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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
SANDRA CRISTINA SÁBIO LIRA
A (IN) EFICÁCIA DO SISTEMA DE PATENTES NA PROTEÇÃO JURÍDICA DO
CONHECIMENTO TRADICIONAL
São Paulo
2010
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SANDRA CRISTINA SÁBIO LIRA
A (IN) EFICÁCIA DO SISTEMA DE PATENTES NA PROTEÇÃO JURÍDICA DO
CONHECIMENTO TRADICIONAL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós Graduação em Direito Político e
Econômico da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Direito
Político e Econômico
Orientadora: Profª. Drª. Clarice Seixas
Duarte
São Paulo
2010
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L768i Lira, Sandra Cristina Sábio.
A ineficácia do sistema de patentes na proteção jurídica do
conhecimento tradicional / Sandra Cristina Sábio Lira 2010.
139 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico)
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.
Bibliografia: f. 138-153.
1. Conhecimento. 2. Propriedade intelectual. 3. Patente.
SANDRA CRISTINA SÁBIO LIRA
A (IN) EFICÁCIA DO SISTEMA DE PATENTES NA PROTEÇÃO JURÍDICA
DO CONHECIMENTO TRADICIONAL
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito Político e Econômico.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Clarice Seixas Duarte - Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Solange Teles da Silva
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Alessandro Octaviani
Fundação Getúlio Vargas
Ao meu Pai Nelson Sábio (in
memoriam), pelos valores de humildade
e honestidade que ficarão para sempre
em meu coração.
Às minhas filhas Larissa e Juliana, por
me ensinarem o significado do
verdadeiro amor, transbordando os meus
dias de alegria e paz.
Ao meu marido Anderson Colpas Lira,
eterno amor, por acreditar e apoiar
minhas empreitadas acadêmicas,
vivendo intensamente os meus sonhos
como se fossem seus.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a DEUS por ter me mantido saudável, com e
perseverança necessária para sistematizar a realização deste trabalho.
À minha mãe Marina, meus irmãos, Junior e Silvana, sobrinhos, Dudu, Daniel, Bruno,
Carol, Leandro, Lucca, Laura, Alice, Artur, cunhados, Fernando, Tic, André Helal,
André Luiz, Regina, Érica Jéssica, Lili, ao meu sogro Romildo e minha sogra Maria de
Lourdes, agradeço a todos vocês pela compreensão, apoio e confiança e peço desculpas
pela ausência dos últimos meses.
Agradeço à minha orientadora Professora Dra. Clarice Seixas Duarte, pela paciência
com as minhas impossibilidades, disposição e generosidade nas suas correções e
principalmente pelo compartilhar. Agradeço aos professores e funcionários do
Mackenzie que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.
Agradeço aos professores que participaram da minha banca de qualificação, obrigada
pelo incentivo e direcionamento.
Em especial agradeço aos meus maiores incentivadores, Anderson, Larissa e Juliana,
por estarem sempre ao meu lado, compreendendo minhas aflições e dificuldades nesta
caminhada. A colaboração de vocês foi imprescindível para que eu pudesse concluir
mais este sonho. Obrigada meus amores!
A coisa mais indispensável a um homem
é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento.
