralmente na própria instituição, local que nos
pareceu ser mais adequado para os participantes, uma vez que procuramos fazer uso do
tempo em que eles já se encontravam por lá.
Abaixo se encontra uma tabela com o detalhamento esquemático dos
procedimentos metodológicos aqui utilizados.
Desenvolvimento da pesquisa
Ordem Procedimentos Detalhamento
1º Passo Contato com a instituição ///////////////////////////////////////////////////////////////////
2º Passo Escolha dos participantes - Contato inicial com os professores.
- Chegada aos alunos através de seus
professores, observando as suas aulas.
3º Passo Questionário Inicial - Após obter concordância do professor
ou do aluno em participar.
4º Passo Conversações Formais - Agendadas individualmente
Durante a
pesquisa
Conversas Informais, Diário de
Campo e Observações
///////////////////////////////////////////////////////////////////
///////////////////////////////////////////////////////////////////
OBS: todos os procedimentos utilizados durante a pesquisa contemplaram todos os
objetivos propostos.
Outras Informações Relevantes
Tempo da pesquisa de campo 2 meses
Professoras participantes 2 (Márcia e Clarisse)
Alunas participantes 4 (Juliana e Viviane, da profa. Márcia;
Verônica e Kátia, da profa. Clarisse)
Nº questionários iniciais respondidos 7 (alunos)
2 (professoras)
Nº conversações formais 4 (alunas)
2 (professoras)
Tempo total de gravação das Conversações
Formais
5h20min
Nº Total de aulas observadas 20 aulas
52
4.3 A entrada no campo
4.3.1 O local escolhido para a pesquisa
14
A pesquisa se deu em uma escola pública de música, localizada em Brasília-DF.
A referida instituição trata-se de um centro de educação profissional – de ensino básico e
técnico – vinculado à Secretaria de Estado de Educação do Governo do Distrito Federal.
Possui cursos regulares em diferentes modalidades de instrumento e voz, nas áreas de
música erudita e popular.
Conta com cerca de 200 professores e em torno de 60 funcionários
administrativos. Tem um porte de cerca de 2500 alunos e funciona nos períodos
matutino, vespertino e noturno. Atende à população do Distrito Federal e das cidades do
entorno. A escola é construída dentro de um amplo espaço.
De um terreno com pouco mais de 41.000m², cerca de 7.000m² correspondem ao
total de área construída. É uma estrutura de grande porte que abriga 71 laboratórios de
ensino, 9 salas de ambientes administrativos, Secretarias, sala de Direção, e 6 espaços
complementares – Biblioteca, Musicoteca, Instrumentoteca, Multimeios, Auditório da
Supervisão de Regência e um Teatro.
A escola é organizada em cinco níveis administrativos, a saber: direção, gerência,
coordenação, supervisão e núcleo. A direção é vinculada à Secretaria de Estado de
Educação por intermédio da Subsecretaria de Educação Pública do Distrito Federal. À
direção se subordinam três gerências: a Gerência Administrativa, a Gerência de
Produção e Articulação, e a Gerência Pedagógica. Às gerências se subordinam as
coordenações [em número de 3], as supervisões [5] e os núcleos [7].
Estes últimos são formados por modalidades de instrumento e voz, agregadas por
afinidades. Assim, temos o ‘Núcleo de Canto’, que agrega apenas o curso de ‘canto
erudito’, e o ‘Núcleo de Canto Popular’. Para mais esclarecimentos, encontra-se em
anexo o organograma que contém a estrutura administrativa da escola.
A nossa opção por desenvolver a pesquisa nesta escola se deu em razão de
sabermos que se trata de uma instituição com bastante tradição no DF, que agrega
professores com vasta experiência na docência em canto, além possuir cursos de canto
erudito e popular.
14
Esclarecemos que acordamos com a instituição em não divulgar o nome da escola, bem como os nomes
dos participantes, e que estes [dos participantes] aqui aparecem com nomes fictícios.
53
Também nos influenciou a escolha o fato de recebermos a informação, vinda por
meio de alunos de canto da instituição, de que no espaço das aulas acontecem
momentos coletivos e individuais, envolvendo diferentes alunos de um mesmo professor
– o que não é prática comum em outros locais. Esta forma de ministrar aulas,
denominada comumente no meio musical como ‘workshop’, é bastante utilizada em
cursos de curta duração, por isso a consideramos como uma característica diferenciada
desta escola.
Supusemos, assim, que esta configuração peculiar de aulas de canto poderia
enriquecer as nossas observações e, conseqüentemente, a construção das informações
a respeito dos alunos e professores envolvidos na pesquisa.
4.3.2 A seleção dos participantes
Iniciamos a escolha dos alunos e professores participantes em agosto de 2008.
Por meio de um contato informal, conseguimos o número de telefone da professora
Márcia, que, além de docente, exercia a função de Coordenadora do Núcleo de Canto
Popular. A professora foi bastante receptiva à pesquisa. De imediato, concordou em
participar e se disponibilizou para nos ajudar no que lhe fosse possível.
Nesse telefonema a professora nos forneceu os nomes e horários de aula de cada
professora do seu núcleo, inclusive os dela. Também combinamos que nos
encontraríamos na escola no período em que ela lecionava com o intuito de contatar
alunos e outros professores que pudessem participar da pesquisa.
No dia e horário marcados, nosso primeiro contato pessoal com a professora
Márcia, tivemos a oportunidade de observar duas aulas de caráter individual. Fizemos
algumas anotações sobre as aulas, entretanto percebemos que as alunas se sentiram um
pouco desconfortáveis com a nossa presença, o que nos fez pensar que observar aulas
de caráter individual poderia não ser o melhor caminho para a pesquisa, em seu início.
Por essa razão, quando conversamos novamente com a professora, pedimos que
ela nos indicasse horários de aulas em grupo. Também esclarecemos que preferíamos
lidar com alunos que tivessem ao menos um ano de experiência com aulas de canto, em
razão de estes possuírem mais informações a respeito de como se configura uma aula
dessa natureza. Ela nos sugeriu, então, os grupos de segunda-feira, de 18h-19h30 e de
terça-feira, de 21h-22h30.
Do grupo de segunda-feira participavam as alunas Viviane, Juliana, Sara e
Sandra. Quando a professora Márcia nos apresentou para a turma, sentimos certo recuo,
54
especialmente de Juliana, que fez questionamentos sobre a nossa presença: ‘Você vai
estar aqui na condição de outra professora de canto?’ Esclarecemos que estávamos lá
na qualidade de pesquisadora, o que pareceu dar certo alívio à aluna.
Na aula seguinte conseguimos fazer contato mais de perto com Juliana e Viviane.
Explicamos quais seriam as condições da pesquisa e indagamos se seria do interesse
delas participar. Ambas concordaram. Seguimos observando esta turma por todo o
período, procurando aproveitar momentos de conversações informais dentro e fora do
espaço da sala de aula.
No grupo de terça-feira (professora Márcia), composto pelos os alunos Isaura e
Alex, conseguimos a concordância de ambos para participar. Entretanto, encontramos
certa resistência para desenvolver a pesquisa. Quando solicitamos que Isaura
preenchesse o questionário inicial, percebemos que ela se sentiu um pouco
desconfortável em expor as informações solicitadas. Alex, por sua vez, combinou
conosco em receber e responder o questionário via e-mail, entretanto ele não cumpriu o
acordado. Assim, decidimos continuar acompanhando apenas a turma de segunda-feira,
cujas alunas eram Juliana, Viviane, Sara e Sandra.
Diva, outra professora do Núcleo de Canto Popular, foi a segunda professora que
conseguimos contatar. Assim que falamos sobre a pesquisa ela concordou em participar.
Entretanto, de tal professora, pudemos observar apenas uma aula, na qual estava
agendada uma aluna. Após esta primeira aula, se deram cinco cancelamentos, além de
haver um feriado/recesso previsto no calendário da escola. Consideramos inviável
acompanhar a professora Diva e sua aluna quando se deu a sexta possibilidade frustrada
de observação.
O contato com a terceira professora veio por meio de uma de suas alunas.
Encontramos Verônica em um evento no qual fomos assistir. Comentamos sobre a nossa
pesquisa e ela se ofereceu para nos apresentar a sua professora – Clarisse – e para ser
uma das alunas participantes. Combinamos que estaríamos presente em sua próxima
aula, em uma sexta-feira de 9h30-10h15.
Ao chegarmos à sala, Verônica nos apresentou à professora que, após os
esclarecimentos iniciais sobre o trabalho, concordou também em participar. Ao final da
aula, pudemos conversar mais com a professora Clarisse. Por informações dadas
anteriormente pela professora Márcia (coordenadora do Núcleo de Canto Popular),
sabíamos que a professora Clarisse compunha tanto o quadro do Núcleo de Canto
[erudito] quanto do Núcleo de Canto Popular.
55
Em nossa conversa, a professora nos explicou que lecionava anteriormente
apenas no Núcleo de Canto [erudito] e que, no momento, se encontrava em período de
transição: a maioria de seus alunos estava no Núcleo de Canto Popular e, segundo a
professora, era de sua pretensão migrar integralmente para este núcleo, por isso decidiu
não aceitar mais matrículas novas de alunos do Núcleo de Canto [erudito].
Sendo Verônica uma aluna do ‘canto popular’, solicitamos à professora que nos
indicasse possibilidades de horários nos quais se encontrassem alunos do ‘canto erudito’,
em razão de podermos enriquecer a pesquisa, porquanto poderíamos obter
configurações de ambos os contextos.
Para tanto, a professora Clarisse nos indicou o horário de quinta-feira de 16h30-
18h, no qual estavam agendadas as alunas Kátia e Cássia. Combinamos, então, de nos
encontrarmos na próxima quinta-feira para fazermos contato com as alunas. De início,
nos apresentamos à Kátia e Cássia, e pedimos permissão para assistir à aula, o que elas
consentiram. Conversamos com ambas sobre a pesquisa e elas concordaram em
participar.
Assim, de início, se propuseram a participar da pesquisa as professoras Márcia,
Diva e Clarisse, das quais selecionamos as professoras Márcia e Clarisse. Quanto aos
alunos, sete se propuseram a participar inicialmente: Juliana, Viviane, Alex e Isaura
(profa. Márcia), Kátia, Cássia e Verônica (profa. Clarisse), além da aluna da professora
Diva. Foram, por fim, selecionadas Juliana e Viviane (profa. Márcia), bem como Verônica
e Kátia (profa. Clarisse).
Vale lembrar que a professora Diva e sua aluna não continuaram participando da
pesquisa por termos conseguimos observar apenas uma aula delas. No caso de Alex e
Isaura (profa. Márcia), a não continuidade se deu em razão de termos encontrado certa
resistência para desenvolvermos a pesquisa com eles. Apesar de Cássia (profa. Clarisse)
ter respondido ao questionário inicial, não conseguimos agendar com ela um momento de
Conversação Formal, motivo pelo qual a aluna também não foi selecionada.
Visto terem sido apresentados todos os participantes da pesquisa, achamos
relevante prestar os seguintes esclarecimentos:
Os questionários iniciais foram respondidos por Juliana, Viviane e Isaura – alunas
da professora Márcia; por Verônica, Kátia e Cássia – alunas de Clarisse; e pela aluna da
professora Diva. Da parte das professoras, apenas Márcia e Clarisse responderam ao
questionário. As conversações formais foram feitas com as alunas Juliana e Viviane
(profa. Márcia), Verônica e Kátia (profa. Clarisse), e com as professoras Márcia e
Clarisse.
56
Dos questionários iniciais da pesquisa podemos trazer algumas informações das
alunas participantes:
– Juliana possuía 43 anos de idade, era pós-graduada, trabalhava na área de
Segurança Alimentar, além de ministrar aulas de ‘Musicalização Infantil’ e ‘Viola Caipira’.
Estudava música há cerca de sete anos e canto há três anos. Começou a ter aulas com a
professora Márcia a partir de agosto de 2008.
– Viviane tinha 31 anos de idade, possuía terceiro grau completo, era servidora
pública, estudava música e canto há três anos, e, assim como Juliana, estava com a
professora Márcia desde o agosto de 2008.
– Verônica tinha a idade de 47 anos, possuía pós-graduação, era servidora
pública, iniciou seus estudos de música no ano 2000 e os de canto em 2004. Era aluna
da professora Clarisse há dois meses.
– Kátia possuía 20 anos de idade, terceiro grau incompleto, estudava
biblioteconomia na Universidade de Brasília – UnB, estudava música há cinco anos e
canto há um ano. Com a professora Clarisse estudava desde o semestre anterior
(1º/2008).
Em relação às professoras participantes queremos adiantar o seguinte:
– A professora Márcia tinha 45 anos de idade, era mestranda no Departamento de
Música da Universidade de Brasília – UnB, atuava na área de canto popular, trabalhava
na escola pesquisada há 27 anos e atuava como professora de ‘canto’ há 9 anos.
– Clarisse, a segunda professora, possuía 53 anos de idade, era pós-graduada –
na época era doutoranda no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília –
UnB, atuava na área de música, trabalhava há 20 anos na escola pesquisada e há 8 anos
como professora de ‘canto’.
Concluídas estas considerações, nos encaminhamos para o próximo capítulo, no
qual serão apresentadas análise, interpretação e discussão das informações construídas
ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
57
5. DOS RESULTADOS
O processo de construção das informações aqui apresentadas foi embasado na
produção dos indicadores (GONZÁLEZ REY, 2005a) que surgiram a partir das interações
entre a pesquisadora e os participantes, bem como entre os próprios participantes, por
meio dos instrumentos utilizados na pesquisa, de forma a contemplar os objetivos
propostos.
Os resultados foram registrados de acordo com os quatro objetivos propostos na
pesquisa, dos quais os três primeiros foram subdivididos em itens:
O primeiro objetivo – A organização do espaço de ensino-aprendizagem de Canto
– foi dividido da seguinte forma: (1) O espaço físico; (2) O ingresso dos alunos na
instituição; (3) O percurso das professoras participantes; (4) O espaço pedagógico.
O segundo objetivo – Os aspectos que o professor de canto prioriza para definir
suas ações pedagógicas – contém: (1) Questões técnicas e musicais; (2) Dos aspectos
pedagógicos.
O terceiro objetivo – Como o próprio aluno organiza e expressa seu processo de
aprender canto; de que formas ele sente, compreende e se posiciona em relação às
ações do professor e de seus colegas – foi assim dividido: (1) Sobre as motivações para
o ingresso das alunas participantes no contexto do Canto; (2) Questões técnicas e
musicais; (3) Dos aspectos pedagógicos.
E, no quarto objetivo – Como se configuram as relações, a comunicação dialógica
entre professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso participa da
aprendizagem do aluno – não foram feitas subdivisões em itens.
5.1 A organização do espaço de ensino-aprendizagem de Canto
5.1.1 O espaço físico
A escola pesquisada, como já mencionado anteriormente, é uma estrutura de
grande porte. Ela agrega condições que podem favorecer àqueles que fazem parte de
sua comunidade: possui uma biblioteca, um acervo de partituras (Musicoteca), um acervo
de mídias com gravações de diversos autores e intérpretes (Multimeios), além de
instrumentos musicais à disposição dos alunos que não têm seu próprio instrumento para
estudo (Instrumentoteca). Esses acervos (Biblioteca, Musicoteca e Multimeios) também
58
estão disponíveis, para consulta no próprio local, para pessoas que não possuam vínculo
com a escola. A estrutura ainda conta com dois Teatros para apresentações artísticas.
O espaço destinado às aulas é dividido em blocos de salas, distribuídos por
afinidades entre as diversas modalidades de cursos oferecidos. Objeto de nossa
pesquisa, as aulas de ‘canto erudito’ e de ‘canto popular’ são ministradas no mesmo
bloco.
Como já dito anteriormente, a escola funciona nos períodos matutino, vespertino e
noturno. O movimento maior de alunos e professores acontece no período vespertino e
início do período noturno, quando grande parte das salas está ocupada com professores
e alunos em situação de aula.
Isso acarreta problemas e reclamações entre alunos, que acabam tendo que
disputar um espaço no qual possam praticar seus instrumentos. Um exemplo dessa
situação veio de Kátia, uma das alunas participantes, que comentou sobre a falta de
espaço adequado para o estudo dentro da escola:
[O] espaço físico, eu acho que é pequeno. A gente vê todo mundo
estudando aqui no corredor porque não tem sala. Eu tenho que chegar
meio-dia pra estudar piano (Kátia).
Kátia, que cursava a disciplina ‘piano suplementar’, reclamava a falta de salas
disponíveis com piano. Quando mencionou ‘a gente vê todo mundo estudando aqui no
corredor’ estava se referindo aos instrumentistas e cantores que estudam em espaços
fora da sala de aula. O ‘corredor’ mencionado dá acesso aos blocos, especificamente às
janelas das salas. Os sons produzidos pela prática desses instrumentistas e cantores
podem ocasionar incômodo aos professores e alunos em situação de aula,
especialmente nas de canto.
Durante o período que estivemos em campo presenciamos situações como esta
na turma da professora Márcia, cujos encontros aconteciam no horário de 18h-19h30.
Nestes momentos ouvimos manifestações de desconforto por parte dos alunos e da
professora. Clarisse, a outra professora, também relatou uma situação semelhante
ocorrida com ela no período vespertino. Ambas as professoras se queixaram da
dificuldade em ouvir e se concentrar nos sons produzidos por seus alunos e comentaram
que episódios como estes são freqüentes.
A queixa de professores e alunos de canto em relação ao barulho externo à sala
de aula, provocado pela prática de instrumentistas e cantores, pode se justificar ao
menos por dois motivos: primeiramente, porque o sujeito envolvido no processo ensino-
59
aprendizagem de canto necessita lidar com sensações internas do corpo durante o ato de
cantar, porquanto grande parte do aparelho vocal se localiza dentro do corpo,
demandando expressiva concentração em si mesmo, o que pode tornar a sua
aprendizagem mais complicada (BRAGA, 2007), especialmente por haver interferentes
externos.
Em segundo lugar, porque o professor de canto, entre outras coisas, necessita
funcionar como um ouvido externo ao sujeito de modo a lhe oferecer um retorno de como
verdadeiramente está se processando a sua voz (BEHLAU; REHDER, 1997). Estes
fatores exigem, tanto do aluno quanto do professor, um grau significativo de
concentração, especialmente nos âmbitos auditivo e cinestésico.
Outra opção encontrada pelos alunos para estudar é fazer uso de espaços da
escola situados ao ar livre. Em dias de sol eles podem se abrigar embaixo da sombra de
árvores que lá se encontram. Porém, nos dias de chuva esta situação se torna inviável.
Como alternativa ao problema de espaço para estudos, a professora Clarisse nos
informou que alguém de dentro da própria escola sugeriu à administração a provisão de
um espaço coletivo coberto, ainda que provisório, destinado aos estudantes que
quisessem estudar. Entretanto, segundo a professora, até o momento da pesquisa não
parecia haver movimento da administração nesse sentido.
Afora a questão do barulho externo já mencionado, que, de fato, podia incomodar
em especial as aulas de canto, não notamos nenhum outro problema que pudesse
oferecer grandes prejuízos aos alunos e professores inseridos no contexto de canto da
escola.
Vimos, por exemplo, que as salas que compõe o ‘bloco de canto’ são construídas
e separadas por paredes de alvenaria, o que pode favorecer o isolamento acústico
necessário para as aulas de canto.
Outro ponto relevante é que as salas, além de possuírem janelas, o que permite a
ventilação natural do ambiente, em geral, possuem um aparelho de ar condicionado.
Entretanto, não é comum se fazer uso de tal aparelho em aulas de canto, visto que estes
produzem um ambiente com ar frio e seco, o que pode prejudicar a emissão vocal.
Sobre este aspecto, encontramos o seguinte esclarecimento de Behlau e Pontes
(2001):
O limite de resistência ao ar condicionado é individual mas, de modo
geral, ocorre uma agressão à mucosa das pregas vocais, pois o
resfriamento do ambiente é acompanhado pela redução da umidade do
ar, que provoca o conseqüente ressecamento do trato vocal, o que
induz a uma produção da voz com esforço e tensão (p. 34).
60
Gostaríamos ainda de ressaltar que todas as salas do bloco aonde acontecem as
aulas de canto (popular e erudito) possuem um piano acústico. Vemos como considerável
vantagem o fato de se possuir em sala tal instrumento, mesmo que careçam de reparos
e/ou afinação, solicitação que ouvimos algumas vezes no contexto das aulas de ambas
as professoras participantes.
De fato, o piano é necessário para o apoio nas aulas de canto, tanto para os
momentos reservados aos exercícios técnico-vocais – em geral, trabalhados com o
próprio professor de canto ao piano, quanto para a utilização dos pianistas
acompanhadores – chamados correpetidores – que auxiliam os alunos em momentos
reservados à passagem do repertório estudado.
Utilizando como base as informações aqui apresentadas, concluímos que, exceto
o problema já descrito, o espaço físico da escola, principalmente o reservado para o
contexto das aulas de canto, é bem estruturado e oferece boas condições tanto para os
alunos quanto para os professores que ali se inserem.
5.1.2 O ingresso dos alunos na instituição
Ser aluno desta escola é condição bastante valorizada na comunidade do DF e
cidades do entorno. Duas são as formas que o interessado em uma vaga encontra para
ingressar na escola: por meio de sorteio público – para iniciantes; ou por testes teórico-
práticos – para musicalizados. Os sorteios e os testes acontecem semestralmente e o
ingresso depende do número de vagas disponíveis para cada modalidade.
O ingresso via sorteio parece ser mais concorrido do que o via testes porquanto é
destinado a qualquer pessoa da comunidade, com ou sem prévio conhecimento musical,
e pelo fato de, em geral, a escola oferecer, nesta forma de ingresso, um número menor
de vagas em relação à outra. A fala da professora Márcia e de Verônica, aluna da
professora Clarisse, nos indica a mesma direção:
[...] é claro que é alguma coisa assim, né, um tantão de gente que se
inscreve e uma ou duas vagas de sorteio que aparecem (profa. Márcia).
[...] na época que eu vim fazer o sorteio [...] Tinha dez vagas. O sorteio
que mais teve vaga, que geralmente tem duas, três, não passa disso
(Verônica).
