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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
A kuna n’kinga: o lobolo como foco das
representações locais de mudança social.
Guilherme Afonso Mussane
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Sociologia (com concentração em
Antropologia).
Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia
Rio de Janeiro, 2009
Março de 2009
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Mussane,Guilherme Afonso
A Kuna N‟ kinga: O lobolo como foco das representações locais
de mudança social/Guilherme Afonso Mussane-Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS,2009-03-31
xi,109. : il 31 cm
Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia
Dissertação de Mestrado-UFRJ/Programa de Pos-
graduação/IFCS, 2009-03-31
Referencia bibliografica: f 94-98
1.Lobolo 2. Tsongas 3. Fenomeno Social Total 4. Mudaça I.
Heredia, Beatriz Alasia II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de
Pos-graduação em Sociologia e Antropologia. III Titulo.
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A KUNA N’KINGA: O LOBOLO COMO FOCO DAS
REPRESENTAÇÕES LOCAIS DE MUDANÇA
SOCIAL
Aluno: Guilherme Afonso Mussane
Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em
Antropologia).
Aprovada por:
_____________________________________
Presidente: Prof. Dra. Beatriz Alasia de Heredia (PPGSA/IFCS/UFRJ
______________________________________
Prof. Dr. John Comeford (CPDA/UFRRJ)
_______________________________________
Prof. Dr. Peter Fry (PPGSA/IFCS/UFRJ
Rio de Janeiro
Março de 2009
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos, que de uma forma ou de outra, contribuíram para a
concretização deste trabalho, às redes de apoio que me sustentaram nesta aventura de
mestrado.
Agradeço a Professora Beatriz Heredia, minha orientadora, a oportunidade de
amadurecimento intelectual, que resultou de trabalhar sob sua orientação, sua amizade,
compreensão e confiança. Estou muito grato pela forma como aceitou me receber depois
dos nossos contactos por correspondência eletrônica, apesar de nossa separação por
milhares de milhas.
Não posso deixar de mencionar a importância dos professores do Departamento
de Antropologia e Arqueologia da Universidade Eduardo Mondlane, na minha formação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia nas figuras de sua
coordenação, seus professores, secretaria e biblioteca. Aos meus colegas agradeço a
camaradagem com que me trataram no decurso do mestrado.
Agradeço também aos imprescindíveis recursos financeiros da Ford Fundation, sob a
forma de bolsa de estudos e do trabalho de campo e a amizade e profissionalismo da Dra.
Célia Diniz.
Sou grato às famílias de N‟kinga e seus amigos e vizinhos que generosamente
deixaram-me compartilhar suas vivências. Muito mais que “informantes”, anfitriões, que
partilharam sua intimidade, seu afeto, sem os quais não seria possível a realização deste
trabalho.
Sou grato ao Dr. Calisto Bias e ao Ministério da Agricultura de Moçambique pela
ajuda concedida durante o período do mestrado.
À minha esposa Angelina Muzima, aos meus filhos, Júlio César Mussane, Ivan
Guilherme Mussane e Denise de Eugenia Mussane agradeço a paciência com que
aguardaram a presença plena do marido e pai para a continuidade de nossos sonhos
partilhados.
Em especial agradeço aos meus pais (in memoriam) ao meu irmão Henrique
Mussane, à toda família, que me deram apoio imprescindível, para a realização deste meu
projeto.
5
A todos eles vai o meu khanimambo, obrigado.
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Resumo
Aluno:Guilherme Afonso Mussane
Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia
Resumo da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte
dos requisitos necessários a obtenção do título de Mestre em Sociologia (com
concentração em Antropologia)
O lobolo ou lovolo, praticado no Sul de Moçambique, é uma forma tradicional de aliança
matrimonial dos tsonga. Consiste na oferta de uma compensação pelo grupo do noivo a
um outro grupo, o da noiva, para que este ultimo reestabeleça o equilíbrio entre as
famílias que compõem o clã, atraves da aquisição de um novo membro, uma mulher,
(Junod, 1996)
Nesta pesquisa explora-se a teoria de “fenômeno social total” de Mauss, (1974), e faz-
se uma abordagem antropológica das representações locais de mudança social a partir
das diversas teias de relações que se iniciam com a prática do lobolo, tendo como base
uma analise de dados empíricos e da leitura da obra Usos e Costumes dos Bantu,
Henri.A.Junod (1996).
Apresentamos o lovolo em periodos diferentes caracterizados por distintos fatores
históricos, políticos, econômicos e sociais diretamente ligados às representações locais da
mudança social.
Para a comparação e interpretação das diversas fases desta forma tradicional de aliança
matrimonial tsonga, fizemos uma pesquisa empírica na comunidade de N‟kinga, no
distrito de Matutuine, Província de Maputo, no Sul de Moçambique.
O presente estudo mostra que, com o tempo, houve mudanças nas formas de
compensação no lobolo. Estas mudanças estão relacionadas com o aumento e as formas
dos valores materiais que ao longo do tempo foram sendo introduzidas na prática daquele
fenômeno social. No entanto, estas mudanças, não parecem ter alterado o estatuto do
lobolo, ou seja, não parecem ter tido um efeito no valor e no estatuto do lobolo.
7
Pode-se concluir que seja qual for o valor que a “transação” do lobolo represente, do
ponto de vista antropológico deve-se reconhecer que a sua maior peculiaridade está no
seu valor simbólico como fenômeno cultural.
Palavras-chave: Lobolo; Tsongas; Fenômeno Social Total, Mudança.
8
Abstract
Abstract da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção
do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia)
The lobolo or lovolo, practiced in the south of Mozambique, is a traditional form
of the Tsonga‟s matrimonial alliance. It consists of an offer of compensation from the
groom‟s group to another group, the bride‟s, so that the last one reestablishes the
equilibrium within the families that composes the clan, through the „acquisition‟ of a new
member, a woman, (Junod, 1944).
This research explores the Total Social Phenomena, Mauss (1974), and uses an
anthropological approach of the local representation of social change from various chains
of relationships which start with the practice of lobolo, having as a basis an analysis of
empirical data and the research Usos e Costumes dos Bantu, Henri.A. Junod (1996).
We present the lobolo in different periods characterized by distinct historical, political,
economical and social factors directly linked to the local representations of the social
change. For comparison and interpretation of the various phases of this tsonga traditional
matrimonial alliance, we carried out an empirical research in Kinga community, located
in Matutuine District, Maputo Province, and South of Mozambique.
The present study showed that, along the time, there were changes in the forms of
compensation of lobolo. These changes are related to the increased tangible values that
have been introduced along the time in the practice of this social phenomenon. Besides
the changes, they do not seem to have altered the statute of lobolo, this is, they do not
seem to have valued more the the lobolo statute.
It can be concluded that, whatever the changes in the value of the lobolo‟s transaction
are, it is necessary to recognize the main symbolic significance of this social phenomena.
Keywords: Lobolo; Tsongas; Total Social Phenomena; Change
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Siglas
IFCS-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
MN-Museu nacional
UFRJ-Universidade Federal do Rio de Janeiro
RENAMO-Resistência Nacional Moçambicana
IUCN-União Internacional de Conservação da Natureza
FRELIMO- Frente de Libertação de Moçambique
ONU-Organização das Nações Unidas
MAE- Ministério da Administração Estatal
INE- Instituto Nacional de Estatística
REM- Reserva Especial de Maputo
IDEL- Iniciativa Espacial do Desenvolvimento dos Libombos
SADC-Comunidade de Desenvolvimento da África Austral
GD- Grupo Dinamizador
EP- Escola Primária
PPCS- Programa de Participação Comunitária em Saúde
10
INDICE
CAPÍTULO 1- Sobre os Tsongas ..................................................................................... 19
1.1 Organização social .................................................................................................. 20
1.2. Atividades econômicas .......................................................................................... 23
1.3. Posse da terra e herança ........................................................................................ 25
1.4. Os ritos de iniciação ............................................................................................... 26
CAPÍTULO 2- Mudanças ................................................................................................. 29
2.1 Mudanças causadas pelo colonialismo ................................................................... 29
2.2. Sociedade tradicional e o socialismo ..................................................................... 33
CAPÍTULO 3 - N‟kinga ................................................................................................... 39
3.1. Aspetos geográficos e econômicos de N‟kinga ..................................................... 39
3.2. A vida cotidiana ..................................................................................................... 44
3.3. Estrutura da família ................................................................................................ 51
CAPÍTULO 4 - O lobolo .................................................................................................. 54
4.1. Kugangisa, namoro ................................................................................................ 54
4.2. O lobolo “como era” .............................................................................................. 56
4.3. Os tabus dos rhongas ............................................................................................. 58
4.4. A festa do lobolo .................................................................................................... 59
4.5 Sistema de parentesco rhonga ................................................................................. 62
4.6. O lobolo como troca e seu significado ................................................................... 66
CAPÍTULO 5 - O lobolo “como se tornou” ..................................................................... 69
5. 1. Gangisar, namorar hoje ......................................................................................... 69
5.2. O lobolo de Marília Nhaca ..................................................................................... 76
5.3. O lobolo da Sara N‟gumende ................................................................................. 82
5.4. As lições do lobolo de hoje .................................................................................... 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 89
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA .................................................................................. 95
GLOSSÁRIO .................................................................................................................. 100
ANEXOS ........................................................................................................................ 103
11
INTRODUÇÃO
[...] Para compreender o processo de mudança, é
necessário fazer um estudo diacrônico. Mas para
fazê-lo devemos aprender primeiro tudo o que for
possível sobre como o sistema funcionou antes da
ocorrência das mudanças que estamos
investigando. então podemos compreender algo
sobre as suas causas possíveis e ver alguma coisa
dos seus efeitos reais possíveis. quando
mudanças são encaradas como mudanças num ou
de um sistema operante é que podem ser
compreendidas. (Radcliffe-Brown, 1973, p.62)
O tema escolhido para a presente dissertação de mestrado tem a ver com o
programa seguido no decurso do tempo em que assistimos as diversas disciplinas do
Mestrado, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS e no Museu Nacional-MN da
Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.
Após a integração num curso especialmente organizado para debater a
problemática teórica dos estudos de comunidade e um semestre de debate sobre as
sociedades camponesas, decidimos “penetrar as arenas comunitárias moçambicanas
tendo como base um tema com atores socias com algumas caraterísticas próximas das
que vêm descritas na vasta literatura sobre o campesinato.
A prática da agricultura através da lavoura realizada pela família; a pobreza e o
fato de não ter controle do poder; o uso de mediadores na sua relação comercial com os
“outsiders”; a baixa tecnologia; o predominio da cultura tradicional; o modo de vida
comunitário com predominio de relações inter-familiares; a tradição oral; as tradições
religiosas imersas nas ações cerimoniais, são, entre outras, algumas características que
aparecem na literatura sobre campesinato similares as que se verificam entre os atores
sociais do nosso cenário de pesquisa que influenciaram a escolha do nosso objeto de
12
estudo .(Cf. para as características aqui mencionadas Shanin, 1973; Wolf,1957;
Redfield,1969; Forster,1967 e Chayanov,1966).
Concomitantemente, os debates realizados no curso de teoria antropológica
ilucidaram-nos, que mais do que a literatura sobre o campesinato, seria Radcliffe-
Brown(1973 e 1974) o que mais elementos teóricos nos daria para a análise e
interpretaçãoe da nossa problemática.
No processo de apresentar as representações locais de mudança social, fizemos
uma interpretação na linha sociológica partindo dos fatos que servem para legitimar,
definir posições e a ação dos atores sociais, onde o passado e o presente nos servem como
pontos de apoio e referência neste exercício descritivo, comparativo e dinâmico.
O lobolo ou lovolo é um costume matrimonial em que o grupo do noivo leva uma
compensação a outro grupo, o da noiva, para restabelecer o equilíbrio entre as famílias
que compõem o clã. O noivo e o seu grupo adquirem, desta forma, um novo membro
(mulher) e, se sentido diminuído o outro grupo pede uma compensação para se
reconstituir pela “aquisição” de outra mulher. Segundo Junod (1996) somente esta
concepção coletiva explica este fato.
Escolhemos o lobolo como foco de representações de mudanças locais porque ele
institui o sistema de parentesco e nos apresenta desta forma, um conjunto complexo de
normas, de práticas e de padrões de comportamento entre os parentes. A pesquisa
empírica mostrou-nos que as representações de mudança observadas pelos diversos atores
sociais locais, estão diretamente ligadas as alterações que se têm vindo a operar no ethos
da sociedade tsonga.
Percebemos isso quando, por exemplo o régulo nos disse”: [...] Hoje as pessoas
já não respeitam a tradição. Olham para os velhos como se fossem lixo[...].
Na sociedade tsonga um homem deve respeitar especialmente todos os homens do
grupo etário e de seu pai e suas respetivas mulheres e obedecer certas regras de etiqueta
na sua relação com outras pessoas da mesma faixa etária.
A função social desta relação é evidente. A tradição transmite-se de geração em
geraçào. Para que esta tradição se mantenha tem de existir uma autoridade por detrás
dela. A autoridade reconhce-se como pertecendo aos membros da geraçào precedente e
são eles que exercem a disciplima(Radcliffr-Brown, 1973, p.142).
13
A percepção de mudança dos atores locais está diretamente ligada a um
sentimento de alteração nas instituições sociais. Uma instituição social é a norma de
comportamento estabelecido que é reconhecido por um certo grupo ou classe social ao
qual pertence (Radcliffe-Brown, 1974, p.22)
O nosso cenário de pesquisa foi à região de N‟kinga
1
, no distrito de Matutuine, na
Província de Maputo, a Sul de Moçambique.
O eixo principal do nosso debate é o lobolo, forma tradicional do casamento
entre os rhonga, como foco das representações locais de mudança social. Para tal,
trazemos “o lobolo como era” uma “viagem” ao longo da história para mostrarmos como
é que esta instituição social funcionou na sua fase inicial. No capítulo 4 mostramos “o
lobolo como se tornou” através de dois estudos de caso.
Numa visão permeada por óculos antropológicos mostramos também, como é
que se fazia esta cerimônia, que atores e que implicações sociais tinha no dia-a-dia das
populações rhongas. Falamos especificamente dos Rhongas e não dos Tsongas um grupo
maior que inclui os Changanas, os Tsuas, os Pedis e os Nguni, descrito no capítulo 1.
Com base na diversa bibliografia por nós consultada, mostramos como é que os
ventos e eventos da história tais como a ocupação européia (colonialismo), as missões
religiosas e o trabalho migratório influenciaram este evento crucial no sistema de
casamento e parentesco dos rhongas.
A compreensão da mudança simbólica a partir da comparação e
interpretação do lobolo passa por se obter uma resposta para as seguintes perguntas:
- O que aconteceu ao longo da vasta história de Moçambique com os estruturas
tradicionais Tsonga que constituíam o suporte e garantia dos seus valores espirituais-
ligados aos antepassados-, e morais tais como a solidariedade, a harmonia e o respeito?
- Que fatores históricos influenciaram diretamente o lobolo, resultando na afetação do seu
peso simbólico nos dias de hoje?
É em volta destas perguntas que desenvolvemos a nossa pesquisa tendo como
foco a teoria de fenômeno social total de Marcel Mauss (2001) desenvolvida na obra
Ensaio sobre o Dom e a perspectiva de Radcliffe-Brown expressa nos seus textos
1
Nome fictício. N‟kinga vem da expressão zulu, a kuna kinga, que significa não há problema. Os nomes
dos informantes aqui usados são também fictícios.
14
Estrutura e Função nas Sociedades Primitivas (1973) e Sistemas Políticos Africanos de
Parentesco e Casamento (1974).
A nossa principal hipótese é: Considerando que o lobolo é uma componente
importante da estrutura social tsonga, a população de N‟kinga pode estar a relacionar as
causas da mudança aos constantes abalos das suas instituições sociais.
O debate que nos propusemos fazer sobre o lobolo tem como base a obra Usos e
Costumes dos Bantu, de Henri. A. Junod (1996).
No capítulo 1 fazemos a descrição da tribo Tsonga, um grupo populacional
localizado na região Sul da África. No território moçambicano os tsongas povoaram a
região Sul, até ao Rio Save.
Nesta descrição focalizamos aspetos diretamente relacionados com o lobolo como
a organização social, as atividades econômicas incluindo a problemática da herança e os
ritos de iniciação.
O capítulo 2 é dedicado a mostrar as mudanças ocorridas desde a colonização
efetiva do Sul de Moçambique, que inicia com a derrota do Estado de Gaza, em 1895, até
à independência em 1975. Abordamos ainda o período pós-independência até o ano 2008.
Aqui mencionamos o papel da igreja, as diversas leis coloniais e o período revolucionário
que iniciou com a tomada do poder pela Frelimo. Mostramos também as mudanças
relacionadas com o conflito armado entre o governo da Frelimo e a RENAMO.
No capítulo 3 descrevemos N‟kinga, o nosso cenário de pesquisa empírica.
Mostramos os seus aspetos geográficos econômicos, a vida cotidiana, a estrutura da
família e a herança da terra.
No capítulo 4 usamos o pretérito-mais-que-perfeito e o pretérito-perfeito para
abordarmos o lobolo, descrevendo, primeiro, o namoro. Pormenorizamos o lobolo desde
o início dos trabalhos etnográficos de Junod entre 1898 a 1933. Abordamos os tabus dos
rhongas, a festa do lobolo, o sistema de parentesco e o lobolo como troca e o seu
significado. E usamos o presente do indicativo, para fazer a interpretação dos dados a luz
das teorias antropológicas.
No capítulo 4, descrevemos o lobolo hoje, ou seja, no período de 1975 a 2008.
Mostramos pormenores de duas cerimônias de lobolo que assistimos em N‟kinga
destacando as suas diferenças simbólicas.
15
O estudo mostrou-nos que o peso da mudança é mais simbólico, ou seja, cultural
do que material, pois a troca das enxadas pelo gado e deste pelas libras esterlinas ou pelo
metical foi sempre equivalente. Não é ao nível de objetos físicos que esta instituição
mudou, mas ao nível do seu significado. E esta mudança vem se refletindo na sociedade,
sobretudo no período posterior a independência, período que como mostraremos no
capítulo 2, o peso da tradição foi preterido.
Em conversa com várias pessoas percebemos que o lobolo, forma tradicional de
casamento rhonga, tinha deixado de ser freqüente entre os habitantes desta região. São
vários os fatores apontados como causa disso e, entre eles muitos apontaram a carestia de
vida, o enfraquecimento da tradição, e a migração interna e externa provocadas pela
guerra. Os mais velhos apontavam o dedo para as políticas definidas pelo governo no
período pós-independência como causa deste e outras mudanças havidas na vida da
comunidade.
Em conversa com a voWantembe, 62 anos, uma anciã muito respeitada no
local, soubemos que houve aumento no valor
2
e uma certa “flexibilização” nas prestações
do lobolo. Esta situação- segundo ela-, deveu-se ao aumento do custo de vida.
Antigamente, entenda-se tradicionalmente, o lobolo era feito através de gado
bovino por ser um bem simbólico e de prestígio (cf, Costa, 2005). O número de cabeças
envolvida na “transação” dependia das “negociações” entre as duas famílias.
Atualmente aceitam-se valores monetários, sujeitos também a “negociação”
consoante as possibilidades econômicas da família do futuro marido e do nível de formação
acadêmica e profissional da rapariga. Presentemente muitos dos bens transacionados
(roupa, anel e dinheiro) ainda conservam essa conotação. O estatuto de casamento e de
maternidade, ainda constitui um fator de grande peso cultural e social nesta comunidade.
A idéia de fazer esta dissertação com foco no lobolo surgiu das longas conversas
com vários atores sociais no distrito de Matutuine. Começou pela constante menção a
mudança por parte de muitos idosos que conhecemos na localidade Djavula, no longícuo
ano de 1999, quando participávamos num projeto de saúde comunitária, numa vasta
equipe multidisciplinar. Várias vezes ouvimo-los a dizer: a kuna kinga”, uma expressão
2
É difícil fazer uma análise “objetiva” do “custo” do lobolo (cf. Costa, 2005), dado que se trata de uma
prestação matrimonial que envolve um sistema de trocas complexo onde a “lógica da dádiva” se articula
com a “lógica do mercado”. Por ser um ato no qual coexistem valores simbólicos e monetários.
16
de origem zulu, que significa não há problemas. E este linguajar era sempre usado
quando nos encontrávamos em ambientes de conversa animada com pessoas que se
conheciam e que se achavam dentro das regras normais de relacionamento. E quando
perguntávamos o porquê ou qual era a necessidade de usar sempre esta expressão
justificavam-se referindo-se a comportamentos ligadas as formas de aliança entre as
pessoas.
E foi nessa procura de conhecer os wazinguires através de a kuna kinga” que
decidimos fazer um estudo antropológico da comunidade aqui batizada por N‟kinga, uma
região situada entre os rios Maputo e Futi, na Província de Maputo, no Sul de
Moçambique.
Nesta pesquisa usamos um método. Nas nossas consultas bibliográficas, a
literatura sobre comunidades rurais e sobre o campesinato - com base nos autores acima
referidos-, foi importantíssima para o estudo. Para abordar o lobolo, o texto Usos e
Costumes dos Bantu (1996), de Henri.A.Junod, em dois volumes foi uma das nossas
principais fontes bibliográficas.
Revistamos as obras Uma teoria científica da cultura (1975) e Argonautas do
Pacífico Ocidental (1978) de Malinowski para apurarmos o conceito de cultura e
percebermos ainda mais o papel da família e do indivíduo e as suas funções sociais
A perspectiva de Radcliffe-Brown expressa nos seus textos Estrutura e Função
nas Sociedades Primitivas (1973) e Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e
Casamento (1974) trouxe para este trabalho, contribuições significativas para a
compreensão do parentesco tsonga. Continuando às técnicas de observação inauguradas
por Malinowski, este autor apresenta um conjunto rigoroso de conceitos analíticos que nos
foram úteis no presente estudo.