(Platão)
RESUMO
Neste estudo objetivamos realizar uma reflexão jurídica envolvendo a proteção
do conhecimento das populações tradicionais, sua relação com a preservação dos
recursos naturais e a propriedade intelectual. O objetivo principal é analisar as
contradições da regulamentação jurídica existente sobre o acesso ao conhecimento
tradicional, principalmente por meio do atual Sistema de Propriedade Intelectual,
sobretudo as patentes. Tal mecanismo caracteriza-se pela apropriação privada e
monopolista dos inventos, oriundos do conhecimento tradicional, resultado de anos de
convívio, transmitido como herança cultural de geração para geração, portanto com
caráter estritamente coletivo. Destacaremos a atual regra legislativa utilizada para o
tema, a Medida Provisória 2.186/01, em contrapartida com as regras de propriedade
intelectual, orientada pela Lei 9.279/96, salientando a inconsistência dos requisitos de
patenteabilidade em definir normas que protejam o regulamentem o conhecimento
tradicional. Considera-se a criação de um mecanismo sui generis para a proteção dos
direitos coletivos tradicionais, associado a políticas públicas visando ao reconhecimento
dos direitos das comunidades tradicionais sobre suas próprias terras, cultura e
conhecimento. Atentaremos ao fato das questões burocráticas pertinentes ao Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético CGEN e ao INPI Instituto Nacional de
Propriedade Industrial no tratamento da biopirataria. Desse modo, este estudo alia
instrumentos teóricos e metodológicos da antropologia, das ciências sociais, ciências
ambientais e direito para, numa ótica interdisciplinar, refletir sobre acesso ao
conhecimento tradicional e o sistema de patentes.
Palavras-chave: Conhecimento tradicional, propriedade intelectual, patente.
ABSTRACT
In this study we aim to perform a juridical reflection involving the protection of
the traditional population's knowledge, its relation to the preservation of natural
resources and, intellectual property ownership. The main objective is to analyze
contradictions, mismatches and flaws in juridical regulation, regarding the access to
traditional knowledge, mainly those currently existing in the Intellectual Property
System, most specially patents. Such mechanism characterizes itself by the private and
monopolist taking of invents spawned from traditional knowledge, yielded from years
of living aside, transmitted as cultural heritage from generation to generation, and
presenting a strictly collective feature. The current legal device regarding the matter is
highlighted by us, the Provisional Measure number 2186/01, facing it against the
intellectual property rules guided by Law 9279/96, noticing the norm's unfitness, which
regard to patentability requirements, and those which protect traditional knowledge. It is
considered the creation of a sui generis mechanism for the protection of traditional
collective rights, associated to public policies aiming the recognition of traditional
communities' rights over their own land, culture and knowledge. Requirements'
deficiencies are yet to be analyzed for genetic resources access granting and traditional
knowledge, under the responsibility of the Genetic Asset Management Council
(Conselho de Gestão do Patrimônio Genético CGEN) and the INPI (Instituto
Nacional de Propriedade Industrial or Intellectual property National Institute) in regard
of biopiracy. Therefore, this study combines theoretical and methodological tools of
anthropology, social sciences, environmental sciences and Law so that, under an
interdisciplinary lens, one could reflect about the access to traditional knowledge and
the patent system.
Key Words: Traditional Knowledge, Intellectual Property and Patent.
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
Art. - Artigo
Dec. - Decreto
CDB - Convenção sobre Diversidade Biológica
CGEN - Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
ECO-92 - Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
MP - Medida Provisória
Res.- Resolução
CUP - Convenção da União de Paris
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CPIBIOPI - CPI da Biopirataria
FMI - Fundo Monetário Internacional
GATT - General Agreement on Trades and Tarifs/Acordo Geral de Tarifas e Comércio
INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial
ISA - Instituto Socioambiental
LPI - Lei de Propriedade Intelectual
TRIPS - Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights/Acordo sobre a Proteção
da Propriedade Intelectual
OMC - Organização Mundial do Comércio
OMPI - Organização Mundial da Propriedade Intelectual
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13
CAPÍTULO I CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CONHECIMENTO
TRADICIONAL ............................................................................................................. 16
1.1 Apresentação do tema ............................................................................................... 16
1.2 Espécies e valorização das sociedades tradicionais .................................................. 25