Por informações prestadas pela professora Márcia, obtivemos que os próprios
professores definem quantas vagas serão destinadas a cada modalidade e que há uma
61
tendência dos professores de seu núcleo [canto popular] em não abrir vagas para sorteio,
o que, para ela, parece ser um pouco diferente:
[...] a gente [...] fica se debatendo um pouco com essa questão aqui
também porque, por exemplo, agora me pediram pra gente dar as
vagas [...] pra ingresso, que têm duas formas: sorteio e a prova de
iniciados. E, de maneira geral, o núcleo tem uma tendência de não
querer abrir vaga de sorteio e querer abrir vaga só de iniciados, porque
aí você já vê se o cara é afinado, se não é. [...] E eu confesso pra você
que como professora, eu tenho uma resistência por esse negócio. Eu
tenho vontade de abrir vaga de sorteio pra não fechar essa porta [...] a
minha vontade é de receber todo mundo [...] pra todo mundo ter uma
oportunidade de viver a música, sem precisar demonstrar a priori um
talento. Agora, eu tenho consciência que [...] eu querendo ser muito
abrangente, eu posso ser injusta nesse sentido [...] às vezes tem gente
que já ta naquele caminho assim e você pode, por botar no sorteio,
colocar uma outra pessoa que não vai chegar. (profa. Márcia).
O discurso da professora Márcia nos indica certo dilema entre a sua vontade de
oferecer a vaga por sorteio – o que permite a entrada de alunos com condições, a priori,
‘mais fracas’ para o desenvolvimento do canto, como a questão da falta de afinação – e
certa necessidade de priorizar o ingresso via testes – configuração que permite avaliar,
de imediato, as condições nas quais o candidato se encontra, vocal e musicalmente, o
que favorece o ingresso dos ‘mais desenvolvidos’.
Ao discutirmos em conversa informal esta situação, a professora Márcia nos
esclareceu que o seu posicionamento vinha se modificando ao longo do tempo no qual
assumiu a função de professora de canto. De fato, inicialmente ela pensava que todos
deveriam ter acesso à escola.
Alguns argumentos, no entanto, a estavam conduzindo a pensar de forma
diferente, como por exemplo: ao refletir que em diversos momentos na escola havia uma
relação de um professor para um aluno em sala de aula, o que, segundo informações que
obteve, gerava custos mensais significativos – por aluno – para o governo.
Outro argumento forte era que, diferente do ingresso via sorteio, no via testes o
aluno, além de ser submetido às provas, também tinha um momento de entrevista com
os professores da banca, o que favorecia compreender as expectativas e intenções do
interessado à vaga em relação a um curso de nível profissionalizante. Desta forma,
reflexões como estas estavam contribuindo para que a professora Márcia se
posicionasse cada vez mais em favor do ingresso via testes.
A professora Clarisse, que, vale lembrar, compunha tanto o quadro do Núcleo de
Canto [erudito], quanto o do Núcleo de Canto Popular, parece compartilhar da mesma
opinião. Assim como descrito no trecho abaixo, essa professora argumenta achar mais
62
interessante o ingresso via testes, especialmente quando a vaga se destina ao curso de
‘canto erudito’:
[...] quando entra aqui direto naquele sorteio [...] e a pessoa não sabe
uma nota, é bem mais difícil. [...] Ainda mais no canto erudito que se
canta em outras línguas [...] No canto popular você ainda vai até um
determinado patamar, mas no canto erudito é difícil. Então se ele
souber um pouquinho de música é bom (profa. Clarisse).
De fato, o caminho para trabalhar com aquele que não possua ‘condições
privilegiadas’ para o canto pode se tornar mais longo. Entretanto, o ingresso via sorteio
também pode trazer pessoas que, mesmo a priori aparentando ser ‘menos privilegiadas’
para o canto, tenham boas condições de desenvolvimento vocal/musical.
Nas palavras de Verônica (profa. Clarisse), por exemplo, temos a indicação de
que ela já tinha um bom desenvolvimento vocal/musical, porém as suas condições não
eram suficientes, segundo os padrões estabelecidos na escola, para poder ingressar via
testes:
Teste eu fiz duas vezes, até que passei, mas não foi uma nota tão boa a
ponto deles me darem a vaga. Que eles só dão a vaga pra quem
realmente tira de nove a dez e eu não tirei, não consegui. [...] Eu fiquei
com sete e pouco, outra vez tirei oito e meio. (Verônica).
A situação de Verônica, que, conforme sua fala, com muita perseverança acabou
ingressando na escola na sétima tentativa via sorteio, nos leva de volta ao argumento
inicial da professora Márcia, quando disse ter “vontade de abrir vaga de sorteio pra não
fechar essa porta”.
Mesmo que se priorize o acesso via testes, argumento que, entre outros, se
justifica por se tratar de um curso profissionalizante, ao se permitir que o sorteio
permaneça como forma de ingresso, interessados à vaga em condições talvez não
satisfatórias, a priori, continuarão tendo acesso à escola para desenvolver as suas
possibilidades musicais e, quem sabe, até chegar a um nível de performance mais
avançada em relação à outro que, inicialmente, apresentou condições musicais e/ou
vocais mais favoráveis ao canto. O ingresso de cada aluna participante no contexto de
aulas de canto na escola será abordado mais adiante no trabalho.
63
5.1.3 O percurso das professoras participantes
Por ser uma instituição vinculada à Secretaria de Estado de Educação, os
professores podem ingressar na escola pesquisada de duas maneiras: através de
Concurso Público para Professores Efetivos ou de Processo Seletivo para a Contratação
Temporária.
Ambas as professoras participantes da pesquisa além de comporem, há um
tempo considerável, o quadro de professores efetivos, possuem experiências no campo
administrativo desta escola, razão pela qual optamos por utilizar as informações por elas
relatadas sobre a estrutura do contexto pesquisado a partir de seu ingresso na mesma.
A professora Márcia nos informou que tem uma relação bastante longa com a
escola. Seu ingresso, ainda como aluna, se deu aos 9 anos de idade. Na época da
pesquisa, aos 45 anos, ela nos contou que, após o período como aluna, atuou como
cantora do coro profissional da instituição e, tempos depois de ser efetivada por concurso
interno, começou a dar aulas de Musicalização Infantil. Após esse momento, a professora
Márcia passou pela Musicalização de Jovens e Adultos, bem como por disciplinas do
nível técnico.
Antes de chegar ao Núcleo de Música Popular, ela ainda se encarregou da
Coordenação de Produção Artística. Segundo a professora Márcia, a sua chegada ao
Núcleo de Canto Popular se deu por necessidade da escola. A professora que fundou
este departamento necessitava de licença e solicitou que ela a substituísse. Quando
realizamos a pesquisa, a professora Márcia ainda ministrava aulas de ‘canto popular’ e,
como já mencionado, além da função de professora, assumia a coordenação do referido
núcleo.
Clarisse, a outra professora participante, também tem uma trajetória longa dentro
da escola: 20 anos, como mencionado anteriormente. Assim como a professora Márcia,
ministrou aulas de Musicalização Infantil e, de acordo com ela, assumiu de 1997 a 2000 a
Coordenação Central desta área de atuação. No referido período, a professora Clarisse
também se encarregou de funções administrativas:
[...] assinando, cuidando da escola quando o diretor não tava. É um
cargo bem pesadinho (profa. Clarisse).
Sua chegada ao Núcleo de Canto [erudito] se deu a partir de 2000, quando deixou
a coordenação. Nesse período, a professora atuava tanto na Musicalização Infantil
quanto no Canto. No momento da pesquisa ela ainda compunha o quadro de professores
64
do Núcleo de Canto [erudito], no entanto, segundo o seu relato, se encontrava em vias de
se transferir definitivamente para o Núcleo de Canto Popular.
As informações aqui apresentadas nos indicam que mesmo havendo formas pré-
estabelecidas para o ingresso dos professores, também há certa flexibilidade destes em
relação às áreas que podem atuar na escola. A escolha para a mudança, segundo o que
observamos, pode se dar por necessidade da escola, como no caso da professora Márcia
que assumiu o posto de uma professora em situação de licença, ou mesmo pela opção
do próprio professor, assim como podemos encontrar no discurso da professora Clarisse:
[...] Em 2000, eu falei: ‘ah, agora está na hora de mudar. Estou saindo
da coordenação. Quero fazer um negócio diferente’. Aí eu fiquei um
pouquinho na Educação Musical e um pouquinho no Canto. [...] a
coordenadora [...] me deu uns cinco alunos. Eu comecei devagarzinho
pra eu mesma me situar. Depois fui pegando mais gente, aí hoje em dia
já estou bem por dentro do que o povo faz (profa. Clarisse).
Quando nos deparamos com a frase ‘ah, agora está na hora de mudar. Estou
saindo da coordenação, quero fazer um negócio diferente’ pensamos ser necessário
ressaltar que a liberdade que os professores possuem na escola para poder transitar em
diferentes áreas do contexto musical tem relação com os conhecimentos e habilidades
por eles já adquiridos ou desenvolvidos, até mesmo dentro da própria escola.
As professoras Márcia e Clarisse, por exemplo, nos relataram não ter experiências
anteriores com a docência em canto quando assumiram esta função na escola. No
entanto já haviam passado por anos de experiência nesta área, tanto na condição de
alunas como na de cantoras intérpretes. A necessidade de preparo para assumir a
posição de ‘professora de canto’ também está presente na fala de ambas:
[...] eu estou no canto desde 2000. Eu não quis vir antes porque a
minha professora me mandava dar aula e eu dizia assim: ‘não, mas eu
só vou quando eu estiver segura’. (profa. Clarisse).
Naquela época eu já tinha muito tempo de estudo de canto, mas eu era
muito apavorada com essa história de dar aula, porque eu achava uma
coisa delicada demais. Mas nessa época [...] eu tinha acabado de fazer
um curso com uma professora [...] que é uma pessoa que entende
muito de fisiologia, que se estendia muito nisso e eu aí estava me
sentindo um pouco mais segura pra poder fazer isso (profa. Márcia).
Assim como descrito nos trechos acima, em nossas observações também
pudemos perceber cuidados constantes das professoras Clarisse e Márcia em relação à
condição vocal de seus alunos. Um exemplo disso era não permitir que o aluno
65
participasse da aula quando se encontrava com dores de garganta, situação ocorrida
algumas vezes nas salas de ambas as professoras durante este período.
Isto nos remete a Behlau e Rehder (1997) na medida em que argumentam:
“Nunca cante quando não estiver em boas condições de saúde; cantar é um ato de
esforço e de enorme gasto energético. Manter a saúde auxilia a produção da voz, quer
seja cantada ou falada. São raros os indivíduos doentes que mantêm boa emissão vocal”
(p. 33).
O estar preparada para assumir a posição de ‘professora de canto’ também passa
pelo âmbito relacional, aspecto muito presente no discurso das professoras Clarisse e
Márcia. As falas a seguir nos indicam que o ‘gostar de se relacionar’ também se liga à
forma como elas se encontravam inseridas no contexto de canto no momento da
pesquisa:
Você tem que trabalhar a personalidade do aluno. Então, você tem que
perceber como o aluno é. Tem aluno que é tímido. Ele não quer cantar.
Você tem que empurrar. Então, eu acho que é enriquecedor porque
cada aluno é dum jeito e você vai aprendendo a lidar com as pessoas.
O que eu acho mais legal, na verdade, é lidar com pessoas diferentes.
[...] Eu gosto de me relacionar (profa. Clarisse).
Eu confesso que sou muito apaixonada por relacionamentos. Eu corri o
risco de me tornar muito autodidata porque a maior parte das coisas
que eu aprendi na vida era muito nos grupos. E é engraçado, porque
essa história do canto popular devia ter sido uma coisa meio que
provisória, e eu acho que eu fui me apaixonando e me encontrando
nesse espaço da sala de aula que eu ainda vivo. [...] eu diria que eu
tenho muito prazer nesse relacionamento que, aqui no canto popular,
acontece na sala de aula. (profa. Márcia).
O ‘gostar de se relacionar’ é uma característica presente tanto no discurso das
professoras, quanto na sua prática diária. Percebemos, dentro e fora do contexto das
aulas, a simpatia, a amizade, o cuidado que elas demonstram na relação com o outro.
Com a professora Márcia, por exemplo, em uma situação de aula, ouvimos ela se
dirigir a uma aluna com a frase ‘me desculpe por estar estranha naquele dia’. A despeito
de não sabermos o contexto do qual a professora Márcia se referia, esta situação nos
indica a intenção dela em se aproximar pessoalmente de sua aluna.
Outro exemplo veio da parte da professora Clarisse, quando indagamos sobre
uma observação feita pela própria professora de que uma de suas alunas teria
apresentado um rendimento pouco satisfatório naquele semestre – aluna esta que a
professora caracterizou, algumas vezes, como ‘estudiosa’.
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Em resposta ao nosso questionamento, a professora Clarisse justificou que esta
aluna não se encontrava bem emocionalmente, entre outras razões, porque estava com
problemas de âmbito familiar. Isso nos indica que, assim como a professora Márcia, a
professora Clarisse também buscava uma relação que ia além do conteúdo técnico e
musical de suas aulas.
A partir do percurso das professoras podemos apreender semelhanças entre elas.
É coincidente, por exemplo, o fato de ambas terem experiências na área de
Musicalização Infantil, o que, de certa forma, demanda uma relação mais delicada e
afetuosa com o aluno. A vivência em um contexto como este pode refletir na relação com
outro dentro e fora da sala de aula, característica que encontramos em ambas as
professoras.
Outro aspecto comum entre elas era a necessidade de se prepararem mais
longamente antes que pudessem começar a ministrar aulas de canto, o que nos indica
um cuidado especial das professoras para com seus alunos, especificamente com
aqueles que pertenciam ao contexto de canto.
Assim, o percurso das professoras Clarisse e Márcia nos ajuda à medida que nos
indica certos aspectos presentes no contexto de suas aulas e na forma como elas
estavam inseridas na escola pesquisada. Os aspectos que dizem respeito à relação entre
as professoras e seus alunos serão discutidos posteriormente.
5.1.4 O espaço pedagógico
As informações que obtivemos em relação ao espaço pedagógico dizem respeito
às formas como os professores se organizam para ministrar suas aulas, à divisão dos
níveis de ensino – básico e técnico – existentes na escola, aos critérios de avaliação, às
apresentações artísticas dos alunos, às parcerias estabelecidas, bem como às questões
curriculares.
De início, gostaríamos de esclarecer que a hora-aula na escola tem duração de
quarenta e cinco minutos, e que a freqüência na qual acontecem as aulas de instrumento
ou voz é de uma vez por semana, salvo possíveis exceções.
Durante a investigação constatamos que alguns professores utilizam, no espaço
de suas aulas, o formato ‘workshop’, como mencionado anteriormente, enquanto outros
trabalham com duplas ou mesmo de forma individual. Também vimos que a aula de
caráter individual tem duração de quarenta e cinco minutos, o equivalente a uma hora-
aula, enquanto que as outras duram uma hora e trinta minutos, ou duas horas-aula.
67
A opção pelo sistema adotado parece depender da preferência do professor e/ou
o nível no qual o aluno se encontra. A professora Clarisse, por exemplo, nos informou
que prefere trabalhar com poucos alunos em sala, já que esse formato permite que ela se
organize melhor para dar mais atenção a eles. Isso pode ser constatado a partir dos
horários das alunas participantes: para Verônica ela agendou um horário de aula
individual; e para Kátia e Cássia, que, como já dissemos, eram colegas de sala, ela
separou dois horários consecutivos.
A professora Márcia, por sua vez, nos informou que prefere o sistema de aulas em
grupo. Entretanto, ela também trabalha com os alunos mais avançados em sistema de
aulas individuais. Confirmamos este fato mediante as observações de suas aulas.
Assim como informado anteriormente, a escola pesquisada é um centro de
educação profissional de ensino básico e técnico. Estes dois níveis de ensino, por sua
vez, estão divididos em módulos semestrais. No curso de ‘canto popular’, o nível Básico é
composto por seis módulos (B1 à B6) e o Técnico por oito – (Tec1 à Tec8). No curso de
‘canto erudito’, o nível Básico abrange cinco módulos (B1 à B5) e o técnico, oito (Tec1 à
Tec8). Em relação às alunas participantes, fomos informadas que Juliana situava-se no
B6 de ‘canto popular’; Viviane, no B4 de ‘canto popular’; e Kátia, no B3 de ‘canto erudito’.
Entre os níveis Básico e Técnico foi criado, na escola, o ‘Módulo Preparatório para
o Técnico’, composto por dois módulos – MPT1 e MPT2. Este se configura como um
nível intermediário e é destinado apenas àqueles que não conseguirem atingir os
requisitos necessários para ingressar no nível técnico, como no caso de Verônica, que se
situava no MPT1 de ‘canto popular’.
Ao conversarmos com a professora Márcia, obtivemos a informação de que os
requisitos necessários aos alunos de ‘canto popular’ para o ingresso no nível técnico
seriam:
1) Estar com a saúde vocal estabilizada, ou seja, livre de problemas ligados à
emissão vocal, como, por exemplo, uma constante rouquidão;
2) Fazer a passagem do registro vocal grave para o agudo, já que grande parte
dos alunos tem facilidade para cantar no registro grave de sua voz, chamado
‘voz de peito’, e menos familiaridade com o registro agudo, chamado ‘voz de
cabeça’;
3) Ter aumentado a produção de repertório;
4) Conseguir estabelecer um hábito de estudos.
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É importante salientar que, segundo a professora Márcia, estes critérios pré-
estabelecidos nem sempre eram compartilhados por todos os professores que
compunham o núcleo. A sua fala pode nos ajudar a esclarecer este aspecto:
[...] na verdade, tem muito do que eu fico falando, que é o que eu
penso. Nem tudo é compartilhado totalmente pelo grupo. Têm coisas,
que pra mim são muito claras e que, às vezes pra algumas pessoas,
não funciona do mesmo jeito. [...] acaba que, também, como eu estou
na coordenação... (risadas) [...] às vezes tem que gravar, mesmo,
porque eu chego aqui, eu passo e-mail pra não sei o que, passo uma
folha de avaliação, falo ‘olha aqui, gente, eu trouxe pra gente ver aqui’,
(ironizando) ‘ah, está ótima, nossa, está ótima, você é maravilhosa,
você é a melhor coordenadora do mundo! Olha, está lindo’. Mas
ninguém usa (profa. Márcia).
Este pequeno trecho sugere que havia certa flexibilidade no cumprimento das
regras para o ingresso no nível técnico de ‘canto popular’, e que estas regras pareciam
ser adaptadas de acordo com as opções de cada professor do núcleo.
No que tange ao Núcleo de Canto [erudito], fomos informados de que para
ingressar no nível técnico o aluno precisava:
1) Fazer a passagem para os agudos;
2) Estar com a respiração adequada para o canto;
3) Cumprir repertório e conteúdo programático estabelecidos;
4) Apresentar, em sua prova de banca, ao menos 2 peças, de 2 estilos musicais
diferentes e, de preferência, em 2 línguas diferentes.
Sobre as questões de avaliação, obtivemos que os alunos eram submetidos à
prova prática e teórica, a primeira com a presença de uma banca examinadora. Esta
banca era composta por seu professor e por outros da modalidade na qual ele se inseria.
Assim, no contexto pesquisado, os alunos de ‘canto erudito’ eram avaliados por
professores do Núcleo de Canto [erudito], e os de ‘canto popular’, pelos do Núcleo de
Canto Popular.
Durante a pesquisa pudemos presenciar uma das alunas participantes em
situação de ‘prova de banca’, como é chamado esse formato de avaliação. Kátia se
submeteu à prova na sala aonde costuma fazer suas aulas de canto. Participaram da
banca examinadora a sua professora (Clarisse) e duas outras professoras do Núcleo de
Canto [erudito].
69
Quando conversamos com Kátia, ela nos informou ser de praxe que a banca
examinadora das provas de ‘canto erudito’ seja composta por todos os professores do
núcleo. Nesta configuração as provas são realizadas em um dos Teatros da escola e são
abertas à presença dos alunos que queiram assisti-las. A aluna também comentou que,
desde seu ingresso na escola, ainda não havia passado por esta experiência.
Sobre as ‘provas de banca’ realizadas no Núcleo de Canto Popular’, a professora
Márcia nos informou que o grupo de professores deste núcleo estava adotando um
procedimento peculiar, no qual a banca examinadora servia para discutir a situação do
aluno, entretanto não tinha poder de vetar a sua aprovação para o módulo subseqüente,
exceto quando na passagem do aluno para o nível técnico – quando os alunos deveriam
cumprir os ‘requisitos necessários’ já mencionados, e na passagem do primeiro para o
segundo semestre do nível técnico (do Tec1 para o Tec2) – quando o aluno deveria
mostrar a sua capacidade em desenvolver estilos musicais diferentes.
Juliana, aluna da professora Márcia, fez colocações sobre outro aspecto que
compõe o espaço pedagógico da escola: as apresentações artísticas, denominadas
‘Audições’. Segundo seu relato, alguns professores se utilizavam da ‘audição’ como
forma de avaliação do aluno, ou seja, caso este não participasse da apresentação, o seu
conceito final ficaria prejudicado. A fala da aluna nos indica a mesma direção:
Isso aí é uma coisa que eu acho errado: você obrigar o aluno a
apresentar logo nos primeiros semestres. [...] ‘se você não for, você não
vai ganhar nota’. Tem professor que fala isso. E se você não vai, ele te
tira nota mesmo. Já aconteceu comigo. Eu já fui duas vezes obrigada
(Juliana).
Juliana, ao se posicionar contra o fato de alunos serem obrigados a se apresentar
nos primeiros semestres, sugeria que os alunos mais iniciantes fossem trabalhados,
especialmente no âmbito emocional, para uma situação de apresentação. De fato, no
caso de o professor vincular o conceito final à apresentação do aluno, este acabaria
optando por participar da ‘audição’ mesmo não se sentindo seguro para tal, em razão de
não querer correr o risco de ser prejudicado em sua menção final.
Sobre o mesmo aspecto, a professora Márcia nos informou que o seu núcleo
pensava em tornar obrigatórias as apresentações artísticas para os alunos de nível
técnico, o que não se aplicaria aos alunos de nível básico. Nas palavras da professora
encontramos mais esclarecimentos:
[...] taí uma coisa que eu acho que não dá pra fazer. É falar assim:
‘não, vá’. ‘ah, eu acho que eu não estou pronta’. ‘não, vai lá e faz’. As
70
apresentações, geralmente, a gente não coloca como uma coisa
obrigatória. Nunca precisou, também porque geralmente estão
interessadas em participar. Mas a gente tem cogitado, ultimamente,
pegar o pessoal do técnico e obrigar a se apresentar todo semestre.
