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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Área de Concentração Metodologia de Ensino
ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NA PERSPECTIVA DE
EDUCANDOS: EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E SOCIAIS
Stella de Lourdes Garcia
SÃO CARLOS SP
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Área de Concentração Metodologia de Ensino
ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NA PERSPECTIVA DE
EDUCANDOS: EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E SOCIAIS
SÃO CARLOS SP
2006
Trab
alho apresentado ao Programa de Pós
-
Graduação em Educação, da Universidade
Federal de São Carlos, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Profª Drª Claudia Raimundo Reyes
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
G216aa
Garcia, Stella de Lourdes.
Alfabetização de adultos na perspectiva de educandos:
experiências pessoais e sociais / Stella de Lourdes Garcia. -
- São Carlos : UFSCar, 2006.
166 p.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2006.
1. Educação de adultos. 2. Alfabetização de adultos. 3.
Freire, Paulo, 1921-1997. 4. Pedagogia crítica. I. Título.
CDD: 374.012 (20
a
)
A esperança na libertação não significa já, a
libertação. É preciso lutar por ela, dentro de
condições historicamente favoráveis. Se elas não
existem, temos que pelejar esperançosamente
para criá-las. A libertação é possibilidade, não
sina, nem destino, nem fado. Nesse contexto se
percebe a importância da educação da decisão,
da ruptura, da opção, da ética, afinal (FREIRE,
2004, p.30).
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha mãe, por ter confiado que a experiência
do Mestrado me tornaria mais feliz, e me tornou. Aos meus irmãos: Paulo,
Lucia e Paulo Lopes, pelo incentivo e compreensão de meus momentos de
ausência. À pequena Ingrid, pelo amor que me ensina a ensinar. À Claudia, a
quem pacientemente respeitou minha leitura de mundo e acreditou que ela
pudesse vir a superar a ingenuidade. À CAPES, pelo financiamento concedido
e pela credibilidade depositada na realização da pesquisa. Aos meus amigos
da Graduação e da Pós-Graduação, em especial à Poliana, à Rachel e à
Rosana, pela confiança depositada em mim e pelas carinhosas sugestões e
contribuições dadas ao trabalho. À Danielle, a quem sempre pude confidenciar
minhas angústias e aflições. À Mariana, por ter acreditado na positividade do
trabalho em conjunto. Aos professores e às professoras da Graduação e da
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, pelas
reflexões suscitadas. Às prof
as
. Dr
as
. Eglê Pontes Franchi, Maria Waldenez de
Oliveira e Roseli Rodrigues de Mello, pelos momentos de conversas e pelas
valiosas contribuições dadas à pesquisa, durante os Exames de Qualificação e
de Defesa. Aos educandos que participaram da pesquisa, pelo tempo
concedido às entrevistas e pela enorme contribuição que deram à minha
formação como educadora e pessoa. Ao Marcio, pelo amor, paciência, carinho,
companheirismo e pelos risos que consegue me causar quando tudo me
parece perdido.
RESUMO
ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS NA PERSPECTIVA DE EDUCANDOS:
EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E SOCIAIS
O objetivo deste trabalho foi identificar e analisar quais experiências pessoais
e sociais se relacionam com o início da aprendizagem da leitura e da escrita,
na perspectiva de alfabetizandos adultos. Trata-se de uma investigação de
natureza qualitativa, cuja coleta de dados envolveu a realização de
entrevistas semi-estruturadas com seis educandos, que fizeram parte em
2003 do Programa de Alfabetização, Brasil Alfabetizado, implantando no
município de São Carlos-SP, no qual atuamos como educadora. Em nosso
referencial teórico apresentamos a caracterização da sociedade
informacional, algumas desigualdades configuradas em seu interior e
discutimos o sentido da alfabetização crítica na perspectiva de Paulo Freire e
de autores a ele relacionados, como Henry Giroux e Ramón Flecha. Partimos
da análise dos dados que consistiu na análise do conteúdo das entrevistas
realizadas junto aos educandos. As experiências pessoais e sociais
configuradas no interior do analfabetismo foram classificadas como
experiências antidialógicas, pois impossibilitavam o intercambio social e
limitavam os educandos na esfera pessoal. O aprendizado da leitura e da
escrita permitiu experiências positivas na esfera pessoal e social,
possibilitando a recuperação da auto-estima, da confiança do educando
adulto e a transformação de algumas das situações de opressão vivenciadas
pelos educandos, já que aprender a ler e escrever significa a apropriação de
um instrumental que permite a intervenção na realidade. Contudo,
enfatizamos a necessidade de práticas de alfabetização que considerem a
união entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, que privilegiem a
dialética entre a dimensão instrumental e a comunicativa, como etapa
importante da transformação social, que só se realiza em comunhão, em
diálogo. Os educandos entrevistados também ofereceram reflexões para
educadores, bem como para a elaboração de políticas públicas na área da
Alfabetização e da Educação de Adultos.
ABSTRACT
ADULTS ALPHABETIZATION IN THE LEARNERS PERSPECTIVE:
PERSONAL AND SOCIAL EXPERIENCES
The objective of this work was to identify and to analyze which personal and
social experiences are relating to the beginning of reading and writing
learning, in the perspective of adult learners. This is a qualitative inquiry,
whose search involved the accomplishment of interviews half-structuralized
with six learners, that they had been part in 2003 of the Program of
Alphabetization, “Brasil Alfabetizado”, implanted in the city of São Carlos -
SP, Brazil, in which we act as educator. In our theoretical referential we
present the characterization of the informational society, some inequalities
configured in its interior and we argue the direction of the critical
alphabetization in Paulo Freires’s and others authors perspective, as Henry
Giroux and Ramón Flecha. We analysed the content of the interviews, the
personal and social experiences in the interior of the illiteracy had been
classified as no dialogic experiences, therefore they disabled the social
interchange and limited learners in the personal sphere. The reading and
writing learning allowed positive experiences in the personal and social
sphere, making possible the recovery of self-confidence of adult learners and
the transformation of some of the situations of oppression lived deeply by
learners, because to learn reading and writing means the appropriation of an
instrument that allows the intervention in the reality. However, we emphasize
the necessity of an alphabetization practice that consider both “reading of the
world” and “reading of the word”, that they privilege the dialectic between the
instrumental and communicative dimension, as important stage of the social
transformation, that it is only become fullfilled in communion, in dialogue. The
learners also interviewed had offered reflections for educators, as well as for
the elaboration of public politics in the Alphabetization and Education of
Adults areas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................1
Apresentação do trabalho ...................................................................................................3
CAPÍTULO I A CONFIGURAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO E DA EDUCAÇÃO DE
ADULTOS NO CONTEXTO BRASILEIRO: elementos para a compreensão do
analfabetismo ....................................................................................................................5
1.1. Da Colônia ao Império .................................................................................................6
1.2. Da República à Década de 1930 ...............................................................................13
1.3. Da Década de 1940 ao Golpe de 1964 ..................................................................... 15
1.4. Do final do Governo Militar ao Século XXI: uma leitura das políticas públicas ......... 20
1.5. A influência do Banco Mundial na configuração da educação de adultos ................ 25
1.6. As metodologias empregadas na alfabetização de adultos ...................................... 29
CAPÍTULO II A NOVA CONFIGURAÇÃO DA SOCIEDADE: AS ANTIGAS E AS
NOVAS DESIGUALDADES .............................................................................................42
2.1. Características da sociedade da informação ............................................................ 42
2.2. Principais desigualdades da sociedade informacional .............................................. 50
2.3. Contribuições de Paulo Freire: o diálogo e a dimensão conscientizadora do processo
educativo .......................................................................................................................... 57
2.4. A alfabetização na perspectiva freireana .................................................................. 63
CAPÍTULO III PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................ 73
3.1. Procedimentos para a coleta e análise dos dados .................................................... 74
3.2. O Programa Brasil Alfabetizado: a proposta do Governo Federal ............................ 76
3.3. A proposta e implantação do Programa Brasil Alfabetizado no município de São Carlos
SP ................................................................................................................................... 77
3.4. A prática de alfabetização realizada em uma das turmas do Brasil Alfabetizado:
período de agosto a dezembro de 2003 ...........................................................................84
3.5. Caracterização dos educandos ................................................................................. 99
3.5.1. Oswaldo: “como é que o pobre vive e a escrita ajuda” ................................. 100
3.5.2. Carlos: “a gente tem que ir com interesse de aprender mesmo, pra não perder
mais tempo..............................................................................................................102
3.5.3. Vani: “eu não sabia escrever meu nome, passava muita vergonha”..............104
3.5.4. Eliza: “a gente fica chateada, na hora em que eu falo, ninguém sabe”..........105
3.5.5. Osmar: “eu já perdi a oportunidade de entrar em uma fábrica por causa de me
envergonhar e não ir” ...............................................................................................108
3.5.6. Carmem: “a pessoa que não tem estudo, parece que ninguém vê” ..............110
CAPÍTULO IV ANÁLISE DOS DADOS ........................................................................117
4.1. Experiências pessoais e sociais configuradas no interior do analfabetismo..............117
4.2. O que dizem os educandos acerca de suas experiências pessoais relacionadas ao
aprendizado da leitura e da escrita ...................................................................................125
4.3. As experiências sociais que foram possíveis a partir do aprendizado da leitura e da
escrita ...............................................................................................................................131
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................145
REFERÊNCIAS..................................................................................................................151
APÊNDICE I Roteiro das Entrevistas .........................................................................158
APÊNDICE II Entrevista ................................................................................................159
1
INTRODUÇÃO
O objetivo desta pesquisa foi verificar e analisar quais experiências
pessoais e sociais se relacionam com o início da aprendizagem da leitura e da escrita,
na perspectiva de adultos alfabetizandos. Para contemplarmos nosso objetivo,
contamos com a participação de seis educandos da suplência, junto aos quais
realizamos entrevistas semi-estruturadas e cujos dados foram analisados com base na
alfabetização crítica proposta por Paulo Freire.
De acordo com BONDÍA (2002), a experiência pode ser entendida como
aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Escolhemos a palavra
“experiência”, por ser aquilo que os adultos alfabetizandos desejaram passar, já que
aprender a ler e a escrever certamente é algo que os passa, que os acontece e que os
toca. Por estarmos junto a eles, na condição de alfabetizadora da turma, também
experienciamos. Nesse sentido o sujeito da experiência é algo:
(...) como um território de passagem, algo como uma superfície
sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios,
alguns efeitos. (...) é um ponto de chegada, um lugar a que chegam
as coisas, um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá
lugar (...) é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos
(ibidem, p. 24).
A experiência, por nos passar, nos acontecer e nos tocar, também nos
forma e nos transforma, somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua
própria transformação (ibidem, p. 25-6). Alfabetizar-se é, assim, experiência que
possibilita novas maneiras de sermos tocados e atravessados. O analfabetismo está
diretamente relacionado às experiências de desigualdades presentes em nossa
sociedade. Dessa forma, o analfabetismo também se configura em experiências, que
atravessam e tocam de alguma maneira os participantes desta pesquisa.
Partindo do enfoque freiriano, portanto da perspectiva crítica da
alfabetização, levantamos alguns elementos que podem ser fortes contribuintes para a
superação de algumas das atuais desigualdades, analisadas por nós sob três eixos:
sociais, culturais e pessoais.
Os educandos que participaram desta pesquisa foram alfabetizandos do
2
Programa do Governo Federal, Brasil Alfabetizado, implantado no ano de 2003, no
município de São Carlos, em parceira com a Universidade Federal – UFSCar – e a
Secretaria Municipal de Educação de Cultura – SMEC.
Foi como concluinte do último ano do curso de licenciatura em Pedagogia,
que nos interessamos pela participação no Programa de Alfabetização Brasil
Alfabetizado. Juntamente com outros alunos e alunas dos últimos anos dos cursos das
licenciaturas da UFSCar, bem como alfabetizadores e alfabetizadoras do Movimento
de Alfabetização de Adultos, organizado pela Secretaria Municipal de Educação e
Cultura – MOVA-São Carlos – e concluintes do magistério na modalidade Normal,
participamos do curso de formação para professores alfabetizadores de jovens e
adultos oferecido pela UFSCar e SMEC.
Com base nas informações proporcionadas pelo curso de formação, os
alfabetizadores e alfabetizadoras deveriam se dividir entre os diferentes bairros da
cidade que apresentavam elevado índice de baixa escolaridade
1
, convidando os
moradores e moradoras a participarem dos encontros de alfabetização que seriam
organizados nos próprios bairros.
Foi nessa ocasião que tivemos a oportunidade de iniciar o trabalho como
educadora e conhecer os participantes desta pesquisa. No período de Agosto a
Dezembro de 2003 iniciamos o trabalho de alfabetização, em uma sala de aula
organizada próxima ao bairro em que os educandos residiam. No início de 2004, todos
os participantes – totalizando 18 alfabetizandos – foram convidados a freqüentarem as
aulas da Educação de Jovens e Adultos – EJA – com a presença agora de uma
educadora contratada pela Rede Municipal de Ensino.
Foi com um sentimento de trabalho educativo não concluído, que optamos
pela realização desta pesquisa com os ex-participantes da sala em que atuávamos
como alfabetizadora, que enquanto ensinava, também aprendia. Instigava-nos
questões acerca do que faziam agora aquelas pessoas tão ansiosas para aprenderem
a ler e escrever? Teriam realmente aprendido? O uso da leitura e da escrita teria
possibilitado a superação de algumas das relações de desigualdades vivenciadas por
eles?
Sendo assim, nossa questão de pesquisa configurou-se da seguinte forma:
1
O índice de escolaridade da população sancarlense foi obtido por meio da realização da
pesquisa que objetivava identificar e elaborar o Mapa dos Bolsões de Pobreza da Cidade de
São Carlos encomendada pela Prefeitura Municipal ao Núcleo de Pesquisa e Documentação
“Professor José Albertino Rodrigues”, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar), sob a coordenação das Prof
as
. Dra. Maria Inês Rauter
Mancuso e Ms. Elza de Andrade Oliveira.
3
Quais experiências pessoais e sociais se relacionam com o início do
processo de aprendizagem da leitura e da escrita na perspectiva de adultos
alfabetizandos?
Para responder a essa questão contamos com o referencial concernente a
Paulo Freire e autores a ele relacionados, como Henry Giroux e Ramón Flecha.
Segundo FREIRE e MACEDO (1990), o analfabetismo não só compromete
a ordem econômica como também constitui uma profunda injustiça, uma vez que limita
a autonomia e o exercício da cidadania, chegando a ponto de comprometer o caráter
da democracia.
Partindo de um enfoque qualitativo, adotamos como procedimentos para
coleta de dados a entrevista semi-estruturada com seis adultos alfabetizandos. Em
nossa análise, realizamos a análise do conteúdo dos dados obtidos por meio das
entrevistas. A metodologia de pesquisa será abordada em maior profundidade em
outro capítulo, conforme explicitamos a seguir.
APRESENTAÇÃO DO TRABALHO
A presente dissertação foi organizada em quatro capítulos, juntamente
com as considerações finais. Na primeira parte do trabalho traçamos um histórico da
alfabetização de jovens e adultos ao longo das políticas públicas brasileiras, com o
intuito de compreender melhor como o fenômeno do analfabetismo veio se
configurando historicamente e como a questão apresenta-se na contemporaneidade.
Ainda no interior do primeiro capítulo, em um segundo momento, apresentamos uma
leitura das políticas públicas atuais e uma análise das diferentes metodologias
empregadas na alfabetização de adultos.
No segundo capítulo trazemos uma caracterização da sociedade atual que
se configura em informacional, diferenciando-se substancialmente da sociedade
industrial. Nessa caracterização, fazemos uma breve análise de algumas relações de
desigualdades, por nós classificadas sob três eixos: sociais, culturais e pessoais. Em
seguida, apresentamos alguns princípios da perspectiva freiriana de educação e de
alfabetização, por nós compreendidas como fortes ferramentas na transformação das
relações de desigualdades, ou seja, das relações de opressão presentes em nossa
sociedade.
O terceiro capítulo compõe-se de nosso percurso metodológico,
4
juntamente com os procedimentos utilizados na coleta e análise dos dados. Na
metodologia também apresentamos a caracterização da proposta do Programa Brasil
Alfabetizado do Governo Federal e sua implantação no município de São Carlos-SP, a
caracterização da turma e dos encontros de alfabetização em uma das salas de aula
do Programa e a caracterização dos alfabetizandos que fizeram parte dessa pesquisa.
É no quarto capítulo que trazemos as análises dos dados correspondentes
às experiências pessoais e sociais que se configuravam antes do aprendizado inicial
da leitura e da escrita e as experiências pessoais e sociais que foram possíveis após o
início do processo de alfabetização.
Em nossas considerações finais, apresentamos as conclusões que nos
foram permitidas chegar com a realização da pesquisa, bem como algumas reflexões
para o trabalho de alfabetização desenvolvido junto a jovens e adultos.
5
CAPÍTULO I
A CONFIGURAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO E DA EDUCAÇÃO DE
ADULTOS NO CONTEXTO BRASILEIRO: elementos para a
compreensão do analfabetismo.
Inúmeros programas que objetivaram o fim do analfabetismo foram
implantados no Brasil, sem lograrem grande sucesso. Estudos realizados como os de
PAIVA (1987 e 1990), BEISIEGEL (1974), e HADDAD e DI PIERRO (2000),
demonstram que ao longo da história da educação de jovens e adultos no Brasil, as
iniciativas do Estado tiveram como notórias a falta de oferta permanente de ensino, da
continuidade e institucionalidade das iniciativas, que parecem terem sido implantadas,
com o intuito de solucionar um problema imediato: a “erradicação” do analfabetismo.
É difícil historiar toda a trajetória de educação de jovens e adultos, pois
não se encontram registros suficientes sobre as diversas ações implantadas,
institucionalizadas ou não. Nesse sentido, tivemos que fazer uso de diferentes fontes
bibliográficas.
Embora não seja o objetivo deste trabalho apresentar de forma
sistematizada a trajetória da educação e alfabetização de jovens e adultos,
entendemos que apresentá-la minimamente poderá contribuir para melhor
compreensão de nosso trabalho e das análises que pretendemos apresentar.
Dessa forma, devido a dificuldade em se tratar a temática, optamos por
seguir os períodos tradicionais da história, dividindo o capítulo em cinco partes, sendo
que nas três primeiras traçamos o histórico das iniciativas no campo da educação e
alfabetização do Período Colonial até o Golpe de 1964 e nas duas últimas partes
trazemos uma leitura das políticas públicas atuais e um panorama das metodologias
empregadas na alfabetização de adultos.
6
1.1. DA COLÔNIA AO IMPÉRIO
Antes de iniciarmos a exposição da configuração do ensino neste período
consideramos relevante recuperar aqui o significado da descoberta do outro e das
origens do nosso sistema educativo.
TODOROV (1993) discute a descoberta da América com base na questão
do outro e afirma que para Colombo, nem mesmo a nova terra era percebida como
sendo outra, já que a descrevia com base em analogias ao paraíso. Os índios eram
vistos como elementos da natureza, por isso a descrição que deles eram feitas
estavam sempre inseridas no contexto das matas e de animais.
HANSEN (1993) assim comenta acerca da tentativa de descrição que
Caminha fez dos índios:
Assim, já está dada na Carta, de Caminha, em 1550, na referência
inicial à “berberia” da gente nua que entra pelo mar nas praias de
Porto Seguro; explicita-se no mesmo texto quando, após classificar os
seres nus da praia como “homens” e reiterá-los através das
semelhanças positivas dos “bons corpos” e dos “bons narizes”, a
escrita sofre a pressão da Letra de que é emissária e passa a oscilar
em sua certeza primeira, comparando-os a pardais no cevadouro, a
cabritos montezes, para terminar por defini-los como indefinição:
“gente bestial”. Antes, contudo, a analogia foi exercida: suposto
fossem gente, o que é genérico, tratava-se de saber de que espécie e
o que significavam como gente
(ibidem, p. 47).
Para TODOROV (ibidem), a atitude do colonizador decorre da percepção
que tem do outro: ora pensa que são seres humanos como os mesmos direitos que os
seus e por isso projeta seus próprios valores sobre os outros – caracterizando o que
chama de assimilacionismo – ora parte da diferença que se configurou, na relação
superioridade-inferioridade.
(...) recusa a existência de uma substância humana realmente outra,
que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo.
Essas duas figuras básicas da alteridade [assimilacionismo e
diferença pautada, sobretudo na questão da superioridade e
inferioridade] baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus
próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo;
na convicção de que o mundo é um
(ibidem, p.41).
HANSEN (1993) afirma que os portugueses sempre classificaram o outro
no caso o índio – segundo o tipo português, o outro era aquele que não tinha, aquele a
quem faltava algo. A questão da língua é tomada então como distintiva, já que a do
outro é ausente de sentido. O autor ainda afirma: antes mesmo que qualquer medida
prática de ocupação da terra seja tomada, a escrita já a conquista e coloniza, quando
7
classifica o vácuo de sentido pela analogia (ibidem, p. 48).
Foram sobre essas bases de compreensão do outro como uma imagem
distorcida do eu: colonizador, branco e europeu, que os índios foram entendidos como
desprovidos de cultura, língua e religião. Eram a cera virgem, pronta para nela serem
impressos os objetivos da colonização: a evangelização, segundo os ideais cristãos e
a obtenção de vassalos para a Coroa, prontos ao enriquecimento dos cofres europeus.
Foi sobre o alicerce da assimilação e da relação superioridade-
inferioridade que as relações sociais passaram a ser organizadas na América Latina.
O nosso sistema educativo tem suas origens exatamente aí, quando se dá a
descoberta do outro e com ele o desejo de torná-lo igual, aculturando-o, ou de assumi-
lo como inferior e, portanto, não podendo pertencer a um lugar que já era ocupado
pelo “Eu”.
Desde o início da colonização verificamos a preocupação da ideologia
colonizadora com a questão do ensino, não que este não tenha existido entre os
índios, mas tomamos aqui o ensino como uma imposição à cultura indígena e
disseminação da cultura européia, muito bem representada, defendida e sistematizada
pelos jesuítas.
A Companhia de Jesus foi criada durante o Concílio de Trento realizado
entre 1545-1564. Segundo MANACORDA (2000), as escolas jesuítas foram as
campeãs máximas na luta da Igreja Católica contra o protestantismo (p.202), pois
além de formarem seus próprios quadros e as classes dirigentes da sociedade,
atuaram além da Europa, assegurando que o catolicismo fosse a religião adotada nas
terras recém-descobertas.
Os religiosos pertencentes à Companhia de Jesus vieram para o Brasil já
em 1549 e exerceram uma ação missionária junto aos índios. Além do evangelho, os
jesuítas impuseram normas de comportamento, assim como ofícios necessários ao
funcionamento da economia colonial.
Embora os jesuítas fossem contra a escravidão indígena – motivo de
grande embate com os colonizadores portugueses – a concepção que tinham do outro
partia da mesma ideologia colonizadora: o índio era uma projeção invertida de si
mesmo, cabia então transformá-los em iguais (TODOROV, 1993).
Os jesuítas souberam combater a cultura indígena e impuseram a sua
leitura de mundo, que foi mais colonizadora do que cristã. Segundo DEL PRIORE
(1991), as missões jesuíticas tinham como objetivo transformar a paisagem natural e
com ela, os próprios índios.
Segundo FREIRE A. (1989), os jesuítas inauguraram o analfabetismo no
Brasil e com ele o início da ideologia da interdição do corpo, entendida pela autora
8
como:
(...)
sendo a ideologia justificadora das diferenças – criada no Brasil
na época colonial pelos jesuítas com a proibição do corpo dos
homens e das mulheres em quase todas as manifestações da
sexualidade, assim como a proibição apriorística da mulher, do índio
e do negro, com suas presenças física e política na sociedade em
formação – diferenças que marcam as hierarquias, os valores e os
costumes quando se incluem apenas aos homens brancos ou tentam
excluir mulheres, negros e índios (tentam, porque estes fazem a
história como excluídos) do processo construtor da nação brasileira
(ibidem. p. 16-17)
Os jesuítas investiram primeiramente nos adultos, mas logo passaram a
priorizar as crianças, já que como afirma o próprio Anchieta:
(...) é preciso evitar os adultos a quem maus costumes de seus pais
têm convivido em natureza, cerram os ouvidos para não ouvir a
palavra da salvação e converter-se ao verdadeiro culto de Deus
(apud. DEL PRIORE, ibidem, p. 12).
Os jesuítas trataram logo de fundar colégios garantindo a instrução das
crianças indígenas que se sentiam atraídas por inúmeros artifícios, como: crianças
órfãs portuguesas, cantos, rezas e procissões.
As crianças, “órfãos da terra”, como eram chamadas, aprendiam a língua
portuguesa nos colégios da Companhia, elas serviam como intérpretes na
catequização dos índios e em suas confissões. Os jesuítas acreditavam que as
crianças índias atraídas pela Companhia poderiam, posteriormente, difundir a religião
católica em suas famílias, engrossando ainda mais as fileiras do cristianismo, que já
havia perdido muitos fiéis para o protestantismo que crescia na Europa.
Todos os esforços dos jesuítas não foram suficientes para apagar as
marcas da cultura indígena.
Malgrado o relevante esforço dos inacianos, a cultura indígena já
havia impregnado suas crianças com uma força de crenças e valores
que as procissões, autos, capelas de flores não conseguiram apagar
(...). O índio e, sobretudo a criança índia não era um papel em
branco, pronto a ser inscrito pelos jesuítas, nele já havia marcas que
não souberam ser lidas
(DEL PRIORE, 1991, p. 24-5).
Segundo DAHER (1998, apud. GALVÃO e SOARES G., 2004), diversos
materiais escritos foram produzidos durante o período colonial pelos jesuítas,
destacando-se as gramáticas da língua tupi e os catecismos ou doutrinas. Esses
trabalhos tinham como objetivo sistematizar as normas religiosas em tupi para os
próprios missionários e facilitar a memorização pelos indígenas.
TEIXEIRA (1995) afirma que o número de línguas indígenas antes da
chegada de Cabral ao Brasil era de aproximadamente 1300, atualmente temos apenas
9
180 línguas. O primeiro registro do Tupinambá – língua pertencente à família
lingüística do Tupi-Guarani – data de 1575 e consistia em traduções de orações como
o pai-nosso, ave-maria e o credo. Obviamente, os interesses da Companhia de Jesus
não permitiam que os investimentos das missões jesuíticas fossem para a
alfabetização em língua indígena, o que resultou em sua quase extinção e na tão
desejada unidade nacional, que segundo AZEVEDO (1963, apud. FREIRE, 1989)
tinha a mesma base ideológica, lingüística, religiosa e cultural.
Nas fazendas jesuíticas – fonte econômica da empresa evangelizadora –
as escolas de bê-a-bá exerciam importante papel na conversão, pois através delas era
aprendido, sobretudo a ser cristão. Além do aprendizado de ler e escrever, os
indígenas também aprendiam o latim, o que lhes configurava certa vantagem em
relação ao colonizador.
BRUIT (1993) assim comenta acerca do uso que faziam os índios do
aprendizado proporcionado pela Companhia de Jesus em territórios espanhóis:
A vantagem dos índios residiu na sua língua, de que a maioria dos
espanhóis não tomou conhecimento, enquanto eles, mal ou bem,
aprenderam o castelhano, a ler e escrever, e alguns até o latim. Os
encomenderos alegavam que com esse aprendizado os índios ‘se
fazem bachareis’ e não queriam trabalhar e quando o faziam
reclamavam dos direitos e privilégios e usavam das leis para
infernizar a vida dos espanhóis
(ibidem, p. 29).
De acordo com FERREIRA JÚNIOR e BITTAR (1999), esses elementos de
catequese e ensino de primeiras letras foram utilizados também nos séculos XVII e
XVIII nas fazendas da Companhia, com os filhos dos escravos negros que nelas
trabalhavam. O traço distintivo da colonização, praticada pelos jesuítas e dos demais
colonizadores foi que os primeiros se dedicavam à atividade educativa junto aos seus
escravos, ou melhor, lhes ensinava os rudimentos das primeiras letras como pré-
condição para a catequização e, no caso do negro especificamente, da prática da
pedagogia do conformismo.
É interessante destacarmos que se no caso do índio, a educação
promovida pelos jesuítas objetivava a aculturação e no caso dos negros, a aceitação e
conformação de sua condição de escravo, às mulheres brancas nada era dispensado,
já que as mães, pais, preceptoras e maridos se encarregariam de ensinar o papel que
lhes cabia na sociedade: de boas esposas e mães.
Segundo ROMANELLI (1999), ao longo dos 210 anos de Companhia de
Jesus, o ensino, que inicialmente era destinado aos índios e depois aos negros, cedeu
lugar em importância aos filhos dos colonizadores, permanecendo assim mesmo após
a expulsão.
10
Nas palavras de FREIRE A. (1989):
Quando expulsos em 1759, os jesuítas nos legaram um ensino de
caráter literário, verbalista, retórico, livresco, memorístico, repetitivo
(...). Enclausurando os alunos em preceitos e preconceitos católicos,
inibiu-os de uma leitura de mundo real, tornando-os cidadãos
discriminatórios, elites capazes de reproduzir ‘cristãmente’ a
sociedade perversa dos contrastes e discrepâncias, dos que tudo
sabem e podem e dos que a tudo se submetem. Inculcaram a
ideologia do pecado e das interdições do corpo. ‘Inauguraram’ o
analfabetismo no Brasil
(p. 41).
Dessa forma, o analfabetismo no Brasil tem suas origens na educação
promovida pelos jesuítas, ou seja, a partir da existência de um sistema educativo
excludente e legitimador de expressões, valores, crenças, enfim, a cultura, que, numa
sociedade de classes, é entendida apenas como a da e para a classe dominante
(FREIRE, A. ibidem, p. 14). Nesse sentido, os jesuítas souberam garantir a cultura
européia dentre os colonos, que desejavam distinguirem-se da população indígena e
escrava, ao mesmo tempo em que excluíam a presença do índio, do negro e da
mulher da participação da então sociedade em formação.
A educação proporcionada pela Companhia de Jesus acabou tornando-se
um distintivo da classe social e almejada por aqueles que desejavam adquirir status.
De acordo com ROMANELLI (1999), a camada dominante logo percebeu que seria
através dessa educação que formariam seus representantes políticos e assim
garantiriam seus privilégios. A autora afirma que a situação social dos colonos era
medida também pelos títulos acadêmicos que possuíam. Depois de estudarem nos
colégios jesuíticos, os filhos dos colonos que não seguiam a carreira eclesiástica, iam
completar seus estudos na Europa, principalmente na Universidade de Coimbra.
A expulsão dos jesuítas foi um dos itens das Reformas Pombalinas que
objetivaram tirar Portugal e suas colônias do “atraso cultural”. No entanto, as aulas que
antes eram ministradas pelos jesuítas demoraram 13 anos para serem organizadas
em aulas régias, cujos educadores haviam sido formados pelos próprios jesuítas.
É natural que assim, os valores da Companhia perpetuassem mesmo após
a sua expulsão. FREIRE A. (ibidem), afirma que o ponto mais positivo das reformas foi
a substituição do estudo da língua portuguesa em lugar do latim, até então privilegiada
pelo currículo prescrito na Ratio studiorum.
Com a chegada da família real em 1808, houve a necessidade de uma
instrução que atendesse a criação de um aparato burocrático capaz de sustentar a
administração. Até aquele momento, toda a instrução estava organizada no curso
elementar que previa o ensino da leitura e da escrita, a partir de então, o curso
elementar foi expandido, sendo criado o ensino superior profissionalizante. No entanto,
11
a classe aristocrática tratou logo de elitizar estes cursos, pois sabia que era através
deles que se manteria junto ao poder.
Após a Independência, que não passou de uma transferência de poder
político, novos cursos jurídicos foram organizados em detrimento dos cursos de
primeiras letras. Mais um fato que comprova que as elites organizavam o ensino para
atender a seus interesses políticos, aumentando, por meio de uma cultura legitimada
por ela própria, a distância das classes populares, do índio, do negro e da mulher,
alicerçando, como bases cada vez mais sólidas a ideologia da interdição do corpo.
No que concerne à legislação, a primeira Constituição Brasileira de 1824
sob influência européia, principalmente quanto aos ideais liberais, formalizou a
instrução primária e gratuita para todos os cidadãos (Título 8, Art. 179, § XXXIII).
No entanto, a universalização do ensino não se configurava em uma
intenção verdadeira, pois como já posto, as elites perceberam que a educação lhes
permitia a distinção na sociedade como classe dominante. A legislação anunciou a
questão da educação popular apenas como expressão do liberalismo, presente em
países como Estados Unidos e os da Europa.
As escolas de “primeiras letras”, instituídas em 1827, pelo projeto de lei de
Januário da Cunha Barbosa, foram organizadas de acordo com o método
lancasteriano. A duração do curso nessas escolas era de 2 a 3 anos e os conteúdos
eram diferenciados para meninos e meninas.
Para os meninos o currículo era composto do aprendizado da leitura e da
escrita, com base nos textos da Constituição e da moral cristã, e de noções gerais de
geometria e aritmética. Para as meninas, as destrezas domésticas se encarregavam
de reduzir os conteúdos, o que demonstra que a presença das mulheres nas salas de
aula não significava uma alteração na forma como eram percebidas socialmente.
O método lancasteriano, também conhecido como ensino mútuo, contava
com a disposição de monitores que se encarregavam de tomar a lição do dia e de
manterem a ordem da turma. A presença desses monitores comprova o descaso com
a educação popular por expressa pela falta de professores para essa modalidade de
ensino, assim como o desinteresse pela profissão, pouco reconhecida
economicamente e concebida pela sociedade como sacerdócio.
O Ato Adicional de 1834 estabeleceu que as províncias se encarregariam
de organizar o ensino médio e primário, enquanto o ensino superior ficaria a cargo do
Governo Central. Essa política descentralizadora sustentou um ensino dual, uma vez
que os cursos que interessavam à elite econômica foram preservados e
apresentavam-se mais organizados, o ensino primário não recebeu nenhum apoio,
garantindo uma sociedade tal como era. Como afirma FREIRE A. (1989):
12
Não havia, portanto, necessidade de se manter um ensino elementar
para a população em geral (mais de 25% escrava), com o fim de
inculcar ideologicamente os padrões dominantes, porque a produção
e o modo de produção se faziam pela violência, pela própria
escravidão legalizada
(p.51).
No final do Império houve uma preocupação dos liberais quanto à
alfabetização de adultos, mas essas iniciativas não expressavam formas efetivas de
igualdade, uma vez que a escravidão perpetuava. É o que se pode dizer do Decreto
de 1878 de Carlos Leôncio de Carvalho, que instituía cursos noturnos para adultos
não alfabetizados, em escolas de instrução primária. Esses cursos eram
caracterizados como verdadeiras maratonas de provas e competições, que impediam
o prosseguimento dos estudos pelos participantes. Segundo esse Decreto, FREIRE A.
comenta:
O que impressiona numa análise crítica dessa legislação, dentro das
preocupações liberais, elaborada por um homem público tipicamente
liberal, é a preocupação em impor dificuldades em lugar de facilitar a
proposta que diz querer atingir a alfabetização
(ibidem, p. 96).
Os cursos noturnos para adultos eram organizados da mesma forma que o
ensino regular: não eram permitidas aulas mistas, a alfabetização enfatizava a leitura
da Constituição e da mesma maneira que o currículo das meninas, os conteúdos das
turmas compostas por mulheres privilegiavam o espaço doméstico.
Quanto aos negros, WISSENBACH (2002, apud. GALVÃO e SOARES G.
ibidem) afirma que a leitura e a escrita eram aprendidas pelos escravos em diversas
redes de socialização que estavam fora do sistema escolar. Esses negros, que se
aproximavam da leitura e da escrita eram, em sua maioria, os que trabalhavam junto
às ordens religiosas, ou então os que exerciam alguma atividade autônoma nos
centros urbanos.
Segundo ROMANELLI (1999), a escola brasileira evoluiu também em função
dos papéis que lhe reconhecia a economia (p. 55), dessa forma, nesse primeiro
período analisado, verificamos que a educação garantia uma cultura livresca para a
camada dominante, não atingindo a todos, pois não havia preocupação com a
qualificação para o trabalho, que era majoritariamente ligado à economia agrária.
Sendo assim, a questão da alfabetização das camadas populares só esteve
presente nos discursos liberais, característicos do período, uma vez que os interesses
da elite econômica estavam assegurados por um sistema de ensino que lhes fornecia
títulos e se encarregava do processo de exclusão ou da interdição do corpo do índio,
do negro e da mulher.
13
1.2. DA REPÚBLICA À DÉCADA DE 1930.
Ainda com relação aos últimos anos do período apresentado
anteriormente, Rui Barbosa, no Parecer de 1882, denunciava a situação calamitosa
que se encontrava a educação brasileira, por apresentar elevados índices de
analfabetismo. Contudo, essa denúncia não causou muita preocupação nos políticos,
que mesmo após a Proclamação da República, passaram a tratar a questão da
educação popular com descaso, indo contra os próprios ideais democráticos que tanto
proclamavam e defendiam.
A primeira Constituição Republicana de 1891 reflete esse descaso, já que
impediu o voto dos mendigos, dos não alfabetizados, dos praças
2
e dos religiosos
sujeitos a votos de obediência (Título IV, Secção I, Art. 70, § 1º, 2º, 3º e 4º, apud
FREIRE A., 1989). Essa diminuição do número de eleitores, assim como a
continuidade da negação da mulher ao seu direito de voto, esteve relacionada aos
interesses da elite agrária brasileira – oligarquia cafeeira – que intencionava perpetuar
sua posição de poder no interior da sociedade.
Esse período estudado relaciona-se ao início da modernização da
sociedade brasileira, sendo a ideologia positivista e liberalista as que sustentariam a
burguesia nascente e a consolidação da sociedade urbana.
De acordo com PAIVA (1987), foi a partir da Primeira Guerra (1914-1918)
que houve um aumento do sentimento nacionalista no país, resultando em uma
tentativa de elevar as taxas de escolarização da população. Foi esse sentimento
nacionalista que mobilizou o exército a educar seus praças:
De conformidade com a leitura dos nacionalistas do início do século,
no Brasil tínhamos dois grandes inimigos: o externo, os estrangeiros
que poderiam nos invadir contaminados pelas práticas das guerras na
Europa; e o interno, a ‘chaga nacional’, o analfabetismo (...).
Alfabetizar o jovem tinha certamente, dois objetivos: eliminar a
‘enfermidade’ educando os analfabetos para a abnegação, a
disciplina, a obediência, o patriotismo e respeito às hierarquias; e
preparar neste ‘cidadão armado’ seu espírito guerreiro
(FREIRE A.,
ibidem, p. 168).
Verificamos que as intenções do exército no tocante a alfabetização estão
diretamente associadas aos ideais positivistas, que se encarregavam também de
exaltar o papel da mulher enquanto a grande educadora de seu lar.
Foi a união dos discursos liberais e positivistas que encaminharam grande
2
Como eram chamados os soldados rasos, sem graduação ou patente.
14
parte das reformas educativas do período: Reforma de Benjamin Constant (1890),
Reforma de Epitácio Pessoa (1901), Reforma de Rivadávia Corrêa (1911) e Reforma
de Carlos Maximiniano (1915), contudo elas traziam em seu bojo o mesmo caráter
elitista que privilegiava a educação de poucos, em detrimento da educação das
camadas populares.
Conforme FREIRE A. (ibidem), em 1915 foi formalizada a primeira grande
campanha de alfabetização de adultos de âmbito nacional, a Liga Brasileira Contra o
Analfabetismo.
Desejando colocar em prática o regime adotado, a democracia deveria
criar condições para que todos dela participassem, o voto era entendido como uma
das primeiras condições para tal. A Liga traduzia bem esse pensamento, já que
intencionava extinguir os analfabetos, que em sua grande maioria eram constituídos
por negros.
Assim, a prática secular de segregação do negro que lhe impunha
inferioridade moral e genética pela cor de sua pele – e que,
evidentemente negava a inferioridade social como fator
preestabelecido pelo branco – estendeu-se ao analfabetismo com as
qualificações de ‘praga negra’, ‘trevas’ e ‘obscurantismo’ numa visível
analogia com a raça africana
(FREIRE A., ibidem, p. 193).
Diante da desconsideração das verdadeiras causas e origens do
analfabetismo, não poderíamos esperar que a alfabetização proporcionada pela
Campanha objetivasse a compreensão crítica da realidade, seus idealizadores
falavam da leitura da palavra, como se o aspecto instrumental da alfabetização fosse
capaz de atingir o desenvolvimento que pretendiam.
Embora essa Campanha tivesse resultado em um decréscimo no índice do
analfabetismo, ela foi a responsável pela disseminação de um modelo de educação
discriminatória e elitista entre os professores das camadas populares, assim como da
inferioridade do adulto não alfabetizado, que passou a ser considerado o culpado pelo
atraso da nação. Esse sentimento de culpa, depositado sobre o adulto não
alfabetizado, era resultado das condições culturais, políticas e econômicas que a
camada dominante havia criado para se manter no poder.
Na década de 1920 já se verifica uma crise da oligarquia cafeeira e com
ela o fortalecimento da burguesia urbana. Essa crescente camada social já vinha se
consolidando desde a passagem da economia de mão-de-obra escrava para a
assalariada e pelo maior investimento e importância dados ao processo de
industrialização. O fortalecimento da burguesia levou intelectuais e políticos a
refletirem mais acerca das questões relacionadas ao campo educacional. Em 1921
temos a Conferência Interestadual de Ensino Primário, realizada no Rio de Janeiro e
15
em 1924, a criação da Associação Brasileira de Educação – ABE. Embora houvesse
uma grande efervescência cultural na sociedade brasileira durante a década de 1920
3
,
no campo educacional a alfabetização e, sobretudo a dos adultos, continuou a ser
expressa nos discursos políticos, sendo pouco efetivada na prática, perpetuando os
interesses de classe, sendo que estes já não eram os da aristocracia rural, mas sim da
burguesia industrial, nas palavras de FREIRE A. (ibidem):
(...) a burguesia industrial e os ‘novos políticos’ interessavam-se pela
educação popular, mas, evidentemente, com objetivos que
resguardassem seus interesses: alfabetizar as camadas subalternas,
sobretudo o operariado, segundo suas doutrinas, podendo assim, ter
mão-de-obra qualificada e a possibilidade de desestabilizar, através
das eleições diretas e secretas o poder das oligarquias cafeeiras
(p.221).
Mesmo o otimismo pedagógico presente no pensamento escolanovista e a
crença em uma sociedade melhor, por meio da educação, não atingiram o ponto
central da educação popular, que acabou evoluindo pouco nesse período. O mesmo
pode-se dizer nos dez primeiros anos após a Revolução de 1930.
Neste período destaca-se a modernização da sociedade, com o
rompimento da velha ordem social oligárquica e a implantação do modelo capitalista.
Neste contexto, a educação das classes populares começa a surgir como
preocupação econômica, pois através dela é que seriam formados minimamente o
mercado consumidor e a mão-de-obra. Segundo ROMANELLI (1999), onde, pois, se
desenvolvem relações capitalistas, nasce a necessidade da leitura e da escrita, como
pré-requisito de uma melhor condição para a concorrência no mercado de trabalho
(p.59)
Embora a demanda pelo ensino já tenha surgido a partir de 1930, a
tradição escolar marcada pelo elitismo continua a fazer uso da ideologia da interdição
do corpo para limitar o acesso das classes populares ao ensino, a partir da distribuição
reduzida das escolas e por políticas discriminatórias.
1.3. DA DÉCADA DE 1940 AO GOLPE DE 1964.
Efetivamente, foi somente a partir da década de 1940, que o Estado
brasileiro, por meio de políticas públicas, se fez mais presente em suas
responsabilidades, quanto ao oferecimento da educação aos adultos, é o que se pode
3
Referimos-nos ao Movimento Modernista.
16
dizer do funcionamento em 1946, do Fundo Nacional do Ensino Primário – FNEP –
que destinava 25% de seus recursos para a criação de uma campanha de
alfabetização de adultos.
Contudo, a presença do Estado nesse momento relaciona-se à
manutenção de um duplo mecanismo: amenizador de tensões entre as camadas
populares urbanas e um provedor das qualificações mínimas para a força de trabalho,
tão necessárias ao modelo de nação industrializada e desenvolvida. Foi só a partir de
então, que a educação de adultos passou a ser discutida independente dos demais
problemas educacionais.
Esse período coincidiu com o final da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945) que fortaleceu os princípios democráticos e reascendeu a necessidade da
educação para o desenvolvimento, sobretudo após a criação da UNESCO, que
passou a pressionar os países no tocante ao aumento do índice de alfabetização.
Foi a partir do FNEP que nasceu a Campanha de Educação de
Adolescentes e Adultos – CEAA – que funcionou de 1947 a 1963. Essa campanha
tinha como objetivo o ‘ajustamento social’ através da formação de recursos humanos
para o desenvolvimento e industrialização do país.
Até então, o analfabetismo era visto como a causa e não conseqüência da
estrutura social, econômica e cultural do país. Naquele momento, o adulto analfabeto
era tido como improdutivo dentro do modelo de industrialização. Quanto aos aspectos
educacionais, ele era visto como psicologicamente semelhante à criança e por isto
posto a margem da sociedade. A CEAA conseguiu romper com essa visão, pois foi
fortemente influenciada por Lourenço Filho que conseguiu comprovar, com o uso da
psicologia experimental norte-americana, que o adulto era capaz de aprender.
Durante o II Congresso Nacional de Educação de Adultos, realizado no Rio
de Janeiro em 1958, a CEAA foi bastante criticada, pois não ia além do ensino de
técnicas como a de assinar o próprio nome. Esse Congresso marcou o início das
discussões acerca da própria especificidade da educação de adultos e abriu espaço
para o questionamento da metodologia.
Entre os anos de 1958 e 1964 houve uma renovação pedagógica na área
de alfabetização de adultos, principalmente devido às contribuições de Paulo Freire,
que já alertava para a necessidade de uma educação que inserisse o adulto na vida
pública do país como um ser crítico e participativo, propondo a renovação dos
métodos educativos, “substituindo o discurso pela discussão” (PAIVA, 1973, p.210).
Essa renovação pedagógica, notoriamente presente na área da educação
de jovens e adultos, deve ser analisada às luzes do contexto político do período, que
foi caracterizado por uma economia contraditória. IANNI (1971, apud. ROMANELLI,
17
1999) assinala que nesse contexto, a política econômica do país tencionava conciliar
interesses do proletariado com a intervenção do capital internacional, representado
pela burguesia nacional.
Da busca por apoio político junto às camadas populares, foram criadas
condições para o desenvolvimento de alternativas autônomas, que explicitavam os
interesses populares, bem como as condições favoráveis à sua organização,
mobilização e conscientização.
Foi nesse contexto, de reconhecimento do direito de todo cidadão de ter
acesso aos conhecimentos, unido à ação conscientizadora
4
, que a educação de
jovens e adultos passou a ser reconhecida também como instrumento de ação política,
de resgate e valorização da cultura popular.
Nesse mesmo período assinalou-se a existência de diversas iniciativas que
iam ao encontro dos interesses populares e de alguns intelectuais comprometidos com
a questão educacional do país. Assim, temos em 1958 a Campanha Nacional de
Erradicação do Analfabetismo, extinta em 1963, os Movimentos de Cultura Popular,
iniciados em Recife a partir de 1960 e a Campanha “De Pé no Chão também se
aprende” iniciada pela Prefeitura de Natal, em 1961.
Quando foi realizado, em 1963, o I Encontro Nacional de Alfabetização e
Cultura Popular foram credenciados mais de 77 movimentos de cultura popular, dos
quais 44 eram destinados à alfabetização de adultos (PAIVA, 1987, p. 246).
Segundo WEFFORT (1978), a proposta de Paulo Freire naquele momento
político:
(...) iluminava a urgência da alfabetização e da conscientização das
massas neste País em que os analfabetos constituem a metade da
população e são a maioria dos pauperizados por um sistema social
marcado pela desigualdade e pela opressão
(p. 4).
Na pedagogia de Paulo Freire, os Círculos de Cultura substituiriam a
escola autoritária. Nesta proposta, educador e educando aprenderiam por meio do
diálogo em torno de situações problemas retiradas do próprio contexto vivido.
Deteremos-nos mais acerca desse modelo de alfabetização ao fim deste capítulo,
quando apresentaremos as metodologias empregadas na alfabetização de adultos.
O método Paulo Freire, como foi chamado, já estava sendo implementado
4
Em Conscientização: teoria e prática da libertação (1980), Freire usa o termo
conscientização pela profundidade de seu significado. Nesse sentido, conscientização significa
ultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade para chegarmos a uma esfera
crítica, na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica. Dessa forma, conscientização e desvelamento da realidade são
entendidos como compromisso histórico de sujeitos que fazem e refazem o mundo.
18
em diversos Movimentos de Cultura Popular – como na experiência de Angicos
iniciada em 1963 e que alfabetizou mais de 100 pessoas em apenas 40 horas – antes
mesmo de ser adotado pelo Plano Nacional de Alfabetização, criado em Janeiro de
1964, que implementaria cerca de 300 Círculos de Cultura em diversas cidades do
país. Não obstante, todos esses movimentos a favor da educação de adultos foram
cessados pelo Golpe Militar de 1964, que objetivava a garantia dos interesses da
classe dominante, sendo que para isso, fez-se necessário reprimir as práticas
educativas que explicitavam os interesses populares, assim como impedir o aumento
qualitativo do eleitorado.
Após o Golpe de Estado as ações voltadas para a educação e
alfabetização de adultos ficou estagnada até 1966, porém, o aparelho estatal não
poderia abandonar essa modalidade de educação, pois ela era um importante canal
de controle e mediação com a sociedade. Para preencher as lacunas deixadas pelo
movimento de cultura popular foram criados o Movimento Brasileiro de Alfabetização –
MOBRAL –, em 1967 e o Ensino Supletivo, em 1971.