Este autor mostra que para compreender os mecanismos da coesão social é
preciso observar a estrutura social. Compreendendo o sistema social como sistema de
relações reais de encadeamento de indivíduos que ocupam papeis sociais. As normas que
regem as relações sociais explicitam, a seu ver, a estrutura social.
Sua percepção de parentesco é claramente estrutural, definindo-o como “sistema”,
na medida em que reúne uma amplitude de expressões da vida social: as terminologias, as
17
redes de relação, o conjunto de deveres e usos associados a determinados pápeis de
parentesco, as crenças e práticas rituais envolvidas na procriação e veneração aos
ancestrais.
A nossa consulta bibliográfica incluiu as obras As Estruturas Elementares do
Parentesco (1976) e Antropologia Estrutural (1985) de Levi-Strauss, que inaugura uma
nova fase nas reflexões sobre o parentesco dando uma dimensão simbólica às relações
humanas. O foco da sua análise é a instauração da regra como marco de passagem do
estado da natureza para a cultura; de uma regra universal, a proibição do incesto.
O Ensaio sobre o Dom (1974) de Marcel Mauss, obra basilar neste estudo, deu
um salto importante nos estudos antropológicos. Este autor mostra que é na a tríade dar
recebe e retribuir que se baseiam as relações sociais.
Estas obras constituíram a nossa base bibliográfica. Foi a partir destes textos que
construímos a nossa base teórica. A isto somamos a leitura de vários textos de
antropologia, sociologia e história; ensaios sobre a Missão Suíça e sobre o lobolo e vários
outros textos relacionados com o tema ( ver referências bibliográficas).
A pesquisa empírica consistiu no trabalho de campo, observação participante e
entrevistas informais, durante os meses de Julho, Agosto e meados de Setembro de 2008.
Selecionamos vários residentes em várias localidades para captar o ximo de
reflexões sobre a vida social da comunidade. Fizemos registros no nosso diário de campo.
A escolha dos informantes não foi aleatória. Ela foi sugerida pela banca examinadora
quando fizemos a provação do projeto inicial de pesquisa.
A ênfase no cotidiano tornou-se a estratégia de grande eficácia para
reconhecermos os valores compartilhados que tornam as ações sociais possíveis.
Procuramos fazer uma descrição densa (Geertz, 1973), procurando observar e
conjecturar encadeamentos possíveis nas diferentes situações por nós vivenciadas. Não
nos foi fácil partilhar a intimidade dos agregados familiares. A empatia com os diversos
atores foi um processo de construção gradual. Para conseguir ter o máximo de
18
informações fizemos uma lista de questões que consideramos cruciais que nortearam as
nossas conversas.
Convivemos com as famílias dos régulos Zanta, 65 anos e Madja, 57 anos; as famílias
dos pastores das igrejas Presbiteriana, Weseliana e Anglicana; passamos vários dias de
modo alternado em casa de 5 anciãos e vistamos várias vezes as barracas, as roças, as
colméias. Participamos em cerimônias fúnebres, festas familiares, rituais de invocação
dos espíritos dos antepassados e em duas cerimônias de lobolo.
19
CAPÍTULO 1- Sobre os Tsonga
A descrição dos tsonga que passaremos a fazer situa-se no período de 1863 a
1946
3
. Na generalidade, o que sucedeu neste período se prolongou até 1975, ano da
independência de Moçambique.
Moçambique é, como outros países africanos, uma miscelânea de grupos
populacionais ou étnicos: possui várias etnias com especificidades sócio-culturais
próprias, uma diversidade lingüística, diversas expressões artísticas e costumes. No seu
vasto e longo território encontramos diferentes formas de organização social, sobretudo
no que diz respeito a família, uma particularidade que se reflete nos seus diferentes
sistemas de parentesco.
Algumas destas características e diferenças alteraram-se ao longo do tempo;
outras se mantiveram, garantindo assim uma certa continuidade; outras ainda
desapareceram ou vão sendo substituídas dentro de uma descontinuidade ligada as
dinâmicas impostas pelas condições sócio-econômicas, sobretudo as migrações, as
guerras, as mutações históricas e outros eventos que se deram ao longo dos séculos. Entre
estes povos ou etnias encontramos os Tsonga. O nome tsonga está diretamente
relacionada aos estudos feitos pelo missionário e etnógrafo suíço Henri Junod (1996).
Este autor reuniu vastíssimo material etnográfico no seu livro “Usos e Costumes
dos Bantu: A Vida de uma tribo no Sul de África”, em dois volumes. Esta obra é uma
referência obrigatória nos estudos sobre os Tsonga.
Segundo Junod a tribo tsonga compõe-se dum grupo de populações estabelecidas
na costa oriental da África do Sul, desde as proximidades da baia de Santa Lúcia, na costa
do Natal, até ao rio Save, a norte. Encontram-se, pois Tsonga em quatro atuais estados do
Sul da África : Natal, Transval, Zimbábue e Moçambique.
A língua tsonga pertence ao grupo lingüístico bantu
4
do sudeste de África, e é
aparentada com o sutho, do Leshoto e o zulu, da África do Sul. Todas essas línguas têm
3
Junod chegou a Moçambique no ano de 1863 e publicou a primeira versão em inglês da sua obra mais
importante, Life in South African Tribe. A tradução portuguesa de Usos e Costumes dos Bantu é publicada
em Lourenço Marques, (atual Maputo), pela Imprensa Nacional, entre 1944 e 1946(cf. Gajanigo, 2006).
4
Os bantos (grafados ainda bantu) constituem um grupo etnolingüistico localizado principalmente na
África sub-sahariana que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade deste grupo,
20
certos caracteres gramaticais comuns, que as distinguem dos outros grupos. Entre essas
características destaca-se o emprego de freqüentes sons laterais lh, dl, tel e rh; a
existência de sete ou oito categorias de nomes, reconhecíveis pelos prefixos que
correspondem uns aos outros nessas três línguas.
No território moçambicano, os Tsonga povoaram a região Sul, até ao rio Save.
Nele encontramos vários sub-grupos tais como os Rhonga - objeto específico do presente
estudo-, os Changanas, e os Tswas.
A regularidade na relação geográfica dos sons é muito nítida, e mostra que a
língua se desenvolveu organicamente, como uma árvore cujos ramos crescem, afastando-
se cada vez mais um dos outros, até que se formem os dialetos, cada um com os seus sons
particulares.
Teresa Cruz e Silva(1999) apud Patrick Harris(1988) enfatiza a importância do
desenvolvimento da escrita da língua vernácula para a formação de uma identidade do
grupo etno-linguistico tsonga. Severino Ngoenha (2000) analisa o “binômio Missão
suíça-tsonga”, “que se traduziu numa tsonganidade espaço-temporal que ela mesmo
criou e com a qual ela se identificava”. A região que nos serviu de cenário para o
presente trabalho, usa uma variante tsonga, o rhonga denominada xidindindi ou
chizinguire.
1.1 Organização social
Entre os Tsonga, a unidade básica de organização social era o muti (família
alargada, uma unidade que era composta por duas ou mais famílias nucleares ligadas por
laços de consangüinidade).
O chefe do muti era o munumuzana, e a sua primeira mulher era chamada
nkosikazi. O conjunto dos vários muti pertencentes a uma linhagem
5
eram chamados
muganga e o seu chefe era chamado mulume. Os vários muganga que podiam pertencer
contudo, aparece de maneira mais clara no âmbito lingüístico, uma vez que essas centenas de subgrupos
têm como língua materna uma língua da família banta(cf. História de Moçambique, Vol I, UEM, 1980).
5
Segundo Radcliffe-Brown(1974), linhagem: é um grupo de parentesco que inclui somente os indivíduos
que descendem de um ancestral comum conhecido - o fundador-, que tenha vivido pelo menos há cinco ou
seis gerações.
21
ou não as várias linhagens eram chamados tiko e o seu chefe era conhecido por
nganakana
O tiko constituía a unidade política, social, econômica e religiosa mais vasta integrando
várias linhagens e vários clãs
6
, cujo chefe era comumente chamado hosi.
Os habitantes do muti partilhavam um território comum, eram membros derivados
de uma ascendência comum que se expandia a partir de um espaço centrais que fazia com
que todos os membros se situassem ideologicamente centrados no chefe, denominado
tatana ou hosi, visto que era o mais velho e o mais próximo representante do mais
distante ascendente.
O tiko definia os limites territoriais, políticos e religiosos da mais vasta unidade.
O hosi (chefe tradicional) governava o tiko juntamente com um conselho de
anciãos do qual faziam parte além dos seus “irmãos” mais velhos, os nganakana que
governavam outros tiko. Era uma gestão coletiva do espaço e seus recursos, claramente
delimitados por fronteiras e defendido coletivamente dos tikos externos, que eram vistos
como inimigos potenciais.
Era uma gestão coletiva que defendia o território, distribuía as terras entre todas
as linhagens, geria as pastagens e os pousos. Tal gestão assegurava ainda a organização
de atividades que exigiam a presença de grande número de homens como era o caso da
caça, da pesca e antes de 1895
7
, da guerra.
O hosi organizava também os grandes rituais que garantiam a fertilidade sexual e
econômica do tiko, como a abundância de filhos, de chuvas e alimentos; a ordem entre as
linhagens e seus membros era garantida por julgamento de questões e conseqüentes
sanções e o funcionamento dos circuitos de alianças.
Era o hosi que aparecia como pai (tatana) que cuidava da unidade dos filhos
enquadrada pela rede de direitos e obrigações que eram devidos a parentes e era reforçada
6
Clã, é um grupo de parentes extensos que acredita ter uma origem em um ancestral fundador, que viveu
em um passado tão remoto que chega a ser mitológico. A essência do sistema de clãs é que exige de um
homem que reconheça todos os membros do clã como parentes e que se comporte adequadamente para com
eles. (Idem, 1974).
7
Em 1895 os portugueses derrotaram Ngugunhana, o imperador de Gaza, uma das organizações políticas
que se opôs a ocupação colonial. A derrota do Estado de Gaza foi um dos principais prenúncios da
colonização efetiva de Portugal ao território de Moçambique(cf História de Moçambique Vol I.
Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane)
22
Fig. 1. Mapa do espaço Tsonga descrito por Henri.A.Junod (1944)
23
pela vontade dos antepassados que controlavam a ordem política, econômica e a sua
cosmovisão.
Os mais velhos pela ação ritual coletiva faziam a ligação entre os vivos e os
antepassados e por ela fazia-se ligação entre as diferentes unidades: muti, muganga, tiko,
assegurando a sua interligação com os espaços de produção e reprodução. Assim o tiko
representava a unidade máxima tanto política, como religiosa e econômica.
O culto aos antepassados constituía um dos aspetos mais relevantes da sociedade
tsonga. Neste culto se celebravam os acontecimentos mais significativos da vida: a
alegria, a tristeza, a doença, as grandes secas ou outras calamidades naturais,
nascimentos, os lobolo e outros. Era a vida como um todo que era celebrada.
O poder era simultaneamente religioso e político em todos os níveis: família,
parentesco e sociedade global. O ciclo anual da vida cotidiana era marcado por grande
número de festas religiosas e sociais. Essas festas tinham muitas vezes por objeto um
grupo etário ou grupo social.
Esta fusão do sagrado e do profano conferia à organização social da sociedade
tradicional um certo globalismo, um caráter unitário. O homem da sociedade tradicional
obedecia às normas de conduta que lhe eram impostos simultaneamente em nome do
sagrado e em nome da sociedade. O poder político reivindicava o apoio dos espíritos ao
mesmo tempo em que havia o peso da tradição e do direito.
Todo esse sistema de valores, atitudes e comportamentos eram transmitidos de
geração em geração através da linhagem. Deste modo, por meio de rituais de iniciação
acentuava-se de forma gradativa a importância do culto aos ancestrais e os aspetos
ligados à educação moral e sexual, preparando assim o indivíduo para a vida adulta.
1.2. Atividades econômicas
A agricultura era a atividade principal do povo tsonga e era feita principalmente
pelas mulheres que desde os doze anos assumiam a responsabilidade da machamba”,
roça, que passavam a cultivar em diferentes épocas do ano, por causa das irregularidades
das chuvas. E continuavam a fazer agricultura até o fim das suas vidas, além de executar
os trabalhos domésticos.
24
Os/as jovens faziam também pequenas plantações, cuidavam dos animais e
protegiam as culturas dos pássaros e dos macacos.
Os homens cuidavam da caça, da pesca, da criação de animais, da construção das
casas e dos celeiros; fabricavam ferramentas, faziam artesanato, guerras e contactos
sociais e familiares necessários para garantir ajuda dos outros, sobretudo nos períodos de
carência alimentar.
Devido às crises alimentares profundas as estratégias econômicas que o modelo
tsonga apresentava procurava assegurar os níveis mínimos de sobrevivência nos tempos
da fome.
Entre elas estava aquela que consistia em procurar multiplicar redes privilegiadas
de parceiros situados na mesma zona ou mesmo noutras mais distantes, para a troca de
bens, o que garantia o fornecimento desses bens por parte dos grupos onde havia
produção para outros dela carentes.
Essa rede permitia a cada agregado manter um nível mínimo de reserva dos
produtos alimentares, pois cada um podia, quando necessário, ter acesso a produtos que
necessitasse e que os aliados possuíssem. Isso assegurava um equilíbrio na relação
produtor/não produtor, considerando sexos e idades por meio de instituições ainda hoje
bastante vivas, possibilitando, por exemplo, aos sobrinhos (wapsana) irem residir na casa
do tio materno (malume) ou tia paterna (rhazana). Entre vizinhos, homens e mulheres
ajudavam-se mutuamente no trabalho.
Trataremos do lobolo, o casamento tradicional Tsonga, duma forma
pormenorizada nos próximos capítulos. Todavia é preciso observar que entre os tsonga a
linhagem era um meio de controle e equilíbrio e constituía a base da sociedade, além de
ser um núcleo de produção, um lugar de produção e consumo. Era através da linhagem
que o acesso a terra era garantido e regulamentado. Na linhagem os velhos e as crianças
ocupavam um lugar de estrema importância.
Os tsonga organizavam-se num sistema patrilinear e a herança dos bens era
transmitida diretamente do pai ao filho mais velho
8
.
8
As crianças de sexo masculino constituíam no sistema patrilinear o elemento mais importante. Elas
tinham a missão de velar pelos bens da família e especialmente dos pais, em caso de velhice e doença. Em
caso de morte do pai, o filho mais velho era o herdeiro e não saia da aldeia paterna, de modo a continuar
garantindo a assistência à família.(Op.cit, 1996).
25
O enlace matrimonial era considerado uma troca de serviços entre duas clãs
diferentes. Uma família, a da mulher, devia ser compensada através de bens de valor-o
chamado lobolo.
Entre os tsonga a mãe era geralmente reconhecida pelo papel de reprodutora e era
por isso que os filhos eram desejados, mas quem era o esteio econômico da família eram
as mulheres e as suas filhas. A mulher era comparada, na simbologia das sociedades
bantu em geral, com a terra, dado que ambas produziam a vida.
Era comum encontrar pelos caminhos das aldeias mulheres carregando um filho
as costas, segurando mais dois pelas mãos, levando outro na barriga e uma caixa ou lata
na cabeça.
1.3. Posse da terra e herança
Entre os tsonga acreditava-se que a ocupação indevida ou ilegal da terra podia ser
sujeita à punição dos espíritos dos antepassados, ou seja, dos “donos” legítimos da terra
em causa.
Na morte do marido a terra era herdada exclusivamente aos membros da família
do sexo masculino. O controle das terras do muti, assim como os bens e as obrigações do
defunto, ficavam sob custódia e responsabilidade do filho primogênito, mas de forma
nenhuma podia desvinculá-la da família, nem podia alienar ou ceder, ainda que
temporariamente, sem consultar os seus pares (tios e primos).
Era com base nesta regra de ouro que a família garantia a estabilidade da sua
porção de terra usando todo o tipo de ameaças relacionadas com os espíritos e a
feitiçaria
9
como medida preventiva.
Uma das medidas preventivas eram os ritos de purificação após a morte do
anterior “dono”. Estes ritos tinham por finalidade objetiva prevenir o uso “devido” da
terra em função dos interesses de reprodução da família. A purificação era uma limpeza
temporária dos espíritos “maus”, que a qualquer momento podiam regressar caso não
fossem cumpridas as regras estabelecidas. Os ritos de purificação eram momentos
9
Feiticeiros são seres humanos que preferem viver individualística e egoisticamente, recusando cumprir as
obrigações devidas ao parentesco, ao clã e à aldeia. (Op.cit, 1996)
26
simbólicos relacionados com o acesso e a preservação dos recursos que se perdem na
memória dos séculos, deles dependia o presente e o futuro do muti [Feliciano, 1998].
A seguir vamos abordar uma importante componente social dos tsonga: Os ritos
de iniciação que consistiam em diversos rituais de transformação do indivíduo em pessoa
através de um longo processo de socialização.
1.4. Os ritos
10
de iniciação
A escola de circuncisão (ngoma) tinha lugar de quatro em quatro anos, ou de
cinco em cinco anos, e todos os rapazes dos 10 aos 16 anos eram para mandados pelos
pais. Quando fugissem, eram apanhados e levados à força. Os adultos não circuncidados
eram obrigados a participar no ritual.
A ablação do prepúcio, embora não possa ter alta
significação espiritual da circuncisão judaica, parece-me
ser, sem contestações, um rito de separação, pois esta
parte do corpo representa a antiga vida desprezível da
criança, vida da qual o início emerge agora”. (cf. Junod
1996, p.89)
No mundo tsonga, o crescimento das meninas tinha como sinais o crescimento
dos seios ou a primeira menstruação.
Os ritos de iniciação constituíam o período em que as crianças eram
ensinadas/preparadas para penetrar no mundo dos adultos e poderem partilhar do
mistério, sabedoria, cultura e história dos antepassados.
10
Baseando-se em Arnold Van Gennep, através do seu livro Lês Rites de Passage, publicado em 1909,
Henri Junod dividiu os ritos em três séries que obedecem a três etapas nitidamente distintos: os ritos de
separação, os ritos de margem e os ritos de agregação.
Segundo DAMATTA (2000), os ritos de passagem foram recorrentemente interpretados a partir dos anos
60, sobretudo por Victor Turner. Podem-se discernir duas tendências interpretativas típicas dessa fase. A
primeira discute os ritos de passagem como uma resposta adaptativa obrigatória, quando os indivíduos são
obrigados a mudar de posição dentro de um sistema. Deste ângulo os ritos seriam elaborações sociais
secundárias com a função de aparar os conflitos gerados pela transição da adolescência à maturidade. Nessa
perspectiva, o foco é sempre nos jovens e naquilo que é percebido como uma arriscada transição dentro da
sociedade.
27
Poderiam assim passar a conhecer o bem e o mal e estarem preparadas para
enfrentar situações difíceis na vida, porque lhes seria ensinado a não ter medo do
sofrimento.
Os ritos de iniciação eram o verdadeiro nascimento do indivíduo como pessoa e
por isso a comunidade ficava feliz. A criança era a continuidade da comunidade e isso era
celebrado durante as noites, com comida especial, danças, contos e canções.
Os ritos de iniciação dividiam-se em três fases:
- Ritos de separação: os iniciados eram retirados da comunidade e iam viver fora do ciclo
habitual. No Sul , entre os rhonga, não era freqüente o isolamento. Quando a menina
apresentasse sinais de menstruação era mandada para a casa da avó para que ela a
orientasse;
-Ritos de margem: era o período de ensinamentos formais que ia de um a seis
meses. Esses ritos se realizavam fora daquilo que era o pulsar normal da vida cotidiana.
- Ritos de reintegração: no fim da fase anterior, as crianças eram avaliadas na sua
capacidade de estarem preparadas para a vida adulta. Simbolicamente queimava-se o
acampamento, as roupas e tudo que tivesse vestígios desse período. As meninas também
faziam o mesmo com as suas roupas. O dia da integração na sua comunidade era
comemorado com festa na aldeia e na família.
Para a aldeia e para a família, o jovem e a jovem passavam a ser considerado
adulto (alguns rapazes com 10 anos e as meninas com 12 anos).
Depois de passar pelos ritos de iniciação os rapazes não ficavam mais na
dependência das mulheres; eram responsáveis pelas suas novas amizades, passavam a ter
responsabilidades perante os seus irmãos mais novos e acompanhavam os pais ou as
mães no campo, passavam a participar nas cerimônias fúnebres, nas celebrações
religiosas e civis. Apesar disto muitos grupos consideravam que a confirmação do estado
de adulto era reconhecido de pleno direito pela comunidade com o nascimento do
primeiro filho.
Nos ritos de iniciação os rapazes eram ensinados deveres e virtudes que se
relacionavam com a própria pessoa, como coragem, prudência, limpeza, modéstia e
28
laboriosidade. Os segredos das relações inter-pessoais ensinados eram o amor à esposa e
aos pais sem os quais, os jovens não poderiam entrar na corrente da vida.
Ensinavam-lhes a veneração devida aos mortos e aos antepassados e o que
precisavam saber sobre a vida sexual. Tais ensinamentos eram transmitidos através de
provérbios, danças, contos morais, sendo o canto e a dança formas pedagógicas altamente
valorizadas.
No período da menstruação as meninas eram submetidas também a uma forma
sistematizada de aprendizagem. Quando não era a mestra a mentora, era a avó, a tia
paterna ou a cunhada. Não devia ser a mãe, pois se ensinava o respeito pelo marido,
pais, sogros e pessoas mais velhas, higiene em relação a menstruação; formas de
tratamento “eficaz” do marido; realização das atividades domésticas, como cuidar dos
filhos; conservação da virgindade até ao matrimonio (lobolo); período de abstinência
sexual; menstruação, gravidez, período pós-parto. Enfim, que deveriam recear e
desconfiar dos homens.
Como se pode depreender do relato acima, a mulher era preparada para ser mãe e
esposa. Ela era preparada para ser reprodutora e é por essa razão que ela era muito
valorizada na comunidade. O rapaz, por sua vez, era preparado para a vida social e
política e era-lhe ensinado uma obediência cega às autoridades.