Porque aí no técnico é um nível de compromisso maior. [...] A gente é
feito de horas de vôo, né? A gente precisa desse tempo em cima do
palco. É tão raro, é tão difícil da gente ter. Então tem que aproveitar.
Mas no básico geralmente a gente não força muito a barra (profa.
Márcia).
O contexto apresentado nos indica que a professora Márcia percebia a
necessidade de trabalhar o aluno para as ‘audições’, sem, no entanto, obrigá-lo a se
apresentar nos módulos iniciais. Ela também exprimiu a necessidade de tornar
obrigatórias as ‘audições’ para os alunos de nível técnico, em razão de possibilitar que os
que optaram por fazer um curso profissionalizante tivessem experiências que fazem parte
do contexto diário desta profissão.
Ao questionarmos a professora Márcia sobre o aluno ser obrigado a participar da
‘audição’, ela nos informou que, em determinada época, foi necessário vincular a
apresentação dos alunos de seu núcleo à menção final porque, ao deixar à critério dos
próprios alunos, alguns chegavam a ficar dois ou até três semestres sem se apresentar
na escola.
No entanto, a professora nos assegurou que isto acontecia apenas com os alunos
de nível técnico, o que não estaria de acordo com as informações prestadas por Juliana,
que, no momento da pesquisa, se encontrava no módulo B6 de ‘canto popular’. Isto
também pode ser confirmado pelo fato de Juliana ter optado por não participar da
‘audição’ que pudemos presenciar.
Vale lembrar, no entanto, que Juliana também era aluna do curso de ‘viola caipira’
e que, apesar de não termos observado isso, as experiências narradas por ela podem ter
ocorrido naquele contexto. Questões relacionadas à avaliação e às apresentações
artísticas serão discutidas posteriormente, tanto na perspectiva das alunas quanto na das
professoras participantes da pesquisa.
Outro aspecto relevante que encontramos foi a parceria estabelecida entre
professores que compõe o Núcleo de canto [erudito] ou o Núcleo de Canto Popular.
Encontramos no discurso da professora Márcia a parceria estabelecida entre os
professores de seu núcleo. Ela se refere especialmente sobre não haver ciúmes dos
professores em relação aos seus alunos, questão esta também debatida pela professora
Clarisse. As falas abaixo nos direcionam para o mesmo caminho:
71
Outra coisa que eu acho legal: que não tem ciúme de aluno. É uma
coisa assim: ‘nesse semestre a banca achou que fulaninha está
precisando trabalhar com a voz de peito e com a performance de palco.’
Vai pra tal professora, porque ela é fera nesse negócio. E não tem essa
coisa assim de ‘ah, trocou de professor!’ A pessoa também pode tomar
essa decisão. Ela está achando que está precisando de um trabalho
diferente, então, no outro semestre ela vai e se inscreve com outro
professor. Pode ser que aconteça, mas eu nunca vi um clima, um
climão rolar por conta desse negócio. Eu acho legal (profa. Márcia).
Eu dou total liberdade pro aluno. Eu acho que tem que ser assim.
Porque esse negócio de você achar que é dono do aluno... E não tem
por que. Não é legal isso. O aluno também diz ‘eu sou só do professor
tal’. Isso também não é legal. Por exemplo: esse contato que eu tenho
com a outra professora, eu vou lá, eu boto a mão nos alunos dela, ela
deixa. ‘Põe a mão’. ‘Isso, bota a mão aí, bota ela pra cantar’. E eu gosto
desse contato (profa. Clarisse).
Os trechos apresentados nos indicam que estas parcerias ocorriam de forma não
instituída, a partir das identificações entre professores e alunos, e de suas afinidades.
Isto nos encaminha à idéia de que as parcerias funcionavam de forma a trazer benefícios
entre os que compunham o contexto das aulas de canto na escola pesquisada.
Sobre as questões curriculares, encontramos algumas informações contidas no
percurso das professoras que nos indicam mudanças ocorridas na estrutura de currículos
e programas da escola, assim como podemos observar na fala da professora Márcia logo
abaixo:
[...] nesse meio tempo eu vi a escola passar por várias reformulações de
currículo, de programa dos próprios cursos, remanejamento dos cursos,
mudanças na legislação, [...] até a gente, agora, [...] está constituído
como Centro de Educação Profissional, e então o curso de Canto
Popular como um curso da educação profissional dentro aqui da escola
[...] (profa. Márcia).
A professora Márcia também nos situou a respeito de mudanças que estavam
ocorrendo naquele momento, especialmente no que tangia às disciplinas que
compunham a grade dos cursos de Música Popular. A professora Clarisse, por sua vez,
comenta que percebeu mais avanços no contexto de ‘canto popular’ da escola do que no
de ‘canto erudito’, que, no seu modo de ver, ainda parece muito tradicional:
[...] hoje em dia a gente está passando por uma reformulação das
trajetórias, em parte porque a gente vinha se ressentindo de que a
estruturação das disciplinas básicas, que são as mesmas pra todo
mundo, de certa forma não atende bem a algumas áreas. A Música
Antiga, com as suas especificidades, se queixa um pouco disso. Outras
áreas, como a Musicografia Braille... E dentro da Música Popular a
72
gente também sempre teve essa... Quero dizer, as práticas de
aprendizagem da música popular são diversas, são diferentes da
música erudita. [...] Por mais que a gente também ache legal que não
haja uma separação entre música popular e erudita, [...] que esteja todo
mundo junto, mas contemplando as especificidades (profa. Márcia).
[...] o canto popular, eu vi que melhorou muito. O canto erudito eu acho
que ainda patina em muita coisa. [...] é um ensino ainda muito
tradicional, onde o professor não arrisca muitas coisas. Ele, às vezes,
não quer conhecer coisas novas, técnicas novas (profa. Clarisse).
A fala da professora Márcia nos indica certo movimento dentro da escola em
buscar alternativas para que fossem contempladas as especificidades nas diferentes
modalidades que compõem esta estrutura. A professora Clarisse, por sua vez, enxergava
mais avanços no curso de ‘canto popular’ do que no de ‘canto erudito’, que lhe parecia
ainda bastante apegado a tradições. Isso nos conduz à idéia de que na estrutura geral da
escola havia espaço tanto para um ensino tradicional quanto para um ensino aberto a
novas possibilidades.
Analisar os aspectos que compunham o espaço pedagógico das aulas de canto
nos foi útil na medida em que pudemos compreender, de forma geral, o contexto
pesquisado e a forma como professores e alunos se movimentavam nesta estrutura.
Em nossas conclusões a respeito da organização do espaço ensino
aprendizagem de canto, percebemos como relevantes que:
– A seleção entre os que devem ou não ter oportunidade de estudar canto está
pautada nas condições que o indivíduo apresenta a priori, como ‘voz privilegiada’,
‘afinação’, ‘musicalidade’, mostrando-nos que os indivíduos que não possuam as
mesmas condições são apreendidos mais pelas suas limitações do que por suas
possibilidades;
– A disposição do professor para entrar em relação com o outro é um aspecto
forte do contexto de aulas de canto;
– O desenvolvimento do aluno de canto é apreendido a partir do cumprimento de
padrões técnicos e musicais pré-estabelecidos.
Tendo esclarecido a forma como se apresenta o espaço ensino-aprendizagem de
canto, nos encaminhamos para o próximo item, no qual estaremos discutindo os
aspectos que o professor de canto prioriza para definir suas ações pedagógicas.
73
5.2 Os aspectos que o professor de canto prioriza para definir suas ações
pedagógicas
5.2.1 Questões técnicas e musicais
Dentre os aspectos priorizados pelas professoras participantes no contexto de
aulas de canto se encontram os de cunho técnico e musical. Um desses aspectos – a
saúde vocal – é bastante presente no discurso da professora Márcia, assim como
podemos observar em suas palavras:
[...] hoje em dia eu vejo o pessoal aí se arriscando muito cedo [...] Eu
cultivo isso nos meninos, sabe, eu falo ‘ó, enquanto eu não tive certeza
que eu podia ouvir uma voz e identificar pelo menos patologias, e
também que eu não ia cultivar essas patologias, eu não me arrisquei [...]
eu acho que é importante ter essa bagagem tanto no campo da saúde
vocal, quero dizer, esse aprofundamento em relação à percepção da
voz, ter muito desenvolvido este ouvido pras questões de saúde vocal.
Eu acho que isso é muito importante. (profa. Márcia).
Quando a professora Márcia fala em ‘se arriscar muito cedo’, ela se refere à
‘ministrar aulas de canto’. Os ‘meninos’ são os seus alunos, os quais ela orienta que se
preparem melhor antes de se tornarem professores de canto. A questão da saúde vocal
permeia não só o seu discurso, mas a sua prática diária.
Vimos, por exemplo, como mencionado anteriormente, situações nas quais a
professora Márcia desaconselhou determinados alunos a participarem da aula quando se
encontravam adoentados, com dor de garganta. Ela própria cancelou suas aulas em um
dia no qual se encontrava nesta mesma condição.
A professora Márcia também sempre recomendava seus alunos a fazerem o exame
médico que possibilita ver em que condições se encontram as cordas vocais, chamado
‘videolaringoscopia’. Na sala de aula, permanentemente escrito no quadro usado para
avisos, estava o contato de um médico otorrinolaringologista, profissional que faz este
tipo de exame.
Também nos indica a mesma direção o fato de termos presenciado, em situação de
aula, uma conversa da professora Márcia com Sara, sua aluna, que trouxe informações
sobre um cansaço vocal que costumava ocorrer no final do dia. Para ilustrar tal situação,
transcrevemos uma parte do diálogo desenvolvido entre elas:
– “Costumo ficar rouca à noite” (Sara).
74
– “Você já fez vídeo alguma vez?” (profa. Márcia).
– “Marquei e não fui” (Sara).
Professora Márcia, em tom de ironia, mansamente:
– “Nem vou gastar a minha saliva dando bronca em você. Já cansei de dizer o
quanto isso é importante”.
O questionamento da professora Márcia sobre Sara ter feito ‘alguma vez’ a
videolaringoscopia nos indica que ela já havia recomendado que a aluna fizesse tal
exame, mesmo antes de Sara ter-lhe informado sobre a rouquidão que aparecia em sua
voz quase que diariamente.
A rouquidão constante é um dado que, realmente, pode indicar possíveis
problemas vocais no indivíduo. Encontramos suporte em Behlau e Pontes (2001) neste
sentido quando recomendam:
Caso se observe voz alterada, persistente por mais de 15 dias; dor ao
falar; sensação de esforço, aperto, ardor, queimação ou cansaço vocal,
procure um médico otorrinolaringologista ou um fonoaudiólogo. [...]
qualquer rouquidão persistente por mais de duas semanas deve ser
avaliada adequadamente (p. 53).
Os argumentos expostos anteriormente nos mostram que a saúde vocal é um
aspecto determinante nas ações pedagógicas da professora Márcia no contexto de aulas
de canto. Este aspecto é tão presente no discurso e na prática da professora que, como
já mencionado, também lhe servia de critério para a passagem do aluno para o nível
técnico. Voltaremos a este exemplo da aluna Sara mais adiante, quando estaremos
discutindo questões da avaliação na perspectiva das professoras participantes.
Um segundo aspecto que aparece, desta vez nas ações da professora Clarisse, é
a utilização de ‘imagens’. A palavra ‘imagem’, no sentido aqui empregado, é um termo de
uso corrente no contexto de canto. Por meio de ‘imagens’, o professor busca sensações
do corpo análogas às do ato de cantar, com o intuito de auxiliar os alunos a perceberem
as sensações do corpo durante a execução vocal.
Este tipo de recurso é comumente utilizado por professores de canto e por
maestros que dirigem Coros. Uma ‘imagem’ bastante utilizada, especialmente por
maestros de Coro é: ‘imagine que você está cantando com um ovo dentro da boca’.
Neste caso o maestro intenta que o cantor suba e mantenha o palato
15
em posição alta a
15
O palato é conhecido no senso comum como ‘céu da boca’; a parte da frente é denominada ‘palato duro’, e
a detrás, ‘palato mole’. De acordo com Costa (2001), o palato mole é um músculo membranoso, vibrátil e
75
fim de impostar o som vocal de forma adequada, segundo os seus parâmetros, para a
execução do repertório. A utilização de ‘imagens’ está presente na fala da professora
Clarisse, assim como na de sua aluna Kátia:
Cada aluno tem um temperamento diferente. Cada aluno tem um jeito
diferente. Cada aluno tem uma voz diferente. Então isso oferece uma
certa dificuldade. Para o professor é um desafio. [...] se eu pego uma
pessoa que tem a voz leve, eu não posso dar o mesmo repertório pra
aquela que tem a voz pesada. Eu não posso, por exemplo, fazê-la
cantar com a mesma imagem. [...] Porque se eu não adapto pra cada
uma a maneira como ela vai pensar... Ali eu vou por experimentação.
Eu começo, eu seguro na pessoa e começo ‘canta aqui, agora pensa
assim’. A imagem que eu vejo que deu certo, eu começo por ali (profa.
Clarisse).
[...] a professora Clarisse tem as imagens que ela vai tentando fazer
individualizado (Kátia).
As falas da professora Clarisse e de Kátia, sua aluna, nos indicam que a
professora busca nas ‘imagens’ um recurso que possa atender cada aluno
individualmente. Pelo discurso da professora também fica claro que o trabalho com
‘imagens’ é feito mediante experimentação e que as ‘imagens’ que se adéquam à
determinado aluno lhe servem de base para definir suas ações pedagógicas. Esse
recurso era bastante utilizado pela professora em situação de sala de aula.
Um exemplo da procura por uma ‘imagem’ que se adapte ao aluno se deu em
uma aula de Kátia e Cássia, no qual a professora buscava uma boa sonoridade para os
graves das vozes de suas alunas. Para tanto, ela fez uso de duas ‘imagens’. Na primeira,
ela disse que o som, já localizado na cabeça faz um caminho descendente, desenhando
algo que se assemelha a um ‘bico de papagaio’.
Na outra tentativa, a professora Clarisse falou: ‘eu penso que o som está
chegando até a cintura’. Nesta mesma aula estava presente outra professora do Núcleo
de Canto [erudito] que, com o intuito de ajudar as alunas, acrescentou: ‘Eu imagino como
se fosse uma cascata caindo’.
De acordo com o discurso de Kátia, aluna da professora Clarisse, a utilização de
‘imagens’ algumas vezes favorece a sua aprendizagem, outras, não. Ela e sua professora
argumentaram que ‘imagens’ que funcionaram em determinada aula podem não servir
em outra. Já as palavras de Verônica, outra aluna da professora Clarisse, nos indicam
que as ‘imagens’ lhe são de grande auxílio:
flexível, responsável em grande parte pela conformação dos sons, uma vez que, adequadamente arqueado,
aumenta a capacidade acústica da voz.
76
[A imagem] às vezes me ajuda. Esse negócio de ‘bico de papagaio’ não
tem... não faz diferença nenhuma pra mim. Mas têm umas que aju... às
vezes ela puxa o meu cabelo e aí vai a nota pro lugar. Eu acho ótimo!
Eu adoro. Tem aula que dá certo o que ela fala, tem aula que não. A
mesma coisa ela fala e não funciona. Eu não sei te explicar. Tem aula
que dá, tem aula que não dá (Kátia).
Se eu tento uma imagem hoje, na semana que vem aquela imagem não
está dando certo, porque às vezes não dá, eu acho uma outra coisa pra
pessoa trabalhar (profa. Clarisse).
[A imagem] favorece. Nossa, e como! Porque eu trabalho na área da
imaginação. Eu tenho que estar de atenção aqui ligada. Quando eu vou
cantar, eu tenho que focalizar que eu preciso do som aqui (na cabeça).
Se eu esquecer disso o som vem pra cá (para baixo, na boca). [...] e
essa questão da imagem que ela fala, do jeito que ela fala, me ajuda a
prestar atenção, a imaginar o som aqui (na cabeça), que eu vou com ele
pra parede faríngea, eu volto com ele pra cá (fazendo a curva por trás
da cabeça) (Verônica).
Quando Kátia fala sobre a professora Clarisse ‘puxar o seu cabelo’, ela se refere à
outra ‘imagem’ bastante utilizada pela professora a fim de conseguir expandir a
ressonância da voz até a parte superior da cabeça. Com Verônica, a professora procura
o mesmo resultado quando pede para que a aluna imagine o som na cabeça, fazendo
uma curva por trás.
Utilizando uma imagem semelhante a esta, Delanno (2000) nos serve de apoio
quando argumenta: “ao executar os exercícios, procure imaginar que o som está vibrando
dentro do seu corpo, preenchendo todos os espaços, e finalmente saindo pelo topo da
cabeça” [grifo nosso] (p. 49).
O uso de ‘imagens’, como dito anteriormente, é comum entre professores de
canto. Podemos reforçar este argumento mediante o exemplo mencionado anteriormente,
quando outra professora do Núcleo de canto [erudito], presente na aula de Kátia e
Cássia, também tentou auxiliar as alunas da professora Clarisse utilizando o mesmo
recurso.
Por todos os exemplos aqui apresentados temos a indicação de que o uso de
‘imagens’ é um dos aspectos que definem as ações pedagógicas da professora Clarisse
no contexto de aulas de canto.
Outro aspecto presente nas ações das professoras Clarisse e Márcia é o
desenvolvimento da expressão, da musicalidade de seus alunos de canto. A fala da
professora Clarisse nos mostra que mesmo quando o aluno é iniciante ela busca dar
elementos para que este comece a trabalhar a expressão musical:
77
Eu sei que ele não está preparado pra fazer nenhum sinal de
intensidade, nem dinâmica. Eu sei disso. Ele não controla a própria voz,
nem a musculatura, nem o próprio corpo. Porém, eu começo já a
trabalhar isso. Quando eu digo que eu canto junto é porque eu começo
a trabalhar a musicalidade do aluno. Não só leitura de nota, passar com
o piano, fazer colocação, não só montar o aparelho fonador. A
musicalidade tem que ser treinada. Então eu já começo. Se ele não
consegue, está tudo bem. [...] tem aluno que, aparentemente, não é
musical. Mas só que, na verdade, ele não sabe se expressar. Se você
começa a trabalhar isso com o aluno, você desenvolve o aluno também,
e às vezes ele acha o caminho dele, né? Então, a gente deve trabalhar
isso desde o início (profa. Clarisse).
O discurso da professora Clarisse nos indica que mesmo se deparando com
situações que poderiam limitar suas ações com os alunos iniciantes – como o fato de
estes não estarem ainda preparados muscular e tecnicamente para uma execução vocal
expressiva – ela buscava desenvolver a musicalidade deles, usando a estratégia, por
exemplo, de cantar junto com o aluno.
Também na prática diária da professora presenciamos alguns momentos nos
quais ela agia nesse sentido, se utilizando especialmente da ‘demonstração’, outro
recurso no qual a professora Clarisse lançava mão para trabalhar esse aspecto.
Vimos, por exemplo, um momento da aula de Kátia, sua aluna, quando estava
executando o repertório e a professora Clarisse lhe pediu que ‘caminhasse mais com a
frase ’, e não a fizesse ‘quadrada’. A sugestão da professora era no sentido de trabalhar
a expressividade da frase musical.
Após a explicação, a professora, com o intuito de se fazer entender melhor,
cantou um trecho da peça, demonstrando, assim, a sua idéia musical. Kátia, sua aluna,
vale lembrar, se encontrava em um dos módulos iniciantes do curso de ‘canto erudito’:
básico 3 (B3).
Um segundo ponto relevante da fala da professora Clarisse é quando esta afirma
que ‘a musicalidade tem que ser treinada’. E, a partir desta colocação ela complementa:
‘tem aluno que, aparentemente, não é musical, mas só que na verdade ele não sabe se
expressar’.
Esta argumentação se torna importante na medida em que a professora
enxergava que, apesar de haver alunos que se expressam mais facilmente, é possível
desenvolver a expressividade musical daqueles que, por ventura, não possuam a mesma
condição.
Presenciamos um momento de aula da professora Clarisse que pode exemplificar
esta situação, desta vez com sua aluna Verônica. A aluna estava executando a música
‘Romaria’, de Renato Teixeira, quando a professora solicitou que ela cuidasse para ‘não
78
sobre articular’, ‘não pesar’ e ‘não quicar’ (ou não acentuar as sílabas) como ‘sou caipira,
pira, pora nossa’... Ela também recomendou que a aluna procurasse uma ‘imagem mais
flexível da música para não pesar’. E, ao trabalhar o texto, a professora lembrou ‘você
está contando uma história’.
Estes artifícios usados pela professora Clarisse nos indicam que, assim como no
caso de Kátia (B3), ela também busca desenvolver a musicalidade de Verônica, aluna
que, como já dito anteriormente, se encontrava no módulo preparatório para o técnico
(MPT1), portanto já havia percorrido seis módulos do curso básico.
Do mesmo modo que a professora Clarisse, a professora Márcia tem em sua fala
a necessidade de desenvolver a expressividade de seus alunos, o que ela chama de
‘cultivar a expressão’:
É uma formação meio específica, assim, de cultivar expressão. É um
pouco diferente, talvez, de outras áreas. Embora eu também ache que
em qualquer área, até na matemática, devia ser assim. [...] Eu me
lembro de uma professora de matemática que eu tive que ela colocava
aquela equação, assim no quadro e ela dizia ‘olha só, que coisa
perfeita!’ E eu olhava aquilo, aí eu queria fazer matemática [...] Porque
ela era apaixonada por aquilo! Eu fico arrepiada de lembrar dela! Ela
mostrava aquilo pra mim... Era uma obra de arte, assim, aquela
equação lá no quadro (profa. Márcia).
O exemplo que aparece na fala da professora Márcia nos mostra que essa
‘expressão’ é ‘cultivada’ no âmago das emoções que aparecem na relação entre o sujeito
e objeto (no caso, a sua professora e a matemática), e que, por sua vez, provocam
impactos no outro (profa. Márcia, aqui na condição de aluna).