A partir de 1969, o MOBRAL começou a atender um duplo objetivo: livraria
o país da chaga do analfabetismo e asseguraria a estabilidade do governo, permitindo
às empresas contar com ampla força de trabalho alfabetizada (PAIVA, 1987, p.100).
Ainda segundo PAIVA (1987), o MOBRAL incentivava o esforço individual, a elevação
das aspirações dos alfabetizandos, levando até eles o conhecimento de novas
possibilidades de consumo e também a difusão do ideal de responsabilidade pessoal
pelo seu êxito ou fracasso, diminuindo assim os riscos de contestação das estruturas
sócio-econômicas e políticas.
Se compararmos a concepção de homem e de mundo subjacentes às
metodologias de alfabetização do MOBRAL e de Paulo Freire, aplicadas junto aos
Círculos de Cultura, veremos que são concepções extremamente opostas. Para a
primeira, o mundo é acabado, o objetivo da educação é o de contribuir para a
concretização de um modelo de desenvolvimento, preparando mão-de-obra para o
mercado de trabalho, indo ao encontro dos interesses da elite. Já para Paulo Freire, o
mundo é aberto e passível de transformação, a educação objetiva a conscientização e
a compreensão crítica dos condicionantes da opressão, esse modelo é baseado no
diálogo igualitário e interessa aos oprimidos que buscam a recuperação da
humanidade perdida.
Para o governo deste período, o adulto não alfabetizado era considerado
como incapaz de participar socialmente e economicamente, como fica evidenciado na
fala de Celso Kelly, o então diretor do Departamento Nacional de Educação:
19
Os marginalizados mal produzem e consomem abaixo do mínimo.
Não imaginam, não se dedicam, não estimulam, não competem, não
se aperfeiçoam. Constituem, sob todos os aspectos, a mais perigosa
parcela contra o desenvolvimento
(KELLY, apud PAIVA, 1987, p.
267).
É lamentável verificar que nos discursos e nas práticas neoliberais
concernentes à educação de adultos ainda estão presentes, os mesmos princípios, de
que os adultos não alfabetizados não consomem, não competem e não se
aperfeiçoam, tomam a questão do analfabetismo como um problema pessoal, quando
na verdade é um problema social, com origens históricas. Para FREIRE A. (ibidem) o
analfabetismo é a própria configuração da ideologia da interdição dos corpos, sofrida
pelos índios, pelos negros e pelas mulheres, ideologia esta responsável pela exclusão
das camadas populares do acesso e permanência no sistema de ensino.
Regulamentado no capítulo IV da Lei de Diretrizes e Bases / 5692 de 1971,
o Ensino Supletivo ganhava uma significativa importância: a de suprir a escolarização
regular e promover a crescente oferta de educação continuada. Com uma metodologia
pautada essencialmente no tecnicismo
5
– que enfatiza, sobretudo o planejamento
educacional, desenvolvido pela economia da educação, o controle e a avaliação dos
programas na busca da maximização da educação para o desenvolvimento. Essa
modalidade de ensino foi apresentada à sociedade como um modelo de escola do
futuro que atenderia a todos indistintamente.
Resumidamente, o sentido político da educação de jovens e adultos no
período militar era a de uma alavanca para o modelo de desenvolvimento econômico
proposto, ao mesmo tempo em que manteria a “ordem”, indispensável em um governo
coercitivo.
Vimos que nosso sistema educativo se configurou sobre as bases do
assimilacionismo e da relação superioridade-inferioridade. Desejando manterem-se
junto ao poder, as elites organizaram o ensino para atender seus interesses políticos,
o que solidificou a ideologia da interdição do corpo.
Mesmo com a passagem da aristocracia agrária para a burguesia
industrial, pouco se foi feito em favor da educação das classes populares, que ainda
passaram a ser responsabilizadas pelos elevados índices de analfabetismo.
5
Ver SAVIANI, Demerval. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 2000. –
(Coleção Polêmicas do nosso tempo; v. 5) p. 11-15.
20
1.4. DO FINAL DO GOVERNO MILITAR AO SÉCULO XXI: uma leitura das
políticas públicas.
Com o final do governo militar em 1985, a educação de jovens e adultos
passou a ser assegurada gratuitamente, gerando expectativas na população, porém, a
garantia na prática nem sempre se efetiva, como afirma HORTA (1998): uma coisa é
falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos e
justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção
efetiva (p.7).
Logo no início do primeiro governo civil pós-militar houve a substituição do
MOBRAL, já tão criticado pelo oferecimento de ensino de qualidade duvidosa, pela
Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos – Educar – que tinha como
principais funções fomentar e apoiar tecnicamente as iniciativas advindas para a
modalidade de ensino em questão.
A Constituição Federal de 1988 estabelece no Art. 208:
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de:
I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a
ele não tiveram acesso na idade própria;
§ 1º - o acesso ao ensino obrigatório é gratuito e direito público
subjetivo
(grifos nossos).
Verificamos então que a Constituição Federal assegura como direito
público subjetivo o ensino fundamental para jovens e adultos que não puderam
freqüentá-lo na idade própria, isto é dos 7 aos 14 anos de idade. É importante
observarmos que o caráter de direito público subjetivo significa uma conquista
idealizada desde a década de 1930, no Manifesto dos Pioneiros da Educação,
segundo HORTA (1998):
Tal direito diz do poder de ação que a pessoa possui de proteger ou
defender um bem considerado inalienável e ao mesmo tempo
legalmente reconhecido. Daí decorre a faculdade, por parte da
pessoa, de exigir a defesa ou proteção do mesmo direito da parte do
sujeito responsável
(ibidem, p. 8).
A extinção da Fundação Educar, nos primeiros meses do governo Collor,
significou a transferência da responsabilidade pela educação de jovens e adultos da
União para os Municípios. Segundo HADDAD e DI PIERRO (2000), esse ato foi
concernente ao início das políticas neoliberais, nas quais a estabilização monetária e o
ajuste macroeconômico condicionam a expansão do gasto público às metas do
21
equilíbrio fiscal, o que implicou na reconfiguração dos papéis do governo, das
instituições privadas e das organizações da sociedade civil, na prestação dos serviços
sociais.
Esse movimento pode ser percebido através da análise da Emenda
Constitucional nº 14 de Setembro de 1996 que modificou, entre outras disposições, o
inciso I do Art. 208 da Constituição Federal de 1988. O texto da Emenda assim se
apresenta:
Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de:
I – Ensino Fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive
sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na
idade própria (Grifos nossos).
Desaparece assim, o caráter de obrigatoriedade do ensino fundamental
para aqueles que não tiveram acesso na idade própria. Segundo HORTA, (ibidem)
pela nova redação, o Estado deve apenas assegurar a oferta gratuita desse nível de
ensino. Isto significa que a EJA perde a conotação de direito público subjetivo.
A Emenda Constitucional nº 14, ainda dispõe acerca da criação do Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério – FUNDEF – que foi regulamentado na Lei nº 9424 de Dezembro de 1996,
que assim dispõe acerca da aplicação dos recursos do Fundo:
Art. 2º - § 1º - A distribuição dos recursos, no âmbito de cada Estado
e do Distrito Federal dar-se-á, entre o Governo Estadual e os
Governos Municipais, na proporção do número de alunos
matriculados anualmente nas escolas cadastradas das respectivas
redes de ensino, considerando-se para esse fim:
I – as matrículas da 1ª a 8ª série do ensino fundamental.
Sendo assim, fica vetado o inciso referente às matrículas do ensino
fundamental no curso de educação de jovens e adultos na função supletiva.
Nesse mesmo mandato foi criado, em 1990, o Programa Nacional de
Alfabetização e Cidadania – PNAC – que teve uma existência curta, sendo
abandonado no governo seguinte, pelo então presidente Itamar Franco. Segundo
MATENCIO (1995), esse Programa marcou no Brasil as iniciativas propostas pelo Ano
Internacional de Alfabetização e trazia em seus princípios os mesmos ideais do
MOBRAL, o adulto não alfabetizado era concebido como um não cidadão por
encontrar-se nas trevas da ignorância absoluta, cabia então ao governo preparar-se,
armado pelo apoio dos mais diversos segmentos da sociedade, para o grande
combate (CHIARELLI, apud. MATENCIO, ibidem).
O novo papel assumido pelo governo no contexto sócio-econômico
22
permitiu que fossem criados três programas de formação de jovens e adultos que
trazem entre si características comuns: nenhum deles foi coordenado pelo MEC e
foram desenvolvidos em regime de parcerias. São eles: Programa de Alfabetização
Solidária – PAS – criado em 1996, atendeu 776 mil alunos, sendo que menos de um
quinto adquiriu a capacidade de ler e escrever; Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária – PRONERA – teve início em 1998 e apresentou positivos resultados
na área da alfabetização de trabalhadores rurais assentados e o Plano Nacional de
Formação do Trabalhador – PLANFOR – iniciado em 1995, teve como objetivo a
qualificação profissional da população economicamente ativa (HADDAD e DI PIERRO,
ibidem).
Ao realizarmos uma análise referente à Nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB – Lei nº 9394 de 1996, verificamos que o caráter de direito
público subjetivo é restituído aos que não tiveram acesso ao ensino fundamental na
idade própria (Art. 4º, inciso I), embora esteja ainda sem esse caráter na Emenda
Constitucional nº 14.
A seção V da referida LDB versa sobre a Educação de Jovens e Adultos,
que pelo Art. 90 ganha caráter de modalidade da Educação Básica, porém, trata-se de
apenas uma nova denominação para o ensino supletivo regulado no capítulo IV da Lei
de Diretrizes e Bases nº 5692 de 1971. Nessa perspectiva, o Art. 38 da Lei 9394/1996
estabelece: Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que
compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento
de estudos em caráter regular. Trata-se, portanto de um ensino supletivo que objetiva
ingressar ou reingressar o educando ao sistema de ensino regular.
Esse caráter de ensino supletivo fica mais evidente quando verificamos no
Art. 38, § 1º, incisos I e II que as idades mínimas para a prestação dos exames
supletivos foram reduzidas quando comparadas com a LDB 5692 de 1971 que
estipulava 18 anos para o antigo primeiro grau e 21 para o segundo. Na Nova LDB
essas idades passaram a ser de 15 e 18 anos para o ensino fundamental e médio
respectivamente. Sendo assim, é possível concluir a educação básica antes mesmo
da educação regular, fato este que explica a notoriedade de adolescentes e jovens
nas salas de aula da Educação de Jovens e Adultos – EJA.
Segundo SAVIANI (1997), o texto final da LDB de 1996 difere-se do
Substitutivo de Jorge Haje que havia sido aprovado na Comissão de Educação da
Câmara dos Deputados em 1990, mas foi rejeitado com a apresentação do Projeto de
Darcy Ribeiro, configurado depois em LDB.
Para o autor, o primeiro projeto se preocupava com as condições de
presença do educando jovem e adulto nas salas da EJA. Para garantir maior
23
participação do jovem e adulto o referido Substitutivo previa horas de estudo durante a
jornada de trabalho, oferta de trabalho em tempo parcial e redução da jornada de
trabalho de 1 ou 2 horas, sem prejuízo salarial. Porém, essas propostas não eram
concernentes à política neoliberal expressa claramente ao longo de toda LDB.
De acordo com o Art. 87 das Disposições Transitórias da LDB 9394 de
1996, foi instituída a Década da Educação com o objetivo de universalizar o ensino
fundamental, e de por fim ao analfabetismo; porém, a Constituição Federal de 1988
também havia estabelecido um prazo de 10 anos para a mesma finalidade, portanto,
quando termina um prazo, inicia-se outro.
Como salienta SAVIANI (ibidem), na Constituição Federal de 1988 os
Poderes Públicos deveriam destinar 50% de seus recursos, mas a Ementa
Constitucional nº 14 tratou de retirar a parcela correspondente à União, expressando
mais uma vez, o caráter neoliberal que ganha as políticas públicas no tocante à
redução do Estado na prestação e garantia de serviços públicos, dentre eles a
educação.
Sobre o Plano Nacional de Educação, medida presente nas Disposições
Transitórias da LDB de 1996, verificamos que ele é concernente às mesmas propostas
presentes na LDB. Além de submeter a oferta da EJA às parcerias como a iniciativa
privada e de incentivar o trabalho voluntário, as doações de locais de funcionamento,
os programas de formação a distância, atribuir prioridade para cursos em nível
fundamental, o Plano também considera que a educação de jovens e adultos deve ser
fundamentada por uma concepção ampla de alfabetização, que não se reduz apenas
a ensinar a ler e escrever, mas que visa a inserção desses educandos no mercado de
trabalho.
Dessa forma, os enunciados da LDB e as metas estabelecidas no Plano
Nacional de Educação não atendem às necessidades dos jovens e dos adultos que
não tiveram acesso à educação na idade própria ou que tiveram de deixar de estudar.
Como já afirmamos, a partir da LDB 9394 de 1996 a Educação de Jovens
e Adultos passou a ser uma modalidade da educação básica nas etapas do ensino
fundamental e médio. Com isso fez-se necessário estabelecer as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos, que resultou no Parecer
nº 11 de 2000.
O referido Parecer enfatiza a função reparadora da EJA para com aqueles
que foram excluídos do sistema educativo.
A leitura do Parecer leva-nos a crer que a EJA pode tornar-se um
poderoso instrumento de equalização social. Com isso acredita-se que o acesso ao
conhecimento pode, por si só, garantir a igualdade social:
24
(...) dentro de seus limites, a educação escolar possibilita um espaço
democrático de conhecimento e de postura tendente a assinalar um
projeto de sociedade menos desigual. Questionar por si só, a virtude
igualitária da educação escolar não é desconhecer o seu potencial.
Ela pode auxiliar na eliminação das discriminações e, nesta medida,
abrir espaço para outras modalidades mais amplas de liberdade. A
universalização dos ensinos fundamental e médio libera porque o
acesso aos conhecimentos científicos virtualiza uma conquista da
racionalidade sobre poderes assentados no medo e na ignorância e
possibilita o exercício do pensamento sob o influxo de uma ação
sistemática. Ela é também uma via de reconhecimento de si, da auto-
estima e do outro como igual. De outro lado, a universalização do
ensino fundamental, até por sua história, abre caminho para que mais
cidadãos possam se apropriar de conhecimentos avançados tão
necessários para a consolidação de pessoas mais solidárias e de
países mais autônomos e democráticos (Parecer n.º 11/2000,
grifos nossos).
Ao nos atentarmos para a o excerto acima, encontraremos indícios que os
objetivos da Educação de Jovens e Adultos continuam sendo coerentes com o de
“libertar as classes populares das chagas da ignorância”, como tivemos a
oportunidade de verificar ao longo de nossa contextualização histórica. A educação
introduziria aspectos da racionalização, com vistas a eliminar os debates e reflexões
acerca da configuração da sociedade e da compreensão das histórias de lutas dos
educandos, nesse sentido, a educação parece servir mais à adaptação do que a
transformação.
Parece-nos assim, que a EJA seria um importante canal de divulgação dos
saberes dominantes, objetivando a homogeneização a partir do discurso da igualdade
social, do assimilacionismo e do outro como igual.
Como já exposto, o Parecer atribui à EJA uma dimensão eqüitativa
principalmente quando afirma que os desfavorecidos frente ao acesso e permanência
na escola devem receber proporcionalmente maiores oportunidades que os outros, se
é desigual para atingir a igualdade.
A questão da igualdade é tomada como eixo norteador de inúmeras
políticas educacionais, porém, nelas não aparece a exposição das relações
responsáveis pelo abismo que separam as pessoas.
Ainda sobre a LDB 9394 de 1996, o Governo Federal assume a posição de
articulador e coordenador de políticas e programas, enquanto a oferta sistemática das
ações de alfabetização e pós-alfabetização fica a cargo dos municípios, conforme
estabelece o Art. 11, inciso V da LDB. Desta forma, alguns municípios organizam seus
próprios Programas de Alfabetização de Adultos paralelos à EJA e ao ensino regular.
Um exemplo desses programas é o Movimento de Alfabetização – MOVA, implantado
em diversos municípios.
25
O MOVA foi criado por Paulo Freire durante o período em que ocupou o
cargo de Secretário Municipal de Educação no município de São Paulo (1989-1991),
no mandato da então prefeita Luiza Erundina. No município de São Carlos-SP o
programa iniciou a alfabetização de jovens e adultos em Junho de 2002 e encontra-se
articulado a EJA e a outros programas como a Inclusão Digital e o Brasil Alfabetizado.
O Programa Brasil Alfabetizado é a mais recente campanha de
alfabetização implantada pelo Governo Federal. Formalizado desde 2003, o Programa
já atendeu 1,92 milhão de jovens e adultos com pouca ou nenhuma escolaridade
formal. Por se tratar do tema de nosso trabalho, apresentaremos detalhadamente a
proposta desta campanha de alfabetização durante a exposição do capítulo III.
No interior da contextualização das políticas públicas atuais para a
Educação de Adultos, consideramos interessante traçar uma análise da influência
exercida pelo Banco Mundial na implantação dessas políticas, que será apresentada a
seguir.
1.5. A influência do Banco Mundial na Configuração da Educação de
Adultos.
FONSECA (1998) analisa as atuações do Banco Mundial em setores
sociais de países em desenvolvimento, principalmente a partir de 1970, que foi quando
o Banco deixou de financiar projetos na área da infra-estrutura econômica. Nesta
ocasião, ele passou a atuar politicamente em setores sociais como principal agência
de assistência técnica e importante referência para a pesquisa educativa.
Ao traçar um histórico das transformações na política de atuação do Fundo
Monetário Internacional – FMI – e o Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento – BIRD ou Banco Mundial – FONSECA afirma que a partir de 1940
os recursos financeiros eram empregados na reconstrução de países europeus,
quando a tarefa se deu por encerrada, os recursos passaram a financiar o
desenvolvimento de países do chamado terceiro mundo. Acreditava-se que o
crescimento de um país não dependia unicamente de fatores internos, mas sim da
integração ao sistema global de desenvolvimento.
Nos anos compreendidos entre 1960 e 1970 verificou-se que o
crescimento de um país era condição necessária, mas não suficiente para a redução
da pobreza, o Banco passou a atuar então na esfera social como estratégia política. A
partir da década de 1970 a questão da pobreza verificada em inúmeros países
26
dependia menos do crescimento do país e mais do aumento da produtividade dos
pobres, de acordo com FONSECA (ibidem):
Segundo a nova visão, a responsabilidade deveria ser transferida do
âmbito do Estado para os próprios indivíduos, isto é, a diminuição da
situação de pobreza dependeria da capacidade dos pobres em
aumentar a sua própria produtividade
(p. 04).
Essa posição adotada pelo Banco Mundial pode ser melhor sentida no
Brasil a partir dos anos de 1980, com as estratégias privatizantes, que descolaram a
responsabilidade das esferas públicas para as privadas.
O que mais nos chama a atenção nas análises das políticas do Banco
Mundial para o setor educativo, refere-se uma ênfase depositada no ensino
fundamental de crianças em idade escolar, privilegiando os programas de baixo custo.
Por outro lado, o desenvolvimento da educação formal, nos níveis secundário e
superior, passa a ser planejado de maneira seletiva e prudente, levando-se em conta a
capacidade de absorção de mão-de-obra limitada do setor moderno e as demandas
por administradores e técnicos dos setores públicos e privados (BIRD, 1980, apud.
FONSECA, 1998).
Segundo TORRES (1998), a ênfase dada ao ensino fundamental foi
reforçada em virtude da Conferência Mundial de Educação para Todos, que definiu a
educação básica como prioridade para a década de 1990. A educação básica é
defendida pelo Banco, pois ela refere-se ao conhecimento, às habilidades e às
atitudes essenciais para funcionar de maneira efetiva na sociedade e se dá no
equipamento escolar durante um período de oito anos (TORRES, ibidem, p.132).
Essas orientações continuaram presentes ao longo da década de 1990 e
estão claramente expressas em nossas políticas educacionais quando verificamos a
ênfase na universalização do ensino fundamental e um descaso para com o ensino
médio e superior, em uma política declaradamente seletiva.
Verifica-se também que um investimento de importância crucial vem sendo
dado à educação das mulheres, isso porque compreende-se que a melhoria das
condições de vida está relacionada à baixos índices de crescimento demográfico. A
situação social, econômica e cultural das mulheres é um fator determinante das taxas
de fecundidade.
Ainda na década de 1990 verifica-se um acentuado apelo à
descentralização, à autonomia das instituições de ensino e ao atendimento das
condições locais dos indivíduos.
27
A estratégia de descentralização proposta pelo BIRD teria duas
conseqüências fundamentais. A primeira seria a participação da
comunidade na condução do processo escolar garantindo, portanto, a
sua autonomia; a segunda seria a diversificação do ensino de forma a
adequá-lo às peculiaridades locais. A análise dessa proposta deve
ultrapassar o nível da retórica de participação da comunidade na
escola é uma das formas de estimular o custo compartilhado do
ensino, isto é, fazer que a comunidade aceite dividir as despesas
escolares. Vista deste ângulo, a descentralização contribui,
preferencialmente, para a política de recuperação de custos e para a
redução do papel do Estado na oferta dos serviços educacionais. A
estratégia de diversificação dos padrões de ensino pode levar a uma
interpretação ambígua. De um lado, tende-se a compreendê-la como
uma face do multiculturalismo, na acepção democrática de
atendimento à diversidade cultural e à autonomia local; de outro,
como estratégia determinística para modelar a aspiração dos
indivíduos às condições locais e, portanto, para conter a demanda
profissional por setores de trabalho mais modernos, segundo a
política econômica que o BIRD fomenta há mais de vinte anos
(FONSECA, ibidem, p. 13-14).
Ao realizar uma análise dos documentos setoriais do Banco Mundial para a
educação durante a década de 1990, KRUPPA (2001) afirma que ainda que sejam
elogiados certos programas de educação à distância – como os da Fundação Roberto
Marinho – e que o Banco se diga comprometido com os acordos traçados na
Conferência Mundial de Educação para Todos, não há nos documentos estudados
qualquer ênfase para a questão da Educação de Jovens e Adultos na América Latina;
a educação informal, nem mesmo aparece nos documentos estudados.
Percebemos ao longo da história, que a questão da alfabetização de
adultos veio assumindo diferentes intenções.
A ideologia da interdição do corpo veio tomando diferentes formas, desde
o total impedimento de acesso ao sistema de ensino até a abertura a ele. Porém, essa
abertura continua sendo limitada, pois não concilia educação e trabalho, além de
continuar legitimando uma única expressão cultural, a da classe dominante.
Por esse motivo afirmamos que a ideologia da interdição do corpo ainda
permanece, mesmo com a existência de inúmeras iniciativas na área da alfabetização
e educação de adultos.
Muitas das iniciativas apontadas anteriormente, restringem-se à satisfação
de funções sociais que não são aquelas desejadas pelos educandos. Inúmeras
campanhas de alfabetização como temos visto ao longo de nossa contextualização
histórica, vinculam-se à idéia de desenvolvimento econômico se distanciando do ideal
pretendido pela Educação de Adultos, que é o de instrumento de libertação e
emancipação, em sintonia com os reais objetivos dos participantes.
Dentro dessa perspectiva, de libertação e emancipação, destacamos a
experiência do Centro de Recursos de Educação de Adultos – CREA – no centro de
28
educação de La Verneda de San Martí, um bairro de trabalhadores de Barcelona,
Espanha. A educação promovida pelo Centro está configurada sobre bases não
escolarizantes, os participantes freqüentam as aulas nos horários que acham mais
adequados e decidem juntos, como e o que desejam aprender.
Nesse sentido, FLECHA (1990) afirma:
La educación funcional no tiene por qué limitarse a los fines
productivos o selectivos sino que puede incluir el conjunto de
necesidades de la persona. Incluso ese mismo tipo de EA [Educação
de Adultos] puede servir para el redescubrimiento de otros roles que
ayuden a su más global realización
(p.95).
Isso porque os participantes da Educação de Adultos são muito mais que
trabalhadores, são pais, cônjuges, filhos, amigos e cidadãos. Dessa forma, a
Educação de Adultos se descobre cada vez mais relacionada com a satisfação
pessoal.
Por otra parte, la orientación hacia la satisfacción de todas las
necesidades educativas de las personas no tiene por qué ser
contradictoria com el análisis de que entre las personas adultas, al
incorporarse al proceso educativo, tengan um peso decisivo los roles
sociales prioritarios
(ibidem).
A Educação de Adultos pode ser entendida como uma situação geradora
ou um contexto gerador que constrói novos significados e amplia os horizontes de
sentido da população adulta. Segundo BELTRAN LLAVADOR & BELTRAN
LLAVADOR (1996) os adultos que passam pelas instituições de Educação de Adultos
podem encontrar a ocasião de reconhecer a privação cultural que sofrem e nela um
objeto de análise e de transformação pessoal e social, tomam a palavra e constroem
uma história crítica de suas próprias vidas.
Sendo assim, a Educação de Adultos deve considerar o domínio dos
conhecimentos que vão ao encontro do desenvolvimento social do educando,
concebendo a pessoa adulta livre para continuar ou abandonar sua escolarização,
nesse caso, a motivação é imprescindível para a presença dos sujeitos nos encontros,
ela só existe se há correlação com seus interesses e com um melhor desenvolvimento
de seus laços sociais.
Além disso, o currículo também tem seu marco referencial na vida social
do educando adulto, estando em sintonia com as necessidades que os sujeitos
desenvolvem em seu cotidiano e aproveitando as experiências e conhecimentos
construídos ao longo de suas vidas, uma vez que esses conhecimentos podem ser
potencializadores dos que agora são construídos na Educação de Adultos.
Segundo CARRIER (1987, apud. FLECHA, 1990), os adultos querem estar
29
envolvidos na natureza e no método de suas experiências educativas. Como
estudantes com experiência, muitos adultos sentem que sabem como melhor podem
aprender.
O adulto valoriza e aprende o que está relacionado com sua experiência
pessoal e com suas relações sociais – este princípio deve ser o orientador da
Educação de Adultos. Nesse sentido, não basta que o educando esteja convencido de
que precisa dominar as habilidades de leitura e escrita, necessita comprovar dia-a-dia
que as aprende e que pode aumentar a atuação social com elas, realizando-se
humanamente.
Como cada educando possui uma trajetória de vida singular, na qual
conhecimentos vieram sendo construídos, é mais adequado adotar a individualização
do ritmo de aprendizagem. Os sujeitos educativos são heterogêneos, por isso a
necessidade de adaptar o currículo à diversidade, por exemplo, a questão da
alfabetização exige que se considere a especificidade das diferentes formas de uso da
leitura e da escrita que os alfabetizandos desejam desenvolver.
Outro aspecto a ser considerado refere-se ao horário dos estudos que
deverá ser organizado em função da disponibilidade dos alunos, nesse sentido a
escola passa a ser um local que atende os adultos a qualquer momento do dia. A
atividade educativa só se desenvolverá quando o educando adulto sentir que suas
demais atividades, como família e trabalho, não ficam comprometidas.
Sendo assim, verificamos que a Educação de Adultos no Brasil necessita
inverter a lógica escolarizante e assistencialista que vem assumindo, passando a
compreender o participante das salas de alfabetização e de educação de adultos
como “outro eu”, respeitando seus objetivos e interesses.
Após termos apresentado um panorama histórico da educação de jovens e
adultos no Brasil, bem como uma análise das principais políticas públicas atuais
direcionadas a essa modalidade de ensino, consideramos interessante nos determos
acerca do histórico das metodologias empregadas na alfabetização de adultos, bem
como nos pressupostos teóricos subjacentes a elas.
1.6. AS METODOLOGIAS EMPREGADAS NA ALFABETIZAÇÃO DE
ADULTOS.
Antes de iniciarmos nossa exposição acerca das metodologias
empregadas na alfabetização de jovens e adultos, nos debruçaremos inicialmente na
30
distinção de três ideologias, que segundo GIROUX (1993), caracterizam as
abordagens de alfabetização que são por ele consideradas veículos de reprodução
cultural.
A ideologia instrumental está ligada à cultura do positivismo que privilegia
a predição, a eficiência e o controle técnico. No interior desta concepção as relações
sociais são compreendidas como passíveis de leis, como no mundo físico, no mesmo
sentido, a leitura e a escrita ficam isentas das discussões em torno de questões como
cultura, poder e política.
O autor ainda afirma que essa tradição apresenta duas noções diferentes
relacionadas à leitura e à escrita, a primeira está ligada à abordagem acadêmica e a
segunda à abordagem instrumental. Embora diferentes essas abordagens encontram-
se diretamente relacionadas.
A primeira fala das necessidades e interesses de estudantes da
classe dominante. A leitura, nessa visão, é definida através de uma
ênfase no domínio de certas formas de conhecimento. Alinhados com
aqueles que argumentariam que a leitura é um processo de
compreensão, este grupo reduz a noção de compreensão à
aprendizagem de conteúdo julgando apropriado aos cidadãos bem
educados. O que é considerado conhecimento adequado, nessa
tradição refere-se aos clássicos e aos ‘grandes livros’ da civilização
ocidental.
(...) a segunda move-se de uma ênfase na reprodução de um corpo
de conhecimento para uma ênfase no ensino de processos
rudimentares de leitura, isto é, habilidades de vocabulário,
identificação de palavras, habilidades de estudo etc. A segunda
noção é dirigida principalmente aos estudantes da classe
trabalhadora, cujo ‘capital cultural’ é considerado menos compatível
com o conhecimento e valores da classe dominante
(GIROUX,
ibidem, p. 65).
Na primeira perspectiva, reconhece-se como cultura as expressões de um
único grupo, enquanto que na segunda, a destinada à classe trabalhadora é
alienadora, pois ignora as experiências vividas, objetivando uma alfabetização
funcional reduzida aos interesses do mercado de trabalho, disposta a formar cidadãos
mais produtivos e adaptados. Dessa forma, sob o apelo da mobilidade social e
acumulação de capital, ficam camufladas as questões de cultura, poder e política que
envolvem esse tipo de alfabetização.
Outra abordagem de alfabetização, correspondente à ideologia
interacionista, recupera as dimensões subjetivas e humanas do conhecimento.
Seguindo influências de Dewey e Piaget a aprendizagem é compreendida como
resultado da interação entre o sujeito e o mundo, sendo privilegiadas as formas de
construção do significado pelos sujeitos. Essa ideologia concebe a escola como a
principal promotora da vida democrática. Conforme GIROUX (1993), a ideologia
31
interacionista caracteriza a abordagem romântica da alfabetização. Tal abordagem
considera importantes os debates em sala de aula, porém esses não passam de
exercícios para o aumento das habilidades de argumentação e sensibilidade
interpessoal, já que discussões acerca das vivências dos estudantes, luta de classes e
discriminação não são abordados, desconsiderando-se então os conflitos sociais. Os
professores que operam no interior dessa abordagem não compreendem porque
alguns estudantes não obtêm sucesso ou se mostram alheios a certas discussões.
A ideologia da reprodução é representada por diferentes vertentes, que de
maneira geral analisam a pedagogia focalizando determinantes sociais, econômicos e
políticos cujos interesses associam-se aos da acumulação de capital e da reprodução
da força de trabalho. Outro foco é depositado na seleção de bens culturais que
reproduzem a dominação social e cultural.
Comparando as três ideologias, GIROUX (ibidem) afirma:
Onde a ideologia instrumental e a interacionista vêem a relação entre
o indivíduo e a sociedade em termos altamente conservadores ou
não problemáticos, a ideologia da reprodução considera essa relação
como baseada na dominação e no conflito
(p.77).
As abordagens reprodutivistas analisam a escola e a sua dependência
com as estruturas sociais, denunciam como o sistema educativo, em suas práticas
cotidianas, reproduzem valores e bens culturais que vão ao encontro dos interesses
dominantes e, consequentemente, desvalorizam os discursos, os saberes e as
culturas dos demais grupos presentes na sociedade.
De acordo com MACEDO (1990), essas abordagens de alfabetização
apresentadas ignoram o papel da linguagem como força de maior importância na
construção das subjetividades humanas. Isto é, ignoram o modo pelo qual a linguagem
pode confirmar ou rejeitar as histórias e as experiências de vida das pessoas que a
empregam (ibidem, p. 97).
As denúncias expostas pelas abordagens reprodutivistas ofereceram
subsídios para a elaboração de uma alfabetização crítica, em termos do que nos
propôs Paulo Freire, como teremos oportunidade de apresentar.
Após a exposição dessas três ideologias, retomamos o objetivo deste
tópico que é o de apresentar as metodologias empregadas na alfabetização de
adultos, que, como veremos, guardam as mesmas características das abordagens
acima descritas, uma vez que elas ignoram a questão da linguagem entrelaçada com
o poder, e tida como um meio na qual a existência humana ganha sentido.
Iniciamos essa análise afirmando que ainda se fazem insuficientes os
estudos acerca do histórico das metodologias da alfabetização de adultos, isso devido
32
à diversidade de iniciativas nesse setor. Porém, trazemos um panorama geral das
principais tendências metodológicas delineadas em contextos históricos específicos, o
que de certa forma fará com que se apresentem bem delineadas. No entanto, não
podemos desconsiderar que nas práticas de alfabetização muitas destas tendências
se fundem, o que faz com que uma única prática alfabetizadora revele diferentes
tendências metodológicas.
Segundo VAN DER POEL e VAN DER POEL (1996), as práticas de
alfabetização no Brasil têm se alterado, o que fez com que passássemos de uma visão
de alfabetização como prática “neutra” defendida, sobretudo pelo movimento
escolanovista para uma visão política da alfabetização, na qual Paulo Freire é seu
maior representante. Essa visão foi interrompida, posteriormente, pela entrada dos
resultados das pesquisas de Emília Ferreiro e, mais recentemente, verificamos a
presença de práticas surgidas a partir das reflexões da Filosofia da Práxis, cujos
representantes são os autores da corrente histórico-cultural da Escola Soviética.
Os autores afirmam que as cartilhas tradicionais tiveram sua origem com o
Movimento da Escola Nova. Nessas cartilhas o método de alfabetização estava
claramente exposto, cabendo ao alfabetizador utilizá-lo.
Até então, a alfabetização se iniciava ritualmente pela apresentação das
letras do alfabeto, sua memorização e em seguida a recombinação dessas em famílias
silábicas. A ênfase estava concentrada na memorização das letras e sons sem a
preocupação com o significado, o que resultava em leituras e escritas ineficientes.
O manual de leitura e escrita intitulado “Carta do ABC”, fazia uso dos
métodos sintéticos e era criticada desde fins do século XIX, mas foi amplamente
utilizada até meados do século XX.
Como assinala RIZZO (1989), os métodos sintéticos priorizam a
combinação dos elementos isolados da língua. Sendo assim, o processo de
alfabetização parte dos elementos constitutivos da palavra: letras, sons e sílabas, até
chegar a enunciados mais complexos.
A maioria das experiências alfabetizadoras significativas se dava fora dos
espaços escolares, como é o caso dos folhetos de Cordel que teve grande destaque
ente 1930 e 1940, em Pernambuco.
As narrativas presentes nos folhetos de Cordel eram lidas diversas vezes
em praças e mercados populares, onde os ouvintes podiam facilmente estabelecer
relações entre o que memorizavam e o que encontravam como representação do
sistema da escrita.
As cartilhas: “Cartilha do Povo” de Lourenço Filho e “Cartilha de Sodré” de
Benedita Stahl Sodré, cujas primeiras edições datam de 1928 e 1940 respectivamente,
33
foram responsáveis, em grande parte das escolas brasileiras, pela substituição no
processo de alfabetização da priorização do abecedário pelas sílabas. Destacamos o
fato da “Cartilha de Sodré” ter ultrapassado a tiragem de 6 milhões de exemplares em
suas 273 edições.
Vimos em nosso panorama histórico que a Campanha de Educação de
Adolescentes e Adultos – CEAA – de 1947 contribuiu para o rompimento da
concepção do adulto analfabeto como uma criança grande incapaz de administrar com
eficiência sua própria vida. A aposta na aprendizagem do adulto foi fortemente
incentivada por Lourenço Filho, resultando na elaboração do “Primeiro Guia de
Leitura”, cujo método era o silábico.
Neste guia, as lições partiam de palavras-chaves selecionadas e
organizadas segundo suas características fonéticas que serviam para a apresentação
das famílias silábicas que, posteriormente, eram memorizadas e reorganizadas em
novas palavras. Os pequenos textos presentes neste guia se remetiam a orientações
sobre a saúde e mensagens de moral e civismo (RIBEIRO, 1997).
A “Cartilha Moderna” de Yolanda Betim Paes Leme publicada em 1948, foi
responsável pelo gradual abandono dos métodos sintéticos para o método analítico-
sintético. De acordo com RIZZO (1989), os métodos analíticos partem das unidades
lingüísticas maiores de onde se destacam os elementos significativos e as partes
menores que compõem as palavras. A partir dos elementos menores são
reorganizadas novas unidades de significado em um processo que faz uso da análise
e da síntese, por isso são chamados de métodos analítico-sintéticos.
Foram com os suportes didáticos influenciados pelas concepções do
escolanovismo e da psicologia experimental que se ensinavam a ler e escrever, porém
de uma forma ainda mecânica e a-crítica, pois embora já estivessem sendo usados os
métodos analítico-sintéticos, os enunciados, de onde o trabalho da alfabetização
partia, eram mensagens de moral e civismo, que pouco se relacionavam com a
realidade da população atendida:
Daí, temos uma alfabetização que tem a pretensão de ser objetiva,
neutra, científica, centrada principalmente, na leitura e escrita, ora das
sílabas, ora das palavras como objeto a ser captado individualmente
pelo aluno. Seu método analítico-sintético fundamenta-se no princípio
geral da metodologia científica: Síntese sem análise é ciência falsa e
análise sem síntese, ciência incompleta
(MIRANDA SANTOS,
1943 apud. VAN DER POEL, ibidem).
Vimos também que a CEAA foi duramente criticada pela inadequação do
método e pelas deficiências administrativas durante a realização do II Congresso
Nacional de Educação de Adultos, no qual Paulo Freire já anunciava críticas à
34
concepção bancária de educação.
A partir de 1960 iniciaram-se as primeiras experiências de alfabetização de
adultos segundo a proposta freiriana, porém, queremos ressaltar aqui, que essa
proposta constitui muito mais do que um método de alfabetização, envolve mesmo
todo um sistema de educação já que apresenta uma concepção de mundo, de homem
ressaltando os fins políticos do ato educativo, cujo objetivo é a libertação.
Se nos atentarmos para a metodologia da alfabetização presente na
proposta freiriana, veremos que em sua forma assemelha-se ao método analítico-
sintético da palavração, já utilizado pela corrente escolanovista. A grande contribuição
trazida por Freire é o uso das palavras-geradoras que eram retiradas do próprio
contexto existencial dos alfabetizandos.
Segundo FREIRE (1971), seu método era dialógico e eclético, pois
articulava os métodos modernos, que visavam o significado daquilo que se lia, com
métodos que podiam ser sintéticos ou analíticos-sintéticos, desde que com tendências
que enfatizassem o desenvolvimento do educando.
De acordo com JANUZZI (1979), Paulo Freire empregava os processos de
análise e síntese durante o processo de alfabetização, juntamente com a
problematização da situação existencial em que vivia o alfabetizando, dessa forma, a
problematização, análise e síntese faziam parte do processo pedagógico.
Sem dúvida esses elementos alteravam qualitativamente a metodologia de
alfabetização que deixou de ser o simples aprendizado de técnicas de ler e escrever e
passou a ser também o aprendizado de dizer a palavra em seu verdadeiro sentido, isto
é, como um direito de se expressar e expressar o mundo, de criar, de recriar, de
decidir e de optar (FREIRE, 1978, p. 70).
Outro fator que diferenciava o método de alfabetização de Freire dos
modelos até então empregados, diz respeito à relação educador e educando, já que
no diálogo, os conhecimentos passavam a ser compartilhados. Superando então, as
tendências centradas no aluno, características do Movimento Escolanovista.
É no diálogo, na horizontalidade da relação educador-educando que a
síntese se realiza, pois se parte do conhecimento do educando, de suas percepções
da realidade para se atingir um pensar crítico que relaciona a causalidade dos
acontecimentos com a totalidade que a condiciona. Nesse sentido, parte-se do aqui do
educando para se chegar ao do educador, sendo que o do educador também se
configura em outro aqui que será tomado como um novo ponto de partida (FREIRE,
1993, apud. PELANDRÉ, 2005).
Descreveremos de maneira sucinta como Freire elaborou seu método de
alfabetização. Porém, como já afirmamos anteriormente, Paulo Freire não o chama de
35
método, pois há sim uma concepção filosófica, epistemológica, dentro da qual existe
um método (FREIRE, ibidem, p. 61). Interessa-nos saber que não havia a priorização
de um método, mas a condição de que fosse aplicada uma pedagogia progressista. O
que importava era saber se o educador tinha uma cultura dialógica e aberta,
respeitosa com o povo, no fundo, cada educador é um método (ibidem, p. 68).
Antes de iniciarem-se os encontros, que foram chamados de Círculos de
Cultura, era realizada uma captação da linguagem do povo, uma vez que é impossível
que se dê o diálogo sem essa linguagem comum. Junto a essa linguagem iam sendo
reveladas as diferentes visões de mundo expressas por elas, em seguida tinha-se a
seleção de palavras ricas de sentido, tomando-se o cuidado em se considerar a
riqueza fonêmica e a dificuldade fonética. Essas palavras são chamadas por FREIRE
(1980) de geradoras, pois elas davam origem a outras palavras.
(...) a melhor palavra é aquela que reúne em si a porcentagem mais
alta de critérios sintáticos (possibilidade e riqueza fonética complexa,
possibilidade de manipulação de conjuntos de signos, de sílabas
etc.), semânticos (maior ou menor intensidade de relação entre a
palavra e o ser que a designa), poder de conscientização que a
palavra tem potencialmente, ou conjunto de reações socioculturais
que a palavra gera na pessoa ou no grupo que a utiliza
(ibidem, p.
43).
Posteriormente, as palavras geradoras eram codificadas, ou seja,
organizadas em forma de desenhos, fotografias ou slides que seriam apresentados ao
grupo de alfabetizandos para a descodificação.
A descodificação se iniciava com a problematização, que ia sendo
realizada através de uma série de questionamentos lançados pelo educador, na qual o
educando passava a expressar suas formas de compreensão da realidade e a
confrontá-las com as expressões também apresentadas por seus colegas, penetrando
assim na realidade de forma mais crítica, chegando à elaboração da síntese.
Quando o tema era esgotado, passava-se para o trabalho com a palavra
geradora, que era apresentada sem a descodificação e separada em sílabas dando
início à visualização das famílias silábicas. Em seguida, no que FREIRE (1980)
chamou de fichas de descoberta, os alfabetizandos descobriam o mecanismo de
formação de novas palavras.
Freire e sua equipe ainda pensaram em um conteúdo inicial a ser
trabalhado antes mesmo do processo de alfabetização, trata-se do conteúdo
antropológico de cultura. Tal conceito poderia auxiliar o alfabetizando a se descobrir
produto e produtor de cultura.
36
Descobrindo-se assim, autor do mundo e criador de cultura,
descobrindo que toda criação humana é cultura e que ele, como
intelectual, é criador; que a estatueta de barro cozido feita por um
artesão é cultura como o mesmo título que a obra de um grande
escritor, o alfabetizando começará a operação de mudança de suas
atitudes interiores
(IDOC International, 1970, apud. FREIRE,
1980).
A proposta de alfabetização de Paulo Freire – problematização, análise e
síntese – que se concretiza no diálogo, é coerente com sua concepção de homem
histórico, e por isso capaz de transformação, assim como sua concepção de mundo,
que pela ação do homem pode se configurar em realidade desumanizante ou
humanizante.
Como vimos em nossa contextualização histórica, o Movimento de Cultura
Popular que atuava sob influência das propostas educativas de Paulo Freire foi
cessado em 1964 pelo Golpe Militar.
Em 1967 foi instituído o MOBRAL que embora tivesse proposto um método
de alfabetização semelhante ao de Paulo Freire, diferia substancialmente dele.
JANUZZI (1979) afirma que o MOBRAL define o seu método como
eclético, baseado na decomposição das palavras geradoras, sendo que seus
princípios metodológicos fundamentais eram a funcionalidade e a aceleração. Nesta
perspectiva, o alfabetizador deveria partir do universo vocabular do educando, não
para iniciar com uma linguagem que fosse comum, mas para ensinar ao educando um
novo repertório de palavras.
Dessa forma, as palavras geradoras não eram retiradas do universo
existencial do educando, eram previamente selecionadas por uma equipe e discutidas
em grupos de alfabetização distribuídos em todo o Brasil. Embora o MOBRAL
afirmasse adotar o método analítico-sintético, partia do pressuposto de que existem
significados adequados para as palavras, por isso não há necessidade de discussão, o
que o caracteriza o ensino como antidialógico: mostra uma realidade de antemão
aceita como a única desejável (JANUZZI, ibidem, p. 62-3).
O material de alfabetização, que na perspectiva freiriana era
confeccionado pelos próprios alfabetizadores com a ajuda da comunidade, na
proposta do MOBRAL passou a ser preparado por uma equipe central. O material
didático que o alfabetizando recebia, assim, como o manual do alfabetizador,
prescreviam todo o ato pedagógico que se limitava a decodificação da palavra
geradora e não na problematização, análise e síntese da realidade vivenciada pelos
sujeitos.
Coerente com o objetivo do Modelo Brasileiro de Desenvolvimento, o
MOBRAL pretendia ensinar a leitura e a escrita da palavra, desenvolvendo habilidades
37
que permitissem a apreensão de informação e a adaptação. Segundo o referencial de
análise de GIROUX (1993), essa forma de conceber o processo de alfabetização é
concernente à ideologia instrumental, que prioriza os rudimentos mínimos da leitura e
da escrita destinada à classe trabalhadora.
Concomitante ao MOBRAL, alguns movimentos de alfabetização que
seguiam as orientações de Freire continuaram sua atuação na clandestinidade.
Tratava-se de experiências vinculadas aos movimentos populares, comunidades
religiosas, associações e oposições sindicais.
Com a abertura política iniciada em 1980, essas iniciativas se
transformaram em importantes canais de trocas de experiências e reflexões, indicando
assim, novos caminhos para a necessidade de continuação e sedimentação da
alfabetização, assim como o cuidado da inserção de conteúdos de igual importância,
como o ensino da matemática. Essas iniciativas também sofreram transformações
pela incorporação de novas idéias e experiências de campos de estudo, como os da
psicologia.
FREITAS (1994, apud. VAN DER POEL, 1996) afirma que foi a partir de
1960 que começaram a ser introduzidas no campo educacional brasileiro a teoria
piagetiana sem oposição por parte da proposta pedagógica oficial do Estado que era a
pedagogia tecnicista, uma vez que ambas se fundamentavam na ideologia liberal que
sustentava o caráter técnico-neutro da educação.
A psicogenética vê a aprendizagem a partir de quem aprende, nessa
perspectiva o ser humano produz seu conhecimento segundo suas próprias ações
sobre os objetos que o cerca.
Sem dúvida, a psicogenética revolucionou os métodos tradicionais de
ensino da língua antes pensados em função do código e que desconsideravam a
aprendizagem iniciada muito antes do ensino sistematizado, característico do sistema
escolar.
FERREIRO e TEBEROSKY (1986) pesquisaram os caminhos que uma
criança percorre para aprender a leitura e a escrita, revelando o que chamaram de
Psicogênese da Língua Escrita, na qual a criança passa por quatro níveis de evolução
conceitual: nível pré-silábico, nível silábico, nível silábico-alfabético e nível alfabético.
FERREIRO (1987) ao realizar pesquisas com adultos, verificou que como
as crianças, eles também passam por etapas sucessivas para chegarem à base
alfabética.
A aquisição da linguagem escrita passou a ser entendida, pelos
professores alfabetizadores, como uma “construção do conhecimento” cujo aprendiz –
criança ou adulto – percorrerá sozinho os níveis de evolução, desde que entre em
38
contado com os variados materiais escritos que serão disponibilizados pelo
alfabetizador, este último terá que controlar seus impulsos permitindo que o aprendiz
descubra sozinho as nuances da leitura e da escrita.
Segundo SOARES (2003), a necessidade de nomear práticas de leitura e
escrita que vão além das habilidades básicas de ler e escrever surgiu em diferentes
sociedades e em diferentes contextos por volta da segunda metade da década de
1980.
Assim, enquanto países desenvolvidos como França e Estados Unidos
adotam os termos illettrisme e literacy/illiteracy para se referirem à problemática de
que embora as pessoas fossem alfabetizadas não apresentassem as habilidades
sociais de leitura e escrita, no Brasil, as discussões sobre o letramento se mesclaram
às da alfabetização – que ainda não é uma questão solucionada – o que fez com que
os dois diferentes processos, embora diretamente relacionados se fundissem, levando
a perda da especificidade da alfabetização.
Vimos agora a pouco que antes da introdução dos resultados das
pesquisas de Emília Ferreiro, o ensino da língua materna era caracterizado pela
excessiva especificidade do sistema fonológico.
O que parece ter acontecido, ao longo das duas últimas décadas, é
que em lugar de se fugir a essa excessiva especificidade apagou-se a
necessária especificidade do processo de alfabetização
(SOARES,
2003, p. 06).
Para a autora, a maior causa relacionada à perda da especificidade da
alfabetização diz respeito à mudança conceitual acerca da aprendizagem da leitura e
da escrita trazida pelos resultados das pesquisas relacionadas à Psicogênese da
Língua Escrita.
Sem dúvida as pesquisas de Ferreiro trouxeram contribuições para a
compreensão do processo de representação da língua escrita, já que o alfabetizando
deixa de ser considerado como dependente de estímulos externos para aprender o
sistema de escrita.
