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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL
JULIANA QUEIROZ SILVESTRE
A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO
NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO
ESTADO
FRANCA
2008
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JULIANA QUEIROZ SILVESTRE
A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO
NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO
ESTADO
Dissertação apresentada à Faculdade de História,
Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do
título de Mestre em Direito. Área de Concentração:
Direito Obrigacional Público e Privado.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas
FRANCA
2008
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JULIANA QUEIROZ SILVESTRE
A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO
NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO
ESTADO
Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de
Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: _________________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, UNESP
1º Examinador: ____________________________________________________________
Prof(a). Dr(a). Jete Jane Fiorati
2º Examinador: ___________________________________________________________
Prof. Dr. Euclides Celso Berardo
Franca, _____ de ____________________ de 2008.
Aos meus pais Antonio e Carmelina (in memorian),
Aos meus irmãos Mara, Fernando, Ricardo e Flávio,
À minha tia Cida,
Minha gratidão, meu respeito e meu amor.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, estimado filósofo, professor e amigo, pela
orientação neste trabalho e pela humildade em partilhar sua imensa sabedoria.
À Laura e Pádua pela valiosa cooperação, e aos demais funcionários da Faculdade de
História, Direito e Serviço Social da UNESP, que qualificam o serviço público e o ensino
superior.
À minha amiga Érika por ter compartilhado todos os passos de desenvolvimento deste
trabalho.
Ao meu namorado, companheiro e amigo Rodrigo pelo carinho, estímulo,
compreensão e paciência.
O mais forte nunca é suficientemente forte para ser
sempre o senhor, senão transformando sua força em
direito e a obediência em dever.
Jean-Jacques Rousseau
SILVESTRE, Juliana Queiroz. A legitimidade do direito de punir em decorrência do não
cumprimento das obrigações constitucionais pelo Estado. 2008. 134f. Dissertação
(Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2008.
RESUMO
Uma das mais destacadas funções do Estado é o exercício do controle social. Para tanto, o jus
puniendi, entendido como uma parcela do poder do Estado atua como instrumento de tal
controle e constitui um dos pilares de equilíbrio do Estado Democrático de Direito. Isto
porque o Direito Penal pode ser considerado como o Direito a atuar em última instância nas
relações sociais; ou seja, antes de punir qualquer infrator do Ordenamento Jurídico, o Estado,
por outros meios, jurídicos e políticos, deve zelar pela prevenção de delitos. Em termos
jurídicos, o Estado, como pessoa jurídica, também está submetido ao princípio da legalidade
(art. 5°, inciso II, CF), em que apenas a norma legal – princípios e regras - é capaz de exigir
determinado comportamento de pessoas, que ficam adstritas à sua observância e
cumprimento. Uma vez adotado o modelo Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), nosso
Estado, além de respeitar a legalidade - o “breque” de seu poderio - deve atuar legitimamente
na esfera social, nos moldes estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, o artigo 3° do
Texto Constitucional estabelece quais os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento social; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades e;
promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos. Dessa forma, no plano político, o
Estado, para atingir seus objetivos, deve cumprir as obrigações constitucionais que o Poder
Constituinte dispôs no Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais
e Coletivos” - lembrando que os deveres estatais neste não se esgotam, permanecendo
difundidos em todo Texto Constitucional. Estas obrigações ou deveres constituem uma teia,
sendo cada intersecção desta correspondente a um princípio constitucional, que amarra e
vincula todas as outras normas à sua observância. Podemos dizer, destarte, que o fundamento
dos deveres constitucionais se assenta nos princípios que, por sua vez, encontram-se no mais
alto patamar do conjunto das normas jurídicas. Os princípios constitucionais têm o condão de
ditar quais as “regras do jogo”, ou seja, veicular o modus operandi do Estado Democrático.
Portanto, os princípios são normas jurídicas, aptos a produzirem efeitos (aplicação imediata)
na esfera social, além de ocuparem a mais alta hierarquia das leis. O problema das obrigações
constitucionais – normas programáticas - repousa na efetividade de seus comandos o que,
conseqüentemente, lança uma reflexão sobre a questão da legitimidade do poder estatal.
Satisfeitas as obrigações constitucionais, ou mesmo, empenhando-se para a realização das
mesmas, o Estado legitima o exercício de seu poder e, conseqüentemente, também legitima e
torna justa a aplicação do jus puniendi a qualquer dos indivíduos. A legitimidade, neste caso,
é questionada acerca do exercício de poder do Estado. Não se discute a questão da
legitimidade do poder do Estado – no caso, do jus puniendi – em sua origem, o que é pacífico;
mas esta legitimidade pode se perder em decorrência das práticas ou omissões do Estado que
violam o conteúdo material e valorativo da Constituição. Destarte, o poder legítimo, neste
caso, é aquele exercido de forma justa, no compasso dos princípios e diretrizes constitucionais
e nos moldes das obrigações constitucionais.
Palavras-chave: legitimidade. direito de punir. obrigações constitucionais. Estado. Democracia.
SILVESTRE, Juliana Queiroz. La legitimità del Diritto di punire in decorrenzia del non
òbblighi costituzionali per lo Stato. 2008.134 foglie. Dissertazione (Maestria in Diritto) -
Facoltà di Storia, Diritto ed Servizio Sociale, Università Statale Paulista "Julio de Mesquita
Filho", Franca, 2008.
RIASSUNTO
Una delle più distacata funzioni dello stato è il esercizio del controlo sociale. Per tanto, il jus
puniendi, intentuto come una particella del potere dello stato attua come strumento di tale
controlo ed costitue uno dei pestari dell’equilibrio dello Stato Democràtico di Diritto. Questo
perchè il Diritto Penale pote essere considerato come il diritto che fà attuare in ùltima istanza
nelle relazioni; o sarai, dianzi di punire qualùnque trasgressore del Ordinamento Giuridico; lo
stato, per l’altri mezzi, giuridici ed politici, debbe zelare per la prevenzione di deliti. In
conclusione giurdici, lo stato, come persona giuridica, anche questo sottomesso al principio
della legalità (art.5, inciso II, CF) nella quale appena la norma legale – principi ed regre è
capace da esigere determinata condota di persone che restano ristretto alla sua osservancia e
complimento. Una vece adottato il modelo Democratico di Diritto (CF, art 1º - caput) nostro
stato, oltre da rispettare la legalità – il “freno” dello suo dominio – debbe attuare
legitimamente nella sfera sociale, nei tagli stabiliti per la Costituizione Federale. Così, il
articolo 3º del testo costituzionale stabili quali i oggetivi fondomentali della Repubblica
Federativa del Brasile, a quali sono costituire una società libera, giusta ed solidaria; garantire
il svolgimento sociale; sradicare la povertà e la marginalizazione, ridotto le desiguaglianza e
promovere il bene di tutti, senza qualùnque preconcetti. Codesta forma, nel piano politico, lo
stato, per attingere suoi oggetivi debbe soddisfare le obbligazioni costituzionali che il potere
costituinte dispone nel Capìtolo I del Tìtolo II, entitolato “Dei Diritti ed Doveri Individuali ed
Coletivi” – ricordando che i debberi statali in questo non si esaureno, permanecendo
diffondite in tutto il testo costituzionale. Queste obbligazioni o debberi constitueno una
struttura, sendo ogni intersezione di questa corrispondente a uno principi constituzionale che
legga ed vincola tutte l’oltre norme alla sua osservanza. Potteremo dire, così che il
fondamento dei debberi constituzionali si fà sedere nei principi che, per la sua vece, si
incontrano nel più alto pianerottolo del congiunto delle norme giuridiche. I principi
costituzionali hanno il privilegio di attare quali le “regre del gioco”, o debbe essere veicolare
il modus operandi dello Stato Democratico. Pertanto, i principi sono norme giuridiche capaci
a produrreno efetti (applicazione immediata) nella sfera sociale, oltre occupareno la più alta
gerarchia delle leggi. Il problema delle obbligazioni costituzionali – norme programatiche –
ripousa nella efetività di suoi comandi o che, consequentemente, getta una reflessione sopra
la questione di legitimità del potere statale. Soddisfate le obbligazioni costituzionali, o
medesimo impegnandosi per la effetuazione delle stessa cose, il stato legìttimo il esercizio
dello suo potere e consequentemente, anche legittima e volge l’applicazioni del jus puniendi a
qualùnque degl’individui. La legitimità in questo caso, è questionato intorno dell”esercizio
del potere dello stato. Non si discutere la questione della legitimità del potere – nel caso, del
jus puniendi – in sua origine, che è pacìfico; ma questa legitimità pote si perdere in
decorrenza delle pratiche o ommessioni dello stato violano il contenuto materiale ed
valorativo della costituzione. Così, il potere legittimo , in questo caso, è quello esercizio di
forma giusta, nel compasso dei principi e direttrice constituzionali e nei moldi delle
obbligazioni costitucionali.
Parole chiave: Legimità. Diritto di punire. Obbligazioni constituzionali. Stato. Democrazia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1 Origem e formação do Estado......................................................................................... 15
1.2 Evolução histórica............................................................................................................ 17
1.3 Conceito.............................................................................................................................19
1.4 Finalidade......................................................................................................................... 20
1.5 O Estado e o poder........................................................................................................... 22
1.6 Origens do Estado Democrático..................................................................................... 26
1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional.................................................................... 29
1.8 Estado Democrático de Direito....................................................................................... 31
1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito............................................................... 32
CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
2.1 Os princípios fundamentais – conceitos......................................................................... 34
2.2 Normatividade e evolução dos princípios...................................................................... 37
2.3 Princípios, normas e regras............................................................................................. 38
2.4 Importância dos princípios e sua superioridade em relação às regras ...................... 41
2.5 Natureza e características dos princípios constitucionais ........................................... 43
2.6 Tipologia dos princípios .................................................................................................. 46
2.7 Princípios na Constituição de 1988 ................................................................................ 47
2.8 Interpretação dos princípios constitucionais ................................................................ 50
2.9 O Direito Natural e os princípios constitucionais ........................................................ 52
2.10 A atuação prática dos princípios constitucionais ....................................................... 54
CAPÍTULO 3 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS
3.1 Considerações preliminares ........................................................................................... 58
3.2 Conceito e fundamentos .................................................................................................. 59
3.3 Antecedentes dos deveres fundamentais ....................................................................... 61
3.4 Deveres nas Constituições brasileiras ........................................................................... 64
3.5 Deveres na Constituição de 1988 ................................................................................... 65
3.6 Tipologia, titulares e destinatários das obrigações constitucionais............................. 67
3.7 Relação entre obrigações constitucionais e direitos fundamentais.............................. 68
3.8 Relação entre obrigações constitucionais e princípios constitucionais....................... 69
3.9 Eficácia e aplicabilidade dos deveres fundamentais..................................................... 70
CAPÍTULO 4 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO
4.1 A vida humana em sociedade: origens do delito e da pena ......................................... 72
4.2 Evolução do jus puniendi e do Estado ........................................................................... 73
4.2.1 Período da vingança privada ......................................................................................... 74
4.2.2 Período da vingança divina ........................................................................................... 75
4.2.3 Período da vingança pública.......................................................................................... 76
4.2.4 Período Humanitário ..................................................................................................... 79
4.2.5 Período Criminológico................................................................................................... 81
4.2.6 Período Contemporâneo ................................................................................................ 82
4.3 Fundamentos do Direito de Punir ................................................................................. 84
4.4 O Direito de punir no Estado Democrático de Direito ................................................ 88
CAPÍTULO 5 LEGITIMIDADE
5.1 Antecedentes históricos ................................................................................................... 93
5.2 Conceitos de legitimidade ............................................................................................... 97
5.3 Legitimidade e legalidade ............................................................................................. 101
5.4 Teoria da racionalidade progressiva de Max Weber ................................................. 105
5.4.1 Dominação legal-racional.............................................................................................106
5.4.2 Dominação tradicional..................................................................................................107
5.4.3 Dominação carismática.................................................................................................107
5.5 Legitimação pelo procedimento de Niklas Lumhann ................................................ 108
5.6 Legitimidade em Habermas ......................................................................................... 111
5.7 Legitimidade e Constituição Dirigente para Canotilho ............................................. 113
5.8 Legitimidade centrífuga.................................................................................................116
5.9 Ética e Legitimidade ..................................................................................................... 119
5.10 Legitimidade e Justiça .................................................................................................121
5.11 Legitimidade e Direito de Punir .................................................................................124
CONCLUSÃO.......................................................................................................................128
REFERÊNCIAS....................................................................................................................130
INTRODUÇÃO
A questão do primado da Constituição como norma fundamental do Estado,
garantindo aos indivíduos direitos fundamentais, tem suas raízes no século XVIII e XIX,
junto à consolidação dos regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós-
revolucionários. A idéia inicial foi desafiar os poderes dos monarcas, limitando-os, na medida
em que estes foram reduzidos à categoria de órgão do Estado; em contrapartida, sobreveio a
soberania popular que concedeu importância ao povo, agora figurando como um dos
elementos do Estado. Embora liberais, as Constituições não eram, ainda, democráticas.
O Estado Democrático moderno nasceu, destarte, das lutas contra o absolutismo,
sobretudo através do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande
influência jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais
perante a lei e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a
conservação de direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a
propriedade e a segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou
indiretamente, da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao
Direito, tornou-se, também, sujeito de direitos e deveres.
No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a elencar os direitos sociais ou de
segunda geração, tendo como fonte inspiradora a Constituição da Alemanha de Weimar de
1919. Passados alguns anos de autoritarismo e ditadura, sobreveio a Constituição Federal de
1988, prolixa e analítica, não hesitando ao prever todos os direitos e deveres individuais e
coletivos, além de estabelecer metas a serem alcançadas pelo Governo. Neste estágio, a
Constituição passou a ser um instrumento de governo, uma vez que confere legitimidade ao
poder estatal, limitando-o e submetendo-o à observância e cumprimento dos comandos
constitucionais.
Assim, a atual Constituição do Brasil, ao subdividir o Título II (Dos Direitos e
Garantias Individuais), nomeou o Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.
Cabe ao Estado, portanto, o dever constitucional de respeitar tais direitos. Porém, não há,
neste Título, qualquer dever discriminado, entendendo grande parte dos doutrinadores que se
encontram esparsos e implícitos na totalidade do Texto Constitucional.
A esses deveres inseridos, pois, no texto constitucional, alguns doutrinadores
chamam “deveres fundamentais” e, outros, de “obrigações constitucionais”. Podemos dizer
que as obrigações constitucionais constituem uma categoria especial de deveres jurídicos, em
que o Estado, respeitando a dignidade humana (um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil, segundo o artigo 1°, III), atua com as finalidades primordiais de tutela da Ordem
Pública e de realização do bem comum.
O fundamento de validade das obrigações constitucionais se encontra nos
princípios constitucionais, petrificados pela Constituição Federal (art. 60, § 4°, IV), jamais
podendo ser suprimidos. Disto decorre que o não cumprimento de quaisquer das obrigações
constitucionais implica na violação de um princípio constitucional por parte do Estado. Surge
para o Estado, destarte, o dever como imperativo ético de cumpri-las, providenciando as
condições materiais de aplicabilidade.
Somente através de leis lato sensu, devidamente elaboradas de acordo com
processo legislativo previsto pela Constituição, podem ser criadas obrigações para o indivíduo
e para o Estado, pois aquelas são expressão da vontade geral do povo. A Constituição Federal,
uma vez positivada, é a força motriz do Estado, contendo todas as suas diretrizes políticas,
econômicas e sociais. A “arte de governar” deve ser inspirada em princípios éticos, mas,
sobretudo, não pode o Estado abandonar as regras racionais que lhe são próprias, colocando
em risco o princípio da segurança jurídica.
Ao conceder esses direitos aos indivíduos, a Constituição confere deveres aos
Poderes Públicos, compondo, pois, uma relação obrigacional; o Estado (sujeito passivo) se
propôs a fazer ou não fazer qualquer coisa (viabilizar o acesso à educação, trabalho, moradia,
dentre outros) em favor da população (sujeito ativo). O inadimplemento do Estado implicaria
na reparação do prejuízo que causara aos indivíduos da sociedade. Qual seria a
responsabilidade do Estado inadimplente?
O Estado brasileiro apresenta atualmente problemas de adequação das normas
constitucionais às reais necessidades de seus cidadãos, gerando a sensação de ineficácia do
texto constitucional. Ocorre que os textos constitucionais devem ser a expressão da vontade e
dos ideais do povo, revelando a identidade constitucional destes sujeitos e devendo, portanto,
ter sua participação direta quando de sua elaboração. Tal fato repercute gravemente em
questões como legitimidade do poder, sua representatividade e eficácia da norma
constitucional.
A observação das realidades sociais, culturais e econômicas denuncia as
condições de sobrevivência oferecidas pelo Estado aos cidadãos. Neste caso, “cidadão” não
seria o termo correto, mas sim, súditos, desprovidos, parcialmente, de liberdade e de direitos.
Um Estado que primasse pelo cumprimento das obrigações constitucionais proporcionaria a
todos, igualmente, condições para o pleno desenvolvimento social, cultural e espiritual.
Assim, o poder de punição do Estado surge como uma das mais destacadas
funções do Direito, qual seja, o exercício do controle social e a defesa da sociedade. No caso
de um Estado Democrático de Direito, pressupõe-se um controle limitado à estrita
observância à legalidade constitucional, voltado à preservação da sociedade. A segurança é,
pois, um dos princípios constitucionais presentes no caput do artigo 5° do Texto
Constitucional, ao lado da vida, liberdade, igualdade e propriedade. São princípios que, além
de invioláveis, devem ser garantidos pelo Estado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País.
É assim que o jus puniendi, no entanto, só pode ser exercido se respeitadas certas
limitações constitucionais, legais e dogmáticas dentro do Estado Democrático de Direito, tais
como os princípios da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade da lei mais severa,
dentre outros. Este direito de punir, no entanto, gera uma obrigação para o Estado que, diante
de uma infração de natureza criminal, tem um dever de punir em nome da preservação da
sociedade. O dever de punir encontra seu fundamento na própria Constituição, que submete
todos (princípio da isonomia), inclusive os Poderes Públicos, à observância da lei (princípio
da legalidade). Assim, o fato de os indivíduos possuírem direitos fundamentais gera um dever
para o Estado de torná-los concretos. Numa visão utilitarista, como a Constituição resguarda
os direitos individuais (que exprime uma ética de intenção), cabe ao Estado a voluntariedade
de materializá-los (ética de ação), sob “pena” de o Estado perder o direito de exigir a
contraprestação social. Assim, o Estado só terá o poder – de fato - de punir quando cumprir
suas obrigações constitucionais. Embora um tanto radical esta visão, esbanja precisão quanto
à razão pela qual o Estado deve cumprir seus deveres.
Finalmente, a análise destes conceitos e institutos permitirá maior segurança para
a elaboração de uma conclusão crítica sobre o tema. Para que o direito de punir do Estado seja
legítimo, deve ser exercido de maneira justa. Um real Estado Democrático de Direito não é
compatível com um direito de punir apenas fundado na legalidade. Ele deve ser legal e
legítimo, sob o risco de esconder face autoritária do mesmo.
O “problema” das obrigações constitucionais – normas programáticas de eficácia
limitada - é que não possuem conteúdo totalmente concretizado na Constituição, carecendo de
legislação infraconstitucional, no sentido de não serem diretamente aplicáveis. É o que
demonstra a realidade social, cindida por contrastes desafiadores dos princípios fundamentais
que deveriam orientá-la. Dessa forma, a questão da legitimidade será analisada não sob o
aspecto jurídico, mas sob a ótica sócio-política, como pretendem algumas vertentes
sociológicas, especialmente as propostas por Max Weber, Niklas Luhmann, Habermas, além
de Canotilho e outros mencionados.
15
CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1.1. Origem e formação do Estado
O homem, consideradas as suas qualidades sui generis, sejam a racionalidade e a
produção cultural, que lhe proporcionam a capacidade de transformar o meio ambiente de
acordo com seus interesses, é um ser fadado ao relacionamento. A idéia de associação está
diretamente ligada a um interesse, ou à consecução de um fim que apenas a cooperação entre
homens é capaz de viabilizar. Um animal selvagem, por exemplo, desprovido daquelas, não
possui alternativas, senão a de se adaptar ao meio, rendendo-se às condições que este lhe
impõe. Como bem observou Giorgio Del Vecchio
1
:
A sociedade é um fato natural determinado pela necessidade que o homem tem de
viver com os seus semelhantes. O homem, para viver isolado, fora da sociedade,
deveria ser (consoante escreveu Aristóteles) – um bruto ou um Deus – ou seja:
qualquer coisa menor ou qualquer coisa maior que o homem. Mas, dada a sua
natureza, outro remédio não tem senão o de se associar, de pertencer a uma
sociedade.
Destarte, ao se observar os tempos remotos – e nem há a necessidade de se voltar
tanto na História – não se pode afastar a existência de uma força centrípeta que diminui e
reforça, paulatinamente, os laços existentes entre os seres humanos. Nos primórdios dos
agrupamentos humanos não havia, ainda, qualquer tipo de organização e muito distantes
estavam do que se conhece por civilização. Porém, a experiência do convívio social se
encarregou em despertar e promover a evolução de tais agrupamentos que, cada vez mais
organizados, culminaria, num longo período de aprendizado dos homens, no que conhecemos
como Estado de Direito e, num grau de desenvolvimento ainda maior, no Estado Democrático
de Direito.
Falar sobre a origem e formação do Estado implica em uma polêmica discussão
doutrinária que rendeu inúmeras teorias, não cabendo neste trabalho, a apresentação de todas,
apenas daquelas que exerceram maior influência sobre o pensamento político das épocas que
se seguiram.
Sob o ponto de vista da época em que o Estado surgiu, são três as posições, a
saber:
1
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia de direito. Tradução de Antônio José Brandão. 4. ed. Coimbra:
Armênio Amado, 1972. v. 2. p. 217 (destaque do autor).
16
a) A primeira acredita que o Estado sempre existiu concomitante à sociedade.
Nesta posição destacam-se Eduard Meyer e Wilhelm Koppers, que consideram
o Estado como elemento universal na organização humana
2
.
b) A segunda vertente entende o surgimento do Estado para atender aos anseios
dos grupos sociais, sendo, portanto, posterior a estes. Não surgiu, ao mesmo
tempo, em todos os lugares, mas em cada um, dependendo das suas condições.
c) A terceira posição acredita na existência do Estado a partir de características
bem definidas. Carl Schmidt acredita se tratar de um conceito histórico
concreto, a partir da idéia e da prática da soberania no século XVII. Também
compartilham destas idéias Kelsen, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira
3
.
Quando se fala em causas do aparecimento do Estado, duas vertentes devem ser
levadas em consideração: uma que procura explicar a formação originária do Estado; e outra
que justifica a formação derivada do mesmo.
Quanto à formação originária, são duas as teorias, a saber: aquelas que afirmam a
formação natural ou espontânea do Estado, tendo em comum a afirmação de que o Estado se
estabeleceu naturalmente, por um ato voluntário; e outras que sustentam a formação
contratual do mesmo, a partir de um ato volitivo dos homens. As teorias que sustentam a
formação natural, segundo Dallari
4
, podem ser agrupadas pelos seguintes critérios:
a) Origem familiar ou patriarcal: o Estado sendo uma extensão da entidade
familiar, tendo como principal representante Robert Filmer.
b) Origem em atos de força, violência e conquista: o Estado como conseqüência
da dominação dos mais fracos pelos mais fortes; Oppenheimer é o principal
representante.
d) Origem em causas econômicas: o Estado como um produto da sociedade
quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento, segundo Marx
e Engels, dentre outros.
e) Origem no desenvolvimento interno da sociedade: o desenvolvimento
espontâneo da sociedade origina o Estado, não havendo a influência de fatores
externos à sociedade, como interesses dos indivíduos; representada por Robert
Lowie.
2
CARVALHO JUNIOR, Clóvis. As origens do Estado. 1988. 393 f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de
História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 1988. v. 1.
p. 35.
3
NOGUEIRA, José Carlos Ataliba. Lições de teoria geral do estado. 1969. p. 46-47 apud DALLARI, Dalmo de
Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 44.
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 46-47.
17
As diversas vertentes do contratualismo – Rousseau, Hobbes, Locke e Grócio -,
apesar das diferenças no tocante à natureza humana, pressupõem certo grau de liberdade
imanente aos homens; assim, por manifesta vontade destes em prol da necessidade de
harmonia social, segurança e possibilidade de realização de interesses – sem a sobreposição
de alguns em detrimento de outros -, optam pelo contrato social como garantia de uma vida
pacífica e não hostil.
Quanto aos processos derivados, a formação do Estado pode ocorrer através do
fracionamento ou pela união de Estados. Tem-se o fracionamento quando uma parte se
desmembra do território estatal passando a constituir outro. A união reúne vários Estados que
se vinculam pela adoção de uma Constituição comum.
1.2 Evolução histórica
O estudo da evolução do Estado procura fixar as formas fundamentais que o
mesmo tem adotado através os séculos. Busca a tipificação do Estado, a descoberta de
movimentos constantes e a formulação de probabilidades quanto à sua futura evolução.
Para se conceber o Estado tal qual se apresenta hodiernamente, a Doutrina, em
geral, percorre dois caminhos: o primeiro pretende alcançar o momento de seu aparecimento,
e o segundo investiga as causas de surgimento do mesmo. Por fim, a Doutrina se preocupa,
ainda, com o estudo dos tipos de Estado, ou seja, com a questão da formação de Estados a
partir de outros preexistentes.
Quanto à época, de modo geral, “pode-se dizer que do século XVI em diante o
termo Estado vai aos poucos tendo entrada na terminologia política dos povos ocidentais”.
5
Mas é Maquiavel
6
, especificamente em ocasião de sua obra “O Príncipe”, que data de 1513,
que utilizou o termo associado à sociedade política.
Para efeitos didáticos, estuda-se o tema dentro de uma sucessão cronológica,
justamente para uma melhor compreensão do Estado contemporâneo. É possível, dessa forma,
distinguir os tipos de Estado, ao qual se dedicou Jellinek
7
como uma de suas maiores
contribuições à Teoria Geral do Estado. Seguindo suas lições, cronologicamente, o Estado
percorreu as seguintes fases:
5
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 17. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. p. 7.
6
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 6. ed. São Paulo: Martins Claret, 2008. passim.
7
JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros,
1954. p. 24.
18
a) Estado Antigo: também conhecido como Estado Teocrático ou Oriental; refere-
se à forma mais antiga de Estado, caracterizado, principalmente pela natureza
unitária e pela religiosidade. A autoridade dos governantes, assim como as
normas de comportamento, tinha amparo num poder divino.
b) Estado Grego: apesar de não empregarem o vocábulo “estado”, possuíam
organismos similares embebidos de teor político, tal qual se apresentam os
Estados Modernos, como se vê verá adiante.
c) Estado Romano: como na polis grega, o Estado era governado pelo povo, um
termo ainda restrito e limitado segundo as modernas orientações. Os
governantes supremos eram os magistrados pertencentes às famílias patrícias.
Assim, a família é o elemento base de sua organização. O advento do Império
Romano e sua grandiosidade empreenderam a integração jurídica dos povos
conquistados, ao passo que novas camadas sociais surgiam e adquiriam
direitos, sem, no entanto, desintegrar o núcleo da organização política.
d) Estado Medieval: foi marcado pelo cristianismo, pelas invasões bárbaras e pelo
sistema feudal. A luta empenhada pela Igreja em expandir o Império cristão foi
responsável pela universalização dos ideais de igualdade, de amor ao próximo,
bem como o esforço que se empreendeu em recuperar a unidade política. Neste
sentido foi a atitude do papa Leão III ao conferir a Carlos Magno, no ano de
800, o título de Imperador, que acabou fracassando perante o imenso e
complexo Império nos últimos séculos da Idade Média. Esta condição gerou
uma enorme necessidade de restabelecimento da ordem e da autoridade, donde
surge o Estado Moderno.
e) Estado Moderno: nasceu da frustrada tentativa de unidade do Estado Medieval,
somada, dentre outros fatores, à intolerância dos senhores feudais à alta
tributação dos monarcas e ao constante estado de guerra. Buscou-se, então, a
unidade territorial, sob os ditames de um poder soberano, aspiração
documentada pelos tratados de paz de Westfália, que anunciaram o Estado
Moderno. Tais tratados, que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, são
apontados pela Doutrina, como o marco da Diplomacia Moderna, donde foi
reconhecida, pela primeira vez, a soberania dos Estados envolvidos.
19
1.3 Conceito
O termo “Estado” deriva do latim status, que quer dizer “estar firme”. De
imediato, pois, pode-se atribuir ao mesmo dois caracteres intrínsecos: o de permanência e o de
rigidez. Vários são os conceitos encontrados na Doutrina, sendo que cada um reflete o
momento histórico e a ideologia política reinante da época. Destarte, a conceituação do
Estado parece tarefa difícil e corre o risco de limitações e mesmo de interpretações adversas.
Assim, para os gregos, o Estado limitava-se ao continente da polis. Preleciona
Azambuja
8
, que os romanos utilizavam o termo status republicae para designar a situação, a
ordem permanente da coisa pública, dos negócios do Estado. Talvez o desuso do segundo
termo pelos autores medievais condicionou a utilização de Status com a significação moderna.
Continua o mesmo autor que, posteriormente, na linguagem política e nos documentos
públicos, o termo foi utilizado para representar as três classes que formavam a população dos
países europeus: a nobreza, o clero e o povo. É no século XVI que o termo passa a ser
utilizado pelos povos ocidentais.
As diversas teorias acerca do conceito de Estado podem ser divididas em três
grupos; são eles: os conceitos filosófico, sociológico e jurídico, enumerados por Paulo
Bonavides.
9
Filosoficamente, Hegel definiu o Estado como a realidade da idéia moral, a
substância ética consciente em si mesma, e manifestação da divindade; considerado
dialeticamente como instituição mais alta, conciliando as contradições da Família e da
Sociedade.
O conceito sociológico ou político não descarta a natureza jurídica do Estado, mas
consideram-no, sobretudo, um poder em si. Neste sentido, Duguit
10
considera o Estado como
“a força material irresistível” sendo, atualmente, limitada e regulada pelo Direito. Também
Max Weber chama o Estado de comunidade humana dentro de um determinado território que
reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monopólio da violência legítima.
Da mesma forma, as teorias jurídicas não eliminam a presença do elemento força
do conceito de Estado. Porém, o Estado passa a ser visto como pessoa jurídica, sendo que seu
funcionamento é subordinado a regras jurídicas. É assim que Jellineck
11
elaborou a noção de
Estado como a “corporação territorial dotado de um poder de mando originário”. Também
8
AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 12. ed. São Paulo: Globo, 1999. p. 28-29.
9
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 62-66.
10
DUGUIT, Leon. Traite de droit constitutionnel. 3. ed. Paris: E. de Boccard, 1927. p. 93.
11
JELLINECK, 1954, op. cit.,
p
. 103.
20
Kelsen
12
fixa uma noção genuinamente jurídica de Estado, como a ordem coativa normativa
da conduta humana.
De todo o exposto, o Estado deve ser conceituado envolvendo suas dimensões
política e jurídica; assim, pode ser considerado como a sociedade jurídica e politicamente
organizada para atender ao bem comum. Pode, destarte, ser considerado como a forma mais
perfeita de organização social, produto da evolução e da cultura; tanto que sua composição,
dessa forma, pode ser observada como uma tendência universal: a perfeita síntese de uma
orientação genérica, ordinária, evolutiva e cultural, responsável por sedimentar os laços da
convivência humana.
1.4 Finalidade
O estudo acerca da finalidade do Estado é de grande importância prática, dado que
é através da consciência desta que se pode fazer um julgamento sobre a presente atuação
estatal ou verificar em qual medida o Estado atende ou não seus propósitos. É necessário, para
tanto, que as finalidades estatais coincidam com o desempenho de suas funções. Neste
sentido, como se verá no capítulo V, a legitimidade de todos os atos do Estado depende de sua
adequação às finalidades. Mas quais seriam exatamente estas finalidades?
Alguns autores consideram o Estado um fim em si mesmo, sendo o homem, um
instrumento do qual se serve o Estado para a realização de sua grandeza. De modo contrário,
há aqueles que sustentam o Estado como instrumento do homem para a realização da paz
social e da justiça; estas seriam, pois, as finalidades daquele. Esta é a posição de Ataliba
Nogueira e Azambuja, segundo a qual: “O Estado é um dos meios pelo qual o homem realiza
o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a existência do
Estado”.
13
Outra posição, um tanto reducionista, seria a de Kelsen
14
, dentre outros, que
atribui a discussão das finalidades do Estado ao campo da Política, não devendo a Teoria
Geral se ocupar de questões alheias ao campo técnico-jurídico.
Aristóteles entende que o Estado, como criação da natureza, tem a finalidade de
viabilizar a consecução da felicidade humana, tornando possível a completa realização de
todas as capacidades do homem. O fim do Estado é, pois, assegurar ao homem o exercício de
12
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 63.
13
AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114.
14
KELSEN, op. cit., p. 41.
21
todos os direitos fundamentais, viabilizando sua felicidade. Essas faculdades só poderão ser
plenamente desenvolvidas vivendo no seio de uma comunidade (cidade-estado). Logo, faz
parte da natureza humana viver na cidade-estado.
Enquanto Hobbes afirma que os homens devem renunciar aos seus direitos
existentes no estado de natureza, Locke
15
afasta tal possibilidade, uma vez que contraria os
objetivos do contrato social:
Nenhum homem ou sociedade tem o poder de renunciar à própria preservação, e,
portanto, aos meios de fazê-lo em favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de
alguém, e sempre que houver a tentativa de reduzi-los a tal situação de escravidão,
terão direito de preservar aquilo que não tinham, o poder de alienar, e de livrar-se
dos que violam a lei fundamental [...].
O estimado professor Clóvis Carvalho Júnior
16
, ao considerar o Estado como fruto
de um processo da evolução natural, subordinado às causas econômicas e culturais, bem
sintetizou suas finalidades: “Conceitos como desenvolvimento da personalidade, satisfação
das necessidades mínimas, segurança e busca da felicidade estão incluídos de maneira natural
nas finalidades do Estado.”
A noção de bem público é pertinente nesta discussão sobre a finalidade estatal
justamente por demonstrar a existência de parcelas de fruição comum
17
. Citando novamente
Darcy Azambuja
18
, a maioria dos autores confunde os conceitos de “fim” e de “competência”
do Estado, chegando muitos a afirmarem a impossibilidade de determinação dos fins estatais
devido à variabilidade dos mesmos. Porém, o mesmo autor adverte que os fins são os bens
públicos, que são invariáveis; variáveis seriam os meios empregados para a consecução dos
mesmos. Os bens públicos formam um conjunto de meios que visam o aperfeiçoamento de
determinada sociedade, tendo em vista a satisfação das necessidades de seus membros.
A realização do bem-público, assim, origina uma série de deveres e obrigações,
que devem ser claramente definidos como expressão da consciência social. Codificam-se,
pois, os direitos individuais e sociais. Os primeiros constituem obrigações negativas do
Estado, ou seja, o que ele não pode fazer para embaraçar o desenvolvimento do indivíduo. Os
direitos sociais geram obrigações positivas ao Estado e ao indivíduo; define quais as
15
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004.
p. 109.
16
CARVALHO JUNIOR, op. cit., p. 102.
17
Por bem público pode-se entender, em sentido amplo, a parcela de bens destinados direta ou indiretamente à
utilização do povo, ou em benefício deste, embora sua titularidade pertença à União, aos Estados, ao Distrito
Federal ou aos Municípios, ou a suas autarquias ou a suas fundações de direito público.
18
AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114.
22
providências que deve tomar o Estado para que o indivíduo coopere de modo eficaz para a
realização do bem público. Na visão de Azambuja
19
:
Segurança e progresso, eis uma síntese do bem comum. [...] O Estado não cria a
prosperidade material, a Arte, a Ciência, A Moral, o Direito, que são criações da
alma humana, e por isso não tem poder direto sobre ela. Seu domínio é o temporal, o
equilíbrio e a harmonização da atividade do homem, para que a liberdade de um não
prejudique a igual liberdade dos outros.
