parecem contrariar a percepção dos sentidos, coloca em xeque não só a física
aristotélica, mas os próprios critérios do conhecimento.
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Nesse contexto em que não
se pode confiar na fé, na tradição e nem mesmo naquilo que se vê, Descartes elabora o
célebre método da dúvida hiperbólica, tomando para o pensamento e conhecimento
pressupostos radicalmente distintos da filosofia anterior.
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Um dos pontos constantes na filosofia clássica é a inspiração em alguma forma
de ordem cosmológica naturalizada como parâmetro de ação. O significado do ócio na
Grécia antiga nada tem a ver com lazer. Pelo contrário, ócio é exercício, ascese através
da qual o homem sábio, ao contemplar a ordem eterna e imutável do cosmos, poderia se
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De acordo com a física de Aristóteles os corpos tendem à estabilidade e ao repouso permanente. Todo
movimento é entendido como turbação e violência, somente possível pela atuação de forças externas que,
uma vez eliminadas, deixam o corpo ser devolvido a sua condição de repouso natural. A conseqüência
filosófica disso é a pretensão de que essa ordem estável da fisis deva ser reproduzida na polis. A filosofia
medieval, especialmente São Tomás de Aquino, retoma a ordem natural da física como justificativa para a
necessidade de preservação da ordem social. Contudo, de acordo com a inércia de Galileu os corpos não
tendem a nenhum repouso natural. Sua situação é sempre dinâmica. Todo corpo colocado em movimento
tende eternamente ao movimento, só parando pela imposição de forças exteriores. E mesmo os corpos em
repouso assim só permanecem porque sobre ele atuam forças permanentes em sentidos opostos que
anulam o movimento, o que era inconcebível pelos físicos aristotélicos que tinham nos sentidos, nesse
caso especial a visão, como critério para se apreender a realidade e para se estabelecer o conhecimento.
As revoluções no saber científico contribuíram assim para o questionamento da ordem social justificada a
partir de critérios cosmológicos em crise, exigindo a reformulação dos fundamentos da filosofia.
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“Por desejar então dedicar-me apenas à pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao
contrário, e rejeitar como falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se,
depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável. (....) decidi fazer
de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que
as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar
que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o
primeiro princípio da filosofia que eu procurava” (DESCARTES, René. Discurso sobre o método. In: OS
PENSADORES – São Paulo: Editora Nova Abril Cultura, 1999, pp. 61-62).
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