Os ritos de iniciação tiveram uma grande importância na sociedade tradicional
tsonga, pois determinavam os valores morais e culturais de muitas gerações. A
transformação social e a supressão drástica destes ritos, iniciada com a colonização até os
nossos dias, levaram a nova geração a perder a sua referência moral e sócio-cultural e
religiosa.
É o que veremos e aprofundaremos no próximo capítulo e mais adiante, no
concernente as mudanças causadas pelo colonialismo e pelo período do socialismo em
Moçambique.
29
CAPÍTULO 2- Mudanças
2.1 Mudanças causadas pelo colonialismo
Os portugueses ocuparam o Sul de Moçambique oficialmente em 1895, depois da
derrota do Estado de Gaza, último reduto de resistência à ocupação colonial nesta região.
Sobre as mudanças que já se vislumbravam no mundo tsonga no período inicial da
ocupação efetiva de Moçambique Junod (1996) antecipou-se a observar que:
[...] a autoridade do chefe do clã diminuiu e em muitos
casos este foi deposto ou banido e a tribo ficou sem cabeça
e sem força e incapaz de se conduzir a si mesma. Um deles
dizia-me. “O nosso chefe é a floresta onde nos acolhemos.
Sem ele somos mulheres!”. Foi o que aconteceu no clã
Mpfumo, talvez o mais importante dos regulados rhongas.
O seu jovem chefe foi preso e deportado para o Este
africano e o clã desmembrou-se e uma parte se incorporou
nos Mavota ou Matsolo. Mesmo que o chefe indígena seja
mantido no poder pelos Brancos, a sua autoridade
encontra-se comprometida [...].
O regime colonial levou as populações a transformarem o seu universo sócio-
cultural ao mesmo tempo em que acrescentou o trabalho “forçado” e o cultivo obrigatório
do algodão e do arroz.
“Colonizar tornou-se sinônimo de civilizar o que por sua
vez, significava submeter compulsivamente as populações
locais através do aproveitamento da sua mão de obra. O
argumento de António Eanes podia ser traduzido no
postulado de que se a natureza é essencialmente
hierárquica, as leis, longe de pretender igualar o
30
inigualável deviam compreender a contemporização
hierárquica”.(Macagno, 2001, p.74-76)
A mulher foi obrigada a cultivar as terras dos colonos restando-lhe pouco tempo
para cultivar as suas terras (Brito, 1998), que se destinavam à subsistência da família. Isto
trouxe como conseqüência a falta de alimentos para a família e tempo reduzido para
cuidar dos filhos e da casa.
As famílias tinham por obrigação cultivar arroz na estação chuvosa (Capela,1977)
e eram ameaçadas com multas, castigos corporais e “chibalo”, o trabalho obrigatório. A
população era obrigada a pagar imposto e taxas e sofria outras penalidades.
Para evitar o trabalho forçado, muitos homens (Wuyts, 1981)começaram a
emigrar para a África do Sul onde o desenvolvimento das empresas capitalistas de minas,
em Kimberly (diamantes) e Johannesburg (ouro), e agricultura, no Natal e no Estado
Livre de Orange, lhes permitia ter trabalho remunerado.
Os filhos começaram a ficar abandonados a si mesmos. Muitas terras férteis
foram expropriadas (Oliveira, 2002), houve secas, cheias, períodos de fome e altos
impostos: se muita gente sobreviveu, foi graças ao trabalho das mulheres e ao dinheiro
que os maridos enviavam da África do Sul.
As ligações tradicionais de assistência e solidariedade com o grupo de parentesco
e a comunidade mais ampla começaram a diminuir e foram substituídas por uma
dependência do dinheiro e por uma nuclearização dos agregados familiares.
A vida na aldeia piorou bastante, sobretudo a vida das mulheres e das crianças, o
nível nutricional baixou drasticamente. A prostituição se tornou uma das formas de a
mulher ganhar dinheiro, sobretudo no Sul de Moçambique onde eram maltratadas pelas
famílias dos maridos, que se encontravam a trabalhar nas minas ou roças na África do
Sul.
As mulheres começaram a ser sexualmente exploradas pelos europeus e com a
chegada das tropas portuguesas a prostituição aumentou de forma generalizada. Antes, a
poligamia funcionava como um mecanismo de controle social e é por isso que não era
freqüente esta prática que era tradicionalmente condenada.
Quando o divórcio era muito difícil, muitas delas fugiam para as cidades com a
intenção de ganhar dinheiro suficiente para poder reembolsar o “lobolo” à família do
31
marido, sendo que a prostituição era a única oportunidade para garantir o seu sustento e
o dos filhos.
Com a colonização começou a transformação da estrutura social dos tsonga. A
autoridade tradicional (os chefes e os anciãos) não foi valorizada e aos poucos Portugal
começou a utilizar os chefes tradicionais para fins administrativos e políticos. Em
alguns casos os chefes tinham consciência disso e tentaram fazer o melhor possível para
defender a sua aldeia e a sua tribo.
Na sociedade tradicional, era o hosi (chefe da tribo) que definia os limites
territoriais. Com a colonização portuguesa foi criada uma nova estrutura que tinha como
principal função a distribuição das terras. A família tradicional perdeu também a sua
segurança em relação a terra, pois a qualquer hora o colono podia decidir e tomar terras
férteis do povo.
A religião cristã trazida para Moçambique durante o período colonial, realizava a
obra da evangelização segundo métodos tradicionais construindo escolas para as crianças
ligadas exclusivamente às missões católicas(Oliveira,2002).
Os missionários orientavam os alunos para uma catequese desenraizada da
tradição e divulgada em nível nacional, sem se preocupar com a diversidade sócio-
cultural dos vários grupos populacionais moçambicanos.
Nas instituições religiosas eram inculcados uma ideologia patriarcal e
discriminatória e o corpo dos estudantes das escolas missionárias era fundamentalmente
do sexo masculino.
Ensinava-se uma língua que não era da aldeia, tentava-se educar quem nunca
tivera necessidade de aprender. Na ânsia de alfabetizar para poder catequizar abriram-se
muitas escolas sem ter em conta a qualidade dos professores. Quando as escolas
começaram a ficar vazias, os missionários recorreram à obrigatoriedade transformando
a participação em má vontade (Cabaço,2007, apud Lundin e Machava,1995).
O Estado Novo, embora consagrando na Constituição de 1933 a liberdade de
culto, exerceu uma política hostil e discriminatória em relação às missões protestantes,
que na sua esmagadora maioria, integravam pessoal de nacionalidade não-portuguesa.
Eram criadas dificuldades burocráticas na concessão de terrenos; as missões eram
obrigadas a construir suas escolas em alvenaria; reprimiam-se os professores nativos
32
selecionando-os para o trabalho forçado e o serviço militar; proibia-se o ensino em
línguas locais tornando obrigatório o uso da língua portuguesa; destruíam-se as bíblias e
outro material religioso escrito nas línguas vernáculas; exercia-se pressão psicológica e
física sobre as crianças e seus pais para que freqüentassem as missões católicas; o elenco
das restrições prolongava-se ao extremo da intempestiva entrada nos templos de padres
católicos (que oficiavam em latim, em suas igrejas) interrompendo as cerimônias de culto
celebradas nas línguas africanas e ameaçando seu encerramento.
Teresa Cruz e Silva (1999) transcrevem, do livro de André-Daniel Clerc e
Chitlango Khambane
11
, o relato de Mondlane (Chitlango Khambane) acerca das pressões
exercidas sobre os adolescentes do campo e seus pais para que freqüentassem as missões
católicas.
“A nossa língua tsonga foi enriquecida com a palavra „rusga‟que
quer dizer „caça aos alunos novos‟, uma caça que tem todas as
características de um assalto regular como a palavra portuguesa
ilustra. Dias de rusga são dias de terror para os pequenos
pastores do mato... Muitos dos rapazes apanhados nesse dia são
severamente castigados com a régua. Alguns são detidos para
obrigar os pais a apresentarem-se” (Silva, 1999, p.72)
Esta intervenção autoritária foi o que tornou mais suspeita a ação dos missionários
que passaram a ser vistos como agentes do Estado colonial.
A evangelização missionária esqueceu-se” de ver na cultura dos povos bantu os
valores e a riqueza que possuía, tentou desprezá-la e preteri-la coercitivamente.
Quando a aculturação se tornou demasiado rápida ou forçada nasceu o fenômeno
de dualismo como havia acontecido com a evangelização na época (Silva, 1999).
Apesar da política colonial ter favorecido as mudanças entre as populações bantu,
estas não foram tão drásticas como as que aconteceram no período a seguir a
independência.
11
Clerc, A.D e Khambane, Chitlango. Chitlango, Filho do Chefe. Maputo, Cadernos Tempo, 1990.
33
2.2. Sociedade tradicional e o socialismo
Com a independência, em 1975, a maioria dos portugueses fugiu de Moçambique
levando os bens de capital que tinha. O país perdeu técnicos qualificados e trabalhadores
experientes e com um analfabetismo superior a 90 por cento da população (Brito, 1980).
O sistema de distribuição comercial desmoronou, a produção agrícola caiu. E a
grande fonte de trabalho assalariado desapareceu juntamente com o colapso do trabalho
das minas da África do Sul
12
.
A FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que herdou o país mostrou-
se incapaz de construir a nação (Dias, 1998) sem negar a história dos grupos sociais que
pretendiam trabalhar juntos por meio dos mesmos princípios morais e políticos que esta
apregoava, tais como: igualdade, fraternidade, solidariedade, autonomia, democracia,
saúde e educação para todos.
Esses ideais seduziam a qualquer pessoa, desde as minorias progressistas aos
militantes terceiro-mundistas. Tudo isto justificava a intervenção do Estado e do Partido
13
Frelimo no campo.
Era o que se esperava, mas o que aconteceu foi que os dirigentes nunca se tinham
visto confrontados com a realidade complexa da diversidade sócio-cultural moçambicana
e a falta de tal perspectiva deu lugar à estratégias políticas que destruíram o “tecido
social”, alteraram as estruturas da sociedade e puseram em questão os valores
tradicionais.
Com a Frelimo houve mudanças drásticas na base da sociedade tradicional
(Lourenço,1996). Tais mudanças tinham sido iniciadas durante a colonização, mas é
12
No período colonial os governos de Portugal e da África do Sul assinaram diversos acordos e
regulamentos da contratação da mão-de-obra moçambicana para as minas do país vizinho e sobre a
utilização do Porto de Lourenço Marques (hoje Maputo). Por causa das diferenças ideológicas trazidos pela
adesão ao modelo socialista de desenvolvimento por parte do governo da Frelimo, o regime do Apartheid
adotou duras sanções econômicas contra o governo mambicano que afetaram entre outras áreas da
economia, a contratação de mão-de-obra moçambicana. Esta medida teve reflexos negativos na vida de
muitas famílias, sobretudo a Sul do paralelo 22, que abarca as províncias de Maputo, Gaza e
Inhambane(cf.História de Moçambique, Vol II).
13
A FRELIMO foi criada como frente de libertação no dia 25 de Junho de 1962. A sua criação foi
precedida pela UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a UNAMI (União Nacional de
Moçambique Independente) e a MANU (Mozambique African National Union). A criação da Frelimo foi
considerada obra de Eduardo Mondlane, tido como arquiteto da unidade nacional (Ngoenha, 1999).
34
preciso compreender que tanto o colonialismo (capitalismo) e o socialismo são
fenômenos estranhos a mentalidade africana de que os moçambicanos fazem parte.
José Luís Cabaço, primeiro ministro de informação após a independência, observa
da seguinte forma a relação entre a Frelimo e o poder tradicional:
“O poder tradicional era acusado, pela Frelimo, de
representar um obstáculo à ação anticolonial e de se “opor
à ciência, à técnica e ao progresso”, preconizando meios e
práticas insuficientes para fazer frente ao poder ocupante.
A partir de então, ele foi classificado, na análise da
direção do movimento, como parte do aparelho de poder
colonial; ele representaria o poder dos colaboradores que
tinham assegurado a ligação dos ocupantes com as
populações rurais e que, por conseguinte, se tornavam
igualmente alvos da luta ideológica”.(Cabaço, 2007,
p.399).
Todo o aparelho das autoridades tradicionais
14
foi abolido administrativamente e
considerado como aliado do colonialismo. No lugar do regulado foram introduzidos os
Grupos Dinamizadores
15
e muitas manifestações tradicionais foram consideradas
supersticiosas e proibidas.
O papel das estruturas religiosas foi restringido às funções estritamente religiosas.
Durante os primeiros anos depois da independência as relações entre o Estado e a Igreja
foram difíceis.
14
Estrutura sócia-política pré-colonial, representada pelo régulo, que servia de mediação entre o passado e
o presente, que a população encarava como instância que representava a boa ordem moral e política e
personificava a proteção contra a injustiça, e as calamidades naturais. Outro atributo da autoridade política
do régulo estava associado à força dos seus antepassados (antepassados-deus), que representados por este
se supõe interferirem na sua governação/gestão do território. Nas cerimônias mágico-religiosas, o régulo
era a figura mais importante, era o “sacerdote” da comunidade. Assumia simultaneamente os atributos de
chefe político e religioso (Lourenço, 1996).
15
Organizações de base da Frelimo. Embora não fossem especificamente até células da Frelimo, os Grupos
Dinamizadores (GD) eram de fato guiados por orientações e por quadros daquela organização. Foi a
estrutura que a Frelimo criou para substituir o poder das autoridades tradicionais, representados pelos
Régulos(Alves, 1995).
35
A Frelimo realizou o seu III Congresso em 1977 e confirmou a opção socialista
do desenvolvimento econômico e social.
A Frelimo pretendia a transformação socialista no meio rural cuja estratégia
girava em torno de dois eixos fundamentais: na “vida coletiva” em “aldeias comunais”
16
,
que eram consideradas como a “espinha dorsal” do desenvolvimento rural” , e na
coletivização da produção.
A organização do habitat dispersa com base nas famílias foi substituída pelas
aldeias comunais, o que criou mudanças de costume e hábitos sociais e culturais. Esta
política é coerente com a radicalização política da Frelimo e com a concepção ortodoxa
do desenvolvimento agrário socialista, segundo o qual, os camponeses o incapazes de
adotar técnicas modernas de produção, constituem uma forma pré-capitalista de
produção, considerados economicamente “tradicionalistas” e politicamente
conservadores
17
.
O emprego e a emigração tinham decrescido.. A redução da migração foi
provocada por três razões principais: primeiro, a África do Sul diminuiu
propositadamente o recrutamento em Moçambique, compensando com trabalhadores de
outras regiões; segundo iniciou-se a reestruturação do capital mineiro com o objetivo de
reduzir as necessidades da mão-de-obra; terceiro, o governo moçambicano dificultava
administrativamente esta emigração. O discurso político não era favorável à migração.
O rendimento da maioria da população diminuiu. A ausência de meios de troca
reduzia a necessidade de dinheiro e os camponeses não tinham necessidade de
assalariamento nas empresas públicas.
Com as mudanças, o agregado familiar foi aos poucos se reduzindo, passando por
um processo de nuclearização das famílias.
16
Era constituída por casas coletivas. Na generalidade as pessoas no campo eram coercitivamente levadas
a viver nestas aldeias, longe das suas propriedades(Casal, 1996).
17
O debate sobre o papel da pequena exploração no desenvolvimento e nos processos políticos de
diferentes naturezas é muito antigo e sem conclusões. Desde os debates do início do século XX na Rússia
teorizados por Kautsky, às experiências dos países socialistas da Ásia a partir dos meados do século
passado, existe uma imensa literatura sobre este aspecto.
No caso de Moçambique, a política agrária aplicada se aproximou às posições mais ortodoxas da teoria
marxista-leninista sobre o papel do desenvolvimento agrário, e sobre o campesinato, em particular.
36
O muti como unidade básica da produção e o tiko como unidade máxima tanto
política como econômica e religiosa foram transformados em aldeias comunais,
cooperativas de produção e machambas estatais. O poder tradicional teve que ceder o
lugar ao poder formal e todas as formas religiosas foram drasticamente negados e
rejeitados como sendo “obscurantistas” ou coisa do passado que não mais servia.
Numa pesquisa sobre a presença e a importância da possessão pelos espíritos na
sociedade moçambicana atual, Alcinda Honwana, antropóloga, transcreve as afirmações
de um chefe tradicional, numa entrevista:
“Com o fim do poder dos chefes tradicionais (...) as
pessoas deixaram de usufruir a proteção dos antepassados
e as coisas começaram a correr mal(...) Toda a vida da
comunidade ficou destruída, pois não havia respeito
pelos velhos, respeito pelos antepassados, respeito pelas
tradições “ (Cabaço apud Honwana, 2002, p.171)
Se por um lado a luta de libertação foi vista pelos moçambicanos como legítima,
enquanto os libertava dos colonizadores, por outras razões as ações do poder, Frelimo,
não foram vistas como legitimas e isto fez com que o campo de suporte ruísse nas bases.
Uma vez retirado todo o mecanismo de controle social tradicional, apareceu a
apatia e a indiferença.
A população que vivia nos muti (aldeia) e nos tiko não tinha os seus chefes e
suas terras. Depois foram impostos novos “chefes governamentais”, totalmente
desconhecidos e pertencentes a outros grupos étnicos. Além disso, as populações foram
arrancadas de suas terras e colocadas em outras estranhas.
As tribos e os clãs tiveram que abandonar as suas terras e prerrogativas familiares
e individuais para se dedicarem ao trabalho coletivo nos campos e nas cooperativas de
produção e machambas estatais.
A terra tem uma conotação muito profunda para os povos africanos. A terra não
simboliza a fertilidade e a vida, mas também o local sagrado que pertenceu e onde
viveram e morreram seus antepassados. Por isso, cada membro da aldeia tem uma ligação
muito forte com a terra, não com qualquer terra, mas a dos seus antepassados. É neste
espaço que os descendentes irão morar com as suas famílias e é nela que continuamente
37
eles irão, através dos rituais, entrar em contacto com os antepassados. Se a terra é fértil é
porque os antepassados estão nela enterrados. São eles que irão garantir a abundância e a
fertilidade (Casal, 1982).
Portanto, sair da terra significa romper não apenas com a comunidade dos
antepassados, mas também a possibilidade de continuar a viver, pois a fertilidade da terra
é garantida apenas pelos antepassados. Sair da sua aldeia ou tribo significa romper com a
sua comunidade. Como conseqüência disto àqueles que durante o socialismo foram
obrigados a sair das suas terras para morarem em terras alheias se sentiram perdidos e
arrancados pelas raízes daquele espaço que lhes permitia viver.
Por outro lado, os chefes das tribos que eram obrigados a acolher novas tribos ou
pessoas não aceitavam e nem viam com bons olhos estes “intrusos”. Isto veio a criar
conflitos sócio-culturais e políticos profundos entre as várias tribos e etnias.
Tais terras tomadas aos clãs passaram a pertencer ao Estado sem que a população
soubesse como e porquê. A essa situação a população respondeu com uma atitude de não
assumir o sentimento de que pertence a nova realidade. Mais uma vez o governo não
analisou os diversos sistemas sociais, sua história e suas diferenças. Começou assim o
triste processo de alteração da estrutura social e psicológica das tribos e das pessoas que
tinham que abandonar a “sua” terra, seus antepassados e seus lugares sagrados.
Até os nomes das aldeias foram retirados, segundo uma política de retirar os
vestígios de tudo quanto era “velho”, “obscurantista” e ultrapassado, colocando em seus
lugares nomes “novos”, símbolos da “nova revolução social” do “homem novo” do
“desenvolvimento” e do “progresso”.
A supressão do chefe local (cf. Lundin, 1992), e da própria instituição da chefia,
sancionada por uma visão cosmológica que era apreendida no processo de socialização
do indivíduo e do grupo, levou a uma estagnação da instituição e do papel dos anciãos
dentro do espaço social do grupo.
Produziu-se um vazio e os anciãos sentiam-se desprezados e desvalorizados.
Alem disso, com toda esta mudança sócio-cultural, a sociedade ficou doente o que deu
lugar a desordem social total. E como se não fosse o suficiente, a guerra veio piorar a
situação e constituiu o “bode expiatório” para muitos dos erros do socialismo.
38
Portanto, os resultados não foram os esperados e o processo de transformação e
desenvolvimento econômico revelou-se um fracasso. Com a supressão das formas de
organização social das sociedades tradicionais (Lourenço, 1996) por meio da
perseguição e banimentos houve uma dissociação cultural violenta. Retirou-se do espetro
sócio-ideológico algo que tinha suporte e bases locais e era visto como justo pela
população local ao mesmo tempo em que se tentou substit-lo por algo que a população
via como estranho.
Por este motivo a população sentiu-se rejeitada e começou a questionar todo o seu
universo sócio-cultural que estava ausente em hierarquias, crenças, valores, modelos em
todo o sistema político. Como reação deu-se nalguns aspetos e de maneira camuflada, um
ainda maior apego as formas tradicionais, o que levou a uma estagnação da dinâmica da
sociedade.
A guerra trouxe consigo a miséria, a fome, a deslocação forçada, o
desmoronamento das estruturas tradicionais e levou a pessoa a cometer impunemente
atos ilícitos e deixar se levar pela ganância desenfreada que não olha a meios cujo
objetivo é alcançar riqueza a qualquer preço, negando assim a sua própria identidade e
sua referência étnico-cultural.
Todavia, o tempo foi mostrando que a guerra não foi a única causa (Dias, 1992)
que alterou sócio-culturalmente o povo e as famílias moçambicanas. Os promotores da
guerra encontraram uma sociedade enfraquecida e a guerra limitou-se a levá-la a uma
situação de miséria extrema.
A RENAMO
18
, já nos finais da década de 80, procurava legitimar a guerra
apontando o regime autoritário da Frelimo, o sistema de partido único.