O termo “método de alfabetização” passou a ser entendido como
incompatível com a concepção construtivista de alfabetização. Passou-se então, a
subestimar a natureza do objeto de conhecimento, mesmo tratando-se de um sistema
de relações convencionais e arbitrárias como é o caso da escrita.
A tradução das pesquisas de Ferreiro para as práticas de alfabetização
partiu do princípio de que aprender a ler e escrever é interagir com textos escritos, de
onde decorre que a relação fonema-grafema seria adquirida de forma natural, sem
necessidade de ensino direto e explícito. No entanto, estudos já indicaram que o
39
processo de alfabetização necessita considerar essas especificidades, uma vez que o
simples contato com o material escrito, embora importante, não tem sido suficiente
para o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita. FERREIRO (2001)
também alerta para esse último aspecto, afirmando que a escrita é um objeto cultural,
resultado do esforço coletivo da humanidade (p. 43), e que embora se remeta de
maneira óbvia à linguagem, as práticas de alfabetização não devem supervalorizar as
capacidades dos aprendizes, que podem estar longe de terem descoberto sua
natureza fonética (p. 61).
SOARES (ibidem) apresenta então uma proposta baseada na integração
entre letramento e alfabetização, sem a perda da especificidade de cada um desses
processos, levando-se em consideração que diferentes metodologias podem ser
mobilizadas para garantir o aprendizado de ambas as dimensões.
De acordo com MOURA (1999), propostas atuais no campo da
metodologia da alfabetização de adultos apresentam uma mescla de referenciais, uma
vez que são inúmeras as iniciativas. Sendo assim, ainda é possível encontrar práticas
alfabetizadoras influenciadas pela psicologia associacionista, com uso de métodos
como analíticos, sintéticos, fônicos, analíticos-sintéticos, etc., Algumas práticas ainda
apresentam transposições diretas das mesmas formas de trabalho com crianças.
Verifica-se também, práticas alfabetizadoras fortemente influenciadas pela psicologia
genética, que apresentam inúmeros resultados positivos (MOURA, 1994; MELLO,
1995 e LUTZ, 1995), ou ainda, de forma incipiente, as práticas influenciadas pelas
contribuições da teoria Histórico-cultural de Vygotsky e da lingüística da enunciação
(VAN DER POEL, 1993 e 1996 e ALBUQUERQUE e LEAL, 2004).
A proposta educativa de Paulo Freire no que concerne a alfabetização tem
profundas relações históricas, pois foi formulada em um contexto que condicionava a
necessidade de leitura e escrita de homens e mulheres, em sua grande maioria
camponesa. Concordamos que o contexto atual condicione outras necessidades que
vão além da leitura e da escrita, como às de lidar com os avanços da comunicação e
da tecnologia, afinal, como o próprio FREIRE afirmou:
(...) era preciso que eu fosse ao contexto de quem ia aprender a ler,
para pesquisar o discurso da cotidianidade e de lá retirar o
vocabulário a ser utilizado no processo. Eu acho que era uma
arquitetura. Hoje a gente tem esses conhecimentos em função de
estudos sociolingüísticos, que não havia na época. A gente só tem
que refazer ou melhorar a questão da palavra, a questão da não
sintonia necessária entre a palavra falada e a palavra escrita e os
estudos recentes. Na época [da alfabetização em Angicos] eu não
dispunha das grandes fontes indispensáveis ao conhecimento do
processo de alfabetização que temos hoje (...). Mas eu não lia, não
conhecia Vygotsky. Eu conheço essa gente hoje, não conhecia a
trinta, quarenta anos (FREIRE, apud. PELANDRÉ, 2005, 59).
40
A fala de Paulo Freire nos indica pistas de que sua proposta de
alfabetização crítica necessita de revisão no sentido de incorporar os estudos da
perspectiva histórico-cultural, a que hoje temos acesso. Porém devido a pouca
compreensão dentre os educadores de sua proposta, acabam tomando-a emprestado
como referencial, reconhecendo nele seu valor histórico, sendo posteriormente
reduzido a práticas alfabetizadoras que em nada se relacionam com sua proposta
dialógica, já que incorporam referenciais psicológicos não coerentes com sua
concepção de sociedade, de ser humano e de educação.
Então, quando se fazem certas críticas sobre mim, dizem, por
exemplo, que um dos meus equívocos teria sido o de partir de
palavras. Foi uma pouca explicitação de minha parte, porque no
fundo eu partia de discursos. Não importa que eu tivesse me fixado
no que a gente chamou de palavras geradoras, porque as palavras
geradoras estavam dentro do discurso de quem eu retirava as
palavras
(FREIRE, ibidem, p. 60).
Concordamos com MOURA (1999) ao afirmar que a introdução dos
referenciais da Psicogênese da Língua Escrita e da Teoria Histórico-Cultural em
práticas de alfabetização não signifique que a mesma vem acompanhada de clareza e
sedimentação teórico-metodológica, o que faz com que a área da alfabetização de
adultos não possua uma base teórica sólida suficiente para nortear práticas e políticas
de formação de alfabetizadores.
Desejamos aprofundar o debate em torno da questão do letramento, pois
esse conceito tem sido considerado importante nas políticas de desenvolvimento
econômico. Segundo PELANDRÉ (2005), a questão do letramento vem sendo
maquiada no quadro das políticas neoliberais, uma vez que se supervaloriza a
linguagem escrita enquanto linguagem de prestígio vinculada à distribuição de poder
em nossa cultura, o que contribui para reforçar ainda mais as desigualdades, já que
em torno dessas questões também ficam ocultas as discussões de poder, cultura e
política que nortearam práticas de alfabetização que serviram e servem unicamente
para a legitimação da cultura dominante.
Ressaltamos que no interior da perspectiva crítica da alfabetização, a
questão do letramento também é importante, permitindo assim o trabalho com
diversos gêneros textuais e discursivos, tanto os que circulam como expressões das
camadas dominantes, quanto os das camadas populares.
Diante desse quadro, anunciamos que a alfabetização crítica proposta por
Paulo Freire pode ser um instrumental que possibilita a superação das atuais
desigualdades sociais. No entanto, para compreendermos esse processo, temos que
41
caracterizar a sociedade atual e nela algumas das desigualdades que podem ser
superadas com a proposta de Freire. Essa discussão será apresentada em nosso
próximo capítulo.
42
CAPÍTULO II
A NOVA CONFIGURAÇÃO DA SOCIEDADE: AS ANTIGAS E AS
NOVAS DESIGUALDADES
No Capítulo I apresentamos o histórico da educação de jovens e adultos
no Brasil, uma breve análise das políticas atuais destinadas a essa modalidade de
ensino e também tentamos demonstrar algumas abordagens que orientaram e
orientam as metodologias utilizadas na alfabetização de adultos, bem como
anunciamos que a alfabetização crítica proposta por Paulo Freire pode se tornar um
instrumental capaz de superar algumas das atuais desigualdades sociais, que como
veremos são reforçadas pela questão cultural.
Para compreendermos essa última questão colocada no Capítulo anterior,
devemos lançar nossos olhares para a própria configuração da sociedade atual, para
que a partir daí possamos compreender as atuais desigualdades, na qual o
analfabetismo, fruto das estruturas sociais anteriores permanece sendo mais
agravado.
2.1. CARACTERÍSTICAS DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO.
O novo modelo de sociedade que vem se delineando a partir de 1970
alterou substancialmente nossa maneira de estar no mundo. Essa alteração é
conseqüência do impacto da evolução tecnológica, da formação da economia global e
do processo de mudança cultural.
CASTELLS (1994), sociólogo contemporâneo, afirma que algumas teorias
e interpretações sociais têm objetivado compreender a essência dessas
transformações. Essas teorias partem de diferentes hipóteses, mas todas concordam
que a base das novas transformações sociais se centra sobre a geração do
43
conhecimento e o processamento da informação, em um processo semelhante ao
ocorrido com a sociedade industrial, cuja base esteve assentada na produção e uso da
energia.
Por conseguinte, pode-se dizer que as teorias pós-industrialistas – como
são chamadas por CASTELLS – tratam das relações técnicas de produção e não das
relações sociais de produção, sendo que essas duas esferas deveriam ser
consideradas em uma análise social mais profunda acerca das conseqüências do uso
crescente da tecnologia. Além disso, as análises pós-industrialistas enfatizam o
crescimento econômico, porém, o poder tem sido desde o princípio, um objetivo tão
fundamental quanto a geração de riqueza (CASTELLS, 1999, p. 22). Quanto a isso
FREIRE (2004) também comenta:
O poder dos poderosos sempre procurou esmagar os sem poder.
Mas, ao lado do poder material houve sempre uma outra força, a
ideológica, material também, reforçando aquele poder. O avanço
tecnológico propicia com enorme eficácia o suporte ideológico ao
poder material. (...) Uma das tarefas mais importantes para os
intelectuais progressistas é desmitologizar discursos pós-modernos
sobre a inexorabilidade desta situação
(FREIRE, 2004, p. 23).
Dessa forma, CASTELLS (1999) afirma que para compreendermos os
efeitos da revolução tecnológica devemos iniciar pela análise dos reflexos presentes
na estrutura social e que se diferem qualitativamente dos apresentados após a
revolução industrial.
O primeiro reflexo refere-se ao entrelaçamento entre a esfera econômica e
social, pois não há distinção entre a produção e o consumo, trabalho produtivo e não-
produtivo, criando uma nova organização do trabalho que vai além da produção
material.
Para CASTELLS (ibidem), a sociedade atual é, ao mesmo tempo,
capitalista e informacional, ou seja, embora a sociedade tenha se alterado
substancialmente, o capitalismo permanece, porém reestruturado sob as bases da
revolução tecnológica. Por conseguinte, o capital e o trabalho passaram a existir em
diferentes espaços e tempos. A classe trabalhadora se diversificou em grandes
proporções, resultando em uma mão-de-obra descentralizada e com dificuldade de se
unir em torno de objetivos comuns.
A especificidade da nova estrutura social reside na ação de conhecimentos
sobre os próprios conhecimentos como a principal fonte de produtividade, em um
círculo virtuoso de interação entre as fontes de conhecimento tecnológico e a
aplicação da tecnologia para melhorar a geração de conhecimentos e do próprio
processamento da informação.
44
CASTELLS (1999) prefere o termo informacional para designar esse novo
modelo de sociedade ao invés do termo sociedade da informação, dessa forma,
consegue estabelecer melhor as diferenças entre a sociedade informacional e a
sociedade industrial.
O termo sociedade informacional refere-se à forma específica de
estruturação da sociedade na qual a geração, o processamento e a transmissão da
informação tornaram-se fontes fundamentais de produtividade e poder. Já o termo
sociedade da informação coloca o papel fundamental na informação, porém, em
qualquer modelo de sociedade a informação foi importante.
Dessa maneira, na Primeira Revolução Industrial – últimos 30 anos do
século XVIII – verificamos que se aplicou os conhecimentos preexistentes para
obterem a máquina a vapor, substituindo as ferramentas manuais pelas máquinas.
O mesmo pode-se dizer na Segunda Revolução Industrial – ocorrida por
volta de 1870 – que esteve marcada pelo uso crescente da eletricidade, motor de
combustão, produtos químicos, fundição do aço e inovações no campo da
comunicação, todas essas invenções foram possíveis graças a aplicação dos
conhecimentos.
A diferença marcante entre sociedade industrial e informacional reside sob
a tecnologia que age sobre a informação e não a informação que age sobre a
tecnologia, como nas revoluções anteriores, sobre esse aspecto o autor comenta:
A tecnologia da informação é para esta revolução o que as novas
fontes de energia foram para as Revoluções Industriais sucessivas,
do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até
mesmo à energia nuclear, visto que a geração e distribuição de
energia foi o elemento principal na base da sociedade industrial
(CASTELLS, 1994, p. 50).
Dessa forma, a centralidade nos conhecimentos e informações foi
importante em todas as revoluções tecnológicas, porém na atual revolução o que
verificamos é a aplicação de conhecimentos e informações para a geração de
conhecimentos e de dispositivos de processamento e comunicação da informação em
um ciclo de realimentação cumulativo entre inovação e seu uso (ibidem, p. 51).
Ainda segundo o autor, a utilização da informação e conhecimentos para a
geração de novas informações e de novos conhecimentos afeta todas as esferas da
atividade humana, criando novas formas de relações sociais e consequentemente
novas relações de poder, presentes na lógica de redes, já que a velocidade em que a
tecnologia é difundida, torna-se seletiva, tanto social quanto funcionalmente, assim: O
fato de países e regiões apresentarem diferenças quanto ao momento oportuno de
dotarem seu povo do acesso ao poder da tecnologia apresenta fonte crucial de
45
desigualdade em nossa sociedade (CASTELLS, 1994, p. 52).
Assim, ao analisarmos os estágios da revolução tecnológica
comprovaremos que a aplicação da tecnologia teve seu início durante a Segunda
Guerra Mundial, difundindo-se em 1970 nos Estados Unidos, concentrando-se
inicialmente no Vale do Silício, Texas.
Essa revolução teve como ponto de partida a invenção do ship – transitor –
em 1947, trinta anos depois o microcomputador já estava sendo comercializado.
Contudo, o microcomputador só poderia realmente efetivar tudo o que
prometia se conectado em rede a outros computadores, sendo capaz de compartilhar
informações, foi assim que em 1974 houve o desenvolvimento do protocolo de
interconexão em rede – TCP/IP – que introduziu a tecnologia de abertura, permitindo a
conexão de diferentes tipos de rede.
Dessa forma, seguindo uma seqüência de descobertas que serviam como
alicerce para novas formas de atuar e lidar com a informação, foi se delineando um
processo que já não podia ter caminho inverso:
De fato, parece que a emergência de um novo sistema tecnológico na
década de 1970 deva ser atribuída à dinâmica autônoma da
descoberta e difusão tecnológica, inclusive aos efeitos sinérgicos
entre todas as várias principais tecnologias. Assim, o
microprocessador possibilitou o microcomputador; os avanços em
telecomunicações, possibilitaram que os microcomputadores
funcionassem em rede, aumentando assim, seu poder e sua
flexibilidade (...) novos softwares foram estimulados com a crescente
utilização de microcomputadores (...). E assim, por diante
(ibidem, p.
68-9).
Essas transformações na área tecnológica alteraram toda a estrutura
social, porém, não significa que a sociedade está reduzida ao determinismo
tecnológico, já que muitos fatores, inclusive a criatividade e a iniciativa
empreendedora, intervém no processo de descoberta científica, inovação tecnológica
e aplicações sociais, de forma que o resultado final depende de um complexo padrão
interativo.
O desenvolvimento social originado da tecnologia informacional altera as
relações na sociedade e entre as sociedades, porém, não significa que toda a
sociedade seguirá o mesmo percurso de desenvolvimento traçado pelo Vale do Silício
nos Estados Unidos, na realidade, a sociedade informacional possui uma lógica
interna que afeta todas as sociedades de alguma maneira, pois ela define a posição
na rede de relações.
Sobre este ponto, um ingrediente crucial que condiciona a posição na rede
de relações criada pela nova estrutura é a capacidade que as sociedades possuem de
46
gerar sinergia com base em conhecimentos e informação, diretamente relacionados à
produção e aplicações comerciais. Isso demonstra que a informação toma diferentes
formatos dependendo do contexto ou sociedade onde se realiza.
Quanto à relação entre tecnologia e sociedade, é necessário
compreendermos o papel do Estado na sociedade informacional, pois ele é quem
impulsiona, promove, lidera, freia ou interrompe a inovação tecnológica. O Estado é
um fator decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças
sociais dominantes em um espaço e uma época determinados (CASTELLS, 1999,
p.31).
Não obstante, embora o papel do Estado seja importante na promoção da
sociedade informacional, a unidade econômica de análise é o sistema global de
interação, não se trata de economias nacionais ou políticas econômicas nacionais,
mas sim de estratégias nacionais que passam a operar no sistema global.
Sendo assim, a tecnologia pode ser entendida como a expressão da
habilidade de uma sociedade para impulsionar seu domínio tecnológico por intermédio
das instituições sociais, das quais o Estado é uma delas. Dessa forma, o controle da
ciência e das técnicas da informação e comunicação torna-se uma fonte de poder em
si mesma, o que resulta em relações de domínio entre a sociedade e as sociedades.
Um Estado que é incapaz de desenvolver e caminhar no mesmo ritmo que os
processos tecnológicos se torna estéril internamente e externamente, pois não é
capaz de difundir, intercambiar e relacionar-se com o resto do mundo.
Na nova estrutura social são tomados como fatores de desenvolvimento
social a adaptação, a produção e a difusão das novas tecnologias da informação. Por
conseguinte, as diferentes posições ocupadas pelas sociedades são condicionadas
por três fatores. O primeiro relaciona-se com a habilidade de usar e produzir
tecnologias da informação, da mesma forma como foi com a eletricidade. Por
conseguinte, as sociedades que são dependentes tecnologicamente não ocupam um
lugar privilegiado na nova configuração social.
O segundo fator que condiciona a posição na rede é a sociedade estar
com as suas funções econômicas interconectadas. Isso porque o mundo está
conectado em suas funções econômicas através de fluxos de informação e
comunicação. Ter acesso a esses fluxos, significa participar da economia global, caso
contrário deixa-se de existir nela, já se está desconectado do mundo. A posição na
rede, quer dizer, a função obtida na nova divisão internacional do trabalho, se converte
em um elemento essencial para definir as condições materiais de existência de cada
país ou região (CASTELLS, 1994, p.40).
O terceiro fator, e em nossa opinião o mais significativo, diz respeito à
47
seletividade das redes de fluxo que conecta a economia informacional e global. Sobre
esse aspecto, consideramos importante transcrever a seguinte passagem de
CASTELLS:
Porque a produtividade e a competitividade se baseiam cada vez
menos nos recursos primários, e cada vez mais no conhecimento e
na informação, o trabalho não qualificado e as matérias-primas
deixam de ser estratégias na nova economia. Nossos estudos
mostram o aumento da irrelevância para a economia informacional
global de grandes áreas do mundo. A exploração do trabalho ou dos
recursos naturais chega a ser demasiado custoso para os benefícios
atuais obtidos deles. Como a economia se desenvolve segundo
valores mais elevados, a informação baseada em produtos, a
acumulação do capital aumenta os benefícios no centro e não nas
periferias: as teorias econômicas do Imperialismo são agora
obsoletas. (...). A conseqüência é que muitos países, e muitas regiões
de muitos países estão sendo marginalizadas pela expansão da
economia informacional global. Sociedades nacionais, locais e
regionais estão caminhando de uma exploração dependente para a
irrelevância estrutural na nova economia (1994, p. 40, grifos
nossos).
Essas transformações implicam na própria reconfiguração das relações de
dominação e que apenas algumas sociedades detêm o poder de conexão dos fluxos
de informação na economia global, isso porque o controle das ciências e das técnicas
de informação tornou-se uma fonte de poder em si mesmo e porque os fluxos
ganharam materialidade. CASTELLS (1999) afirma que a nova sociedade poderia ser
chamada de sociedade dos fluxos, pois: o poder dos fluxos é mais importante que os
fluxos do poder (p.197).
A economia originada desse novo modelo de sociedade é informacional e
global. É informacional, pois a produtividade e a competitividade dependem da
capacidade de gerar, processar e aplicar a informação baseada em conhecimentos; e
é global, pois a produção, consumo e circulação se organizam em escala global
mediante redes de conexão. Por conseguinte, a economia passa a ter algumas
características que a difere da economia presente no modelo de sociedade industrial.
Se na sociedade industrial o método de gerenciamento era de inspiração fordista, na
nova estrutura social esse modelo passou a ser o toyotismo, modelo advindo das
indústrias japonesas, que foi capaz de tornar a produção mais flexível e, atualmente é
implantado em diversas empresas do mundo todo, pois é mais condizente com a
capacidade de reorganização da sociedade informacional.
Assim, a organização da produção se desloca da produção em massa e da
crescente divisão das tarefas para o trabalho em equipe, a hierarquia horizontal, o
controle de qualidade total e da interação entre os conhecimentos tácitos e explícitos,
convidando o trabalhador a participar do processo e a comunicar seus saberes. É por
48
essa via, pela transformação das relações produtivas, que a sociedade informacional
afeta todas as esferas sociais.
Nesta perspectiva, as sociedades serão informacionais, não porque
se encaixem em um modelo específico de estrutura social, mas
porque organizam seu sistema produtivo em torno de princípios de
maximização da produção baseada em conhecimentos, por
intermédio do desenvolvimento e da difusão de tecnologias da
informação e pelo atendimento dos pré-requisitos para sua utilização
(ibidem, p. 226).
Essa nova forma de organização da economia não significa o fim da
indústria tradicional, tal como a conhecemos, embora ela já tenha incorporado o novo
modo de relacionamento exigido pela economia informacional e global e está, cada
vez mais conectada ao mundo, porém, paralelamente ao lado das indústrias tem
crescido consideravelmente o setor de serviços, caracterizado pelas atividades de
marketing, programação, consultoria econômica, gestão, etc.
O setor de serviços diversificou tanto a estrutura ocupacional, que já não
podemos dividir o trabalho em setores primário (agrário), secundário (industrial) e
terciário (serviços), como tradicionalmente era feito: a expansão dos serviços significa
uma extensão de crescimento de trabalho humano mais além da esfera de produção
material (ibidem, 1994, p. 18).
Assim, como conseqüência dos imperativos econômicos e das demandas
sócio-institucionais, uma proporção crescente da atividade humana e dos recursos é
dedicada ao processamento da informação e outras atividades não produtivas. Por
esses motivos, afirmamos anteriormente que o uso da tecnologia não se limita
unicamente ao aumento da produção.
Dessa forma, embora os trabalhadores desfrutem de uma relativa
autonomia, advindo do novo modelo de gerenciamento inspirado no toyotismo, não
estamos descrevendo uma sociedade isenta de conflitos. Nesse sentido, os
trabalhadores foram reduzidos e na melhor das hipóteses requalificados: as mulheres
sem instrução foram substituídas pelas máquinas no processo de automação
industrial; as com instrução e brancas passaram a ocupar os postos dos homens nos
cargos especializados inferiores, porém com salários mais baixos; as tarefas
altamente especializadas passaram a ser executadas exclusivamente pelos que
possuem nível superior de ensino, assim, CASTELLS (1999) conclui:
49
A multifuncionalidade do trabalho e a individualização da
responsabilidade sempre eram acompanhadas por novos títulos
criados ideologicamente (por exemplo, “assistente de gerência” em
vez de “secretário(a)”), dessa forma, aumentado o potencial para o
comprometimento dos funcionários administrativos sem melhorar
suas recompensas profissionais de forma correspondente
(ibidem, p
272).
Frente a esse debate poderíamos ser levados a pensar que o uso
crescente da tecnologia nos levaria a uma sociedade sem empregos, não obstante, a
experiência histórica já comprovou, entre outros aspectos, que há uma transferência
de um tipo de trabalho para outro. Foi assim com a passagem da sociedade rural para
a industrial e tudo tem levado a crer que na sociedade informacional estão sendo e
serão criados novos empregos nas indústrias de alta tecnologia, e de forma mais
significativa, no setor de prestação de serviços.
Porém, a criação de novos empregos varia entre empresas, indústrias,
setores, regiões e países, em função da competitividade, estratégias empresariais,
políticas governamentais, ambientes institucionais, ou seja, varia segundo a posição
ocupada na economia global.
CASTELLS (ibidem) alerta para o fato de que o novo sistema produtivo
requer uma nova força de trabalho muito mais qualificada, capaz de operar com a
informação, por conseguinte, os indivíduos ou grupos que não têm adquirido
conhecimentos informacionais podem ser excluídos do trabalho, ou na melhor das
hipóteses, rebaixados.
Concluímos então, que embora o potencial das tecnologias da informação
pudesse ter propiciado uma maior produtividade, melhor qualidade de vida e maior
nível de emprego, esse modelo de sociedade pode-se configurar em um sistema dual,
no qual os que têm passam a ter mais e os que não têm passam a ter cada vez
menos. Isso devido ao fato, de como temos visto, as redes organizam a posição dos
atores, instituições, economias e sociedades. A ausência na rede dominante torna
uma estrutura irrelevante, ou por outro lado a presença na rede garante a posição de
poder, isso ocorre entre inúmeros países e entre os indivíduos com níveis educativos
diferenciados.
É sobre esse último ponto que trataremos no próximo item.
50
2.2. PRINCIPAIS DESIGUALDADES DA SOCIEDADE INFORMACIONAL.
Vimos no tópico anterior como a sociedade informacional alterou as
relações entre as sociedades e os indivíduos no interior da sociedade, isso devido à
modificação na estrutura do poder, que na sociedade industrial era condicionada pela
detenção das formas de produção, enquanto que na sociedade informacional, a
capacidade de processamento da informação e do conhecimento se tornou a principal
fonte de poder, condicionando a posição de privilégio ou não de cada indivíduo,
região, país e sociedade, no mundo globalizado.
O funcionamento da sociedade informacional deixou de privilegiar a mão-
de-obra semi-qualificada e as fontes de matéria-prima, o que ocasionou o isolamento
de inúmeras áreas no mundo, as quais se encontram atualmente desconectadas das
redes criadas entre as economias mundiais. Esse processo fica mais agravado devido
à própria capacidade de reorganização da sociedade informacional que encurta o
tempo entre as novas descobertas tecnológicas, sua aplicação e retorno social.
Embora a sociedade informacional tenha criado inúmeras possibilidades
de melhoria da qualidade de vida da população, a tecnologia, tal como vem sendo
empregada tem reforçado ainda mais as desigualdades sociais. Quanto a isso
FREIRE (2004) afirma:
Não obstante as diferenças entre o século XIX e o momento atual –
as quais exigem refinamentos nos métodos de análises,
reformulações técnicas, produção de novos saberes – não
desapareceu a dominação da maioria por poucos. (...) Diante do
domínio sobre as informações, da facilidade com que são operadas e
comunicadas à rede de poder, não é difícil imaginar as desvantagens
de quem funciona na extremidade do circuito. (...) Tudo isso e muito
mais torna a luta extremamente difícil. Reconhecer a quase
tragicidade de nosso tempo não significa para mim, porém, a
rendição. A luta de mulheres e homens pode ser obstaculizada, a
vitória pode ser retardada, mas não suprimida
(ibidem, p. 42-3).
FLECHA (1994) afirma que nesse modelo de sociedade predominam muito
mais os elementos intelectuais sobre os materiais, esses últimos valorizados na
sociedade industrial. Sendo assim, verificamos na sociedade global a divisão dos
trabalhadores em três setores: fixos, eventuais e parados:
La priorización de los recursos intelectuales de la sociedad de la
información lleva a un incremento de importancia de los elementos
culturales. Pero, por otro lado, debido al citado modelo dual, la
educación está proporcionando valiosos recursos para eforzar las
barreras que se establecen entre los tres sectores y se está
convirtiendo en un criterio cada vez más intenso de discriminación
51
entre quienes pertencen a cada uno de ellos. De esta forma los
desarrollos curriculares tienden a convertir-se en uno de los factores
que configuran la dualización social, la selección de los “mejores”, esa
situación que Habermas dice puede describirse con el vocabulario del
darwinismo social
(ibidem, p. 59).
A seleção das pessoas que ocuparão os cargos mais bem remunerados na
sociedade é realizada com base na titulação universitária, ou seja, privilegiam-se
aqueles indivíduos capazes de lidar com a seleção e o processamento da informação.
O segundo setor é constituído por aquelas pessoas que possuem uma relação
eventual com o mundo do trabalho, o que significa certa estabilidade econômica e
social. A distância aumenta para os que não concluíram o ensino primário e os que
não sabem ler e escrever, pois se encontram a margem da dinâmica do trabalho
exigido na sociedade atual.
Se no modelo de sociedade industrial o analfabetismo já era sinônimo de
desqualificação, as pessoas ainda podiam ocupar postos de trabalho que não exigiam
o conhecimento da leitura e da escrita, porém, no modelo de sociedade informacional,
saber ler e escrever se tornou distintivo, mesmo para as funções que não exigem
essas habilidades.
Sendo assim, FLECHA (ibidem) conclui que a desigualdade social
verificada na sociedade informacional está diretamente relacionada ao componente
cultural, já que o empresariado tem cobrado do sistema educativo a responsabilidade
no desenvolvimento das habilidades de manejar a informação. O acesso à cultura,
sistematizada pela instituição escolar, se tornou então, um fator de discriminação.
O sistema educativo passou a distribuir de forma muito desigual os
saberes que agora configuram-se como essenciais na sociedade, seguindo critérios
como grupo social, gênero, etnia e idade. Dessa forma, se dá mais a quem tem mais e
menos a quem tem menos, configurando um círculo fechado da desigualdade cultural
(FLECHA, 1994, p. 62).
A escola nesse sentido, mesmo após a universalização do ensino, tornou-
se um mecanismo de controle da transmissão da ideologia dominante, pois devido aos
seus próprios condicionantes históricos, seleciona alguns conteúdos em detrimento de
outros, organizando seus currículos de forma a invalidar os conhecimentos e valores
que são aprendidos fora das instituições.
Um outro agravante reside no fato da cultura dominante também se
apresentar como sinônimo de status social influenciando inúmeros indivíduos a
desqualificarem a própria cultura. Quanto a isso FLECHA (1994) comenta:
52
El objetivo de integración, propio de la corriente tradicional de la
modernidad, es pues doblemente negativo para los sectores de la
población que se encuentran en los márgenes de la socied. En primer
lugar, esa expropriación de la propia cultura. En segundo lugar, esa
expropiación no es sustituida por un pleno desarrollo de la cultura de
adopción sino por una posición muy secundaria en ella
(p. 63).
Isso devido ao fato de que, conforme viemos delineando em nossa
contextualização histórica, ter acesso ao sistema educativo se configurou em um
distintivo de classe social com status, o que levou as elites agrárias e posteriormente
urbanas a criarem mecanismos de exclusão das camadas populares do acesso ao
sistema educativo. Mesmo com a universalização do sistema educativo, as práticas
que se configuram no interior da escola tendem a legitimar uma única expressão
cultural. Esse processo é denominado por FREIRE A. (1988) como ideologia da
interdição do corpo, capaz de perpetuar o analfabetismo até os dias atuais.
O analfabetismo relaciona-se ao eixo da desigualdade cultural, pois como
afirma GIROUX (1990), no interior do discurso dominante, o analfabetismo não está
simplesmente relacionado ao não domínio da leitura e da escrita, ele também é um
indicador cultural tomado no sentido negativo, já que apresentam expressões que
diferem do padrão ideológico imposto pela cultura dominante relativo ao que deve ser
considerada como história, competência lingüística, experiência de vida e padrões de
vida em sociedade (ibidem, p. 3).
Dessa maneira, a valorização da cultura dominante nos espaços escolares
causa uma depreciação de inúmeras expressões culturais, já que estas passam a não
serem reconhecidas enquanto cultura.
O dominante precisa inculcar no dominado uma atitude negativa em
relação à sua própria cultura. Aquele estimula este último a rejeitar a
própria cultura como algo feio e inferior. Além disso, o dominante
impõe ao dominado seu modo de ser, de falar, de dançar, seus
gostos, até mesmo seu modo de comer
(FREIRE e MACEDO,
1990, p. 130).
A leitura e a escrita nunca deixaram de ser importantes em diversos
momentos históricos, segundo TFOUNI (1988), desde sua origem serviu para a
distinção das classes privilegiadas que ocultavam saberes que lhes garantiam a
manutenção da posição de poder que ocupavam. Foi o que aconteceu no caso da
Índia, China e a Europa durante a Idade Média.
Porém, nesses contextos sociais era a classe social que condicionava se o
indivíduo seria alfabetizado ou não, já que algumas tarefas executadas não requeriam
o conhecimento da leitura e da escrita. Foi durante o século XVIII e XIX que a escola
se complexificou, identificando-se com os valores da cultura dominante e
53
disseminando o ideal de que todas as pessoas deveriam aprender certos conteúdos.
Durante a sociedade industrial, a leitura e a escrita estavam postas como
habilidades necessárias, mas não indispensáveis, já que muitas tarefas podiam
continuar sendo executadas mesmo que as pessoas não soubessem ler e escrever.
Não obstante, na sociedade informacional, a leitura e a escrita tornaram-se
as habilidades mínimas requeridas para a participação no mundo do trabalho e pré-
requisito para a capacidade de processar e selecionar a informação. Nesse sentido,
prioriza-se a força de trabalho capaz de mobilizar conhecimentos e adaptar-se às
transformações.
Tentando traçar um paralelo com a sociedade industrial AYUSTE et. al.
(1994) afirma:
Na sociedade industrial as competências profissionais que
caracterizavam um determinado ofício permaneciam invariáveis
durante longos períodos de tempo, o que resultava que a maioria da
população estivesse ocupada em uma mesma empresa até alcançar
a idade necessária para jubilar-se, e se especializava em uma
atividade em que as trocas eram mínimas. Na sociedade da
informação, tanto as ocupações como as competências exigidas
variam constantemente e os sistemas de produção e as demandas de
mercado de trabalho se acham somadas a trocas constantes,
prevendo-se que uma pessoa troque de profissão cinco vezes no
mínimo em sua vida
(p. 15).
Por conseguinte, o não-domínio das habilidades de leitura e escrita se
torna um eixo da desigualdade social, que como vimos, é reforçado pela questão
cultural, o que leva FLECHA (1994) a afirmar que a sociedade informacional cria
novas desigualdades e acirra as existentes, já que são requeridas como necessárias
as habilidades de seleção e processamento da informação, as quais só se viabilizam
pela aprendizagem da leitura e da escrita.
O uso cada vez mais freqüente das novas tecnologias digitais, segundo
CARRASCO e DUJO (1997), impõe a necessidade de sua inserção como elementos
da própria educação. Atualmente, a partir da compreensão e utilização dos códigos
relacionados à informática, criou-se uma nova elite cognitiva que exclui os que não
dominam essa habilidade. Esse novo modelo de exclusão ainda é somado à exclusão
dos que não possuem a leitura e da escrita.
Se reproduce en cierta medida la concentración del poder y influencia
que tuvo lugar en los primeros pasos de la cultura escrita, aunque en
la actualidad la velocidad de penetración de las nuevas tecnologías
sea inmensamente más rápida que entonces (…). Este problema se
radicaliza aún más en los países subdesarrollados o en vías de
desarrollo, porque en elles el analfabetismo hace todavía estragos, y
su naufragio es más radical
(CARRASCO e DUJO, 1997, p.16-7).
54
Dessa forma, concluímos que o analfabetismo na sociedade atual é
também um dos componentes relacionados à desigualdade social, já que pelo
impedimento na participação do mundo do trabalho, milhares de pessoas passam a
não ter acesso às instituições sociais, serviços e bens de consumo.
Outro eixo de desigualdade que se faz muito presente refere-se ao
conceito de auto-exclusão. Esse eixo que se dá no âmbito da individualidade é fruto da
internalização pessoal dos discursos que vinculam a opressão advinda da
desigualdade social e cultural descritos, ou seja, é resultado dos efeitos da
desigualdade cultural e social.
FLECHA (1997) afirma que a auto-exclusão revela a forma mais potente
de desigualdade, pois sua manutenção não necessita que as instituições e práticas
sociais desqualifiquem as pessoas socialmente e culturalmente. Dessa forma, as
pessoas que vivenciam a auto-exclusão restringem suas vidas ao âmbito particular, já
que não se sentem potencializadas para ampliar seu ambiente de atuação social.
De acordo com GIROUX (1990), as práticas sociais presentes na escola
diferenciam alfabetizado de analfabeto, deslegitimando o conhecimento e as tradições
de grupos desprivilegiados socialmente.
Torna forte o que há de essencial na funcionalidade da ignorância, a
importância de declarar sem valor e estúpida a maioria das pessoas
durante a maior parte do tempo, com uma palavra única e exata de
poder fatal e classificador: mau. E fazendo-os “adotar” essa
identificação, como se ela fosse a única prova de identidade que
pudessem exibir e intercambiar
(CORRIGAN, 1986, apud.
GIROUX, 1990).
É dessa forma, que inúmeras práticas sociais, por meio da linguagem
condicionam a existência de subjetividades que passam a não acreditar em seus
próprios valores, pois vêem a própria cultura como sendo inferior.
Conforme FREIRE (1990), da mesma forma que a educação, a
alfabetização é resultado da expressão cultural, que é uma totalidade atravessada por
interesses de classe, por diferenças de classe e por gostos de classe (ibidem, p. 33).
Em geral, os segmentos dominantes de qualquer sociedade falam de
seus interesses particulares, de seus gostos, de seus estilos de vida,
que encaram como expressões concretas da nacionalidade. Assim,
os grupos subalternos, que possuem seus próprios gostos e estilos
de vida, não podem falar de seus gostos e estilos como expressões
nacionais. Falta-lhes o poder político e econômico para fazê-lo. Só os
que têm poder podem generalizar e estabelecer que as
características de seu grupo são representativas da cultura nacional.
Assim estabelecido, o grupo dominante necessariamente deprecia
todas as características que se desviam dos padrões dominantes
(FREIRE, 1990, p. 34).
55
FLECHA (1994) afirma que as tecnologias informacionais diminuem cada
vez mais o espaço entre as pessoas, mas também é capaz de gerar muros
antidialógicos que impedem e limitam o diálogo. FLECHA classifica os muros
antidialógicos em três tipos: culturais, sociais e pessoais e que se relacionam aos
eixos de desigualdade que descrevemos acima.
- culturales: descalifican a la mayoría de la población como incapaz
de comunicarse con los saberes dominantes. Una minoría selecta
construye teorías de los déficits para disuadir al conjunto de la
sociedad del intento de tomar en sus manos el protagonismo cultural.
- sociales: excluyen a muchos grupos de la evaluación y producción
de conocimientos valorables. Clasismo, sexismo, racismo e edismo
encierran determinadas experiencias educativas detro de algunos
sectores de posición social, género, etnia o edad; queda excluido el
resto.
- personales: apartam a muchas persnonas del desfrute de la riqueza
cultural de su entorno. Las historias de vida de muchas personas y,
principalmente, cómo se relatan a sí mismas esas historias generan
autoexclusión de muchas prácticas formativas
(FLECHA, 1997, p.
24).
Acreditamos que o analfabetismo é uma experiência que se relaciona aos
muros antidialógicos culturais, sociais e pessoais descritos por FLECHA. Dessa forma,
não saber ler e escrever torna-se sinônimo de desqualificação cultural, social e
pessoal. Cultural, pois somente algumas expressões, as identificadas como as da
camada dominante, são reconhecidas e valorizadas socialmente. Social, já que
inúmeras pessoas se vêem impedidas de participarem do mercado de trabalho e de
terem acesso a bens sociais, dentre eles a educação. E pessoais, que pelo processo
de internalização dos discursos e práticas legitimadores das desigualdades culturais e
sociais, homens, mulheres e crianças passam a se auto-desqualificarem.
Diante dessa problemática, a superação da condição de não alfabetizado,
pode romper com os muros antidialógicos e possibilitar novas experiências.
Frente as atuais desigualdades sociais, que são reforçadas pela questão
cultural, diferentes perspectivas tentam traçar soluções de maneira a minimizá-las,
porém, essas iniciativas não atingem o âmago da questão, já que tomam a cultura
como isenta de interesses de classes.
Há inúmeras práticas educativas que são reforçadas por políticas que
objetivam a homogeneização realizada pela difusão crescente da cultura dominante,
como se o seu domínio fosse capaz, por si só de por fim as desigualdades.
56
El único objetivo que unifica a los diferentes sectores de la derecha
en el terreno cultural es el continuo aumento de unos privilegios cuyo
mantenimiento requiere una desigualdad educativa. De entre la
pluralidad de opciones disponibles, cada sector defiende en cada
contexto temporal i/o espacial la que considera que mejor representa
sus intereses
(FLECHA, 1994, p. 75).
Sobre esse aspecto, consideramos interessante retomar nossa
contextualização histórica na qual apresentamos o conceito de interdição dos corpos
elaborado por FREIRE A. (1988), o qual nos demonstra como ao longo da educação
brasileira as elites – inicialmente a colonizadora agrária, e posteriormente, a urbano-
industrial – impediram que muitos não tivessem acesso ao sistema escolar, o que
contribuiu de maneira considerável para a manutenção dos privilégios e interesses dos
que exerciam o poder.
Ora, na nova configuração social, impulsionada como vimos pelo uso
crescente da tecnologia da informação e comunicação, o sistema educativo ainda
pode se configurar como um forte elemento na reprodução das desigualdades sociais,
principalmente quando legitima uma única expressão cultural.
Sobre essa questão, FLECHA (1994) afirma que os grupos hegemônicos
também possuem o poder simbólico de decidir qual cultura será valorável dentro da
configuração social. Essa decisão permite que esses grupos sejam os detentores
exclusivos dos conhecimentos requeridos como necessários.
Porém, acreditamos que a escola pode ser transformada em um espaço
que promova a igualdade, tomando como ponto de partida a valorização pessoal e
cultural dos grupos que se acham excluídos na sociedade, tomando como eixo central
o diálogo intersubjetivo.
O diálogo permite a expressão da compreensão de mundo, a reflexão
sobre as convicções e superação de valorações e pensamentos colonizados e
colonizadores, em um processo de criação contínuo de significado. Nesta perspectiva
o discurso hegemônico pode ser desconstruído, já que nele apenas algumas vozes
são privilegiadas.
O enfoque comunicativo contribuiu como fundamento para novas teorias
críticas, nas quais a de Paulo Freire pode ser inserida. Nela o sujeito não é simples
reflexo das estruturas, mas sim um sujeito cognoscente, capaz de reproduzir e
produzir conhecimentos e, em diálogo, traçar estratégias para a superação das
condições que o oprime.
A partir dessas considerações a proposta da alfabetização crítica de Paulo
Freire configura-se em uma alternativa valiosa para a superação dessas
desigualdades, como veremos no próximo tópico.
57
2.3. CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE: o diálogo e a dimensão
conscientizadora do processo educativo.
De acordo com FREIRE (1987), há duas possibilidades para a
humanidade, de um lado temos a humanização, vocação ontológica do ser humano e
de outro, a desumanização que se dá por uma inversão na história.
Nessa perspectiva tanto a possibilidade de humanização quando de
desumanização se configuram em um permanente movimento dentro da realidade
opressora. É nesse movimento dialético, que ora oculta a desumanização, ora
demonstra a possibilidade da humanização que os homens e mulheres se
reconhecem como seres inacabados.
FREIRE (1992) afirma que na medida em que nos reconhecemos como
seres inacabados, alcançamos a humanização, é nesse sentido que os homens e as
mulheres, como seres humanos inconclusos, precisam saber da sua inconclusão
(FREIRE, 1996, p. 65).
Percebendo-se como um ser inacabado, os seres-humanos buscam pelo
conhecimento, essa busca permanente pelo “Ser Mais”, humanizado, em contraponto
com o “Ser Menos”, desumanizado, não é solitária, os homens e as mulheres
conhecem e conhecem a si próprios por relacionarem-se com o mundo e com os
outros através de uma relação dialética e dialógica.
Se a vocação ontológica de homens e mulheres é a humanização, por uma
inversão da história, homens e mulheres são impedidos de “Ser”, ou seja, os homens
e as mulheres tiveram a sua humanidade roubada, gerando a realidade opressora.
A realidade opressora – que pressupõe a existência dos que oprimem e
dos que são oprimidos – funciona como uma força de imersão das consciências. A
superação dessa realidade, isto é, a recuperação da humanização, se fará através da
emersão dessa realidade.
A imersão das consciências leva muitos oprimidos a compreenderem e a
almejarem um novo modelo de homem semelhante ao opressor, nesse caso, não
alcançam o “Ser Mais”, continuam impedidos de sê-lo e nessa impossibilidade de
“Ser”, passam a querer “Ter”, como se no possuir, homens e mulheres encontrassem
a sua satisfação.
O processo de humanização acontece então quando nos reconhecemos
como seres inacabados, porém, como os oprimidos se acham imersos na realidade
opressora – realidade esta que impede e prejudica a tomada de consciência de si
como pessoa oprimida e como classe oprimida – eles sofrem uma dualidade na
58
interioridade de seu ser, levando FREIRE (1987) a afirmar:
(...) Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o
outro introjetado neles como consciência opressora. Sua luta se trava
entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não
o opressor ‘de dentro’ de si. Entre se desalienarem ou se manterem
alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
atuarem ou terem a ilusão de atuar, na atuação dos opressores. Entre
dizerem a palavra ou não terem voz, castrados de seu poder de criar
e recriar, no seu poder de transformarem o mundo
(p.35).
A relação opressor-oprimido é mediada pelo conceito de prescrição.
Segundo FREIRE (ibidem), toda a prescrição é a imposição da opção de uma
consciência a outra. Há na prescrição um caráter alienador que transforma a
consciência oprimida em hospedeira da consciência opressora. Disso decorre que os
oprimidos são como objetos e as suas finalidades são prescritas pelos opressores. A
liberdade implica então, na sobreposição desta consciência pela autonomia.
Os oprimidos, por estarem em uma situação de contradição, que ora
mostra a possibilidade, ora a oculta, reconhecem a possibilidade de transformar a
condição de opressão. Porém, esse reconhecimento ainda não encerra a libertação, é
apenas uma tomada de consciência de que a sua vocação é a do “Ser Mais”:
(...) alcançar a compreensão mais crítica da situação de opressão não
liberta ainda os oprimidos. Ao desvelá-la, contudo, dão um passo
para superá-la desde que se engajem na luta política pela
transformação das condições concretas em que se dá a opressão.
(...) no domínio das estruturas sócio-econômicas, a percepção crítica
da trama, apesar de indispensável, não basta para mudar os dados
do problema. Como não basta ao operário ter na cabeça a idéia do
objeto que quer produzir. É preciso fazê-lo
(FREIRE 1992, p. 32).
Sendo assim, para FREIRE não basta aos homens e nem às mulheres
terem o conhecimento das estruturas que condicionam a situação de opressão que
vivenciam, é necessário, além de tomá-la como objeto de análise crítica, visualizar e
criar situações para a superação da condição que os oprimem.
Até aqui, viemos discutindo como a relação opressor-oprimido se configura
no interior das relações sociais, a seguir, apresentaremos, dentro da concepção
freiriana de educação, como a superação desta relação é compreendida.
De acordo com o exposto, entendemos como necessário que os oprimidos
reconheçam em sua prática a realidade opressora para a partir daí lutar contra ela.
Nesta perspectiva, a educação, que só se viabiliza pelo diálogo, tem como tarefa o
desvelamento dessa realidade. É no diálogo que as situações de opressão são
tomadas como objetos de reflexão, permitindo sua apreensão mais crítica e o
planejamento de sua superação (FREIRE, 1987, p. 32).
59
Vimos que a realidade opressora, embora cause a imersão das
consciências, ora demonstra, ora oculta a possibilidade de humanização, sendo assim,
os oprimidos vivenciam essa contradição entre o querer ser e o impedimento de
serem, nesse sentido podemos afirmar que os oprimidos conhecem, bem ou mal, os
condicionantes de suas vivências pessoais e sociais, é o reconhecimento dessas
situações, que Paulo Freire chama de situações limites.
FREIRE A. (1992)
6
comenta que os homens e as mulheres percebem as
situações limites de três maneiras: como um obstáculo que não podem transformar;
como algo que não querem transformar ou como algo que sabem que existe e que
precisa ser transformado. Somente esses últimos concebem as situações limites
criticamente, se sentem desafiados em transformá-las e epistemologicamente tomam
distância destacando-as de sua cotidianidade.
Percebidas criticamente, as situações limites, passam a ser entendidas
como temas problemas, e diante destes são empenhadas ações para a sua
transformação, sendo possível a percepção do inédito viável, a fronteira entre o Ser e
o Ser Mais, o ainda não conhecido, mas possível.
Os que não podem ou não querem transformar as situações limites, não
chegam a vislumbrar os temas problemas, concebem as situações de opressão como
determinantes históricos nos quais nada resta a fazer, a não ser conformar-se. O que
Paulo Freire combate é esse imobilismo frente às situações concretas de opressão e
propõe um enfrentamento do mundo, não como uma estrutura fechada, mas sim como
uma situação de limite que pode ser rompida e transformada. Os homens e as
mulheres são entendidos, então, como seres abertos, seres de transformação do
mundo pela sua ação. Inicialmente, o mundo é apreendido e expresso por homens e
mulheres através da linguagem. Essa apreensão do mundo consiste em sua
objetivação.
E é enquanto são capazes de tal operação, que implica em “tomar
distância” do mundo, objetivando-o, que homens e mulheres se fazem
seres com o mundo. Sem esta objetivação, mediante a qual
igualmente se objetivam, estariam reduzidos a um puro estar o
mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo
(FREIRE,
1981, p. 53).
Quando homens e mulheres pensam o mundo objetivando-o,
compreendem as suas histórias pessoais de luta como pertencentes a uma totalidade,
passam a pensar além de si mesmos. Porém, não se trata de apenas reflexão sobre a
existência, é ação também para transformar os condicionantes desta existência.
6
Em nota à Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido (1992,
p.205).
60
Por esse motivo, Freire enfatiza que não basta perceber a realidade
opressora, como se nesse reconhecimento estivesse encerrada a libertação ou a
recuperação da humanidade roubada. Para FREIRE (1987):
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como
produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso.
Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na
“inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar
a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens
(p. 37).
Nesse sentido, a transformação da realidade opressora exige a inserção
crítica dos oprimidos de maneira objetiva e atuante, é o que Freire chama de práxis
autêntica que implica na ação e na reflexão, na união entre objetividade e
subjetividade, na união entre consciência e mundo.
A questão da objetividade e da subjetividade está presente nas obras de
Paulo Freire e unidas de maneira dialética. Segundo FREIRE (1987), a objetividade
não se encontra separada da subjetividade, da mesma maneira que não existe ser
humano sem mundo e nem mundo sem homens e mulheres. Sendo assim, a situação
de opressão real, bem como as estruturas condicionantes, constituem a objetividade e
a consciência da realidade opressora constitui a subjetividade.
