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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ESTER FRIDMAN
A LINGUAGEM SIMBÓLICA
NO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE
SÃO PAULO
2009
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ESTER FRIDMAN
A LINGUAGEM SIMBÓLICA
NO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Filosofia, sob a orientação da Profª Drª
Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
SÃO PAULO
2009
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Fridman, Ester
A linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche / Ester Fridman. - São Paulo,
2009.
165 f.: 30 cm
Dissertação (mestrado em Filosofia) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,
2009.
Orientador: Profª Drª Yolanda Gloria Gamboa Muñoz
1. Linguagem 2. Símbolo 3. Zaratustra 4. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-
1900. I. Título
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
AGRADECIMENTOS
Meus mais sinceros agradecimentos à Profª Drª Yolanda Gloria Gamboa Muñoz,
por ter me introduzido e conduzido nos caminhos nietzscheanos. Sou grata também ao
grupo de estudos por ela coordenado: “Grupo Nietzsche e o pensamento atual”, pelas
calorosas discussões vespertinas. Devo minha gratidão a todos os professores de Filosofia
da graduação e pós-graduação. Cada um a sua maneira plantou no meu coração a semente
dessa grande árvore que é a Filosofia.
Agradeço imensamente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES – pelas bolsas concedidas para a consolidação deste trabalho.
Ao André e às “nossas” Árvores.
RESUMO
A partir das considerações de Nietzsche com relação à significação da linguagem
para o desenvolvimento da civilização, na qual o homem se senhor do mundo por
nomeá-lo, fizemos um estudo sobre a presença de uma linguagem não nomeante de
verdades nos textos de Nietzsche. Tendo em vista que Nietzsche denomina Cristo de
“grande simbolista”, investigamos a presença de uma linguagem simbólica na filosofia
nietzscheana, em especial no livro Assim Falou Zaratustra. A linguagem simbólica, além
de ser uma linguagem não nomeante de verdades, tem uma orientação historicamente
oposta à tendência alegórica do cristianismo, assim como também do racionalismo
socrático. Inicialmente, por não tratar-se de uma linguagem comumente aceita na filosofia
tradicional, fizemos um mapeamento da teoria do símbolo. Com posse desse novo
instrumental, pudemos percorrer algumas sendas do Zaratustra sob a ótica simbólica. Em
um primeiro momento fizemos alguns apontamentos sobre determinados temas abordados
por Nietzsche que se coadunam com a presença de uma linguagem simbólica em seus
escritos: a sua própria concepção de filosofia; quem é Zaratustra; a questão dos opostos; a
problemática da crença. Optamos, então, pela escolha e análise perspectivista do símbolo
da árvore, que guardaria relações com temáticas chaves na filosofia nietzscheana, como
Dionísio, vontade de poder e eterno retorno.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; símbolo; árvore; Nietzsche.
ABSTRACT
Given Nietzsche’s thought about the meaning of language for the development of
civilization - since man sees himself as the Lord of the World due to his capability to name
it, we endeavoured to study the presence of a truth non-nominating language in Nietzsche’s
texts. Since that Nietzsche calls Christ the “Great Symbolist”, we investigated the presence
of a symbolic language in Nietzsche's philosophy, mainly in Thus Spoke Zarathustra.
Symbolic language, besides being a truth non-nominating language, has a historical trend
opposite to Christian allegoric trend, as well as to Socratic rationalism. Initially we have
made a survey of the symbol theory, since that language is not usually accepted by
traditional philosophy. Having that new tool in hands, we followed some footpaths in
Zarathustra under a symbolic point of view. To begin with, we have made some remarks
on subjects thought by Nietzsche that could harmonize with a symbolic language in his
texts, namely: his own conception of philosophy; who is Zarathustra; the question of the
opposites; the problem of belief. In this way, we made the choice by the perspectivist
analysis of the symbol of the tree, which shows some relationship to key subjects in
nietzschean philosophy, like Dionysus, will to power and eternal recurrence.
Keywords: Language, symbol, tree, Nietzsche.
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...
......................................................................................................... 3
I. MAPEAMENTO DE SIMBOLOGIA .......................................................................13
1.1. FINAL DO SÉCULO XVIII E A NOVA CONCEPÇÃO DE SÍMBOLO.............14
1.2. MIRCEA ELIADE E O PENSAMENTO SIMBÓLICO .......................................19
1.3. CONSIDERAÇÕES JUNGUIANAS SOBRE SÍMBOLO ................................... 20
1.4. A INVERSÃO SOCRÁTICA E A EXPULSÃO DO SÍMBOLO...........................27
II. ESCRITOS NIETZSCHEANOS ...............................................................................31
2.1. CONCEPÇÃO NIETZSCHEANA DE FILOSOFIA...............................................32
2.2. QUEM É ZARATUSTRA? ........................................................................................48
2.3. NOTAS A RESPEITO DA QUESTÃO DOS OPOSTOS....................................... 64
2.4. APONTAMENTOS SOBRE A CRENÇA ............................................................ 71
2.5. FALOU ASSIM ZARATUSTRA SIMBOLICAMENTE?.........................................77
2.6. MEIO-DIA: INCIPIT NIETZSCHE......................................................................... 83
III. O SÍMBOLO COMO PERSPECTIVA DE LEITURA DO ZARATUSTRA
UMA LEITURA DO SÍMBOLO DA ÁRVORE..................................................... 97
3.1. O SÍMBOLO DA ÁRVORE .................................................................................. 102
3.2. A ÁRVORE COMO VONTADE ELEVADA E FORTE...................................... 110
3.3. A ÁRVORE COMO VIRTUDE DA DOAÇÃO.................................................... 116
3.4. A ÁRVORE E A SERPENTE................................................................................ 119
3.5. A ÁRVORE, O HOMEM, A TOTALIDADE.........................................................124
3.6. A ABUNDÂNCIA DA FIGUEIRA E A VERSATILIDADE DO MARTELO......127
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................131
APÊNDICE ....................................................................................................................141
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................159
3
INTRODUÇÃO
O presente trabalho investiga a presença de uma linguagem simbólica no livro
intitulado Assim falou Zaratustra, doravante denominado Zaratustra. Para tanto, partimos
de dois pressupostos: Nietzsche considerado psicólogo e a simbologia como linguagem do
inconsciente
1
. O primeiro pressuposto, de Nietzsche considerado psicólogo, apóia-se na
presença dessa auto-nomeação por parte do filósofo, como podemos ver, por exemplo, nas
seguintes afirmações:
Que em meus escritos fala um psicólogo sem igual é talvez a primeira constatação a
que chega um bom leitor.
2
Para dar uma idéia de mim como psicólogo, tomo um curioso fragmento de
psicologia que aparece em Além do bem e do mal...
3
Quem, entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e o o seu oposto, “superior
embusteiro”, “idealista”? Antes de mim não havia absolutamente psicologia. Ser
nisto o Primeiro pode ser uma maldição, é em todo caso um destino: por ser
também o Primeiro a desprezar... O nojo do homem é o meu perigo...
4
Ao escrever sobre seu livro A genealogia da moral, diz Nietzsche que as três
dissertações que o compõem são “Três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a
1
Apesar de inconsciente em Nietzsche ser diferente de inconsciente em Freud, que por sua vez difere de
inconsciente em Jung, essas diferenciações não comprometem os caminhos trilhados pela presente
investigação.
2
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que escrevo tão bons livros”, aforismo 5, trad. de Paulo César de Souza,
p. 58.
3
Ibid., aforismo 6, p. 59, 60. O fragmento de psicologia que aparece em Para além de bem e mal, a que
Nietzsche se refere, é o aforismo 295, que pode ser lido no apêndice do presente trabalho, p. 148, 149.
4
Ibid., “Por que sou um destino”, aforismo 6, p. 114.
4
uma tresvaloração de todos os valores.”
5
Entre outros textos nos quais Nietzsche se auto-
denomina psicólogo, temos o prefácio do Crepúsculo dos Ídolos: “...Há que se colocar aqui
ao menos uma vez questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta aquele célebre
som oco, que fala de vísceras intumescidas que encanto para aquele que possui orelhas
por detrás das orelhas! para mim. Velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer
falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio...
6
Assim, Nietzsche se coloca também como psicólogo, mas há que ressaltar o modo
como ele compreende a psicologia: “como morfologia e teoria da evolução da vontade de
poder”.
7
Não cabe neste trabalho um estudo da vontade de poder nietzscheana, mas esta
será abordada pontualmente. Alem disso, para ele, a psicologia é “o caminho para os
problemas fundamentais”, considerando-a a “rainha das ciências, para cujo serviço e
preparação existem as demais ciências.”
8
Também Zaratustra é considerado psicólogo; segundo Nietzsche, “o primeiro
psicólogo dos bons...”
9
O segundo pressuposto, da simbologia como linguagem do inconsciente, é oriundo
da habitualmente denominada “psicologia”, tendo como pano de fundo Freud e a
investigação da linguagem onírica em seus pacientes, e, principalmente, a continuidade e
aprofundamento desse estudo conduzidos por Carl Gustav Jung.
10
A linguagem dos sonhos
5
Ibid., “Genealogia da Moral ”, p. 98.
6
IDEM, Crepúsculo dos Ídolos, prefácio, trad. Marco Antonio Casa Nova, p. 8.
7
IDEM, Além do Bem e do Mal, aforismo 23, trad. de Paulo C. de Souza, p. 27. Ver citação selecionada no
apêndice, p. 147. O título deste livro em alemão é Jenseits von Gut und Böse. Algumas versões o traduzem
como Para Além de Bem e Mal. Toda vez que utilizarmos a tradução de Paulo C. de Souza seremos fiéis a sua
versão, a saber, Além do bem e do mal. Vale o mesmo para todos os demais títulos onde encontramos
diferenças nas traduções.
8
Ibid., p. 28.
9
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 5, trad. de Paulo C. de Souza, p. 113. Ver citação
selecionada no apêndice, p. 155, 156.
10
Na introdução do livro organizado por Jung, O Homem e seus Símbolos, John Freeman, colaborador da
confecção do livro, escreveu: “O pensamento de Jung coloriu o mundo da psicologia moderna muito mais
intensamente do que percebem aqueles que possuem apenas conhecimentos superficiais da matéria. (...) Mas a
sua mais notável contribuição ao conhecimento psicológico é o conceito de inconsciente não maneira de
Freud) como uma espécie de ‘quarto de despejos’ dos desejos reprimidos, mas como um mundo que é parte
tão vital e real da vida de um indivíduo quanto o é o mundo consciente e ‘meditador’ do ego. E infinitamente
mais amplo e mais rico. A linguagem e as ‘pessoas’ do inconsciente são os símbolos, e os meios de
comunicação com este mundo são os sonhos.” (C.G. JUNG, O Homem e seus Símbolos, p. 12). Jung foi não
apenas leitor de Nietzsche, como também estudioso de seus escritos. Além das inúmeras citações do filósofo
em sua obra, proferiu seminários, de 1934 a 1939, sobre o Zaratustra de Nietzsche, que, posteriormente foi
editado por James L. Jarrett, professor de filosofia da Universidade de Berkeley, Califórnia, sob o título de
Nietzsche’s Zarathustra: Notes of the Seminar Given in 1934-1939 by C.G.Jung.
5
não é a mesma linguagem que temos no estado de vigília. Partindo deste ponto de vista, a
psicologia trabalha com a hipótese de que a linguagem onírica seja uma linguagem do
inconsciente. Este parece lidar mais com mbolos do que com conceitos, e depois das
investigações de Freud e Jung, muitos psicólogos passaram a dar atenção aos símbolos
contidos nos sonhos de seus pacientes.
11
Osmbolos remeteriam à totalidade do homem, o
self, para usar o termo junguiano, enquanto que a linguagem conceitual remeteria apenas à
parte racional do homem, à pequena razão, para usar o termo nietzscheano.
12
Se Zaratustra resistir a uma interpretação simbólica, esse livro não será passível
de múltiplas interpretações, como também será necessário trabalhar com o universo
simbólico para melhor compreendê-lo.
A hipótese desse teatro provisório é uma linguagem simbólica no Zaratustra.
13
Os
recursos de execução serão, além dos recursos filosóficos tradicionais: leitura rigorosa do
livro em questão, assim como dos demais textos de Nietzsche, e o estudo de trabalhos
editados por especialistas, também faremos um percurso pela leitura simbólica, com o
suporte dos estudos acadêmicos que foram feitos a respeito do simbolismo até então. A
complexidade desse intento se pelo fato de o rigor acadêmico não ser suficiente para tal
investigação. Faz-se necessário também uma sensibilidade para a dimensão simbólica, a
fim de não se cair num falso literalismo. Isso porque o rigor acadêmico trabalha com o
predomínio da razão, enquanto que o universo simbólico alcança outros níveis de
compreensão além dela. Dessa forma, a presença de uma linguagem simbólica no
Zaratustra está diretamente relacionada à crítica nietzscheana à exclusividade da razão
socrática.
O primeiro problema que enfrentamos ao relacionar simbologia e filosofia é o fato de
a filosofia habitualmente trabalhar com o pensamento consciente, que pensa não por
símbolos, mas por conceitos. Entretanto, o que nos autoriza a fazer esta relação é
justamente a abordagem diferenciada que Nietzsche oferece no que diz respeito ao
11
Sendo o objeto desse trabalho a investigação da linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche, não
aqui a preocupação em explicitar as diferenças entre psicanálise freudiana e psicologia analítica junguiana. É
evidente que essas diferenças são de extrema importância no campo da psicologia. No entanto, no que se
refere ao presente trabalho, o que nos interessa é a analogia que se pode fazer entre linguagem onírica e
linguagem simbólica, sem tomar partido de determinadas interpretações em detrimento de outras.
12
Sobre a “pequena razão”, ver p. 35 e 62, 63.
13
Hipótese aqui no sentido alexandrino, como utilizado por Foucault em sua aula inaugural no Collège de
France, a saber, o tema da peça de teatro que será encenada a seguir. (M. FOUCAULT, A ordem do Discurso,
trad. de Laura F.de A. Sampaio, p. 8).
6
consciente. Para Nietzsche, a maior parte do pensamento consciente é guiada pelo instinto,
sendo que consciente e instintivo estão ligados:
...“estar consciente” não se opõe de algum modo decisivo ao que é instintivo em
sua maior parte, o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e
colocado em certas trilhas pelos seus instintos (seine Instinkte). Por trás de toda
lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando
mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada
espécie de vida.
14
Ainda no que concerne ao consciente e ao instintivo, no primeiro livro de A Gaia
Ciência Nietzsche diz que:
A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por
conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte. Do estado
consciente vêm inúmeros erros que fazem um animal, um ser humano, sucumbir
antes do que seria necessário, “contrariando o destino”, como diz Homero. Não
fosse tão mais forte o conservador vínculo dos instintos, não servisse no conjunto
como regulador, a humanidade pereceria por seus juízos equivocados e seu fantasiar
de olhos abertos, por sua credulidade e improfundidade, em suma, por sua
consciência; ou melhor: sem aquele, há muito ele já teria desaparecido!
15
E no quarto livro da mesma A Gaia Ciência, Nietzsche constata o seguinte:
14
F. NIETZSCHE, Além do bem e do mal, cap.1, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 11. O termo
instinto, em Nietzsche, requer alguns esclarecimentos. Ora ele usa a palavra alemã Instinkt, ora Trieb”.
um texto bastante elucidativo a respeito, do qual fazemos aqui um pequeno recorte: “... o se estabelece na
filosofia de Nietzsche um emprego sistematicamente diferenciado dos termos Trieb (pulsão) e Instinkt
(instinto), (...) embora a problemática da pulsão sofra abordagens diferenciadas ao longo da trajetória
intelectual de Nietzsche, este considera pulsão e/ou instinto como Triebkräfte, e que, por conseguinte, tais
noções se vinculam intimamente com a teorização nietzscheana das forças. (...) Estas, por sua vez, são de
ordem do múltiplo, da pluralidade das forças em oposição (...). Porque as pulsões são forças, elas devem ser
compreendidas como quantidades de energia dinâmica que não remetem a nenhuma essência ou suporte
estável, identitário. (...)” (Oswaldo GIACÓIA JUNIOR, “O conceito de pulsão em Nietzsche”, in: As Pulsões,
p. 79-81).
15
IDEM, A Gaia Ciência, Livro I, aforismo 11, trad. de Paulo C. de Souza, p. 62.
7
Através dos mais longos tempos considerou-se o pensar consciente como o pensar
em geral: agora desponta para nós a verdade, de que a maior parte de nossa
atuação espiritual nos transcorre inconsciente, não sentida (...) O pensar consciente,
e em especial o do filósofo, é o menos forte e, por isso, é também relativamente o
mais brando e tranqüilo dos modos de pensar – e, assim, precisamente o filósofo é o
mais fácil de ser induzido em erro sobre a natureza do conhecer.
16
Se, como diz Nietzsche, “a maior parte de nossa atuação espiritual nos transcorre
inconsciente”, e se a linguagem do inconsciente for simbólica, que é o segundo pressuposto
do qual partimos, então, conhecer o universo simbólico poderia possibilitar uma
aproximação maior ao pensamento do autor. Segundo Nietzsche, de acordo com as citações
referidas, não um modo de pensar, e dentre os modos de pensar que existem, o
pensar consciente é o menos forte. O pensar inconsciente ligado aos instintos parece ter
mais força para ele. Pode ser que o pensar inconsciente tenha muitas formas de se
manifestar. Nossa investigação se preocupará em saber se o símbolo é uma delas.
Não é a proposta do presente trabalho definir o que seja linguagem conceitual e
linguagem simbólica, e sim acenar algumas diferenciações entre ambas. Mesmo porque,
“definição” remete ao platonismo, o que seria uma estrutura não nietzscheana. A rigor,
considera-se a linguagem conceitual como padrão na filosofia. Questionamos, junto com
Nietzsche, a exclusividade desta linguagem. A racionalidade tem sido a nossa casa, onde
não permitimos a entrada de estranhos. Por isso, a abordagem simbólica não tem sido bem
vinda, ela incomoda, ela é imoral.
17
Habituados que estamos ao pensamento racional, não
consideramos a imaginação, a fantasia, o sonho, confiáveis. Confiável seria apenas o que
pode ser deduzido, demonstrado, comprovado. Assim, sem entrar em definições, para
contrapor a linguagem simbólica à linguagem conceitual, faz-se necessário alguns
apontamentos com relação à posição nietzscheana no que se refere à formação dos
conceitos. Em um de seus primeiros escritos, diz Nietzsche que “Toda palavra torna-se logo
conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva,
completamente individualizada e única, à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo
16
Ibid., Livro IV, aforismo 333, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. 1,
p. 162. (Col. Os pensadores).
17
Veremos, no quarto item do primeiro capítulo, que, para Nietzsche, a razão é uma questão moral, que veio
como remédio para frear os instintos em anarquia.
8
tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados
rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce
por igualação do não-igual.”
18
Assim, o conceito sempre desconsideraria aquilo que é
individual. Dessa forma, uma vez que, como dissemos, considera-se a linguagem conceitual
como padrão na filosofia, a linguagem filosófica tradicional não remeteria ao que seja
individual, mas ao coletivo.
Sendo a linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche o objeto de investigação do
presente trabalho, dedicaremos um capítulo ao mapeamento de algumas concepções de
símbolo. A concepção kantiana, por exemplo, será brevemente abordada, uma vez que Kant
traz um novo uso para o termo. Com o intuito de não nos arriscarmos no território kantiano,
recorremos aos comentários de Rubens Rodrigues Torres Filho. Mapearemos ainda as
concepções de Goethe, Schelling, Carl G. Jung e Mircea Eliade, bem como alguns
apontamentos dos estudos feitos por Junito de Souza Brandão, Joseph Campbell e Heinrich
Zimmer.
Após mapear a teoria do símbolo, apresentaremos, no segundo capítulo, alguns
aspectos intrínsecos dos escritos de Nietzsche que se relacionam ao tema deste trabalho.
Primeiramente, faremos uma breve exposição da concepção nietzscheana de filosofia, uma
vez que é a partir desta concepção particular que nos permitimos encenar mbolos; em
seguida, levando em consideração que o propósito de investigar a linguagem de Zaratustra
tem como objetivo entender o que este nos tem a dizer, investigaremos quem é este que nos
diz: quem é o Zaratustra de Nietzsche? O próprio Nietzsche ficou admirado por não lhe
terem perguntado o que significa o nome Zaratustra “em sua boca”, ou seja, em um outro
dizer: “Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntado, o que precisamente em
minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra...”
19
Na sequência,
apresentaremos algumas notas a respeito da questão dos opostos, uma vez que todo o
Zaratustra, a nosso ver, se compõe a partir de elementos de aparente oposição. Faremos
ainda uma pequena abordagem da problemática da crença. Em seguida, levantaremos
18
F. NIETZSCHE, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 34. Selecionamos um fragmento póstumo do mesmo período do
texto citado, no qual Nietzsche fala sobre conceito. Ver apêndice, p. 157, fragmento n. 19 [236].
19
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p.110.
9
algumas questões sobre as possibilidades que se abrem quando se faz uso de uma
linguagem simbólica. Evidentemente, a linguagem em Nietzsche é perpassada ainda por
outros aspectos importantes, como, por exemplo, a questão do gregarismo, ou ainda, a do
utilitarismo, que não serão tratados pormenorizadamente, uma vez que isso tornaria o
presente trabalho por demais extenso. Porém, algo que deve estar sempre em mente em
qualquer investigação da linguagem em Nietzsche é a questão de que, para ele, esta se
desenvolve junto com a consciência e com o viver em sociedade. Assim, consciência
remete à sociedade, comunidade, rebanho. Dessa forma, a linguagem, por ser gregária, não
traduz o que seja individual. Nesse sentido, só seria possível conhecer algo de um indivíduo
conhecendo sua linguagem inconsciente,
20
sem, porém, traduzi-la para a linguagem
consciente; pois, uma vez traduzida, perde-se o que havia de individual. Nas palavras de
Nietzsche:
...o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (...) vão de
mãos dadas (...) o tomar-consciência de nossas impressões dos sentidos em nós
mesmos, a força de poder fixá-las e como que colocá-las fora de nós, aumentaram
na mesma medida em que cresceu a urgência de transmiti-las a outros por signos.
(...) Somente como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si
mesmo – ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento é, como se vê:
que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do homem,
mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho; que também,
como se segue disso, somente em referência à utilidade de comunidade e rebanho
ela se desenvolveu e refinou (...)
21
Fecharemos o segundo capítulo com a seguinte questão: da mesma forma pela qual
no segundo item afirmamos que “para entender o que este (Zaratustra) nos tem a dizer, é
preciso saber quem é este que nos diz”, para entender o livro Assim Falou Zaratustra, seria
preciso saber quem é seu autor? Vislumbrando essa questão, falaremos um pouco sobre
quem é Nietzsche.
20
Inconsciente aqui no sentido de aquilo que não se tornou consciente, não se tornou comum. Apontamos, nas
notas 14, 15 e 16 alguns aspectos da abordagem diferenciada de consciente em Nietzsche. Sua concepção de
consciente pode ser vislumbrada também na citação a seguir e no desenrolar da presente investigação.
21
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, livro V, aforismo 354, trad. de R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 173. Ver citação selecionada no apêndice p. 144-146.
10
Por fim, no terceiro e último capítulo, o símbolo passa a ser uma perspectiva de
interpretação do Zaratustra. Para tanto, escolhemos algumas partes do livro, onde
privilegiamos o símbolo da árvore.
22
É importante ressaltar que nosso trabalho inscreve-se,
assim, como mais uma perspectiva interpretativa.
O presente trabalho consta ainda de um apêndice, no qual selecionamos alguns
aforismos de Nietzsche que consideramos importantes para elucidar nosso tema. A maioria
das citações do apêndice estão inseridas no corpo do texto de forma reduzida. Optamos por
essa solução para não sobrecarregar o texto de citações longas que acabam por quebrar a
fluência da leitura.
Com relação às traduções dos textos nietzscheanos, demos preferência às de Rubens
Rodrigues Torres Filho, publicadas na Coleção Os Pensadores, sob o título de Obras
Incompletas. Recorremos a outras versões, que serão indicadas em nota, para os textos que
não foram por ele traduzidos. Para esclarecer dúvidas, recorremos ao original em alemão.
Para a obra principal do presente trabalho, Assim falou Zaratustra, utilizamos a versão
espanhola de Andrés nchez Pascual, pela Alianza Editorial, com apoio do original em
alemão da Insel Verlag. A tradução do espanhol para o português nas citações é de nossa
autoria. Em passagens complexas do Zaratustra, utilizamos também como apoio os
fragmentos da obra traduzidos por Rubens Rodrigues Torres Filho.
Para diferenciar o Zaratustra de Nietzsche do Zaratustra histórico, o primeiro virá
sempre escrito em itálico.
Antes de encerrar esta introdução, gostaríamos de incluir a seguinte reflexão: por que
Nietzsche faria uso de uma linguagem simbólica, e não de conceitos, para escrever um
livro, ou, pelo menos, algumas partes de um livro? Talvez um dos motivos seja esse:
Os conceitos filosóficos individuais (...) crescem em relação e em parentesco um
com o outro; (...) não deixam de pertencer a um sistema (...) - tudo isto se confirma
também pelo fato de os mais diversos filósofos preencherem repetidamente um
certo esquema básico de filosofias possíveis. (...) embora se sintam independentes
22
Lembrando da importância da escolha e do deixar de lado, em Nietzsche: “Um homem bem logrado faz
bem a nossos sentidos (...) Ele faz instintivamente, de tudo aquilo que vê, ouve, vive, uma soma: ele é um
princípio seletivo, muito ele deixa de lado. (...) honra ao escolher, ao abandonar, ao confiar.” (Ecce Homo,
“Por que sou tão sábio”, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol.
Vol. II, p. 151. Ver citação selecionada no apêndice, p. 151, 152).
11
uns dos outros com sua vontade crítica ou sistemática, algo neles os conduz, alguma
coisa os impele numa ordem definida, um após o outro – precisamente aquela inata
e sistemática afinidade entre os conceitos. (...) O curioso ar de família de todo o
filosofar indiano, grego e alemão tem uma explicação simples. Onde parentesco
lingüístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática quero dizer,
graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais -, tudo
esteja predisposto para uma evolução e uma sequência similares dos sistemas
filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas
possibilidades outras de interpretação do mundo. (...) O encanto exercido por
determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condições
raciais e juízos de valor fisiológicos...
23
Kossovitch, em Signos e poderes em Nietzsche, faz o seguinte comentário sobre esse
aforismo:
As funções gramaticais definem de uma vez por todas as possibilidades de exercício
do pensamento, que não passa de uma combinatória de categorias gramaticais. (...)
A linguagem da filosofia está centrada na da comunicação. Como esta, ela está a
serviço da conservação. (...) As afinidades que a ligam à linguagem gregária podem
ser resumidas na sua utilidade para a espécie. Pensar é, neste plano, produzir
esquemas em vista da conservação. É a linguagem que assinala a cumplicidade da
filosofia e da conservação. Ela marca os limites dentro dos quais esta pode se
exercer, mas, além disso, ela amarra-a às pulsões gregárias.
24
A linguagem simbólica pode ter sido a forma que Nietzsche encontrou de escapar ao
aprisionamento da gramática, de superar a pressão da linguagem, sair do rculo percorrido
pelos filósofos e não ficar somente na intelectualidade – não ser apenas mais uma repetição.
Zaratustra não quer conservar ele veio para transformar, para inovar. E se, como diz
Kossovitch, “as funções gramaticais definem de uma vez por todas as possibilidades de
23
F. NIETZSCHE, Além do bem e do mal, cap. I, aforismo 20, trad. de Paulo C. de Souza, p. 24, 25. A
expressão aqui traduzida por “condições raciais”, no original está como: “Rasse-Bedingungen”, que, na
versão francesa lemos: “particularidades raciais”. (Edição Bilíngüe Albier/Flammarion, Paris, 1978, p. 56. A
tradução do francês para o português é de nossa autoria).
24
Leon KOSSOVITCH, Signos e Poderes em Nietzsche, p.80-82.
12
exercício do pensamento”, Nietzsche, através de Zaratustra, buscaria possibilidades outras
de pensamento, que não se deixam definir pelas funções gramaticais. O texto em
Zaratustra, sim, se desdobra obedecendo à gramática. Entretanto, a linguagem simbólica
aqui, apesar de ser transmitida através de palavras, que por sua vez estão inseridas nas
frases, e seguem as regras gramaticais, por não fazer parte do universo conceitual, talvez
esteja, de alguma forma, livre das armadilhas da gramática. É uma hipótese. Além disso, a
linguagem simbólica poderia ser uma forma de seleção de leitores: um livro para espíritos
não-gregários, uma vez que não foi escrito em uma linguagem gregária.
13
I. MAPEAMENTO DE SIMBOLOGIA
O termo “símbolo” exige alguns esclarecimentos, uma vez que, não raro, é utilizado
em diferentes circunstâncias e, muitas vezes, com diferentes significados. No presente
capítulo veremos que símbolo, tal como nos apropriamos para essa investigação, está mais
próximo de seu sentido original do que dos sentidos que foi adquirindo no decorrer do
tempo. Com a finalidade de deixar claro qual a concepção de mbolo que estamos aqui
trabalhando, nos deteremos em algumas citações de Carl G. Jung e de Mircea Eliade, que
nos ajudarão a compreender o universo simbólico. Gostaríamos de adiantar que símbolo
não é o mesmo que signo. Signo aqui terá o sentido de palavra, tal como Nietzsche emprega
no livro V de A Gaia Ciência: signos de comunicação, ou seja, palavras. Para ele, os signos
de comunicação, ou palavras, acompanham o pensamento consciente: “...o homem, como
toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna
consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte
pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de
comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência.”
25
25
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, livro V, aforismo 354, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, vol. I, p. 173.
14
1.1. FINAL DO SÉCULO XVIII E A NOVA CONCEPÇÃO DE SÍMBOLO
Talvez um dos motivos da falta de consenso com respeito ao termo símbolo seja o
fato de tratar-se de um termo cuja concepção passou por uma mudança radical no final do
século XVIII. As teorias do símbolo anteriores a esse período são, portanto, diferentes das
teorias que se estabeleceram no século XIX. Percorreremos alguns pensadores que
contribuíram para a nova concepção. Tzvetan Todorov, em seu livro Teorias do Símbolo,
diz que:
Até 1790, a palavra símbolo não possui absolutamente o sentido que adquirirá na
época romântica: ou é um simples sinônimo de uma rie de outros termos mais
usados (como alegoria, hieróglifo, cifra, emblema etc), ou designa sobretudo o
signo puramente arbitrário e abstrato (os símbolos matemáticos). Esse segundo
sentido é particularmente comum nos leibnizianos, como, por exemplo, Wolff. É
Kant quem, na Crítica da faculdade do juízo, inverte esse uso e traz a palavra
“símbolo” para bem perto do seu sentido moderno. Ao contrário de caracterizar a
razão abstrata, o símbolo é próprio da maneira intuitiva e sensível de apreender as
coisas.
26
A leitura de Rubens Rodrigues Torres Filho poderá nos ajudar a entender a
concepção kantiana de símbolo:
Tanto o simbolismo quanto o esquematismo o operações da faculdade de julgar
que expõem o conceito na intuição; ambos, intuitivos, subordinam-se ao conceito
genérico de hipotipose. E Kant explica a palavra “hipotipose” (em grego: esboço,
subfiguração) como sinônima de Darstellung (exposição, encenação), de exhibitio
e, mais explicitamente, como subjectio sub adspectum, isto é, sujeição à figura, à
forma ou, em suma, ao olhar. Trata-se, sempre, da Versinnlichung (sensibilização)
de um conteúdo conceitual.
A verdadeira diferença entre essas duas formas de Darstellung se revela, então,
quando se observa que, para os conceitos do entendimento, a imaginação oferece
esquemas que lhe são adequados e nos quais eles podem mostrar-se (Demonstratio)
26
Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 252.
15
diretamente (assim, a permanência do real no tempo é o “monograma” da
imaginação que exprime a categoria da substância, assegurando-lhe “referência a
objetos e, portanto, significação”), enquanto os conceitos da razão (as Idéias) não
podem ter na intuição nenhum correspondente adequado. Por isso, para expor estes
últimos, a faculdade de julgar tem de proceder de maneira indireta, analogicamente
(Analogie), elegendo uma intuição que não tem com o conceito nenhuma
semelhança de conteúdo e valendo-se apenas do acordo entre as regras da reflexão
sobre um e sobre o outro. Nessa atividade, específica da reflexão, que “põe em
cena” um conceito “indemonstrável”, consiste o ato de simbolizar.
27
De acordo com essa leitura de Rubens R. Torres Filho, segundo Kant, há uma
operação da faculdade de julgar que expõe o conceito na intuição, com uma sensibilização
de conteúdos conceituais. Para expor os conceitos na intuição, como eles não têm nenhum
correspondente adequado naquilo que é sensível, isso pode ser feito de forma indireta.
Dessa forma, admite-se aqui que nem todos os conceitos podem ser demonstrados. Mas
conceitos indemonstráveis podem ser “postos em cena” (hipotipose), e isto é simbolizar
para Kant: pôr um conceito indemonstrável em cena.
Essa diferenciação entre manifestações que são próprias da razão e outras que não o
são, também se em Goethe. Recortamos a distinção que o poeta faz entre mbolo e
alegoria em seu artigo, Sobre os objetos das artes figurativas, de 1797: “O alegórico se
distingue do simbólico pelo fato de que este designa indiretamente; aquele, diretamente.”
28
E, num texto posterior sobre a oposição símbolo-alegoria, ele diz o seguinte:
A alegoria transforma o fenômeno em conceito, o conceito em imagem, mas de tal
modo que o conceito permaneça sempre contido na imagem e que se possa captá-lo
integralmente, assim como tê-lo e exprimi-lo nela. A simbólica transforma o
fenômeno em idéia, a idéia em imagem, de tal modo que a idéia permaneça sempre
infinitamente ativa e inacessível na imagem e que, mesmo dita em todas as línguas,
permaneça indizível.
29
27
Rubens Rodrigues TORRES FILHO, Ensaios de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p.112.
28
Johann Wolfgang von GOETHE, Jubiläumsausgabe, vol. 33, 1797, p. 94, apud Tzvetan TODOROV,
Teorias do Símbolo, p.252.
29
Ibid., vol. 35, p. 325 , 326. Apud Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p.259.
16
Analisemos a interpretação que Todorov faz de Goethe, com respeito a sua
concepção de símbolo:
No caso do símbolo, há como que uma surpresa devida à ilusão: acreditava-se que a
coisa existisse simplesmente por si mesma; depois descobre-se que ela tem também
um sentido (secundário). Quanto à alegoria, Goethe insiste no seu parentesco com
as outras manifestações da razão (o espírito, a galanteria). A oposição não está
realmente afirmada e, contudo, nós a sentimos muito próxima: a razão domina aqui,
mas não lá.
30
Todorov diz ainda que “o símbolo dirige-se à percepção (e à intelecção); a alegoria,
na realidade, unicamente à intelecção.”
31
E, na sequência, dirá: “O símbolo é produzido
inconscientemente e provoca um esforço de interpretação infinito.” Enquanto que “o
sentido do alegórico é finito, o do simbólico, inesgotável; ou melhor: na alegoria o sentido
é acabado, terminado e, portanto, de alguma forma, morto; é ativo e vivo no símbolo.” Ele
observa ainda que No que diz respeito ao simbólico, reencontramos a panóplia das
características valorizadas pelos românticos: ele é produtor, intransitivo, motivado; realiza a
fusão dos contrários: é e significa ao mesmo tempo; seu conteúdo escapa à razão: exprime
o indizível.”
32
Enfim, “qualquer poesia, é ou deve ser fundamentalmente simbólica.”
33
Se o simbólico é capaz de realizar a fusão dos contrários, como diz Todorov, é
notável que Nietzsche tenha escrito Zaratustra com uma linguagem simbólica, uma vez que
toda a obra parece se compor a partir de elementos de aparente oposição, visando sempre a
uma totalidade.
34
De acordo com Goethe,
uma grande diferença segundo o poeta busque o particular em vista do geral ou
veja o geral no particular. Do primeiro caso nasce a alegoria, na qual o particular
vale unicamente como exemplo do geral; o segundo é no entanto conforme à
natureza da poesia: ela diz um particular sem que parta do geral e o indique. Porém
30
Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 255.
31
Ibid., p. 254.
32
Ibid., p. 260.
33
Ibid., p. 258.
34
O problema das oposições será tratado no capítulo 2, item 3: “Notas a respeito da questão dos opostos”.
17
aquele que capta vivamente esse particular recebe ao mesmo tempo o geral, sem
disso se dar conta, ou apenas posteriormente.
35
Seguindo esse pensamento goetheano, a nosso ver, Assim falou Zaratustra estaria
mais próximo à natureza da poesia, não se tratando, portanto, de alegoria. Zaratustra não
parte do geral, mas dizendo o particular capta-se ao mesmo tempo o geral. Todorov fala
também da insistência de Goethe no caráter lacônico, condensado do símbolo. Em oposição
à expansividade do discurso, temos a densidade simbólica. Ainda comentando Goethe,
Todorov diz: “...no símbolo, a imagem presente indica por si mesma apenas que possui um
outro sentido e é ‘mais tarde’ ou ‘inconscientemente’ que se é levado a um esforço de
reinterpretação.”
36
Vimos, até aqui, alguns aspectos do que Kant e Goethe disseram sobre símbolo, nos
limitando àquilo que interessa ao presente trabalho. Veremos agora que Schelling, de certa
forma, une essas duas concepções: a oposição entre simbólico e esquemático, de Kant, e a
oposição entre simbólico e alegórico, de Goethe, obtendo assim, três formas: o simbolismo,
o esquematismo e a alegoria, sendo que o primeiro contém os demais:
Aquela Darstellung, na qual o universal significa (bedeutet) o particular, ou na qual
o particular é intuído através do universal, é esquematismo.
Aquela Darstellung, porém, na qual o particular significa o universal, ou na qual o
universal é intuído através do particular, é alegórica.
A síntese destas duas, onde nem o universal significa o particular, nem o particular
o universal, mas onde ambos são um, é o simbólico.
37
Rubens Rodrigues Torres Filho diz que Schelling
vai buscar o sentido original da palavra símbolo na senha ou marca de
reconhecimento (a tessera dos romanos), que foi primitivamente aquele objeto
partido em dois cuja apresentação e encaixe permite a dois amigos se
35
J. W. GOETHE, Jubiläumsausgabe, vol. 38, p. 261, 1822, apud Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo,
p. 257.
36
Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 258.
37
Friedrich Wilhelm Joseph SCHELLING, Filosofia da Arte, apud Rubens R. TORRES FILHO, Ensaios de
Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p. 114.
18
reconhecerem, no reencontro depois de longa ausência – e assim restitui ao símbolo
seu sentido etimológico de “convergência”, “encontro”. É nesse contexto que se
afirma a orientação visceralmente simbólica que tem a filosofia da natureza, ao
promover a identidade no todo e buscar o infinito no finito: orientação
historicamente oposta à tendência alegórica do cristianismo, pois para ela,
justamente, o finito não é “apenas um Gleichnis”. Adotar o estilo simbólico, em
filosofia, é situar-se a contracorrente desse cristianismo, que define a modernidade
(por oposição ao paganismo antigo) como este mundo dos indivíduos dominados
pelo universal...
38
O sentido original da palavra “símbolo” remonta ao grego symbolon, que denota um
sinal de reconhecimento (symbálein = reunir, juntar). Na Grécia antiga, quando dois amigos
se separavam, costumavam quebrar um anel, uma moeda ou um pequeno objeto de argila, e
cada um ficava com uma metade. Ao retornar, o amigo, ou alguém de sua família,
apresentava sua metade. Se ela se encaixasse na outra metade, ele era recebido com
hospitalidade, uma vez que havia revelado sua identidade.
39
Será, como dissemos no início
do capítulo, este sentido original da palavra símbolo que nos apropriaremos no presente
estudo: symbálein, ou seja, reunir o que está, aparentemente, separado.
Como vimos, para Kant os símbolos tornam sensíveis conceitos inteligíveis. A nosso
ver, fazendo jus à etimologia da palavra, o símbolo une matéria e espírito, une o que está
aparentemente separado. Como veremos, em Nietzsche essa separação não existe.
A colocação final de Rubens R. T. Filho, supracitada, de que “Adotar o estilo
simbólico, em filosofia, é situar-se a contracorrente desse cristianismo”, reforça nossa
abordagem simbólica do Zaratustra, pois acorda com a crítica nietzscheana ao
cristianismo.
40
38
R. R. TORRES FILHO, Ensaios de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p. 113, 114. O termo
alemão “Gleichnis” foi usado aqui no sentido de alegoria.
39
Jean-François Mattéi também fala sobre a origem da palavra símbolo com estes mesmos termos, em seu
livro Platon et le miroir du mythe (PUF, 1996, p. 287).
40
A complexa crítica de Nietzsche ao cristianismo aparece em muitos de seus escritos. Um livro que trata
desse assunto é, por exemplo, O Anticristo.
19
1.2. MIRCEA ELIADE E O PENSAMENTO SIMBÓLICO
Trabalharemos pontualmente algumas questões que Eliade coloca concernentes aos
símbolos. Para ele o pensamento simbólico é inerente ao homem, precedendo a linguagem
e a razão discursiva. As imagens, os mbolos e os mitos revelam os aspectos mais
profundos da realidade e as mais secretas modalidades do ser.
41
Ele afirma que “as Imagens
são, por suas próprias estruturas, multivalentes. Se o espírito utiliza as Imagens para captar
a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta de
maneira contraditória, e conseqüentemente não poderia ser expressada por conceitos.”
42
Essa multivalência da imagem impede que ela seja traduzida em termos concretos, pois
assim fazendo estaríamos reduzindo-a a apenas um de seus planos referenciais, o que faria
com que ela deixasse de ser imagem.
43
Eliade diz que o estudo dos símbolos, das imagens e dos mitos “nos permite melhor
conhecer o homem, ‘o homem simplesmente’, aquele que ainda não se compôs com as
condições da história”.
44
Se ele estiver certo ao dizer que o pensamento simbólico precede a
linguagem e a razão discursiva, Zaratustra, assim falando simbolicamente, estaria se
dirigindo ao homem que não se dispõe a ser composto exclusivamente pelas condições da
história, ao homem cujo espírito interage harmoniosamente com a matéria, tal como a
interação entre seus animais, a águia e a serpente (a águia simbolizando o espírito e a
serpente, a matéria). Desde este ponto de vista, o que Nietzsche busca, e Zaratustra
oferece, seria explicitar a completude e a integridade dos opostos. Por isso a
impossibilidade de Zaratustra falar conceitualmente, pois essa forma de falar divide, separa
o objeto do sujeito. Por outro lado, a fala simbólica une. Eliade diz que “ter imaginação é
ver o mundo na sua totalidade; pois as Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o
que permanece refratário ao conceito.”
45
A completude seria captada através das imagens.
Para ele, “toda essa porção essencial e imprescindível do homem que se chama
41
Mircea ELIADE, Imagens e Símbolos, p. 8, 9.
42
Ibid., p. 11. Em nota de rodapé, Eliade diz ser “o maior mérito de C.G.Jung ter ultrapassado a psicanálise
freudiana partindo da própria psicologia e ter assim restaurado o significado espiritual da Imagem” (Ibid.,
nota 4, p. 11).
43
Ibid., p. 12.
44
Ibid., p. 9.
45
Ibid., p. 16. Esse mostrar”, destacado em itálico, a nosso ver, teria o mesmo sentido da hipotipose
kantiana, sinônimo de Darstellung e de exhibitio, como vimos nas p. 14 e 15, nota 27.
20
imaginação – está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das teologias
arcaicas.”
46
Nas últimas páginas do mesmo livro, onde Eliade define a função do símbolo,
encontramos novamente a questão da totalidade e da integridade dos opostos. Ele diz que
“a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total, inacessível aos outros
meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão abundantemente e
simplesmente expressada pelos símbolos, não é visível em nenhum lugar do Cosmos e não é
acessível à experiência imediata do homem, nem ao pensamento discursivo.
47
Para Eliade,
“o pensamento simbólico faz ‘explodir’ a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou
desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é fechado, nenhum objeto é isolado em
sua própria existencialidade: tudo permanece junto, através de um sistema preciso de
correspondências e assimilações”.
48
1.3. CONSIDERAÇÕES JUNGUIANAS SOBRE SÍMBOLO
Analisemos agora algumas considerações que faz Carl G. Jung com respeito ao
símbolo:
Não podemos tratar do problema da formação de símbolos sem incluir os processos
instintivos, pois é destes que provém a força motriz do símbolo.
49
Se, como diz Jung, a força motriz do símbolo provém dos processos instintivos, e, a
“absurda racionalidade”, de acordo com Nietzsche, é uma questão moral, que veio como
remédio para frear os instintos em anarquia, podemos concluir que o pensamento simbólico
foi freado pelo predomínio dado à razão na cultura ocidental. Antes “de fazer da razão um
tirano, como Sócrates o fez”, os mbolos seriam naturalmente gerados e naturalmente
aceitos. O pensamento simbólico teria sido algo comum. Depois, com “o fanatismo, com o
46
Ibid., p. 15.
47
Ibid., p. 177.
48
Ibid., p. 178.
49
Carl G. JUNG, Obras Completas, vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 338, p. 217.
21
qual toda a reflexão grega se lança para a racionalidade”,
50
e com toda a trajetória ocidental,
de supervalorização à razão, “a verdade simbólica hoje em dia está indefesa à mercê do
pensamento científico...”
51
E, desde então, “toda e qualquer concessão aos instintos, ao
inconsciente conduz para baixo...”,
52
é menosprezada.
Se pudermos, por alguns instantes, pensar a filosofia e a psicologia em cruzamento,
como, a nosso ver, o faz Nietzsche, poderemos ler as colocações de Jung a seguir,
aproximando-se da crítica nietzscheana à razão e ao cristianismo:
53
...não pode haver formação do símbolo, sem que a alma se detenha, por um tempo
bastante prolongado, nos fatos elementares, isto é: até que a necessidade interior ou
exterior do processo vital produza uma transformação na energia. Se o homem
vivesse de modo meramente instintivo e automático, as transformações poderiam
dar-se segundo leis meramente biológicas. Vemos alguma coisa deste gênero ainda
na vida psíquica dos primitivos que é, ao mesmo tempo, totalmente concretista e
totalmente simbolista. No homem civilizado, o racionalismo da consciência, tão útil
sob outros aspectos, revela-se um empecilho para a transformação pacífica da
energia, pois que a ratio [razão] se coloca, sempre e exclusivamente, de um ou de
outro lado, com o fim de evitar sua intolerável antinomia; aferra-se
convulsivamente aos valores por ela uma vez escolhidos, e isto na medida em que a
realidade da razão humana é considerada como “substância imutável”, excluindo-
se, conseqüentemente, a sua concepção simbolista. Mas a ratio [a razão] é apenas
relativa e anula-se em suas próprias antinomias. Também ela é apenas meio em
ordem a um fim, uma expressão simbólica de uma etapa transitória do
desenvolvimento.
54
Ainda de acordo com Jung,
50
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, “O Problema de Sócrates”, aforismo 10 , trad. de Marco Antonio
Casa Nova, p. 25. Ver citação selecionada no apêndice, p. 150, 151.
51
Carl G. JUNG, Obras Completas, vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 336, p. 216.
52
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, “O Problema de Sócrates”, aforismo 10 , trad. de Marco Antonio
Casa Nova, p. 25.
53
Como dissemos na Introdução, uma linguagem simbólica no Zaratustra está diretamente relacionada à
crítica nietzscheana à exclusividade da razão socrática. Faremos alguns apontamentos sobre essa crítica no
decorrer do presente trabalho.
54
C.G. JUNG, Obras Completas, vol. VIII / 1 - A Energia Psíquica, parágrafo 47, p. 23, 24.
22
Os símbolos nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre
pelo inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição. Em vista da estreita
conexão que existe entre os símbolos mitológicos e os símbolos oníricos (...) é mais
do que provável que a maior parte dos símbolos históricos derive diretamente dos
sonhos ou pelo menos seja influenciada por eles. (...) por centenas de anos, a
tendência da evolução da inteligência humana foi no sentido de reprimir a formação
individual de símbolos. Um dos primeiros passos nessa direção foi o de estabelecer
uma religião oficial do Estado, e um passo posterior foi a exterminação do
politeísmo; (...) Como sabemos, foi extraordinário o papel que o Cristianismo
desempenhou na repressão da formação individual do símbolo...