Surge, pois, um desafio frente aos Estados Modernos Democráticos: a realização
dos bens públicos por meio do cumprimento de suas obrigações para com a sociedade do qual
faz parte. O conjunto dessas obrigações a serem realizadas pelo Estado é o que Azambuja
20
entende por competência do mesmo, ou seja, deveres de exclusiva atribuição do Estado. A
tendência dos Estados Modernos é alargar cada vez mais tais suas atribuições, gerando uma
hipertrofia estatal. Não basta, todavia, alargar cada vez mais o plano de atuação e interferência
estatal ao ponto de provocar sua ineficácia. Aliás, diga-se que o Estado – em especial o
Brasileiro – já está obrigado sob a égide da Carta Constitucional de 1988 em que o Poder
Constituinte Originário não titubeou na sua redação prolixa, pormenorizada exaustivamente e,
ainda, inesgotável, de forma a não deixar escapar as previsões fundamentais de um Estado.
Impõe-se, diante de expressa previsão da Carta Maior, a realização material das suas
finalidades.
1.5 O Estado e o poder
Estabelecido o critério para definição da finalidade estatal, resta saber qual a
necessidade de manutenção do elemento aglutinador por excelência dos agrupamentos
humanos: o poder. Como um elemento impositivo, limitador das liberdades humanas é capaz
de preservar um Estado de modelo democrático e, ainda, preservar ou não ameaçar sua
legitimidade?
Este elemento é de alta relevância para o presente trabalho, uma vez que será
questionado ao longo do mesmo no tocante à legitimidade do poder de punir do Estado. A
legitimidade, no entanto, será dissecada ao final deste, donde serão analisadas as definições
dos mais expressivos autores sobre este tema. Portanto, neste ponto, importante é o
adiantamento de que o referido termo será entendido, previamente, como uma qualidade do
19
AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 119.
20
Ibid., p. 123.
23
poder, que deve ser avaliada não apenas na sua aquisição, mas também no seu exercício.
Assim, não basta um título obtido de maneira justa para que seja legítimo; da mesma forma, é
necessário que o mesmo seja exercido de maneira justa.
A maioria dos autores que têm se encarregado do estudo deste tema reconhece-o
como imprescindível à vida da sociedade. Muitos chegam a afirmar que ele sempre existiu,
mesmo nos agrupamentos mais primitivos. A observação dos comportamentos das mais
diversas sociedades revela que mesmo as mais desenvolvidas e organizadas apresentam
dissidência dos membros, conflitos de interesses que não dispensam o poder como elemento
mantenedor do corpo social.
As manifestações mais primitivas de poder foram caracterizadas pelo aspecto
material da força, que definia quais os chefes dos grupos, os mais fortes e preparados para a
condução e defesa do grupo das ameaças externas. Outro critério utilizado em tempos remotos
foi o sobrenatural: quando muitos acontecimentos não poderiam ser desvendados pela força
física, confiava-se o poder a uma entidade sobre-humana. Esta prática era verificada na
Antigüidade greco-romana, entre os antigos povos do Oriente e no mundo Ocidental, já no
século XVIII, com a influência do cristianismo e a crença no poder divino dos reis.
O poder, com o passar dos anos, passou a contar com variadas características
definidoras de sua legitimidade, desvinculando-se da força como elemento constitutivo. O
poder poderia se utilizar da força, mas jamais se confundir com a mesma. No século XIX, a
positivação do Direito estava vinculada a um poder, o que aproximou e fez coincidir o poder
jurídico com o poder legítimo. Direito e poder passaram a caminhar paralelamente, sem serem
confundidos, porém, vistos sob uma relação de complementaridade.
Assim, o Direito recebeu os aliados para sua existência e veracidade: a legalidade
e a legitimidade. A legalidade vem a ser um princípio de Direito que submete os Estados ao
império de suas leis. Quanto à legitimidade, várias são as teorias que se ocupam desta
qualidade intrínseca ao Estado Democrático, termo que, posteriormente, será estudado com
mais minúcias. Por enquanto, de modo singelo, pode-se associá-la à idéia de consentimento
da maioria e de justiça quanto aos procedimentos, ou seja, não basta obediência às leis: é
necessário que expressem uma vontade geral e que sejam efetivas na sociedade.
Duas são as correntes que pretendem caracterizar o poder. A primeira classifica-o
como poder político e a segunda, como poder jurídico.
O poder político manifesta-se na ação do Estado e destina-se à organização dos
indivíduos; o Estado atua, pois, como representante e guardião da vontade coletiva, sejam nas
24
suas funções legislativa, executiva e judiciária. Berloffa
21
acrescenta que através do poder
político “permite-se, ainda, a manutenção das ideologias de organização e atuação do Estado,
ao viabilizar, nas democracias, a existência da dissidência partidária em oposição à forma de
atuação do Governo existente.”
O poder jurídico, que tem Kelsen como eminente representante, significa a
vinculação do Estado ao Direito. É através deste poder que o Estado poderá agir de forma
legítima no exercício do poder político, conduzindo a máquina administrativa pública de
acordo com as normas de gestão e de condução da democracia. A soberania é expressão
máxima do Poder Jurídico, calcada na dominação sobre todos os demais poderes. É
característico do poder do Estado organizar a nação e fazer valer em seu território a totalidade
de suas decisões, nos limites e fins éticos de convivência.
22
De acordo com Miguel Reale
23
, a organização pressupõe um poder e um direito,
concluindo que não há poder, portanto, que não seja jurídico. Mas isto não significa que o
poder esteja totalmente situado no âmbito do Direito. O mesmo autor fala sobre uma
graduação de juridicidade; assim, mesmo que o poder se apresente com aparência de mero
poder político, procurando ser eficaz na consecução de objetivos sociais, sem preocupação
com o Direito, ele já participa, ainda que em grau mínimo, da natureza jurídica. Mesmo
quando o poder atinge o grau máximo de juridicidade, tendo reconhecida sua legitimidade, ele
continuará a ser da mesma forma, poder político, capaz de agir com plena eficácia e
independência para a consecução de objetivos não jurídicos.
Diversamente, relevante é classificação de Norberto Bobbio, que enumera três
formas de poder: econômico, ideológico e político. O poder econômico se materializa na
posse de certos bens, por exemplo, os meios de produção, indispensáveis em períodos de
escassez, induzindo os que não os detêm a adotar certa conduta, como a de prestação de um
serviço útil nas condições determinadas pelo detentor dos mesmos. O poder ideológico se
identifica na detenção de conhecimentos, informações, códigos de conduta ou doutrinas
capazes de influenciar comportamentos dos indivíduos num processo de socialização. Por fim,
o poder político – desde sempre considerado o sumo poder -, utiliza-se da força como meio
específico, tendo em vista que todo grupo social dele imprescinde para se proteger de ataques
externos ou para impedir a própria desagregação interna.
21
BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas.
Campinas, SP: Bookseller, 2004. p. 290.
22
Ibid., p. 291.
23
REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. São Paulo: Martins, 1990. p. 106-107.
25
O que se tem em comum entre estas três formas de poder é que elas contribuem
conjuntamente para instituir e para manter sociedades de desiguais divididas entre
fortes e fracos com base no poder político, em ricos e pobres com base no poder
econômico, em sábios e ignorantes com base no poder ideológico. Genericamente,
entre superiores e inferiores.
24
Para Hannah Arendt, poder é a aptidão humana para agir em conjunto, daí a
importância decisiva do direito de associação para uma comunidade política, pois é a
associação que gera o poder do qual se valem os governantes. O poder, dessa forma, não se
confunde com a força; do contrário, sempre resulta de um agir em conjunto, imprescindindo
de comunicação entre as pessoas e, portanto, do direito à informação. É assim que a questão
da obediência à lei não se resolve, em última instância, pela força, mas pela opinião e pelo
número daqueles que compartilham o curso comum de ação expresso no comando legal.
25
O poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria existência das
comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de legitimidade. A percepção dessas
duas palavras como sinônimos não é menos enganosa do que a corrente equação de
obediência e apoio. O poder é originado sempre que um grupo de pessoas se reúne e
age de comum acordo, porém a sua legitimidade deriva da reunião inicial e não de
qualquer ação que possa se seguir.
26
Pode-se concluir do exposto, que não há associação sem o elemento poder; ou
seja, o poder atua como pressuposto de existência a qualquer associação, sociedade ou Estado.
E, ainda, o poder tem como conseqüência o consentimento, seja espontâneo ou forçado. No
entanto, não há que se falar, tendo em vista o atual Estado Democrático de Direito, nos
elementos força e violência, mas em legitimidade ou não do poder. O problema da
legitimidade do poder consiste, pois, no próprio fundamento deste, que será analisado
posteriormente.
24
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 1992. p. 82-83.
25
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 25.
26
ARENDT, Hannah. Sobre la violência. Tradución de Guilhermo Solana. Madrid: Alianza, 2006. p. 71.El
poder no necesita justificación, siendo como es inherente a la verdadera existencia de las comunidades
políticas; lo que necesita es legitimidad. El empleo de estas dos palabras como sinónimo no es menos
desorientador y perturbador que la corriente ecuación de obediencia y apoyo. El poder surge allí donde las
personas se juntan y actúan concertadamente, pero deriva su legitimidad de la reunión inicial más que de
cualquier acción que pueda seguir a ésta.”
26
1.6 Origens do Estado Democrático
Observado o paradoxo entre as promessas constitucionais, firmadas especialmente
nos artigos da atual Constituição Federal que se dedicam aos princípios constitucionais e o
seu efetivo cumprimento, o Estado Democrático de Direito revela defasagens gigantescas que
desembocam numa crise de sua legitimidade. Assim sendo, parece evidente a existência de
uma acentuada contradição entre o modelo normativo proposto e as práticas efetivas dos
agentes e representantes do poder e da sociedade. De acordo com José Eduardo Faria
27
, “[...]
o país vem vivendo uma ampla crise estrutural, da qual se destacam a falta de credibilidade do
regime, a fragmentação de seu aparelho burocrático, a desmoralização da autoridade [...].”
Entretanto, ao contrário da proposta do mesmo autor sobre a elaboração de uma
nova Carta Magna, este trabalho vem propor uma re-inauguração do Estado Democrático de
Direito, de maneira que sejam assegurados efetivamente os direitos fundamentais do homem
por meio do cumprimento das obrigações constitucionais. A Constituição Federal de 1988,
mesmo diante de sua prolixidade, atende, formalmente, aos anseios do modelo democrático de
Estado; constata-se um problema de efetividade, que põe em dúvida o referente modelo.
A idéia de democracia surgiu na Grécia Antiga, significando, pela própria
etimologia da palavra, o governo do povo, o governo da maioria, ou seja, dos cidadãos. Para o
pensamento antigo, forma de governo significava muito mais do que um adjetivo para a
organização da polis, mas um valor fundamental de determinada forma de organização. Tanto
que a finalidade da polis ultrapassava o plano material, estendendo-se à consecução da Justiça
através da liberdade política dos cidadãos que expunham suas idéias e debatiam opiniões.
Importante assinalar que a virtude política estava diretamente relacionada à virtude moral,
termos que hoje parecem opostos.
Sólon, considerado o pai da democracia, tomou medidas que transformaram o
mundo grego: modificou a estrutura da sociedade ateniense: os cidadãos passaram a ser
classificados não segundo o tamanho das propriedades de cada umcritério que assegurava
o poder político à aristocracia rural —, mas de acordo com suas riquezas, facilitando a
ascensão de pequenos artesãos e comerciantes antes tidos como inferiores. Além disso, o
legislador revigorou a Assembléia do Povo, que anualmente elegia os funcionários do
governo, e instituiu um tribunal popular, a heliéia.
27
FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1985. p. 11.
27
Sólon foi, também, o responsável pela introdução da idéia de que a sobrevivência
da cidade depende da educação de todos os cidadãos. Ele acreditava que a saúde de um
organismo político depende não só das instituições que o integram, mas também de cada
membro da comunidade. Por isso, ele encontra na formação do caráter um meio mais seguro
de garantir a manutenção do equilíbrio social.
No entanto, nem todos na polis grega possuíam privilégios. Como bem esclareceu
Aristóteles, cidadão era aquele que tivesse parte na autoridade deliberativa e na autoridade
judiciária. Apesar das exceções em casos de emergência em algumas cidades, a regra era a
restrição. Aos artesãos e escravos não era permitida a prática desta virtude política, um
privilégio daqueles que não tinham a necessidade de trabalhar para sobreviver. Esta era uma
regra estabelecida no estatuto jurídico e que não feria os princípios morais e políticos da
época. A própria condição de guerra em que viviam justificava a hierarquia adotada.
É evidente que esta idéia de democracia, não estaria presente nas revoluções
burguesas do século XVIII. A democracia passou a ser um adjetivo do Estado, sendo que o
termo “povo” recebeu uma amplitude maior do que significava aos antigos gregos. Estado e
povo passaram a ser termos independentes: o Estado Moderno organiza-se com uma
roupagem democrática e, então, controla a sociedade. A democracia passou a ser um termo de
legitimação do poder estatal, localizado acima da sociedade. A democracia efetiva, idealizada
e realizada pelos gregos, ganhou uma conotação simbólica para os Estado Modernos.
O conceito moderno de Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII,
agregando, obrigatoriamente, a afirmação de certos princípios fundamentais da pessoa
humana vinculadores da organização e funcionamento do Estado a serviço e realização dos
mesmos. A partir de então, seguiu-se uma série de conflitos na tentativa de proteção aos
direitos humanos e a dificuldade da máquina estatal em assumir de fato seu papel precípuo.
Daí a grande influência dos jusnaturalistas, como Locke e Rousseau. Apesar deste
não ter acreditado em um governo democrático de homens, mas de deuses, em sua mais
expressiva obra, “O Contrato Social”, estão encerrados os princípios do Estado Democrático.
Na prática, três foram os movimentos político-sociais a materializar estas teorias:
a Revolução Inglesa, influenciada, principalmente, por Locke, culminando no Bill of Rights,
em 1689; em seguida, a Revolução Americana e a conseqüente independência das treze
colônias da América, em 1776 e; por fim, a Revolução Francesa em 1789, com seus
princípios expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a marcante
presença das idéias rousseaunianas.
28
Foi declarado que os homens nascem, e permanecem livres e iguais em direitos.
Como fim da sociedade política, apontou-se a conservação dos direitos naturais indeclináveis
do homem, quais sejam: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Qualquer limitação ao indivíduo deveria ser permitida apenas pela lei, como expressão da
vontade geral. Assim, a base da organização do Estado deveria ser, pois, a participação
popular no governo, para que fossem preservados e garantidos os direitos inerentes.
Foram essas as idéias responsáveis pela consolidação do Estado Democrático
como ideal supremo que, a partir de então, figurou em vários sistemas jurídicos. Em pequena
síntese, são pontos fundamentais do Estado Democrático: 1) supremacia da vontade popular;
2) preservação da liberdade, e; 3) igualdade de direitos.
A conseqüência do despertar da Europa e dos Estados americanos inaugurou uma
era de resgate dos direitos naturais do homem, assim como a descoberta de novos direitos a
ele pertencentes. A Doutrina consagrou a expressão “gerações de direitos”, lembrando que tal
expressão é inesgotável, no sentido de que a história não é estanque, assim como a história do
Direito e dos direitos. Assim é que tais direitos são variáveis, modificando-se ao longo da
história de acordo com as necessidades e interesses do homem.
A primeira geração consagrou o direito amplo à liberdade. Surgiu nos séculos
XVII e XVIII, compreendendo direitos civis e políticos inerentes ao homem e oponíveis ao
Estado, à época, grande opressor das liberdades individuais. São exemplos: direito à vida,
segurança, justiça, propriedade privada, liberdade de pensamento, voto, expressão, crença,
locomoção, dentre outros.
A segunda geração, pós 2ª Guerra Mundial, proclamou os direitos de igualdade,
consentâneo ao advento do Estado Social. São os direitos econômicos, sociais e culturais que
devem ser prestados pelo Estado através de políticas de justiça distributiva, como o direito à
saúde, trabalho, educação, saneamento, greve, lazer, repouso, habitação, livre associação
sindical, dentre outros.
Os direitos da terceira geração consagram os direitos de fraternidade e
solidariedade, coletivos por excelência, pois estão voltados a toda humanidade. Dessa forma,
não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo ou grupo isolado,
de determinado Estado, mas operam, tais direitos, no gênero humano como condição de
existência e vivência concreta. São eles: direito ao desenvolvimento, à paz, à comunicação, ao
meio-ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade, dentre
outros.
29
A quarta geração de direitos, a mais nova criação doutrinária, resulta dos efeitos
cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, da preocupação política que os avanços
tecnológicos do mundo globalizado impõem ao meio social e que afetam as estruturas
políticas, econômicas, culturais e jurídicas vigentes. São exemplos o direito à informação, ao
pluralismo e à democracia direta.
A linguagem dos direitos humanos encerra um inegável teor de atualidade e
praticidade – a exemplo da quarta geração de direitos – que extrapola a órbita individual dos
cidadãos para vincular, também, o Estado. Assim é que Bobbio
28
classifica os direitos
individuais tradicionais - que consistem em liberdades -, e os direitos sociais - que consistem
em poderes. Os primeiros exigem obrigações puramente negativas, que implicam na
abstenção de determinados comportamentos; contrariamente, os segundos exigem obrigações
positivas de todos, inclusive do Estado. Neste ponto encontra-se, pois, o maior desafio dos
direitos humanos: seu reconhecimento generalizado por todos os povos, a proteção e a
efetivação dos mesmos. Trata-se de problema jurídico e, em sentido ainda mais amplo, de
problema político a ser sanado.
1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional
A moderna concepção de Estado está intimamente vinculada à idéia de limitações
por normas jurídicas, que traduzem direitos e deveres, faculdades e vinculações dos Estados e
dos indivíduos entre si. Aliás, sem descartar as outras esferas do Estado (social, econômica,
política), foi esta construção normativa verdadeira arma contra os abusos do absolutismo.
Ensina o professor Jorge Miranda
29
: “[...] não são apenas os indivíduos (ou os
particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais
instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito.”
Pode-se considerar o elemento jurídico como a moldura do Estado, no sentido de
que todos os seus elementos constitutivos, ou seja, povo, território e soberania, devem estar
sempre conformados e limitados pelas normas jurídicas. Assim, tais elementos devem estar
regulados e amparados pela Constituição e por outras normas do ordenamento jurídico de um
Estado Nacional.
28
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 20.
29
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 1 (destaque do
autor).
30
Para José Afonso da Silva
30
, o clássico conceito de Estado de Direito se limita a
uma igualdade formal e abstrata, baseada na generalidade da lei, sem qualquer base na vida
real.
De acordo com Canotilho
31
, o Estado como forma de organização jurídica do
poder político soberano, ao qual fica submetido o povo de um determinado território,
corresponde ao modelo que surgiu com a paz de Westfália, em 1648, tendo evoluído para o
Estado Constitucional, que se conceitua como sendo uma tecnologia política de equilíbrio
político-social, e representa uma superação da autocracia absolutista do poder dos privilégios
orgânico-corporativo medievais. O mesmo autor define o Estado Constitucional como Estado
soberano, que edita as leis que devem ser observadas pelo povo de um determinado território,
mas que também o submete ao Direito, sendo regido por leis sem confusão de poderes.
Dessa forma, do clássico conceito de Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX
não foi difícil avançar para o conceito de Estado Constitucional, que no século XX ganhou a
primazia nas formulações políticas do mundo ocidental. Não obstante, principalmente a partir
da segunda metade do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados
Nacionais - já todos em sua conformação Constitucional - passaram a vivenciar uma nova
perspectiva: a dos blocos e comunidades transnacionais, as quais se formaram em busca de
uma maior força pelas alianças econômicas, políticas e até culturais.
O Estado Constitucional é, assim, uma criação do Estado Moderno, tendo surgido
paralelamente ao Estado Democrático. Pressupõe uma estrutura ordenada por um sistema
normativo fundamental e hierarquicamente superior. Mas não é só isso; o Estado
Constitucional vai além do Estado de Direito, não se limitando a ele. O Estado Constitucional
moderno é, também, democrático e esta exigência se impôs da necessidade de legitimação,
não apenas da ordem jurídica enquanto positivada, mas do exercício do poder político
vinculado, ditado segundo o princípio da soberania popular.
Seja pelos objetivos propostos, seja pela conveniência dos interesses burgueses,
não se pode olvidar que o Constitucionalismo teve caráter nitidamente revolucionário. Porém,
apesar da força com que as Constituições escritas se impuseram no século XVIII, gozando de
extraordinária autoridade como a mais alta expressão democrática e legislativa, rendeu-se a
um paulatino processo de desmistificação e perda de eficácia.
30
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 119.
31
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 86- 89.
31
1.8 Estado Democrático de Direito
O Estado Democrático nasceu das lutas contra o absolutismo, sobretudo através
do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande influência
jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais perante a lei
e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a conservação de
direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a propriedade e a
segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou indiretamente,
da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao Direito, tornou-se,
também, sujeito de direitos e deveres.
Seguindo as lições de Canotilho
32
, mais uma vez, o binômio “legalidade-
igualdade” reclama que sua aplicação seja de cunho material sua aplicação, o que somente
pode ser alcançado se houver também a democracia econômica, social e cultural, como
conseqüência lógico-material da democracia política. Esta é, pois, a construção do Estado
Democrático de Direito. Acrescenta que o principio da democracia econômica e social impõe
tarefas ao Estado para a promoção da igualdade real, constituindo um elemento essencial de
interpretação das normas constitucionais.
O Constitucionalismo ampliou os horizontes do Estado de Direito, trazendo a
idéia de sua legitimação na vontade popular por meio da democracia participativa; eis o
Estado Democrático de Direito. A lei, especialmente a Constituição, passou a desempenhar
uma função transformadora. A lei opera, pois, como instrumento de realização material de
uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria
existência do Estado. A veiculação desses valores, dentre outros, se dá por meio de princípios,
que ocupam o ápice do Ordenamento Jurídico.
Assim, deve-se partir do ponto de que a Constituição, por meio dos princípios,
explícitos ou implícitos, oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de
sentido; contrariamente, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu
ordenamento transformar-se-á numa somatória estanque de preceitos, desprovido de qualquer
capacidade de coordenação e efetividade do todo.
Neste sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello
33
ressaltou
a importância da Constituição; em 23/04/2008, iniciou os discursos proferidos na posse do
32
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 325.
33
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Constituição e o Supremo: informativo. Disponível em:
32
novo presidente da Corte, o ministro Gilmar Mendes. Em seu discurso, destacou que os três
Poderes da República, sem exceção, devem respeito à Constituição, que não pode ser burlada
por conveniência política ou pragmatismo institucional.
Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a
vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o
propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem
convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores
dos cidadãos.
1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito
Através da análise do longo processo de desenvolvimento das sociedades
humanas e do Estado, não se pode afastar a imaturidade do Estado Democrático de Direito.
Perante a História, pode-se dizer que, em dois séculos de existência, ele ainda está num
aprendizado, ainda não fala, ainda não anda; está sendo educado segundo princípios e regras
constitucionais que consagram os direitos fundamentais do homem.
Pode-se falar, atualmente, numa verdadeira crise do Estado Contemporâneo. Se no
século XVIII havia um ideal de Estado a ser materializado, no século XIX o mesmo passou a
ser definido paulatinamente, chegando aos dias atuais como ideal político de toda a
humanidade. No entanto, problemas de ordem estrutural da sociedade capitalista se tornaram
empecilho às aspirações liberais da época, arrastando-se até os dias atuais. Dallari
34
enumera
três problemas:
a) O problema da supremacia da vontade do povo.
A ênfase ao poder Legislativo, que se empreendeu no século XIX, gerou um
problema de representação devido às divergências dos grupos sociais que se formavam. O
industrialismo obrigou a inserção dos operários na esfera política, seja através de movimentos
proletários, seja através da tentativa de participação no poder. No século XX, tendo adquirido
um razoável grau de organização, as classes trabalhadoras elegeram seus representantes que
passaram a integrar partidos, fundar novos até, enfim, integrarem o Plenário.
Em meio a tantas diversidades partidárias e intermináveis debates, o processo
legislativo se tornou lento e imperfeito, acarretando um verdadeiro descrédito no sistema
representativo. Eis um dos impasses a que chegou o Estado Democrático de Direito: a
http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=87586&caixaBusca=N. Acesso em: 24.
abr. 2008.
34
DALLARI, op. cit., p. 254.
33
participação do povo tornou-se inconveniente quando, na verdade, sua ausência constitui
expressa violação do princípio democrático.
b) Dilema entre os princípios liberdade e igualdade
Estes foram dois dos princípios consagrados pela Revolução Francesa, prezando-
se, na época pela não intervenção do Estado, no sentido de que todos permanecessem livres
com iguais condições para alcançarem seus interesses. Porém, esse ideal não seria possível
numa sociedade marcada pelas descomunais diferenças entre as classes sociais. Muitos
passaram a defender a intervenção estatal a fim de assegurar a igualdade de todos os
indivíduos.
A questão da igualdade passou, pois, a ter primazia perante a liberdade. De que
adiantaria liberdade diante das desigualdades e dos privilégios restritos às minorias? Chegou-
se ao segundo impasse do Estado Democrático de Direito: na prática, liberdade e igualdade se
mostraram princípios antitéticos e antidemocráticos.
c) Distanciamento entre a formalidade e a efetividade do Estado Democrático
A medida emergencial de combate ao Absolutismo foi à submissão de todos ao
império da lei. No entanto, a prática demonstrou uma formalidade de leis camuflando um
Estado totalitário revestido de democrático. Seria o elemento formal um empecilho à
efetivação do Estado Democrático? Ou sua ausência favoreceria a utilização arbitrária do
poder? Eis o terceiro impasse que desprestigia o Estado Democrático.
Diante do exposto, entretanto, não há que se conspirar contra o Estado
Democrático, mas repensar maneiras para atingi-lo, ou para alcançar sua maturidade. Não se
pode, destarte, questionar o modelo de Estado Democrático, mas questionar as atitudes
humanas que dirigem a sociedade. Daí a questão da Ética como a maior preocupação do
século XXI, gerando discussões em nível universal acerca do comportamento dos homens.
Há, portanto, uma preocupação com as atitudes humanas desprovidas, consistindo a Ética no
antídoto para as mazelas dos indivíduos.
Quanto ao Estado Democrático de Direito, seria este ideal possível de ser
atingido? De que maneira? Sim, os ideais de democracia e de Justiça podem ser atingidos a
partir do momento em que os seres humanos tiverem as plenas e iguais condições de
desenvolvimento físico, cultural, moral e ético. E tais condições serão possíveis a partir de um
efetivo Estado Democrático, que prima pela igualdade de todos os cidadãos, governantes e
governados, e se mantém fiel aos mandamentos constitucionais e à vontade da maioria.
34
CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
2.1 Os princípios fundamentais – conceitos
A palavra “princípio” exprime, em sentido vulgar, o ponto de partida, o início de
algo. Porém, como o termo é utilizado em diferentes esferas do conhecimento humano, tais
como a Filosofia, a Sociologia, a Física, o Direito, dentre outras, cabe a cada uma dessas
ciências animarem esta idéia simplificada a partir de seus elementos peculiares. Assim, todo
conhecimento humano pressupõe um conjunto de elementos ou de idéias sistematizados e
ordenados a partir de princípios e a eles subordinados.
Em termos jurídicos, o vocábulo alcança um sentido bem mais amplo, tendo a
Doutrina e os Tribunais se preocupado em definir e realçar sua importância e restabelecer sua
operabilidade perante o Ordenamento Jurídico. A dificuldade se dá, principalmente, pelo
caráter genérico e abstrato dos princípios, encerrando várias interpretações, diferentemente
das regras objetivas que completam o sistema jurídico.
Relevante, pois, neste aspecto quanto à definição dos princípios, a elucidação de
Humberto Ávila
35
:
A busca de uma definição mais precisa de princípios jurídicos é necessária. Não
tanto pela diferença da denominação, mas pela distinção estrutural entre os
fenômenos jurídicos que se procura descrever mediante o emprego de diversas
categorias jurídicas. Ora, tanto a doutrina como a jurisprudência são unânimes em
afirmar que as normas jurídicas mais importantes de um ordenamento jurídico são os
princípios. Do próprio ordenamento jurídico brasileiro constam normas positiva ou
doutrinariamente denominadas de princípios, alguns fundamentais, outros gerais.
Sua definição não pode, por isso, ser equívoca, antes deve ser de tal forma
formulada, que a sua aplicação diante do caso concreto possa ser
intersubjetivamente controlável.
De fato, há que haver uniformidade na interpretação constitucional no tocante ao
tema dos princípios no sentido de afastar entendimentos atentatórios à ordem jurídica. De
fato, seus caracteres de generalidade e abstratividade passam, à primeira vista, uma idéia de
pluralidade de sentidos, impondo aos legisladores e aplicadores do Direito – lembrando que o
Poder Executivo também atua como legislador em sua função atípica – operar os princípios
constitucionais segundo um juízo de valor. Sendo a valoração um aspecto subjetivo, convém
um exame da Doutrina e dos Tribunais para se verificar quais os conceitos adotados e de
35
ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do princípio da proporcionalidade.
Revista Diálogo Jurídico, Salvador , ano 1, v. 1, n. 4, p. 5-6, jul. 2001.
35
quais mecanismos se servem no ato da valoração dos princípios para a aplicação dos mesmos
nos casos concretos.
Neste sentido, Canotilho também alerta para o risco sobre os vários entendimentos
não unânimes e, muitas vezes, imprecisos dos princípios
36
:
Na Ciência Jurídica, tem-se utilizado o termo “princípio” ora para designar a
formulação dogmática de conceitos estruturados por sobre o direito positivo, ora
para designar determinado tipo de normas jurídicas e ora para estabelecer os
postulados teoréticos, as proposições jurídicas construídas independentemente de
uma ordem jurídica concreta ou de institutos de direito ou de normas legais vigentes.
Essa polissemia não é benéfica neste campo de saber, em que a confusão de
preceitos e idéias pode levar à frustração da práxis jurídica ou à sonegação, por uma
prática equívoca, de direitos ou de situações protegíveis pelo sistema jurídico posto.
Canotilho
37
conceitua os princípios jurídicos fundamentais como normas que
exigem a realização de algo da melhor maneira possível, de acordo com as finalidades fáticas
e jurídicas; não exibem em seu conteúdo proibições, permissões ou exigências de algo em
termos de “tudo ou nada” – como as regras jurídicas -, mas impõem a otimização de um
direito ou de um bem jurídico, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionamentos fáticos e jurídicos.
Para Alexy
38
, princípios constituem mandamentos de otimização, ou seja, são
normas que determinam que algo seja cumprido na maior medida possível, de acordo com as
possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Para o autor, a teoria jurídica dos direitos
fundamentais da Lei Fundamental é, enquanto teoria do Direito Positivo de um determinado
ordenamento jurídico, uma teoria dogmática. Assim, a teoria dogmática dos princípios
constitucionais apresentaria três dimensões: analítico, empírico e normativo.
A dimensão analítica trata da consideração sistemático-conceitual do direito
válido, positivo, com análises de conceitos fundamentais (como o conceito de norma, de
direito subjetivo, de liberdade e igualdade), passando pelas construções jurídico-
constitucionais (como densidade e concretização dos princípios constitucionais), pesquisa da
estrutura do sistema jurídico, bem como suas relações com os princípios constitucionais.
(como normatividade e realizabilidade dos mesmos), até chegar à própria ponderação prática
de valores e de bens jurídicos sob a perspectiva dos princípios constitucionais.
36
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982. p. 203 (destaque do autor).
37
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 1087-1088.
38
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:
Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2002. p. 29-33.
36
A dimensão empírica possui um duplo significado para o Filósofo: primeiro, com
relação ao conhecimento dos direitos positivamente válidos e, segundo, com relação à
utilização de premissas empíricas da argumentação. Nesta dimensão não se trata apenas da
descrição do direito legislado, mas também da descrição e previsão da práxis judicial. Em
outras palavras, os direitos fundamentais empiricamente considerados revelam a força
normativa da Constituição em sua dimensão principialista.
A dimensão normativa vai além das duas anteriores: estaria reservada à aplicação
dos princípios constitucionais, no sentido da orientação e crítica da práxis da jurisprudência.
Esta dimensão cuida de saber qual é, no caso concreto, e de acordo com o Direito Positivo
válido, a decisão concreta.
Frente a essas três dimensões, o caráter da Ciência do Direito, para Alexy, como
disciplina prática, resulta ser um princípio unificador. Tendo a Ciência do Direito que cumprir
racionalmente sua tarefa prática, tem, portanto, que vincular reciprocamente as três
dimensões. Ela deve ser uma disciplina integrativa pluridimensional: a vinculação das três
dimensões é condição necessária da racionalidade da Ciência da Direito como disciplina
prática.
Para a constitucionalista Cármen Lúcia de Antunes Rocha
39
: “O Princípio é o
Verbo [...]. No princípio repousa a essência de uma ordem, seus parâmetros fundamentais e
direcionadores do sistema normado”.
Segundo Jorge Miranda
40
, “[...] forçoso se torna reconhecer existir algo de
específico e permanente no sistema que permite (e só isso permite) explicar e fundar a
validade e efectividade de todas e cada uma de suas normas”. Isto porque o sistema jurídico
do Estado Democrático de Direito se apresenta como um sistema normativo aberto e
dinâmico, composto de regras e princípios; dos princípios constitucionais, por sua vez,
nascem os comandos que atingem as demais normas do sistema jurídico. Aberto e dinâmico
pelo caráter duradouro e inesgotável que deve conter as Constituições, o que jamais seria
atingido caso houvesse a possibilidade de constante atualização.
39
ROCHA, Cármen Lúcia de Antunes. Princípios constitucionais da administração. Belo Horizonte: Del Rey,
1994. p. 21.
40
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 137. (destaque do
autor).
37
2.2 Normatividade e evolução dos princípios
Os princípios constitucionais representam o reconhecimento e a incorporação dos
direitos fundamentais nos ordenamentos contemporâneos. A Doutrina dos Direitos
Fundamentais surgiu da fusão de várias fontes que, de acordo com as lições de Jorge
Miranda
41
são: a) o Cristianismo, a principal - devido às suas idéias de que “criados à imagem
e semelhança de Deus, todos os homens tem uma liberdade irrenunciável que nenhuma
sujeição política ou social pode destruí-lo”; b) o Direito Natural que considerava tais direitos
de ordem sagrada ou transcendental, e; c) o Constitucionalismo: o movimento social, político
e jurídico a partir do qual emergem as constituições nacionais. O ponto em comum entre essas
três fontes repousa na necessidade de controle do Estado para evitar os abusos do poder.
Nem sempre os princípios tiveram o status de normatividade que gozam na
atualidade. Eles sofreram um longo processo de evolução, partindo de meros ideais das mais
antigas correntes do pensamento jurídico, até adquirirem a importância, a consistência e a
normatividade hodiernas, consagradas pelas correntes pós-positivistas.
Paulo Bonavides
42
elaborou um plano de evolução dos princípios que passaram
por três fases:
Sob a influência do Direito Natural, os princípios foram considerados ideais de
conteúdo ético, valorativos do Direito. Princípios de justiça, igualdade, liberdade, dentre
outros, não possuíam validade no meio jurídico, tampouco se poderia julgar a violação dos
mesmos. Derivavam, pois, da lei divina e humana, formando um Direito ideal. Assim, a
punição ficaria a cargo do sentimento de remorso relativo a cada indivíduo.
Na fase juspositivista, os princípios passam a integrar os Códigos, constituindo,
em conjunto, fonte subsidiária do Direito. Derivados das leis e, portanto, inferiores a elas,
funcionavam como fontes integradoras do Direito e justificadoras do reinado absoluto da lei.
Atuam em última instância, para sanarem os vazios legais.
Por fim, na fase pós-positivista - que tem início no fim do século XX -, os
princípios, já positivados, ocupam o mais alto escalão dos textos constitucionais, figurando
como fundamento normativo e axiológico do ordenamento jurídico.