Feita esta descrição, vamos partir para a situação atual, ou seja, para o período de
1975 a 2008.
18
É a sigla do movimento guerrilheiro que logo após a independência começou a combater o governo.
Segundo a ONU, a guerra entre o governo e a RENAMO ceifou a vida de mais de 100 mil pessoas. Durou
16 anos e só veio a terminar com a assinatura dos acordos de paz, em Roma, em Outubro de 1992.
39
CAPÍTULO 3 - N‟kinga
3.1. Aspetos geográficos e econômicos de N‟kinga
N‟kinga é uma pequena comunidade de Matutuine, distrito situado a Sul da
Província de Maputo, capital de Moçambique com uma superfície de 7300 hectares e
com cerca de 784 residentes. Mais de 60 por cento da superfície desta região é constituída
por floresta aberta e savana arbórea. A população, na sua maioria é analfabeta, faz a
pratica da agricultura através da lavoura realizada pela família; é pobre e usa baixa
tecnologia, baseada na enxada, facão e queimadas; usa mediadores na sua relação
comercial com os “outsider”. É uma população que vive em comunidades inter-familiares
dominadas pelo costume e pela religião imersa em ações cerimônias.
40
Saindo da Catembe, deixando a Baia de Maputo e percorrendo a estrada que vai
até a zona turística da Ponta de Ouro, no distrito de Matutuine, chegamos a Salamanga,
um vilarejo situado a uma pequena distância do Rio Maputo.
No vilarejo de Salamanga, encontramos duas lojas, várias barracas de vendas, um
pequeno mercado, o posto de saúde e o posto policial. A saída para o norte há uma
pequena oficina de automóveis que serve para pequenos concertos das viaturas que
passam em direção à fronteira da Ponta de Ouro.
Num canto da estrada, um caminho que serpentea parte do matagal, que se
estende pelos dois lados da mesma, conduz-nos para o interior de uma localidade. A
alguns metros do lugar, encontra-se a ponte sobre o Rio Futi que dista cerca de 3,5 kms
de Salamanga. É este vasto espaço entre estes dois rios que constitui o cenário geográfico
do nosso estudo. Esta região é habitada por Rhongas que pela especificidade da sua
forma de falar são mais conhecidos por wazinguires
19
.
Em N‟kinga há uma forte tradição de trabalho migratório, sobretudo entre os
jovens. Perto do rio Futi existe uma área que é considerada zona tampão
20
da Reserva
Especial de Maputo
21
(REM), contendo restos da floresta e arvoredos subtropicais bem
conservados e uma fauna bravia de menor e médio porte diversificado e com vários
efetivos animais em franco crescimento. Estes recursos naturais formam uma base para o
desenvolvimento de atividades agro-pecuárias em geral e, especialmente do ecoturismo
baseado na conservação.
Esta região é também parte integrante de um território abrangido pela Iniciativa
de Desenvolvimento Espacial dos Libombos (IDEL), um projeto de integração
19
A população local justifica esta especificidade lingüística pela predominância dos sons laterais ndi e rh.
Algumas pessoas disseram-nos que esta particularidade se deve a constante migração para os países
limítrofes, o que provoca uma natural utilização de expressões das línguas daqueles países.
20
Seara e Chicure (2005) definem zona tampão como uma “porção” territorial circunvizinha de uma zona
de proteção que forma uma faixa de transição entre a área protegida e as áreas de utilização múltiplas, com
o objetivo de controlar e reduzir os impactos decorrentes da ação humana na zona de proteção.
21
A Reserva Especial de Maputo tem 70.000 hectares onde se encontra uma variedade de espécies de
animais que incluem 62 mamíferos, 30 de anfíbios, 43 de répteis e 337 de aves, o que reflete, em si,
níveis altos de diversidade(MAE, 2005).
41
econômica regional da África Austral que inclui Moçambique, Swazilândia e África do
Sul, que visa atrair novos investimentos turísticos para esta sub-região da SADC
22
.
Antes da independência, da guerra civil e da instalação do Projeto da União
Internacional da Conservação da Natureza (IUCN
23
), nesta área rural, a economia
(terra) dependia dos direitos tradicionais de acesso à larga variedade de recursos naturais,
incluindo madeira, fruta silvestre, combustíveis lenhosos, plantas medicinais, materiais
de construção, etc.
No período posterior à independência as novas autoridades políticas
moçambicanas substituíram a autoridades tradicional pelos Grupos Dinamizadores (GD)
e muitas manifestações tradicionais foram consideradas supersticiosas e proibidas.
O processo de modernização política que atualmente se verifica em Moçambique
tem conferido visibilidade e nova importância à questão de relacionamento entre o Estado
e as autoridades tradicionais.
O Estado vê-se na contingência de tentar absorver as autoridades tradicionais,
procurando deste modo beneficiar simultaneamente de fatores de legitimação política
“modernos” e “tradicionais” (cf. Dias,1998). As autoridades tradicionais, por outro lado,
enquanto lutam pela manutenção do controle das populações, procuram ao mesmo tempo
apoderar-se de parte dos recursos do Estado e utilizá-los para reforçar os padrões de
dominação pessoal, baseados em redes familiares e clientelares e mantidos através da
redistribuição de riqueza e de lugares de poder.
A propósito deste assunto o régulo Madja, 57 anos, camponês, um dos
sucessores do regulado local falou:
“[...] uma coisa que aconteceu aqui quando chegou à
independência: o governo tirou o poder das autoridades
22
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Criada em 1980, em Gaberone (Botswana).
Atualmente possui 13 membros, nomeadamente: Angola, África do Sul, Botswana, Lesotho, Malawi,
Moçambique, Madagascar, Maurícias, Swazilândia, Zimbábwe, Zâmbia, República Democrática do Congo,
Tanzânia.
23
A União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN ou World
Conservation Union, em inglês)
42
locais. Passou muito tempo sem poder tradicional. havia
responsáveis do partido Frelimo e secretários dos bairros e
administradores... É por isso que ficamos sem saber o que
fazer. agora é que se tenta ressuscitar o poder
tradicional, mas este não tem àquela força de
antigamente. [...] Agora tentamos trabalhar com a
população. Mas o que acontece na prática é que o poder
tradicional se choca com o poder instituído após a
independência[...].
Como dissemos acima, a política do governo em relação as autoridades
tradicionais foi caracterizada por uma certa hostilidade. O discurso do governo dizia que
eram “inimigas” do progresso e considerava-as como peças impeditórias de progresso e
desenvolvimento. Esta forma de olhar para o regulado o coincidia com as
representações das populações locais sobre o poder tradicional.
Como podemos mostrar no capítulo 1, o papel do régulo, hosi ou tatana (pai),
como era chamado localmente, não era meramente político. Ele era o chefe do tiko, que
era a unidade política, social, econômica e religiosa. Era ele que distribuía as terras entre
todas as linhagens, geria as pastagens e pousos. Organizava os grandes rituais que eram
vistos como garante da fertilidade sexual e econômica do tiko, como a abundância de
filhos, de chuvas e alimentos; ele tinha o papel de juiz e cuidava do funcionamento dos
circuitos de aliança. É esta a representação que a comunidade tinha do régulo. É esta
ausência que é vista como mudança pelos atores sociais locais.
Em N‟kinga encontramos uma das poucos e excepcionais áreas de floresta
subtropical que continua bem conservada e com apropriado habitat de animais bravios. É
nesta área onde existem e bem conservados exemplares de espécies arbóreas
consideradas raras e preciosas na região tais como Nulo, Xilati e Famosi.
43
A região de Matutuine
24
é conhecida por albergar um número não conhecido de
plantas endêmicas (peculiares numa região) embora no caso de N‟kinga estas não tenham
qualquer estatuto formal de conservação. A floresta e a sua associada área de prática de
agricultura albergam uma avifauna especial, abundante e diversificada.
A existência da população faunística na área, incluindo elefantes, hipopótamos,
changos, nyalas e galinhas de mato, aumenta grandemente o potencial turístico desta
área.
Nesta região existe uma escola de ensino primário (EP1), que corresponde ao
ensino primário básico e uma de (EP2), ensino secundário, situada no centro do vilarejo.
Tirando alguns estabelecimentos comerciais situadas dentro do vilarejo, incluindo os
diversas barracas ali construídos, para o comércio informal, as casas se encontram
esparsas por entre as árvores e às vezes torna-se difícil localizá-las devido à altura da
vegetação que cobre a vasta planície da região. Não nenhuma ordem na sua
disposição. Nestas terras não há registros de agrimensura.
A maior parte das casas que vimos nesta região, excetuando àquelas a que nos
referimos do vilarejo, em Moçambique são conhecidas por palhotas. São habitações
rurais precárias, construídas com uma estrutura de troncos e ramos preenchidos com
palha, sob chão de terra batida. Estas casas são redondas ou retangulares, consoante as
regiões, sendo as primeiras, como regra geral, de uma única divisão e as segundas, com
freqüência de duas divisões. Em alguns pontos do país, as paredes e o chão são revestidos
de argila seca. Estas são designadas por palhotas maticadas. O telhado é de palha e, em
algumas zonas do litoral norte, de macuti (folhas de palmeira) Em alguns lugares notam-
se casas de uma arquitetura moderna, geralmente pertencentes aos trabalhadores
emigrantes.
À frente das casas encontramos um espaço povoado de árvores, com sombras,
denominado b‟andla, que é o espaço onde se recebem os visitantes; funciona como
espaço de encontro, pois o interior das casas é mais usado para dormir e guardar as
24
Em 1996 fomos relatores do Projeto de participação Comunitária em Saúde (PPCS) em Djavula, uma
localidade situada ao longo da floresta Licuáti, no distrito de Matutuine. E, antes de iniciarmos o Mestrado
no Brasil estivemos envolvidos no Projeto “Conhecimento de Plantas e Frutas nativas comestíveis e sua
relação com a segurança alimentar e nutricional das comunidades”, uma pesquisa etnobotânica, que teve
como local de pesquisa várias localidades do distrito de Matutuine.
44
coisas. À volta das casas estão os quintais demarcados por plantas arbustivas. Nestes
espaços estão as capoeiras, os celeiros, as árvores que servem de “oficinas artesanais” e
em algumas casas encontramos latrinas. Ainda no vasto espaço exterior a volta das casas
encontramos também árvores de fruta como cajueiros, massaleiras, bananeiras,
mafureiras, canhoeiros e plantas silvestres de frutas comestíveis.
Nesta região a população usa a água do poço ou vai buscá-la diretamente nos rios Futi ou
Maputo, consoante a situação do lugar de residência.
3.2. A vida cotidiana
Na alvorada, homens e mulheres com as suas enxadas, ancinhos e facões
espalham-se pelos campos de cultivo. As famílias trabalham nas machambas
25
enquanto
as crianças se dirigem para as escolas. Os locais de produção são de dimensões pequenas
e variadas. Na generalidade, pratica-se agricultura itinerante sobre as queimadas nas
zonas altas. Desenvolvem uma policultura de subsistência onde predominam o
amendoim, o milho, a mandioca, o feijão e a bata-doce, na época quente. Esta situação é
similar àquela que está descrita no livro A Morada da Vida de Beatriz Heredia (cf.
Heredia, 1979, pp 37-48).
Na época fria produzem hortícolas tais como alface, cebola, tomate, couve, alho.
Estes produtos são consumidos pelos próprios produtores. Esta atividade é antecedida
pelo desmatamento muitas vezes feito recorrendo ao dzimu
26
. Muitas famílias trabalham
em parcelas de terras situadas numa das margens do Rio Futi e, outras nas margens do
Rio Maputo percorrendo uma longa distância a pé para chegar a estes locais.
A produção na zona baixa, ao longo das margens dos rios tem tido sérios
problemas devido à invasão das roças pelos hipopótamos, sobretudo na calada da noite. A
isto se acrescenta a proibição de caça por parte das autoridades da Reserva Especial de
Maputo. Esta interdição de caça tem sido uma das causas de divergências entre a
25
Nome que se dá ao roçado, nas línguas rhonga e changana, veículos de comunicação mais usada pela
população do Sul de Moçambique.
26
É a designação do mutirão, na língua local, que consiste na junção de várias pessoas para realizar
trabalhos considerados difíceis tais como: desmatamento (sobretudo a corte de árvores e arbustos), safra ou
recuperação de casas. É um trabalho gratuito. É uma das formas práticas de solidariedade entre os
habitantes desta comunidade.
45
população local e as autoridades governamentais. Como “saída” muitos populares
praticam a caça furtiva.
uma certa divisão sexual de trabalho que cria certas áreas exclusivas para o
homem e para a mulher. Vimos que o homem intervém na unidade de produção para
fazer àquelas atividades que exigem mais força como o desmatamento, a construção de
fornos de carvão, a caça, a pesca, a construção e controle das colméias e para fazer
contactos comerciais diretos ou com os vários intermediários provenientes de
Salamanga ou da Cidade de Maputo.
A mulher acompanha o marido em atividades de lavoura, sacha e safra, mas ela
está mais virada a casa, a unidade de consumo. Nota-se também atuação feminina
naquelas famílias que têm negócios de produtos industrias. As mulheres, sobretudo as
mais jovens, aliam o trabalho da roça a outras atividades geradoras de rendimentos ou
produtos.
As vendas são uma das tarefas em que se ocupam. Encontramo-las inseridas nos
circuitos do chamado comércio informal - designado localmente por dumba nengue-,
exercendo um leque de atividades tais como revenda de produtos “importados” da África
do Sul ou Swazilândia tais como cerveja, vinho, pilhas, lanternas, enxadas, foices, facões,
biscoitos, roupas ou ainda produtos locais como lenha ou carvão.
Muitas mulheres, sobretudo as jovens e es solteiras deslocam-se à vizinha
África do Sul para gwevar (comprar) os produtos para revender. Esta “migração
feminina” é uma novidade recente na vida desta comunidade. As crianças freqüentam a
escola e revezam-se na ajuda aos pais consoante o seu horário escolar.
As crianças de sexo feminino, para além das suas atividades escolares ajudam as
mães a cuidar dos irmãos menores; a preparar a lenha e acender fogo; cozinhar; enxugar a
louça; lavar e arrumar a roupa; moer milho; pilar amendoim e alimentar as aves.
Os meninos acompanham os pais em atividades como alimentar os porcos,
conserto de instrumentos de trabalho como facão, ancinho e em algumas famílias que
usam tração animal, a preparar a terra para a sementeira. Estas atividades preenchem a
maioria das famílias nos dias úteis da semana, de Segunda à Sexta-feira. Os fins-de-
semana são dedicados a práticas religiosas e lazer.
46
As refeições são geralmente compostas por xima ou upsua, um prato
confeccionado com base na farinha de milho, muito similar ao angu do Brasil, arroz,
ensopados de carne de caça- obtida através da caça furtiva-, verduras, carne de galinha,
pato e cabrito, estes ensopados são conhecidos localmente por muzho. Confeccionam-se
também pratos de diversas verduras como a mboa, a ncacana, a nhangana, macofo
(couve) , timbawene (feijões) e mathapa (folhas de mandioca).
Durante o tempo em que estivemos a fazer o nosso trabalho empírico vimos
pessoas que iam as igrejas Zione, Católica, 12 Apóstolos, Weseliana, Presbiteriana
27
ou
Missão Suíça, entre outras.
Tivemos oportunidade de presenciar uma festa de aniversário de uma senhora de
83 anos, na Igreja Weseliana. Tratou-se de uma oportunidade que não serviu para
assinalar aquela data através de um ritual religioso, mas também foi um momento de
festa e reencontro entre pessoas provenientes de diversas regiões, entre familiares,
amigos e colegas de jornadas. Pelo que vimos entre pessoas de uma certa geração
28
uma consideração muito especial pelos idosos.
Cada uma das casas é habitada por indivíduos ligados entre si por laços de
parentesco: pai, mãe, e filhos solteiros. Encontramos ainda muitas famílias alargadas que
para além da família nuclear vivem com o pai ou a mãe de um dos cônjuges, netos ou
netas e sobrinhos. Os moradores de cada casa constituem um grupo doméstico: não
trabalho assalariado e é ao mesmo tempo uma unidade de produção e consumo.
Entende-se, pois, por grupo doméstico o conjunto de indivíduos que vivem na
mesma casa e possuem uma economia doméstica comum [Heredia (1979) apud (Tepicht,
1973; Galeski, 1972)].
Nas famílias visitadas coexistem diferentes processos de formalização das uniões
conjugais que não são exclusivas entre si. Encontramos casais que formalizaram a sua
27
A igreja presbiteriana mais conhecida localmente por Missão Suíça, iniciada por missionários suíços,
entre eles, Henry Junod e a Diocese Anglicana dos Libombos eram duas principais congregações
protestantes. O impacto da sua evangelização nas populações do Sul de Moçambique resultou
essencialmente de uma longa história de migração para as minas de Transvaal e das Rodésias do Sul e do
Norte, atuais Zimbábue e Zâmbia (Cabral, 2001).
28
Apesar de suas conotações variadas, a idéia de geração implica um conjunto de mudanças que impõem
singularidades de costumes e comportamentos a determinadas gerações Daí falar-se em geração do pós-
guerra, da televisão, de 68. A geração não se refere às pessoas que compartilham a idade, mas às que
vivenciaram determinadas eventos que definem trajetórias passadas e futuras. (Debert, 1998:60).
47
união através do lobolo
29
, tivemos dois casais de informantes unidos através dos
casamentos civil e muçulmano, nikai.
As diferenças estre as formas de aliança acima mencionadas consistem no
seguinte: uma é legitimada pela tradição (lobolo); o casamento civil é legalizado pelo
estado e o nikai é legitimado pela religião islâmica.
Em termos estatísticos, a maioria dos nossos informantes era de uniões não formalizadas
em termos daquelas regras consideradas normais ou “oficiais”.
Em conversa com a mamana N‟senga, 56 anos, camponesa, soubemos que
várias designações para as uniões conjugais: Mutchado ou Mutchato, para casamento no
Registro Civil (legalizado pelo Estado); lobolo ou lovolo(legitimado pela tradição);
ukatine ou kukandza ukati, (para aquelas situações em que uma mulher vai viver com o
marido sem a legalização por parte do estado ou legitimação por parte da tradição ou da
religião); kutlhuva, que designa uma situação em que a mulher “foge” ou sai da sua casa
para ir viver em casa de um homem sem o consentimento dos pais; e humbuya que
significa amantismo(ver glossário na pág. 101).
muitas mulheres solteiras, viúvas e mães solteiras. Em N‟kinga as famílias
são numerosas. As formas de união que acima descrevemos estão “em crise”. Voltaremos
a este assunto no capítulo dedicado ao lobolo.
Nos locais visitados encontramos sempre as mesmas técnicas produtivas, as
mesmas formas de cooperação e auxilio mútuos, os mesmos laços de solidariedade e,
principalmente, as mesmas condições precárias de existência.
Em N‟kinga encontramos uma população pouco densa, em grande parte livre,
voltada para uma economia de subsistência. A vida comunitária se organiza sobre a base
de unidades relativamente pequenas- o grupo doméstico, formado por uma família.
Pelo que vimos à constituição dos grupos domésticos que são também grupos de
descendência (famílias extensas) evita a fragmentação da terra. Nos primeiros momentos
de casamento, os filhos constroem as suas casas nos terrenos dos pais(ver figura abaixo):
a independência dos filhos se manifesta economicamente com a separação, pelo pai, de
um pedaço de terra que o jovem casal passa a cultivar por conta própria. Este fato não
29
Trataremos pormenorizadamente deste assunto nos próximos capítulos.
48
significa uma total separação da casa principal, pois, na prática continua a haver interação
entre pais e filhos.
Esta situação tem um grande peso simbólico (Moura, 1978, pp.38-39), pois
mostra a condição de emancipação, ou seja, divide os grupos etários dos filhos em
“menores”e “crescidos ou emancipados”. É uma forma de passar o indivíduo para um
novo quadro de deveres e direitos sociais. Nestas condições, criadas pelo casamento do
filho, a produção pertence a cada uma das famílias enquanto a terra é “em comum”.
Algumas famílias ainda seguem a tradição a risca. Preferem que a a mulher
lobolada passe algum tempo morando com a família do marido- período em que a mulher
é obrigada a cozinhar para a sogra. Soubemos também através dos nossos informantes
que isto acontece pelo fato de haver necessidade de adaptar as noras aos hábitos da
família do marido ou como forma de ajudar aos pais naqueles casos em que são muito
velhos.
A base da organização dos grupos de vizinhança é, portanto, a família . Apesar de
haver certas diferenças em algumas regiões, devido às migrações provocadas pela guerra
civil, na generalidade o grupo local consiste no agrupamento de um certo número de
famílias e as relações comunitárias se apresentam como relações interfamiliares.
49
Fig 3. Os pais cedem parte do seu terreno ao seu filho mais velho.
Em conversa sobre a vizinhança no local, o “régulo” Zanta, de 52 anos, disse-
nos:
Na generalidade as pessoas vão construir num lugar por
indicação da família.[...] Aparece alguém e diz que fui amigo ou
vizinho do seu pai.[...] Há sempre uma razão de proximidade que
impele as pessoas a procurar vizinhança com alguém que faz parte
ou esteja próximo a sua rede de parentes ou conhecidos [...].
Apesar de ter havido pressão para introduzir formas coletivas de produção,
observamos que a não ser em atividades delimitadas como o dzimu para o desmatamento,
construção de casas ou limpeza dos caminhos, o trabalho coletivo não cria laços
coletivos, mas manifesta apenas o conjunto de atividades recíprocas que unem as pessoas.