55
Dessa forma, de acordo com Jung, o racionalismo da consciência impede que a
energia se transforme pacificamente e produza símbolos, uma vez que a razão opera na
base de opostos separados, e não complementares. o símbolo não opera com oposição,
mas união. Além disso, a razão, ao escolher um valor, se fixa nele, enquanto que o
simbólico não se fixa em nada. Jung nos fala do extraordinário papel “que o Cristianismo
desempenhou na repressão da formação individual do mbolo...”. Acrescentaríamos ainda
os problemas que a igreja católica causou ao interpretar o antigo e o novo testamento como
se fossem relatos de fatos históricos. Uma coisa é acontecimento histórico, outra coisa é
realidade espiritual. Segundo nossa leitura, é por isso que Nietzsche chama Cristo de
“grande simbolista”, e diz
que ele tomou apenas realidades internas como realidades, como ‘verdades’ que
entendeu todos o resto, tudo natural, temporal, espacial, histórico, apenas como
signo, como ocasião para metáforas. O conceito de ‘filho do homemnão é de uma
pessoa concreta que faz parte da história, de algo individual, único, mas uma
‘eterna’ factualidade, um símbolo psicológico redimido do conceito de tempo.
56
É nesse sentido que, de acordo com nossa leitura, Nietzsche afirma que a construção
da Igreja foi baseada no oposto do evangelho.
57
E que “a história do cristianismo da
55
Ibid., parágrafo 92, p. 47.
56
F. NIETZSCHE, O Anticristo, aforismo 34, trad. de Paulo C. de Souza, p. 41.
57
Ibid., aforismo 36, p. 43.
23
morte na cruz em diante é a história da má compreensão, gradativamente mais grosseira,
de um simbolismo original.
58
A linguagem da Bíblia, assim como, a nosso ver, a linguagem
do Zaratustra, é simbólica, ou seja, põe em cena imagens de uma realidade espiritual não
demonstrável. Não ser demonstrável não significa que não seja real. Assim, quando
queremos que os relatos bíblicos ou quaisquer relatos religiosos sejam interpretados como
acontecimentos históricos, eles deixam de ser reais. Para comunicar acontecimentos
históricos usamos a linguagem conceitual, enquanto que para comunicar acontecimentos
espirituais, podemos usar a linguagem simbólica.
No aforismo 34 de O anticristo, supracitado, Nietzsche usa o termo “metáfora”:
“...que entendeu todo o resto (...) apenas como signo, como ocasião para metáforas.” De
acordo com um fragmento póstumo, “Metáfora significa tratar como igual algo que, num
dado ponto, foi reconhecido como semelhante.”
59
Diferente de símbolos, alegorias e
metáforas remetem ao conhecido. Para Nietzsche, as metáforas, originalmente, eram
intuitivas. Posteriormente foram “enrijecidas e petrificadas”: “Tudo o que destaca o homem
do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema,
portanto de dissolver uma imagem em um conceito.”
60
A partir desse ângulo nietzscheano,
nos permitimos colocar também a metáfora, a já enrijecida e petrificada, como racional.
A produção dos mbolos pelo inconsciente pela via da revelação, que nos diz Jung,
nos remete à Eliade, para quem “a função de um símbolo é justamente revelar uma
realidade total”.
61
Tanto em Eliade quanto em Jung, o símbolo revela algo indemonstrável
pela via racional. Como vimos, esta é também a concepção simbólica kantiana, subordinada
ao conceito de hipotipose, de acordo com a leitura de Rubens Rodrigues Torres Filho.
62
De acordo com Jung, apesar de o inconsciente, os instintos e o pensamento simbólico
terem sido reprimidos, eles não foram extintos, continuam existindo e desempenhando seu
papel. E seu papel não parece ser pequeno:
58
Ibid., aforismo 37, p. 43. Sobre essas questões, ver aforismo 32 na íntegra: Apêndice, p. 156.
59
IDEM, Fragmento póstumo n. 19 [249], verão de 1872 início de 1873, trad. de Fernando de Moraes
Barros. In: Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, Fragmentos Póstumos, SP: Ed. Hedra, 2008, p.
91. (Traduzido do Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, Giorgio Colli e Mazzino Montinari,
Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1999, v.7, p.498, de acordo com o tradutor).
60
IDEM, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, aforismo 1, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras incompletas, vol. I, p. 35.
61
Ver nota 47, p. 20.
62
P. 14, 15, nota 27.
24
O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos
pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu
significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou
oculta para nós. Muitos monumentos cretenses, por exemplo, trazem o desenho de
um duplo enxó. Conhecemos o objeto, mas ignoramos suas implicações simbólicas.
Tomemos como outro exemplo o caso de um indiano que, após uma visita à
Inglaterra, contou na volta aos seus amigos que os britânicos adoravam animais,
isto porque vira inúmeros leões, águias e bois nas velhas igrejas. Não estava
informado (tal como muitos cristãos) que estes animais são símbolos dos
evangelistas, símbolos provenientes de uma visão de Ezequiel que, por sua vez, tem
analogia com Horus, o deus egípcio do Sol e seus quatro filhos. (...) Assim, uma
palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu
significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto
“inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo
explicado. (...) Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão
fora do alcance da nossa razão. (...) Por existirem inúmeras coisas fora do alcance
da compreensão humana é que freqüentemente utilizamos termos simbólicos como
representação de conceitos que não podemos definir ou compreender
integralmente.
63
Dessa forma, de acordo com Jung, o símbolo pode ser um objeto cotidiano, percebido
pelos sentidos, mas sempre aponta para algo a mais, que está encoberto, oculto.
Compreender os símbolos seria compreender o que está oculto à nossa razão. Mas seria
uma forma diferente de compreensão, na qual não cabe definições precisas. Estas são
exigências da razão. Dentro da concepção goetheana de símbolo, podemos dizer que a
alegoria atende às exigências da razão, enquanto que o símbolo não.
64
Assim como símbolo não é o mesmo que signo,
65
tampouco é o mesmo que sinal.
Com respeito à diferença entre símbolo e sinal, Jung esclarece:
63
Carl G. JUNG, O Homem e seus Símbolos, p. 20, 21. Na página 20 desta obra encontra-se a reprodução de
um baixo-relevo da Catedral de Chartres, onde aparecem representados o leão, o boi e a águia,
respectivamente, os evangelistas Marcos, Lucas e João.
64
Ver p. 15 – 17.
65
Como vimos no início do capítulo, p. 13, trabalhamos aqui com o sentido que Nietzsche a signo no
quinto livro de A Gaia Ciência, ou seja, signo de comunicação, ou palavra.
25
O símbolo é uma expressão indeterminada, ambígua, que indica alguma coisa
dificilmente definível, o reconhecida completamente. O “sinal” tem um
significado determinado, porque é uma abreviação (convencional) de alguma coisa
conhecida ou uma indicação correntemente usada da mesma.
66
Ainda sobre a diferença entre símbolo e sinal, Jung complementa, dizendo que “os
símbolos não são sinais ou alegorias de um fato conhecido, mas procuram insinuar uma
situação pouco ou nada conhecida.”
67
Vemos que, assim como em Goethe, também em
Jung a alegoria está dentro do campo da razão, remetendo a algo conhecido. Ele diferencia
símbolo de alegoria, assim como de semiótica:
Toda concepção que explica a expressão simbólica como analogia ou designação
abreviada de algo conhecido é semiótica. Uma concepção que explica a expressão
simbólica como a melhor formulação possível, de algo relativamente desconhecido,
não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica, é simbólica. Uma
concepção que explica a expressão simbólica como paráfrase ou transformação
proposital de algo conhecido é alegórica. Explicar a cruz como símbolo do amor
divino é semiótico, pois “amor divino” designa o fato que se quer exprimir, bem
melhor do que uma cruz que pode ter ainda muitos outros sentidos. Simbólica seria
a explicação que considerasse a cruz além de qualquer explicação imaginável (...)
Uma expressão usada para designar coisa conhecida continua sendo apenas um
sinal e nunca será símbolo.
68
Em outra obra, em nota de rodapé, diz Jung que “quanto à terminologia, convém
observar que uma coisa conhecida jamais pode ser ‘simbolizada’, mas apenas expressa de
forma alegórica ou semiótica.”
69
E, além disso, “não se pode dizer de nenhuma imagem
simbólica que ela tenha um significado universal e dogmático.”
70
66
C. G. JUNG, Obras Completas, Vol. V - Símbolos da Transformação, parágrafo 180, p. 112.
67
Ibid., parágrafo 329, p. 212.
68
IDEM, Vol. VI – Tipos Psicológicos, parágrafos 904, 906, p. 444, 445.
69
IDEM, Vol. IX / 2 - Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, nota 79, p. 84.
70
IDEM, O Homem e seus Símbolos, p. 30.
26
Vimos exemplos de símbolos ligados às igrejas antigas, mas não são somente as
igrejas que portam símbolos. A arquitetura no passado, de uma forma geral, trazia um
simbolismo em suas linhas e formas. Segundo Nietzsche,
Em geral não entendemos a arquitetura, pelo menos não do modo como
entendemos a música. Distanciamo-nos do simbolismo das linhas e figuras, (...)
Numa construção grega ou cristã, originalmente tudo significava algo, em relação a
uma ordem superior das coisas: essa atmosfera de inesgotável significação envolvia
o edifício como um véu encantado.
71
Jung nos fala do simbolismo de leões, águias e bois, esculpidos nas Igrejas. Por outra
parte, Nietzsche nos fala que “já não entendemos a arquitetura, pelo menos não do modo
como entendemos a música. Distanciamo-nos do simbolismo das linhas e figuras...”
Unindo arquitetura e música, mencionamos aqui um outro exemplo de simbolismo cristão,
que é, no mínimo, surpreendente: em 1945, Marius Schneider, um musicólogo alemão,
visitou um claustro junto à igreja de Sant Cugat del Vallés, em Barcelona, cujos capitéis
contém esculturas, das quais muitas são de animais. Schneider decifrou um ritmo na atitude
desses animais e transcreveu para uma partitura musical. Algum tempo após a sua morte, o
referido local passou por uma reforma, e foram encontrados alguns códigos medievais.
Entre estes estava a partitura do que foi o hino do local: tratava-se da mesma música que
Schneider leu nas esculturas e passou para uma partitura.
72
Tanto a música quanto a arquitetura exigem a capacidade de combinar entre si leis de
harmonia e ritmo, assim como medida e proporção. E parecem carregar significados que
não passam pelo crivo racional. Talvez esse seja também o caso do Zaratustra de
Nietzsche: uma combinação de harmonia, ritmo, medida e proporção, cheia de significados
que vão além do âmbito racional.
Pensando nestas últimas considerações que fizemos sobre arquitetura antiga e
música, lembremos o que Nietzsche escreve no primeiro capítulo de Humano, demasiado
71
F. NIETZSCHE, Humano, Demasiado Humano, vol. 1, Cap. IV, aforismo 218, trad. Paulo C. de Souza, p.
135.
72
Para maiores detalhes sobre este assunto, ver: Marius SCHNEIDER, El Origen Musical de los animales-
símbolos en la Mitologia y la escultura antiguas, cap. III: Cantan las piedras, Ediciones Siruela, Madrid.
27
humano, quando fala da diferença entre a arte e o pensamento dos tempos passados e o que
estes se tornaram posteriormente:
Em tempos passados, o espírito o era solicitado pelo pensamento rigoroso;
ocupava-se em urdir formas e símbolos. Isso mudou; a ocupação séria com o
simbólico tornou-se distintivo da cultura inferior; assim como nossas artes mesmas
se tornam cada vez mais intelectuais e nossos sentidos mais espirituais...
73
Esse aforismo de Nietzsche sintetiza a passagem do pensamento simbólico para o
pensamento conceitual. O segundo não anula o primeiro, mas o rebaixa a um plano inferior.
1.4. A INVERSÃO SOCRÁTICA E A EXPULSÃO DO SÍMBOLO
A nosso ver, no Zaratustra, Nietzsche restitui o simbolismo das palavras, que teria
sido retirado por Eurípides e Sócrates. Com Ésquilo e Sófocles nhamos a criação
inconsciente do coro trágico, com toda sua dimensão simbólica. Eurípides teria substituído
a linguagem simbólica por uma linguagem de signos, a linguagem da “mediocridade
burguesa”. Em O Nascimento da tragédia, Nietzsche chega a dizer que Eurípides se gaba
de que “o povo aprendeu a observar, a discutir e a tirar conseqüências”,
74
por seu
intermédio. Ocorre uma transformação na linguagem pública e o cotidiano passa a ser
representado no palco. É o fim da tragédia como arte e seu início como argumentação, onde
começaria também o desenvolvimento de uma supremacia da consciência.
Nesta perspectiva, Eurípides mudou a linguagem da tragédia, mas não foi ele quem
lutou contra o dionisíaco da arte antiga, e sim, segundo Nietzsche, o poder de um novo
demônio chamado Sócrates:
O maravilhoso acontecera: quando o poeta se retratou, a sua tendência tinha
triunfado. Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico e o fora através de um
poder demoníaco que falava pela boca de Eurípides. Também Eurípides foi, em
73
F. NIETZSCHE, Humano demasiado humano, vol. 1, cap. 1, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 17.
74
IDEM, O nascimento da tragédia, seção 11, trad. de J. Guinsburg, p. 74.
28
certo sentido, apenas máscara: a divindade, que falava por sua boca, não era
Dionísio, tampouco Apolo, porém um demônio de recentíssimo nascimento,
chamado SÓCRATES. Eis a nova contradição: o dionisíaco e o socrático, e por
causa dela a obra de arte da tragédia grega foi abaixo.
75
Na seção 13 de O nascimento da tragédia, Nietzsche observa que os contemporâneos
de Sócrates perceberam que este trazia uma estreita relação com a tendência de Eurípides.
Para Sócrates, as celebridades de Atenas exerciam suas profissões apenas por intuição”,
sem ter um entendimento correto e seguro sobre elas. Assim, tanto Eurípides quanto
Sócrates, diferentemente de seus contemporâneos, não mais aceitavam a intuição como
fonte criativa e de conhecimento. O que se impõe então é a arte socrática, ou seja, a
dialética. Para Sócrates, não bastava saber intuitivamente; devia-se justificar através de
argumentos. O conhecimento que se tinha de algo, para ele, não era instintivo. Segundo
Nietzsche, o famoso daimon de Sócrates”, aquela voz divina que ele ouvia nos momentos
que seu entendimento lhe faltava, é uma chave para entender Sócrates, uma vez que essa
voz sempre vinha para dissuadir:
A sabedoria instintiva se mostra, nessa natureza inteiramente anormal,
para contrapor-se aqui e ali ao conhecer consciente, impedindo-o. Enquanto
em todos os homens produtivos o instinto é precisamente a força criadora-
afirmativa e a consciência se porta como crítica e dissuasiva, em Sócrates é o
instinto que se torna crítico e a consciência, criadora – uma verdadeira
monstruosidade per defectum!
76
Ao detectar essa inversão feita por Sócrates, Nietzsche nos relata o que talvez tenha
sido o acontecimento mais importante de toda a história ocidental. Ele nos fornece a chave
para a compreensão de uma cultura que se desenvolveu a partir do que ele chama de “uma
verdadeira monstruosidade per defectum”. Em Nietzsche, assim como nos gregos anteriores
ao socratismo, e em todos os homens produtivos, o instinto é criativo e a consciência é
crítica. Em Sócrates, assim como em todos os socráticos, a consciência passa a ser criativa
75
Ibid., seção 12, p. 79.
76
Ibid., seção 13, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 12.
29
e o instinto crítico. Essa é a absurda racionalidade da qual nos falará Nietzsche em um de
seus últimos livros, o Crepúsculo dos ídolos, de 1888. Para ele, a própria razão é uma
questão moral, que veio como remédio para frear os instintos que estavam em anarquia. A
separação entre instinto e pensamento consciente, que se efetivou em Sócrates, teria dado
início à decadência. Analisemos como, segundo Nietzsche, isso acontece e se desenvolve
na dialética socrática, uma vez que a presença de uma linguagem simbólica no Zaratustra
está diretamente relacionada à crítica nietzscheana à razão socrática. Nietzsche constata que
a equação “Razão = Virtude = Felicidade diz meramente o seguinte: é preciso imitar
Sócrates e estabelecer permanentemente uma luz diurna contra os apetites obscuros, a luz
diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, luminoso a qualquer preço: toda e qualquer
concessão aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo...”
77
Enquanto para Sócrates
“Razão = virtude = felicidade”, para Nietzsche, pensamos, felicidade estaria mais para
instinto. A razão socrática surge assim tiranizando os instintos em um momento propício
para que isso acontecesse, uma vez que “Por toda parte os instintos estavam em
anarquia”,
78
uns se voltando contra os outros. Antes que estes se fizessem tiranos, Sócrates
adivinhou que o remédio era inventar um contratirano que fosse mais forte. A nosso ver,
quando Nietzsche chama Sócrates de “adivinho”, o deixa preso a seus apetites; assinalando
uma passagem do Timeu, de Platão, que fala da adivinhação.
79
Do ponto de vista do Timeu,
a adivinhação não é racional,
80
uma vez que está relacionada com o fígado, que é a sua sede,
77
IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, aforismo 10, trad. de Marco Antonio Casa Nova,
p. 25. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 150, 151.
78
Ibid., aforismo 9, p.24. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 150.
79
“A prova de que Deus concedeu aos homens a adivinhação para suprir sua ignorância, é que ninguém no
estado normal consegue adivinhar com inspiração e verdade, mas apenas no sono, quando a força do
entendimento está presa ou desviada por alguma desordem orgânica, senão mesmo por influição divina.
Compete ao mesmo homem, no seu estado normal, procurar lembrar-se das palavras ouvidas no sono ou no
estado de vigília, pelo dom profético ou pelo entusiasmo, e sobre elas refletir, submetendo à prova do
raciocínio todas as visões percebidas naquelas condições, para saber de que maneira e a quem elas anunciam
algum bem ou mal futuro ou passado ou presente. Mas o homem em estado de delírio e que ainda não voltou
a si não apresenta condições para julgar suas próprias visões ou enunciados. É muito verdadeiro o velho
brocardo, de que somente aos sábios compete cuidar de seus próprios negócios e conhecer-se a si mesmo.
Essa é a origem da lei que instituiu a raça dos profetas para julgar as inspirações divinas. quem os chame
de adivinhos; mas, os que assim procedem ignoram de todo em todo que eles são intérpretes de palavras e de
visões misteriosas; o nome mais certo, portanto, não será o de adivinho, mas o de profeta das coisas reveladas
pela adivinhação.” (PLATÃO, Timeu, 71-e, trad. de Carlos Alberto Nunes, p. 119, 120).
80
Platão divide a alma em racional, irascível e apetitiva. A alma racional, a única imortal, se localiza na
cabeça, a irascível, entre o pescoço e o diafragma, e a apetitiva, entre o diafragma e o umbigo. O fígado,
localizado na parte que corresponde à alma apetitiva, é liso e brilhante como um espelho para refletir a força
do pensamento proveniente da razão. Por isso, durante o sono, ocorre a adivinhação, para que essa parte da
30
e que se encontra na alma apetitiva. Teríamos, por um lado, o Sócrates adivinho, e, por
outro, o Zaratustra, que pode ser considerado profeta, como veremos posteriormente. Deste
ponto de vista, só o profeta saberia interpretar aquilo que é revelado pela adivinhação.
Voltando ao Crepúsculo dos ídolos, segundo Nietzsche, ser “absurdamente racional”
foi a salvação, que, para poder salvar de uma situação desesperadora, tornou-se fanatismo:
“O fanatismo, com o qual toda a reflexão grega se lança para a racionalidade, trai uma
situação desesperadora. Estava-se em risco, se tinha uma escolha: ou perecer, ou ser
absurdamente racional...”
81
O erro dessa crença foi os filósofos e moralistas pensarem que
saíram da décadence por fazerem guerra contra ela. Para Nietzsche, “mesmo aquilo que
escolhem como remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence
eles alteram sua expressão, não a eliminam”.
82
A racionalidade, a vida clara, consciente,
que resiste aos instintos, é, para Nietzsche, apenas uma outra doença.
83
Assim, de acordo com a seção 12 de O Nascimento da Tragédia, citada
anteriormente,
84
poderíamos dizer que antes de Platão expulsar, na República, os poetas da
cidade (595a,b), Sócrates havia expulso sua linguagem, pela boca de Eurípides. Como
sabemos, a palavra poeta vem do grego poietes, que significa criador. Assim, a linguagem
simbólica, a linguagem dos criadores, dos poetas, teria sido expulsa antes destes.
alma, que não participa da razão e do entendimento, também possa, de alguma maneira, atingir a verdade.
(PLATÃO, Timeu, 70-e a 71-e, trad. de Carlos Alberto Nunes, p. 118, 119).
81
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “O problema de crates”, aforismo 10, trad. de Marco Antonio
Casa Nova, p.25. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 150, 151.
82
Ibid., aforismo 11, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 110. Ver
citação selecionada no Apêndice, p. 151.
83
Esse problema de instinto e razão também foi abordado por Nietzsche no aforismo 191 de Para além de
bem e mal. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 148.
84
Citada nas p. 27, 28, nota 75.
31
II. ESCRITOS NIETZSCHEANOS
Meus escritos dão trabalho espero que isso não
seja uma objeção contra eles!… Para se
compreender a linguagem mais concisa jamais
falada por um filósofo – e além disso a mais pobre
em clichês, a mais viva, a mais artística é
preciso seguir o procedimento oposto ao que
normalmente pede a literatura filosófica. Esta é
preciso condensar, de outro modo estraga-se o
estômago; - a mim é preciso diluir, tornar líquido,
acrescentar água: de outro modo estraga-se o
estômago. O silêncio é em mim tão instintivo
como nos senhores filósofos a garrulice. Eu sou
breve: meus leitores mesmos devem fazer-se
extensos, volumosos, para trazer à tona e juntar
tudo o que foi por mim pensado, e pensado até o
fundo. – Há, por outro lado, pressupostos para
aqui se “compreender”, à altura dos quais estão
poucos e raros: é preciso saber pôr um problema
no seu justo lugar, isto é, em relação com os
problemas a ele atinentes e para isso é preciso
ter ao alcance a topografia dos recantos e áreas
difíceis de ciências inteiras, e sobretudo da própria
filosofia. Afinal falo apenas do vivido, não
somente do “pensado”; a oposição pensamento/vi-
da não existe em mim. Minha “teoria” cresce de
minha “prática” oh, de uma prática nada inócua,
nada anódina!...
85
Comparemos o que disse Nietzsche, no aforismo supracitado, sobre a concisão de
seus escritos, com o comentário que Todorov fez sobre o mbolo na concepção goetheana:
“...Goethe insiste no caráter lacônico, condensado do símbolo. Parece que o que se visa
85
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que escrevo tão bons livros”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza,
nota 36, p. 125. De acordo com o tradutor, essa passagem era parte de uma versão anterior do aforismo 3 do
terceiro capítulo.
32
aqui é a densidade simbólica, por oposição à expansão discursiva”.
86
Essa comparação
assinala a concisão como característica comum ao símbolo e aos escritos nietzscheanos. A
compreensão, tanto da linguagem simbólica como da linguagem nietzscheana, requer um
procedimento oposto ao que se requer na literatura filosófica tradicional, que, sendo
prolixa, precisa ser condensada. Os escritos de Nietzsche, tanto em sua forma quanto em
seu conteúdo, a nosso ver, são coerentes com sua diferenciada concepção de filosofia, que
abordaremos a seguir.
2.1. CONCEPÇÃO NIETZSCHEANA DE FILOSOFIA
87
“Incômodo desesperador, ocupar-se da filosofia como um ‘erudito’!”
88
No desenrolar do capítulo, veremos que a concepção nietzscheana de filosofia difere
das concepções que se tem desta como atividade contemplativa e teórica. Nesta perspectiva,
a filosofia seria concebida como uma atividade exclusivamente intelectual, e o trabalho
filosófico seria pouco ou nada relacionado ao modo de vida do filósofo. Em Nietzsche,
contudo, o filósofo não só pensa sua filosofia, como também a vive: “Afinal falo apenas do
vivido, não somente do ‘pensado’: a oposição pensamento/vida não existe em mim. Minha
‘teoria’ cresce de minha ‘prática’…”
89
Filosofar, para Nietzsche, não seria um ato
meramente intelectual, mas um ato que se enraíza na vida:
Estimo tanto mais um filósofo quanto mais ele está em condições de servir de
exemplo. (...) Mas o exemplo deve ser dado pela vida real e não unicamente pelos
livros; deve portanto ser dado, como ensinavam os filósofos da Grécia, pela
86
Tzvetan TODOROV, Teorias do Símbolo, p. 257. (Ver capítulo 1, p. 17 do presente trabalho).
87
Para trabalhar a concepção nietzscheana de filosofia utilizaremos livremente os termos “filosofia”,
“filósofo” e “filosofar” para deixar que o próprio texto de Nietzsche os diferencie.
88
F. NIETZSCHE, Cinco prefácios para cinco livros o escritos, “A relação da filosofia de Schopenhauer
com uma cultura alemã”, trad. de Pedro Süssekind, p. 61.
89
IDEM, Ecce Homo, “Por que escrevo tão bons livros”, versão anterior do aforismo 3, trad. de Paulo C. de
Souza, nota 36, p. 125.
33
expressão do rosto, pela vestimenta, pelo regime alimentar, pelos costumes, mais
ainda do que pelas palavras e sobretudo mais do que pela escrita.
90
Nesse mesmo texto sobre educação, Nietzsche fala sobre os filósofos que se
submetem ao Estado:
(...) Ocorre de fato que em geral o Estado tem medo da filosofia, então, neste caso,
ele buscará, cada vez mais, atrair para si o maior número de filósofos que puder, o
que lhe confere a ilusão de ter a filosofia do seu lado e assim ele tem ao seu lado
estes homens que se valem dela, mas o inspiram nenhum medo. (...) A única
crítica de uma filosofia que é possível e que além disso é também a única que
demonstra algo, quer dizer, aquela que consiste em experimentar a possibilidade de
viver de acordo com ela, esta filosofia jamais foi ensinada nas universidades (...)
91
Além de criticar os filósofos que se submetem ao Estado, Nietzsche também critica
uma filosofia que se reduza a uma teoria do conhecimento:
...aquilo a que gradualmente se resumiu toda a filosofia recente, esse vestígio de
filosofia de hoje, desperta suspeita e cisma, quando não escárnio e pena. A filosofia
reduzida a “teoria do conhecimento”, na realidade apenas um tímido epoquismo e
doutrina de abstenção: uma filosofia que nunca transpõe o limiar e que recusa
penosamente o direito de entrar – é uma filosofia nas últimas ...”
92
Nietzsche não despreza as habituais práticas dos filósofos. Pelo contrário, ele
reconhece sua importância. Apenas insiste “em que se deixe, afinal, de confundir os
trabalhadores filosóficos e em geral os homens científicos com os filósofos”. E diz que:
Pode ser necessário para a educação do filósofo efetivo que ele próprio tenha
também estado em todos esses graus, nos quais seus servidores, os trabalhadores
científicos da filosofia, se detêm têm de se deter; ele próprio, talvez, tem de ter
90
IDEM, III Consideração intempestiva: Schopenhauer educador, aforismo 3, in Escritos sobre educação,
trad. de Noéli C. M. Sobrinho, p. 150.
91
Ibid., aforismo 8, p. 210 e 213.
92
IDEM, Além do bem e do mal, aforismo 204, trad. de Paulo C. de Souza, p. 95.
34
sido crítico e cético e dogmático e historiador e além disso poeta e colecionador e
viajante e decifrador de enigmas e moralista e visionário e “espírito livre” e quase
tudo, para percorrer o circuito de valores e de sentimentos de valor humanos e, com
múltiplos olhos e consciências, poder olhar, da altura para toda distância, da
profundeza para toda altura, do canto para toda amplidão. Mas isto tudo são
somente condições prévias de sua tarefa: essa tarefa mesma quer algo outro
reclama que ele crie valores. (...) Seu “conhecer” é criar, seu criar é uma legislação,
sua vontade de verdade é vontade de potência. hoje tais filósofos? Houve já
tais filósofos? Não é preciso haver tais filósofos?...
93
Lemos neste aforismo que, para Nietzsche, uma diferença entre filósofos e
trabalhadores científicos da filosofia. Estes, que são servidores dos primeiros, têm de se
deter em tarefas tais como ser crítico, cético, dogmático, historiador, poeta, colecionador,
viajante, decifrador de enigmas, moralista, visionário, “espírito livre”. o filósofo, pode
até passar por essas tarefas como condição prévia durante sua educação, mas não ise
deter nelas, uma vez que sua tarefa é outra: criar valores. Pelas perguntas que Nietzsche faz
a respeito da existência de tais filósofos, entendemos que estes nunca existiram, mas,
segundo ele, é preciso que existam.
No mesmo ano que escreveu Para além de bem e mal (1886), Nietzsche escreveu um
prólogo tardio para o seu livro A Gaia Ciência, de 1882. Ele inicia o prólogo levantando
uma suspeita a respeito da possibilidade de se familiarizar com esse livro caso não se tenha
vivido algo semelhante: “Talvez não baste somente um prólogo para este livro; e afinal
restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa
familiarizar-se com a vivência deste livro mediante prólogos.”
94
Essa passagem parece não
deixar vidas de que Nietzsche não separa a filosofia da vida. Pelo contrário: filosofia é
algo que se vivencia. Por isso, para ele, é duvidoso que alguém que não tenha tido
vivências semelhantes possa compreender seu livro.
93
Ibid., aforismo 211, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 64, 65.
94
IDEM, A Gaia Ciência, prólogo, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 9.
35
Através dos escritos de Nietzsche, podemos acompanhar as desvantagens da
exclusividade da razão. Além de desmontar a crença numa razão onipotente e infalível,
Nietzsche transvalora a dicotomia corpo-mente, denominando o corpo de a grande razão.
Desse modo, o que a filosofia chamou de razão, passa a ser agora, a pequena razão:
O corpo é uma grande razão, uma pluralidade dotada de um único sentido, uma
guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua
pequena razão, meu irmão, a que chamas “espírito”, um pequeno instrumento e um
pequeno joguete de tua grande razão.
95
A maneira peculiar pela qual Nietzsche entende a filosofia, a encontramos no Ecce
Homo:
Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar da altitude, um ar forte.
É preciso ser feito para ele, senão o perigo de se resfriar não é pequeno. O gelo está
perto, a solidão é descomunal mas com que tranqüilidade estão todas as coisas à
luz! com que liberdade se respira! quanto se sente abaixo de si! - filosofia, tal
como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária em gelo e altas montanhas a
procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo
que até agora foi exilado pela moral. De uma longa experiência que me foi dada por
tal andança pelo proibido, aprendi a considerar as causas pelas quais até agora se
moralizou e idealizou, de modo muito diferente do que seria desejável: a história
escondida dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes, veio à luz para mim. -
Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito? isso se tornou
para mim, cada vez mais, o autêntico medidor de valor. Erro (- a crença no ideal -)
não é cegueira, erro é covardia... Cada conquista, cada passo avante no
conhecimento decorre do ânimo, da dureza contra si, do asseio para consigo... Não
refuto os ideais, apenas calço luvas diante deles... Nitimur in vetitum: neste signo
vencerá um dia minha filosofia, pois até agora o que se proibiu sempre, por
princípio, foi somente a verdade. -
96
95
IDEM, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Dos desprezadores do corpo”, trad. de Andrés S. Pascual, p.
64.
96
IDEM, Ecce Homo, prólogo, aforismo 3, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 146. Dentre os textos escritos por Nietzsche entre 1884 e 1888, encontra-se um
36
Nietzsche inicia o aforismo acima, dizendo que é preciso ser feito para o ar de seus
escritos. Assim, quem não é feito para esse ar das alturas, não está habilitado para tal
leitura. Em seguida ele diz que “o gelo está perto, a solidão é descomunal”. Ele parece
tratar aqui da experiência da acedia, um dos sete pecados capitais, denominado demônio do
meio-dia pelos monges da Idade Média.
97
Em “Do caminho do criador”, no Zaratustra,
Nietzsche provavelmente está acenando os sete pecados capitais ao falar de sete demônios,
na seguinte passagem: “Solitário, tu percorres o caminho que leva a ti mesmo! E teu
caminho passa ao lado de ti mesmo e de teus sete demônios!”
98
No mesmo aforismo ele diz
que “Há sentimentos que querem matar o solitário; se não conseguem, eles mesmos têm
que morrer então! Mas és tu capaz de ser um assassino?”
99
A acedia é um estado interno de tristeza, devido à solidão extrema. Enquanto os
monges se refugiavam em Deus para enfrentar esse demônio, Nietzsche, no início de seu
aforismo intitulado Meu novo caminho para o ‘sim”’, o qual apresenta essa mesma concepção de filosofia
que lemos no Ecce Homo. Apresentamos esse aforismo no Apêndice (p.157, 158), uma vez que contém
algumas reflexões que o filósofo não expõe no Ecce Homo.
97
Na Idade Média, os sete pecados capitais eram chamados de demônios, e eram capitais tanto porque podiam
levar à morte (Caput = cabeça. Um delito capital podia levar a decapitação), como também, porque eram a
cabeça, o princípio de todos os demais pecados. O pecado da acedia era chamado, pelos monges que viviam
na solidão, de demônio do meio-dia, uma vez que era especialmente em torno deste horário que eles eram
atormentados por uma tristeza profunda, e entravam em desespero, querendo fugir da cela. Posteriormente, o
pecado da acedia passou a ser chamado de preguiça, mas, inicialmente, não se tratava de preguiça, mas sim da
tristeza e desespero causados pela solidão extrema. Cair no pecado da acedia seria entrar em um estado de
consciência inóspita, no qual não se pode receber nada nem ninguém. No caso dos monges, é não poder
receber a presença de Deus; por isso é pecado. (Sobre o pecado da acedia: GIANNINI, Humberto, “El
demonio del mediodia”, in: Revista Teoria, 5-6, Universidad de Chile, Diciembre, 1975). Talvez o pecado da
acedia tenha sido substituído pelo da preguiça porque a solidão do isolamento deixou de ser experimentada.
Não por acaso Nietzsche pergunta: “quem sabe, hoje, o que é solidão?
(Humano, demasiado humano,
prefácio tardio, aforismo 3, trad. R. R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 43). Como
dissemos, os monges chamavam o pecado da acedia de demônio do meio-dia. Nietzsche, em seus escritos,
fala inúmeras vezes do “meio-dia”, e do “grande meio-dia”, como, por exemplo, no Humano, demasiado
humano, Vol. I, prefácio tardio, aforismo 7; Capítulo 9, aforismo 638; Volume II, “Miscelânea de opiniões e
sentenças”, aforismo 356; “O andarilho e sua sombra”, aforismo 308; no poema “Sils-Maria”, no Apêndice de
A Gaia Ciência; no Crepúsculo dos ídolos, “Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar em fábula”
(ver citação na p. 83, nota 265); em Assim falou Zaratustra, prólogo, aforismo 9 e 10; Primeira parte, “Da
virtude que presentes”, aforismo 3; Terceira parte, “Dos três males”, Aforismo 2; na quarta parte de
Zaratustra temos um aforismo com o título: “Ao meio Dia”; no Ecce Homo, Aurora”, aforismo 2; “O
nascimento da tragédia”, aforismo 4. Sobre essa questão, ver também, item 6 deste capítulo: “Meio-dia:
Incipit Nietzsche”.
98
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Do caminho do criador”, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 107.
99
Ibid., p. 106.
37
percurso como pensador independente,
100
relata que inventou os espíritos livres para lhe
fazerem companhia:
E foi assim que certa vez, quando precisei disso, inventei para mim também os
“espíritos livres”, aos quais é dedicado este livro gravemente corajoso com o título:
Humano, Demasiado Humano: tais “espíritos livres” não há, não havia – mas
daquela vez, como disse, eu precisava deles como companhia, para permanecer de
bom trato em meio aos maus tratos (doença, isolamento, estrangeiro, acedia,
inatividade) (...) Que poderia haver alguma vez tais espíritos livres, (...) disso sou eu
quem menos duvidaria. Eu já os vejo vindo, lentamente, lentamente; e quem sabe
estou fazendo algo para acelerar sua vinda, quando descrevo, por antecipação, sob
que desígnios eu os vejo surgindo, por que caminhos eu os vejo vindo?
101
Seis anos depois de Humano, demasiado humano, no Zaratustra, no mesmo aforismo
supracitado, Nietzsche fala do perecer para criar:
Tens que querer queimar-te a ti mesmo em tua própria chama: como te renovarias
se antes não tivestes te convertido em cinzas?
Solitário, tu percorres o caminho do criador: com teus sete demônios queres criar
para ti um Deus!
102
100
Período no qual se distancia da filosofia de Schopenhauer e da estética de Wagner, e escreve Humano,
demasiado humano. (O primeiro volume é de 1878. Os textos: Miscelânia de opiniões e sentenças, e O
andarilho e sua sombra, são de 1879 e 1880, e foram editados pela primeira vez isolados, como continuações
e apêndices de Humano, demasiado humano. Posteriormente foram reunidos como segundo volume do
mesmo).
101
F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol. 1, prefácio tardio, aforismo 2, trad. de Rubens R. T.
Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 42. Esse prefácio foi escrito em 1886. A palavra
traduzida por “acedia”, no original lemos Langeweile, que, literalmente, quer dizer longa duração: Lange
significa “muito tempo”, “duração”, e weile, “instante” ou seja, instante de longa duração. O tempo passa
demasiado devagar quando se está e não entretenimento, o que pode desencadear em uma tristeza
profunda. Como podemos ler no Ecce Homo, o “espírito livre” não seria apenas uma criação de Nietzsche
para lhe fazer companhia, mas também uma menção a ele próprio, que se tornou livre: Humano, demasiado
humano é o monumento de uma crise. (...) com ele me libertei do que não pertencia a minha natureza. (...)
Em nenhum outro sentido a expressão ‘espírito livre’ quer ser entendida: um espírito tornado livre, que de si
mesmo de novo tomou posse”. (Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de
Souza, p. 72).
102
IDEM, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Do caminho do criador”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 107.
38
Assim, em Nietzsche, uma relação entre solidão e filosofia, e o filósofo tem a
tarefa da criação: “Tudo o que é grande toma distância do mercado e da fama. Longe deles
têm vivido desde sempre os inventores de novos valores. Foge, meu amigo, à tua
solidão...”.
103
Com isso ele não quer dizer que só aqueles que vivem geograficamente
isolados estariam aptos à filosofia, tal como ele a entende. Trata-se de uma experiência
interna de isolamento, um estado de espírito no qual não existiriam as amarras próprias do
gregarismo. O ser gregário, cujo estado de espírito, segundo Nietzsche, é o de
rebanho,
104
não experimenta aquilo que é individual e único, e não consegue olhar de cima,
com ampla perspectiva, como a águia. A domesticação o ensinou a acreditar que todos são
iguais: no rebanho todos são, ou parecem ser, iguais perante Deus, e olham de baixo para
cima, na “perspectiva de rã”.
105
A própria condição gregária censura o isolamento.
Zaratustra, em seu prólogo, diz: “Nenhum pastor e um só rebanho. Todos querem o
mesmo, todos são iguais: quem tem sentimentos distintos marcha voluntariamente ao
manicômio.”
106
E, em um de seus discursos, dirá:
Queres marchar, meu irmão, à solidão? Queres buscar o caminho que leva a ti
mesmo? Detém-te um pouco e escuta-me.
“Aquele que busca, facilmente se perde a si mesmo. Todo ir-se à solidão é culpa”:
assim fala o rebanho. E tu formaste parte do rebanho durante muito tempo.
A voz do rebanho continuará ressonando dentro de ti. E quando disseres “eu não
tenho a mesma consciência que vós”, isso será um lamento e uma dor.
107
Assim, se a filosofia tal como Nietzsche a concebe requer isolamento, é presumível
que a sociedade, domesticada para ser gregária, a perceba como perigosa:
Quando os impulsos mais elevados e mais fortes, irrompendo passionalmente,
arrastam o indivíduo muito acima e além da mediania e da planura da consciência
103
Ibid.,“Das moscas do mercado”, p. 91.
104
Sobre o homem como animal de rebanho, ver, por exemplo, A Gaia Ciência, aforismos: 50, 116, 149, 174,
296, 328, 352 e Para além de bem e mal, aforismos: 199, 202, 203 (aqui Nietzsche fala da degradação do
movimento democrático, por um lado, e dos novos filósofos, por outro) e 228.
105
Nietzsche emprega essa expressão, “perspectiva de rã”, no aforismo 2 de Para além de bem e mal, dizendo
ser uma expressão corrente entre os pintores. Ver citação selecionada no apêndice, p. 146, 147.
106
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, Prólogo, aforismo 5, trad. de Andrés S. Pascual, p. 41, 42.
107
Ibid., Primeira parte, “Do caminho do criador”, p. 105.
39
de rebanho, o amor-próprio da comunidade se acaba. Sua em si mesma, como
que sua espinha dorsal, é quebrada: portanto, justamente esses impulsos serão
estigmatizados e caluniados. A espiritualidade superior e independente, a vontade
de estar só e mesmo a grande razão serão percebidas como perigo: tudo o que ergue
o indivíduo acima do rebanho e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de
mau; a mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, a mediocridade dos
desejos obtêm fama e honra morais. (...) uma dura e elevada nobreza e
responsabilidade consigo chegam quase a ofender e despertam desconfiança ...
108
No mesmo livro, alguns aforismos adiante, Nietzsche dirá que “o filósofo revelará algo do
seu próprio ideal quando afirmar: ‘Será o maior aquele que puder ser o mais solitário, o
mais oculto, o mais divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes,
o transbordante de vontade...”
109
No primeiro livro de A Gaia Ciência, no aforismo
intitulado “O argumento do isolamento”, Nietzsche já havia tratado dessa problemática com
as seguintes palavras:
...que coisa é realmente temida? O isolamento! Eis o argumento que derrota mesmo
os melhores argumentos em favor de uma pessoa ou uma causa! Assim fala em
nós o instinto de rebanho.
110
Enquanto o rebanho repele o que é estranho, e, na sua perspectiva, se isolar é
estranho, aquele cuja espiritualidade superior faz-se presente, e cuja vontade é
forte,
111
chama de grandeza o mais isolado e divergente dos homens. E será do isolamento e
da solidão, justamente do que é mais temido pelo rebanho, que crescerá o além-do-homem:
“Vós solitários de hoje, vós que vos apartais, havereis um dia de ser um povo: de vós, que
vos elegestes a vós próprios, há de crescer um povo eleito: - e dele o além-do-homem.”
112
108
IDEM, Além do bem e do mal, aforismo 201, trad. de Paulo C. de Souza, p. 88.
109
Ibid., aforismo 212, p. 106, 107.
110
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 50, trad. de Paulo C. de Souza, p. 91.
111
Faremos uma menção sobre “vontade forte” e “vontade fraca” em seguida, na página 42.
112
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 2, trad. de
Andrés S. Pascual, p. 126. O termo em alemão utilizado por Nietzsche, Übermensch, Andrés Sánchez Pascual
o traduz por “superhomem”. Para este termo especificamente adotaremos a tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho: “além-do-homem”.
40
Como vimos no aforismo 3 do prólogo de Ecce Homo, Nietzsche diz que filosofia é
“a procura por tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, por tudo aquilo que
até agora foi exilado pela moral”.
113
Isso é o contrário do que ocorria, para usar uma
perigosa generalidade, na “Idade Média” entre os cristãos. Para estes, era proibido lançar-se
ao desconhecido, ao que é estranho, ao não familiar.
114
Em contrapartida, os argonautas do
ideal não têm limites, e lançam-se ao desconhecido:
...nós, argonautas do ideal, mais corajosos talvez do que prudentes, (...) temos
diante de nós uma terra ainda inexplorada, cujos limites ninguém mediu ainda, um
além de todas as terras e rincões do ideal conhecidos até agora, um mundo tão
abundante em coisas belas, estranhas, problemáticas, terríveis e divinas, que nossa
curiosidade, assim como nossa sede de posse, ficam fora de si ai, que doravante
nada mais nos pode saciar!
115
Aqui Nietzsche fala de uma curiosidade insaciável. Mais uma vez, temos o contrário
do que ocorria na Idade Média”. Se no “medievo” era proibido lançar-se ao desconhecido,
é natural que a curiosidade fosse tida como problemática. Nesse sentido, lembremos que,
em Agostinho, a curiosidade não era problemática, mas sim pecado.
116
Além da
curiosidade, os argonautas do ideal a quem Nietzsche se refere, têm a coragem que falta aos
“idealistas”.
117
Eles navegam pelo reino dos conhecimentos perigosos. Por isso, Nietzsche
adverte: “...se o seu navio foi desviado até esses confins, muito bem: Cerrem os dentes!
Olhos abertos! Mão firme no leme! - navegamos diretamente sobre a moral e além dela,
sufocamos, esmagamos talvez nosso próprio resto de moralidade, ao ousar fazer a viagem
até lá - ...”
118
Essa curiosidade pelo desconhecido, pelo proibido, e a conseqüente solidão dos que
se aventuram por esse caminho, parece ser também a experiência daqueles “em que o tipo
113
Citado na p. 35, nota 96.
114
Sobre o tema do estranho, ver Item 3: “Notas a respeito da questão dos opostos”, p. 68.
115
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 382: “A grande saúde”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 179. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 143, 144.
116
Sobre curiosidade em Agostinho, ver Confissões, Livro X, Capítulo 35.
117
Sobre a covardia dos “idealistas” em oposição à veracidade de Zaratustra, ver citação do Ecce Homo, “Por
que sou um destino”, aforismo 3, no próximo item deste capitulo, p. 48, nota 150.
118
F. NIETZSCHE, Além do bem e do mal, Cap. I: “Dos preconceitos dos filósofos”, aforismo 23, trad. de
Paulo C. de Souza, p. 28.
41
‘espírito livre’ deva tornar-se alguma vez maduro”. Depois de contar ter inventado os
espíritos livres para lhe fazerem companhia, e dizer não duvidar “que poderia haver alguma
vez tais espíritos livres, (..) corporalmente e ao alcance da mão”,
119
Nietzsche fala sobre o
acontecimento decisivo que experimentam tais espíritos:
Pode-se supor que um espírito, em que o tipo “espírito livre” deva tornar-se alguma
vez maduro e doce até a perfeição, teve seu acontecimento decisivo em um grande
livramento e, por isso mesmo, que era antes um espírito ainda mais prisioneiro, e
parecia acorrentado para sempre em seu canto e pilar. (...) O grande livramento,
para os que estão presos a tal ponto, vem subitamente, como um tremor de terra: a
alma jovem é abalada de uma vez, arrancada, arrebatada – ela mesma não entende o
que se passa. Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela como um comando;
desperta uma vontade e desejo de ir avante, para onde for, a qualquer preço; uma
impetuosa e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado se inflama e crepita
em todos os seus sentidos. (...), um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de
andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, (...)
Com um riso maldoso ele revira o que encontra encoberto, poupado por alguma
vergonha: ensaia como seria o aspecto dessas coisas quando viradas no avesso. (...)
“Não se pode desvirar todos os valores? E bom é talvez mau? E Deus apenas uma
invenção e refinamento do diabo? É talvez tudo, no último fundo, falso? (...)
120
O espírito que vive acorrentado em seu canto e pilar, segundo nossa leitura, poderia
ser uma alusão aos prisioneiros da caverna de Platão. Esse espírito pode ser tomado por um
impulso de se libertar: “Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela (da alma jovem)
como um comando”. Seguir esse ímpeto, arcar com as conseqüências decorrentes das
andanças pelo desconhecido, pelo abandono do lar, exige coragem. Desta maneira, a
coragem poderia ser a chave que permite abrir os caminhos para a filosofia tal como
Nietzsche a entende: a coragem de obedecer a si mesmo, uma vez que o ímpeto seria uma
voz interior, que vem como uma voz de comando. A questão do comando e obediência
remete à questão da vontade, que é abordada por Nietzsche no aforismo 19 de Para além
119
IDEM, Humano, demasiado humano, prefácio tardio, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 42. Citado na p. 37, nota 101.
120
Ibid., aforismo 3, p. 42, 43.
42
de bem e mal. Segundo o filósofo, a vontade não é uma, mas um composto que reúne
sentimento, pensamento e afeto. Estes ingredientes da vontade se estruturam em termos de
comando e obediência. Quando todos os ingredientes da vontade vão na mesma direção,
pode-se obedecer aquele ímpeto. Não se trata de um comando racional, uma vez que está
presente também o sentir e os afetos. Trata-se de forças, que lutam em nós; mas trata-se de
uma luta em nível orgânico, que não podemos controlar. O êxito não depende apenas da
força de vontade. O trabalho não é produto do querer, mas também do obedecer. Para
Nietzsche, o corpo é uma estrutura social de muitas almas: umas comandam e outras
obedecem. Mas uma alma que antes comandava, pode passar a obedecer, e vice-versa. Em
Nietzsche, não vontade livre ou não livre. Em outras palavras, não há livre arbítrio. A
vontade pode ser forte ou fraca: é forte quando se consegue organizar as forças em função
de um “isso e apenas isso é necessário agora”,
121
e é fraca quando não se consegue. De
qualquer forma, o comando e a obediência estão sempre acontecendo: “Todo ser vivente é
um ser obediente. (...) Dita-se ordens a quem não sabe obedecer a si mesmo”
122
Voltando ao Ecce Homo, prólogo, aforismo 3, Nietzsche conta que foram justamente
suas andanças pelo proibido que lhe permitiram “considerar as causas pelas quais até agora
se moralizou e idealizou, de modo muito diferente do que seria desejável: a história
escondida dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes...”.