Como afirma FREIRE (ibidem): não se pode pensar em objetividade sem
subjetividade, não há uma sem a outra que não podem ser dicotomizadas (p.38). Por
isso que a práxis autêntica implica na dialeticidade entre subjetividade – consciência
que deve perpassar a todos os homens e mulheres – e objetividade – estruturas
sociais.
O autor contrapõe os conceitos de objetividade e subjetividade ao de
subjetivismo e objetivismo, uma vez que são incapazes de apreender a tensão entre
consciência e mundo. A dialeticidade existente entre objetividade e subjetividade
recusa a compreensão da consciência como reflexo da objetividade material, da
mesma maneira que não a entende como determinante da realidade (FREIRE, 1992,
p.101).
É por isso que a compreensão da realidade opressora é possível aos
oprimidos, desde que, a consciência de classe oprimida passe pela consciência de
sujeito oprimido.
Até aqui, viemos discutindo a concepção de realidade opressora presente
nas obras de Paulo Freire, assim como a possível superação dessa mesma realidade
a partir da tomada de consciência dos oprimidos, na qual a Pedagogia do Oprimido
pode ser um instrumento para tal, desde que reconhecendo a realidade opressora –
situações limites – se volte ativamente sobre ela, objetivando sua transformação –
61
inédito viável – esse movimento de ação e reflexão sobre a realidade é o que Freire
chama de práxis autêntica. Diante disso, vale aqui discutirmos as dificuldades em se
transformar a realidade opressora quando o oprimido dá-se conta dela.
Em uma fase inicial de reconhecimento da realidade opressora, os
oprimidos tendem a converter-se em opressores, guardam a figura do opressor dentro
de si, pois tem nele o modelo do que consiste ser homem.
Esse deslocamento de um pólo de contradição a outro não ocorre somente
com os oprimidos que aspiram ser opressores, o inverso também ocorre, ou seja, há
opressores que passam para o lado dos explorados, mas não acreditam em sua
capacidade de transformação, falam de homens, mas não têm confiança neles
(FREIRE, 1980, p. 60), gerando assim, uma falsa generosidade que precisa ser
justificada a todo custo, não permitindo que o oprimido mude sua condição de
dependência.
Segundo FREIRE (ibidem), os oprimidos vivenciam uma situação de
dependência. O fenômeno da dependência gera no oprimido a cultura do silêncio,
assumindo apenas o eco do opressor.
Nesse tipo de situação, Paulo Freire afirma que o nível de consciência não
se distancia suficientemente da realidade a fim de objetivá-la, desconhecendo-a de
maneira crítica. Assim, na consciência denominada semi-intransitiva, os homens e as
mulheres procuram justificar a situação opressiva que vivenciam atribuindo a ela uma
causa superior ou mesmo fruto de suas próprias ações, os sujeitos que passam por
esta situação carecem do que Freire chama de “percepção estrutural”:
(...) a qual se faz e se refaz a partir da realidade concreta, na
apreensão da problemática. Não tendo tal percepção estrutural, os
homens atribuem a origem dos fatos e das situações, em sua vida,
seja a uma realidade superior, seja a uma causa interior a si mesmos.
Em ambos os casos a causa da problemática é algo que está fora da
realidade objetiva
(FREIRE, 1980, p.67).
O homem em seu cotidiano faz uma aproximação espontânea da
realidade, não alcançando, portanto, uma posição crítica. Para chegar ao nível da
consciência crítica, os homens e as mulheres precisam tomar um distanciamento da
realidade, percebendo-a objetivamente. Já explanamos que a conscientização vai
muito além da percepção da realidade opressora, não basta estar frente a ela, mas
sim transformá-la, é isso o que consiste a práxis: ação-reflexão-ação sobre a
realidade.
Sendo assim, a conscientização permite que o homem transcenda os
limites da realidade opressora, uma vez que a compreendendo como fruto da própria
ação do ser humano, se sente potencialmente capaz de transformá-la.
62
Não obstante, a dimensão conscientizadora só se viabiliza por meio da
experiência dialógica, que no interior dessa teoria não é percebida como instrumento a
ser utilizado pelo educador, mas sim de uma exigência da própria natureza humana,
pois é condição para a comunicação.
A experiência dialógica é fundamental para a construção da
curiosidade epistemológica. São constitutivos desta: a postura crítica
que o diálogo implica; a sua preocupação em apreender a razão de
ser do objeto que medeia os sujeitos dialógicos.
Preocupa-me a crescente distância entre a prática educativa e o
exercício da curiosidade epistemológica. Temo que a curiosidade
alcançada por uma prática reduzida à pura técnica seja uma
curiosidade castrada, que não ultrapassa uma posição cientificista
diante do mundo
(FREIRE, 2000, p. 81).
É nesse sentido que a educação não consiste em um ato de depositar nos
educandos os conhecimentos como se fossem vazios. A inexistência do diálogo
pressupõe a falta de confiança nos oprimidos e na sua capacidade de transformação.
É no diálogo que educador-educando aprendem e descobrem que podem
oferecer novas interpretações aos conhecimentos produzidos e tidos como
verdadeiros. A relação dialógica é o selo do ato cognoscitivo, em que o objeto
cognoscível, mediatizando os sujeitos cognoscentes, se entrega a seu desvelamento
crítico (FREIRE, 1981, p. 116).
Consideramos importante transcrever esse excerto de FREIRE (1992) no
qual define o verdadeiro sentido do diálogo:
O diálogo tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos
não apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim
crescem com o outro. O diálogo por isso mesmo não nivela
, não
reduz um ao outro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa
para confundir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental
dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não
permite que se constitua
(p. 118, grifos no original).
É assim, através do diálogo, que a prática pedagógica passa a ser
caracterizada pela horizontalidade que permite a palavra do educando e com ela a
valorização da história de cada sujeito envolvido no processo educativo, assegurando
que aos poucos os muros antidialógicos passam a ser percebidos e desconstruídos,
que é pela análise de nossa própria linguagem, da análise da forma como
apreendemos e expressamos o mundo que o processo educativo, portanto o processo
de conscientização têm início.
Tendo exposto alguns dos pressupostos presentes nas obras de Freire e
enfatizando aqui que o trabalho educativo tem como objetivo central a
conscientização, que só se viabiliza pelo diálogo, apresentaremos no próximo tópico a
63
alfabetização como a iniciadora desse processo.
2.4. A ALFABETIZAÇÃO NA PERSPECTIVA FREIRIANA.
Verificamos na atualidade uma preocupação em inúmeros países no
tocante a medida do nível de letramento da população, pois este se tornou um forte
indicador de desenvolvimento social.
Essas pesquisas apontam que através da avaliação das habilidades de
leitura e de escrita é possível correlacionar o índice de alfabetização com outros
indicadores sociais como saúde, emprego e desenvolvimento (RIBEIRO, VÓVIO e
MOURA, 2001 e INFANTE, 2002).
Consideramos as discussões acerca do letramento extremamente
pertinentes, pois segundo SOARES (2003), o processo de alfabetização envolve duas
dimensões que necessitam ser asseguradas. Essas dimensões relacionam-se ao fato
de que não basta ter domínio sobre o sistema alfabético para a efetiva compreensão
dos diferentes materiais escritos que circulam em nossa sociedade e nem o contato
com esses diferentes materiais assegurariam a aprendizagem do sistema grafo-fônico,
que requer instrução sistematizada. Esse descompasso verificado é um dos principais
responsáveis por práticas de alfabetização ineficientes.
Contudo, não acreditamos em práticas alfabetizadoras neutras, capazes
de elevar o desenvolvimento social por si sós. A alfabetização, assim como todo o
processo educativo, não podem ficar alheios às discussões sobre poder e cultura, já
discutidos por nós no início do tópico 6 do primeiro capítulo.
Paulo Freire sem fazer uso do termo letramento já avançava em sua
concepção de leitura e escrita, pois essas sempre foram compreendidas como além
do simples codificar e decodificar letras, se referindo às possibilidades de produzir e
de ser produto da cultura, fazendo uso da leitura e da escrita para agir no e sobre o
mundo:
É entender o que se lê e escrever o que se entende. É comunicar-se
graficamente. É incorporação. Implica não em uma memorização
mecânica das sentenças, das palavras, das sílabas desvinculadas de
um universo existencial – coisas mortas ou semimortas -, mas uma
atitude de criação e recriação. Implica uma auto-formação da qual
pode resultar uma postura atuante do homem sobre seu contexto
(FREIRE, 1979, p.72).
É nesse sentido que ler e escrever configuram-se em possibilidades de
64
atuação na sociedade, transformando as relações e as práticas sociais produtoras da
opressão.
A alfabetização crítica proposta por Freire é capaz de ampliar a
consciência por meio do diálogo e da aprendizagem da leitura, caminhando para o
desenvolvimento, não necessariamente o econômico, mas aquele que atende aos
anseios dos sujeitos envolvidos no processo educativo, portanto à humanização.
Nessa perspectiva, o processo de alfabetização encontra-se mais diretamente ligado à
dimensão política e cultural do desenvolvimento social.
De acordo com GIROUX (1990), é difícil encontrar movimentos de
alfabetização com um caráter crítico como o proposto por Freire. Quase sempre, a
linguagem da alfabetização está vinculada a formas populares do discurso liberal, que
a reduzem à perspectiva funcional, preocupando-se em formar mais trabalhadores
com a habilidade de leitura e escrita ou para iniciar as camadas desprivilegiadas ao
discurso tradicional dominante, do trabalho perseverante e do respeito à autoridade
institucional.
É nesse sentido que a alfabetização, enquanto uma construção histórico-
social pode ser um veículo tanto de reprodução das relações de opressão, como de
emancipação individual e social.
Acreditamos que a proposta da alfabetização crítica de Paulo Freire pode
ser um instrumento que possibilite a emancipação social, cultural e pessoal, sendo
capaz de superar as atuais desigualdades configuradas no interior do novo modelo de
sociedade.
Se a educação não é fazedora da cidadania, a alfabetização, e
sobretudo uma certa forma de trabalhar a alfabetização
, pode
constituir-se num fator, numa espécie de empurrão necessário na
busca da cidadania. É preciso ficar claro o fato de ler hoje o que não
lia ontem, em termos de palavras, não significa que ninguém virou
cidadão
(FREIRE, 1990, p. 132, grifos nossos).
Essa forma de trabalhar a alfabetização que destacamos no excerto acima
se refere à própria alfabetização crítica, ela é precondição para o engajamento em
lutas em torno tanto de relações de significado, quanto de relações de poder.
Ao falar sobre a alfabetização na perspectiva freiriana, GIROUX (ibidem),
afirma que há na alfabetização crítica uma relação dialética entre os seres humanos
com o mundo e entre a linguagem e a ação transformadora.
Como descrevemos, com base em GIROUX (1993), as práticas de
alfabetização características da ideologia instrumental e interacionista, ignoravam a
questão ideológica da cultura, que servia unicamente para legitimar as expressões da
classe dominante, assim como desconsideravam a linguagem como legitimadora das
65
relações de poder e, portanto de opressão.
Paulo Freire, diferentemente da ideologia reprodutivista, elaborou um outro
conceito para cultura, que não serve unicamente à reprodução cultural e também para
a alfabetização que é compreendida como uma linguagem da possibilidade. Nas
palavras de GIROUX (1993):
Freire considera a cultura em termos dialéticos. Em outras palavras,
no núcleo de seu conceito de alfabetização, está a concepção de que
a cultura contém, não somente um momento de dominação, mas
também a possibilidade de que os oprimidos produzam, reinventem e
criem os dispositivos materiais e ideológicos de que necessitam para
romper os mitos e estruturas que os impedem de transformar uma
realidade social opressiva. Em essência Freire definiu e usou sua
teoria da alfabetização para criticar o processo de reprodução cultural
enquanto, simultaneamente, une a noção de reprodução cultural ao
processo de reflexão crítica e ação cultural
(p. 81, grifos nossos).
As formas tradicionais de alfabetização ignoravam as expressões culturais
e as habilidades das classes oprimidas. A alfabetização crítica, por sua vez, promove
a emancipação social, cultural e pessoal já que possibilita que os oprimidos se
reconheçam como protagonistas de suas histórias, oferecendo instrumentos
necessários para o intercâmbio e a transformação da sociedade. A alfabetização
crítica, ainda segundo GIROUX (ibidem):
Está baseada em uma visão de conhecimento humano e da prática
social que reconhece a importância do uso do capital cultural do
oprimido a fim de valorizar as vozes e as formas de saber que usa
para negociar com a sociedade dominante
(p. 82).
FREIRE (1987) sempre considerou em sua proposta de alfabetização a
concepção de que a linguagem do educando deve ser o ponto de partida do processo
educativo, pois nessa linguagem estão presentes os conhecimentos e a visão de
mundo dos educandos, sejam eles crianças ou adultos. Sua proposta de alfabetização
consiste em um exame crítico dessa linguagem onde podem ser desveladas as
inculcações da ideologia dominante.
A alfabetização é um ato criador. Eu estava convencido de que
ninguém ensina língua a ninguém. Ensina a gramática. Linguagem
não se ensina. Linguagem é uma produção social e é socialmente
adquirida, portanto não pode ser objeto de ensino de “a” a “z”.
Quando a criança vem para a escola alfabetizar-se [assim como o
adulto], já tem uma competência lingüística. Ela tem comando da
oralidade. Então, o que ela vai aprender são as técnicas de ler e
escrever, simultaneamente à oralidade. Isso é o que a gente ensina,
a gente não ensina a linguagem. A linguagem a gente apreende e
aprende socialmente
(FREIRE, 1993, apud. PELANDRÉ, 2005,
p. 58).
66
O processo de alfabetização não se realiza em dicotomia com a
linguagem, com o discurso, com a oralidade do educando, ele resulta da leitura do
mundo que precede a leitura da palavra (FREIRE, 1993, p. 59). Assim, a voz dos
educandos é o meio de examinarem a experiência com o mundo, passando a refleti-lo
de forma crítica.
Segundo GIROUX (1990), a alfabetização no sentido freiriano parte de
uma análise completa de como se produz o conhecimento e de como se constroem as
subjetividades no interior das relações sociais. Quanto educandos e educadores
dialogam, também é possível a construção de novos conhecimentos e subjetividades,
já que por meio do diálogo e do exame crítico há a produção de novos significados.
Ao descrevermos o “método” de alfabetização na perspectiva freiriana,
procuramos enfatizar o quanto é importante o trabalho de descoberta da linguagem do
educando antes mesmo de se iniciar a alfabetização. É na linguagem dos educandos
que estão presentes os temas e as palavras geradoras, em torno dos quais, se inicia a
discussão crítica acerca do porque daquela mesma linguagem. Os educandos e
educadores expressam suas concepções e, em diálogo, traçam novos sentidos para o
mundo que lêem.
De acordo com FREIRE (1990), a reprodução da ideologia dominante
implica na ocultação de verdades muitas vezes presentes em nossa própria
linguagem, ou seja, na maneira como apreendemos e interpretamos o mundo. O
desvelamento dessas verdades está dentro do espaço das mudanças possíveis posto
na alfabetização crítica.
O alfabetizador que opta pelo desenvolvimento de um trabalho no interior
da perspectiva crítica deve inventar e criar métodos com os quais utilizem o universo
cultural dos educandos como ponto de partida fazendo com que sejam capazes de
reconhecerem-se como possuidores de uma identidade cultural específica e
importante (FREIRE, ibidem, p. 75).
Um trabalho de alfabetização nessa ótica exige o respeito e a legitimação
dos discursos dos educandos, tomando-se o cuidado de perceber que a linguagem
não é unicamente um veículo de comunicação, mas é também envolta em ideologia
que necessita ser desvelada, considerando-se que: (...) ninguém desvela o mundo do
outro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço do desvelamento aos outros, é
preciso que estes se tornem sujeitos do ato de desvelar (FREIRE, 1987, p. 167).
Nesse sentido, a compreensão do conceito de síntese cultural é
indispensável para a alfabetização crítica. Sem a compreensão deste eixo de reflexão
o ato educativo se resume em ação cultural que contribui para a manutenção das
desigualdades sociais. Toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada e
67
deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la
como está ou mais ou menos como está, ora no de transformá-la (FREIRE, ibidem, p.
178).
A ação cultural que se funda no diálogo verdadeiro pretende a superação
das contradições que causam a negação da humanidade, por isso é chamada por
Freire de síntese cultural.
A síntese cultural é a modalidade de ação com que, culturalmente, se
fará frente à força da própria cultura, enquanto mantenedora das
estruturas em que se forma.
Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação histórica, se
apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada
e alienante
(ibidem, p. 180).
Daí a importância do trabalho de alfabetização que se inicie pela discussão
do conceito antropológico de cultura, para que o educando perceba que também é
produtor e produto de uma cultura rica e específica que deve passar a ser valorizada,
iniciando-se pela valorização de si próprio, tal como nos indicou FREIRE (1980).
Mesmo que os educadores estejam bem intencionados quanto ao seu
papel de “democratizadores da cultura”, levando conhecimentos e habilidades
necessários ao exercício da cidadania e da participação social, a aquisição da língua
padrão dominante, por ela mesma, apenas sustenta a ideologia que rejeita a
expressão cultural de grupos que não são constituídos pela classe hegemônica. É
dessa forma que ressaltamos uma das modalidades da ação antidialógica descrita por
FREIRE (1987) conhecida como invasão cultural.
A invasão cultural é a forma como a cultura do opressor, ou invasor, toma
o oprimido, ou invadido, impondo sua visão de mundo, freando a criatividade e
reforçando sua superioridade.
Na ação cultural antidialógica, os conhecimentos valorizados socialmente,
como a leitura e a escrita, são transmitidos como conhecimentos acabados, bastando
aos educandos aceita-los passivamente.
Na ação cultural, que se funda no diálogo, na compreensão de sujeitos que
se encontram para anunciarem e transformarem o mundo, portanto, na síntese
cultural, há o enriquecimento das visões de mundo:
O saber mais apurado da liderança se refaz no conhecimento
empírico que o povo tem, enquanto este ganha mais sentido naquele.
(...) A síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra,
pelo contrário, se funda nelas. O que ela nega é a invasão de uma
pela outra. O que ela afirma é o indiscutível subsídio que uma dá à
outra
(FREIRE, 1987, p. 181).
Como afirma FREIRE (1987), não podemos esperar resultados positivos
68
de campanhas e práticas alfabetizadoras que desrespeitam o universo cultural dos
educandos.
No entanto, embora devemos sempre considerar como ponto de partida a
linguagem do educando, esta, por sua vez não constitui o ponto de chegada. Freire
parte de uma concepção de alfabetização que considera o saber das classes
populares como ponto de partida para o processo educativo. Não se trata de
simplesmente confirmar o pensamento do educando, Freire na verdade, propõe que
se parta dele, para assim chegar à síntese cultural. A passagem do senso comum
popular para o conhecimento científico é um direito das classes populares:
Daí que, em nome do respeito à cultura dos camponeses, por
exemplo, não lhes possibilitar que vão mais além de suas crenças em
torno de si-no-mundo e de si-com-o mundo, revele uma ideologia
profundamente elitista. É como se desvelar a razão de ser das coisas
e ter delas um conhecimento cabal fosse ou devesse ser privilégio
das elites
(FREIRE, 1992, p. 84).
Nesse sentido, chegar a dominar a leitura e a escrita é uma parte
importante do processo de transformação, já que não saber ler e escrever tem gerado
situações de desigualdade que limitam e dificultam a atuação em sociedade, sendo
mais agravadas no contexto da sociedade informacional. Porém, não podemos
desconsiderar que as situações de opressão não se configuram unicamente sobre a
relação alfabetizado – analfabeto.
Através do processo de alfabetização, os sujeitos nele envolvidos, portanto
educador e educando, podem desvelar as relações de poder presentes na sociedade,
das quais fazem parte como opressores e oprimidos e traçar objetivos para a
transformação dessas situações de opressão.
Como afirma FREIRE (2000), não basta ao educando acreditar que o
domínio dos códigos convencionais da leitura e da escrita assegure por si só a
transformação das estruturas que condicionam a opressão. Embora esses códigos
garantam uma transformação na qualidade de vida do educando, que inicia o processo
de alfabetização, ao descobrir o direito de participação presente na linguagem escrita,
direito este que foi durante tanto tempo negado.
Nesse sentido, consideramos interessante transcrever esse excerto de
FREIRE (ibidem), no qual comenta sobre a alfabetização de uma camponesa:
Quero aprender a ler e a escrever, disse, certa vez, uma camponesa
de Pernambuco, para deixar de ser sombra dos outros (...).
Aprender a ler e a escrever mostraria a ela depois, que, em si, não
basta para que deixemos de ser sombra dos outros; que é preciso
muito mais. Ler e escrever a palavra só nos fazem deixar de ser
sombra dos outros, quando, em relação dialética com a leitura do
mundo, tem que ver com o que chamo a re-escrita do mundo, quer
69
dizer com a sua transformação. Daí a natureza política, não
necessariamente partidária, da educação em geral, da de adultos e
da alfabetização em particular
(p. 40).
Embora a noção de superioridade lingüística seja uma imposição
infundada, os grupos que não dominam esses códigos necessitam dominá-los, já que
são sobre estes, que os eixos de exclusão relacionados ao analfabetismo estão
configurados, sem esquecer, no entanto, que a língua padrão dominante não oferece
os instrumentos críticos para a desmistificação da imagem distorcida que temos de
nós mesmos e do mundo.
O domínio da cultura dominante pelo dominado também é ressignificado
na perspectiva da alfabetização crítica, pois ela se transforma em instrumento que
pode potencializar a luta pela libertação. Sobre esse ponto consideramos interessante
transcrever a fala de Paulo Freire extraída de um dos diálogos com Donaldo Macedo
em que comenta como a cultura dominante passa a ser lida pelo dominado que se
descobre também dono de cultura:
Quando era meramente cultura dominada, estava sujeita à
doutrinação e estava domesticada. Agora, porém, embora ainda
dominada, ela quer libertar-se. E, nesse processo de querer libertar-
se, descobre também que a cultura dominante, exatamente por ser
dominante, foi obrigada a desenvolver uma série de estratégias
analíticas e científicas para alcançar seus propósitos. A cultura
dominante desenvolve essas estratégias para analisar e explicar o
mundo com vistas a dominá-lo. Quando a cultura dominada percebe a
necessidade de libertar-se, descobre que tem que tomar a iniciativa e
desenvolve suas próprias estratégias como utiliza as da cultura
dominante. A cultura dominada faz isso, não simplesmente para
ajustar-se, mas para lutar melhor contra a opressão
(FREIRE, 1990,
p. 131).
Por esse motivo, que afirmamos que a alfabetização crítica envolve todas
as dimensões do processo de alfabetização, já que privilegia a união entre a leitura do
mundo e da leitura da palavra.
Quanto ao aspecto instrumental do ensino, FLECHA (1997) afirma que se
trata de desenvolver junto aos educandos um conhecimento que os adapta ao
contexto da sociedade atual, quando deveria contribuir para sua transformação. Na
aprendizagem dialógica todas as dimensões da aprendizagem são incluídas: a
dimensão comunicativa e a instrumental, a leitura do mundo e a leitura da palavra,
desde que os sujeitos envolvidos no processo concordem em aprendê-las. El dialógico
no se opone al instrumental, sino a la colonización tecnocrática del aprendizaje. Es
decir, evita que los objetivos y procedimientos sean decididos al margen de las
personas, escudándose en razones de tipo técnico que esconden los intereses
exclusores de unas minorías (ibidem, p. 33).
70
Segundo AGUIRRE (1997), a informação e os conhecimentos valorizados
socialmente devem ser distribuídos e reconstruídos quando consideramos o
desenvolvimento individual e coletivo e isto deveria ser o principal objetivo da
Educação de Adultos. O mesmo autor ainda afirma:
Por tanto, las políticas educativas, entre ellas la de la EA [Educação
de Adultos], para invertir el proceso de marginación y exclusión de
millones de personas, esto es, permitirles que sean sujeitos
individuales y colectivos de sua historia a través de la participación en
las instituiciones culturales, econômicas y políticas de sus
sociedades, han de transformar a estas personas en receptoras y
constructoras de capital simbólico. Ahora bien, esta transferecia no
puede hacerse a culquier precio, es decir, creando nuevas relaciones
de dependência, sino potenciando modelos de desarrollo endógenos
que, partiendo de la diversidad cultural, logren que los indivíduos y las
sociedades se apropien de ese capital (AGUIRRE, 1997, p.55-56,
grifos nossos).
Freire não desconsidera a importância dos saberes técnicos,
principalmente se considerarmos o momento social atual, porém não os toma como
um fim em si mesmos:
Para nós progressistas, não há como pensar numa preparação
técnica em si mesma, que não se pergunte a favor de que, de quem e
contra que se trabalha. Do ponto de vista pragmatista, desde que já
não há direita nem esquerda, interessa tornar as pessoas mais
competentes para enfrentar as dificuldades com que se defrontam
(FREIRE, 2004, p. 42).
Depositar conteúdos nos educandos como se esses fossem capazes de
despertar a consciência crítica é cair em uma compreensão mágica do conteúdo na
qual a leitura de mundo deixa de ter importância.
Sendo assim, entendemos a alfabetização como aquele processo pelo
qual alguém se torna autocrítico a respeito da natureza historicamente construída de
sua própria experiência, possibilitando um processo maior que é o de transformação
social, a criação de um lugar onde caibam todas as diferenças e ninguém ocupe um
lugar mais privilegiado que outro.
É assim, que pela leitura do mundo passa-se a ler a palavra,
compreendendo a natureza política dos limites, bem como das possibilidades que
caracterizam sua existência e a sociedade.
Viemos relacionando o analfabetismo aos eixos de desigualdade social,
cultural e pessoal. Social, pois saber ler e escrever é considerado habilidade mínima
requerida para o processamento da informação, condição indispensável para a
participação no mundo do trabalho e para a atuação na própria sociedade, limitando o
exercício da cidadania, a atuação em espaços públicos e em práticas sociais que
71
requerem o uso da leitura e da escrita; cultural, pois o analfabetismo é compreendido
com falta de cultura por diferir das expressões valorizadas no espaço escolar e
pessoal por ser resultado de um processo de auto-exclusão originado da
internalização dos discursos que legitimam as relações de desigualdade.
Comumente, o adulto não alfabetizado é entendido como uma pessoa que
vive a margem da sociedade. FREIRE (1980) afirma que compreender o
analfabetismo como um processo de marginalização social é fruto da percepção não-
estrutural da sociedade, já que as relações de opressão são criadas e mantidas pelos
próprios homens e mulheres.
Para FREIRE (ibidem), o homem marginalizado não é um ser fora de, é um
homem oprimido no interior da sociedade. Alfabetizá-lo, não significa permitir-lhe voltar
à estrutura, mas sim lhe permitir o abandono da condição de ser para o outro, permite
a libertação (p. 75).
Na realidade, estes homens – analfabetos ou não – não são
marginalizados. Repetimos: não estão “fora de”, são seres para o
outro. Logo, a solução de seu problema não é converterem-se em
“seres do interior de”, mas em homens que se libertam, porque não
são homens à margem da estrutura, mas homens oprimidos no
interior desta mesma estrutura
(FREIRE, 1980, p. 75).
Alfabetizar, “dar a palavra” em uma concepção de educação menos crítica
significa permitir que o analfabeto volte à estrutura.
Para a concepção crítica, o analfabetismo nem é uma “chaga” nem
uma “erva daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma
enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade
social injusta. Não é um problema estritamente lingüístico, nem
exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a
alfabetização através da qual se pretende superá-lo
(FREIRE, 1981,
p. 13).
É nesse sentido que o processo de alfabetização não pode se configurar
em uma espécie de culto salvador, no qual as palavras passam a ser depositadas nos
educandos, pressupondo então, que estes são desprovidos das palavras e, portanto
de experiências. Daí a importância de se iniciar a alfabetização pelos discursos dos
alfabetizandos, a partir de seu próprio universo vocabular.
Problematizar a palavra significa problematizar o contexto ao qual se
refere, desvelando a razão de ser dos fatos.
É necessário reconhecer que o analfabetismo não é em si um freio
original. Resulta de um freio anterior e passa a tornar-se freio.
Ninguém é analfabeto por eleição, mas como conseqüência das
condições objetivas em que se encontra
(FREIRE, 1981, p. 16).
Freire ainda comenta que o analfabeto é aquele que não necessita ler, ou
72
então, aquele a quem foi negado o direito de ler e escrever. No primeiro caso, o
homem ou a mulher que não lêem pertencem a uma cultura em que a oralidade é mais
importante, sendo que os conhecimentos necessários para se viver são passados
através da cultura oral. Porém, no segundo caso, o analfabeto é aquele ou aquela que
participando de uma cultura letrada, não tiveram oportunidade de alfabetizar-se
(FREIRE, ibidem, p. 16).
Dessa forma, indicamos que o início do processo de alfabetização pode
ser um momento propício para se problematizar o próprio analfabetismo, revelando
suas origens estruturais que se relacionam com o conceito de ideologia da interdição
do corpo já discutido em nosso primeiro capítulo.
O processo de alfabetização, mesmo que em seu início pode ser uma
experiência potencializadora de outras experiências na esfera pessoal e social.
Experiências essas que podem contribuir para a superação de algumas das atuais
desigualdades, que como vimos são reforçadas pelo componente cultural. Dentro do
contexto da sociedade atual, ter acesso aos conhecimentos sistematizados pela
escola tornou-se um fator de discriminação, não saber ler e escrever, neste contexto, é
sinônimo de “falta de cultura” e de “desqualificação” para o mercado de trabalho.
A seguir, apresentaremos a metodologia percorrida por nós na busca de
quais experiências pessoais e sociais se relacionam com o início da aprendizagem da
leitura e da escrita.
73
CAPÍTULO III
PERCURSO METODOLÓGICO
O presente capítulo destina-se à exposição da metodologia percorrida por
nós na realização deste trabalho. Dessa forma, apresentamos inicialmente nossa
questão de pesquisa, nossos objetivos e em seguida, os procedimentos para a coleta
e análise dos dados.
Neste capítulo ainda trazemos a caracterização da proposta do Programa
Brasil Alfabetizado do Governo Federal e a configuração de sua implantação no
município de São Carlos-SP. Realizamos também a descrição da sala de aula do
Programa Brasil Alfabetizado, da qual os educandos entrevistados participaram, assim
como a descrição de cada alfabetizando participante da pesquisa.
De acordo com nossa introdução, partimos da compreensão de
experiências como aquilo que é capaz de tocar, de atingir e de transformar de alguma
maneira o sujeito que experiencia. Entendemos o processo de alfabetização como
sendo uma experiência capaz de possibilitar outras experiências localizadas nas
esferas pessoal e social. Dessa maneira, acreditamos que, mesmo o domínio da
dimensão técnica da leitura e da escrita é capaz de minimizar algumas experiências
de desigualdade configuradas em nossa sociedade, sendo assim, a realização desta
pesquisa pretendeu contemplar a seguinte questão de pesquisa:
Na perspectiva de adultos alfabetizandos, quais experiências
pessoais e sociais se relacionam com o início da aprendizagem da leitura e da
escrita?
Buscando responder nossa questão, a desdobramos nos seguintes
objetivos:
- Identificar e analisar as experiências pessoais e sociais que se
configuraram antes do aprendizado da leitura e da escrita, ou seja, experiências
antidialógicas no interior do analfabetismo;
- Identificar e analisar as experiências pessoais que se relacionam ao
aprendizado da leitura e da escrita;
74
- Identificar e analisar as experiências sociais que foram possíveis a partir
do aprendizado da leitura e da escrita;
Realizamos a pesquisa a partir de um tratamento metodológico pautado na
abordagem qualitativa. BOGDAN e BIKLEN (apud. LÜDKE e ANDRÉ, 1986) afirmam
que na pesquisa qualitativa o “significado” atribuído pelas pessoas são focos de
atenção especial pelo pesquisador, dessa forma, nesses estudos há sempre uma
tentativa de capturar a perspectiva dos participantes, isto é, a maneira como os
informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas (ibidem, p. 12).
Desta forma, realizamos entrevistas semi-estruturadas junto aos ex-
participantes da sala de alfabetização de adultos, na qual atuamos como
alfabetizadora. Foram selecionados seis educandos que após o término das aulas do
Programa Brasil Alfabetizado, se matricularam, no início do ano letivo de 2004, na
Educação de Jovens e Adultos – EJA-São Carlos – dando continuidade assim, aos
seus estudos.
Acreditamos que a metodologia selecionada é concernente ao nosso
referencial teórico, pois como afirma VALLA (1996), temos que prestar atenção ao que
dizem as classes populares, pois com elas poderemos solucionar uma equação que
até o momento se encontra incompleta, já que conta apenas com a interpretação da
realidade fornecida pelos acadêmicos.
De posse das entrevistas, realizamos a análise do conteúdo à luz do
referencial teórico, buscando contemplar nossa questão de pesquisa, que era
identificar e analisar as experiências pessoais e sociais que se relacionam com o início
da aprendizagem da leitura e da escrita, na perspectiva de adultos alfabetizandos.
3.1. PROCEDIMENTOS PARA COLETA E ANÁLISE DOS DADOS.
Para a coleta dos dados da presente pesquisa, fizemos uso da entrevista
semi-estruturada organizada em torno de 15 questões que se encontram ao final da
dissertação (APÊNDICE I).
As entrevistas foram previamente agendadas com os sujeitos e se
realizaram em suas residências, sendo gravadas em cassete, posteriormente as
mesmas foram transcritas, onde pudemos realizar o levantamento temático. Para o
exame de Defesa, optamos por manter em anexo apenas uma das entrevistas
realizadas (APÊNDICE II).
A análise dos dados foi realizada com base na análise do conteúdo.
75
Segundo BARDIN (1979, apud. MINAYO, 1993), a análise do conteúdo pode ser
definida como:
Um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter,
por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a
inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção destas mensagens
(p. 199).
Embora a análise do conteúdo tenha sido durante muito tempo, aplicada
às pesquisas quantitativas, a partir de 1950 sua argumentação foi aprofundada como
técnica qualitativa. De acordo com MINAYO (1993), os adeptos do enfoque qualitativo
questionaram a análise de freqüência como critério de objetividade e tentaram
ultrapassar a descrição, para atingir, mediante a inferência, uma interpretação mais
profunda do conteúdo das mensagens (p. 203).
Sendo a análise do conteúdo, um conjunto de técnicas de análise de
comunicação, optamos pela técnica de análise temática que busca os núcleos de
sentido, ou temas, que se relacionam aos objetivos da análise.
O tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um
texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia
à leitura
(BARDIN, 1979, apud. MINAYO, 1993, p. 208).
No percurso da análise temática busca-se determinar a unidade de
registro, a forma de categorização e os conceitos teóricos que orientarão a análise.
Dessa forma, após a transcrição de cada uma das entrevistas realizadas, organizamos
os relatos por temas, segundo nossos objetivos e levantamos alguns conceitos
expressos em nosso referencial teórico para a orientação da análise.
As perguntas da entrevista objetivavam que os participantes relatassem
algumas experiências pessoais e sociais configuradas no interior da condição do
analfabetismo e algumas experiências pessoais e sociais que se relacionam com o
início da aprendizagem da leitura e da escrita. Procuramos também que os
alfabetizandos relatassem por que foram impedidos de continuar ou iniciar os estudos
quando crianças e como havia sido o início do processo de escolarização.
Como afirmamos em nosso referencial teórico, na Educação de Adultos
aspectos relevantes devem ser considerados, dentre eles está o fato de que cada
educando possui uma história pessoal, desenvolvida em um contexto específico e que
por sua vez influencia na maneira em que esse sujeito aprende e interpreta o mundo,
ou seja, cada aprendizagem se desenvolve em um contexto de leitura de mundo
diferente. Dessa forma, para a organização dos dados, realizamos primeiramente,
uma caracterização individual dos educandos, pois acreditamos que as práticas
76
sociais vivenciadas por eles ao longo de sua existência influenciam na forma de
conceberem o próprio processo de alfabetização e sua relação com as experiências
pessoais e sociais.
Porém, devido à existência de temática semelhantes, principalmente no
tocante às experiências de desigualdade travadas no interior do analfabetismo e às
experiências pessoais e sociais que se configuraram após o início da aprendizagem
da leitura e da escrita, preferimos reuni-los na análise dos dados.
A seguir, apresentaremos a proposta do Programa Brasil Alfabetizado do
Governo Federal e sua implantação no município de São Carlos-SP.
3.2. PROGRAMA BRASIL ALFABETIZADO: a proposta do Governo
Federal.
O Programa Brasil Alfabetizado é a mais recente campanha de
alfabetização apresentada pelo Governo Federal, com o objetivo de alfabetizar a
população, com 15 anos ou mais que não teve a oportunidade de aprender a ler e a
escrever. A proposta do Governo resume-se a uma ação conjunta entre Governo
Federal, Estados, Municípios, empresas, organizações não governamentais,
organismos internacionais e instituições civis, desde que comprovem experiência na
área de alfabetização de jovens e adultos.
O Ministério da Educação e Cultura, por intermédio do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação – FNDE – concedeu assistência financeira para as
ações de alfabetização de jovens e adultos e também para a formação de
alfabetizadores às entidades cadastradas. Isso significa que as instituições podem
apresentar a metodologia de alfabetização que mais se adequar à realidade das
comunidades atendidas, tomando-se o cuidado de que as propostas pedagógicas
comprovem que os alunos serão capazes de ler, escrever, compreender e interpretar
textos e realizar as operações matemáticas básicas (MEC: Brasil Alfabetizado, 2003).
A proposta apresentada pelo Governo Federal ainda indica como
necessário que o alfabetizador conheça o grupo com o qual irá trabalhar antes mesmo
de iniciar o processo de alfabetização e que deverá valorizar a linguagem do
educando como ponto de partida.
A formação do alfabetizador deve pautar-se em um processo dialógico,
promover a reflexão sobre o contexto histórico e conter conhecimentos sobre as
diferentes funções da linguagem, os diferentes tipos de textos, sua interpretação e
77
produção de conhecimentos matemáticos referenciados no cotidiano dos alunos a
serem alfabetizados (MEC, ibidem).
Dessa forma, seguindo essas exigências, as entidades podem encaminhar
suas propostas indicando a população a ser atendida, a metodologia que será adotada
durante o processo de alfabetização, ficando também responsável pela formação do
alfabetizador. O MEC se encarrega de verificar a proposta, registrar os alfabetizadores
e alfabetizandos e remunerar mensalmente os educadores.
Sem dúvida a proposta de alfabetização apresentada pelo Programa Brasil
Alfabetizado possui pontos positivos, podendo inclusive ser um fortalecedor para a
superação das atuais desigualdades sociais, porém, a proposta ainda necessita de
ajustes.
Algumas mudanças já foram implantadas em 2004, como a ampliação do
período de alfabetização de seis para oito meses, aumento de 50% nos recursos para
a formação dos alfabetizadores, aumento da quantidade de turmas em regiões com
baixa densidade populacional e em comunidades populares de periferias urbanas,
implantação de um sistema integrado de monitoramento e avaliação do programa;
maior oportunidade de continuidade de escolarização, a partir do aumento de 42%
para 68% do percentual dos recursos alocados para estados e municípios (MEC:
Brasil Alfabetizado, 2004).
3.3. Proposta e implantação do Programa Brasil Alfabetizado no
município de São Carlos – SP
7
.
O município de São Carlos é conhecido pelo desígnio de capital da
tecnologia, reunindo um grande pólo tecnológico do Estado de São Paulo. A cidade
ainda concentra quatro grandes Universidades, sendo duas públicas, porém,
apresenta também uma dicotomia entre desenvolvimento e desigualdade sócio-
econômica. Segundo dados do IBGE (2000), São Carlos possuía 8.267 analfabetos
com idades superiores a 15 anos e apresentava uma taxa de aproximadamente 15,6%
de analfabetismo funcional
8
.
A dicotomia verificada no município de São Carlos relaciona-se às
7
A caracterização da proposta e implantação do Programa foi realizada com base nas
entrevistas concedidas pelas Prof
as
. Dr
as
. Claudia Raimundo Reyes e Roseli Rodrigues de
Mello, do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos.
8
Segundo o IBGE foram considerados analfabetos funcionais as pessoas com menos de
quatro anos de escolaridade.
78
características da sociedade informacional, (CASTELLS, 1994 e 1999), já que
valoriza-se a capacidade de seleção e processamento da informação, sendo que essa
habilidade é capaz de redefinir a posição das sociedade e dos indivíduos no interior
das sociedades. Dessa forma, tem-se valorizado uma elite cognitiva, que se adapta às
novas exigências da dinâmica econômica e desqualificado uma grande parcela da
população, tida como incapaz para assumir os novos postos de trabalho gerados pela
mesma dinâmica.
No início do ano de 2003, o município contava com dois Programas de
Educação de Jovens e Adultos, a suplência de 1ª a 8ª Série, que atendia 1200
eduncados e o Movimento de Alfabetização – MOVA - São Carlos, que atendia 677
alfabetizandos.
A implantação do Programa Brasil Alfabetizado no município de São
Carlos contou com a participação da equipe
9
da Secretaria Municipal de Educação e
Cultura – SMEC – e dos docentes dos Departamentos de Metodologia de Ensino
10
,
Educação
11
e Letras
12
, da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
A parceria entre a SMEC e a UFSCar foi realizada via Pró-Reitoria de
Extensão – PROEX-UFSCar como parte do Programa Democratização do
Conhecimento e do Acesso à Educação.
A proposta de alfabetização de adultos e de formação do professor
alfabetizador, tal como a exigência do MEC, foi escrita e entregue pelo próprio prefeito
da cidade, professor Newton Lima Neto, ao Ministro da Educação, na época Cristóvão
Buarque, sendo aprovada em maio de 2005, dando início então ao primeiro Programa
Brasil Alfabetizado do país.
Conforme MELLO (2004), a campanha Brasil Alfabetizado se diferencia
das campanhas anteriores por apresentar duas características singulares. A primeira
9
Equipe coordenada pelas professoras Joyce A. Trisltz Zainun e Leila A. Mendonça Lima.
10
Aida Victória Garcia Montrone (Doutorado em Educação pela Universidade Federal de São
Carlos e experiência na área de educação comunitária), Claudia Raimundo Reyes (Doutorado
na Universidade de Salamanca – Espanha – no Departamento de Teoria e História da
Educação, área de Políticas de Formação de Professores e Profissionais da Educação de
Adultos – Rede PAASB – financiado pela Comunidade Européia), Maria Aparecida Melo
(Doutorado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos), Roseli Rodrigues de Mello
(Pós-Doutorado desenvolvido junto ao Centro de Recursos de Educação de Adultos – CREA –
no centro de educação de La Verneda de San Martí, Barcelona, Espanha) e Rosa Maria
Moraes Anunciato de Oliveira (Graduação em Letras e em Pedagogia, Mestrado e Doutorado
em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, atuação no ensino fundamental, médio
e educação infantil).
11
Celso Aparecido Conti (Doutorado na Universidade de Salamanca – Espanha – no
Departamento de Teoria e História da Educação, área de Políticas de Formação de
Professores e Profissionais da Educação de Adultos – Rede PAASB – financiado pela
Comunidade Européia).
12
Marília Blundi Onofre (Doutorado em Letras, Lingüística e Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho).
79
refere-se à articulação entre diferentes segmentos sociais e o Estado, o que pode
configurar-se em redes de solidariedade. Dessa forma, é possível romper com as
polaridades existentes entre as obrigações do Estado e da sociedade civil. Na
proposta do Brasil Alfabetizado o Estado não se exime de suas responsabilidades
quanto ao financiamento e nem da qualidade para as instâncias que se comprometem
com o Programa.
A segunda característica, que difere o Programa das demais campanhas
de alfabetização, assenta-se sobre a indefinição da linha pedagógica a ser seguida,
permitindo:
(...) a articulação entre diferentes entidades e pessoas, e seus
conhecimentos – movimentos de base e entidades trabalham desde
muito tempo pela educação das pessoas jovens e adultas no país e
tem construído e constroem conhecimentos relevantes sobre o tema.
Ao evitar a divisão de esforços e potencializar as articulações entre
diferentes enfoques e alternativas de alfabetização, o Programa
consegue superar as guerras metodológicas que frequentemente se
produzem no sistema educativo, como ações de aniquilamento de
alguns conhecimentos teóricos e práticos que já estão estabelecidos,
com outros que pretendem estabelecer-se
(MELLO, 2004, p. 63).
A proposta do Programa Brasil Alfabetizado encaminhado ao MEC
objetivou um trabalho conjunto com a já existente iniciativa do MOVA-São Carlos,
aumentando assim as frentes de alfabetização na cidade e permitindo que os
professores alfabetizadores tivessem acesso à formação específica para o trabalho
desenvolvido junto a jovens e adultos.
Os professores alfabetizadores, que participaram do curso de formação
oferecido pela UFSCar e SMEC, eram compostos pelos já então professores
alfabetizadores do MOVA-São Carlos, os alunos dos cursos de Licenciatura da
Universidade Federal de São Carlos, alunos e concluintes do Curso de Magistério das
Séries Iniciais da Modalidade Normal.
Quanto à formação do professor alfabetizador, a proposta de trabalho da
UFSCar e da SMEC objetivou a organização de um curso de formação, iniciado em
julho de 2003, sendo que as sextas-feiras de cada semana ficaram reservadas para a
realização de cursos e oficinas pedagógicas em caráter presencial.
Os conteúdos foram desenvolvidos em três etapas distintas, conforme a
seguir:
1ª etapa, com duração de 40 horas:
a) História da Educação de Jovens e Adultos no Brasil e atuais Políticas Públicas (LDB,
PNE, MOBRAL e Brasil Alfabetizado);
b) Sociedade da Informação, novas exclusões e a crescente importância da linguagem
escrita;
c) A aprendizagem dialógica (princípios: diálogo igualitário, igualdade de diferenças,
80
inteligência cultural, conhecimento instrumental, transformação, criação de sentido e
solidariedade) como base do processo de Educação de Jovens e Adultos, as
contribuições de Paulo Freire;
d) O processo de aquisição da leitura e da escrita como atividade social, diferentes
funções da linguagem;
e) Preconceitos e discriminações sociais nas atividades lingüísticas: o respeito à
linguagem de jovens e adultos e a norma padrão;
f) A língua como objeto de conhecimento: o texto como o centro da aprendizagem da
leitura e da escrita;
g) Trabalhando com recursos expressivos por meio de textos;
h) A avaliação como acompanhamento da aprendizagem dos jovens e adultos: processo
permanente da construção da prática pedagógica;
i) Orientações educador/educadora para aproximação diálogo e montagem dos grupos
de alfabetizandos/as na comunidade;
2ª etapa, com duração de 60 horas:
j) Conhecendo as comunidades e aprendendo a lidar com a diversidade;
k) Orientações para o planejamento de curso/aulas;
l) Elaboração de atividades e materiais pedagógicos específicos para jovens e adultos,
considerando as diferenças entre as comunidades;
m) Discussão da atuação realizada pelos educadores e educadoras junto aos grupos de
alfabetizandos/as;
n) Problematização e escolha de intervenções mais adequadas para o contexto
específico de alfabetizandos/as;
3ª etapa, com duração de 60 horas:
o) Fórum de debates
13
e reflexões sobre a educação de jovens e adultos como processo
educativo ao longo da vida.
Como podemos perceber a proposta do Programa Brasil Alfabetizado da
UFSCar e da SMEC traz em seu bojo a união entre a dimensão comunicativa e a
dimensão instrumental (FLECHA, 1997). Nesse sentido, o curso de formação do
professor alfabetizador depositou ênfase nos princípios da aprendizagem dialógica,
defendidos por Paulo Freire, ressaltou a importância no conhecimento das
comunidades, em que o alfabetizador atuaria, sem diminuir a relevância dos
elementos relacionados ao processo de aprendizagem da leitura e da escrita,
imprescindíveis ao processo de alfabetização.
Os docentes da UFSCar e a equipe da SMEC realizaram encontros
semanais com os professores alfabetizadores, podendo acompanhar as atividades
que eram propostas às turmas de alfabetização.
A Atividade Curricular de Integração Ensino Pesquisa e Extensão –
ACIEPE – foi oferecida em caráter de disciplina para os alunos das Licenciaturas da
13
O Fórum de debates resultou na realização do I e do II Congresso Regional de Educação de
Pessoas Adultas – CREPA -, realizados em 2003 e 2005, respectivamente e do I Congresso de
Participantes de Educação de Pessoas Adultas – ConPAR -, realizado também em 2005. Estes
Congressos reuniram professores e pesquisadores da alfabetização e da educação de adultos,
que encontraram espaço para compartilharem suas experiências e reflexões.
81
UFSCar e em caráter de extensão para os educadores e educadoras do MOVA-São
Carlos. Nesses encontros tinha-se a oportunidade de refletir sobre as atividades que
eram propostas durantes os encontros com os alfabetizandos e tirar dúvidas quanto
aos conteúdos a serem trabalhados e na elaboração de material didático.
A ACIEPE foi um importante lócus de interação entre os educadores
alfabetizadores que relatavam o desenvolvimento das aulas e trocavam
conhecimentos e experiências teóricas e práticas.
A proposta do Programa implantado na cidade de São Carlos pode ser
caracterizada como um processo dialógico, na qual privilegiou a reflexão do educador,
assim como defendeu, desde o início, que o alfabetizador entrasse em contato com a
realidade vivenciada pelos educandos, antes mesmo de iniciarem os encontros de
alfabetização.
Além desses pontos, ainda acrescentamos o respeito dado às diversas
metodologias adotadas pelos educadores, que eram discutidas durante as ACIEPES,
permitindo que experiências bem sucedidas e que partiam de diferentes enfoques
teóricos não fossem abandonadas.