1.3 Associação da biodiversidade e conhecimento tradicional ...................................... 31
CAPÍTULO II PROPRIEDADE INDUSTRIAL EM BIOTECNOLOGIA ............... 39
2.1 O sistema de patentes ............................................................................................... 39
2.2 Requisitos da patente ................................................................................................ 47
2.3 Propriedade intelectual e biotecnologia: os artigos da lei de propriedade intelectual
........................................................................................................................................ 55
CAPÍTULO III RECURSOS GENÉTICOS E PROPRIEDADE INDUSTRIAL: A
MEDIDA PROVISÓRIA 2.186/01 ................................................................................ 61
3.1 O surgimento da Medida Provisória 2.186/01 .......................................................... 61
3.2 Conhecimentos tradicionais e propriedade intelectual: uma análise da Medida
Provisória 2.186/01 e da Lei 9.279/96 (LPI) .................................................................. 68
3.3 Um regime sui generis de proteção do conhecimento tradicional............................ 84
CAPÍTULO IV CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
(CGEN) E O INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI):
BIOPIRATARIA ............................................................................................................ 88
4.1 Conflitos entre o CGEN e o INPI: biopirataria ........................................................ 88
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 103
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 106
ANEXOS ...................................................................................................................... 116
MEDIDA PROVISÓRIA N
o
2.186-16, DE 23 DE AGOSTO DE 2001 ..................... 116
CARTA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO ................................................................ 132
RESOLUÇÃO Nº 23, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2006 .......................................... 135
RESOLUÇÃO Nº 34, DE 12 DE FEVEREIRO DE 2009. .......................................... 136
RESOLUÇÃO 134/06 INPI ......................................................................................... 137
RESOLUÇÃO Nº 207/09 ............................................................................................. 138
13
INTRODUÇÃO
As novas tecnologias em matéria genética e biológica alimentam as esperanças
de uma melhora significativa na qualidade de vida. Os estudos em biotecnologia,
engenharia genética e bioprospecção
1
impulsionaram o mercado tecnológico que utiliza
como matéria-prima organismos vivos, sementes e plantas para obtenção de novos
produtos, principalmente na área dos fármacos. As empresas farmacêuticas buscam
através das pesquisas realizadas nas comunidades tradicionais substâncias que
contenham novos princípios ativos aptos a serem patenteados e comercializados,
utilizando sobretudo como matériaprima, os recursos naturais encontrados na
biodiversidade.
A chegada de novas biotecnologias gerou pressões para a sua incorporação em
transações de mercado e a privatização de recursos genéticos. Essa mudança de
paradigma tecnológico implica novos regimes de apropriação e, portanto, a necessidade
de adaptação dos sistemas de Direitos de Propriedade Intelectual (DPI), com vistas a
criar mecanismos de proteção relativos às biotecnologias, aos organismos vivos e à
informação genética que estes contêm, bem como o conjunto das aplicações permitidas.
O ponto fundamental e preocupante desse avanço em termos de biotecnologia, e a sua
regulação por meio das patentes, consiste no fato de que a biodiversidade e o
conhecimento tradicional não poderem ser considerados patrimônio particular, pois
constituem uma herança coletiva e o sistema patentário foi formulado tendo como base
a garantia dos direitos individuais.
Durante muito tempo, o conhecimento tradicional foi visto como um
conhecimento de menor importância, desprovido de racionalidade, mas atualmente vem
1
Bioprospecção é definida como sendo a atividade exploratória que visa identificar um componente da
natureza, para sua aplicação industrial. A palavra vem do verbo prospectar, que logo relacionamos à
prospecção de petróleo. Trata-se de um neologismo que pode ser empregado para busca, na floresta, de
espécies uteis ao homem, da mesma forma que se busca petróleo em uma determinada região, sem ter
certeza que se encontrará algo. Quando se sabe a utilidade de uma planta, utiliza-se a expressão acessar
recurso genético”, que é a obtenção de uma das várias amostras para fins de pesquisa ou desenvolvimento
cientifico e tecnológico. VARELLA, Marcelo Dias. Algumas ponderações sobre as normas de controle
do acesso aos recursos genéticos. In: Série Grandes Eventos: Meio Ambiente. Escola Superior do
Ministério Publico da Uniao ESMPU. Brasília, 2004. Disponível em: http://www.
espmu.gov.br/publicações/meioambiente/ pdf/Marcelo_Dias_Varella_MPU_recursos_genéticos.Acesso
em 07.02.2010.