123
Perscrutando “a história
escondida dos filósofos”, Nietzsche de constatar seus preconceitos, que foram tratados
em Para além de bem e mal. Neste, a vontade de verdade aparece como o primeiro
preconceito. Ele diz que desde os tempos de Platão, nada foi mais venerado do que a
verdade; mas ninguém questionou qual o valor da verdade. Perguntar-se pelo valor é
começar o desmascaramento.
124
Outro preconceito dos filósofos metafísicos, tratado então
por Nietzsche, é pensar que os opostos têm origens diferentes, como por exemplo, o bem e
o mal. De acordo com Nietzsche, não existe uma origem para o bem, e outra para o mal.
Trata-se de forças, que ora transitam de um lado, ora de outro.
125
Os filósofos metafísicos
consideram, ainda, que o instinto e o pensamento consciente são coisas separadas. Mas,
121
IDEM, Para além de bem e mal, aforismo 19, trad. de Paulo C. de Souza, p. 23.
122
IDEM, Así habló Zaratustra, “Da superação de si mesmo”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 175.
123
Citado na p. 35, nota 96.
124
F. NIETZSCHE, Para além de bem e mal, Cap. I, “Dos preconceitos dos filósofos”, aforismo 1.
125
Ibid., aforismo 2. A questão dos opostos será tratada no Item 3 deste capítulo.
43
para Nietzsche, o que os filósofos chamam de pensamento consciente é instintivo.
126
Para
ele, o pensamento instintivo não estaria excluído das atividades intelectuais. Consciente e
instintivo estariam ligados, sendo que a maior parte do pensamento consciente seria guiada
pelo instinto. E a lógica, na perspectiva deste pensador, é guiada pelo instinto ilógico.
Sendo uma maneira de sobreviver, a lógica está a serviço da vida, e isso é instintivo. No
aforismo 111 de A Gaia Ciência,
127
Nietzsche aborda esse problema. A lógica surgiria do
ilógico: para sobreviver o homem tinha que distinguir o igual para se defender dos animais
selvagens e para se alimentar. A tendência de tratar o semelhante como igual (tendência
ilógica, já que nada é realmente igual), foi o que criou todo o fundamento para a lógica. No
que se refere aos pensamentos e inferências lógicas, estes se desenvolveram da luta entre os
impulsos. Hoje, esse mecanismo opera de forma tão rápida, que nem sequer notamos;
experimentamos apenas o resultado da luta:
O que significa conhecer? - Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere!
- diz Espinosa, (...) Entretanto: o que é esse intelligere, no último fundamento,
senão a forma em que justamente os três primeiros se fazem sentir a nós de uma
vez? Uma resultante dos impulsos, diferentes e contrários entre si, do querer-rir,
lamentar, execrar? Antes que seja possível um conhecer, é preciso que cada um
desses impulsos tenha apresentado seu ponto de vista unilateral sobre a coisa ou
acontecimento; posteriormente surgia o combate dessas unilateralidades, e dele às
vezes um meio termo, um apaziguamento, um dar-razão a todos os três lados, uma
espécie de justiça e contrato: pois graças à justiça do contrato podem todos esses
impulsos afirmar-se na existência e ter razão todos juntos. Nós, que só temos
consciência das últimas cenas de reconciliação e cômputos finais desse longo
processo, pensamos portanto que intelligere seja algo conciliador, justo, bom, algo
essencialmente oposto aos impulsos; enquanto é somente uma certa proporção dos
impulsos entre si.
128
Além disso, segundo Nietzsche, uma das superstições dos lógicos é acreditar que um
pensamento vem quando queremos, e não quando ele, o pensamento, quer. Em outras
126
Ibid., aforismo 3.
127
Ver a citação selecionada no Apêndice, p. 143.
128
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 333, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p.161, 162.
44
palavras, que o sujeito eu é a condição do predicado penso.
129
O hábito gramatical diz que o
pensar é uma atividade, e não existe atividade sem agente.
Outro preconceito dos filósofos, segundo Nietzsche, diz respeito à mentira. A
tradição filosófica afirma que se um juízo é falso, ele não tem valor. Para Nietzsche,
precisamos mudar a pergunta: em vez de perguntar se um juízo é verdadeiro ou falso,
devemos perguntar se favorece e conserva a vida, ou não.
130
Para ele, a função da mentira,
muitas vezes, é preservar a vida. Aliás, “A condição da existência dos bons é a mentira
expresso de outra maneira, o não-querer-ver a todo preço como a realidade é no fundo
constituída...”
131
Dessa forma, renunciar aos juízos falsos seria renunciar à vida. Por isso,
não importa que a ciência tenha sido fundada sobre inverdades. O problema é que, se
admitimos a inverdade como princípio de vida, estamos questionando os sentimentos
habituais de valor; e isso é perigoso. Uma filosofia que faz isso está se colocando além do
bem e do mal, ou seja, está além da questão dos valores.
132
Segundo Nietzsche, a moral está por trás de toda filosofia. Estudando as grandes
filosofias, gradualmente elas se revelam o que são: não passam de confissões pessoais de
seus autores.
133
As filosofias crescem a partir de ordenações morais (ou imorais, pois,
nietzscheanamente, resulta no mesmo). que ver como estão dispostos os instintos de um
filósofo. Para Nietzsche, todo instinto quer dominar, quer ser senhor dos demais. Assim,
para ver quem é o filósofo, basta ver qual é sua moral. Segundo Nietzsche, a convicção do
filósofo é inerente à sua filosofia: “Em toda filosofia um ponto no qual a ‘convicção’ do
filósofo entra em cena”.
134
E, com a filosofia ocorre o mesmo que ocorreu aos estóicos:
quando começa a acreditar em si mesma, age como os tiranos e quer criar o mundo a sua
imagem: “Filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual vontade de poder de
‘criação do mundo’, de causa prima.”
135
Para Nietzsche, os filósofos são advogados
defendendo seus preconceitos; mas chamam seus preconceitos de verdades.
136
129
IDEM, Para além de bem e mal, cap. I, “Dos preconceitos dos filósofos”, aforismo 17.
130
Ibid., aforismo 4.
131
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 4, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111, 112. Ver
citação selecionada no Apêndice, p. 154, 155.
132
Sempre lembrando que, para Nietzsche, bem e mal têm a mesma origem.
133
F. NIETZSCHE, Para além de bem e mal, cap. I, “Dos preconceitos dos filósofos”, aforismo 6.
134
Ibid., aforismo 8, trad. de Paulo C. de Souza, p. 14.
135
Ibid., aforismo 9, p. 15.
136
Ibid., aforismo 5.
45
Assim, de acordo com Nietzsche, trilhar caminhos conhecidos não é filosofia.
Quando estudamos a história da filosofia, vemos que os conceitos filosóficos pertencem a
um sistema, e os filósofos sempre se enquadram dentro desse sistema, pois fazem parte de
uma das filosofias possíveis dentro dele. Segundo Nietzsche, uma inata afinidade entre
os conceitos que direcionam os filósofos a uma ordem definida. Isso acontece pela
semelhança de família que entre as línguas. A função gramatical funciona como uma
espécie de aprisionamento do pensamento, e aqueles que filosofam na mesma língua, na
verdade, não descobrem nada de novo; apenas reconhecem, por semelhança de família, a
morada da alma de onde os conceitos brotaram. Por isso, para Nietzsche, as funções
gramaticais remetem a condições raciais e juízos de valor fisiológicos.
137
Depois de discorrer, ainda que rapidamente, sobre o primeiro capítulo de Para além
de bem e mal, “Dos preconceitos dos filósofos”, vale lembrar o que diz Gérard Lebrun a
esse respeito:
Nietzsche não condena os filósofos por terem exprimido os seus “preconceitos”:
censura-os por haverem montado uma ficção suplementar para esconderem, dos
outros e de si próprios, que o seu discurso pode ser o comentário dos seus
“preconceitos” entenda-se, de suas avaliações. A ideologia nociva é a que
acredita constituir uma exceção ao ideológico.
138
Vimos, assim, que filosofia, para Nietzsche, é a busca pelo desconhecido, por tudo o
que até então foi exilado pela moral. Para ele, filosofia não é algo pronto; tampouco é algo
baseado em algum modelo; o “objeto” filosofia vai se formando, e transformando, a partir
da prática. Para compreender a filosofia nietzscheana, a nosso ver, que, antes de mais
nada, poder experimentá-la. “Mas o fato de que hoje todos falem de coisas de que não
podem ter qualquer experiência vale particularmente, e desgraçadamente, para os filósofos
e os estados filosóficos...”
139
Em Nietzsche, além da curiosidade, da coragem e da solidão, a saúde e a doença
também estariam relacionadas à filosofia. Em 1886, ao escrever o prefácio da segunda
edição de A Gaia Ciência, ele diz que:
137
Ibid., aforismo 20. Esse aforismo foi citado na Introdução, p. 10, 11, nota 23.
138
G. LEBRUN, Passeios ao Léu, “Por que ler Nietzsche, hoje?”, p. 40.
139
F. NIETZSCHE, Além do bem e do mal, aforismo 213, trad. de Paulo C. de Souza, p. 107.
46
(...) Um psicólogo conhece poucas questões tão atraentes quanto a da relação entre
saúde e filosofia, (...) e com bastante freqüência eu me perguntei se, calculando por
alto, a filosofia até agora não foi em geral somente uma interpretação do corpo e um
mal-entendido sobre o corpo. (...) Ainda estou à espera de que um médico
filosófico, (...), terá uma vez o ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a
proposição: em todo filosofar até agora nunca se tratou de “verdade”, mas de algo
outro, digamos saúde, futuro, crescimento, potência, vida...
140
No mesmo ano em que Nietzsche escreveu esse prefácio à A Gaia Ciência, também
escreveu o prefácio à Humano, demasiado humano, no qual diz que este é “...um
ensinamento de saúde, que pode ser recomendado às naturezas mais espirituais da geração
que está surgindo, como disciplina voluntatis.”
141
Se ele suspeita que todo o filosofar até
agora seja “sintoma de determinados corpos”,
142
de pensadores doentes, por outro lado, fala
de uma nova saúde, da grande saúde, para aqueles que pertencem a um futuro ainda
indemonstrado:
(...) Aquele cuja alma tem sede de viver o âmbito inteiro dos valores e anseios que
prevaleceram até agora e de circunavegar todas as costas desse “mar mediterrâneo”
ideal, aquele que quer saber, pelas aventuras de sua experiência mais própria, o que
se passa na alma de um conquistador e explorador do ideal, assim como de um
artista, de um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um devoto, de
um adivinho, de um apóstata no velho estilo: este precisa, para isso, primeiro que
tudo, de uma coisa, da grande saúde de uma saúde tal, que não somente se tem,
mas que também constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar, porque
sempre se abre mão dela outra vez, e se tem de abrir mão! (...)
143
140
IDEM, A Gaia Ciência, prefácio à segunda edição (1886), aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 145, 146. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 142, 143.
141
IDEM, Humano, demasiado humano, Vol. II, “Miscelânia de opiniões e sentenças”, prefácio, aforismo 2,
trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 80.
142
IDEM, A Gaia Ciência, prefácio à segunda edição (1886), aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 146.
143
Ibid., Livro V, aforismo 382: “A grande saúde”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 178, 179. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 143, 144.
47
Não entraremos em detalhes sobre a importância que a filosofia nietzscheana dá à
fisiologia,
144
mas cabe assinalar a relação desta com a simbologia, para ter um vislumbre da
linguagem simbólica em Nietzsche. De acordo com Mircea Eliade, “É provável que, num
passado muito longínquo, todos os órgãos e experiências fisiológicas do homem, bem como
todos os seus gestos, tivessem um significado religioso. (...) Para o homem a-religioso,
todas as experiências vitais tanto a sexualidade como a alimentação, o trabalho como o
jogo foram dessacralizadas. Isto quer dizer que todos os atos fisiológicos foram
desprovidos de significado espiritual, desprovidos portanto da dimensão verdadeiramente
humana.”
145
Nesse contexto, segundo Eliade, os atos fisiológicos seriam uma imitação dos
deuses, havendo uma correspondência entre o homem e o Universo. O olho, por exemplo,
corresponderia ao sol, os ossos às pedras e os cabelos às ervas. O exemplo do olho
podemos encontrar no Zaratustra, na passagem onde ele, numa linguagem simbólica,
conversa com o sol: “Abençoa-me, pois, olho tranqüilo, capaz de olhar sem inveja,
inclusive uma felicidade demasiado grande!”
146
Nietzsche fez de sua “vontade de saúde, de vida”, sua filosofia.
147
E se, para ele, a
filosofia está relacionada à curiosidade, à coragem, à solidão, à saúde, à doença, à vida, é
porque sua filosofia trabalha com o que, até então, foi proibido: Nitimur in vetitum: neste
signo vencerá um dia minha filosofia, pois até agora o que se proibiu sempre, por princípio,
foi somente a verdade”.
148
Não se trata aqui da verdade platônica, mas da verdade no
sentido de veracidade, como podemos ver, por exemplo, no Ecce Homo:
Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão... E
apesar disso, ou melhor, não apesar disso pois ao momento nada houve mais
mendaz do que os santos -, a verdade fala em mim. Mas a minha verdade é
terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade. tresvaloração de todos os
144
Sobre essa questão, ver, por exemplo, Para além de bem e mal, aforismo 3, citado na p. 6, nota 14, e
aforismo 20, citado na p. 11, nota 23; Assim falou Zaratustra, Primeira parte, “Dos desprezadores do corpo”,
citado na p. 35, nota 95; Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 2; “Por que sou tão sábio”, aforismo
8, citado nas p. 91, 92, nota 294; A Gaia Ciência, prefácio, aforismo 2, citado no Apêndice, p. 142, 143.
145
M. ELIADE, O sagrado e o profano, cap. IV, p. 137, 138.
146
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 1, trad. de Andrés S. Pascual, p. 34.
147
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, vol. II, p. 150. Ver citação selecionada no apêndice, p. 151, 152.
148
Ibid., prólogo, aforismo 3, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II,
p. 146. Esse aforismo foi citado na p. 35, nota 96.
48
valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema auto-gnose da humanidade,
que em mim se fez gênio e carne. Minha sina quer que eu seja o primeiro homem
decente, que eu me veja em oposição à mendacidade de milênios...
149
Abordaremos a questão da veracidade no próximo item, quando veremos que
Nietzsche, segundo nossa leitura, não escolheu por acaso o personagem Zaratustra, mas
sim porque este é mais veraz do que qualquer outro pensador.
2.2. QUEM É ZARATUSTRA?
Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntado, o que precisamente em
minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o
que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o
contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a
verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas a transposição da moral para o
metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no
fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em
conseqüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo. Não só que ele tenha
nisso experiência maior e mais longa que outro pensador – pois a história inteira é a
refutação experimental da sentença da dita “ordem moral universal” -: mais
importante, Zaratustra é mais veraz do que qualquer outro pensador. Sua doutrina,
apenas ela, tem a veracidade como virtude maior – isso é o contrário da covardia do
“idealista”, que bate em fuga diante da realidade; Zaratustra tem mais valentia no
corpo do que os pensadores todos reunidos. Falar a verdade e atirar bem com
flechas, eis a virtude persa. Compreendem-me?... A auto-superação da moral pela
veracidade, a auto-superação do moralista em seu contrário em mim isto
significa em minha boca o nome Zaratustra.
150
No aforismo supracitado, Nietzsche indica a seus leitores o que significa o nome
Zaratustra em sua boca. Contudo, não há um consenso com respeito a essa questão.
149
Ibid., “Por que sou um destino”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 109. Ver citação selecionada no
Apêndice, p. 154.
150
Ibid., aforismo 3, p. 110, 111.
49
Determinadas leituras concebem Zaratustra como um personagem que Nietzsche teria
escolhido aleatoriamente; outras o vêem como o alter ego do filósofo. Além disso, muitos
leitores pensam que Zaratustra é o além-do-homem. Quanto a esta última questão, uma
leitura mais atenta mostra que Zaratustra não é o além-do-homem, mas aquele que vem
anunciá-lo e ensiná-lo:
Quando Zaratustra chegou à cidade mais próxima, nas imediações dos bosques,
encontrou reunida no mercado uma grande multidão: porque havia sido anunciada a
exibição de um equilibrista. E Zaratustra falou assim ao povo:
Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que
fizestes para superá-lo?
151
No final do aforismo subseqüente, dirá: “Vede, eu sou um anunciador do raio e uma
pesada gota que cai da nuvem: mas esse raio se chama além-do-homem.”
152
E,
posteriormente, indicará um caminho para chegar a ele: “Ali onde o Estado acaba, - olhai
para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes do além-do-homem? –“
153
E a
entender que ele ainda não existe no presente: “Vós solitários de hoje, vós que vos apartais,
havereis um dia de ser um povo: de vós, que vos elegestes a vós próprios, há de crescer um
povo eleito: - e dele o além-do-homem.”
154
Gilles Deleuze, ao tratar desse assunto, diz:
E quando Nietzsche se interrogar sobre as razões que o levaram a escolher o
personagem Zaratustra, encontrará três, muito diversas e de desigual valor. A
primeira é Zaratustra como profeta do eterno retorno; mas Zaratustra não é o único
profeta, nem sequer aquele que melhor pressentiu a verdadeira natureza daquilo que
anunciava. A segunda razão é polêmica: Zaratustra primeiro introduziu a moral na
metafísica, fez da moral uma força, uma causa, um fim por excelência; está portanto
melhor colocado para denunciar a mistificação, o erro desta mesma moral. (Mas
uma razão análoga valeria para Cristo: quem, melhor que Cristo, estará apto para
desempenhar o papel de anti-cristo... e de Zaratustra em pessoa?). A terceira razão,
151
IDEM, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 3, trad. de Andrés S. Pascual, p. 36.
152
Ibid., aforismo 4, p. 40.
153
Ibid., Primeira parte, “Do novo ídolo”, p. 89.
154
Ibid., “Da virtude que dá presentes”, aforismo 2, p. 126. (Citado anteriormente na nota 112, p. 39).
50
retrospectiva mas apenas suficiente, é a bela razão do acaso: “Hoje aprendi por
acaso o que significa Zaratustra, a saber uma estrela em ouro. Este acaso encanta-
me”.
155
A afirmação de Deleuze, de que Nietzsche, ao “se interrogar sobre as razões que o
levaram a escolher o personagem Zaratustra, encontrará três...”, não nos parece resistível
em relação aos próprios escritos de Nietzsche, porque este, a nosso ver, não se interrogaria
sobre razões, uma vez que para ele “As coisas honestas, tal como as pessoas honestas, não
servem suas razões assim com as mãos. É indecoroso mostrar os cinco dedos. O que precisa
ser inicialmente provado tem pouco valor.”
156
Como podemos ler no aforismo 3 do Ecce
Homo, Por que sou um destino, ele fica surpreso por ninguém interrogar o que significa
o nome Zaratustra em sua boca.
157
De qualquer forma, analisemos as três razões que
Deleuze atribui ao próprio Nietzsche para justificar a escolha do personagem:
A primeira razão: “Zaratustra como profeta do eterno retorno”:
O fato de Zaratustra ser o profeta do eterno retorno não justifica a escolha deste
como personagem. Para fazer essa afirmação seria necessário encontrar nos escritos de
Nietzsche indícios a respeito, ou seja, que assinalassem a escolha de Zaratustra por este ser
o profeta do eterno retorno.
A segunda razão: “Zaratustra primeiro introduziu a moral na metafísica, fez da moral
uma força, uma causa, um fim por excelência; está portanto melhor colocado para
denunciar a mistificação, o erro desta mesma moral. (Mas uma razão análoga valeria
para Cristo: quem, melhor que Cristo, estará apto para desempenhar o papel de anti-
cristo... e de Zaratustra em pessoa?)”:
Uma razão análoga não poderia valer para Cristo, uma vez que este não foi o
primeiro moralista histórico. O primeiro moralista, segundo Nietzsche, foi Zaratustra :
...Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda
motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o metafísico, como
155
Gilles DELEUZE, Nietzsche e a Filosofia, p. 48. As referências dos escritos de Nietzsche dadas por
Deleuze são as seguintes: para a primeira razão: nota 2: VP, IV, 155; para a segunda razão: nota 3: EH, IV, 3,
e nota 4: Z, I, “Da morte voluntária”; para a terceira razão: nota 5: Carta a Gast, 20 de maio de 1883.
156
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, “O problema de Sócrates”, aforismo 5, trad. de Marco A. C.
Nova, p. 22. Ver citação selecionada no apêndice, p. 149.
157
Citado no início deste item, p. 48, nota 150.
51
força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão seria no fundo a resposta.
Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser
também o primeiro a reconhecê-lo.
158
O Zaratustra de Nietzsche, o primeiro imoralista, é o contrário do Zaratustra
histórico, o primeiro moralista. Além disso, no referido aforismo, Nietzsche diz que o mais
importante não é o fato de Zaratustra ter sido o primeiro a introduzir a moral na metafísica,
mas sim o fato de ser mais veraz do que qualquer outro pensador, e que “sua doutrina,
apenas ela, tem a veracidade como virtude maior – isso é o contrário da covardia do
‘idealista’, que bate em fuga diante da realidade (...) a auto-superação da moral pela
veracidade, a auto-superação do moralista em seu contrário em mim isto significa em
minha boca o nome Zaratustra.”
159
Essa questão da veracidade nos parece de extrema importância.
160
Nietzsche está
dizendo que Zaratustra é mais veraz do que qualquer outro pensador e que só a sua doutrina
tem a veracidade como virtude maior. Trata-se aqui da virtude persa: Falar a verdade e
atirar bem com flechas”. Assim, entendemos que Nietzsche tenha escolhido Zaratustra
porque o Zaratustra histórico é o mais veraz de todos os pensadores, e só a sua doutrina tem
a veracidade como virtude maior. Como esse aspecto de Zaratustra é, segundo Nietzsche, o
contrário da covardia do “idealista”, que foge diante da realidade, o filósofo escolhe esse
personagem para que a auto-superação da moral seja feita justamente pelo contrário do que
ela representa; ou seja, enquanto a moral representa a mentira, Zaratustra representa a
veracidade. A moral é superada pela veracidade, o moralista é superado pelo imoralista.
158
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111.
Citado na p. 48, conforme nota anterior.
159
Ibid.
160
A questão da veracidade, de ser honesto e autêntico, foi assinalada por Nietzsche em seus primeiros
escritos. Na III Consideração Intempestiva, por exemplo, ele pergunta: “Mas o que obriga o indivíduo a temer
o seu vizinho, a pensar e agir como animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? (...) os homens são
ainda mais preguiçosos do que timoratos e temem antes de mais nada os aborrecimentos que lhes seriam
impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas.” (F. NIETZSCHE, III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer educador, aforismo 1, trad. de Noéli Correia de Melo Sobrinho, in: Escritos sobre Educação,
p. 138).
52
Como a Verdade
161
é uma herança platônica, Nietzsche faz aqui uma crítica, e
substitui a Verdade por veracidade, no sentido de dizer a verdade, de ser honesto e
autêntico. Há, em Zaratustra, uma valorização da honestidade como algo raro e precioso,
em contrapartida à falsidade.
Ser verdadeiro poucos são capazes disto! E quem é capaz, não quer todavia! E os
menos capazes de todos são os bons.
Oh esses bons! Os homens bons nunca dizem a verdade; para o espírito, ser bom
desse modo é uma doença.
162
Na quarta e última parte do livro, Zaratustra dirige-se aos homens superiores com as
seguintes palavras:
Nada quereis acima de vossa capacidade: uma falsidade perversa nos que
querem acima de sua capacidade.
Especialmente quando querem coisas grandes! Pois despertam desconfiança contra
as coisas grandes, esses refinados falsários e comediantes: -
Até que finalmente são falsos diante de si mesmos, gente de olhos vesgos, (...)
Muito cuidado com isso, homens superiores, pois nada me parece hoje mais
precioso e raro que a honestidade.
O hoje não pertence à plebe? Mas a plebe não sabe o que é grande, o que é
pequeno, o que é reto e honesto: ela é inocentemente torcida, ela mente sempre.
163
E, um pouco adiante, lemos: Zarathustra der Wahrsager, Zarathustra der
Wahrlacher...”.
164
A palavra alemã “Wahr” significa verdadeiro, autêntico; Wahrsager quer
161
Como diferenciação, colocamos o termo Verdade (com v maiúsculo) para indicar que se trata da verdade
como herança platônica, como essência.
162
F. NIETZSCHE, Ahabló Zaratustra, terceira parte, “Das tábuas velhas e novas”, aforismo 7, trad. de
Andrés S. Pascual, p. 283. Nietzsche cita o aforismo 26 de “Das tábuas velhas e novas” no Ecce Homo, “Por
que sou um destino”, aforismo 4, no qual ele fala que “A condição da existência dos bons é a mentira...” (trad.
de Paulo C. de Souza, p. 111. Ver citação selecionada no apêndice, p. 154, 155)
163
Ibid., quarta parte, “O homem superior”, aforismo 8, p. 393, 394.
164
IDEM, Also sprach Zarathustra, Vom heren Menschen”, aforismo 18, p. 297, Insel Verlag, 2007.
Andrés Sánchez Pascual assim traduziu a referida frase: “Zaratustra o que diz verdade, Zaratustra o que ri
verdade...” (“Do homem superior”, aforismo 18, p. 399). Em nota, Pascual escreve que Wahrsager é
adivinho, mas por sua composição, Wahr (verdade), e Sagen, (´”o que diz”), e Wahrlacher, palavra criada
53
dizer adivinho. O adivinho poderia ser interpretado como aquele que diz a verdade.
165
a
palavra Wahrlacher”, foi inventada por Nietzsche: Wahr, como dissemos, significa
verdadeiro, e Lacher, quer dizer “aquele que ri”. Nietzsche, então, estaria assinalando um
riso verdadeiro, um riso autêntico: Zaratustra é veraz não só quando se expressa em
palavras, mas também quando se expressa em risos.
A terceira razão: “a bela razão do acaso: ‘Hoje aprendi por acaso o que significa
Zaratustra, a saber uma estrela em ouro. Este acaso encanta-me.’”:
Ora, o fato de Nietzsche ter aprendido por acaso que Zaratustra significa uma estrela
em ouro não justifica a escolha do personagem. Ou seja, a descoberta por acaso do
significado não implica na razão da escolha.
Há, ainda, outro fato importante a ser destacado: Nietzsche diz : - isto significa em
minha boca o nome Zaratustra.”
166
Nos chama a atenção o fato de Nietzsche dizer “o nome
Zaratustra”, e não apenas: “isto significa em minha boca Zaratustra”, ou ainda, “o
personagem Zaratustra”. Dois aforismos antes deste que estamos analisando, ele anuncia:
“Conheço a minha sina. Um dia meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo de
uma crise como jamais houve sobre a Terra ...
167
Parece que quando Nietzsche fala dele
mesmo, não está falando dele como pessoa, como indivíduo, mas como algo maior que fala
e acontece através dele. Da mesma forma, o nome Zaratustra não se referiria apenas a um
personagem chamado Zaratustra, mas a algo maior que ele abrange e direciona. Além
disso, ao dizer - isto significa em minha boca o nome Zaratustra.”, Nietzsche nos indica
que está nomeando, ou seja, está dando outro sentido ao nome. Porém, o fato de manter o
mesmo nome nos faz pensar que é ao mesmo tempo um novo e o velho Zaratustra. Do
contrário, por que usaria um nome que já existiu na história?
Para saber quem é Zaratustra na boca de Nietzsche, devemos recorrer aos próprios
textos do autor. Analisemos o seguinte escrito, no capítulo intitulado “Assim Falou
Zaratustra – um livro para todos e para ninguém”, em seu livro Ecce Homo:
por Nietzsche por analogia a anterior, o significado desse jogo de palavras seria: “Zaratustra é aquele que diz
verdade, tanto com suas palavras como com seus risos.” (Ibid., nota 539, p. 490).
165
Vimos que, em Platão, a adivinhação surge do âmbito irracional (p. 29, 30); assim, com esse jogo de
palavras também se pode concluir que o irracional diz a verdade, enquanto que o racional, nem sempre.
166
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111.
167
Ibid., aforismo 1, p. 109. Ver citação selecionada no Apêndice, p. 154.
54
Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o
pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em
absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi lançado em uma página com o
subescrito: “seis mil pés acima do homem e do tempo”. Naquele dia eu caminhava
pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um imponente bloco
de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse
pensamento. Retrocedendo alguns meses a partir desse dia, encontro, como signo
premonitório, uma súbita e profundamente decisiva mudança em meu gosto,
sobretudo na música. Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; -
certamente um renascimento da arte de ouvir era uma precondição para ele. Em
uma pequena estação de águas próxima a Vicenza, Recoara, onde passei a
primavera de 1881, descobri, juntamente com o meu maestro e amigo Peter Gast,
também ele um “renascido”, que a fênix Música por nós passava em vôo, com
plumagem mais leve e luminosa do que jamais exibira. (...) Pela manhã eu subia
na direção sul, no magnífico caminho para Zoagli, até o alto, passando por
pinheiros e avistando vasta porção de mar; à tarde, quando a saúde o permitia,
contornava toda a baía de Santa Margherita até Porto Fino. (...) – Nesses dois
caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio Zaratustra
como tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim...
168
Lemos aqui que a concepção fundamental da obra é o pensamento do eterno retorno.
Esse pensamento, como Nietzsche relata, lhe veio em um bosque onde caminhava,
exatamente no momento em que se deteve em frente a uma pedra em forma de pirâmide.
Segundo nossa leitura, isso não implica que o pensamento do eterno retorno poderia ser
transmitido pela boca de Zaratustra. O próprio Nietzsche diz que “a doutrina do ‘eterno
retorno’, isto é, da translação incondicionada e infinitamente repetida de todas as coisas
essa doutrina de Zaratustra poderia, afinal, ter sido ensinada também por Heráclito. Pelo
menos o estoicismo, que herdou de Heráclito quase todas as suas representações
fundamentais, tem vestígios dela.”
169
E diz ainda que se tivesse batizado seu Zaratustra
168
Ibid., Assim falou Zaratustra”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 82-84. Obs.: Sobre o final do
aforismo, onde lemos: “ele caiu sobre mim, o tradutor escreve em nota: “Perdeu-se a relação entre einfallen
(ocorrer, ter a idéia) e überfallen (assaltar, cair sobre). Andrés nchez Pascual, em sua tradução (Alianza
Editorial, 1971), optou por: “este me assaltou”. Ver a citação selecionada no Apêndice, p. 152.
169
Ibid., O Nascimento da Tragédia”, aforismo 3, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas,vol. 1, p. 25.
55
com outro nome, por exemplo com o de Richard Wagner, a perspicácia de dois milênios
não teria bastado para adivinhar que o autor de Humano, demasiado humano é o visionário
do Zaratustra...”
170
De qualquer forma, tratar-se-ia de uma revelação: “A noção de
revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza e sutileza, algo se torna
visível, audível, algo que comove e transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o
estado de fato. Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento
reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma – jamais tive opção.”
171
Além disso, Nietzsche, fazendo uma espécie de retrospecção diagnóstica, encontra
como signo premonitório do pensamento do eterno retorno, uma mudança em seu gosto,
sobretudo na sica. Disso discorre que “talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como
música.” Mas uma coisa é certa: “um renascimento da arte de ouvir era uma precondição
para ele(para o surgimento do pensamento do eterno retorno). Ou seja, a arte de ouvir
havia morrido, e o pensamento do eterno retorno tinha como precondição o renascimento
dessa arte. Nietzsche relata ainda que, junto com seu amigo Peter Gast, “também ele um
‘renascido’”, descobriu que a fênix Música por eles passava em vôo. Seria Zaratustra uma
música que renasce das cinzas e, ao sobrevoar, se revela para Nietzsche?
172
Nietzsche, no primeiro aforismo do Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, ao
continuar a história de Zaratustra, relata que pela manhã subia na direção sul e à tarde,
conforme suas condições de saúde, contornava a baía de Santa Margherita. E, “nesses dois
caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio Zaratustra como tipo:
mais corretamente, ele caiu sobre mim...”. Neste relato, Zaratustra é retratado como tipo.
Isso reforça o que foi dito anteriormente, de Zaratustra ser mais que um personagem, de ser
algo maior que ele abrange e direciona.
173
E, ao dizer que Zaratustra caiu sobre ele,
Nietzsche pode estar se referindo à mesma noção de revelação inspiradora citada
anteriormente.
170
Ibid., “Por que sou tão inteligente”, aforismo 4, trad. de Paulo C. de Souza, p. 43.
171
Ibid.,Assim falou Zaratustra”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 85.
172
Lembrando que fênix, na mitologia grega, é a ave que renasce das próprias cinzas.
173
Ver p. 53.
56
Além de analisar os escritos de Nietzsche, para responder quem é seu Zaratustra
tentaremos conhecer um pouco do Zaratustra histórico, para saber até que ponto este tem
alguma relação com aquele, além da questão da veracidade já abordada.
O ZARATUSTRA HISTÓRICO
Zaratustra viveu na Ásia Central, num território que compreende o que é hoje a parte
oriental do Irã e a região ocidental do Afeganistão. Não existe um consenso com relação ao
período em que viveu. Os acadêmicos costumam situar sua vida entre 1.750 e 1.000 A.C..
Para Mircea Eliade, tudo indica que este reformador viveu por volta de 1000 a.C.. Sua
mensagem opunha-se à religião vigente: condenava os sacrifícios e o uso do haoma (bebida
alucinógena), e propunha uma mudança do panteão, que se tornaria monoteísta e dualista.
A reforma de Zaratustra é comparável à revolução órfica da Grécia antiga, que visava a
uma reforma das orgias dionisíacas, mas sua diferenciação está na combinação de
monoteísmo com dualismo. Vinculado a isso, no zoroastrismo
174
está presente a idéia do
livre-arbítrio: Ahura Mazda, o Senhor Supremo, cria todos os contrastes, mas seus dois
filhos gêmeos, o Espírito Benfazejo e o Espírito Negador, devem escolher entre a ordem da
verdade e da mentira. Esse dualismo ético também apresenta aspectos teológicos,
cosmológicos e antropológicos; mas não um dualismo entre espírito e corpo, uma vez
que ambos são criações de Deus. Sendo o mundo a boa criação de Ahura Mazda, os
zoroastrianos não esperam o “fim do mundo”, mas sim o tempo em que ele ficará livre das
impurezas trazidas pelo mal. Apesar de acreditarem que o bem e o mal sempre existiram,
acreditam que haverá uma batalha entre essas duas forças, e que o bem vencerá. Esperam a
vinda de um salvador que nascerá de uma virgem fecundada pelo sêmen do profeta
Zaratustra, ressuscitará os mortos e promoverá um julgamento universal.
Muitos estudiosos de religião comparada dizem ser muito provável que as três
grandes religiões do mundo, as religiões judaica, cristã e muçulmana, receberam influências
da religião de Zaratustra.
Diz a lenda que, ao nascer, Zaratustra não chorou, mas riu sonoramente. Quando
adulto, tornou-se sacerdote, e praticou a meditação solitária. Aos 30 anos de idade, durante
174
Zoroastro é a forma grega do nome iraniano Zarathushtra.
57
um ritual de purificação, teve a visão de um ser de luz que se apresentou como sendo Vohu
Manah (“Bom Pensamento”), e que o conduziu à presença de Deus.
As autoridades locais opunham-se às doutrinas de Zaratustra, que acaba abandonando
sua terra natal, fixando-se na corte do rei Vishtapa, na Báctria, atual Afeganistão. Mas, diz
ainda a lenda que Zaratustra curou milagrosamente o cavalo favorito do rei. Por isso, este
converte-se à doutrina de Zaratustra e o zoroastrismo foi declarado religião oficial do reino.
Zaratustra foi casado duas vezes e teve vários filhos. Escreveu os Gathas, em
dezessete hinos. Estes constituem a parte mais importante do Avesta, o livro sagrado do
zoroastrismo. Os Gathas contém um pensamento dual, entendido como uma livre escolha
entre o bem e o mal. Posteriormente, essa dualidade torna-se cosmológica, entendida como
uma batalha no mundo entre forças benignas e forças malignas. Aos setenta e sete anos
Zaratustra é assassinado por um sacerdote.
Na década de sessenta do século XIX, um filólogo alemão, Martin Haug, concluiu
que apenas os Gathas foram escritos pelo profeta Zaratustra. Quanto ao restante do Avesta
não se sabe ao certo quem os escreveu.
Os templos religiosos do zoroastrismo são conhecidos como templos de fogo. O fogo
é o centro do culto. O fogo sagrado arde sobre uma pira metálica colocada sobre uma pedra.
Os zoroastrianos acreditam que o corpo humano é puro, e não algo que deva ser rejeitado.
Quando uma pessoa morre, um cão é trazido perante o cadáver, num ritual que se repete
cinco vezes por dia, durante três dias, mantendo acesa uma pira de fogo. Depois o cadáver é
colocado ao ar livre, em estruturas conhecidas como Torres do Silêncio, para serem
devorados por aves de rapina.
Não temos conhecimento a respeito de leituras que Nietzsche teria feito do livro
sagrado do zoroastrismo. Mas, nos perguntamos, junto com Jean Lefranc:
Será que temos o direito de reduzir Zaratustra a um nome, um pseudônimo
escolhido pelo filósofo por sua sonoridade, seu caráter exótico, mas sem relação
precisa com o profeta que viveu na Pérsia (...)? De fato, Nietzsche não ignorava o
personagem nem a religião zoroastriana, pelo menos através da importante
exposição que dele fazia F. Creuzer em suas Religiões da Antiguidade. Zaratustra é
certamente muito mais que um simples nome de sacerdote escolhido
58
deliberadamente por Nietzsche para enunciar poeticamente suas próprias
verdades.
175
Além disso, uma declaração da irmã do filósofo, Elisabeth Förster Nietzsche,
sobre a origem de seu Zaratustra. Embora seja fato que Elisabeth fez alterações na obra do
irmão, e que posteriormente pesquisadores tiveram acesso aos originais, e puderam
publicar seus escritos sem tais alterações; com essa ressalva, transcrevemos aqui suas
palavras:
...A figura de Zaratustra apareceu desde os jovens anos ao meu irmão que me
escreveu, certa vez, tê-la visto em sonho, quando menino. A esta forma de sonho
ele deu, segundo os tempos, nomes diferentes; “mas por fim diz em anotação
posterior dei preferência a um persa. Primeiramente pensaram os persas na
história de modo vasto e completo. Veio um séquito de evoluções, cada qual
presidida por um profeta. Cada profeta tem o seu Hazar e o seu reino de mil
anos.”
176
Reunindo as informações do Zaratustra histórico, a posição de Jean Lefranc e a
declaração da irmã de Nietzsche, pode-se chegar a algumas hipóteses. A nosso ver, o fato
de a figura de Zaratustra ter aparecido em um sonho para Nietzsche, mesmo que a forma
do profeta persa lhe tenha ficado clara posteriormente, é um indício de que tal
personagem não foi escolhido aleatoriamente. Símbolos podem aparecer em sonhos.
Zaratustra pode ter sido um símbolo que se tornou vivo dentro de Nietzsche. Sonho não é
algo que passa despercebido a esse pensador. Entre o possível sonho da infância e a escolha
de Zaratustra como personagem, Nietzsche escreve:
A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um
artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também, como
veremos, de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma
compreensão imediata da figuração, todas as formas nos falam, o nada que
175
Jean LEFRANC, Compreender Nietzsche, p. 260.
176
Essa citação encontra-se no apêndice intitulado “Origem de Assim falava Zaratustra’”, inserido na versão
em português de Assim Falava Zaratustra, de José Mendes de Souza, de 1950, pela Brasil Editora, p. 299.
59
seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica temos
ainda, todavia, a transluzente sensação de sua aparência (...) O homem de
propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também sob essa realidade,
na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra, inteiramente diversa, que
portanto também é uma aparência. (...) A verdade superior, a perfeição desses
estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente
inteligível, seguida da profunda consciência da natureza reparadora e sanadora do
sono e do sonho, é simultaneamente o análogo simbólico da aptidão divinatória e
mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida.
177
Também o fato de o Zaratustra histórico, de acordo com a lenda, ter rido
sonoramente ao nascer, pode ter alguma ligação com o Zaratustra de Nietzsche. Apesar de
não podermos afirmar que o autor do Zaratustra tinha conhecimento dessa lenda, sabemos,
no entanto, que ele valorizava o riso, em contraste com a costumeira sisudez dos filósofos:
Não obstante aquele filósofo que, como autêntico inglês, tentou difamar o riso entre
as cabeças pensantes “o riso é uma grande enfermidade da natureza humana, que
toda cabeça pensante se empenharia em superar” (Hobbes) eu chegaria mesmo a
fazer uma hierarquia dos filósofos conforme a qualidade do seu riso – colocando no
topo aqueles capazes da risada de ouro. E supondo que também os deuses
filosofem, como algumas deduções já me fizeram crer, não duvido que eles também
saibam rir de maneira nova e sobre-humana – e à custa de todas as coisas sérias! Os
deuses gostam de gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não deixam
de rir.
178
Uma das possíveis interpretações sobre o título de seu livro A Gaia Ciência como
“ciência alegre”, testemunharia seu apreço pelo riso. Livro este que, aliás, “contém mil
indícios da proximidade de algo incomparável; afinal, ela (a gaya scienza) inclusive o
177
F. NIETZSCHE, O nascimento da tragédia, aforismo 1, trad. de J. Guinsburg, p. 28, 29.
178
IDEM, Além do bem e do mal, aforismo 294, trad. de Paulo C. de Souza, p. 177.
60
começo do Zaratustra, na penúltima parte do quarto livro dá o pensamento básico do
Zaratustra”
179
E esse livro tem como epígrafe as seguintes palavras:
Moro em minha própria casa,
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre,
Que não riu de si também.
SOBRE MINHA PORTA
180
Já no livro III da mesma A Gaia Ciência, Nietzsche escreve: “Rir significa: ter
alegria com o mal dos outros, mas com boa consciência.”
181
E não podemos esquecer que
no livro anterior a este, ele observa:
Pessoas profundamente magoadas pela vida suspeitam de toda alegria, como se esta
sempre fosse ingênua e pueril e demonstrasse irracionalidade, em vista da qual
poderíamos sentir apenas comiseração e enternecimento, (...) divertimento,
agitação, música festiva lhes parece o resoluto engano de si mesmo de um doente
grave, que por um minuto ainda quer saborear a embriaguez da vida. Mas esse
julgamento sobre a alegria não é outra coisa que a refração dela no fundo escuro do
cansaço e da doença: é ele mesmo algo tocante, irracional, que leva à compaixão, é
inclusive algo ingênuo e pueril, mas vindo daquela segunda infância que segue a
velhice e antecede a morte.
182
Em várias passagens de Assim Falou Zaratustra o riso é enaltecido. Na primeira
parte do livro, por exemplo, lemos:
O ar rarefeito e puro, o perigo próximo e o espírito cheio de uma alegre
maldade: essas coisas se harmonizam bem.
179
IDEM, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 83. Ver citação
selecionada no apêndice, p. 152. A penúltima parte do quarto livro, que diz a citação, é o aforismo 341: “O
maior dos pesos”, que dá o pensamento do eterno retorno.
180
IDEM, A Gaia Ciência, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p.
143.
181
Ibid., livro III, aforismo 200, trad. de Paulo C. de Souza, p.172.
182
IDEM, Aurora, livro IV, aforismo 329, trad. de Paulo C. de Souza, p. 196, 197.
61
Quero ter duendes ao meu redor, pois sou corajoso. O valor que afugenta os
fantasmas cria seus próprios duendes, - o valor quer rir.
Eu já não sinto como vós: essa nuvem que vejo debaixo de mim, essa coisa
negra e pesada de que me rio - justamente essa é vossa nuvem tempestuosa.
183
E Zaratustra continua:
Vós olhais para cima, quando desejais elevação. E eu olho para baixo,
porque estou elevado.
Quem de vós pode ao mesmo tempo rir e estar elevado?
Quem ascende às montanhas mais altas ri de todas as tragédias, as do teatro e
as da vida.
184
E do poder do riso, falará mais adiante:
...E quando vi meu demônio o encontrei sério, grave, profundo, solene: era o
espírito de gravidade, - ele faz cair a todas as coisas.
Não com a ira, se não com o riso se mata. Adiante, matemos o espírito de
gravidade!
185
Temos ainda o pastor em “Da Visão e Enigma”: “Já não pastor, não homem, - um
transfigurado, iluminado, que ria! Nunca antes na terra havia rido homem algum como ele
riu!”
186
E na quarta e última parte do livro, dirá:
Esta coroa daquele que ri, esta coroa de rosas: eu mesmo coloquei sobre minha
cabeça esta coroa, eu mesmo santifiquei minhas risadas. Não encontrei mais
ninguém forte o bastante hoje para fazer isso. (...)
Zaratustra o que diz verdade, Zaratustra o que ri verdade, (...)
183
IDEM, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Do ler e escrever”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 73, 74.
184
Ibid., p. 74. Nietzsche coloca essas mesmas palavras como epígrafe da terceira parte do livro (p. 221).
185
Ibid., p. 74, 75.
186
Ibid., Terceira parte, “Da visão e Enigma”, aforismo 2, p. 232.
62
Esta coroa daquele que ri, esta coroa de rosas: a vós, meus irmãos, atiro esta coroa!
Eu santifiquei o riso; vós homens superiores, aprendei – a rir!
187
Além disso, temos também a coincidência das idades. Zaratustra histórico, aos trinta
anos de idade teve a visão de um ser de luz que o conduziu à presença de Deus. Como sua
doutrina não foi aceita, abandonou sua terra natal. Zaratustra de Nietzsche, aos trinta anos
de idade, “abandonou sua terra natal e o lago de sua terra natal e foi para as montanhas.”
188
Geralmente, essa passagem é identificada com Cristo, que, aos trinta anos desce às margens
do rio Jordão e início a seus ensinamentos. Mas, por que não poderia indicar também o
Zaratustra histórico? Afinal, a referida passagem foi escrita primeiramente da seguinte
forma: “Quando Zaratustra fez trinta anos de idade, abandonou sua terra e o lago de Urmi e
foi para as montanhas”
189
Lemos aqui o nome do lago da terra natal: Urmi, que é um lago
da região da antiga Pérsia, terra de Zaratustra histórico.
Ainda a questão do corpo poderia unir os dois Zaratustras: a religião de Zaratustra
concebe o corpo humano como sendo puro, e não como algo que deva ser desvalorizado.
Sabemos que Nietzsche um lugar privilegiado ao corpo. Em “Dos desprezadores do
corpo”, na primeira parte de Assim falou Zaratustra, lemos:
“Corpo sou eu e alma” – assim fala a criança. E por que não falar como as
crianças?
Mas o desperto, o sabedor, diz: eu sou corpo integralmente, e nenhuma outra
coisa; e alma é só uma palavra para designar algo no corpo.
O corpo é uma grande razão, uma pluralidade dotada de um único sentido,
uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão, meu irmão, a que
chamas “espírito”, um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua
grande razão.
Dizes “eu” e orgulha-te dessa palavra. Mas essa coisa ainda maior, na qual
não queres crer, - teu corpo e sua grande razão: essa não diz eu, mas faz eu.
187
Ibid., Quarta parte, “Do homem superior”, aforismo 18, p. 399, e aforismo 20, p. 401. Comentários sobre
a tradução do aforismo 18, ver p. 52, nota 164 do presente trabalho.
188
Ibid., prólogo, aforismo 1, p. 33.
189
IDEM, A gaia Ciência, aforismo 342, trad. de Paulo C. de Souza, p. 231.
63
(...) O corpo criador criou para si o espírito como uma mão de sua vontade.
190
Assim, a partir dos escritos de Nietzsche, pode-se concluir que seu Zaratustra não
coincide com o além-do-homem, não coincide com o Zaratustra histórico, e tampouco seja
seu alter ego. O nome do profeta persa na boca de Nietzsche não se refere apenas a um
personagem chamado Zaratustra, mas a algo maior que ele abrange e direciona. O tipo
Zaratustra seria um tipo de homem que, para ser compreendido, que ter clareza sobre
seu pressuposto fisiológico:
191
a grande saúde – que Nietzsche explicitará no quinto livro de
A Gaia Ciência.