Os princípios decorrem, pois, dos direitos fundamentais: enquanto que estes
representam uma idéia, uma razão imanente da natureza humana, os princípios correspondem
41
MIRANDA, 1991, op. cit., p. 17.
42
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 232-238.
38
à materialização destes direitos, ou seja, à proteção dos mesmos perante o documento
constitucional positivo, acobertado pelos princípios da legalidade e da legitimidade.
Em síntese, Bonavides retrata essa evolução através dos seguintes resultados
consolidados
43
:
A passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo
concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a
transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a
ordem juspubliscística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção
clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da
jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua
normatividade; a perda de seu caráter de regras programáticas; o reconhecimento
definitivo de sua positividade e concretude por obra, sobretudo das Constituições; a
distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e,
finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais
significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.
Diante dessas considerações, cabe ressaltar a relevância dos princípios
constitucionais como reflexos dos direitos humanos que, positivados, estão hábeis a atuar em
situações concretas, sem perder de vista a dimensão analítica, revelando a força normativa que
encerram e constituindo um verdadeiro núcleo, aptos a dar unidade de sentido e coerência ao
sistema jurídico.
2.3 Princípios, normas e regras
Uma ordem constitucional instituidora do Estado Democrático de Direito,
necessariamente, é um sistema normativo aberto
44
, composto de regras e princípios. Um
sistema constitucional fundado somente em princípios teria, em princípio, uma grande
dimensão axiológica, tendo em vista os seus caracteres de generalidade e abstração, deixando,
pois, a desejar. Primeiramente, sendo um conjunto de conteúdos abstratos, não exerceria a sua
função normativa, pois se limitaria quase que exclusivamente na esfera axiológica (juízos de
valor), perdendo a sua condição deontológica (dever-ser), que é essencial para uma função
normativa que outorgue segurança jurídica. Em segundo lugar, considera-se função da regra
densificar princípios, tornando-os de mais fácil realização ou otimização. Além disso, um
sistema somente de regras padeceria de falta de unidade interpretativa, pois lhe faltaria o fio
condutor de ligação entre as diversas regras, sendo que tal elo de concatenação é feito pelos
princípios.
43
BONAVIDES, 2002, op. cit., p. 265. (destaque do autor).
44
CANOTILHO, 1982, op. cit., p. 1088.
39
No entanto, nem sempre essa distinção entre princípios, regras e normas, assim
como a relação de complementaridade entre ambos existiu. Eles foram tratados, inicialmente,
pela tradicional metodologia jurídica, como categorias distintas, sendo a idéia de norma
sobreposta à de princípio. As contribuições de Dworkin, Alexy, Canotilho e Bonavides,
dentre outros, é que pacificaram essa discussão, afirmando os princípios como espécie do
gênero norma.
Alexy
45
assevera que o ponto fundamental de distinção entre regras e princípios é
que estes, por ele chamados “mandados de otimização” são normas que ordenam que algo
seja realizado, na maioria das vezes, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.
Assim, os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus, dependendo das
possibilidades reais e jurídicas. Quanto às regras, são normas que podem ou não se cumpridas,
devendo-se proceder nos limites exatos de suas prescrições. Existe uma diferença qualitativa
entre tais institutos e não de grau como tem afirmado a maioria dos doutrinadores. Ambos,
princípios e regras, são normas.
Canotilho
46
faz a distinção entre normas-disposição e normas-princípio,
apresentando alguns critérios de distinção:
a) Grau de abstração: os princípios possuem um grau mais elevado de abstração
em relação às regras; diversamente, as regras possuem conteúdo definido com
grau de abstração relativamente menor;
b) Grau de determinabilidade na aplicação na aplicação do caso concreto: os
princípios, por serem vagos e indeterminados, necessitam de “intermediações
concretizadoras”, enquanto que as regras constituem mecanismos de
aplicabilidade imediata.
c) Fundamentalidade no sistema das fontes do Direito: os princípios possuem
traço de fundamentalidade no ordenamento, devido à sua posição
hierarquicamente superior às regras.
d) Proximidade da idéia de Direito: os princípios e regras são vinculantes, com
diferença de conteúdo da cada um; os princípios figuram como pilares
veiculando ideais de Justiça, enquanto que as regras possuem conteúdo
meramente formal.
45
ALEXY, op. cit., p. 87.
46
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1086-1087.
40
e) Natureza normogenética: princípios constituem o fundamento e a razão das
regras jurídicas, desempenhando, assim, a função normogenética ou
fundamentante.
Apesar da aparente contradição entre princípios e regras, tal diferença deve ser
afrontada como necessária e complementar ao ordenamento jurídico que, tendo em vista seu
caráter dinâmico, não sobrevive sem a presença de ambas; assim, a formalidade das regras
somadas e observadas à luz dos princípios - embebidos de alto teor ético, garantem a
atualização, o equilíbrio e o potencial de legitimidade que devem conter os ordenamentos.
José Afonso da Silva
47
faz a seguinte distinção:
As normas são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de
vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a faculdade de
realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo ação ou abstenção de outrem, e,
por outro lado, vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-se às
exigências de realizar uma prestação, ação ou abstenção em favor de outrem. Os
princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são
[como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] ‘núcleos de condensações’ nos
quais confluem valores e bens constitucionais. Mas, como disseram os mesmos
autores, ‘os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem
estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e
constituindo preceitos básicos da organização constitucional’.
Interessante registrar neste, a recente figura dos postulados normativos:
constituem uma nova categoria, cuja criação se atribui a Humberto Ávila, operando ao lado
das normas:
Desde logo, porém, uma advertência: por detrás da proposta aqui defendida está a
compreensão do Direito como um conjunto composto de normas (princípios, regras)
cuja interpretação e aplicação depende de postulados normativos (unidade,
coerência, hierarquização, supremacia da Constituição, etc.), critérios normativos
(superioridade, cronologia e especialidade), topoi (interesse público, bem comum,
etc.) e valores. Todos esses elementos que se conjugam às normas possuem sua
normatividade relacionada em boa medida a atos institucionais de aplicação.
O postulado vem a ser, pois, uma categoria de meta-norma, impondo um dever de
segundo grau consistente em estabelecer a estrutura de aplicação de outras normas. Postulados
veiculam, dessa forma, princípios e regras. Exemplo de postulado é a proporcionalidade,
entendida na Doutrina tradicional como princípio. Isto porque, para Ávila, a
proporcionalidade é entendida como fio condutor na aplicação dos princípios, ou seja: “sem
47
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 91- 92.
(destaque do autor).
41
obediência ao dever de proporcionalidade não há a devida realização integral dos bens
juridicamente resguardados”.
48
No obstante a dificuldade de uniformização conceitual dos princípios
fundamentais, não se pode olvidar o reconhecimento de sua força normativa e importância
para o Ordenamento Jurídico e para as próprias relações sociais. Os princípios figuram como
categoria normativa soberana em relação às regras, resultando em paradigma revolucionário
da Ciência Jurídica dos últimos anos, e tendo o respaldo da Jurisprudência e da Doutrina em
seu reconhecimento.
2.4 Importância dos princípios e sua superioridade em relação às regras
Cumpre ressaltar que princípios são normas jurídicas impositivas, de elevado grau
de abstração, expressão dos valores incorporados pelo Estado Democrático de Direito; ainda,
são dotados de versatilidade a ponto de alcançarem os casos concretos, decidindo-o.
Havendo dois princípios conflitantes, não há que se falar em hierarquia, mas
naquilo que a Doutrina chama “ponderação de interesses”, donde há de prevalecer aquele que
mais se aproxima da Justiça, sem que haja a anulação de qualquer deles. Princípios são, pois,
harmônicos entre si, não se excluindo um ao outro. Porém, quando o conflito envolve
princípio e regra, prevalece o primeiro devido à posição privilegiada que ocupa na pirâmide
do ordenamento jurídico. Neste caso, apenas uma será válida no caso concreto, não se
admitindo que regras contraditórias sejam aplicadas simultaneamente.
Há, pois, um aprendizado dos princípios constitucionais para com a realidade,
incorporando novos sentidos ao seu conteúdo, exercendo uma função interpretativa e
irradiando-se por todo ordenamento jurídico. Para tanto, a Constituição confia seu caráter
perene aos princípios, mecanismos integradores por excelência do texto constitucional à
realidade. Isso só foi possível através do processo de superação do caráter literal da lei,
passando os princípios, de coadjuvantes no cenário do Estado Democrático, a figurarem como
atores principais do mesmo, instrumentos imprescindíveis para a interpretação, aplicação e a
própria construção do Direito.
Os princípios, ao ordenarem o texto constitucional no que diz respeito aos fins a
serem alcançados pelo Democrático de Direito, indicam as diretrizes do ordenamento jurídico.
Por localizarem-se na base da Lei Maior - sem a qual não há um sistema unificado -,
48
ÁVILA, op. cit., p. 25.
42
funcionam como vetores de interpretação de toda ordem jurídica, seja em nível constitucional
- para estabelecer qual o princípio que deve preponderar no caso concreto de aplicação de
uma norma -, ou em nível infraconstitucional, para verificação de sua adequação ao sistema
principiológico da Constituição. Neste caso, a norma infraconstitucional incompatível com os
princípios constitucionais deve ser afastada do ordenamento por flagrante vício insanável de
inconstitucionalidade.
Assim, os princípios ocupam posição superior às regras no sistema jurídico. É o
que ratifica Celso Antônio Bandeira de Mello
49
:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção
ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório,
mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra o sistema, subversão de seus valores fundamentais.
A grande complexidade social não permite que as Constituições figurem como
simples rol das funções estatais e dos meios de defesa da sociedade contra o Estado, como
sustentado pelo liberalismo predominante no início do constitucionalismo moderno. Devem
ser dinâmicas a fim de alcançarem as alterações sociais, sem, ao mesmo tempo, perderem de
vista os objetivos a que se propõem. Assim, através dos princípios, as Constituições ganham
força e vida para a adequação das demais normas ao sistema jurídico, para a orientação das
mesmas ou, ainda, para expurgá-las do sistema em caso de declarado vício de
inconstitucionalidade.
Os princípios constituem uma moldura, dentro da qual estão encerradas todas as
demais leis e atos normativos do Ordenamento Jurídico. Também podem servir como uma
barreira de proteção do mesmo, no sentido de zelarem pela integralidade e idoneidade do
Estado Constitucional. Por fim, figuram como luzes do sistema, orientando os processos
executivo, legislativo e judiciário, exercendo uma função genuinamente política.
Apesar do conteúdo puramente axiológio e do alto grau de abstração e
generalidade, os princípios revelam um lado surpreendentemente dinâmico, para o espanto
daqueles que o consideram um mero conjunto de normas estáticas e utópicas. Eis a maior
beleza dos princípios constitucionais.
49
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 1997. p. 230.
43
2.5 Natureza e características dos princípios constitucionais
Diante do exposto até o momento, não há duvidas de que princípio é norma, sendo
dotados, portanto, de força normativa, ainda que, em termos de conteúdo e estrutura, sejam
distintos das regras jurídicas, contendo características peculiares. Sobre a natureza dos
princípios, posiciona-se Carmem Lúcia de Almeida Rocha
50
:
Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema
jurídico-normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e
superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento
constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito
em princípios. Adotados pelo Constituinte, sedimentam normas, tornando-se, então,
pilares que informam e conformam o Direito que rege as relações jurídicas do
Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do Direito, cujos
fundamentos se afirmam no sistema constitucional [...].
Seguindo a linha de seu pensamento, a autora enumera as seguintes características
dos princípios constitucionais: a) generalidade; b) primariedade; c) dimensão axiológica; d)
objetividade; e) transcendência; f) atualidade; g) poliformia; h) vinculabilidade; i) aderência;
j) informatividade; k) complementariedade, e; l) normatividade jurídica
51
.
a) A generalidade não pode ser confundida como imprescisão. É a característica
responsável pela manutenção da atualidade do sistema de Direito, sem limitá-
lo a modelos definitivos e rígidos. A precisão consiste na capacidade de
desenvolvimento de conteúdos normativos de acordo com as aspirações
sociais, políticas e éticas da sociedade.
b) A primariedade significa que os princípios constitucionais são os primeiros,
localizados no vértice do ordenamento piramidal, dele decorrendo os demais
princípios e regras. Divide esta categoria em três em três subcategorias:
b.1) Primariedade histórica: consiste na aceitação dos valores, conteúdos dos
princípios.
b.2) Primariedade jurídica: os princípios constitucionais são vistos como ponto de
partida da construção de toda ordem jurídica; os fundamentos do direito
positivo encontram-se, pois, no Direito Constitucional.
b.3) Primariedade lógica: toda a estrutura do Direito Constitucional obedece os
mandamentos dos princípios.
b.4) Primariedade ideológica: os princípios constitucionais prevalecem em todo o
ordenamento, orientando as demais normas.
50
ROCHA, op. cit., p. 25
51
ROCHA, op. cit., p. 25-26.
44
c) A dimensão axiológica diz respeito ao conteúdo ético dos princípios que,
segundo a autora, não constituem verdades absolutas, mas estão sujeitos à
mutabilidade e dialogicidade do meio político em que atuam.
d) Os princípios são genéricos, porém, objetivos. Para a autora, esta característica
está ligada às idéias de segurança e certeza jurídica como garantias asseguradas
à pessoa humana. Dessa forma, esse caráter limita a atividade de interpretação
da Constituição de maneira que não se afaste dos valores éticos expressos.
e) Através da transcendência, os princípios superam a elaboração normativa
constitucional formal, adentrando no ordenamento jurídico como principal
diretriz política, jurisdicional e legislativa.
f) A atualidade manifesta-se na força interpretativa do texto constitucional e na
necessidade de manutenção dos princípios às situações fáticas da realidade
social.
g) A poliformia significa os múltiplos sentidos dos princípios constitucionais. Eles
apresentam-se, pois, como mecanismos dinâmicos em favor da permanência,
presença e eficácia social e jurídica da Constituição. Em sintonia com os fatos
sociais, o texto constitucional é constantemente atualizado, sem que haja
alteração em seu texto.
h) A vinculabilidade se estende aos legisladores, administradores, juízes
constituídos e demais cidadãos da sociedade política. Além de vincular
interpretações de outras normas, mas também o processo de
constitucionalidade das leis e atos normativos estatais e particulares. Ademais,
a vinculação atinge os próprios princípios, donde que “nenhum princípio
constitucional deve ser considerado isolado ou auto-suficiente. A Constituição
é sistematizada em um conjunto de normas que se encadeiam, coordenam-se,
enlaçam-se e harmonizam-se para adquirir um significado conjunto, para ser
pleno, inteiro.”
52
i) A aderência é condição necessária da vinculabilidade. Para que haja os
princípios sejam vinculantes e vinculados, é necessário que a totalidade da
produção normativa esteja em conformidade com aqueles, sem que haja
exceções.
52
ROCHA, 1994, op. cit., p. 39-40.
45
j) Pela informatividade, os princípios são fontes informadoras de toda estrutura e
funcionamento do ordenamento jurídico.
k) A complementaridade se expressa na força adquirida pelo conjunto de
princípios, condicionados uns aos outros, formando um todo coordenado.
l) Por fim, a normatividade jurídica dos princípios revela sua natureza jurídica, já
exposta neste trabalho. Princípios são leis, normas de observação obrigatória
de todos e instituidores de direitos e deveres.
Concluindo, os princípios junto a essa amplitude e força que operam no sistema
jurídico, no dizer de Espíndola
53
:
Aliás, essa é uma característica do Direito Constitucional contemporâneo: a de haver
estabelecido, teórica, dogmática e normativamente, a dignidade dos princípios
assentados, expressa ou implicitamente, na Constituição. Essa característica, vale
salientar, foi construída a partir da idéia de que a Constituição é lei, é norma de
direito, força normativa, valem como normas, como normas das normas, normas de
normas (norma normarum).
Posição interessante, também, é a de Humberto Ávila, que expõe os seguintes
critérios para a caracterização dos princípios
54
:
a) Princípios jurídicos não se confundem com valores: princípios não determinam
o que deve ser, mas o que é melhor.
b) Os princípios jurídicos não se confundem com o mero estabelecimento de fins:
estes apenas indicam uma situação que se deseja realizar, sem que seja
estabelecido um dever ser. Princípios pressupõem fins motivados por meio de
um dever ser.
c) Os princípios jurídicos não se confundem com axiomas: estes são verdades
gerais aceitas genericamente sem a necessidade de prová-los no plano
concreto. Os princípios atuam no mundo jurídico do dever ser, cuja
concretização é sempre prático-institucional.
d) Os princípios jurídicos não se confundem com postulados: estes são condições
de possibilidade do conhecimento de determinado objeto, de tal sorte que
estabelecem a estrutura de aplicação de outras normas. São, pois, variáveis
conforme o objeto cuja compreensão condiciona os postulados.
53
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
1999. p. 88. (destaque do autor).
54
ÁVILA, op. cit, p. 18-20.
46
e) Os princípios jurídicos não se confundem com critérios: estes são metas-regra
de aplicação de outras normas, também chamados princípios de solução de
antinomias (hierarquia, cronologia e especialidade); explicam e determinam
como e por que entre duas normas aplicáveis às mesmas circunstâncias fáticas
deve ser escolhida uma delas (a hierarquicamente superior, a editada
posteriormente ou a que regula mais especificamente a situação, por exemplo).
2.6 Tipologia dos princípios
Várias são as classificações de princípios sugeridas pela Doutrina. Canotilho
55
ordena os princípios em quatro espécies:
a) Princípios jurídicos fundamentais: são aqueles historicamente objetivados e
introduzidos de maneira progressiva na consciência jurídica e, ainda,
recepcionados expressa ou implicitamente no texto da Constituição. Assim
positivados, eles constituem importante mecanismo de interpretação,
integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Possuem funções:
negativa, ao proibirem excessos de poder que contrariem o Estado de Direito; e
positiva, ao informarem materialmente os atos dos poderes públicos. Tais
princípios vinculam o legislativo quando da elaboração das leis e atos
normativos às suas diretrizes materiais. Como exemplo: princípio da
imparcialidade da Administração e princípio do acesso aos Tribunais.
b) Princípios políticos constitucionalmente conformadores: são aqueles que
“explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”
56
.
Informam quais as opções políticas do Estado de Direito e a ideologia fundante
da Constituição. Constituem o cerne político de uma organização política,
considerados, também, limites ao poder de revisão, sendo, pois, os mais
diretamente visados no caso de alteração profunda da Constituição. Tal como
os princípios jurídicos gerais, são normas, portanto, operantes, de observância
obrigatória de todos os órgãos encarregados da aplicação do Direito. São
exemplos, os princípios definidores da forma de Estado, como o da separação e
interdependência dos poderes.
55
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1746-1800 e p. 1090-1093.
56
Ibid., p. 1091-1092.
47
c) Princípios constitucionais impositivos: como o próprio nome, estes impõem aos
órgãos do Estado, principalmente ao legislador, a realização de fins e a
execução de tarefas. Também são conhecidos por princípios definidores dos
fins do Estado, ou diretivos fundamentais ou, ainda, normas programáticas.
São exemplos, os princípios da independência nacional, da correção das
desigualdades na distribuição das riquezas e dos rendimentos.
d) Princípios-garantia: também conhecidos como princípios em forma de norma
jurídica, são aqueles que visam de forma direta e imediata instituir uma
garantia dos cidadãos. Exemplos: princípio nulla poena sine lege, e princípio
do in dúbio pro réu.
A classificação de José Afonso da Silva
57
, com fundamento em Canotilho, reúne
os princípios constitucionais em apenas duas categorias:
Princípios político-constitucionais: derivam das decisões políticas fundamentais
concretizadas em normas conformadoras do sistema constitucional positivo. São matérias dos
artigos 1° ao 4° do Título I da Constituição intitulado “Dos Princípios Fundamentais”.
Princípios jurídico-constitucionais: são os princípios constitucionais gerais
informadores da ordem jurídica nacional; decorrem de certas normas constitucionais ou,
ainda, de desdobramentos dos princípios fundamentais. São exemplos: os princípios da
isonomia e da legalidade.
2.7 Princípios na Constituição de 1988
Há uma dificuldade em definir com precisão todos os princípios existentes no
texto da Constituição Federal dado ao grande número dos mesmos. Na classificação de José
Afonso da Silva
58
, os princípios distribuem-se em dois grupos:
a) Princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República
Federativa do Brasil, soberania e Estado Democrático de Direito (art. 1°);
b) Princípios relativos à forma de governo e à organização dos poderes: República
e separação dos poderes (arts. 1° e 2°)
c) Princípios relativos à organização da sociedade: princípio da livre organização
social, princípio da convivência justa e princípio da solidariedade (art. 3°. I);
57
SILVA, J. A. op. cit., p. 93.
58
Ibid., p. 94.
48
d) Princípios relativos ao regime político: princípio da cidadania, princípio da
dignidade da pessoa, princípio do pluralismo, princípio da soberania popular,
princípio da representação política e princípio da participação popular direta
(art. 1° § único);
e) Princípios relativos à prestação positiva do Estado: princípio da independência
e do desenvolvimento nacional (art. 3°, II), princípio da justiça social (art. 3°,
III), e princípio da não discriminação (art. 3°, IV);
f) Princípios relativos à comunidade internacional: da independência nacional, do
respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, da autodeterminação dos
povos, da não-intervenção, da igualdade dos Estados, da solução pacífica dos
conflitos e da defesa da paz, do repúdio ao terrorismo e ao racismo, da
cooperação entre os povos e o da integração da América latina (art. 4°).
Outra classificação que merece comentário é a de Luís Roberto Barroso
59
, em três
categorias:
a) Princípios fundamentais do Estado brasileiro: consubstanciam as decisões
políticas fundamentais do constituinte, quais sejam: princípio republicano (art.
1°, caput); o federativo (art. 1°, caput); o do Estado Democrático de Direito
(art. 1°, caput); o da separação dos poderes (art. 2°); o presidencialista (art. 76)
e; o da livre iniciativa (art. 1°. IV);
b) Princípios gerais: reunidos principalmente no artigo 5° da Constituição Federal,
com especial destaque para o § 2°, dentre eles, princípio da legalidade (art. 5°,
II), princípio da liberdade em sentido lato (art. 5°, II), princípios da liberdade
de pensamento (art. 5°, IV), da liberdade de expressão (art 5°, IX), da liberdade
de trabalho (art. 5°, XIII), princípio de acesso à informação (art. 5°, XIV), de
associação (art. 5°, XVII), etc., princípio da isonomia (art. 5° caput, e inciso I),
da autonomia estadual e municipal (art. 18), do acesso ao Judiciário (art. 5°,
XXXV), da segurança jurídica (art. 5°, XXXVI), do juiz natural (art. 5°,
XXXVII e LIII), do devido processo legal (art. 5°, LIV), da dignidade da
pessoa humana (art. 1°, III), da prevalência dos direitos humanos (art. 4°, II),
dos ditames da justiça social (art. 170), dentre outros.
59
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 147-150.
49
c) Princípios setoriais ou especiais: dizem respeito aos princípios específicos que
regem a organização e estrutura dos setores estatais:
c.1) Administração Pública: princípios da legalidade administrativa,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput), do
concurso público (art. 37, II), da prestação de contas (art. 34, VII, “d”; art.
35, III e art. 70, § único), da licitação (art. 37, XXI), da responsabilidade
por danos causados a terceiros (art. 37, §6°), dentre outros;
c.2) Organização dos Poderes: princípio majoritário (arts. 46 e 77, §2°),
proporcional (arts. 45 e 58, § 1°), da publicidade e da motivação das decisões
judiciais e administrativas (arts. 93, IX e X), da independência e
imparcialidade dos juízes (arts. 95 e 96) e o da subordinação das Forças
Armadas ao poder civil (art. 142);
c.3) Tributação: divididos em princípios gerais (ex. igualdade tributária, art. 150,
II), especiais (ex. princípio da uniformidade geográfica ou tributária, art. 151,
I) e específicos (ex. princípio da progressividade, art. 153, § 2°, I, referente
ao imposto de renda);
c.4) Orçamento: princípio da anualidade (arts. 165, III e 166), da publicidade (art.
37, caput e 165 § 3°), da proibição de estorno de verbas (art. 167, VI) dentre
outros;
c.5) Ordem social: gratuidade do ensino público (art. 260, IV), da autonomia
universitária (art. 207), autonomia desportiva (art. 217, I) e o da gestão
democrática e participativa da seguridade social (art. 194, § único, VII), da
saúde (art. 198, III), da assistência social (art. 204, II), da educação (art. 206,
VI), dentre outros;
c.6) Ordem econômica: garantia da propriedade privada (art. 170, II), função
social da propriedade (art. art. 170, III), da valorização do trabalho humano
(art. 170, caput), da defesa do meio ambiente (art. 170, IV), dentre outros.
A Constituição Federal reúne os princípios fundamentais nos artigos 1º ao 4º, no
seu Título I – Dos Princípios Fundamentais. A partir daí, somado o conteúdo do seu
preâmbulo – que cita os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
e desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos do Estado Democrático -, é
permitido verificar quais são os princípios explícitos, tidos como fundamentais para a
caracterização do núcleo essencial da Constituição.
50
Além dos princípios fundamentais presentes nos artigos do Título I, outros
princípios decorrentes daqueles, esparsos no texto constitucional, também integrando o núcleo
essencial. Como exemplo, pode-se citar o princípio da prioridade absoluta que, a família, o
Estado e a sociedade devem conferir à criança e ao adolescente para que tenham um
desenvolvimento pleno e sadio - artigo 227 da Constituição Federal. Não há dúvidas de que a
proteção normativa outorgada à infância e juventude é uma explicitação do princípio da
dignidade humana. A Constituinte, no entanto, acrescentou um plus: tornou a consecução
plena de tal princípio prioritária em relação à criança e ao adolescente. E esse acréscimo,
mesmo fora das disposições do Título I, erige como um princípio fundamental, integrativo do
núcleo essencial da Constituição.
A possibilidade de princípios implícitos integrarem o núcleo essencial da
Constituição está resguardada pelo art. 5º, § 2º, da Lei Maior: “Os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.” Destarte, a ordem constitucional não se restringe ao rol de dispositivos descritos na no
texto constitucional. Como um sistema aberto, passível de interpretação a partir dos valores
acolhidos pela Constituição, a ausência de referência expressa de princípios, entretanto, não
lhes retira o status de “constitucional”.
Ante o exposto, não significa dizer que tais princípios podem ser criados por mera
conveniência do intérprete. Eles são extraídos de uma interpretação minuciosa realizada pelo
trabalho da Doutrina e da Jurisprudência, sem perderem de vista a totalidade do sistema
constitucional. Identificado o princípio implícito - como a supremacia do interesse público a
proporcionalidade - há que se verificar se o mesmo tem natureza relevante para a preservação
da Constituição; assim o fazendo, integra o núcleo essencial da Carta Constitucional.
2.8 Interpretação dos princípios constitucionais
Interpretar significa esclarecer, explicar algo sem alterar-lhe o sentido. Na ciência
jurídica, a interpretação da lei deve estar vinculada às finalidades sociais. Depois da
observação já realizada sobre as finalidades do Estado Democrático de Direito, é possível a
afirmação de que, hodiernamente, toda interpretação jurídica é finalística. Sobre o caráter
51
político das Constituições, assevera Konrad Hesse: “Questões constitucionais não são,
originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas.”
60
A Política é, pois, a ciência da organização do poder e a arte de realizar o bem
social com o mínimo de sujeição. Pode-se falar em uma Ética da Política, donde que os
representantes do poder devem primar pela realização de uma sociedade justa e solidária,
assegurando o exercício dos direitos individuais e sociais. Grande responsabilidade se verifica
nas funções dos representantes do Poder, no que tange à elaboração e aplicação das normas.
No que tange à interpretação das normas, cabe ressaltar que toda norma deve ser
interpretada. E é neste ponto que figuram os princípios, tidos como verdadeiros manuais que
encerram os valores éticos que ordenam os fins do Estado e a vida social. Não fosse dessa
maneira, a Constituição não prevaleceria diante das oscilações sociais, econômicas e políticas,
tampouco se poderia falar em Constituições rígidas.
Cármen Lúcia de Antunes Rocha
61
elencou os princípios de interpretação dos
princípios constitucionais, quais sejam:
a) Princípio da supremacia: os princípios constitucionais ocupam posição
hierárquica superior em relação às demais normas do sistema jurídico;
constitui a essência, o núcleo do modelo constitucional adotado.
b) Princípio da finalidade: estabelece quais os fins da norma a fim de que os
mesmos conduzam à atividade interpretativa; cabe ao intérprete, pois, guiar-se
pelas diretrizes apontadas por ela.
c) Princípio da resultante social: se expressa na necessidade de concretização da
justiça material, que corresponde à finalidade última da norma.
d) Princípio da proporcionalidade: pode ser analisado sob duas perspectivas:
primeiro há que se analisar a proporcionalidade dos valores protegidos pelos
princípios constitucionais, quando for esclarecida a sua aplicação; segundo,
calcula-se a aplicação dos princípios sem que haja excessos nesta prática.
e) Princípio da razoabilidade: deve-se verificar a harmonia do conteúdo da norma
e sua real utilização.
f) Princípio da especialidade: várias vezes a Constituição enuncia um princípio
geral e, adiante, encontra-se o mesmo princípio, porém, revestido de traços
60
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris, 2001. p. 9-10. Lembra que Fernand Lassale, em 16 de abril de 1862, em conferência
sobre a essência da Constituição na associação liberal-progressista de Berlim, asseverou que questões
constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas. Isto porque a Constituição de um país
expressa as relações de poder nele dominantes.
61
ROCHA, op. cit., p. 47- 56.
52
específicos; neste caso, deve o intérprete se ater ao princípio especial no caso
concreto.
2.9 O Direito Natural e os princípios constitucionais
Apesar de os princípios fundamentais terem se desenvolvido no plano do
Direito Positivo, são anteriores a ele, fundados em razões éticas ou de Direito Natural. Esta
corrente entende que tais princípios se legitimam como pressupostos de natureza lógica ou
axiológica, isto é, como princípios de Direito Natural.
A doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia jusnaturalista que, para
justificar a existência de tais direitos - imanentes da natureza humana e independentes do
Estado -, partiu da hipótese de um estado natural, em que os direitos o homem são poucos e
essenciais: o direito à vida e à sobrevivência - que inclui, também, o direito à propriedade -, e
o direito à liberdade, que compreende algumas liberdades essencialmente negativas.
62
Ao longo da História, a teoria do Direito Natural passou por inúmeras deturpações
que acabaram por desprestigiá-lo; ora era utilizado como justificação e afirmação do status
quo vigente, ora era posta à margem por sistemas que a julgavam uma ideologia de quimera.
Não obstante receber, até os dias atuais, diferentes roupagens, a idéia de Direito Natural tem
como elemento comum a existência de uma ordem normativa, imanente e manifestada na
natureza ou na realidade, que é o arquétipo a que deve inspirar-se e subordinar-se o Direito
Positivo.
A tradição doutrinária acerca do Direito Natural teve seu início com as fontes
greco-romanas aproveitadas na Idade Média pelos canonistas e teólogos. Não obstante as
variantes existentes no decurso de sua formação há um consenso na aceitação de um princípio
superior de conduta, regra geral de toda ação humana, inerente à própria natureza e critério
supremo da justiça e da eqüidade.
A distinção conceitual entre Direito Natural e Direito Positivo já se encontrava,
pois, em Platão, tornando-se, porém, mais explícita em Aristóteles – considerada o pai do
Direito Natural - em texto da Ética a Nicômaco
63
:
A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em
todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é
legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira
ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente. [...]
62
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73.
63
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 117.
53
Seja como for, há uma justiça natural e uma justiça que não é natural. É possível
ver claramente quais as coisas entre as que podem ser de outra maneira que são como são por
natureza, e quais as que não são naturais, e sim legais e convencionais, embora ambas as
formas sejam igualmente mutáveis.
Apesar do avanço, representava uma bipolaridade mais filosófica e ética do que
técnico – jurídica. Faltavam-lhe, ainda, elementos reais e concretos, típicos de uma sociedade
diversificada para que essas noções de Direito Natural pudessem florescer e frutificar.
Doravante, essas idéias suscitaram, além dos gregos, a curiosidade de outros povos, tarefa que
atravessou séculos e séculos, chegando aos dias atuais, donde podemos falar em uma
verdadeira Doutrina do Direito Natural. Apesar das diferenças e particularidades de cada
concepção, não se pode afastar a unanimidade na aceitação de um princípio superior de
conduta como regra geral de toda a ação humana, imanente à natureza e critério supremo da
justiça e da eqüidade, qual seja: “praticar o bem e evitar o mal”.
Funda-se, portanto, a lei natural, na natureza racional do homem. O fim pessoal do
homem é sua própria felicidade, que só é possível mediante a vivência em sociedade, com o
devido respeito aos direitos dos outros homens e satisfazendo as demais exigências da vida
em comum. Sendo a natureza humana é universal e permanente, universal e permanente deve
ser a sua lei.
Das múltiplas facetas do Direito Natural, é importante enfatizar a noção de Direito
Natural de “conteúdo variável”, ou “direito cultural”, elaborada por Rudolf Stammler
64
,
contrariando a tradicional escola Racionalista que propugnava a idéia de um Direito Natural
eterno e de conteúdo imutável. Em suas numerosas obras, este precursor das novas idéias
jusnaturalistas insistia que, além de investigar o Direito Positivo, era necessária a investigação
do Direito justo. Assim, o jus naturale, que não pode reduzir-se apenas aos interesses do
homem individual ou mesmo de grupos organizados, deve inserir-se sempre, por sua própria
índole, no contexto de uma visão mais abrangente e filosófica do homem e do universo. Com
essa finalidade, também é importante a concepção tomista de Direito Natural, que é dinâmica
e não estática que não é imóvel, mas finalista e que é eterna e humana.
O Direito Natural, entendido nos dias atuais, pretende construir um critério para a
avaliação do Direito Positivo, baseado na idéia do justo, concebido em função dos princípios
que a própria vivência e experiência do Homem vão adequando a cada época, num
determinado momento histórico. Não é, e nem pode ser, um justo inalterável, estático.
64
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Luís Cabral de Moncada. 5. ed. Coimbra: Armênio
Amado, 1974. p. 63.
54
Encontra-se positivado, a exemplo de algumas normas constitucionais que, com status de
cláusulas pétreas, albergam direitos fundamentais o cidadão. Este fato contribuiu para o
enfraquecimento da dicotomia entre o Direito Natural e o Direito Positivo, fazendo com que o
objeto daquele continue presente até nossos dias, sob a forma de princípios.
Um Direito, que se pretende fundado na natureza humana, e tamm preocupado
com a inserção do ser humano na história, numa determinada época e numa sociedade
determinada, não pode ser estático. As conclusões a que se chega sobre o Direito Natural são
extremamente pobres, diria um radical jurista positivista. Não consubstanciam um código de
prescrições, nem um conjunto de leis para, assim, legitimarem a sua existência como Direito.
Mas é exatamente na formulação dos princípios que devem inspirar as legislações,
e que se encontra a medida do Direito Natural, que deve ser dosada como um máximo ético
nos Ordenamentos Positivos, a fim de que o Estado proporcione uma vida mais justa aos seus
cidadãos. Também não cabe a este Direito, qualificar como de Direito Natural esse ou aquele
sistema jurídico positivo. Sua função é transcender a todos, como instrumento de avaliação
dos mesmos, verificando sua conformidade ou desacordo com a própria justiça.
2.10 A atuação prática dos princípios constitucionais
Tendo adotado o modelo de Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), o
Estado, além de respeitar a legalidade - o “breque” de seu poderio - deve atuar eficazmente na
esfera social, nos moldes estabelecidos pela própria Constituição Federal. Neste sentido,
pode-se classificá-la como Constituição Dirigente, entendida como aquela que, além de
estruturar e delimitar o poder do Estado, insere-o numa esfera de atuação política,
estabelecendo quais as diretrizes a serem seguidas por ele. Tal Modelo de Constituição foi
proposto e definido por Canotilho
65
: “[...] o bloco constitucional dirigente não visa só (como
se deduz logo da sua adjectivação) constituir um limite à direcção política. A sua função
primordial é bem outra: fornecer um impulso directivo material permanente e consagrar uma
exigência de actuação.”