No contexto de aula da professora Márcia, presenciamos várias vezes o trabalho
de ‘cultivar a expressão’. Como exemplo, temos alguns momentos na passagem do
repertório de uma aula na qual participavam Viviane e Juliana, suas alunas. Para Viviane,
a professora colocou: ‘eu vejo você com esse termina, termina. Uma ansiedade para a
música terminar. [...] Eu quero ouvir o que você ta sentindo’ (profa. Márcia).
No caso de Juliana, temos um pequeno trecho do diálogo entre ela e sua
professora que pode ilustrar o mesmo aspecto:
– “Pensa no que você está falando, como você está sentindo fazendo essa
música. [...] A gente está precisando colocar você pra se divertir” (profa. Márcia).
– “Acho que eu estou muito presa às notas, à partitura. Só canto lendo” (Juliana).
– “Tirar a partitura pode ajudar a entrar mais em contato com a música” (profa.
Márcia).
79
– “Estou sentindo isso mesmo. Está artificial, não está natural” (Juliana).
As falas da professora Márcia e de suas alunas nos indicam que o ‘cultivar a
expressão’ tem forte relação com o trabalhar com as emoções no contexto de aula,
especialmente no momento da execução musical. Isso acontece quando, por exemplo, a
professora Márcia chama a atenção para o fato de Viviane manifestar ‘ansiedade’ em
terminar a música, e também quando solicita à aluna: ‘eu quero ouvir o que você está
sentindo’. O argumento da professora de que Juliana precisava ‘se divertir’ quando
cantava e o fato de indagar a aluna sobre como estava ‘se sentindo’ ao fazer aquela
música nos mostra esta mesma direção.
Outro detalhe importante é a forma como o diálogo entre a professora Márcia e
Juliana favorece a reflexão da aluna de que a interpretação da música se torna artificial
na medida em que Juliana se mantém presa à partitura musical. Favorecer a
aprendizagem reflexiva nos remete à González Rey (2006), quando argumenta que o
aluno necessita ter tempo para levantar seus questionamentos, para poder caminhar em
suas conclusões, visto que desta forma ele estará assumindo um compromisso pessoal
com o objeto de sua aprendizagem. Questões ligadas à aprendizagem reflexiva serão
discutidas mais adiante no trabalho.
Embora o ‘cultivar a expressão’ da professora Márcia seja semelhante ao
‘trabalhar a musicalidade’ da professora Clarisse, porquanto ambos estão relacionados
às questões interpretativas da música, pelas falas e situações de sala de aula
apresentadas temos a indicação de que ‘cultivar a expressão’ se mostra como um
aspecto mais ligado às emoções, tanto da professora Márcia quanto de seus alunos, que
aparecem na relação entre a professora, o aluno e o objeto de estudos, no caso a música
cantada; enquanto que ‘trabalhar a musicalidade’ se define mais como um aspecto
técnico e musical a ser desenvolvido.
Guardadas as devidas diferenças, os argumentos aqui expostos nos mostram que
o desenvolvimento da musicalidade e da expressão se encontra entre os aspectos que as
professoras Clarisse e Márcia priorizam para definir suas ações pedagógicas no âmbito
de aulas de canto.
A disposição em desenvolver um trabalho de base com alunos que, a princípio,
não apresentem atributos como ‘voz privilegiada’, ‘talento’, ‘afinação vocal satisfatória’, é
outro aspecto comum entre as professoras Márcia e Clarisse.
80
Fazer um trabalho de base significa, por exemplo, ensinar o aluno a posicionar
(impostar) a voz de forma adequada para o canto; instruí-lo de forma que ele possa
melhorar a sua afinação vocal; orientá-lo sobre aspectos concernentes à interpretação
musical; entre outros.
Para a professora Clarisse, este tipo de trabalho, apesar de ser árduo, é
desafiador:
Não difícil de formatar, de fazer, de montar o aparelho fonador. Se o
aluno for estudioso, não é tão difícil. Por exemplo, como a Kátia. Porém,
é um trabalho maçante. Você fica ali durante dois, três anos... Chega
uma hora que cansa. Mas se você não fizer isso ele não vai ter a
técnica estabelecida, madura, a musculatura não amadurece, e,
portanto, não vai cantar bem. Então, esse trabalho aí é difícil. Mas, ao
mesmo tempo, é legal porque desafia a gente enquanto professor
(profa. Clarisse).
O discurso da professora Clarisse nos indica que, apesar de ‘maçante’, o trabalho
de base é de fundamental importância para a construção técnica e musical do aluno de
canto, e que o aluno dedicado pode passar mais rapidamente por esse processo.
Algumas falas ocorridas durante a aula de Kátia, usada como exemplo de aluna
‘estudiosa’ pela própria professora, nos encaminham para a mesma direção:
– “Tem que aprender a ouvir e tentar guardar este som. [...] Vira a musculatura
(subir o palato) e chega aqui (cabeça). [...] A sua garganta está toda aberta” (profa.
Clarisse).
– “Eu estou treinando muito assim” (Kátia).
– “A voz está natural, limpa, cheia e igual. [...] Quando você estiver sozinha faça
os exercícios sempre na região média. Não vá aos extremos, só comigo. [...] Eu não vou
fazer mais porque eu quero que você firme aquilo que você achou hoje. [...] Está
caminhando bem para o grau de dificuldade da música. Continue estudando” (profa.
Clarisse).
Temos outra situação de aula que exemplifica o trabalho de base, cujas
personagens eram a professora Márcia e sua aluna Juliana. Após a execução do
repertório, a professora corrigiu detalhes da melodia e recomendou que Juliana utilizasse
seu registro grave (‘voz de peito’), buscando ‘uma ressonância mais no queixo’. A aluna
respondeu: “Eu cantei muito em coral, por isso a minha ressonância é mais de cabeça”.
81
Na aula seguinte, sobre a execução da mesma música, a professora Márcia
solicitou que Juliana buscasse uma colocação (impostação) ‘mais no queixo, mais na
boca, mais garganta e mais peito’. Ela também comentou que faltava ‘emoção’ na
interpretação da música, e observou: “Segue soltando, que está cada vez melhor. Você já
está corrigindo o ritmo, as notas. Mas eu preciso sentir mais a ‘dor’ na música”.
Em situação de aula, diversas vezes presenciamos as professoras Clarisse e
Márcia fazerem esse trabalho de base com seus alunos. No entanto, de acordo com as
suas falas, certos professores tendem a preferir alunos que já estejam mais preparados
técnica e musicalmente:
[...] eu sinto que as pessoas têm muito a tendência de querer pegar uma
pessoa que vem pronta. E aí é muito mais fácil de trabalhar (profa.
Márcia).
Às vezes chega um aluno que pode não ter aquela voz maravilhosa... Aí
ele não quer ensinar muitas vezes porque não sabe fazer a base. Só
quer pegar gente que já canta. É muito comum isso aí ainda no
instrumento. E já nem digo só no canto. É no geral. [...] Eles querem o
aluno pronto. Eu percebo que poucos professores têm paciência e
talvez até conhecimento pra fazer a base no aluno (profa. Clarisse).
Os trechos apresentados nos indicam que um aluno que não necessita de
trabalho de base demanda menos esforço por parte do professor. Por essa razão,
segundo as professoras Márcia e Clarisse, é comum que professores de música prefiram
trabalhar com alunos que tenham mais experiência técnica e musical.
Também se mostra relevante a opinião da professora Clarisse quando alega que
tais professores de música – não apenas os de canto – não possuem paciência para, ou
até mesmo desconhecem como se faz um trabalho de base com alunos menos
experientes.
Por informações prestadas pela professora Márcia, obtivemos que, durante muito
tempo em seu percurso na escola, ela insistia em trabalhar com os ‘desafinados’, e que
vivenciou situações de grandes avanços desses alunos:
[...] eu vi coisas tão legais, de gente totalmente desafinada, mas aquela
pessoa muito a fim, determinada e que às vezes tinha uma curva... Não
comparando os resultados finais [...] mas era o desenvolvimento dela.
[...] Eu tenho uma tendência de rejeitar essas coisas do talento. Eu
tenho muita vontade de desenvolver as potencialidades, estejam elas
no nível que estiverem (profa. Márcia).
82
A fala da professora Márcia nos mostra a sua inclinação em trabalhar com seus
alunos a partir de suas vivências, ainda que técnica e musicalmente estes não
apresentem muita experiência. O ‘rejeitar as coisas do talento’ não significa ignorar a sua
existência. Antes, se relaciona ao fato de agir em colaboração, de favorecer o
desenvolvimento do aluno, não importando a condição na qual ele se encontra.
Nesse sentido, Tunes e Bartholo (2004) nos servem de apoio quando alegam que
o ato de ensinar necessariamente implica em promover o desenvolvimento a partir da
realização de atividade em colaboração. Para os autores, se não for assim, não haverá
ensino, mas puro treinamento.
A partir das situações apresentados anteriormente, temos a indicação de que,
tanto a professora Clarisse quanto a professora Márcia possuem disposição em
desenvolver um trabalho de base com alunos menos experientes. Assim, este aspecto
também se situa entre os que as professoras priorizam para definir suas ações
pedagógicas.
A análise de questões técnicas e musicais no contexto apresentado nos ajudou a
perceber que estes aspectos exercem um peso considerável nas decisões que as
professoras participantes tomam para definir as suas ações pedagógicas.
5.2.2 Dos aspectos pedagógicos
A forma como as professoras participantes lidam com as questões ligadas à
avaliação de seus alunos de canto se enquadra entre os aspectos que elas priorizam
para definir suas ações pedagógicas. A fala da professora Márcia, por exemplo, nos
informa que durante algum tempo após a sua chegada no Núcleo de Canto Popular, o
momento de avaliação de seus alunos lhe causava tensões, uma vez que ela ainda não
havia encontrado sintonia entre estabelecer critérios e, ao mesmo tempo, ser justa:
Eu sempre tive uma coisa que pra mim agora veio a se resolver, mas
que eram momentos tensos [...] Todo semestre, quando chegava a
época de avaliação eu tinha uma crise de asma, porque eu não
conseguia encontrar mecanismos que eu achasse justos pra poder
avaliar uma coisa tão complexa como era. [...] eu não conseguia
encontrar uma forma de fazer as coisas justamente e, ao mesmo tempo,
também ter critério. Porque você não pode também ‘ah, beleza, então
cada um avalia como quiser’, quero dizer, a gente tem que ter os níveis,
tem que ter momentos aonde você se junta pra tomar uma decisão a
respeito da progressão daquele aluno (profa. Márcia).
83
O discurso da professora Márcia nos indica que ela valorizava a decisão conjunta
– tomada pelos professores que compunham a banca examinadora das provas – sobre
os avanços e o nivelamento de cada aluno. Conforme a professora Márcia, as tensões
que lhe surgiam durante o período de avaliação desapareceram quando o grupo de
professores de seu núcleo definiu, como já dito, que a banca examinadora seria decisiva
apenas na passagem do aluno para o nível técnico, e do módulo Tec1 para o Tec2.
Mesmo valorizando a decisão conjunta dos professores sobre o desenvolvimento
dos alunos, uma situação já mencionada, ocorrida em sala de aula, nos mostra que as
exigências estabelecidas para mudança de nível, quando não cumpridas, serviam de
base para a professora Márcia não permitir que determinado aluno ingressasse no nível
técnico, mesmo antes dele ser submetido à prova com banca examinadora:
[...] com a Sara eu vinha muito certa de que ela ia num caminho fácil pro
básico. [...] a musicalidade dela é tão desenvolvida... Mas ela,
realmente, acho que vai parar um pouquinho aí. [...] porque às vezes ela
chegava aqui rouca, mas ela falava ‘ah, eu caí na gandaia, gritei demais
esse fim-de-semana’. ‘Ta bom, então’. Agora ela ta trazendo um dado
novo, que é essa história de ela, muitas vezes, chegar no final do dia e
estar rouca. Isso aí já não é mais um abuso que rolou, pontual. [...]
Então já me colocou uma situação, mesmo, de saúde vocal que é de
uso constante da voz, que está precisando de um cuidado. [...] esse
negócio da saúde vocal pra mim está muito claro. Se uma pessoa tem
um quadro de saúde vocal muito instável, ela não tem condições
nenhuma de ir pro técnico. Não pode (profa. Márcia).
O trecho acima nos mostra o quanto o aspecto ‘saúde vocal’ era relevante para
determinar as ações pedagógicas da professora. Mais do que isso, este aspecto era um
critério que assumia um peso considerável na avaliação, na medida em que o aluno que
não possuísse uma saúde vocal estabilizada também não estaria apto para ingressar no
nível técnico.
Ressaltamos, no entanto, que o fato de a professora Márcia decidir que o aluno
não deveria mudar de nível, antes mesmo do momento formal de avaliação, não anulava
o valor que ela atribuía às decisões tomadas pelos professores da banca. Exemplo disso
é a forma como ela se referiu à situação de Alex, outro aluno que estava em vias de
mudar de nível:
Ele é lento na produção. Ele podia produzir mais repertório, também.
Então, vamos ver o que que a banca acha nesse final de semestre
(profa. Márcia).
84
Vale lembrar que ‘aumentar a produção de repertório’ também era um dos quatro
critérios estabelecidos para a mudança de nível no curso de ‘canto popular’.
Assim como vimos no discurso da professora Márcia, a fala da professora Clarisse
nos mostra a necessidade de ‘ser justa’ no momento da avaliação. No trecho abaixo, a
professora compara o empenho de Cássia ao de Kátia durante o semestre corrente, e
explicita as considerações feitas no momento de avaliar cada aluna:
[...] a Cássia leva a sério. Esse semestre quem levou bastante a sério
foi a Kátia. Ela não. Eu sei que ela está com problema. Só que é o
seguinte: eu não posso, por causa disso, passar a mão na cabeça dela,
dar a mesma nota que eu dei pra outra, porque não tem a ver. Aí eu
acho que eu tenho que ser justa. (profa. Clarisse).
Cássia, como já dito anteriormente, estava com problemas no âmbito familiar. A
fala da professora Clarisse nos indica que ela comparava a dedicação de uma aluna (no
caso, Cássia), com a de outra (Kátia), e usava este aspecto como critério para definir a
menção final delas.
No momento da pesquisa presenciamos uma situação de prova, na qual
participaram Kátia e outra aluna (‘canto erudito’) da professora Clarisse. Compondo a
banca examinadora, também estavam presentes duas professoras do núcleo. Abaixo,
algumas considerações feitas sobre Kátia:
– “No geral ela melhorou bastante” (uma professora da banca).
– “Ela é uma menina que faz repertório pesado. Eu daria SS
16
para ela” (profa.
Clarisse).
No momento de avaliar a outra aluna, a professora Clarisse argumentou que esta
não se dedicou suficientemente aos estudos naquele semestre, entre outras razões,
porque viajou, durante um mês, com o coral no qual participava. De acordo com a
professora Clarisse, o tipo de técnica vocal utilizada pelo maestro deste coro destoava da
técnica desenvolvida por ela, o que também contribuiu para afetar o rendimento da aluna.
Algumas das considerações feitas sobre a sua prova foram:
– “O queixo está muito duro” [...] “Ela é séria. Eu daria MS para ela” (uma
professora da banca).
16
‘SS’ significa ‘superior’ e faz parte do sistema de menções adotado nas Instituições de Ensino da Rede
Pública do Distrito Federal. ‘SS’ é a menção mais alta; a ela se seguem ‘MS’(médio superior), ‘MM’ (média
mínima), ‘MI’ (média inferior), ‘II’ (Inferior).
85
– “Não, SS este semestre, não. Acho que MS está bom” (profa. Clarisse).
Os trechos expostos nos indicam que a professora também avaliava seus alunos
pelos avanços individuais apresentados, e que as menções eram decididas em sintonia
com as considerações da banca examinadora.
A partir dos contextos apresentados temos a indicação de que, para as
professoras Márcia e Clarisse, o senso de ‘justiça’ no momento da avaliação estava
intimamente ligado ao fato de se estabelecer critérios e segui-los de forma coerente.
Ambas as professoras têm em comum o considerar e também se apoiar nas decisões
tomadas pela banca examinadora das provas.
Em relação à professora Márcia, as situações expostas nos indicam que seus
critérios avaliativos estavam mais ligados às questões técnicas e musicais. Exemplo
disso é a valorização do cumprimento das exigências para ingressar no nível técnico,
sempre ressaltado por ela no contexto das aulas.
Nesta direção, encontramos apoio nos argumentos de Tourinho e Oliveira (2003)
quando explicam que, no Brasil, as escolas de música de nível técnico e graduação se
utilizam de atividades de avaliação que “tendem a ser compulsórias e envolvem medidas”
(p. 19). De acordo com as autoras,
Em geral, a prática das escolas está centrada mais nos produtos do que
nos processos seguidos. Mede-se o nível do aluno em relação aos
objetivos propostos, predominando critérios e procedimentos que
costumam rotular os alunos em categorias diversas. Esta concepção
não favorece o uso do processo de avaliação como forma de orientar e
reorganizar o processo de ensino-aprendizagem (p. 19).
Deste modo, as formas de avaliação nas quais se prioriza o cumprimento de
critérios técnicos e musicais pré-estabelecidos, assim como apreendemos no caso da
professora Márcia, podem trazer prejuízos na orientação e reorganização do processo
ensino-aprendizagem de alunos de canto.
Os critérios de avaliação da professora Clarisse também priorizavam aspectos
técnicos e musicais. Porém, a partir da prova que presenciamos, podemos dizer que ela
também se pautava nos avanços de cada aluno, e na dedicação deles aos estudos,
aspectos que eram apreendidos individualmente e em comparação de um aluno com
outro.
Assim, a forma de lidar com a avaliação – que envolvia, entre outros, o
estabelecimento de critérios a serem cumpridos e a decisão conjunta de professores
86
sobre o desenvolvimento do aluno – estava entre os aspectos que as professoras Márcia
e Clarisse priorizavam para definir suas ações pedagógicas.
Outro aspecto presente nas ações das professoras Márcia e Clarisse era buscar
que seus alunos refletissem a respeito de suas ações. No discurso da professora
Clarisse encontramos, por exemplo, que, assim como foi ensinada por sua professora,
ela buscava orientar seus alunos de forma a compreenderem ‘o que’ e ‘como’ estavam
executando determinada aspecto técnico vocal:
Eu faço muito isso porque eu fui ensinada assim. A minha professora
parava no momento que você cantava: ‘que que você fez aí? Observa’.
Ela não falava ‘você fez isso, isso e isso’. Às vezes, mais no início. Mas
era ‘por que que você fez aí?’ Aí eu ficava assim: ‘ah, eu pensei assim e
assim’. ‘Então deu certo, continua pensando. Faz de novo. Observa
como que a sua musculatura está, o que que você está sentindo
auditivamente. O que que você ouviu? O que que tem mais? Tem mais
brilho, tem mais...’ Eu vejo que às vezes eu falo com os alunos e eles
ficam voando. Eles não pensam em nada. NADA! (profa. Clarisse).
A fala da professora Clarisse nos indica que a sua forma de ensinar estava
intimamente ligada à reflexão de seus alunos sobre as questões que envolvem o ato de
cantar. Um aspecto relevante da fala da professora aparece quando ela alega que
determinados alunos ‘ficam voando’ ou ‘não pensam em nada’ quando estimulados pela
professora a compreender as sensações ligadas ao canto. Esta atitude nos indica que
tais alunos estavam acostumados a repetir modelos ou orientações de seus professores
sem, no entanto, refletirem de que forma essas sensações aconteciam.
Em situação de aula presenciamos vários momentos que mostravam a ação da
professora nesse sentido. Durante uma aula de Verônica, por exemplo, quando estavam
trabalhando a impostação da voz, a professora Clarisse indagou: ‘O que que
aconteceu?’. Em seguida, ela acrescentou: ‘você tem que entender para poder se corrigir
[...] Eu procuro ensinar para que vocês aprendam com as próprias pernas’.
Após os questionamentos da professora e as conseqüentes reflexões da aluna,
ocorridas durante a execução dos exercícios, notamos que Verônica conseguiu melhorar
sua emissão vocal. Assim como a professora Clarisse, a professora Márcia também
trabalhava de forma que seus alunos refletissem durante o momento da aprendizagem. A
fala de Viviane, uma de suas alunas, nos indica a mesma direção:
No início do curso ela já falou: ‘olha, quando a gente tiver fazendo
vocalise, me lembrem de falar pra vocês o que que é isso aqui, se a
gente está fazendo tipo um-três-cinco, ou arpejo de sétima, ou se é o
87
que?’ Eu acho isso interessante porque você já vai internalizando o que
que está fazendo ali (Viviane).
Assim como expresso na fala de Viviane, algumas vezes, em situação de aula,
presenciamos a professora Márcia agir nesse sentido. Um exemplo ocorreu na aula em
grupo de Juliana, Viviane, Sara e Sandra. Em determinado momento, quando a
professora estava trabalhando um exercício de técnica vocal, ela indagou: ‘o que nós
estamos fazendo?’ Para reforçar o entendimento das alunas, a professora solicitou:
‘cantem uma escala menor’. Neste caso, a professora Márcia buscava que suas alunas
compreendessem aspectos ligados à estrutura musical.
Outro ponto bastante frisado na fala da professora é que o aluno deve pesquisar a
sua voz com o intuito de descobrir e, assim, poder controlar as sensações presentes no
ato de cantar:
[...] isso é uma coisa que eu sempre falo com os meninos. Porque, em
geral, eu tento cultivar uma idéia de que a escola, o curso, estão aqui
pra dar ferramentas pra você lidar com a sua voz. Têm critérios, tem
uma série de coisas, mas o construtor, mesmo, da sua voz é você.
Então, é muito diferente se eu, fazendo um trabalho com você, falar
assim: ‘experimenta isso aqui’. Aí você volta e me dá um retorno e fala:
‘não, ó, professora, isso aqui foi assim, assim, assado; não deu certo,
agora eu queria...’ É muito diferente se tem essa volta (profa. Márcia).
O discurso da professora nos indica que ela valorizava o fato de o aluno ser
‘pesquisador de sua voz’, e que também era significativo para ela que este aluno lhe
desse retornos em relação a sua pesquisa, já que isso poderia favorecer mais avanços
na sua aprendizagem.