192
Zaratustra não é o além-do-homem, mas tampouco é um homem comum. Ele não
tem, mas constantemente conquista a grande saúde. Seria um rebento prematuro de um
futuro ainda não provado. Depois de ter navegado por todo o “Mediterrâneo” ideal,
mediante as aventuras de sua vivência, sabe “o que se passa na alma de um conquistador e
explorador do ideal, assim como de um artista, de um santo, de um legislador, de um sábio,
de um erudito, de um devoto, de um adivinho, de um apóstata no velho estilo”.
193
Depois
dessa longa caminhada, tem a sua frente uma terra ainda desconhecida e um novo ideal,
“um ideal estranho, tentador, rico de perigos, ao qual não gostaríamos de persuadir
ninguém, porque a ninguém concederíamos tão facilmente o direito a ele: o ideal de um
espírito que joga ingenuamente, isto é, sem querer e por transbordante plenitude e
potencialidade, com tudo o que até agora se chamou sagrado, bom, intocável, divino”.
194
Esse novo ideal precisa de um novo homem, e Zaratustra é aquele que vem para ensinar a
construir esse novo homem. E a base desse ensinamento seria a veracidade o oposto do
que vigorou até então.
190
IDEM, Así habló Zaratustra., “Dos desprezadores do corpo”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 64, 65. Citado
no primeiro item deste capítulo, p. 35, nota 95.
191
IDEM, Ecce Homo, “Assim Falou Zaratustra”, aforismo 2, trad. de Paulo C. de Souza, p. 84.
192
Ver aforismo 382 de A Gaia Ciência, intitulado “A grande saúde”, no Apêndice, p. 143, 144.
193
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 382: “A grande saúde”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 179. Citação selecionada no apêndice, conforme nota anterior.
194
Ibid.
64
2.3. NOTAS A RESPEITO DA QUESTÃO DOS OPOSTOS
Em A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, um dos primeiros escritos de
Nietzsche, podemos ler o que talvez tenha sido uma de suas primeiras reflexões a respeito
dos opostos, ainda sob o viés heraclitiano:
Há culpa, injustiça, contradição, sofrimento, neste mundo?
Sim, exclama Heráclito, mas somente para o homem limitado, que em separado
e não em conjunto, não para o deus contuitivo; para este, todo conflitante conflui
em uma harmonia, invisível decerto ao olho humano habitual, mas inteligível
àquele que, como Heráclito, é semelhante ao deus contemplativo.
195
De acordo com o escrito supracitado, se olhamos as coisas em sua completude, elas
são justas. Se olhamos as coisas separadas, fragmentadas, em oposição, achamos que
culpa, injustiça, contradição, sofrimento. Estes existiriam mediante conflitos, oposições,
separações.
196
Somente homens limitados veriam as coisas separadas, não juntas. Ao
percorrer a história da filosofia, Nietzsche parece constatar que esses homens limitados
estiveram sempre presentes. No primeiro aforismo do primeiro capítulo de Humano,
Demasiado Humano, escrito cinco anos depois da Filosofia na época trágica dos gregos,
lemos:
Em quase todos os pontos, os problemas filosóficos são novamente formulados tal
como dois mil anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto, por exemplo, o
racional do irracional, o sensível do morto, o lógico do ilógico, a contemplação
desinteressada do desejo cobiçoso, a vida para o próximo do egoísmo, a verdade
dos erros? Até o momento, a filosofia metafísica superou essa dificuldade negando
195
IDEM, A Filosofia na Época Trágica dos Gregos, aforismo 7, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 10.
196
Sobre a culpa, Leon Kossovitch, em Signos e Poderes em Nietzsche, bem observa: “O ideal introduz o
sentimento de culpa. Subverte, nessa operação, a ordem olímpica, em que homens e deuses coexistem
inocentemente. Eliminar o pluralismo que congrega num mesmo espaço deuses e homens é roubar a
inocência: a culpa só se pode desenvolver onde impera o Outro separado.”(L. KOSSOVITCH, Signos e
Poderes em Nietzsche, Cap. 2: “Senhores e Escravos”, p. 66).
65
a gênese de um a partir do outro, e supondo para as coisas de mais alto valor uma
origem miraculosa, diretamente do âmago e da essência da “coisa em si”.
197
E no livro subseqüente ao Zaratustra, escrito oito anos depois do aforismo
supracitado, Nietzsche escreverá:
“Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade, do erro? (...)
Tal gênese é impossível (...) as coisas de supremo valor têm de ter uma outra
origem, uma origem própria desse mundo perecível, aliciante, enganoso,
mesquinho, desse emaranhado de ilusão e apetite é impossível deduzi-las! Pelo
contrário, é no seio do ser, no imperecível, no Deus escondido, na ‘coisa em sié
ali que tem de estar seu fundamento, ou em nenhuma outra parte!” Esse modo de
julgar constitui o típico preconceito pelo qual se reconhecem os metafísicos de
todos os tempos; (...) Pode-se, com efeito, duvidar, em primeiro lugar, se em
geral oposições e, em segundo lugar, se aquelas vulgares estimativas e oposições de
valor sobre as quais os metafísicos imprimiram seu selo não seriam talvez apenas
estimativas de fachada, apenas perspectivas provisórias, (...).
198
De acordo com os aforismos supracitados, para Nietzsche trata-se de um preconceito
achar que os opostos têm origens diferentes. Os opostos não podem ser tratados como o
foram pelos metafísicos de todos os tempos, ou seja, por esses homens limitados de todos
os tempos. Se olharmos a vida sob uma perspectiva de totalidade, em conjunto, como diz
Heráclito, os opostos são aparentados, têm a mesma origem: são as mesmas forças que
transitam de um pólo a outro. Sabendo que as oposições são tratadas dessa forma por
Nietzsche, compreendemos porque para ele tudo é complementar: anti metafísico
referência em metafísico, ateu referência em Deus, anti Cristo referência em Cristo,
se somos anti platônicos, ainda estamos usando como referência, Platão. Do mesmo modo,
a busca pela totalidade põe em cena domínios não-racionais, sem, no entanto, excluir o
racional, uma vez que, na totalidade, não há oposição racional/irracional.
197
F. NIETZSCHE, Humano, Demasiado Humano, Vol. I, Cap. I, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p.
15.
198
IDEM, Para além de bem e mal, cap. I, aforismo 2, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 49. Ver a citação selecionada no Apêndice, p. 146, 147.
66
O problema dos opostos aparece explicitamente na linguagem. Esta não pode “ir
além de sua rudeza” e fala em oposições “onde somente degraus e uma sutil gama de
gradações...”.
199
Nietzsche fala aqui da linguagem gregária. Talvez isso não acontecesse nas
línguas primitivas,
200
e não aconteça na linguagem simbólica, que, como vimos no primeiro
capítulo, acena o aspecto integrante dos opostos. Não é de admirar que Nietzsche critique a
linguagem conceitual, uma vez que não é de sua competência comunicar a totalidade da
vida.
Podemos dizer que, dos escritos de Nietzsche, o que mais transparece a questão das
oposições é o Zaratustra. Todo o livro se compõe a partir de elementos de aparente
oposição. A começar pelo próprio subtítulo um paradoxo deliberado: “Um livro para
todos e para ninguém”. O texto todo se tece em antagonismos: luz e sombra, vida e morte,
declínio e ascensão, altura e abismo. É justamente a tensão permanente entre os opostos que
fornece a dinâmica e a estrutura do livro. Através do jogo de oposições, Zaratustra traz
uma mensagem redentora do mundo e da vida em sua totalidade, pois, como diz Nietzsche,
“ele contradiz com cada palavra, esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos
se fundem numa nova unidade.” Por isso,
Zaratustra tem eterno direito a dizer: “eu traço círculos e fronteiras sagradas em
torno de mim; sempre mais raros são os que comigo sobem montanhas sempre mais
altas (...)”. (...) As mais baixas e as mais elevadas forças da natureza humana, o
mais doce, mais leve e mais terrível flui de uma nascente com certeza perene. Até
então não se sabe o que é altura, o que é profundeza, sabe-se menos ainda o que é
verdade. (...) E como desce Zaratustra, (...) como toca com mãos delicadas até
mesmo seus antagonistas, os sacerdotes, (...) Precisamente nessa extensão de
espaço, nessa acessibilidade aos contrários, é que Zaratustra se sente como a forma
suprema de tudo o que é, (...) O problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste
199
Ibid., cap. 2, aforismo 24, trad. de Paulo C. de Souza, p. 29.
200
Carl Abel, lingüista alemão do século XIX, desenvolveu uma teoria sobre os significados opostos das
palavras, que diz que a mesma palavra em seu estado primitivo pode ter significados opostos, que serão
gradualmente distinguidos. A mesma palavra designava, por exemplo, força e fraqueza, mas quando
aprendemos a pensar sobre força, tivemos que separar de fraqueza, então, criamos outra palavra para designar
esta última. As palavras primitivas, então, precederiam a separação dos opostos na linguagem. (“Über den
Gegensinn der Urworte”, in: Sprachwissenchaftliche Abhandungen, Leipzig, 1885). Freud, em seu texto
Interpretação dos sonhos(1900), fez uma alusão à problemática das palavras opostas, e, dez anos depois,
escreveu um artigo sobre o assunto: “O significado antitético das palavras primitivas” (Ver a seguir, alguns
apontamentos de Freud, na p. 68).
67
em como aquele que em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se
disse Sim, pode no entanto ser o oposto de um espírito de negação (...)
201
Nietzsche fala aqui de forças da natureza humana que nascem de uma fonte com
segurança perene. Como ele diz, trata-se de uma extensão de espaço onde os contrários são
acessíveis. E são acessíveis no um, pois trata-se de umafonte. Aqui a linguagem retorna
“à natureza mesma da imagem”.
202
O tipo Zaratustra operaria nessa freqüência, digamos
assim: um tipo de freqüência ou de estado, no qual os opostos não são opostos, mas são um.
Por isso ele pode perceber que aquilo que chamamos de opostos, como luz e sombra, dia e
noite, egoísmo e altruísmo, bem e mal, são opostos apenas aparentemente. Nós achamos
que são opostos porque não temos acesso a sua fonte, a sua origem comum. No segundo
volume de Humano, demasiado humano, Nietzsche fala de alguns problemas decorrentes
dessa limitação do homem:
A observação inexata comum na natureza, por toda parte, oposições (como por
exemplo “quente e frio”) onde não oposições, mas apenas diferenças de grau.
Esse mau hábito nos induz também a querer entender e decompor a natureza
interior, o mundo ético-espiritual, segundo tais oposições. É indizível o quanto de
dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza, penetrou assim no sentimento
humano, por se pensar ver oposições em lugar das transições.
203
Como assinalamos no segundo item do presente capítulo, Zaratustra teria aparecido
pela primeira vez em sonho para Nietzsche.
204
Isso nos parece pertinente se lembrarmos
que Freud, ao investigar os sonhos de seus pacientes, notou o seguinte:
O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é
bastante singular. Eles simplesmente a ignoram. O não” parece não existir, no que
201
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Assim Falou Zaratustra”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p. 89, 90.
Ver a citação selecionada no Apêndice, p. 153, 154.
202
Ibid., p. 90.
203
IDEM, Humano, Demasiado Humano, Vol. II, segunda parte: “O Andarilho e sua Sombra”, aforismo 67:
“Hábito das Oposições”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 102.
204
Página 58, nota 176.
68
se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os
contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa.
205
Lembremos, neste sentido, que Freud escreveu um artigo sobre o tema do
“estranho”.
206
Estranho em alemão é Unheimlich”, oposto à Heimlich”, que significa
doméstico. Estranho, portanto, teria a conotação de não doméstico, não familiar. Ao
examinar os significados dessas palavras, Freud descobre que
entre os seus diferentes matizes de significado a palavra Heimlich” exibe um que é
idêntico ao seu oposto, “Unheimlich”. Assim, o que é Heimlich” vem a ser
Unheimlich”. Em geral, somos lembrados de que a palavra Heimlichnão deixa
de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem
contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é
familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista (...)
Por outro lado, percebemos que Schelling diz algo que um novo esclarecimento
ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados.
Segundo Schelling, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e
oculto mas veio à luz.
207
O interesse de Freud pelo tema do “estranho” e, principalmente, a colocação de
Schelling a esse respeito nos parece pertinentes no que se refere ao Zaratustra. Neste livro,
percebe-se que algo oculto, que Nietzsche, talvez propositadamente, não escreveu de
forma direta. Mas não se trata de uma máscara que se pode tirar e ver o que há atrás. Talvez
o Zaratustra de Nietzsche seja o “Unheimlich de Schelling – aquilo que deveria ter
permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. Lembremos, nesse sentido, o que diz
Nietzsche no quinto livro de A Gaia Ciência, ao se perguntar o que o povo entende por
“conhecimento” e o que quer quando quer “conhecimento”:
Não mais do que isto: algo estranho deve ser remetido a algo conhecido. E nós,
filósofos já entendemos mais do que isso, ao falar de conhecimento? (...) nossa
205
Sigmund FREUD, Obras Completas, vol. XI, p. 141.
206
“O ‘estranho’”, in: Sigmund FREUD, Obras Completas, vol. XVII, p. 273.
207
Sigmund FREUD, Obras Completas, vol. XVII, p. 282.
69
necessidade de conhecer não é justamente essa necessidade do conhecido (...)? (...)
Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? (...) – Oh, que fácil satisfação a
dos homens do conhecimento! (...) Pois “o que é familiar é conhecido”: nisso estão
de acordo. (...) ao menos o familiar é mais facilmente cognoscível do que o estranho
(...) Erro dos erros! O familiar é o habitual; e o habitual é o mais difícil de
“conhecer”, isto é, de ver como problema, como alheio, distante, “fora de nós”... A
grande segurança das ciências naturais, em relação à psicologia e a crítica dos
elementos da consciência ciências não naturais, poderíamos talvez dizer reside
justamente no fato de tomarem o estranho por objeto...
208
E não será por acaso que no prefácio do Crepúsculo dos Ídolos, escrito em 1888,
Nietzsche dirá:
...Há que se colocar aqui ao menos uma vez questões com o martelo, e, talvez,
escutar como resposta aquele célebre som oco, que fala de vísceras intumescidas
que encanto para aquele que possui orelhas por detrás das orelhas! para mim.
Velho psicólogo e caçador de ratos que precisa fazer falar em voz alta exatamente o
que gostaria de permanecer em silêncio...
209
Reunindo as notas aqui apresentadas sobre os opostos com o que vimos sobre o
personagem Zaratustra, e com o que disse Freud sobre os sonhos, poderíamos supor que o
Zaratustra do sonho de Nietzsche tenha sido deslocado para o livro Assim falou Zaratustra,
revestido de uma nova forma, que é diferente do Zaratustra histórico. Nesta paisagem,
Nietzsche transita, ora para o passado (Zaratustra histórico), ora para o presente (Zaratustra
nietzscheano). Quando as forças transitam no passado, vemos resquícios do Zaratustra
histórico, que falava da luta entre o bem e o mal; quando as mesmas forças transitam no
presente, encontramos o Zaratustra nietzscheano, que traz a mensagem não dualista da
integração dos opostos.
208
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 355, trad. de Paulo C. de Souza, p. 250, 251.
209
IDEM, Crepúsculo dos Ídolos, prefácio, trad. Marco Antonio Casa Nova, p. 8. Citado na Introdução,
quando demos exemplos de textos nos quais Nietzsche se auto-denomina psicólogo (p. 4, nota 6). Nesta
passagem Nietzsche se diz velho psicólogo e caçador de ratos. Lembremos, neste sentido, que na mitologia
grega, um dos atributos de Apolo é o de deus-rato (Smintheús), o guardião das sementes e das lavouras contra
os ratos (Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia Grega, vol. II, p. 85).
70
Segundo nossa leitura, não se trata de um livro literário, no qual o autor cria um
personagem e sua fala. Trata-se de um livro filosófico no qual o filósofo expõe sua filosofia
de uma forma inovadora, pela boca do personagem Zaratustra, um mensageiro do porvir,
um visionário, que carrega o nome de um profeta antigo, considerado, como vimos, o
precursor do judaísmo e do cristianismo. Dessa forma, a filosofia de Nietzsche faz uma
ponte entre passado e futuro, entre antiguidade e porvir, entre os antigos filósofos gregos e
os filósofos do porvir. A força dessa ligação está na veracidade Zaratustra é mais veraz
do que qualquer outro pensador”.
210
Ora, Zaratustra vem anunciar o além-do-homem. Este
não mais precisa da mentira para sobreviver. “...os décadents precisam da mentira ela é
uma de suas condições de conservação.”
211
Talvez o além-do-homem traga de volta o
conceito grego antigo de verdade alétheia,
212
cujo sentido é o de manifestação,
revelação,
213
que se aproximaria de Darstellung (a hipotipose kantiana),
214
fazendo jus ao
eterno retorno seletivo. Sem entrar nessa complexa problemática, o que queremos assinalar
é a ligação que a filosofia nietzscheana faz entre antiguidade e porvir, ligação esta que se
fazia presente em Nietzsche desde seus primeiros escritos. Lemos, por exemplo, na
Segunda Consideração Intempestiva, que “A voz do passado é sempre uma voz de oráculo:
a podeis compreender se vos tornares os arquitetos do futuro e os conhecedores do
presente.”
215
Nietzsche, inclusive, já considerava importante a ligação entre passado e
presente quando exercia o ofício de filólogo.
216
210
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111. Citado no
segundo item deste capítulo, p. 48, nota 150.
211
Ibid., “O Nascimento da Tragédia”, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. 1, p. 24.
212
a é o prefixo de negação, e lethe significa véu. Alétheia, então, seria desvelamento
.
213
Nesse sentido, ver o que Nietzsche escreve sobre revelação, ao falar sobre seu Zaratustra, na citação 171,
p. 55; e as considerações junguianas sobre símbolo, especialmente a citação 55, p. 22.
214
Ver citação 27, p. 14, 15.
215
F. NIETZSCHE, II Consideração Intempestiva sobre a Utilidade e os Inconvenientes da História para a
Vida, aforismo 6, trad. de Noéli C. M. Sobrinho, in: Escritos sobre História, p. 127.
216
Segundo a apresentação de Ernani Chaves à edição brasileira da Introdução à Tragédia de Sófocles,
Nietzsche discordava do “cientificismo” com o qual a filologia era exercida em sua época, com sua pretensão
de reconstruir o passado desconectando-o do presente. (F. NIETZSCHE, Introdução à Tragédia de Sófocles,
p. 8, 9).
71
2.4. APONTAMENTOS SOBRE A CRENÇA
No aforismo 347 de A Gaia Ciência, intitulado “Os crentes e sua necessidade de
crença”, Nietzsche fala sobre a relação entre crença e instinto de fraqueza, e aponta alguns
modos de ser crente. Temos, por exemplo, a crença religiosa, a crença metafísica
217
e a
crença científico-positivista:
O quanto de fé alguém necessita para crescer, o quanto de “firme”, que não quer ver
sacudido, pois nele se segura eis uma medida de sua força (ou, falando mais
claramente, de sua fraqueza). Na velha Europa de hoje, parece-me que a maioria
das pessoas ainda necessita do cristianismo (...) Alguns ainda precisam da
metafísica; mas também a impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de
modo científico-positivista por grande número de pessoas, a exigência de querer ter
algo firme (...) também isso é ainda a exigência de apoio, de suporte, em suma, o
instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões, metafísicas, convicções de
todo tipo – mas as conserva.
218
Para Nietzsche, a crença, em última instância, está por trás de tudo. O crente, não
importa o objeto de sua crença, tem na fé sua tábua de salvação, e quanto mais fraca for sua
vontade, mais forte segurará nessa tábua.
219
Não que aqueles que têm uma vontade forte
não tenham crenças. A diferença é que estes podem admitir que são apenas crenças,
necessárias à vida. Assim, em Nietzsche a questão da crença está ligada à questão da
vontade, que pode ser forte ou fraca. A necessidade de crença talvez esteja relacionada ao
grande cansaço. De acordo com os ensinamentos de Zaratustra:
O querer liberta: esta é a verdadeira doutrina sobre a vontade e a liberdade assim
Zaratustra a ensina a vós.
217
No aforismo 2 de Para além de bem e mal, Nietzsche diz que “A crença fundamental dos metafísicos é a
crença nas oposições dos valores.”
(F. NIETZSCHE, Para Além de Bem e Mal, cap. I, aforismo 2, trad. de
Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 49). Ver citação
selecionada no
Apêndice, p. 146, 147.
218
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, aforismo 347, trad. de Paulo C. de Souza, p. 240.
219
Mencionamos a respeito de “vontade fraca” e “vontade forte” na p. 42 do presente capítulo.
72
Não-mais-querer e não-mais-estimar e não-mais-criar! Ai, que esse grande cansaço
permaneça sempre longe de mim!
220
A crença seria a solução para o fraco, que não pode viver a experiência do abismo, ou
seja, de afundar no abismo e ter forças para subir. Sobre a ligação entre crença e vontade,
Nietzsche afirma ainda que “A crença é sempre desejada com a máxima avidez, é mais
urgentemente necessária onde falta vontade: pois é a vontade, como emoção do mando, o
sinal distintivo de autodomínio e força.”
221
Os crentes, tendo a vontade fraca, precisam ser
comandados. Quanto menos uma pessoa sabe comandar, mais iquerer ser comandada:
“Dita-se ordens a quem não sabe obedecer a si mesmo”
222
Trata-se de uma situação muito
diferente do que ocorre com aqueles que são dotados de uma vontade forte. Essa “vontade,
como emoção do mando, o sinal distintivo de autodomínio e força”,
223
seria uma voz de
comando dentro de nós.
224
Para exemplificar como essa voz de comando, esse ditar ordens,
opera, analisemos o que Nietzsche diz no prefácio de Para a Genealogia da Moral:
Meus pensamentos sobre a procedência de nossos preconceitos morais (...)
poderiam (...) ter nascido em mim (...) a partir de uma raiz comum, de algo que dita
ordens em profundeza (...): de uma vontade fundamental de conhecimento.
225
Lê-se aqui que algo que dita ordens em profundeza, e, ao obedecer essas ordens
algo é gerado, ou criado. uma hierarquia interna, na qual alguma parte ordens. No
caso citado, o que foi gerado foram “pensamentos sobre a procedência de nossos
preconceitos morais”. Assim, nós achamos que somos nós que pensamos, quando o que
ocorre é que algo em nós gera os pensamentos. De qualquer forma, tudo o que temos a
220
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra,Nas ilhas afortunadas”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 137.
Zaratustra ensina que “O querer liberta”. No evangelho de João lemos: “...e conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará” (João, 8, 32). Na Bíblia é a verdade que liberta, e essa verdade é a expressão da
vontade de Deus. Enquanto na Bíblia é a obediência à vontade de Deus que liberta, no Zaratustra seria a
obediência à própria vontade.
221
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 347, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 171.
222
IDEM, Así habló Zaratustra, “Da superação de si mesmo”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 175.
223
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 347, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 171.
224
Sobre comando e obediência, ver p. 41, 42.
225
F. NIETZSCHE, Para a Genealogia da Moral, prefácio, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 77.
73
fazer é obedecer. Como “todo ser vivente é um ser obediente”,
226
aquele que não pode
obedecer a si mesmo, “mais avidamente deseja alguém que mande”, seja este “um Deus,
um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência
partidária”.
227
E se, como diz Nietzsche, “onde um homem chega à convicção fundamental
de que é preciso que mandem nele, ele se torna ‘crente’”,
228
não seriam somente os devotos
de religiões ou os metafísicos, os seguidores de uma crença, mas também os que seguem as
ordens de um médico, um príncipe, um partido, ou qualquer outra instância que assuma a
posição de comando, “permanente” ou esporádico. A própria ciência estaria ancorada em
uma crença: na crença metafísica na verdade: “... também nós, conhecedores de hoje, nós
os sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que
uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de
que Deus é a verdade, de que a verdade é divina...”
229
Muitos anos antes de escrever esse
aforismo, Nietzsche se perguntava de onde vem o pathos da verdade, e dizia: “Ele não
aspira à verdade, mas à crença, à confiança em algo.”
230
Para Nietzsche, a verdade está
longe de ser um valor supremo. Ela é apenas uma ficção, mas uma ficção necessária:
”Quando se acredita possuir a verdade, a vida mais elevada e pura parece possível. A
crença na verdade é necessária ao homem.”
231
Apontamos que ao abordar o problema da crença, emergem vários aspectos
importantes da filosofia nietzscheana, como a questão da força e fraqueza, do comando e
obediência, da ação e reação. O crente é fraco, é submisso à vontade de algo ou alguém e é
reativo. O fraco, cuja moral é a moral de escravo, reage porque seu referencial é sempre o
outro:
Enquanto toda moral nobre brota de um triunfante dizer-sim a si próprio, a moral de
escravos diz não, logo de início, a um “fora”, a um “outro”, a um “não-mesmo”:– e
226
IDEM, Así habló Zaratustra, “Da superação de si mesmo”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 175.
227
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 347, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 171.
228
Ibid.
229
Ibid., aforismo 344, p. 169.
230
IDEM, Fragmento póstumo n. 19 [244], verão de 1872 início de 1873, trad. de Fernando de Moraes
Barros. In: Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, Fragmentos Póstumos, SP: Ed. Hedra, 2008, p.
90. (Traduzido do Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, Giorgio Colli e Mazzino Montinari,
Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1999, v.7, p.496, de acordo com o tradutor).
231
Ibid., n. 19 [175], p. 72. (Colli e Montinari, p. 473).
74
esse “não” é seu ato criador. Essa inversão do olhar que põe valores essa direção
necessária para fora, em vez de voltar-se para si próprio pertence, justamente, ao
ressentimento: a moral de escravos precisa sempre, para surgir, de um mundo
oposto e exterior, precisa, dito fisiologicamente, de estímulos externos para em
geral agir – sua ação é, desde o fundamento, por reação.
232
De acordo com Nietzsche, no espírito de fraqueza predomina a conservação das
religiões, das metafísicas e das convicções de todo tipo. “Convicção é a crença de estar, em
algum ponto do conhecimento, na posse da verdade incondicionada. Essa crença pressupõe,
portanto, que verdades incondicionadas...”.
233
Convicções, para ele, nada mais são do
que crenças nas opiniões, e a irrefutabilidade é o pressuposto de todo crente.
234
Não é
possível ao espírito de fraqueza viver sem o apoio das certezas. É nesse espírito que
formam-se os hábitos. “O espírito cativo não assume uma posição por esta ou aquela razão,
mas por hábito; ele é cristão, por exemplo, não por ter conhecido as diversas religiões e ter
escolhido entre elas...”. Um tal espírito baseia suas escolhas no hábito. E “habituar-se a
princípios intelectuais sem razões é algo que chamamos de fé”.
235
De outra parte, o espírito
livre por excelência, seria livre por não estar preso a nenhum ponto de vista e/ou sentimento
único e permanente. Ele não estaria totalmente livre de crenças, mas saberia que trata-se
pura e simplesmente de crenças, necessárias à vida. Seria a condição para estar aberto a
novas possibilidades e a criar novos valores. Uma coisa é a crença, outra coisa é a forma
como nos colocamos diante dela. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche diz que
Goethe concebeu um homem forte, altamente cultivado, hábil em toda atividade
física, que tem as rédeas de si mesmo e a reverência por si mesmo, que pode ousar
se permitir todo o âmbito e a riqueza do que é natural, que é forte o suficiente para
tal liberdade; (...) o homem para o qual não coisa proibida senão a fraqueza
232
IDEM, Para a Genealogia da Moral, Primeira dissertação, aforismo 10, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 81. Sobre o termo aqui traduzido por “não-mesmo”, o tradutor
comenta: ’Nicht-selbst’evoca a oposição filosófica ‘mesmo’ e ‘outro’, mas também o conceito idealista do
‘não-eu’ (Nicht-Ich), pois em linguagem comum a palavra Selbst, substantivada (‘o si-mesmo’), tem o sentido
de ‘o eu’.” (Ibid., nota 2, p. 81).
233
IDEM, Humano, demasiado humano, vol. I, aforismo 630, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 73.
234
Ibid.
235
Ibid., aforismo 226: “Origem da fé”, trad. de Paulo C. de Souza, p. 144, 145.
75
(...) um tal espírito, que assim se tornou livre, acha-se com alegre e confiante
fatalismo no meio do universo, na fé de que apenas o que está isolado é censurável,
de que tudo se redime e se afirma no todo ele já não nega... Mas uma tal crença é
a maior de todas as crenças possíveis: eu a batizei com o nome de Dionísio.-“
236
Lemos aqui que, para Nietzsche, a maior de todas as crenças possíveis, que ele batiza
com o nome de Dionísio, é a crença em que “tudo se redime e se afirma no todo”.
Dissemos, no item anterior, que Zaratustra, através do jogo de oposições, traz uma
mensagem redentora do mundo e da vida em sua totalidade. Assim, em Nietzsche, até
mesmo a redenção e afirmação no todo é uma crença. Zaratustra também trabalha com
crenças, mas sabendo que são apenas crenças, necessárias à vida.
Segundo Nietzsche, o que o cristão chama de sua crença é a “hipertrofia de um único
ponto de vista e sentimento”.
237
O fanatismo, seja ele religioso ou não, es sempre em
contraposição ao perspectivismo. Enquanto o fanático e sente de uma maneira única, o
perspectivista percorre vários âmbitos “espaço-temporais”, o que lhe a possibilidade de
ver e sentir de diversas maneiras. Enquanto o fraco precisa das convicções como fim, o
forte eventualmente as usa como meio: “A liberdade diante de toda espécie de convicções
pertence à força, o poder olhar livremente... A grande paixão usa, consome convicções, não
se submete a elas sabe-se soberana. Ao inverso, a necessidade de crença, (...) é uma
necessidade da fraqueza. O homem da crença, o ‘crente’ de toda espécie, é necessariamente
um homem dependente...”
238
Para Nietzsche, o crente é o oposto do verídico: “O homem da convicção tem nela
sua espinha dorsal. Muitas coisas não ver, em nenhum ponto ser imparcial, ser partidário de
ponta a ponta, ter uma ótica rigorosa e necessária em todos os valores somente isso
condiciona que uma tal espécie de homem subsista em geral. Mas com isso ela é o oposto,
o antagonista do verídico da verdade... O crente não está livre para ter em geral uma
consciência para a questão ‘verdadeiro’ e ‘não-verdadeiro’: ser honesto nesse ponto seria
236
IDEM, Crepúsculo do ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, aforismo 49, trad. de Paulo C. de Souza,
p. 99.
237
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 347, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 171.
238
IDEM, O Anticristo, aforismo 54, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas,
vol. II, p. 138.
76
desde logo sua ruína.”
239
Dissemos no segundo item deste capítulo que Nietzsche teria
escolhido Zaratustra como personagem por sua veracidade. O motivo da escolha parece
ficar ainda mais evidente ao ler essa passagem do Anticristo, na qual o homem verídico é o
oposto do homem crente. Ao escrever sobre seu Zaratustra, Nietzsche diz: “Aqui não fala
nenhum fanático, aqui não se ‘prega’, aqui não se exige crença...”
240
Não poderia ser de
outra forma, sendo Zaratustra quem é: o “oposto” do crente.
241
Por isso ele não quer
discípulos: “Companheiros de viagem vivos é o que eu necessito, que me sigam porque
querem seguir-se a si mesmos (...) Vede os crentes de todas as crenças! A quem mais
odeiam? A quem rompe suas tábuas de valores...”
242
A crença se insere em todas as áreas da existência, posto que precisamos dela para
viver. O diferencial está no modo com que se lida com ela. No presente trabalho a
problemática da crença se dirige de forma especial à linguagem. A esse respeito Nietzsche
explicita:
A significação da linguagem para o desenvolvimento da civilização está em que,
nela, o homem colocou um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele
considerou bastante firme para, apoiado nele, deslocar o restante do mundo de seus
gonzos e tornar-se senhor dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos
lances de tempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates,
adquiriu aquele orgulho com que se elevou acima do animal: pensava ter
efetivamente, na linguagem, o conhecimento do mundo. O formador da linguagem
não era tão modesto de acreditar que dava às coisas, justamente, apenas
designações; mas antes, ao que supunha, exprimia com as palavras o supremo saber
sobre as coisas; de fato, a linguagem é o primeiro grau do esforço em direção à
ciência. Foi da crença na verdade encontrada, também aqui, que fluíram as mais
poderosas fontes de força. Muito posteriormente agora começa a despontar
para os homens que eles propagaram um erro descomunal, em sua crença na
239
Ibid.
240
IDEM, Ecce Homo, prólogo, aforismo 4, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 147.
241
Lembrando que em Nietzsche, oposições são sempre aspectos da mesma força, que transita de um pólo a
outro. Se pensarmos em termos de vontade de potência, o crente está no grau mais baixo da vontade e o
verídico no grau mais alto. Cabe lembrar ainda, que o problema não é a crença, uma vez que esta é necessária
à vida, mas a posição que se tem diante dela, como, por exemplo, não saber que trata-se apenas de uma
crença.
242
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 9, trad. de Andrés S. Pascual, p. 47.
77
linguagem. Felizmente é tarde demais para fazer voltar atrás o desenvolvimento da
razão, que repousa sobre essa crença.
243
De acordo com o aforismo supracitado, acreditamos que conhecemos algo, que
sabemos sobre algo, quando nomeamos. No entanto, nomear, designar, não implica
conhecer. Aliás, segundo Nietzsche, nós nem sequer temos algum orgão para o conhecer.
Apenas “‘sabemos’ (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente o tanto que, no interesse
do rebanho humano, da espécie, pode ser útil: e até mesmo o que aqui é denominado
‘utilidade’ é, por último, simplesmente uma crença, uma imaginação...”
244
Neste sentido,
Nietzsche, a nosso ver, pela boca de Zaratustra, estaria anunciando uma outra linguagem,
não nomeante: uma linguagem simbólica, cujos símbolos “não declaram, só acenam. Tolo é
quem deles quer tirar saber.”
245
Zaratustra tem como virtude a veracidade, no sentido de
autenticidade, mas não se pode esquecer que no Humano, demasiado humano, Nietzsche
dizia que “um dos mais freqüentes erros de raciocínio é este: se alguém é verdadeiro e
sincero conosco, então ele diz a verdade.”
246
Assim, Zaratustra é verdadeiro, mas não
acredita na verdade. Mesmo porque, quem ainda acredita na verdade está longe de ser um
espírito livre.
247
2.5. FALOU ASSIM ZARATUSTRA SIMBOLICAMENTE?
Símbolos são todos os nomes do bem e do mal: não declaram, acenam. Tolo é
quem deles quer tirar saber.
Prestai atenção, meus irmãos, a todas as horas que vosso espírito quer falar por
símbolos: ali está a origem de vossa virtude.
248
243
IDEM, Humano, Demasiado Humano, vol. I, cap. I, aforismo 11, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 48, 49.
244
IDEM, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 354, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 174.
245
IDEM, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 124.
246
IDEM, Humano, demasiado humano, vol. 1, aforismo 53, trad. de Paulo C. de Souza, p. 53.
247
IDEM, Para a genealogia da moral, Terceira dissertação, aforismo 24. Nesse aforismo, os crentes na
verdade que ainda estão longe de serem espíritos livres, a quem Nietzsche se refere, são os últimos idealistas
do conhecimento, que, “em algum sentido”, são “ateístas, anticristos, imoralistas, niilistas, esses céticos...”.
(Ibid., trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 98).
248
IDEM, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 124. A palavra que Andrés Sánchez Pascual traduziu por símbolo é a palavra aleGleichnis”.
78
Por que Nietzsche daria a seu livro o título de Assim falou Zaratustra, se, para ele,
“A fala, ao que parece, foi inventada para o corte transversal, o mediano, o
comunicativo. Com a fala se vulgariza o falante.”?
249
Seria a sua fala como a de Cristo,
para quem, segundo Nietzsche, nenhuma palavra deve ser tomada literalmente?
No segundo item do presente capítulo, quando falamos sobre o personagem
Zaratustra, dissemos que, de acordo com nossa leitura, Nietzsche escolhera esse
personagem por sua veracidade. No aforismo supracitado, lemos que a origem da virtude
está nas horas que o espírito quer falar por símbolos, e que símbolos não declaram
(sprechen), acenam (winken). De acordo com o que vimos no primeiro capítulo, os
símbolos são produzidos pelo inconsciente, por processos instintivos. Não seriam, então,
inventados “para o corte transversal, o mediano, o comunicativo”. Disto decorre que, se
considerarmos que os instintos não mentem, falar por símbolos é falar a verdade. Enquanto
a linguagem por signos é passível de mentiras, a linguagem simbólica não o seria. E se,
com a fala simbólica não se vulgariza o falante, Zaratustra pode falar simbolicamente sem
ser vulgar. Dessa forma, seria a virtude da veracidade que estaria no espírito de quem fala
por símbolos?
A questão da veracidade poderia ainda ser detectada no “acenar” dos símbolos de que
nos fala Zaratustra. Esse “acenar” talvez tenha relação com o “atirar bem com flechas”,
uma vez que a palavra usada por Nietzsche em alemão, winken, também pode ser traduzida
por “indicar direção”. Falar por símbolos, ou seja, acenar, seria como atirar bem com
flechas: ambos indicariam a virtude da veracidade.
250
Essa palavra muitas vezes é traduzida como alegoria. Em alemão existe outro termo para símbolo, que é
Symbol, porém, Nietzsche não o utiliza no Zaratustra. Isso é interessante, uma vez que nos primeiros escritos
de Nietzsche, ele usava ambas as palavras, Gleichnis e Symbol. Um estudo minucioso com respeito a essa
questão nos primeiros escritos, em particular em O nascimento da tragédia, foi feito por Anna Hartmann
Cavalcanti: Símbolo e Alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche”. Segundo a autora,
“Nietzsche utiliza na maioria dos casos, em O Nascimento da Tragédia, os termos mbolo e alegoria em um
sentido equivalente.” (Annablume; Fapesp, RJ: 2005, p. 276). E, em nota a autora diz: “...Como procuro
mostrar a seguir, embora o emprego desses termos seja, em O Nascimento da Tragédia, na maioria dos casos,
equivalente, Nietzsche desenvolve uma associação entre mbolo e pulsão, sobretudo na expressão
‘simbólica’, a partir da qual o termo símbolo adquire um sentido mais amplo, no qual se inclui o de alegoria.”
(Ibid, nota 98, p. 274, 275).
249
IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, aforismo 26, trad. de Rubens R. T. Filho.
In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 118.
250
Vimos (Capítulo 2, item 2, p. 51) que, segundo Nietzsche, o Zaratustra histórico é mais veraz do que
qualquer outro pensador, e que a sua doutrina tem a veracidade como virtude maior. Trata-se da virtude
persa: “Falar a verdade e atirar bem com flechas”. (F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou um destino”,
aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111).
79
De acordo com a nossa leitura, a passagem supracitada com a qual abrimos o
presente item, assinala uma linguagem simbólica no espírito de Zaratustra. Se o mais veraz
de todos os pensadores diz para prestar atenção nos momentos que o espírito quer falar por
símbolos, seria porque ele também assim o fala. Não indica, porém, que fale
simbolicamente o tempo todo, mas que, quando o faz, põe atenção, uma vez que ali está a
origem de sua virtude. E assinala que virtude aqui não é o saber, como em Platão. De
acordo com Zaratustra, tirar saber dos símbolos é tolice; o que temos são todos os nomes
do bem e do mal. Ao falar simbolicamente estaríamos além do bem e do mal?
Durante dez anos Zaratustra viveu nas montanhas como eremita. Depois desse
tempo, ele desce ao vale; primeiro fala ao eremita da floresta, e, posteriormente, à multidão
do mercado.
251
Assim, a fala de Zaratustra ocorre depois de dez anos de silêncio e solidão.
O isolamento de Zaratustra “é a vida voluntária em gelo e altas montanhas...”,
252
da qual
falamos ao abordarmos a concepção nietzscheana de filosofia.
253
No livro posterior ao
Zaratustra, Nietzsche discorrerá sobre o que se ouve nos escritos
254
de um eremita:
Ouve-se sempre nos escritos de um ermitão algo também do eco do ermo, algo do
tom sussurrado e da arisca circunspecção da solidão; em suas palavras mais fortes,
mesmo em seu grito, soa ainda uma nova e mais perigosa espécie de calar, de
silenciar. (...) O ermitão não acredita que um filósofo suposto que um filósofo
sempre foi primeiro um ermitão tenha jamais expresso suas próprias e últimas
opiniões em livros: não se escrevem livros, precisamente, para resguardar o que se
guarda em si? – ele até duvidará se um filósofo pode, em geral, ter opiniões
“últimas e próprias”, (...) Cada filosofia é uma filosofia de fachada eis um juízo
ermitão: “Há algo de arbitrário se aqui ele se deteve, olhou para trás, olhou em
torno de si, se aqui ele não cavou mais fundo e pôs de lado a enxada também
algo de desconfiado nisso”.
251
F. NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, prólogo.
252
IDEM, Ecce Homo, prólogo, aforismo 3, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 146.
253
Capítulo 2, item 1.
254
Aqui escrita e fala se mesclam. Zaratustra falou, mas o único acesso que temos à sua fala é através da
escrita.
80
Cada filosofia esconde também uma filosofia; cada opinião é também um
esconderijo, cada palavra também uma máscara.
255
Como podemos ler (e ouvir) no aforismo supracitado, quem por muito tempo se isola
da comunidade, quem vive como ermitão, quando volta ao convívio tem dificuldades para
se comunicar: “...seus próprios conceitos acabam por conter (...) algo de incomunicável e
renitente, que sopra frio em todo aquele que passa.”
256
A linguagem simbólica transporia o
abismo entre o ermitão e os espíritos gregários? Teriam estes condição de entender uma tal
linguagem? Ou Zaratustra, se assim falou simbolicamente, estaria se dirigindo apenas a
espíritos não gregários? Essa última hipótese parece ser a mais plausível, uma vez que, após
falar à multidão do mercado e esta rir dele, ele vai para o bosque levando o cadáver para
enterrá-lo, e, ao acordar na manhã seguinte, uma verdade nova: “Não devo ser pastor
nem coveiro. E nunca mais voltarei a falar com o povo; pela última vez falei a um
morto.”
257
Como diz Nietzsche em seguida, no aforismo 289 de Para além de bem e mal,
supracitado, cada opinião é um esconderijo, e palavras são máscaras, e se escrevem livros
para resguardar o que se guarda em si. Porém, se, apesar disso, insistimos na tarefa de
compreender esses livros, essas opiniões, essas palavras, é porque acreditamos, precisamos
acreditar, que é possível entrar nesse esconderijo e revelar o que está oculto. Se, como
dissemos no capítulo sobre simbologia, compreender os símbolos for compreender o que
está oculto, nossa tentativa de interpretar Zaratustra pela via simbólica não será em vão.
Nietzsche parece detectar que, além das coisas que pensamos conscientemente e
percebemos – em nós, nos outros e no mundo – existe algo importante do qual não teríamos
consciência. E, quando acontece de termos algum vislumbre disso, ao passarmos isso para a
linguagem, isso se perde. O mundo, o qual todos têm consciência, seria “um mundo de
superfícies e de signos”, e “o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte
dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento
consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a
255
F. NIETZSCHE, Para além de bem e mal, aforismo 289, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, vol. II, p. 74.
256
Ibid.
257
IDEM, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 9, trad. de Andrés S. Pascual, p. 48.
81
origem da própria consciência.”
258
Lemos aqui que, para Nietzsche, uma grande parte do
pensamento não se torna consciente e, portanto, não ocorre em palavras. Assim, haveria um
mundo não superficial, raso, ralo, que Nietzsche detecta, mas que não é passível de ser
transmitido em signos. Quando se tenta transmiti-lo em signos, em palavras, ele foge; e o
que fica não é mais o que se tinha, mas algo “raso, ralo, relativamente estúpido, geral,
signo, marca de rebanho, que, com todo tornar-consciente, está associada uma grande e
radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização.”
259
Seria este mundo não
superficial, não consciente, passível de ser transmitido por uma linguagem simbólica?
Na Introdução, quando nos perguntamos por que Nietzsche faria uso de uma
linguagem simbólica, citamos Para além de bem e mal, aforismo 20,
260
no qual ele fala do
encanto de determinadas funções gramaticais. Dois anos depois, no Crepúsculo dos ídolos,
ele dirá:
A linguagem pertence, por sua origem, ao tempo da mais rudimentar forma de
psicologia: entramos em um grosseiro fetichismo, quando trazemos à consciência as
pressuposições fundamentais da metafísica da linguagem, ou, dito em alemão, da
razão. Esse vê por toda parte agente e ato: esse acredita em vontade como causa em
geral; esse acredita no “eu”, no eu como ser, no eu como substância, e projeta a
crença na substância-eu sobre todas as coisas somente com isso cria o conceito
“coisa” (...) No início está a grande fatalidade do erro, de que a vontade é algo que
faz efeito de que a vontade é uma faculdade... Hoje sabemos que é meramente
uma palavra... Muito mais tarde, em um mundo mil vezes mais esclarecido, a
segurança, a certeza subjetiva na manipulação das categorias da razão, chegou,
com surpresa, à consciência dos filósofos: concluíram que elas não poderiam provir
da empiria (...) E nas Índias como na Grécia se fez o igual equívoco: “É preciso
que já alguma vez tenhamos habitado um mundo superior (...), é preciso que
tenhamos sido divinos, pois temos a razão!”(...) A “razão” na linguagem: oh, que
258
IDEM, A Gaia Ciência, aforismo 354, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 173.
259
Ibid., p. 173, 174.
260
P. 10, 11, nota 23.
82
velha, enganadora personagem feminina! Temo que o nos desvencilharemos de
Deus, porque ainda acreditamos na gramática...
261
Supondo que seja possível trazer à consciência esse tempo de que nos fala Nietzsche,
“tempo da mais rudimentar forma de psicologia”, e com ele os pressupostos da razão, que
ele chama de metafísica da linguagem; o que se teria, seria um “grosseiro fetichismo”, no
qual a vontade é entendida como causa que produz um efeito. Dessa forma, a vontade é
vista como uma faculdade. Muito tempo depois, em um mundo supostamente bem mais
esclarecido, concluiu-se que a razão, não podendo vir da empiria, poderia ter origem
divina. Dessa forma, segundo Nietzsche, mesmo após a morte de Deus,
262
ainda estamos
presos a ele pela gramática.
Nietzsche nos fala aqui da linguagem gregária. De acordo com o que vimos no
primeiro capítulo, os símbolos seriam anteriores a esse “tempo da mais rudimentar forma
de psicologia”, na qual teve origem tal linguagem; seriam anteriores à formação da
linguagem gregária. Estaria, então, Nietzsche, fazendo uso da linguagem simbólica como
um recurso, uma estratégia, para se desvencilhar da gramática?
Quando falamos sobre o personagem Zaratustra,
263
mencionamos a relação que
geralmente se faz entre este e Cristo: o primeiro, aos 30 anos de idade, afasta-se de sua terra
natal e sobe a montanha; o segundo, aos 30 anos, desce às margens do rio Jordão e começa
a pregar. Outro dado, ainda, parece apontar para essa identificação, caso Zaratustra tenha
falado simbolicamente: Nietzsche denomina o Cristo de “grande simbolista”, como
podemos ler na seguinte passagem:
Se entendo algo desse grande simbolista, é que ele tomou apenas realidades
internas como realidades, como “verdades” – que entendeu todo o resto, tudo
natural, temporal, espacial, histórico, apenas como signo, como ocasião para
261
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos Ídolos, “A ‘razão’ na filosofia”, aforismo 5, trad. de Rubens R. T. Filho.
In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 111. Note-se que em Para além de bem e mal, aforismo 20
(citado nas p. 10, 11, nota 23), Nietzsche fala do parentesco lingüístico do indiano, grego e alemão; e aqui, no
Crepúsculo dos Ídolos, ele menciona as filosofias indiana e grega.
262
Sobre a morte de Deus, ver, por exemplo, F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, Livro III, aforismo 125: “O
homem louco”.
263
Capítulo 2, item 2.
83
metáforas. O conceito de “filho do homemnão é de uma pessoa concreta que faz
parte da história, de algo individual, único, mas uma “eterna” factualidade, um
símbolo psicológico redimido do conceito de tempo. O mesmo vale novamente, e
num sentido supremo, para o Deus desse típico simbolista, para o “reino de Deus”,
o “reino do céu”, os “filhos de Deus”. (...) O “reino do céu” é um estado do coração
– não algo que virá “acima da Terra” ou “após a morte”. (...) O “reino de Deus” não
é nada que se espere; não possui ontem nem depois de amanhã, não virá em “mil
anos” é a experiência de um coração; está em toda a parte, está em nenhum
lugar...
264
Assim como, segundo Nietzsche, Cristo foi um grande simbolista, também
Zaratustra o seria?