14
se revelando como verdadeira fonte de pesquisa e aprendizagem. Caracteriza-se pelas
inovações oriundas das práticas desenvolvidas em comunidades adaptadas à cultura
local, que se transmitem oralmente através de séculos, de geração em geração, tomando
forma de história, crenças, ritos, ditados, folclore, leis, idiomas, práticas agrícolas,
medicamentos etc. Todo esse arcabouço tornou-se atualmente uma importante fonte
econômica, que vem sendo explorada por meio de pesquisas científicas e tecnológicas.
O tema vem sendo debatido em inúmeras discussões realizadas a partir da
Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB)
2
ocorrida em 1992, na cidade do Rio
de Janeiro, ocasião em que o Brasil assumiu, juntamente com 188 países, o
compromisso de estabelecer as regras para o acesso aos recursos genéticos e de proteção
aos saberes tradicionais das comunidades locais e dos povos indígenas.
Antes da CDB, os recursos genéticos e saberes tradicionais eram tidos como
bens comuns da humanidade, artifício que era usado para justificar o livre acesso aos
recursos genéticos e saberes tradicionais. A partir de 1992, o acesso à biodiversidade e
aos saberes, até então considerado um regime aberto, ainda que culturalmente regulado
por normas costumeiras, foi sendo modificado, especialmente com a regulamentação
das normas previstas pela CDB.
Um dos aspectos mais importantes da regulamentação internacional consiste no
reconhecimento, no preâmbulo da CDB, da estreita e tradicional dependência de
recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilo de
vida tradicionais. O artigo 8 (j) estabelece que os países signatários devem “respeitar,
preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e
populações indígenas com estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e
utilização sustentável da diversidade biológica”, bem como “incentivar sua mais ampla
aplicação com aprovação e participação dos detentores desse conhecimento, inovações e
práticas”, e encorajar a repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos da sua
utilização.
2
WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Biodiversidade e Conhecimento Tradicional. In: CARVALHO,
Patrícia Luciane de (coord.). Propriedade Intelectual: Estudos em Homenagem à Professora Maristela
Basso. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 326-346. “O Decreto Legislativo 2, de 1994 aprovou o texto da
Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada durantes a Conferencia das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro, ao período de 05 a 14.06.1992, que
estabeleceu em seu artigo 1° os objetivos a serem cumpridos pelos signatários, como sendo a conservação
da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa de
benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos
recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os
direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado”.
15
No Brasil, a proteção ao acesso ao patrimônio genético
3
e conhecimento
tradicional associado é regulada pela Medida Provisória 2.186/01
4
, que estabeleceu
como competência da União a autorização para o uso, comercialização e
aproveitamento para quaisquer fins submetidos à fiscalização, restrições e repartição de
benefícios oriundos do acesso ao patrimônio genético
5
. Vale ressaltar que esta medida
provisória não se aplica ao patrimônio genético humano, sendo também vedado seu uso
para práticas nocivas ao meio ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de
armas biológicas e químicas.
Diante das importantes e recentes alterações no marco regulatório que disciplina
a matéria, o presente estudo pretende abordar a questão da proteção do conhecimento
tradicional por meio do instituto jurídico de propriedade intelectual, precisamente as
patentes, relacionando às incompatibilidades existentes entre a Medida Provisória
2.186/01 que regulamenta o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional
em relação à referida Lei de Propriedade Intelectual (9.279/96).
Apontaremos, inicialmente, a crescente valorização do conhecimento tradicional
e a expansão do interesse do mercado do ramo da biotecnologia em realizar pesquisas
baseadas nas práticas tradicionais. Em seguida, trataremos do tema da propriedade
intelectual, abordando os requisitos de patenteabilidade, salientando o caráter
eminentemente individual de suas regras, contrastando com as características próprias
dos conhecimentos tradicionais, reconhecidos eminentemente pelo seu aspecto coletivo,
com base de troca e circulação de idéias livres.