Quanto à alfabetização dos jovens e adultos, a proposta detalha que o
processo de alfabetização compreenderia um período de duas horas diárias, de
segunda a quinta-feira, ficando as sextas-feiras, como já afirmamos, destinadas à
formação permanente do alfabetizador. No detalhamento da ação constam os
seguintes itens:
a) O trabalho de alfabetização deveria ser adequado às necessidades de aprendizagens
dos educandos, considerando-se para isso o seu meio-sócio cultural;
b) Diagnosticar inicialmente e ao longo do processo de alfabetização, o nível de
conhecimento de leitura escrita dos alunos para que possam ser planejadas atividades
desafiadoras;
c) Observar o desempenho dos alunos durante as atividades, bem como suas interações
de parceria, para fazer intervenções pedagógicas adequadas;
d) Utilizar instrumentos funcionais de registros do trabalho pedagógico.
O plano de trabalho da alfabetização de jovens e adultos ainda pontuava a
importância da reflexão sobre o funcionamento do sistema alfabético, como condição
necessária para alfabetizar-se. Também ressaltava a produção, leitura, compreensão
e interpretação de textos com diferentes funções da linguagem, evitando a
infantilização do educando adulto e a criação de linguagens artificiais.
Tanto a equipe da SMEC quanto os professores da UFSCar preocupavam-
se com o menor número possível de educandos por turma. A proposta inicial do
Governo Federal era a de que cada turma de alfabetização devesse conter 20
participantes. Após um longo processo de negociação, esse número passou a ser de
10 alfabetizandos por professor.
82
Uma das exigências do Governo Federal traduz-se pela preocupação em
serem confirmadas as presenças dos participantes nos encontros de alfabetização.
Dessa forma, os professores alfabetizadores passaram a confeccionar portifólios, nos
quais devessem ser afixadas as avaliações diagnósticas mensais, que
demonstrassem o processo de aquisição da leitura e da escrita, por parte dos
alfabetizandos.
As avaliações diagnósticas consistem em um ditado realizado
individualmente com o educando, com o objetivo de se verificar a hipótese que o
alfabetizando vem elaborando acerca da escrita.
Seguindo as terminologias utilizadas por FERREIRO e TEBEROSKY
(1986) os educandos eram classificados em:
- pré-silábicos: a escrita apresentada pelos alfabetizandos não possui
relação com as unidades sonoras da fala, assim, o educando pode apresentar, por
exemplo, escritas semelhantes para palavras diferentes.
- silábicos sem valor sonoro: a escrita nesta fase apresenta-se já com uma
percepção das unidades das palavras: as sílabas. Sendo assim, o educando pode
escrever uma palavra trissílaba representando-a com três letras, porém essas ainda
não possuem relação sonora, por exemplo, a escrita da palavra caderno pode ser
representada por B A E.
- silábicos com valor sonoro: a representação das palavras já passa a ter
uma relação mais estreita com os sons produzidos pela fala, ainda que não apareçam
todas as letras das palavras, o alfabetizando já percebeu que as letras do alfabeto
representam os pedaços que compõem as palavras, a escrita da palavra caderno,
pode, por exemplo, ser representada pelas letras: C D O ou então A E O.
- silábico-alfabéticos: a escrita neste momento apresenta-se oscilando ora
na representação das sílabas das palavras com uma única letra, ora com duas, o
alfabetizando pode grafar a palavra caderno da seguinte maneira: CADNO.
- alfabéticos: nesta fase o alfabetizando já percebeu que as palavras são
formadas por unidades menores do que as sílabas e que cada letra do alfabeto
representa cada um dos sons produzidos no interior da fala;
-ortográficos: embora a última fase descrita por FERREIRO e
TEBEROSKY (ibidem) seja a alfabética, comumente os professores adotam essa
expressão para classificar os alfabetizandos que já apresentam a compreensão das
regularidades e de algumas irregularidades ortográficas (MORAIS, 2002).
Consideramos extremamente importante que o professor alfabetizador
conheça a hipótese que o alfabetizando vem elaborando acerca da palavra escrita,
uma vez que poderá elaborar estratégias de intervenção para que o educando se
83
conscientize do funcionamento das estruturas internas da escrita.
Já discutimos em nosso referencial teórico o quanto o domínio dos
aspectos instrumentais da leitura e da escrita é importante. Porém, falamos também o
quanto é importante que a leitura da palavra não venha descontextualizada da leitura
do mundo.
Conforme FRANCHI (1989), o processo de alfabetização pode ser
orientado pelas fases da compreensão da escrita pelo educando, tal como demonstrou
Emília Ferreiro, mas não pode se situar exclusivamente no indivíduo, devendo ter
ênfase as relações sociais mais complexas que supõem a formação dos
conhecimentos como construção social e coletiva, vinculada aos processos
significativos e interativos, por isso a necessidade de se partir de uma escrita
contextualizada.
A proposta procurou articular também os cursos de alfabetização de jovens
e adultos – MOVA e Brasil Alfabetizado – com a Educação de Jovens e Adultos – EJA
– possibilitando que os participantes pudessem dar continuidade à educação formal.
Verificamos assim, que a proposta de alfabetização considerava a
aprendizagem da leitura e da escrita como um processo contínuo, que vai além da
memorização das letras do alfabeto, depositando ênfase em um processo de ensino e
aprendizagem que fosse contextualizado e significativo para os participantes, pois
partia das necessidades sociais prioritárias de leitura e de escrita dos educandos.
Como podemos perceber as propostas de formação do professor
alfabetizador e de alfabetização de jovens e adultos que partiram da UFSCar e da
SMEC apresenta inúmeros aspectos que vão ao encontro da proposta de
alfabetização crítica, apresentando-se como um forte instrumento na superação das
relações de desigualdade. Não se tratava de uma proposta que apresentasse somente
índices. Havia um compromisso social com os alfabetizandos e uma preocupação em
formar professores alfabetizadores que pudessem, dentro de suas metodologias,
adotarem a perspectiva dialógica no relacionamento com os educandos, minimizando
as relações de opressão.
Após três anos de trabalho, iniciado em 2003, as pessoas envolvidas com
a educação de adultos do município de São Carlos, tanto educandos, educadores do
MOVA-São Carlos, do Brasil Alfabetizado, profissionais da SMEC e da UFSCar se
empenham juntos, em um processo de transformação da educação de jovens e
adultos, que irá envolver também os educadores da EJA de 5ª a 8ª série, garantindo
que os participantes possam concluir a escolaridade com a mesma qualidade na
relação que vem sendo travada entre educador e educandos no processo de
alfabetização e nas séries iniciais.
84
A equipe da SMEC e da UFSCar também desempenharam um papel muito
importante em algumas melhorias da Proposta do Programa Brasil Alfabetizado do
Governo Federal, dentre elas, o aumento do tempo de duração do curso de
alfabetização, que passou de quatro para oito meses e com relação ao pagamento do
professor alfabetizador, que inicialmente era correspondente ao número de educandos
por turma, sendo que o número mínimo requerido para o funcionamento das turmas
era de 10 educandos, atualmente existe um salário fixado, com a possibilidade de
adicionais se a turma exceder o número de 10 alfabetizandos.
A seguir, apresentaremos a caracterização da prática de alfabetização em
uma das turmas do Programa Brasil Alfabetizado, da qual os educandos entrevistados
e nós fizemos parte, enquanto educandos e educadora.
3.4. A PRÁTICA DE ALFABETIZAÇÃO REALIZADA JUNTO A TURMA DO
BRASIL ALFABETIZADO: período de Agosto a Dezembro de 2003.
É importante iniciar esse tópico ressaltando que a leitura que aqui se
realizou diz respeito às reflexões, questionamentos e impressões pessoais da prática
de alfabetização realizada em uma das turmas do Programa Brasil Alfabetizado. Nesta
descrição, buscamos revelar a opção metodológica relacionada com o que
acreditávamos ser teoricamente coerente com ela.
Segundo FREIRE (1987), a apreensão crítica da realidade implica em
certo distanciamento, no que ele chama de emersão. Quando tomamos distância de
nossa prática podemos olhá-la de forma mais objetiva, percebendo nela elementos
que nos condicionam e nos afastam de atuações mais críticas. Pensando sobre a
prática que exercemos hoje ou ontem como educadores, podemos melhorar a próxima
prática. Sendo assim:
O distanciamento epistemológico da prática enquanto objeto de sua
análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo. Quanto melhor faça essa
operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior
comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela
rigorosidade. (...) Por outro lado, quanto mais me assumo como estou
sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim,
mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado
de curiosidade ingênua para e de curiosidade epistemológica. Não é
possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar
sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo
processo faz necessariamente sujeito também
(FREIRE,1996, p.
39-40).
85
Por tratar-se de uma prática de alfabetização encaminhada por
professores iniciantes, ao realizarmos sua descrição, uma série de elementos veio
ganhando forma, ou seja, foi sendo objetivado e tomado como objeto de análise, de
maneira que pudemos perceber alguns condicionantes que limitaram uma atuação
mais crítica, da mesma forma em que visualizamos elementos da aprendizagem
dialógica proposta pela alfabetização freiriana.
Inicialmente, apresentaremos os procedimentos adotados para a
organização da sala de aula e, em seguida, a caracterização da prática de
alfabetização.
Quando nos inscrevemos no curso de formação de professores
alfabetizadores do Brasil Alfabetizado, curso este oferecido pela UFSCar e pela
SMEC, desejávamos muito ter a primeira experiência como professora alfabetizadora.
Tencionávamos colocar em prática algumas reflexões suscitadas durante o curso de
Licenciatura em Pedagogia e principalmente pelas reflexões originadas do contato
como estagiária em uma 1ª série do Ensino Fundamental, no qual tivemos a
oportunidade de observar como as crianças se apropriavam da leitura e da escrita.
Cientes de que os saberes necessários para o ser professor não se
encerram no curso de formação inicial, mas sim em contato direto com a prática
educativa, apresentávamos certa ansiedade pelo início da docência.
Optamos por realizar o cadastramento dos educandos no bairro Jardim
Gonzaga, já que este se apresentava como sendo um dos maiores bolsões de
pobreza do município de São Carlos e com alto índice de analfabetismo. Os
moradores do bairro, em sua maioria, são famílias que vieram para o município,
atraídas pela possibilidade de emprego e melhores condições de vida. O bairro reúne
moradores de cidades próximas à região de São Carlos, do interior de Minas Gerais,
Paraná e regiões do Nordeste.
Segundo CAMPOS et. al. (2003), os moradores do Jardim Gonzaga são
estigmatizados quando se encontram fora do bairro, pois o mesmo é apresentado à
população sancarlense associado à questões como pobreza, altos índices de violência
e desemprego. O bairro, quando conhecido de perto, quando se anda pelas suas ruas
e se conversa com os moradores, revela-se belo, principalmente pelo significado que
as crianças, homens e mulheres dão às suas ruas, que se transformam em um
enorme ponto de encontro, reunindo as crianças e seus familiares.
Outros educadores e profissionais que participavam do curso de formação
de professores alfabetizadores, como alunos das Licenciaturas e educadores do
MOVA-São Carlos, também optaram pelo mesmo bairro, dentre eles uma amiga de
86
turma do curso de Pedagogia. Combinamos, então, que iríamos juntas ao bairro para
realizarmos o cadastramento dos educandos.
Fizemos várias visitas ao bairro o que nos permitiu conhecê-lo de maneira
diferente do que até então julgávamos. Passamos por inúmeras ruas, batemos de
porta em porta e conhecemos diversos moradores. Eram tantas casas, tão parecidas e
tão diversas ao mesmo tempo, que ao fim do dia, ao chegarmos às nossas casas,
fechávamos os olhos e tornávamos a vê-las, em uma imagem que não se apagava, o
bairro agora nos era muito familiar.
Inicialmente, andar pelo bairro nos causava medo, durante as primeiras
visitas carregávamos conosco informações que não eram de todo coerentes com o
que observávamos. Tratava-se de impressões que tínhamos ouvido dizer na mídia ou
então em nossos círculos de parentes e amigos, pois embora tivéssemos nascido na
cidade nunca havíamos estado ali.
O que mais achávamos estranho era o estar das crianças nas ruas,
algumas nos acompanhavam, conversavam conosco, iam se afastando cada vez mais
de suas casas, sem preocupação de avisar os pais, entravam e saiam das casas dos
vizinhos, como se todos os moradores fossem grandes conhecidos e o compartilhar de
crianças fosse coisa comum.
Aos poucos o medo foi passando e já nos sentíamos muito a vontade em
andar pelo bairro e muitos rostos se tornavam cada vez mais conhecidos e amigos.
Tivemos que aprender a entender a situação de muitos moradores, que se
recusavam em participar das aulas. Explicávamos o objetivo do curso e mesmo
afirmando que não sabiam ler e escrever se recusavam em dar os nomes. Alguns
diziam que eram doentes, outros que tinham muitos afazeres, como cuidar de netos e
filhos pequenos, não tendo com quem deixá-los. Isso nos deixava intrigadas, mas
depois, de tanto ouvir as mesmas falas, ficamos pensando que realmente era difícil
para alguns moradores retomarem ou iniciarem os estudos: a vida lhes tinha excluído
o espaço da escola, ou a escola estava excluída do espaço da vida?
Perguntávamos aos moradores qual horário era o melhor para os estudos
e a maioria dizia que era à noite. Para os que preferiam outros horários, tomávamos o
cuidado para avisar outros educadores, que montavam salas no bairro durante o
período diurno.
Conversamos com a diretora da escola municipal, localizada próximo ao
bairro, sobre a possível utilização do espaço para a montagem das turmas de
alfabetização. Conforme íamos tendo a confirmação do espaço e do horário,
passávamos de casa em casa levando as novas informações aos moradores.
87
No primeiro dia de aula ficamos muito preocupadas, pois somente dois
moradores convidados apareceram na sala. Havíamos preparado uma dinâmica para
a apresentação e logo em seguida uma atividade que envolvia os nomes dos
educandos, porém, com dois alunos que eram noivos, a atividade foi logo descartada.
Ficamos na apresentação, que não durou mais de 15 minutos.
Na escola havia quatro salas de alfabetização do Programa Brasil
Alfabetizado. Preocupava-nos o fato delas acabarem se transformando em uma única
e termos que nos afastar do Programa.
Mesmo com dois educandos, apresentamos as letras do alfabeto, pois um
deles nos disse que não as conhecia. Explicamos que era importante saber o som que
cada uma das letras produzia, pois eram com elas que as palavras são escritas.
Segundo LEMLE (1991), o alfabetizando precisa saber que cada traço que
compõe a palavra vale como um símbolo do som da fala. Porém, discriminar cada uma
das letras do alfabeto exige muita percepção, pois suas formas são bastante
semelhantes.
Conforme apresentávamos as letras, pedíamos para tentar nos dizer
alguma palavra em que conseguia perceber aquele som, podia ser no começo ou em
qualquer lugar da palavra. O educando participou bastante, de forma que escrevemos
uma palavra para cada letra do alfabeto.
Conversamos com nossa amiga e no outro dia voltamos ao bairro para
avisar novamente aos moradores sobre o início dos encontros. Quando chegou a
noite, novamente poucos alunos estavam presentes. Resolvemos unir as duas turmas.
Acreditávamos que assim, poderíamos desenvolver as atividades que havíamos
preparado e dar início ao nosso planejamento, que havia sido realizado juntamente
com a equipe da SMEC, durante a realização do curso de formação.
A união das turmas pareceu-nos a solução mais plausível no momento.
Em poucos dias o número de alunos havia passado de 5 para 18. Muitos educandos já
eram alfabetizados e se interessavam pela oportunidade de retomar os estudos,
próximos às suas residências. Outros eram convidados pelas pessoas da própria
família, somente em nossa sala havia seis pessoas pertencentes à mesma família.
Em diversos momentos desejamos a separação dos educandos em duas
turmas, como era a proposta inicial, pois como já dito, tínhamos muita vontade de ser
a professora. Mas nossa amiga e os participantes achavam que daquela forma como
estávamos era a melhor. Os educandos diziam que com duas professoras aprendiam
mais e que a gente podia dar mais atenção durante a realização das atividades. Nossa
amiga dizia que tinha medo que os alunos estranhassem e parassem de freqüentar os
encontros.
88
Convencemos-nos que a separação seria negativa, temíamos também que
esta pudesse ocasionar certa desmotivação nos educandos. Muitos se conheciam ou
se conheceram ali, no final das contas o número total de alunos oscilava entre 18 e 20
pessoas presentes, não era o suficiente para montar as duas turmas completas.
Sendo assim, continuamos todos juntos, e nós educadoras, passamos a dividir a bolsa
que nos era paga.
Embora houvesse um bom entrosamento entre a educadora e nós, pois
sempre trabalhamos juntas na confecção de trabalhos e seminários exigidos na
graduação, o atuar como professora foi diferente. Nosso desejo em ser a professora
se chocou com o mesmo desejo apresentado por ela, o que gerou inúmeros
desconfortos.
Hoje percebemos que o ser professor é muito mais do que aquele que
encaminha as atividades frente à sala de aula que pode, nesse momento, gerar
atenção e devoção nos educandos. O professor é potencialmente educador na relação
com o educando. Era exatamente nesses momentos, em relação direta com eles,
momentos em que nos chamavam, nos perguntavam e nos impulsionavam a elaborar
uma forma diferente de ensinar, que íamos nos constituindo como educadoras,
processo esse muito mais precioso do que aquele momento em que o professor
simplesmente passa instruções de como proceder com a resolução de uma atividade.
Por esse motivo, FREIRE (1996) afirma:
É nesse sentido que ensinar não é transferir conhecimentos,
conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma,
estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência
sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto,
um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender
(p. 23).
Desde o início dos encontros começamos a organizar um diário de classe,
no qual registrávamos algumas impressões dos alfabetizandos a respeito das
atividades propostas, a agenda do dia, com as respectivas atividades conduzidas
durante cada um dos encontros e algumas impressões sobre futuras atividades e
intervenções. Essa idéia na verdade – de organizar o diário – teve origem na prática
da educadora que acompanhamos durante o estágio supervisionado.
É interessante retomar algumas concepções teóricas que nortearam nossa
prática docente, pois a visão do mundo, da sociedade, do ser humano, revela-se e se
manifesta na concepção teórica e metodológica que o educador põe em prática em
seu ato educativo, da mesma maneira que o método empregado em sala de aula pelo
89
educador pode ser revelador de suas concepções de sociedade, de aprendizagem e
de ser humano.
Durante o planejamento das aulas, um pensamento sempre nos
acompanhava: as atividades eram preparadas com o objetivo de ocasionar reflexões
aos educandos acerca do funcionamento da linguagem escrita. Acreditamos que o
início do processo de alfabetização deva garantir elementos importantes que servirão
de base para a compreensão desse complexo processo.
Por se tratar de uma turma de alfabetização de adultos, éramos
conscientes de que os educandos possuíam expectativas e ansiedades quanto à
aprendizagem da leitura e da escrita, que deveriam se configurar como ponto de
partida para o processo de alfabetização.
Buscamos desenvolver junto à turma de alfabetizandos uma concepção de
ensino-aprendizagem que levasse em conta as necessidades sociais prioritárias dos
educandos. Sendo assim, dentre os vários momentos de conversas com os
participantes, foi-se delineando como necessidade social prioritária o domínio da
leitura e da escrita para o enfrentamento de diversas situações de dificuldade que
eram vivenciadas, pois embora os participantes revelassem ser conhecedores
profundos do mundo, eram desqualificados socialmente por desconhecerem os
códigos convencionais da leitura e da escrita.
Os adultos que decidem freqüentar uma sala de alfabetização possuem
ansiedades e expectativas quanto ao aprendizado da leitura e da escrita, que
necessitam ser considerados pelo professor alfabetizador, já que o educando adulto
valoriza e aprende o que está diretamente relacionado à sua experiência pessoal e
com suas relações sociais.
Por se tratar de nossa primeira experiência concreta relacionada à
alfabetização de adultos, considerávamos extremamente relevante as contribuições de
Paulo Freire que tivemos oportunidade de conhecer, durante o curso de formação
inicial, realizado na UFSCar e também durante o curso de formação de professores
alfabetizadores do Programa Brasil Alfabetizado.
O principal conceito de Freire que sempre tentávamos levar às aulas era
com relação aos pontos negativos da concepção bancária de educação e os pontos
positivos da educação libertadora.
Segundo FREIRE (1987), na concepção de educação bancária, a relação
educador–educando é basicamente narradora. Os educandos estão passivos,
ouvindo-se narrar sobre algo que lhes é alheio. Já a educação libertadora vê os seres-
humanos como corpos conscientes e não como simples depósitos. A segunda
concepção busca o rompimento da contradição educador-educando, afirmando a
90
dialogicidade entre eles. Dessa forma, ninguém se educa sozinho, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo. (idem, p. 79). Essas concepções de Freire
serviram como importante suporte para o ensino da palavra e na preocupação do
envolvimento dos educandos nas atividades propostas.
Durante os encontros, pretendíamos criar uma rotina entre os
participantes, percebida pela organização da “agenda do dia”. Trata-se de um breve
comentário e de uma lista organizada na lousa das atividades que pretendíamos
desenvolver no decorrer de cada encontro. Acreditávamos naquele momento, que a
organização da agenda na lousa e os comentários que expressávamos sobre ela,
eram fortes indícios que planejávamos as atividades previamente, possibilitando assim
que uma relação de confiança, quanto ao conteúdo, pudesse ser construída entre
alfabetizador e alfabetizando.
Procuramos, desde o início dos encontros sugerir que os educandos
registrassem no caderno o cabeçalho e a agenda do dia, que eram passados por nós
na lousa com letra de fôrma maiúscula.
Segundo CAGLIARI M. (1999) é aconselhável, que o início do processo de
alfabetização privilegie o uso deste alfabeto para evitar problemas de categorização
gráfica e categorização funcional, isto é, quando o alfabetizando confunde a forma
gráfica de cada uma das letras do nosso alfabeto, dificultando a distinção necessária
durante as leituras.
Os próprios educandos sugeriram que passássemos a escrever com a
letra cursiva, pois este tipo de escrita interessava-lhes mais do que a de fôrma.
Concordamos com eles e passamos a escrever com os dois tipos de letras. Durante a
cópia do cabeçalho e da agenda observávamos a forma como os educandos
registravam e para alguns alunos, solicitávamos a escrita com letra de fôrma, pois eles
já apresentavam problemas de categorização gráfica, principalmente na escrita de
seus nomes.
Tomamos o cuidado também em providenciar alfabetários para cada
educando e também um que ficava exposto na parte superior da lousa. Esses
alfabetários continham quatro formas diferentes de categorização gráfica, pois
sabíamos que diferentes materiais escritos circulavam com diferentes categorizações
e estávamos sempre incentivando os educandos a lerem tudo o que encontrassem.
Nossa sala de aula era bastante heterogênea, a começar pela idade dos
educandos que variava entre 24 e 61 anos.
Seis educandos já estavam alfabetizados, porém, possuíam escolaridade
que variava de 0 a 6 anos. Estes participantes apresentavam dificuldades quanto à
91
escrita, principalmente no tocante à pontuação e às regularidades e irregularidades
ortográficas
14
.
Os demais educandos, que totalizavam 12, não estavam alfabetizados,
mas possuíam diferentes hipóteses quanto à escrita das palavras. Essas hipóteses
puderam ser percebidas através das avaliações diagnósticas, aplicadas mensalmente
com os educandos, e que foram sugeridas pela equipe da SMEC, como forma de
acompanhamento e intervenção.
Foi com base nas avaliações individuais correspondentes ao mês de
Agosto de 2003, que percebemos as dificuldades ortográficas dos participantes já
alfabetizados e as diferentes hipóteses da escrita dos educandos ainda não
alfabetizados. Destes últimos, três ainda não grafavam o nome de forma correta e não
reconheciam a relação fonema-grafema, ou seja, não conheciam o som e a grafia das
letras do alfabeto. Um dos participantes apresentava dificuldade de audição, grafava
seu nome corretamente e reconhecia apenas algumas letras do alfabeto, seu som e
grafia. Outros cinco participantes reconheciam apenas algumas letras no interior de
palavras escritas e ora representavam as sílabas com 1 ou 2 letras, ora inseriam mais
letras na escrita das palavras, mas estas não apresentavam a relação fonema-
grafema. Outros três educandos conheciam todas as letras do alfabeto, mas ainda não
representavam as sílabas convencionalmente.
Dada a singularidade de cada educando e das dificuldades apresentadas
por eles, optamos inicialmente, por enfatizar um trabalho voltado para o
reconhecimento da relação fonema-grafema, pois concordamos com LEMLE (1991) ao
afirmar que uma as condições para a alfabetização é que o aprendiz seja capaz de
entender que cada um daqueles sinais – letras do alfabeto – vale como um símbolo do
som da fala, discriminando as formas das letras.
Buscando desenvolver essas habilidades, foram preparados crachás com
os nomes dos alfabetizandos, esses eram distribuídos no início da aula da seguinte
forma: pegávamos um crachá e perguntávamos com qual letra iniciava aquele nome,
qual letra terminava, etc. Os alfabetizandos iam de forma indireta conhecendo os
nomes e a presença das letras produzindo sons na escrita de seus próprios nomes.
LEMLE (ibidem.) ainda afirma:
14
Segundo MORAIS (2002) as irregularidades ortográficas correspondem à escrita de palavras
em que o uso de determinadas letras não seguem uma regra, o uso da letra neste caso, é
determinado pela tradição ou origem da palavra, necessitando que o aprendiz memorize a
forma correta de escrita. Já as regularidades, correspondem à escrita de palavras que seguem
um princípio gerativo, ou seja, seguem uma regra que se aplica a várias (ou todas) as palavras
da língua nas quais aparece a dificuldade em questão (p.28), neste caso, o aprendiz necessita
reconhecer e aplicar as regras à escrita correta das palavras.
92
Se as letras simbolizam sons da fala, é preciso saber ouvir diferenças
lingüisticamente relevantes entre esses sons, de modo que se possa
escolher a letra certa para simbolizar cada som.(...)
É claro que só será capaz de escrever aquele que tiver a capacidade
de perceber as unidades sucessivas de sons da fala utilizadas para
enunciar as palavras e de distingui-las conscientemente umas das
outras. Note que a análise a ser feita pela pessoa é bem sutil: ela
deve ter consciência dos pedacinhos que compõem a corrente da fala
e perceber as diferenças de som pertinentes à diferença de letras
(p.
9).
Nesse sentido, buscamos realizar com os alfabetizandos atividades que
demonstrassem a importância de se conhecer cada som produzido pelos símbolos de
nosso alfabeto. As atividades de distribuição dos crachás e o bingo de letras
contribuíram para a percepção de muitos alunos sobre os sons representados pelas
diferentes letras e sua grafia.
Além do trabalho com a escrita do nome, organizávamos também listas de
palavras como, por exemplo, nomes de frutas. Foi nessa ocasião que um dos
educando sugeriu a escrita da fruta GABIROBA, fruta desconhecida por nós
professoras.
Os educandos ficaram surpresos por não conhecermos a fruta e sugerimos
que tentassem descrevê-la: como era, que gosto tinha, em qual região podia ser
encontrada, quais as características da árvore, etc. Os participante descreveram a
fruta como sendo semelhante à goiaba, só que bem menor, sendo encontrada em
qualquer local onde existem muitas árvores e pássaros.
Os educandos também nos contaram coisas da infância, nos relatando
como era fácil encontrar essa fruta e como atualmente tem sido difícil vê-la,
principalmente com o crescimento das cidades. Realizamos então, uma discussão de
como as cidades haviam crescido e de como algumas situações da vida haviam sido
alteradas, principalmente a relação das crianças com a natureza, com o brincar entre
as árvores e conhecer as diferentes frutas da região.
Os participantes perceberam que tinham muitas coisas para nos ensinar, e
nós, muito a aprender com eles. A situação de diálogo criada em torno da fruta
gabiroba perdurou durante vários encontros, nos quais organizamos uma produção
coletiva com a sistematização de todas as características que os educandos tinham
nos fornecido sobre a fruta. Foi muito importante o registro do conhecimento que os
educandos expressaram, demonstrando que os conhecimentos trabalhados em sala
de aula não são acabados e necessariamente os já registrados em materiais aos quais
os professores têm acesso. Nesse sentido, FREIRE (1989) afirma:
Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador, o
processo de alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato
93
de ele necessitar da ajuda do educador, como ocorre em qualquer
relação pedagógica, não significa dever ajuda do educador anular a
sua criatividade e a sua responsabilidade na construção de sua
linguagem escrita e na leitura desta linguagem. Na verdade, tanto o
alfabetizador quanto o alfabetizando, ao pegarem, por exemplo, um
objeto como um laço agora como o que tenho entre os dedos, sente o
objeto, percebem o objeto sentido e são capazes de expressar
verbalmente o objeto sentido e percebido
(p.13).
Tivemos a oportunidade de pesquisar mais sobre a gabiroba e
descobrimos que sua planta é originária da goiabeira, daí a semelhança com a goiaba.
Um dos educandos também conseguiu nos trazer uma folha da planta, a qual foi
afixada em nosso cartaz confeccionado para o texto coletivo.
Nesta perspectiva é que o trabalho de alfabetização se realiza a partir da
palavra dos educandos, permitindo que se chegue à síntese cultural, à união entre os
diferentes conhecimentos de educandos e educadores.
O trabalho advindo da confecção do texto coletivo nos permitiu
desenvolver um trabalho com as formalidades da escrita, como o uso do parágrafo,
pontuação, espaço entre as palavras e a melhor maneira de expressarmos aquilo que
desejamos. Dessa forma, os participantes registraram o texto, no qual solicitamos a
localização do nome da fruta e de demais palavras.
Segundo FRANCHI (1989), os textos coletivos oferecem grandes
vantagens, como o exercício de percepção das relações entre a oralidade e a escrita.
Embora ambas permitam o entendimento da situação e do que se está querendo
transmitir, é preciso adquirir certas “formalidades” e empregar determinadas
convenções para que a escrita seja válida. Quando se trabalha a construção de textos
coletivos o alfabetizador encontra inúmeras oportunidades para discutir essas
formalidades e convenções com os alfabetizandos.
Procurávamos também inserir em nossa programação a leitura de alguma
história que pudesse trazer alguma reflexão ou artigos de jornais com alguma notícia
da cidade e/ou do bairro.
A atividade da leitura sempre foi bastante sugerida durante os encontros
da ACIEPE. Porém, essa atividade teve que passar por algumas reformulações até
chegarmos a uma prática de leitura que realmente envolvesse os participantes.
Durante as primeiras leituras percebíamos que nem todos os educandos se envolviam,
alguns se engajavam em outras conversas, outros não se lembravam do texto.
Tratamos assim, de realizar a leitura expressando algum comentário ao fim de cada
parágrafo, solicitando que os educandos recuperassem algumas informações e
quando necessário, retornávamos a leitura.
94
Um exemplo das leituras que realizávamos é a do texto “Roberto Sem
Carlos”. Este texto foi selecionado previamente por nós, por se tratar de um relato de
um adulto não alfabetizado que pretende manter-se no emprego e elabora uma
estratégia para driblar a cobrança da escrita de seu nome. Pretendíamos que os
educandos, durante a discussão do texto, compartilhassem experiências semelhantes
à vivida pela personagem.
Quando cheguei em São Paulo arranjei serviço numa oficina,
perto da casa da minha tia.
Estava aprendendo o trabalho e via que todos os diais meus
colegas punham o nome num livro grosso que era guardado pelo
dono da oficina. Ninguém me mandou assinar e eu estava achando
bom porque não sabia escrever.
Um dia, “seu” Oswaldo chegou perto de mim com o livro e
disse:
- Roberto, a partir de segunda-feira você começa a assinar seu
nome neste caderno. Todos os dias, não esqueça.
Era uma sexta-feira e eu saí de lá muito preocupado. Não
queria dizer para ninguém o que estava sentindo. Em casa me veio
uma idéia, que foi esta: meu primo tinha um disco do Roberto Carlos
e eu fiquei pensando em copiar o Roberto do disco até sabê-lo de
cor. Pelo menos ia escrever meu primeiro nome.
A letra R eu já sabia, assim foi fácil achar o Roberto. Só que eu
não sabia onde acabava o nome Roberto e acabei decorando
ROBERTO CARLOS. Meu patrão começou a me chamar de Roberto
Carlos e meus colegas também.
Não sabia explicar que eu era só Roberto. Mudei de nome, mas
resolvi meu problema.
Roberto Soares.
Os participantes gostaram bastante da leitura, muitos se identificaram com a
personagem e comentaram situações semelhantes.
E. contou que suas amigas assinavam seu nome no trabalho e que se sentia
muito mal, pois não conseguia ler os nomes das salas de aula que tinham que ser
limpas por ela. Ela contou também que para tomar os ônibus pedia para as pessoas
lerem para ela, alegando que tinha problema de vista.
A discussão do texto também girou em torno de dimensões éticas, os
educandos se perguntaram se a personagem tinha agido de forma correta ou não.
Cm. disse que a personagem do texto não devia ter mentido, pois a pessoa não pode
se sentir envergonhada do que é. Nesse momento houve um educando que discordou
do comentário da participante, dizendo que não se tratava de sentir vergonha do que
95
é, mas que os outros valorizam isso e que ele faria o mesmo para garantir seu
emprego.
Cm. concordou com a opinião do educando, dizendo que não havia pensado
por este lado. Isso demonstra que em diálogo, quando expressamos nossas
experiências e nossas leituras de mundo, passamos a aprender com as diferentes
experiências e ampliamos nossa própria leitura de mundo.
As discussões e impressões dos participantes foram muito importantes
para compreendermos como eles sentem a experiência do analfabetismo e como
elaboram estratégias para minimizar as situações de opressão que vivenciam.
As alterações relacionadas aos momentos das leituras diárias, foram frutos
de reflexões que se somaram a outras, pois o trabalho conjunto, traçado entre a
alfabetizadora que atuava na mesma turma e nós, nos permitia uma revisão constante
da atuação e a elaboração de novas estratégias de atuação.
Foi assim, pensando sobre nossa prática, que organizamos atividades
extras de leitura e de resolução de situações problemas que foram colocadas em uma
caixa posta à disposição dos educandos. Percebemos que alguns participantes
terminavam as atividades antes que os demais e tinham que ficar esperando o resto
do grupo terminar. Buscávamos assim, que todos pudessem desenvolver as
atividades em seu próprio ritmo, sem se sentirem pressionados em terminá-las.
Um outro exemplo que demonstra a reflexão sobre a nossa prática diz
respeito à alteração na lista de presença. Durante o mês de Agosto, as aulas eram
iniciadas com a entrega dos crachás de forma variada, percebemos que isso nos
tomava um enorme tempo, cerca de 40 minutos, então, começamos a escrever o
nome dos alunos em folhas de sulfite com espaço suficiente para que os mesmos
pudessem escrever o nome por extenso.
A chamada passou então a ser organizada semanalmente, acreditávamos
que assim, o educando poderia escrever seu nome, enquanto o comparava com a
escrita dos demais nomes dos colegas, já que os alfabetizandos eram orientados a
procurarem o nome na lista. Essa atividade foi sugerida por uma professora
alfabetizadora do MOVA, durante os encontros da ACIEPE, demonstrando que
compartilhávamos informações e questionamentos sobre nossas aulas com os (as)
demais educadores (as), permitindo que experiências bem sucedidas pudessem ser
adotadas em outras turmas de alfabetização.
Segundo FRANCHI (1989), a pseudo-leitura auxilia no início do processo
de aquisição da leitura e escrita, pois ajuda na construção da consciência da unidade
da palavra, assim como a organização da estrutura do texto. Dessa forma,
procurávamos partir do trabalho inicial com algum texto, como por exemplo, letras de
96
música, parlendas e receitas, onde orientávamos os educandos a acompanharem a
leitura e indicarem onde havíamos parado, ou então que circulassem palavras ou que
tentassem ler uma determinada palavra presente no texto.
Enfatizávamos também rimas e a criação de novas palavras a partir de
sons semelhantes. Dessa forma, trabalhávamos a palavra e também a estrutura do
texto, como pontuação, segmentação de palavras, etc.
Como base na nossa inserção em uma sala de alfabetização do ensino
fundamental regular, decidimos propor a confecção de um livro com as próprias
histórias e relatos dos educandos. Sendo assim, organizamos uma parte dos
encontros para a coleta desses relatos, que eram registrados com o auxílio de um
gravador.
Explicamos aos educandos o nosso objetivo que era o de coletar as
histórias e em seguida organizá-las em forma de texto, onde trabalharíamos a
oralidade e a escrita. Dessa forma, transformaríamos coletivamente os relatos orais
em textos que seriam depois reunidos em uma coletânea impressa.
Enfatizamos aqui que o trabalho com as atividades que envolvem a escrita
dos educandos é extremamente valioso, pois pode se tornar uma ferramenta
desmistificadora do discurso opressor e levar os educandos a terem confiança em seu
poder criador e recriador de cultura. Poder registrar suas próprias experiências e suas
histórias de luta é um forte indicativo que as mesmas merecem ser registradas pela
riqueza que representam, principalmente em fazer com que os demais educandos se
identifiquem com elas.
A idéia da organização da coletânea nos parecia muito positiva, seria um
trabalho que certamente se estenderia por muito tempo, garantindo material suficiente
para muitos encontros. Estávamos empolgadíssimas com os relatos, que tornavam as
nossas aulas muito mais interessantes e cada vez nos emocionávamos mais com os
educandos, que contavam como era viver sem saber ler e escrever.
Alguns relatos mexeram muito conosco, os educandos nos revelavam
situações dramáticas do analfabetismo, como ter que pedir para alguém assinar o
nome, ficar com medo de ir a algum lugar desconhecido, tomar ônibus errado, ir à
lanchonete e não saber o que pedir.
Essas narrativas foram interpretadas por nós como um desejo muito
grande pelo aprendizado da leitura e da escrita. Acreditávamos que os educandos
enfrentavam situações cotidianas de opressão que necessitavam ser transformadas.
Certamente, a condição de alfabetizado altera substancialmente a maneira
de atuar na sociedade, porém, não significa alteração na condição de ser do
educando. Para essa última transformação, faz-se necessário a apreensão da
97
realidade criticamente, desvelando as estruturas condicionantes da opressão para
transformá-la, ou seja, realizar uma leitura de mundo mais crítica que só se viabiliza
através do diálogo, no qual os diferentes discursos se cruzam, exigindo uma postura
mais crítica, para se pensar a existência e para uma atuação que objetive a
transformação das mesmas condições de opressão.
Decidimos então, que iniciaríamos um trabalho com os itinerários dos
ônibus, pois alguns dos relatos nos indicavam que muitos alfabetizandos não
conheciam lugares públicos da cidade – como prefeitura, biblioteca municipal,
universidades, shopping, etc. – por sentirem medo de tomar ônibus errado, ou por
terem pedido informações nos pontos de ônibus da cidade e chegarem a lugares
diferentes dos que pretendiam.
Assim, confeccionamos um enorme mapa da cidade, onde fomos
identificando junto com os educandos, alguns pontos de referência, como Prefeitura,
Correios, Shopping, Casas de Saúde, Hospital Municipal, etc. Várias atividades
giraram em torno do mapa, dos percursos de alguns ônibus e dos horários que
passavam pelo bairro.
Os participantes da turma que já sabiam ler e escrever expressavam
algumas dificuldades, principalmente quanto a questão ortográfica. Nos preocupava o
fato dos participantes que já eram alfabetizados também pertencerem à turma e até o
momento os nossos esforços estarem concentrados nos educandos que possuíam
diferentes hipóteses acerca do funcionamento da leitura e da escrita. Dessa forma,
passamos a organizar atividades mais direcionadas, o que nos levava a separar os
educandos em três grandes grupos. Assim, realizávamos intervenções de acordo com
as dificuldades apresentadas por eles.
A utilização das atividades diversificadas ia sendo cada vez mais
realimentada com os resultados apresentados nas avaliações diagnósticas que nos
fornecia uma demonstração dos avanços dos educandos relacionados à escrita das
palavras e nos apontavam as dificuldades, servindo como ponto de partida para a
organização de novas intervenções.
Um exemplo das atividades diversificadas de acordo com as hipóteses
apresentadas pelos educandos no tocante à escrita foi o trabalho desenvolvido com as
vogais e as consoantes: B, D, T, P e V. A escolha por essas consoantes e não outras
advêm do fato de que essas letras apresentam correspondência biunívoca entre
fonemas e letras, ou seja, são diferentes de letras como C, S e L, que dependendo da
posição ocupada nas palavras podem apresentar sons diferentes (LEMLE, 1998).
Essa atividade objetivava a percepção das vogais nas palavras, assim como a
identificação das letras para o início da alfabetização.
98
Para os educandos que ainda não reconheciam todas as relações
fonemas-grafemas, procurávamos enfatizar inicialmente as vogais e depois as
consoantes, pois segundo CAGLIARI (1989), essa divisão só ganha sentido de acordo
com a descrição fonética, ou seja, a descrição dos sons da fala. Dessa forma,
procurávamos distinguir a produção de cada som, articulando o aparelho fonador
15
e
sugerindo aos educandos que tocassem na cartilagem tiróide da garganta para sons
parecidos como B e P, que observassem a abertura/fechamento dos lábios, ou a
posição da língua. Realizávamos também testes de comutação, que consistem na
troca de um som por outro em um determinado contexto,
Para os alunos já alfabetizados e que apresentavam dificuldades quanto à
ortografia, realizamos algumas atividades sugeridas por MORAIS (2002) como: o
ditado interativo, ao longo do qual se discute algumas regras ortográficas e o recorte e
classificação de palavras segundo as regras ortográficas, como o uso do R e RR no
início e meio das palavras e o uso do Z e S no início das palavras.
Concomitante às atividades diversificadas, desenvolvíamos a escrita de
textos coletivos, as leituras comentadas, as atividades de matemática que envolviam o
uso do ábaco, construído por nós, e a resolução de situações problemas.
Dos 18 educandos que iniciaram os encontros, três interromperam os
estudos - dois deles mudaram de residências e um passou por problemas familiares,
tendo que se afastar temporariamente dos encontros de alfabetização. Os alunos já
alfabetizados, seis ao todo, conheceram algumas regularidades ortográficas, mais
ainda apresentavam a ortografia não convencional de algumas palavras,
principalmente quanto às irregularidades.
Nove educandos que iniciaram os encontros e que não tinham o domínio
da leitura e da escrita expressaram muitos avanços ao final dos quatro meses de
trabalho. Seis eram capazes de produzir pequenos textos, sendo que destes, três
ainda representavam as sílabas utilizando-se de apenas uma letra. Os três demais,
que no início do mês de Agosto apresentavam dificuldades no reconhecimento das
letras, passaram a grafar o nome de forma correta e a representar as sílabas ora com
uma, ora com duas letras.
No início do ano letivo de 2004, os educandos foram convidados a darem
continuidade aos estudos, agora nas salas de aula da EJA que foram organizadas no
mesmo local dos encontros do Brasil Alfabetizado. Embora a proposta do Governo
Federal tenha previsto somente quatro meses de encontros destinados à
15
Para verificar o desenho esquemático do aparelho fonador, com os nomes dos lugares de
articulação, usados na classificação fonética dos sons, consulte a página 55 da obra
Alfabetização e Lingüística (1989), de Luiz Carlos Cagliari.
99
alfabetização, a equipe da SMEC articulou com sucesso o aumento de recursos
municipais para a implantação de salas de aula do MOVA-São Carlos e da EJA,
garantindo a continuidade de atendimento aos participantes da educação de adultos.
3.5. CARACTERIZAÇÃO DOS EDUCANDOS.
Os alfabetizandos entrevistados são todos moradores do bairro Jardim
Gonzaga e participaram das aulas correspondentes ao Programa Brasil Alfabetizado
que foram organizadas em uma Escola Municipal de Educação Básica – EMEB –
próxima ao bairro.
Os educandos que freqüentavam os encontros de alfabetização da sala
onde atuávamos totalizavam, ao final do dezembro de 2003, 15 participantes. Desse
total 6 participantes já estavam alfabetizados, antes mesmo de darem início ao
referido Programa, 5 deles já haviam passado pelo sistema escolar, sendo que 1 havia
aprendido a ler e escrever com a irmã que pôde freqüentar a escola quando criança.
Os educandos que já estavam alfabetizados demonstravam interesse em
participar das aulas de alfabetização, pois próximos às suas residências não havia
salas de aula da EJA. Eles diziam que ficaram muito tempo fora da escola e que
desejavam voltar, mas que sentiam medo, por isso, não se importavam de
freqüentarem as aulas destinadas à alfabetização, pois esta seria uma forma de
estarem novamente no espaço escolar. No início do ano letivo de 2004, os educandos
que já estavam alfabetizados foram convidados a darem continuidade ao processo de
escolarização, agora nas salas de aula da EJA. Até meados do mesmo ano, todos os
educandos ainda freqüentavam as salas de aula.
Os educandos que iniciaram o processo de alfabetização no Programa
Brasil Alfabetizado, também foram convidados a participarem das salas de aula da
EJA, termo 1 e 2, que foi implantada na mesma EMEB onde funcionavam as turmas
do Brasil Alfabetizado. Destes educandos, nove ao todo, somente sete prosseguiram
nas salas da EJA. Os outros dois não deram continuidade aos estudos por diferentes
motivos. Um deles era portador de deficiência auditiva e, segundo ele, não gostou das
aulas da EJA por causa do horário que foi estendido em 1 hora a mais do que nos
encontros de alfabetização, prejudicando a entrada em seu trabalho, exercido após o
horário da escola. O educando não desistiu de seu processo de alfabetização e
conseguiu matricular-se em uma sala de aula do MOVA-São Carlos. O outro educando
chegou a se matricular nas aulas da EJA, mas interrompeu os estudos antes do
100
término do 2º bimestre.
Os critérios estabelecidos por nós para a realização das entrevistas era
que os educandos tivessem iniciado o processo de alfabetização na turma do Brasil
Alfabetizado e estivessem freqüentando as salas de aula da EJA-São Carlos, dando
continuidade ao processo de alfabetização, que como afirmamos acima, teve duração
de apenas 4 meses no período em que participavam do Programa Brasil Alfabetizado.
Foi possível realizar a entrevista com seis educandos no período das férias
escolares compreendidas entre o 2º e 3º bimestres. Um dos participantes, que
continuou freqüentando as aulas, não pôde ser encontrado para a realização da
entrevista, que como afirmamos foram realizadas nas residências dos educandos e
agendadas previamente.
Acreditávamos que após dois bimestres de aulas da EJA o processo de
alfabetização estaria mais consolidado e que a realização das entrevistas não
prejudicariam a freqüência às aulas da EJA e o horário de trabalho dos participantes.
Os educandos que participaram desta pesquisa totalizam 3 mulheres e 3
homens. Optamos pela utilização de nomes fictícios que se encontram no quadro
abaixo junto às suas respectivas idades.
Nomes fictícios e idades dos
educandos entrevistados
Sujeitos Idades
Carlos 58
Carmem 55
Eliza 32
Osmar 26
Oswaldo 61
Vani 56
Quadro 1 - Idade dos educandos
3.5.1. Oswaldo: “como é que pobre vive e a escrita ajuda”.
Com 61 anos, Oswaldo possui uma história parecida com alguns dos
demais educandos entrevistados e também com inúmeros outros participantes da
Educação de Adultos. Quando criança, não pode freqüentar a escola devido ao
trabalho na lavoura e à distância entre sua casa e a escola.
Eu nunca entrei em uma sala de aula, eu vim do mato para a cidade.
Eu morei 40 anos na roça, 40 não, 50 anos na roça, nunca entrei,
pisei em uma sala de aula. Fiquei a vida inteira na roça, a vida inteira
carpindo, fazendo tudo, aí eu vim pra cidade (...) eu morava num
lugar que era 10 léguas longe da cidade, então, como eu ia andar 60
101
km pra ir à escola? Como você ia andar? Não tinha jeito de estudar,
então nós morávamos no mato, não tinha jeito de estudar...
Morador da zona rural do município de São Francisco, interior do Estado
de Minas Gerais, Oswaldo veio para São Carlos, como diz: beirar periferia de cidade,
com a mulher e duas filhas ainda pequenas, por volta de 1967.
Chegamos lá na estação, nós viemos de imigração, chegamos lá na
estação e não achamos ninguém, não achamos os parentes e fomos
morar embaixo de uma árvore, eu, ela e aquelas duas filhas mais
velhas que moram do outro lado, embaixo de uma árvore, um
eucalipto, lá na Santa Paula, ficamos no eucalipto 1 ano e 7 meses,
embaixo do eucalipto com uma lona de plástico. Foi dali que eu
consegui um serviço, fui trabalhando, trabalhando, pra um e pra
outro, eu comprei uma carriola que eu catava papelão sábado e
domingo pra comprar as coisas, fui sofrendo, mas sofri... Nem coberta
ela não tinha pra embrulhar, não tinha mesmo, não estou mentindo
não, está aí ela que não me deixa mentir, nem coberta não tinha, no
mês de julho, um frio que Deus me livre, aí nós fomos sofrendo,
arrumei o primeiro serviço, trabalhava e ia comprando as coisinhas,
fazendo alguma coisinha, e hoje eu estou aí.
Esse período em que ficou com sua família morando embaixo de uma lona
de plástico foi caracterizado pelo educando por sofrimento contínuo, seu futuro, assim
como o de sua família, era incerto. A única certeza que Oswaldo tinha era a de que
qualquer lugar que estivesse era melhor do que no interior de Minas Gerais:
Você já pensou, você morar num lugar, que nem eu morava na roça,
lá em Minas? Passava o dia comendo mucunã
16
, você não conhece.