2.6. MEIO-DIA: INCIPIT NIETZSCHE
No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche usa a expressão Incipit Zarathustrano sexto
momento da “História de um erro”:
“O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente, talvez?...
Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente!
(Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo erro; ponto alto da
humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA.)”
265
Nietzsche também emprega o termo latino incipitno tulo do aforismo 342 de A
Gaia Ciência: Incipit tragoedia(A tragédia começa). Esse aforismo era o último do livro
na primeira edição, de 1882, que constava de quatro partes.
266
Esse mesmo aforismo dará
início a seu próximo livro, Assim falou Zaratustra, do qual Nietzsche falará no prólogo
tardio (1886) à Gaia Ciência, onde emprega também a expressão incipit parodia”: “- Ah,
264
F. NIETZSCHE, O anticristo, aforismo 34, trad. de Paulo C. de Souza, p. 41, 42.
265
IDEM, Crepúsculo dos ídolos, “Como o ‘verdadeiro mundo’ acabou por se tornar em fábula História de
um erro”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 113.
266
Em 1887 ele acrescentou uma quinta parte.
84
não é apenas nos poetas e seus belos ‘sentimentos líricos’ que este ressuscitado precisa dar
vazão à sua malícia: quem sabe que vítima ele não está procurando, que monstruoso tema
de paródia o estimulará em breve? Incipit tragoedia’ (A tragédia começa) diz o final
desse livro perigosamente inofensivo: tenham cautela! Alguma coisa sobremaneira ruim e
maldosa se anuncia: incipit parodia, não dúvida...”
267
Tratar-se-ia de uma paródia da
Bíblia? Segundo Campbell, a narrativa mitológica da Bíblia é uma inversão de narrativas
anteriores: “...no contexto do patriarcado dos hebreus da Idade do Ferro do primeiro
milênio a.C., a mitologia (adotada das civilizações anteriores do neolítico e da Idade do
Bronze das regiões que eles ocuparam e dominaram por um tempo) foi invertida, para
produzir um argumento exatamente oposto ao de sua origem.”
268
Para Campbell, “o ponto
de vista patriarcal é diferente da visão arcaica anterior, por separar todos os pares de
opostos macho e fêmea, vida e morte, verdadeiro e falso, bem e mal como se fossem
absolutos em si mesmos e não apenas aspectos da entidade maior da vida.”
269
A narrativa do Zaratustra de Nietzsche, a nosso ver, poderia ser vista como a
inversão da narrativa bíblica. Não tratar-se ia, porém, de uma inversão que traz de volta os
mitos arcaicos, mas uma inversão que possibilitaria a criação de novos valores e novas
experiências. Mas, traria de volta a união dos pares de opostos, separados, segundo
Campbell, pelo patriarcado.
A nosso ver, a utilização por Nietzsche da palavra incipit”, poderia estar indicando
uma possível ligação com o movimento angélico e o estudo das chamadas mudanças
paradoxais da transubstanciação. Isso porque o termo incipit” teve seu uso desenvolvido
como “posição de presente” e “negação do passado” ou por “negação do presente” e
“posição de futuro”, nos séculos XIII e XIV. Essas teorias tinham relação com os estudos
da transubstanciação e dos anjos.
270
Incipit Zaratustra” estaria então indicando uma
transformação: termina o mais longo erro, “o pior, mais persistente e perigoso dos erros
(...): a invenção de Platão do puro espírito e do bem em si”,
271
e começa Zaratustra.
267
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, prólogo, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 10.
268
Joseph CAMPBELL, As máscaras de Deus: mitologia ocidental, p. 24.
269
Ibid., p. 32.
270
Yolanda Gloria Gamboa MUÑOZ, “Entre tédios e transmutações”, in: Anais do XIII Simpósio
Multidisciplinar da USJT, p. 81, 82.
271
F. NIETZSCHE, Além do bem e do mal, prólogo, trad. de Paulo C. de Souza, p. 8. Nesta passagem, onde
está escrito: “a invenção de Platão”, na tradução que utilizamos consta: “a invenção platônica”. Fizemos a
85
Na “História de um erro”, no sexto momento começa Zaratustra. Analogamente,
escolhemos o sexto item do presente capítulo para apresentar Nietzsche.
272
Nos parece
curioso justamente o sexto momento da “História de um errocorresponder ao meio-dia,
uma vez que, como veremos, os monges medievais chamavam o meio-dia de sexta hora.
Segundo nossa leitura, não parece ser uma mera coincidência, mas algo pensado por
Nietzsche.
Dedicamos esse item do capítulo à apresentação do autor aqui estudado porque,
mesmo sabendo da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se “conhecer” um autor que
viveu em outra época, as biografias nos colocam um pouco mais próximos deles, ou pelo
menos, nos dão a ilusão de os conhecermos melhor; e isso nos agrada, uma vez que, de
acordo com o próprio Nietzsche, a vida quer engano, ela vive de engano...”
273
Não
faremos aqui uma biografia propriamente, mas, como dissemos, apenas uma apresentação
de determinados aspectos que guardam relação com nosso trabalho.
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em cken, na
Saxônia, e faleceu em 25 de agosto de 1900, por volta do meio-dia, em Weimar. Nas
biografias não se costuma colocar o horário da morte. Gianni Vattimo, no entanto, em seu
livro Introdução a Nietzsche, nos informa: “Por volta do meio-dia de sábado, 25 de agosto,
Nietzsche morre”.
274
Se fosse qualquer outro horário, não mencionaríamos esse dado, mas,
por Nietzsche falar sobre o horário da mais curta sombra em vários de seus escritos, além
do supracitado, isso nos chama a atenção.
275
A sexta hora, como era chamada pelos monges
medievais, era temida, por ser considerada o momento do dia no qual existia maior
suscetibilidade de se cair no pecado da acedia, um dos sete pecados capitais, que tem
correção de acordo com o original da Edição bilíngüe Par de la Bien et le Mal/Jenseits von Gut und Böse,
Paris: Aubier Montaigne/Flammarion, 1978, p. 18.
272
Talvez se possa situar Nietzsche em um sétimo momento, se lembrarmos o que ele diz no sétimo aforismo
de “Por que sou um destino”: “Os milênios, os povos, os primeiros e os últimos, os filósofos e as mulheres
velhas excluídos cinco, seis instantes da história, eu como o sétimo neste ponto são todos dignos uns dos
outros.” (Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 7, trad. de Paulo C. de Souza, p. 114, 115).
273
F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol. I, prefácio tardio, aforismo 1, trad. de Rubens R. T.
Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 42.
274
Gianni VATTIMO, Introdução a Nietzsche, p. 99. Vattimo também nos informa que Nietzsche morreu
num sábado. A título de curiosidade, lembramos que sábado é o dia do descanso da criação: “Deus abençoou
o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a sua obra de criação.”(Gênesis, 2, 3). Curt
Paul Janz também informa o horário da morte de Nietzsche ao citar o anúncio de sua irElisabeth Förster:
“Hoje ao meio dia, por volta das doze horas, faleceu meu querido irmão Friedrich Nietzsche.” (Apud: C. P.
JANZ, Friedrich Nietzsche, vol. 4, Alianza Editorial, p. 172).
275
Alguns exemplos de escritos nos quais Nietzsche fala sobre o horário do meio-dia podem ser encontrados
na p. 36, nota 97, onde falamos sobre o pecado da acedia.
86
relação com uma tristeza profunda.
276
Também conhecida como o demônio do meio-dia, a
acedia incitava os monges solitários a fugir de suas celas. Sabemos, através de seus
escritos, que a vida de Nietzsche foi uma vida solitária: “Agora vivi 43 anos, e estou
ainda exatamente tão sozinho quanto em criança”;
277
mas, também sabemos que, diferente
dos monges, Nietzsche não se inclinava a fugir da solidão. Muito pelo contrário. Ao
abordarmos a concepção nietzscheana de filosofia, no primeiro item deste capítulo, vimos
que uma relação entre esta e a solidão.
278
Enquanto o meio-dia era tão temido entre os
monges cristãos, que não queriam cair no pecado da acedia, um estado inóspito, no qual
nada se pode receber, para Nietzsche, quem chegou “à liberdade da razão”, goza da
tranqüilidade que “no equilíbrio da alma de antes do meio-dia, passeia entre árvores”, que
lhe dão presentes:
...lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos da folhagem somente coisas boas e
claras, os presentes de todos aqueles espíritos livres, que na montanha, floresta e
solidão estão em casa e que, iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora meditativa,
são andarilhos e filósofos. Nascidos dos segredos da manhã, meditam sobre como
pode o dia, entre a décima e a décima segunda badalada, ter um rosto tão puro,
translúcido, transfiguradamente sereno: - buscam a filosofia de antes do meio-
dia.
279
Nietzsche fala ainda do grande meio-dia”. De acordo com Zaratustra, “o grande
meio-dia é a hora em que o homem se encontra na metade de seu caminho entre o animal e
o além-do-homem e celebra o seu caminho para o entardecer como sua mais alta esperança:
pois é o caminho para uma nova manhã.
280
Para ele, somente aquele que se afunda em seu
ocaso abençoará a si mesmo por ter passado ao outro lado. Nesse momento, o sol de seu
conhecimento estará para ele no meio-dia. “’Mortos estão todos os deuses: agora queremos
276
De acordo com as estatísticas, o maior número de suicídios ocorre entre o final da manhã e o meio-dia
(Andrew SOLOMON O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, p. 232). Sobre acedia, ver p.36
do presente trabalho.
277
Apud: Rüdiger SAFRANSKI, Nietzsche – biografia de uma tragédia, p. 338.
278
Ver p. 35-39.
279
F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, vol. I, aforismo 638, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 75.
280
IDEM, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 3, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 127.
87
que viva o além-do-homem’. que seja esta algum dia, no grande meio-dia, nossa última
vontade! –“
281
De acordo com determinados trabalhos biográficos sobre Nietzsche,
282
desde a
infância ele apresentava um grande fascínio pela composição musical, e se dedicará à
musica, embora não profissionalmente. Durante seus estudos no colégio de Schulpforta,
interessa-se também pela antiguidade clássica grega e latina. Ao terminar o colégio,
ingressa na Universidade de Bonn, no curso de Teologia, que abandonará no ano seguinte
para cursar Filologia em Leipzig. Um dos responsáveis por sua formação foi Friedrich
Ritschl, um dos mais renomados filólogos da Alemanha do século XIX.
Em 1869, aos 25 anos de idade, é indicado para ocupar a cátedra de Filologia na
Universidade da Basiléia, Suíça. Neste período inicia uma forte amizade com o compositor
Richard Wagner. Este e Schopenhauer foram aqueles que mais influenciaram o início de
sua “carreira” filosófica. Porém, durante o primeiro festival de Bayreuth, sofre grande
decepção com o músico, que desencadeará no rompimento das relações.
Talvez os anos de 1878 e 1879 tenham sido os mais importantes de sua vida. Foi
quando travou uma “guerra sem pólvora e fumaça”, quando “um erro após o outro é
calmamente colocado no gelo, o ideal não é refutado ele congela... Aqui, por exemplo,
congela ‘o santo’; pouco adiante congela ‘o gênio’; sob um espesso sincelo congela ‘o
herói’; por fim congela ‘a fé’, a chamada ‘convicção’, também a ‘compaixão’ esfria
consideravelmente em quase toda parte congela ‘a coisa em si’...”
283
A partir de então,
Nietzsche, desvinculado da filosofia de Schopenhauer e das idéias de Wagner, segue seu
próprio caminho. Afasta-se também do mundo acadêmico, passando a dedicar seu tempo
basicamente aos livros. Aliás, a única instituição da qual Nietzsche “compactuou” foi a
Universidade, na qual foi estudante e posteriormente lecionou por dez anos. Ele não
instituiu família, não aderiu a nenhuma religião e a nenhum partido político. Em 1881
281
Ibid.
282
Gianni VATTIMO, Introdução a Nietzsche; Curt Paul JANZ, Friedrich Nietzsche; R. SAFRANSKI,
Nietzsche, biografia de uma tragédia.
283
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Humano, demasiado humano”, aforismo 1, trad. de Paulo C. De Souza, p.
73. Humano, demasiado humano, de 1878, de acordo com algumas interpretações, marca o início do
pensamento independente de Nietzsche: “Juntamente com o rompimento definitivo com Wagner e
Schopenhauer, esse texto marca o início do segundo período do pensamento de Nietzsche. Ele demarca assim
o território de seu próprio pensamento, que, ao se propor a fazer a história e a crítica das categorias morais,
Nietzsche, ao mesmo tempo, se coloca em radical oposição tanto a Schopenhauer quanto a seu amigo Rée,
que, em 1877, publicara a Origem dos Sentimentos Morais.” (Oswaldo GIACOIA JUNIOR, Nietzsche, p. 85).
88
escreverá Aurora e, no ano seguinte, A Gaia Ciência. Entre 1884 e 1885 é a vez de Assim
falou Zaratustra. Um ano depois, escreverá Para além de bem e mal. Em 1887 incorpora
um quinto livro à Gaia Ciência e escreve a Genealogia da moral. O caso Wagner,
Nietzsche contra Wagner, Ditirambos de Dionísio, Crepúsculo dos ídolos, O anticristo e
Ecce Homo são todos de 1888. Nesse período escreve a sua irmã: “Não tens a mais remota
idéia do que é ser parente próximo da pessoa e do destino em que se decidiram as questões
de milênios”.
284
Esta declaração, na qual se considera um destino, pode ser apreciada
também em Ecce Homo, por exemplo, no capítulo intitulado “Por que sou um destino”.
Dentre os nove aforismos que o compõem, destacamos o segundo:
Querem uma fórmula para um destino assim, que se fez homem? Ela se encontra
no meu Zaratustra.
- e quem um criador quiser ser no bem e no mal, deverá ser primeiro um
destruidor, e despedaçar valores.
Assim o mal maior é próprio do maior bem: este porém é o criador.
Eu sou no mínimo o homem mais terrível que até agora existiu; o que não impede
que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço o prazer de destruir em um grau
conforme à minha força para destruir – em ambos obedeço à minha natureza
dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer Não. Eu sou o primeiro
imoralista: e com isso sou o destruidor par excellence.
285
A nosso ver, Nietzsche não se coloca como um indivíduo, mas como o portador de
uma tarefa grandiosa. Essa questão é importante de ser entendida para que não se tome o
filósofo como megalomaníaco. O seguinte aforismo, publicado seis anos antes do
supracitado, talvez tenha sido escrito com esse mesmo sentido:
... quem é capaz de sentir o conjunto da história humana como sua própria história
sente, numa colossal generalização, toda a mágoa do doente que pensa na saúde, do
ancião que lembra o sonho da juventude, do amante a quem roubaram a amada, do
284
Apud: R. SAFRANSKI, Nietzsche – Biografia de uma Tragédia, p. 339
285
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 2, trad. de Paulo C. de Souza, p. 110. A
citação que Nietzsche faz aqui é “Da superação de si”, da segunda parte de Zaratustra. Os aforismos 1, 4 e 5
de “Por que sou um destino” podem ser lidos no apêndice do presente trabalho, nas p. 154-156; o aforismo 3
foi citado na abertura do segundo item do segundo capítulo.
89
mártir cujo ideal foi destruído, do herói após a batalha que nada decidiu e lhe
causou ferimentos e a morte do amigo -; mas carregar, poder carregar essa enorme
soma de mágoas de toda espécie e ainda ser o herói que, no romper do segundo dia
de batalha, saúda a aurora e a sua fortuna, como o ser que tem um horizonte de
milênios a sua frente e atrás de si, como o herdeiro de toda a nobreza do espírito
passado, (...): tudo isso acolher em sua alma, (...): tudo isso, afinal, ter numa
alma e reunir num sentimento: - isso teria de resultar numa felicidade que até
agora o ser humano não conheceu – a felicidade de um deus pleno de poder e amor,
cheio de lágrimas e risos ....
286
No Ecce Homo, seu último livro, sua vida e seus escritos se mostram com tanta
sincronia, que talvez não tenhamos o direito de separá-los. Um pequeno exemplo é a
seguinte passagem, na qual Nietzsche fala ao mesmo tempo dele e de seus escritos:
Agora que olho para trás e revejo de certa distância as condições de que esses
escritos são testemunho, não quero negar que no fundo falam apenas de mim.
“Wagner em Bayreuth” é uma visão do meu futuro; mas em “Schopenhauer como
educador” está inscrita minha história mais íntima, meu vir a ser. Sobretudo meu
compromisso!... O que hoje sou, onde hoje estou em uma altura de onde já não
falo com palavras, mas com raios -, ó quão longe disso eu ainda estava então!
Mas eu via a Terra - não me enganei um instante sobre caminhos, mares e perigos
– e sobre o êxito!
287
Se Nietzsche não se enganou sobre caminhos é porque, de alguma forma, os
conhecia: “E, em toda a seriedade, ninguém antes de mim conhecia o caminho reto, o
caminho para cima: apenas a partir de mim novamente esperanças, tarefas, caminhos a
traçar para a cultura eu sou o seu alegre mensageiro... Exatamente por isso sou também
um destino.”
288
Porém, não podemos nos esquecer que para Nietzsche a vida vive de
286
IDEM, A Gaia Ciência, Livro IV, aforismo 337, trad. de Paulo C. de Souza, p. 225, 226.
287
IDEM, Ecce Homo, “As Extemporâneas”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 70.
288
Ibid, “Crepúsculo dos ídolos”, aforismo 2, p. 100. Aqui Nietzsche se coloca como alegre mensageiro, o
que, a nosso ver, também teria ligação com o movimento angélico. Os anjos são mensageiros que trazem a
boa nova. O sentido original da palavra evangelho é “boa nova” ou “boa mensagem”. Em contrapartida,
Paulo, da perspectiva nietzscheana, seria um “disangelista”, aquele que traz a “má nova”: “Em Paulo toma
90
engano, e, se estamos vivos, enganamos a nós mesmos e aos outros. No prefácio tardio, de
1886, à Humano, Demasiado Humano, ele diz que para se permitir o luxo de sua
veracidade, era necessário a falsidade:
(...) quantas vezes eu, para descansar de mim, como que para um temporário auto-
esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte sob alguma veneração ou
inimizade ou cientificidade ou leviandade ou estupidez: e também porque, onde não
encontrei aquilo de que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo,
criá-lo ficticiamente para mim (...) o que sabeis vós, o que poderíeis saber, do
quanto há de ardil de autoconservação, do quanto há de razão e cuidado superior em
um tal auto-engano e de quanta falsidade eu ainda necessito, para poder permitir-
me sempre de novo o luxo de minha veracidade?... Basta, eu vivo ainda; e a vida
não foi inventada pela moral: ela quer engano, ela vive de engano...
289
Todavia, mesmo sabendo da importância do engano na economia da vida, ele não
pôde deixar de derrubar “ideais”:
Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) isso sim, faz parte de meu
ofício. Privou-se a realidade de seu valor, de seu sentido, de sua veracidade, no
mesmo grau em que se mentiu um mundo ideal... O “verdadeiro mundo” e o
“mundo aparente” em alemão: o mundo mentido e a realidade... A mentira do
ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, com ela a humanidade mesma se
tornou, até em seus mais profundos instintos, mentirosa e falsa – até chegar à
adoração dos valores inversos àqueles com os quais, somente, lhe estaria garantido
o prosperar, o futuro, o elevado direito a futuro.
290
corpo o tipo oposto ao “portador da boa notícia”, o gênio no ódio, na visão do ódio...” (IDEM, O anticristo,
aforismo 42, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 132).
289
IDEM, Humano, Demasiado Humano, Vol. I, prefácio tardio, aforismo 1, trad. de Rubens R. T. Filho. In:
F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. I, p. 41, 42. Ver citação selecionada no apêndice, p. 141.
290
IDEM, Ecce Homo, prólogo, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 145, 146. A passagem: “em alemão: o mundo mentido e a realidade”
,
Andrés S.
Pascual traduziu da seguinte forma:
dito com claridade: o mundo fingido e a realidade”. (Alianza Editorial,
p. 16).
91
Nomeamos o presente item de Incipit Nietzsche”. Mas, ele próprio se colocava
como decadente e seu oposto. Se ele desmonta oposições, nisso não se poupou a si mesmo:
A felicidade de minha existência, sua singularidade, talvez, está em sua fatalidade:
para exprimi-lo em forma de enigma, eu, como meu pai, já estou morto, como
minha mãe, vivo ainda e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais alto
e do mais baixo degrau da escada da vida, ao mesmo tempo décadent e começo é
isso, se é que é alguma coisa, que explica aquela neutralidade, aquela liberdade de
partido em relação ao problema global da vida, que, talvez, me caracteriza...
291
E no aforismo subseqüente dirá:
Pois, sem contar que sou um décadent, sou também o seu oposto. Minha prova
disso é, entre outras, que instintivamente, contra os estados ruins, escolhi sempre os
remédios certos; enquanto o décadent em si escolhe sempre os remédios que lhe
são prejudiciais. Como summa summarum eu era sadio; como ângulo, como
especialidade, eu era décadent...
292
Ao mesmo tempo início e decadência, Nietzsche foi, como ele próprio disse, um
psicólogo. Talvez o que fez dele um psicólogo não tenha sido somente seu olhar e sentir
perspectivista do mundo, ou sua audição apurada de músico. Tampouco seu paladar
seletivo e criterioso ou, ainda, seu tato. Se, como ele disse, antes dele não havia
absolutamente psicologia,
293
talvez isso se deva, principalmente, a seu olfato:
Posso arriscar-me a indicar um último traço de minha natureza que me cria não
pouca dificuldade no trato com os homens? Pertence-me uma sensibilidade
perfeitamente inquietante do instinto de limpeza, de modo que percebo
fisiologicamente farejo a proximidade ou que digo? a parte mais íntima, as
“entranhas” de cada alma... Tenho nesta sensibilidade antenas psicológicas, com as
quais toco e me aposso de cada segredo: já ao primeiro contato tomo ciência da
291
Ibid., “Por que sou tão sábio”, aforismo 1, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. II, p. 149, 150.
292
Ibid., aforismo 2, p. 150, 151. Ver citação selecionada no apêndice, p. 151, 152.
293
Ver na Introdução, nota 4, p. 3.
92
muita sujeira escondida no fundo de mais de uma natureza, talvez devida ao mal
sangue, porém coberta por fina tinta de educação.
294
Acresce-se a isso sua afirmação de que seu gênio está nas narinas.
295
Além disso,
Nietzsche considerava-se por natureza guerreiro, e disse que sua prática de guerra podia ser
resumida em quatro princípios:
Primeiro: ataco somente causas vitoriosas (...) Segundo: ataco somente causas em
que não encontraria aliados, (...) em que me comprometo sozinho... (...) Terceiro:
nunca ataco pessoas - sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com
que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco
palpável. (...) Quarto: ataco somente coisas de que está excluída qualquer diferença
pessoal, em que não existe pano de fundo de experiências ruins. Pelo contrário,
atacar é em mim prova de benevolência, ocasionalmente de gratidão. Eu honro, eu
distingo, ao ligar meu nome ao de uma causa, uma pessoa: a favor ou contra não
faz diferença para mim. Se faço guerra ao cristianismo, isso me é facultado, porque
dessa parte nunca experimentei contrariedades e obstáculos – os mais sérios cristãos
sempre foram bem-dispostos para comigo. Eu mesmo, um adversário de rigueur do
cristianismo, estou longe de guardar ódio ao indivíduo pelo que é a fatalidade de
milênios. -
296
Lemos aqui que Nietzsche luta e se compromete sozinho, somente contra causas
vitoriosas, servindo-se da pessoa como uma forte lente de aumento (Vergrö
β
erungsglases),
com a qual se um estado de miséria geral. Nessa guerra nietzscheana onde não existe
ódio, mas benevolência, ocasionalmente gratidão, Nietzsche liga o seu nome ao de uma
causa.
297
Um indivíduo cristão não poderia ser por ele odiado, uma vez que não estamos
falando aqui do indivíduo Nietzsche e do indivíduo cristão, e, mesmo porque, ele se esforça
por se afastar de toda atitude de ressentimento: “Estar livre do ressentimento, estar
294
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 8, trad. de Paulo C. de Souza, p. 33.
295
Ibid., “Por que sou um destino”, aforismo 1. Esse aforismo foi citado no final do item 1 desse capítulo, nas
p. 47, 48, nota 149, e consta na seleção de aforismos do apêndice, p. 154.
296
Ibid., “Por que sou tão sábio”, aforismo 7, trad. de Paulo C. de Souza, p. 32.
297
No segundo item do presente capítulo, falamos a respeito do “nome” Nietzsche: Parece que quando
Nietzsche fala dele mesmo, não está falando dele como pessoa, como indivíduo, mas como algo maior que
fala e acontece através dele.” (p. 53).
93
esclarecido sobre o ressentimento – quem sabe até que ponto também nisso devo ser grato à
minha longa enfermidade! O problema não é exatamente simples: é preciso tê-lo vivido a
partir da força e a partir da fraqueza.”
298
Trata-se da ligação do nome Nietzsche a uma
fatalidade de milênios. Nos parece que ele serve-se também de sua própria pessoa como
lente de aumento, e é através dessa lente que se como destino: “... a verdade fala em
mim. Mas a minha verdade é terrível: pois até agora chamou-se à mentira verdade.
Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autognose
da humanidade, que em mim se fez gênio e carne.”
299
Com essa lente de aumento Nietzsche
vê a si próprio e aos demais, fazendo assim um exercício de autognose. Os seres individuais
são para ele uma possível lente de aumento de uma situação geral, de forma que seu quarto
princípio de guerra é atacar “somente coisas de que está excluída qualquer diferença
pessoal”. Cada ser seria um fragmento do todo. Já, nas palavras de Zaratustra, escutamos o
seguinte:
Mas, desde que estou entre homens, para mim o de menos é ver: “A este lhe falta
um olho, e àquele uma orelha, e àquele terceiro a perna, e outros há que perderam a
língua ou o nariz ou a cabeça”.
Eu vejo e tenho visto coisas piores, (...) seres humanos a quem lhes falta tudo,
exceto uma coisa a qual têm demasiado seres humanos que não são mais que um
grande olho, ou uma grande boca, ou um grande estômago, ou alguma outra coisa
grande, - aleijados às avessas os chamo eu.
(...) E o povo me dizia que a grande orelha era não só um homem, senão um grande
homem, um gênio. (...)
(...) Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre fragmentos
e membros de homens!
300
Seria o próprio Nietzsche um fragmento da humanidade, no qual se fez “gênio e
carne”?
301
Sendo um fragmento, poder-se-ia ainda falar em individualismo? Colocando
298
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p.30.
299
Ibid., “Por que sou um destino”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 109. Conforme nota 295, esse
aforismo foi citado nas p. 47, 48, nota 149 e encontra-se, ainda, no apêndice, p. 154.
300
IDEM, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Da redenção”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 208.
301
Lembrando que seu “gênio está nas narinas”, por isso ele fareja “as ‘entranhasde cada alma...” (Ecce
Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 1 e “Por que sou tão sábio”, aforismo 8, citados anteriormente).
94
cada ser individual como fragmento da humanidade, percebe-se que em Nietzsche ainda
a possibilidade de se falar em humanidade. Mas, a nosso ver, seria um outro tipo de
humanidade que ele está pensando, uma humanidade ao porvir, que estaria para ser
construída. No paralelo que estamos fazendo com Zaratustra, ele diria:
Eu caminho entre os homens como entre os fragmentos do futuro: daquele futuro
que eu contemplo.
E todos meus pensamentos e desejos tendem a pensar e reunir em unidade o que é
fragmento e enigma e espantoso acaso.
E como suportaria eu ser homem se o homem não fosse também poeta e
adivinhador de enigmas e o redentor do acaso!
Redimir aos que passaram, e transformar todo “Foi” em um “Assim o quis”
isso seria para mim redenção!
302
Zaratustra fala de uma redenção do passado para que se possa construir uma outra
humanidade no porvir. Mas como redimir um passado que recebemos? Mudando o “Foi”
para “Assim o quis”. Ele reelabora o conceito de redenção: no lugar do arrependimento e
culpa da religião, ele fala de um transformar o que “Foi” em um “Assim o quis”. Redimir o
que foi, para Nietzsche, é colocar o querer para o passado. E depois de redimido e
transformado todo o “Foi”, pode-se reunir os fragmentos e criar o além-do-homem a partir
do homem. Pode-se dizer que essa redenção é pré-requisito para a tarefa de Zaratustra,
que, pontualmente, é também a de Nietzsche, como podemos ler no Ecce Homo. Ao se
referir ao aforismo “Da redenção”, Nietzsche diz que “Zaratustra define certa vez com rigor
sua tarefa é também a minha de modo a não haver engano sobre o sentido: ele é
afirmativo a ponto de justificar, de redimir mesmo tudo o que passou.”
303
Como vimos na abertura do presente item, no sexto momento da “História de um
erro” Nietzsche diz que “Com o verdadeiro mundo expulsamos também o aparente!”. Se
considerarmos Deus no âmbito do mundo inteligível de Platão, e o homem no âmbito do
mundo sensível, uma vez que, platonicamente, o primeiro é verdadeiro e o último, aparente,
se o primeiro morre, o segundo também deixa de existir, uma vez que apoiava-se nos
302
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Da redenção”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 209.
303
IDEM, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 8, trad. de Paulo C. de Souza, p. 93.
95
fundamentos do primeiro. Seria então um equívoco chamar o homem atual de homem, uma
vez que este morreu junto com Deus. Mas, se esse homem não existe enquanto homem, -
não homens, há fragmentos para Nietzsche ele existe enquanto meio: o homem é uma
ponte para atingir outra forma a de além-do-homem. Trabalha-se para a espécie, não para
si mesmo: “O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem, - uma
corda sobre um abismo. (...) A grandeza do homem está em ser uma ponte e não uma
meta...”
304
Assinalamos que ao atacar uma causa, Nietzsche liga seu nome a ela. Na última parte
de Ecce Homo ele escreve as seguintes palavras: “Um dia, meu nome será ligado à
lembrança de algo tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais
profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi
acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite.”
305
A afirmação
de que ele não é um homem, mas dinamite, a nosso ver, mostra a sua força: a palavra
dinamite é composta pela palavra grega dynamis, que significa força, potência. A força de
destruir para poder criar, já citada anteriormente:
- e quem um criador quiser ser no bem e no mal, deverá ser primeiro um
destruidor, e despedaçar valores.
Assim o mal maior é próprio do maior bem: este porém é o criador.
Eu sou no mínimo o homem mais terrível que até agora existiu; o que não impede
que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço o prazer de destruir em um grau
conforme à minha força para destruir –
306
304
IDEM, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 4, trad. de Andrés S. Pascual, p. 38. Nos escritos
nietzscheanos encontramos não apenas um tipo de homem, mas vários. Temos o homem, o último homem e o
homem superior. Pode-se dizer que o homem é aquele que ainda se submete aos antigos valores da tradição; o
último homem sabe que os antigos valores não servem mais, sabe que Deus está morto, mas pensa ser
possível viver sem valores este último homem é, para Nietzsche, o mais desprezível dos homens, uma vez
que não se dispõe a criar novos valores; já o homem superior, também sabe da morte de Deus, e substitui os
valores divinos por valores humanos. Neste caso, nada muda. Ocorre apenas uma substituição de nomes: o
nome Deus é substituído pelo nome homem, mas, na prática, continua tudo igual. Não ocorrendo uma
transformação, o princípio de avaliação continua o mesmo.
305
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 109. Citação
selecionada no apêndice, p. 154.
306
Ibid., aforismo 2, p. 110. Citado na p. 88, nota 285.
96
Ao afirmar não ser um homem, mas dinamite, Nietzsche poderia ainda estar
assinalando uma crítica ao pecado da soberba. A palavra homem deriva do latim humus,
que significa terra (humanus = o nascido da terra). Daí a palavra humilde, em latim humilis,
ou seja, pouco elevado, rasteiro. Sabemos que os cristãos valorizam a humildade e
consideram a soberba um pecado capital. Talvez o auto-enaltecimento de Nietzsche
também esteja relacionado a sua crítica ao cristianismo. Ao dizer “não sou homem, sou
dinamite”, estaria dizendo que não é terra, no sentido de humilde, rasteiro, mas fogo, no
sentido de elevado. Além do que, de todos os elementos, a terra é o mais fácil de modelar,
de controlar, e o fogo é o mais incontrolável. Além de dizer ser dinamite, Nietzsche
também diz ser fogo no poema que intitulou Ecce Homo:
Sim, eu sei de onde sou!
Insaciável como o fogo
Eu ardo e me consumo
Tudo o que toco vira flama
E tudo o que deixo, carvão:
Sou fogo, não há dúvida.
307
Reunindo tudo o que foi dito, talvez a melhor forma de apresentar Nietzsche seja
esta:
Meio-dia; silêncio após o dinamite: INCIPIT NIETZSCHE.
307
IDEM, A Gaia Ciência, “’Brincadeira, astúcia e vingança’, Prelúdio em rimas alemãs”, poema 62
intitulado Ecce Homo, trad. de Paulo C. de Souza, p.47, 49. Interessante assinalar que, segundo Platão, a
espécie divina foi feita de fogo, “para que fosse a mais brilhante e bela de ver...” (Timeu, XII, 40-a, p. 76).
97
III. O SÍMBOLO COMO PERSPECTIVA DE LEITURA DO
ZARATUSTRA
UMA LEITURA DO SÍMBOLO DA ÁRVORE
98
Determinados aforismos de Zaratustra podem ser avaliados como sendo mais ricos
em símbolos que outros, mas estes estão presentes em toda a obra. Encontramos, por
exemplo, a águia, a serpente, o leão, o camelo, a criança, a árvore, a montanha, a caverna, o
sol, o meio-dia, o eremita, a ponte, o barco, a ilha, o lago, o mar. Escolheremos a árvore por
sua relação com Dionísio, por seu aspecto vital e de renovação, e também por,
efetivamente, Nietzsche trazer esse símbolo, de uma maneira ou de outra, em vários de seus
escritos além do Zaratustra.
308
Pela relação da árvore com Dionísio, consideramos pertinente apresentar aqui alguns
aspectos de sua mitologia. O primeiro Dionísio, também chamado de Zagreu, filho de Zeus
e Perséfone, estava destinado a suceder Zeus no governo do mundo. Mas esse não era o
desejo de Hera, a esposa de Zeus. Para proteger o filho, Zeus o entregou a Apolo e aos
Curetes, que o esconderam nas florestas do Parnaso. Hera, contudo, descobriu o esconderijo
e mandou os Titãs matá-lo. Estes o cortaram em pedaços, o cozinharam num caldeirão e o
devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram os homens. Sendo um deus,
Dionísio não morre, mas renasce do próprio coração.
309
Segundo explicita Brandão,
É que, de fato, Zagreu voltou à vida. Atena, outros dizem que Deméter, salvou-lhe
o coração que ainda palpitava. Engolindo-o, a princesa tebana Sêmele tornou-se
grávida do segundo Dionísio. O mito possui muitas variantes, principalmente
aquela segundo a qual fora Zeus quem engolira o coração do filho, antes de
fecundar Sêmele. (...). Hera (...), ao ter conhecimento das relações amorosas de
Sêmele com o esposo, resolveu eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa
tebana, aconselhou-a a pedir ao amante que se lhe apresentasse em todo o seu
esplendor. O deus advertiu a Sêmele de que semelhante pedido lhe seria funesto,
uma vez que um mortal, revestido da matéria, não tem estrutura para suportar a
epifania de um deus imortal. Mas, como havia jurado pelas águas do rio Estige
jamais contrariar-lhe os desejos, Zeus apresentou-se-lhe com seus raios e trovões. O
palácio da princesa se incendiou e esta morreu carbonizada. O feto, o futuro
308
É possível encontrar uma fala simbólica em diferentes períodos dos escritos nietzscheanos, e não apenas
no período em que foi escrito Zaratustra, embora seja no Zaratustra que acontece uma profusão de símbolos
sem precedentes. Em Sobre o Pathos da Verdade”, por exemplo, ainda no primeiro período de seus escritos,
Nietzsche fala da árvore: “...Uma grande árvore cai, para nosso incômodo, e um desmoronamento na
montanha nos perturba...” (“Sobre o pathos da verdade”, prefácio, in: Cinco prefácios para cinco livros não
escritos, trad. de Pedro Süssekind, p. 24).
309
J. S. BRANDÃO, Mitologia grega, Vol. II, p. 117, 118.
99
Dionísio, foi salvo por gesto dramático do pai dos deuses e dos homens: Zeus
recolheu apressadamente do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e
colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação normal. Tão logo nasceu
o filho de Zeus, Hermes o recolheu e levou-o, às escondidas, para a corte de Átamas
(...) Temendo novo estratagema de Hera, Zeus transformou o filho em bode e
mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa, onde foi confiado
aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que lá habitavam numa gruta profunda.
310
Em nota, Brandão acrescenta que
Dionísio era um deus da árvore em geral. Como outros deuses da vegetação
(Adônis, Osíris...) pereceu de morte violenta, mas retornou à vida. Sua morte,
sofrimentos e renascimento eram representados em seus ritos. Assim, como toda e
qualquer divindade da vegetação, que passa, como a “semente”, uma parte do ano
sob a terra, o deus do êxtase e do entusiasmo é também uma divindade ctônica, que
morre, renasce, frutifica, torna a morrer e retorna ciclicamente. O fato de Dionísio
ser concebido sob forma animal, como touro ou bode, representa apenas o espírito
da vegetação, o espírito do grão, que, no momento da colheita, se encarna num
animal, em cujo corpo encontra guarida. (...) o sacrifício, consoante as práticas
antigas de caráter agrário, se consuma por desmembramento e omofagia. O
desmembramento tem por objetivo converter em talismãs, em amuletos de
fertilidade as partes do corpo do animal em que está concentrado o espírito da
vegetação e a omofagia expressa o desejo de assimilar as forças mágicas existentes
nesse mesmo corpo. Desse modo, os dados fundamentais (desmembramento, morte
e retorno à vida) do mito de Dionísio explicam-se através de ritos agrários.
311
Mais tarde, Dionísio i desposar Ariadne, também ela uma deusa da vegetação.
Cabe destacar a ligação, em Nietzsche, de Dionísio com o eterno retorno da vida, como
podemos ler, por exemplo, no Crepúsculo dos ídolos:
310
Ibid., p. 119, 120.
311
Ibid., nota 44, p. 124.
100
...Pois somente nos mistérios dionisíacos, na psicologia do estado dionisíaco
enuncia-se o fato fundamental do instinto helênico – sua “vontade de vida”. O que o
heleno garantia a si mesmo com esses mistérios? A vida eterna (das ewige Leben),
o eterno retorno da vida (die ewige Wiederkert des Lebens); (...) a verdadeira vida
como sobrevivência coletiva pela geração, pelos mistérios da sexualidade. (...) Na
doutrina dos Mistérios a dor é declarada santa: as “dores da parturiente” santificam
a dor em geral (...) Isso tudo significa a palavra Dioníso: o conheço nenhum
simbolismo mais alto do que esse simbolismo grego, o das Dionísias. Nele o mais
profundo instinto da vida, o do futuro da vida, da eternidade da vida, é sentido
religiosamente – o caminho mesmo para a vida, a geração, como o caminho
santo... Somente o cristianismo, com seu ressentimento contra a vida no
fundamento, fez da sexualidade algo impuro: lançou lodo sobre o começo, sobre o
pressuposto de nossa vida...
312
Assim, de acordo com nossa leitura, o simbolismo da árvore no Zaratustra de
Nietzsche, teria uma relação direta com o pensamento nietzscheano do eterno retorno,
entendido como a vida eterna, cujo simbolismo mais elevado, segundo Nietzsche, é o
simbolismo grego dos rituais dionisíacos. De acordo com Nietzsche, a “vontade de vida” do
instinto helênico expressa-se nos mistérios dionisíacos. Mistérios estes que, a nosso ver,
foram, de alguma forma, experienciados por Nietzsche no Zaratustra. Até então, ele
vislumbrava os mistérios. Desta feita, porém, ele teria tido a experiência dionisíaca. Por
isso Nietzsche pode se dizer mestre do eterno retorno. A frase nietzscheana: Dionísio
contra o Crucificado”,
313
a nosso ver, seria a reafirmação e a ressacralização da vida, com
tudo que lhe é inerente, como a fertilidade, a sexualidade, a dor, o sofrimento, a alegria, e
seu eterno retorno. Dionísio, o deus da vegetação, o deus da árvore, assim como a própria
árvore, segundo nossa leitura, seriam os símbolos do eterno retorno. O símbolo dionisíaco
312
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, aforismo 4, trad. de Rubens R. T.
Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 124.
313
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 9, trad. de Paulo C. de Souza, p. 117. Essas são as
últimas palavras de seu último livro. A nosso ver, o crucificado não seria uma referência a Cristo, mas ao que
fizeram com ele. O que Nietzsche critica não é Cristo, mas aquilo que se denominou cristianismo: “Não se
deve embelezar e ataviar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra esse tipo mais elevado de
homem, ele proscreveu todos os instintos fundamentais desse tipo...” (F. NIETZSCHE, O anticristo, aforismo
5, trad. de Paulo C. de Souza, p. 12).
101
seria a antípoda do cristianismo e seu ressentimento contra a vida: afirmação versus
negação da vida.
314
Apresentamos a seguir o aforismo subseqüente ao supracitado, com o intuito de
arrematar a introdução deste capítulo, para ir dando início ao cenário simbólico:
(...) O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a
vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais
elevados tipos – a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia
do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se
de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga assim o compreendeu
Aristóteles -: mas para, alem do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno
prazer do vir a ser esse prazer que traz em si também o prazer no destruir... E
com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti – o Nascimento da
tragédia foi minha primeira tresvaloração de todos os valores: com isso estou de
volta ao terreno em que medra meu querer, meu saber eu, o último discípulo do
filósofo Dionísio – eu, o mestre do eterno retorno...
315
No aforismo supracitado, a nosso ver, podemos vislumbrar dois exemplos de retorno
e transformação: o da própria vida de Nietzsche, ou seja, de seu pensamento, através de
seus escritos, que inicia com o Nascimento da Tragédia e a ele retorna; e o outro, efetivado
em sua filosofia, que traz de volta, diferencialmente, a psicologia do estado dionisíaco, na
expressão da “vontade de vida”. O estado dionisíaco como expressão do eterno retorno da
vida, através de seu dizer Sim à ela. E isso, como veremos, estaria simbolizado pela árvore,
cujo deus é Dionísio.
314
De acordo com Rubens Rodrigues Torres Filho, a obra que Nietzsche não chegou a escrever, cujo título
seria “Transvaloração de todos os valores”, teria o seguinte plano, conforme consta na Edição Kröner:
Primeiro livro: O Anticristo – Ensaio de uma crítica do cristianismo.
Segundo livro: O Espírito Livre – Crítica da filosofia como movimento niilista.
Terceiro livro: O Imoralista – Crítica da mais fatal espécie de ignorância: a moral.
Quarto livro: Dioniso – Filosofia do eterno retorno.
(Apud F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, Vol. II, O Anticristo, nota do tradutor, p. 125). O título do quarto
livro, embora não escrito, acorda com a relação que apontamos entre Dionísio e o eterno retorno.
315
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, aforismo 5, trad. de Paulo C. de Souza,
p.106, 107.
102
3.1. O SÍMBOLO DA ÁRVORE
É tempo de o homem fixar sua própria meta. É tempo de o homem plantar a
semente de sua mais alta esperança. Seu terreno ainda é bastante fértil para isso.
Mas um dia esse terreno será pobre e manso, e dele não poderá mais brotar
nenhuma árvore elevada.
316
Se a passagem do Zaratustra supracitada tem um tom de alerta, é porque não é a
primeira vez que Nietzsche fala sobre a tarefa do homem, da grande tarefa, de semear a
árvore da humanidade. Em O andarilho e sua sombra, de 1879, no aforismo intitulado “A
árvore da humanidade e a razão”, lemos o seguinte:
Aquilo que vocês, com decrépita miopia, temem como sendo a superpopulação da
Terra, é justamente o que proporciona ao mais esperançoso a sua grande tarefa: um
dia, a humanidade deve se tornar uma árvore que cubra a Terra inteira, com muitos
bilhões de brotos que devem conjuntamente se tornar frutos, e a Terra deve ser
preparada para nutrir essa árvore. (...) todos queremos contribuir para que a árvore
não apodreça antes do tempo! (...) Temos, isto sim, que olhar de frente a grande
tarefa de preparar a Terra para uma vegetação da máxima e mais jubilosa
fecundidade – uma tarefa da razão em prol da razão!
317
A árvore elevada, que o homem tem como tarefa cultivar, “uma tarefa da razão em
prol da razão”, seria a árvore do porvir da qual Zaratustra falará na segunda parte do livro?
A referida passagem diz que “Na árvore do porvir construímos nós nosso ninho; águias
devem trazer em seus bicos alimento a nós os solitários!”
318
Parece que, a despeito da inversão socrática,
319
da separação entre razão e instinto, de
acordo com Nietzsche, a humanidade continua tendo como guia uma razão instintiva. Isso
seria a “razão em prol da razão” de que nos fala Nietzsche: a razão instintiva, inconsciente,
criativa, em prol da razão consciente, argumentativa, crítica. Apesar da “decrépita miopia”
316
IDEM, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 5, trad. de Andrés S. Pascual, p. 40, 41.
317
IDEM, Humano, demasiado humano, vol. II, segunda parte: “O andarilho e sua sombra, aforismo 189,
trad. de Paulo C. de Souza, p. 249, 250. Ver a citação selecionada no Apêndice, p. 141, 142.
318
IDEM, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Da gentalha”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 153.
319
Ver capítulo 1, item 4.
103
da razão consciente, a humanidade poderá cumprir sua grande tarefa: preparar a Terra para
uma vegetação fecunda, semear e tornar-se a árvore do porvir, a árvore que cobrirá a Terra
inteira. Para compreender o alcance de uma tarefa assim explicitada, abordaremos alguns
aspectos da árvore como símbolo.
De um modo geral, a árvore simboliza a vida, seu crescimento e proliferação. Seu
aspecto clico de nascimento e morte evoca a idéia de vida eterna. De acordo com Mircea
Eliade,
O mistério da inesgotável aparição da Vida corresponde à renovação rítmica do
Cosmos. É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma de uma árvore
gigante: o modo de ser do Cosmos, e sobretudo sua capacidade infinita de se
regenerar, é expresso simbolicamente pela vida da árvore.
320
De acordo com nossa leitura, Nietzsche, por intermédio do símbolo da árvore, estaria
acenando seu pensamento do eterno retorno. Sendo assim, a árvore em Nietzsche teria mais
relevância do que se imagina, uma vez que o pensamento do eterno retorno é um
pensamento chave de Zaratustra. Acenar o eterno retorno pelo símbolo da árvore seria, a
nosso ver, uma evocação ao deus Dionísio, que, na mitologia, é o deus da árvore.
Acompanhemos o que diNietzsche ao se pronunciar sobre este livro: “Meu conceito de
‘dionisíaco’ tornou-se ali ato supremo...”, e, um pouco adiante, ao falar de Zaratustra, dirá:
“...como aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o ‘mais
abismal pensamento’, o encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir, sequer ao
320
Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, cap. III, “Simbolismo da árvore cósmica e cultos da vegetação”,
p. 123, 124. Diz Eliade que na Europa ainda o costume de trazer uma árvore da floresta e colocá-la no
centro da aldeia, ou trazer ramos verdes e pendurá-los nas portas das casas para garantir a prosperidade de
seus donos. Tal costume tem o nome de “árvore de Maio” e, posteriormente, se tornará o símbolo da
Revolução Francesa, passando a chamar a árvore da liberdade” (M. ELIADE, Tratado de história das
religiões, cap. VIII: “A vegetação: símbolos e ritos de renovação”, p. 251). Esses vestígios de cenários
arcaicos consagrados à árvore, ainda presentes nas tradições populares européias, também foram relatados por
Jung: “A própria existência do mastro enfeitado da festa da primavera, a árvore de maio e o pau-de-sebo,
dizem-nos muito acerca da reivindicação cristã da árvore de Natal. Na melhor das hipóteses, foi uma questão
de reinterpretação de antigos costumes, assim como a festa da natividade de Cristo foi enxertada nas
existentes festividades da vegetação do meio do inverno. O símbolo da árvore tem uma história muito
venerável...” (William McGUIRE e R.F.C. HULL, C.J.Jung: Entrevistas e Encontros, “Jung e a árvore de
Natal”, p. 315).
104
seu eterno retorno antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as
coisas, (...) Mas esta é a idéia do Dionísio mais uma vez.”
321
Assim, o pensamento do eterno retorno se apresentaria no cenário do teatro de
Zaratustra por intermédio de Dionísio. Por isso Nietzsche estaria evocando o deus da
vegetação, com seu aspecto de abundância, renovação, transformação, regeneração e
afirmação da vida.