Abordaremos o tratamento dado ao tema do conhecimento tradicional e acesso
ao patrimônio genético pela Medida Provisória 2.186/01, ressaltando sua origem e
particularidades. Analisaremos, ainda, a possibilidade de um mecanismo sui generis de
proteção ao conhecimento tradicional como uma forma de se evitar o monopólio
estabelecido pelo sistema individualista das patentes, priorizando regras de combate a
biopirataria.
3
Patrimônio genético é definido pela Medida Provisória 2.186/01 em seu artigo 7°, I: “patrimônio
genético: informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal,
fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes
seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ,
inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no
território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva”.
4
MP 2.186/01, em anexo.
5
Artigo 2° da Medida provisória 2.186/01.
16
Por fim, trataremos do conflito existente entre o Conselho de Gestão do
patrimônio Genético (CGEN) e o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial),
discutindo suas atribuições e ineficiências no tratamento do acesso ao patrimônio
genético e ao conhecimento tradicional em relação à concessão do benefício da patente.
CAPÍTULO I CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CONHECIMENTO
TRADICIONAL
1.1 Apresentação do tema
Existem muitas propostas de definição sobre o que vem a ser conhecimento
tradicional ou saber tradicional, expressão muito utilizada por antropólogos com
diferentes fundamentos, seja no plano social, político ou econômico.
O saber tradicional como sistema de conhecimento
6
constitui-se num modelo
complexo e dinâmico, baseado na cultura e organização social das populações
tradicionais. Tais saberes apresentam-se diretamente ligados aos territórios ocupados
pelas populações tradicionais e aos seus respectivos meios de sobrevivência, produção e
manejo diário dos recursos naturais. A tecnologia utilizada por essas populações é
relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente, diríamos até que
atuam de forma instintiva, por uma questão de sobrevivência
7
. Em geral, nota-se uma
reduzida divisão técnica e social de trabalho, reproduzida de geração em geração por via
6
REZENDE, Enio Antunes. Biopirataria ou Bioprospecção? Uma análise critica da gestão do saber
tradicional no Brasil.Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia Escola de Administração,
2008. p. 76.
7
Para uma análise reflexiva sobre o progresso tecnológico como fenômeno social, ver PINTO, Álvaro
Vieira. O Conceito de Tecnologia. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 305. “O homem tem de
pesquisar o mundo onde está para nele produzir condições que lhe permitam sobreviver. São condições de
duas espécies. Uma, evidentemente, refere-se à modificação do meio externo para transformá-lo de hostil
em favorável. Assim, descobre o fogo, as armas eficientes para a caça, constroem abrigos contra o clima e
demais modificações da natureza. Mas, ao lado dessas alterações exteriores, e acompanhando-as, numa
relação dialética de causa e efeito, geram-se modificações interiores na percepção da realidade pelo ser
cada vez mais dotado de razão reflexiva. (...) A ação técnica transmuta-se então de fim de uma pesquisa
acabada em meio para nova pesquisa, a ser iniciada. Nessa transmutação consiste a marcha do processo
do conhecimento, que ao mesmo tempo humaniza o homem, pelo melhor conhecimento da natureza, e a
própria natureza, pelo melhor acolhimento que permite oferecer à vida humana e ao desempenho das
ações essencialmente humanas, entre elas o trabalho interminável da pesquisa da realidade”.
17
oral, sendo de grande importância as relações de parentesco travadas e a unidade
familiar.
Temos o saber tradicional como mercadoria fruto da crescente comercialização
das técnicas adquiridas por essas populações, que inovam e recriam uma ciência viva,
semeada e cultivada com tradição de acordo com a variabilidade de recursos naturais
encontrados no território que ocupam. o estamos falando de um conhecimento
estático e arquivado, mas de saberes com estilo de vida tradicional que estão em
constante modificação, promovendo biodiversidade, despertando grande interesse
comercial
8
. Fundamentalmente, é sobre este saber tradicional, o comercializável, que
trataremos ao longo do trabalho, com todos os contornos normativos que o tema propõe.