A prática da professora Márcia também é permeada por ações que nos
encaminham para a mesma direção. Como exemplo, temos uma situação de aula na qual
Viviane, sua aluna, questionou: ‘Está sem ar, né? Eu estou treinando com e sem ar’. O
argumento da aluna se refere à impostação da voz: com ou sem ‘vazar’ ar. Diante da fala
de Viviane, a professora Márcia observou: ‘Quando a gente começa a ser pesquisadora
de si mesmo, ninguém pode nos segurar’.
Esse exemplo vem ao encontro das argumentações de Vigotski (1926-2003)
quando alega que “[...] no processo educativo, a experiência pessoal do aluno é tudo. A
educação deve ser organizada de tal modo que não se eduque ao aluno, mas que este
se eduque a si mesmo” (p. 75).
A reflexão sobre os conteúdos e as ações práticas desenvolvidas nas aulas de
canto podem conduzir os alunos a se tornarem pesquisadores de sua própria voz, o que
88
nos remete a González Rey (2006), quando destaca dois aspectos subjetivos da
aprendizagem: “o caráter singular da aprendizagem”, que, segundo o autor, conduz o
professor a pensar em suas práticas pedagógicas a partir de aspectos que irão propiciar
o posicionamento do aluno como sujeito de sua aprendizagem, o que envolve as suas
experiências e idéias no espaço de aprendizagem.
Isso, de acordo com o autor, não se consegue apenas por meio de expor o
conteúdo, mas, a partir do desenvolvimento de relações que favorecem o posicionamento
ativo e reflexivo do aluno, o que conduz a uma segunda conseqüência: “a compreensão
da aprendizagem como uma prática dialógica”. Para o autor, “a conversação, o diálogo
em sala de aula, estimula o desenvolvimento do aluno, define um processo de
aprendizagem norteado pela reflexão” (p. 39).
O diálogo, o desenvolvimento das relações no ambiente da sala de aula nos leva
a outro aspecto presente nas ações das professoras participantes: a capacidade de
perceber o outro. De acordo com a professora Márcia, o indivíduo que intenta ser
professor precisa desenvolver a capacidade de perceber o outro, já que cada aluno é
diferente. A fala da professora Clarisse nos encaminha para a mesma direção:
Têm algumas coisas que são fundamentais pra você entrar em sala de
aula, que têm a ver com a sua capacidade de perceber o outro, de
desenvolver esse canal de comunicação, ir aprimorando essas coisas.
Porque com cada pessoa vai ser diferente. (profa. Márcia).
[...] o professor tem que, na verdade, ser muito esperto. E tem que ser
meio psicólogo, porque ele tem que captar o jeito da pessoa. Nem todo
dia a pessoa está do mesmo jeito, mas você tem uma base do
temperamento. Você sabe mais ou menos como a pessoa é. E você
tem que captar o que que é, como ela está aquele dia e como ela é no
dia-a-dia, pra você trabalhar com ela. Se você vai chamar a atenção,
cada um você chama a atenção duma maneira. Cada um você
conscientiza duma maneira. [...] Com cada um você faz um elogio de
maneira diferente (profa. Clarisse).
A abertura para o diálogo e a capacidade de perceber o outro também aparece no
contexto das aulas das professoras Clarisse e Márcia. Em determinado momento da
pesquisa, presenciamos uma apresentação artística (‘audição’) dos alunos do ‘canto
popular’, na qual Verônica, aluna da professora Clarisse, participou.
Na aula seguinte à ‘audição’, houve comentários sobre a sua apresentação.
Verônica manifestou decepção por ter cometido erros durante a sua performance.
Percebendo o sentimento negativo da aluna, a professora Clarisse argumentou: “Você
deve se exigir até certo ponto. Você fez tudo que poderia ter feito? Na hora pode
89
acontecer alguma coisa que sai do controle. [...] Você tem que fazer a sua parte. Isso é
importante! Estuda, estuda!”
A situação apresentada nos mostra que a professora Clarisse, ao dialogar com
Verônica, pôde apreender o sentimento de decepção da aluna, o que conduziu a
professora a encorajar sua aluna para continuar se dedicando aos estudos.
Outra situação nos serve de exemplo, desta vez em uma aula da professora
Márcia. Logo após a aluna executar o repertório, a professora argumentou: ‘Não sei se
você estava com mais medo, mas a sua emissão estava diferente nesta música’. E
Sandra respondeu: ‘Ô, eu até suo quando canto essa música’.
Neste segundo exemplo, o diálogo também serviu para esclarecer a percepção da
professora em relação a sua aluna. Um detalhe diferente é que a professora Márcia
detectou o sentimento de ‘medo’ da aluna por meio de sua emissão vocal, o que tem
relação com o fato de a voz revelar o estado emocional do indivíduo (COSTA; SILVA,
1998).
Assim, o contexto apresentado nos mostra que a reflexão, o diálogo, o perceber o
outro são, de fato, aspectos que as professoras Márcia e Clarisse priorizam para definir
suas ações pedagógicas no contexto de aulas de canto.
Ao analisarmos os aspectos pedagógicos na perspectiva das professoras Márcia
e Clarisse, pudemos compreender melhor a forma como elas concebiam a avaliação, o
espaço que as professoras dispunham no contexto das aulas para o diálogo e a
aprendizagem reflexiva, e de que forma elas buscavam perceber o outro, o que nos
conduziu à idéia de que estes eram aspectos que as professoras participantes
valorizavam para definir suas ações pedagógicas.
Das conclusões que chegamos sobre os aspectos que o professor de canto
prioriza para definir suas ações, queremos destacar que:
– Os aspectos técnicos e musicais exercem um peso considerável na definição
das ações pedagógicas dos professores de canto;
– As formas de avaliação utilizados no contexto de aulas de canto são fortemente
apoiadas no cumprimento de critérios técnicos e musicais pré-estabelecidos;
– A despeito da força dos aspectos técnicos e musicais na definição das ações
pedagógicas, as emoções, o diálogo, a aprendizagem reflexiva e a capacidade de
perceber o outro são aspectos que permeiam as ações dos professores de canto.
Tendo elucidado os aspectos que o professor de canto prioriza para definir suas
ações pedagógicas, nos dirigimos ao próximo item, no qual discutiremos como o próprio
90
aluno organiza e expressa seu processo de aprender canto, e de que formas ele sente,
compreende e se posiciona em relação às ações do professor e de seus colegas.
5.3 Como o próprio aluno organiza e expressa seu processo de aprender
canto; de que formas ele sente, compreende e se posiciona em relação às
ações do professor e de seus colegas
5.3.1 Sobre as motivações para o ingresso das alunas participantes no contexto
do Canto
Para iniciarmos as discussões sobre como as alunas participantes se situavam no
momento da pesquisa, consideramos ser relevante, primeiramente, expor algumas das
motivações que as conduziram ao contexto de canto e de que forma pudemos apreendê-
las enquanto alunas inseridas neste contexto.
Verônica, como já dito anteriormente, não atingiu conceito suficiente para
ingressar na escola via testes teórico-práticos. Entretanto, perseverou até que, via
sorteio, conseguiu a vaga. A aluna ingressou no curso de ‘canto erudito’, porque,
segundo seu relato, naquele sorteio não havia vagas para ‘canto popular’, área de seu
interesse. Ela, então, cursou ‘canto erudito’ por um semestre e conseguiu, através da
solicitação de sua professora na época, a transferência para o Núcleo de Canto Popular.
Na fala de Verônica podemos ter uma idéia da forma como o seu ingresso na
escola a impactou:
Eu sempre tentei vir pra cá [...] Teste eu fiz duas vezes [...] todo sorteio
eu ia tentando [...] até que pela sétima vez, eles me deram a vaga. [...]
Aí eu estou aqui, até agora. Eu adoro a escola, eu não vejo nenhuma
dificuldade de vir à escola. Se mandar eu vim todo dia, eu venho. Só
não posso vim à tarde, porque à tarde eu trabalho. Mas se mandar eu
vim de manhã, todo dia, a minha manhã é pra vim pra cá. [...] Faço
outra coisa quando eu tenho que fazer, mesmo, mas, a minha
prioridade é estudar música. Pra que? Pra cantar melhor. É só isso que
eu quero. Cantar aonde? Na missa, [...] cantar pra Deus. (Verônica).
A fala acima vem ao encontro de nossas observações no campo da pesquisa,
quando pudemos apreender Verônica como uma aluna estudiosa, motivada para
aprender. Exemplo disso é que ela era assídua, procurava estar atenta às orientações da
professora e sempre trazia o repertório estudado para as aulas. Os comentários de sua
professora, feitos em duas aulas diferentes, nos indicam a mesma direção: ‘Continua
91
trabalhando. Estou gostando muito. Está rendendo!’; ‘Você tem vontade de aprender.
Você é séria e você estuda’ (profa. Clarisse).
Verônica também se mostrava bastante satisfeita no contexto das aulas de canto.
A fala que se repetiu algumas vezes ao final de suas aulas nos serve como exemplo:
‘professora, adorei a sua aula!’. É relevante frisar que a motivação em aprender para
cantar ‘na missa’, ‘pra Deus’ se mostrou bastante presente ao longo de todo o seu
discurso.
Verônica e Kátia vivenciaram situações semelhantes antes do ingresso: ambas
participaram de disciplinas na escola sem, no entanto, estarem matriculadas oficialmente.
Verônica freqüentou turmas de teoria musical por cerca de um ano e participou de um
grupo coral durante aproximadamente três anos. Kátia nos informou que, antes de
ingressar, freqüentava as aulas de uma das professoras do Núcleo de Canto [erudito].
Seu ingresso se deu via testes. Conseguiu a vaga na segunda tentativa.
Diferente de Verônica, após a primeira tentativa sem sucesso, Kátia decidiu
priorizar o ingresso à Universidade:
[...] eu tentei entrar aqui uma vez, não consegui. Tinha uma vaga. Outro
entrou. [...] aí eu nunca mais tentei. Aí eu falei: ‘eu quero entrar na UnB
primeiro. [...] e depois eu vou estudar pra escola de música’. [...] eu não
quero seguir carreira musical. [...] eu estou aqui por prazer. Estou aqui
porque eu quero aprender (Kátia).
Ainda que não quisesse seguir carreira musical e que tivesse priorizado o
ingresso à Universidade, no momento da pesquisa, assim como expresso no trecho
acima, apreendemos Kátia como uma aluna dedicada. Prova disso é que, ao longo de
nossas observações, pudemos perceber avanços na construção técnica vocal e na
interpretação musical, já que a aluna procurava treinar o repertório e os exercícios
propostos pela professora Clarisse. Esta idéia também é fortalecida pelo fato de, em
diversas circunstâncias, termos ouvido a sua professora comentar que Kátia era uma
aluna estudiosa.
Viviane, outra participante, ingressou, por meio de testes, no curso de ‘canto
popular’. Antes disso, passou por quatro professores particulares de canto. Os três
últimos, da própria escola pesquisada. A aluna nos informou que, com o primeiro,
trabalhou o estilo ‘teatro musical’. Seus outros professores, no entanto, eram do ‘canto
erudito’.
Nas falas de Viviane e de sua professora podemos ter uma idéia daquilo que ela
se propunha enquanto aluna inserida no contexto de canto da escola:
92
[...] eu quero ter algum retorno financeiro com a música. [...] sabe, eu
não quero cantar e pronto e acabou. Não, eu quero trabalhar com isso
(Viviane).
[Ela] é séria, [...] super estudiosa, empenhada, quer muito, né, quer
muito esse negócio de cantar [...] (profa. Márcia).
Essas falas nos indicam um posicionamento firme e seguro em relação aos
objetivos que Viviane pretendia atingir. Esta direção é fortalecida pelas observações que
fizemos ao longo da pesquisa, quando a aluna nos pareceu bastante empenhada naquilo
que pretendia em relação à música, especialmente ao canto.
Viviane era uma aluna assídua, que, em sala de aula, colocava seus
questionamentos, e que procurava seguir as orientações técnicas e musicais da
professora Márcia nos momentos de estudo, trazendo os resultados disso para o
contexto de aula.
Um exemplo de situação em sala de aula se deu quando, ao executar o repertório,
a professora solicitou que ela tentasse fazer a melodia um pouco mais livre, ritmicamente
falando. Na aula seguinte, após cantar a mesma música, a aluna comentou: ‘estou
tentando achar outros caminhos’, o que nos indica que ela praticou tal música pensando
nas recomendações feitas pela professora Márcia na aula anterior.
Juliana, a quarta participante, estava na escola há sete anos e, na época da
pesquisa, seu curso era configurado como ‘dupla opção’: ‘viola caipira’ e ‘canto popular’.
Ela chegou ao Núcleo de Canto por sugestão de seu professor de viola caipira. Sua idéia
inicial era aprender a técnica de ‘canto erudito’ para cantar peças da Música Antiga – do
período Medieval, do Renascimento – acompanhadas da viola caipira. Esta prática,
segundo ela, acontece em grupos de Música Antiga já estabelecidos e que têm trabalhos
reconhecidos internacionalmente.
De acordo com o relato de Juliana, seus objetivos não puderam ser alcançados
porque as professoras do Núcleo de Canto [erudito] julgaram as características de sua
voz como mais apropriadas para o ‘canto popular’. Por essa razão ela se transferiu para o
Núcleo de Canto Popular:
[...] quando eu entrei pro erudito, foi com a intenção de aprender peças
antigas de outros períodos e cantar em várias línguas na viola caipira,
que é um instrumento muito antigo da Europa, trazido pelos
portugueses. [...] Mas elas não quiseram que eu ficasse lá no núcleo
porque eu estudo viola caipira e porque eu já fazia na minha voz uma
característica de cantar música regional, [...] que é música de seresta.
[...] Elas também tinham um preconceito comigo: ‘ah, a sua voz é mais
93
pra cantar o popular. Você estuda viola caipira, então é melhor você ir
pra lá’. Aí eu fui pro Núcleo de Canto Popular (Juliana).
A despeito de aspectos que poderiam enfraquecê-la enquanto aluna, como a idéia
de preconceito e a decepção por não conseguir atingir seus objetivos, ambos presentes
ao longo de sua fala, Juliana, durante a pesquisa, nos pareceu muito compromissada
com o curso de canto. Exemplo disso é que, além de ser assídua, sempre chegava
pontualmente para as suas aulas.
A fala da professora Márcia, quando descreve suas impressões a respeito da
aluna, indica-nos a mesma direção:
[...] ela é uma pessoa que eu vejo que leva o negócio muito a sério
(profa. Márcia).
Destacamos ainda outro momento que pode ilustrar de que forma a aluna tenta
lidar com a situação de ter que se transferir do ‘canto erudito’ para o ‘canto popular’:
[...] é ótimo fazer aula no Núcleo de Canto Popular. Mais natural e
espontâneo que o Núcleo de Canto [erudito]. As professoras são muito
bacanas, amigas, e isso dá uma certa leveza e tranqüilidade para os
estudos (Juliana).
O trecho acima nos mostra uma tentativa de adaptação de Juliana a um contexto
que, inicialmente, não fazia parte de seus planos: a transferência para o Núcleo de Canto
Popular. Esta situação, aliada ao fato de ela levar ‘o negócio muito a sério’, como descrito
por sua professora, nos indica que Juliana, mesmo diante de situações adversas,
procurava se fortalecer.
Os relatos aqui apresentados nos encaminham à idéia de que as expectativas que
as alunas tinham antes de seu ingresso no contexto de canto da escola, tenham estas
sido ou não correspondidas, exerciam influência sobre a relação que cada uma
estabelecia com a própria estrutura da escola, especialmente sobre a forma como elas se
inseriam e se relacionavam dentro do espaço de aprendizagem de canto.
No discurso de Verônica, bem como em suas manifestações de contentamento e
de interesse dentro e fora da sala de aula, encontramos uma produção de sentidos
subjetivos (GONZÁLEZ REY, 2006), de satisfação enquanto sujeito inserido no contexto
da escola, especialmente no de canto.
Kátia, por sua vez, se aproxima de Verônica quanto à firmeza naquilo que se
propunha a fazer. Entretanto, a sua inserção enquanto sujeito no contexto de canto
94
parecia estar mais ligada à satisfação pessoal em aprender. A escola, na forma como
aparece no discurso de Kátia, se configurava mais como um instrumento para atingir
seus objetivos.
Por ter interesse em se profissionalizar, as motivações de Viviane se distanciam
um pouco das de Kátia e de Verônica. No entanto ambas se assemelham na
determinação, na segurança daquilo que pretendiam em relação à música,
especificamente ao canto.
Juliana, por outro lado, parecia estar inserida no contexto de canto de forma um
pouco diferente das outras três. O distanciamento de seus objetivos a priori
estabelecidos, a partir das orientações de professoras do ‘canto erudito’, parece ter
produzido nela sentidos subjetivos de decepção, por não conseguir permanecer no
Núcleo de Canto [erudito], e, ao mesmo tempo, de força de vontade ou de firmeza, por
tentar se adaptar à sua nova condição de aluna do ‘canto popular’.
É relevante frisar que, em alguns momentos de seu discurso, Juliana reforça a
idéia de sofrer ‘preconceito’, sempre ligado ao fato de ser aluna de ‘viola caipira’. Além do
referido episódio da mudança do ‘canto erudito’ para o ‘canto popular’, ela também
declarou ter sofrido ‘preconceito’ em situação de sala de aula ocorrida durante uma
disciplina teórica:
Eu já tive professor aqui que duvidou que eu fiz o arranjo da tal música.
Porque eu estava fazendo aula de teoria e como eu estudo viola caipira,
como que o meu arranjo poderia estar melhor que o das meninas que
estudam piano? Ele duvidou que era eu que tinha feito! E me jogou na
cara, que ele perguntou: ‘foi você que fez?’ [...] Então, quero dizer, isso
é um preconceito. Você já tem estipulado ‘só porque ela estuda viola
caipira, ela não é capaz’ (Juliana).
Pelo contexto apresentado, temos a indicação de que a idéia de sofrer
‘preconceito’ está bastante presente nas emoções e vivências de Juliana no contexto da
escola. Faz-se necessário esclarecer que as situações, ocorridas antes do momento da
pesquisa, foram narrados pela aluna, de acordo com a sua perspectiva de interpretação.
Não podemos afirmar, por exemplo, que o questionamento do professor de teoria
diante do exercício apresentado por Juliana tenha suas bases no fato de ela ser aluna de
‘viola caipira’; ou que as professoras do ‘canto erudito’ disseram que as características
vocais de Juliana têm relação direta com o fato de ela tocar tal instrumento.
No entanto, parece claro que ambas as situações apresentadas despertaram em
Juliana sentidos subjetivos de persistência que a impediam de enfraquecê-la enquanto
95
aluna. Isso nos indica que, diferente das outras alunas participantes, a relação de Juliana
com o contexto pesquisado era, de certa forma, conflituosa.
Percebemos, assim, que a análise dos aspectos motivacionais que conduziram as
alunas participantes ao curso de ‘canto erudito’ ou ‘canto popular’ nos serviu de grande
auxílio para compreendermos a forma como elas estavam inseridas no contexto
pesquisado.
5.3.2 Questões técnicas e musicais
Um dos recursos técnicos que, de acordo com duas das alunas participantes,
favorece o processo de aprendizagem do canto é a ‘demonstração’. Para Kátia, por
exemplo, fica mais fácil encontrar o posicionamento correto da voz (impostação) quando
a professora Clarisse demonstra como fazê-lo:
[...] pra mim fica mais claro quando ela faz. Quando ela fala, eu
entendo, mas eu não sei se eu consegui entender tão bem. Eu não sei
se é errado, se eu não devia fazer isso. Ela já nem quer muito ficar
fazendo pra eu imitar, né? Mas eu sempre peço porque eu acho mais
fácil. Eu acho que eu escuto, e vou lá e faço (Kátia).
A fala de Kátia nos indica que ela preferia cantar partindo de uma referência que a
fizesse compreender melhor o som vocal que deveria executar. Isso demonstra que a
aluna tinha uma sensibilidade auditiva que a conduzia a intuir de que forma ela deveria
proceder para cantar, o que nos parece ser um pouco diferente de simples ‘imitação’.
No caso de Kátia, se direcionar para apenas ‘imitar’ a voz da professora Clarisse
poderia acarretar prejuízos para a sua voz, já que a professora possui características
vocais diferentes de sua aluna. Uma delas, de especial relevância, é a classificação
vocal: Kátia é ‘soprano’, tipo de voz que trabalha em região mais aguda do que ‘meio-
soprano’, tipo de voz da professora Clarisse.
Encontramos esta consideração também no discurso da professora Clarisse,
quando explica que a ‘demonstração’ para fins de ‘imitação’ deve ser utilizada com
cautela e mais no início do curso de canto:
[...] a Kátia, às vezes, ainda fala: ‘professora faz aí’; e eu: ‘não, você
sabe’. Quero dizer, porque até um determinado ponto, eu posso até
fazer. Tudo bem, eu sei que ela ainda não tem aquela cancha pra
conseguir fazer tudo sozinha. Mas, a partir dum certo nível, não posso
mais porque ela tem que achar a voz dela. Ela não vai cantar por
imitação, senão vai virar mezzo, né? (profa. Clarisse).
96
Quando a professora Clarisse comenta ‘senão vai virar mezzo
17
’, seguramente ela
não tem a intenção de afirmar que é possível para uma ‘soprano’ se tornar ‘meio-
soprano’, mas que, pela simples imitação, ela poderia buscar uma qualidade vocal mais
próxima de uma voz de ‘meio-soprano’. Um aspecto relevante na fala da professora
Clarisse é que Kátia ‘tem que achar a sua própria voz’, o que nos remete à fala da
professora Márcia, já mencionada, quando alega que o cantor precisa ser um
pesquisador de sua própria voz.
Assim como Kátia, Viviane, outra aluna participante, considera a ‘demonstração’
como um recurso que favorece a aprendizagem em canto:
[...] ‘olha, faz isso’. Mostra como é que é pra fazer então. Faz um
pedacinho, me mostra como é que eu estou fazendo. Porque às vezes
ela vai e mostra como é que é, mas eu não estou sabendo diferenciar.
[...] A gente está fazendo de um jeito. A gente acha que está fazendo de
outro jeito. E aí a professora faz do jeito certo e faz do jeito que a gente
está fazendo. Eu acho que fica mais fácil (Viviane).