Este fato nos sugere duas vertentes explicativas, uma teórica e outra empírica. Vamos
começar pela empírica. Em Madlhadlhane, uma localidade de N‟kinga, nos terrenos
50
adjacentes a Reserva Especial de Maputo um terreno chamado “Circulo de Interesse
da Agricultura”. É um dos nove circulos de interesse criados no âmbito do projeto do
IUCN. Neste lugar e noutros, a ideia é introduzir uma gestão coletiva das atividades que
implica a planificação e execução coletivas. Visitamos o local e constatamos que o
trabalho que ali se fazia estava muito a quem do que se pensava: as plantas estavam
raquiticas, apesar de se tratar de um local situado pero da Lagoa Piti com muitíssima
abundância de água. O responsável do grupo falou-nos de faltas constantes por parte dos
membros do grupo e mostrou-nos um semblante desanimado. Conversamos com
Fernando, 42 anos, camponês e membro do circulo.
“Não sei o que se passa.... As pessoas acordam, vão
para as sua roças familiares e depois, quando o
sol começa a aquecer é que passam por aqui e não
fazem nada. Alguns acham que cada um devia ter o
seu espaço para produzir o que quiser, mas aqui as
coisas são feitas em grupo....”
Teoricamente sabemos, que a lógica da atividade econômica camponesa é distinta
e mesmo oposta àquelas das economias capitalistas ou socialistas, o que se deve ao
caráter familiar de produção. A família camponesa organiza a sua produção por uma
avaliação subjetiva baseada na longa experiência de trabalho da geração presente e das
anteriores. Esta realidade relatada nos estudos do campesinato também acontece em
N‟kinga.
A intensificação do trabalho na unidade familiar, ocorre sem alteração por razões
de mercado ( ou da coletividade), mas sim pela pressão interna dessa unidade e tem a ver
com o fato de o tamanho da família ser desfavoravelmente proporcional à extensão da
terra cultivada (cf. Chayanov, 1996 e Tepicht, 1973)).
Durante a pesquisa empírica observamos que o grupo local possui uma
organização fluida e seus limites não são bem determinados pelo espaço . Na dimensão
espacial, a população se organiza em grupos de vizinhança, mas momentos em que se
agrupa em unidades maiores para atividades especiais, como aniversários, cerimônias
51
religiosas ou tradicionais (enterros, m‟palho
30
) mantendo freqüentemente relações
intervicinais baseadas em laços de parentesco ou compadrio.
Apesar de ser uma comunidade rural, N‟kinga o é isolada nem auto-suficiente.
Ela depende das suas relações com o mundo exterior e da sua integração na sociedade
moçambicana. Como dissemos acima, parte da sua população pratica trabalho migratório;
o seu território situa-se numa região turística importante. É uma região que tem
conhecido um movimento de pessoas e bens que se movimenta do interior da província
para a zona turística da Ponta de Ouro em direção à fronteira com a África do Sul.
3.3. Estrutura da família
Na generalidade as famílias deste local, estruturam-se de modo muitos simples em
termos de subordinação das mulheres aos homens e dos mais novos aos mais velhos. Nas
casas onde passamos muito mais tempo, vimos que as mulheres ainda conservam o velho
habito de se ajoelhar quando se dirigem aos maridos para lhes comunicar alguma coisa ou
servir alguma refeição.
A prioridade e os acontecimentos giram em volta do pai, mulumuzana: é a ele que
se lhe servem o primeiro prato, a ele se lhe entrega as melhores partes da galinha ou do
animal da caça, ou seja, ele é o epicentro da vida da família.
A característica fundamental do grupo conjugal é, portanto a dominância paterna.
Vimos que cabia ao pai não tomar as decisões que afetam o grupo como um todo, mas
também aquelas que se referem a cada um dos seus membros individualmente.
“O meu pai herdou este terreno dos meus avós”; “Eu lobolei com a ajuda do meu pai”;
“Meu pai é que decide sobre o destino da safra”; Quando tentei sorte na Jone foi meu
pai que cuidou dos meus filhos” , eram estas algumas das respostas que nos davam
quando fazíamos perguntas sobre o papel do pai nas famílias. Situações similares
encontram-se em alguns estudos sobre campesinato que debatem concepções de
juventude, ainda que não seja objetivo central. É o caso de um trabalho sobre
campesinato irlandês de Arensberg e Kimbal (1968), que é uma importante contribuição
também, para a problematização com base em corte etário. Só se tornam adultos e,
30
Ritual de invocação dos espíritos dos antepassados.
52
portanto respeitados nestas comunidades aqueles que assumem parte da propriedade da
família.
Em algumas famílias vimos que era o mulumuzana que determinava o modo de
utilização da renda e cabia a ele decidir sobre as relações inter-familiares quer se tratasse
de marcar o dzimu ou realizar uma cerimônia religiosa.
O papel dominante do marido não excluiu, na totalidade, certa autonomia da
mulher, sobretudo na esfera doméstica. uma certa divisão sexual do trabalho
relativamente rígida, que atribui ao grupo masculino (pai e filhos) a execução das tarefas
fora de casa, e tende a confinar os trabalhos femininos no âmbito da casa.
Os filhos homens constituem, com o pai, o elemento produtivo por excelência do
grupo doméstico. Cabe à mulher (mãe e filhas) o cuidado da casa e dos membros não
produtivos da família (crianças, velhos e inválidos), o preparo de alimentos e a limpeza
da casa. Vimos também que apesar de ser responsabilidades de cada membro da família,
é a mulher e as crianças que se ocupam dos animais do quintal( aves, porcos e cabritos).
3.4. Acesso e herança da terra
Quem chaga a esta região pode parecer estar perante uma realidade em que a terra
é um recurso abundante por causa do matagal que circunda as casas e da vasta floresta.
Nos últimos anos, novos atores têm “invadido” este território. A estrutura tradicional que
vinha vigorando antes e depois do período colonial foi preterida.
O sistema de territórios consignados que se verificava nas províncias de Maputo,
Gaza e Inhambane e em algumas regiões do centro do país dizia que quando um homem
casa a sua família tem de “pagar” o lobolo à família da mulher. O lobolo representava
não somente a garantia da transferência dos potenciais filhos de um espaço territorial para
o outro, mas também a expressão pública de que a família receptora da filha garantiria
acesso a terra para habitação, agricultura e recoleção [cf. Negrão, José, “Sistemas
Costumeiros de Terra em Moçambique, 2000]”. Atualmente, a parte jurídica é regida
pela Lei de Terras 19/97.
Com o aparecimento de sinais de modernização através dos empreendimentos que
acima referimos, a terra neste local passou a ser alvo de cobiça e passou a ser uma divisa
econômica importante. não é o hosi local que faz a gestão da terra. Todavia, é preciso
ressaltar que pelo direito costumeiro, em Moçambique, na região onde se situa N‟kinga a
53
herança é de pai para filho mais velho. O aparecimento de projetos de investimento nas
áreas do turismo, agricultura e pecuária mudaram as formas de acesso a terra.
A Lei de Terras estabeleceu que o direito de uso e aproveitamento da terra é
adquirido por ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo
normas e práticas costumeiras que não contrariam a Constituição; criou-se a ruptura com
a prática legislativa em Moçambique e muita outros países africanos. Os sistemas de
direito consuetudinário não foram formalmente reconhecidos como também foram
incorporados as suas dinâmicas de mutação diacrônico
31
.
Feita esta descrição, no próximo capítulo passaremos a abordar o lobolo, eixo
principal do presente trabalho. Pa elucidar o processo de mudança começaremos por
mostrar como é que se fazia e o que tem acontecido nos dias de hoje.
31
Ver Boaventura de Sousa Santos (1999) sobre dinâmica histórica dos direitos consuetudinários no seu
discurso de atribuição de doutoramento Honoris Causa a Joaquim Chissano, ex-presidente de
Moçambique.
54
CAPÍTULO 4 - O lobolo
32
A compreensão de qualquer aspecto da vida
social de um povo africano- econômico, político
ou religioso-, passa essencialmente por ter
conhecimentos completos do seu sistema de
parentesco e casamento.
(Radcliffe-Brown, 1974)
4.1. Kugangisa, namoro
Esta descrição está diretamente ligada ao capítulo 1, ou seja, refere-se ao período
de 1863 a 1946, que é o intervalo de tempo que marcou as pesquisas etnográficas e as
publicações de Junod. Todavia, é preciso considerar que apesar de ter sido um processo
dinâmico, algumas características dos fatos aqui narrados mantiveram-se até o ano de
1975.
Depois dos ritos de iniciação descritos no final do capítulo 1, o jovem tsonga
podia começar a pensar no seu próprio lar, para isso, tinha que “procurar” alguém para
dar os primeiros passos rumo ao lobolo.
A passagem pelos ritos da puberdade significava que o rapaz tinha atingido a
idade viril e podia tomar parte no kugangisa, namoro. Segundo Junod, esta palavra
vem de gansa, que significa “escolha amorosa”.
Segundo este autor, o kugangisa desempenhava um grande papel na vida dos
Tsongas e eles não praticavam dois vícios muito espalhados entre muitas nações
“civilizadas”- o onanismo e a sodomia. Estes costumes eram completamente
desconhecidos na tribo tsonga antes da chegada da “civilização”
33
. Havia várias maneiras
de encontrar parceiro. Ninguém ou quase ninguém ficava celibatário entre os Tsonga.
32
Para fazer a descrição do namoro, kugangisa e do “lobolo como era” recorremos a obra de Henri Junod
(1944) “Usos e Costumes dos Bantu” e a informação colhida dos nossos informantes. Esta descrição está
diretamente ligada ao teor do Capítulo 1, ou seja, refere-se ao período de 1863 a 1975.
33
Henri Junod desenvolveu as suas pesquisas no séc. XIX do milênio passado, num período em que a
etnografia era dominada pela teoria evolucionista que considerava a sociedades européia da época como o
apogeu de um processo evolucionário em que as sociedades aborígines eram tidas como exemplos “mais
55
Para exemplificar, Junod descreve como se processava o noivado, buta, no clã
mpfumu. Quando o rapaz resolvia casar vestia-se dos seus melhores ornamentos, das
suas mais preciosas peles, chamava dois ou três amigos e percorriam as aldeias à procura
duma mulher. Chegavam a praça central duma aldeia e sentavam-se à sombra,
distinguido-se o pretendente pelo cinto de peles de leopardo ou gato bravo (nsimba). “O
que querem?- perguntavam-lhes.”Viemos ver as raparigas!”, respondiam. Nas casas elas
faziam o possível para ser atraentes.
Uma vez satisfeito, o pretendente voltava para casa e dizia aos pais: “Fulana
agrada-me”. Vão pedi-la em casamento” (kubuta). Um dos homens de idade madura da
aldeia era encarregado de ir ter com os pais da rapariga. Era recebido na palhota do pai e
desempenhava-se da sua missão, servindo-se de todos os circunlóquios que a etiqueta
exigia.
Chamavam a principal interessada, davam-lhe a conhecer que o visitante de
dias tinha fixado a sua escolha nela e perguntavam-lhe se também ela o amava ( ou se o
queria- pois em rhonga uma palavra e a mesma, para exprimir estas duas noções
vizinhas: kurrhandza. A rapariga fazia um esforço de se recordar dos visitantes, descrevia
o que se lembrava de cada um e dizia: “Sim! Consinto em aceitar dele o dote” kuda
vukosi kuyene- propriamente: comer o dinheiro que vem dele.
Esta descrição mostra o caráter coletivo da aliança entre os tsonga. Nada se podia
fazer a revelia da família. Outro elemento importante que aqui ressalta é o papel dos mais
velhos. Alguma forma de respeito em relação a pessoas da geração dos pais é exigida na
maioria, senão em todas as sociedades.
Uma considerável soma de conformidade a usos estabelecidos é essencial para
uma vida social ordenada ( Radciffe-Brown,1974, p.91), e esta conformidade pode
ser mantida se as regras tiverem alguma forma e medida atrás delas. A continuidade da
ordem social depende da transmissão, de uma geração à outra, de tradições,
conhecimentos e habilidades, de hábitos e moral, religião e gosto.
primitivos. Na mesma altura surgiu a teoria difusionista que reagiu ao evolucionismo. Privilegiava o
entendimento da natureza e da cultura, em termos da extensão de uma sociedade a outra.(cf. Wilkipédia-
dicionário livre).
56
4.2. O lobolo “como era”
O lobolo era um costume matrimonial em que o grupo do noivo levava uma
compensação a outro grupo, o da noiva, para restabelecer o equilíbrio entre as famílias
que compõem o clã. O noivo e o seu grupo adquiriam um novo membro (mulher) e, se
sentido diminuído o outro grupo pedia uma compensação para se reconstituir pela
aquisição de outra mulher. Segundo Junod, somente esta concepção coletiva explica este
fato. Deste modo à mulher lobolada
34
, ainda que conservasse o seu xivongo, apelido
35
(nome do seu clã paterno), tornava-se propriedade da família do marido, ou seja,
propriedade coletiva de um grupo.
É preciso salientar que os estudos de Junod se desenvolveram num período em
que na Antropologia reinava a teoria evolucionista . Para os evolucionistas o lobolo era
um ato instrumental. Ou seja, para eles kulovola significava comprar em casamento.
Lovolo ou ndrovolo ou vukosi (riqueza) era a quantia paga: os bois as enxadas ou as libras
esterlinas. . Junod usava estes verbos para designar a ação de pagar- e não para designar
a própria quantia. Dizia-se que um pai reclamava ao pretendente da filha uma certa
quantia em dinheiro.
Pesquisas antropológicas feitas em várias sociedades africanas (cf. Radcliff-
Brown, 1974), mostraram que um casamento envolve toda uma série de prestações em
dinheiro ou serviço, que se deve por lei ou costume. As prestações a que nos referimos
aqui, são todos aqueles presentes ou pagamentos de bens exigidos pelo costume, no
processo de estabelecer um casamento válido.
O lobolo não é da competência de autoridades políticas; é contraído pelo acordo
entre dos grupos de pessoas, os parentes do homem e os da mulher. É uma aliança entre
dois grupos baseada no seu interesse comum na própria união e na sua continuidade e nos
filhos que serão naturalmente, parentes de ambos os grupos.
34
Antes do lobolo existe o namoro, kugangisa. Os pais e familiares participam neste processo de escolha
daquela que será a futura esposa do filho. Entre os rhongas, todas as raparigas se casavam. Umas, porém,
mais depressa que outras. Os pretendentes preferiam as raparigas mais bonitas às feias. Os familiares
preferiam que os jovens se casassem com mulheres dispostas para trabalho e que tivessem ausência total
de feitiçaria na família.
35
Entre os rhongas a descendência é patrilinear. Designa-se assim quando o nome, a pertença a um grupo
familiar vertical e os direitos d decorrentes são herdados por via paterna, desde que esta tenha sido
legitimada pertecendo-se assim ao mesmo grupo que o pai, o avô, e restantes ascendentes
paternos(Radcliffe-Brown, 1973).
57
Trata-se da perda de uma pessoa que foi membro de um grupo, um desfalque na
solidariedade da família. A parte mais importante do “valor” de uma mulher é a sua
capacidade de fazer filhos. Se a mulher se revelar estéril, seus parentes ou devolvem o
lobolo ou fornecem outra mulher para gerar filhos.
Toda a família do noivo participava nas cerimônias do casamento,
sobretudo, no dia da entrega do lobolo. Todo o membro masculino tinha direito a opinião
sobre os bois ou o montante a ser entregue. Caso fosse pobre ou tivesse alguma
dificuldade, os irmãos ajudavam o noivo a se preparar para o lobolo. Faziam-no em nome
do grupo. A mulher lobolada era, desta maneira, esposa potencial deles, embora não lhes
fosse permitido ter relações sexuais. Tinham o direito de recebê-la como herança em caso
da morte do marido.
Os filhos pertenciam ao pai, viviam com ele, usando o seu xivongo, apelido, e lhe
deviam- obediência: os rapazes fortificavam o grupo, e as raparigas eram “vendidas” em
casamento para beneficio dele. O direito patriarcal apoiava-se no lobolo; por isso, toda a
criança de uma mulher que não fosse lobolada pertencia a família da mãe, usava o nome
da família dela e vivia na aldeia do tio materno.
Segundo Radcliffe-Brown (1973) a explicação deste fenômeno está baseada no
fato de haver tribos africanas, onde a posição social de uma criança na estrutura social
depende da fonte dos pagamentos para o casamento da mãe.
Observado nos seus momentos iniciais, antes da extensão da modernidade através
da colonização européia, no estádio coletivo da sociedade rhonga, este costume
fortificava a família patriarcal, o direito do pai; dificultava a dissolução do casamento
porque a mulher não podia abandonar definitivamente o marido sem que o seu grupo
restituísse o valor do lobolo.
A cerimônia da união matrimonial tinha duas partes: a festa do lobolo, ou seja, a
parte relacionada com o pagamento da compensação matrimonial, que se fazia na aldeia
da noiva; e o kulhoma, chegada da noiva a aldeia do novo.
58
4.3. Os tabus
36
dos rhongas
Em geral o casamento, entenda-se lobolo, era proibido entre o ego e o seu pai,
tatana , mãe, mamana, tia, rharhana, tio, malume, filha ou filho nwana, e entre irmãos,
vamakwavu. A proibição era particularmente severa do lado paterno. Isto acontecia
porque os tsongas davam maior ênfase possível ao parentesco agnático, isto é, a
descendência unilinear através dos homens. É com este grupo e seus membros que uma
pessoa tinha as suas obrigações jurídicas mais importantes(cf. Radcliffe-
Brown,1973,p.102).
O lobolo era proibido entre descendentes do mesmo avó, isto é, entre primos em
primeiro grau. Estas proibições estavam ligadas ao fato de serem vistos como sendo
pessoas do mesmo grupo clânico, mas não só. Entre os rhongas havia repulsão instintiva
em confundir e misturar vuxaka, paresntesco por consangüinidade e vukon‟wana,
parentesco por aliança. O sistema de casamento rhonga é patrilinear e tem como regra a
exogamia, que é o costume de casar (lobolar) fora do clã. O régulo Zanta disse-nos que,
por exemplo, um Tembe não podia casar com uma Tembe, pois eram considerados
parentes clanicos”.
A propósito disto, Lévi-Strauss (1976) teve o foco da sua análise na instauração
da regra como marco de passagem do estado da natureza para a cultura, ou seja, um salto
para a regra particularmente universal: a proibição do incesto. A regra de exogamia teria,
a seu ver, a função de assegurar a permanência do grupo- pois quem não se casa com a
mãe, a irmã e a filha vê-se obrigado a casar com outras mulheres.
Lévi-Staruss abriu a possibilidade de revelar que certos sistemas de família e
casamento ( DaMata,1980, p.18) eram apenas sistemas de casamento. Neles, não era pela
descendência que se perpetuavam conjuntos de direitos, mas pelo casamento visto como
aliança ( que é de fato o casamento visto como instituição total).
Entre os rhongas o incesto e a bruxaria eram vistos como algo interligado. O
incesto era um dos tabus mais respeitados pelos rhongas. Eles achavam que o incesto era
36
Proibição convencional imposta por tradição ou costume. Aquilo que a sociedade considera como
tradição, intocável ou imutável. Segundo Racliffe-Brown(1974), o tabu tem a ver com proibições ou
evitações ritualísticas. Uma proibição ritualística é uma regra de comportamento que está ligada a uma
crença segundo a qual uma infração a essa regra resultará numa modificação indesejável do estatuto
ritualístico da pessoa que não cumpriu essa mesma regra.
59
algo que provocava danos e se submetiam a este tabu. Fazer incesto era visto como
atrevimento e desafio aos preceitos culturais. o bruxo é que se podia atrever a fazer
incesto. uma crença muito difundida em África, até hoje, de que um homem pode
obter poder possível como feiticeiro pelo intercurso incestuoso com sua mãe ou irmã. O
intercurso com uma parente distante seria pouco eficiente.
Agora vamos passar para uma descrição de um lobolo que segundo Junod,
acontecia no período anterior a colonização efetiva do Sul de Moçambique.
4.4. A festa do lobolo
A família da noiva tinha que se preparar para receber o grupo de pessoas que
iriam levar o lobolo e competia a ela preparar a bebida que se contaria que houvesse em
grande quantidade para o consumo.
Para preparar a bebida todos os parentes e amigos da rapariga se combinavam
para iniciar a operação ao mesmo tempo. Debulhavam as maçarocas de milho,
conservadas em pequenos celeiros na vizinhança das casas. Seguia-se um processo de
cozedura; até dois dias antes mandavam avisar a família do noivo para se preparar para a
cerimônia.
Esta festa era acompanhada por diversos rituais. O noivo e os amigos iam à casa
dos futuros sogros e levavam consigo uma cabra para sacrifício. Os pais do noivo não
participavam nestes rituais, delegavam alguém mais velho da família para os representar.
Antes do aparecimento da libra a moeda que era usada para a compra
37
das mulheres,
como dissemos acima, eram as enxadas. Estas enxadas em número de quarenta ou
cinqüenta, eram levadas à cabeça dos parentes que faziam uma longa fila em direção a
aldeia da noiva.
A chegada, o grupo do noivo dramatizava uma algazarra até que os anciãos da
família anfitriã autorizassem a entrada no espaço residencial da família. As
dramatizações são maneiras cruciais de chamar a atenção para certos aspetos da
37
Junod faz uma descrição do lobolo com um tom instrumental. Ele era europeu e missionário e na época
era desta maneira que se interpretava esta forma de troca. Esta leitura virá a ter outro sentido com os
trabalhos etnográficos de Malinowski, Radcliffe-Brown e Marcel Mauss.
60
realidade social, facetas que, normalmente, estão submersas pelas rotinas, interesses e
complicações do cotidiano (cf. DaMatta, 1980, p.34)
As enxadas eram apresentadas espetadas na terra. A família da noiva conferia-as,
servia bebida aos visitantes enquanto eles se dirigiam para dentro de uma palhota para
contar as novas do dia ,kundrungulisana.
A cabra do sacrifício era degolada a porta da entrada da palhota da noiva. A futura
esposa que desaparecera momentos antes, vinha cortejada, coberta com uma grande peça
de pano para evitar que fosse vista.
Seguia-se a parte religiosa. Sentados na esteira, o noivo e a noiva agachavam-se
para ouvir o pai a dirigir o ritual. Ele comunicava aos espíritos dos antepassados ( seus
pais e seus avos) o que se estava a passar e pedia-os que abençoassem o novo casal.