Referimo-nos também ao saber tradicional como ferramenta política, entendido
como um elemento eminentemente discursivo empregado pelas populações tradicionais
e povos indígenas, visando à reconquista e a demarcação de territórios e à recompensa
financeira devida pelo emprego de seu conhecimento no processo de inovação
tecnológica. De maneira geral, essa é a perspectiva das lideranças das populações
tradicionais e povos indígenas, que visam basicamente a garantir o seu direito à
autodeterminação, e seus direitos costumeiros
9
.
Vale adiantar que a questão territorial para a proteção do conhecimento
tradicional é de suma importância, primeiro pelo fato de que um território surge
diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social, o que implica a
consideração de que qualquer território é como um produto histórico de processos
8
O maior potencial econômico da biodiversidade está na descoberta de novas drogas, a partir de recursos
biológicos. Calcula-se que, no mercado mundial de medicamentos, estimados em mais de US$ 406
bilhões anuais, 40% dos remédios provêm, direta e indiretamente de fontes naturais (cerca de 30% origem
vegetal, e 10% proveniente de espécies animais e de microorganismos). o mercado brasileiro de
medicamentos movimentou US$ 25,5 bilhões em 2008. Dados do Sindicato dos Químicos e Plásticos de
São Paulo e Região. Setor Farmacêutico cresce e fatura em 2007. Noticias on line. São Paulo, 10 de
março de 2008. Disponível em: <http://www.quimicosp.org.br/noticia. php>. Acesso em: 03.05.2009.
Para o aprofundamento do conceito, ver: WILSON, Edward Osborne. Diversidade da Vida. Tradução
Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 343. “À medida que os inventários
de espécies aumentam, vão abrindo caminho para análises bioeconômicas, isto é, para uma ampla
avaliação do potencial econômico de ecossistemas inteiros. Toda comunidade de organismos contém
espécies com valor potencial de mercado madeira e produtos silvestres que podem ser colhidos
de maneira sistemática; sementes e mudas que podem ser transplantadas para o cultivo de produtos
agrícolas e plantas ornamentais para outros lugares; fungos e microorganismos que podem ser cultivados
como fonte de medicamentos (...). A decisão de tornar a análise bioeconômica uma parte rotineira das
políticas de gerenciamento ambiental irá proteger os ecossistemas atribuindo a eles um valor futuro.
Talvez isso nos faça ganhar tempo e impeça a remoção das comunidades inteiras de organismos que a
nossa ignorância supõe não ter valor”.
9
Ibid, p. 76.
18
sociais e políticos
10
. Ressalte-se, ainda, que a auto-suficiência da população tradicional
depende totalmente dos recursos naturais disponíveis no local em que vivem. Esta
integração entre as populações tradicionais e o espaço onde o grupo social se reproduz
econômica e socialmente se por vários motivos, entre eles, pela importância dos
símbolos, mitos e rituais associados à caça, à pesca e à atividade extrativista realizada
por vários anos no local, pela moradia e ocupação desse território por várias gerações,
de suma importância para a unidade familiar, para o exercício de sua própria
subsistência, entre outros.
Portanto, o território ocupado pelos povos tradicionais se fundamenta em
décadas, em alguns casos, séculos de ocupação efetiva. A longa duração dessas
ocupações fornece um peso histórico às suas reivindicações.
No caso das sociedades indígenas
11
, “o território está ligado a uma história
cultural” na qual cada sítio de aldeia está historicamente vinculado aos seus habitantes,
de modo que o passar do tempo não apaga o conhecimento deste grupo, que mantém
viva a memória dos seus ancestrais
12
.
Nesse contexto, oportuno apresentar a distinção entre conhecimento
tradicional
13
, conhecimento indígena e até mesmo conhecimento científico, expressões
utilizadas na literatura, em alguns acordos internacionais e na legislação brasileira,
como veremos ao longo da exposição.