322
Nas palavras de Junito de Souza Brandão, “Assim, como toda e
qualquer divindade da vegetação, que passa, como a ‘semente’, uma parte do ano sob a
terra, o deus do êxtase e do entusiasmo é também uma divindade ctônica, que morre,
renasce, frutifica, torna a morrer e retorna ciclicamente.”
323
Senhor da árvore, que distribui
a alegria, Dionísio é o deus da libertação, mbolo da vitalidade que quer emergir de toda
sujeição e de todo limite. Se, como diz Nietzsche, a grande tarefa da humanidade é preparar
a Terra para uma vegetação fecunda, ninguém melhor que Dionísio para ajudar nessa
tarefa. Na Grécia antiga, “Dionísio era invocado com o auxílio de daduco, ‘o condutor de
tochas’, e, consoante uma glosa de um verso de Aristófanes, o sacerdote eleusino, ‘trazendo
na mão uma tocha’, exclamava: Invocai o deus!’ Os participantes do festival gritavam em
resposta: ‘Ó Iaco, filho de Sêmele, distribuidor de riquezas!’ Trata-se, como é claro, de uma
invocação para provocar fertilidade...”
324
De acordo com Nietzsche, aquele que não tem
riquezas para distribuir e que tudo quer para si, é o egoísta doente. Existe, porém, o egoísta
saudável, que acumula riquezas para depois distribuí-las. Este está sempre se regenerando,
enquanto que o egoísta doente degenera.
325
Dionísio, sendo o “distribuidor de riquezas”,
estaria sempre se regenerando.
Como dissemos, o aspecto cíclico de nascimento e morte da árvore evoca a idéia de
regeneração. A árvore tem uma vida longa, mas envelhece e morre, e dela nasce outra
árvore. Poderíamos dizer que, para Nietzsche, a humanidade é uma árvore, que viveu muito
321
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 6, trad. Paulo C. de Souza, p. 88 e p. 90,
respectivamente. Citação selecionada no apêndice, p. 153, 154.
322
O eterno retorno se apresenta ainda em outras formas além dessa, como, por exemplo, a da águia voando
em círculos com a serpente enrolada em seu pescoço: “E eis aqui que uma águia cruzava o ar traçando amplos
círculos e dela pendia uma serpente, não como uma presa, mas como uma amiga: pois se mantinha enroscada
a seu pescoço.” (F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 10, trad. de Andrés S. Pascual, p.
48).
323
Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia Grega, vol. II, nota 44, p. 124. Citado na p. 99, nota 311.
324
Ibid., p. 127.
325
F. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, primeira parte, “Da virtude que presentes”, aforismo 1. Sobre
o egoísmo saudável, ver também terceira parte do Zaratustra, “Dos três males”, aforismo 2.
105
tempo, envelheceu e morrerá. Mas dela nascerá outra humanidade. A humanidade seria
então imortal, sempre se regenerando em um eterno retorno? A condição para a
regeneração poderia ser a doação. Sem esta não regeneração, mas degeneração. Deste
ponto de vista, a doação, talvez como o mais alto grau da vontade de potência, seria
considerada a mais alta virtude.
326
Nos estudos mitológicos em geral, o símbolo da árvore expressa ainda uma
triplicidade de níveis: raízes, tronco, copa. A árvore cresce e se desenvolve não na
superfície da terra, onde vemos seu tronco e seus galhos inferiores, como também no
subterrâneo, através de suas raízes, e ainda, nas alturas por meio de seus galhos superiores.
Dessa forma, ela faz esses três aspectos do mundo se relacionarem: o mundo subterrâneo
(inferior, infernal), o mundo da superfície (central) e o mundo das alturas (superior,
celeste). Nas palavras de Nietzsche:
...impelimos nossas raízes cada vez mais poderosamente na profundeza – no mal - ,
enquanto abraçamos cada vez mais carinhosamente e mais amplamente o céu,
absorvendo cada vez mais avidamente a sua luz com todos os nossos ramos e
folhas. Crescemos como árvores...
327
Nos estudos mitológicos encontramos ainda a Árvore do Mundo, que é sinônimo de
Eixo do Mundo, similar aos símbolos da escada e da montanha. Esse sentido de eixo do
mundo implica, por acréscimo, o símbolo de lugar central. Mircea Eliade diz que
“encontramos freqüentemente nos mitos e nas lendas relativas à árvore da vida a idéia
implícita de que ela se encontra no centro do universo e liga o Céu, a Terra e o Inferno.”
328
A nosso ver, em Nietzsche a árvore não liga céu, terra e inferno, mas indica que esses três
níveis de existência coexistem no único mundo existente, que é esse mundo no qual
vivemos. Quando a humanidade cumprir sua tarefa de “se tornar uma árvore que cubra a
Terra inteira”,
329
ela tee será essa experiência de viver o inferno e o céu aqui na terra, nas
326
Sobre a virtude da doação, ver p. 116.
327
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 371, trad. de Paulo C. de Souza, p. 275. Ver citação
na íntegra nas p. 125, 126, nota 400.
328
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, Cap. VIII: “A vegetação: símbolos e ritos de
renovação”, p. 241, 242.
329
F. NIETZSCHE, Humano, demasiado humano, Vol. II, segunda parte: O andarilho e sua sombra,
aforismo 189, trad. de Paulo C. de Souza, p. 249. Citado na p. 102, nota 317 e no Apêndice, p. 141, 142.
106
suas próprias entranhas, e não precisará mais do expediente de inventar a existência de um
outro mundo “melhor” que este. Será o retorno da tragédia? Afinal, Nietzsche anuncia
“uma era trágica“. Ao escrever sobre O nascimento da tragédia, ele diz:
Lancemos um olhar um século adiante, suponhamos que meu atentado contra dois
milênios de antinatureza e violação do homem tenha êxito. Aquele novo partido da
vida, que toma em mãos a maior das tarefas, o cultivo superior da humanidade,
incluindo a destruição implacável de todos os degenerados e parasitários, tornará
novamente possível aquela vida em demasia sobre a Terra, da qual a condição
dionisíaca novamente surgirá. Eu prometo uma era trágica: a arte suprema do dizer
Sim à vida, a tragédia, renascerá quando a humanidade tiver atrás de si a
consciência das mais duras porém necessárias guerras, sem sofrer com isso...
330
Nos estudos simbólicos da tradição judaico-cristã, a árvore aparece como o pilar
central que sustenta o templo, e a coluna vertebral, que sustenta o corpo humano.
331
No
cristianismo, a árvore coincide com a cruz da redenção, sendo que “na iconografia cristã a
Cruz é muitas vezes representada como uma árvore da vida...
332
Por metonímia, o próprio
Cristo se torna a Árvore do mundo, ou o Eixo do mundo, a escada. Na Bíblia lemos que
“Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer,
e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal”.
333
No
Zaratustra, a árvore da vida e a árvore do conhecimento parecem tornar-se uma árvore:
“Eu amo quem vive para conhecer, e quer conhecer para que um dia o além-do-homem
viva.”
334
Interessante notar que das duas árvores do Paraíso, a árvore do conhecimento do
330
IDEM, Ecce Homo, “O nascimento da tragédia”, aforismo 4, trad. de Paulo C. de Souza, p. 64, 65. Como
dissemos na Introdução, demos preferência às traduções de Rubens R. T. Filho. Porém, especificamente nessa
passagem do Ecce Homo, a tradução de Paulo C. de Souza está mais fiel ao original.
331
De acordo com Stanley Keleman, “Imagens míticas são anatomia (...) A serpente da mitologia é a medula
espinhal...” (S. KELEMAN, Mito e corpo: uma conversa com Joseph Campbell, p. 25).
332
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, Cap. VIII: “A vegetação: símbolos e ritos de
renovação”, p. 236.
333
Gênesis, 2, 9.
334
F. NIETZSCHE, Así habZaratustra, prólogo, aforismo 4, trad. de Andrés S. Pascual, p. 39. Seis anos
antes, Nietzsche citou o seguinte verso de Byron em seu livro Humano, demasiado humano:
“Sofrimento é conhecimento: aqueles que mais sabem
Devem prantear mais profundamente a verdade fatal,
A árvore do conhecimento não é a da vida.”
(Citado no aforismo 9 de Humano, demasiado humano, vol. I, trad. de Paulo C. de Souza, p. 80. No final do
aforismo, Nietzsche escreve: “Essas dores podem ser bastante penosas: mas sem dores não é possível tornar-
107
bem e do mal será o instrumento de queda de Adão, e, com a crucificação de Jesus, a árvore
da vida será o instrumento de redenção. Mas, para Nietzsche, não haveria relação entre
redenção e árvore-cruz. Aliás, pode-se até dizer que talvez a única árvore que o filósofo
despreza seja a árvore-cruz: “...pois nada há que louvar na terra onde cresceu a mais funesta
de todas as árvores, - a cruz!
335
Ainda sobre as árvores do jardim do Éden, de acordo com Joseph Campbell, Paulo
teria entendido
que o mito cristão da Queda diante da Árvore do Jardim e a Redenção no Calvário
sobre a Árvore da Redenção são os dois aspectos das duas Árvores do Jardim do
Éden. A primeira, a Árvore da Queda, representa a passagem do eterno para o reino
temporal. A segunda é a Árvore do retorno do reino temporal para o espiritual.
Portanto, essa é a árvore do limiar, o loureiro, que pode ser interpretada em seus
dois aspectos: indo do sagrado para o profano e do profano de volta para o sagrado.
Quando o homem comeu do fruto da Árvore, descobriu-se no campo da dualidade
em vez da unidade. (...) Os dois querubins colocados no portão representam o
mundo dos pares de opostos no qual o homem, expulso do mundo da unidade, se
encontra agora. (...) Cristo transcende isso “Eu e o Pai somos um” e volta ao
reino da unidade, de onde fomos expulsos.
336
Enquanto na passagem supracitada Cristo volta ao reino da unidade, Nietzsche parece
trabalhar com uma nova unidade ao porvir. Como vimos, de acordo com o filósofo, em
Zaratustra “todos os opostos se fundem numa nova unidade.”
337
Voltando ao simbolismo
da árvore em geral, de acordo com Mircea Eliade,
A árvore pode, sem dúvida, tornar-se um símbolo do universo, forma sob a qual nós
a encontramos nas civilizações evoluídas; mas para uma consciência religiosa
se guia e educador da humanidade...” (Ibid., p. 81). OBS: De acordo com o tradutor, o verso citado é Byron,
Manfred, ato 1, cena 1).
335
Ibid., terceira parte, “Das tábuas velhas e novas”, aforismo 12, trad. de Andrés S. Pascual, p. 287.
336
J. CAMPBELL, Tu és isso, cap. I, p. 40.
337
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Assim Falou Zaratustra”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p. 89. Ver
Item 3 do segundo capítulo: “Notas a respeito da questão dos opostos”, p. 66, e citação selecionada no
apêndice, p. 153, 154.
108
arcaica a árvore é o universo, e se ela é o universo é porque o repete e o resume ao
mesmo tempo que o “simboliza”.
338
Os escritos de Eliade assinalam que nas civilizações antigas não existia uma
separação entre o símbolo e o simbolizado, não havia sujeito e objeto, enquanto que nas
civilizações que ele chama de “evoluídas”, esta separação existe. Hoje a árvore é o símbolo
da vida, enquanto que para os antigos, a árvore era a vida. Isto nos lembra o que diz Paul
Veyne a respeito do êxtase. Para ele, o êxtase não pode ser entendido pela lógica
aristotélica, porque nele o predicado se torna sujeito, ou seja, “o símbolo torna-se o que ele
simboliza.”
339
Veyne se pergunta se esse não seria um outro tipo de lógica, aparentada à
lógica das obras de arte. A nosso ver, essa concepção de êxtase é semelhante a de símbolo
em seu sentido original, que era o sentido dos antigos, onde não havia sujeito e objeto, onde
não havia divisão de nenhuma espécie.
340
Voltando ao simbolismo da árvore, é comum encontrarmos nas lendas antigas a
representação de pais-árvores e mães-árvores, simbolizando a árvore ancestral. Essa
imagem preserva-se até hoje no que conhecemos como árvore genealógica. A esse respeito
diz Jung: “A árvore da vida é em primeiro lugar uma árvore genealógica com frutas,
portanto uma espécie de mãe genealógica. Em muitos mitos o homem se origina de árvores;
muitos mostram o herói dentro da árvore materna, como Osíris morto na erica, Adônis na
murta, etc...”
341
De acordo com Jung, “na mitologia germânica, os primeiros seres
humanos, Ask e Embla, originam-se do freixo e do amieiro...”
342
E o costume de plantar
uma árvore quando nasce uma criança, ainda praticado em muitos lugares, vem da
participation mystique entre homem e árvore”, uma vez que “ambos compartilham do
mesmo destino.”
343
Se os seres humanos vieram das árvores, depois da morte a elas
retornam:
338
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, Cap. VIII: “A vegetação: símbolos e ritos de
renovação”, p. 217.
339
Paul VEYNE, Le quotidien et l’intéressant, p. 242. A tradução para o português é de nossa autoria.
340
Sobre o sentido original da palavra símbolo ver p. 17, 18 do primeiro capítulo.
341
C.G.JUNG, Símbolos da Transformação, parágrafo 321, p. 207.
342
William McGUIRE e R.F.C. HULL, C.J.Jung: Entrevistas e Encontros, “Jung e a árvore de Natal”, p. 315.
A raiz “ask compõe as palavras alemãs: Askese = ascetismo; Asket = asceta; Askulap = Esculápio ou
Asclépio - deus grego da medicina, e Askulapstab = caduceu.
343
Ibid., p. 316.
109
...a suspensão na cruz não é um fato isolado na mitologia religiosa, (...) a cruz de
Cristo é a árvore da vida e ao mesmo tempo o lenho da morte. Assim como se
afirmava miticamente que o homem descendia de árvores, também existiam rituais
de sepultamento em árvores ocas. Por isso até hoje existe a expressão “árvore dos
mortos”, ao invés de caixão. Se levarmos em consideração que a árvore é acima de
tudo um símbolo materno, o sentido deste sepultamento se torna compreensível: o
morto é por assim dizer encerrado na mãe, para o renascimento.
344
Se Nietzsche conhecia a prática de sepultamentos em árvores ocas, não sabemos.
Mas foi desta forma que Zaratustra procedeu quando levava consigo o cadáver do
equilibrista (Seiltänzer) pela floresta:
Mas quando a manhã começou a despontar, Zaratustra encontrou-se numa floresta
espessa, e nenhum caminho se abria a sua frente. Então colocou o morto em uma
árvore oca, na altura de sua cabeça pois queria protegê-lo dos lobos e deitou-se
no solo de musgos. Logo dormiu, cansado o corpo, mas imóvel a alma.
345
Como vimos, diz Jung que “a suspensão na cruz não é um fato isolado na mitologia
religiosa”. De outra parte, Campbell fala das duas versões da crucificação de Cristo e
compara uma delas ao budismo:
A mensagem de Buda é simples, porém profunda: devemos buscar uma alegre
participação no sofrimento do mundo.
No ocidente, esse paradoxo é explorado na imagem da crucificação, que é
transmitida de duas maneiras. Uma é a mais conhecida, na qual Cristo é
representado sangrando e sofrendo, o homem de sofrimentos.
Mas existe uma outra versão que apresenta o chamado Cristo Triunfante e nela se
vê o Cristo na cruz, de olhos abertos, cabeça erguida, vestindo uma túnica. Ele veio
de livre e espontânea vontade e não sofrimento: alegre participação no
sofrimento. Estas são duas versões totalmente diversas da crucificação. Uma delas
344
C.G.JUNG, Símbolos da Transformação, parágrafo 349, p. 223.
345
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 8, trad. de Andrés S. Pascual, p. 46.
110
expressa, pode-se dizer, o espírito do mestre; a outra, o espírito do escravo. O
Budismo é muito mais o primeiro, em tudo.
346
Assim, no Cristianismo a árvore não simbolizaria a união de céu, terra e inferno,
menos ainda a coexistência desses três níveis num único mundo, mas, na versão mais
conhecida da crucificação, simbolizaria o sofrimento. A árvore de Cristo e a árvore de
Dionísio seriam assim, antípodas: a primeira afirmando a morte, e a segunda, a vida.
3.2. A ÁRVORE COMO VONTADE ELEVADA E FORTE
No primeiro capítulo falamos a respeito da ambigüidade dos símbolos. Como todo
símbolo, a árvore também é ambígua, podendo, assim, assinalar, além da vida, também a
morte. Mas pode, ainda, indicar uma vontade elevada e forte que quer sempre aumentar seu
poder. Um exemplo da árvore como vontade de aumentar o poder é encontrado na Bíblia no
relato do sonho do rei Nabucodonosor:
Havia uma árvore
No centro da terra,
E sua altura era enorme.
A árvore cresceu e tornou-se forte,
Sua altura atingiu o próprio céu
E sua vista abrangeu os confins da terra inteira.
Sua folhagem era bela, e abundante o seu fruto.
Nela cada um encontrava alimento:
Ela dava sombra aos animais dos campos,
Nos seus ramos se aninhavam os pássaros do céu
E dela se alimentava toda carne.
Eu continuava a contemplar as visões da minha cabeça, sobre o meu leito,
Quando vi um Vigilante, um santo que descia do céu
E que bradava com voz possante:
346
J. CAMPBELL, Mitos de luz, “Budismo: A flor do mundo”, p. 142.
111
Derrubai a árvore, cortai seus ramos,
Arrancai suas folhas, jogai fora seus frutos,
Fujam os animais do seu abrigo
E os pássaros deixem seus ramos.
Mas fiquem na terra o toco e as raízes,
Com cadeias de ferro e de bronze
por entre a relva dos campos.
Seja ela banhada pelo orvalho do céu
E que a erva da terra seja sua parte com os animais do campo.
Seu coração se afastará dos homens,
Coração de fera ser-lhe-á dado
E sete tempos passarão sobre ela!
Eis a sentença que pronunciam os Vigilantes,
A questão decidida pelos santos,
A fim de que todo ser vivo saiba
Que o Altíssimo é quem domina sobre o reino dos homens:
Ele o concede a quem lhe apraz
E pode a ele exaltar o mais humilde entre os homens!
347
O profeta Daniel, ao interpretar o sonho a Nabucodonosor, diz que “...esta árvore és
tu, ó rei, que te tornaste grande e poderoso, e cuja grandeza cresceu até chegar ao céu,
estendendo-se teu império até os confins da terra.”
348
Assim como na Bíblia, para Daniel o
rei Nabucodonosor é a árvore que ele sonhou, Zaratustra é como a árvore para o rei da
direita, em “A saudação”:
Nada mais alentador, oh Zaratustra, cresce na terra do que uma vontade elevada e
forte: essa é a planta mais forte da terra. Toda uma paisagem inteira se reconforta
com uma só de tais árvores.
Ao pinheiro eu comparo quem cresce como tu, oh Zaratustra: alto, silencioso, duro,
solitário, feito da melhor e da mais flexível madeira, soberbo, -
347
Os Profetas, Daniel, 4, 7–14. Os sonhos relatados na Bíblia são interpretados como sendo Deus, um santo
ou um anjo falando com a pessoa que sonha. Em Nietzsche, sonhos não são mensagens de Deus, anjos ou
santos, mas obra do próprio sonhador: “Nada é mais seu do que seus sonhos! Nada é mais sua obra!” (F.
NIETZSCHE, Aurora, aforismo 128, trad. de Paulo C. De Souza, p. 96).
348
Os Profetas, Daniel, 4, 19.
112
- e estendendo seus fortes e verdes ramos para o seu domínio, dirigindo fortes
perguntas aos ventos e temporais e a tudo que tem seu domicílio nas alturas.
- respondendo vigorosamente, dando ordens, vitoriosamente: oh, quem não subiria
elevadas montanhas para contemplar tais plantas?
349
Diferente da árvore blica, que, por ter atingido grande estatura, os santos decidem
derrubá-la, “A fim de que todo ser vivo saiba que o Altíssimo é quem domina sobre o reino
dos homens”, a árvore zaratustriana, também ela alta e soberba, é admirada por sua vontade
elevada e forte, que, servindo ao sentido da terra, sem crer nos que falam de esperanças
extra terrenas,
350
alenta aos que a contemplam. Ao perguntar “quem não subiria elevadas
montanhas para contemplar tais plantas?”, o rei da direita talvez esteja falando da
contemplação no sentido de quietude, como transbordamento de energia, tal como
Nietzsche assinala no seguinte fragmento póstumo:
O ficar-quieto diante do belo é uma expectativa, um querer-ouvir os sons mais
refinados, distantes nós nos comportamos semelhantemente a uma pessoa que se
torna toda ouvidos e olhos: a beleza tem algo a nos dizer, por isso ficamos quietos e
não pensamos em nada daquilo em que costumamos pensar. A quietude, aquele
estado contemplativo, paciente, é, portanto, uma preparação, nada mais! O mesmo
se dá com toda contemplação: -
Mas a quietude aí, a sensação de bem-estar, a liberdade de tensão? Evidentemente
ocorre junto um transbordamento muito paulatino da nossa energia: nós nos
adequamos como que às galerias, sobre colunas elevadas, nas quais andamos,
dando à nossa alma movimentos tais que, em sua calma e elegância, são imitações
daquilo que vemos. Assim como uma sociedade nobre nos dá inspiração para
posturas e gestos nobres.
351
Em “Dos três males”, Zaratustra diz que certa manhã sonhou que se encontrava em
um promontório, além do mundo, o qual pesava com uma balança. Ele conta que foi como
349
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, quarta parte, “A saudação”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 381, 382.
350
Ibid., prólogo, aforismo 3.
351
IDEM, Fragmento póstumo n. 7 (192), primavera-verão de 1883, trad. de Flávio R. Kothe. In: Fragmentos
do espólio, p. 235.
113
se uma grande e madura maça de ouro
352
se oferecesse a sua mão; como se uma árvore de
ampla ramagem, de vontade forte, lhe acenasse.
353
A nosso ver, o recebimento da maça na
mão poderia indicar que esse sonho foi uma decisão, uma vez que, para Nietzsche, frutos
que recebemos nas mãos não são problemáticos, são decisões: Um grande vento sopra
entre as árvores, e por toda parte caem ao solo frutos – verdades. (...) Mas o que se recebe nas mãos
não é nada problemático, são decisões.
354
E se, como diz Heinrich Zimmer, “as maças de
ouro quebram o encanto do medo da morte. (...) Aqueles que as provam identificam-se com
a porção imperecível de suas naturezas e tornam-se como deuses.”,
355
tendo Zaratustra
recebido na mão a maça de ouro, a imortalidade já não seria mais para ele um problema.
Talvez por isso, na quarta parte de Zaratustra, o rei da direita irá, como vimos, compará-lo
ao pinheiro, a árvore que simboliza a imortalidade.
356
Essa comparação poderia nos remeter
à própria concepção da obra, que, talvez, não por acaso, nasce entre pinheiros. Contando a
história de Zaratustra, Nietzsche relata que:
...foi nesse inverno e nesse desfavorecimento das circunstâncias que meu Zaratustra
nasceu. Pela manhã eu subia na direção sul, no magnífico caminho para Zoagli,
até o alto, passando por pinheiros e avistando vasta porção de mar; à tarde, quando
a saúde o permitia, contornava toda a baía de Santa Margherita até Porto Fino. (...)
352
No aforismo 1 do prólogo, Zaratustra diz: “Abençoa a taça que quer transbordar para que dela flua a água
de ouro...” (Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 1, trad. de Andrés S. Pascual, p. 34). Enquanto no
prólogo ele fala em água de ouro, em “Dos três males”, na terceira parte do livro, ele falará da maça de ouro.
Temos ainda a risada de ouro”: “...eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia dos filósofos conforme a
qualidade de seu riso colocando no topo aqueles capazes da risada de ouro.” (F. NIETZSCHE, Além do
Bem e do Mal, aforismo 294, trad. de Paulo C. de Souza, p. 177. Citado no presente trabalho na p. 59, nota
178). A nosso ver, o ouro em Nietzsche teria relação com o sol, e ambos, ouro e sol, simbolizariam a riqueza
em excesso, em abundância. Um dos indícios dessa relação está no próprio aforismo 1 do prólogo, quando
Zaratustra fala ao sol que todas as manhãs, ele, sua águia e sua serpente, o liberavam de sua sobreabundância.
E então, depois de dez anos de solidão, sua sabedoria transborda como o sol, de tal forma que ele precisa doar
esse excesso. Outro exemplo do mbolo do ouro podemos encontrar na carta que Nietzsche escreve à Gast
sobre o aprendizado por acaso do significado de Zaratustra: “uma estrela em ouro”. (ver p. 50, nota 155). E
no final do próximo item veremos que a virtude da doação é um “sol de ouro”. Se sol e ouro simbolizam
abundância, um sol de ouro seria o mais alto grau desta.
353
F. NIETZSCHE, Así habZaratustra, terceira parte, “Dos três males”, trad. de Andrés S. Pascual, p.266,
267. Lembremos que, segundo Zaratustra, “símbolos não declaram, acenam”. (Ibid., primeira parte, “Da
virtude que dá presentes”, aforismo 1, p. 124. Citado na p. 77, nota 248).
354
IDEM, Ecce Homo, “Crepúsculo dos Ídolos”, aforismo 2, trad. de Andrés S. Pascual, p. 112. Ver citação
adiante, na p. 117, nota 372.
355
H. ZIMMER, A conquista psicológica do mal, p. 38.
356
No Japão o pinheiro é “símbolo também dos homens que souberam conservar intactos os seus
pensamentos, apesar das críticas que os cercavam, porque o pinheiro, ele mesmo, sai vencedor dos ataques do
vento e da tempestade.” (J. CHEVALIER e A.GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p. 719).
114
– Nesses dois caminhos ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio
Zaratustra como tipo: mais corretamente, ele caiu sobre mim...
357
Se o tipo Zaratustra caiu sobre Nietzsche, como caem os frutos maduros, foi porque
já estava maduro para tanto.
E, para fazer durante o dia como no sonho, Zaratustra quis pôr na balança os três
maiores males que existem, e pesá-los de um modo humanamente bom. “Voluptuosidade,
ambição de domínio, egoísmo: essas três coisas têm sido até agora as mais amaldiçoadas e
delas tem-se dito as piores calúnias e mentiras (...)”
358
Em seguida, Zaratustra diz que quer segurar a balança sobre o mar ondulante, e
como testemunha do feito, elege uma árvore. Enquanto na Bíblia não diálogo entre a
terra e as alturas, e é o Altíssimo que julga as ações humanas na terra, Zaratustra quer pesar
os males de um modo que seja humanamente bom. Para isso, a própria vida, ou seja, a
árvore, será a testemunha. O primeiro mal que Zaratustra aponta é a voluptuosidade, que,
para os desprezadores do corpo sempre foi um empecilho.
359
O segundo mal é a ambição de
domínio, sobre a qual falávamos ao contracenar a árvore zaratustriana com o cenário
bíblico do rei Nabucodonosor. Ao comentar sobre a ambição de domínio, Zaratustra
exclama:
Mas quem chamaria ambição a que o alto se rebaixe a desejar o poder! Em verdade,
nada há de insalubre nem de ambicioso em tais desejos e descidas!
Que a solitária altura não queira permanecer eternamente solitária e eternamente
auto suficiente; que a montanha desça ao vale e os ventos das alturas às planícies: -
Oh quem poderia encontrar o nome apropriado de uma virtude para batizar esse
desejo! “Virtude que presentes” este nome deu Zaratustra em outro tempo ao
inominável.
E então ocorreu também, - E, em verdade, ocorreu pela primeira vez! que sua
palavra chamou bem aventurado ao egoísmo, ao egoísmo saudável, são, que brota
de uma alma poderosa: - (...)
357
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 83, 84.
Ver citação selecionada no apêndice, p. 152.
358
IDEM, Así habZaratustra, terceira parte, “Dos três males”, aforismo 1, trad. de Andrés S. Pascual, p.
267.
359
Ver “Dos desprezadores do corpo”, citado nas p. 35, nota 95 e p. 62, 63, nota 190.
115
Com suas palavras bem e mal se resguarda tal egoísmo como com bosques
sagrados; com os nomes de sua felicidade desterra de si todo o desprezível.
360
Vemos aqui a relação que existe, em Zaratustra, entre poder, egoísmo o terceiro
mal que irá pesar - e doação. O egoísta saudável
361
deseja o poder porque quanto mais alto e
mais soberbo se tornar, mais poderá doar. Quem chamaria isso de ambição? Trata-se sim da
“Virtude que dá presentes”, da virtude da doação.
O rei da direita diz que a vontade elevada e forte é a planta mais forte da terra.
362
Zaratustra tem essa vontade elevada e forte, por isso ele é a planta mais forte da terra. Ora,
como vimos no capítulo anterior, para Nietzsche, a vontade liberta, e, para ser livre é
preciso uma vontade forte.
363
Mas, afinal, que tipo de liberdade nos fala Nietzsche?
Podemos vislumbrar a esse respeito, por exemplo, no Crepúsculo dos ídolos:
Pois o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade própria. (...) Liberdade
significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm
domínio sobre outros instintos, por exemplo, sobre o da ‘felicidade’. (...) – Segundo
o que se mede a liberdade, em indivíduos como em povos? Segundo a resistência
que tem de ser superada, segundo o esforço que custa permanecer acima.
364
De qualquer forma, para Nietzsche, o que importa não é “do que” se é livre, e sim
“para que”: “Livre de que? Que importa isso a Zaratustra! Teus olhos devem anunciar-me
com claridade: livre para que?”
365
360
F. NIETZSCHE, Ahabló Zaratustra, terceira parte, “Dos três males”, aforismo 2, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 269, 270.
361
Sobre egoísta saudável e egoísta doente, ver p. 104.
362
Citado nas p. 111, 112, nota 349.
363
Ver p. 41, nota 120 e p. 72, nota 220.
364
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, aforismo 38, “Meu conceito de
liberdade”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 121.
365
IDEM, Así habló Zaratustra, Primeira parte, “Do caminho do criador”, trad. de Andrés S. Pascual, p.106.
116
3.3. A ÁRVORE COMO VIRTUDE DA DOAÇÃO
Mas eu sou dos que dão: agrada-me dar: como amigo que presenteia os amigos.
Quanto aos estranhos e aos pobres, que colham por si sós os frutos de minha árvore:
isto envergonha menos.
366
Vemos aqui a virtude da doação simbolizada pela árvore. Assim como Dionísio,
também Zaratustra tem a virtude da doação. Para ele, a doação é a virtude mais elevada:
“Rara é a virtude mais alta, e inútil, e resplandecente, e suave em seu brilho: uma virtude
que presentes é a virtude mais alta.”
367
Porém, enquanto Dionísio distribui riquezas a
todos, nos parece que a doação de Zaratustra é seletiva: ele presenteia os amigos; “quanto
aos estranhos e aos pobres, que colham por si sós os frutos de minha árvore...”.
Provavelmente, os amigos de Zaratustra são também doadores, são os egoístas saudáveis,
enquanto que os estranhos e os pobres são os egoístas doentes, que querem tudo para si
mesmos. Cabe lembrar que a doação também tem sua contrapartida, o roubo. Como vimos
no item 3 do segundo capítulo, “Notas a respeito da questão dos opostos”, ao olharmos as
coisas em sua completude, não culpa, injustiça ou contradição. Doar e roubar, nesta
perspectiva, estão juntos, como podemos ler a seguir:
Uma fome brota de minha beleza: eu gostaria de causar dano àqueles que ilumino,
de saquear aqueles que presenteio: - tamanha é minha fome de maldade.
Retirar a mão quando outra mão se estende para ela; semelhante à cascata, que
segue vacilando em sua queda: - tamanha é minha fome de maldade.
Tal vingança planeja minha plenitude; tal perfídia brota de minha solidão.
368
Zaratustra nos falou da doação dos frutos de sua árvore. Mas não basta que os frutos
amadureçam; a própria árvore também precisa amadurecer. No final da segunda parte do
livro ele dirá: “E pela última vez algo me falou: ‘Oh, Zaratustra, teus frutos estão maduros,
366
Ibid., segunda parte, “Dos compassivos”, p. 140.
367
Ibid., primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, p. 122.
368
Ibid., segunda parte, “A canção da noite”, p. 164.
117
mas tu não estás maduro para teus frutos! Por isso tens que voltar novamente à solidão:
pois ainda tens que tornar-te tenro.’”
369
O simbolismo dos frutos já aparece em Humano, demasiado humano, onde Nietzsche
diz que “A diligência e a consciência são freqüentemente antagonistas, porque a diligência
quer colher os frutos ainda verdes na árvore, enquanto a consciência os deixa pender muito
longamente, até caírem e se destroçarem”.
370
E, em um livro posterior ao Zaratustra,
Nietzsche irá comparar a árvore ao filósofo, e seus pensamentos e valores, aos frutos:
...com a mesma necessidade com que uma árvore seus frutos, crescem em nós
nossos pensamentos, nossos valores, nossos sins e os e quandos e ses
aparentados e referidos todos eles entre si e testemunhas de uma única vontade, de
uma única saúde, de um único terreno, de um único sol. Se agradam ao vosso
paladar, esses nossos frutos? – Mas que importa isso às árvores! Que importa isso a
nós, a nós filósofos!...
371
Vimos que os frutos podem simbolizar pensamentos. várias formas de se entrar
em contato com eles: pode-se colher frutos verdes ou maduros; frutos maduros podem cair
sobre a cabeça, ou ainda, pode-se pisar sobre eles - verdades caídas no chão. Mas as
decisões, essas são os frutos que recebemos nas mãos:
Um grande vento sopra entre as árvores, e por toda parte caem ao solo frutos
verdades. o desperdício próprio de um outono demasiado rico: tropeça-se em
verdades, inclusive esmaga-se algumas com os pés demasiadas... Mas o que se
recebe nas mãos já não é nada problemático, são decisões.
372
369
Ibid., “A mais silenciosa de todas as horas”, p. 219.
370
IDEM, Humano, Demasiado Humano, vol. I, Cap. IX: “O homem a sós consigo”, aforismo 556, trad. de
Paulo C. de Souza, p. 247, 248.
371
IDEM, Para a genealogia da moral, prefácio, aforismo 2, trad. de R. R. Torres Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras incompletas, vol. II, p. 77.
372
IDEM, Ecce Homo, “Crepúsculo dos ídolos”, aforismo 2, trad. de Andrés S. Pascual, p. 112. A tradução do
espanhol para o português é de nossa autoria.
118
Tanto o rei da direita, em “A saudação”, no Zaratustra,
373
quanto Nietzsche, no
prefácio de Para a Genealogia da Moral, falam em “ditar ordens”. Nietzsche fala de seus
pensamentos, que podem ter nascido “a partir de uma raiz comum, de algo que dita ordens
em profundeza”.
374
O rei da direita compara Zaratustra a um pinheiro “respondendo
vigorosamente, dando ordens”. Esse “ditar ordens” parece ser um segredo da vida, uma voz
de comando. Sobre ordem e obediência já falava Zaratustra na segunda parte do livro:
Mas, em todo lugar onde encontrei seres viventes ouvi falar também de obediência.
Todo ser vivente é um ser obediente.
E isto em segundo lugar: Dita-se ordens a quem não sabe obedecer a si mesmo. (...)
Uma tentativa e um risco apareceu-me em todo mandar; e sempre que um ser
vivente manda, se arrisca a si mesmo ao fazê-lo.
Ainda, também quando se manda a si mesmo que pagar pelo mando. que ser
juiz e vingador e vítima de sua própria lei.
Como isso ocorre?, me perguntei. O que persuade o ser vivente a obedecer e a
mandar e a exercer obediência inclusive quando manda? (...)
Em todos os lugares onde encontrei seres viventes encontrei vontade de poder; e
inclusive na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor.
375
No final da primeira parte do livro, quando fala da mais alta virtude, da doação,
Zaratustra dirá: “Quando estais acima do elogio e da censura, e vossa vontade quer dar
ordens a todas as coisas, como vontade de um amante: ali está a origem de vossa virtude.”;
e, logo em seguida dirá: “Permaneceis fiéis à terra, meus irmãos, com o poder de vossa
virtude! Vosso amor que presentes e vosso conhecimento sirvam ao sentido da terra!
Isso os rogo e a isso os conjuro.”
376
Podemos ler no aforismo supracitado que Zaratustra roga a seus irmãos que sirvam
ao sentido da terra com seu amor que presentes e seu conhecimento. O amor que
presentes, ou seja, a virtude da doação, e o conhecimento, haviam sido acenados por
373
Citado nas p. 111, 112, nota 349.
374
F. NIETZSCHE, Para a genealogia da moral, prefácio, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 77.
375
IDEM, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Da superação de si mesmo”, trad. de Andrés S. Pascual, p.
175, 176. Assinalamos algumas questões sobre comando e obediência nas p. 41, 42 e p. 72,73.
376
Ibid., primeira parte, “Da virtude que presentes”, aforismo 1 e aforismo 2, trad. de Andrés S. Pascual, p.
124 e p. 125, respectivamente.
119
Zaratustra no início do primeiro aforismo de “Da virtude que presentes”, pelo símbolo
do bastão, presente que Zaratustra ganhou de seus discípulos: um bastão, cujo remate
superior é feito em ouro, que contém uma serpente enroscada em volta do sol.
377
No final
desse primeiro aforismo, Zaratustra fala: “Poder é essa nova virtude; um pensamento
dominante é, e, em torno dele, uma alma inteligente: um sol de ouro e, em torno dele, a
serpente do conhecimento.”
378
A nova virtude, como diz Zaratustra, é poder. Esse poder
seria amor e conhecimento, cujo símbolo é o bastão: o sol é o amor, pois está sempre
doando-se, ou seja, é a vida em abundância, é o pensamento dominante; e a serpente em sua
volta é o conhecimento de uma alma inteligente. Serpente em um bastão, como sabemos,
remete à Esculápio, deus da medicina dos gregos antigos, cujo cetro portava duas serpentes
entrelaçadas uma na outra. Essa remissão é assinalada por Zaratustra no final do segundo
aforismo, quando ele diz: “Em verdade, em um lugar de cura deve transformar-se ainda a
terra!”
379
3.4. A ÁRVORE E A SERPENTE
A serpente é um “animal ctônio por excelência (...) uma ponte entre o mundo de
baixo, ctônio, e o mundo de cima, uma guardiã das sementes...”
380
Nas palavras de Heinrich
Zimmer:
Como um rio traçando o seu curso, a serpente rasteja pelo solo; habita o interior da
terra e, como uma fonte, emerge de sua cova. (...) A terra é a primordial mãe da
vida; (...) nutre todas as criaturas para outra vez devorá-la; é o túmulo comum.
Aperta ao seio a vida que fez brotar, negando-lhe a ilimitada liberdade do espaço
celeste. Ao contrário, a infinitude do céu significa o livre flutuar do espírito, a voar
com a liberdade de um pássaro desembaraçado dos grilhões terrenos. A águia
377
A título de curiosidade, bastão em alemão é Stab, que, juntamente com a palavra Buche, um tipo de árvore
que em português chamamos de faia, temos Buchestabe, que significa letra. Ou seja, em alemão, bastão ou
vara de faia é letra. Isso vem da época em que varetas de madeira de faia eram cortadas para formar as
palavras rúnicas, usadas nos oráculos, nas adivinhações.
378
F. NIETZSCHE, Así habZaratustra, primeira parte, “Da virtude que presentes”, aforismo 1, trad. de
Andrés S. Pascual, p. 124.
379
Ibid., aforismo 2, p. 126.
380
J. S. BRANDÃO, Mitologia grega, vol. I, p. 60.
120
representa esse princípio espiritual superior (...) Quanto à serpente, é a força vital
no âmbito da vida material.
381
Assim, enquanto a serpente liga o mundo subterrâneo ao mundo da superfície, a
árvore, como vimos, liga estes dois mundos e também o mundo celeste, do qual,
simbolicamente, faz parte a águia. Como assinalamos, a árvore oca é o caixão dos
mortos,
382
e a terra, que é a mãe da vida e a nutridora, é o túmulo comum:
“... e quero voltar a ser terra, para repousar naquela que me deu a luz.”
383
Em “Da picada da víbora”, Zaratustra contracena com a árvore e a serpente:
Um dia Zaratustra dormiu sob uma figueira, pois fazia calor, colocando seus braços
sobre o rosto. Então veio uma víbora e o picou no pescoço, de modo que Zaratustra
despertou gritando de dor. Ao retirar o braço do rosto viu a serpente: esta
reconheceu então os olhos de Zaratustra, deu a volta desajeitadamente e quis ir
embora. “Não, disse Zaratustra; ainda não recebeu meu agradecimento! Me
despertastes a tempo, meu caminho ainda é longo.” “Teu caminho é curto, disse a
víbora com tristeza; meu veneno mata.” Zaratustra sorriu. Em alguma ocasião
morreu um dragão pelo veneno de uma serpente? disse. Mas toma de volta seu
veneno! Não és bastante rica para me -lo de presente.” Então a víbora atirou-se
de novo em seu pescoço e lambeu-lhe a ferida.
384
Assim, nesta passagem, Zaratustra adormece sob a árvore consagrada a Dionísio,
385
e
é despertado pela picada de uma serpente. Quando falamos do bastão de Zaratustra, no
final do item anterior, vimos que a serpente poderia simbolizar o conhecimento de uma
alma inteligente. Tentaremos entender essa relação entre a serpente e a árvore abordando
alguns aspectos de seus simbolismos.
381
H. ZIMMER, Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia, p. 67.
382
P. 109, nota 344.
383
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Da morte livre”, trad. de Andrés S. Pascual, p. 121.
384
Ibid., “Da picada da víbora”, p. 112.
385
Sobre a figueira, ver o sexto item desse capítulo.
121
A árvore e a serpente talvez sejam os símbolos mais ricos e mais difundidos, tanto no
mundo ocidental quanto no oriental. Na Bíblia aparecem juntas no relato do paraíso:
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus
tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas
as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: Nós podemos comer do
fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim,
Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente
disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no
mal.” A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa
árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu.
Deu-o também a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Então abriram-se os
olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se
cingiram. (...) Então Iahweh Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso és maldita
entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu
ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a
mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe
ferirás o calcanhar.
386
Note-se que Deus diz que a serpente ferirá o calcanhar da mulher e de toda sua
linhagem, ou seja, da humanidade. Lembremos que Aquiles é vulnerável somente no
calcanhar, mas Zaratustra dirá: “Invulnerável eu sou somente no meu calcanhar”
387
Já, de acordo com a interpretação de Jung, haveria uma estreita relação entre a árvore
e a serpente:
A serpente do Gênesis 3 exprime imagisticamente o numen personificado pelas
árvores. Por isso ela é representada tradicionalmente junto a uma árvore, ou sobre
ela. É a voz da árvore que convenceu Eva de “que era bom comer da árvore; que era
formosa aos olhos e uma árvore de agradável aspecto”.
388
386
Gênesis, 3.
387
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, segunda parte, “A canção dos sepulcros”, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 173.
388
C. G. JUNG, Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, parágrafo 372, p. 224.
122
Jung recolhe essa passagem bíblica de tal forma, que poderia ser cruzada com a de
Nietzsche, para quem seria o próprio Deus que aparece como serpente:
Falando teologicamente preste-se atenção, pois raramente falo como teólogo - ,
foi o próprio Deus que, ao fim da sua jornada de trabalho, estendeu-se em forma de
serpente sob a Árvore do Conhecimento...
389
Se Deus aparece sob a forma de serpente, porque assim não o faria seu filho? Neste
sentido, poder-nos-íamos auxiliar novamente de Jung, que conta que em algumas
representações medievais, não é o Cristo que pende na cruz, mas uma serpente.
390
Apoiados
nessa interpretação, poderíamos nos perguntar se, no Zaratustra, não seria o próprio Deus
na forma de serpente, que entra na garganta do pastor em “Da visão e enigma”.
E, em verdade, o que vi nunca havia visto. Vi um jovem pastor contorcendo-se,
asfixiando-se, transtornado, com o rosto descomposto, com uma pesada serpente
negra pendendo de sua boca.
(...) Não consegui arrancá-la dali. Então me escapou um grito: “Morde! Morde!
Arranca-lhe a cabeça! Morde!”
(...) Pois foi uma visão e uma previsão: - o que eu vi então em símbolo? E quem é
aquele que algum dia tem que vir ainda?
Quem é o pastor a quem a serpente se introduziu na garganta? Quem é o homem a
quem todas as coisas mais pesadas, mais negras, se lhe introduziram assim na
garganta?
- Mas o pastor mordeu, tal como lhe aconselhou meu grito; deu uma boa mordida!
Cuspiu longe a cabeça da serpente - : e de um salto se pôs em pé. –
não pastor, não homem, - um transfigurado, iluminado, que ria! Nunca antes
na terra havia rido homem algum como ele riu!”
391
De maneira que cabe destacar as perguntas de Zaratustra: “o que eu vi então em
símbolo? E quem é aquele que algum dia tem que vir ainda?
392
Teria sido Deus na forma
389
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Além do bem e do mal”, aforismo 2, trad. de Paulo C. de Souza, p. 96.
390
C.G. JUNG, O símbolo da transformação na missa, parágrafo 349, p. 29.
391
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra., terceira parte, “Da visão e Enigma”, aforismo 2, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 231, 232.
123
de serpente que ele viu em símbolo? E quem tem que vir ainda não seria o além-do-
homem?
Em todo caso, a nosso ver, haveria uma relação entre “A picada da víbora” e o relato
bíblico do paraíso já citado. Lemos no Gênesis que “do fruto da árvore que está no meio do
jardim, Deus disse: ‘Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte’. A serpente
disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão e s sereis como deuses, versados no bem e no mal’”.
Em “Da picada da víbora”, a picada não mata Zaratustra, mas o desperta. Despertar aqui
parece ter o sentido de tomar “consciência” ou conhecimento de algo. A serpente da Bíblia
diz que Deus sabe que se comerem da árvore do conhecimento seus olhos se abrirão. A
serpente de “A picada da víbora” reconhece Zaratustra pelos olhos.
393
Seria porque os
olhos de Zaratustra são versados no bem e no mal? Temos, ainda, a passagem no Gênesis
na qual Deus diz que a linhagem da mulher, ou seja, a humanidade, esmagará a cabeça da
serpente, e esta lhe ferirá o calcanhar. Em “A picada da bora”, o pastor esmaga a cabeça
da serpente, mordendo-a, e de um salto, se põe em pé, ou seja, sobre os calcanhares.
Além disso, em “Da picada da bora”, Zaratustra se coloca como um dragão: “Em
alguma ocasião morreu um dragão pelo veneno de uma serpente?
394
No Apocalipse, o
dragão é o símbolo do inimigo de Deus, que tenta impedir a ação do Messias.
395
No
Zaratustra, o grande dragão diz ser “todos os valores criados”. Ele é o último senhor com
quem o leão quer lutar: “Quem é o grande dragão, que o espírito não quer seguir chamando
senhor nem deus? ‘Tu deves’ se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz ‘eu
392
Ibid, p. 232.
393
Também na história de Buda temos a presença de uma serpente junto à árvore. Enquanto ele meditava,
uma serpente o protegeu de uma tempestade que caía: Mucalinda, uma serpente prodigiosa, vivia numa
cavidade do chão, entre as raízes. Percebeu, assim que Buddha mergulhou em sua bem-aventurança, que uma
grande nuvem de tempestade começava a adensar-se, embora não estivessem na estação chuvosa. Sem ruído,
saiu no mesmo instante de sua morada escura e envolveu sete vezes, nas espirais de seu corpo, o corpo santo
do Iluminado; sob o diâmetro do gigantesco capelo dilatado abrigou, como sob um guarda-chuva, a cabeça
sagrada. (...)”. (H. ZIMMER, Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia, p. 62).
394
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Da picada da víbora”, trad. de Andrés S. Pascual,
p. 112.
395
“Ao ver que fora expulso para a terra, o Dragão pôs-se a perseguir a Mulher que dera à luz o filho varão.
(...) Enfurecido por causa da Mulher, o Dragão foi então guerrear contra o resto dos seus descendentes, os que
observam os mandamentos de Deus e mantêm o Testemunho de Jesus.” (Apocalipse, 12, 13 e 12, 17).
124
quero’.”
396
Nessa passagem, Nietzsche fala sobre como o espírito torna-se camelo, como o
camelo torna-se leão, e como o leão torna-se criança. De acordo com nossa leitura, o
camelo seria o espírito de carga, que carrega o peso da culpa, e que denomina virtuoso
aquele que cumpre deveres. É o ressentido, cuja vontade é fraca. Ele obedece o último
senhor, o dragão “tu deves”. O leão enfrenta o dragão, derrubando valores antigos e
possibilitando a criação de novos. As vontades do leão vêm de configurações de forças que
possibilitam o querer. Não é o “eu” do leão que “quer”, mas uma pluralidade de forças. A
criança seria o espírito sem ressentimento, seria o criador de novos valores.