Dizia-lhes que a filha ia deixar a casa para ir viver numa outra aldeia e pedia que
a dessem sorte e a acompanhassem lá onde ia morar.
Vejamos em detalhe este ato religioso:
O pai fica de pé, atrás dos recém-casados. Olha na
direção deles, bem à sua frente, dirige-se aos deuses, isto é,
aos manes dos antepassados, e diz: “Meus pais, meus
avós( chama-os pelos nomes) ouçam! Hoje a minha filha
deixa-nos. Vai entrar na vida conjugal (wukatini). Olhem
por ela e acompanhem onde vai morar. Que ela também
funde uma aldeia, que tenha numerosos filhos (munykani
timbeleko), que seja feliz, sensata, justa. Que se entenda
bem (kupsalana) com àqueles com quem vai viver” ( Junod
,1996.vol I: 117)
Depois deste ato, o pai entregava a filha o astrágalo (nholololo)) da perna direita
da cabra sacrificada, para lhe dar felicidade e para sorte de fazer muitos filhos.
Depois se seguia a partida da noiva para casa do noivo(kuhloma). Se o lobolo
tivesse sido pago na totalidade, a mulher partia, no dia seguinte, para o domicilio
conjugal acompanhada pelas amigas. Os pais não deviam conservar a filha na aldeia
depois de um lobolo totalmente pago pois na tradição local isso era tabu.
Antes de se partir uma última lição era dada ao marido pelo pai da noiva:
61
“Se te demos a nossa filha,
não julgues que foi por
estarmos fartos dela
(hikolwili).
É preciso observar que nesta fase do lobolo, noutras regiões, a noiva ia para a
casa do noivo no próprio dia, depois da cerimônia do lobolo, levando as suas duas
esteiras, e acompanhada somente por uma rapariguita, muhekete.
Uma das peculiaridades desta região é a existência de muita gente que fazia o
trabalho migratório, como explicamos acima. Acontecia que muitas vezes que o jovem
pretendente não tinha condições totais para fazer o lobolo e ele ia trabalhar nas minas
para completá-lo. Quando regressasse, celebrava-se uma cerimônia especial, chamada
kuhlomula mutwua: tirar o espinho. depois disto é que se faz o xigiyana,
acompanhamento da noiva para o lar conjugal
62
4.5 Sistema
38
de parentesco rhonga
Fig. 4. Este diagrama é da nossa autoria fizemo-lo para auxiliar as descrições.
Um sistema de parentesco e casamento pode ser encarado como um arranjo que
capacita pessoas para viverem juntas e cooperarem umas com as outras numa vida social
ordenada. (Radcliffe-Brown, 1973,p. 62). Um sistema de parentesco nos apresenta, desta
forma, um conjunto complexo de normas, de práticas e de padrões de comportamento
38
Uma das características comuns dos sistemas de parentesco é o reconhecimento de certas categorias, nos
quais os vários parentes de uma pessoa podem ser agrupados. A verdadeira relação social entre uma pessoa
e um parente seu, definida pelos direitos e as obrigações e pelas atitudes ou formas de comportamento
socialmente aceites, é assim fixada em maior ou menos grau pela categoria a que esse parente
pertence.(OP.Cit ,1974: 98)
63
entre parentes. Agora vamos descrever a relação social e a relação moral que existia entre
as pessoas e as normas
39
de comportamento depois do lobolo.
Como se pode observar, no diagrama acima- ainda não estava em uso quando
Junod descreveu o lobolo-, fizemo-lo para facilitar ao leitor a compreensão do
parentesco por aliança. Neste estudo de caso chamaremos o parentesco pós-lobolo.
O parentesco pelo sangue é designado vuxaca. O Ego, indivíduo, chama tatana ao pai.
Esta relação implica temor e respeito. O pai é visto como guia, é o que estimula,
repreende e pune. Os filhos devem tê-lo como exemplo e lhe devem obediência absoluta.
O indivíduo chama mamana, a mãe. m um laço de união muito forte e terno;
manifesta-se com um amor e respeito profundos. A mãe tem ternura, timpsalo, para o
filho. Ela é o “escudo”dos filhos, defende-os em todas as circunstancias inclusive perante
o marido.
O novo laço de parentesco, ou seja, o parentesco por aliança se chama vukon‟
wana. O indivíduo trata por n‟santi, a esposa e esta, por sua vez, trata-o por nuna ou
n‟kata. Ela tem para com o marido um relacionamento que mistura respeito e medo, pois
dele se espera muitos problemas e aborrecimentos.
Nos vakon‟wana, temos o pai e a mãe da noiva. O ego tem respeito e ao mesmo
tempo um certo temor do pai da noiva. Ele é o protetor da filha e é a pessoa que com ele
digladia quando há problemas com a sua mulher. Todavia, quando há paz as suas relações
são normais e de muita aproximação e se estabelece uma confiança. A partir daí o genro
passa a tratá-lo por tatana, por extensão a relação que tem com o seu próprio pai.
O mais alto grau de respeito entre o ego e os seus vakon‟wana está entre as duas
mulheres da família: a mãe dela e a mulher do irmão.
Um dos fatores ilustrativos disto dá-se quando se encontram casualmente no
caminho:
“Se um dos dois vir o outro ao longe, a tempo de poder
escapar-se sem ser avistado, apressa-se se esconder e chega ao
destino dando uma grande volta, de meia milha se preciso for.
Mas se os dois estão muito perto um do outro para poderem
39
Às normas de comportamento estabelecido numa certa forma de vida social dá-se o nome de instituições.
Uma instituição é uma norma de comportamento estabelecida que é reconhecida por um certo grupo social
ou classe ao qual pertence.( Radcliffe- Brown, 1973: 22)
64
recorrer à fugida, passa-se o seguinte: o genro sai do caminho e
entra no mato que lhe fica à direta; a sogra faz o mesmo, depois
sentam-se no chão, ele cruzando as pernas à maneira dos homens,
ela sobre as pernas encolhidas, pondo um joelho em cima do
outro, como as mulheres costumam fazer. Saúdam-se então, o
homem batendo as palmas, e mantendo as mãos paralelas e a
mulher tendo as suas em ângulo reto. E depois começam a
conversar...” (Junod, 1996: 221).
Esta relação entre o ego e a mãe de sua mulher mereceu atenção especial de
Radcliffe-Brown (1974) no capítulo IV do ensaio Estrutura e Função nas Sociedades
Primitivas.
Esta relação foi-nos recentemente relatada pelo Régulo Zanta durante as nossas
pesquisas empíricas. E conseguimos notar parte destas cenas numa das casas que nos
serviu de âncora de estudo.
Porque é que o genro age desta maneira? Segundo o régulo, a resposta é muito simples:
“Ele deve respeitar o sogros e a sogra, especialmente,
pois é desse respeito que depende a autorização das suas
tinamu, as irmãs da sua mulher, para esposas”.
As primeiras tinamu o todas as irmãs mais novas da mulher. São mulheres
presuntivas do ego. Ele pode tomar de esposa a qualquer uma delas, em caso de morte da
esposa, esterilidade ou se tiver riqueza suficiente para fazer um novo lobolo.
Por extensão o termo namu é também aplicado aos irmãos mais novos da esposa
do ego e as suas filhas são também mulheres presuntivas (nsanti em potência).
Em relação a mulher do irmão da esposa é preciso observar que os mesmos bois trazidos
à família pelo ego no decurso do lobolo servem para procurar uma esposa (reposição)
para um dos filhos (irmão da esposa) e a mulher assim obtida é a mukon‟wana principal.
.
Uma relação de aliança como o lobolo implica um reajustamento social, através
do qual as relações entre a mulher e a sua família mudam muito e ela estabelece uma
nova relação muito íntima com o seu marido. O marido fica simultaneamente relacionado
de uma forma especial com a família da sua mulher, em realação a qual ele é estranho.
65
A relação implica tanto afeto como afastamento, tanto implica conjunçào como
uma disjunção social. Na sua forma mais extremista existe uma total evitação dos
contactos sociais entre o ego e a sua sogra. Segundo Radcliffe-Brown , esta evitação não
deve ser confundida com a hostilidade.
O respeito mútuo entre genro e sogra é uma forma de amizade. Ele evita os
conflitos que poderiam surgir por motivos de divergência de interesses. As formas de
relacionamento entre o ego e a família da sua mulher são feitas com base nas gerações.
Os parentes normalmente respeitados são os que pertencem à primeira geração
ascendente, a mãe da mulher do ego e suas irmãs, o pai da mulher do ego e seus irmãos, e
as vezes o irmão da mãe da sua mulher.
Os parentes de brincadeira pertencem à mesma geração, mas freqüentemente
aparece a distinção por idades dentro dessa mesma geração: a irmã ou o irmão mais velho
da sua mulher poderão ser respeitados, enquanto os mais novos serão alvos de
brincadeiras.
A relação do ego com a filha do irmão da mulher era mais livre do que a sua
relação com as irmãs mais novas da esposa. Esta particularidade era dada pelo fato de ela
ser produto dos tihomos, bois, entregues pelo ego que depois serviram para o pai lobolar
a mãe dela. Ele chamava-a de n‟sati (ver o nosso diagrama da página 60). A intimidade
era tão grande que até podia lhe apalpar os seios, kutamela mavele. Podia fazê-lo na
presença da esposa que ficava contente por saber que o marido estava, de fato, a usar o
direito de casar com ela e, assim a sobrinha poderiqa vir a ser a sua nhlampsa e ela
nhlampsela rharhana, isto é, tornar-se numa segunda mulher ao lado da irmã do seu pai.
Segundo Junod o ego podia reivindicar o casamento com a filha do irmão da
esposa particularmente quando a esposa morresse e não houvesse uma irmã sua, mais
nova, para tomar seu lugar.
Outro aspecto importante a assinalar está ligado as relações sexuais. Entre os
rhongas as relações sociais não eram uma questão individual, como entre os ocidentais.
Estavam misteriosamente ligadas a vida coletiva da comunidade. Era proibido
fazer sexo em momentos de crise: durante a guerra, durante o momento das caçadas e nos
momentos de margem. Estas regras não se aplicavam aos jovens solteiros. Dizia-se que o
66
ato teria influencia na vida da comunidade quando fosse praticado por pessoas
casadas.
4.6. O lobolo como troca e seu significado
Depois dos estudos de Bronislaw Malinowski (1962) no Pacifico Ocidental, de
Franz Boas (1938) entre os índios americanos e de Radcliffe-Brown(1950) e a análise,
comparação e interpretação dos dados etnográficos destes, por Marcel
Mauss(1972)[1923-24] e vi- Strauss (1976) , a antropologia ganhou um
enriquecimento extraordinário. Novas teorias passaram a servir de luz para a análise das
diversas sociedades tidas como primitivas. Mauss trouxe à ribalta o Ensaio sobre o Dom .
Lévi-Strauss publicou As estruturas elementares do parentesco, obra em que analisa os
aborígines australianos e, em particular, os seus sistemas de matrimônio e parentesco. Na
sua análise, o autor demonstra que as alianças são mais importantes que os laços de
sangue.
Entre os estudiosos de lobolo vimos que os evolucionistas como James Frazer e o
próprio Junod, viam-no como um ato instrumental de “compra de uma mulher”, mas
autores como Radcliffe-Brown (1974) que tiveram uma interpretação distinta:
“Se um casamento, em África, implicasse verdadeiramente
a compra de uma mulher, como afirmam certas pessoas
ignorantes, então poderia existir uma relação próxima,
permanente, entre um homem e a família da sua mulher.
Mas se os escravos podem ser comprados, as mulheres
não.”
O pensamento evolucionista de Junod é espelhado no seu livro, Usos e Costumes dos
Bantu(1996):
O costume do lovolo, inventado por uma sociedade que esainda
no estado coletivo ou semicolectivo, é incompatível com as
concepções esclarecidas da civilização ocidental; com a sua
política e as suas idéias da vida civil, com a sua religião, por ser
67
inspirado por uma concepção do ser humano que pertence a uma
outra idade.[...] Uma mulher é uma porção da propriedade
familiar que se adquire pelo lovolo, e que é por conseguinte
herdada por outros homens quando o marido morre. Nenhum ser
humano moral, nem ser humano livre. A oposição entre a
concepção coletivista e a concepção Ocidental é absoluta e se é
verdade ser assim, é dever ao mesmo tempo das missões cristãs e
dos governos esforçarem-se por mudarem este estado de coisas na
sociedade primitiva. [Junod, 1996, p.472]
Todavia, como podemos ver no desenrolar do presente estudo, podemos
considerar que o lobolo é um sistema de trocas, algo similar à tríade maussiana de dar,
receber e retribuir. E assim sendo, o lobolo poderia ser visto como um fenômeno social
total na medida em que envolvem ao mesmo tempo, várias componentes da vida social:
econômicas rituais, religiosas, morais, jurídicas etc. Mas não é o debate ou detalhe desta
teoria que nos interessa debater no presente estudo.
O lobolo é um ato cultural e toda a cultura pode ser considerada como um
conjunto de sistemas simbólicos em que incluem a linguagem, os matrimônios, as
relações econômicas, a religião, etc.
Para Marcel Mauss (2001) a troca é também uma linguagem, uma forma de
comunicação em que se troca bens, mulheres, linguagens, etc. O argumento central do
Ensaio sobre o Dom é de que a dádiva produz aliança, tanto as alianças matrimoniais
como as políticas(entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como os
sacrifícios entendidos como uma forma de relacionamento com os deuses), econômicas,
jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Este
autor via a vida social não como uma circulação de bens, mas também de pessoas
(mulheres concebidas como dádivas em praticamente todos os parentescos conhecidos,
nomes, palavras, visitas, festas, etc).
Mauss definia a dádiva de modo amplo. Ela incluía não só parentes como também
visitas, festas, comunhões, esmolas, heranças, e um sem número de prestações. E vimos,
pelas discrições e análises acima feitas que este processo ou algo similar, está presente no
lobolo tsonga.
68
Depois desta descrição passaremos a mostrar como é que é o lolobo na atualidade,
mas antes vamos mostrar como é que se gangisa, namora, nos dias de hoje. A parte
seguinte cobre o período de 1975 a 2008, altura em que fizemos a pesquisa empírica.
69
CAPÍTULO 5 - O lobolo “como se tornou”
5. 1. Gangisar, namorar hoje
Como vimos na introdução, algumas características descritas na literatura sobre o
campesinato como a prática da agricultura através da lavoura realizada pela família; a
pobreza e o fato de não ter controle do poder; o uso de mediadores na sua relação
comercial com os “outsider”; a baixa tecnologia; o predomínio da cultura tradicional; o
modo de vida comunitário com predomínio de relações inter-familiares; a tradição oral;
as tradições religiosas imersas nas ações cerimoniais, podem ser vistas entre os atores
socias de N‟kinga, e foi isso que influenciou a escolha do nosso objeto de estudo e do
local de pesquisa.
Em Moçambique, no período que se seguiu a independência, a Frelimo (governo)
mostrou uma certa hostilidades a autoridade tradicional.
O aparelho das autoridades tradicionais, que vinha sofrendo também com o
colonialismo, foi abolido administrativamente. No lugar do hosi, foi introduzido o Grupo
Dinamizador. O muti, unidade básica de produção e o tiko, unidade máxima tanto do
ponto de vista econômico, político e religioso, foram transformados em aldeias comunais.
A população que vivia nos muti e nos tiko “perdeu” os seus chefes. Várias coisas como o
papel dos ritos coletivos, nos gandzelo, túmulos dos antepassados, ficaram preteridos.
Estes fatores tiveram ( e têm) muita influência e conseqüências em N‟kinga.
É na forma como as pessoas se conhecem nos dias de hoje e a maneira
como se comportam, que está o cerne daquilo que os nossos interlocutores colocam a
ênfase de mudança. Se antes como vimos, havia participação direta da comunidade na
definição das escolhas para o kubuta e para o lobolo, hoje as coisas não ocorrem desta
maneira.
70
O régulo Zanta tem a seguintes leitura:
[...] As coisas mudaram Os jovens de hoje são outra
coisa[..]. Veja que nem sabem como se faz para ter uma
mulher. Alguns se encontram nas “barracas”
40
. Não
sabem o que é lar. Tratam os velhos como lixo. Se se
aproximassem dos mais velhos iriam aprender a conhecer
as regras de constituição do lar. Hoje, os rapazes e as
meninas não conhecem as regras e é o que se pode ver[...].
Crescem e se engravidam nas barracas; não se casam.
Nem sabem o que é o lobolo. Juntam-se de qualquer
maneira[...]. As meninas vão somando filhos com pais
diferentes. E tudo isso tem a ver com a forma como eles
crescem e são educados. Não regra. Cada um faz o que
quer[...]
Em ambientes pequenos como o de N‟kinga, as regras costumeiras eram levadas a
risca. Vimos que o parentesco impõe regras de comportamento entre diversos grupos
etários. Nesta sociedade, os velhos tinham um lugar especial. Pelas regras de etiqueta eles
eram tratadas por vovó, ou seja, em termos de relacionamento social eles estavam no
mesmo pedestal dos pais da mãe e os pais do pai do indivíduo. Deviam ser respeitados
porque eram vistos como guardiãs da tradição. O relato do régulo mostra uma erosão
destes valores. É esta a idéia de mudança que ele quer enfatizar.
As barracas que o régulo faz menção, são casas de pasto que além da comida tem
como ponto forte a venda de bebidas alcoólicas. São espaços comerciais explorados,
sobretudo, para atender as pessoas que vindo de Maputo Cidade, se dirigem à zona
turística e fronteiriça da Ponta de Ouro; passam uma parte da noite nestes locais. Muitas
40
Bares ou espaços públicos de diversão. Na generalidade, as barracas estão associados a má vida
(prostituição, uso de drogas ou banditismo).
71
meninas das redondezas do vilarejo de Salamanga e outras provenientes de lugares mais
distantes, concentram-se neste local e muitas vezes se prostituem.
A ao período da independência, em 1975- pensamos que é a isto que se referem
os informantes quando usam a expressão “naquele tempo”-, no lobolo que descrevemos
acima, se que um grande envolvimento da comunidade desde a fase de namoro,
kugangisa, na preparação da festa e na entrega do lobolo. Era esse envolvimento que
institucionalizava a cerimônia pois é onde se clarificava o parentesco por aliança e se
clarificavam os papeis sociais e comportamentos. Sobre o namoro, o Pastor Sivhane, 67
anos, responsável pela Igreja Presbiteriana disse-nos:
“Na nossa cultura, naquele tempo, as famílias
conheciam-se. Orientavam os filhos na escolha dos
parceiros. Eram os pais que se falavam e as
meninas aceitavam..
Isso agora terminou. Terminou porque haviam
começado os divórcios. Na cultura Tsonga não
divórcios; o que acontece em caso de divergências
com o marido, a mulher voltar para casa dos pais.
Quando chegasse a casa dos pais era posta a viver
numa palhota independente “batizada” com o nome
da família do marido, ou seja, da família donde ela
vinha. Aquele homem que a abandonou podia
visitá-la em casa dos pais, se quisesse. Podia
continuar a fazer filhos naquele espaço da mulher
dentro da casa dos sogros. Isso não se chamava
divórcio, dizia-se que a “nossa filha voltou
temporariamente para casa”. Não havia divórcio...
Quando voltasse à casa dos pais enquanto tivesse
casado com um Tembe, por exemplo, construía-se
72
uma palhota e diziam que ali é “Ka Tembe”
41
. O
Homem podia ir a casa dela e ninguém o proibia.
Se aparecesse outro homem interessado em casar
com ela, a condição era devolver o lobolo ao
primeiro marido. Isso acontecia e não era
divulgado. Eram assuntos de família. Isso acontecia
e era muito bom.
Hoje, o jovem encontra uma jovem na barraca e
começa a namorar. Os pais só tomam conhecimento
muito mais tarde. Às vezes os pais tentam proibir,
mas não conseguem porque eles estão a namorar
e, às vezes chegam até ao casamento. Às vezes nem
vale a pena proibir, nem falar sobre isso porque
elas se deixam engravidar. Muitas vezes ficam
“esposas” sem casamento. Thluvam-se
42
”.
Ampliando-se a ótica da chamada “legalidade”, cuja lei determina e dita as
regras, que levar em consideração, também (Santos, 1987), que nem todas as normas
estão necessariamente escritas (juridicidade). Neste sentido, existe algo antes e além da
lei escrita, que regula essa convivência em sociedade e que constitui uma determinada
cultura. É neste âmbito que se inscreve a legitimidade. A legitimidade decorre de um
consenso social. Quando falamos do lobolo, do parentesco e das instituições sociais,
estamos a falar elementos regidos pelo costume, estamos a falar da tradição, da cultura.
Como vimos o lobolo é uma aliança entre dois grupos, o da noiva e o do noivo. É
um assunto que dis respeito a duas famílias ele é legitimado pela tradição. O lobolo exige
a benção dos antepassados, implica direitos e deveres traçados a luz da tradição. As
prestações do lobolo são os pagamentos exigidos pelo costume(Radcliffe-Brown, 1973,
p.115) no processo de estabelecer um casamento válido.
41
Algo como um território fictício do Tembe. O prefixo ka, significa pertence. Ka Tembe, que dizer
pertence ao Tembe. O nome ou apelido do marido da mulher que saiu do lar para a casa dos pais.
42
Tlhuvar, é uma forma de “casamento forçado” na qual o homem ou a mulher sai e vai viver com o
parceiro sem o consentimento dos pais, ou seja, sem lobolo ou casamento civil.