A fala de Viviane nos indica que ela utilizava a ‘demonstração’ da professora para
comparar e poder diferenciar os sons. Por isso a importância de a professora
‘demonstrar’ como ela está fazendo e como ela deveria fazer. Isto nos conduz à idéia de
que Viviane, além de apreender o som vocal ‘demonstrado’ de forma sensorial (auditiva)
para poder ‘imitá-lo’, procurava compreender as ações que levam a execução, o que
mostra que, em comparação com Kátia, ela agia de forma mais consciente ou menos
intuitiva.
É relevante dizer que, durante as nossas observações, presenciamos poucos
momentos nos quais Márcia, professora de Viviane, utilizou a ‘demonstração’ durante as
aulas. Esses momentos se davam, em geral, quando a professora propunha o exercício
vocal a ser executado, ou quando, por alguma razão durante os exercícios, os alunos se
perdiam na afinação. Mais do que ‘demonstrar’, a professora Márcia costumava, a partir
da execução dos alunos, orientá-los verbalmente sobre o seu resultado vocal. Também
era comum ela instigar os alunos a pensar sobre a própria execução.
Por participar de uma aula em grupo, Viviane tinha a oportunidade de observar a
execução dos outros colegas e, conseqüentemente, ouvir as orientações da professora
direcionadas a eles. Isso, de certa forma, poderia lhe proporcionar uma situação
semelhante à de ‘demonstração’, como a da professora, e também contribuir para a sua
17
A palavra ‘mezzo’ se refere à ‘mezzo-soprano’, termo italiano para ‘meio-soprano’.
97
aprendizagem. Mais adiante no trabalho abordaremos de que forma Viviane se
posicionava em relação a sua participação em aulas de canto no formato ‘em grupo’.
A ‘demonstração’ é, de fato, um dos recursos utilizados por professores de
música, e não discordamos de que esse recurso possa favorecer os alunos,
especialmente os de canto. O detalhe está em o aluno utilizar a ‘demonstração’ apenas
com a finalidade de imitar, o que pode, como já dito, levar a uma descaracterização da
sua própria voz. Além disso, a simples imitação pode conduzir o aluno a uma prática sem
reflexão.
Nesse sentido, os argumentos de Olson e Bruner (2000) vêm em nosso auxílio,
quando alegam que, para a aprendizagem das ‘práticas imitativas’, não são suficientes
apenas ‘demonstrar “como fazer” e proporcionar prática no fazer’. Segundo os autores,
há estudos que demonstram que o saber apenas executar bem não leva o aprendiz a
alcançar o mesmo nível de ‘habilidade real’ que o nível obtido quando, além de aprender
a executar bem, o aprendiz sabe de alguma maneira consciente ou conceitual porque se
executa dessa forma (p. 27).
Isso nos leva de volta à situação de Kátia. Por exemplo: se a professora Clarisse
permitisse que ela caminhasse sempre pela imitação, o que não ocorria de fato, além de
a aluna correr o risco de descaracterizar a sua voz de ‘soprano’, tal atitude poderia afetar
o nível de sua ‘habilidade real’.
Outro aspecto que pode favorecer a aprendizagem de canto, que também se
enquadra nas questões técnicas e musicais, foi abordado por duas das alunas
participantes: a necessidade de ter um hábito de estudos. Kátia, aluna da professora
Clarisse, alega que precisa praticar os conteúdos desenvolvidos durante suas aulas,
ainda que, durante os momentos de estudo, não obtenha o resultado vocal que ela
gostaria:
[...] é fundamental que eu estude em casa, que eu tente descobrir
sozinha, mesmo que eu não consiga. Às vezes eu fico em casa
tentando colocar a voz no lugar e eu não dou conta, eu fico lá sofrendo.
Mas eu tenho que estudar muito (Kátia).
Na fala de Kátia, o ‘tentar descobrir sozinha’, o ‘tentar colocar a voz no lugar’ mais
uma vez nos encaminha para o aspecto de ser ‘pesquisadora da sua voz’. Mesmo não
tendo o sucesso esperado no momento de treino, é fato que o cantor necessita praticar
sempre, já que, durante o ato de cantar ele lida constantemente com sensações internas
do corpo, porquanto grande parte do aparelho vocal se localiza dentro do corpo, aspecto
98
que, em pesquisa realizada por nós, foi considerado complicador para a aprendizagem
em canto (BRAGA, 2007).
No discurso de Verônica, outra aluna participante, mais do que a necessidade de
manter um hábito de estudos, encontramos o querer estudar, o querer aprender, e
também o questionar quando for preciso:
[...] eu conheço um monte de gente: ‘ah, eu não vou estudar não, que
eu já sei cantar’. Não é o meu caso. Eu gosto [...] Então eu acho que
tenho que querer, amar e querer estudar, querer aprender, absorver
tudo que a professora tem que me dar, perguntar, questionar quando eu
achar (Verônica).
Verônica, em sua fala, nos mostra ser necessário ter disposição para ações que
ocorram dentro e fora da sala de aula, ou seja: aprender, estudar, “absorver” os
conteúdos trabalhados, questionar. Tal como ela se expressa, ações como estas podem
favorecer a sua aprendizagem em canto. Isto nos indica que o hábito de estudos, para
esta aluna, é parte de um conjunto de ações nas quais ela precisa estar disposta a
praticar, um pouco diferente de Kátia, que coloca a necessidade de ter um hábito de
estudos de forma mais pontual.
Em seu discurso, Verônica faz referência a pessoas que não acham necessário
procurar uma escola de música para aperfeiçoar seus conhecimentos porque julgam
saber o suficiente sobre o ato de cantar, o que é diferente no caso dela. Como já
mencionado anteriormente, esta aluna se mostrava motivada para aprender. Verônica,
assim como Kátia, ambas alunas da professora Clarisse, eram dedicadas, estudiosas, o
que mostra coerência entre as falas de cada uma e suas ações.
Sobre a necessidade de criar um hábito de estudos, Behlau e Rehder (1997) nos
auxiliam quando alegam ser necessário treino, paciência e dedicação para se obter uma
produção vocal de boa qualidade. Costa (2001), por sua vez, também nos serve de base
à medida que explica: “ouvir, observar, perguntar, pesquisar, são requisitos a que o
estudante deve habituar-se durante o adestramento vocal” (p. 91).
Assim, análise dos aspectos técnicos e musicais na perspectiva dos alunos nos
auxiliou a compreender que tanto a dedicação do aluno aos estudos quanto os recursos
que o professor utiliza nas suas ações pedagógicas são fatores que o aluno de canto
identifica como necessários para o seu aprendizado.
99
5.3.3 Dos aspectos pedagógicos
A respeito das questões pedagógicas, um aspecto que emergiu em três das
alunas participantes foi o formato de aulas – em grupo, individual, em dupla – adotado
por cada professora. Viviane, aluna da professora Márcia, que participava de uma turma
de quatro pessoas, alegou que, para ela, existiam vantagens e desvantagens em fazer
aulas de canto em grupo:
[...] em determinado momento é legal você fazer aula em grupo. Mas
tem hora que a gente fica só parado, esperando. E eu acho que tem um
desnível até grande, por exemplo: tem aluno que você vê que tem um
nível técnico muito menor. Eu acho que isso aí atrapalha [...] Têm
coisas que eu vejo a profa. Márcia falar ‘não, faz assim’ e a pessoa não
entende. ‘Não, assim’. Aí nem ela pode ficar muito tempo, que ela fica
na mesmice, né? Não dá pra perder muito tempo. Mas aí o outro fica
prejudicado, porque ela devia ficar mais tempo com ele fazendo aquilo
ali. [...] até a pessoa às vezes não estuda muito. ‘Pô, eu estudei, você
não pode estudar também?’ Aí fica a professora falando a vida inteira a
mesma coisa. Mas eu acho que também tem esses outros lados, quero
dizer, como é que estão os seus colegas, como é que eles fazem
determinadas coisas e eu acho que a gente cresce muito com isso
também, porque a gente vê os outros (Viviane).
O contexto apresentado nos mostra que Viviane enxergava como principais
desvantagens em fazer aula em grupo o desnível técnico entre alunos e o fato de haver
aluno que não se dedicava aos estudos. Nos dois casos, a pessoa envolvida demandava
mais atenção, para si, da professora Márcia, o que, em sua opinião, atrapalhava o
desenrolar da aula, porquanto havia necessidade de repetir várias vezes o conteúdo já
trabalhado anteriormente.
Ao mesmo tempo, Viviane achava que aquele que precisasse de mais atenção
acabava sendo prejudicado, uma vez que, em uma aula em grupo, precisa haver certo
equilíbrio na distribuição do tempo para cada aluno. Apesar de, às vezes, ter que ‘ficar
parada, esperando’, Viviane considerava vantajoso o fato de poder observar as ações
dos outros alunos, o que, segundo ela, podia favorecer o seu desenvolvimento enquanto
aluna de canto.
É relevante dizer que, diferente do relatado por Viviane, em nossas observações
não detectamos grandes diferenças de nível técnico entre as alunas deste grupo que,
vale lembrar, era composto também por Juliana, Sara e Sandra. Das quatro alunas,
Sandra nos pareceu mais desenvolvida tecnicamente. Entretanto, de alguma forma, cada
uma possuía determinados aspectos técnicos e musicais mais (ou menos) desenvolvidos,
não havendo, portanto, grande distanciamento técnico entre elas.
100
Sobre a questão concernente à falta de dedicação, assim como mencionado por
Viviane, algumas vezes vimos a professora Márcia comentar em sala, na presença de
Sara, que esta não possuía um hábito de estudos.
Juliana, outra colega de sala de Viviane, também se pronunciou a respeito das
aulas em grupo. No seu modo de ver, as aulas individuais, assim como ela tinha com
outra professora, eram mais produtivas:
A professora Márcia dá aula, não é só pra um, ela dá pra quatro. Não
tem como você chegar com ela e trabalhar as suas coisas, aquilo que
você tem dúvida. Não tem porque aquele ali é o tempo. Quando você
tem a relação professor-aluno, só você e o aluno, você tem mais
oportunidade pra ir conversando sobre aquela sua situação ali com ele,
ir tentando melhor, aprender alguma coisa que é de acordo com você.
Numa aula com quatro, isso já não dá. Já cria uma distância entre o
professor e o aluno. Não é a mesma coisa. Não é. Depois, você tem
que esperar todas as músicas, os problemas deles, outras coisas, pra
passar a sua, e o tempo é muito pouco, não dá. Eu estou vendo que
quando eu fazia uma aula só com a outra professora, num horário só,
rendia mais. Porque eu trabalhava melhor as minhas músicas (Juliana).
A fala de Juliana nos diz que ela gostaria de receber mais atenção durante as
aulas, o que, de acordo com ela, era complicado, já que precisava dividir o tempo de aula
com outros alunos. É relevante o seu comentário sobre a relação professor-aluno quando
alega que na relação de um para um, esta tende a se fortalecer, enquanto que em uma
aula em grupo, tende a se tornar mais distante. Nesse contexto ela se referia ao fato de,
em uma aula individual, poder ter mais oportunidades para dialogar com o professor
sobre as suas necessidades enquanto aluna de canto, o que ela sentia falta na aula em
grupo.
Pelo contexto apresentado, temos também a indicação de que, diferente de
Viviane, sua colega de sala, Juliana não via como vantagem observar as ações dos
outros. Para ela, esses momentos eram caracterizados como ‘tempo de espera’, no qual
seriam tratados ‘os problemas deles’. Este ‘tempo de espera’, citado tanto por Viviane
quanto por Juliana, se dava, em geral, na passagem de repertório, que era uma atividade
desenvolvida individualmente.
Apesar de Juliana ter dito que não era possível trabalhar as dúvidas ou questões
mais particulares, durante a pesquisa presenciamos, por exemplo, a professora Márcia
dar atenção especial duas vezes a Sandra, quando esta solicitou, e uma vez a Sara,
quando percebeu que ela não conseguia executar o exercício proposto. É relevante
salientar que estas três situações se deram no momento coletivo de trabalho técnico
vocal.
101
A idéia de ‘não dar tempo’ pode estar relacionada ao receio de Juliana em trazer
incômodo aos outros alunos que teriam que esperar que ela trabalhasse os ‘seus
problemas’ – da mesma forma que ela se incomodava em esperar pelos outros –, assim
como encontramos, por exemplo, na fala de Viviane, já citada: “eu vejo a professora
Márcia falar ‘não, faz assim’ e a pessoa não entende. ‘Não, assim’. Aí nem ela pode ficar
muito tempo que ela fica na mesmice, né? Não dá pra perder muito tempo”.
Aspectos ligados ao formato de aulas em grupo também foram abordados por
Kátia, aluna da professora Clarisse, que alegou preferir o formato de aula em dupla no
qual estava inserida:
[...] agora, com a professora Clarisse, tem só eu e mais a Cássia.
Quando eu fazia com outra professora era muita gente dentro da sala e
aí não dava pra ter a atenção pra mim. Ainda mais que eu estou
começando agora e tem um monte de problema, e coisas pra consertar
e pra aprender (Kátia).
Assim como no caso de Juliana, a fala de Kátia nos mostra que ela necessitava
ter uma relação mais próxima com a sua professora, de forma que ela pudesse receber
atenção individual. Isso nos conduz à idéia de que, tanto para Kátia, quanto para Juliana,
o formato de aula em grupo limitava o espaço que elas necessitavam ter com o professor,
o que poderia exercer influência em seu desenvolvimento no contexto de canto. Por esta
razão, no momento da pesquisa, Kátia se mostrava satisfeita em fazer aulas no formato
em dupla, ao passo que Juliana se sentia prejudicada em suas aulas em grupo.
Diferente de Kátia e Juliana, Viviane se mostrava mais interessada nas questões
de cunho técnico e musical. Exemplo disso é que ela considerava como desvantagens
em participar de aulas em grupo o desnível entre os alunos e falta de dedicação do outro.
A segunda diferença entre elas era que Viviane percebia na observação do trabalho de
outros alunos uma oportunidade para crescer técnica e musicalmente, o que nos indica
que ela enxergava o espaço coletivo como contendo outras possibilidades para o seu
desenvolvimento enquanto aluna de canto.
As situações de Kátia, Juliana e Viviane nos mostram que o espaço de aulas em
grupo, no qual acontece não só a relação professor-aluno, mas também a relação aluno-
aluno, se torna um desafio maior para o professor, à medida que ele precisa estar atento
às diferenças trazidas por cada sujeito que participa daquele grupo, como: necessidades,
vivências, aspectos emocionais, formas de pensar, de interagir, de se posicionar ante as
ações do professor e dos próprios colegas.
102
Um dos meios de se ter acesso e poder compreender essas diferenças é dialogar
com o grupo. Nesse sentido, Tacca (2006b) nos serve de apoio quando argumenta que:
O processo comunicativo acontece para diferentes propósitos, tem
dimensões complexas e está submetido a múltiplas interferências e, por
isso, caberá aos sujeitos em interação buscarem a compreensão do
contexto em que estão inseridos e, se for o caso, negociarem as suas
diferenças e divergências frente a um propósito (p. 62).
Assim, o professor necessita estar aberto a adaptações para cada grupo com o
qual ele trabalha, podendo também se utilizar de conversas com o próprio grupo, com o
objetivo de que cada um compreenda a necessidade do outro, e por meio de
negociações, alunos e professor cheguem ao consenso de um formato de aula em grupo
que possa atender a cada um de seus participantes. As formas como se dá o diálogo nas
relações que compõem o contexto de aulas de canto serão discutidas mais à frente no
trabalho.
Outro aspecto de cunho pedagógico levantado por três das quatro alunas
participantes foi a avaliação. Kátia, aluna da professora Clarisse, comentou que se sentia
amedrontada quando se encontrava em situação de prova. Segundo seu relato, esse
medo era oriundo do tempo no qual iniciou seu contato com a música, que se deu
quando ingressou em um coral. Kátia também nos informou que os membros desse
grupo eram avaliados com freqüência, sofrendo pressão e ameaças de serem
dispensados, o que, em sua opinião, trazia muito desconforto para os momentos de
avaliação:
[...] até hoje tenho medo, tenho vergonha, acho que alguém vai brigar
comigo, falar alguma coisa ruim, porque era sempre isso que tinha, era
sempre o que a gente ouvia (Kátia).
Como mencionado anteriormente, Kátia, desde que ingressou na escola, não
havia passado pela forma de avaliação que acontece comumente no Núcleo de Canto
[erudito], a qual é feita em um dos teatros da escola, com todos os professores do núcleo
compondo a banca examinadora, aberta aos alunos que queiram assistir:
[...] semestre passado também eu não fiz com todo mundo. Eu fiz com a
banca, mas não eram todos os alunos. Nossa, no dia que eu tiver que
cantar, eu acho que eu vou desmaiar! É sério! Uma vez eu fiquei tão
nervosa no coral, que eu fiquei sem fala! (Kátia).
103
A fala de Kátia nos indica que os sentidos subjetivos (GONZÁLES REY, 2006)
que emergiram quando ela participava do referido coral ainda estavam presentes no
momento da pesquisa. Encontramos a mesma direção na já referida avaliação que
pudemos presenciar. Neste dia, Kátia, das duas alunas a fazer prova, foi a segunda a se
apresentar. Antes de iniciar, houve um pequeno diálogo entre ela e uma das professoras
da banca examinadora, do qual selecionamos um trecho:
– “Devia ter sido eu primeiro. Vamos, antes que eu desmaie” (Kátia).
– “Você tem medo?” (profa. da banca).
– “Eu tenho pânico!” (Kátia).
Mesmo tendo demonstrado medo, inclusive verbalmente, o resultado técnico e
musical de Kátia durante o processo de avaliação nos pareceu semelhante àquele que
ela conseguia no contexto das aulas, o que indica que, de alguma forma ela conseguia
controlar suas emoções durante a performance.
Vale lembrar que, para avaliar a aluna, a banca examinadora presente, da qual
também participava Clarisse, a sua professora, considerou, na menção final, não só a
sua execução na prova, mas também o seu desenvolvimento durante o semestre, atitude
que, de acordo com Juliana, aluna da professora Márcia, permite que o aluno seja bem
avaliado:
Você faz prova de banca, aí vai olhar o aluno ali. Você tem o semestre
inteiro pra avaliar o aluno. Você sabe se ele está sabendo. Você é o
professor. Você sabe o que o aluno aprendeu, o que ele pegou na sala
de aula. Se você avalia ele todos os dias, ele vai estar bem avaliado.
Agora, você dá uma nota em cima de uma prova que ele ficou nervoso
[...] Às vezes você não está tão bem quanto na outra prova. Às vezes
cai num dia, vamos supor, que você está gripada, ou você teve que
trabalhar muito, você está muito cansado, e você não vai render igual
renderia quando está bem dormido, bem descansado, bem alimentado
(Juliana).
É relevante dizer que não presenciamos Juliana em situação de prova durante a
pesquisa. Entretanto, ela nos relatou uma situação de prova de banca ocorrida quando
era aluna de outra professora. Segundo Juliana, naquele dia ela estava muito cansada,
quase sem voz. Entretanto, teve que fazer prova porque aquele era o dia marcado.
Como não conseguiu cantar bem, os que compunham a banca examinadora,
exceto sua professora, teceram comentários negativos em relação a sua performance.
Diante dessa situação, a professora, que sabia de seu desempenho durante o semestre,
104
considerou que, naquele momento a aluna não se encontrava bem, por isso ela acabou
recebendo uma menção final de acordo com o seu desenvolvimento.
De fato, as circunstâncias mencionadas por Juliana, como nervosismo, cansaço
físico, cansaço mental, estar doente, podem influir na performance do indivíduo, estando
ou não em situação de avaliação. Em pesquisa que realizamos (BRAGA, 2007), houve
consenso entre os participantes de que o equilíbrio físico, mental e emocional exerce
influências no ato de cantar. O posicionamento mais comum entre eles foi que o cansaço
físico e o cansaço mental são difíceis de controlar, enquanto que as emoções devem ser
dominadas de forma a não influenciar negativamente a performance.
Coelho (1999) também nos serve de apoio quando alega que “a boa alimentação,
o repouso equilibrado, os bons hábitos, a ausência de vícios e a disciplina são fatores
indispensáveis para quem deseja ter boa voz. Também a saúde e o equilíbrio psicológico
são fundamentais” (p. 11).
O enfoque de Verônica, aluna da professora Clarisse, sobre avaliação está ligado
ao resultado: ser aprovado ou reprovado. No seu relato, ela nos informou que, em
determinado período, foi reprovada em disciplina do campo teórico musical. Entretanto,
Verônica atribui a si mesma o seu insucesso:
Eu já reprovei, mas não foi culpa do professor. Foi culpa minha que não
consegui pegar a matéria. Ele passava a matéria pra mim, mas eu, por
um motivo ou outro não consegui pegar a matéria, apesar de eu gostar
muito, de eu me dedicar muito. E por isso eu repeti numa boa, sem
brigar, sem achar defeito em ninguém, sem botar culpa em ninguém. A
culpa foi minha, que por mais que eu tenha me doado, eu não consegui
absorver a matéria que a escola me deu (Verônica).
A fala de Verônica nos indica que o fato de pertencer a uma escola que ela lutou
tanto para conseguir ingressar tem um peso considerável no julgamento que ela fazia das
situações ocorridas no contexto no qual estava inserida. Frases, como as descritas
abaixo, que exaltam a sua satisfação em relação à escola e aos professores, permeiam
todo o seu discurso:
E por eu gostar muito da escola, eu não vejo defeito. Eu acho a escola
ótima. Tem problema? Tem, mas todo lugar tem problema. Se a gente
for em outras escolas aí, tanto faz oficial como particular, a gente vai ver
que tem problemas. Os professores daqui são ótimos. Eu não tenho
nenhuma queixa de nenhum professor. Todos são bons naquilo que
fazem (Verônica).
105
É importante ressaltar que, no trecho anterior, quando Verônica mencionou que foi
reprovada, estava falando justamente dentro do contexto acima, quando tecia diversos
elogios à estrutura da escola e aos professores.
De fato, se houve tanta motivação de sua parte para perseverar mediante seis
tentativas frustradas via sorteio, além de duas via testes, para poder ingressar nesta
escola, é bastante coerente que ela não encontre espaços para críticas, já que uma
atitude como esta poderia desvalorizar a sua própria escolha.