Não basta, pois, que os princípios se limitem a uma “duplicata inútil de Direito
Positivo”
66
; um Estado de modelo Democrático assume um papel dinâmico perante a
sociedade, ou seja, possui a responsabilidade de dar vida aos preceitos jurídicos positivados a
65
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 464
66
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 306
55
fim de que haja uma coerência entre esses e a realidade fática. Pode-se dizer, assim, que os
princípios, ao constituírem uma categoria dogmática, exigem a realização de algo de maneira
que seus conteúdos sejam otimizados da melhor forma possível, ressalvadas as situações que
os limitam. Assim, por exemplo, é o artigo 5°, XIII da Constituição Federal, que assegura o
livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, porém, atendidas as qualificações
que a lei estabelecer. Neste exemplo, podem-se visualizar duas dimensões que podem ter os
princípios: a objetiva e a subjetiva.
Para Canotilho
67
, a fundamentação subjetiva das normas consagradoras dos
direitos fundamentais consiste no significado ou relevância da norma consagradora de um
direito fundamental para os interesses do indivíduo. Em contrapartida, a dimensão objetiva
visa à satisfação dos interesses coletivos. Uma coisa é ter-se apenas a liberdade de exercer um
trabalho qualquer; outra é uma norma regulamentar essa liberdade, impondo requisitos para o
seu exercício, criando um suporte para o exercício desse direito. Assim, os princípios podem
ser garantidores de direitos e, ao mesmo tempo, impositivos de obrigações ao Estado, ou,
ainda, podem conter apenas uma das dimensões objetiva e subjetiva.
É na dimensão objetiva dos princípios fundamentais que se encontra o maior
desafio do Estado Democrático de Direito: criar suportes fáticos para o livre exercício dos
direitos humanos.
À aplicabilidade dos princípios, Canotilho
68
refere-se ao processo de
concretização ou densificação dos mesmos:
A densificação dos princípios constitucionais não resulta apenas da sua articulação
com outros princípios ou normas constitucionais de maior densidade de
concretização. Longe disso, o processo de concretização constitucional assenta, em
larga medida, nas densificações dos princípios e regras constitucionais pelo
legislador (concretização legislativa) e pelos órgãos de aplicação do direito,
designadamente os tribunais (concretização judicial), a problemas concretos.
Qualquer que seja a indeterminabilidade dos princípios jurídicos, isso não significa
que eles sejam impredictíveis. Os princípios não permitem opçções livres aos órgãos
ou agentes concretizadores da constituição (impredictibilidade de princípios).
Permitem, sim, projecçoes ou irradiações normativas com um certo grau de
discricionaridade (indeterminabilidade), mas sempre limitadas pela juridicidade
objectiva dos princípios. Como diz Dworkin, o “direito - e, desde logo, o direito
constitucional – descobre-se, mas não se inventa”.
67
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 1178-1179.
68
Id., 1988, p. 1108-1109. (destaque do autor).
56
Neste sentido, Barroso
69
discorre acerca da efetividade:
Efetividade designa a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo dos
fatos, os valores por ela tutelados. Ao ângulo subjetivo, efetiva é a norma
constitucional que enseja a concretização do direito que nela se substancia,
propiciando o desfrute do bem jurídico por ela assegurado.
Para que possa ser efetiva uma norma constitucional: a) não deve conter
promessas irrealizáveis; b) deve permitir a pronta identificação da posição jurídica em que
investe o jurisdicionado; c) deve ter o seu cumprimento assegurado por meios de tutela
adequados.
Portanto, os princípios não existem para simplesmente preencherem o topo da
hierarquia do sistema jurídico; ocupam posição privilegiada para serem observados e
aplicados; do contrário, não haveria razão para integrarem o texto constitucional. A
normatividade dos princípios constitucionais, dessa forma, está subordinada à realidade fática.
Daí a função legitimadora de tais princípios em relação ao sistema jurídico, assim expressa
nas palavras de Bonavides
70
:
Os princípios constitucionais fazem a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de
um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa elevam-se,
portanto, ao grau de Norma das normas, de Fonte das fontes. São qualitativamente e
quantitativamente a viga mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional,
o penhor da constitucionalidade das regras de uma Constituição.
Por fim, é de extrema relevância e atualidade registrar o posicionamento do
Supremo Tribunal Federal, guardião por excelência da Constituição Federal
71
, sobre os
princípios fundamentais e sua atuação prática. No julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 3300 em 03/02/2006, foi requerida a inconstitucionalidade do artigo
1° da Lei n. 9278/96 que, ao regular o artigo 226 da Constituição Federal, reconheceu
somente a união estável entre homem e mulher, em detrimento da união homoafetiva não
reconhecida juridicamente como entidade familiar. O Ministro Relator Celso de Melo, em seu
parecer, invocou os princípios fundamentais para a resolução do caso concreto, ressaltando
sua relevância:
69
BARROSO, 1996, op. cit., p. 231-232.
70
BONAVIDES, 2002, op. cit., p. 226.
71
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de
outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 102,
caput: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição [...].”
57
Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de
conhecimento a presente ação direta, mas considerando a extrema importância
jurídico-social da matéria - cuja apreciação talvez pudesse viabilizar-se em sede de
argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre registrar, quanto à
tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se
em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando
princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da
autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação
e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de
que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação
sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união
homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam,
em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e
na esfera das relações sociais.
Outra situação concreta, tendo o respaldo de princípios constitucionais, foi a
votação do Programa Universidade para Todos (ProUni), em que o ministro do Supremo
Tribunal Federal Carlos Ayres Britto votou em 02/04/2008 pela sua constitucionalidade. O
Programa foi alvo de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs n. 3330, 3314 e 3379)
logo após ser criado pelo governo, por meio de medida provisória, depois convertida na Lei
11.906/05. Ayres Britto disse que é pelo combate eficaz a situações de desigualdade que se
concretiza a igualdade e que a lei pode ser utilizada como um instrumento de reequilíbrio
social, se não incidir em discriminação. “Não se pode criticar uma lei por fazer distinções. O
próprio, o típico da lei é fazer distinções, diferenciações, ‘desigualações’ para combater
renitentes ‘desigualações’.” Ao citar a máxima de que “a verdadeira igualdade consiste em
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”, Ayres Britto lembrou que a lei
beneficia estudantes com carência patrimonial e de renda, uma faixa da população que tem
sido alvo de ciclos repetitivos de desigualdades.
72
72
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Constituição e o Supremo: informativo. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=85986&caixaBusca=N>. Acesso em: 8.
abr. 2008.
58
CAPÍTULO 3 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS
3.1 Considerações preliminares
Apesar da idéia de deveres fundamentais remontarem à época da República
Romana, pode-se afirmar que o desenvolvimento de uma teoria acerca dos deveres
constitucionais é, ainda, recente, tendo sofrido restrições à época do advento do Estado
Liberal.
Segundo Canotilho, a Constituição de Weimar – que continha um capítulo
intitulado “Direitos fundamentais e deveres fundamentais dos alemães’’, por influência da
doutrina juspubliscista, retomou a idéia de igual dignidade de direitos e deveres fundamentais.
Porém, tal entendimento não foi unânime, sendo que alguns – como Carl Schmitt – entendiam
tais deveres como contrários à idéia de estado de direito liberal. Para a teoria comunista,
também os direitos fundamentais eram relativizados em deveres fundamentais, o que, no
entanto, não foi observado na prática, dada a hipertrofia dos deveres em relação aos direitos.
Estas experiências históricas acabaram por gerar relativa desconfiança em relação aos deveres
fundamentais.
73
À época das declarações de direitos do século XVIII - entre as quais se destaca a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789 – houve uma
aparente rejeição em integrar uma declaração de deveres. Basta recordar que a preocupação
dominante nessa época tinha por objetivo a instituição ou fundação de regimes constitucionais
suficientemente fortes no sentido de proteção dos direitos e liberdades fundamentais. Isto é, os
novos regimes se opunham de maneira plenamente eficaz a todas e quaisquer tentativas de
regresso ao passado totalitário ou autoritário. Necessário era exorcizar o passado dominado
por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos.
Assim, desde a Antigüidade pode-se constatar a sobrecarga de deveres frente às
minorias de direitos à disposição dos indivíduos. A idéia de deveres constitucionais, tal como
se entende nos dias atuais, foi definida paulatinamente à medida que se reconheciam os
direitos dos particulares. Lembrando que na Antigüidade e na Idade Media, tanto direitos
como deveres eram ainda poucos e limitados a uma pequena classe privilegiada. Apenas com
o advento do Estado de Direito, quando os governantes passaram a se submeter igualmente ao
73
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 491.
59
ordenamento jurídico, é que tem início a discussão em torno dos deveres dos poderes
públicos.
Imperioso, após as experiências históricas, assim como a indiferença que se
assenta nas Doutrinas Modernas acerca do tema deste capítulo, que sejam repensados os
deveres fundamentais e destacada a importância dos mesmos. Destarte, cumpre localizá-los
no Estado Democrático de Direito, ao lado da categoria dos direitos individuais e coletivos. A
partir daí, resta proceder à análise de qual a relação que desenvolvem com o tema da
legitimidade do Estado e do Direito.
3.2 Conceito e fundamentos
Conceituar as obrigações constitucionais não é tarefa pacífica devido à falta de
consenso doutrinário, pela ausência de clareza das Constituições e, principalmente, pela não
existência de uma Doutrina dos deveres – ao contrário do que ocorre com a categoria dos
princípios constitucionais. No Brasil, a Constituição fala em “Direitos e garantias
fundamentais” no Título II e em “Direitos e deveres individuais e coletivos”. As Constituições
de Portugal
74
e da Espanha
75
, por exemplo, apresentam a expressão: “Direitos e deveres
fundamentais”. Na Doutrina, encontram-se as seguintes terminações, tais como deveres
fundamentais, deveres constitucionais, deveres públicos individuais, obrigações
constitucionais ou, ainda, obrigações políticas.
Quando se fala em deveres fundamentais, pretende-se referir a uma categoria
autônoma dentro do sistema jurídico. Neste caso, os deveres devem ser analisados como uma
extensão dos princípios fundamentais, sem, no entanto, confundir-se com estes, para que se
mantenha um equilíbrio entre as prestações e os direitos individuais.
Neste sentido, Bobbio assevera que a afirmação de um direito implica a afirmação
de um dever e vice-versa.
76
Para chegar ao conceito dos deveres, Bobbio parte da moral como
o conjunto de regras de conduta e antídoto aos males que os homens podem causar a outrem;
assim, a moral surge de proibições, mandamentos e, portanto, de obrigações, o que revela
dever como precedente do direito e não o contrário. Independente desta constatação, o
filósofo entende direito e dever como lados opostos de uma mesma moeda, identificáveis de
74
PORTUGAL, Constituição (1976). Constituição da República Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 2002.
(Organizada por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira), Parte I – Direitos e deveres fundamentais. p. 15.
75
ESPANHA. Constituição (1978). Constitucion española. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.,
1979. p. 39.
76
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 9.
60
acordo com o ângulo a ser observada. Tradicionalmente, como dito anteriormente, a moeda
sempre foi observada, preponderantemente, sob o ângulo dos deveres, mesmo porque os
problemas morais eram avaliados privilegiando a sociedade e não o indivíduo singular.
“Para que pudesse ocorrer [...] a passagem do código dos deveres para o código
dos direitos, era necessário inverter a moeda: o problema da moral devia ser considerado não
mais do ponto de vista apenas da sociedade, mas também daquele indivíduo.”
77
Para explicar
esta inflexão, Bobbio parte da relação política entre governantes e governados, os que detém o
poder de obrigar e os submetidos a ele. Sob o ângulo dos governantes, o objeto da política
sempre foi o governo – bom ou mau, ou como se conquista o poder e como é exercido. O
indivíduo, dessa forma, figura nesta relação como objeto do poder vinculado à obediência às
leis. A concepção individualista do século XVIII e o início da Doutrina dos Direitos Humanos
se encarregou dessa inversão, rompendo com a ordem tradicional.
Para Lafer, a obrigação política pode ser encarada de duas maneiras. Enquanto
dever de obediência à lei, é irrelevante saber de que maneira a norma obriga os governados;
importa, pois, a prudência dos governados – obrigação moral – de acatar a norma imposta
pelo Estado, evitando, dessa forma, a sanção. Como dever-se, a obrigação política pressupõe
uma reciprocidade de direitos e deveres na integração entre governantes e governados; o
legislador pode reivindicar o direito a ser obedecido na mesma proporção em que os cidadãos
podem reivindicar o governo pos leis justas. Assim, um desequilíbrio em qualquer dos pólos
certamente desarticulará esta reciprocidade, podendo culminar em uma ordem despótica ou
mesmo em uma desordem.
78
De fato, superada a visão clássica - ou seja, a existência de deveres sem direitos -,
não se pode negar o fundamento lógico-formal e impositivo das obrigações, considerando-se a
previsão legal das mesmas que vincula não apenas governados, mas os próprios governantes.
No Estado Democrático de Direito, tal fundamento é, pois, a própria Constituição Federal.
Assim, os deveres fundamentais devem ser expressões da soberania e jamais devem aspirar
interesses particulares do legislador constituinte; ainda, devem ser amparados sob a égide da
legalidade, sob pena de sanção, tendo em vista que seu descumprimento configura flagrante
violação à Carta Constitucional. Enquanto que os princípios fundamentais são prescrições de
valores, reconhecido pelo Constituinte, as obrigações referidas consubstanciam a exigência de
concretização daqueles.
77
BOBBIO, 1992, op. cit, p. 57.
78
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 189-190.
61
Nabais
79
considera os deveres como um corretivo da liberdade, traduzindo a
mobilização do homem e do cidadão para a realização dos objetivos e do bem comum.
Interessante quando se refere a tais deveres como a “a face oculta dos direitos”. Eis a sua
conceituação: “[...] deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição
fundamental do indivíduo, têm especial significado para a comunidade e podem por esta ser
exigidos.”
De fato, a liberdade individual, princípio fundamental consagrado pelas
Constituições, deve ser entendida de forma limitada, ou melhor, a liberdade individual deve
coincidir com a liberdade coletiva. Um Estado Democrático somente se erige com a
contribuição de todos, inclusive dos Poderes Públicos. As obrigações podem ser tidas, pois,
como regras de organização do Estado, sendo o cumprimento de tais deveres o ponto de
partida – no sentido de construção – de uma sociedade justa e equilibrada.
3.3 Antecedentes dos deveres fundamentais
A Antigüidade não conheceu os direitos individuais, tamanha era a gama de
deveres impostos aos indivíduos. No período democrático dos Estados gregos, a liberdade
política foi o único direito concedido aos cidadãos – parcela ínfima da população -, já que
participavam direta e efetivamente no governo. Em Roma, na época da República, foi
estabelecido um complexo mecanismo de interditos que tutelavam os direitos individuais
frente aos arbítrios estatais.
80
Já houve tempo em que os deveres fundamentais foram considerados como
categorias jurídicas de igual dignidade à dos direitos fundamentais. Desde logo, na
filosofia republicana: a República era o reino da virtude no sentido romano, que só
pode funcionar se os cidadãos cumprirem um certo número de deveres: servir a
pátria, votar, ser solidário, aprender. Neste sentido, a teoria da cidadania republicana
implicaria que um indivíduo teria não apenas direitos mas também deveres.
Na Idade Média, os servos se obrigaram a prestar serviços aos senhores feudais
em troca de proteção. Porém, é nesta fase que o Cristianismo proclama os direitos e deveres
79
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 60. apud
BERARDO, Euclides Celso. Deveres fundamentais: deveres e obrigações constitucionais. 2003. 251 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2003. p. 122.
80
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra:
Almedina, 1999. p. 491.
62
fundamentais dos homens, sendo todos irmãos enquanto filhos de Deus - ideais ainda
aniquilados pelas monarquias absolutas.
Mas a doutrina filosófica que considerou o homem e não mais a sociedade, o
ponto de partida para a construção de doutrinas da moral e do direito foi o Jusnaturalismo, que
pode ser considerado, sob muitos aspectos, segundo Bobbio, a secularização da ética cristã.
Assim, com o Humanismo, a idéia de dever individual se aproxima do justo. Hobbes lança a
idéia de dever de obediência do súdito ao Estado, ao considerar o estado natural beligerante
dos homens. Locke, ao considerar o homem livre em estado de natureza, foi o principal
inspirador dos primeiros legisladores sobre os direitos do homem.
Kant, por sua vez, considera o estado natural como instável e inseguro, no qual o
homem não pode continuar a viver indefinidamente, devendo ingressar a um estado civil. Ele
diferencia os deveres morais – aqueles praticados sem visar a uma finalidade, mas
simplesmente pelo respeito ao dever – e os deveres jurídicos – aqueles exigidos e que devem
ser cumpridos independentemente de uma vontade. Assim, criticava os políticos por não
acreditarem na virtude e na força da motivação moral e por repetirem a história monótona,
retardando, pois, o progresso.
81
É no final do século XVIII – marcado pelas Revoluções Liberais -, que teve início
o movimento Constitucionalista, trazendo o modelo de Constituição escrita, formal e dotada
de supremacia; além disso, os deveres fundamentais passam a decorrer de uma norma
jurídica, assim como os governantes passam a se submeter igualmente às leis, surgindo a idéia
de deveres fundamentais dos Poderes Públicos. Há necessidade de estabilidade e segurança
nos Ordenamentos Jurídicos, com declarado repúdio aos governos despóticos e primazia pela
Democracia. No mesmo sentido, assegura Dworkin
82
:
O direito serve melhor sua comunidade quando é tão preciso e estável quanto
possível, e isso se aplica particularmente ao direito fundamental, constitucional [...]
razão geral para ligar a interpretação das leis e de alguma constituição a algum fato
histórico que seja, pelo menos em princípio, identificável e imune a convicções e
alianças efêmeras.
Muitos autores apontam a Constituição de Massachusetts, de 1780, como a
primeira a trazer um artigo referente à obrigão de cada cidadão de contribuir através de
81
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo:
Abril Cultural, 1980. p. 109.
82
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica de Gildo
Rios. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 438.
63
serviços pessoais ou o equivalente para a organização dessa proteção.
83
Em seguida, a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 previa o dever de obediência, o de
pagar tributos e o de submeter-se à desapropriação. Este documento expressava, no entanto,
interesses dos proprietários burgueses e mais se preocupou com a previsão de direitos.
A Constituição francesa de 1791 trouxe novas formas do poder estatal, cabendo,
porém, à Carta de 1793 uma melhor regulamentação dos direitos fundamentais, além de
consagrar a insurreição como o mais sagrado direito e o mais indispensável dever. A
Constituição francesa de 1795 trouxe em seu bojo uma declaração com nove artigos que
previam deveres de cunho ético. Dentre eles, o artigo 7°: “As obrigações de cada um para
com a sociedade consistem em defendê-la, servi-la, viver submisso às leis, e respeitar as
autoridades.”; e o art. 5°: “Ninguém é homem de bem se não for franca e religiosamente
observador das leis”.
84
A maior efetivação dos direitos humanos e deveres fundamentais aconteceram
durante o constitucionalismo do século XIX; além de deveres clássicos, como a defesa da
pátria e a contribuição com os gastos públicos, outros de cunho genuinamente ético foram
previstos. A Constituição espanhola de Cadiz de 1812, por exemplo, previa deveres de defesa
à pátria, de respeito à Constituição e respeito às autoridades. A Constituição portuguesa de
1822 mencionava o dever de ser justo e o dever de venerar a religião.
85
O início do século XX trouxe diplomas constitucionais fortemente preocupadas
com o aspecto social; exemplos são: Constituição mexicana de 1917, a Constituição de
Weimar de 1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de
1918, seguida da Constituição Soviética no mesmo ano e a Carta de Trabalho editada pelo
Estado Fascista italiano em 1927. A Constituição de Weimar previa em sua parte II os
Direitos e Deveres Fundamentais dos alemães, por exemplo, o da educação dos filhos, da
escolaridade obrigatória e da função social da propriedade.
Em seguida, surgiram as Constituições da segunda metade do século XX que
consagraram direitos constitucionais de terceira geração. Direitos estes de mão dupla, ou seja,
ao mesmo tempo um direito e um dever. Surgem direitos-deveres que, vinculam a atividade
dos Estados a prestações que garantam os direitos dos indivíduos. Como exemplo, a Lei
Fundamental da República da Alemanha, em 1949; a Constituição Francesa de 1946; a
Constituição Italiana, em vigor desde 1948; a Constituição Portuguesa de 1976; a
83
BERARDO, 2003, op. cit., p. 125.
84
Ibid, p. 125 - 126.
85
Ibid., p. 128.
64
Constituição espanhola de 1978; na América, A Reforma Constitucional de 1966, no
Uruguai.
86
A Doutrina solidarista – que trata dos direitos de terceira geração - criou as
obrigações positivas do Estado, os chamados direitos sociais. Partindo do ponto de vista de
que o indivíduo deve desenvolver suas aptidões físicas, morais e intelectuais em benefício da
sociedade, ela concluiu logicamente que o Estado deve favorecer essa atividade, criando todas
as facilidades para o completo desenvolvimento da personalidade humana e obrigando mesmo
a esse desenvolvimento.
3.4 Deveres nas Constituições brasileiras
A Constituição do Império, 1824
87
, embora não dedicasse nenhum capítulo a
direitos ou deveres, dispunha em seu artigo 145: “Todos os brasileiros são obrigados a pegar
em armas para sustentar a independência e integridade do Império e defendê-lo de seus
inimigos externos ou internos.”
As Constituições que se seguiram, de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969
88
,
proclamaram alguns deveres, sem reservar-lhes grande importância. A Constituição de 1937
dispunha no artigo 125: “A educação integral da prole é primeiro dever e o direito natural dos
pais.” As Constituições de 1946, artigo 133, de 1967, artigo 142, § 1°, e 1969 artigo 147, § 1°,
dispunham sobre a obrigatoriedade do alistamento e do voto nas eleições gerais.
Sobre a obrigatoriedade do voto nas eleições sindicais, tratavam as Constituições
de 1967 (art. 159, § 2°) e as de 1969 (art. 166, § único): “é obrigatório o voto nas eleições
sindicais”. Já a Constituição de 1946, ao tratar da ordem econômica e social, dispôs: “A todos
é assegurado o trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.”
Por fim, a atual Constituição do Brasil, ao subdividir o Título II (Dos Direitos e
Garantias Individuais), nomeou o Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.
Cabe ao Estado, portanto, o dever constitucional de respeitar tais direitos. Porém, não há,
neste Título, qualquer dever discriminado, entendendo grande parte dos doutrinadores que se
encontram esparsos e implícitos na totalidade do Texto Constitucional. Destarte, não há que
86
BERARDO, 2003, op. cit., p. 129-130.
87
BRASIL. Constituições do Brasil. Constituição Política do Império do Brasil – 25 de março de 1824. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. p. 45.
88
Id., Todas as Constituições. Compilação dos textos, notas, revisão e índices de Adriano Campanhole e Hilton
Lôbo Campanhole. São Paulo: Atlas, 1971. passim.
65
se falar em reserva da Constituição quanto à previsão de deveres, não enumerados em rol
taxativo. Como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho
89
:
Esta é a primeira vez em que no direito brasileiro a Constituição se propõe não só a
enumerar os direitos, mas também os deveres dos brasileiros e dos estrangeiros
dedicados no País. No texto, porém, não se identifica qualquer dever, salvo o de
respeitar os direitos fundamentais, ainda assim, implícito.
3.5 Deveres na Constituição de 1988
Importante, neste trabalho, o conhecimento dos deveres que integram a
Constituição de 1988, uma vez que, é por meio deste conhecimento que se poderá verificar o
comportamento dos Poderes Públicos perante os mesmos. Lembrando que integram o texto
explícita (Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”)
e implicitamente o texto constitucional. Assim, também o Título II do referido capítulo, “Dos
direitos sociais” também estabelecem deveres aos Poderes Públicos.
Lembrando o que já a pouco se comentou sobre “a face oculta dos direitos”, pode-
se chegar à conclusão que a cada direito presente na atual Constituição Brasileira,
corresponde a um dever. Dessa forma, os direitos fundamentais são reconhecidos, enquanto
que as obrigações impõem limites ao legislador, donde que não há deveres que não
correspondam a um direito fundamental. Canotilho
90
, ao contrário, não considera tal
correspondência, como se verá a seguir, reconhecendo, apenas, “deveres fundamentais de
natureza pontual necessariamente baseados numa norma constitucional ou numa lei mediante
autorização constitucional”. Há, segundo o mesmo doutrinador, uma reserva de constituição
quanto aos deveres fundamentais.
A atual Constituição Federal prevê que todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade.
91
O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, uma vez que
constitui um pré-requisito ao exercício dos demais direitos. A Constituição Federal assegura,
portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em dupla acepção, sendo a primeira
89
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988: arts. 1° a 43. São
Paulo: Saraiva, 1990. v. 1. p. 25.
90
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 492.
91
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de
outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 5°, caput.
p. 35.
66
relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à
subsistência. Ao garantir tal direito, o Estado se obriga de duas maneiras: quanto ao dever de
cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de
obtê-los por seus próprios meios; e a efetivação de órgãos competentes, públicos ou privados,
através de permissões, concessões ou convênios para prestação de serviços públicos
adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um
nível de vida digna mais adequada ao ser humano.
Na mesma linha de pensamento, o artigo 5°, inciso VII, impõe o dever ao Estado
de prestar assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. Cabe,
assim, ao Estado, nos termos da lei, a materialização das condições para a prestação das
condições para a prestação de tal assistência religiosa.
Além dos deveres fundamentais, muitos outros remanescem na Constituição
Federal. Ainda em seu Título II, Capítulo II, estão previstos os direitos sociais, cada qual
imprimindo um dever ao Estado. Destarte, são deveres ao Estado os provimentos à educação,
à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, de proteção à
maternidade e à infância, aos desamparados, nos termos previstos constitucionalmente.
Do mesmo modo, o Título VIII da Carta Constitucional - “Da Ordem Social” –
prevê uma infinidade de obrigações constitucionais. Como exemplo, o artigo 227 dispõe que é
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
Outro é o dever de voto para brasileiros maiores de 18 anos (art. 14, § 1°, I), com
ressalva ao voto facultativo aos analfabetos, aos maiores de 70 anos e os maiores de dezesseis
e menores de dezoito anos, sendo proibido o alistamento aos estrangeiros e conscritos durante
o serviço militar obrigatório (art. 14, § 1°. II e § 2°). Como exemplo de dever implícito na
Constituição, pode-se citar o dever de defesa à pátria como decorrência da soberania, um dos
fundamentos do Estado brasileiro (art. 1°, I, CF).
Poder-se-ia citar uma infinidade de obrigações Constitucionais explícitas e
implícitas em seu texto sob o provável risco de esquecimento de muitas delas. Apesar de a
Doutrina oferecer algumas classificações em relação aos referidos deveres, este tópico não
tem esta preocupação quantitativa. A preocupação qualitativa aqui pretendida cumpre o papel
67
de demonstrar a existência das obrigações constitucionais do Estado brasileiro e enfatizar que
o mesmo também figura como sujeito ativo, prestador das mesmas.
3.6 Tipologia, titulares e destinatários das obrigações constitucionais
De acordo com o princípio do Estado Democrático de Direito, governantes e
governados em geral devem obediência às leis, reservados e protegidos os direitos
fundamentais. A obrigatoriedade do cumprimento dos deveres encontra respaldo no princípio
da supremacia constitucional, segundo o qual, a Constituição Federal corresponde ao
fundamento de validade de todas as demais normas do ordenamento. Basta lembrar que a
Constituição corresponde a um código de preceitos fundamentais, basilarmente de direitos e
obrigações, vinculantes do Estado e da comunidade.
Apesar das diversas classificações doutrinárias, a elaborada pelo mestre
Canotilho
92
bem se aplica ao Direito brasileiro. Segundo o autor, é possível detectar duas
categorias de deveres: deveres cívico-políticos e deveres de caráter econômico, social e
cultural (deveres de natureza jurídica); e deveres constitucionais formais e deveres
constitucionais materiais.
São deveres primordialmente cívico-políticos aqueles correspondentes aos deveres
de defesa da pátria e de voto, cuja titularidade pertence à comunidade estatal. Os deveres de
caráter econômico, social e cultural incluem deveres como a defesa do meio ambiente, da
saúde e do patrimônio, dentre outros, pertencendo a titularidade ativa a todos da comunidade,
inclusive aos entes estatais.
Quanto aos deveres materialmente constitucionais, Canotilho não reconhece
licença constitucional para a existência de deveres fundamentais extraconstitucionais,
reconhecendo, portanto, apenas os deveres formalmente constitucionais. Isto se dá, pois,
diversamente dos direitos fundamentais – apenas reconhecidos, não passíveis de serem
criados -, os deveres correspondem a criações do Poder Constituinte, não havendo a
possibilidade de serem reconhecidos. Assim é que o autor Canotilho defende a reserva de
deveres diversamente do que ocorre com os direitos fundamentais, fator, este que afasta a
equivalência entre deveres e direitos, como se verá no próximo tópico.
Quanto à titularidade passiva das obrigações constitucionais, pode-se dizer que
são pessoas físicas ou jurídicas, o próprio Estado, a comunidade em geral. Beneficiam, pois, a
92
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 494.
68
todos os indivíduos de uma sociedade. Por força do artigo 5° caput da Constituição, não há
dúvidas de que os direitos e deveres são assegurados a todos os brasileiros e estrangeiros
residentes no país. O que deve ser observado, no entanto, é que existem alguns deveres, tais
como os de prestação de serviço militar e de voto, que são destinados aos brasileiros -
residentes ou não no país -, enquanto que outros, tais como o dever de pagar tributos e o dever
de preservação ao meio ambiente, estendem-se a todos os residentes no país. São, portanto,
titulares passivos das obrigações constitucionais, as pessoas jurídicas ou físicas, neste caso,
sendo brasileiros, residentes ou não no país e, sendo estrangeiros, tais deveres se estendem
apenas aos residentes, ainda que não estejam aqui presentes temporariamente.
3.7 Relação entre obrigações constitucionais e direitos fundamentais
A idéia de obrigações constitucionais deve ser entendida como autônoma, porém,
interligada à idéia de direitos fundamentais. De modo diverso, não teria sentido o Capítulo I
referente ao Título II da Constituição Federal, que fez uma síntese dos mesmos, sem sequer se
preocupar em diferenciá-los. De outra forma, tendo-se como ponto de partida um Estado de
Democrático Direito, não haveria sentido a “mão dupla” de direitos e deveres. Ou seja, onde
há um direito, há também um dever a ele vinculado. Propõe-se, assim, que os direitos e os
deveres sejam colocados no mesmo plano constitucional, pois tanto os direitos como os
deveres fundamentais integram o estatuto constitucional da pessoa. Neste sentido, Darcy
Azambuja
93
:
Ora, para que os indivíduos possam desenvolver suas aptidões, agir de acordo com a
solidariedade social, é necessário que o Estado lhes assegure e respeite certas
atividades, que é exatamente o que a teoria individualista denominava de direitos
individuais. [...] os homens [...] tem o dever de ser livres, pois só assim aplicarão
suas aptidões em bem da sociedade, para saldar a dívida que com ela contraíram.
Essa liberdade-dever são os direitos individuais
.
Canotilho
94
, no entanto, não generaliza todos os deveres como correspondentes
aos princípios fundamentais. Assim, classifica os deveres em:
a) Deveres autônomos: não existe um paralelismo entre direitos fundamentais e
deveres; como o dever de pagar impostos, o dever de colaborar nas eleições,
dentre outros.
93
AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 12. ed. São Paulo: Globo, 1999. p. 162-163.
94
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 481-482
69
b) Deveres conexos com direitos fundamentais ou não autônomos: são
correlativos a direitos, como, por exemplo: o dever cívico de voto, relacionado
ao direito de voto; o dever de promoção da saúde associado ao direito à saúde,
dentre outros.
Segundo argumento de Norberto Bobbio, as categorias direito e dever
correspondem às duas faces da moeda da moral. Considera o direito como uma figura
deôntica, que tem um sentido preciso somente na linguagem normativa. Assim, não há direito
sem obrigação, tampouco não há direito e obrigação sem norma de conduta.
95
Nada mais equilibrado e justo, em um Estado democrático, que direitos e deveres
sejam relativos e se correspondam. No tocante à categoria de deveres autônomos, o mais
correto é pensar que, ainda que não imediata, há uma correspondência entre direitos e deveres.
Vide o pagamento de tributos: em teoria, todos os recursos arrecadados pelo governo devem
ser revertidos para o bem comum, para investimentos e custeio de bens públicos (de serviços
públicos como saúde, segurança e educação a investimentos em infraestrutura - estradas,
portos, aeroportos, etc. - e sua manutenção). O imposto, embora não esteja vinculado a um
seviço específico, deve servir - ainda que mediatamente -, às necessidades do Estado e,
conseqüentemente, a comunidade em geral.
Necessário destacar a limitação de direitos por deveres, como por exemplo, o
dever do serviço obrigatório que, sem dúvida, implica na restrição de alguns direitos
fundamentais, tais como o de locomoção, do voto, do exercício de qualquer trabalho ou
profissão, dentre outros.
Quanto à limitação de deveres fundamentais por direitos, os direitos atuam como
defesa para eventuais excessos quando do cumprimento legal dos deveres – por exemplo, o
acesso ao judiciário. Por outro lado, os direitos também podem ser limitados no plano
particular, como no caso de objeção ao serviço militar obrigatório.
3.8 Relação entre obrigações constitucionais e princípios constitucionais
Sendo a posição anterior no sentido de relação entre direitos e deveres, não
haveria porque não havê-la, também quanto à ligação entre obrigações e princípios. Estas
obrigações ou deveres constituem uma teia, sendo cada intersecção desta correspondente a um
95
BOBBIO, 1992, op. cit, p. 8.
70
princípio constitucional, que “amarra” e vincula todas as outras normas à sua observância.
Pode-se dizer, destarte, que o fundamento dos deveres constitucionais se assenta nos
princípios que, por sua vez, encontram-se no mais alto patamar do conjunto das normas
jurídicas. Os princípios constitucionais têm o condão de ditar quais as “regras do jogo”, ou
seja, veicular o modus operandi do Estado Democrático.
Os deveres constitucionais não deixam de ter conteúdo valorativo, uma vez que
atendem aos fins do Estado Democrático de Direito. Tanto que são elaborados pelo
Constituinte com o objetivo de materializar os objetivos daquele. Nenhum dever há que não
tenha como referencial um princípio, de maneira que existe não apenas uma correlação entre
deveres e princípios, mas uma subordinação daqueles em relação a esses.
3.9 Eficácia e aplicabilidade dos deveres fundamentais
Embora pareça, à primeira vista, que a aplicabilidade de direitos e garantias são
similares à dos deveres fundamentais, não é o que acontece. Segundo disposição
constitucional do artigo 5°, parágrafo 1°, “As normas definidoras dos direitos e garantias têm
aplicação imediata”. Quanto aos deveres constitucionais, podem ser classificados como regras
de aplicabilidade limitada, de acordo com José Afonso da Silva
96
. Como tal, possuem eficácia
mediata e indireta e vinculante, estabelecendo um dever para o legislador ordinário,
condicionando a legislação futura; inspiram a ordenação jurídica através da atribuição de
finalidades sociais, proteção de valores da justiça social e revelação de componentes do bem
comum; orientam para a interpretação, integração e aplicação de normas jurídicas e;
condicionam a atividade discriminatória da Administração e do Judiciário, dentre outras
conseqüências de menor relevo.