Comendo milho cozido, milho seco cozido, não é milho verde não,
milho seco, milho de porco, você come cozido pra num morrer de
fome... Outras vezes tinha que ir à vazante arrancar cerraia
17
, que
você não conhece também, cerraia, pra comer molho de “cerraia”, pra
não morrer de fome. (...) Eu cheguei aqui, no Estado de São Paulo,
mesmo morando debaixo da árvore, eu estava mais feliz que lá, que
tinha uma casa. Mesmo aqui, morando debaixo de uma árvore,
quando nós chegamos aqui, era melhor do que lá ainda.
Com o trabalho de coleta de papelão pela cidade, Oswaldo conseguiu
sustentar sua família e hoje é proprietário de carroças, com as quais seus filhos
trabalham e de terrenos no bairro onde reside.
Como tantos outros moradores do bairro, freqüentar a escola, embora bem
próxima não era possível, e como eles, seu Oswaldo aceitou o convite para participar
dos encontros de alfabetização mostrando-se um educando bastante interessado,
tendo até o momento da entrevista apenas uma falta:
16
Mucunã é uma espécie de frutos pequenos, dados em cachos, geralmente servem de
alimento para animais da mata.
17
Cerraia é uma planta amarga, semelhante à mostarda.
102
(...) depois que a gente começa não quer mais parar, eu mesmo
nunca tinha pisado em uma escola, acho que nem entrei do portão
para dentro, nem pra pegar jornal, nem papelão. E agora já faz um
ano que estou estudando!
Dessa forma, Oswaldo revela-se um educando bastante entusiasmado
com seu processo educativo, pois sabe que ele poderá assegurar algumas conquistas
como a de, por exemplo, a carteira de habilitação:
Eu, a minha vontade, eu estou conseguindo tirar a minha carta, eu
quero aprender ler, escrever pra eu tirar a minha carta de motorista,
ficar dirigindo a minha peruinha velha por aí...
Percebemos então, que Oswaldo é um sujeito que se sente potencializado
com o início da aprendizagem da leitura e da escrita, pois esses instrumentais são
necessários, embora não suficientes, para uma participação mais efetiva na
sociedade. Saber ler e escrever assegura de alguma forma o exercício de seus
direitos, como o de, por exemplo, tentar obter a carteira de habilitação.
3.5.2. Carlos: “a gente tem que ir com interesse de aprender mesmo,
pra não perder mais tempo”.
Desde os sete anos de idade Carlos trabalhou na roça próxima ao
município de Cascavel, interior do Paraná, para ajudar no orçamento familiar. Foi na
roça que passou a maior parte de sua vida e também o lugar onde aprendeu muitas
coisas, como ele mesmo nos conta:
A minha infância foi só trabalhar, então, eu nunca tive aula. Então só
trabalhar, desde os meus 7 anos e nisso até depois que eu casei, fui
fazer minha família. Eu nunca fui pra escola, fui pra escola só agora,
com 58 anos.
Continha na roça, você contava: aqui tem 5 abóboras, aqui tem 5
mamões, 1 cacho de bananas. Então, ia marcando até que deu certo
e eu aprendi a fazer contas, com bananas, com mamões, com
mandiocas, com coisas de roça... coisas para dar para a criação, foi
aí que eu fui aprendendo a fazer as continhas.
A matemática nunca foi dificuldade para Carlos, aprendida em um contexto
significativo ela era motivo de orgulho e de respeito pelos colegas da turma que
solicitavam a sua ajuda durante a realização dos encontros do Brasil Alfabetizado e
também durante as aulas da EJA.
Ainda bem que eu aprendi a fazer contas. Contas não têm outra
coisa! O que eu gasto no supermercado, ou o que eu vou gastar,
dinheiro pra onde ir: “fazer a conta”, “que número que é aqui?”.
103
Carlos, com 58 anos de idade, conseguiu captar bem a transformação de
nosso sistema educativo que ampliou, durante os últimos 50 anos, a oferta de ensino.
[a escola ficava] longe demais, do sítio na escola dava o quê? Dava
uns 10 Km. Nós não tínhamos condução, pra ir a pé, não tinha
condições. Você vê, hoje está fácil, pra ir à escola hoje, lá na fazenda
era 10 km. Vem até buscar de perua, só não estuda hoje quem não
quer, se fazer uma forcinha todo mundo estuda.
Até a gente que é velho, a gente vai mais pra ver se termina um
pouquinho. Pra ler um ônibus, pra saber alguma coisa, então é pra
isso. Naquele tempo era, 40, 50 anos atrás é diferente de hoje, muito
diferente...
Porém, mesmo com o aumento da oferta de ensino, o educando só
encontrou a possibilidade de freqüentar a escola, após a sua aposentadoria:
Não, nunca tive um dia de aula, nunca, nunca, nunca É, eu só
trabalhava mesmo, fui crescendo, só querendo que eu trabalhava,
depois fui na roça, depois com os meus pais, fui formando, depois
que eu fiquei de maior eu casei, aí que a coisa esquentou mesmo, aí
que eu trabalhava mais mesmo... Aí eu nem pensava em aula...
Aqui eu trabalhei uns 5, 6 anos... Depois eu trabalhei na Sicon,
depois eu saí da Sicon e fui trabalhar em um sítio, depois eu fui
vender sorvete na rua, sempre trabalhando... Aí hoje eu aposentei,
porque eu fiquei doente, fiquei com uma dor na perna, na coluna, não
tinha jeito, nem de andar mais com o carrinho de sorvete não
agüentava mais... Aí foi complicando cada vez mais...
Lamentamos o fato de Carlos poder usufruir da condição de alfabetizado
por pouco tempo, pois há apenas quatro meses da data da entrevista Carlos veio a
falecer quando retornava à noite da sala de aula.
Notamos, ao longo das falas do educando, que infelizmente as condições
de trabalho que possuía, pouco contribuíram para seu aprendizado escolar, tornando
este possível somente após a sua aposentadoria. Vejamos o que a esposa de Carlos
diz acerca desse fato:
Eu já tentei entrar na escola já tem umas três vezes e depois eu
desisti. Não dá, é muito serviço em casa, é uma correria, não dá
coragem de sair... De dia, não tem tempo, de noite não vê a hora de
dormir de canseira, da correria do dia inteiro, não dá coragem mais
não (...) Eu sei “má le má” o meu nome, o nome eu não esqueço. Que
nem ele, ta com tempo, agora, está aposentado, então dá pra fazer
isso [estudar].
Isso nos leva a refletir acerca das condições que a Educação de Adultos
necessita criar para que o educando consiga conciliar trabalho e educação. Será que
estamos negando o acesso à leitura e a escrita porque não consideramos as
condições de existência dos adultos não escolarizados? Terão eles que esperar pela
aposentadoria para poderem aprender a ler e a escrever, isso quando conseguirem
104
um emprego para aposentarem-se?
3.5.3. Vani: “eu não sabia escrever meu nome, passava muita
vergonha”.
Vani com 56 anos e como os outros participantes da pesquisa,
apresentados até aqui, não pode estudar quando criança, nasceu em Jaguapitã,
interior do Estado do Paraná, e segundo os dados da entrevista, Vani e sua família
mudavam de cidade, de acordo com os períodos das colheitas. Dessa forma, o tempo
que permanecia na escola era de aproximadamente 15 a 20 dias, por esse motivo, ela
e seus irmão ficaram impossibilitados de darem continuidade aos estudos.
Nós morávamos em fazenda e em fazenda a gente não parava,
sempre por causa do salário, a gente não ganhava quase nada e
mudava demais. O lugar que nós mais ficamos foi um mês, era 15
dias, 20 dias, era o máximo que nós ficávamos na escola. (...)
Mudando demais. O lugar que eu fiquei mais foi no Paraná, a gente ia
pra cidade duas, três vezes, mas como a gente morava em fazenda e
mudava demais, então não dava pra estudar. A gente não parava em
lugar nenhum, não teve jeito de aprender. Não ficava guardado
Acompanhada de dois filhos, Vani sentia muita vontade de participar dos
encontros da EJA, porém freqüentemente faltava por problemas de saúde
relacionados à epilepsia
18
.
Até quando eu puder ir, eu vou... É mais por causa desses problemas
meus que eu não vou... A professora mesmo outro dia falou pra mim:
“Ó D. Vani, quando senhora não estiver bem, a sra. não precisa vir
não...”. Alguma hora pode se machucar na estrada, eu nem sair, eu
não saía... mas quando eu estou boa eu vou, eu não perco.
(...) Eu perco muito dia também... não pode faltar. Quanto mais faltar
pior é. Agora em Agosto, quando começar de novo, eu vou ver se eu
não falto nenhum dia, só no dia que eu não estiver boa mesmo pra
não ir... [Faltei] vinte e poucos dias, mais ou menos... Duas três vezes
por semana eu ia. (...) tinha mês começava a dar problema, doença...
Ficava dois, três dias, quatro dias sem ir... aí não tem como a gente
aprender também, tem que freqüentar mais.
Vani é muito apegada à figura de Deus, que constantemente aparece em
18
Buscando mais informações sobre o assunto, descobrimos que o tratamento é feito através
de medicamentos antiepilépticos que evitam as descargas elétricas cerebrais anormais, que
são a origem das crises epilépticas. O tratamento costuma ser longo e implica em muita força
de vontade do paciente, a fim de se chegar ao controle das crises. O paciente pode apresentar
efeitos colaterais tais com sensação de cansaço, mal-estar digestivo ou sonolência.
Habitualmente a epilepsia não é tratada com cirurgia, sendo esta indicada em casos
excepcionais. O medicamento usado pela educanda é Fenobarbital, que provoca, entre outros
sintomas, a sonolência que a atrapalha no acompanhamento das aulas, provocando inúmeras
faltas.
105
suas falas. A Ele, Vani atribui o poder de ensinar-lhe a ler e escrever, como
demonstrado nas seguintes passagens:
Eu sou crente, eu fumo, mas eu tenho tanta vontade, peço tanto pra
Deus, me ensinar a ler! Ai, como é gostoso eu chegar na Igreja e ver
toda a irmandade com o hinário na mão, cantando. Gosto de ver isso
daí... morro de vontade de aprender a cantar hino. Todo dia eu fico
pedindo pra Deus me ensinar... Eu tenho Fé que Deus vai me
ensinar...
Ah, mais Deus me abençoa muito, tudo o que eu entrego na mão de
Deus, Deus resolve pra mim, os problemas. Ele resolve tudo o que eu
já tenho na vida... Ele resolve... Ah, eu estou pedindo muito a Deus,
eu tenho fé em Deus, que daqui a uns três, quatro meses pelo menos
ler um pouquinho. Ler o hinário, cantar na Igreja, eu tenho fé que
Deus vai me ensinar... pedindo pra Deus.
É a representação de Deus também a responsável pela solução dos
problemas que encontra ao longo de sua vida.
3.5.4. Eliza: “a gente fica chateada, na hora que eu falo, ninguém
sabe”.
Com 32 anos, a educanda é nascida em São Carlos e moradora no bairro
Jardim Gonzaga há 11 anos, juntamente com seus pais e outros 5 irmãos. Vinda de
família sem escolaridade, Eliza entrou na escola com uma defasagem de 4 anos e já
encontrou fatores que contribuíram para o processo de exclusão, vivenciado ainda no
interior do sistema escolar.
Eu entrei com 11 anos. Aí eu não aprendi nada, não consegui
aprender e o professor chamou o meu pai e achou melhor eu parar
(...)
Ele chamou e falou que eu não estava aprendendo e aí ele dizia que
era melhor eu parar: “que não aprende, não adianta, que entrou
atrasada, que não vai aprender mais...” Aí então, eu comecei a
trabalhar, em 93 eu entrei na Cidade Aracy, aí lá também eu não
conseguia aprender e eu cheguei a abandonar.
Porque eu nunca tinha estudado em parquinho, a gente da nossa
família nunca tinha estudado em parquinho e aí quando foi ver um já
estava com 11, outro com 14... Sabe nas outras famílias tinham um
que já era formado, mas na nossa não... Então aí o professor chamou
meu pai à parte e falou que ele passava lição e eu não conseguia
fazer... Aí eu comecei a trabalhar, trabalhar e o estudo acabou
ficando... Eu achava muito difícil, tinha também o professor, a gente
não conhece nem o mundo ainda, então é normal. Os meus irmãos
fizeram até a 4ª série, aí eu parei... Aí eu deixei pra lá...
Desde que saiu da escola quando criança, Eliza sempre sentiu vontade de
estudar, mas foi somente após 9 anos que realizou algumas tentativas de retorno à
106
escola, uma vez que todos esses anos não foram suficientes para que esquecesse as
palavras do professor que solicitou a seu pai que a tirasse da escola:
(...) em 93 eu entrei na Cidade Aracy, aí lá também eu não conseguia
aprender e eu cheguei a abandonar. Era o supletivo. Aí teve umas
aulas aqui no Centro Comunitário, mas eu fiquei meio assim... Aí eu
parei também..., mas aí eu não cheguei a estudar, fiquei lá olhando.
Aí vocês passaram e eu falei: “agora eu vou aprender um pouco”.
Eu entrei com 20 e poucos anos na Cidade Aracy, eu fiz a matrícula
tudo direitinho para eu ir no período da noite. Aí, eu cheguei lá, mas
eu senti que os todos sabiam e eu não sabia, a professora ensinava
falava pra eu ir devagar que eu ia aprender aí eu cheguei e falei:
“Olha, eu acho que estou dando trabalho para a senhora”. Ela
precisava ficar pegando no lápis pra ensinar... Foi aí que eu entrei na
Cidade Aracy, mas eu vi que os alunos eram mais fortes e eu não ia
aprender, aí eu parei... Ai, eu ficava assim, as pessoas sabiam ler e
escrever de soquinho, mas sabiam, a professora tentava me explicar,
mas tinha coisas que não entravam na minha cabeça. Eu achei que
eu não ia aprender, tinha tanta gente que sabe e eu não. E eu estava
animada, chegava lá, pegava no lápis, fazia aquele rabisqueiro, não
sabia nem o que estava fazendo, o que era número o que não era, o
que era acento, o que não era. Agora eu ainda sei, eu estou ainda
com falta na parte de conta. Às vezes a professora passa e eu fico
assim, nervosa... Que o pessoal sabe e eu não sei, aí eu tenho que
ficar esperando...
Eliza possui uma história de vida marcada por situações de desigualdade,
reforçadas pelo fato de não dominar a leitura e a escrita, já que como verificamos
acima, foi impedida de dar continuidade aos estudos:
Eu trabalhava no shopping, eu trabalhei como auxiliar de limpeza, era
pra eu estar lá até hoje... Mas chegou uma época que eu não pude
mais... (ficou quieta por alguns instantes, pensando).
(...) eles me dispensaram, era pra eu ter passado pra outro cargo, de
auxiliar de limpeza era pra eu ter passado pra outro. Aí eu fui
escolhida pra trabalhar... Tava tudo certo, mas esse cargo exigia
muita coisa, aí outra pessoa pegou o meu lugar, aí quando chegou na
hora de me dar o cargo, eu não consegui, na hora de mudar de cargo
o moço falou eu não consegui assinar e o moço falou que ia ter que
chamar outra pessoa...
A gente fica, magoada, eu queria chorar na hora... na hora que ele viu
que não sabia ler, e o dedo... Não dava... Aí a gente fica chateada...
Na hora que eu falo ninguém sabe...
Percebemos que a perda do emprego para Eliza foi algo que a marcou
muito, pois percebemos durante a realização da entrevista, que a mesma se
emocionou durante o relato.
Outro aspecto que nos chama a atenção em Eliza, refere-se aos lugares
de atuação da educanda que até o momento da realização da entrevista se restringia
ao trabalho, à escola e alguns encontros relacionados à religião:
Saio, de vez em quando, que nem agora eu tenho ido pra escola,
mas às vezes de sábado, domingo eu vou à igreja, com as meninas...
107
Eliza vivencia cotidianamente algumas relações de desigualdades sociais
reforçadas pela questão cultural. Sendo assim a educanda sofre o processo de evasão
escolar por apresentar diferenças que não foram consideradas no espaço da sala de
aula. Dessa forma, foi desqualificada por não ser reconhecida culturalmente pelo inicio
do processo de escolarização. Agora adulta, sofre as conseqüências da desigualdade
social, quando se vê desqualificada para a participação no mundo do trabalho da
sociedade atual.
A fala abaixo ilustra como a escola, em suas práticas construídas
historicamente, cria situações de opressão vivenciadas pelos educandos:
Que nem, teve uma provinha e não podia perguntar pra ninguém. Eu
fiz uma provinha assim, muita coisa eu não fiz no papel porque eu
não sabia, chegou na hora me deu um branco... o pessoal todo fez,
entregou o papel e eu fiquei, até que teve uma hora, eu chamei a
professora e falei: “eu não sei...” Porque a gente não podia ficar
perguntando. Aí chegou uma hora, eu entreguei, acabou ficando
assim...
Eu falo pra você, se estiver lá na lousa, eu olho lá na lousa e faço...
se apagou da lousa e eu não fiz ainda, aí acabou... aí eu não faço. Aí
eu olho, olho no caderno, agora ficar olhando no caderno dos outros,
a gente não aprende.
Então às vezes eu falo pra ela não apagar tão já não, porque eu
tenho dificuldade, eu tenho que olhar lá pra ver que letra que vai, que
letra que não vai, apagou, aí que já fico nervosa e embanano tudo...
Aí o pessoal fala lá que quer ensinar, mas se quiser ensinar você não
aprende.
Enfatizamos aqui a necessidade em ser levado em consideração a
individualização do ritmo de trabalho apresentado pelos educandos.
Eliza e os demais educandos entrevistados sonham, percebem que o
retorno ou o início dos estudos pode ser um caminho para a concretização de alguns
desses sonhos, porém, para Eliza, esses sonhos terão que aguardar um tempo a mais
para se realizarem, já que a educanda interrompeu os estudos pouco depois da
realização de nossa entrevista.
Assim como a sociedade, o sistema escolar não respeita seu tempo de
aprendizagem, não compreende suas angústias quando apagam a lousa ou quando
aplicam-lhe uma prova igual as dos colegas de turma. Terminamos a caracterização
de Eliza com muitas esperanças: esperamos que Eliza retorne brevemente os
estudos, esperamos mais que tudo, que quando retornar encontre uma educação que
lhe permita continuar sonhando.
108
3.5.5. Osmar: “eu já perdi a oportunidade de entrar em uma fábrica
por causa de me envergonhar e não ir”.
Osmar, com 26 anos, é o educando mais novo dos entrevistados e,
portanto, possui uma trajetória escolar diferente dos demais.
Até os 16 anos morou em Ipitá, no interior da Bahia e entrou na escola
com 7 anos – idade considerada apropriada para o início do ensino fundamental.
Contudo, sua vida escolar foi caracterizada pelo processo de evasão:
Eu vim da Bahia, tem o quê? Uns 10 anos que eu moro aqui em São
Carlos. Eu sempre entrei na escola e saia... Ah, eu ficava pouco
tempo, uns três meses. Com uns sete, oito... Mas eu ia à escola mais
para bagunçar. Sabe molecada solteira como é? Só ia à escola pra
bagunçar mesmo... Não, eu nunca reprovei porque eu nunca
prolonguei... Eu sempre desistia no meio do caminho...
O educando apresenta a forma de trabalho da professora como justificativa
para a “desistência” da escola:
(...) é que em todos os anos atrás que eu estudei a professora não
era muito legal, não ensinava legal... Na Bahia eu estudei muito
pouco, eu estudei mais quando eu era pequenininho... Mas chegava
lá e não ensinava a gente legal, não sei, não era que nem vocês que
chega na gente e pergunta, e explica, que passa na lousa e fala que
é assim, assim... Então eram muito diferentes os ensinamentos dela.
Essas justificativas parecem coincidir com as mesmas apresentadas por
alunos que participaram de sistema escolar excludente e seletivo.
A evasão escolar ainda é um desafio a ser enfrentado por aqueles que se
preocupam com a restauração de uma escola democrática e participativa. Segundo os
relatos de Osmar, presentes na entrevista, podemos observar que o educando
possuía apoio familiar para prosseguir nos estudos. Acreditamos que outros fatores
foram os responsáveis pela exclusão de Osmar do sistema educativo:
Eu desistia por conta própria, não era porque eu trabalhava, não.
Alguns estudaram [irmãos], outros não. Tinha uns que não queriam
saber de estudar, não... Eles sempre incentivavam, o meu pai e a
minha mãe sempre deram força, mas a gente mesmo que não quis
Contudo, no curso do processo educativo escolarizado de Osmar, a
evasão não teve lugar apenas na infância. Já adulto, também foi obrigado a
abandonar os estudos, porém agora por motivos diferentes, relacionados à instituição
escolar:
E aqui em São Carlos era porque às vezes... que nem, eu morava no
Antenor Garcia e saia do Antenor Garcia e vinha estudar aqui na
109
Madre Cabrine, aqui no Cruzeiro do Sul, e aí, era difícil pra mim,
porque eu chegava tarde e tinha que tomar o ônibus correndo,
chegava, tomava banho e saía correndo e aí, chegou uma hora que
eu peguei e desisti...
Na idade adulta, o educando encontra inúmeros entraves para a sua
escolarização, nem sempre os espaços escolares se preocupam com as outras
responsabilidades igualmente importantes na vida do adulto, como a família e o
trabalho.
Sendo assim, se buscamos uma escola que realmente valorize a
participação, essa escola deve estar pronta a atender o educando adulto nos horários
que lhe são mais convenientes. Sabendo desse desafio frente à Educação de Adultos,
o educando torce para não ser obrigado a desistir dos estudos:
Agora, que nem, agora a escola que eu to podendo ir melhor é
agora... E espero que eu vá até o final do ano sem desistir.
O desejo pela aprendizagem, que vai além da aprendizagem da leitura e
da escrita, relaciona-se com não perder mais oportunidades. Sendo assim, Osmar nos
conta como reagia quando alguém lhe indicava um emprego:
(...) aí eu falava: “ta bom, eu vou dar uma passada lá” (risos). Sabe
como é, para despistar e não ia (...). Em momento nenhum eu fiquei
chateado... Porque eu fazia igual o “Roberto sem Carlos” (texto
trabalhado em sala de aula). Esses dias atrás a professora leu pra
gente. Eu não me sinto chateado, não, o pessoal fala, eu finjo que eu
sei, então passa, vai passando, eu não me sinto chateado... Eu vou
levando
Dessa forma, o educando nos conta como fazia para sobreviver em
algumas situações de uso da leitura e da escrita:
Só uma vez, é... eu fingi [que sabia ler e escrever], mas no final das
contas eu tive que pedir ajuda... porque a gente foi fazer um currículo,
eu e o meu compadre aí eu cheguei lá, estava todo mundo
escrevendo e eu fiquei lá, paradão, olhava pra um, olhava pra outro e
eu lá. Até que eu cheguei pra ele e pedi ajuda.
Como podemos observar, fingir que se sabe no interior das inúmeras
relações de poder presentes na sociedade é querer na verdade diminuir o sentimento
de exclusão presentes nas inúmeras falas dos adultos não alfabetizados.
110
3.5.6. Carmem: “a pessoa que não tem estudo, parece que ninguém
vê”.
Carmem, assim como os demais educandos, realiza dia-a-dia o processo
mais difícil da alfabetização: lê o mundo, mais ainda não lê a palavra.
Com 55 anos de idade, Carmem nasceu em Itaberaba, interior da Bahia e
passou a infância na lavoura junto com sua mãe e seus cinco irmãos. Lembra-se
pouco de seu pai, apenas que era um homem doente e que pouco os via. Obrigada a
sustentar a família praticamente sozinha, sua mãe mudava-se de lugar de acordo com
os períodos de colheita.
Como a história de Vani, Carmem também ficou impedida de freqüentar a
escola assim como seus irmãos. Porém, houve um período em que sua mãe ficou
aproximadamente um ano em uma determinada fazenda e Carmem pode conhecer
um pouco do universo escolar:
(...) aí quando eu fui para a escola eu era criança, eu tinha uns 8
anos, 9 anos, nós moramos em uma fazenda, um ano, aí a minha
mãe colocou a gente na escola aí o professor, ele chamava até João,
mandou comprar uma cartilha, aí eu fui comprar. Andei 8 quilômetros,
mais uma menina com uma dona lá, no Patrimônio que era longe. E
eu fui toda contente, comprar aquela cartilha pra eu estudar. E
comprei uma cartilha Caminho Suave. E tinha vindo um povo do
Nordeste com aquelas cartilhinhas pequeninas antigas (fez o gesto
com a mão indicando o tamanho da cartilha), eu me lembro como se
fosse agora... Já que o professor queria que eu aprendesse o ABC
que naquele tempo não tinha, hoje tem, mas antigamente não tinha,
era dele ter então copiado no meu caderno, falando: “olha Carmem
você lê aqui”. Não, ele pegou a minha cartilha e deu para o menino
ler e deu a cartilhinha do menino, desse tamanho e me deu... Mas eu
chorei tanto, pra mim foi pior que se ele me desse um tapa na cara.
eu peguei, voei na mão do menino, falei que a cartilha era minha,
peguei a cartilha e fui embora chorando.
Essa “briga” pela aprendizagem da leitura e da escrita, que se iniciou ainda
quando criança se estenderia por muito tempo em sua vida, segundo ela mesma
afirma, poderia ter voltado a estudar se sua mãe interferisse:
Se a minha mãe tivesse me dado uma surra ou se a minha mãe
tivesse ido lá, tivesse falado: “Não seu João, o senhor não pode fazer
isso com a menina, ela também é uma criança e ela foi 8 quilômetros
comprar essa cartilha, agora o senhor tira a cartilha dela pra dar pro
outro que sabe ler um pouco e quer que ela aprende o ABC na
cartilha dele!”
Uma cartilhinha feia, Stella, mas assim pequenininha e eu comprei
uma cartilhona grande assim, capa bonita, tinha figura todinha.
Criança, minha filha, e a minha mãe não me deu uma surra e eu não
voltei mais na escola. Também, eu não ia aprender nada, porque nós
mudamos logo depois.
111
O desejo pelo aprendizado continuou em sua vida, porém foi impedido de
realizar-se por diferentes motivos como apontados pela educanda:
(...) eu fiquei muitos anos [sem estudar], aí depois que eu fiquei
adulta eu entrei na escola à noite, em São Paulo. Estudei poucos
meses, mas eu acredito que a gente tem que ir para a escola quanto
a gente está com uma parte boa, quando a gente não está com a
cabeça quente, preocupada com nada. Mas quando eu fui minha mãe
piorava que morava comigo e o meu filho, que eu criei ele sem pai. O
pai dele nunca deu para ele uma bala doce! Então eu ia para a escola
naquela preocupação, de ter que levantar... Ai meu Deus... O que
falta mais em casa... Sabe? Naquilo?
Eu conhecia as sílabas, mas não conseguia juntar, eu não conseguir
juntar para ler... Aí eu ia um tempo na escola e parava. Depois tornei
a entrar e tornei a parar... Aí eu fui embora... Mataram o meu filho em
São Paulo. Ele era parecido com um outro e deram um tiro por de trás
e eu perdi o meu filho. Aí eu fui embora para Cuiabá, arrasada...
Cheguei a Cuiabá, comprei um terreno e fiz a minha casa, deu 1 ano
e 6 meses a minha mãe morreu. Aí eu fiquei lá, quando foi o ano
retrasado que começou essa alfabetização e pertinho de casa estava
tendo e eu não sabia...
Aí, nisso já estava quase acabando o ano. Aí eu fui e tinha mesmo! Aí
eu entrei... Mas em toda a vida, o que eu via na lousa eu copiava,
sabe? Só que eu não lia... Copiava tudinho...
Aí, o professor era muito bom... Ensinava, explicava, ensinava a
juntar as letras, eu aprendi, ‘má-lê-má”, pouca coisa. Aí o ano acabou
e eles deram o certificado que a pessoa foi alfabetizada, eu queria
estudar, eu queria continuar, mas lá não tinha mais, lá era só para
alfabetizar. Alfabetizados tinha que descer lá para Maria Macedo,
para outras escolas...
Eu descia, eu me matriculei no Maria Macedo. Eu estava indo tão
bem, minha filha, aí veio a preocupação de conta... Eu trabalhava por
conta própria, aí as pessoas compravam, não pagavam, eu ia cobrar
e as pessoas vinham com desaforos. Então, tinha dia de chegar à
escola chorando. Eu mais faltava do que ia... Por causa do meu
joelho, aí a minha irmã ficou ruim em São Paulo, nós éramos cinco.
Morreu uma e ficou quatro (...). Aí eu fiquei mais quatro meses...
Quando eu cheguei lá, já era o fim do ano, o que eu ia fazer lá na
escola? No outro ano eu fui, vim para cá de novo, fiquei faltando
muito... Um professor muito bom... Ensinava a gente a ler... Eu
lembro que eu fiquei ruim da perna (...). Ele [professor] bateu um
papel à máquina e me deu, eu levei [no INSS], como ele era meio
conhecido, com a graças de Deus eu me aposentei, operei o joelho
no ano retrasado, vim embora para cá no ano passado, estudei
aqueles quatro meses com vocês e entrei agora no começo do ano.
Lendo o excerto transcrito acima, destacamos que o principal impedimento
de Carmem a continuar os estudos eram preocupações e dificuldades que encontrava
em sua vida. Diante daquelas dificuldades, como falta de dinheiro e morte de
familiares encontrava-se impossibilitada de concentrar-se em seu próprio processo de
alfabetização, como comenta a educanda:
Então, tudo..., mesmo assim, se você não quer ficar preocupada,
você fica, não é fácil você ganhar um salário e o peso da casa ser
todinho nas suas costas.
112
Essas difíceis vivências a impediram de ler a palavra, mas não de ler e de
tentar reescrever a sua história no mundo. Foi como esse intuito, de participar
ativamente em seu próprio processo de aprendizagem que Carmem tomou a iniciativa
de organizar um abaixo assinado para separar a turma do ensino supletivo:
A sala estava cheia, tinha muita gente da terceira série e queria dividir
a sala e ninguém se esforçava e aí eu falei:
- Bom, se vocês fizerem um abaixo assinado a gente leva. E vê, se
Deus abençoa e a gente consegue outra professora para dividir a
sala...
E assim, nós fizemos, eles fizeram o abaixo assinado e eu falei:
- Se ninguém for levar lá, pode me dar aqui que eu vou... Quem tem
boca, vai a Roma (risos).
Eles fizeram o abaixo assinado lá, eu fui, levei eu não entreguei
pessoalmente para a J porque ela não estava, deixei lá, mas fiquei
ligando direto, direto, direto, eu não dava paz para a coitada da J, eu
não dava paz para ela. Conseguiram, dividiram a sala.
Carmem conseguiu organizar o abaixo assinado com a ajuda dos demais
educandos, pois a separação da turma era um desejo expresso por todos os
participantes da Educação de Jovens e Adultos da escola.
A educanda também comenta a importância da separação das turmas,
bem como da permanência dos educandos na escola, uma vez que temia que no
próximo ano, correspondente a 2005 as coisas voltassem a ser como antes:
Levei, eu fiquei no pé da secretária, porque lá na escola o professor
não pode fazer isso... Eu falei: “Gente eu vou fazer, mas pelo amor de
Deus, vocês me mantenham o pé firme e vem para a aula, pra
quando for o ano que vem as portas estão abertas e outra, se a
professora vier, é para vocês continuarem, porque se vocês ficarem
faltando muito ou pararem, quando for ao fim do ano vai ficar a
mesma coisa...”. E daí não é justo porque prejudica a gente, por que
como que uma pessoa forte pode ficar numa classe das pessoas
fracas?
Verificamos no excerto acima que Carmem se preocupa com a qualidade
de sua aprendizagem e de seus companheiros de turma, afirmando que não acha
justo, educandos com diferentes dificuldades freqüentar a mesma turma, interferindo o
trabalho educativo e na aprendizagem de todos os participantes.
Mesmo tendo solicitado que os participantes continuassem freqüentando
os encontros, justificando a necessidade das duas turmas, termo 1 e termo 2, isso não
aconteceu como o desejado:
Eles começam, assim, naquela vontade, depois, quando vai dando o
fim do ano, o meio do ano, a pessoa vai esmorecendo. Lá na sala
nossa, tinha bastante gente...
113
Porém, Carmem revela seguramente o motivo das desistências dos
educandos:
(...) agora ninguém tem emprego certo e os coitados têm que ficar
parando para irem para a colheita de laranja... Quando vem, chegam
sete horas. O que esses coitados vão aprender cansados, ficando aí
até 10 horas da noite para levantarem no outro dia cedo? Tem muita
gente que está faltando por causa desse motivo: da colheita de
laranja.
As falas de Carmem são muito significativas para a compreensão do
processo de evasão escolar vivenciado em inúmeras salas de alfabetização e de
Educação de Jovens e Adultos.
Viemos, ao longo da caracterização dos participantes, pontuando a
importância da adaptação do currículo da Educação de Adultos às necessidades
vivenciadas pelos educandos e expressas por eles sob diferentes formas.
Dessa maneira, se desejarmos refletir sobre possibilidades de se
reinventar a Educação de Adultos, viabilizando formas de acesso e participação
efetiva, não podemos subordiná-la às exigências do sistema escolar, como por
exemplo, à sua subordinação ao calendário escolar.
Vejamos algumas das impressões que a alfabetizanda possui sobre si
mesma:
Eu fiz 55 anos. Mas eu quero estar com um espírito de 15! Eu não
quero ficar aquelas velhas morrendo, eu quero ficar velhinha e
durinha (risos). Bumbum para trás e barriga para dentro... A gente
tem que viver assim, não é porque a pessoa não sabe ler que tem
que ser infeliz, não, a pessoa tem que ser feliz com tudo aquilo que
Deus deu na vida... Se ele não teve uma oportunidade o que ele pode
fazer? Agora se ele teve tem que tentar dar valor naquela
oportunidade que pintou e ir à luta...
Porque eu sempre fui uma pessoa muito honesta com as coisas
minhas, eu gosto muito das coisas certas e eu sempre falo: que às
vezes uma pessoa tem muito estudo e ele não tem educação, não
sabe tratar os outros, tem um mal costume. E eu não, eu tenho o meu
estudo, embora que eu não sei falar bem.
Com relação ainda a esse aspecto, vejamos o que Carmem comenta
acerca de seu marido que é alfabetizado:
O meu marido ele sabe ler, não vai ao banco pagar uma conta.
Adianta o que aquele estudo que tem? Então é melhor que não
tenha, não sabe conversar, parece que gente é bicho, então não é
certo isso... Então o estudo não é tudo...
Podemos inferir que Carmem percebe que não basta ser alfabetizado, no
sentido de dominar a linguagem escrita. Concluímos então, que Carmem refere-se
aquele outro aspecto da alfabetização crítica: a leitura do mundo.
114
A honestidade também é outra característica apontada pela educanda e
também presente nas falas dos outros entrevistados:
E eu sou muito certa mesmo, muito séria e muito honesta demais,
mas eu não levo sorte. Eu sou honesta, mas os outros não são
honestos comigo... Isso daí machuca muito a gente. Que é uma coisa
mais difícil é você ser uma pessoa sempre certa, sempre honesta, ali
ó, cumprindo com o seu dever, pagar suas contas, você está sempre
estendendo a mão e você vê que a pessoa está só carcando, porque
você é boa demais? Isso daí é muito difícil, não é brincadeira... Mas
se Deus quiser... Eu já venci pela misericórdia de Deus.
Como Oswaldo, Carmem também tem a impressão de que as pessoas
parecem tirar proveito da sua condição de não-alfabetizada. Embora a educanda
possua uma auto-estima considerada positiva, enfatizando que mesmo que a pessoa
não saiba ler e nem escrever é necessário ficar com a cabeça erguida, ela reconhece
também que a condição de alfabetizado permite novas possibilidades de intercâmbios
sociais, culturais e pessoais.
Ao verificarmos a trajetória escolar apontada pelos educandos que fizeram
parte desta pesquisa, percebemos formas diferentes da ideologia da interdição do
corpo (FREIRE A., 1989) e, portanto, da manutenção do próprio analfabetismo.
A primeira manifestação da ideologia da interdição do corpo refere-se ao
impedimento de participação no universo escolar, já que quatro dos educandos foram
privados, quando crianças de freqüentarem a escola: Oswaldo, Carlos, Vani e
Carmem.
Observamos que os fatores diretamente relacionados ao impedimento de
Oswaldo e Carlos de freqüentarem a escola é a infância marcada pelo trabalho junto à
família e a questão da distância, que se situava a escola.
No período correspondente a 1950, data aproximada em que os
educandos estariam em idade de iniciar os estudos, o quadro sócio-econômico
brasileiro apontava para a crescente urbanização. Embora o sistema educacional
tivesse iniciado sua expansão a partir de 1930, ficou contido por forças políticas que
representavam os interesses da facção dominante.
Segundo ROMANELLI (1999), ainda que em 1946 – pela Lei Orgânica do
Ensino – o primário estivesse organizado em duas categorias: primário elementar e
supletivo, e ficado estabelecido que Estados, Territórios e Distrito Federal
organizassem seus respectivos sistemas, essa expansão foi muito limitada quando
comparada com a expansão do ensino secundário e superior do tipo acadêmico.
Diante deste quadro, concluímos que a expansão do ensino primário não
atingiu a totalidade da população em idade escolar, como é o caso dos dois
educandos entrevistados.
115
A maior parte das escolas estava concentrada em áreas urbanas, tendo
poucas iniciativas em áreas rurais. Destacamos que as poucas iniciativas existentes
apresentavam inadequações, como podemos perceber pelos relatos de Vani e
Carmem, que nos contaram suas passagem pelas chamadas escolas rurais,
características do período.
As poucas escolas do tipo rurais eram organizadas sem a preocupação
aparente com o transporte dos educandos, que embora possuíssem moradas fixas,
como foi o caso dos dois educandos apresentados anteriormente, ficavam
impossibilitados de freqüentarem a escola devido a enorme distância.
Outro aspecto que nos chamam a atenção é com relação ao calendário
escolar, que desconsiderava os diferentes períodos de colheita, causando
interrupções nos estudos e também pela relação professor-aluno, marcada
nitidamente pelo autoritarismo, pela priorização de elementos técnicos e pela
desconsideração do ponto de vista dos educandos.
Outra forma de manifestação da ideologia da interdição do corpo relaciona-
se ao eixo da questão cultural, uma vez que dentro do sistema de ensino, outros dois
educandos – Eliza e Osmar – sofreram o processo de evasão por não se identificarem
com os valores e com a cultura assumida como única dentro do espaço escolar.
Frente a um sistema escolar tão excludente, que mesmo em seu interior é
capaz de gerar excluídos, retendo número tão elevado de alunos que após atingir
certa idade abandonam a escola para contribuírem no orçamento familiar, cansados
de cursarem a mesma série, na qual os mesmos conteúdos impostos e selecionados
arbitrariamente modelam os educandos como se esses devessem adquirir formas para
sobreviverem ao sistema escolar.
Obviamente, os educandos que apresentavam expressões culturais, que
eram diferentes das valorizadas pela escola, eram retidos por várias vezes até ficarem
convencidos que a cabeça não dá para os estudos, que é melhor ir trabalhar, ou então
convidados sutilmente a se retirarem da escolar, como foi o caso de Eliza, em que o
próprio professor afirmou que ela não aprenderia e que não valia a pena tentar, pois já
entrara atrasada.
Mesmo após a universalização do ensino, esse tipo de educação criou
mecanismos capazes de excluir as classes populares do acesso ao que lhe é de
direito: saber ler e escrever.
Voltamos a ressaltar que Eliza deixou a escola poucos meses após a
realização da entrevista, demonstrando que a Educação de Adultos necessita ser
transformada, pois continua a perpetuar, através de práticas e discursos, a ideologia
da interdição do corpo, principalmente quando não vê respeitados o seu tempo em
116
aprender.
Osmar também expressa temor em ter que abandonar os estudos por
conta do comprometimento de seus horários de trabalho, como tantos outros
educandos que ingressam e param por não conseguirem conciliar educação e
trabalho.
Concluímos então, que o fenômeno do analfabetismo tem sua origem e
manutenção nas próprias relações de poder que configuraram e ainda configuram a
sociedade brasileira e que permanecem representadas nas práticas escolarizantes.
Desmistificar a ideologia que foi sendo construída acerca dos discursos do
analfabetismo enquanto vergonha nacional, trazendo implícita idéia da
responsabilidade pessoal pela busca do saber ler e escrever implica em uma análise
crítica a ser realizada junto aos próprios educandos ainda no início do processo de
alfabetização.
A seguir, iniciaremos nosso quarto capítulo, no qual apresentaremos a
análise dos dados, buscando responder à seguinte questão de pesquisa: quais
experiências pessoais e sociais se relacionam com o início do processo de
aprendizagem da leitura e da escrita, na perspectiva de adultos alfabetizandos?
117
CAPÍTULO IV
ANÁLISE DOS DADOS
Como afirmamos em nosso percurso metodológico, a análise dos dados foi
realizada com base na análise do conteúdo das entrevistas realizadas com seis
educandos adultos na fase inicial da aprendizagem da leitura e da escrita. Para
orientar nossa análise, contamos com o referencial concernente à alfabetização crítica
proposta por Paulo Freire.
O presente capítulo está organizado em três partes, sendo que na primeira
trazemos a análise das experiências pessoais e sociais configuradas no interior do
analfabetismo e caracterizadas por nós como experiências antidialógicas. Em um
segundo momento, apresentamos a análise das experiências pessoais que se
relacionam com o início do processo de alfabetização. Por fim, trazemos as
experiências sociais que foram possíveis após o aprendizado da leitura e da escrita.
4.1. EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E SOCIAIS CONFIGURADAS NA
CONDIÇÃO DO ANALFABETISMO.
Conforme delineamos na exposição de nosso referencial teórico, as
transformações originadas da aplicação crescente de tecnologias digitais redefiniram a
posição de cada sociedade e de cada indivíduo no novo modelo de sociedade.
Segundo CASTELLS (1999), na sociedade atual, o fluxo de conhecimento é tomado
como a principal fonte de produtividade. Dessa forma, a capacidade de processar e
selecionar a informação tem sido a principal habilidade requerida para a participação
no mundo do trabalho.
Embora a sociedade informacional tenha criado inúmeras oportunidades
de melhoria da qualidade de vida, ela também foi capaz de agravar as desigualdades
sociais, principalmente as que se configuram no interior do analfabetismo. Neste
118
tópico de nossa análise apresentamos as experiências de desigualdades que se
relacionam com o não domínio da leitura e da escrita e que são caracterizadas por nós
como experiências antidialógias, por serem capazes de limitar e impedir o intercambio
entre as pessoas (FLECHA, 1997). Para isso, dividimos o tópico em três itens de
análise que serão apresentados a seguir.
a) Impossibilidades sociais:
Iniciaremos esse item com a análise da fala de Eliza:
Eu trabalhava no shopping, eu trabalhei como auxiliar de limpeza, era
pra eu estar lá até hoje... Mas chegou uma época que eu não pude
mais... (ficou quieta por alguns instantes, pensando).
(...) eles me dispensaram, era pra eu ter passado pra outro cargo, de
auxiliar de limpeza era pra eu ter passado pra outro. Aí eu fui
escolhida pra trabalhar... Estava tudo certo, mas esse cargo exigia
muita coisa, aí outra pessoa pegou o meu lugar, aí quando chegou na
hora de me dar o cargo, eu não consegui, na hora de mudar de cargo
o moço falou eu não consegui assinar e o moço falou que ia ter que
chamar outra pessoa...
A gente fica, magoada, eu queria chorar na hora... na hora que ele viu
que não sabia ler, e o dedo não dava... Aí a gente fica chateada... Na
hora que eu falo ninguém sabe...
(Eliza).
A leitura e a escrita são cobradas como habilidades básicas que
necessitam ser dominadas por todos os sujeitos da sociedade. O saber ler e escrever
significa um cartão de entrada para a tão desejada participação no mercado de
trabalho. O que muitas vezes a sociedade letrada não considera, é o fato de inúmeras
pessoas, que não sabem ler e escrever, participarem socialmente e produtivamente,
tanto quanto as alfabetizadas.
Certamente Eliza não assumiria um posto de trabalho mais alto que aquele
que possuía até então, pelas suas habilidades de leitura e escrita, ela foi promovida
porque desempenhava sua função tão bem quanto seus amigos de trabalho que
sabiam ler. Porém, no momento em que se descobre que Eliza não era alfabetizada
ela é impedida de ser promovida e de permanecer no cargo que até então ocupava.
Além disso também, eu gostava muito de trabalhar em escolinha,
trabalhar com crianças, aí me chamaram em uma escolinha pra eu
participar de uma entrevista, eu já estava trabalhando de doméstica.
Aí teve uma hora que a moça perguntou pra mim se eu sabia ler e
escrever (silêncio novamente), aí ficou (pausa), eles me passaram
pra frente... A gente fica muito chateada, a gente fica chateada. Até
hoje eu fico chateada, às vezes assim, na sala, eu tento, tento e não
consigo. Assim, eu to tentando. Mas mesmo assim, eu acho difícil a
parte de contas, nomes...
(Eliza).
119
De acordo com AGUIRRE (1997) e CASTELLS (1999), na sociedade atual
com as mudanças ocorridas junto ao advento da sociedade da informação, verifica-se
uma nova configuração junto aos postos de trabalho, uma vez que as pessoas com
titulação superior estão ocupando os postos de trabalho que estavam designados às
pessoas com “menos” preparação, estas por sua vez, acabam ficando excluídas do
mercado de trabalho ou não possuem oportunidade de ascender a ele.
Osmar possui 26 anos de idade e enfrenta cotidianamente a falta da leitura
e da escrita, uma vez que vivencia, na sociedade atual, a valorização cada vez
crescente de conhecimentos e a geração de um mercado de trabalho altamente
competitivo. Dessa forma, o alfabetizando nos conta algumas situações de cobranças
e de impedimentos relacionados à condição do analfabetismo:
Ah, impedia em muitas coisas, porque até hoje na hora de fazer um
currículo, me impede, que nem, tem um serviço lá, e tem que fazer
um currículo, eu me acanho de ir lá pra eu fazer, porque eu vou pegar
uma ficha pra eu preencher eu não sei, eu tenho que trazer pra casa
e dar pra alguém preencher pra mim. Então, às vezes eu me acanho
de ir, de chegar até o local
(Osmar).
Como os demais sujeitos dessa pesquisa, Carmem também possui
algumas passagens na entrevista que revelam algumas impossibilidades sociais:
Ah, impediu muito. Eu não sonhei isso pra mim não... Eu sonhei uma
coisa melhor na minha vida! Que quando você tem estudo, você pode
fazer um curso, fazer uma carreira na vida, ser uma repórter, ser
alguma coisa na vida, ensinar, ter assim, possibilidade de ajudar os
outros que estão piores, com crianças e tudo... sei lá, você tem outras
possibilidades na vida... e você não tendo estudo, você não tem
possibilidade nenhuma... nenhuma, sua vida é uma vida... você vive
mesmo... porque... Deus quer que vive, mas quem leva uma vida
muito difícil leva, quem não tem estudo...
E eu me sinto uma dessas... eu, se eu tivesse estudo eu queria que
Deus me abençoasse, que Deus abrisse a minha mente, que eu
aprendesse a ler mesmo...
(Carmem).
Dois aspectos nos chamam a atenção na fala de Carmem: o sonhar e as
oportunidades que se abrem com o estudo.
FREIRE (1992 e 2001) afirma que o sonho e a esperança são
necessidades ontológicas, embora não suficientes. Elas impedem que o sentimento
fatalista imobilize forças, tirando nossas histórias de nossas próprias mãos, bem como
a possibilidade de reescrevê-las. Quando Carmem afirma que havia sonhado uma
coisa melhor em sua vida, ela conseguiu visualizar o inédito viável, aquilo que ainda
não é, mas que pode vir a ser.
Segundo a própria educanda, grande parte dos sonhos que havia
120
imaginado para sua vida ficou impossibilitada pela falta do estudo, aqui vamos tomar
como sendo a falta da leitura e da escrita. Carmem afirma que aquele que possui
estudo vislumbra outras oportunidades, a educanda sente que seu universo de
atuação fica limitado, enquanto que para as pessoas com escolaridade, um grande
leque de opções encontra-se aberto.
Ah, impediu muito...Pela falta da escrita e da leitura eu não conseguia
trabalhar. Eu ficava trabalhando mais em roça
(Vani).
Vani também nos revela ao longo de sua entrevista, algumas situações,
relacionadas ao contexto social que foram impedidas de se realizarem pela falta do
domínio da leitura e da escrita.
Verificamos assim, que a condição do analfabetismo relaciona-se
diretamente ao eixo das desigualdades sociais, principalmente quando estas limitam
algumas oportunidades de trabalho. Dessa forma, recuperamos nossa discussão
apresentada durante a exposição de nosso referencial teórico, quando afirmamos,
com base em FLECHA (1994), que as desigualdades sociais relacionam-se ao
componente cultural, uma vez que ter acesso aos conhecimentos sistematizados pela
escola tornou-se um fator de discriminação social.
b) Limitações pessoais:
A falta da leitura e escrita, por impedir a satisfação das necessidades
sociais, criou um muro antidiálogico que impossibilita os educandos de atribuirem
valores a si próprios, uma vez que passam a acreditar que só tem valor aquele que
sabe ler e escrever.
Sem a leitura não vale nada. Quem não tem leitura é a mesma coisa
que não ter nada na vida [sorri emocionada] (Vani).
Nesse sentido, FREIRE (1980) afirma:
O desprezo por si mesmo é outra característica do oprimido, que
provém da interiorização da opinião dos opressores sobre ele. Ouvem
dizer tão freqüentemente que não servem para nada, que não podem
aprender nada, que são débeis, preguiçosos e improdutivos que
acabam por convencer-se de sua própria incapacidade (p. 61).