Assim, uma situação como a de ser reprovada, que poderia fazer emergir sentidos
subjetivos de fragilidade, de desânimo, que a enfraquecessem enquanto aluna, acabam
lhe servindo como suporte para fortalecê-la ainda mais.
Um terceiro aspecto que envolve questões pedagógicas foi levantado por duas
alunas participantes: a diferença entre cantar e tocar um instrumento musical. Juliana,
que também é instrumentista (viola caipira), mencionou que, diferente de outros
instrumentos, no canto o indivíduo tem que se preocupar com a sua voz, que sai de
dentro do próprio corpo, o que, para ela, envolve mais emoção. Viviane, de forma
semelhante, alegou que cantar expõe mais o indivíduo do que tocar um instrumento
musical e, que aquele que toca e canta simultaneamente, de certa forma também se
utiliza do instrumento como um escudo de proteção:
O canto é diferente da viola, dos outros instrumentos, que você pega o
instrumento e toca. No canto você mexe com o interior da pessoa, muito
com a emoção da pessoa, muito mais que os outros instrumentos, muito
mais. Porque você tem que se preocupar com a sua voz, que é uma
coisa que sai dentro de você (Juliana).
Quando você toca, você está meio que com um escudo ali, você tem o
seu instrumento. E cantar, só você está ali, totalmente exposta. Eu me
sinto muito assim. Eu vejo gente falar, por exemplo, de violão: ‘ah,
quando eu estou com o meu violão, eu estou cantando, mas eu estou
com o violão’. E o canto, não. Você vai ali, o microfone e você.
(Viviane).
As falas de Juliana e Viviane nos indicam que o ato de cantar, para ambas,
guardadas as particularidades de cada uma, desperta receio em se expor. Apesar de
tratarem do mesmo aspecto, cada uma fez suas considerações em contexto diferente.
Juliana abordava a necessidade de ter com o professor de canto (aqui colocado de forma
geral, não especificamente a professora Márcia) uma relação de amizade e confiança, na
qual ficasse de fora um posicionamento excessivamente crítico por parte dele:
106
[...] quando o professor não é muito seu amigo, qualquer coisa ele te
critica, isso destrói o aluno, poda o aluno. Eu estou falando por
experiência própria [...] eu acho que a primeira coisa é aquela
confiança, a amizade, você não ir com o pensamento pré-concebido,
você aceitar o aluno como ele é, aquilo que ele trouxe. Aí, com jeitinho,
você ir trabalhando aquilo que você quer mostrar pra ele, mostrar no
que ele não faz certo, que ele tem que fazer melhor. E você ter aquele
jeitinho de falar. Porque o canto é diferente dos outros instrumentos. Se
não escolher bem as palavras, em vez de você conseguir liberar aquela
voz, você vai é trancar aquela voz (Juliana).
A fala de Juliana nos mostra que era fundamental para ela que o professor de
canto a apreendesse com as suas particularidades, que considerasse suas vivências, e
daí partisse para trabalhar com ela. Isto, segundo seu relato já mencionado
anteriormente, não aconteceu quando ela ingressou no Núcleo de Canto [erudito]. É
relevante o comentário que ela faz sobre a necessidade de o professor usar as palavras
‘com jeitinho’ com o aluno de canto para não ‘trancar’ a sua voz ao invés de ‘liberá-la’.
Partindo do argumento “a voz é emoção, não importa que seja a cantada, a falada
ou a desprovida de sentido” (COSTA; SILVA, 2008, p. 164), um posicionamento
excessivamente crítico do professor de canto pode retrair seu aluno de forma que ele se
sinta inibido em cantar. Assim, para Juliana, o receio em se expor estaria ligado ao medo
de ser insistentemente criticada, especialmente pelo professor de canto.
Viviane, por sua vez, abordou o medo em se expor no contexto de apresentações
artísticas, outro aspecto ligado às questões pedagógicas. Em seu discurso, ela nos
informou que costumava ficar nervosa no momento da apresentação, o que só percebeu
quando subiu ao palco pela primeira vez:
Essa coisa do nervosismo eu nunca nem soube, porque eu não sou
uma pessoa muito tímida [...] No final do semestre, na outra escola de
música, tem audições. ‘Vamos cantar?’ ‘Vam bora!’ Aí, chega na hora,
aquela luz em cima de mim, aquele escuro lá na frente... A voz não sai,
a respiração não vem... Eu fui saber ali na hora que eu tinha nervosismo
de palco (Viviane).
Assim como expresso pela sua fala, pouco antes da audição dos alunos do ‘canto
popular’ que já mencionamos ter presenciado, ouvimos a professora Márcia recomendar
que Viviane ‘se soltasse’. Essa recomendação aconteceu algumas vezes no contexto de
sala de aula, o que nos indica que o seu receio em se expor, talvez até por estar inserida
em formato de aulas em grupo, já aparecia em situação de aula.
Um pouco diferente de Viviane, Verônica, aluna da professora Clarisse, que
também fez parte da mencionada audição, comentou que as apresentações artísticas
são, para ela, um momento, ao mesmo tempo, de sufoco e prazer:
107
É um momento de sufoco, mas também é um momento de prazer. Eu
adoro quando chegam as apresentações. Eu nunca fiquei sem cantar
[...] A gente fica nervosa? Fica, mas, faz parte. Eu ensaio bem, ensaio e
canto. Toda vida deu certo. Pra mim é um momento marcante na minha
história de estudante (Verônica).
Pela fala de Verônica temos a indicação de que o prazer em se apresentar está
acima do nervosismo que a situação lhe proporciona. Behlau e Rehder (1997)
convergem com esta idéia quando argumentam que:
Um certo estresse é positivo para o canto, pois estresse nada mais
significa do que mobilização de energia; porém, o estresse excessivo é
negativo (conhecido tecnicamente por distresse) e prejudica a emissão,
o que se observa através de cansaço vocal, falta de resistência,
rouquidão e – ar na voz – ; também pode ocorrer perda de notas da
tessitura (p. 25).
Assim como em seu discurso, no dia da referida audição, por não haver uma
ordem pré-estabelecida de apresentação, a professora Márcia, que coordenava o evento,
sugeriu que os alunos subissem ao palco à medida que tivessem vontade. Verônica foi a
primeira a se oferecer para cantar, o que nos indica a sua motivação em participar do
evento. Da mesma forma que Verônica, Kátia, também aluna da professora Clarisse, nos
informou que gosta de se apresentar. No seu caso, por causa do público:
Eu cantava no coral [...] porque também gostava do público. Eu gosto.
Gosto de cantar e fazer as pessoas ficarem lá todas felizes e tal, e vim
me cumprimentar e falar ‘que lindo, adorei’ (Kátia).
A fala de Kátia não menciona, como nos casos de Viviane e Verônica, o
‘nervosismo’ ao se apresentar. Também não encontramos isto em seu discurso como um
todo, a não ser, como já mencionado, quando ela se encontrava em situação de
avaliação. Um aspecto relevante em sua fala é ‘gostar de cantar para proporcionar prazer
ao público’, além de a si mesma.
Analisar os aspectos pedagógicos segundo o ponto de vista das alunas
participantes nos foi útil na medida em que pudemos compreender melhor a relevância
que o formato de aulas (individual, dupla, em grupo) pode assumir para alunos de canto,
bem como as diferentes emoções que podem aparecer nos momentos de aula, de
avaliação e de apresentações artísticas.
A respeito das formas que o aluno organiza e expressa seu processo de aprender
canto, e de como ele sente, compreende e se posiciona em relação às ações do
professor e de seus colegas, percebemos como importante que:
108
– A ‘demonstração’, embora nem sempre aliada à reflexão, é um recurso bastante
relevante para o aluno de canto, do qual ele lança mão para favorecer a sua
aprendizagem;
– A necessidade de se manter um hábito de estudos é um aspecto forte para
alunos inseridos no contexto de canto;
– O formato de aulas (individual, dupla, em grupo) adotado pelo professor de
canto influencia no desenvolvimento de seus alunos;
– A falta de diálogo e de confiança entre professor e aluno, além de críticas
excessivas por parte do professor, prejudicam a aprendizagem em canto, em razão de o
ato de cantar estar diretamente relacionado às emoções do sujeito.
Ao concluir as considerações sobre as formas que o aluno organiza e expressa o
seu processo de aprender canto, bem como as formas como ele sente, compreende e se
posiciona em relação às ações do professor e de seus colegas, partimos para o próximo
item, no qual abordaremos como se configuram as relações, a comunicação dialógica
entre professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso participa da
aprendizagem do aluno.
5.4 Como se configuram as relações, a comunicação dialógica entre
professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso participa da
aprendizagem do aluno
Dentre os aspectos que apareceram nas relações entre os sujeitos que
compunham as aulas de canto encontramos a atenção e os cuidados do professor para
com seus alunos. Kátia, por exemplo, comentou que Clarisse, sua professora, era
bastante cuidadosa. As considerações tecidas pela professora Clarisse sobre o
mencionado aspecto estão ligadas ao interesse do próprio aluno em aprender:
Eu acho que ela é muito cuidadosa. Ela se preocupa muito com a gente.
Teve um dia que ela ia ter um casamento pra ir, só que ia ser feriado
bem no dia da nossa aula e eu falei: ‘Vamos marcar amanhã?’ E ela
falou assim: ‘Vamos. Eu tenho um casamento pra ir, mas não vou’, só
pra dar aula pra gente (Kátia).
Se a pessoa trabalha, eu trabalho com a pessoa. Eu sinto que a pessoa
está a fim, eu dou tudo pra que a pessoa chegue lá. Eu não me
incomodo em dar aula fora de horário. [...] Quando você olha o aluno
cantando e você vê o resultado do trabalho, aquilo dá uma satisfação
tão grande que dá vontade de você recomeçar tudo (profa. Clarisse).
109
O esforço da professora Clarisse em deixar de ir a um evento agendado para
compensar a aula que iria acontecer em dia de feriado escolar nos indica, assim como
expresso na fala de Kátia, que o compromisso dela com seus alunos ia além do
estabelecido formalmente com a própria instituição, o que mostra seu cuidado e atenção
para com eles.
A fala da professora Clarisse, por sua vez, nos mostra que a sua motivação para
agir assim estava relacionada ao empenho e motivação do aluno em aprender, e que
essa dedicação era recompensada pela satisfação em ver o resultado de seu trabalho. A
atitude de Kátia em solicitar reposição de uma aula na qual, oficialmente, ela não teria
direito, nos indica que na relação entre ela e a professora Clarisse existia espaço para
diálogo, para negociações.
Isso pode ser apoiado, por exemplo, por outra situação ocorrida em sala: na aula
de Kátia, alguns dias antes do agendado para a prova com banca examinadora, a
professora Clarisse sugeriu que ela fizesse a sua prova, uma vez que, na opinião da
professora, Kátia já estaria em condições de ser avaliada. Elas, então, entraram em
acordo e a prova foi realizada.
Nesse sentido, Tacca (2006b) nos serve de base quando argumenta que aluno e
professor devem compor um espaço relacional no qual se crie um ambiente de
responsabilidade e compromisso no alcance dos objetivos educativos. Para a autora,
“negociações em sala de aula serão sempre necessárias, sendo a confiança mútua uma
âncora para o compartilhamento na produção do conhecimento na processualidade do
desenvolvimento subjetivo” (p. 64).
A atenção e os cuidados da professora Clarisse para com Kátia, que se
manifestavam em uma relação permeada pelo diálogo, por negociações que ocorriam no
contexto das aulas, eram aspectos que contribuíam para a sua aprendizagem em canto.
Isso nos indica que outros alunos, em condições semelhantes à de Kátia, certamente
serão favorecidos, no que tange à aprendizagem, pela atenção e os cuidados de seu
professor de canto.
Levantado pela professora Márcia, a hierarquia foi outro aspecto que apareceu na
relação professor-aluno no contexto pesquisado. De acordo com ela, é complicado
mudar a idéia de que o professor se coloca em um patamar diferente do aluno:
A gente fala do ensino-aprendizagem como uma troca, e fica parecendo
um clichê. Mas, na verdade, mesmo, lá no fundo, o que está presente é
o seguinte: ‘eu sou o professor, eu ensino; e vocês são os alunos,
aprendam’ [...] claro que é difícil de dissolver essa história do professor,
do patamar diferente em que se coloca. Eu tenho um esforço de ir
mexendo com essa relação, mas eu tenho consciência que é muito
difícil de realmente romper esse negócio. Tanto pela prática da gente,
110
porque a gente tem modelos e tende a reproduzir, quanto pela própria
estrutura. Porque no final das contas, quem vai lançar a nota lá no diário
é o professor. Ele tem esse poder. E isso está presente na relação. Não
tem jeito (profa. Márcia).
A fala da professora Márcia nos mostra que, embora ela perceba a necessidade
de aproximação com os alunos, para ela, as posições de aluno e professor estão bem
definidas. No momento da pesquisa, apreendemos o esforço da professora Márcia na
tentativa de se aproximar de seus alunos, por suas atitudes para com eles. Ela era uma
pessoa alegre, bem-humorada, tranqüila, dócil ao abordar as pessoas, e tinha um jeito
informal de se relacionar que trazia muita leveza para o contexto das aulas.
Um pequeno trecho da conversa que tivemos com ela pode ilustrar como isso
acontecia:
Eu brinco com os meninos: ‘olha só, eu fico aqui, vocês vêm e cantam
pra mim bonito e o pessoal ainda me paga’ (risadas). Ta bom, eu não
ganho, assim, super bem, mas eu sou feliz, né? (profa. Márcia).
Quando professora Márcia fala dos ‘meninos’, ela se refere aos seus alunos de
canto. Seguramente, essa forma leve de agir da professora Márcia criava espaços para
uma relação mais próxima com seus alunos. Assim, a maneira como se configurava esta
relação estava ligada tanto ao que se vivenciava no espaço da aula, quanto às emoções,
às vivências, às concepções que cada um (professora e alunos) trazia em sua história de
vida para esse contexto.
Nesse sentido, González Rey (2006) nos auxilia quando argumenta que:
As emoções que o sujeito vai desenvolver no processo de
aprendizagem estão associadas não apenas com o que ele vivencia
como resultado das experiências implicadas no aprender, mas emoções
que têm sua origem em sentidos subjetivos muito diferentes que trazem
no momento atual do aprender momentos de subjetivação produzidos
em outros espaços e momentos da vida. Daí a importância de
considerar o sujeito que aprende na complexidade de sua organização
subjetiva, pois os sentidos subjetivos que vão se desenvolvendo na
aprendizagem são inseparáveis da complexidade da subjetividade do
sujeito (p. 34).
As palavras do autor nos levam a refletir que o fato de a professora Márcia ter a
intenção de cultivar a aproximação com o aluno não direciona de forma única o sentido
subjetivo que o aluno produz na relação com ela; também não significa que eles teriam
as mesmas emoções que a sua professora.
111
Exemplo disso, é que mesmo a professora Márcia sendo aproximativa, Viviane,
sua aluna, demonstrava tensão na sua relação com a professora:
Muitas vezes por causa dessa maldita relação professor-aluno (risadas),
tem uma tendência assim de ‘então, eu vou estudar. Agora eu vou fazer
aqueles exercícios que a profa. Márcia mandou’. E aí não encarar isso
como uma coisa de pesquisar a sua voz. Na Viviane, às vezes, eu sinto
um pouco isso. Porque ela fica tão ansiosa por corresponder às
expectativas, que ela deixa de viver esse processo (profa. Márcia).
A fala da professora Márcia nos indica que, apesar de ela considerar Viviane,
como já dito anteriormente, uma aluna ‘séria, super estudiosa, empenhada’, que ‘quer
muito cantar’, também a apreendia como uma pessoa que concentrava mais esforços
para corresponder às expectativas de sua professora do que para conduzir o seu próprio
desenvolvimento. Isto pode ser apoiado pelas nossas observações de que Viviane, nos
momentos de estudo, buscava seguir as orientações técnicas e musicais de sua
professora, e trazer os resultados disso para as aulas.
Se a motivação de Viviane, ao se dedicar aos estudos, era a de corresponder às
expectativas da professora Márcia, poderíamos nos encaminhar a idéia de que isso não
serviria de empecilho para a sua aprendizagem, já que, para cumprir as orientações
dadas, ela também necessitaria estar pesquisando a sua própria voz.
Entretanto, a professora Márcia nos coloca uma condição que vai além do
simplesmente ‘cumprir tarefas’. O ‘ser pesquisador da sua voz’, para a professora, parece
estar mais ligado ao fato de o aluno tomar para si o seu próprio desenvolvimento, de se
posicionar diante das ações do professor com autonomia, o que, de fato, poderia exercer
um peso considerável no favorecimento da sua aprendizagem, uma vez que Viviane
estaria unindo as orientações da professora Márcia aos elementos que ela descobriu por
si só.
Deste modo, buscar formas de se aproximar dos alunos, trazer leveza para o
contexto das aulas de canto, conduzir, no caso dos alunos, o seu próprio
desenvolvimento, são atitudes que podem trazer benefícios para o contexto ensino-
aprendizagem de canto.
Outro aspecto que emergiu no contexto relação professor-aluno de canto foi a
adaptação à mudança de professor. Verônica, que desde que ingressou no Núcleo de
canto popular, teve aulas apenas com uma professora, no momento da pesquisa tinha se
tornado aluna da professora Clarisse. Por mais que gostasse da outra professora e
reconhecesse ter aprendido muito com ela, para Verônica, adaptar-se à professora
Clarisse não era um fator complicador:
112
A outra professora me ensinou muita coisa. Me tirou muita mania que
eu tinha, me tirou os gritos, me ensinou a respirar... Então eu vejo,
assim, 80% do que eu aprendi eu devo pra ela. E a professora Clarisse,
que me pegou agora, também já está me ensinando muita coisa. Já
aprendi outras coisas com ela. Todas duas trabalham de forma
diferente. Já estou adaptando com ela. Apesar do pouco tempo, como
eu gosto muito do assunto, eu já estou pegando o jeito dela [...] eu
gosto da aula dela [...] Ela é perseverante na parte dela de ensinar e eu
também sou perseverante e busco tentar aprender (Verônica).
A fala de Verônica nos mostra, mais uma vez, que a sua motivação em aprender
contribuía para superar barreiras. O fato de as professoras trabalharem de forma
diferente, ao invés de ser obstáculo, para ela funcionava como possibilidade para
aprender coisas novas.
Também é relevante o seu comentário sobre ser perseverante (aqui mencionado
no sentido de ‘dedicada’) assim como a professora Clarisse, o que nos indica que, em
pouco tempo de contato, Verônica já havia estabelecido uma relação de confiança com a
sua professora.
Em situação de aula, também pudemos apreender a perseverança, a dedicação
de ambas as partes. Exemplo disso é que a professora sempre se aproximava de
Verônica, e dialogava com ela durante os exercícios com a intenção de ajudá-la a
perceber as sensações físicas que o ato de cantar demanda. A aluna, por sua vez,
questionava quando tinha dúvidas, e era atenta às orientações da professora, dentro e
fora da sala de aula.
Isso nos conduz à idéia de que tanto Verônica como a professora Clarisse
estavam motivadas, cada qual em sua parte, para aprender e ensinar. Nesse sentido, nos
utilizamos das palavras de Tacca (2006b) quando argumenta que:
Para integrar os aspectos motivacionais de alunos e professores torna-
se imprescindível uma relação pedagógica de confiança e
responsabilidade mútua, em constante produção de sentido,
avançando-se para o desenvolvimento da subjetividade de cada um (p.
66)
Havendo, portanto, motivação, confiança mútua, diálogo, dedicação de ambos os
lados, o que favorecia o fortalecimento da relação professor-aluno no caso de Verônica e
professora Clarisse, a adaptação entre ambas tornou-se mais suave. Isso nos indica que
quando há disposição entre professor e aluno para estabelecer uma relação de
confiança, aberta para o diálogo, cria-se condições que, no nosso modo de ver, são
imprescindíveis na relação pedagógica para trazer benefícios à aprendizagem de canto.
113
A insegurança, outro aspecto que também encontramos na relação professor-
aluno em contexto de aulas de canto, surgiu, por exemplo, quando a professora Márcia
expunha as suas impressões sobre Juliana, sua aluna:
A Juliana quer estudar canto, mas, por outro lado, ela vive dizendo que
não quer ser uma cantora, ou seja, ela tem um dilema aí, que eu acho
que tem a ver com a timidez dela. Tem toda uma maneira de ser que
ela não se permite muito estar na berlinda, estar sob os holofotes. Eu
acho que, às vezes, ela costuma fazer as coisas pragmáticas pra evitar
de se envolver, de se colocar. E isso acaba sendo um lugar onde ela se
agarra pra não deixar fluir (profa. Márcia).
A fala da professora Márcia nos indica que ela apreendia Juliana como uma aluna
tímida no contexto que estava inserida. As ‘coisas pragmáticas’ são, por exemplo,
pequenos detalhes da partitura musical (ritmo, melodia) que, segundo a professora,
Juliana insistia em executar exatamente como estavam escritos, o que não é de praxe no
contexto de música popular.
O fato de Juliana sempre dizer que ‘não quer ser cantora’ ou, segundo a
professora Márcia, ‘ter um dilema’, e ‘não se permitir estar na berlinda, sob os holofotes’,
mais do que timidez, pode ter ligação com a insegurança por ‘ter medo em se expor’,
como já abordado anteriormente. Assim, a necessidade em ser aceita no contexto de
aulas de canto com a voz que possuía, já que sentia sofrer preconceito por ser aluna de
‘viola caipira’, pode ter despertado em Juliana o receio de ser excessivamente criticada.
Em situação de aula apreendemos momentos nos quais Juliana, ao ser corrigida
por sua professora, parecia agir defensivamente. Um exemplo ocorreu quando ela estava
executando determinada música e, para que se sentisse mais à vontade, a professora
Márcia sugeriu que a aluna passasse a música uma vez, sem interrupções. Ao terminar,
a professora corrigiu algumas notas da melodia e solicitou que ela buscasse uma
ressonância ‘mais no queixo’, no registro de ‘voz de peito’ (graves). A isso ela respondeu:
‘cantei muito em coral, por isso a minha ressonância é mais ‘de cabeça’.
Em outra situação, no momento de passagem de repertório, quando a professora
recomendou que ela trabalhasse a afinação das notas da melodia, Juliana respondeu:
‘essa música é grave pra mim. A gente pegou justamente para trabalhar os graves’.