Os deveres, ainda, dentro da classificação das normas de eficácia limitada,
pertencem à categoria das normas programáticas. Tais normas estabelecem programas de
ação, diretrizes, para a atuação futura dos órgãos estatais e existem difundidas por todo o texto
constitucional. Entretanto, enquanto não editada essa legislação, não estão aptas essas normas
para a produção integral de seus efeitos. Em função disso, afirma-se que sua aplicabilidade é
indireta, mediata e reduzida. Embora o caráter vinculante, à espera de edição de legislação
infraconstitucional posterior que as complemente, não há que se concluir que os deveres
fundamentais não têm uma eficácia nos termos da Constituição, ou apenas nos termos das leis
96
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 176
71
que os concretizam e disciplinam. Neste sentido, assevera Canotilho - marcando decidida
ruptura em relação à Doutrina clássica -, que não há que se falar em simples eficácia
programática, uma vez que qualquer norma constitucional deve ser considerada obrigatória. A
eventual mediação concretizadora não significa que tais normas careçam de positividade
jurídica autônomo, mas que sua positividade justifica a intervenção dos órgãos legiferantes
97
.
Diante desse quadro de incertezas que assombram a concretização de deveres,
imperiosa torna-se a necessidade de uma legislação infraconstitucional integradora para torná-
los efetivos. Neste sentido, Canotilho e Vital Moreira
98
: “Consistindo quase todos os deveres
em obrigações de fazer, e partindo do princípio de que ninguém pode ser coagido a uma
actividade (nemo potest cogi ad factum), eles só tornam efectivos através de cominação das
respectivas sanções.”
De fato, a cominação de sanções aos órgãos públicos pode ser uma solução quanto
ao cumprimento das normas programáticas, como demonstra a histórica condenação do Brasil
em 04 de julho de 2006 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trata-se de fato
ocorrido em 1999, envolvendo o cearense Damião Ximenes, que faleceu enquanto internado
em uma clínica psiquiátrica filiada ao Sistema Único de Saúde. A vítima veio a óbito poucos
dias após a sua internação na clínica e, muito embora o laudo constatasse uma causa mortis
não identificada, Damião apresentava marcas de maus-tratos e tortura. O processo que chegou
à Corte, após a análise pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), imputava
ao Brasil a violação de quatro direitos protegidos pela Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, quais sejam: direito à vida (artigo 4º), à integridade física (artigo 5º), às garantias
judiciais (artigo 8º) e, por fim, à proteção judicial (artigo 9º). Durante a tramitação do
processo, o Brasil reconheceu a violação aos dois primeiros artigos, embora tenha afirmado
que havia tomado as providências cabíveis no sentido de conferir maior fiscalização a tais
estabelecimentos
.
99
97
CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 1050.
98
Id. ; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. p. 149. (destaque do autor).
99
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Condenação Internacional do Brasil por violação de direitos humanos e
cumprimento de sentença sponte sua. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 28 mar.
2008.
72
CAPÍTULO 4 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO
4.1 A vida humana em sociedade: origens do delito e da pena
Já foi ressaltada inicialmente, inaugurando o primeiro capítulo deste presente
trabalho, a idéia de associação inerente aos seres humanos, sustentada pelo interesse ou pela
necessidade de realização de fins coletivos. Destarte, eis o grande benefício da vida humana
em sociedade: a atuação em conjunto voltada para um mesmo objetivo, a preservação da
espécie. Considerado em sua generalidade, este benefício, ao ser materializado em cada
homem, gera inúmeros interesses que, mesmo pertencentes à mesma matriz, diversificam-se
em pretensões muitas vezes colidentes.
Surge o preço da vida em sociedade: o crime, anomalia que não pode ser
concebida fora dos agrupamentos humanos, sendo remediado pela pena, sacrifício infligido ao
autor do comportamento danoso e reprovável. Nas palavras de Carnelutti:
100
Em toda sociedad, grande o pequena, acaecen hechos contrarios al bien común:
homicídio, hurto, traición. Provicionalmente, podríamos dar a estos hechos el
nombre de delitos. Su misma naturaleza, fundada em la oposición al bien común,
demuestra que la sociedad, si quiere vivir, tiene que reaccionar contra ellos. Y, a
propósito, se desarolla, em cierta medida, uma verdadera lucha, como ocurre com
las enfermedades.
La más antigua de las armas empleadas por el hombre em esta lucha es la pena.
A pena consiste em atribuir a determinados homens o poder e o dever de infligir
uma sanção ao autor de um ato danoso à sociedade e por ela reprovável. Qualquer fato
contrário às leis de convivência humana em sociedade é contrário ao Direito; porém, o
combate ao ilícito penal ganha relevância por ofender as mais fundamentais das leis de
convivência. Aqui, volta-se na relevância da harmonia que deve existir quando do impulso
associativo, que deve ser orientado por leis comuns, atendendo aos interesses coletivos.
No entanto, nem sempre foi assim, quando observado o período da vingança
privada que marca o início, a primeira fase por que passou o Direito Punitivo, como se verá a
seguir. Se nesta fase pode-se falar que não havia a necessária coincidência de interesses, e que
a justiça era feita com as próprias mãos, é nesta fase que ganha força a teoria Indeterminista,
100
CARNELUTTI, Francesco. Teoria general del delito. Tradução de Victor Conde. Madrid: Editorial Revista
de Derecho Privado, 1941, (série B, v. 20). p. 1. Em toda sociedade, grande ou pequena, ocorrem fatos
contrários ao bem comum: homicídio, furto, traição. Providencialmente, poderíamos dar a estes fatos o nome
de delito. Sua mesma natureza, fundada na oposição ao bem comum, demonstra que a sociedade, se quer viver,
tem que reagir contra eles. E, a propósito, se apazigua, em certa medida, uma verdadeira luta, como ocorre com
as enfermidades. A mais antiga das armas empregadas pelo homem nesta luta é a pena (tradução nossa).
73
que considera o homem dotado de livre-arbítrio. Assim, seja qual for o estágio de evolução do
ser humano, caberá sempre a ele fazer sua escolha entre o bem e o mal, entre a boa e a má
conduta, entre a honestidade e a improbidade; enfim, lei existe e será observada e cumprida
por quem achar que deve fazê-lo. Como asseverou Aristóteles na sua Ética a Nicômaco
101
, “o
homem é um princípio motor de ações, a deliberação é acerca de coisas a serem feitas pelo
próprio agente”; realizar uma boa ação depende única e exclusivamente de cada um, sendo,
pois, um ato de escolha, livre de qualquer coação, de alheio à sua própria estrutura psíquica e
ás convenções sociais.
Contrariamente, para o Determinismo, a vontade humana é determinada,
condicionada por inúmeros fatores naturais e sobrenaturais físicos, sociológicos, psicológicos,
ambientais, dentre outros. É claro que a liberdade moral, chamada de livre-arbítrio, existe, não
podendo ser contestada. No entanto, o homem não realiza suas escolhas fundamentadas
apenas na liberdade moral, assim como não está vinculado a determinados fatores naturais e
psíquicos. É por isso que muitos deterministas modernos consideram essa relatividade com
relação a esses últimos fatores. Fosse descartado o livre arbítrio, irracional seria julgar
qualquer ação humana, da qual o próprio homem não operou na sua construção.
É certo que, na esfera do Direito Punitivo, é suficiente que o homem mentalmente
saudável pratique uma infração penal, não importando se agiu de acordo com a sua liberdade
moral ou sua liberdade de agir (física) para que seja penalizado. Dessa forma, somam-se
liberdade moral e física condicionando a prática de um ilícito penal. Um desequilíbrio social,
por exemplo, pode despertar a ira dos excluídos, desencadeando o cometimento de infrações
penais. Neste contexto, o Estado, por diversas vezes, acaba sendo o responsável pela criação e
mesmo pela manutenção de um ambiente hostil, despertando os mais recônditos instintos
humanos.
4.2 Evolução do jus puniendi e do Estado
Importante, nesta fase, proceder-se a uma análise acerca das origens do Direito
Penal e sua evolução que acompanhou, de certa forma, a evolução do próprio Estado até
conquistar o status democrático. É nesta história que se encontram os fundamentos e a
construção da legitimidade do jus puniendi, que será dissecada no capítulo final deste
trabalho.
101
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 63.
74
Observada a evolução desta ciência do Direito, imperioso se faz notar que as
práticas penais hodiernas ainda contêm resquícios dos períodos anteriores. Ressalta-se, neste
trabalho, a importância da utilização do método histórico para a melhor compreensão das
instituições preservadas na atualidade. Analisar o jus puniendi, assim, é investigar o
personagem que detém tal direito e, sobretudo, quais as razões históricas e qual a relevância
desta posse para a sociedade. Ainda, compreender, ao final deste, que a evolução é um
processo inacabado, assim como se observa no próprio Direito, refletindo-se,
conseqüentemente, no Direito Penal, na sociedade e no próprio homem.
A maioria dos estudiosos costuma assinalar seis fases por que passou o Direito
Penal; como qualquer divisão histórica, não se pode entendê-las como sucessivas umas às
outras, não havendo uma precisão temporal do início e término de cada uma, mas uma
convivência das mesmas, no sentido de que o final de uma sempre coincide com o início de
outra fase. São elas:
1. Período da vingança privada;
2. Período da vingança divina;
3. Período da vingança pública;
4. Período humanitário;
5. Período humanitário;
6. Período contemporâneo.
4.2.1 Período da vingança privada
Tendo em vista a misteriosa força centrípeta que diminui e reforça os laços entre
os homens, há que se lembrar, neste momento, do velho e sábio brocardo jurídico ubi societas
ibi jus. Porém, não se pode falar, neste período inicial, em uma sociedade juridicizada.
Apenas mais tarde, como afirmou Aníbal Bruno, “irão definir-se, como corpos distintos, a
moral, o direito, a religião, apoiadas todas essas normas, de caráter costumeiro, anônimas,
criadas e crescidas por impulso espontâneo da consciência coletiva, na religião e na magia”.
102
Nos agrupamentos humanos mais primitivos, as associações eram naturais,
espontâneas e carentes de uma autoridade coletiva e aglutinadora, o que favorecia a vigência
de regras obedecidas graças ao temor ao sobrenatural. Não havia qualquer espécie de
102
BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de Direito, 1956, t. I. 1956. p. 65-66.
75
organização jurídica ou política e a obrigatoriedade se impunha pelo temor à religião ou ao
sobrenatural.
Cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos seus parentes ou até mesmo
da sua tribo ou grupo social; não havia qualquer proporção entre ofensa e revide, ou melhor,
este era quase sempre muito superior ao ataque, atingindo o ofensor, ou até a totalidade do seu
grupo ou família. A inexistência de um limite (ausência de proporcionalidade) entre revide e
agressão, bem como a vingança de sangue, marcou um dos períodos em que a vingança com
as próprias mãos constituiu a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos
primitivos.
A vingança privada constituía, dessa forma, uma reação natural e instintiva e, por
isso, foi apenas uma realidade sociológica, não uma instituição jurídica. Já no crepúsculo
desse período, a vingança privada encontrou duas grandes regulamentações, embora não
institucionalizadas: o talião e a composição.
A Lei de Talião, mais comumente conhecida pelo ditado “olho por olho, dente por
dente” representou o embrião do princípio da proporcionalidade, acolhida pelas Constituições
modernas. Apesar de conhecida como pena de talião, não se tratava propriamente de uma
pena, mas de um instrumento moderador da pena. Ao delinqüente deveria ser aplicada uma
represália proporcional ao dano por ele causado. O Talião foi adotado por vários documentos,
representando um grande avanço na história do Direito Penal por limitar a abrangência da
ação punitiva.
Posteriormente, surgiu a composição, através da qual o ofensor comprava sua
liberdade, seja com dinheiro, gado, armas, dentre outros. O dano, neste caso, poderia ser
convertido em moeda ou outros bens, mesmo em se tratando de morte da vítima; neste caso, o
pagamento era feito aos familiares da mesma, sendo devolvida, assim, a paz à tribo ofendida.
Esta prática encerrou este período deixando claro uma busca pelo homem de soluções justas;
pode-se observar uma evolução no sentido da humanização das penas, percebida a
necessidade do constante restabelecimento da paz social.
4.2.2 Período da vingança divina
Nesta fase, tem início um tímido, mas aparente, poder de coesão social, capaz de
estabelecer condutas sob pena de castigos. Isto porque cabia aos magos e sacerdotes aplicar os
castigos aos transgressores. Porém, como na fase anterior, não se podia falar em qualquer
organização política ou jurídica.
76
Consideravam qualquer crime como uma ofensa à divindade, sendo necessária sua
satisfação para abrandar sua ira. Por isso, a punição incidia de maneira rigorosa, com evidente
crueldade, uma vez que o castigo deveria corresponder à grandeza do deus ofendido,
restabelecendo-se, assim, a paz com o sobrenatural.
103
São exemplos, os códigos de
Hamurabi, da antiga Mesopotâmia, e o de Manu, da Índia.
4.2.3 Período da vingança pública
É neste longo período, que se estendeu por toda a Idade Antiga até a Idade
Moderna, que se pode falar no início de uma organização política. No sentido evolutivo, a
sociedade vai aprimorando sua organização e, conseqüentemente, também as regras de justiça
penal. A pena deixa de ter o caráter religioso e passa a ser uma sanção imposta por uma
autoridade pública, ou seja, seu agente de punição não mais é o próprio ofendido ou o
sacerdote, mas sim um líder. Este detinha o poder político, cabendo a ele a aplicação das
penas, ainda cruentas e severas, tendo ampla aplicação as penas de morte (enforcamento,
decapitação, empalamento, dentre outras) e as de mutilação, com o propósito de que os
súditos se intimidassem e temessem seu soberano.
Ainda neste período, porém, numa etapa posterior, o monarca passou a ser
assistido por magistrados quando da aplicação das penas. Porém, as penas não deixaram de
ser cruentas e estabelecidas a qualquer instante e arbitrariamente, mas ganharam o status de
públicas; o monarca, embora as injustiças, a ausência de proporcionalidade e anterioridade
quanto à definição de delitos, aplicava as penas aos ofensores em nome do povo pro ele
governado. Este período marcou a transição da detenção do poder de punição dos particulares
aos entes públicos.
Não se pode olvidar a grande contribuição ao Direito Penal das culturas grega e
romana devido ao alto grau de evolução dos seus povos em relação aos demais. Aliás, foi
somente a partir da tradição greco-romana que se deu início a uma paulatina separação entre o
campo criminal e o sagrado, sendo considerada como um marco da laicização da legislação
penal.
Quanto à Grécia, as contribuições foram retiradas da literatura, incluindo poetas,
oradores e filósofos. Platão (427-347 a.C.), através do seu pensamento idealista, considerava a pena
um meio de manutenção da ordem e paz social. Aristóteles (384-322 a.C), como já foi citado
103
NORONHA, Edgard Magalhães; ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Direito penal. 32. ed. São
Paulo: Saraiva, 1997. v. 1. p. 21.
77
anteriormente, “fez penetrar, por fim, nas suas construções éticas e daí nas jurídicas a idéia do livre
arbítrio, que não se sabe que ação possa ter tido nas práticas penais gregas, mas que veio exercer
considerável influência no Direito penal do Ocidente.”
104
Complementa Aníbal Bruno
105
:
Finalmente, os filósofos gregos trouxeram a debate uma questão geralmente
ignorada dos povos anteriores, a da razão e fundamento do Direito de punir e da
finalidade da pena, questão que preocupou pensadores diversos e veio a ser mais
detidamente considerada no movimento iniciado por Sócrates, com o particular
interesse que se tomou pelos problemas éticos.
Antes de alcançar o caráter público das penas, Roma não fugiu às imposições das
fases anteriores quanto divinas, na Lei da XII Tábuas e no período da Realeza,
respectivamente. Tanto que os vários documentos legados revelam o caráter religioso do
Direito Punitivo inicial. Entretanto, os romanos foram paulatinamente separando o direito da
religião, como bem aponta Enrico Ferri
106
:
Finalmente então foi estabelecida a distinção fundamental entre delicta publica e
delicta privada, todos perseguidos e punidos, uns no interesse do Estado e por meio
de seus representantes e outros no interesse e por ação dos ofendidos. Eram delicta
publica a deserção, a traição, o furto de gado, o furto sacrílego, a danificação das
estradas e edifícios públicos. Duas grandes categorias dos crimes públicos se
encontravam no perduellio e no parricidium (homicídio do homen livre etc). Em
seguida se passou - com o processo extra-ordinem – às penas públicas também para
os crimes privados, afirmando-se com isso de modo constante que a justiça penal é
uma função e garantia do Estado, para a tutela e a segurança da publica disciplina.
Grande foi o aporte romano quando observados os diversos institutos ainda hoje
usados em ramos do Direito que têm suas origens no romano; por exemplo, os princípios
penais como o dolo, a culpa, a imputabilidade o erro, a culpabilidade, as circunstâncias, a
legítima defesa etc.
Na Idade Antiga, somam-se, também, as contribuições dos Direitos Germânico e
Canônico ao Direito de Punição.
De caráter costumeiro, o Direito Germânico teve na composição um dos meios
mais usados para servir como pena; o talião só veio a ser aplicado posteriormente por
influência dos direitos: romano e canônico. O crime era considerado a quebra da paz e podia
ser público ou privado; quanto ao privado, cabia ao ofendido buscar a justiça, geralmente
através da vingança ou mesmo da composição. Nos crimes públicos, o ofensor estava sujeito à
104
BRUNO, op. cit., p. 74.
105
Ibid., 1956, p. 75.
106
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução de Paolo Capitanio. 2. ed.
Campinas, SP: Bookseller, 1998. p. 31. (grifo do autor).
78
vingança da comunidade, sendo declarado fora da lei, sendo a facultado ao ofendido ou
qualquer outro o direito de retirar-lhe a vida.
O Direito Canônico, ao contrário do Germânico, considerava o elemento
intencional no crime, tendo a pena, a finalidade de regeneração ou emenda do criminoso, pelo
arrependimento, ou purgação da culpa. Consentiu punições rudes e severas, mas com a nobre
finalidade da salvação da alma do condenado.
Diferentemente de outras ordenações, em que a prisão era apenas uma maneira de
conter o acusado ou o condenado antes de cumprir sua pena, no Direito Canônico dá-se início ao
uso da prisão como pena-fim, ficando os monges presos em mosteiros, rezando para o alcance da
remissão de seus pecados. Desse modo, foi por influência da Igreja que se acolheu a pena de
prisão. Penitenciária seria o local onde os condenados ficariam para pagar suas penitências, ou
seja, redimir-se de seus erros, analisando seus atos para depois poder voltar à liberdade.
Há que se considerar que, se analisados os dogmas da Igreja Católica, que há uma
nítida preferência pelo perdão ao ódio, ou mesmo pela vingança, suavizando, assim, o caráter
do castigo. Dessa forma é que a Igreja contribuiu para a humanização do Direito Penal,
embora a instituição da Santa Inquisição, de fins mais políticos do que sagrados. Esta foi um
tribunal eclesiástico criado com a finalidade "oficial" de investigar e punir os crimes contra a
fé católica. Julgou e puniu acusados de heresia (doutrinas ou práticas contrárias às definições
da Igreja), punições essas que variavam desde a obrigação de fazer uma retratação pública ou
um peregrinação a um santuário até o confisco de bens e a prisão em cadeia. A pena mais
severa era a prisão perpétua, convertida pelas autoridades civis em execução na fogueira ou
forca em praça pública. Em geral duas testemunhas constituíam prova suficiente de culpa.
Na prática, os pagãos representavam uma constante ameaça à autoridade clerical e
a Inquisição era um recurso para impor à força a supremacia católica, exterminando todos que
não aceitavam o cristianismo nos padrões impostos pela Igreja. Posteriormente, a Santa
Inquisição passou a ser utilizada também como um meio de coação, de forma a manipular as
autoridades como meio de obter vantagens políticas.
Apesar de diversamente fundamentados, esses três direitos contribuíram
maciçamente para a formação do direito penal comum, que predominou durante toda a Idade
Média prolongando-se, após este período, em vários países europeus. Contudo, a maior
influência à formação do Direito Penal se deve ao Direito Romano, graças aos trabalhos dos
glosadores de interpretação e reconstrução do mesmo. Na seqüência, os pós-glosadores e os
79
práticos também contribuíram para o resgate da herança penal, cabendo aos últimos os
primeiros delineamentos sólidos do Direito Penal.
107
Apesar de públicas as vinganças, ainda predominavam as cruentas penas, o livre
arbítrio dos juízes, as leis injustas, os meios inquisitoriais, dentre tantas outras práticas irregulares,
circunstância que favorecia o absolutismo monárquico em detrimento dos direitos humanos.
Uma vez consolidado e concentrado o poder punitivo no Poder Público, este
figurava como instrumento de defesa dos interesses do Estado e da Religião, comumente
coincidentes, fragilizando a segurança pública e as finalidades da justiça punitiva. As penas
continuavam a ser aplicadas aleatoriamente, sem qualquer medida de igualdade, e fundadas
nas condições financeiras e eclesiásticas do réu. A pena de morte era largamente aplicada,
juntamente com meios bárbaros e cruéis (fogueira, esquartejamento, etc.), penas corporais
(mutilações e açoites), o confisco e as penas de infâmia, sem qualquer respeito pela dignidade
humana. O processo penal, de natureza inquisitiva, era secreto, com emprego de torturas e
sem quaisquer garantias para a defesa dos réus.
4.2.4 Período Humanitário
O século das luzes inspirou filósofos e pensadores em favor da humanização das
práticas penais até então adotadas. O surgimento dos movimentos iluministas, neste período,
deu início a uma reviravolta na compreensão da condição humana e suas implicações sociais,
sobretudo a criminalidade. Neste período, a revolução cultural empreendida no continente
europeu proporcionou a alteração do paradigma teológico para o antropocêntrico iniciado no
período do Renascimento, alterando significativamente a relação entre indivíduos e Estado.
A necessidade de modificações e reformas no sistema jurídico-criminal ganhou
relevância, principalmente, nas obras do marquês de Beccaria, filósofo nascido em Milão em
1738. Na sua obra de maior repercussão, Dei delitti e delle pene (Dos delitos e das penas), em
1764, defendeu a essencialidade da publicidade da pena, que também deveria ser necessária e
a menor dentre as opções para uma mesma circunstância. Condenou a interpretação das leis
por magistrados, a obscuridade das leis escritas em latim, a tortura em interrogatórios e
julgamentos, a longa duração dos processos e das penas, dentre outras críticas. Encerrou o
último capítulo da obra discorrendo sobre os meios de prevenção dos crimes, citando, como o
mais seguro, o aperfeiçoamento da educação.
107
NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 24.
80
Magalhães Noronha cita a importância de John Howard no terreno prático como o
responsável por encabeçar o movimento humanitário de reforma das prisões, sendo
considerado por muitos, como o Pai da Ciência Penitenciária. Propôs um tratamento mais
humano ao preso, que deveria ter assistência religiosa, trabalho, separação individual diurna e
noturna, alimentação sadia, condições higiênicas, dentre outros.
108
Até aqui, observou-se uma fase filosófica do período humanitário que
fundamentou a fase jurídica do mesmo, em que se consolidaram os ensinamentos da Escola
Clássica do Direito Penal, com destaques para a Escola Clássica Italiana e a Escola Clássica
Alemã. O pensamento destas Escolas fundamentou-se, especialmente, na teoria jusnaturalista
de Grócio – que acreditava no Direito superior, eterno e imutável – e no contratualismo de
Rousseau, para quem a ordem jurídica era o resultado de um livre acordo de vontades entre os
homens. Embora colidentes em alguns aspectos, coincidiam na conclusão, qual seja: a
existência de um sistema de normas jurídicas anteriores e superiores ao Estado, em oposição à
legitimidade da tirania.
Como representantes da Escola Italiana, podem ser citados grandes nomes:
Caetano Filangieri (1752-1788), Pellegrino Rossi (1787-1848), Giandoménico Romagnosi
(1761-1835), Giovanni Carmignani (1768-1847) e Francesco Carrara (1805-1888), estimado
como o pioneiro na Dogmática Penal. Apesar das opiniões e doutrinas colidentes em diversos
aspectos, alguns são coincidentes, como lembra Aníbal Bruno
109
, de maneira simplificada:
a) O crime é um ente jurídico, uma infração e não uma ação;
b) A responsabilidade penal tem natureza moral, baseada no livre arbítrio;
c) A finalidade da pena é a retribuição, um prejuízo justo.
Romântica, burguesa e movida por ideais éticos, esta Escola se encarregou da
missão de restauração da dignidade humana, além de assinalar a autonomia do Direito Penal.
Na Alemanha, destaca-se Feuerbach (1755-1833), considerado o fundador da
Moderna Ciência do Direito Penal e o grande sistematizador do princípio da legalidade penal.
Genuinamente alemã, esta Escola recebeu forte tendência ao rigor e à meticulosidade,
recebendo a influência de várias correntes filosóficas, sobretudo de Kant e Hegel.
108
NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 26.
109
BRUNO, op.cit., p. 103.
81
4.2.5 Período Criminológico
Também chamada Escola Positiva, seu aparecimento se deve à necessidade de
materializar os ideais da Escola Clássica, iniciando uma enérgica luta contra a criminalidade.
As preocupações ético-jurídicas até então sentidas que depositavam na pena um conteúdo de
retribuição justa, cederam lugar às preocupações de ordem científica, que pugnaram por um
Direito Penal defensor da sociedade. Vingava o prestígio das ciências naturais, com o
emprego do método positivo, com destaque para Augusto Comte (1798-1857), pai do
Positivismo Sociológico. A ordem era o desprezo à Teologia e à Metafísica, as quais tinham
Kant e Hegel como representantes, e que fosse adotado, a exemplo das ciências naturais, o
método experimental para o estudo das ciências humanas. Interessante lembrar que, nesta
mesma época, Darwin elaborou a teoria da evolução das espécies.
Inspirado nessas idéias, o médico psiquiatra Césare Lombroso (1835-1909), dedicou-
se ao estudo da criminalidade. Considerava o delito como fenômeno biológico, sendo o criminoso
nato, fruto de uma anormalidade da espécie humana.
110
Embora as inúmeras críticas desferidas à
sua teoria, que hodiernamente encontra-se praticamente superada, não se pode olvidar sua imensa
contribuição aos estudos da criminologia, fundando a Antropologia Criminal.
Continuando e enriquecendo o trabalho de Lombroso, Henrique Ferri (1856-1929)
fundou a Sociologia Criminal. Para ele, o crime estaria fundado em fatores antropológicos,
físicos e sociais, constituindo um fato humano e social e não um ente humano, como na
Escola Clássica. Destarte, substitui a responsabilidade moral do criminoso pela
responsabilidade social, donde que todo criminoso seria o único responsável pelas suas
infrações.
111
O fundamento da pena seria a defesa social, que seria promovida mais
eficazmente pela prevenção dos delitos que pela repressão dos mesmos. A pena deveria ser
indeterminada, ajustando-se a cada delinqüente para seu retorno ao convívio social.
Outro expoente do Período Criminológico foi Raffaele Garofalo (1851-1934), que
procurou ampliar os princípios da Escola Positiva ao Direito Penal no sentido de elaborar uma
construção mais rigorosamente jurídica dos postulados penais. Considerou o crime como
produto de uma anomalia moral, psíquica, dando preferência ao método repressivo ao seu
110
NORONHA; ARANHA, op. cit., p. 27. Lombroso e Beccaria, embora em rumos diversos, foram os dois
Césares no estudo do crime e da pena. Na frase incisiva de Hafter, o marquês de Milão proclamou ao mundo:
“Homem, conheça a Justiça!” – O médico de Verona diria: “Justiça, conheça o Homem!”.
111
BRUNO, op. cit., p. 114. Sobre esse complexo de sistema de forças condicionantes do fenômeno do crime
baseou a classificação dos criminosos em cinco categorias: natos, loucos, habituais, de ocasião e por paixão.
82
combate – postura estranha ao pensamento da Escola. Recrudesce ainda mais se pensamento
quando defende a pena de eliminação aos criminosos mais graves – irremediáveis.
Sua posição, no entanto, não desviou o rumo definitivo da Escola Criminológica
em prol da defesa social mediante a prevenção dos crimes. Apesar de não ter tomado a
amplitude dos sistemas criminais da atualidade, contribuiu, ao lado do pensamento da Escola
Clássica, para a formação dos movimentos penais ecléticos posteriores. Seu domínio
prevalece na moderna Política Criminal, influenciando legislações e doutrinas no sentido de
aperfeiçoamento ou mesmo de reconstrução do Direito Penal vigente.
4.2.6 Período Contemporâneo
Este período se estende até os dias atuais, em que se mesclam as teorias das Escolas
Clássica e Positiva. Por reunirem várias tendências, as Escolas deste período ficaram
conhecidas por Ecléticas. Segue, a seguir, um breve comentário sobre cada uma.
4.2.6.1 Terza Scuola
Denominada Terceira Escola justamente por ser subseqüente às Escolas Clássica e
Positiva e por adotar um posicionamento contrário às mesmas. São seus representantes, dentre
outros, Bernardino Alimena, Emanuele Carnevale e Giambattista Impallomeni. Acolheu a
responsabilidade moral, ma afastou o livre-arbítrio; o crime foi considerado fenômeno
individual, condicionado pela vontade humana; a finalidade da pena é a defesa da sociedade
com o mínimo de sofrimento individual, devendo ser imposta apenas aos imputáveis.
4.2.6.2 Moderna Escola Alemã
Fundada por Von Lizt no início do século XX, é mais notável das correntes
ecléticas, também denominada Positivismo Crítico, Escola sociológica Alemã ou Escola de
Política Criminal. Utiliza o método lógico-jurídico no âmbito do Direito Penal e o
experimental na esfera das Ciências Penais. Considera o crime um fato jurídico, mas também
humano e social, distinguindo condições interiores (da natureza humana) e exteriores (físicas
e sociais, principalmente, econômicas) do delinqüente. Repele, todavia, as a idéia de
criminoso nato e insiste na influência das condições sociais. Aceita a distinção entre
imputáveis e inimputáveis e defende o caráter preventivo da pena; esta deveria ser realizada
83
no sentido geral (sobre a totalidade dos indivíduos da sociedade) e especial (sobre o
criminoso). Filiado a esta Escola, também: Prins, von Hamel, Gustav Radbruch, Max Ernst
Mayer, Kantorowizc, Eberhard Schmidt, Mezger, dentre outros.
112
4.2.6.3 Escola Técnico-Jurídica
Também chamada Neoclacissismo, teve Binding seu principal representante.
Afasta a interferência da Filosofia no Direito penal. Apesar de sua origem alemã, foi na Itália
sua maior repercussão, sendo a corrente dominante até os dias atuais, a exemplo das doutrinas
de Arturo Rocco, Vincenzo Manzini, Bettiol, Battaglini, dentre outros.
113
Como seus principais traços: a) negação das investigações filosóficas; b) crime
como relação jurídica de conteúdo individual e social; c) responsabilidade moral e a distinção
entre imputáveis e inimputáveis; d) pena retributiva e expiatória aos imputáveis e medida de
segurança aos inimputáveis, confere autonomia ao Direito Penal e, através do método técnico-
jurídico, restringe seu estudo à Exegese, à Dogmática e à crítica restrita no sentido de avaliar
do direito vigente e verificar possibilidades de reforma. São exemplos da influência dessa
corrente de pensamento, o Código Rocco da Itália e o Código Penal Brasileiro de 1940, ainda
em vigor, no que tange à Parte Especial.
4.2.6.4 Tendências atuais de Direito Penal e Política Criminal
Atualmente, existem três tendências divergentes no Direito Penal: o Movimento da
Lei e da Ordem, o Abolicionismo Penal e o Direito Penal Mínimo.
O Movimento da lei e da Ordem, presente nos Estados Unidos e na Alemanha,
acredita que o aumento da criminalidade é devido ao tratamento demasiadamente brando que
a lei dedica ao criminoso. O combate à criminalidade deve ser realizado através da
manutenção da lei e a ordem, e também mediante o enrijecimento do sistema penal com a
edição de leis mais severas e a imposição de penas privativas de liberdade mais longa, ou
mesmo a pena de morte. São seus postulados:
a) a pena tem a finalidade de retribuição (ao delinqüente) e de prevenção: geral
(direcionada a todos os cidadãos, no sentido de ameaça da sanção) e especial
(direcionada ao próprio criminoso, para que não volte a delinqüir);
112
BRUNO, 1956, op. cit., p. 126.
113
Ibid., p. 130.
84
b) quanto mais grave o crime, mais grave deve ser a sanção;
c) a legislador deve instituir tantos tipos penais e tantas penas quantos forem
necessários à manutenção da ordem e da segurança social;
d) a execução da pena deve ficar a cargo, quase que exclusivamente, da autoridade
penitenciária, restringindo-se o controle judicial.
O movimento do Direito Penal Mínimo é uma tendência da Política Criminal que
entende que o Direito Penal deve ser usado somente como ultima ratio, em relação aos
demais ramos do Direito. Dessa forma, cabe ao legislador procurar dirimir a maior quantidade
de conflitos possíveis com normas de Direito, reservando ao Direito Penal apenas os ilícitos
mais graves. Caberia ao Estado a mínima interferência na vida dos particulares, conferindo-
lhes maior liberdade e descriminalizando as condutas puníveis.
De acordo com Zaffaroni
114
:
Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma
proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como
meta insuperável, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais
inalcançável que este hoje pareça [...].
O Abolicionismo Penal, que tem o criminólogo holandês Louk Hulsman e
Foucault seus principais teóricos, tem por desígnio, como o próprio nome sugere, uma política
criminal de eliminação total do ordenamento jurídico penal como forma de controle social.
Essa corrente jurídico-filosófica parte dos fracassos dos fundamentos do Direito Penal e dos
fins da pena para fundamentar sua tese. Considera o Direito Penal instrumento de opressão
utilizado pelas classes dominantes em detrimento dos menos favorecidos.
4.3 Fundamentos do Direito de Punir
O problema referente ao fundamento do Direito de Punir sempre foi assunto de
reflexão por parte dos grandes filósofos e penalistas da história. A investigação sobre este
tema pretende descobrir sua base de sustentação hábil a manter tal direito eficaz e
incontrastável perante a sociedade, ou ainda, qual mecanismo capaz de sustentar esta
titularidade exclusiva do Estado de infligir penas.
114
ZAFFARONI, Eugenio Raúl Zaffaroni. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa
e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 106.
85
Como foi observada no início deste capítulo, a evolução da pena acompanhou a
evolução da sociedade e do próprio Estado. Da vingança pelas próprias mãos, adotada por
uma sociedade ainda primitiva, a vingança passou por um processo evolutivo até ser confiada
ao Estado que, por meio da instituição do Direito Penal, realiza esta função.
Destarte, a função precípua do Direito Penal é a proteção da sociedade, que pode
ser dissociada em: prevenção e punição de delitos e ressocialização dos condenados através da
imposição da pena. É a pena a ferramenta mais antiga e hábil da qual se utiliza o Estado para
a prevenção do crime e para a reprimenda dos criminosos. É na cominação da pena que a
intenção de punir do Estado se manifesta: seja a necessidade de vingar o mal cometido contra
o corpo social, seja a necessidade de, através do castigo, impedir que o mesmo indivíduo
reincida no mesmo crime, seja a necessidade de prevenção de delitos. É por isso que as teorias
sobre o fundamento da legitimidade do Direito de Punir têm a pena como objeto, cada qual
atribuindo uma determinada finalidade à mesma.
O grande desafio enfrentado por tais estudiosos é, pois, pensar em uma fórmula de
punição eficaz, capaz de conter a criminalidade e, ao mesmo tempo, servir de tratamento
àqueles que se afastaram das normas de conduta vigentes na sociedade a qual pertencem. No
entanto, ainda não foi apresentada ao Direito Penal uma fórmula exata, uma solução segura ao
problema, devido à complexidade da questão, o que ressalta a necessidade de seu estudo, dada
a sua grande valia à sociedade.
Pretende-se, aqui, apontar como a fórmula mais eficaz ao problema apresentado, o
cumprimento das obrigações constitucionais pelo Estado, como melhor maneira de prevenir
delitos, isto é: oferecendo condições materiais e morais ao ser humano para que exerça seu
direito de viver. Aqui, de acordo com o sentido que a Constituição adota em seu corpo,
“viver” vai além de simplesmente nascer e existir: a vida humana deve estar acompanhada de
dignidade. E a dignidade de uma vida requer saúde, educação, trabalho, moradia, alimentação,
dentre outras garantias devidas pelo Estado.