3.5. A ÁRVORE, O HOMEM, A TOTALIDADE
“... Ao homem ocorre o mesmo que à árvore. Quanto mais quer elevar-se às alturas
e à luz, tanto mais fortemente tendem suas raízes para a terra, para baixo, para o
escuro, o profundo, - para o mal.” (...)
“Esta árvore se encontra solitária aqui na montanha; cresceu muito acima do
homem e do animal.
E se quisesse falar, não teria ninguém que pudesse compreendê-la: tão alto cresceu.
Agora ela aguarda e aguarda, - a que aguarda, pois? Habita demasiado perto do
assento das nuvens: acaso aguarda o primeiro raio?”
397
Segundo Zaratustra, assim como acontece à árvore que quer elevar-se às alturas,
acontece ao homem: quanto mais quer elevar-se, mais fortemente suas raízes tendem para
baixo, para a terra. E assim como a árvore, o homem que cresce se transforma. Uma
vontade elevada e forte é possível quando se tem raízes profundas na terra. Assim como
a árvore, o homem tem que ser fiel à terra, fincando suas raízes o mais profundo, para poder
crescer forte, alto e ditar ordens. Mas, quem cresce muito alto não é compreendido, torna-se
estranho aos demais. É justamente esse o preço que se paga para poder ser atingido pelo
396
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, primeira parte, Das três transformações”, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 54.
397
Ibid., “Da árvore da montanha”, p. 76, 77.
125
raio e auto superar-se. No Prólogo, Zaratustra disse: “...esse raio se chama além-do-
homem.” e “Eu vos ensino o além-do-homem. O homem é algo que deve ser superado”.
398
O aforismo supracitado, “Da árvore da montanha”, da primeira parte de Zaratustra,
nos remete à última parte, onde Zaratustra diz:
Vós homens superiores, acaso credes que aqui estou para reparar o que estragastes?
Ou que quero preparar-lhes, de agora em diante, uma cama mais cômoda para vós
sofredores? Ou mostrar atalhos novos e mais fáceis a vós, os errantes, extraviados,
perdidos em vossas escaladas?
Não! Não! Três vezes não! Cada vez mais, cada vez melhores de vossa espécie
devem perecer, - pois deveis ter uma vida cada vez pior e mais dura. Só assim –
- Só assim cresce o homem até aquela altura na qual o raio cai sobre ele e o faz
pedaços: suficientemente alto para o raio! (...)
399
A árvore mais alta é aquela que tem maior probabilidade de ser atingida pelo raio. Da
mesma forma, o homem deve crescer até aquela altura na qual o raio cai sobre ele e o faz
pedaços”. Assim, para crescer até essa altura, de acordo com Zaratustra, não atalhos
nem comodidades; que perecer primeiro. Encontramos esse simbolismo, de fincar raízes
profundas para atingir grandes alturas, no quinto livro de A Gaia Ciência, escrito cinco
anos depois de Zaratustra:
Nós, os incompreensíveis. – Alguma vez nos queixamos de ser mal entendidos, mal
conhecidos, confundidos, difamados, mal escutados e ignorados? Eis precisamente
a nossa sina oh, por quanto tempo ainda! digamos, sendo modestos, até 1901 e
também a nossa distinção; não respeitaríamos suficientemente a nós próprios, se
desejássemos que fosse diferente. Somos confundidos com outros nós mesmos
crescemos, mudamos continuamente, largamos a velha casca, trocamos de pele a
cada primavera, tornamo-nos cada vez mais jovens, mais futuros, mais elevados,
mais fortes, impelimos nossas raízes cada vez mais poderosamente na profundeza –
no mal - , enquanto abraçamos cada vez mais carinhosamente e mais amplamente o
céu, absorvendo cada vez mais avidamente a sua luz com todos os nossos ramos e
398
Ibid., prólogo, aforismo 4, p. 40 e aforismo 3, p. 36, respectivamente.
399
Ibid., quarta parte, “Do homem superior”, aforismo 6, p. 392, 393.
126
folhas. Crescemos como árvores – algo difícil de entender, como toda a vida! -, não
em um lugar, mas em toda a parte, não numa direção, mas tanto para cima e
para fora como para dentro e para baixo – nossa energia brota igualmente no tronco,
nos galhos e raízes, não somos livres para fazer qualquer coisa separadamente,
para ser alguma coisa separadamente... Tal é a nossa sina, como disse: nós
crescemos até às alturas, e ainda que isto fosse a nossa fatalidade pois habitamos
cada vez mais próximos dos raios! muito bem, nós não a reverenciamos menos
por isso, ela continua a ser o que não desejamos compartilhar nem comunicar, a
fatalidade das alturas, a nossa fatalidade...
400
Assim, quanto mais profundo alguém finca suas raízes na terra, maiores alturas
poderá atingir. Tratar-se-ia da justiça da completude, da totalidade, como diria Heráclito. Se
queremos altura, teremos também profundidade, se queremos o bem, teremos também o
mal. Não se fica com nada pela metade tudo tende à totalidade.
401
Seria essa totalidade
posta em cena através de imagens? Como vimos no primeiro capítulo, de acordo com
Eliade, “ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; pois as Imagens têm o poder e a
missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito.”
402
Segundo Nietzsche,
...Com todo crescimento do ser humano em grandeza e estatura, ele também cresce
em profundidade e horror: não se deve querer um sem querer o outro ou melhor:
quanto mais profundamente se quer um, de modo tanto mais profundo se alcança
justamente o outro.
403
400
IDEM, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 371, trad. de Paulo C. de Souza, p. 274, 275.
401
Ver capítulo II, item 3: “Notas a respeito da questão dos opostos”.
402
M. ELIADE, Imagens e símbolos, p. 16. Ver nota 45, p. 19.
403
F. NIETZSCHE, Fragmento stumo n. 9 (154), escrito entre o outono de 1885 e janeiro de 1889, trad. de
Flávio R. Kothe. In: Fragmentos Finais, p. 34.
127
3.6. A ABUNDÂNCIA DA FIGUEIRA E A VERSATILIDADE DO MARTELO
Até aqui falamos do simbolismo da árvore em geral, e assinalamos alguns pontos a
respeito do pinheiro. Falaremos agora da figueira, árvore sob a qual Zaratustra dormiu em
“Da picada da víbora”,
404
e sob a qual Buda despertou.
405
A árvore da qual Adão e Eva
colheram folhas para se cobrir é também a árvore consagrada a Dionísio, simbolizando a
abundância.
406
Para entendermos melhor essa última questão, da abundância, faremos uma
visita à segunda parte de Assim falou Zaratustra, no ponto onde Nietzsche coloca o além-
do-homem como algo tangível, possível de ser criado e não apenas passível de ser pensado:
Os figos caem das árvores, são bons e doces; e, conforme caem, sua pele vermelha
se abre. Um vento do norte sou eu para figos maduros.
Assim, tal como figos, caem para vós esses ensinamentos, meus amigos: sorvei-lhes
o sumo e a doce polpa! (...)
Vede que plenitude em vosso entorno! E é belo olhar desde a sobreabundância,
para mares longínquos. (...)
Poderíeis criar um Deus? Pois então não me fales de deuses! Mas o além-do-
homem sim poderíeis criá-lo. (...)
407
No aforismo supracitado, que fala da criação do além-do-homem, Zaratustra se
coloca como o vento do norte para figos maduros. E diz que “é belo olhar desde a
404
Citado na p. 120, nota 384.
405
São inúmeras as colocações que Nietzsche faz sobre Buda e sobre o budismo em seus escritos. Escolhemos
uma do Ecce Homo como exemplo: “O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente
também sua mais natural inclinação. – Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua
‘religião’, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas
lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma
dele primeiro passo para a convalescença. ‘Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a
inimizade’; isto se acha no começo dos ensinamentos de Buda – assim não fala a moral, assim fala a
fisiologia. (F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p.
30, 31). Nietzsche compara budismo e cristianismo em O Anticristo, aforismos 20 a 23, e 42.
406
A passagem na qual Adão e Eva colhem folhas de figueira para se cobrir está no Gênesis, 3, 7. No Novo
Testamento temos também uma figueira, que é amaldiçoada por Jesus: “De manhã, ao voltar para a cidade,
teve fome. E vendo uma figueira à beira do caminho, foi até ela, mas nada encontrou, senão folhas. E disse à
figueira: ‘Nunca mais produzas fruto!’ E a figueira secou no mesmo instante.” (Mateus, 21, 18). É curioso que
a árvore consagrada a Dionísio tenha sido amaldiçoada por Jesus.
407
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, segunda parte, “Nas ilhas afortunadas”, trad. de Andrés S. Pascual,
p. 135. No Ecce Homo, Nietzsche cita esse aforismo duas vezes: no prólogo, aforismo 4, e no capítulo
dedicado ao Zaratustra, aforismo 8.
128
sobreabundância, para mares longínquos.”. Ora, a palavra über, que compõe o termo
“Übermensche”, também pode ter o sentido de “mais”, de “excedente”, invocando dessa
maneira a “abundância”. Nesse sentido, o além-do-homem seria mais do que a soma dos
fragmentos de homens.
408
Esse “excedente”, esse “mais”, estaria nele presente. Desta
perspectiva, a abundância da figueira também poderia estar simbolizando esse “mais” do
além-do-homem, que, aliás, também está presente no próprio Zaratustra: a doação como
transbordamento. Depois de, por dez anos, gozar de seu espírito e de sua solidão,
Zaratustra quer doar o que acumulou, o excesso:
Estou saturado de minha sabedoria; como a abelha que acumulou demasiado mel,
tenho necessidade de mãos que se estendam. (...)
Abençoa a taça que quer transbordar para que dela flua a água de ouro levando a
todas as partes o resplendor de suas delícias!.
409
Por outra parte, para criar o além–do-homem a partir do homem, esse deve ser
destruído, pois, para criar novos valores é preciso destruir os antigos: “Quem tem que ser
um criador no bem e no mal, em verdade, esse tem que ser antes um aniquilador e
despedaçar valores.”
410
O instrumento que Zaratustra usa para destruir o homem e
construir o além-do-homem é o martelo:
408
Ver “Da redenção”, segunda parte de Zaratustra, citado no sexto item do segundo capítulo, p. 93, 94, notas
300 e 302.
409
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, prólogo, aforismo 1, trad. de Andrés S. Pascual, p. 33, 34. Sobre “a
taça que quer transbordar para que dela flua a água de ouro”, ver nota 352, p. 113, onde dissemos que ouro e
sol, em Nietzsche, simbolizariam a riqueza em excesso, em abundância. Ainda dentro desta perspectiva do
“mais”, lembremos aqui que um dos títulos que Nietzsche pensou para seu último livro foi: Ecce Homo, ou
um problema para psicólogos. Por que sou algo mais”. (Sobre os títulos que Nietzsche pensou para o Ecce
Homo, ver a Introdução de Andrés Sanchez Pascual para a sua tradução do referido livro, pela Alianza
Editorial, 1971, p. 10). Esse “mais” parece ainda estar presente no conceito nietzscheano de força. De acordo
com Leon Kossovitch, força em Nietzsche “é sempre tendência a um mais. Aumentar, crescer: tal impulso
está inscrito em cada uma porque ela é vontade de potência.” (Leon KOSSOVITCH, Signos e poderes em
Nietzsche, p. 40). Neste sentido, lembremos o que disse Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos: o “fenômeno
que leva o nome de Dionísio: ele é explicável apenas por um excesso de força.” (F. NIETZSCHE, Crepúsculo
dos ídolos, “O que devo aos antigos”, aforismo 4, trad. de Paulo C. de Souza, p. 104). Acrescentando uma
outra perspectiva, podemos dizer que esse “mais” também está contido no símbolo. Vimos que, de acordo
com Jung, ombolo pode ser um objeto do cotidiano, percebido pelos sentidos, mas sempre aponta para algo
a mais. (ver p. 24).
410
Ibid., segunda parte, “Da superação de si mesmo”, p. 177. Sobre o destruir para criar, ver, por exemplo,
Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 2, citado nas p. 88, nota 285 e p. 95, nota 306.
129
Mas para o homem torna sempre a empurrar-me minha ardente vontade de criar;
assim sente-se impulsionado o martelo para a pedra.
Ah, homens, na pedra dorme para mim uma imagem, a imagem de minhas imagens!
Ah, que ela tenha que dormir na pedra mais dura, mais feia!
Agora meu martelo se enfurece cruelmente contra sua prisão. Da pedra saltam
pedaços: que me importa?
411
O martelo de Zaratustra, contudo, não seria, a nosso ver, somente um instrumento de
escultor, que destrói para construir, ou ainda, um instrumento de diagnóstico para auscultar
vísceras, como na medicina antiga. Em um outro sentido, estaria ainda simbolizando o
poder do fogo, uma vez que tem ligação com o raio. Arma de Thor, poderoso deus
germânico guerreiro, que controla os ventos e as tempestades, o martelo simboliza o raio,
sendo ao mesmo tempo criador e destruidor.
412
Desta perspectiva, poder-se-ia dizer que o
martelo é o símbolo do filosofar nietzscheano, que trabalha com criação e destruição.
413
Nietzsche parece falar no martelo como arma no seguinte fragmento póstumo:
A luta suprema: para tanto é necessária uma nova arma.
O martelo: evocar uma decisão terrível: pôr a Europa diante da conseqüência de se
sua vontade “quer” sucumbir.
Impedimento da mediocrização. Muito melhor ainda é sucumbir.
414
Ainda sobre o martelo, de acordo com Mircea Eliade e Ioan P. Couliano, na religião
dos eslavos, Perun era o deus do trovão, cujo nome provém da raiz per, que significa
golpear. E, em polonês, piorun significa “raio”.
415
Temos assim, mais um apontamento da
411
Ibid., “Nas ilhas afortunadas”, p. 137, 138.
412
No fim da era viquingue, usavam-se martelinhos como amuletos. O martelo e a suástica eram gravados em
pedras comemorativas como seus mbolos. (John R. HINNELLS, Dicionário das religiões, verbete Tor, p.
269).
413
O próprio Nietzsche diz: “Sou fogo, não há dúvida.”, em um poema intitulado Ecce Homo, citado no Item
que apresentamos o filósofo, na p. 96, nota 307.
414
F. NIETZSCHE, Fragmento póstumo escrito entre 1884 e 1888, trad. de Marcos S. P. Fernandes e
Francisco J. D. de Moraes. In: A vontade de poder, aforismo 1054, p. 507. OBS: Não existe um livro de
Nietzsche chamado “A vontade de poder”. Trata-se de uma coletânea de fragmentos póstumos. Os fragmentos
têm uma numeração padrão que facilitam sua identificação. No caso desse fragmento aqui citado, não tivemos
acesso ao original, e colocamos a numeração adotada pelos tradutores.
415
A título de curiosidade, lembramos que no Ecce Homo Nietzsche fala que seus antepassados eram nobres
poloneses. (F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 3).
130
relação do martelo com o fogo. Sendo Nietzsche fogo, o martelo seria seu símbolo e seu
instrumento de trabalho. Cabe acrescentar que Eliade e Couliano, supracitados, consideram
provável que, com o nome Perun, a dinastia Rurikide de Kiev, cuja origem era escandinava,
prestavam homenagem ao deus germânico Thor. A mãe de Thor chamava-se Fiorgynn (de
“carvalho”) na mitologia norueguesa. Depois da cristianização da Rússia, a mitologia de
Perun foi transferida para a de Santo Elias.
416
Por último, lembramos que o martelo é também um símbolo da atividade formadora,
sendo utensílio de Hefestos, deus grego das forjas.
417
Assim, a nosso ver, o filosofar nietzscheano com o martelo tem todas essas
conotações, além da efetividade material de seu uso como instrumento de diagnóstico,
explicitado textualmente no prefácio do Crepúsculo dos ídolos: “...Há que se colocar aqui
ao menos uma vez questões com o martelo, e, talvez, escutar como resposta aquele célebre
som oco, que fala de vísceras intumescidas...”
418
416
M. ELIADE; IOAN P. COULIANO, Dicionário das religiões, Cap. 13: “Religião dos eslavos e povos
bálticos”, parágrafo 13.2, p. 150.
417
De acordo com uma lenda lituana, “os martelos de ferro são os instrumentos com os quais os deuses
favoráveis aos seres humanos desfazem na primavera as camadas de neve e de gelo. São as mesmas imagens
de desfazer nuvens no u, neve e gelo na terra e no mar, que se apresentam aqui para indicar a força divina
que o martelo deve ter...(J. CHEVALIER, A. GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, verbete martelo, p.
578). Essa imagem de desfazer neve é sugerida por Nietzsche quando ele fala da linguagem de A Gaia
Ciência: “Ele parece escrito na linguagem do vento que dissolve a neve...” (F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência,
prefácio tardio, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p.10).
418
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, prefácio, trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 8. Citado na
Introdução, p. 4, nota 6, e capítulo II, item 3, p. 69, nota 209.
131
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Demos início a esse estudo partindo de dois pressupostos: Nietzsche como psicólogo
e a simbologia como linguagem do inconsciente. Nietzsche, ao perguntar quem, entre os
filósofos, foi antes dele psicólogo, e não o seu oposto, ‘superior embusteiro’,
‘idealista’”,
419
estaria dizendo que os psicólogos, em oposição aos idealistas, são verazes.
Assim, ele contrapõe a veracidade do psicólogo com a mendacidade do “idealista”, da
mesma forma que contrapôs a mendacidade deste com a veracidade de Zaratustra.
420
Lembrando que Zaratustra é “o primeiro psicólogo dos bons”,
421
temos aqui a veracidade
do psicólogo Nietzsche e do psicólogo Zaratustra em oposição à mendacidade dos
idealistas.
Diante do exposto, nos perguntamos: Como Nietzsche poderia comunicar verdade
falando por signos? Como vimos, para ele, a linguagem de signos se desenvolve junto com
a consciência e o viver em sociedade, sendo que a consciência não faz parte da existência
individual, mas sim daquilo que no homem é da natureza de rebanho. A linguagem de
signos é, portanto, uma linguagem gregária. Para ele, nossas ações são pessoais, são únicas,
mas para comunicá-las nós as traduzimos na consciência. Seria nessa tradução, nessa
passagem do inconsciente para o consciente que começariam certos problemas: “a natureza
da consciência animal acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas
um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado, vulgarizado que tudo que
se torna consciente justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral,
signo, marca de rebanho, que, com tornar-consciente, está associada uma grande e radical
corrupção, falsificação, superficialização e generalização.”
422
Somente o pensamento
consciente do homem ocorreria em palavras, ou seja, em signos que podem ser
comunicados e entendidos, uma vez que são generalizados. Mas, para Nietzsche, não
somente pensamento consciente. Disso discorremos que haveria também um pensamento
inconsciente, que pode ocorrer em símbolos, que não é de natureza gregária, que não tem
419
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p. 114.
420
Ibid., aforismo 3, p. 111.
421
Ibid., aforismo 5, p. 113.
422
IDEM, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 354, trad. de Rubens R. T, Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 173.
132
como objetivo a comunicação. Consciência, para Nietzsche, “é propriamente apenas uma
rede de ligação entre homem e homem”,
423
de modo que a linguagem de signos liga o
homem com outro homem. De outra parte, vimos que a linguagem simbólica, gerada pelo
inconsciente, não tem um significado universal, não é gregária, não fala do conhecido, do
familiar ou do utilitário. Símbolos não comunicam, mas revelam aspectos mais profundos
da realidade, ligam o homem com ele mesmo. Symbálein faz a união do homem consigo
próprio. Por revelar aquilo que ainda não se tornou consciente, a linguagem simbólica não
estaria associada à “corrupção, falsificação, superficialização e generalização”. A
passibilidade de “corrupção, falsificação, superficialização e generalização”, presente na
linguagem de signos, não se encontraria na linguagem de símbolos. Com a primeira, assim
teria falado a filosofia tradicional; com a segunda, a nosso ver, assim falou Zaratustra.
A superação da mendacidade de milênios não poderia ser efetiva (Wirklich) por
intermédio da linguagem que o próprio Nietzsche criticou: a linguagem gregária. A fala
simbólica de Zaratustra, o mais veraz de todos os pensadores, seria, de acordo com nossa
leitura, uma afronta à mentira de milênios.
...a verdade fala em mim. – Mas a minha verdade é terrível: pois até agora chamou-
se à mentira verdade. Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula
para um ato de suprema auto-gnose da humanidade, que em mim se fez gênio e
carne. Minha sina quer que eu seja o primeiro homem decente, que eu me veja em
oposição à mendacidade de milênios... Eu fui o primeiro a descobrir a verdade, ao
sentir por primeiro a mentira como mentira...
424
Vimos que, segundo Rubens R. T. Filho, a orientação simbólica é “historicamente
oposta à tendência alegórica do cristianismo, (...) Adotar o estilo simbólico, em filosofia, é
situar-se a contracorrente desse cristianismo...”.
425
Entendemos que Nietzsche, com seus
escritos, vem desfazer as mentiras em cima das quais foi construída a moral socrático-
judaico-cristã. Uma moral mendaz desfeita por um imoralista veraz. Vimos que não foi
somente o cristianismo que refreou os instintos e a produção de símbolos. O predomínio
dado à razão na cultura ocidental pós-socrática rebaixou tudo o que não passa pelo crivo da
423
Ibid., p. 172.
424
IDEM, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 109.
425
R. R. TORRES FILHO, Ensaios de Filosofia Ilustrada, “O simbólico em Schelling”, p. 113.
133
razão. Os instintos foram desvalorizados, e com eles, o simbólico. Como a razão não
consegue abranger simultaneamente dois pólos de uma questão, ou trabalhar com os graus
de variação existentes entre ambos; de seu ponto de vista, não espaço para uma
concepção simbolista. A recíproca, contudo, não é verdadeira. Do ponto de vista simbólico,
a concepção racional tem seu lugar. Como o símbolo é totalizador, reúne as partes
(symbálein), ele não exclui nada, nem mesmo a razão.
Por isso, introduzir uma leitura do Zaratustra sob uma perspectiva simbólica abre um
leque de possibilidades. Olhar a árvore, em Nietzsche, sem os recursos exclusivamente
racionais, como as alegorias, ou ainda, as metáforas enrijecidas;
426
poder olhar a árvore
como mbolo, faz vir à tona um transbordamento de significados, que estariam encobertos
por nosso hábito de interpretar signos.
De acordo com nossa leitura, Nietzsche, no Zaratustra, evoca o deus da árvore
Dionísio para garantir a fertilidade necessária para o cultivo de uma árvore que cobrirá a
Terra inteira. O cultivo dessa árvore é, segundo Nietzsche, a grande tarefa da humanidade.
O cumprimento dessa grande tarefa garantirá a renovação e a transformação da vida;
garantirá, como garantia entre os helenos os mistérios dionisíacos, o eterno retorno da
vida.
427
Assim, Dionísio, o deus da árvore, como a própria árvore, seriam os “símbolos do
eterno retorno nietzscheano”. Como vimos no primeiro capítulo, um símbolo não se refere
a algo, não representa algo. Ele é esse algo. Dizer que a árvore é o símbolo do eterno
retorno é dizer que a árvore é o eterno retorno. A árvore, assim como seu deus Dionísio,
seria o eterno prazer da doação, a mais alta virtude, e do vir a ser, “o eterno Sim a todas as
coisas...”
428
Sendo a concepção fundamental do Zaratustra o pensamento do eterno
retorno,
429
seria o símbolo da árvore a porta de entrada que lhe acesso? De qualquer
forma, é o próprio eterno retorno que permite a Nietzsche trazer de volta o que, para ele, é o
simbolismo mais elevado: o simbolismo grego das dionisíacas, que garante o eterno retorno
da vida, com toda sua abundância.
Dessa perspectiva simbólica, o Zaratustra poderia ser considerado uma mitologia no
sentido que lhe confere Campbell:
426
Sobre o termo “metáfora” em Nietzsche, fizemos alguns apontamentos na p. 23.
427
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “O que devo aos antigos”, aforismo 4, trad. de Rubens R. T.
Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, vol. II, p. 124.
428
IDEM, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p. 90.
429
Ibid., aforismo 1, p. 82.
134
Uma mitologia completa é uma organização de imagens e narrativas simbólicas das
possibilidades de experiência humana e da realização de determinada cultura em
certo momento.
430
Nesse sentido, as narrativas mitológicas seriam “reais”, pois falam da experiência
humana, e são transmitidas por uma linguagem simbólica. Imagens não podem ser
encontradas histórica e geograficamente. Isso não significa que elas não existam, inclusive
em momentos históricos. A arca de Noé, por exemplo, existiu como imagem, mas se
alguém acha que irá encontrá-la geograficamente, perderá seu tempo. Da mesma forma que
não existe uma terra santa geograficamente falando.
Desse modo, a nosso ver, Assim falou Zaratustra poderia ser considerado uma
narrativa mitológica, que fala de possibilidades de experiência e realização da
“humanidade”. Como vimos, Nietzsche não se colocava como um indivíduo, mas como um
destino.
431
Esse dado corrobora com o que acabamos de dizer, ao trazer mais uma vez as
palavras de Campbell:
Os mitos derivam das visões de pessoas em busca de seu mundo mais íntimo. (...)
Assim como os sonhos, os mitos são produtos da imaginação. E existem duas
ordens de sonho: o pessoal simples, onde o sonhador se envolve em aventuras que
refletem somente seus problemas pessoais (...) Há também outro nível de sonho que
pode ser considerado uma visão, onde o indivíduo transcendeu a esfera de um
horizonte meramente pessoal e entra em confronto com os mesmos grandes
problemas universais, que são simbolizados em todos os grandes mitos.
432
Dessa perspectiva, pode-se melhor entender porque Nietzsche se via/sentia como um
destino. O sonho de infância de Nietzsche com o personagem Zaratustra,
433
e a forma como
toda a narrativa a ele se revela, como ele próprio conta no Ecce Homo, nos parece ser
daquele nível que, segundo Campbell, “pode ser considerado uma visão, onde o indivíduo
transcendeu a esfera de um horizonte meramente pessoal...”.
430
Joseph CAMPBELL, Tu és isso, p. 24.
431
Sobre Nietzsche como destino, ver páginas 88, 89.
432
Joseph CAMPBELL, Tu és isso, p. 53, 54.
433
Ver p. 58, nota 176.
135
Como vimos no capítulo I, assim como no quinto item do capítulo II, não é possível
traduzir uma linguagem simbólica para uma linguagem de signos, uma vez que a
compreensão dos símbolos não se no nível consciente. Mas isso não quer dizer em
absoluto que não possamos compreendê-los. Quer dizer apenas que não podemos
compreendê-los de uma maneira lógica. Símbolos não são demonstráveis, ou, de acordo
com a concepção kantiana: simbolizar é pôr um conceito indemonstrável em cena.
434
Em se
tratando de símbolos não sujeito e objeto, não mediação, não demonstração. Por
isso, o símbolo, mais do que pensado, é para ser experimentado. Sua compreensão pode ser
imediata; mas a interpretação é sempre mediata, e o intérprete dificilmente consegue
subtrair-se de si mesmo, de sua orientação, sair de seu ângulo. Enfim, ele interpreta através
de sua Weltanschauung.
435
Por isso, nossa leitura do Zaratustra sob uma perspectiva
simbólica, insere-se no rol de mais uma interpretação, vista de nosso ângulo, como não
poderia deixar de ser. Acresce-se a isso a questão da resistência do próprio texto, ou seja, os
próprios textos de Nietzsche nos dizem se resistem ou não a determinadas interpretações.
Ao mapearmos os símbolos, no primeiro capítulo, vimos que eles podem surgir
espontaneamente em sonhos e fantasias, na arte e na poesia, nos mitos e contos de fadas.
Símbolos são imagens criadas pelo inconsciente para expressar conteúdos “interiores”. Em
tempos remotos o símbolo e o simbolizado eram um. Posteriormente, passam a ser dois.
“...Subitamente, amiga, o um se tornou dois! E Zaratustra passou junto a mim...”
436
Assim, o homem cria símbolos, lhes dá vida, e lhes atribui valor e significados, no plano da
imaginação. E a imaginação cria a realidade. Enquanto signos, sinais e alegorias pertencem
a um universo racional, consciente; símbolos encontram-se em um universo que integra
também o “inconsciente”, e contêm sempre um excedente de significados, não acessíveis,
ou, pelo menos, não inteiramente acessíveis à análise racional. Dessa forma, signos, sinais e
alegorias trafegam nos limites do consciente, enquanto que os símbolos ultrapassam as
fronteiras deste. Os primeiros são produtos de uma atividade mental deliberada. Quanto aos
símbolos, não há deliberação, eles simplesmente vêm. Zaratustra, então, não teria sido uma
deliberação de Nietzsche. Assim ele conta sua experiência de inspiração desta obra:
434
Conforme a interpretação de Rubens R. Torres Filho, como vimos nas páginas 14 e 15, nota 27.
435
Palavra alemã que tem sido traduzida como “concepção do mundo”, “ideologia”; uma concepção
particular da vida, do mundo, da existência.
436
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, apêndice, Sils-Maria, trad. de Paulo C. de Souza, p. 311.
136
Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz
como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma jamais tive opção.
(...) Tudo ocorre de modo sumamente involuntário, mas como que em um turbilhão
de sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade...A
involuntariedade da imagem, do símbolo, é o mais notável....
437
Para aqueles que consideram o pensamento conceitual a única forma de pensamento
válida, os símbolos, as imagens e os mitos ocupam um lugar secundário. De outra parte,
aqueles que, como Eliade, acreditam na “sobrevivência subconsciente, no homem moderno,
de uma mitologia abundante e, na nossa opinião, de um valor espiritual superior à sua vida
‘consciente’”,
438
o pensamento simbólico seria uma forma de pensamento não válida,
como mais abrangente e rica que o pensamento conceitual. Este é bipolar: ou algo é
verdadeiro ou é falso, ou é bom ou é mal; não podendo trabalhar com os graus e variações
existentes entre dois los. Além disso, enquanto o pensamento conceitual é analítico,
divide o objeto de sua atenção em partes, o pensamento simbólico não divide, mas une.
Reunindo as considerações que fizemos sobre a concepção nietzscheana diferenciada
de filosofia, a crítica de Nietzsche à razão socrática, o que ele diz no aforismo 20 de Para
além de bem e mal,
439
assim como no aforismo 5 do Crepúsculo dos ídolos,
440
sobre a
linguagem, podemos chegar à conclusão de que a linguagem conceitual, comumente
considerada o único instrumento apropriado à filosofia, não seria apropriada aos escritos
nietzscheanos em particular. Como o próprio Nietzsche diz:
Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias
conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles
empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos.
441
Como vimos na Introdução, o conceito para Nietzsche sempre desconsideraria
aquilo que é individual. Além disso, a lógica e a “inteligibilidade conceitual da existência”
437
IDEM, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 3, trad. de Paulo C. de Souza, p. 85, 86.
438
Mircea ELIADE, Imagens e Símbolos, p. 12
439
Em “Dos preconceitos dos filósofos”, citado na Introdução, p. 10, 11, nota 23.
440
Em “A ‘razão’ na filosofia”, citado nas p. 81, 82, nota 261.
441
F. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, “A ‘razão’ na filosofia”, aforismo 1, trad. de Marco Antonio Casa
Nova, p. 27.
137
parecem, de acordo com ele, servir a uma determinada espécie de sofredores, àquela que
sofre de empobrecimento de vida:
...há duas espécies de sofredores, primeiro os que sofrem de abundância de vida,
que querem uma arte dionisíaca (...) e depois os que sofrem de empobrecimento de
vida, que procuram por repouso, quietude, mar liso, redenção de si mesmo pela arte
e pelo conhecimento, ou então a embriaguez, o espasmo, o ensurdecimento, o
delírio. (...) O mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, não
somente pode permitir-se a visão do terrível e problemático, mas até mesmo o ato
terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação; (...) Inversamente, o
mais sofredor, mais pobre de vida, teria a máxima necessidade de brandura, boa
paz, bondade, no pensar e no agir, se possível um Deus, que seria bem propriamente
um deus para doentes, um “salvador”; assim também de lógica, da inteligibilidade
conceitual da existência pois a lógica tranqüiliza, cria confiança -, em suma, uma
certa estreiteza cálida que protege do medo e uma inclusão em horizontes
otimistas.
442
Poderíamos dizer que em épocas remotas tudo estava junto, unido,
443
pois era dessa
forma que se pensava miticamente o mundo: simbolicamente (symbálein). Quando o
pensamento simbólico foi desvalorizado, e em seu lugar entrou em cena o pensamento
conceitual abstrato, o mundo foi sendo dividido em oposições e a dualidade foi se
estabelecendo como padrão do pensamento. A linguagem conceitual teria sido formada
dentro deste cenário dual, e, desde então, quando aprendemos a falar, automaticamente
aprendemos a ver o mundo de forma dual, onde os pares de opostos estão separados e
442
IDEM, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 370, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
Incompletas, vol. I, p. 176, 177.
443
Lembrando que, para Nietzsche, a unidadeé uma das categorias com a qual o homem impôs ao mundo
um valor: “O sentimento da ausência de valor foi alvejado, quando se compreendeu que nem com o conceito
fim”, nem com o conceito unidade”, nem com o conceito verdadese pode interpretar o caráter global da
existência. Com isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do acontecer: o
caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso... não se tem absolutamente mais nenhum fundamento para se
persuadir de um verdadeiro mundo... Em suma: as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos
imposto ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós e agora o mundo parece sem valor...” (F.
NIETZSCHE, “Queda dos valores cosmológicos”, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras
incompletas, “O Niilismo” (A Vontade de Potência, textos de 1884-1888), aforismo 12, “Queda dos valores
cosmológicos”, A, vol. II, p. 161).
138
impossibilitados de se mesclarem. Nesse novo cenário, pensou-se origens diferentes para os
opostos, como vimos no segundo capítulo.
444
Deste ponto de vista, Nietzsche, ao escrever Zaratustra com uma linguagem
simbólica, estaria resgatando a unidade perdida” no mundo dos conceitos. Ao nos
permitirmos fazer uma leitura despojada de conceitos, poderíamos reconstruir a ponte que
une aquilo que amos e sentíamos separado. Deixaríamos de ver as coisas presas somente
a duas possibilidades e duas origens: se algo não é verdadeiro, logo é falso, e passaríamos a
perceber os graus existentes entre os dois pólos.
Poderíamos dizer que, no Zaratustra, Nietzsche realizou uma “revolução
copernicana” ao fazer a razão deixar de ser o centro. O universo racional, por estar
submetido às categorias de nosso pensamento lógico, é previsível. Por outro lado, quando
tentamos ir além da razão, quando se busca um saber totalizador, abrangente e
perspectivista, ficamos sujeitos ao imprevisível. Enquanto a linguagem conceitual nos é
familiar e calculável, um livro escrito numa linguagem cuja razão é periférica, acaba por
afastar leitores que não lidam bem com aquilo que lhes parece estranho e imprevisível.
Assim, a linguagem de Zaratustra seria peculiar pela introdução de algo novo, não
familiar: a linguagem simbólica. Esta parece dar acesso a um domínio desconhecido,
inexplorado. Esse domínio desconhecido pode ser o domínio inconsciente a partir do qual
os próprios símbolos são produzidos. Enquanto os símbolos expressariam conteúdos
inconscientes e instintivos, os signos expressam aquilo que se tornou consciente,
portanto “seguro”. Como vimos no início do primeiro capítulo, Nietzsche diz que “...o
pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e s dizemos: a parte
mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em
palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria
consciência...”
445
Segundo nossa leitura, Nietzsche, pela boca de Zaratustra, quer nos dizer
algo maior do que essa “mínima parte” do pensamento tornado consciente. Para tanto, não
bastariam os signos. Além do que, Zaratustra é um personagem que não parece se prestar
ao que é, segundo Nietzsche, generalizado e vulgarizado, ao que é raso, estúpido, signo ou
marca de rebanho.
444
Item 3, p. 65, onde citamos o aforismo 2 de Para além de bem e mal.
445
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 354, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras incompletas, vol. I, p. 173.
139
Sendo a linguagem de Zaratustra simbólica, temos um paradoxo: por mais que
tentamos interpretá-la, ela nos escapa, pois, do contrário, se a trazemos para o consciente,
ela deixa de ser simbólica, e passa a ser signo. Como vimos, segundo Nietzsche, o mundo
de signos é generalizado e vulgarizado, e todo tornar-consciente compartilha com a
falsificação. Dessa forma, traduzir uma linguagem simbólica em signos seria falsificá-la.
De acordo com o que vimos nas pesquisas junguianas sobre símbolos, ao falar
simbolicamente, aquilo que foi dito permanece, de certa forma, oculto.
446
Por isso, uma
interpretação literal do Zaratustra resultaria estranha, com muitas passagens até mesmo
bizarras, aparentemente sem sentido. A compreensão de uma tal linguagem se faria, então,
em outro nível, não consciente.
Na Introdução nos perguntamos porque Nietzsche faria uso de uma linguagem
simbólica. Vislumbramos, então, algumas respostas, como, por exemplo, para se libertar do
aprisionamento da gramática. Depois de percorrer alguns caminhos de Zaratustra, podemos
dizer ainda que, além da questão da veracidade supracitada, também sua abordagem
perspectivista, de totalidade, exige uma linguagem própria, não fragmentada. Como disse
Mircea Eliade, “a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total”.
447
Assim, a linguagem simbólica revelaria a totalidade que Zaratustra quer transmitir.
Enquanto os signos expressam fragmentos, os símbolos nos permitiriam experimentar a
totalidade.
Podemos, todavia, nos perguntar para que, afinal, a totalidade? Desta pergunta
decorre pelo menos duas respostas: para o homem enquanto fragmento, a totalidade não
parece servir para nada; mas para o homem transformado, que está sempre se superando a
si mesmo, que consegue somar seus pedaços como summa summarum,
448
a totalidade é
necessária. Uma abordagem de totalidade inclui o resgate da aceitação da vida como ela é,
com seu eterno construir e destruir. Nietzsche teria encontrado no cenário simbólico uma
forma de encenar uma mensagem redentora, de superação e de transformação, sem se
afastar da Terra para um mundo ideal. Mas os ensinamentos de Zaratustra não seriam da
ordem dos saberes. Se Zaratustra falou simbolicamente, não podemos dele tirar nenhum
446
Cap. I, item 3, P. 24.
447
Cap. I, item 2, p. 20, nota 47.
448
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 2. Ver citação selecionada no apêndice, p.
151, 152.
140
saber, uma vez que símbolos “não declaram, acenam. Tolo é quem deles quer tirar
saber.”
449
Por isso, a nosso ver, Assim falou Zaratustra, e não poderia ter falado de outra
forma.
449
IDEM, Así habló Zaratustra, primeira parte, “Da virtude que dá presentes”, aforismo 1, trad. de Andrés S.
Pascual, p. 124.
141
APÊNDICE
Humano, Demasiado Humano, volume I, prefácio tardio, aforismo 1, trad. de Rubens R. T.
Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 41, 42:
(...) Denominaram meus escritos uma escola de suspeita, mais ainda, de desprezo, mas
felizmente também de coragem, e mesmo de temeridade. De fato, eu mesmo não acredito que
alguma vez alguém tenha olhado para o mundo com uma suspeita tão profunda (...) E quem
adivinha algo das conseqüências que se alojam em toda suspeita profunda, algo dos calafrios
e angústias do isolamento, aos quais toda incondicional diferença de olhar condena os que
são acometidos dela, entenderá também quantas vezes eu, para descansar de mim, como que
para um temporário auto-esquecimento, procurei abrigar-me em alguma parte sob alguma
veneração ou inimizade ou cientificidade ou leviandade ou estupidez: e também porque, onde
não encontrei aquilo de que precisava, tive que conquistá-lo artificialmente, falsificá-lo, criá-
lo ficticiamente para mim (...) Mas do que eu precisava sempre de novo (...) era da crença de
não ser o único a ser assim, o único a ver assim (...) uma cegueira a dois sem suspeita e
pontos de interrogação, um gosto pelas fachadas, superfícies, pelo perto, (...) Talvez se
pudesse, sob esse aspecto, imputar-me muita “arte”, muita refinada falsificação de moeda:
por exemplo, que eu teria, deliberada e propositalmente, fechado os olhos à cega vontade de
moral de Schopenhauer, em um tempo em que, sobre a moral, eu já era bastante clarividente;
do mesmo modo, que eu me teria enganado sobre o incurável romantismo de Richard Wagner
(...); do mesmo modo sobre os gregos, do mesmo modo sobre os alemães e seu futuro (...),
suposto, porém, que tudo isso fosse verdade (...), o que sabeis vós, o que poderíeis saber, do
quanto de ardil de autoconservação, do quanto de razão e cuidado superior em um tal
auto-engano e de quanta falsidade eu ainda necessito, para poder permitir-me sempre de
novo o luxo de minha veracidade?... Basta, eu vivo ainda; e a vida não foi inventada pela
moral: ela quer engano, ela vive de engano... mas não é que já recomeço e faço o que sempre
fiz, eu velho imoralista e passarinheiro – e falo imoralmente, extramoralmente, “para além de
bem e mal”? -
Humano, Demasiado Humano, volume II, segunda parte: O andarilho e sua sombra”,
aforismo 1, trad. de Paulo César de Souza, p. 164:
Da árvore do conhecimento. Verossimilhança, mas não verdade; aparência de liberdade,
mas não liberdade é por causa desses dois frutos que a árvore do conhecimento não pode
ser confundida com a árvore da vida.
Ibid., aforismo 189, p. 249, 250:
A árvore da humanidade e a razão. - Aquilo que vocês, com decrépita miopia, temem como
sendo a superpopulação da Terra, é justamente o que proporciona ao mais esperançoso a sua
grande tarefa: um dia, a humanidade deve se tornar uma árvore que cubra a Terra inteira, com
muitos bilhões de brotos que devem conjuntamente se tornar frutos, e a Terra deve ser
preparada para nutrir essa árvore. Fazer com que o atual esboço, ainda pequeno, aumente em
seiva e força; com que circule em inúmeros canais a seiva para a alimentação do todo
142
dessas tarefas, e de outras assim, é que se de extrair o critério segundo o qual um homem
de hoje é útil ou inútil. A tarefa é indizivelmente grande e ousada: todos queremos contribuir
para que a árvore não apodreça antes do tempo! Uma mente histórica talvez consiga imaginar
o ser e o fazer humanos, no conjunto do tempo, tal como aparecem a nossos olhos as
formigas, com seus montes artisticamente edificados. Julgando superficialmente, poder-se-ia
falar de “instinto” em relação a toda a humanidade, assim como em relação às formigas. Num
exame mais detido, percebemos que povos inteiros, séculos inteiros se esforçam em descobrir
e experimentar novos meios com que seja possível beneficiar um grande conjunto humano e,
por fim, a grande árvore frutífera total da humanidade; e, não importando os danos que
indivíduos, povos e épocas sofram com esse experimentar, sempre indivíduos que se
tornam mais inteligentes com o sofrer, e a partir deles essa inteligência vai lentamente
extravasando para as medidas tomadas por povos inteiros, épocas inteiras. Também as
formigas erram e se equivocam; a humanidade bem pode se deteriorar e emurchecer antes do
tempo, graças à estupidez dos meios – nem para aquelas nem para essa existe um instinto que
conduz seguramente. Temos, isto sim, que olhar de frente a grande tarefa de preparar a Terra
para uma vegetação da máxima e mais jubilosa fecundidade – uma tarefa da razão em prol da
razão!
A Gaia Ciência, prefácio à segunda edição (1886), aforismo 2, trad. de Rubens R.
T. Filho.
In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 145, 146:
- Mas deixemos o Sr. Nietzsche: que nos importa que o Sr. Nietzsche está outra vez com
saúde?... Um psicólogo conhece poucas questões o atraentes quanto a da relação entre
saúde e filosofia, e para o caso, em que ele próprio fica doente, ele traz toda a sua curiosidade
científica consigo para sua doença. Ou seja, pressuposto que se é uma pessoa, tem-se
também, necessariamente, a filosofia de sua pessoa: no entanto, uma diferença relevante.
Em um são suas lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças. O primeiro necessita
de sua filosofia, seja como amparo, tranqüilizante, medicamento, redenção, elevação,
alheamento de si; neste último, ela é apenas um belo luxo, no melhor dos casos a volúpia de
uma gratidão triunfante, que acaba tendo ainda de se inscrever em maiúsculas cósmicas no
céu dos conceitos. No outro caso, porém, o mais habitual, quando o os estados de
indigência que fazem filosofia, como em todos os pensadores doentes – e talvez preponderem
os pensadores doentes na história da filosofia - : o que será do pensamento mesmo, que é
posto sob a pressão da doença? Esta é a pergunta que importa aos psicólogos: e aqui é
possível a experimentação. Não diferente do que faz um viajante, que se propõe a acordar em
uma hora determinada e, em seguida, se abandona tranqüilamente ao sono: assim nós
filósofos, suposto que ficamos doentes, nos entregamos de corpo e alma à doença - como que
fechamos os olhos a nós. E como aquele sabe que algo que não dorme, algo que conta as
horas e o acordará, sabemos nós também que o instante decisivo nos encontrará acordados
que então algo salta, e apanha o espírito em flagrante, quero dizer, na fraqueza ou regressão
ou resignação ou endurecimento ou ensombrecimento ou como se chamem todos esses
estados doentios do espírito, que em dias sadios têm contra si o orgulho do espírito (pois
continua valendo a velha rima: “O espírito orgulhoso, o pavão, o cavalo, são os três animais
mais orgulhosos sobre a terra”-). Aprende-se, com essa espécie de autoquestionamento, de
auto-experimentação, a olhar com um olho mais refinado para tudo o que em geral foi
filosofado até agora; adivinham-se melhor que antes os involuntários descaminhos, ruas
laterais, lugares de repouso, lugares de sol do pensamento, a que os pensadores que sofrem,
precisamente como sofredores, são conduzidos e seduzidos, sabe-se doravante para onde,
inconscientemente, o corpo doente, com suas necessidades, impele, empurra, atrai o espírito –
em direção ao sol, quietude, brandura, paciência, medicamento, refrigério em qualquer
143
sentido. Toda a filosofia que coloca a paz mais alto do que a guerra, toda ética com uma
concepção negativa do conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhecem um
termo final, em estado terminal de qualquer espécie, todo preponderante desejo estético ou
religioso por um à-parte, um além, um fora, um acima, permitem que se pergunte se não foi a
doença aquilo que inspirou o filósofo. O inconsciente travestimento de necessidades
fisiológicas sob os mantos do objetivo, do ideal, do puramente-espiritual, chega até o
aterrorizante e com bastante freqüência eu me perguntei se, calculando por alto, a filosofia
até agora não foi em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o
corpo. Por trás dos mais altos juízos de valor, pelos quais até agora a história do pensamento
foi guiada, estão escondidos mal-entendidos sobre a índole corporal, seja de indivíduos, seja
de classes, ou de raças inteiras. Todos aqueles ousados disparates da metafísica, em particular
suas respostas à pergunta pelo valor da existência, podem-se considerá-los sempre, em
primeiro lugar, como sintomas de determinados corpos; e se essa espécie de afirmação do
mundo ou negações do mundo, em bloco e a granel, cientificamente medidas, não são
habitadas por um grão de significação, dão no entanto ao historiador e ao psicólogo pistas
tanto mais valiosas, como sintomas, como foi dito, do corpo, de seu acerto ou desacerto, de
sua plenitude, potencialidade, autodomínio na história, ou então de suas obstruções, cansaços,
empobrecimentos, de seu pressentimento do fim, de sua vontade de fim. Ainda estou à espera
de que um médico filosófico, no sentido excepcional da palavra um médico que tenha o
problema da saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade, para cuidar - terá uma vez o
ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a proposição: em todo filosofar até agora
nunca se tratou de “verdade”, mas de algo outro, digamos saúde, futuro, crescimento,
potência, vida...
A Gaia Ciência, Livro III, aforismo 111, trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 157, 158:
De onde vem o lógico. - De onde surgiu a lógica na cabeça humana? Com certeza, da não-
lógica (...) Mas inúmeros seres, que inferiam de modo diferente do que nós inferimos agora,
sucumbiram: poderia até mesmo ter sido mais verdadeiro! Quem, por exemplo, não sabia
descobrir o igual’ com suficiente freqüência, no tocante à alimentação ou no tocante aos
animais que lhe eram hostis, (...) tinha menor probabilidade de sobrevivência do que aquele
que em todo semelhante adivinha logo a igualdade. A tendência preponderante, porém, a
tratar o semelhante como igual, uma tendência ilógica pois não em si nada igual -, foi a
primeira a criar todos os fundamentos em que assenta a lógica. Do mesmo modo, para que
surgisse o conceito da substância, (...) – foi preciso que por longo tempo o mutável nas coisas
não fosse visto, não fosse sentido; (...) A sequência de pensamentos e conclusões lógicas,
em nosso cérebro de agora, corresponde a um processo e luta de impulsos, que por si sós são
todos muito ilógicos e injustos; de hábito, só ficamos sabendo do resultado do combate: tão
rápido e tão escondido se desenrola agora esse antiqüíssimo mecanismo em nós.