As falas de Eliza também vão no mesmo sentido das de Vani, pois a
educanda introjetou o discurso da sociedade atual que atribui valor a quem tem
formação adequada para participar do mundo do trabalho:
121
(...) é que nem os outros falam, se você quiser uma coisa melhor,
você tem que ter estudo, sem estudo a gente não é nada, em todo
lugar exige agora estudo. A gente vê aí que sem estudo a gente não
sabe o que vai ser da gente (Eliza).
Consideramos pertinente transcrever o relato de Carmem, pois revela a
sua visão da desigualdade do ponto de vista de quem a sofre:
Sei lá eu... Eu sempre falei que a pessoa sem estudo vive, não sei
porque. Porque a pessoa sem estudo era bom que não vivesse no
mundo, eu sempre falei isso... Se for pecado, Deus que me perdoe,
porque é muito difícil... Uma coisa muito difícil, você é muito assim,
parece que ninguém te vê... Você não tem assim, sei lá eu,
ninguém... Quando a pessoa tem estudo é outra coisa... a pessoa
que não tem estudo é muito... Ninguém vê ele não...
(Carmem).
Carmem nos fala de uma faceta da desigualdade relacionada ao acesso e
domínio de conhecimentos, que na sociedade da informação podem ser considerados
como sinônimo de capital. A educanda nos revela uma das situações de opressão que
nos parece ir além mesmo da própria exclusão, é a situação de anulação, que não
enxerga o Outro, como se ele não existisse, porque não é “competitivo”, “qualificado” e
“produtivo” dentro das exigências que caracterizam a nossa sociedade.
Com relação à Eliza, percebemos que o não domínio da leitura e da escrita
criou situações de opressão que se configuram como situações de dependência que
limitam seu poder de atuação na sociedade:
Quando eu recebo, a patroa sempre fala pra mim assim: “eu vou te
pagar com cheque cruzado pra você não perder, você tem que ir ao
banco com uma pessoa mais velha, porque você não sabe ler”. Até
hoje é isso aí... Às vezes eu vou com a minha irmã, com a caçula,
que entende mais, ela entende mais, ou senão, às vezes eu vou com
as meninas descontar também. Ou senão, quando eu preciso, eu falo
pra pessoa me pagar em trocado, aí quando a pessoa paga ela já
explica pra eu guardar o papelzinho.
Depende da letra, às vezes eu guardo, quando muda, eu fico meio
perdida. Pra onde ele vai, pra onde eu tenho que descer... Se eu
pegar e descer no lugar que eu não tinha que descer, aí pegar outro
ônibus não dá, com o preço que está. Às vezes eu faço um sacrifício
e vou a pé
(Eliza).
Verificamos que o mesmo ocorre em situações relacionadas ao trabalho
que exerce:
(...) nessa parte era difícil, porque às vezes a pessoa vai viajar e você
tem que marcar um recado, a pessoa deixa um telefone, então não
tem como marcar... Tem que pedir pra pessoa ligar outra hora
(Eliza).
Contudo, podemos perceber pelas falas da educanda que as situações de
122
dependência vivenciadas por ela são percebidas, isso pode ser o primeiro passo para
que a mesma seja compreendida como uma situação limite que pode ser
transformada.
Tudo você tem que perguntar, você quer fazer alguma coisa, tem que
pedir pra pessoa ler...
(Eliza).
As relações de poder se fazem presentes cotidianamente na vida dos
educandos, mesmo após o início do processo de alfabetização. Dessa forma, a
opressão vivenciada por eles é social tendo sua origem no eixo cultural, já que pelo
fato de terem sido impedidos de freqüentarem a escola, passam a sofrer as
desigualdades sociais e consequentemente a elaborarem subjetividades característica
do muro antidialógico pessoal, como por exemplo, a falta de confiança em suas
próprias capacidades.
Sendo assim, as experiências vividas no interior do analfabetismo
configuram-se como situações de opressão que podem ser transformadas com o
aprendizado da leitura e da escrita. Porém, afirmamos que nem todas as relações de
opressão podem ser transformadas com a leitura e a escrita da palavra. A leitura
crítica do mundo, que na perspectiva freiriana se realiza conjuntamente à leitura da
palavra, podendo indicar os limites e as possibilidades da reescrita do mundo.
c) Estratégias elaboradas pelos educandos:
Para “driblar” algumas situações de opressão vivenciadas pelos adultos
não alfabetizados, os educandos passam a elaborar estratégias que são aplicadas no
âmbito social. Essas estratégias permitem que passem como pessoas afabetizadas,
como demonstrado em algumas das falas abaixo:
Eu aprendi os horários [do ônibus] pela hora que eles passam, eu ia
contando letra por letra, aí eu sei pra onde vai, pra onde que não vai,
mas tem vezes que eu vou contando, tem vezes que eu preciso
perguntar. Que nem, agora tem ônibus novo e eu preciso perguntar.
(...) na hora de assinar o nome, de receber um recibo, tudo... as
meninas assinavam, mas aí o rapaz chegou pra mim e disse que não
ia dar mais. Que cada um tinha que saber a sua parte... Então eu não
fiquei mais, era pra eu estar lá até hoje...
(Eliza).
Vani também nos fala como os demais, de estratégias elaboradas por ela
para conseguir assinar o nome em locais públicos, como o banco, por exemplo.
Assinalamos que os adultos não alfabetizados valorizam muito a escrita do próprio
nome, fica evidenciado nas entrevistas que eles consideram como um estigma de
123
analfabeto o fato de terem que deixar a marca do polegar em documentos.
Quando eu ia ao banco assim receber outra vez, eu mandava o rapaz
assinar pra mim... só que não podia ... Quem assinava pra mim era a
minha filha
(Vani).
Osmar também nos contou como reagia quando alguém lhe indicava um
emprego:
(...) aí eu falava: “ta bom, eu vou dar uma passada lá” (risos). Sabe
como é, para despistar e não ia (...). Em momento nenhum eu fiquei
chateado... Porque eu fazia igual o “Roberto sem Carlos
19
. Eu não
me sinto chateado, não, o pessoal fala, eu finjo que eu sei, então
passa, vai passando, eu não me sinto chateado... Eu vou levando.
(Osmar).
Osmar nos explicou que fazia como o autor de um texto que foi lido
durante os encontros do Programa Brasil Alfabetizado e também durante as aulas da
EJA. Durante as aulas do Brasil Alfabetizado, pretendíamos que os educandos nos
contassem algumas estratégias vivenciadas por eles para “sobreviverem” na
sociedade letrada. A leitura do texto foi bastante positiva e evolveu a participação de
vários educandos que compartilharam algumas situações de opressão vivenciadas por
eles.
Dessa forma, o educando nos conta como fazia para sobreviver em
algumas situações de uso da leitura e da escrita:
Só uma vez, é... Eu fingi [que sabia ler e escrever], mas no final das
contas eu tive que pedir ajuda... Porque a gente foi fazer um
currículo, eu e o meu compadre, aí eu cheguei lá, estava todo mundo
escrevendo e eu fiquei lá, paradão, olhava pra um, olhava pra outro e
eu lá. Até que eu cheguei pra ele e pedi ajuda
(Osmar).
Como podemos observar nas falas dos adultos alfabetizandos, fingir saber
no interior das muitas relações de poder relaciona-se ao desejo de amenizar algumas
das desigualdades vivenciadas por eles.
Nesse sentido, aprender a ler e a escrever para os educandos adultos é
uma forma de minimizar as experiências cotidianas de desigualdades sociais, como as
que são expressas por Eliza e Osmar:
Esses dias mesmo, eu tive que assinar um papel, aí o moço falou: “ai
bem, é mais fácil com o carimbo...”, acho que foi na prefeitura
mesmo, eu precisava assinar um papel, aí ele me trouxe um carimbo
(Eliza).
19
Texto trabalhado durante os encontros do Brasil Alfabetizado e nas atuais aulas da EJA.
124
(...) o ano passado, acho que foi esse ano mesmo... eu trabalhei
registrado quando eu fui receber... Toda vez que eu ia retirar o
Seguro Desemprego, eu assinava. A última vez, uma mulher lá,
comentou, eu falei pra ela se não precisava assinar a folhinha aí ela
falou: “não assina não, que você não conta se assina ou não”, aí eu
falei: “não, me dá a folhinha”. A gente quase brigou lá dentro...
E ela não queria deixar... Aí nós brigamos, todo mundo lá olhando, aí
que eu acabei colocando o dedão (risos)
(Osmar).
Os sentimentos positivos que Osmar foi adquirindo de acordo em que
aumentava seu domínio da linguagem escrita podem ter sido os responsáveis pela sua
atitude de luta por um direito que é seu e que é capaz de exercê-lo. Essa passagem
nos leva à seguinte questão: estaria a sociedade letrada preparada para participação
dos adultos alfabetizandos, aqueles sujeitos que lutaram e lutam pelo direito de
exercer a leitura e a escrita?
Vani também acredita que se soubesse ler e escrever seria possível
realizar várias atividades, como demonstrado no excerto abaixo:
Ah, qualquer coisa poderia arrumar um servicinho pra eu trabalhar.
Poderia preencher uma ficha, tudo. Hoje em dia, até pra trabalhar de
empregada em qualquer casa, se não tiver a leitura não trabalha
mais... (Vani).
Concluímos esse tópico afirmando que a leitura e a escrita encontra-se
diretamente relacionada ao eixo da desigualdade social, pois limita e impede que
pessoas que não dominam a leitura e a escrita participem do mundo do trabalho e
diminuem as possibilidades de participação social.
Segundo FREIRE (1981) ninguém é analfabeto por opção. Não saber ler e
escrever em uma sociedade letrada é ter seu direito negado, configurando o
analfabetismo em uma situação de opressão.
Os adultos não escolarizados sabem mais do que ninguém, o quanto a
escolaridade é importante para a participação na sociedade e para o exercício da
cidadania.
Tornamos a afirmar que a desigualdade social é reforçada pela questão
cultural que na sociedade informacional ganhou singular importância, já que algumas
das habilidades para o processamento da informação são adquiridas via sistema
escolar. Aqui, damos destaque para as habilidades de leitura e escrita, sem as quais o
processamento da informação, tal como é exigido na sociedade atual, fica inviável.
125
4.2. O QUE DIZEM OS EDUCANDOS ACERCA DE SUAS EXPERIÊNCIAS
PESSOAIS RELACIONADAS AO APRENDIZADO DA LEITURA E DA
ESCRITA.
Tentamos demonstrar em nosso referencial teórico que a questão do
analfabetismo relaciona-se ao eixo da desigualdade social, cultural e pessoal, essa
última é resultado da internalização dos discursos e práticas sociais legitimadores das
duas primeiras.
Nosso panorama histórico acerca da alfabetização no Brasil tentou
levantar algumas questões estruturais da própria origem e manutenção do
analfabetismo, que como vimos, foi resultado da ideologia da interdição do corpo, que
mesmo após o anúncio das necessárias, porém incipientes campanhas de
alfabetização, propagou a ideologia de que o adulto não alfabetizado é rude, cego e
incapaz de participar da cidadania, pois se encontra nas trevas da ignorância.
Não é de se admirar que tal ideologia, preservada durante a mais de 450
anos de história da educação brasileira, seja a responsável por discursos que geram
situações de opressão e subjetividades ligadas ao muro antidialógico pessoal,
característico de muitos adultos não alfabetizados. Esse processo é resultado mesmo
da ideologia da interdição do corpo, que impediu que homens e mulheres tivessem
acesso à escolarização.
Porém, quando o adulto encontra a possibilidade de ter seu direito de
aprender a ler e escrever garantido, algumas situações de opressão vivenciadas por
ele podem ser transformadas. Dessa forma, analisaremos os seguintes excertos:
Eu já sinto diferença, sinto que eu estou começando a aprender...
então já vê diferença. Pra quem não sabia nada, já é alguma coisa,
começar a aprender, que nem eu acabei de te falar agora: igual às
sílabas, eu sei... as vogais... o ÃO, que antes eu não sabia o que
era... é o Ã, é o A com outra diferença.... por causa o til (~). Então, já
é um começo
(Carlos).
Antes eu olhava uma vez e não sabia nem que letra que era aquela...
olhava e não sabia o que era aquilo... mas, agora eu me sinto melhor
(Osmar).
Verificamos uma alteração qualitativa na forma como os educandos vão
descrevendo como se percebem e como se percebiam antes de iniciarem e/ou
retomarem os estudos. Essa alteração na forma de perceberem-se está relacionada
diretamente ao fato de estarem aprendendo a leitura e a escrita, pois este aprendizado
indica uma elevação da auto-estima, levando-os a afirmarem que não se sentem mais
126
analfabetos.
O início do aprendizado, como é no caso de Carlos revela sua percepção
de aquisição da escrita como um processo, onde o começar a aprender lhe tira da
condição de não alfabetizado.
Eu acho que bem analfabeto eu não estou mais
, viu? Porque quando
eu entrei com vocês lá, eu era analfabeto, sabia só conta. Hoje não,
tem muita coisa que não sei, mas tem coisa que eu já estou sabendo,
conhecer as letras. Conhecer as letras já é uma vantagem.
A gente aprendeu bastante rimas, eu não sabia essa parte, as vogais,
eu não sabia e agora eu estou sabendo, isso tudo ajuda pra
aprender. Ajuda pra começar agora o resto pra aprender.
Já quer
dizer que eu não sou muito analfabeto mais, por causa disso daí,
porque eu já conheço as letras
(Carlos).
Verificamos, na leitura do excerto acima que o analfabetismo não é visto
como uma condição permanente, determinada. O mesmo pode-se afirmar do mundo:
o mundo não é. O mundo está sendo (FREIRE, 1997). É essa possibilidade de mundo
e seres-humanos abertos à transformação, que impulsiona nossos movimentos de
busca por condições mais humanas de existência.
Acreditamos que Carlos afirma que não está mais analfabeto, pois
comprovou dia-a-dia que pode aprender a leitura e a escrita e estas permitem que as
experiências configuradas no interior do analfabetismo se transformem. O educando
também enfatiza que o aprendizado das letras ajudarão em novos aprendizados.
Dessa forma, os aspectos instrumentais da leitura e da escrita são também
possibilitadores de novas experiências.
Segundo FREIRE (1992) nos humanizamos na medida em que nos
reconhecemos como inacabados, quando Carlos afirma que o fato de estar
aprendendo já faz sentir-se diferente, revela que caminha para a humanização, antes
negada.
Para Osmar, conhecer as letras e já poder ler e escrever algumas palavras
significa, da mesma forma que Carlos, o estar alfabetizado, permitindo uma nova
condição frente à sociedade letrada. Porém, o educando reconhece algumas
exigências da sociedade atual, como por exemplo, a importância da continuidade dos
estudos e da obtenção de um certificado que comprove sua participação efetiva na
escola:
Olha, pra mim, eu acho que eu estou
[alfabetizado] porque eu já sei
alguma coisa, praticamente quase nada. Agora é que eu estou
conseguindo ler alguma coisinha. Mas... Vamos supor, se for pra
pedir alguma coisa aí eu acho que não, porque ainda eu não tenho o
diploma, mas eu posso levar aquele papel que mostra que eu estou
participando da escola... Aí eu acho que não...
Eu acho que sim, mas ao mesmo tempo não... Muitas coisas a gente
127
vai ter que se formar, dizer que está estudando e ter o diploma na
mão. Para confirmar...
(Osmar).
Percebemos assim, que Osmar acredita que existem muitas outras coisas
para aprender, além da leitura e da escrita, que podem ser consideradas como
impulsionadoras de novas aprendizagens: porque eu já sei alguma coisa, praticamente
quase nada. Agora é que eu estou conseguindo ler alguma coisinha.
Para Carmem e Oswaldo, o fato de lerem e escreverem, mesmo admitindo
que precisem aprimorar essas habilidades, já é suficiente para que deixem de se
considerarem como analfabetos.
Bom, eu estou
[alfabetizada], porque dizem que quando a gente sabe
fazer o nosso nome, já não é mais analfabeta. Eu creio que sim
porque agora eu já consigo ler placa, pra nome de supermercado,
vejo uma placa, eu consigo ler, ver os ônibus... Então eu acredito que
eu estou. Não estou lá assim, cinco estrelas, porque tem nome
grande que leio com mais facilidade e um pequeno eu leio com mais
dificuldade, parece que o maior é mais fácil pra falar do que o
pequeno
(Carmem).
Eu acho que estou sim
[alfabetizado]. Porque muita coisa que eu não
fazia antes, já faço hoje. Eu já leio um pouco, já escrevo um
pouquinho. Ainda, tenho que melhorar mais!
(Oswaldo).
No caso de Eliza, educanda que sofreu o processo de exclusão escolar, o
analfabetismo possui dois sentidos:
Às vezes eu acho que sou
[alfabetizada], porque eu falo assim, eu
falo tudo, entendo alguma coisinha, um pouquinho, mas na classe,
tem bastante gente que sabe, às vezes tem que perguntar que letra
que vai, que letra que não vai, que letra que começa... Principalmente
a letra de mão, tem gente que já escreve com letra de mão... Tem
gente que tem facilidade pra ler e escrever... As outras, eu já acho
difícil!
(Eliza).
O primeiro sentido parece-nos ter um peso maior do que simplesmente
aquele que desconhece as letras, a associação que é feita do analfabetismo refere-se
à construção social fruto da ideologia da interdição do corpo, da desqualificação do
analfabeto entendido como aquele incapaz de compreender e de ser compreendido. A
educanda afirma que fala e entende, tentando ir contra os discursos sociais sobre o
adulto não alfabetizado. O segundo sentido de analfabetismo, expresso na segunda
parte do excerto, quando começa a falar da sala de aula, tenta resgatar o conceito, de
analfabetismo associando-o com o reconhecimento ou não das letras no interior das
palavras. Ainda percebemos que diferentemente dos demais educandos, que afirmam
que estão alfabetizados, Eliza afirma que é alfabetizada, mas depende do contexto
que essa situação se insere.
128
Carlos revelou múltiplas dimensões acerca das vantagens que pode
vislumbrar com o aprendizado de ler e escrever, além das que destacamos
anteriormente, o educando nos fala da mudança na linguagem oral:
A leitura é bom por causa disso, porque ajuda a gente a falar melhor.
Que nem, as letras, iguais nós fazíamos com vocês lá... A língua vai
no céu da boca, a gente já sabe que letra que é. A letra L... A gente
vai colocando tudo na idéia isso daí... Isso nos ajudava, os gestos
com a boca, aí, ó a letra B a boca fecha... Letra L a língua vai em
cima
(Carlos).
Observamos que o educando recupera algumas técnicas utilizadas por
nós, no momento em que fomos alfabetizadoras da turma do Brasil Alfabetizado, para
identificar os sons produzidos pelas letras no interior das palavras e sua grafia. Essas
técnicas podem caracterizar o processo de alfabetização como instrumental, porém,
como já afirmamos, os adultos alfabetizandos já convivem com inúmeros materiais
escritos e atribuem significados aos que agora conseguem ler.
Eu já tomei muito ônibus errado. Eu trabalhei na SICON. Eu tinha que
vir pra casa almoçar e voltar trabalhar, eu estava no ponto, e espera,
e espera, quando passou um ônibus na hora de nós ir. Quando eu dei
por fé, eu tinha tomado ônibus errado. Em vez de vim pro Cruzeiro ele
pegou a Estação e voltou pra trás! Ai eu desci de a pé correndo pra
não perder hora. Quando eu cheguei em casa, eu comi o feijão
rapidinho, troquei de roupa e ó, pra não perder o ônibus da SICON.
Você vê a falta que faz, né? É, não é fácil, não
(Carlos).
O educando adulto possui consciência da intencionalidade em aprender os
conteúdos escolares, principalmente quando esses conteúdos permitem atuações e
enfrentamento de algumas dificuldades que encontra, como é o caso da leitura e da
escrita.
Sendo assim, embora alguns educandos percebessem que até aquele
momento ainda não dominavam totalmente os códigos convencionais da linguagem
escrita, é inegável o fato de que compreenderam que com esses instrumentais podem
atuar mais intensamente dentro das relações sociais.
Antes eu olhava uma vez e não sabia nem que letra que era aquela...
olhava e não sabia o que era aquilo... Mas, agora eu me sinto melhor.
Ah, porque eu posso pegar, agora eu pego e tento ler aquilo ali... que
antes eu não conseguia... Porque através da letra que eu conheço eu
vou tentando ler aquela palavra e tem palavra que eu consigo ler,
então pra mim está muito melhor do que antes. Eu me sinto melhor
(Osmar).
Verificamos que Osmar se refere a uma dimensão que vai além da simples
decodificação das letras presentes nas palavras, trata-se de um processo que como
129
ele mesmo descreve, passa pelas letras para se chegar às palavras e as palavras
remetem a um significado, como no exemplo abaixo:
(...) lá no Douradinho
20
mesmo, no Douradinho eu parei em frente
uma placa lá e fiquei umas duas horas, tentando ler, até quando eu
tentei o D, depois o O, DOU, aí foi indo, foi indo até que eu acertei:
DOURADINHO (risos)
(Osmar).
O mesmo aspecto pode ser verificado na fala de Carmem:
Quando eu era cozinheira, eu nunca fazia assim, esses pratos
diferentes porque eu não sabia ler, eu tenho um livro ali (aponta para
a estante da sala onde conversávamos), de culinária, mas é a mesma
coisa que não, agora que eu estou pensando em pegar para ver se
eu consigo fazer alguma coisa, eu nunca peguei.
Faz muita falta sim, nossa... A gente tem vontade de fazer muita coisa
e não faz. Às vezes você quer escrever uma carta e não sabe, para
uma amiga, às vezes você quer escrever e a sua cabeça não ajuda,
assim a fazer uma poesia, a fazer assim, para uma amiga, para a
professora...
(Carmem).
(...) assim, que eu pudesse escrever uma carta para uma amiga, uma
carta com umas palavras bonitas, falando muita coisa de mim, da
casa, da saudade, do amor, mas... eu não sei escrever direito,
então... Eu creio que eu não consigo escrever porque eu como muita
palavra... Mas eu tenho vontade... (Carmem).
Nesses excertos acima, notamos que a educanda refere-se ao uso da
leitura e da escrita em um universo que vai além da escrita do próprio nome, gostaria
de retirar receitas de livros, aumentando seu repertório culinário, assim como a escrita
de cartas e poesias. Embora afirme que ainda possua dificuldades, a educanda
percebeu que os aspectos instrumentais da leitura e da escrita podem ser aplicados a
diferentes contextos, que varia da leitura de uma receita até a escrita como expressão
de sentimentos.
Vani também nos fala de aprendizados que significam o próprio
reconhecimento de que tem conquistado melhorias qualitativas em sua forma de grafar
as palavras:
Tem, tem melhorado... Eu não sabia pegar nem em uma caneta, em
um lápis pra escrever que saía tudo torto... Antes, tudo o que eu ia
escrever saía fora da linha. Começava a escrever de um jeito e
depois saía outro...
(Vani).
Depois de realizar várias tentativas de retorno aos estudos, Eliza
permanece desde Agosto de 2003 envolvida, primeiramente no Programa Brasil
Alfabetizado e depois nos encontros da Educação de Jovens e Adultos – EJA. No
20
Douradinho é um bairro localizado na cidade de São Carlos no qual o educando trabalha na
construção civil.
130
período em que realizamos a entrevista, ela tinha conquistado alguns aprendizados,
vejamos o que ela considerava acerca deles:
Vamos supor, tem coisas que eu aprendi, que eu não sabia, tem
coisas que eu ainda tenho dificuldade, vamos supor, o meu nome
mesmo, eu quero aprender a escrever a meu nome com letra de mão
e eu não consegui ainda... Só consigo com a outra letra (...) Com a de
forma. Eu pegando bem, mas tem horas em que eu acho meio difícil,
que tem letra que não entra na minha cabeça, eu preciso olhar o
alfabeto pra poder lembrar...
Eu acho assim, o alfabeto eu sei. Eu não sabia tudo, mas agora eu já
aprendi quase todas as letrinhas. Só que eu não sei ler depois...
Agora eu estou nessa parte aí.
(...) Eu não sabia o alfabeto, todas essas letras. Agora eu faço todas
as letras. Com a letra de forma eu sei fazer... Agora falar quando é
letra maiúscula, minúscula ,eu não sei ainda...
Os números, no começo, “má le má”, assim... eu sei o cinco e o um, o
resto eu não guardo, tenho que perguntar pro meu irmão. Porque se
passa uma conta pra mim, eu sozinha não faço, eu não consigo
(Eliza).
No caso de Eliza é interessante destacarmos que embora não apresente o
domínio do reconhecimento de todas as letras – mesmo quando se trata da escrita de
seu nome – ela realizou avanços, principalmente quando a freqüência à escola
significa o primeiro passo no rompimento do muro antidialógico pessoal, uma vez que
o educando adulto passa a atuar também em outros espaços sociais. Por conseguinte,
a escola pode ser um ambiente de socialização, configurando-se em um espaço de
trocas e aprendizados tão importantes quanto o ler e o escrever.
De acordo com FLECHA (1990), os adultos não alfabetizados, em sua
maioria, possuem um universo de atuação muito limitado:
Saio, de vez em quando, que nem agora eu tenho ido pra escola,
mas às vezes de sábado, domingo eu vou à igreja, com as meninas
(Eliza).
Dessa forma, decidir ir aos encontros, inicialmente de alfabetização no
Programa Brasil Alfabetizado e depois dar continuidade nas aulas da EJA, representa
um novo universo de atuação e, conseqüentemente, uma nova conquista propiciada
pelo início do processo de alfabetização e pela continuidade dos estudos.
Descobrindo que podem aprender e ampliar seu lugar de atuação na
sociedade, os adultos que iniciam os encontros de alfabetização passam a ter uma
nova leitura de si mesmos.
Quando o adulto alfabetizando consegue desempenhar com sucesso a
leitura e a escrita, práticas negadas há tanto tempo, e sente necessidade de poder ler
e escrever, um novo espaço passa a ser conquistado e a sua independência vai sendo
construída, dando lugar assim a recuperação da auto-estima.
131
Como vimos em nossa contextualização histórica, a ideologia da interdição
do corpo serviu unicamente à manutenção dos privilégios da classe dominante que
ainda revestiu o conceito de analfabetismo com ideologias negativas, como por
exemplo, à de falta de cultura e a de que o adulto não é mais capaz de aprender.
Iniciar ou retomar os estudos, como é o caso dos educandos
entrevistados, indica o rompimento do muro antidialógico pessoal, e
consequentemente experiências positivas na esfera pessoal, pois os educandos se
vêem potencialmente capazes de se envolverem em novas aprendizagens e em novas
conquistas, pessoais e sociais.
Os aspectos instrumentais da linguagem escrita interessam aos
educandos, uma vez que parecem serem eles os principais responsáveis pela falta de
intercâmbio com a sociedade mais ampla. Porém, a alfabetização que defendemos é
aquela que envolve a leitura da palavra e a leitura do mundo, é aquela que além de
refletir sobre o funcionamento da linguagem escrita, também encontra oportunidade de
diálogo para a reflexão acerca das estruturas condicionantes da opressão e também
aponta caminhos para a sua possível transformação.
No próximo tópico, demonstraremos como a aquisição da leitura e da
escrita e as experiências pessoais permitidas por ela vão transformando as formas de
atuação e as experiências sociais.
4.3. AS EXPERIÊNCIAS SOCIAIS QUE FORAM POSSÍVEIS A PARTIR DO
APRENDIZADO DA LEITURA E DA ESCRITA.
No presente tópico de análise, iremos expor algumas transformações
possíveis que se realizaram com a leitura e a escrita das palavras, para isso, veremos
alguns exemplos em que os alfabetizandos encontraram na leitura e na escrita a
possibilidade de mudanças qualitativas em suas maneiras de estarem com o mundo.
De acordo com FLECHA (1997) os aspectos instrumentais da linguagem
escrita constituem uma dimensão importante a ser apropriada pelos educandos, uma
vez que o rompimento dos muros antidialógicos é de inteira importância, mas
precisamos considerar que saltá-los também o é, já que muitas das situações de
opressão se assentam sobre eles.
Nesse sentido, os aspectos instrumentais da linguagem escrita são
imprescindíveis para experiências de enfrentamento das dificuldades que estão postas
na sociedade letrada.
132
FLECHA (ibidem) nos dá um exemplo ao comentar sobre o educando,
Manuel, que ao chegar ao grupo de tertúlia literária se mostrava preocupado com a
aprendizagem das normas ortográficas, quando perguntou se o professor o corrigiria
este respondeu que se tratava da diversidade lingüística e de uma barreira imposta
pelas elites para desqualificá-lo. Manuel assim responde ao educador:
“¡Claro!, eso suena muy bien, pero ni tú serías maestro si tuvieras mis
faltas ni yo pasaré así la prueba de entrada en un trabajo si llego a
necesitarlo”. Goyo comprendió que una cosa era derrubar los muros
al aprendizaje de la mayoría y otra la necesidad de saltarlos mientras
existieran. En todo caso, resultaba deshonesto negar a los demás un
derecho que tú ya has ejercido, cuestionar la importancia que tenía
para Manuel eliminar sus faltas cuando él no hacía nunguna y por eso
había conseguido titulación y empleo (FLECHA, 1997, p. 58-9).
Dessa forma, fazer uso das práticas de leitura e escrita significa que se
rompe com o muro antidialógico pessoal e se salta o muro antidialógico social, pois
embora as práticas de leitura e escrita ainda não signifiquem experiências de
transformação de todas as relações de opressão vivenciadas pelos educandos, elas
indicam que as desigualdades sofridas por eles quanto às questões de leitura e de
escrita podem ser minimizadas.
FREIRE (2000) nos lembra que a sala de alfabetização não pode enfatizar
somente ações conscientizadoras, relegando para um segundo plano o ensino da
leitura e da escrita:
Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma
classe de alfabetização em um espaço em que se proíbe toda a
reflexão em torno da razão dos fatos nem tampouco num comício
libertador. A tarefa fundamental do educador (...) é experimentar com
intensidade a dialética entre a leitura do mundo e a leitura da palavra
(p.39, grifos no original).
Essa dialética, de que nos fala Freire permite que a alfabetização seja
realizada com o aumento da compreensão das estruturas, nas quais tanto educador
como educando encontram-se condicionados e com o domínio das habilidades de
leitura e escrita tão necessárias para uma participação mais efetiva na sociedade,
desde que ressignificadas enquanto instrumentos de luta na reivindicação da própria
voz e na busca para a transformação social.
Hoje eu ainda não estou ainda, legalmente, 100%. Mas eu me sinto
bem melhor agora, bem melhor, pra entrar e sair em qualquer lugar.
Hoje eu estou realizando um sonho que eu tinha antes e estou
realizando agora, depois de velho
(Oswaldo).
Verificamos nestes excertos que o uso da leitura e da escrita possibilitaram
novas experiências sociais, uma vez que o educando percebe-se potencialmente
133
capaz para entrar e sair de qualquer lugar que requer o uso da leitura e da escrita.
Essa possibilidade ocasiona por sua vez, uma mudança na percepção de si mesmos,
tal como podemos perceber no excerto: “eu me sinto bem melhor”, como já fora
comentado no tópico de análise anterior.
A escrita do próprio nome é uma habilidade muito importante para o adulto
alfabetizando, pois ele é um indicativo social de que a pessoa sabe ler e escrever,
dessa forma, poder assinar documentos em lugares públicos, deixa de ser motivo de
“vergonha” e passa a ser motivo de “orgulho”, como afirmam os educandos
entrevistados:
Antes, quando eu ia à prefeitura, ou em algum lugar, qualquer órgão
pra fazer alguma coisa, eu tinha que botar o dedo. Hoje não, eu já me
sinto muito orgulhoso de chegar e assinar meu nome, em qualquer
lugar. (...) Eu fui ao banco pra receber essa vez, depois que teve a
escola, que eu já comecei a fazer as minhas coisinhas, eu já assinei
pra receber a minha aposentadoria no banco
(Oswaldo).
A gente passa vergonha na hora de assinar alguma coisa. “Assina
ai”: a gente tem que colocar o dedão, a gente ficava com vergonha,
mas fazer o quê? Não sabia mesmo!
(Carlos)
Antes, eu tinha que ir aí, em qualquer lugar, num banco mesmo,
quando fosse pra eu assinar lá, eu deixava o dedão, que eu não
conseguia fazer o meu nome. Agora o meu nome eu faço bem em
qualquer lugar... Melhorou bem.
(Vani).
Em qualquer lugar eu não me sinto envergonhado, eu já escrevo já...
Em qualquer lugar que eu vou eu já escrevo o meu nome... Por
exemplo, em um banco, em qualquer lugar que me mandarem
escrever o meu nome eu já escrevo já. Eu não me sinto mais
envergonhado
(Osmar).
A escrita do próprio nome pode ser considerada uma prática comum no
cotidiano da maioria das pessoas alfabetizadas, porém, para os adultos que se
encontram em processo de aprendizagem da leitura e da escrita, essa prática
representa uma verdadeira conquista.
Verificamos ao longo dos dados das entrevistas, que mesmo em se
tratando do início do processo de alfabetização, esta tem permitido inúmeras situações
de uso efetivo na sociedade, como evidenciado nas passagens que serão analisadas
a seguir:
134
Ah, o meu nome mesmo, às vezes um nome no supermercado, já sei
o nome no sacolão mesmo eu já sei, olhando os números, olhando
nas letras eu já sei que fruta é aquela, antigamente eu só olhava para
a fruta. Já hoje não, essa fruta aqui (referindo-se a escrita), é tal fruta.
Com o preço também, esse preço é disso, aquele é daquele. Aí eu
vou ao sacolão e fico ali, matutando na cabeça... Às vezes, por
exemplo, está escrito CAQUI, aí eu fico CA, CA, I, I, vou levando, aí
eu pergunto pra mulher: “CAQUI? Está certo isso daqui?” Aí ela fala:
“está certo!” (risos) (Osmar).
Oswaldo afirma que após o início do processo de alfabetização, o uso da
leitura e da escrita tornou-se freqüente, passando a ser um instrumental que amplia as
suas possibilidades de participação na sociedade letrada.
Teve uma vez, nas férias, quando viajei para Minas eu mesmo
preenchi o meu papelzinho, sozinho.
Ela faz falta ainda [leitura], mas já ajuda bastante, por exemplo: uma
viagem, pra gente ler um ônibus, pra gente ler uma passagem, pra
gente pegar uma passagem pra escrever, eu já faço isso daí. Ichê, eu
já faço muita coisa que eu não fazia antes. (...) eu fui ao banco pra
receber essa vez, depois que teve a escola, que eu já comecei a
fazer as minhas coisinhas eu já assinei pra receber a minha
aposentadoria no banco. Em muitas coisinhas me ajuda (Oswaldo).
Agora, eu melhorei bastante, muita coisa que eu não sabia eu estou
conseguindo já ler alguma coisinha... a ler com essa letra, (aponta
para o meu roteiro de entrevista escrito com letra cursiva), que eu não
conhecia nada, o meu nome que faltava, faltando algumas letras. Não
está muito bom. Mas, está muito melhor (Osmar).
A leitura e a escrita têm sido utilizadas pelos alfabetizandos enquanto
função social presente no dia-a-dia de qualquer indivíduo participante da sociedade
letrada, sendo assim, atividades como a assinatura do nome para receber o
pagamento e a leitura de um cartaz na rua, passaram a ser realizadas. Essas
aquisições permitem atuações na sociedade. As habilidades de leitura e de escrita são
também funcionais, podendo ser transferidas a outros contextos que as utilizem
(FLECHA, 1997).
Verificamos que a leitura como instrumento para a aquisição de novos
conhecimentos passou a fazer parte de seu cotidiano, pois o educando
constantemente retira livros da biblioteca e lê jornais e revistas que encontra enquanto
desempenha a coleta de papel pela cidade:
(...) antes eu nem olhava para elas [letras], eu não entendia nada,
mas agora eu tiro até livro da biblioteca e começo a ler, assim meio
devagarinho, juntando as letras, mas eu entendo.
Já leio um caderno, um caderno, esse livro aqui [mostra o caderno e
o manual que está segurando em suas mãos], eu já leio quase tudo,
muita coisa eu me enrolo, mas já leio quase tudo, quer dizer que já
está muito bom. Pra quem não sabia de nada... Graças a Deus eu
estou chegando lá...
135
(...) eu pego um caderno, um livro aí, por aí em qualquer lugar que eu
acho [aponta para o quintal onde se encontram alguns materiais
escritos que acha durante o seu trabalho], eu já sei o que está escrito
nele, já sei tudo o que é lá fora... Qualquer coisa, eu já falo umas
coisinhas, não sei tudo, mas devagar eu chego lá...
(Oswaldo).
Essa nova condição, a de alfabetizado, que viemos falando parece-nos
permitir uma abertura para a visão de coisas presentes na sociedade, mas que não
estavam acessíveis aos adultos não alfabetizados:
Tem [ajudado], porque, e muito, porque agora eu vou fazer compras,
a gente está aprendendo contas, então eu faço ali e não passo
vergonha no caixa, porque dali eu já sei e pego, eu sei quanto é que
eu tenho, eu olho e sei que o preço é tal coisa, mais ou menos eu
calculo na minha mente o quanto que eu posso por no carrinho para
passar no caixa e ainda sobra um pouquinho. Isso daí é muito
importante, porque teve uma época que eu fui em Cuiabá e eu(...)
estava assim, com 10 reais, eu peguei umas coisinhas lá, bobageira...
eu não lembro o que foi e quando eu passei no caixa os 10 reais não
deu... aí eu tive que deixar lá. Mas só que hoje em dia, graças a
Deus, já não acontece mais. (Carmem).
Já, teve outro dia, que eu não sabia que ônibus que eu tomava pra
vim pra cá. Agora eu estou conseguindo, pegar o Cruzeiro, a Aracy, já
estou conseguindo tomar eles, já. Através das letras iniciais, ou das
do meio, já dá pra saber: Cidade Aracy, CI, o C e o I. Cruzeiro:
ZEIRO, Z, E, I, R e o O, aí eu falo: “é o Cruzeiro, vem pra cá”
(Carlos).
Eu vejo o que tem naquele restaurante pra almoçar, eu vejo o quanto
custa 1 quilo de carne, eu vejo o quanto custa um pacote de arroz...
Porque está na placa lá... Então eu só via... Eu pegava aquilo lá na
prateleira sem saber nada, o preço e o “nego” cobrava lá de mim
quanto queria. Hoje não, eu sei... Quando eu chego lá, eu vejo o
quanto está marcado, eu sei o quanto é que é. Se for caro e está lá o
preço, eu sei se o meu dinheiro dá pra levar ou não. Antigamente eu
cansava de devolver coisa no supermercado. Então eu devolvia
porque não dava para pagar. Porque eu não sabia, eu tinha o
dinheiro e sabia que devia, mas não sabia o que estava marcado lá,
hoje não, hoje mudou tudo, tudo...
(Oswaldo).
Com relação à fala de Oswaldo, vemos no excerto acima que há uma
analogia entre o ver e o saber. Quando adultos não alfabetizados aprendem a leitura e
a escrita o que até então não estava acessível a eles passa a ser compreendido,
possibilitando uma ampliação de sua atuação e permitindo oportunidades de
participação até então negadas.
Como Oswaldo mesmo afirmou ao longo de sua entrevista, o fato de não
dominar a linguagem escrita criava certa insegurança. Ele não tinha certeza se pagava
as coisas que comprava pelo preço real que custavam, ou se as pessoas cobravam
dele o quanto queriam. Essa impressão, de estar sendo enganado, parece ser uma
característica dos adultos não alfabetizados, já que acreditam serem vistos como
136
ingênuos pela sociedade letrada.
Muitas vezes eu chegava na estrada... Tinha que devolver coisas no
balcão, não dava para pagar... Porque eu não sabia ler nada, porque
se eu soubesse ler eu não pegava a mais. Hoje eu não passo mais
isso... Quer dizer que mudou muito... Até isso. Eu vou viajar eu sei o
quanto custa a passagem que está marcado lá, eu sei pelo
papelzinho, eu sei quanto que é, sei o que eu tenho que fazer com
aquela passagem, marcar o seguro, marcar tudo... o nome da
pessoa, tudo eu já sei fazer... já, entendeu? Viu, já ajuda muito,.
Nossa, mas como ajuda viu...
(Oswaldo).
Essa visão de ingenuidade na verdade é fruto da própria ideologia que
esteve presente em muitas campanhas de alfabetização que atribuíam incapacidade
ao adulto não alfabetizado, quando na verdade, negar o acesso à leitura e à escrita é
contribuir para a manutenção das relações de opressão, pois essas habilidades, ainda
que em sua dimensão técnica, são importantes para a participação social e o exercício
da cidadania.
Mudou, mudou sim. Mudou porque a gente já tem, como se fosse
assim, a gente já tem uma noção do mundo que é lá fora. Porque
muita coisa eu não sabia, quer dizer você enxergava e não via nada,
enxergava e não via, porque muita coisa que você quer ver, eu pego
hoje uma revista eu vejo o que está escrito um pouquinho já ajuda,
um livro, já decoro, vamos supor tem um santo e tem as palavras, eu
vejo o santo e não vejo as palavras, quer dizer, hoje eu já vejo o
santo e as palavras. Hoje eu já vejo tudo
(Oswaldo).
Essa ampliação de sua visão refere-se às práticas de leitura e escrita. O
alfabetizando compreende que com esses instrumentais torna-se cada vez mais
participativo na sociedade, seja ela em um contexto micro ou macro.
Ah, eu vou contar uma coisa pra você, pra mim ficou gravado demais,
pra mim foi uma bênção do céu, estou me sentindo realizado... É até
outra coisa, muito diferente você saber ler...
(Oswaldo).
Carmem também nos revela dados que vão no mesmo sentido dos já
apontados acima:
Em casa eu leio muito a Bíblia... a Bíblia todo o dia de noite eu leio
ela... Eu pego a minha harpa eu canto louvor. Que tem os hinos
(Carmem).
Embora a alfabetizanda afirme durante a entrevista, que ainda sente
dificuldades quanto ao uso da leitura e, mais especificamente, da escrita, a educanda
já está evolvida, como afirmamos acima, em práticas de uso efetivo da leitura e da
escrita, podendo inclusive ampliar seu universo de atuação:
137
Você lembra aquele bolo de cenoura? Eu vivo fazendo... eu leio lá e
faço o bolo. A professora ensinou também uma receita de bolo de
laranja, aí ela escreveu na lousa, como vocês fizeram, tirei a limpo,
passei no caderno. Quando você sabe ler, você lê e faz. Antes como
eu não sabia, eu podia ter tirado aquela receita, mas eu não sabia ler
eu não podia fazer. E agora não, agora eu faço (Carmem).
Verificamos aqui também outra analogia, desta vez entre o ler e o fazer.
Nesse sentido, ler e fazer podem ser estendidos para outros âmbitos da vida que não
se limitam somente às receitas. Estamos nos referindo, por exemplo, à busca de
instruções relacionadas ao próprio exercício da cidadania, implicando no
reconhecimento de seus direitos e deveres, trata-se mesmo, da constituição do sujeito.
Por isso, voltamos a afirmar, que mesmo em se tratando do início da
aprendizagem da leitura e da escrita, essas habilidades tornam-se significativas, pois
os educandos possuem experiências vividas e sabem que essas habilidades podem
ser transferidas a outros contextos sociais que vão além dos muros das escolas,
servem para derrubar e saltar os muros antidialógicos que estão presentes em nossa
sociedade.
Viemos até aqui analisando que a leitura e a escrita tem sido atividades
que vêem permitindo novas atuações e intercâmbios com a sociedade letrada. Dessa
forma, vimos que os adultos alfabetizandos percebem que possuem inúmeras
potencialidades, já que algumas práticas passaram a ser realizadas.
Ah, a escrever uma carta... fazer um currículo, ia me ajudar
bastante... Até uma vez que tiver que sair de uma cidade para a
outra, pra você ler um ônibus que vai... Em muita coisa ia ajudar...
Ajuda, mas faz falta ainda... Faz, mas eu não, vou desistir não eu vou
correr atrás dela...
(Osmar).
Como o educando evidencia mudanças positivas relacionadas ao início do
processo de alfabetização, outro significado passa a ser dado à escola e por isso tem
se dedicado mais a ela. Percebe a importância de aprender a ler e escrever e sabe
que isso contribui para que novas experiências se dêem na superação de algumas das
atuais desigualdades:
Do ano passado pra cá, já mudou bastante, porque eu estou me
dedicando mais à escola, eu saio da escola e tento fazer as coisas
em casa... Às vezes eu pego a Bíblia e começo ler... Vou lendo
letrinha por letrinha... E isso tem me ajudado bastante...
Ah, tem ajudado bem, viu, agora que eu entrei aqui, antes com vocês
e agora com a professora, ta ajudando bastante, eu estou
aprendendo muitas coisas que eu não sabia. Hoje, muita coisa eu já
consigo ler, tem outra que não, mas devagarzinho eu chego lá... Eu
quero continuar estudando, até eu não sei, até onde é que vai
(Osmar).
138
Os demais alfabetizandos também apontam a importância atribuída à
continuidade dos estudos, nos indicando que a escola passou a fazer parte de suas
vidas. Nesse sentido, enfatizamos a necessidade de políticas públicas que priorizem a
continuidade dos estudos de qualidade após a alfabetização, fazendo com que cada
vez mais a escola passe a fazer parte da vida dos alfabetizandos, pois é assim que os
mesmos desejam:
Depois que a gente começa não quer mais parar (...). A única coisa
diferente que eu faço mesmo é ir para a escola, que eu não ia. A
única diferente, porque trabalhar, eu trabalho direto, mas a única
coisa diferente que eu vejo, uma obrigação que eu tenho é todo dia
às 6:30 sair daqui e ir para a escola, que eu não tinha antes, nunca
tive. Essa aí [hora de ir à escola] é uma hora reservada para fazer
essa obrigação. Uma obrigação que a gente tem com a gente,
primeiramente com a gente e com a professora que não está lá para
esperar a gente. Eu não vou parar, não quero parar, não vou parar.
Eu tenho 61 anos, dá pra estudar até 70, 80, mas que eu chego lá, eu
chego
(Oswaldo).
Até quando eu puder ir, eu vou. É mais por causa desses problemas
meus [problemas de saúde] que eu não tenho ido
(Vani).
(...) Às vezes eu fico cansada, dá uma vontade de parar, às vezes dá
vontade de continuar. Eu vou querer me formar, não quero parar de
jeito nenhum
(Eliza).
Eu quero ver se eu pego e vou até o fim. Tem que começar a ler
direito viu? Porque eu tenho vontade. Eu acho que se tem vontade,
se é esforçado. Terminando até o quarto ano, já está bom. Já dá pro
gasto, vamos dizer pras despesas, pra pegar um ônibus, escrever
alguma coisa. A gente tem que ir com interesse de aprender mesmo,
pra caprichar, pra não perder mais tempo. São três horas de aula,
então tem que dar, colocar uma intenção nas coisas pra conseguir
aprender. Eu amo, gosto mesmo de ir. Quando são 6 horas, eu já
tomei meu banho, já troquei de roupa, já estou pronto pra ir pra
escola, nunca cheguei atrasado
(Carlos).
Então está bom, eu estou indo bem, que eu não vou parar não, se
Deus quiser eu não vou parar
(Carmem).
As falas dos educandos são bastante significativas se desejarmos
compreender como o alfabetizando adulto encara seu processo de aprendizagem. Sua
escolaridade passou a ser um compromisso assumido por ele para com ele mesmo. O
ensinar e o aprender revelam-se elementos importantes, pois há muito lhe foi um
direito negado. O educando adulto possui clareza da intencionalidade de seu processo
educativo, bem como a importância do aumento da escolarização em uma busca
contínua pelo conhecimento, conhecimento este que pode fundar alternativas de
transformação da realidade, vislumbrando novas leituras, se apropriando de novas
palavras para uma reescrita de mundo diferente.
Quanto à intencionalidade do processo educativo, percebemos que Carlos
139
desejava aprender ler e escrever, pois sabia que essas ferramentas o auxiliariam em
seu cotidiano, assim como seriam importantes instrumentos na aquisição de novos
conhecimentos, independente do valor que a sociedade, condicionada por objetivos
economicistas, daria a isso:
Nessa parte, acho que não é importante, porque, a gente é pobre, se
ainda ganhasse na loto, às vezes ia comprar terra, então pra isso aí é
bom... É boa a leitura, quanto mais, pra poder mexer com negócios...
Mas está bom.
Estudar (...) pelo menos pras despesas. Pra gente saber tomar o
ônibus, fazer, ter as coisinhas, ler o jornal (...). Você pega o jornal e
não sabe o que é, tem tanta coisa no jornal. Você às vezes pega e
não sabe o que é, então se pelo menos conseguir aprender, então é
gostoso, você pegar um jornal, pegar uma revista e começar a ler...
Mas da parte de estudar eu tenho vontade... Quanto mais é melhor.
Aprender a escrever, aprender ler... Tem computação! Oba que
beleza, vamos também... É melhor... Não quero ser um cara na vida...
não! Eu não penso nisso... Eu quero aprender pra mim, pra gente,
vamos dizer, pra não passar vergonha na hora de tomar o ônibus, de
ler uma carta, ler um jornal
(Carlos).
O educando revela as suas próprias expectativas quanto ao uso da leitura
e da escrita, não reproduzindo o que a sociedade aspira, através dos discursos oficiais
sobre a alfabetização de adultos, que na maioria das vezes associam a leitura e a
escrita ao desenvolvimento econômico.
Vejamos o que afirmam acerca da motivação para a continuação da
escolaridade:
[É] essa vontade de aprender mesmo... Se torna mais fácil, de
repente, que nem eu falei, pegar um ônibus... Pra assinar alguma
coisa que tem que assinar, se aparece alguma coisa pra gente
assinar, a gente saber o que é. A gente quer estudar, pra aprender
essa parte
(Carlos).
Oswaldo também tenta nos relatar como percebe a mudança de condição
permitida pelo início do processo de alfabetização, mudança esta relacionada à
própria qualidade de vida do sujeito.