Quando se fala em jus puniendi, fala-se em Direito Penal subjetivo. Enquanto o
Direito Penal objetivo consiste em um conjunto de normas destinadas a proteger os bens
jurídicos basilares aos indivíduos e à sociedade, o Direito de Punir consiste na titularidade do
Estado em punir as condutas ofensivas a tais bens, quais sejam: vida, liberdade, segurança,
justiça, bem-estar-social e outros guardados pela Constituição Federal de 1988. De acordo
com Tobias Barreto
115
, a suprema função de punir do Estado está ligada a uma tese de Direito
115
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Brasília, DF: Ed. História do Direito Brasileiro, 2004. v. 5. p. 49.
86
Positivo – Direito Penal objetivo – por meio da qual uma ação é declarada criminosa na qual
incide determinada pena.
Apesar do seu caráter de mão dupla - donde que o delinqüente é punido para o
restabelecimento da paz social - e por mais que teóricos defendam finalidades mais plausíveis
e desejáveis à pena, nunca se poderá afastar seu caráter vingativo, retributivo – que poderá
variar conforme o grau de civilização -, dela indissociável. Desse modo, a necessidade de se
devolver o mal causado - imanente da natureza do ser humano -, teve de ser reeducada,
cabendo apenas ao Estado dispor do direito e dos meios para tal.
Tobias Barreto
116
, grande poeta, filósofo e jurista brasileiro, bem discorreu sobre o
tema, afastando-o de quaisquer valorações e, ainda, desferindo ferrenhas críticas aos
“metaphysicos dos direito” - e tratando-o como um axioma.
O direito de punir é um conceito scientifico, isto é, uma formula, uma espécie de
notação algébrica, por meio da qual a sciencia designa o facto geral e quase
quotidiano da imposição das penas aos criminosos, aos que perturbam e offendem,
por seus actos, a ordem social.
Segundo o mesmo autor, não há porque problematizar um dos elementos
formadores do conceito geral de sociedade – o direito de punir -, uma das primeiras condições
de existência de um povo organizado. Ele defende a vingança através do sacrifício humano
como fundamento do direito de punir, sentimento primitivo veiculado até os dias atuais
através da pena.
117
O que é verdade do direito em geral, accentua-se com maior peso quanto ao direito
de punir, cujo processus histórico tem sido mais rápido e mais cheio de
transformações, trazendo, contudo, ainda hoje na face signaes evidentes de sua
origem bárbara e traços que recordam a sua velha mãe: a necessidade brutal e
intransigente.
Para tal constatação, basta analisar o que representa a pena de morte aceita em alguns
países. Ou então, basta analisar a realidade do sistema carcerário em nosso país para tão logo se
constatar que o faltoso cumpridor da pena não leva lição alguma do cárcere a não ser o
aperfeiçoamento na escola do crime. Caso as prisões fossem apropriadas, inadmissível seria, por
exemplo, que as próprias autoridades permitissem que mulheres dividissem a mesma sela com
homens, prática esta que veio à tona recentemente no estado do Pará. Ou então, não haveria a
menor possibilidade de presidiários controlarem o tráfico de drogas de dentro das selas, prática já
116
BARRETO, op. cit., p. 161, 164.
117
Ibid., p. 171. (destaque do autor).
87
banalizada em nosso país. E ainda, caso não houvesse sentimento de vingança entre os homens,
crimes hediondos e bárbaros não causariam tanta repugnância à sociedade.
Fosse o homem tão pacífico, civilizado e benevolente, não haveria tantos
incentivos sobre o exercício do perdão. O homem ainda não está preparado para, diante de um
agravo, ceder sua outra face. Estivesse ele preparado, as Igrejas não insistiriam tanto na
prática do perdão, tampouco Jesus teria perdido tanto tempo em suas pregações. Não que a
pena não tenha o caráter de ressocialização, mas ninguém pode lhe tirar seu intrínseco caráter
de retribuição. Destarte, quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar,
se é que já não encontrou o fundamento jurídico da guerra
118
.
O conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político. Este ponto é capital. O
defeito das theorias correntes em tal matéria consiste justamente no erro de
considerar a pena como uma conseqüência de direito, logicamente fundada; erro que
é especulado por um certo humanitarismo sentimental, a fim de livrar o malfeitor do
castigo merecido, ou pelo menos lh`o tornar mais brando.
119
Em palavras magistrais, como bem lembrou Tobias Barreto, assim Ihering
120
conceituou o Direito Penal:
[...] é o rosto do direito, no qual se manifesta toda a individualidade do povo, seu
pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza, em summa,
onde se espelha a sua alma. O direito penal é o povo mesmo, a história do direito
penal dos povos é um pedaço de psychologia da humanidade.
Os conceitos de pena e Estado estão intimamente relacionados. Dessa forma, as
teorias que fundamentam um modelo punitivo estão claramente ligadas aos fundamentos que
legitimam o poder do Estado, que devem ser avaliados de acordo com os critérios positivados
e não positivados, que definem a Justiça. O Direito Penal é, portanto, um instrumento estatal
de regulamentação da convivência dos homens em sociedade, uma vez esta corresponde a
uma das funções primordiais do Estado politicamente organizado. Em razão disso, o poder
estatal desdobra-se em poder punitivo, a fim de proteger lesões ou ameaças de lesões a bens
jurídicos relevantes, preservando a sociedade.
O triunfo da pena corresponde ao fracasso do Estado Democrático de Direito. Não
que exista um Estado perfeito. Imperfeições são admitidas da mesma maneira que homens são
de carne e osso. Mas a partir do momento em que um Estado cumpre seu papel perante a
118
BARRETO, op. cit., p. 178.
119
Ibid., p. 177.
120
VON IHERING, Rudolf. Das Schuldmoment im romischen Privatrecht, p. 10. apud BARRETO, op. cit., p. 55-56.
88
sociedade, confere legitimidade ao Direito de Punir, podendo a pena, dessa maneira, ser
aplicada legitimamente ao malfeitor. O triunfo da pena, neste caso, não corresponderia ao
fracasso do Estado e do próprio Direito Penal.
Assim, o fundamento da legitimidade do Direito de Punir, de acordo com as
palavras já citadas do ilustre Tobias Barreto, está na vingança inerente ao ser humano.
Quando o Estado é eficiente e concede condições favoráveis ao desenvolvimento do ser
humano, justo que ele se vingue, ressocialize o infrator e devolva a paz e a segurança à
sociedade. Mas esta vingança deve ser racional e não à semelhança dos tempos remotos e
mesmo contemporâneos. Não cabe aqui a discussão sobre a finalidade da pena como se
ocupam as teorias sobre os fundamentos do jus puniendi. O que deve anteceder esta
preocupação é o que o Estado faz das porções de liberdade cedidas por cada cidadão para que
ele realize um governo bom e justo.
Beccaria afirma que o conjunto de todas as pequenas porções de liberdade cedidas
por cada homem ao Estado constitui o fundamento do Direito de Punir. Assim, todo exercício
do poder que se afastar dessa base é flagrante abuso de poder; é um poder de fato e não de
direito; corresponde a uma usurpação e não mais um poder legítimo. As penas que
ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua
natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a
liberdade que o soberano conservar aos súditos
121
.
O fundamento do direito de punir repousa, pois, na própria Constituição Federal,
ao garantir a inviolabilidade do direito à vida e à segurança que, uma vez violadas, enseja a
mais severa punição - limitadora da liberdade - como produto de um clamor social, e não
como arbitrariedade de seu aplicador. O que, em primeira instância, revela-se como consenso
da maioria, reflexo do espírito democrático de justiça, não apaga o fundamento subjetivo do
direito de punir, fruto da mesma coletividade, que não descansa enquanto não vingado um
mal a ela cometido.
4.4 O Direito de punir no Estado Democrático de Direito
Historicamente, pode-se conceber o Estado Liberal surgido na matriz do
Iluminismo, tendo como características as seguintes premissas: (a) submissão ao império da
lei, (b) divisão de poderes e (c) enunciado e garantias das liberdades individuais. Esta
121
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Vicente Sabino Júnior. São Paulo: Ed. CD, 2001. p. 20.
89
concepção figurou como apoio aos direitos do homem, afirmando a supremacia da proteção
ao indivíduo e à liberdade em contraposição às antigas estruturas monárquicas até então
estabelecidas.
Todavia, o modelo de Estado Liberal, impregnado com os valores e condições
sócio-econômicas da época, com o passar dos acontecimentos, mostrou-se inadequado para
solucionar problemas vitais da sociedade. O liberalismo político, amparado por um sistema de
direitos garantidos, protegia todas as liberdades humanas, até mesmo as liberdades
econômicas. Revelou-se, o Estado, uma máquina anti-humana e ausente nas relações sócio-
econômicas: a permissão ilimitada de direitos individuais fazia com que o mesmo não
interferisse na atividade particular.
Sobreveio a consciência de que a inércia e a neutralidade do Estado perante as relações
humanas eram as responsáveis pela série de injustiças que assombravam a sociedade, acompanhada
dos movimentos sociais dos séculos XIX e XX que reclamaram outra forma de organização da
sociedade, que não apenas a concessão de direitos. Dessa forma, o paradigma liberal de proteção ao
indivíduo foi revertido para um paradigma de cunho social de defesa da coletividade. O Estado
tornou-se, dessa forma, o responsável pela distribuição igualitária das condições fundamentais aos
indivíduos a fim de proporcionar um maior equilíbrio às relações sociais. Para tanto, foi necessário a
conferência de uma intervenção maciça estatal no domínio econômico.
Foi observado, todavia, fatos políticos e sociais ao longo da primeira metade do
século XX, que este novo paradigma figurou como uma luva para a instauração de uma série
de regimes totalitários como o Nazismo na Alemanha, o Estalinismo na União Soviética, o
Fascismo na Itália, o Salazarismo em Portugal, o governo de Getúlio Vargas e a Ditadura
Militar no Brasil, dentre outros exemplos. Todos esses processos políticos e sociais levados a
cabo ao longo de todo o século XX induziram a maior parte dos países ocidentais a adotar o
modelo do Estado Democrático de Direito, verdadeira síntese do processo contraditório
contemporâneo, ao buscar garantir, concomitantemente, as garantias individuais e a defesa da
coletividade, e a liberdade econômica ajustada sem renunciar ao seu poder de ingerência na
regulação dos mercados.
A Constituição Brasileira de 1988 representou uma nova oportunidade para que o
país reescrevesse sua história, até então marcada por golpes, ambições e frustrações políticas,
econômicas e sociais. O reconhecimento da Constituição como lei Maior, composta por regras
e princípios dotados de imperatividade e efetividade, tornou-se uma idéia vitoriosa e
incontestada; um verdadeiro norte para a interpretação do todas as outras normas jurídicas
infraconstitucionais, dando novo alcance a todos os ramos do Direito.
90
É nesta lente de interpretação - a Constituição Federal - que deve ser ajustado o
direito de punir do Estado. A investigação sobre a justificativa da titularidade estatal na
aplicação da pena remete, inevitavelmente, à legitimidade do próprio Estado. No Estado
Democrático de Direito, o exercício do poder estatal somente é legítimo se houver respeito
aos direitos e garantias individuais e sociais, bem como aos princípios constitucionais. Dessa
forma, o problema da legitimidade do Direito Penal atinge a própria questão da legitimidade
do Estado, cujo exercício do poder fere duramente os direitos fundamentais do cidadão.
Há uma estreita relação entre a Constituição e o Direito Penal. O Direito
Constitucional e o Direito Penal nasceram e evoluíram juntos. Com efeito, as idéias políticas
do Iluminismo marcaram o ritmo das idéias penais e constitucionais ao empenharem-se na
fixação de limites do poder do Estado
122
. O Direito Penal contemporâneo assumiu um caráter
subsidiário, passando a ser o soldado de reserva do Estado; sua atuação é ordenada quando
todos os outros meios de controle social fracassam.
O Direito Penal corresponde a um instrumento, uma “arma”, a ultima ratio que o
Estado de Direito se vale quando as outras esferas jurídicas, ou os outros procedimentos do
Direito não são suficientes e eficazes para resolver os conflitos. Assim orienta o princípio da
intervenção mínima do Direito Penal, donde decorrem seus caracteres: 1) fragmentário
(somente os bens jurídicos mais importantes devem ser protegidos pelo Direito Penal) e; 2)
subsidiário (o Direito Penal como último instrumento que deve ser utilizado para proteger os
bens jurídicos). Deve-se, pois, “evitar” o Direito Penal. No mesmo sentido, também pode ser
citado o princípio da insignificância, ou bagatela, acolhido expressamente pelo Ordenamento
Jurídico, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal.
123
Recentemente, em 25/01/2008, o Jornal de Brasília anunciou na primeira página,
ao arrepio dos brasileiros, que o Governo estuda soltar 168 mil presos em todo o país, o que
representa cerca de 40% da população carcerária, para reduzir a superlotação dos presídios.
No mesmo artigo, existe a estatística de que 70% dos presos que são soltos reincidem na
criminalidade e que existem quase dois detentos para cada vaga nas cadeias públicas do país.
122
PEÑA CABRERA, Raúl. Tratado de derecho penal. Parte Geral. Lima, Grijley, 1994, p. 48, apud LOPES,
Maurício Ribeiro. Princípios políticos do direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. v. 3
123
Habeas Corpus 84.412/SP – São Paulo. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: 19/10/2004. “O sistema
jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de
direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas,
da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os
valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa
lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não
importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo
importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.”
91
Na tentativa de ameniza o problema da superlotação é que o Governo estuda esta medida
polêmica. Ou seja, o Governo, ao invés de solucionar, opta por criar novos problemas à
sociedade.
Em novembro de 2007 a população nacional se comoveu com a publicação em
inúmeros jornais sobre a prisão de uma adolescente de 15 anos em uma cela com cerca de
vinte homens em Abaetetuba (PA), estuprada diariamente em troca de comida. Esta violência
sexual sofrida pela adolescente não é um fato isolado no país, informou em reportagem
publicada na edição de 26/11/2007 da Folha de São Paulo. Um relatório elaborado por
entidades brasileiras de defesa dos direitos das mulheres e entregue à OEA (Organização dos
Estados Americanos) em março de 2007 aponta situações de abuso e violência contra detentas
em pelo menos cinco Estados: Rio, Bahia, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul e
Pernambuco. Segundo o relatório, as presas não denunciam seus agressores por medo.
Quanto à questão polêmica da progressão de pena em crimes hediondos, a Lei n.
11.464/07 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, deu nova redação ao artigo 2° da Lei n.
8.072/90, permitindo a progressão em tais crimes. Esta Lei insurgiu contra os anseios da
sociedade na atual circunstância, fortalecendo o medo e a insegurança dos seus entes. Agora o
criminoso cumpre apenas um sexto da pena em regime fechado, o que parece ser um estímulo
inegável à criminalidade, quando se deveria retardá-la.
O Batalhão de Operações Especiais (BOPE), criado em 19 de janeiro de 1978, é a
força de elite de intervenção da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro, destinada para
operações de alto risco, como o confronto direto com narcotraficantes em favelas. Nos
últimos anos, suas atuações tiveram grandes repercussões, principalmente com a edição do
filme “Tropa de Elite” que reproduziu cenas de horror e violência, revelando a face bárbara da
sociedade – verdadeiro retrocesso ao período da vingança privada.
Inúmeras outras notícias poderiam ser citadas denunciando um Direito Penal
incerto, desorientado e ineficiente perante a força e a dimensão da criminalidade. O sistema
penal tem fracassado em seu dever precípuo de prevenir, punição e ressocialização. Como
conter uma criminalidade crescente, cada vez mais especializada? Recrudescendo na violência
repressiva, construindo mais presídios? Revendo a finalidade da pena? Alterando a estrutura
do Direito Penal?
Observada a natureza humana e a longa evolução do homem primitivo ao
civilizado, as relações econômico-sociais entre os indivíduos e o Estado profundamente
alteradas a partir do século XVIII, há que se considerar que a humanidade passa, na
atualidade, por um momento diferenciado de toda a sua história. É quase impossível ou, no
92
mínimo ainda remota, a possibilidade de uma vacina milagrosa contra o crime; houvesse uma
solução infalível contra o mesmo, o Direito Penal perderia sua razão de ser. Mais que na
repressão, é exatamente na idéia de prevenção à criminalidade que se encontram todas as
medidas protecionistas às quais se obrigou e comprometeu o Estado Democrático de Direito
para com a sociedade; medidas que se encontram estampadas no texto constitucional ao
arrepio dos deslembrados.
Nas palavras de Tobias Barreto
124
:
E ao concluir, para ir logo de encontro a qualquer censura, observarei que de
proposito deixei de lado a questão do melhoramento e correcção do criminoso por
meio da pena, porque isto pertence á questão metaphysica da finalidade penal, que é
ociosa, além do mais, pela razão bem simples de que a sociedade, como organização
do direito, não partilha com a escola e com a igreja a difícil tarefa de corrigir e
melhorar o homem moral.
É neste sentido que este trabalho se desenvolve, ou seja, não depositar na
finalidade da pena ou na própria estrutura do Direito Penal o infortúnio da sociedade. De
todas as causas dos males que assombram a sociedade, a mais proeminente é a ineficiência da
máquina estatal. A inércia do Estado no cumprimento de suas obrigações desvirtua o homem
moral, que encontra amparo na criminalidade. Se ao Direito Penal fica a difícil tarefa de punir
em massa, resta ao Estado o “direito ilegítimo” de punir.
124
BARRETO, 2004, op. cit., p. 179.
93
CAPÍTULO 5 LEGITIMIDADE
5.1 Antecedentes históricos
A categoria da legitimidade, embora possa parecer tema de preocupação da
modernidade, esteve presente desde os estudos de Platão e Aristóteles, cada qual com seus
critérios inspirados sempre nos conceitos bom e justo. Interessante que este termo desde
sempre esteve acompanhado da palavra poder que, por sua vez, sempre esteve atrelado ao
vocábulo “governo”. Assim, na polis grega, ser cidadão, membro da sociedade, era ter o
direito de participação na política, dos negócios públicos. Nesta atmosfera é que o poder
legítimo se origina, relacionado à liberdade do cidadão, nela contida o direito de participação
na vida política, e na igualdade dos homens enquanto cidadãos.
No entanto, a palavra legitimus aparece pela primeira vez entre os romanos,
significando tudo o que estivesse de acordo com a lei e com os costumes; daí sua variação,
funcionando como adjetivo: legitimum imperium, legitimum dominium. Toda lei romana era
legítima. Ao contrário dos gregos, os romanos conheceram uma desigualdade política sem
privar a plebe, categoria dos não proprietários de terra, da participação na vida política.
Das histórias grega e romana, a maior lição e contribuição deixada ao tema da
legitimidade foi a criação da lei como expressão de uma vontade coletiva, responsável pelo
estabelecimento dos direitos e deveres dos cidadãos, desmistificando a hegemonia, até então
empregada, da vontade pessoal do governante. Ao criarem a lei e o Direito, asseveraram a
superioridade do poder político
125
em detrimento de todos os outros poderes e autoridades
existentes na sociedade. Por sua vez, a punição de crimes foi reservada a uma instância
impessoal e coletiva – o Estado – que sob a égide do Direito, deteve o monopólio da força, da
vingança e da violência.
Na Idade Média, a Igreja Católica dominava os cenários religioso e político
devido ao seu poder econômico em razão da grande quantidade de terras que detinham,
interferindo diretamente no poder dos reis, que era justificado pelo seu caráter divino. Esse
caráter transcendental do poder, transmitido por ordem hereditária, perdurou até o fim do
período. No século XIV, Santo Tomás de Aquino e Bartolo di Sassoferato criam as primeiras
associações explícitas da noção de legitimidade como uma qualidade do direito ao governo
125
A palavra política é grega, derivada de polis. Assim, deve-se aos gregos a invenção da política propriamente
dita.
94
(legitima potestas)
126
. Em sua concepção, Santo Tomás de Aquino ratificou o conteúdo ético
da legitimidade, opondo-a expressamente à violência e mantendo-se, pois, fiel à tradição
grega.
Ainda neste século, seguindo as lições de Diniz
127
, Guilherme de Occam (1285-
1347) foi o responsável pela primeira formulação do conceito de legitimidade governamental,
derivada do consentimento fundado nas leis naturais. Esta idéia de consentimento baseava-se
no velho argumento medieval quod omnes tanget – aquilo que atinge a todos tem que ser
aprovado por todos. A seguir, Nicolau de Cusa (1401-1464) substituiu a primitiva condição de
inocência presente no princípio jusnaturalista da igualdade pela igualdade como premissa
lógica do consentimento, elemento legitimador do governo
128
.
Hugo Grotius (1583-1645), representante do jusnaturalismo antropológico,
considerou a legitimidade como algo transcendente ao próprio ordenamento jurídico, e não
mais transcendente à condição humana. Para esta corrente de pensamento filosófico-jurídico,
o fundamento do Direito Natural deixou de ser Deus e a lei eterna dele diretamente derivada,
para passar a encontrar-se na razão humana ou na natureza racional do Homem.
Na mesma esteira, Hobbes considerava o Direito Natural de caráter supra-empírico
e imutável, como premissa legitimadora das leis positivas e sustentáculo do pacto social. Este,
por sua vez, legitima o poder político que, uma vez institucionalizado pelo consentimento dos
súditos, torna-se inquestionável na figura do Estado (Leviatã).
129
Contrariamente, esta proposta é rejeitada pelo liberalismo de Locke, que vê nesta
concentração plena de poder do Estado, uma situação de ilegitimidade política e uma ameaça
à sobrevivência da sociedade organizada. O pacto social seria legítimo se estabelecesse a
limitação do poder para o conquistador e a obediência para os cativos. Assim, segundo ele,
“ninguém pode na sociedade civil subtrair-se das leis que a regem”.
130
Rousseau, em sua variante contratualista, transporta a legitimidade para o fiel
cumprimento dos desígnios da vontade geral – vontade soberana -, cujo suporte formal é o
contrato social. O pacto social não prescreve apenas direitos aos cidadãos, mas impõe
obrigações aos súditos e aos soberanos. A vontade do soberano, assim como a vontade dos
126
DINIZ, Antonio Carlos de Almeida. Teoria da legitimidade do direito e do Estado: uma abordagem
moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy, 2006. p. 36-37.
127
Ibid., p. 37.
128
MERQUIOR, José Guilherme. Rousseau e Weber: dois estudos sobre a teoria da legitimidade. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 1980. p. 3 apud DINIZ, op. cit., p. 37.
129
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria; forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Alex
Martins. São Paulo: Marins Claret, 2004. p. 101
130
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret,
2004. p. 74-76.
95
particulares, deve coincidir com a vontade geral sob pena da ruína do corpo político. É assim
que o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes – súditos e soberanos
– a se auxiliarem de forma recíproca, de modo a extraírem todas as vantagens que dessa
relação dependem.
131
A fim de que o pacto social não seja, pois, um formulário inútil, o pacto social
contém tacitamente esta obrigação, que é a única que pode dar força às outras; de
modo que aquele que se recusar a obedecer a vontade geral sê-lo-á obrigado por
todo o corpo: o que significa apenas que será forçado a ser livre; tal é essa condição,
oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal; condição
que promove o artifício e o jogo da máquina política, e que é a única que faz
legítimas as obrigações civis, as quais seriam absurdas sem isso, tirânicas e sujeitas
aos maiores abusos.
No século XVIII, a fragilidade da razão humana propiciou uma atualização nas
bases e diretrizes da esfera jurídico-política. O fundamento do poder e da política deixou de
ser racional, passando para o plano da realidade, próximo da ação e das relações humanas.
Neste momento, em que o Direito se positivava, empenhando uma complexidade e uma
variabilidade em seu conteúdo, nota-se, também, a legitimidade desprendida do plano teórico
e observada no plano real. A legitimidade, dessa forma, faz-se legitimação, ou seja, a questão
é transformada do fundamento para uma ação legitimadora do Estado
132
.
No início do século XIX, duas obras publicadas na França aparecem como marcos
representativos no estudo da teoria da legitimidade: “Do espírito da conquista e da usurpação,
em suas relações com a civilização européia”, de Benjamin Constant, em 1814, após a queda
de Napoleão e; “História filosófica do gênero humano”, em 1822, de Antoine Fabre D’Olivet,
esta de forma precursora na distinção entre legitimidade e legalidade
133
.
Como conceito historicamente variável, a legitimidade novamente ganhou novos
contornos com o advento do Estado Liberal, consequência direta das Revoluções Liberais na
França e na Inglaterra. A ascensão do positivismo jurídico, no século XIX, promoveu a
decadência do modelo jusnaturalista, o que resultou no esvaziamento de conteúdo moral do
conceito de legitimidade. Na esfera política, a legitimidade passou a ser entendida no plano
empírico; na esfera jurídica, foi confundida e equiparada com o princípio positivista da
legalidade.
131
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. Tradução de Vicente Sabino
Jr. São Paulo: CID, 2001. p. 34-35.
132
ADEODATO, João Maurício Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah
Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 55.
133
DINIZ, op. cit., p. 39.
96
Paulo Bonavides
134
enumera três classificações sobre o tema da legitimidade: a
filosófica, a sociológica e a jurídica.
Do ponto de vista filosófico, a legitimidade repousa no campo das convicções
valorativas pessoais, portanto, definida, pois, a partir de critérios subjetivos e axiologicamente
variáveis. A legitimidade não corresponde ao plano da realidade, aos fatos sociais, mas
questiona o poder segundo os preceitos fundamentais que o justificam ou invalidam seu título
ou seu exercício; também questiona o poder acerca de sua desejável correspondência com a
regra moral, a fim de que os governantes mereçam e recebam o assentimento dos governados.
Assim, o aspecto filosófico da legitimidade não procura analisar a realidade e dela extrair o
entendimento sobre o tema; busca-se compreender qual o mecanismo de inevitabilidade,
aceitabilidade ou não do poder político sobre uma comunidade.
Do ponto de vista sociológico, a legitimidade é localizada na realidade social, que
implica em uma teoria dominante do poder para cada época. O conceito torna-se, assim,
variável, adaptável às condições de poder; não há que se falar, portanto, em valorações e em
subjetivismos, tal como no conceito de cunho filosófico.
Juridicamente, a legitimidade supõe uma presunção de legalidade e pode ser
entendida de três formas: 1) como questão de fundo em realação à legalidade, relativa à
aceitação do poder pela opinião pública; 2) como questão ideológica dependente ou, até
mesmo coincidente com a legalidade; 3) como a fiel observância dos princípios da ordem
jurídica estabelecida.
O maior exemplo foi Hans Kelsen (1881 – 1973), autor da Teoria Pura do Direito,
expoente do normativismo jurídico. Numa visão puramente jurídica, excluiu da legitimidade
quaisquer elementos valorativos, restringindo-a à estrutura lógico-formal da estrutura
piramidal do Direito. O problema de efetividade das leis seria objeto de estudo de outras
ciências, tema alheio à ciência do Direito.
Na mesma época, Max Weber (1864-1920) foi o primeiro a se dedicar
especialmente à questão da legitimidade sob uma visão sociológica, e voltado para a nova
realidade do Direito legislado e positivado. Enumera três tipos ideais de autoridade legítima –
tradicional, carismática e racional-legal - , modelos que influenciaram as formulações teóricas
seguintes sobre a legitimidade, como será visto adiante.
Posteriormente, Carl Schmitt (1888 – 1985), considera a legitimidade da estrutura
normativa relacionada à própria autoridade política decisionista, representante do povo na
134
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p.115-119.
97
Democracia. Assim, numa visão neo-hobbesiana, por trás da normatividade estão as decisões
dos representantes do poder
135
. Legítima será a norma jurídica que possuir o caráter de
permanência, de abstração e de impessoalidade. E que propiciar a distinção entre a elaboração
da lei e sua aplicação administrativa e judiciária, decisão tomada pela maioria parlamentar.
Niklas Luhmann (1927-1998), considerado um dos mais importantes
representantes da Sociologia Alemã - que também será analisado posteriormente -, em sua
teoria sistêmica da legitimidade, localiza-a na aceitação dos procedimentos decisórios estatais
nas esferas política e jurídica; a teoria do procedimento corresponde, pois, à tentativa de
redução das ilusões e conformidade das possíveis decepções dos seus destinatários.
Hanna Arendt (1906-1975), política alemã, também se ocupou sobre o tema da
legitimidade. Para ela, numa crítica à teoria do procedimento, a legitimidade do poder,
concentrada em seu núcleo do sistema político-jurídico, poderia ser camuflada pelas várias
camadas sobrepostas sobre ele. Assim, o fato de cada uma delas só ter contato com uma
camada interna e outra externa dessa estrutura, esconderia as verdadeiras dimensões da
realidade.
Jürgen Habermas
136
, como expressivo representante da Sociologia Alemã,
juntamente com Luhmann, propõe a construção da legitimidade do Direito baseado na
dinâmica da linguagem, ou seja, num procedimento discursivo segundo regras previamente
acordadas e consentidas pelos debatedores na arena político-jurídica.
Por fim, Canotilho considera que a legitimidade intrínseca se estende à natureza
justa ou injusta do poder, não se limitando apenas ao título, mas quanto aos seus fins,
aspirações ou valores prosseguidos pelos poderes.
5.2 Conceitos de legitimidade
O tema “legitimidade” sempre esteve presente na história apresentando-se como
um dos assuntos mais intrigantes da Filosofia, da Política e do Direito Público, da Sociologia
e da Teoria do Estado contemporâneos. Interessante é o comentário de João Maurício Leitão
Adeodato
137
sobre o tema: “Tradicionalmente falando, ser legítimo ou ilegítimo tem
assumido, pelo menos no jargão jurídico-político, a mesma importância que o bom e o mau
para a ética, ou o belo e o feio em nível estético. É um ‘topos’.”
135
DINIZ, op. cit., p. 41.
136
Ibid., p. 42.
137
ADEODATO, op. cit. p. 7.
98
A razão para tamanha preocupação é a dimensão que seu conceito tem tomado,
principalmente após o advento do Estado de Direito, assim como as diversas roupagens que os
estudiosos lhe designam. Sobre esta plasticidade da legitimidade, discorre Niklas Luhmann
138
:
Usado na Idade Média como conceito jurídico para a defesa da usurpação e tirania e
com este sentido consolidado e propagado principalmente pela restauração
napoleônica, o conceito de legitimidade perde o seu fundamento moral com a
positivação do direito, que se impôs completamente no século XIX. Primeiro foi
equiparado à posse do poder efetivo, depois foi usado de novo para dominar a
problemática dum princípio de legalidade puramente positivo. Formulado com este
fim, e abstraindo das tentativas para a restauração do direito natural, o conceito foi
impelido para a realidade pura. Hoje ele significa a convicção, realmente divulgada,
da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões,
ou do valor dos princípios que as justificam.
Nota-se que as correntes de pensamento jurídicas têm influência imediata sobre o
termo em questão. Impõe, pois, fazer uma abordagem dos “sinônimos” atribuídos ao termo
encontrados na Doutrina - embora alguns sejam analisados à parte em especial a seguir. Dessa
forma, será possível, dentre as variações, alcançar o conceito mais aceitável e coerente com a
realidade.
Adeodato
139
enumera dois critérios para se auferir a legitimidade: 1) formais: sem
conteúdo empírico definido, referindo-se apenas ao modo através do qual os governos se
sucedem e se institucionalizam, como o dizer de que é legítimo o poder que obteve adesão
eleitoral da maioria ou o poder do monarca herdeiro; e 2) materiais: apresentam uma instância
de referência empiricamente comprovável, de conteúdo definido, como dizer que não é
legítimo um poder, mesmo temporariamente efetivo, que não permite a liberdade de
associação dos súditos ou matiza seus direitos políticos pela cor de seus olhos ou por quantos
acres de terra possuem. Segundo o autor, nestes últimos critérios deve ser embasado o
conceito de legitimidade:
140
Se o direito é um fenômeno histórico e, como tal, contingente em muitos dos seus
aspectos, o conceito de legitimidade procurado naquelas características que
permanecem ao longo da mutabilidade; em todo processo de mutação é
indispensável a existência de um núcleo constante, sob pena de não se poder sequer
identificar a mudança.
138
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte- Real.
Revisão: Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília, DF: Ed. UNB, 1980. p. 29.
139
ADEODATO, op. cit., p. 19-20.
140
Ibid., p. 21.
99
Tércio Sampaio
141
diferencia a questão da legitimidade de validade, efetividade e
obrigatoriedade ou imperatividade do sistema. Explica ele que validade e efetividade das
normas de um sistema normativo estão referidas à imperatividade do sistema. A questão da
legitimidade surge diante do caráter ideológico da própria imperatividade, ou seja: refere-se
não ao modo como o sistema normativo estabelece a sua imperatividade, mas à justificação
(fundamentos) do próprio modo como isto é feito. O fundamento da legitimidade é sempre
momento de força ideologicamente justificada.
O mesmo autor localiza estes fundamentos – anteriormente citados – nos quadros
de uma pragmática lingüística, em justificações do discurso normativo, decorrendo
diretamente do caráter racional do discurso. Ele parte do pressuposto de que o discurso é
submetido a um dever de prova, sendo dentro desses limites que a questão da legitimidade
deve ser proposta. Por fim, coloca a questão tipicamente pragmática, de como a legitimidade
se transforma em legitimação, ou seja, superada a questão “que é legitimidade”, surge outra
do tipo “como o discurso normativo se legitima?”.
Curiosamente, neste sentido, o discurso normativo, enquanto dogmático, é um
discurso aberto no sentido de viabilidade das decisões, mas que, por isso, corre o
risco de absolutizar-se. Toda vez que ele nega seu momento dialógico e vê apenas
seus valores mentalizados ideologicamente como os únicos prevalecentes, ele se
exime de suas próprias regras e se torna irracional. Esta irracionalidade é que o torna
ilegítimo”.
Paulo Nader entende a palavra validez em sentido genérico, abrangendo os vários
atributos do Direito: vigência, eficácia, efetividade e legitimidade. A legitimidade do Direito
encontra-se em seu fundamento ético. “A dimensão axiológica, no Direito, atua como fonte
legitimadora, e a sua impropriedade gera problemas de efetividade que, em cadeia de efeitos,
podem levar à perda de vigência”. Para tanto, o Direito Positivo apresenta um mecanismo de
força, que visa assegurar o comprimento de suas disposições e a compensar violações
irreparáveis do direito. Mas a força deve atuar como complemento de uma sólida estrutura
ética, a fim de que o Direito Positivo se imponha legitimamente nas relações sociais
142
.
Nos sistemas democráticos, de acordo com Berloffa, a legitimação se dá no
momento da escolha e identificação dos governantes (representantes legais) e, ainda, na
141
FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. A legitimidade pragmática dos sistemas normativos. In: MERLE, Jean-
Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 288-297. O caráter
dogmático do discurso normativo revela um modo específico de racionalidade que consiste em não eliminar,
ao contrário em assumir aporias como ponto de partida do seu discursar, estabelecendo premissas que apenas
contornam a aporia, as quais se mantêm na medida em que estão abertas a um confronto com outras
possibilidades.
142
NADER, Paulo. Filosofia do direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 56-68.
100
estruturação do exercício do poder por intermédio da Constituição. Ou seja, o povo elege,
confere poderes aos seus representantes, que devem, pois, exercê-lo de acordo com os
mandamentos da Constituição. No tocante à estruturação do exercício do poder, há a criação
de uma teia complexa de cargos e funções delimitadoras das competências individuais dos
vários governantes (Presidente, Governador, Senado, etc.) a fim de propiciar a existência de
um exercício de poder justo e em sintonia com os interesses do grupo
143
.