73
O divórcio é um elemento legal daquelas uniões que concernem primeiramente,
ao homem e a mulher, e ao Estado, que a união sua legalidade e que ele pode
dissolver pelo divórcio. É um casamento que deve ser registrado por alguém licenciado
pelo Estado, e uma taxa deve ser paga.. É o Estado que decide as condições sob as quais
o casamento pode ser terminado por um divórcio, concedido por um tribunal, que é um
órgão do Estado. Concluindo, o lobolo tem a ver com legitimidade, dada pelo costume e
o casamento tem a ver com legalidade, dada pelas leis do Estado, o que sociologicamente
não é a mesma coisa. É por isso que o divórcio fazia parte dos tabus. Em tsonga se dizia
psa ila kutsicana, o que quer dizer é proibido divorciar.
Quando quisemos compreender melhor esta problemática do divórcio, os
informantes mostraram-nos que uma das maiores consequencias deste ato é a proliferação
de crianças abandonadas, inclusive na área das pequenas lojas de Salamanga. Indicaram
também como conseqüência direta deste ato a mendicidade, um fenômeno, que segundo
eles, era algo desconhecido nesta região.
Na generalidade, os informantes faziam referência ao comportamento sexual dos
jovens. A isso ligaram sempre a falta de conhecimento das regras da tradição e a falta de
respeito pelos mais velhos. Foi sempre à volta de questões ligada a tradição que nos
apontaram as mudanças.
Sobre o comportamento dos jovens de hoje, Joana Tembe, 67 anos, camponesa,
disse-nos o seguinte:
“Agora as coisas mudaram muito. Antigamente os mais
novos respeitavam muito aos mais velhos. A educação das
crianças acontecia em qualquer lugar da aldeia. Qualquer adulto
podia e devia chamar atenção às crianças quando estivessem
erradas”.
As crianças de hoje são muito diferentes. O que nós
fazemos em insistir em incuti-los valores positivos,
comportamentos positivos. As crianças de hoje estão um pouco
74
“tortas” em termos de comportamento. No nosso tempo havia
problemas, mas não eram tão graves como os de hoje [...].
Segundo os informantes, o namoro não envolve tanto a família como antes.
Muitas vezes é utilizado como mecanismo de sobrevivência. Por ser uma região pobre,
com problemas de emprego e várias carências, as raparigas têm como preferência
“namorar” com pessoas que vêm de Maputo ou jovens locais que trabalham nos países
vizinhos.
O respeito às instituições religiosas era uma das características das populações de
N‟kinga. As famílias esforçavam-se em educar os seus filhos com base nos ensinamentos
das diversas congregações religiosas ali existentes. Fomos assistir alguns cultos e
conversamos com os pastores.
O jovem pastor da Igreja Anglicana disse-nos que era raríssimo ouvir dizer que
alguém vai ser lobolada ou se vai casar pela igreja. O que mais se nota é o kutlhuva, a
mulher vai viver em casa do homem sem ter havido nenhuma cerimônia de lobolo,
casamento civil ou religioso. E acrescentou:
[...] Eu acho que tem a ver com o desemprego. Quando o
jovem está desempregado, acha que não tem condições para
enfrentar aquilo que os pais vão pedir. Podem pedir bois e outras
coisas. A solução tem sido convencer a rapariga, prometendo
levá-la para África do Sul. E ela por se encontrar na pobreza,
acha que na África do Sul terá boas condições... Então se juntam e
fogem e vão juntos para África do Sul.
[...] Elas não são “raptadas” como tal; as pessoas
combinam. Os jovens dizem: “Eu te amo, mas não tenho as
condições para falar com os teus pais; a tradição aqui exige
muitas coisas, bois e outras coisas... A rapariga por saber que
está desesperada por causa da pobreza, acha que na África do Sul
terá melhores condições e terá uma vida condigna e voltará para
com valores.[...] Aqui na Igreja vinham muitas raparigas
participar nos cultos. Mas perdi muitas jovens. Em 2006 tínhamos
75
muitas jovens e agora fiquei com idosas. A maior parte das
jovens já estão na áfrica do Sul com os maridinhos”..
Como podemos mostrar ao longo do texto, a sociedade moçambicana sofreu
mudanças como resultado da penetração colonial européia, e também como resultado das
políticas adotadas pelo governo no período a que se seguiu a independência nacional. A
isso também podemos somar o período de conflito armado entre o governo e a
RENAMO.
Esses eventos provocaram fissuras na esfera social, política, econômica, jurídica,
enfim, na globalidade da sociedade moçambicana no geral, e em N‟kinga, em particular.
Se no passado, o equilíbrio social, ou seja, a estabilidade e a ordem social tinha
como alicerces o sistema de parentesco, agora, a realidade é outra.
A explanação de Joana Tembe e do pastor da Igreja Anglicana refletem esta nova
realidade, caraterizada por novas pressões, novas tensões e novos tipos de conflitos. Do
ponto de vista simbólico mostram que a esfera social, conheceu um movimento de
mudança..
Para sermos mais precisos, vamos mostrar como se deu a mudança das
instituições sociais como o lobolo em Moçambique no período pós-independência. A
seguir vamos fazer a descrição e análise de duas cerimônias de lobolo que assistimos em
N‟kinga no período em que estivemos a fazer trabalho de campo.
76
5.2. O lobolo de Marília Nhaca
Num belo dia, pela manhã, fomos convidados pela família Nhaca para assistir
ao lobolo da sua filha Marília Nhaca, 29 anos, que durante três anos namorara com o
jovem Leonardo N‟kondzo, 34 anos. Em conversa com o rapaz ele nos contou o
seguinte:
Eu e ela nos conhecemos na Cidade de Maputo. Sou
operador de câmera e trabalho numa empresa de televisão. No
verão, a minha estação emissora organiza concursos de miss,
patrocinadas por uma companhia de telefonia móvel. Foi num
desses concursos que conheci a minha namorada. Começamos a
namorar; fomos nos conhecendo e agora temos dois anos juntos”.
Em Maputo, vivo em casa do meu tio e ela em casa de um
irmão. Decidimos vir fazer a cerimônia aqui em N‟kinga, em casa
dos nossos pais”..
Ele nos disse que a família da noiva tinha sido muito compreensiva e exigiu um
lobolo a alturas das suas capacidades financeiras. Disse-nos que tinha uma boa relação
com a família da namorada. Convidou-nos a assistir o lobolo e o casamento que teria
lugar no dia seguinte. Pelo que nos contou, percebemos que a sua maior preocupação
estava mais concentrada no casamento que teria lugar na Igreja Presbiteriana, mais
conhecido por Missão Suíça e no Registro Civil. Contou-nos que viriam muitas
pessoas da Cidade de Maputo para assistir o casamento e que uma pequena delegação da
sua família iria à casa da noiva, na Sexta-feira para fazer o lobolo. O casamento tinha
sido marcado para Sábado, na vila de Bela Vista, capital do distrito.
A família Nhaca vive no N‟sinhene. A cerimônia teve lugar em Setembro de
2008. A nossa ida a este evento deveu-se a um pedido antecipado à tia da noiva. Quando
chegamos à N‟kinga pedimos aos nossos diversos informantes que nos avisassem caso
tivessem informação sobre a realização do lobolo. Foi assim que chegamos a esta
cerimônia.
77
Quando chegamos a casa dos Nhaca ainda haviam poucas pessoas. Entre os
presentes estavam dois idosos, que mais tarde soubemos que eram da Igreja Presbiteriana,
a congregação religiosa freqüentada pela família a pelo menos duas gerações, alguns tios
e algumas tias. A pouca presença de pessoas para este ato intrigou-nos no início, mas
associamos o fato ao dia, pois se tratava de uma Sexta-feira.
Como tem sido habitual nos últimos tempos em Maputo, às famílias realizam as
cerimônias de lobolo às Sextas-feiras nas vésperas dos casamentos religiosos e civis, que
geralmente se realizam aos Sábados. Foi o caso do lobolo da Marília Nhaca.
Antes de início da cerimônia, conversamos com o senhor Joel Nhaca, um dos tios
mais velhos do pai. Ele foi à casa do irmão na noite do dia anterior porque tinha que se
juntar aos outros irmãos para fazerem os últimos preparativos das cerimônias que iam ter
lugar nos dias seguintes.
Nessa breve conversa quisemos saber o que aconteceria e o que é que se tinha
feito antes. Ele nos disse que como manda a tradição, nas primeiras horas da manhã, na
alvorada, tinham feito o ritual de kupalha, que se trata de uma invocação aos espíritos dos
antepassados. É uma cerimônia em que se apela a benção e proteção dos espíritos dos
antepassados. No campo, ela é feita no ghandzelo, uma árvore especialmente escolhida
como altar da casa.
Segundo Nhaca, nesse ritual informaram aos antepassados que a filha seria
lobolada e pedida em casamento pela família do N‟kondzo. Este ritual é feito em quase
todas as cerimônias familiares.
Chegamos a casa dos Nhaca por volta das 11 horas da manhã, mas a cerimônia
só teve início por volta das 16 horas. Mais tarde contaram-nos que a demora se deveu aos
noivos que ainda não tinham completado as coisas que serviriam para o lobolo. No tempo
em que estávamos a espera do grupo que viria da casa do noivo para lovolar, o noivo
ainda estava no mercado tentando completar as oferendas (roupa do pai, roupa da mãe,
roupa da avó, bebidas cerimoniais) que os seus familiares levariam para a casa da noiva.
78
No meio da impaciência e do murmúrio pela demora, eis que chega a delegação
dos familiares do Leonardo N‟kondzo para fazer o lobolo. Entre eles estava um tio, irmão
do pai do noivo, acompanhado pela esposa, um amigo e vizinho da família do noivo e
uma prima do noivo. Quando chegaram eram aproximadamente, 15, 45 horas.
Um grupo de senhoras foi à porta de casa receber os visitantes entoando, canções
que ressaltavam o valor do nascimento e do casamento.
O atraso estava consumado. A delegação da família do noivo entrou dentro de
casa e foi dirigida para sala. Os homens sentaram-se nas cadeiras e as mulheres nas
esteiras, junto às malas. Seguidamente, as famílias se reuniram, mas antes houve um
momento para dzungulisar dzanva, uma forma tradicional de cumprimentar em que se
relata a situação geral da família no atinente a saúde, doença e outros aspetos
considerados importantes. No Sul de Moçambique, entre os tsongas é uma forma
tradicional de saudar as pessoas, sejam elas familiares diretas ou não.
A delegação dos N‟kondzo foi apresentada pelo tio do noivo. Pela parte dos
anfitriões, coube ao Nhaca mais velho da família a apresentação dos restantes membros
da sua família.
Sem demoras, o grupo do noivado foi retirando da malinha e das pastas o
conteúdo que trazia para o lobolo. Fora estavam as caixa de cerveja e de refrigerantes
e as duas garrafas de vinho, tinto e branco.
O tio do novo, entregou à lista ao Nhaca para que se fizesse o acompanhado e
conferência dos artigos.
Ajoelhada na estreita, a prima do noivo começou a colocar cada artigo encima das
esteiras previamente estendidas no meio da sala. À volta estavam os assistentes serenos e
atentos a cada pormenor do que ali se passava.
Da esquerda para a direita foi pondo os seguintes artigos: roupa para o pai,
composta por um terno, uma camisa, uma gravata, um par de calças, um par de sapatos,
79
um par de meias, um cinto e uma bengala. Ao lado, foi colocando a roupa da e
composta por uma blusa, um casaquinho, uma saia, um par de sapatos, um par de meias
de rede, brincos, lenços e 5 capulanas
43
.
Depois foram colocadas as oferendas para a avó materna da noiva composta por
uma blusa , duas capulanas e um frasquinho de rapé. Seguiram-se os artigos para o avô
paterno da Natália, compostas por camisa, garrafa de vinho branco e um frasquinho de
rapé.
Por cima das roupas foram colocados 2500 Meticais
44
de lobolo e mais algum
montante em moedas para outras despesas inerentes a cerimônia. No fim, a prima do
noivo tirou da mala a roupa da noiva composta por um casaquinho, uma saia, um par
meias compridas, um par de sapatos, um fio de ouro, roupa interior, brincos de ouro e
anel de ouro.
Os dois mestres de cerimônia fizeram a conferência dos artigos em função da lista
previamente elaborada e enviada pela família Nhaca. Esta lista é elaborada pela família
da noiva no período em que se começam a encentar os passos para o lobolo. É enviada a
casa do noivo com muita antecedência a fim de permitir que ele se prepare e reúna os
artigos nela contidos. Conclui-se que estava tudo completo. As senhoras entoaram mais
canções enquanto a noiva, que não a vimos durante o tempo em que esperávamos os
N‟kondzo, se prepara para se dirigir a sala onde se iria realizar a cerimônia.
Quando chegou, ajoelho-se em frente ao tio que a perguntou: “Conheces estas
pessoas que nos vieram visitar?” E ela respondeu: “Sim, as conheço”. O tio voltou a
perguntar; “Podemos recebê-las?” E ela respondeu: “Sim, podem recebê-las”.
43
A capulana é um pano que as mulheres amaram na cintura. Em termos de indumentária é um dos
elementos simbólicos mais presentes na cultura Tsonga. As senhoras usam-na quase sempre. Ela esconde
as partes íntimas da mulher e, as vezes as meninas usam-na como saia. É usada para embrulhar os bebés
após o nascimento e para transportá-los às costas da mãe. É o artigo de indumentária feminino que
atravessa todos os grupos populacionais do pais, de norte a sul.
44
Nome da moeda moçambicana que substitui o escudo português que vigorou no país durante o período
colonial.
80
Perguntaram-na se podiam receber as coisas e ela respondeu positivamente
dando assim a anuência ao ato. É ela que deve aceitar receber a visita, porque apesar de
ter havido conversações preliminares entre as duas famílias, é ela que lida com eles mais
tempo na companhia do seu noivo. Naquele momento “só ela os conhecia”. Desta forma,
o acordo entre as duas famílias estava selado.
Seguiu-se um discurso do tio da noiva no qual além de explicar as causas daquela
cerimônia falou da importância do casamento na vida dos jovens. Religioso acérrimo foi
misturando o seu discurso com passagens bíblicas para enaltecer a importância da
cerimônia.
A fase que se seguiria era a mais espetacular do evento. Muitas pessoas que se
encontravam do lado de fora da sala onde decorria a reunião, inclusive àquelas senhoras
que até àquela hora se ocupavam pelos assuntos da cozinha, se aproximaram para assistir
a entrega dos artigos.
Na presença de todos, a Marília pegou numa nota de 100 meticais, ajoelhou-se a
frente dos pais e entregou-a a mãe. O tio, irmão da mãe retirou uma nota, cumprindo os
preceitos tradicionais da cerimônia.
Seguiu-se a fase de trocar de roupa. A noiva saiu com a prima do Leonardo, mas
antes os visitantes pagaram 10 meticais. A tia tirou 20 meticais e saiu com a mãe da
noiva e o vizinho da família N‟kondzo tirou outros 20 meticais e saiu com o senhor João
Nhaca, pai da noiva. O dinheiro acima somava 50 meticais e serviu para pagar a
deslocação da noiva e dos pais para a troca de roupa.
A mãe da noiva regressou com o novo traje e amararam-na uma garrafa de
vinho nas costas, como se estivesse para transportar um bebe. A garrafa representa a sua
filha, noiva que era loboloda. Depois amarrara-na outra capulana por cima para
“protegerem a bebe” das intempéries do ambiente. Minutos depois voltou o pai da noiva
com o novo terno exibindo a sua bengala.
81
Seguiram-se os cantos e conversas entre as pessoas que assistiam a cerimônia.
Toda a gente cantava e sorria contente, batendo palmas.
As duas famílias se felicitaram longamente. Os pais mereceram atenção
especial dos presentes e foram felicitados com abraços e beijinhos de muitas pessoas que
testemunhavam o lobolo da sua filha Marília.
Esta é uma das passagens mais interessantes da cerimônia. As pessoas dançam,
cantam, lançam piadas, dramatizam o nascimento, simulam choros de bebe, simulam
mulheres com dores de parto, enfim, reconstituem-se cenas alegóricas ao dia-a-dia de
uma mãe.
A Marília só voltou a surgir, quando, bastante tempo depois, as celebrações se acalmaram
e as pessoas se voltaram a sentar.
Veio com sua roupa acompanhada por uma amiga que a servia de corteja. A
prima do noivo beijou-a e deu-lhe boas vindas a família dos N‟kondzo. Colocou-lhe
calmamente os brincos, o anel e o fio.
A tia da noiva recebeu a capulana, a blusa e o frasco de rapé em representação da
avô paterna. Foi felicitada e abraçou a sobrinha. O tio recebeu os trajes e o outro frasco
de rapé em representação do avô materno.
Seguiu um longo período de conversas e canções e fotografias enquanto se
esperava da refeição que seria tomada em conjunto. As panelas foram aparecendo na
sala, juntamente com os talheres. Houve uma pequena interrupção para se rezar e
abençoar a refeição e depois as pessoas foram autorizadas a se servir.
Depois da refeição a delegação dos N‟kondzo se despediu e partiu. Era necessário
recuperar o tempo perdido, pois o dia seguinte seria para o casamento Civil e Religioso.
Ainda em N‟kinga tivemos oportunidade de assistir uma outra cerimônia similar. A
seguir vamos narrar a estória do lobolo da Sara N‟gumende.
82
5.3. O lobolo da Sara N‟gumende
José Tembe, 45 anos e Sara N‟gumende 40 anos, vivem juntos 15 anos, no
terreno dos pais, numa casa de alvenaria, construída em blocos, situada na zona dos
Matsolos, do lado esquerdo da estrada que sai de Salamanga em direção a Ponta de Ouro.
Chegamos a este lugar convidados por um vizinho e membro da família. É um
lugar espaçoso, cheio de árvores de fruta. Quando chegamos, muitos convidados estavam
sentados debaixo de um frondoso cajueiro. No vasto quintal viam-se também mangueiras,
laranjeiras, bananeiras e outras árvores de fruta.
Desta vez tínhamos acertado a hora. Chegamos muito cedo porque o régulo nos
tinha dito que pela tradição, antes da cerimônia do lovolo, faz-se o kupalha, uma
cerimônia de invocação e conversa com os espíritos dos antepassados. Foi interessante,
pois ele havia nos prevenido que os espíritos
45
aparecem de manhã cedo e ao pôr-do-
sol. O ritual começou por volta das 7 horas.
O Tembe mais velho pediu para colocarem as oferendas que iam levar para a
família N‟Gumende no gandzelo, altar, que era uma planta de tronco grande que
frutos saborosos conhecidos localmente por Nheve, ou Tinheve.
O chefe de cerimônia pegou um frasquinho de fole, rapé, fez um circulo e no meio
deste, espalharam-se as notas, as roupas , os sapatos e a bengala que iriam ser utilizadas
para lovolar. Perto do local estava um garrafão de cerveja tradicional, uputso, uma garafa
de vinho branco e duas caixas de refrescos.
Durante uma hora aproximadamente, ajoelhado, de cabeça para baixo e mão
direita na testa “chamouos antepassados pelos nomes, “sintonizou” o antepassado xará
45
Toda a identidade dos grupos se estrutura relativamente às linhas de ascendência constituídas pelos
antepassados mortos. Os antepassados situados num tempo passado (mortos) eram deste modo símbolos
dos grupos vivos e, por isso a crença e o culto dos espíritos é tão importante nestas sociedades [...] Os
antepassados, como referentes de identidade dos grupos, forçam a solidariedade porque são considerados
como a sua benção e todo o seu enfraquecimento, que é visto como um desvio do modelo de
comportamento devido a parentes é penalizado para impor a sua correção( Fialho, 1989: 297)
83
do José e “conversou” com os espíritos. Enquanto a família e os convidados ouviam em
silêncio.
Informou aos antepassados que o Jaime tinha resolvido ir pagar a dívida do lovolo
nos N‟Gumende e pedia a sua proteção para que tudo corresse bem. Deitou o uputso no
chão, servindo aos antepassados. O irmão mais novo do Jaime, um mineiro que tinha
chegado a casa na noite anterior, bebeu o copo do uputso ato seguido pelos restantes
participantes. No fim, o mestre de cerimônia bebeu também o uputso, como mandam as
regras da tradição, finalizando assim a cerimônia.
Um grupo restrito de familiares foi se reunir dentro de casa para conferir o
dinheiro e a roupa acordada com a família da noiva. Vi muitas notas e moedas e pelas
conversas percebi que parte do dinheiro serviria paro o lovolo e o restante seria para as
“multas” tendo o maior peso à multa que se cobra por ter vivido com a rapariga e ter tido
filhos antes do lobolo. O casal tem 4 filhos.
Parte do dinheiro serviria para colocar encima de cada conjunto de roupas e por
cima das caixas de refresco, garrafão de uputso, frasquinho de rapé e da garrafa de vinho
branco.
O grupo que iria fazer o lobolo tinha como timoneiro o senhor Nhaca, vizinho,
amigo da família e dirigente religioso. A rhazhana Laura, irmã mais nova do pai do José,
foi incluída no grupo e teria como tarefa vestir a noiva. Eu trazia uma máquina de
fotografar e tinha pedido estar no grupo, o que foi previamente aceite. A nós juntou-se
também uma outra senhora vizinha e amiga da família.
O lovolo tinha sido marcado para as 13 horas. Saímos, entramos no caminho que
vai ao cemitério, passamos por várias rochas e 30 minutos depois estávamos nos
arredores da casa dos N‟gumende. Algumas pessoas que tinham nos acompanhado
carregando a mala, as caixas e um cesto de bebidas entregaram-nos as coisas e voltaram.
Reorganizamo-nos e finalmente chegamos ao nosso destino.
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Paramos numa das margens do quintal e algumas pessoas começaram a cantar. De
longe algumas pessoas respondiam os cânticos e minutos depois fomos recebidos.
Entramos numa sala de uma casa previamente preparada com esteiras e algumas caixas
que nos serviriam de cadeiras. O chefe de cerimônia dos N‟gumende cumprimentou-nos
e nos disse que a família estava satisfeita e preparada para nos ouvir.
O Tembe mais velho apresentou-nos e disse que nós também estávamos
satisfeitos por ter chegado o dia de cumprir um preceito tradicional de grande
importância que é o lovolo.
