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Quando as forças reativas assim se enxertam na atividade
genérica, não lhe interrompem a ‘linhagem’. Mesmo aí uma
projeção intervém: é a dívida, é a relação credor-devedor que é
projetada, e que muda de natureza nesta projeção. Do ponto de
vista da atividade genérica, o homem era tido por responsável
pelas suas forças reativas; as suas próprias forças reativas eram
consideradas como responsáveis perante um tribunal ativo.
Agora, as forças reativas aproveitam com o seu adestramento
para formar uma associação complexa com outras forças, essas
forças sentem-se juízes e senhores das primeiras. A associação
das forças reativas acompanha-se assim de uma transformação da
dívida: esta se torna dívida para com ‘a divindade’, para com ‘a
sociedade’ para com ‘o Estado’, para com instâncias reativas (...)
não se trata de modo algum de uma libertação da dívida, mas de
um aprofundamento da dívida. Não se trata de modo algum de
uma dor pela qual nos sentimos devedores para sempre. A dor
apenas paga os juros da dívida, a dor é interiorizada, a
responsabilidade-dívida se torna responsabilidade-culpa.
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O envenenamento das idéias promove o aprisionamento de uma vontade de
dominação, que recua contra o próprio indivíduo. Isto porque, a força que antes se
projetava para fora, agora se dirige ao homem, introduzindo, nele mesmo, a culpa. Em
outras palavras, o homem passa a ser responsável por sua própria dor porque
desenvolveu uma consciência de culpa. Para Barrenechea,
princípio nietzschiano de vontade de poder. Este primeiro não significa (pelo menos não significa em
primeiro lugar) que a vontade queira o poder ou o ‘desejo de dominar’. Enquanto interpretarmos a
vontade de poder no sentido de ‘desejo de dominar’, fazêmo-la forçosamente depender de valores
estabelecidos, os únicos capazes de determinar quem deve ser ‘reconhecido’ como o mais poderoso neste
ou naquele caso, neste ou naquele conflito. Desse modo ficamos sem conhecer a natureza da vontade de
poder como princípio plástico de todas as nossas avaliações, como princípio escondido para a criação de
novos valores não reconhecidos. A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem sequer
em tomar, mas em criar e em dar”. Para Deleuze, “o poder como vontade de poder, não é o que a
vontade quer, mas aquilo que quer na vontade (Dioniso em pessoa). A vontade de uma força obedece.
Aos dois tipos ou qualidades de forças em presença e a sua qualidade respectiva num complexo”. A
vontade de poder é também um elemento móvel, pluralista. É por vontade de poder que uma força ativa
comanda, mas é também por vontade de poder que uma força reativa obedece. Aos dois tipos ou
qualidades de forças, correspondem, respectivamente, duas faces, dois qualia da vontade de poder.
Porque a vontade de poder designa a afirmação para as forças ativas. A vontade de poder exige a
afirmação da diferença, nestas forças, a afirmação está primeiro, a negação não passa de uma
conseqüência como um acréscimo. Já nas forças reativas, pelo contrário, sua função está em opor-se
primeiro ao que elas não são, em limitar o outro: nelas a negação está primeiro, é só pela negação que elas
se revestem de uma aparente de afirmação. Afirmação e negação são, portanto, os qualia da vontade de
poder, como ativo e reativo são qualidades das forças. “Da mesma maneira que a interpretação encontra
os princípios do sentido nas forças, a avaliação encontra os princípios dos valores na vontade de poder”.
Gilles Deleuze, Nietzsche, pp.21, 22, 23.
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DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Trad. de António M. Magalhães. Rio de Janeiro: Editora Rio,
1976. pp. 211, 212.