Para Luís Fernando Coelho
144
, a questão da legitimidade pode ser relacionada com
dois aspectos: a positividade - conceito tradicional - e a juridicidade. A positividade do
Direito, para o autor, reflete o caráter dogmático desta ciência, que encerra as idéias de
vigência, historicidade, eficácia, legitimidade, legalidade, validade, faticidade, efetividade e
observância. Este conjunto de elementos característicos (segundo o autor, “o uso lingüístico
dessas expressões”) faz do direito um ser atual, existente em si mesmo no tempo e espaço;
isto reflete uma manipulação ideologia que reforça a ordem social confundida com a ordem
jurídica. Através deste pensamento jurídico tradicional é que o autor parte para estudar o
princípio da legitimidade, “para onde convergem os pressupostos ideológicos da unicidade,
estatalidade e racionalidade”. Há uma exigência também racional para que o direito seja
considerado legítimo, qual seja: a crença ideológica de que o Estado é legislador absoluto e
neutro em sua racionalidade.
A legitimidade é a qualidade ética do Direito, a maior ou menor potencialidade para
que o direito positivo e os direitos positivos alcancem um ideal de perfeição. Esse
ideal, espaço privilegiado da ideologia, pode ser provisoriamente identificado com a
justiça, ou certos valores que representam conquistas da humanidade, principalmente
os direitos humanos.
No conceito de legitimidade, segundo Bonavides, entram as crenças de
determinada época, que presidem à manifestação do consentimento e da obediência. Segundo
o autor, a legitimidade possui exigências delicadas, uma vez que se refere a um problema de
fundo, que pode ser questionado acerca da justificação e dos valores do poder legal.
Considera a legitimidade como a legalidade acrescida de sua valoração. É o critério que se
busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder
às situações da vida social que ele é chamado a disciplinar.
145
143
BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas.
Campinas, SP: Bookseller, 2004. p. 289.
144
COELHO, Luís Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991. p. 351-358.
145
BONAVIDES, 1998, op. cit. p. 112.
101
Fica claro que a legitimidade apresenta um forte caráter ideológico, na medida em
que constitui elemento de justificação do poder relacionado ao Direito e ao Estado. Ela deve
ser situada, inicialmente, como uma qualidade extrínseca e desejável do poder e jamais se
confundir com ele – mesmo porque, a exemplo dos sistemas ditatoriais, há um poder de fato
desprovido de legitimidade. No entanto, tendo vista o Estado Democrático de Direito, a
legitimidade se consubstancia como elemento intrínseco do poder, dele não podendo se
dissociar sob pena de violação do pacto social – sustentado pela vontade da maioria e pelo
poder político assentado nos princípios da legalidade e da legitimidade.
Um poder que se pretende legítimo, deve reunir legitimidade formal, vista nos
sistemas democráticos como o direito de sufrágio, de escolha de representantes do povo pelo
povo; e legitimidade material, localizada no exercício de poder, que deve coincidir com os
anseios do povo - detentor do poder - consubstanciados na Constituição Federal. Aqui, a
legitimidade reúne também elementos subjetivos, como o consenso dos ideais, os
fundamentos, os valores e os princípios ideológicos. Sua concretização supõe o exercício do
poder ditado pelas concepções de justiça de determinada coletividade. Neste sentido, a
legitimidade pode ser encarada como um processo de legitimação que ocorre não por mera
obediência ou aceitação, mas por seu atributo intrínseco de realização da justiça.
5.3 Legitimidade e legalidade
Não se pode conceber uma sociedade política e juridicamente organizada baseada
exclusivamente na força material do poder. Todo poder, seja ele político ou jurídico, é
amparado por uma carga de valores consensualmente aceitos e que refletem os interesses, as
aspirações e as necessidades de uma determinada comunidade. Esta adequação do poder à
realidade, segundo Wolkmer, marcada por um processo de dominação social, aceitação e
obediência coletiva, bem como a justificação de estruturas normativas, profeta a
problematização da temática legitimidade e legalidade.
146
Trata-se de uma questão clássica a ser discutida pela Filosofia Política, mas com
larga implicação na Teoria Geral do Direito. “Tendo em vista a estreita relação entre
Direito e Poder Político, torna-se essencial que a ordem legal, que organiza e
justifica o exercício do poder de uma sociedade, venha a ser justa e moralmente
compartilhada pelos membros da comunidade. Ora, enquanto os cientistas políticos
discutem a legitimidade como representação de uma teoria dominante do poder e sua
valorização no que se refere à autoridade, dominação, soberania e obediência, os
juristas tendem tradicionalmente a identificar e apresentar como sinônimos as
146
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 83.
102
expressões legalidade e legitimidade, ou seja, ambos expressam genericamente uma
conduta ou realidade compatível com a existência e a submissão a um corpo
sistematizado de leis.
A identificação tradicional que os juristas fazem a acerca dos institutos da
legalidade e da legitimidade, assim como o maior privilégio dado à legalidade na atualidade,
em detrimento da legitimidade, motiva a necessidade de esclarecimento dos mesmos. Para
tanto, deve-se levar em consideração todos os aspectos de conceituações, diferenças, evolução
histórica, evolução doutrinária e critérios para uma nova fundamentação de legitimidade.
Deve-se partir, portanto, em primeiro lugar, do aspecto valorativo que comporta o
conceito de legitimidade, responsável pela sua variação conforme o momento histórico e os
interesses dominantes. Assim, chegando-se ao Estado Democrático de Direito, em que o
poder pertence ao povo, o conceito deve ser moldado sem perder de vista a vontade da
maioria e deve, obrigatoriamente, acompanhar o poder do Estado; da mesma forma, a
legalidade fica atrelada a esta concepção, dela, também não podendo se fastar.
Historicamente, foi na Grécia Antiga, berço da Democracia, onde surgiram,
também, os princípios de legalidade e legitimidade do poder. Considerando as paixões
humanas, os filósofos nos legaram em suas obras, a desejabilidade de submissão dos homens
ao soberano servo das leis. Enquanto que a legitimidade era identificada como o governo dos
homens pelos próprios homens passíveis de abusos do poder, a legalidade era considerada
segura, uma vez que as leis exprimiam a vontade geral.
Aristóteles argumenta que num mundo onde a maioria dos indivíduos se encontra
submetida às paixões, é preciso conceber uma polis dotada de leis justas. Para isso, é
necessário estudar a ciência da legislação a qual é uma parte da Política. É melhor ser
governado por leis do que por excelentes governantes, porque as leis não estão sujeitas as
paixões, enquanto que os homens, por mais excelentes que sejam não estão livres delas.
Os termos legalidade e legitimidade foram confundidos pelos Direitos Romano e
Canônico, que preconizavam que todas as leis eram justas. O princípio da legalidade nasceu
da necessidade de se obrigar governantes arbitrários aos mandamentos da lei; esta, enquanto
produto da razão estaria, aos menos teoricamente, livre das influências das paixões e de
interesses particulares. Tal princípio emergiu como verdadeira garantia aos governados, no
sentido de confiança e tranqüilidade quanto ao poder dos governantes sobre eles exercido.
Assim, a legalidade significou uma reação ao Antigo Regime - dado o poder
absoluto e irrestrito que detinham os reis – tendo se desenvolvido no século XVIII, na França,
sob os ideais da Revolução Francesa, baseados, sobretudo, nas teses do da doutrina
103
contratualista. A legalidade foi entendida como a consagração da liberdade – acima dos
homens pairava apenas a lei e não mais o poder arbitrário de poucos homens. Dada a
importância, natural que tal princípio não hesitou em compor o conteúdo das Constituições
revolucionárias da época, ainda persistindo e compondo de forma fundamental os documentos
constitucionais contemporâneos.
O impasse entre os dois termos surgiu na França monárquica à época da
Restauração (1814-1830), resultado de um conflito entre conservadores e realistas,
restauradores adeptos da legitimidade de um governo representado pela monarquia
constitucional, e os liberais progressistas que, inspirados nos ideais da Revolução Francesa,
sustentavam a importância da legalidade de um governo respaldado pelo Código
Napoleônico
147
. O Código Civil, promulgado em 1804, representou a manifestação jurídica da
vitória da jovem burguesia francesa sobre a antiga nobreza fundiária e seus privilégios
feudais. O marco da cisão entre os termos legalidade e legitimidade ocorreu na França em
1815, no calor do antagonismo entre a monarquia tradicional francesa e a legalidade do
Código napoleônico.
O cenário era de divergências políticas, em que se opunham a legitimidade dos
conservadores em prol da monarquia, e a legalidade dos liberais em prol de uma monarquia
constitucional. Com a queda do Império Napoleônico, em 1815, a monarquia é restaurada na
França. Em 1830, os burgueses derrotam o rei Carlos X, devido às suas medidas arbitrárias de
cassação de liberdades, e apóiam Luís Felipe I. É neste momento - quando a legalidade se
impõe à legitimidade – que tais termos, além de se dissociarem, iniciam uma história de
descompassos. O racionalismo empírico e positivista da época se encarregou em transpor a
ordem de hierarquia, passando a legalidade a se impor perante a legitimidade, como símbolo
revolucionário de liberdade.
A própria História – quando do aparecimento do Estado liberal de Direito - se
encarregou em alterar o eixo de poder: seu norte passou a ser a legalidade, contrariando a
tradição, segundo a qual, a legalidade era fundada na legitimidade. A legitimidade, até então
era relacionada à tradicional autoridade, à hereditariedade do poder – o governo dos homens
pelos homens. Cabia ao Estado legislativo elaborar leis gerais e abstratas.
Assim, o marco do Direito Positivo Moderno foi a conversão - ou a submissão -
da legitimidade em legalidade. Isto significou a supremacia do Direito posto pelo Estado
perante todas as outras formas de Direito até então vigentes: o Direito Natural e o
147
SCHMITT, Carl. Legalidad e legitimidad. Madrid: Aguilar, 1971. p. XXV-XXVI. apud DINIZ, op. cit., p. 112.
104
consuetudinário. Esta institucionalização assumida pelo Estado reuniu três características: 1)
submissão do Estado ao império das leis; 2) “divisão” do poder – harmônicos e independentes
- entre executivo, legislativo e judiciário; 3) afirmação e garantia dos direitos individuais.
Objetivava-se, mediante o império da lei, a imunização da sociedade contra os
possíveis excessos do poder político e a concretização dos propósitos constitucionais liberais
– os direitos e garantias individuais.
148
Com efeito, a concepção imanente ao Estado liberal de Direito é, por natureza,
refratária aos excessos, desvios e ao uso não-regulado do poder. A doutrina do
liberalismo político parte de uma dupla premissa: a manifesta desigualdade nas
relações entre o cidadão e o Estado, aliada a uma desconfiança ínsita no apetite dos
homens pelo poder, e sua tendência ao abuso deste último, para justificar a
necessidade de tais instituições permitirem ao cidadão o uso de mecanismos
constitucionais aptos a restringir e controlar o monopólio estatal da força mediante a
instituição de uma série de proibições e freios.
O Constitucionalismo serviu como uma luva em meio às arbitrariedades dos
monarcas: elevou as Constituições como centros irradiadores de poder, submetendo todos,
povo e representantes do poder, e inclusive as leis infraconstitucionais aos seus ditames.
Corrobora Canotilho
149
:
A ideia constitucional deixa de ser apenas a limitação do poder e a garantia de
direitos individuais para se converter numa ideologia, abarcando os vários domínios
da vida política, económica e social (ideologia liberal ou burguesa). Por isso se pôde
afirmar já que o constitucionalismo moderno é, sob o ponto de vista histórico, um
«produto da ideologia liberal.
Outras duas crises históricas abalaram o princípio da legalidade e da legitimidade,
deturpando seus conceitos. A primeira se deu com o Manifesto de Marx, seguida das teorias
de Lênin, Trotski e Lukács, que deflagram a lei como instrumento da sociedade de classes e
superestrutura social da opressão burguesa e consolidando privilégios econômicos. A segunda
crise se deu com o nacional-socialismo, fruto da liberdade irrestrita, que culminou em
excessos legais, tais como se deu com o regime nazista na Alemanha, com a ascensão de
Hitler e com a ditadura socialista na Tchecoslováquia, dentre outros regimes arbitrários
provados pela História.
A teoria contemporânea se incumbiu da aproximação dos termos legalidade e
legitimidade, representada pela chamada legitimidade legal – racional. Tal mérito coube a
Max Weber que distinguiu várias categorias de legitimidade, apoiadas na racionalidade da lei
148
DINIZ, op. cit., p. 99-100.
149
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 64.
105
e em critérios de religião, carisma, tradição e emoção. Estabeleceu as conexões entre
legalidade e legitimidade, tendo em vista o consenso entre os termos. Mesmo sob uma
perspectiva liberal, reabilitou e atribuiu um caráter de validez universal à noção de
legitimidade, dando-lhe novos contornos.
No sistema jurídico brasileiro, a legalidade figura como princípio constitucional,
assim previsto no artigo 5°, inciso II da Constituição Federal, com o seguinte teor: “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.” Sob a
roupagem de princípio, esta norma impõe a observância das leis a todas as pessoas – físicas,
jurídicas, governantes e governados -, que compõem o Estado. A base da legalidade encontra-
se, pois, na Constituição Federal, fazendo deste documento verdadeiro mecanismo de controle
de todo funcionamento do sistema e do exercício de poder.
Segundo Paulo Bonavides
150
:
A legalidade supõe, por conseguinte o livre e desembaraçado mecanismo das
instituições e dos atos da autoridade, movendo-se em consonância com os preceitos
jurídicos vigentes ou respeitando rigorosamente a hierarquia das normas, que vão
dos regulamentos, decretos e leis ordinárias até a lei máxima e superior, que é a
Constituição.
A legitimidade, segundo o mesmo autor, requer exigências mais delicadas que a
legalidade, uma vez que levanta problemas de fundo, questionando a justificação e os valores
do poder. Segundo ele, mais importante que a compreensão e aplicação do conceito, é o
aspecto de aceitação ou negação do exercício do poder na vida social.
A legalidade de um regime democrático, por exemplo, é o seu enquadramento nos
moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o
poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças,
os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia
democrática.
151
5.4 Teoria da racionalidade progressiva de Max Weber
Max Weber (1864-1920) foi um intelectual alemão, jurista, economista e
considerado um dos fundadores da Sociologia. Foi o primeiro a se dedicar à questão da
legitimidade sob o prisma da nova realidade do Direito, então legislado e positivado. Seus
150
BONAVIDES, 1998, op. cit., p. 111.
151
Id., 1988, op. cit., p. 112.
106
critérios e categorias tornaram-se ponto de partida para uma discussão sistemática do tipo de
legitimidade das sociedades democráticas.
Como sociólogo, Weber demonstrou a legitimidade no plano empírico, não se
preocupando em sistematizar seus fundamentos de validade, ou relacioná-la aos conceitos:
bom e justo. Não considerou a legitimidade como “algo”, mas como uma relação, e graças a
ela o poder se desdobra em dominação. Para tanto, pretendia descobrir as razões de
obediência em determinada ordem de domínio, responsáveis pela estabilidade e conservação
de um regime político. Falar sobre a legitimidade, para ele, significava falar sobre as razões
de obediência. “A dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um
determinado mandato pode fundar-se em diversos motivos de submissão.”
152
Segundo o
mesmo autor, a obediência pode decorrer de: 1) interesses – vantagens ou inconveniente por
parte do súdito; 2) mero costume de uma prática irracional já arraigada e; 3) puro afeto à
autoridade reconhecida.
Porém, salienta o autor que uma obediência fundamentada nesses motivos tende a
ser relativamente instável. As relações entre dominantes e dominados geralmente se apóiam
em bases jurídicas, onde repousa a sua legitimidade; o abalo desta base jurídica, e
conseqüentemente, da legitimidade, pode acarretar graves conseqüências às relações delas
decorrentes. Dessa forma, entendeu a legitimidade como elemento essencial do poder, porém,
não amparada exclusivamente na coação, na força ou violência.
Esta, porém, é considerada a ultima ratio para fazer valer a vontade do titular da
autoridade. Em toda submissão ou obediência existe um mínimo de interesse em obedecer, o
que sustenta a relação, e o que lhe dá legitimidade. Mas não basta este mínimo de interesse;
como interessa às autoridades prolongarem-se no poder, devem despertar a crença de sua
legitimidade nos membros da coletividade, para que seus membros a reconheçam e a desejem.
A tipologia clássica de legitimidade por ele criada consiste nos modelos:
5.4.1 Dominação legal-racional
Característica das sociedades ocidentais modernas. É legal em virtude do estatuto
sancionado corretamente quanto à forma. Assim, obedece-se não à pessoa em virtude de seu
direito próprio, mas à regra estatuída, que vincula, inclusive, a autoridade a quem se obedece.
Este tipo de dominação busca a racionalização da dominação através da formalização de
152
COHN, Gabriel (Org.). Max Weber: sociologia. Tradução de Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2002. (Grandes cientistas sociais). p. 128.
107
regras imunes de influências sentimentais e pessoais. É nesta neutralidade do corpo
administrativo – que atuam em prol do cumprimento do direito positivo – onde reside a
validade legítima das ordens políticas do Estado Moderno. Ou seja, a legitimidade do poder
repousa na imperatividade das leis – gerais e abstratas -, que estabelecem competências e
fixam direitos e deveres. A burocracia, para ele, constitui o tipo tecnicamente mais puro da
dominação legal, a qual se identifica com toda a história do desenvolvimento do Estado
moderno.
5.4.2 Dominação tradicional
Descansa sua validade nas crenças cotidianas e costumeiras e na santidade das
tradições representadas pelas pessoas que exercem o comando. O conteúdo das ordens está
fixado pela tradição, cuja violação por parte do senhor viola a legitimidade do seu próprio
domínio.
153
Em conseqüência, a sociedade goza de uma estabilidade, na medida em que
depende diretamente da crença e aceitação da tradição pela consciência social.
5.4.3 Dominação carismática
Apoiada nas qualidades pessoais, na mistificação, no heroísmo, no poder
intelectual ou de oratória de um indivíduo (príncipe, guerreiro, chefe político).
A obediência ao líder se dá exclusivamente por suas qualidades excepcionais e não
em razão da posição por ele ocupada ou de sua dignidade tradicional; a duração do poder
depende do tempo que durar tais atribuições
154
.
Os estudos de Weber motivaram diversas interpretações, principalmente por parte
dos publicistas e juristas em geral, que identificaram legitimidade e legalidade. Mas não se
pode afirmar que assumiu uma postura positivista.
O modelo de legitimidade racional-legal, que caracteriza os Estados modernos,
pretendeu minimizar as arbitrariedades dos soberanos mediante a formalização de leis gerais e
abstratas e legalmente controladas. Seu intuito foi legitimar um poder artificial e impessoal,
isento às paixões e digno de obediência aos comandos dele emanados. Dessa forma,
perfeitamente aceitável seria a teoria weberiana e teoricamente eficaz. Porém, na prática, a
153
COHN, op. cit., p. 131.
154
Ibid., p. 135.
108
legitimidade quase sempre se perde, seja pelo não comprimento das leis, seja pela possível
articulação estatal do poder.
5.5 Legitimação pelo procedimento de Niklas Lumhann
Niklas Luhmann (1927-1998) é considerado um dos principais expoentes da
Sociologia Jurídica alemã dos últimos quinze anos. Sua importância reside no rompimento de
suas idéias com a tradição racional anterior de aspecto humanista, propondo uma análise dos
problemas precípuos da sociologia do direito em termos sistêmico-funcionais. O resultado de
seu trabalho foi o aspecto inovador e original dado ao Direito, sob a égide de uma
racionalidade sistêmica.
A teoria de Luhmann se insere num contexto de um crescente dinamismo dos
sistemas jurídicos de sociedades pluralistas com a finalidade de reduzir sua complexidade e
suas incertezas. Em breves linhas, remonta a origem da legitimidade na Idade Média, como
instrumento de defesa contra a usurpação e a tirania. A positivação do direito, no século XIX,
encadeou um esvaziamento de seu fundamento moral, sendo impelido para a realidade pura –
época em que foi reduzida à legalidade. “Hoje ele significa a convicção realmente divulgada,
da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões, ou do
valor dos princípios que as justificam”.
155
No mesmo sentido de Weber, afirmava Luhmann que os sistemas políticos não
podem se apoiar unicamente na força física de coação, mas deve conquistar uma aceitação
que o faça mais duradouro. No entanto, ainda considerava tais elementos escassos para
explicar a legitimidade, uma vez que a aceitação poderia se dar por motivos diversos, como
para garantir apoio ou por medo. Restava explicar, pois, como é possível divulgar a convicção
de legitimidade uma vez que as decisões cabem a apenas alg
O conceito que mais se aproxima da nossa pergunta quanto à legitimação pelo
procedimento, por exemplo, é o conceito da legitimidade racional, baseada na crença
na legalidade das ordens estabelecidas, exposto por Max Weber, que não deixa
identificar suficientemente a forma como uma tal legitimação da legalidade é
sociologicamente possível.
A teoria sistêmica idealiza a sociedade como uma teia de sistemas co-existentes,
independentes, fechados, e autopoiéticos, ou seja, sistemas que se auto-reproduzem depois de
atingirem um determinado grau de complexidade e diferenciação funcional. Independentes,
155
LUHMANN, 1980, op. cit., p. 29.
109
pois cada sistema é auto-suficiente dentro da sua complexidade através de mecanismos
determinadores de sua estrutura e de seus elementos. Fechados, pois dentro de sua própria
estrutura se organizam e se reproduzem, sem a necessidade de contato com sistemas
exteriores.
O Direito corresponde a um desses sistemas. O Direito, dessa forma, é puro, não
existindo fora dos limites da sua estrutura sistêmica. O Direito vem a ser, para a teoria
sistêmica, uma estrutura social baseada “na generalização congruente de expectativas
comportamentais normativas”, garantindo, dessa forma, que as expectativas em torno das
normas permaneçam estáveis mesmo diante de sua eventual violação
156
. Uma das
características importantes dum sistema é sua relação com a complexidade do mundo. A
interação do sistema jurídico para com os outros sistemas se dá por meio de processos
chamados “fechamento normativo” e “abertura cognitiva”.
A sociedade é vista por ele como um sistema do qual o homem não faz parte,
porém, dela necessita. O Direito, neste contexto, figura como um mecanismo para a
imposição de limites e para a definição de interações, filtrando e processando as informações
que lhe interessa. A complexidade exterior, dessa forma, é amenizada pela Dogmática
Jurídica e solucionada por meio de procedimentos decisórios produzidos no âmbito do
sistema normativo e sua conseqüente repercussão no âmbito social.
157
Tal como a categoria do contrato para o âmbito da “sociedade”, assim a categoria do
procedimento para o âmbito do “estado” parece apresentar aquela fórmula mágica
que combina a mais alta medida de segurança e liberdade que se pode praticar
concretamente no dia-a-dia e que transmite, enquanto instituição, todas as resoluções
do futuro.
A norma, pois, não é capaz de impedir frustrações, todavia, consiste numa garantia
das expectativas sociais contra as contingências a que estão sujeitas. Foi pensando nestas
contingências que Luhmann transformou a legitimidade em função, contrariando sua
identificação clássica como “algo”. Como função, os procedimentos jurídicos como sistemas
de ação se legitimam no contexto de sua instrumentalidade institucionalizada por uma
racionalidade sistêmica que lhes é peculiar dentro de sua estrutura autopoiética. As decisões
judiciais partem, pois, do âmbito interno do sistema jurídico para produzirem seus efeitos fora
de seus limites.
156
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. v. 1. p. 121, apud
DINIZ, op. cit, p. 226.
157
LUHMANN, 1980, op. cit., p. 7. (destaque do autor).
110
Sua teoria introduz na teoria da legitimidade um motor, capaz de acelerar
conforme a dinâmica e a complexidade do meio social, dando movimento ao modelo positivo,
antes inerte em sua rigidez. Optando a sociedade pela positivação do seu direito, deve assumir
esta responsabilidade, confiando no sistema político a redução de sua complexidade. A
sociedade, segundo Luhmann, tem que aceitar, com a sua estrutura, riscos elevados, tolerar
incertezas, contradições e conflitos, permitir a falta de consenso, em vez de os rejeitá-los
categoricamente como conflitos de valores, de programas, ou de papéis. Cabe a ela confiar na
estrutura jurídica a regulação das relações jurídicas e as decisões dos conflitos; “portanto,
deslocar problemas de fora para dentro para mobilizar alternativas e poder encontrar soluções
bem integráveis”.
158
.
Considerando o Estado de Direito e as complexidades do sistema jurídico – que se
auto-reproduz -, Luhmann identifica suas funções institucionalizadas: legislativo, eleitoral,
administrativo e judicial
159
. Estes seriam os “filtros” dos fatos sociais, responsáveis pelo
impedimento de eventuais contaminações dos sistemas jurídico e político. A legitimação dos
procedimentos destas instâncias se dá pelos seguintes motivos: aceitação dos comandos legais
– mesmo quando suas expectativas forem frustradas -, e reconhecimento do caráter
obrigatório das decisões. Um indivíduo que tenha suas expectativas frustradas após esgotar
todas as instâncias e meios jurídicos, recebe estímulos do meio social para se adaptar à
decisão indesejada.
160
Uma mudança de expectativas [...] põe em perigo a identidade pessoal do indivíduo.
[...] Ela não deve desacreditar a sua auto-representação, deve antes aparecer aos
presentes como evidência, como ocasionada por motivos exteriores. A legitimidade
depende, assim, não do reconhecimento “voluntário” da convicção de
responsabilidade pessoal, mas sim, pelo contrário, dum clima social que
institucionaliza como evidência o reconhecimento das opções obrigatórias e que as
encara, não como conseqüências de uma decisão pessoal, mas sim, como resultados
do crédito da decisão da decisão oficial.
Para Luhmann, a legitimidade deve partir da própria estrutura e seriedade dos
sistemas jurídico e político. Um sistema, que emane decisões neutras de acordo com
procedimentos seguros e confiáveis, conforta e anima a coletividade perante as expectativas
de seus direitos Em conseqüência, motiva a crença na legitimidade, ou seja, a crença nas
finalidades dos procedimentos frente à solução de litígios e à prestação de direitos.
158
LUHMANN, 1980, op. cit., p. 123.
159
Ibid, p. 196.
160
Ibid, p. 34.
111
A legitimação pelo procedimento não é como que a justificação pelo direito
processual, ainda que os processos legais pressuponham um regulamento jurídico;
trata-se, antes, da transformação estrutural da expectativa, através do processo
efetivo de comunicação, que decorre em conformidade com os regulamentos
jurídicos; trata-se, portanto, do acontecimento real e não duma relação mental
normativa.
A legitimação pelo procedimento afasta-se de elementos valorativos, revelando um
caráter estritamente técnico. De acordo com Canotilho
161
, esta concepção de um Direito
Constitucional ditado pelos juízes em que a legitimidade técnica destes substituiria a
legitimidade democrática da maioria merece reticências. A fragilidade desta teoria reside
superposição das decisões judiciais perante os valores. A aceitação dos processos, dos
procedimentos, das decisões, mesmo que contrárias às expectativas de um indivíduo, dá-se
não pelo conteúdo valorativo das mesmas, pela finalidade de Justiça, mas credibilidade à
estrutura formal dos sistemas. Trata-se, de uma teoria cujo pressuposto ideológico é a
sociedade tecnocrática capitalista e cujo pressuposto teórico é uma teoria sistêmica
funcionalmente orientada. Contrariamente à teoria do procedimento, pondera Canotilho
162
:
Trata-se, de novo, de uma teoria cujo pressuposto ideológico é a sociedade
tecnocrática capitalista e cujo pressuposto teórico é uma teoria sistémica
funcionalmente orientada. A exclusão de qualquer conteúdo material e a expulsão de
elementos sociais (como direitos e princípios da constituição económica),
considerados disfuncionalmente operantes, são incompatíveis com o texto
constitucional de um Estado democrático socialmente orientado.
5.6 Legitimidade em Habermas
Jürgen Habermas (Düsseldorf, 18 de Junho de 1929) é considerado um dos
filósofos e sociólogos mais importantes da Alemanha, e como principal herdeiro da Escola de
Frankfurt. A carência por legitimação, explica-se a partir do conceito de poder político;
este, por sua vez, compreende as diversas formas de poder jurídico, aproveitando-se, pois, da
sua legitimidade. Acontece que, nos Estados Modernos, segundo Habermas, a legitimação do
Direito se dá mediante o fenômeno da positivação, tornando-o codificado e obrigatório,
estendendo-se esta legitimidade, pois, ao poder político.
A estrutura dos Estados Modernos sedimenta-se no direito subjetivo, onde aos
indivíduos é dada uma margem de atuação segundo tudo o que não é expressamente proibido
161
CANOTILHO, 1993, op. cit., p. 51.
162
Ibid, p. 82.
112
é permitido. A expressa previsão de apenas comandos negativos dissocia a Moral do Direito.
Enquanto que direitos morais derivam de deveres recíprocos, as obrigações jurídicas derivam
da limitação legal de liberdades subjetivas. Esta estrutura faz com que o Direito atue entre a
facticidade e os limites da legitimidade da positivação jurídica. Resta aos indivíduos, por sua
vez, desobrigarem-se de suas obrigações morais, passando a atuar estrategicamente às
conseqüências do não comprimento das normas, ou então, aceitá-las na medida de suas
limitações.
Habermas questiona a legitimidade do ordenamento do ponto de vista da
possibilidade de modificação do mesmo, inclusive do próprio documento constitucional.
Como pretender legítimo um Ordenamento que permite alterações? O Direito Positivo,
enquanto transitório ou temporal, segundo o autor, deveria ser subordinado ao Direito Moral,
eternamente válido. Porém, em sociedades pluralistas, as visões de mundo integrativas
decorrentes da Ética desintegram-se.
O regime democrático, alicerçado na soberania do povo e nos direitos
fundamentais, motiva uma suposição de resultados legítimos. Os direitos humanos, na versão
do pensamento liberal, dirigem-se, sobretudo, ao legislador para que não cometa excessos.
Por outro lado, os mesmos direitos nas versões do republicanismo e do Humanismo do
Renascimento, pretendem priorizar a autonomia política dos cidadãos, valorizando a
autodeterminação ética da comunidade política. A unilateralidade destas duas visões, que
compreendem as Democracias Modernas, no entanto, não foram devidamente equacionadas
pela teoria política.
Como conseqüências, a relação entre indivíduos - livres e iguais – e imposições
do Direito Positivo torna-se inviável na prática. Como conciliar o convívio da soberania
popular com a criação de um sistema de direitos? Ou ainda, como conformar direitos
fundamentais e direitos políticos?
163
A pressuposição de resultados legítimos precisa apoiar-se, em última instancia, em
um arranjo comunicativo, sendo, pois, tais discursos (e negociações), o lugar em que
se pode formar uma vontade política racional. Por sua vez, como são necessárias
para constituir de modo racional a vontade do legislador político, a fim de que se
possa garantir legitimidade, as formas de comunicação devem ser institucionalizadas
juridicamente.
Como instituir juridicamente formas de comunicação e conseqüente legitimação
do Direito? Através da co-originariedade entre direitos políticos fundamentais e direitos
163
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação pelos Direitos Humanos. In: MERLE, Jean-Christophe;
MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003. p. 71. (destaque do autor).
113
individuais fundamentais. Os cidadãos só poderão dispor adequadamente de sua autonomia
pública se, igualmente, for assegurada sua independência na esfera privada; a independência
do cidadão nestas duas esferas, ou seja, a garantia de atuação plena nas mesmas compõe o
vínculo entre Democracia e Estado de Direito. Apenas garantidas a liberdade política e
individual, é possível a institucionalização das formas de comunicação, ingrediente final para
se atingir a legitimidade do Estado Democrático.
A principal contribuição de Habermas é sua teoria da ação comunicativa, através
da Ética discursiva inserida no seu paradigma reconstrutivo de justificação. A Ética do
discurso projeta-se como reformulação do imperativo categórico kantiano; este consiste no
cumprimento de deveres para o alcance da Ética. Ao substituir a consciência do dever
ponderada por Kant – subjetividade - pela linguagem (intersubjetividade), Habermas concede
valor transcendental à Ética. O exercício da comunicação corresponde à prática da Ética. A
ação comunicativa - como imperativo ético - almeja as condições de possibilidade e
entendimento no Estado Democrático de Direito, legitimando-o.
5.7 Legitimidade e Constituição Dirigente para Canotilho
José Joaquim Gomes Canotilho (Pinhel, 15 de agosto de 1941) é,
indubitavelmente, um dos nomes mais relevantes do Direito Constitucional da atualidade. Sua
teoria sobre a Constituição se insere no grande debate constitucional travado entre aqueles que
consideram a Constituição como mero instrumento de governo, definidor de competências e
regulador de procedimentos, e os que a defendem como plano integral definidor de tarefas,
programas e fins para o Estado e para a sociedade. No primeiro caso, a lei fundamental deve
ser entendida apenas como uma norma jurídica superior, abstraindo-se dos problemas de
legitimação e domínio da sociedade.
O modelo de Constituição dirigente ou programática, instituído por Canotilho,
parte de um contexto de uma sociedade pluralista, normativamente conformada,
preponderando a questão da problemática moderna no tocante à validade (legitimidade) e à
eficácia normativa de uma Constituição. Hoje, constata-se, notadamente pela contribuição
doutrinária de Canotilho, que os poderes carecem de um provimento material, para além do
aspecto formal, sob pena de esvaziamento de conteúdo e inefetividade das leis. A exigência
de fundamentação substantiva para os atos dos Poderes Públicos pressupõe o conteúdo dos
direitos fundamentais que, em sistemas democráticos, são elementos estruturais essenciais de
suas Constituições. A lei tem sua mobilidade no âmbito dos direitos fundamentais e é
114
considerada como exigência de realização concreta dos direitos fundamentais.
164
A idéia de
direitos fundamentais constitui, para o autor, a raiz antropológica essencial da legitimidade,
diga-se efetividade, da Constituição e do poder político
165
.
A fundamentação constitucional não pode permanecer abreviada a princípios
materiais estruturantes (Estado de Direito, Democracia, República); deve estender-se à
imposição de tarefas e programas dirigidos aos poderes públicos para seu cumprimento
sistemático, num processo de constitucionalização de tarefas, resgatando a importância da
legitimação material das Constituições e, por conseqüência, de todo Ordenamento Jurídico.
É no contexto de uma sociedade pluralista, normativamente conformada, que
ganha veemência a questão da problemática moderna respeitante à validade (legitimidade) e à
eficácia normativa de uma Constituição.
166
A validade de uma constituição pressupõe a sua conformidade necessária e
substancial com os interesses, aspirações e valores de um determinado povo em
determinado momento histórico. Desta forma, a constituição não representa uma
simples positivação do poder; é também uma positivação de "valores jurídicos".
O critério de legitimidade do poder constituinte não significa, conforme o
entendimento tradicional, a mera posse do poder, mas a concordância ou conformidade do ato
constituinte com as idéias de justiça radicadas na comunidade. Longe de esgotar as lutas
políticas ou reduzir o sistema jurídico a uma folha de papel, o processo de legitimação
material provoca o fenômeno da dinamização da Constituição, expresso na consagração de
diretrizes de ação política, com a finalidade de sujeitar os Poderes Públicos ao seu
cumprimento. A Constituição deixa de ser mero instrumento de governo, definidor de formas
e competências para dar primazia ao exercício do poder direcionado pela programática social.
No Estado Democrático, a constitucionalização de tarefas e finalidades do Estado,
assim como a força normativa dos princípios constitucionais são requisitos da legitimação
material da Constituição de um país. O processo de legitimação do Direito ultrapassa as
fronteiras do Estado de Direito, decorrendo, pois, o problema da Constituição dirigente, que
deixa de ser monopólio do Estado para pertencer à sociedade, refletindo suas necessidades e
suprindo suas carências. O problema do modelo dirigente de Constituição reside em como
164
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001. p. 483.
165
Ibid., p. 19.
166
Ibid., p. 111. Poderia, talvez, dizer-se que o fundamento de validade da Constituição (legitimidade) é a
dignidade do seu reconhecimento como ordem justa e a convicção, por parte da coletividade, da sua bondade
intrínseca. (destaque do autor).
115
deve ser conformada a realidade, opondo-se a ele o modelo garantista de Constituição,
instrumento clássico de governo, vinculado ao conceito de Estado de Direito, modelo jurídico
destinado a limitar e evitar a arbitrariedade do poder estatal. Não obstante, esclarece
Canotilho que o problema da Constituição não é hoje o de escolher entre uma constituição-
garantia e uma constituição dirigente ou programática, mas sim de otimizar as funções de
garantia e de programática da lei constitucional.