Essas falas, no contexto no qual foram ditas, nos encaminham à idéia de que
Juliana se sentia insegura, e que as críticas, mesmo sendo colocadas de maneira suave
pela professora Márcia, como de fato acontecia, tinham ligação com o receio em se expor
e não ser aceita com as condições vocais que ela trazia.
114
Outra situação que ocasionava insegurança em Juliana era a forma como se
configurava, no momento da pesquisa, a sua relação com a pianista correpetidora. De
acordo com Juliana, além de haver certo conflito entre o que a professora Márcia e a
pianista solicitavam, a maneira como a pianista abordava os aspectos a serem
melhorados lhe causava inibição para cantar:
[...] quando eu vou passar com a pianista, ela: ‘não, esse ritmo está
errado, essa nota está errada’. E quando eu vou passar com a profa.
Márcia, ela quer que eu me desprenda disso e cante mais solto, mais
natural, fora do ritmo. Quero dizer, então é uma coisa que fica em
choque, que eu vou passar com ela e ela me pede de um jeito, e eu vou
passar com a profa. Márcia, ela me pede de outro. Eu fico em choque
[...] eu fico tão tensa, tão bloqueada, que na hora de cantar eu não sinto
mais prazer de cantar. Eu não estou sentindo prazer na hora de ir lá
passar com ela [...] ela fala ‘está feio, você não conseguiu, de novo!
Eu fico me sentindo incompetente [...] Eu admiro ela. Eu gosto de ver
ela tocar, eu acho ela ótima. Eu acho ela maravilhosa, então isso pesa!
[...] eu sou fã dela. Então é difícil alguém que você é falar ‘está
errado, está feio’ (Juliana).
A fala de Juliana nos indica que ela colocava em conflito as orientações que
recebia, possivelmente por causa da forma como acontecia a relação entre ela e a
pianista. Também nos mostra que o fato de admirar consideravelmente tal pianista
enquanto profissional, agravava o seu sentimento de decepção por não conseguir
corresponder musicalmente às expectativas desta.
No momento da pesquisa, presenciamos uma situação na qual ela fez referência
a este conflito. Pouco antes de iniciar uma das aulas, Juliana comentou com suas
colegas de sala: ‘A professora Márcia pede pra eu cantar mais livre; a pianista pede pra
eu fazer mais certinho. Eu não sei o que eu faço’. Em resposta, Viviane sugeriu que ela
priorizasse as orientações da professora Márcia, ‘já que ela era a professora de canto’.
Outro ponto relevante da fala de Juliana é a tensão e a falta de prazer em cantar
quando na presença da pianista, resultado, segundo ela, da forma como a pianista se
expressava ao falar sobre os aspectos que ela deveria corrigir. Isto nos indica certa
fragilidade na forma como estava estabelecida a relação entre elas.
É importante frisar que, durante a pesquisa, não presenciamos nenhum momento
no qual a pianista se dirigisse à Juliana da forma que ela nos relatou. Embora, segundo o
seu relato, o desconforto acontecia nos momentos de passagem de repertório quando ela
estava apenas com a pianista, ou seja, fora das aulas de canto. Questionada, durante a
nossa conversa, sobre tentar dialogar com a pianista, ou mesmo com a professora
115
Márcia a respeito desta situação, Juliana alegou que não se sentia à vontade para agir
assim.
No caso de Juliana, que, como já mencionado, necessitava de mais proximidade
com o professor, o fato de não se sentir à vontade para conversar com a professora
Márcia sobre o seu desconforto com a pianista nos indica que ela ainda não havia
estabelecido uma relação de confiança com a sua professora. Isto poderia estar
relacionado com a insegurança que se manifestava no contexto das aulas. Nesse
sentido, a insegurança se tornava um aspecto desfavorecer da sua aprendizagem.
O último aspecto que abordaremos, desta vez estava presente na relação aluno-
aluno no contexto de canto: a colaboração e o diálogo entre colegas. Viviane, como
mencionado anteriormente, enxergava possibilidades para aprender em um formato de
aulas em grupo. Para ela, conversar com seus colegas sobre os aspectos trabalhados
em sala de aula era também uma oportunidade de aprendizagem. A fala de Viviane,
quando comenta um diálogo ocorrido entre ela e Sandra, sua colega de sala, nos indica
esta mesma direção:
Outro dia, a Sandra... Eu até comentei uma coisa: ‘olha, realmente você
falou roUpa’. Ela estava articulando demais determinadas palavras e
estava muito formal. E depois ela veio me perguntar ‘Você tem mais
alguma outra opinião? Isso aqui, que que ce acha?’ [...] eu falei:
‘inclusive, ó, se você tiver alguma coisa pra falar pra mim, você me fala’.
Isso aí é interessante (Viviane).
O discurso de Viviane nos mostra que ela enxergava a colaboração, a troca entre
colegas como outra vantagem presente no contexto de aulas em grupo, vantagem esta
que poderia favorecer a sua aprendizagem em canto e a da pessoa que se dispusesse a
colaborar com ela, no caso, sua colega de sala, Sandra.
Nesse sentido, Tacca (2006) argumenta que:
O compartilhamento do pensar implicando o alcance de novos
entrelaçamentos e conclusões do objeto do conhecimento, tanto por
parte do professor, como do aluno, exige disponibilidade constante de
um e de outro (p. 48).
Do mesmo modo que na relação professor-aluno, contexto no qual a autora
argumenta, na relação aluno-aluno o diálogo, a colaboração, o compartilhar sobre aquilo
que pensam em relação ao objeto do conhecimento, podem contribuir para a
aprendizagem, assim como no caso de Viviane e Sandra, que eram colegas de sala nas
aulas da professora Márcia.
116
Analisar as formas como acontecem as relações sociais no contexto de canto nos
auxiliou a compreender melhor como professor e aluno se posicionam mediante as
situações que ocorrem no ambiente da sala de aula e nos momentos de estudo, e de que
forma isso pode contribuir para o processo ensino-aprendizagem de canto.
A respeito de como se configuram as relações, a comunicação dialógica entre
professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso participa da aprendizagem
do aluno, percebemos a força e o valor de:
– A busca por uma relação aproximativa, a atenção e os cuidados do professor de
canto para com os alunos, aspectos presentes em uma relação permeada por diálogo,
por negociações dentro do contexto das aulas, contribuem para a aprendizagem em
canto;
– O aluno que conduz o seu próprio desenvolvimento favorece a sua
aprendizagem em canto;
– A disposição entre professor e aluno em estabelecer uma relação de confiança
mútua, aberta para o diálogo, com dedicação de ambos os lados favorece a adaptação
às mudanças no contexto de canto;
– A insegurança do aluno, presente em um contexto no qual não foi estabelecida
uma relação de confiança entre professor e aluno, prejudica a aprendizagem em canto;
– Assim como na relação professor-aluno, uma relação aluno-aluno, permeada
pela colaboração e o diálogo, contribui para a aprendizagem em canto.
Findadas as discussões sobre como se configuram as relações, a comunicação
dialógica entre professor e aluno no contexto de canto, e de que forma isso participa da
aprendizagem do aluno, nos encaminhamos para o último capítulo, reservado às
conclusões do trabalho.
117
6. CONCLUSÕES
Ao investigar a forma como aparece a integração entre os conteúdos técnicos e
musicais, com as emoções e as vivências presentes no processo ensino-aprendizagem
de canto, bem como as implicações disso nos avanços dos alunos, pudemos perceber a
força que os aspectos técnicos e musicais exercem na definição das ações dos
professores de canto.
Os resultados desta pesquisa revelam que em um processo seletivo, a decisão
sobre quem deve preencher a vaga está pautada nas condições que o indivíduo
apresenta a priori, como ‘voz privilegiada’, ‘afinação’, ‘musicalidade’, mostrando-nos que
os indivíduos que não possuam as mesmas condições são apreendidos mais por suas
limitações do que por suas possibilidades.
Tourinho e Oliveira (2003) nos auxiliam quando argumentam que “para ser
admitido em um curso voltado para performance, o aluno é submetido inicialmente a
testes diagnósticos específicos, que julgam o candidato apto ou não para ingressar no
curso que se propõe” (p. 19). As autoras também explicam que a limitação de vagas, em
algumas escolas, além da aptidão, obriga a uma “seleção por classificação, na qual serão
admitidos somente os primeiros nomes da lista com requisitos exigidos por determinada
instituição de ensino” (p. 19).
Esse era o caso de Verônica, uma das alunas participantes da pesquisa, que
relatou tentar o ingresso via testes por duas vezes. Entretanto, não conseguiu a vaga
porque, segundo ela, “eles só dão a vaga pra quem realmente tira de nove a dez e eu
não tirei, não consegui. [...] Eu fiquei com sete e pouco, outra vez tirei oito e meio”
(Verônica).
Assim como no caso de Verônica, outros alunos com boas possibilidades de
desenvolvimento acabam ficando de fora em seleções como estas. Partindo-se do
princípio que ser bem-sucedido como cantor depende, em grande parte, da dedicação do
próprio sujeito, alunos como Verônica teriam possibilidades de, ao terem chance de
ingressar em uma escola como a pesquisada, atingir um nível semelhante, ou mesmo até
superar o nível de performance em relação aos que apresentam melhores condições a
priori.
Outro ponto relevante, diz respeito à avaliação. Os resultados da pesquisa
mostram que as formas de avaliação utilizadas no contexto de aulas de canto são
fortemente apoiadas no pré-estabelecimento de critérios técnicos e musicais
padronizados, e que o desenvolvimento do aluno é apreendido pelo cumprimento desses
118
critérios, muito embora as professoras participantes também demonstrassem
preocupação e cuidado em avaliar o sujeito no processo de seu desenvolvimento, não
utilizando, assim, apenas a execução do aluno no momento da prova com banca
examinadora como parâmetro avaliativo na atribuição de sua menção final.
Nesse sentido, Tourinho e Oliveira (2003) nos ajudam quando argumentam que a
prática das escolas de música do Brasil, especializadas em nível técnico e de graduação,
em geral “está centrada mais nos produtos do que nos processos seguidos” (p. 19).
Desta forma, o “nível do aluno” é “medido” em relação aos objetivos propostos, com a
predominância de procedimentos e critérios que comumente rotulam os alunos em
diversas categorias.
Para as autoras, “esta concepção não favorece o uso de processo de avaliação
como forma de orientar e reorganizar o processo de ensino-aprendizagem” (p. 19).
Assim, apreender o desenvolvimento do aluno por critérios padronizados significa
desconsiderar a singularidade dele, o que, de fato, desfavorece a aprendizagem, já que
cada um tem a sua forma de aprender e de se desenvolver.
Os resultados da pesquisa também sugerem que o aluno de canto que conduz o
seu próprio desenvolvimento favorece a sua aprendizagem. Isto se relaciona diretamente
ao fato de se manter um hábito de estudos, o que permite ao aluno conhecer melhor as
sensações do canto, já que, nesta condição, ele estará pesquisando a sua própria voz.
De fato, se o aluno de canto mantém um hábito de estudos e busca pesquisar a
sua voz, tomando para si a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento, ele terá
grandes benefícios em sua aprendizagem, porquanto o ato de cantar envolve diversas
análises no âmbito de sensações internas do seu corpo, sensações estas que são
compreendidas e controladas por ele próprio.
Vigotski vem em nosso auxílio quando alega que “a passividade do aluno, bem
como o menosprezo pela sua experiência pessoal, são, do ponto de vista científico, o
mais crasso erro, assim como a falsa regra de que o professor é tudo, e o aluno, nada”
(p. 75). Para o autor, a educação precisa ser organizada de forma que “não se eduque ao
aluno, mas que este se eduque a si mesmo” (p. 75).
Nesse sentido, as professoras participantes eram bem adequadas, visto que
agiam em sintonia com seus alunos, buscando orientá-los e incentivá-los a compreender,
a refletir sobre as ações ligadas ao canto, o que favorecia que eles, de fato, pudessem se
tornar pesquisadores de sua voz, e conduzir, assim, o seu próprio desenvolvimento.
A pesquisa também revelou que, especialmente porque o ato de cantar está
diretamente relacionado às emoções, estabelecer relações, no contexto das aulas, com
119
base no diálogo, na confiança mútua, com abertura para negociações, favorece a
aprendizagem em canto.
As argumentações de Tacca (2006a) vêm ao nosso encontro quando ela explica
que “o diálogo é o cerne da relação na aprendizagem” (p. 50), onde há troca entre as
partes envolvidas e negociações dos diversos significados do objeto do conhecimento, o
que torna relevante o papel “ativo e altamente reflexivo, emocional e criativo do aluno e
do professor” (p. 50). Sempre serão necessárias negociações em sala de aula, onde a
confiança mútua serve como âncora para compartilhar a produção do conhecimento no
processo do desenvolvimento subjetivo (TACCA, 2006b).
Assim sendo, um ambiente de sala de aula se torna mais favorável à
aprendizagem quando há espaço para diálogo, negociações, confiança mútua,
colaboração entre os pares, benefícios que aparecem tanto no formato de aulas
individuais, quanto em grupo.
No caso das professoras participantes, o ambiente de sala de aula era bastante
propício nesse sentido, já que elas eram abertas para entrar em relação com o outro, e
procuravam estar atentas para perceber seus alunos, o que, de fato, trazia condições
para que o espaço de sala de aula se tornasse mais favorável à aprendizagem de canto.
Por fim, os resultados da pesquisa nos encaminham à conclusão de que, a
despeito de os aspectos técnicos e musicais exercerem uma força considerável na
definição das ações pedagógicas dos professores, nas relações sociais que compõem o
contexto ensino-aprendizagem de canto também há espaço para o diálogo, para
emoções e vivências, para a aprendizagem reflexiva, para negociações, para o
compartilhamento de idéias e experiências, bem como para a colaboração entre os
sujeitos que compõem o ambiente de sala de aula.
Esta conclusão se deu a partir das observações que fizemos no espaço de aulas
das professoras pesquisadas, quando percebemos que, de alguma forma, elas já se
mostravam sensíveis aos aspectos que vão além de questões técnicas e musicais
presentes no contexto pesquisado. Exemplo disso é a disposição de ambas para
desenvolver um trabalho de base com seus alunos, o que demanda paciência e um olhar
para as possibilidades de desenvolvimento das “potencialidades, estejam elas no nível
que estiverem” (profa. Márcia).
Segundo as próprias professoras, ainda é comum se encontrar professores de
música - no geral, não somente os de canto - que preferem trabalhar com alunos que já
estejam bem encaminhados técnica e musicalmente, e que não demandam um trabalho
de base. Assim sendo, pensamos que professores como estes necessitam refletir sobre
120
as suas práticas, no sentido de considerar o aluno enquanto sujeito singular, que traz
para o ambiente de sala as suas vivências, as suas emoções, e os seus anseios em
relação à própria música, na busca de proporcionar equilíbrio entre estes e os aspectos
técnicos e musicais presentes no contexto de sala de aula.
Podemos dizer, finalmente, que a pesquisa aqui desenvolvida nos mostrou que,
além da técnica e do ‘dom’, a voz com a emoção compõem um Coral que deve soar
afinado!
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Elaborar esta pesquisa foi de grande importância para mim. O contato com outros
professores e seus alunos na condição de pesquisadora foi imprescindível para repensar
a minha prática enquanto professora de canto e compreender o imenso valor de se
estabelecer relações sociais abertas para o diálogo, para a reflexão, e especialmente
para considerar e respeitar os sujeitos com as suas emoções e vivências, presentes no
contexto de aulas de canto.
Minha intenção não foi a de diminuir o valor e o peso que assumem as questões
técnicas e musicais, que, ao meu modo de ver, são fundamentais para a aprendizagem
em canto, mas, a de assumir a relevância de se considerar o sujeito que aprende em
suas particularidades, abrindo espaço para compreender as formas como ele pensa,
como ele sente, e aquilo que ele traz como bagagem para dentro do contexto das aulas
de canto, na intenção de que ocorra favorecimento na aprendizagem.
A aprendizagem no contexto de aulas de canto é um campo bastante amplo e que
necessita de novas pesquisas. Neste trabalho, não foi possível, por exemplo, reunir
professores e alunos para discutir, em conversações formais ou informais, sobre o tema
abordado na pesquisa. Também vejo como possibilidade para outros pesquisadores
buscar informações em diferentes contextos escolares, ou mesmo em espaços informais
de aprendizagem em canto. Ainda penso ser uma extensão deste trabalho o investigar
contextos de aulas dos variados instrumentos musicais existentes.
Assim, com esta pesquisa, espero contribuir para alertar professores de canto da
necessidade de haver mais espaço para o diálogo, para negociações, para as emoções e
vivências, para a singularidade do aluno, especialmente nos momentos de decisão de
suas ações pedagógicas, na busca de proporcionar ao sujeito que aprende melhores
condições para o seu desenvolvimento.
122
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MARTÍNEZ, Albertina (Orgs.). O outro no desenvolvimento humano. São Paulo: Pioneira
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ZANDER, Oscar. Regência Coral. 5ª Edição. Porto Alegre: Movimento, 2003.
125
ANEXO 1 – Questionário inicial da pesquisa (Alunos)
DADOS GERAIS dos ALUNOS PARTICIPANTES
Nome: ____________________________________Idade:______ anos
Grau de instrução:
( ) Primeiro grau incompleto ( ) Primeiro grau completo
( ) Segundo grau incompleto ( ) Segundo grau completo
( ) Terceiro grau incompleto ( ) Terceiro grau completo
( ) Pós-graduação
Área de atuação profissional: __________________________________
________________________________________________________
Nível atual no curso de música desta escola: _______________________
Há quanto tempo estuda música? _______________________________
Há quanto tempo estuda canto?_________________________________
Há quanto tempo estuda com o (a) atual (a) professor (a) de canto? ______
________________________________________________________
Por que optou pelo curso de canto?
________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
Data: ___/___/______.
Obrigada!
126
ANEXO 2 - Questionário inicial da pesquisa (Professores)
DADOS GERAIS dos PROFESSORES PARTICIPANTES
Nome: ____________________________________Idade:______ anos
Grau de instrução: _________________________________________
Área (s) de atuação profissional:________________________________
________________________________________________________
Há quanto tempo trabalha nesta escola? __________________________
Há quanto tempo atua como professor (a) de canto? _________________
________________________________________________________
Por que optou por lecionar canto?
________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
Data: ___/___/______.
Obrigada!
127
ANEXO 3 – Guia para conversa com alunos participantes
GUIA PARA CONVERSA COM ALUNOS PARTICIPANTES
1) Quais são as suas impressões sobre a escola?
Estruturas: espaço físico, organização pedagógica,
professores em geral, outros núcleos que você possa
conhecer (fora o de canto);
E sobre o curso de canto no qual você está inserido?
2) Usar como gancho a resposta do questionário (“Por que optou pelo curso
de canto?”) para explorar mais sobre as
razões
e os
sentimentos
que a
conduziram ao estudo do Canto.
3) Fazer um histórico do seu percurso no estudo de canto.
Na e fora da escola (se houver)
Professores anteriores/professor atual
Momentos marcantes (bons e/ou ruins)
4) Em sua opinião, que características um professor de canto precisa ter?
Como ele deve proceder em diferentes situações, nos
diferentes níveis que o aluno apresentar?
5) Que aspectos você considera importantes para a sua aprendizagem em
canto?
6) Para você, atualmente, o que significa fazer aula de canto?
O que te motiva e o que te desanima?
7) Para você, atualmente, o que significa “cantar”?
É diferente de antes de começar a fazer aulas de canto?
(
Conceito
;
razões e/ou sentimentos
).
128
ANEXO 4 – Guia para conversa com professores participantes
GUIA PARA CONVERSA COM PROFESSORES PARTICIPANTES
1) Quais são as suas impressões sobre a escola?
Estruturas: espaço físico, organização pedagógica, sistema
de avaliação, programas, audições, ...
E sobre o curso de canto?
2) Usar como gancho a resposta do questionário (“Por que optou por
lecionar canto?”) para explorar mais sobre as
razões
e os
sentimentos
que a conduziram ao estudo do Canto.
3) Fazer um histórico do seu percurso no ensino de canto.
Na e fora da escola (se houver)
Momentos marcantes (bons e/ou ruins)
4) Você poderia falar um pouco a respeito
Do aluno ‘X’?
Do aluno ‘Y’?
Do aluno ‘Z’?
5) Em sua opinião, que características um aluno de canto precisa ter?
6) Que aspectos você considera importantes para ensinar canto? Por quê?
7) Para você, atualmente, o que significa ensinar canto?
O que te motiva e o que te desanima?
129
ANEXO 5 – Organograma da Escola
ORGANOGRAMA
Legendas:
SEE: Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
SUBEP: Subsecretaria de Educação Pública do Distrito Federal
APAM: Associação de Pais, Alunos e Mestres
ESE: Encarregadoria de Secretaria Escolar
ESG: Encarregadoria de Serviços Gerais
EAD: Encarregadoria Administrativa
CET: Coordenação de Educação Profissional de Nível Técnico
130
CEB: Coordenação de Educação Profissional de Nível Básico
UPP: Unidade de Projetos Pedagógicos
CPA: Coordenação de Programação Artística
NIEE: Núcleo de Integração Escola Empresa
OE: Orientação Educacional
NIA: Núcleo de Informática Aplicada
SAT: Serviços de Apoio Técnico
SReg: Supervisão de Regência
SMC: Supervisão de Música de Câmara
SIV: Supervisão Instrumental e Vocal
STM: Supervisão de Tecnologia em Música
SCA: Supervisão de Composição e Arranjo
Núcleo de Cordas Friccionadas: Violino, Viola, Violoncelo e
Contrabaixo
Núcleo de Cordas Dedilhadas: Violão e Harpa
Núcleo de Sopros: Flauta, Clarineta, Fagote, Oboé, Saxofone,
Trompete, Trompa, Trombone, Tuba
Núcleo de Música Popular: Piano, Saxofone, Bateria, Violão, Guitarra,
Baixo Elétrico, Canto, Bandolim, Violão de 7 Cordas, Viola Caipira,
Gaita e Cavaquinho.
Núcleo de Música Antiga: Cravo, Viola da Gamba, Flauta Doce,
Flauta Traverso Barroca, Alaúde.
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