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Embrenhando-nos na história, encontraremos no mundo grego antigo o
encontro da escrita alfabética com a tradição oral, por volta do século VIII a.C..
Nesse encontro, ao contrário de hoje, o poder encontrava-se na palavra falada e
não na palavra escrita
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. Nasce daí a grande desconfiança dos gregos com
relação à escrita, tendo em vista sua crença em assegurar a permanência de sua
cultura em suportes como a memória e voz humanas.
Segundo Svenbro, em uma cultura que valoriza a palavra falada, da maneira
como o fizeram os gregos, a escrita só interessa na medida em que visa a uma
leitura oralizada (1998, vol.1, p.42). Nessa sociedade, os traços característicos da
leitura referem-se ao caráter instrumental do leitor, tido como aquele que
empresta a voz ao texto, ou ainda, aquele que se submete ao texto para dar-lhe a
voz; ao caráter incompleto da escrita, uma vez que esta visava à produção de
uma voz e não configura um sistema que tentava representá-la; e, por último, ao
caráter de ouvinte dos leitores, pois, se a voz do leitor é um instrumento que
possibilita à escrita se realizar em sua plenitude, seus destinatários não são
leitores no sentido literal do termo.
O sujeito-leitor, nesse caso, subdivide-se em dois: um intérprete, que
empresta a voz ao texto e se submete a ele, que, mantendo um contato efetivo,
servindo como instrumento de mediação do texto com os ouvintes da leitura; e o
ouvinte, que toma conhecimento do texto por meio de um mediador. Svenbro
(1998, vol.1, p.50) observa que, dado o caráter passivo daquele que submetia sua
voz ao texto, essa tarefa era facilmente legada aos escravos por ser considerada
uma atividade de coerção da vontade pelo autor que desejava ser lido. No
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No “Fedro”, de Platão, em um diálogo de Sócrates com o jovem Fedro, temos exemplo da
desconfiança com relação à palavra escrita. Um dia, contou Sócrates a Fedro, o deus Thot do
Egito, inventor dos dados, do jogo de damas, dos números, da geometria, da astronomia e da
escrita, visitou o rei do Egito e ofereceu-lhe essas invenções para que as passasse ao seu povo.
O rei discutiu os méritos e as vantagens de cada um dos presentes do deus, até que Thot chegou
à arte da escrita: “Eis aqui o ramo do conhecimento que irá melhorar a memória do povo, minha
descoberta proporciona uma receita para a memória e para a sabedoria”. Mas o rei não ficou
impressionado: “Se os homens aprenderem isso, o olvido se implantará em suas almas; eles
deixarão de exercitar a memória, pois confiarão no que está escrito, e chamarão as coisas à
lembrança não de dentro de si mesmo, mas por meio de marcas externas. O que descobristes não
é uma receita para a memória, mas um lembrete. E não é sabedoria verdadeira o que ofereceis a
vossos discípulos, mas apenas sua aparência, pois, ao lhes contar muitas coisas sem lhes ensinar
nada, fareis com que pareçam saber muito, embora, em boa parte, não saibam nada. Um leitor,
Sócrates advertia a Fedro, precisa ser singularmente simplório para acreditar que as palavras
escritas podem fazer mais do que recordar a alguém o que ele já sabe. (MANGUEL, 1997, p.76-7)