167
Dessa forma, a Constituição dirigente, ao persistir no vínculo entre Estado e
sociedade, esclarece esta relação, dando-lhe maior transparência e controle dos atos políticos
estatais. Não pretende Canotilho acreditar numa unidade da Constituição, desconsiderando a
complexa realidade e as diferentes ideologias que a compõem. A unidade é sua tarefa perante
as tensões dessa realidade, assim como as diversidades não excluem valores de justiça e de
verdade do texto constitucional, cumprindo, pois, com a tarefa de atenuá-las. Aqui está a
“justa medida” das leis constitucionais: devem ser adequadas ao tempo, voltadas ao presente,
mas contemplando o futuro.
Porém, sustenta Konrad Hesse, que a história constitucional demonstra uma
incapacidade de conformação plena das leis constitucionais por si só ao processo político-
social. A força normativa da Constituição depende, para ele, da vontade de Constituição.
Concilia a idéia de Constituição com duas exigências fundamentais do Estado Democrático
Constitucional: 1) a legitimidade material: a necessidade de a lei fundamental veicular os
princípios materiais caracterizadores do Estado e da sociedade; 2) a abertura constitucional:
possibilidade de embate entre ideologias e forças políticas, donde emanam projetos
alternativos de realização dos fins constitucionais.
168
Exposto os fundamentos do modelo dirigente de Constituição, pode-se do mesmo
extrair os limites da legitimidade do Estado constitucional Democrático. A legitimidade opera
em dois planos simultâneos: material e processual.
A legitimidade processual é endereçada ao Poder Constituinte para a fixação e
estruturação do ordenamento jurídico-constitucional mediante regras fundamentais de
titularidade e exercício do poder, elaboradas mediante processos democráticos. A
legitimidade material aponta, por sua vez, para a transparência dos princípios, fins e
programas a estabelecer na constituição e para a necessidade destes princípios se converterem
em princípios básicos de justiça de uma sociedade ordenada.
167
CANOTILHO, 2001, op. cit., p. 74.
168
Ibid., p. 115.
116
Dessa forma, a legitimidade de uma ordem constitucional democrática repousa
num processo de formação e de decisão política, desenvolvido segundo regras formais de
procedimento, orientado para a realização de pretensões básicas da Justiça. O domínio
político justifica-se, deste modo, através de um processo misto de racionalidade formal e
material. O conhecimento da Justiça e a aplicação dos princípios dela decorrentes pressupõem
uma valoração de todo o ordenamento jurídico. A concretização da Justiça pressupõe um
conhecimento apurado de toda a sua essência. Assim, um ordenamento jurídico-constitucional
ganha maturidade para a produção de efeitos concretos ao fundamentar-se no princípio de
Justiça, e validade de uma ordem jurídica valorada de acordo com a idéia do justo. “O
problema central da constituição dirigente é um problema de filosofia prática e de política de
justiça, isto é, da institucionalização jurídico-constitucional dos critérios fundamentais de
justo comum e da política justa.”
169
De fato, partido desta idéia, Canotilho revisou seu modelo dirigente de
Constituição: “os textos constitucionais carregados de programaticidade [...] estão num fosso
sob o olhar implacável de muitos escárnios e mau-dizeres”.
170
Além de simbólicas, utópicas,
as constituições dirigentes converteram o Direito em mero instrumento funcional de direção
do Estado, surgindo o problema da discricionariedade legislativa, que faz a atividade de
aplicação das normas constitucionais passíveis de vícios e abusos. Direito e Estado figuram,
pois, como vítimas de uma crise política de regulamentação. Falar em Constituição Dirigente
é o mesmo que falar em tarefas do Estado, o que equivale à legitimação de um Estado
Leviatã. A hipertrofia constitucional gera mais uma ética de convicção que uma ética de
responsabilidade prática:
Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional. [...] acreditamos
que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas materiais fundantes das
políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a
chamar de direito, democráticos e sociais.
171
5.8 A legitimidade centrífuga
Celso Lafer, dialogando sobre o pensamento de Hannah Harendt, faz uma rica
exposição sobre a legitimidade e a legalidade do poder. Parte do da necessidade de se encarar
o direito como um sistema aberto de normas. Isto porque o Direito Positivo não mais atende à
sua função de mero instrumento de controle social, como o fazia por meio do Direito Penal; o
169
CANOTILHO, 2001, op. cit., p. 488. (destaque do autor).
170
Ibid., p. 8.
171
Ibid.
117
Direito passou a cumprir medidas protetivas de interesses, além de preservar a ordem
social.
172
Trata-se de um Direito Promocional, que se interessa por comportamentos tidos
como desejáveis e, por isso, não se circunscreve a proibir ou permitir, mas almeja
estimular ou desestimular comportamentos através de medidas diretas ou indiretas.
Um Direito desse tipo, que corresponde a novas funções de gestão da sociedade,
exercidas pelo Estado, não pode, evidentemente, restringir-se ao tema da validade
formal, mas requer, para uma apropriada consideração do princípio da efetividade, a
análise da conduta dos destinatários das normas.
O Direito, ao extrapolar seu aspecto formal, cumpre suas funções quando alcança
de maneira eficaz seus destinatários. A sanção, dessa forma, deixa de ser elemento
determinante para a estrita observância da norma, uma vez que o destinatário deve também
acreditar que a norma é boa, justa e oportuna, e por isso cumpri-la. É assim que o autor
pretende, através da pragmática, incluir a dimensão da persuasão - ou a Retórica -, que
abrange a justificação da observância da norma. Foi através desse pensamento que os
jusfilósofos - preocupados com a aplicação da norma e sua efetividade na sociedade -,
revalorizaram o papel da Retórica na vida do Direito, atualmente entendida como teoria da
argumentação.
O argumento da justiça sempre esteve presente no discurso do Direito, sendo uma
das questões mais intrigantes da Filosofia do Direito a busca da fórmula da justiça. Pode-se
dizer que o Direito é algo criado segundo princípios e valores da justiça no plano
deontológico, acrescido do poder no plano ontológico - responsável pela realizabilidade e
positividade do Direito.
173
É assim que Justiça – do grego justitia – deriva ou precede o
Direito – jus dicere -, que, por sua vez, vincula o elemento poder.
O surgimento do Estado moderno e o conceito de soberania representaram o
monopólio estatal de dizer a justiça. Neste momento, legalidade e justiça se aproximaram,
uma vez que as normas - ou o Direito Positivo -, eram a vontade do soberano. “O poder
legislativo absoluto do soberano é, portanto, uma razão pública definidora dos significados,
do justo e do injusto, que confirmam a objetividade do mundo político através do princípio da
legalidade.”
174
172
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 59-60.
173
A Deontologia – ou teoria do dever - é um termo introduzido por Jeremy Bentham; corresponde ao ramo da
Ética, cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais; a Deoltologia corresponde à
parte da Filosofia que estuda o ser enquanto ser; avalia a natureza humana como comum e inerente a todos os
homens.
174
LAFER, op. cit., p. 64.
118
Esse processo de identificação entre justiça e legalidade, que resultou, no século
XIX, no processo de erosão do Direito Natural, exige a aceitação da legitimidade do poder do
Estado moderno. A legitimidade não pode ser vista, então, como conceito independente, mas
apoiada na legalidade, baseada, pois, em técnicas legislativas e em procedimentos do
constitucionalismo moderno.
É por esse motivo que a crise nas interações entre Estado e sociedade civil, a
partir da Revolução Industrial, representou uma crise de legitimidade da legalidade. Este
processo fomentou a crítica de Marx acerca do Estado e do Direito – infra-estrutura
condicionante e superestrutura condicionada -, como instrumentos de dominação de classe e
mecanismos de opressão.
Neste contexto de crise da unidade do Estado e do Direito – que oculta as
contradições e fraquezas dos mesmos refletidas na sociedade - que o pluralismo jurídico surge
como antídoto à crise e como elemento legitimador da ordem social. O pluralismo, como
resposta à crise estatal, atesta e legitima a existência de grupos entre os indivíduos e o Estado;
significa, pois, a descentralização funcional e territorial do Estado, o reconhecimento dos
vários direitos vividos pelos grupos sociais, cedendo maior transparência à ordem social e
política.
175
A esta resposta das sociedades contemporâneas à crise do Estado unitário, chama-
se legitimidade centrífuga, que vem resgatando o velho, mas atualíssimo conceito de contrato
social no mecanismo de poder estatal. Dessa forma, considerando Estados Democráticos, não
há que se falar em Estado soberano, dotado de poder de império e acobertado pela
legalidade:
176
Ele é muito mais o mediador e fiador de negociações que se desenvolvem entre
grandes organizações – como empresas, partidos, sindicatos e grupos de pressão. Os
conflitos de interesse entre organizações, que asseguram o pluralismo nas formações
sociais complexas, são freqüentemente resolvidos por acordos, que como todos os
acordos resultam de concessões recíprocas e duram o tempo que as partes
contratantes têm interesse em respeitá-los. Em outras palavras, a unidade do Direito
e do Estado não é um ponto de chegada, à maneira do contratualismo clássico na sua
explicação da origem da sociedade, do Estado e do Direito no paradigma do Direito
Natural; nem um pressuposto não problemático da Dogmática Jurídica, na linha do
positivismo, mas sim um processo contínuo e aberto.
O pacto social, na perspectiva de legitimação do Estado pluralista, pretende ser
continuamente renovado, sob o risco de se voltar à condição de unidade estatal, amparada
175
LAFER, op. cit., p. 71.
176
Ibid., p. 72.
119
pela legitimidade centrípeta do poder. Esta legitimidade, vigente no século XIX – até a
Segunda Guerra Mundial - leva à fidelidade ao ordenamento jurídico, ao império das leis e ao
caráter unitário das leis. Quanto às obrigações políticas, a legitimidade centrífuga encontra
sérias restrições em aceitá-la como dever-ser de fidelidade ao ordenamento jurídico, uma vez
que esta fidelidade culminou na legitimidade centrípeta do poder.
A fidelidade ao ordenamento torna-se desejável, sem comprometer o pluralismo
jurídico, quando há equilíbrio entre governantes e governados no tocante à observação e
cumprimento de direitos e deveres, preservando-se, assim, o pacto social. A legitimidade
centrífuga ou tópica, neste compasso, pretende um ordenamento jurídico dinâmico e aberto à
complexidade social, aos diversos direitos individuais e coletivos, não havendo que se falar
em poder do Estado, mas em um dever de mediar todos os conflitos e diferenças sem as quais
não existe sociedade, tampouco há que se falar em história.
5.9 Ética e Legitimidade
É possível que a Ética tenha sido uma das primeiras preocupações que motivaram
a reflexão desde os primórdios da cultura ocidental. Diante de todos os conhecimentos
herdados da civilização grega em seus períodos mais arcaicos, sabe-se que as elaborações
místicas, as religiões, a poesia, a tragédia, a organização da vida política e outras
manifestações do pensamento ocupavam-se intensamente com o significado ético da vida
humana.
O termo ‘ética’ é de origem grega e deriva de êthos (morada). O sentido de êthos
passou, com o tempo, por modificações, denominando, inicialmente, o local da morada,
habitação, passando, depois, a significar a atitude do homem perante a sociedade, seus valores
espirituais em relação ao mundo. Historicamente, a investigação do êthos surgiu na Grécia.
Desde Aristóteles, não houve, na história, filósofo que superasse seus estudos sobre a Ética,
tanto que seus trabalhos ainda hoje representam referenciais - aceitos universalmente.
Ao considerar o homem um animal racional e político, Aristóteles confere-lhe
responsabilidade, no sentido de considerá-lo intimamente ligado ao destino da Polis (cidade).
O bem que o homem procura é o bem comum, decorrente da moderação das paixões: “o bem
é aquilo a que as coisas tendem”.
177
A busca do bem, para o Estagirita, é uma atividade
contínua do ser humano que estende por toda a sua vida. Ao contrário da Ética ideal de Platão,
177
ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 17
120
na Ética aristotélica o homem é legislador de si mesmo; não importa o que ele pense sobre a
Justiça, por exemplo, importa seus atos, justos ou injustos. O homem torna-se bom ou mal,
justo ou injusto na totalidade de sua vivência. Virtudes são disposições de caráter relacionadas
à escolha de ações e paixões; é neste rol de disposições, de opções de caráter que reside a
Ética: escolha prudente de condutas, o meio-termo dentre os excessos.
178
Como Aristóteles bem viu, essa essência ética não se descobre no simples exercício
da razão discursiva ou calculadora. Ela designa a presença no ser natural do homem
– razão, liberdade, sensibilidade – do imperativo de um dever-ser que lhe impõe a
tarefa indeclinável de realizar obedientes a uma lógica do sujeito decorrente da
eliminação do pólo metafísico no espaço da razão, absorvem o sujeito ético no
desafio de se integrar racionalmente na comunidade ou na história – avatares do
antigo Absoluto metafísico – deixando por resolver o problema fundamental da
Ética, qual seja o do “tornar-se bom” do sujeito através do exercício permanente da
sua “razão prática” como phronesis ou “razão reta” (orthròs logos).
A Ética é, pois, uma vertente da Filosofia que se interessa pelas atitudes de valor
do ser humano. O objeto da Ética, portanto, é a ação humana. A Ética compreende um
conjunto de princípios que orientam as atitudes do homem para o bem-comum. Não há
coerção na Ética; ninguém está obrigado a agir honestamente; o homem é livre para agir e só
pode alcançar a Ética em ações boas, justas e espontâneas. O grande desafio da vida do
homem, pois, é o processo de construção do seu próprio ser, driblando as suas imperfeições,
suas paixões e seus vícios. A Ética é, assim, orientada para o dever-ser, para o exercício da
atividade contemplativa, em conformidade com a virtude. “O homem que exerce e cultiva a
sua razão parece desfrutar a melhor disposição de espírito e ser mais caro aos deuses.”
179
A análise anterior sobre a questão da legitimidade revelou seu conteúdo
valorativo, desejável, independente de quaisquer conceituações, além da sua intrínseca relação
com a Ética. A Legitimidade consiste na qualidade ética do Direito, segundo Luis Fernando
Coelho
180
. Os modelos hermenêuticos, ou invariantes axiológico-jurídicas – tais como
relativas aos direitos fundamentais - dão o embasamento ético do Direito Positivo, na visão de
Miguel Reale
181
.
178
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética, Direito e Justiça. Direito e Legitimidade. In: MERLE, Jean-
Christophe; MOREIRA, Luiz (Org.). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 132.
179
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 234.
180
COELHO, Luis Fernando. Teoria crítica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991, p. 358.
181
REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito; para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 115. A lei deve ser interpretada segundo seu espírito, e não apenas por aquilo que
verbalmente enuncia.
121
No mesmo sentido, assegura Falcão
182
:
Em todo ordenamento jurídico existe um princípio ético básico, do qual deflui a
orientação que, incrustrada na Constituição, uniformiza, ideológica e
operativamente, o todo do ordenamento. [...] Seja qual for, essa base ética dá
sustentação à ordem de Direito da qual seja o travejamento basilar. Para essa base
ética é que a ordem jurídica se orienta, mirando-a lá em cima, qual norte ideológico
supremo, na incontrastável cimeira de sua normatividade explícita ou implícita.
Ainda que não haja unanimidade de conceitos, seja em relação à Ética ou em
relação à legitimidade, não se pode afastar a unanimidade em reunir tais elementos no
conceito mais recente de Direito – ao menos a tentativa de reconstrução deste -, repensado
sistematicamente após a excessiva formalidade do cético normativismo kelseniano.
A Legitimidade, como condição de validade e efetividade do Direito, como
elemento intrínseco de sistemas democráticos, como atributo do poder, mantém uma estreita
relação com a Ética, porém, não se confundindo com ela. Essencialmente, A idéia de
Legitimidade sempre esteve associada com a existência de fundamentos de “boas razões”,
capazes de suscitar a dignidade do seu conhecimento
183
. A Ética é ato; é o conjunto supremo
de princípios fundamentais; a legitimidade é potência – o motor do Direito - é a tentativa de
alcançar a concretude do Direito justo e razoável.
5.10 Legitimidade e Justiça
As ações humanas numa comunidade convergem para uma finalidade em comum
que, de acordo com Aristóteles - mentor e precursor da elaboração da teoria jurídica da justiça
a qual ainda informa e inspira pensamento contemporâneo -, é sempre o Bem-comum
184
. De
fato, impossível e irracional seria pensar que o homem – bom ou mal por natureza – viveria
em busca do mal, em detrimento de seu ethos, sua morada. Embora nem sempre o agir ético
seja alcançado, não se pode olvidar uma tendência, um impulso natural imanente da própria
natureza humana no sentido de preservação da espécie. Neste sentido, a Justiça, princípio
ético por excelência, opera como mediador entre as ações humanas e o Bem-comum.
185
182
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 99. Impõe-se educar a
interpretação a fim de que, diante das alternativas inúmeras de sentido, o intérprete tenha a sensibilidade de
optar por aquele mais consentâneo com o interesse social mais largo, importando isso uma referência àquilo
que mais de perto diga aos valores fundamentais da humanidade.
183
DINIZ, 2006, op. cit., p. 162.
184
ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 17.
185
Id., Política. Digital. LibrosEnRed, 2004, p. 91. (Ciências Políticas). “Todas las ciencias, todas las artes,
tienen un bien por fin; y el primero de los bienes debe ser el fin supremo de la más alta de todas las ciencias;
122
Todas as ciências, todas as artes, têm um bem por finalidade; e o primeiro dos bens
deve ser o fim supremo da mais alta de todas as ciências; e esta ciência é a política.
O bem na política é a justiça; em outros termos, a utilidade geral. Acredita-se,
comumente, que a justiça é uma espécie de igualdade; e esta opinião vulgar está até
certo ponto de acordo com os princípios filosóficos de que nos temos servido na
Moral. Existe um acordo, ademais, relativo à natureza da justiça e os seres humanos
que se aplica, e se convém, também, que a igualdade deve reinar necessariamente
entre os iguais [...].
A Política aristotélica possui estreita ligação com a Ética, uma vez que consiste na
arte de bem governar - organizar e regular o convívio de uma pluralidade diversificada de
homens em determinada sociedade. Política, como necessidade imperiosa da vida humana,
pressupõe indivíduos dialeticamente organizados, enredados num mesmo objetivo, qual seja a
realização da Justiça. Assim, a tarefa da Política esta diretamente relacionada com a grande
aspiração do homem moderno: a busca da felicidade; ou seja, a satisfação pessoal só é
possível mediante a cooperação.
186
Com efeito, a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno sentido do termo,
porque é o exercício atual da virtude completa. Ela é completa porque a pessoa que a
possui pode exercer sua virtude não só em relação em a si mesmo, como também em
relação ao próximo [...].
Da classificação das categorias filosóficas aristotélicas - a justiça distributiva, a
corretiva e a política - emanam diversos elementos configuradores da Justiça – até hoje
consagrados pela Doutrina como essenciais - ora como critérios, em seus aspectos formal e
material. Assim, a Justiça pressupõe alteralidade, pois, uma vez praticada em benefício
próprio, não é justiça, e sim vil egoísmo. Dela também emanam a igualdade, a
proporcionalidade, a intermediariedade, a voluntariedade, a deliberação e a conformidade com
a lei. Aristóteles só concebe a categoria de leis justas e legítimas. O Direito, assim, sempre
será legítimo, pois, as leis justas orientam o indivíduo à prática do Bem. No mesmo sentido,
“admitir que a lei não carece de fundamentação ética é o mesmo que justificar a atuação de
Estados totalitários e legitimar leis que não emanam do Estado de Direito”.
187
Sendo a Ética ato - o conjunto supremo de princípios fundamentais -, a
legitimidade é potência – o motor do Direito na tentativa de alcançar a concretude do Direito
y esta ciencia es la política. El bien en política es la justicia; en otros términos, la utilidad general. Se cree,
comúnmente, que la justicia es una especie de igualdad; y esta opinión vulgar está hasta cierto punto de
acuerdo con los principios filosóficos de que nos hemos servido en la Moral. Hay acuerdo, además, en lo
relativo a la naturaleza de la justicia, a los seres a que se aplica, y se conviene también en que la igualdad
debe reinar necesariamente entre iguales [...].
186
ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 105.
187
NADER, Paulo. Filosofia do direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 75.
123
justo e razoável -, a Justiça nada mais é do que o conteúdo da legitimidade. Um Direito que se
pretende legítimo deve ser estruturado em conformidade com as leis, segundo necessidades
dos indivíduos, deve conter justo procedimento judiciário acessível a todos, deve conter
mecanismos justos de participação popular nas diretrizes políticas e, sobretudo, deve estar
subordinado aos princípios éticos.
É assim que os termos Legitimidade e Justiça oscilam em grande parte da Doutrina
como sinônimos. Embora não sejam sinônimos, são indissociáveis e complementares. Justiça
é o valor excelso que há de orientar na elaboração e aplicação do Direito. A Justiça
substancial, aquela que efetivamente proporciona o seu a cada um, é uma síntese de diversos
valores jurídicos. Assim, uma vez alcançada, outros valores se realizam, como a paz social, a
liberdade, o bem-comum.
188
Dessa forma, a Justiça, princípio ético mais completo, em suas multifaces, reúne
outros micro-princípios (no sentido de não serem auto-suficientes) dela decorrentes: a
dignidade da pessoa humana, a igualdade, a proporcionalidade, a legalidade, o princípio
democrático, o devido processo legal, a soberania popular, dentre tantos outros que a
Constituição Federal de 1988 não se eximiu de enunciar. A Legitimidade, dessa forma, é o
veículo de todos esses princípios decorrentes da Justiça, donde que ela cria os mecanismos de
fluidez do Direito, orientado para sua finalidade mediata, qual seja a realização da Justiça. Da
mesma forma, o paradigma procedimentalista do Direito procura proteger, antes de tudo, as
condições do procedimento democrático
189
. Assim, devemos distinguir a Justiça enquanto
princípio ético – transcendente e necessário à Política -, os princípios de Justiça (veiculados
pela legitimidade nos vários procedimentos) e a conseqüente Justiça material, concretizada no
meio social.
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais. Ela exige um conjunto de
princípios que fornecem o modo de atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da
sociedade, assim como distribuem de forma apropriada os benefícios e encargos da
cooperação social. No entanto, tais princípios são escolhidos sob um véu de ignorância, o que
garante que ninguém se favoreça com as próprias escolhas. Assim, os princípios de justiça
decorrem de uma escolha eqüitativa. Neste sentido, Rawls considera o princípio da Justiça
como uma tendência e não como um padrão invariável de escolha correndo riscos e perigos –
psicológicos e sociais - de ser anulado. A interpretação da Justiça deve ser feita levando em
188
NADER, op. cit., p. 57.
189
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre faticidade e validade. Tradução de Flávio B.
Subenechler, UFMG. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 2. p. 183.
124
consideração esses fatos; porém, a tendência deve ser forte e não facilmente anulada sob pena
do desenvolvimento – em termos culturais, políticos, educacionais, econômicos - indesejado
dos seres humanos.
190
Um plano racional – limitado, como sempre, pelos princípios do justo – permite que
uma pessoa se desenvolva, ma medida permitida pelas circunstâncias, e realize suas
habilidades tanto quanto possível. Além disso, provavelmente seus parceiros
apoiarão essas atividades, já que elas promovem o interesse comum, e também as
apreciarão como manifestações da excelência humana.
Um Ordenamento Jurídico que se pretende legítimo torna-se justo não por
estampar incansavelmente na Constituição diversos princípios éticos referentes a direitos
fundamentais, mas pela prática dos mesmos. Seguindo a lição – talvez seu legado mais nobre
- de Aristóteles: os homens tornam-se justos não por saberem o que é a Justiça, mas por
praticarem a Justiça; tanto mais justos serão quanto mais a Justiça praticarem. Da mesma
forma, este é o própósito dos legisladores – e extensivamente do Judiciário e do Executivo:
quem não consegue alcançar tal meta, falha no desempenho de sua missão, e é exatamente
neste ponto que reside a diferença entre a boa e má Constituição – ou entre o bom e o mal
Governo.
191
5.11 Legitimidade e Direito de punir
Após as considerações sobre a questão da Legitimidade - suas diversas vertentes
teóricas - é possível aplicá-las ao Direito Penal, mais precisamente no Direito de Punir -
enquanto um dos procedimentos do Estado Democrático de Direito. Como foi visto no
Capítulo 4, o Direito de Punir, poder exclusivamente estatal, consiste no direito, mais
precisamente, no dever que o Estado tem de punir condutas de acordo com as previsões legais
de crimes ou infrações penais. É claro que, diante de uma conduta típica, não resta alternativa
ao Estado, senão aplicar a sanção prevista, legalmente adequada, e cumprindo, pois sua tarefa.
“No Estado de Direito, o Estado se faz presente não apenas como órgão sancionador, mas
como ser dotado de direitos e deveres.”
192
A realidade demonstra um descompasso entre Direito Constitucional e Direito
Penal. “A influência dos ‘valores constitucionais’ no sistema penal exercita-se no campo das
relações entre política e Direito Penal: relações, a um só tempo, estreitíssimas e,
190
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 474.
191
ARISTÓTELES, 2006, op. cit., p. 41.
192
NADER, 1996, op. cit., p. 60.
125
potencialmente conflituosas.”
193
Tão estreitas que tais relações denotam um conflito
constante: o indivíduo que lesiona os bens jurídicos sociais mais relevantes versus a
“vingança” estatal – intervenção mais aguda na esfera individual. É por isso que o
mandamento constitucional é claro ao proteger e garantir a intangibilidade da dignidade
humana, porém, resguardando o jus punieni, sob pena de instrumentalização do Direito Penal.
Os limites impostos ao Direito Penal disciplinam-no, impedindo que se transforme num mero
instrumento político. É nesta perfeita relação que deve se basear a intervenção do jus puniendi
na esfera de liberdade do indivíduo, permitindo a valorização constitucional do Direito penal,
não somente como limite à liberdade, mas, também, como instrumento de liberdade contra as
agressões provenientes do Estado ou dos particulares.
194
No entanto, as funções de prevenção e a ressocialização do Direito Penal parecem
ter cedido lugar a uma punição inesgotável e sem limites - os exemplos do capítulo 4 bem
demonstram o fracasso de suas funções. Porém, o aspecto mais preocupante desta ineficácia
reside no termo “ressocializar”. A ressocialização tem como pressuposto um indivíduo ou um
grupo socializado. A socialização, por sua vez, corresponde a todo o processo mediante o qual
um indivíduo se torna membro operante de uma comunidade, assimilando valores, a cultura e
hábitos inerentes a ela.
O processo é infindável, realizando-se através da constante comunicação e de
estímulos da própria sociedade e do Estado. É através da socialização que o indivíduo pode
desenvolver a sua personalidade e ser admitido na sociedade. A socialização é, portanto, um
processo fundamental não apenas para a integração do indivíduo na sua sociedade, mas
mecanismo primordial à continuidade dos sistemas sociais. A presença do Estado é vital neste
processo, pois cabe a ele dispor de todos os recursos para o desenvolvimento da
personalidade: escolas, universidades, trabalho, saúde, salário mínimo (e não mísero), cultura,
acesso à Justiça, lazer, tributos acessíveis, dentre outros.
Por outro lado, a ressocialização visa, pois, integrar novamente um indivíduo
socializado que se desviou das regras, dos costumes, das crenças, da cultura de uma
determinada comunidade; ou seja: dar-lhe uma segunda chance. Pelo visto, a adolescente de
Indaiatuba presa e estuprada na sela de homens, os indivíduos que cometem crimes
hediondos, e tantos outros que caem na malha do sistema penal não foram socializados. Como
pretender, o sistema, uma ressocialização dos que não foram socializados? Não bastasse, a
193
PALAZZO, Francesco. C. Valores constitucionais e direito penal. Tradução de Gérson Pereira dos Santos.
São Paulo: Sergio Antonio Fabris, 1989. p. 16.
194
JESHECK, Lehrbuch dês Strafreshts, A. T., Berlim, 1978. apud PALAZZO, 1989, op. cit., p. 18.
126
observação das condições de muitos presídios acaba por dessocializar os indivúduos, tratados
como animais, permitindo que continuem praticando crimes via celulares, permitindo que
consumam drogas dentro do cárcere e, conseqüentemente, promovendo a assimilação do
caráter criminoso.
O Governo e a população em geral têm se preocupado nos últimos tempos com os
altos índices de criminalidade e a consolidação da prática do crime como atitude que
compensa. Em países de “desenvolvimento tardio”, como o Brasil, tais índices crescem
exorbitantemente, fugindo do controle do Direito Penal. A publicação dos índices de
criminalidade e a sua interiorização alertam diariamente o Poder Público que algo não vai
bem ao controle dos crimes. O Governo Federal anuncia investimentos, novas medidas – ora
abrindo mão do seu dever de punir, ora empregando meios violentos de ação - com o intuito
de refrear a criminalidade. Ledo engano.
A transformação deve vir paulatinamente com a introdução de medidas que
efetivem os direitos fundamentais a todos os indivíduos e não através de medidas para sanar
problemas sociais em curto prazo, sob pena de um processo interminável de deslegitimação.
De acordo com a teoria neopositivista de Habermas, a legitimidade carece ser renovada de
forma perene. Não se pode exigir plena eficácia diante da complexidade da máquina estatal;
no entanto, há que se considerar os infindáveis interesses divergentes e o pluralismo presente
nas modernas sociedades em todas as suas esferas: política, jurídica, social, econômica,
finaceira, tecnológica.
Segundo a teoria sistêmica de Luhmann, cada esfera da sociedade plural
corresponde a um sistema autopoiético, que se auto-reproduz à medida que se torna mais
complexo. O Direito, como instrumento regulador do comportamento humano, corresponde,
segundo lições do ilustre Professor Freitas, a um grau de maturidade da humanidade. O
Direito permitiu, ao longo da evolução humana, que os homens se organizassem em torno de
um mesmo objetivo. O desafio do Direito, pois, é atuar como o mais importante sistema
social, sem o qual a sociedade não sobreviveria, zelando pelo equilíbrio dos diversos e
conflitantes interesses, sem perder de vista a finalidade maior do homem, que é a busca da
paz, ou, como quer Aristóteles, a busca da felicidade.
As sociedades modernas, devido à complexidade e ao pluralismo evidente,
oferecem um grau maior de dificuldade quanto à organização, estrutura de todos esses
sistemas. Não basta, pois, garantir-se os procedimentos, o aspecto funcional da estrutura
social. Neste sentido, Habermas implementa a teoria sistêmica acrescentando o ingrediente
humano, unificador, universal, transcendente às diversidades humanas: a Ética. Propõe, para
127
tanto, a teoria da ação comunicativa, através da Ética discursiva inserida no seu paradigma
reconstrutivo de justificação. O exercício da comunicação corresponde à prática da Ética,
fundamental no processo de legitimação do Estado Democrático de Direito.
Canotilho idealizou uma Constituição Dirigente, prolixa, eficaz, como antídoto
para legitimação dos Ordenamentos Jurídicos. Porém, retratou-se ao constatar sua não
concretização no plano material. Há que se insistir, porém, no modelo dirigente e garantista
dos documentos constitucionais que selam o contrato social, preservam direitos e deveres,
impõem diretrizes e metas a serem alcançadas, além de irradiar sua vontade a todas as leis
infraconstitucionais. A este modelo, porém, para que seja efetivo, deve ser introduzido o
caráter sistêmico idealizado por Luhmann, além da presença determinante da Ética nos
procedimentos, nas atitudes de particulares e dos Órgãos Públicos.
A ilegitimidade pode ser vista na totalidade do ordenamento jurídico, porém,
derramando seus efeitos mais sórdidos e cruéis no âmbito do Direito Penal. O direito de punir,
como micro-sistema do Direito, e ultima racio deste, não pode arcar com a ilegitimidade de
todo um sistema, assim como não deve se reduzir a uma mera regulamentação do Estado, ou
uma máquina irracional de controle e reprimenda social. Não cabe ao Estado vigiar para
punir, mas cumprir seus deveres para obter a legitimidade para aplicar penas.
128
CONCLUSÃO
Existem inúmeras teorias que depositam o problema da legitimidade do Direito
Penal na sua estrutura, no seu aparato funcional repressor e atropelador dos direitos humanos
fundamentais. O escopo do presente trabalho, porém, é identificar o núcleo de ilegitimidade
do Direito de Punir no próprio Direito Estatal. É evidente que o Sistema Penal clama por
reformas no sentido de garantir condições para que todo delinqüente possa reingressar na
sociedade e dela fazer parte sem destoar de seu modus vivendi.
O problema do desequilíbrio social tem início no topo da pirâmide do
Ordenamento Constitucional, em particular, na previsão de princípios fundamentais
hierarquicamente superiores a todas as outras normas; muitos inoperantes. A ineficácia da
Constituição dirigente, a princípio pela desobrigação estatal para com seus deveres é o ponto
de partida para o processo de deslegitimação que desemboca mais ferrenhamente no Direito
Penal. Cabe a este sistema suportar as conseqüências mais grave deste desequilíbrio, uma vez
que é o mecanismo mais severo de disciplina e controle social, único autorizado a privar o
homem de sua condição inata, ser livre.
A discussão em torno das obrigações constitucionais, fundamentada por princípios
constitucionais, ratificam o dever do Estado para com o povo, estando a ele subordinado. O
mandamento constitucional é claro ao estabelecer que o poder emana do povo, que o exerce
por meio de seus representantes legais
195
. Esta escolha, embora inicie um processo
democrático, consolidando-o, não o encerra. O princípio democrático não se esgota por força
da legitimidade, que o orienta na esfera estatal no sentido de renovação e aceitação perene da
coletividade.
O problema da legitimidade se torna crítico com o Estado Moderno,
transformando-se no ponto básico de conexão entre o Direito e a Política. Como verdadeira
ciência do Estado e, por sua vez, do poder, a Política representa a orientação ou a atitude de
um governo em relação a certos assuntos e problemas de interesse público: política financeira,
política educacional, política social, política agrária, dentre outras. O surgimento de novas
esferas de poder é o elemento peculiar e constitutivo dos cenários político e jurídico da
modernidade. O processo decisório passa, inevitavelmente, pela dialética entre embate e
195
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de
outubro de 1988. Organização do texto por Anne Joyce Angher. 6. ed. São Paulo: Rideel, 2008, art. 1°, §
único.
129
conciliação de interesses traduzidos em um pacto, base de todo o sistema jurídico-
democrático atual.
Diante dos exemplos aqui já denunciados, torna-se desnecessário registrar mais
uma vez a perversidade dos reais indicadores do desequilíbrio social. Do ponto de vista das
políticas públicas, ou dos direitos sociais que elas materializam, a tarefa dos Governos
consiste na tomada de ações decisivas para se garantir o amplo apoio e financiamento público
para as políticas sociais, subordinada às decisões em termos de direitos sociais à
disponibilidade de caixa, finalmente conhecidas após as decisões de cúpula a respeito das
taxas de juros, superávit fiscal, câmbio, política tributária.
Todavia, seguem inertes as limitações ao processo de valorização e
desenvolvimento das garantias individuais e coletivas na esfera dos direitos sociais, que mais
do que nunca se mostram imprescindíveis para o processo de legitimação do poder estatal.
Imperioso reconhecer que a má articulação do poder em detrimento dos necessários
investimentos nas áreas da saúde, educação, assistência social, previdência, geração de
emprego e renda, segurança alimentar, reforma agrária, dentre outras, maculam o exercício do
poder estatal e, por sua vez, a Política e o Direito.
Impõe-se, sobretudo, uma retomada de consciência Ética nas esferas política e
jurídica, fazendo do Direito instrumento justo e legítimo de ordenação e integração social. A
presença da Ética na comunicação, na elaboração de leis, na interpretação do Ordenamento
Jurídico como um todo, e na materialização de seus efeitos, na elaboração e realização de
Políticas Públicas irrigam a legitimidade, impedindo que ela se esgote.
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