A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 382, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, p. 178, 179:
A grande saúde. - Nós, os novos, os sem nome, os difíceis de entender, nós, os nascidos cedo
de um futuro ainda indemonstrado - nós precisamos, para um novo fim, também de um novo
meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais engenhosa, mais tenaz,
mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora. Aquele cuja alma
144
tem sede de viver o âmbito inteiro dos valores e anseios que prevaleceram até agora e de
circunavegar todas as costas desse “mar mediterrâneo” ideal, aquele que quer saber, pelas
aventuras de sua experiência mais própria, o que se passa na alma de um conquistador e
explorador do ideal, assim como de um artista, de um santo, de um legislador, de um sábio,
de um erudito, de um devoto, de um adivinho, de um apóstata no velho estilo: este precisa,
para isso, primeiro que tudo, de uma coisa, da grande saúde de uma saúde tal, que não
somente se tem, mas que também constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar,
porque sempre se abre mão dela outra vez, e se tem de abrir mão!... E agora, depois de por
muito tempo estarmos a caminho dessa forma, nós, argonautas do ideal, mais corajosos talvez
do que prudentes, e muitas vezes naufragados e danificados, mas, como foi dito, mais sadios
do que gostariam de nos permitir, perigosamente sadios, sempre sadios outra vez quer-nos
parecer que, em recompensa por isso, temos diante de nós uma terra ainda inexplorada, cujos
limites ninguém mediu ainda, um além de todas as terras e rincões do ideal conhecidos até
agora, um mundo tão abundante em coisas belas, estranhas, problemáticas, terríveis e divinas,
que nossa curiosidade, assim como nossa sede de posse, ficam fora de si ai, que doravante
nada mais nos pode saciar! Como poderíamos, depois de ver tais paisagens, e com uma tal
voracidade na consciência e na ciência, contentar-nos com o homem do presente? É pena:
mas é inevitável que consideremos seus mais dignos alvos e esperanças apenas com uma
seriedade mal mantida, e talvez nem sequer os consideremos mais. Um novo ideal corre à
nossa frente, um ideal estranho, tentador, rico de perigos, ao qual não gostaríamos de
persuadir ninguém, porque a ninguém concederíamos tão facilmente o direito a ele: o ideal de
um espírito que joga ingenuamente, isto é, sem querer e por transbordante plenitude e
potencialidade, com tudo o que até agora se chamou sagrado, bom, intocável, divino; para o
qual o mais alto, em que o povo encontra legitimamente sua medida de valor, significaria
perigo, declínio, rebaixamento ou, no mínimo, descaso, cegueira, esquecimento temporário
de si; o ideal de um bem-estar e bem-querer humano-sobre-humano, que muitas vezes
parecerá inumano, quando, por exemplo, se põe ao lado de toda seriedade terrestre até agora,
ao lado de toda espécie de solenidade em gesto, palavra, tom, olhar, moral e tarefa, como sua
mais corporal, sua involuntária paródia e com o qual somente, a despeito de tudo isso,
começa talvez a grande seriedade, com o qual é posto o verdadeiro ponto de interrogação, o
destino da alma muda de rumo, a tragédia começa...
OBS: Note-se que esse aforismo termina com as palavras a tragédia começa...”, que é o
título do último aforismo do quarto livro da Gaia Ciência. Aqui terminava o livro na
primeira edição de 1882. Esse aforismo (342: Incipit Tragoedia), Nietzsche colocou como
o primeiro do prólogo de Zaratustra, que é o livro seguinte do filósofo. O quinto livro de A
Gaia Ciência foi escrito posteriormente, em 1887.
A Gaia Ciência, Livro V, aforismo 354, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, p.172-174.
Do gênio da espécie”. O problema do ter-consciência (mais corretamente: do tomar-
consciência-de-si) só se apresenta a nós quando começamos a conceber em que medida
poderíamos passar sem ela: e é nesse começo do conceber que nos coloca a fisiologia e a
zoologia (as quais, portanto, precisaram de dois séculos para alcançar a premonição de
Leibniz, que voava na sua dianteira). Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-
145
nos, poderíamos igualmente “agir” em todo sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria
preciso que tudo isso nos “entrasse na consciência” (como se diz em imagem). A vida inteira
seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho: como, de fato, ainda agora, entre
nós, a parte preponderante dessa vida se desenrola sem esse espelhamento e aliás também
nossa vida de pensamento, sentimento, vontade, por mais ofensivo que isso possa soar a um
filósofo mais velho. Para que em geral consciência, se no principal ela é supérflua? Ora,
parece-me, se se quer dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua suposição talvez
extravagante, que o refinamento e força da consciência estão sempre em proporção com a
aptidão de comunicação de um ser humano (ou animal), e a aptidão de comunicação, por sua
vez, em proporção com a necessidade de comunicação: isto entendido, não como se o próprio
homem singular, que é precisamente mestre em comunicar e tornar inteligíveis suas
necessidades, fosse também, ao mesmo tempo, aquele cujas necessidades mais o
encaminhassem aos outros. Mas bem me parece ser assim no que se refere a raças inteiras e
gerações sucessivas: onde a necessidade, a indigência, coagiram longamente os homens a se
comunicarem, a se entenderem mutuamente com rapidez e finura, acaba por haver um
excedente dessa força e arte da comunicação, como que uma fortuna que pouco a pouco se
acumulou e agora espera por um herdeiro que a gaste perdulariamente ( - os assim chamados
artistas são esses herdeiros, do mesmo modo que os oradores, pregadores, escritores: todos os
homens que sempre vêem no final de uma longa série, sempre “nascidos tarde”, no melhor
sentido da palavra, e, como foi dito, por essência perdulários). Suposto que essa observação é
correta, posso passar à suposição de que consciência em geral se desenvolveu sob a
pressão da necessidade de comunicação que previamente entre homem e homem (entre
mandante e obediente em particular) ela era necessária, era útil, e também que somente em
proporção ao grau dessa utilidade ela se desenvolveu. Consciência é propriamente apenas
uma rede de ligação entre homem e homem apenas como tal ela teve de se desenvolver: o
homem ermitão e animal de rapina não teria precisado dela. Que nossas ações, pensamentos,
sentimentos, e mesmo movimentos, nos cheguem à consciência – pelo menos uma parte deles
-, é a conseqüência de um terrível, de um longo “é preciso”, reinando sobre o homem: ele
precisava, como o animal mais ameaçado, de auxílio, de proteção, ele precisava de seu
semelhante, ele tinha de exprimir sua indigência, de saber tornar-se inteligível -, e, para tudo
isso, ele necessitava, em primeiro lugar, de “consciência”, portanto, de “saber” ele mesmo o
que lhe falta, de “saber” como se sente, de “saber” o que pensa. Pois, para dizê-lo mais uma
vez: o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o
pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte
mais superficial, a parte pior: - pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras,
isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência. Dito
concisamente, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da
razão, mas somente do tomar-consciência-de-si da razão) vão de mãos dadas. Acrescente-se
que não é somente a linguagem que serve de ponte entre homem e homem, mas também o
olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência de nossas impressões dos sentidos em nós
mesmos, a força de poder fixá-las e como que colocá-las fora de nós, aumentaram na mesma
medida em que cresceu a urgência de transmiti-las a outros por signos. O homem inventor de
signos é ao mesmo tempo o homem cada vez mais agudamente consciente de si mesmo;
somente como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si mesmo ele o faz
ainda, ele o faz cada vez mais. Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz
parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da
natureza da comunidade e de rebanho, que também, como se segue disso, somente em
referência à utilidade de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que,
conseqüentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si mesmo tão
individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre trará a consciência,
precisamente, apenas o não-individual em si, seu “corte transversal” – que nosso pensamento
146
mesmo, pelo caráter da consciência pelo “gênio da espécie” que nele comanda -, é
constantemente como que majorizado e retraduzido para a perspectiva do rebanho. Nossas
ações são, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas,
ilimitadamente individuais, sem vida nenhuma; mas, tão logo nós as traduzimos na
consciência, elas o parecem mais sê-lo... Isto é propriamente o fenomenalismo e
perspectivismo, assim como eu o entendo: a natureza da consciência animal acarreta que o
mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos,
um mundo generalizado, vulgarizado que tudo que se torna consciente justamente com isso
se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com todo
tornar-consciente, está associada uma grande e radical corrupção, falsificação,
superficialização e generalização. Por último, a consciência que cresce é um perigo; e quem
vive entre os mais conscientes dos europeus sabe até mesmo que ela é uma doença. Não é,
como se adivinha, a oposição de sujeito e objeto que me importa aqui: deixo essa distinção
aos teóricos do conhecimento, que ficarão presos nas malhas da gramática (a metafísica do
povo). E nem é bem a oposição entre “coisa em si” e fenômeno: pois estamos longe de
“conhecer” o bastante para sequer podermos separar assim. Não temos, justamente, nenhum
orgão para o conhecer, para a “verdade”; “sabemos” (ou acreditamos ou imaginamos)
precisamente o tanto que, no interesse do rebanho humano, da espécie, pode ser útil: e até
mesmo o que aqui é denominado “utilidade” é, por último, simplesmente uma crença, uma
imaginação e, talvez precisamente aquela estupidez a mais fatal de todas, de que um dia
sucumbiremos.
Para além de bem e mal, cap. 1, aforismo 2, trad. Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE,
Obras Incompletas, Vol. II, p. 49:
“Como poderia algo nascer de seu oposto? Por exemplo, a verdade, do erro? Ou a vontade de
verdade, da vontade de engano? Ou a ação não-egoísta, do egoísmo? Ou a pura, solar
contemplação do sábio, da concupiscência? Tal gênese é impossível: quem sonha com ela é
um parvo, e mesmo pior que isso: as coisas de supremo valor têm de ter uma outra origem,
uma origem própria desse mundo perecível, aliciante, enganoso, mesquinho, desse
emaranhado de ilusão e apetite é impossível deduzi-las! Pelo contrário, é no seio do ser, no
imperecível, no Deus escondido, na ‘coisa em si’ – é ali que tem de estar seu fundamento, ou
em nenhuma outra parte!” Esse modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual se
reconhecem os metafísicos de todos os tempos; esse modo de estimativas de valor está por
trás de todas as suas proceduras lógicas; a partir dessa sua “crença”, eles se atarefam em
torno de seu “saber”, em torno de algo que, no final, é solenemente batizado como “a
verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições dos valores. (...)
Pode-se, com efeito, duvidar, em primeiro lugar, se em geral oposições e, em segundo
lugar, se aquelas vulgares estimativas e oposições de valor sobre as quais os metafísicos
imprimiram seu selo não seriam talvez apenas estimativas de fachada, apenas perspectivas
provisórias, talvez, além do mais, a partir de um ângulo, talvez de baixo para cima,
perspectivas de rã, por assim dizer, para emprestar uma expressão que é corrente entre os
pintores? Com todo o valor que possa caber ao verdadeiro, ao verídico, ao não-egoísta: seria
possível que tivesse de ser atribuído à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e ao
apetite um valor mais alto e mais fundamental para toda vida. Seria até mesmo possível,
ainda, que o que constitui o valor daquelas boas e veneradas coisas consistisse precisamente
em estarem, da maneira mais capciosa, aparentadas, vinculadas, enredadas com aquelas
coisas ruins, aparentemente opostas, e talvez mesmo em lhes serem iguais em essência.
Talvez! – Mas quem tem vontade de se afligir com tão perigosos talvez! Para isso já é preciso
esperar pela chegada de uma nova espécie de filósofos, que tenham algum outro gosto e
147
propensão, inverso aos do que houve até agora. filósofos do perigoso talvez em todos os
sentidos. – E, dito com toda a seriedade: eu vejo tais novos filósofos surgindo.
Além do bem e do mal, cap. 1, aforismo 23, trad. de Paulo C. de Souza, p. 27, 28:
Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não
ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da
vontade de poder, tal como faço isso é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na
medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui
silenciado. A força dos preconceitos morais penetrou profundamente no mundo mais
espiritual, aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos – de maneira inevitavelmente
nociva, inibidora, ofuscante, deturpadora. Uma autêntica fisiopsicologia tem de lutar com
resistências inconscientes no coração do investigador , tem “o coração” contra si: uma
teoria do condicionamento mútuo dos impulsos “bons” e “maus” desperta, como uma mais
sutil imoralidade, aversão e desgosto numa consciência ainda forte e animada e mais ainda
uma teoria na qual os impulsos bons derivem dos maus. Supondo, porém, que alguém tome
os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de domínio, como afetos que condicionam a vida,
como algo que tem de estar presente, por princípio e de modo essencial, na economia global
da vida, e em conseqüência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada esse alguém
sofrerá com tal orientação do seu julgamento como quem sofre de enjôo do mar. No entanto,
mesmo essa hipótese está longe de ser a mais dolorosa e mais estranha nesse desmesurado,
quase inexplorado reino de conhecimentos perigosos; e existe, de fato, uma centena de boas
razões para que dele mantenha distância todo aquele que - puder! Por outro lado, se o seu
navio foi desviado até esses confins, muito bem: Cerrem os dentes! Olhos abertos! Mão firme
no leme! navegamos diretamente sobre a moral e além dela, sufocamos, esmagamos talvez
nosso próprio resto de moralidade, ao ousar fazer a viagem até mas que importa nós!
Jamais um mundo tão profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros
audazes: e o psicólogo, que desse modo “traz um sacrifício” – que não é o sacrifizio
dell’intelletto, pelo contrário! -, poderá ao menos reivindicar, em troca, que a psicologia seja
novamente reconhecida como rainha das ciências, para cujo serviço e preparação existem as
demais ciências. Pois a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas
fundamentais.
OBS: De acordo com o tradutor, Paulo C. de Souza, a expressão Sacrifizio
dell’intelletto tornou-se corrente na Europa, após o Concílio de 1870, que conferiu a
infalibilidade papal, designando a sujeição do conhecimento científico ao dogma
eclesiástico (nota 60, p.209).
148
Além do bem e do mal, aforismo 191, trad. de Paulo C. de Souza, p. 79, 80:
O velho problema teológico de “fé” e “saber” ou, mais claramente, de instinto e razão -,
isto é, indagar se no que toca à valoração das coisas o instinto merece autoridade maior que a
racionalidade, a qual deseja que se avalie e se aja de acordo com motivos, conforme um “por
que?”, isto é, segundo a finalidade e a utilidade ainda é aquele velho problema moral que
surgiu primeiramente na pessoa de Sócrates, e que muito antes do cristianismo dividia os
espíritos. Sócrates mesmo, com o gosto próprio do seu talento o de um dialético superior -,
havia se colocado inicialmente ao lado da razão; e na verdade que fez ele toda a sua vida,
senão rir da canhestra incapacidade de seus nobres atenienses, que eram homens do instinto,
como todos os homens nobres, e jamais podiam informar satisfatoriamente sobre os motivos
do seu agir? Mas enfim, em silêncio e às ocultas, ele riu também de si mesmo: encontrou em
si, perante sua consciência mais refinada e seu foro interior, a mesma dificuldade e
incapacidade. Para que, perguntou a si mesmo, abandonar por isso os instintos? É preciso
lhes fazer justiça, a eles e também à razão é preciso acompanhar os instintos, mas
convencer a razão a ajudá-los com bons motivos. Tal foi a genuína falsidade desse grande
irônico rico em mistérios; ele levou sua consciência a se contentar com uma espécie de auto-
engodo: no fundo, divisou o que de irracional no juízo moral. Platão, mais inocente
nessas coisas, e despido da astúcia plebéia, quis, com toda a energia a maior energia que
um filósofo já empregara! -, provar a si mesmo que razão e instinto se dirigem naturalmente a
uma meta única, ao bem, a “Deus”; e desde Platão todos os teólogos e filósofos seguem a
mesma trilha – isto é, em questões morais o instinto, ou “a fé”, como dizem os cristãos, ou “o
rebanho”, como digo eu, triunfou aagora. Uma exceção poderia ser Descartes, o pai do
racionalismo (e portanto avô da Revolução), que reconheceu autoridade apenas à razão: mas
a razão não passa de instrumento, e Descartes era superficial.
Além do bem e do mal, aforismo 295, trad. de Paulo C. de Souza, p. 177 - 179:
O gênio do coração, tal como o possui aquele grande oculto, o deus-tentador e aliciador nato
de consciências, cuja voz sabe descer ao submundo de cada alma, que o diz palavra, não
lança olhar em que não haja idéia e aceno de sedução, de cuja mestria faz parte o saber
parecer não aquilo que é, mas aquilo que para os que o seguem é uma compulsão mais a
mais proximamente o assediarem, a sempre mais íntima e radicalmente o seguirem: - o gênio
do coração, que a tudo estridente e autocomplacente faz calar e ensina a ouvir, que alisa as
almas ásperas e lhes novo anseio a saborear estender-se imóveis como espelho d’água,
para que nelas se espelhe o profundo céu -; o gênio do coração, que à mão rude e arrebatada
ensina a hesitar e a prender com maior graça, que adivinha o tesouro oculto e esquecido, a
gota de bondade e doce espiritualidade sob o espesso e opaco gelo, e é um mágico imã para
todo grão de ouro que por muito jazeu sepulto na prisão de lama e areia; o gênio do coração,
de cujo toque cada um torna mais rico, não agraciado e surpreso, não redimido e oprimido
por um bem alheio, porém mais rico de si mesmo, mais novo do que nunca, partido, por um
vento brando acariciado e sondado, mais inseguro talvez, mais grácil frágil fraco, porém
cheio de esperanças ainda sem nome, cheio de nova vontade e energia, nova relutância e
apatia... mas que faço, meus amigos? De quem lhes falo? Distraí-me a ponto de sequer lhes
dizer o seu nome? A menos que já tenham adivinhado quem é esse deus e espírito
problemático, que de tal modo deseja ser louvado. Como sucede a todo aquele que desde
criança esteve sempre a caminho e fora de casa, também a mim me sobressaltaram espíritos
raros e bem pouco inofensivos, sobretudo e quase sempre esse do qual venho falando,
ninguém menos que o deus Dioníso, esse grande ambíguo e deus-tentador, a quem certa vez,
149
como sabem, em todo sigilo e reverência ofereci meu primogênito – tendo sido o último a lhe
ofertar um sacrifício, ao que parece: pois não encontrei ninguém que compreendesse então o
que eu fazia. Nesse meio-tempo aprendi mais, e até demais, sobre a filosofia desse deus, de
boca em boca, como disse eu, o derradeiro iniciado e último discípulo do deus Dionísio: e
talvez eu pudesse enfim, caros amigos, lhes dar de provar um pouco dessa filosofia, tanto
quanto me é permitido? A meia voz, como é justo: pois ela inclui coisa nova, secreta,
estranha, singular, inquietante. Já o fato de Dionísio ser filósofo, e de também os deuses
filosofarem, portanto, parece-me uma novidade um tanto insidiosa, que justamente entre
filósofos despertaria suspeita (...) Sim, se me fosse permitido lhe aplicar, conforme o costume
humano, belos e solenes títulos de pompa e virtude, eu celebraria sua coragem de explorador
e descobridor, sua impetuosa honestidade, veracidade e amor à sabedoria. No entanto, um
deus como esse não sabe o que fazer dessas pomposas ninharias. (...) Assim disse ele uma
vez: “Eventualmente posso amar o ser humano aludindo a Ariadne, que estava presente -:
“ele é para mim um animal agradável, valente, inventivo, que não tem igual sobre a Terra, em
todo labirinto ele é capaz de se achar. Sou bom para com ele: com freqüência medito em
como fazê-lo avançar e torná-lo mais forte, mais malvado e profundo”. (...) “também mais
bonito” (...) e bons motivos para supor que algumas coisas os deuses poderiam aprender
conosco. Nós, homens, somos – mais humanos...
Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”:
aforismo 5
(Trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 22)
Com Sócrates, o paladar grego transforma-se em favor da dialética: o que acontece aí
propriamente? Acima de tudo é um gosto nobre que cai por terra. A plebe ascende com a
dialética. Antes de Sócrates, recusavam-se as maneiras dialéticas na boa sociedade: elas
valiam como más maneiras, elas eram comprometedoras. Se advertia a juventude contra elas.
Também se desconfiava de todo aquele que apresentava suas razões de um tal modo. As
coisas honestas, tal como as pessoas honestas, não servem suas razões assim com as mãos. É
indecoroso mostrar os cinco dedos. O que precisa ser inicialmente provado tem pouco valor.
Onde quer que a autoridade ainda pertença aos bons costumes, onde quer que não se
“fundamente”, mas sim ordene, o dialético aparece como uma espécie de palhaço: ri-se dele,
mas não se o leva a sério. – Sócrates foi o palhaço que se fez levar a sério: o que aconteceu aí
propriamente? –
aforismo 6
(Trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 22, 23)
se escolhe a dialética, quando não se tem mais nenhuma outra saída. Sabe-se que se
suscita desconfiança com ela, que ela é pouco convincente. Nada é mais facilmente dissipável
do que um efeito dialético: a experiência de toda e qualquer reunião na qual se conversa, o
prova. Ela serve como saída drástica nas mãos daqueles que não possuem nenhuma outra
arma. É preciso que se tenha de estabelecer à força o seu direito: antes disto não se faz uso
150
algum dela. Por isso, os judeus eram dialéticos; Reinecke Fucks era dialético. Como?
Sócrates também o era?
aforismo 7
(Trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 109)
(...) Tem-se, quando se é dialético, um impiedoso instrumento na mão; pode-se, com ele,
fazer-se tirano; põe-se a nu aqueles que se vence. O dialético deixa para seu adversário o
ônus de provar que não é um idiota: enfurece, e ao mesmo tempo desampara. O dialético
despotencia o intelecto de seu adversário. - Como? É a dialética apenas uma forma de
vingança, em Sócrates?
aforismo 8
(Trad. de Marco Antonio Casa Nova, p. 23, 24)
(...) Por um lado, Sócrates foi o pioneiro na descoberta de um novo tipo de Agon: para o
círculo nobre de Atenas, ele foi o seu primeiro mestre de armas. Ele fascinou, à medida que
tocou no impulso agonístico dos helenos e que trouxe uma variante para o cerne do embate
entre os homens jovens e os rapazinhos. Sócrates também foi um grande erótico
.
aforismo 9
(Trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 110)
Mas Sócrates adivinhou mais ainda. Viu o que estava por trás de seus atenienses nobres;
compreendeu que seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era mais um caso excepcional.
A mesma espécie de degenerescência se preparava por toda parte em silêncio: a velha Atenas
caminhava para o fim. E Sócrates entendeu que todo o mundo necessitava dele de seu
remédio, sua cura, seu artifício pessoal de autoconservação... Por toda parte os instintos em
anarquia; por toda parte se estava a cinco passos do excesso: o monstrum in animo era o
perigo geral. “Os impulsos querem fazer-se tiranos; temos de inventar um contratirano que
seja mais forte...” Quando aquele fisionomista revelara a Sócrates quem ele era, um antro de
maus apetites, o grande ironista deixou escapar uma palavra, que a chave para entendê-lo.
“Isso é verdade”, disse ele, “mas eu me tornei senhor sobre todos eles.” Como se tornou
Sócrates senhor sobre si? - Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, aquele que mais
saltava aos olhos, daquilo que naquele tempo começava a se tornar a indigência geral: que
ninguém mais era senhor sobre si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele
fascinava por ser esse caso extremo sua amedrontadora feiúra enunciava esse caso para
cada olho: ele fascinava ainda mais fortemente, como é cil entender, como resposta, como
solução, como aparência de cura para esse caso. -
aforismo 10
(Trad. de Marco Antonio Casa Nova, p.25)
Se se tem necessidade de fazer da razão um tirano, como Sócrates o fez, então o risco de que
outra coisa faça-se tirano não deve ser irrisório. A racionalidade foi outrora desvendada
enquanto Salvadora; nem Sócrates, nem seus “doentes” estavam livres para serem racionais.
Ser racional foi de rigueur, foi o seu último remédio. O fanatismo, com o qual toda a reflexão
grega se lança para a racionalidade, trai uma situação desesperadora. Estava-se em risco,
151
se tinha uma escolha: ou perecer, ou ser absurdamente racional... O moralismo dos filósofos
gregos desde Platão está condicionado patologicamente; do mesmo modo que sua avaliação
da dialética. A equação Razão = Virtude = Felicidade diz meramente o seguinte: é preciso
imitar Sócrates e estabelecer permanentemente, uma luz diurna contra os apetites obscuros
a luz diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, luminoso a qualquer preço: toda e
qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo...
aforismo 11
(Trad. de Rubens R. T. Filho. In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 110)
Dei a entender com o que Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador. É
necessário indicar ainda o erro que havia em sua crença na “racionalidade a todo preço”? É
um auto-engano dos filósofos e moralistas pensar que saem da décadence ao fazerem
guerra contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como remédio,
como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence eles alteram sua
expressão, não a eliminam propriamente. Sócrates foi um mal-entendido; a inteira moral-da-
melhoria,, também a cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais crua, a racionalidade a
todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos
instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença e de modo nenhum um
caminho de retorno à “virtude”, à “saúde”, à felicidade... Ter de combater os instintos eis a
fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto. –
Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”, aforismo 2, trad. de Rubens R. T. Filho. In: F.
NIETZSCHE, Obras Incompletas, p. 150, 151:
Pois, sem contar que sou um décadent, sou também o seu oposto. Minha prova disso é, entre
outras, que instintivamente, contra os estados ruins, escolhi sempre os remédios certos;
enquanto o décadent em si escolhe sempre os remédios que lhe o prejudiciais. Como
summa summarum eu era sadio; como ângulo, como especialidade, eu era décadent. Aquela
energia para isolar-me e dissociar-me absolutamente de condições habituais, a coação contra
mim, de não mais me deixar cuidar, servir, medicar – denuncia a incondicional certeza
instintiva sobre o que, naquele tempo, era necessário mais que tudo. Tomei-me em mãos,
curei a mim próprio: a condição para isso todo fisiólogo o admitirá é ser sadio no
fundamento. Um ser tipicamente mórbido não pode sarar, e menos ainda curar a si mesmo;
para alguém tipicamente sadio, ao inverso, o estar-doente pode até mesmo ser um enérgico
estimulante à vida, à mais-vida. Assim, de fato, me aparece agora aquele longo tempo de
doença: descobri a vida como que de novo, inclusive a mim próprio, saboreei todas as boas e
mesmo as pequenas coisas, como não seria fácil a outros saboreá-las - fiz de minha vontade
de saúde, de vida, minha filosofia... Pois prestem atenção a isto: os anos de minha mais baixa
vitalidade foram aqueles em que eu deixei de ser pessimista: o instinto do auto-
restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo... E como se reconhece,
no fundo, uma índole bem lograda? Um homem bem logrado faz bem a nossos sentidos: é
talhado em uma madeira que é dura, delicada e bem cheirosa ao mesmo tempo. encontra
sabor naquilo que lhe é compatível; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do
compatível é ultrapassada. Adivinha meios de cura contra danos, utiliza acasos ruins em sua
vantagem; o que não o derruba, torna-o mais forte. Ele faz instintivamente, de tudo aquilo
152
que vê, ouve, vive, uma soma: ele é um princípio seletivo, muito ele deixa de lado. Está
sempre em sua companhia, quer esteja com livros, homens ou paisagens: honra ao escolher,
ao abandonar, ao confiar. Reage a todos os estímulos lentamente, com aquela lentidão que
uma longa cautela e um orgulho proposital aprimoraram nele - examina o estímulo que se
aproxima dele, está longe de ir ao seu encontro. Não acredita nem em “infelicidade” nem em
“culpa”: fica quite consigo, com outros, sabe esquecer é forte o bastante para que tudo
tenha de lhe sair da melhor maneira. - Pois bem, eu sou o reverso de um décadent: pois acabo
de me descrever.
Ecce Homo,“Assim falou Zaratustra”, aforismo1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 82-84:
Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o pensamento do
eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de
agosto de 1881: foi lançado em uma página com o subescrito: “seis mil pés acima do homem
e do tempo”. Naquele dia eu caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me
junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então
veio-me esse pensamento. Retrocedendo alguns meses a partir desse dia, encontro, como
signo premonitório, uma súbita e profundamente decisiva mudança em meu gosto, sobretudo
na música. Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; - certamente um
renascimento da arte de ouvir era uma precondição para ele. Em uma pequena estação de
águas próxima a Vicenza, Recoara, onde passei a primavera de 1881, descobri, juntamente
com o meu maestro e amigo Peter Gast, também ele um “renascido”, que a fênix Música por
nós passava em vôo, com plumagem mais leve e luminosa do que jamais exibira. Se porém
contarmos para a frente a partir daquele dia, até o parto súbito, acontecido nas mais
inverossímeis circunstâncias, em fevereiro de 1883 a parte final, a mesma da qual citei
algumas frases no prefácio, foi concluída exatamente na hora sagrada em que Richard
Wagner morria em Veneza -, resultam então dezoito meses de gravidez. Esse número exato
de dezoito meses poderia sugerir, entre budistas pelo menos, que no fundo sou uma fêmea de
elefante. Ao período intermediário pertence a gaya scienza, que contém mil indícios da
proximidade de algo incomparável; afinal, ela dá inclusive o começo do Zaratustra, na
penúltima parte do quarto livro o pensamento básico do Zaratustra. De igual modo
pertence a esse intervalo o Hino à vida (para coro misto e orquestra), cuja partitura foi
publicada dois anos por E. W. Fritzsch, de Leipzig: sintoma talvez significativo do meu
estado nesse ano, em que o pathos afirmativo par excellence, por mim denominado pathos
trágico, me possuía no grau máximo. (...) Minha saúde não era a melhor; o inverno frio e
chuvoso ao extremo; um pequeno albergue, situado à beira do mar, de modo que à noite a
maré alta tornava o sono impossível, oferecia em quase tudo o oposto do que seria desejável.
Apesar disso, e como que para demonstrar minha tese de que tudo decisivo acontece apesar
de tudo, foi nesse inverno e nesse desfavorecimento das circunstâncias que meu Zaratustra
nasceu. Pela manhã eu subia na direção sul, no magnífico caminho para Zoagli, até o alto,
passando por pinheiros e avistando vasta porção de mar; à tarde, quando a saúde o permitia,
contornava toda a baía de Santa Margherita a Porto Fino. (...) Nesses dois caminhos
ocorreu-me todo o primeiro Zaratustra, sobretudo o próprio Zaratustra como tipo: mais
corretamente, ele caiu sobre mim...
153
Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, aforismo 6, trad. de Paulo C. de Souza, p. 88 - 90:
Esta obra ocupa lugar à parte. Deixemos os poetas de lado: talvez nunca se tenha feito nada a
partir de uma tal profusão de energia. Meu conceito de “dionisíaco” tornou-se ali ato
supremo; por ele medido, todo o restante fazer humano aparece como pobre e limitado. Que
um Goethe, um Shakespeare não saberiam respirar sequer um instante nessa paixão e nessa
altura tremendas, que Dante, comparado a Zaratustra, seja apenas um crente, e não alguém
que por primeiro cria a verdade, um espírito regedor do mundo, um destino que os poetas
do Veda sejam sacerdotes, e indignos mesmo de desatar as sandálias de um Zaratustra, tudo
isso é o mínimo, e não dá noção da distância, da solidão anil em que essa obra vive.
Zaratustra tem eterno direito a dizer: “eu traço círculos e fronteiras sagradas em torno de
mim; sempre mais raros são os que comigo sobem montanhas sempre mais altas – eu
construo um maciço de montanhas sempre mais sagradas”. Somem-se o espírito e a bondade
de todas as grandes almas em uma: todas juntas não seriam capazes de produzir uma fala de
Zaratustra. Tremenda é a escala em que ele se move; ele viu mais longe, quis mais longe e
pôde mais longe que qualquer homem. Ele contradiz com cada palavra, esse mais afirmativo
dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade. As mais baixas e as mais
elevadas forças da natureza humana, o mais doce, mais leve e mais terrível flui de uma
nascente com certeza perene. Até então não se sabe o que é altura, o que é profundeza, sabe-
se menos ainda o que é verdade. Não há, nessa anunciação da verdade, um instante que
tivesse sido antecipado, por um dos grandes pressentido. Não sabedoria, pesquisa da
alma ou arte do discurso antes do Zaratustra: o mais imediato, o mais cotidiano fala de coisas
inauditas ali. A sentença fremente de paixão; a eloqüência tornada música; raios
arremessados adiante, a futuros ainda insuspeitos. A mais poderosa energia para o símbolo
até aqui existente é pobre brincadeira, frente ao retorno da linguagem à natureza mesma da
imagem. – E como desce Zaratustra, e a cada um diz a palavra mais bondosa! Como toca com
mãos delicadas até mesmo seus antagonistas, os sacerdotes, e sofre com eles por eles! - Ali o
homem é superado a cada momento, o conceito de “super-homem” fez-se ali realidade
suprema tudo o que até aqui se chamou grande no homem situa-se a uma distância infinita,
abaixo dele. O elemento alciônico, os pés ligeiros, a onipresença de malícia e petulância, e o
que mais for típico do tipo Zaratustra, isso jamais se sonhou como essencial à grandeza.
Precisamente nessa extensão de espaço, nessa acessibilidade aos contrários, é que Zaratustra
se sente como a forma suprema de tudo o que é,e,ouvindo como ele a define, renuncia-se a
procurar seu símile.
- a alma que possui a mais longa escala e mais fundo pode descer,
a alma mais extensa, que mais longe pode correr e errar e vagar dentro de si,
a mais necessária, que com prazer se lança no acaso,
a alma que é, e mergulha no vir a ser, a que tem, e quer mergulhar no querer e desejar,
a que foge de si mesma, que a si mesma alcança nos círculos mais amplos,
a alma mais sábia, à qual fala mais docemente a tolice,
a que mais ama a si mesma, na qual todas as coisas têm sua corrente e
contracorrente, seu fluxo e
refluxo - -
Mas esta é a idéia mesma do Dionísio. Outra consideração conduz igualmente a ela. O
problema psicológico no tipo do Zaratustra consiste em como aquele que em grau inaudito
diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser o oposto de um
espírito de negação; como o espírito do portador do mais pesado destino, de uma fatalidade
de tarefa, pode no entanto ser o mais além e mais leve Zaratustra é um dançarino -: como
aquele que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou o “mais abismal
pensamento”, não encontra nisso entretanto objeção alguma ao existir, sequer ao seu eterno
retorno antes uma razão a mais para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas, “o
154
imenso ilimitado Sim e Amém”... “A todos os abismo levo a benção do meu Sim” ... Mas
esta é a idéia do Dionísio mais uma vez.
OBS: A citação é do Zaratustra, terceira parte, “Das tábuas velhas e novas”,
aforismo 19.
Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 1, trad. de Paulo C. de Souza, p. 109, 110:
Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo de
uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda colisão de consciências, de
uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu
não sou um homem, sou dinamite. E com tudo isso nada tenho de fundador de religião
religiões são assunto da plebe, eu sinto necessidade de lavar as mãos após o contato com
pessoas religiosas... Não quero “crentes”, creio ser demasiado malicioso para crer em mim
mesmo, nunca me dirijo às massas... Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem
santo: perceberão por que publico este livro antes, ele deve evitar que se cometam abusos
comigo... Eu não quero ser um santo, seria antes um bufão... Talvez eu seja um bufão... E
apesar disso, ou melhor, não apesar disso pois até o momento nada houve mais mendaz do
que os santos -, a verdade fala em mim. Mas a minha verdade é terrível: pois até agora
chamou-se à mentira verdade. tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para
um ato de suprema auto-gnose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne. Minha sina
quer que eu seja o primeiro homem decente, que eu me veja em oposição à mendacidade de
milênios... Eu fui o primeiro a descobrir a verdade, ao sentir por primeiro a mentira como
mentira ao cheirar... Meu gênio está nas narinas... Eu contradigo como nunca foi
contradito, e sou contudo o oposto de um espírito negador. Eu sou um mensageiro alegre,
como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para
elas, somente a partir de mim novamente esperanças. Com tudo isso sou necessariamente
também o homem da fatalidade. Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de
milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales
como jamais foi sonhado. A noção de política estará então completamente dissolvida em uma
guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos
ares todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre
a Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra.
Ecce Homo,“Por que sou um destino”, aforismo 4, trad. de Paulo C. de Souza, p. 111 - 113:
No fundo são duas as negações que a minha palavra imoralista encerra. Eu nego, por um
lado, um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, os bons, os benévolos,
os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio
como moral em si a moral de décadence, falando de modo mais tangível, a moral cristã.
Seria legítimo ver a segunda contestação como a mais decisiva, pois a superestimação da
bondade e da benevolência já me parece, de modo geral, conseqüência da décadence, sintoma
de fraqueza, incompatível com uma vida ascendente e afirmadora: o negar e o destruir são
condição para o afirmar. Detenho-me inicialmente na psicologia do homem bom. Para
estimar o que vale um tipo de homem, é preciso calcular o preço de sua conservação é
155
preciso conhecer as condições para a sua existência. A condição da existência dos bons é a
mentira -: expresso de outra maneira, o não-querer-ver a todo preço como a realidade é no
fundo constituída, ou seja, não de modo a sempre provocar instintos benevolentes, menos
ainda de modo a sempre admitir a interferência de mãos míopes e simplórias. Considerar as
misérias de toda espécie como objeção, como algo que é preciso abolir, é a niaiserie [tolice]
par excellence, em sentido geral uma verdadeira desgraça em suas conseqüências, uma
fatalidade de estupidez -, quase tão estúpida quanto seria a vontade de abolir o mau tempo
por compaixão aos pobres, digamos... Na grande economia do todo, os horrores da realidade
(nos afetos, nas cobiças, na vontade de poder) são incalculavelmente mais necessárias do que
aquela forma de pequena felicidade que se denomina “bondade”; é preciso mesmo ser
indulgente para a esta última conceder absolutamente um lugar, pois é condicionada pela
mendacidade de instinto. Terei grande ocasião de demonstrar as conseqüências
desmedidamente funestas, para toda a história, do otimismo, esse rebento dos homines optimi.
Zaratustra, o primeiro a compreender que o otimista é tão décadent quanto o pessimista, e
talvez mais nocivo, diz: homens bons jamais falam a verdade. Falsas rotas e portos
inseguros ensinaram-vos os bons; nas mentiras dos bons fostes nascidos e mantidos. Tudo foi
distorcido e mentido até o âmago pelos bons. Afortunadamente o mundo não se acha
construído sobre instintos tais que apenas os bondosos animais de rebanho nele achassem sua
estreita fortuna; exigir que todos se tornassem “homens bons”, animais de rebanho, de olhos
azuis, benevolentes, “almas belas” ou, como deseja o sr. Herbert Spencer, altruístas –
significaria castrar a humanidade e reduzi-la a uma mísera “chineseria”. E isto se tentou
fazer!... Exatamente isto se chamava moral!... Neste sentido denominava Zaratustra os bons
ora “os últimos homens”, ora “o começo do fim”; sobretudo percebe-os ele como a espécie
mais nociva de homem, porque impõem a sua existência tanto à custa da verdade como às
custas do futuro.
Os bons – eles não podem criar, eles são sempre o começo do fim –
- eles crucificam aquele que escreve novos valores em novas tábuas, eles sacrificam a si o futuro, eles
crucificam todo o futuro dos homens!
Os bons – foram sempre o começo do fim...
E sejam quais forem os danos que possam causar os caluniadores do mundo, o dano dos bons é o mais
danoso dos danos.
OBS: Citação: Assim falou Zaratustra, III, “Das velhas e novas tábuas”, aforismo 26.
Ecce Homo, “Por que sou um destino”, aforismo 5, trad. de Paulo C. de Souza, p. 113, 114:
Zaratustra, o primeiro psicólogo dos bons, é em conseqüência um amigo dos maus. Se
uma espécie-décadence de homem ascendeu à posição de espécie suprema, isso pode
acontecer somente à custa da espécie contrária, a espécie forte e segura da vida. Se o animal
de rebanho resplende no brilho da virtude mais pura, o homem-exceção tem de ser rebaixado
a homem mau. Se a mendacidade reivindica a todo preço a palavra “verdade” para a sua
ótica, o verdadeiramente veraz deverá ser encontrado sob os piores nomes. Zaratustra não
deixa nisso dúvidas: diz haver sido precisamente o conhecimento dos bons, dos “melhores”,
que lhe inspirou o horror ao homem: desta repulsa lhe teriam crescido as asas para voejar
para futuros longínquos” ele não esconde que o seu tipo de homem, um tipo relativamente
sobre-humano, é sobre-humano precisamente em relação aos bons, e que os bons e justos
chamariam de demônio o seu super-homem...
Vós, homens supremos, com os quais deparou o meu olhar, eis a minha dúvida quanto a vós, e a minha
secreta risada: eu adivinho que ao meu super-homem chamaríeis – demônio!
156
Tão estranhos sois ao grande, em vossa alma, que o super-homem vos seria terrível em sua bondade...
Por esta passagem, por nenhuma outra, deve-se principiar para compreender o que quer
Zaratustra: esse gênero de homem que ele concebe, concebe a realidade como ela é: ele é
forte o bastante para isso – ele não é a ela estranho, dela estranhado, ele é ela mesma, ele tem
ainda em si tudo o que dela é terrível e questionável, somente então pode o homem possuir
grandeza...
OBS: Citação: Assim falou Zaratustra, II, “Da prudência dos homens”.
O Anticristo, aforismo 32, trad. de Paulo C. de Souza, p. 38 – 40:
Sou contra, repito, a inclusão do fanático no tipo do redentor: o termo impérieux [imperioso],
empregado por Renan, anula por si o tipo. A “boa nova” é justamente que não mais
existem oposições; o reino do céu pertence às crianças; a que se exprime não é uma
conquistada ela está aí, existe desde o começo, é como que um infantilismo recuado para o
plano espiritual. O caso da puberdade retardada e não desenvolvida no organismo, como
conseqüência da degenerescência, é familiar aos fisiologistas, pelo menos. Uma tal não
se encoleriza, não repreende, não se defende: não traz “a espada” [Mateus, 10, 40] o faz
idéia de como poderia vir a separar. Não prova a si mesma, seja por milagres, seja por
recompensa e promessa, menos ainda “pela Escritura”: ela própria é, a cada momento, seu
milagre, sua recompensa, seu “reino de Deus”. Essa fé tambémo formula a si mesma – ela
vive, ela se opõe a fórmulas. Sem dúvida, o acaso do ambiente, da língua, da formação
determina um certo âmbito de conceitos: o cristianismo inicial utiliza apenas conceitos
judaico-semitas (- entre eles o comer e beber na comunhão, conceito tão tristemente abusado
pela Igreja, como tudo judaico). Mas guardemo-nos de ver nisso mais que uma linguagem de
sinais, uma semiótica, uma ocasião para metáforas. Para esse anti-realista, a precondição para
poder falar é justamente que nenhuma palavra seja tomada literalmente. Entre os hindus ele
teria feito uso dos conceitos sankhya, , entre os chineses, dos de Lao-Tsé não sentindo
diferença entre eles. Seria possível, com alguma tolerância de expressão, chamar Jesus um
“espírito livre” ele não faz caso do que é fixo: a palavra mata, tudo que é fixo mata. O
conceito, a experiência “vida”, no único modo como ele a conhece, nele se opõe a toda
espécie de palavra, fórmula, dogma, fé, lei. Ele fala apenas do que é mais íntimo: “vida”,
“verdade”, “luz” é sua palavra para o que é mais íntimo todo o resto, a realidade inteira,
toda a natureza, a própria linguagem, tem para ele apenas o valor de um signo, de uma
metáfora. Não se pode absolutamente errar nesse ponto, embora seja grande a sedução que
no preconceito cristão, isto é, eclesiástico: um tal simbolismo par excellence esfora de
toda religião, de todos os conceitos do culto, toda história, toda ciência natural, toda
experiência do mundo, todos os conhecimentos, toda política, toda psicologia, todos os livros,
toda arte seu “saber” é justamente a pura tolice quanto ao fato de que algo assim existe. A
cultura não lhe é conhecida sequer de ouvir falar, ele não precisa lutar contra ela ele não a
nega... O mesmo vale para o Estado, para toda a ordem e sociedade civil, para o trabalho, a
guerra ele jamais teve motivo para negar “o mundo”, jamais teve idéia do conceito
eclesiástico de “mundo”... Justamente o negar é algo impossível para ele. Falta igualmente
a dialética, falta a concepção de que uma fé, uma “verdade” poderia ser provada com razões
(- suas provas são “luzes” interiores, interiores sentimentos de prazer e auto-afirmações,
todas elas “provas de força”). Uma tal doutrina também não pode contradizer, ela não
compreende que haja, que possa haver outras doutrinas, não consegue imaginar um
157
julgamento contrário... Onde o encontrar, lamentará a “cegueira” com a mais profunda
simpatia – pois vê a “luz” -, mas não levantará objeção...
Fragmento póstumo n. 19 [236], verão de 1872 início de 1873, trad. de Fernando de
Moraes Barros. In: Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, Fragmentos
Póstumos, p. 86. (Traduzido do Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe, Giorgio Colli
e Mazzino Montinari, Berlim/Nova York, Walter de Gruyter, 1999, v.7, p.493):
Em rigor, o conhecer possui apenas a forma da tautologia e é vazio. Todo conhecimento por
nós promovido consiste numa identificação do não-igual, do semelhante, quer dizer, trata-se
de algo essencialmente ilógico.
Somente por esse trilho adquirimos um conceito, sendo que, depois, agimos como se o
conceito “homem” fosse algo real, quando, no entanto, ele é por nós formado mediante a
abstração de todos os traços individuais. Pressupomos que a natureza procede de acordo com
tal conceito: mas aqui, a natureza, bem como o conceito, é antropomórfica. A falta de
consideração pelo individual fornece-nos o conceito e, com isso, tem início o nosso
conhecimento: no rubricar, nas tabulações de gêneros. A essência das coisas não
corresponde, porém, a isso: é um processo de conhecimento que não se coaduna com a
essência das coisas. Muitos traços particulares podem definir uma coisa, mas não todas: a
igualação desses traços nos dá o ensejo para agrupar muitas coisas sob um só conceito. (...)
Meu novo caminho para o “sim” . Fragmento escrito entre 1884-1888. Trad. de Rubens R. T.
Filho, In: F. NIETZSCHE, Obras Incompletas, Vol. II, aforismo 1041, p. 172, 173:
– Filosofia, como até agora a entendi e vivi, é a voluntária procura também dos lados
execrados e infames da existência. Da longa experiência, que me deu uma tal andança através
do gelo e deserto, aprendi a encarar de outro modo tudo o que se filosofou até agora: - a
história escondida da filosofia, a psicologia de seus grandes nomes, veio à luz para mim.
“Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?” – isso se tornou para mim
o autêntico medidor de valor. O erro é uma covardia... cada conquista do conhecimento
decorre do ânimo, da dureza contra si, do asseio para consigo... Uma filosofia experimental,
tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo
radical; sem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negação, no não, em uma
vontade de não. Ela quer, em vez disso, atravessar até ao inverso – até a um dionisíaco dizer-
sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção -, quer o eterno curso circular: -
as mesmas coisas, a mesma lógica e ilógica do encadeamento. Supremo estado que um
filósofo pode alcançar: estar dionisiacamente diante da existência – minha fórmula para isso é
amor fati.
Disso faz parte compreender os lados até agora negados da existência, não somente como
necessários, mas como desejáveis: e não somente como desejáveis em vista dos lados a
agora afirmados (eventualmente, como seus complementos ou condições prévias), mas em
função de si próprios, como os mais poderosos, mais fecundos, mais verdadeiros, lados da
existência, nos quais sua vontade se enuncia com maior clareza.
Do mesmo modo, faz parte disso avaliar os lados unicamente afirmados da existência;
compreender de onde provém essa valoração e quão pouco ela é obrigatória para uma
158
medição de valor dionisíaca das coisas: eu extraí e compreendi o que propriamente diz sim
aqui (o instinto dos que sofrem, em primeiro lugar, o instinto do rebanho por outro lado, e
aquele terceiro, o instinto da maioria contra as exceções -).
Adivinhei, com isso, em que medida uma espécie mais forte de homem teria necessariamente
de pensar a elevação e intensificação do homem em direção a um outro lado: seres
superiores, para além de bem e mal, para além daqueles valores que não podem negar sua
origem na esfera do sofrer, do rebanho e da maioria procurei pelos esboços dessa inversa
formação de ideal na história (os conceitos “pagão”, “clássico”, “nobre”, descobertos e
dispostos de modo novo - ).
159
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“Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.”
Alberto Caeiro
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