Você sabe o que me motiva... É o seguinte: é que a pessoa, parece
que ela sente assim, diferente. Sabe o que é, a pessoa que parece
que sai do inferno e entra no céu e sente outra coisa melhor
(Oswaldo).
O que motiva? Aprender mais, aprender e talvez possa arrumar até
um serviço melhor, numa fábrica. Porque às vezes eu já perdi a
oportunidade de entrar em uma fábrica por causa de me envergonhar
e não ir... (Osmar).
O desejo pela aprendizagem, que vai além da aprendizagem da leitura e
da escrita, relaciona-se com não perder mais oportunidades.
140
Eliza também encontra motivação para a continuidade de seu processo de
escolarização, como ela mesma afirma:
Eu vejo o meu irmão, ele não queria estudar de jeito nenhum, agora
ele nunca falta, sempre estuda, cada vez mais. O meu irmão já está
na 4ª série, está quase indo para a 5ª série
(Eliza).
Porém, é necessário que o educando perceba que não é simplesmente o
domínio dos códigos da linguagem escrita que permitirá que ele mude a sua condição
de oprimido, embora a aprendizagem da linguagem escrita possibilite inúmeras
transformações, principalmente na maneira como concebem a si mesmos e no
enfrentamento de algumas dificuldades presentes na sociedade letrada
Eliza vê em seus estudos uma oportunidade de mudança. Em suas
vivências, marcadas pela situação de opressão, percebeu a importância que o
conhecimento e a titulação adquiriam na sociedade da informação:
Às vezes eu sinto [as mudanças], tem lugar que você vai assim
porque o pessoal fala: “você está estudando?” , aí eu falo que sim...
tem coisas assim que você quer mudar, aí você pensa em estudo...
O
pessoal fala: “Quem tem estudo já está difícil, imagina quem não
tem?” (...) é que nem os outros falam, se você quiser uma coisa
melhor, você tem que ter estudo, sem estudo a gente não é nada, em
todo lugar exige agora estudo (Eliza).
A fala da educanda expressa também o momento social no qual nos
encontramos, o qual se valoriza o conhecimento como a principal fonte de
produtividade.
Todas as atividades relacionadas ao uso da leitura e da escrita e
expressas através das falas dos educandos entrevistados os fizeram projetar novos
sonhos e, portanto, possibilidade de novas conquistas e de novas experiências
sociais, como por exemplo:
Eu, a minha vontade é, eu estou conseguindo, tirar a minha carta, eu
quero aprender ler, escrever pra eu tirar a minha carta de motorista,
ficar dirigindo a minha peruinha velha por aí
(Oswaldo).
No momento em que chegamos para realizar a entrevista, o educando
estava estudando o manual entregue pelas auto-escolas com o conteúdo necessário
para a realização da prova teórica, primeiro passo para a obtenção da carteira de
habilitação.
Osmar também percebe que a aquisição da linguagem escrita o
potencializa para engajar-se em práticas sociais diferentes das que exercera até
então, revelando o mesmo desejo de Oswaldo:
141
Pra mim o que eu quero mesmo é tirar a minha carta de motorista...
Um dia eu quero tirar ainda. Que nem, um carro pra mim faz falta, por
isso que eu quero estudar mais
(Osmar).
O educando percebe os elementos que podem melhorar sua vida
qualitativamente, por isso empenha-se em conquistá-los acreditando na continuidade
de seu processo de escolarização. Ainda com relação à ampliação do universo de
atuação, o educando afirma:
Agora, por enquanto é mais tirar carta, mas aí eu não sei daqui pra
frente... Acho que vão surgir outras coisas... (Osmar).
O educando compreende que com a continuidade da escolarização,
poderão surgir novas necessidades dentro de seu universo de atuação, como apontam
as falas de Osmar e Carmem acerca do aprendizado da matemática:
Ultimamente a matemática pra mim é muito importante também... Na
matemática eu estou indo bem, melhor que no português... Na
matemática eu consigo sair mais rápido que no português. É, ajuda
bastante no trabalho...
(Osmar).
A minha roupa eu mesma arremato, mas para tirar medida, escrever
bem certinho: costa, cintura, quadril, tudo certinho e numeradinho, eu
tinha vontade, se Deus me abençoasse e eu pudesse ler bem,
aprender o corte bem, eu tinha vontade de abrir um salãozinho...
(Carmem).
A matemática é vista como importante ferramenta no desenvolvimento das
potencialidades sociais e pessoais para os educandos, uma vez que relaciona-se
diretamente com o uso no trabalho.
Um aspecto muito importante que nos chamou a atenção é o fato dos
educandos entrevistados estarem utilizando a escrita do próprio nome como
ferramenta de reivindicação por melhores condições de aprendizagem, já que como
nos relatou Carmem, os educandos da EJA organizaram um abaixo assinado
solicitando à Secretaria Municipal de Educação e Cultura a presença de uma outra
educadora para que a turma de jovens e adultos pudesse ser dividida em termo 1 –
correspondente à 1ª a 2ª série – e termo 2 – correspondente à 3ª e 4ª série.
A sala estava cheia, tinha gente da 3ª série e queria dividir a sala e
ninguém se esforçava e aí eu falei:
- Bom, se vocês fizerem um abaixo assinado a gente leva. E vê (...)
se a gente consegue outra professora para dividir a sala.
E assim nós fizemos, eles fizeram o abaixo assinado lá, eu levei e
fiquei ligando direto, direto, direto. (...) Conseguiram, dividiram a sala
(Carmem).
Nesse sentido, podemos verificar que os educandos iniciaram uma
142
organização conjunta para reivindicarem seus direitos junto às instâncias públicas e
que têm percebido alguns elementos que podem contribuir para um processo de
ensino-aprendizagem de qualidade, como o número reduzido de educandos por turma,
o que possibilita um trabalho muito mais voltado ao atendimento e satisfação de suas
expectativas quanto à aprendizagem e uso dos conhecimentos sistematizados pela
escola.
É muito importante para o trabalho educativo que o educador conheça as
intenções e o desejo que o educando adulto deposita em suas aprendizagens.
Quando se conhece a natureza das intenções dos alfabetizandos adultos consegue-se
realizar um trabalho que vá ao encontro dessas expectativas. É nesse ponto que
resgatamos a discussão travada em nosso referencial teórico acerca da motivação e
do interesse que o adulto deposita em seu aprendizado.
Diferentemente da criança e do adolescente, cuja escolarização é
obrigatória, o adulto é livre para continuar ou abandonar os estudos, sendo
imprescindível a presença da motivação para a continuidade nos encontros, ou seja, o
trabalho educativo deve ir ao encontro de seus interesses e motivações, contribuindo
para o fortalecimento de seus laços sociais.
Outro fato que nos chama a atenção é a questão dos desafios presentes
na Educação de Jovens e Adultos se configurarem em antigos desafios, como por
exemplo, a relação necessária entre educação e trabalho.
Aqui eu trabalhei uns 5, 6 anos. Depois eu trabalhei na Sicon, depois
eu saí da Sicon e fui trabalhar em um sítio. Depois eu fui vender
sorvete na rua, sempre trabalhando, aí hoje eu aposentei, porque eu
fiquei doente, fiquei com uma dor na coluna, aí não tinha jeito, nem
de andar mais com o carrinho de sorvete, não agüentava mais... Aí foi
complicando cada vez mais
(Carlos).
No caso de Carlos, iniciar os estudos só foi possível após a sua
aposentadoria como vimos na caracterização dos alfabetizandos.
Que nem, eu morava no Antenor Garcia e saia do Antenor e vinha
estudar aqui na Madre Cabrine, aqui no Cruzeiro do Sul, e aí era
difícil para mim, porque eu chegava tarde e tinha que tomar ônibus
correndo, chegava, tomava banho e saia correndo e aí chegou uma
hora que eu peguei e desisti
(Osmar).
Carmem também revela em suas falas como é a situação da maioria dos
educandos que freqüentam a escola:
(...) agora ninguém tem emprego certo e os coitados têm que ficar
parando para irem para a colheita da laranja. Quando vem, quando
chegam 7 horas. O que esses coitados vão aprender, cansados
ficando até 10 horas da noite para levantarem no outro dia cedo?
143
Tem muita gente que está faltando por causa desse motivo: da
colheita da laranja
(Carmem).
Dessa forma, parece-nos que os desafios atuais da alfabetização e da
educação de jovens e adultos são na realidade antigos desafios. Apontamos aqui a
necessidade de políticas públicas e práticas capazes de alterar a lógica escolarizante
que ainda impede, como uma extensão da ideologia da interdição do corpo, que
muitos jovens e adultos participem do sistema escolar, políticas e práticas que possam
contribuir para a transformação do trabalho e da escola desumanizantes.
Verificamos também, que alguns educandos, como Carlos e Eliza apontam
interesse no uso do microcomputador, este não aparece como uma necessidade para
a participação no mundo do trabalho, mas sim como uma habilidade necessária no
enfrentamento de algumas dificuldades que estão colocadas na sociedade.
(...) Quanto mais é melhor. Aprender a escrever, aprender ler... Tem
computação! Oba que beleza, vamos também... É melhor... Não
quero ser um cara na vida... não! Eu não penso nisso... Eu quero
aprender pra mim
(Carlos).
Tenho [vontade], de fazer um curso de computação, tem muito curso
por aí... A outra classe está fazendo, quem sabe ler e escrever já
pode ir fazer o curso... Ai, eu queria fazer, ai é tão bom. Mas a gente
está na escola, sabe tão pouca coisa, como que vai fazer um curso.
Que nem a professora falou: “quem sabe ler e escrever já pode fazer
um curso” (Eliza).
Sendo assim, os educandos revelam o desejo pela freqüência às aulas de
informática, iniciadas até então pelos alunos do termo 2 da suplência –
correspondente à 3ª e 4ª série – esse novo conhecimento, desejado pelos educandos
não está associado a um status que o mesmo pode proporcionar, mas sim um novo
instrumental que os auxiliará a lidar com os desafios da contemporaneidade.
De acordo com GNERRE (1995), à medida que crescem as iniciativas da
alfabetização de adultos, deveriam estar associadas a democratização do uso das
novas tecnologias digitais. Por isso, nos programas de alfabetização devem estar
incluídos encontros que iniciem os alfabetizandos no uso do microcomputador, caso
contrário, estaremos democratizando a leitura e a escrita por estas não representarem
mais poder aos que as possuem quanto comparadas ao domínio da informática.
Por isso, afirmamos com base em FLECHA (1994), que a classe
hegemônica possui poder simbólico capaz de determinar o que será valorável
socialmente, privilegiando os conhecimentos que já detém. Sendo assim, tornamos a
afirmar que o processo pelo qual devemos lutar não é somente pelo acesso aos
conhecimentos que permitem a participação social, mas também pela transformação
das relações de opressão que excluem e classificam as culturas como melhores ou
144
piores.
Quanto a esses aspectos, a Secretaria Municipal de Educação e Cultura -
SMEC-São Carlos e os Departamentos de Metodologia de Ensino e de Produção da
UFSCar organizaram, a partir do início do ano de 2004, os encontros de Inclusão
Digital que iniciam os educandos do MOVA-São Carlos e EJA-São Carlos ao uso do
microcomputador. O NIASE – USFCar também organiza os encontros da Tertúlia
Literária que iniciaram-se a partir do 2º semestre de 2004 junto à sala da EJA
freqüentada pelos participantes desta pesquisa. Nos encontros da Tertúlia Literária
(FLECHA, 1997), os participantes lêem e interpretam clássicos da literatura brasileira e
internacional e descobrem que são capazes de fornecer diferentes conhecimentos ao
que até então estava limitado a uma minoria social classificada como a única capaz de
interpretar tais obras.
Embora os dados desta pesquisa tenham sido coletados durantes as férias
compreendidas entre o 2º e 3º bimestre do ano de 2004, sabemos que alguns dos
educandos entrevistados participam dos encontros da Inclusão Digital e estão lendo a
obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, durante a realização da Tertúlia Literária.
Concluímos esse tópico de nossa análise afirmando que a leitura e a
escrita, têm permitindo experiências positivas nas esferas sociais e pessoais, já
apontadas no tópico anterior.
Os próprios educandos nos revelaram práticas cotidianas de opressão que
foram superadas a partir de práticas de uso efetivo da leitura e da escrita. Essas
práticas relacionam-se com o universo de atuação dos educandos e com as
dificuldades que encontravam. Porém, podemos perceber também que novas
possibilidades ficam abertas, indo além das necessidades de leitura e escrita
imediatas. Essas novas possibilidades podem ser percebidas principalmente quando
os educandos revelam a necessidade da continuidade dos estudos e afirmam que
aprender a ler e escrever é o primeiro passo para novas aprendizagens.
A seguir apresentaremos as considerações finais que puderam ser obtidas
após a realização da presente pesquisa.
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização desta pesquisa partiu da análise do conteúdo de seis
entrevistas realizadas junto a adultos na fase inicial do processo de alfabetização e
que participaram da mesma turma do Programa Brasil Alfabetizado do município de
São Carlos-SP. Nosso objetivo era identificar e analisar, sob a perspectiva de
alfabetizandos adultos, as experiências pessoais e sociais que se relacionam ao início
do processo de aprendizagem da leitura e da escrita.
A proposta do Programa Brasil Alfabetizado implantado no município de
São Carlos-SP buscou a ênfase na aprendizagem dialógica, ressaltando entre os
professores alfabetizadores a importância da prática reflexiva. Um elemento que
merece ser destacado consiste na duração dos encontros, que foram somente de
quatro meses. Nesse sentido, acreditamos que alguns elementos da dimensão
instrumental e da dimensão comunicativa da aprendizagem dialógica, puderam ser
garantidos nesse espaço de tempo, possibilitando experiências que amenizaram e
amenizam algumas das situações de opressão vivenciadas pelos educandos.
Segundo GIROUX (1993), as questões que giram em torno da cultura e do
poder não podem deixar de ser reveladas em uma prática educativa comprometida
com a transformação das condições de opressão que caracterizam as vivências tanto
dos educandos quanto do educador.
Dessa forma, ressaltamos a necessidade da prática reflexiva que pode
desvelar elementos da atuação docente que servem unicamente à manutenção das
desigualdades. Como afirma FREIRE (1996), a prática reflexiva pode nos levar a
assumir que nossa atuação em sala de aula nunca é neutra e a ter clareza do para
que, para quem, a favor e contra quem ensinamos o que ensinamos.
Daí a importância de um processo de alfabetização, tal como nos propôs
Paulo Freire, que parta da linguagem, dos discursos, da leitura de mundo dos
alfabetizandos, uma vez que problematizar as palavras é problematizar o contexto ao
qual essas palavras se referem.
Problematizar a leitura de mundo é descobrir em nossa própria linguagem
elementos fortalecedores da ideologia dominante e juntamente com ela, formas de
manutenção das muitas desigualdades presentes em nossa sociedade.
FREIRE (1992) afirma que transformar nossa linguagem faz parte do
processo em que também se transforma o mundo. É assim, que através do diálogo,
tanto educador quanto educando podem, em comunhão, elaborar novas formas de
146
leitura de mundo, através da mudança mesmo da linguagem que o expressa – muitas
vezes caracterizada por uma visão fatalista da realidade – já que os elementos
colonizadores e colonizantes podem ser desvelados, potencializando os sujeitos
dialógicos para novas formas de reescrita do mundo.
Enfatizamos também o desvelamento da própria situação do
analfabetismo, gerada no seio das relações de opressão travadas ainda na chegada
do colonizador europeu. Desvelar os elementos ideológicos presentes na linguagem
que expressa as injustiças do analfabetismo e a necessidade da alfabetização faz
parte da compreensão da ideologia da interdição do corpo (FREIRE A., 1989) – que
caracteriza grande parte, senão todos, os participantes da alfabetização e da
educação de jovens e adultos – assim como as diferentes formas que vem assumindo
nos discursos e práticas sociais atuais.
A análise das entrevistas revelou que muitas experiências pessoais e
sociais se relacionam com o início do processo de aprendizagem da leitura e da
escrita. As experiências pessoais e sociais configuradas no interior da condição de
analfabetismo foram classificadas por nós como experiências antidialógicas, pois
limitavam e impediam que os educandos participassem de inúmeros âmbitos sociais,
dentre estes, destacamos a participação no mercado de trabalho, essas experiências
de opressão ainda levavam os educandos a elaborarem estratégias como as de ter de
fingir que sabiam ler e escrever. As experiências antidialógicas também reforçavam a
falta de confiança que os adultos não alfabetizados depositam sobre si mesmos, como
incapazes de aprender, além de serem levados a reconhecer e valorizar, como únicas,
as expressões culturais da classe dominante.
O início da aprendizagem da leitura e da escrita tem possibilitado inúmeras
ações dos sujeitos envolvidos no processo de alfabetização – iniciado no Programa
Brasil Alfabetizado e em andamento nas aulas da EJA. Essas ações podem ser
classificadas em experiências de rompimento dos muros antidialógicos descritos por
FLECHA (1997).
Retomar e/ou iniciar os estudos pode ser classificado como o rompimento
de uma das dimensões do muro antidialógico pessoal, pois verificamos uma alteração
positiva na percepção que os educandos passaram a ter de si mesmos, pois agora se
compreendem como potencialmente capazes de aprender.
Freqüentar a escola significa um aumento do próprio ambiente de atuação
social, pois a instituição revela-se um espaço de socialização que permite inúmeras
aprendizagens tão importantes quanto ler e escrever.
Os dados obtidos por meio da realização das entrevistas revelaram que os
educandos reconheceram a importância da continuidade da escolarização para a
147
possibilidade de enfrentar novos desafios e de alcançar novas conquistas.
Destacamos também que os educandos reconhecem que juntos podem se
organizar para a exigência de alguns de seus direitos, como quando se organizaram
para a reivindicação de mais uma educadora na escola, o que possibilitou a separação
em duas turmas, podendo assim, segundo eles, garantir a qualidade do ensino e da
aprendizagem.
Alertamos para o fato da alfabetização não se sustentar somente pela
leitura e escrita das palavras, na qual verifica-se uma ênfase maior nos aspectos
técnicos de codificação e decodificação das letras, emprestando às palavras uma
dimensão mágica.
Defendemos ao longo desta dissertação a alfabetização crítica que
envolve além da valorização das histórias pessoais dos educandos, também a
compreensão do funcionamento da linguagem escrita. Denunciamos aqui que nem
sempre a alfabetização de adultos tem levado em consideração a união entre a leitura
do mundo e a leitura da palavra. A pesquisa comprovou que ambas dimensões do
processo de alfabetização são importantes e não podem ser desconsideradas.
Nossa análise dos dados também permitiu que fossem revelados outros
aspectos acerca da alfabetização e da educação de adultos que merecem ser
considerados por nós ao fim desta pesquisa.
Os apontamentos deixados pelos entrevistados caminham muito mais no
sentido de reflexões e orientações para os educadores e também para a elaboração
de políticas públicas para a educação de adultos. Nesse sentido, iniciaremos esses
apontamentos discutindo a questão de que a educação de adultos parece-nos ser
possível aos educandos somente em um estágio muito avançado da vida.
Dois dos educandos entrevistados afirmaram que somente quando o ritmo
de trabalho diminuiu, ou quando se encontram aposentados, conseguiram conciliar em
suas vidas, a aprendizagem da leitura e da escrita. Ao longo de suas entrevistas fica-
nos evidente que não optaram por deixar em segundo lugar o aprendizado escolar.
Eles foram impedidos de estudar já que tinham que trabalhar para sustentarem a si e
as suas respectivas famílias.
Nesse sentido, a educação de adultos necessita criar formas para que o
educando adulto concilie trabalho e educação. Sendo assim, não basta que a
educação de adultos amplie a oferta de ensino, mas sim, concomitantemente, que
elabore estratégias para que o educando permaneça no ensino. Para isso, é
necessário que esta modalidade de ensino reconheça que a idade adulta é
atravessada pelo trabalho e por inúmeras questões sociais que prejudicam ou mesmo
impedem a permanência do adulto na educação formal.
148
Estamos propondo aqui uma educação de adultos que respeite as
responsabilidades dos educandos, tanto com relação ao seu trabalho quanto com
relação à sua família. Se concebemos o adulto como um educando diferente daquele
atendido pela educação regular, uma vez que possui responsabilidades de outra
natureza, não podemos submeter o calendário da Educação de Adultos ao calendário
da educação regular.
Como nos disse Paulo Freire, é de sonhos que precisamos. Se assim é,
sonhamos com uma escola democrática que possa atender os educandos nos
horários que lhes são mais convenientes e que possa oferecer também, diferentes
instrumentais que possam favorecer uma maior atuação pessoal e social do
educando.
Uma escola democrática considera o que dizem seus educandos,
atribuindo novas dimensões ao ouvir e ao participar. Referimos-nos à própria
dimensão dialógica que valoriza as expressões culturais dos educandos e as toma
como ponto de partida para o trabalho educativo.
Ao longo das análises das entrevistas ficou-nos evidente que o educando
adulto possui muita clareza da intenção de seu processo de aprendizagem, este se
revela como um compromisso traçado pelo próprio educando. A educação de adultos,
nesse sentido, precisa deixar de tratar o adulto sem escolarização como um sujeito
incapaz de participar nem mesmo de seu próprio processo educativo.
Este modo de tratar os adultos analfabetos implica uma deformada
maneira de vê-los – como se eles fossem totalmente diferentes dos
demais. Não se lhes reconhece a experiência existencial, bem como
o acúmulo de conhecimentos que esta experiência lhes deu e
continua dando
(FREIRE, 1981, p. 12).
Os participantes da alfabetização e da educação de adultos, sabem o que
querem aprender e o porquê desta aprendizagem. Cabe ao educador, aproveitar,
ainda no processo de alfabetização, a leitura de mundo dos educandos, suas
vivências e suas histórias de luta, inserindo-as dentro de uma compreensão crítica da
história e da sociedade. Nos referimos ao aproveitamento das aprendizagens e das
experiências vividas, potencializando-as e permitindo novas aprendizagens e novas
experiências.
Os educandos adultos foram, desde muito tempo, impedidos de lerem e de
escreverem a palavra. Não podemos permitir que no momento em que encontram a
oportunidade de aprendê-la, seus sonhos não achem possibilidades de se realizarem
no interior e fora da escola que tanto admiram e desejam participar.
Aproveitamos este espaço para alertar os alfabetizadores e demais
149
pessoas envolvidas com a educação de adultos sobre a questão cultural, que como
vimos em nosso referencial, constitui em um tipo de desigualdade que classifica como
inferiores às expressões culturais que diferem do grupo social hegemônico, além de
contribuir significativamente para a manutenção das desigualdades sociais.
Isso porque, atrelado ao sinônimo de cultura está o conceito de status
social que a mesma representa, sendo assim, inúmeras pessoas são influenciadas a
desqualificarem a própria cultura, como resultado da internalização de discursos que
reforçam as situações de desigualdade em nossa sociedade.
Verificamos também, que alguns dos educandos entrevistados também
associam o significado de não alfabetizado – aquele que não domina a leitura, a
escrita e o cálculo matemático – como aquele que nada sabe. Essa visão é uma das
heranças históricas de nosso passado educativo, que além de excluir a população do
acesso ao ensino sistematizado ainda lhe atribui tal responsabilidade. Esse estigma,
do adulto não alfabetizado, acompanha muito dos entrevistados, expressando em sua
própria linguagem muitos dos discursos sociais que reproduzem a ideologia
colonizadora. Assinalamos que o processo de conscientização é complexo e
acreditamos que ele tem continuidade nas práticas educativas das quais os
educandos vivenciam, dentro e fora da instituição escolar.
É nesse sentido que se insere a alfabetização crítica, como uma proposta
capaz de transformar algumas situações de desigualdade. Aprender a ler e a escrever
não basta para transformar todas as relações de opressão. Mesmo que esses
instrumentais garantam, como vimos, experiências positivas na vida dos educandos.
Quanto a isso, FREIRE (1981) afirma:
Assim, somente a alfabetização que, fundando-se na prática social
dos alfabetizandos, associa a aprendizagem da leitura e da escrita,
como um ato criador, aos exercícios da compreensão crítica daquela
prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação,
oferece uma contribuição a esse processo
(p.19).
Além disso, os discursos oficiais sobre a necessidade de alfabetização da
população incorporam a visão de que o acesso à leitura e à escrita representa uma
possibilidade de melhoria de vida, no sentido econômico, bem como o igualitarismo, a
mobilidade social, a distribuição de riqueza, produtividade, emancipação. Porém, não
há nenhuma correlação entre alfabetização e desenvolvimento econômico, embora
muitos educandos sintam-se atraídos por esses chamativos.
Acerca do mesmo assunto, PINTO (1986) afirma que a sociedade parece
mais do que nunca se apressar para educar os ainda não alfabetizados, tornando-a
mais participativa, quando na verdade os educa segundo os padrões culturais
150
elevados, semelhantes à da elite dirigente, afirma que faz isso, pois julga um dever
moral quando não passa de uma exigência econômica.
Parece então, que a alfabetização de adultos tem se distanciado daquela
proposta por Paulo Freire, na qual o ensino da leitura e da escrita se faz pelo
alargamento e aprofundamento da consciência crítica do homem frente a sua
realidade, tomando o valor da leitura e a escrita pelo seu significando, permitindo que
se chegue a saber, para o mais saber (PINTO, ibidem, p.85 e FREIRE, 1992).
A alfabetização crítica não desconsidera a importância em se apreender a
cultura dominante, porém esta não substitui a cultura do educando, da qual é produtor
e produto. Neste contexto, a cultura dominante é ressignificada e traduzida em
instrumentos de luta para a transformação social.
Na perspectiva da alfabetização crítica, as expressões culturais dos
educandos, assim como suas formas de negociarem com as situações de poder são
tomadas como ponto de partida para o trabalho de alfabetização. Isso significa que é
da maneira como expressamos o mundo que podemos chegar a formas diferentes de
estarmos com ele, em um constante movimento de fazê-lo e de sermos refeitos. É no
diálogo que tanto educador quanto educando expressam sua leitura de mundo e
percebem que nelas existem não somente o sentido da comunicação, mas também,
elementos ideológicos que legitimam as situações de opressão e, portanto, de
desigualdades existentes em nossa sociedade.
FREIRE (1990) afirma que é tarefa da alfabetização crítica desvelar a
ideologia colonizadora presente em nossa leitura de mundo e também de mobilizar
metodologias para que o alfabetizando perceba que é possuidor de uma cultura
específica e importante, da mesma forma como é criador de significados.
A transformação das estruturas condicionantes das relações de opressão
se faz pela leitura crítica da realidade, já que mudar a linguagem, retirando dela os
elementos ideológicos que sustentam as relações de opressão faz parte do processo
de mudar a realidade: a palavra vem do mundo, mas volta para ser reescrito,
transformado (FREIRE, 1989, p. 13).
Nesse sentido, a leitura possível, feita a partir do início da aprendizagem
da leitura e da escrita foi a credibilidade que o educando adulto passou a depositar em
si mesmo, confiando e comprovando dia-a-dia que é capaz de aprender, capaz de
atuar em outros espaços sociais que não se limitam ao bairro onde residem. Os
educandos vislumbram a continuidade dos estudos, como possibilidade de
aprendizagem de outros instrumentais e de ampliação da leitura de mundo,
contribuindo assim, para a transformação das situações de opressão que ainda
vivenciam.
151
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158
APÊNDICE I
Roteiro Entrevista Semi-Estruturada
1) Conte um pouco sobre sua vida:
- De onde veio...
- Escolarização...
2) Por que não estudou ou parou de estudar?
3) Você está alfabetizado?
4) Você escreve alguma coisa? O que? Dê exemplos.
5) Você lê alguma coisa? O que? Dê exemplos.
6) Em quais momentos a leitura mais te ajuda, ou faz falta?
7) Em quais momentos a escrita mais te ajuda, ou faz falta?
8) Depois de ter participado do programa de alfabetização alguma coisa mudou? Em
que? O que?
9) Depois de ter aprendido a ler alguma coisa mudou? E depois de ter aprendido a
escrever?
10) (Caso a resposta 3 for SIM) Como você se sente após ter aprendido a ler e a
escrever? Quais são esses sentimentos?
11) Como você se sentia antes?
12) Você passou a fazer coisas diferentes, que não fazia antes? Quais coisas?
Descreva-as.
13) Você tem vontade de fazer coisas diferentes?
14) Você pretende continuar a estudar? Aproximadamente até quando?
15) O que te motiva a continuar estudando?
159
APÊNDICE II
Entrevista
Entrevista - Eliza
Entrevista realizada em 20 de junho de 2004 – 15 horas Ensaio para análise
E: Então, Eliza, eu vou pedir pra você me contar um
pouquinho da sua história, se você é daqui de São Carlos
mesmo?
S: Sou...
E: Você nasceu aqui mesmo...
S: Estado de São Paulo, em São Carlos.
E: Com quantos anos você está, Eliza?
S: 32.
E: Vocês sempre moraram aqui no bairro?
S: Não, não, nós moramos perto da Vila Marcelino, Vila
Nery...
E: E quanto tempo faz que você está morando aqui?
S: Mais ou menos 11 anos.
E: É bastante tempo. E aí, você já tinha estudado antes?
S: Não. Eu entrei com 11 anos no S., e aí eu não aprendi
nada, não consegui aprender e o professor chamou o meu pai
e achou melhor eu parar.
E: O professor quem falou?
S: É, é. Ele chamou e falou que eu não estava
aprendendo e aí ele dizia que era melhor eu parar, que não
apreende, não adianta, que entrou atrasada, que não vai
aprender mais, aí então, eu comecei a trabalhar em 93 eu
entrei na Cidade Aracy, aí lá também eu não conseguia
aprender e eu cheguei a abandonar.
E: E lá era o Ensino Supletivo também?
S: Era o supletivo. Aí teve umas aulas aqui no Centro
Comunitário, mas eu fiquei meio assim...aí eu parei também...,
mas aí eu não cheguei a estudar, fiquei lá olhando. Aí vocês
passaram, aí eu falei: “agora eu vou aprender um pouco”.
Vamos supor, tem coisas que eu aprendi, que eu não sabia,
tem coisas que eu ainda tenho dificuldade, vamos supor, o
meu nome mesmo, eu quero aprender a escrever a meu nome
com letra de mão e eu não consegui ainda...
E: Não conseguiu ainda, mas vai conseguir...
S: Só consigo com a outra letra.
E: Com a de forma?
S: Com a de forma. Eu pegando bem, mas tem horas em
que eu acho meio difícil que tem letra não entra na minha
cabeça, eu preciso olhar o alfabeto pra poder lembrar...
E: Quando você estudou, quando você entrou lá na
Localização da educanda e
idade.
Trajetória escolar – saída da
escola porque o professor disse
que ela não iria aprender.
Tentativas de estudo no Ensino
Supletivo.
Escrita do nome, afirma que
ainda sente dificuldade com
letra cursiva.
Dificuldade em memorizar a
letras do nome.
160
escola com 11 anos, o que aconteceu, você acha que você
não estava aprendendo por quê?
S: Eu achava muito difícil, tinha também o professor, a
gente não conhece nem o mundo ainda, então é normal. Os
meus irmãos fizeram até a 4ª série, aí eu parei ... aí eu deixei
pra lá...
E: E o seu pai, ele de certa forma, ele estudou?
S: Não, não estudou, ele morava em fazenda, então era
mais difícil, não tinha essa parte para estudar, era mais
trabalhar. Ele sabe fazer muita conta de cabeça, não tem erro,
só o nome dele que não...
E: Que é a parte da leitura e da escrita mesmo que
acabou ficando mesmo. E aí Eliza, você depois voltou a
estudar mas ou menos com quantos anos voltou?
S: Eu entrei com 20 e poucos anos na Cidade Aracy, eu
fiz a matrícula tudo direitinho para eu ir no período da noite. Aí,
eu cheguei lá, mas eu senti que os todos sabiam e eu não
sabia, a professora ensinava ela falava pra eu ir devagar que
eu ia aprender, aí eu cheguei e falei: “Olha, eu acho que estou
dando trabalho para a senhora”. Ela precisava ficar pegando
no lápis pra ensinar... foi aí que eu entrei na Cidade Aracy,
mas eu vi que os alunos eram mais fortes e eu não ia
aprender, aí eu parei...
E: E você acabava desistindo porque você falou: “que lá
era um pouquinho mais forte e eu aí eu parei”, mas você...
S: Eu achei que eu não ia aprender, tinha tanta gente que
sabe e eu não. E eu estava animada, chegava lá, pegava no
lápis, fazia aquele rabisqueiro, não sabia nem o que estava
fazendo, o que era número o que não era, o que era acento, o
que não era. Agora eu ainda sei, eu estou ainda com falta na
parte de conta. Às vezes a professora passa e eu fico assim,
nervosa... que o pessoal sabe e eu não sei, aí eu tenho que
ficar esperando...
E: Você disse que sempre teve dificuldade com conta
(nos encontros do Brasil Alfabetizado), mas assim, você
sempre trabalhou.
S: Sempre trabalhei...
E: E aí como você faz quando você recebe seu salário?
S: Aí, quando eu recebo, a patroa sempre fala pra mim
assim: “eu vou te pagar com cheque cruzado pra você não
perder, você tem que ir ao banco com uma pessoa mais velha,
porque você não sabe ler”. Até hoje é isso aí...
E: E você vai com quem ao banco?
S: Às vezes eu vou com a minha irmã, com a caçula, que
entende mais, ela entende mais, ou senão, às vezes eu vou
com as meninas descontar também... Ou senão, quando eu
preciso, eu falo pra pessoa me pagar em trocado, aí quando a
pessoa paga ela já explica pra eu guardar o papelzinho...
Parou de estudar porque
achava que atrapalhava o
trabalho da professora, sentia
que os outros sabiam mais.
Visão da sala de aula, não sabia
o que estava fazendo.
“Ir ao Banco com uma pessoa
mais velha” – situação de
dependência em que se
encontra, dependência dos
outros, não se trata de ir com
uma pessoa mais velha, mas
sim, mais nova.
161
E: Em quantos irmãos vocês são?
S: Tem quatro mulheres, com mais o meu irmão, somos
em cinco?
E: Aí tem a caçula que ajuda mais?
S: E as outras sabem ler e escrever. Mas tem coisa que
não sabe, aí pergunta pra ela.
E: Você é a irmã mais velha?
S: Primeiro sou eu e depois o C.
E: E aí, depois do C., todos eles vieram estudando?
S: Vieram, eles já sabem ler um pouquinho?
(chega uma das irmãs da entrevistada)
S: Essa daí estudou pouco também, mas ela sabe ler.
Sabe, sabe o nome, os números, uma conta... Eu já não, eu
parei de estudar, ela sabe ler os ônibus...
E: Eu lembro uma vez que a gente trabalhou uma
atividade do ônibus e você sabia todos os horários dos ônibus.
S: Eu aprendi os horários pela hora que eles passam, eu
ia contando letra por letra, aí eu sei pra onde vai, pra onde que
não vai, mas tem vezes que eu vou contando, tem vezes que
eu preciso perguntar. Que nem, agora tem ônibus novo e eu
preciso perguntar.
E: Mesmo porque as letrinhas ficam piscando e aí tem
vezes que elas somem, naquele pisca-pisca fica difícil?
Você me disse que parou de estudar. E você sentiu que o
fato de você não saber ler e nem escrever te impediu de fazer
algumas coisas que você tinha vontade?
S: Impediu, impediu sim, de perder alguma oportunidade
de trabalhar...
(nesse momento a entrevistada começou a chorar)
E: Mas aí, aconteceu alguma coisa, que você não pode
trabalhar?
S: Eu trabalhava no shopping, eu trabalhei como auxiliar
de limpeza, era pra eu estar lá até hoje... Mas chegou uma
época que eu não pude mais... (ficou quieta por alguns
instantes, pensando).
E: Eu lembro uma vez lá na sala que você pedia para
algumas de suas amigas te ajudarem – aula em que lemos o
texto do “Roberto sem Carlos” – na hora que tinha que assinar
o nome...
S: É, na hora de assinar o nome, de receber um recibo,
tudo... as meninas assinavam, mas aí o rapaz chegou pra
mim e disse que não ia dar mais. Que cada um tinha que
saber a sua parte... Então eu não fiquei mais, era pra eu estar
lá até hoje...
Escolaridade da família: depois
dela os demais irmãos
estudaram.
Estratégias para conviver em
um mundo letrado.
Desigualdade social reforçada
pela questão cultural.
Estratégias para se manter no
emprego.
162
E: Mas aí o que aconteceu: você foi despedida ou pediu a
conta?
S: Não, eles dispensaram, era pra eu ter passado pra
outro cargo, de auxiliar de limpeza era pra eu ter passado pra
outro. Aí eu fui escolhida pra trabalhar... tava tudo certo, mas
esse cargo exigia muita coisa, aí outra pessoa pegou o meu
lugar, aí quando chegou na hora de me dar o cargo, eu não
consegui, na hora de mudar de cargo o moço falou eu não
consegui assinar e o moço falou que ia ter que chamar outra
pessoa...
A gente fica, magoada, eu queria chorar na hora... na
hora que ele viu que não sabia ler, e o dedo... não dava... aí a
gente fica chateada...
E: A gente fica mesmo...
S: Na hora que eu falo, ninguém sabe...
E: A gente acaba passando por muitas coisas...
S: Além disso também, eu gostava muito de trabalhar em
escolinha, trabalhar com crianças, aí me chamaram em uma
escolinha pra eu participar de uma entrevista, eu já estava
trabalhando de doméstica. Aí teve uma hora que a moça
perguntou pra mim se eu sabia ler e escrever (silencio
novamente), aí ficou (pausa), eles me passaram pra frente...
A gente fica muito chateada, a gente fica chateada. Até
hoje eu fico chateada, às vezes assim, na sala, eu tento, tento
e não consigo. Assim, eu to tentando. Mas mesmo assim, eu
acho difícil a parte de contas, nomes...
Eu acho assim, o alfabeto eu sei. Eu não sabia tudo, mas
agora eu já aprendi quase todas as letrinhas. Só que eu não
sei ler depois... agora eu to nessa parte aí.
E: O fato de você conhecer as letras, você acha que você
é alfabetizada?
S: Às vezes eu acho que sou, porque eu falo assim, eu
falo tudo, entendo alguma coisinha, um pouquinho, mas na
classe, tem bastante gente que sabe, às vezes tem que
perguntar que letra que vai, que letra que não vai, que letra
que começa... principalmente a letra de mão, tem gente que já
escreve com letra de mão... Tem gente que tem facilidade pra
ler e escrever... As outras, eu já acho difícil!
E: As letras de forma você acha difícil?
S: As letras de forma poucas eu conheço. Às vezes eu
fico cansada, dá uma vontade de parar, às vezes dá vontade
de continuar.
E: Mas, tenta sim, não parar de ir. Porque às vezes você
para, às vezes fica um tempinho longe, quando você voltar,
você pode ter esquecido algumas coisinhas... E agora, em
agosto já vai fazer um ano que vocês estão estudando, se a
gente for contar desde o período que vocês estavam lá com
gente...
Nesse quase 1 ano que se passou, você sentiu que
mudou alguma coisa?
Não conseguiu assinar o nome
para mudar cargo.
Como se sentiu...
Os oprimidos sabem a situação
de opressão que sofrem, por
isso somente deles podem partir
a libertação.
Tenta superar a situação limite,
mas ela se revela dificultosa.
Dois sentidos para a
alfabetização: entender as
coisas e reconhecer as letras.
Em alguns momentos acha que
é alfabetizada, mas percebe
que as outras pessoas
conhecem mais que ela.
Situações limites às vezes se
mostram como desafios, outras
vezes são vistas com um olhar
fatalista.
Mudança associada com
estudo. Sente que alguma coisa
163
S: Às vezes eu sinto, tem lugar que você vai assim
porque o pessoal fala: “você está estudando?” , aí eu falo que
sim... tem coisas assim que você quer mudar, aí você pensa
em estudo...
E: Então você acha bom por causa disso: você vai aos
lugares e o pessoal sempre pergunta, incentiva...
S: O pessoal fala: “Quem tem estudo já está difícil,
imagina quem não tem?” Tudo você tem que perguntar, você
quer fazer alguma coisa, tem que pedir pra pessoa ler...
(chegou o irmão Claudemir do trabalho).
E: Então, você estava me contando, quando eu perguntei
das coisas que foram impedidas de você fazer, você me disse
mais com relação ao emprego...
S: Isso, nessa parte era difícil, porque às vezes a pessoa
vai viajar e você tem que marcar um recado, a pessoa deixa
um telefone, então não tem como marcar... tem que pedir pra
pessoa ligar depois, ou ligar outra hora...
E: Porque não te facilita lá no próprio trabalho mesmo.
S: É muito difícil, eu to tentando. Será que eu vou ficar
melhor? Será que eu vou?
E: Se fosse pra você falar pra mim as coisas que você
sabe fazer e que você não sabia?
S: Tem, tem sim, que nem eu falei pra você. Eu não sabia
o alfabeto, todas essas letras. Agora eu faço todas as letras.
Com a letra de forma eu sei fazer... agora falar quando é letra
maiúscula, minúscula... eu não sei ainda...
E: E os números?
S: Os números, no começo, male má, assim... eu sei o
cinco e o um, o resto eu não guardo, tenho que perguntar pro
meu irmão. Porque se passa uma conta pra mim, eu sozinha
não faço, eu não consigo.
Que nem, teve uma provinha e não podia perguntar pra
ninguém. Eu fiz uma provinha assim, muita coisa eu não fiz no
papel porque eu não sabia, chegou na hora me deu um
branco... O pessoal todo fez, entregou o papel e eu fiquei, até
que teve uma hora, eu chamei a professora e falei: “eu não
sei...” Porque a gente não podia ficar perguntando. Aí chegou
uma hora, eu entreguei, acabou ficando assim...
E: E a professora faz ditado com as palavrinhas?
S: Ela faz. E ela já falou que quem estiver bom, já pode
passar pra outra sala, quem não tiver, continua... Eu to
tentando, mais... Eu falo pra você, se estiver lá na lousa, eu
olho lá na lousa e faço... se apagou da lousa e eu não fiz
ainda, aí acabou... Aí eu não faço. Aí eu olho, olho no
caderno, agora ficar olhando no caderno dos outros, a gente
não aprende.
E: É você mesmo que tem que tentar.
mudou, pois agora ela pode
dizer que está estudando.
Reconhece a situação de
dependência que vivencia.
Situação da escrita auxiliando,
ou como possibilidade de ajudar
em situações do cotidiano.
“Ficar melhor” – vontade de se
melhorar enquanto pessoa.
Coisas que sabe:
Reconhece as letras
maiúsculas.
Reconhece os números 5 e 1 –
os mais presentes nos dinheiros
mais comuns no dia a dia.
Não consegue fazer contas.
Dificuldade na realização da
prova, não conseguiu realizar as
atividades.
Situação da sala de aula:
consegue copiar as coisas da
lousa.
Não gosta de ficar olhando no
caderno dos colegas de classe.
164
S: É igual com o ônibus, às vezes eu conheço, dá pra
conhecer...
E: E como você faz pra conhecer?
S: Depende da letra, às vezes eu guardo, quando muda
eu fico meio perdida. Pra onde ele vai, pra onde eu tenho que
descer... Se eu pegar e descer no lugar que eu não tinha que
descer, aí pegar outro ônibus não dá, com o preço que está,
às vezes eu faço um sacrifício e vou a pé.
E: Você tem vontade de fazer coisas diferentes?
S: Tenho, de fazer um curso de computação, tem muito
curso por aí... a outra classe está fazendo, quem sabe ler e
escrever já pode ir fazer o curso... Ai, eu queria fazer, ai é tão
bom. Mas a gente está na escola, sabe tão pouca coisa, como
que vai fazer um curso. Que nem a professora falou: “quem
sabe ler e escrever já pode fazer um curso”.
E: Você acha que você tem avançado, você tem
aprendido alguma coisa?
S: Eu acho que eu aprendi bem, bem, quando eu fui com
ela nos primeiros 3 meses. Eu olhei no caderno, das coisas
que vocês nos passaram e muita coisa eu lembrei.
E: E quando você foi retomar o caderno, que coisas você
achou que te ajudou?
S: Assim, algumas letrinhas que vocês passaram, assim,
quando eu tenho um tempo eu sempre passo o olho no
caderno, eu olho, folheio, folheio, que é pra guardar, pra não
esquecer. Tem coisas que eu vou guardando, pra ajudar na
hora da sala de aula, que eu tenho que ficar, porque escrever
rápido eu não sei quase nada, então se apagou, aí acabou.
Então às vezes eu falo pra ela não apagar tão já não,
porque eu tenho dificuldade, eu tenho que olhar lá pra ver que
letra que vai, que letra que não vai, apagou, aí que já fico
nervosa e embanano tudo... Aí o pessoal fala lá que quer
ensinar, mas se quiser ensinar você não aprende. A
professora falou pra eu tentar com letra de mão que às vezes
é mais fácil pra mim, mas não vai.
Eu estou tentando com a de forma, mas eu queria passar
com a de mão. Porque tem muito lugar que não gosta, muito
lugar que tem que assinar um papel, então o pessoal gosta
que assine com a outra letra, porque é mais rápido do que
você ficar escrevendo uma e depois mais outra. Tem lugar que
aceita e tem lugar que não aceita... eles acham mais fácil se
você demora eles já trazem o carimbo e você carimba com o
dedo. Esses dias mesmo, eu tive que assinar um papel aí o
moço falou: “ai bem, é mais fácil com o carimbo...”, acho que
foi na prefeitura mesmo, eu precisava assinar um papel, aí ele
me trouxe um carimbo.
Volta a falar do ônibus.
Coisas que tem vontade de
fazer.
Curso de computação enquanto
possibilidade somente para
aqueles que sabem ler e
escrever.
Retomada no material do ano
passado para auxiliá-la no
estudo.
Conta da situação quando
apaga a lousa e fica nervosa.
Não acha positiva a ajuda que
os colegas de classe tentam
dar.
Aceitação da sociedade da
escrita do nome de forma rápida
e com letra de mão, novas
maneiras que a sociedade usa
para eliminar aqueles que não
estão atualizados com a escrita
– transformação da própria
escrita, relacionada à rapidez da
própria sociedade, o mesmo
pode-se dizer quanto ao uso da
informática como ferramenta
para a escrita.
Totalidade expulsa a
exterioridade – uso do carimbo,
não basta saber assinar o
nome, mas sim da maneira
como é exigido que se faça.
165
E: Depois que você aprender a ler e aprender a escrever,
você vai querer continuar a estudar?
S: Eu vou querer me formar, não quero parar de jeito
nenhum. Eu vejo o meu irmão, ele não queria estudar de jeito
nenhum, agora ele nunca falta, sempre estuda, cada vez mais.
O meu irmão já está na 4ª série, está quase indo para a 5ª
série.
E: O que te motivou a continuar estudando?
S: É assim Stella, é que nem os outros falam, se você
quiser uma coisa melhor, você tem que ter estudo, sem estudo
a gente não é nada..., em todo lugar exige agora estudo.
E: Mas você acha isso, que sem estudo a gente não é
nada?
S: Muitos falam: “tudo é estudo”, a gente escuta muito
falar por aí, tudo, tudo, tudo... A gente vê aí que sem estudo a
gente não sabe o que vai ser da gente.
E: Porque você entrou com 11 anos?
S: Porque eu nunca tinha estudado em parquinho, a
gente da nossa família nunca tinha estudado em parquinho e
aí quando foi ver um já estava com 11, outro com 14... Sabe
nas outras famílias tinha um que já era formado, mas na nossa
não... Então aí o professor chamou meu pai a parte e falou
que ele passava lição e eu não conseguia fazer... aí eu
comecei a trabalhar, trabalhar e o estudo acabou ficando...
Depois eu voltei, mas eu percebi que o pessoal todo sabia
e eu não sabia, aí eu larguei também...
E: Como você se sentia, quando você percebia que o
pessoal sabia e você não?
S: Ai, eu ficava assim, as pessoas sabiam ler e escrever
de soquinho, mas sabiam, a professora tentava me explicar,
mas tinha coisas que ao entravam na minha cabeça.
E: E você sai, assim pra passear?
S: Saio, de vez em quando, que nem agora eu tenho ido
pra escola, mas às vezes de sábado, domingo eu vou à igreja,
com as meninas...
E: E a sua mãe, ela é viva?
S: Ela é, mas ela não estudou também..., mas essas
partes de contas, eles sabem bem...
E: Mas eu achei bem legal, você ter dito que vai continuar
a estudar, que você quer fazer o curso de informática.
S: Ai, eu queria sim, aprender a ler a escrever...assim eu
não queria parar de estudar... eu queria me formar, fazer uma
faculdade, a gente sempre quer essas coisas, eu queria me
formar em advogada, ou então trabalhar em escolinha. Que eu
gosto bastante, sabe, eu tenho muita paciência, até hoje eu
tenho esse sonho...
S: E por que, assim, você conheceu alguma advogada?
Afirma que não quer parar de
estudar.
“Sem estudo a gente não é
nada”.
Importância do estudo para ser
alguém.
Entrada no sistema escolar,
volta a explicar.
Fala da dificuldade que tinha em
aprender a ler e escrever.
Vida social: escola e igreja.
Sonho de estudar e fazer
faculdade: ser professora ou
advogada.
166
E: Não, é que eu conheci assim, gente que estudou com
nós no SESI e conseguiu se formar em advogada... que se
formou em professora ... Quando a gente é pequena,
perguntam assim: “o que você quer ser?” Eu sempre falo que
é ser advogada... cada um tem um sonho e esse é o meu...
E: E esse é um dos seus sonhos, você tem mais algumas
outras coisas que você quer fazer?
S: É, esse é o meu sonho... Queria estudar e me formar
em advogada, agora um outro sonho é que eu gosto muito de
criança... Queria ser advogada ou professora de escolinha...
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