Antecipou-se a dizer que a família Tembe sabia que havia uma multa a pagar aos
N‟gumende pelos 15 anos em que Sara viveu e fez 4 filhos. Tirou duas notas de 100
meticais e uma outra de 50 meticais e entregou a garrafa de vinho branco. Sem demoras e
com o sorriso no rosto os N‟gumende aceitaram e disseram que nos dias de hoje era
muito raro as pessoas cumprirem com as regras.
Cantou-se e as pessoas começaram a ficar mais à vontade. De um e do outro lado
saiam piadas e conversas. O Tembe avisou que iriam começar a tirar as coisas que tinham
trazido para o lovolo. A tia do José abriu a mala e foi colocando as roupas nas esteiras
estendidas no meio da sala. Tirou a roupa do pai, composta por um terno, camisa de
mangas cumpridas, cinto meias, sapatos e uma bengala- que seria para o tio da noiva
pois o pais tinha falecido. Seguiu a roupa da mãe composta por um vestido, um
casaco de senhoras, meias, duas capulanas e um lenço. Depois tirou a roupa destinada a
avô, uma blusa, uma saia, duas capulanas, um par de sandálias e o frasquinho de rapé. A
roupa do avô era composta por uma camisa de mangas cumpridas, calças, sapatos e a
garrafa de vinho. E finalmente o relógio, a saia, a blusa, os brincos, o anel, os sapatos e a
bolsa da noiva. Por cima das roupas colocaram 1500 meticais em dinheiro.
A família N‟gumende conferiu as coisas com base numa lista previamente
acordada e enviada aos Tembe e notou que faltava uma nkeka, pano branco que se amara
na barriga da mãe simbolizando o nascimento da filha. Houve uma pequena discussão e
chegou-se a conclusão de que além de pagar uma multa de 20 meticais tinham que propor
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um dia para trazer a nkeka. Em conversa com uma anciã ali presente soubemos que essa
era a regra, mas também era um pretexto para mais uma confraternização entre as duas
famílias.
A Sara que tinha saído da casa do marido no dia anterior foi chamada depois de
ter sido entregue uma nota de dez meticais pedindo autorização para vesti-la. O tio da
Sara agachou-se tirou uma nota de 100 meticais e depois foi a uma pallhota ao lado
acompanhado pelo Tembe, donde voltou trajando o fato do lobolo. A mãe foi se vestir
acompanhado pela vizinha. Os avôs também saíram e voltaram trajando novas roupas.
Por cada membro da família que saia para se vestir os Tembe tinha que desembolsar uma
nota de 10 meticais.
O regresso da Sara era à parte mais esperada da cerimônia. Ela voltou à sala
sentou no meio e a tia do José colocou-as os brincos, abriu um estojo tirou um relógio,
beijou-o e colocou-o no pulso esquerdo da noiva.A tia do José animada e para animar o
ato ia dramatizando fazendo alegorias de quem está a conquistá-la. Depois vieram as
palmas. Antes da intervenção de fecho pedi para fazer mais uma fotografia. As duas
famílias se juntaram, vieram as senhoras que estavam a preparar a refeição da festa e fiz
várias fotografias para a posterioridade.
O mestre de cerimônia agradeceu o gesto dos Tembes e convidou-os a almoçar.
Saímos do local onde se estava a fazer o lovolo, espalhamo-nos pelas sombras da casa.
Serviu-se a comida, antes de se começar a comer rezou-se e depois foi a festa até ao
regresso à casa dos Tembe que só veio a acontecer no início da noite.
5.4. As lições do lobolo de hoje
No decurso do presente trabalho fomos mostrando que as formas de prestação do
lobolo foram variando ao longo do tempo. Com base nos relatos do Junod(1996), vimos
que elas começaram com a entrega de 40 ou 50 enxadas por parte da família do noivo à
família da noiva. Passou-se para o período em que as prestações eram feitas através de
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Libras Esterlinas, que inicia com a industrialização em Kimberley e Johannesburb, que se
manteve com o “pagamento” por cabeças de gado.
Olhando para os relatos acima, vimos que hoje as prestações incluem roupas,
alianças, bengalas, dinheiro (METICAIS) e outras coisas. Esta é a parte física deste ritual.
Todavia, o nosso maior interesse é procurar explicar a esférica simbólica do lobolo.
Em termos físicos encontramos muitas semelhanças entre o lobolo da Marília
Nhaca e da Sara N‟gumende. Todavia, é preciso notar que enquanto a Marília e o
Leonardo estão a dar os primeiros passos para a vida conjugal, a Sara e o José, têm
filhos e vivem juntos há 15 anos.
Posto isto, afinal, onde é que está a diferença entre estas duas cerimônias?
O relato mostrou que no caso da Marília Nhaca e Leonardo N‟kondzo, a família
preparou duas cerimônias, uma tradicional para Sexta-feira e uma outra civil e religiosa,
para Sábado. A partida, notamos que estamos perante um acontecimento com três
dimensões: econômica, simbólica e jurídica.
A dimensão econômica tem a ver com a parcimônia que caracterizou este lobolo:
o noivo se esforçou para cumprir todos os requisitos que constavam na lista enviada pela
família da noiva, mas concentrou o maior investimento para a festa que se seguiria aos
casamentos na Igreja e no Palácio dos Casamentos (Registro Cívil). Outra prova da
parcimônia foi a composição da delegação que foi a casa dos Nhaca: tio, tia, vizinho e
prima.
O aspeto simbólico destas cerimônias está no fato de elas terem tido três
dimensões: a costumeira, a religiosa e a cívil, com maior peso para estas duas últimas.
Isto mosta que um deslocamento no peso simbólico nestas alianças
matrimoniais que ultimamente se fazem. Este é um aspeto importante da mudança.
A componente jurídica deste lobolo foi composta por dois elementos
sociologicamente diferentes: a legitimação e a legalização. Na Sexta-feira, os novos
foram legitimados pela família, aqui se inclui os antepassado, pois o tio da Marília disse-
nos que haviam comunicado aos espíritos da família num m‟palho realizado na
madrugada daquele dia. No Sábado, os noivos foram legalizados pelo Pastor da Igreja
Presbiteriana e pelo Estado moçambicano, através do conservador que dirigiu a cerimônia
de casamento civil.
87
Qual dos dois norteará a vida destes noivos?
A Lei da Família de Moçambique-, Lei nr 10/2004, de 25 de Agosto-, procedeu,
entre outros, ao reconhecimento da união de fato e estabeleceu o regime jurídico quanto
ao regime de bens (que é o de comunhão de adquiridos). Esta lei estabelece que as
pessoas que tenham vivido juntas maritalmente, num período superior a 4 anos podem
fazer o registro de casamento (legalizar), bastando para isso ter quatro pessoas como
testemunhas.
Havendo esta possibilidade, porque é que a família Tembe insistiu em lobolar a
Sara?
Quanto ao lobolo de José Tembe e Sara N‟gumende, primeiro temos que a
assinalar que há um peso simbólico muito forte nesta aliança. Acompanhamos a
cerimônia desde as primeiras horas da manhã e vimos o tio do José no ritual do m‟palho,
invocação aos espíritos dos antepassados, “informando-os” sobre o acontecimento que
haveria naquele dia na família.. No decurso do ritual ele pediu ao pai do pai do José para
falar com o avô homônimo deste, para o comunicar que o neto xará finalmente ia
cumprir aquele preceito da tradição.
Por que é que ele fez isso? A explicação é que na tradição africana acredita-se que
os mortos estão constantemente a “vigiar” os vivos e estes lhes devem obediência e
respeito. Um dos significados simbólicos do lobolo do José é o “pagamento” da dívida
que ele tinha com os antepassados paternos dele e os antepassados paternos da Sara.
Tradicionalmente, naquele instante o avô homônimo do José e a avó homônima da Sara
se encontraram e quitaram-se as dívidas.
O lobolo significou para o José e a família um reencontro com a tradição, um
reencontro feliz com os seus deuses.
Na tradição dos wazinguire uma das formas de perpetuar a continuidade da
família é dar nomes dos avós aos netos que vão nascendo. É desta maneira que eles
renovam e perpetuam a família.
A veneração dos antepassados nos casos em que ela existe(Radcliffe-Brown,
1974, p.85), é parte integrante dos sistemas de parentesco, por ser constituída pelas
relações entre pessoas vivas e mortas e conseqüentemente, afetar as relações entre as
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pessoas vivas e mortas e conseqüentemente, afetar as relações entre as pessoas vivas que
o membros do grupo.
Olhando para os dois casos, o que se hoje em Moçambique, é que a dinâmica
social imposta pelos eventos acima referidos está, aos poucos, impondo uma legalidade
que está fora dos costumes. E está é, nas representações locais sobre a mudança um dos
sinais mais referenciados.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao refletir sobre o lobolo como foco das representações locais de mudança social,
este trabalho procurou nortear-se pela tentativa de analisar o papel do lobolo como uma
instituição dentro do sistema de parentesco tsonga, permeada por uma rede de relações
sociais que constitui parte da rede total de relações que é a estrutura social. Neste
contexto vimos ainda que para um sistema funcionar eficazmente, ele deve proporcionar
métodos de limitações, controle ou resolução de conflitos.
No presente estudo utilizamos o lobolo, como fenômeno social total, para analisar
e interpretar as mudanças na sociedade rhonga.. Como diz Mauss (1974): o fato social
total deve ser apreendido de uma experiência concreta; numa sociedade localizada no
tempo e no espaço.
Como vimos, o lobolo institui uma teia de relações entre parentes do noivo e da
noiva, um sistema. Um sistema de parentesco e casamento pode ser encarado como um
arranjo que capacita pessoas para viverem juntas e cooperarem umas com as outras numa
vida social ordenada. (Radcliffe-Brown, 1974: 62).
Na sociedade tsonga os ritos de iniciação serviam de referência moral e sócio-
cultural. Durante a nossa pesquisa empírica procuramos saber se ainda havia ritos de
iniciação e a resposta do régulo Zanta foi a seguinte:
“Falar de circunsição para as crianças de hoje,
nem pensar... Essa tradição perdeu-se com o tempo.
Essa e outras práticas tradicionais foram
desencorajadas pela revolução. Hoje muita
gente com doenças venérias e admira-se quando
dizemos que se pode evitar fazendo circunsição.
Também é difícil localizar os velhos que eram
especialistas disso...”
Todavia, como vimos no capítulo 1, os ritos de iniciação eram o verdadeiro
nascimento do indivíduo como pessoa e por isso a comunidade ficava feliz. A criança era
90
a continuidade da comunidade e isso era celebrado durante as noites, com comida
especial, danças, contos e canções.
Os ritos tiveram uma grande importância na sociedade tradicional tsonga, pois
determinavam os valores morais e culturais de muitas gerações. Na percepção dos atores
locais, a transformação social e a supressão drástica destes ritos, iniciada com a
colonização até os nossos dias, levaram a nova geração a perder a sua referência moral,
sócio-cultural e religiosa.
O lobolo instituía um conjunto complexo de normas, de práticas e de padrões de
comportamento entre parentes. Estabelecia a relação social e a relação moral que deviam
existir entre as pessoas e as normas de comportamento que se refletiam em toda a
comunidade. É a alteração nas relações morais e no comportamento a ele relacionados
que é entendido como parte das causas de mudança social nesta comunidade.
Dissemos que certas características da comunidade de N‟kinga assemelham-se
àquelas descritas na literatura sobre campesinato. O campesinato é um grupo social com
muito apego a cultura tradicional(Shanin, 1971), a vida comunitária e subordina-se
econômica e politicamente ao Estado. No caso de N‟kinga, a autoridade tradicional, na
pessoa do régulo e o seu séqüito de indunas era percebido como algo que transmitia o
pulsar da tradição no dia-a-dia da vida das populações locais Percebemos isso quando,
por exemplo o gulo nos disse”: [...] Hoje as pessoas não respeitam a tradição.
Olham para os velhos como se fossem lixo[...].
Na sociedade tsonga um homem devia respeitar especialmente todos os homens
do grupo etário de seu pai e suas respectivas mulheres e obedecer certas regras de
etiqueta na sua relação com outras pessoas da mesma faixa etária.
A função social desta relação é evidente. A tradição social transmite-se de
geração em geraçào. Para que esta tradição se mantenha tem de existir uma autoridade
por detrás dela. A autoridade reconhece-se como pertencendo aos membros da geração
precedente e são eles que exercem a disciplina (Radcliffe-Brown, 1974, p.142).
Na generalidade, vimos que a percepção de mudança está diretamente ligada a um
sentimento de alteração das instituições sociais. Uma instituição social é a norma de
91
comportamento estabelecido que é reconhecido por um certo grupo ou classe social ao
qual pertence (Radcliffe-Brown, 1973, p.22)
O nosso estudo teve como base muito material bibliográfico relacionado com o
tema lobolo. A luz da teoria de “Fenômeno Social Total” de Marcel Mauss, analisamos as
percepções que vários autores e atores sociais tiveram e têm construído a volta desta
instituição de aliança matrimonial entre os rhongas. A nossa ênfase de estudo foram as
mudanças do ponto de vista simbólico. Como diz Clifford Geertz (1973) no seu ensaio
“A interpretação das Culturas”:
“O conceito de cultura, é essencialmente semiótico.
Acreditando como Max Weber, que o homem é um
animal amarrado as teias de significação que ele
mesmo teceu[...]
O peso da mudança é mais simbólico, ou seja, cultural do que material. A troca das
enxadas pelo gado e deste pelas libras esterlinas ou pelo metical foi sempre equivalente.
Não é a nível de objetos físicos que esta instituição mudou. A sua mudança é percebida a
nível do seu significado simbólico. E esta mudança vem se refletindo na sociedade
sobretudo no período posterior a independência, momento em que como mostramos no
Capítulo 2, o peso da tradição foi preterido.
Na nossa pesquisa empírica, observamos ainda que o papel outrora
desempenhado pelos anciãos da família passou a ser desempenhado pelos anciãos da
igreja. Na família os anciãos eram vistos como depositários da tradição, as “bibliotecas”
da família, são eles que quando morrem se “transformamem deuses da família e sempre
foram fonte de referência para a educação das novas gerações.
E vimos, no decurso deste trabalho, que o lobolo tinha uma dimensão simbólica
profunda, pois além dos vivos, ele era, de certa forma, uma forma de reencontro com os
antepassados ou seja, com os deuses da família. Através do lobolo até se quitavam
dívidas acumuladas, como vimos no caso do lobolo tardio dos Tembe a Sara N‟gumende.
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A conversa com o Leonardo fez-nos percebemos que o lobolo deixou de ser
aquele ato de colaboração familiar que foi outrora. O peso do lobolo estava na união total
dos esforços por parte da família do noivo. No tempo em que se lobolava com gado, este
era usado para que o irmão da mulher loboloda fosse lobolar uma outra mulher para a
família. Não era o valor monetário ou mercantil que estava em causa, era o seu peso
simbólico. Os objetos transacionados eram “divisa” simbólica. Serviam para multiplicar a
teia de relações, deveres e obrigações dentro da estrutura familiar.
Sobre o significado do lobolo e do casamento civil e/ou religioso, mamana Joana
Tembe, 67 anos, fez no seguinte comentário:
“O lobolo não é casamento. É um ato de demonstração do
crescimento da mulher. Com o lobolo certificava-se que a
mulher é parceira de alguém. O lobolo era para os pais e a
família da mulher; era uma forma de mostrar à sociedade
que a filha está com alguém, ou seja, que a mulher está
crescida e ocupada. Era uma forma de prestigiar a mulher
perante a sociedade. Até os antepassados eram informados
através de m‟palho. O casamento civil é uma festa”.
Outro aspecto novo e diferente é que antigamente (Junod, 1996) toda a aldeia se
envolvia nesta cerimônia. Havia momentos de pausa que consistiam em muitas
brincadeiras que aconteciam até a chegada delegação do noivo, composta na sua maioria
por velhos que chegavam cantando. Isto mostra a importância e o papel dos velhos na
transmissão de valores e o respeito que por estes se tinha.
O missionário e etnógrafo suíço também descreveu o casamento por rapto,
kutluva, que era a maneira que os pobres usavam para arranjar mulheres.Mas diz ainda:
“O raptor se tem o menor sentimento de decência, procura obter o lobolo”. Se a mulher
que tivesse sido roubada por kutlhuva fosse viver imediatamente com o marido irregular
e se instalasse na aldeia dele, os pais combinavam para agir de outras maneiras. Entravam
93
em confrontação com a outra família; invadiam a aldeia do raptor, matavam um porco e
ameaçavam-no e como resposta o lobolo era pago.
O kutluva era algo extraordinário, os pobres é que o praticavam. Criava
desordem social que era imediatamente resolvida com o “pagamento “ do lobolo.
Pela conversa com o pastor anglicano, em Kinga, percebemos que o que era
anormal passou a ser normal. mais situações de kutlhuva do que de lobolo. E isto é
também justificado localmente pela constante pauperização das famílias. A conjuntura
geral do pais alterou, mudou as atitudes das pessoas na maneira de pensar e construir
novos lares.
Antes, nos finais do século XIX e início do século XX, no lobolo que
descrevemos acima, vê-se que um grande envolvimento da comunidade desde a fase
de namoro, kugangisa, na preparação da festa e na entrega do lobolo. Era esse
envolvimento que institucionalizava a cerimônia pois é onde se clarificava o
parentesco por aliança e se clarificavam os papeis sociais e comportamentos. Era esta
gama de aspetos simbólicos que fazia do lobolo o fenômeno social total descrito por
Marcel Mauss.
Mauss observou que a sociedade é primeiramente instituída por uma dimensão
simbólica, e que existe uma estreita ligação entre o simbolismo e a obrigação de dar,
receber e retribuir em todas as sociedades independentemente das mesmas serem
modernas ou tradicionais.
É no lobolo que se determinavam os papeis, que se estabeleciam às regras de
relacionamento entre as pessoas, os lugares que elas ocupariam na esfera social, os
comportamentos e as atitudes. É a erosão destes valores que faz com que as pessoas
sintam que algo mudou na sociedade rhonga.
A análise demonstrou que houve mudanças nas formas de fazer o lobolo, ditadas
pelas condições sociais, econômicas, políticas e históricas que o país atravessou desde os
94
finais do século XIX. No entanto, esta mudança não significou uma transformação
valorativa do estatuto do lobolo.
A pesquisa mostrou que do ponto de vista simbólico os atores locais relacionam a
mudança que têm vindo a acontecer na a sociedade moçambicana em geral e a região de
N‟kinga em particular as mudanças em relação ao papel da autoridade tradicional, o papel
dos anciãos e o abalo que isso veio a provocar na manutenção do lobolo como um dos
pilares estruturantes da vida dos tsongas em geral e dos rhongas em particular.
95
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100
GLOSSÁRIO
A kuna n„kinga- não há problema
Chizinguiri- variante tsonga falada em n‟kinga
Sutho- população do Leshoto
Zulu- etnia sul-africana
Rhonga- variante tsonga do Sul de Moçambique, falado principalmente pelas populações
residentes nos arredores da Baia de Maputo.
Changanas - variante tsonga do Sul de Moçambique
Tswas- populações tsonga residentes em algumas regiões da região de Inhambane
Tatana- pai
Hosi- chefe
Tiko- território
Nganakana- vizinho
Tatana- pai, deus
Muti- casa, família
Muganga- área residencial
Machamba- roça
Mupsana- sobrinho
Malume- irmãos da mãe e irmãos do pai
Rhazhana- irmãos da mãe e irmãos do pai
Gwevar- comprar a grosso
Xima ou upsua- comida feita com base na farinha de milho, comida similar ao angu
brasileiro
Muzho- caldo, ensopado
Nikai- casamento muçulmano
Mutchato ou mutchato - casamento
Ukatine ou kukandza ukati- situações em que uma mulher vai viver com o marido sem
legalizar (registro civil) ou legitimar a união (tradição ou igreja)
Lovolo ou lobolo- aliança matrimonial legitimada pela tradição
101
Kutluva- situação em que a mulher “foge”ou sai de casa para ir viver em casa de um
homem sem consentimento da família
Humbuya- amantismo
Dzimu- trabalho coletivo, algo similar ao mutirão brasileiro
M „palho- cerimônia de invocação dos espíritos dos antepassados
Kungangisa- namoro
Gansa- escolher namorada
Kubuta- pedido, anelamento
Nsimba- gato bravo
Kurhandza- gostar
Kuda ukosi- comer o dinheiro que vem do noivo
Xivongo- apelido
Kulhoma- chegada da noiva a aldeia do noivo
Vuxaka- perentesco
Vukon‟nwana- parentesco por aliança
Munykeni timbeleko- dêem-na sorte de nascer; fazer filhos
Nhololo- astrágalo
Kulhumula mutua- tirar o espinho ou pico
Xigyana- acompanhamento da noiva
Tatana- pai
Mamana- mãe
Timpsalo- ternura
N‟kata, n‟santi- esposa
N‟kata ou nuna- marido
Tinamu- mulheres potenciais
Kutamela mavele- apalpar as mamas da mulher
Nlhampsa- segunda mulher
Gandzelo- túmulo
Psa ila kutsicana- é pecado divorciar
Kundrungulisana- contar as novidades do dia
Hikolwili- estar farto
102
Muhekete- acompanhante
103
ANEXOS
Anexo1: Algumas fotos de N‟kinga
Mulheres trabalhando na roça
As casas encontram-se dispersas no meio da floresta
104
Casa de processamento do mel
A maior parte das casas de N‟kinga são palhotas
105
A entrada da Reserva Especial de Maputo
Uma das margens do Rio Futi
106
As populações fazem criação de animais de pequena espécie
O artesanato local inclui a tecelagem de esteiras
107
Anexo2: A cerimônia do lobolo
Roupas para os pais da noiva
Roupas para os avós e o garafão de vinho
108
Parte do dinheiro do lobolo
A noiva recebendo os brincos e o anel
109
Mulheres preparando a comida
“Bhota” uma das panelas típicas e mais usadas nas festas
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