Os detentores do conhecimento tradicional contam com práticas, crenças e
rituais adquiridos e repassados de geração em geração. Deve-se levar em conta, ainda,
que tal conhecimento caracteriza-se como algo criado de modo coletivo e, como tal,
constantemente modificado, adequado e construído com base nos saberes existentes,
10
LITLLE, Paul E. Territórios Sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da
territorialidade. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. p. 03.
11
LITTLE, Paul E, op.cit., p. 11.
12
RAMOS, Alcida. Sociedades indígenas. São Paulo: Ática, 1986. p. 19-20.
13
Para iniciar a compreensão do tema: NEVES, João; POHL, Luciene. A difícil tarefa de explicar
conhecimentos e garantir participação informada. In: BENSUSAN, Nurit [et al.]. Biodiversidade: é para
comer, vestir ou para passar no cabelo? Para mudar o mundo. São Paulo: Peirópolis, 2006. p. 342-348.
“O conhecimento tradicional tem sido objeto de intensas discussões e tentativas frustradas de definição, e
qualquer conceito dificilmente englobará todas as dimensões que m implicações diretas sobre o tema.
alguns aspectos, entretanto, que devem ser considerados. O ponto de partida para pensar em
conhecimento é compreender que nós, membros das chamadas populações indígenas e tradicionais, temos
uma concepção ampla da natureza, que inclui e inter-relaciona ser humano, flora, fauna, e, por ser assim,
desenvolvemos tecnologias, sistemas e usos próprios de acordo com as nossas culturas. (...) O
conhecimento tradicional também é uma forma de herança passada por rias gerações, o que denota a
sua condição coletiva. a responsabilidade de todo o povo em dar continuidade àquelas tradições (...),
cabe a cada herdeiro‟ a missão pela perpetuação da existência dos conhecimentos.”
19
justificando-se, assim, o seu dinamismo e valor cumulativo. O contexto desse
conhecimento é sem dúvida o ambiente local, com todos os seus aspectos culturais,
sociais, físicos e econômicos
14
. A tradicionalidade da população não se configura
apenas pela antiguidade do grupo, mas pela forma como este utiliza e compartilha seu
conhecimento. Deriva de experiências vividas em um determinado habitat e em
condições singulares, como por exemplo o fato de se viver em uma selva tropical, nas
margens de um rio, mar ou lago, em condições climáticas especiais como nos pólos, nas
montanhas, nos mangues, entre outros. Além de o conhecimento tradicional conferir aos
seus titulares uma identificação cultural, tem um valor econômico real e potencial no
mercado. Geralmente é aplicado na medicina, agricultura, gestão do meio ambiente,
produção de alimentos, e nos mais variados ramos comerciais.
Grande parte da doutrina refere-se ao conhecimento indígena como uma espécie
de conhecimento tradicional. Nosso trabalho seguirá o mesmo entendimento de que o
conhecimento indígena é uma espécie de conhecimento tradicional, abrangendo também
os ribeirinhos, os quilombolas, entre outros. A distinção entre conhecimento indígena e
tradicional aponta para o fato de que os detentores do conhecimento indígena têm
reivindicações políticas mais amplas que as comunidades tradicionais
15
. De fato, a
sociedade contemporânea convive com uma demanda indígena concreta nos fóruns
mundiais, no Estado Nacional, nos trabalhos de ONGS, entre outros, buscando
sistematizar um mecanismo jurídico que proteja seus conhecimentos. Como observa
Margarita Alonso Florez
16
:
O tema da proteção da biodiversidade é cultural, gerou alianças entre
organizações ambientalistas e grupos de povos indígenas e
comunidades tradicionais com o objetivo de afirmar os seus pontos de
vistas nos círculos internacionais de negociação. Essa luta combinada
entre atores sociais tem sido da maior importância e se, por um lado,
vem reforçar a idéia de que os indígenas e as comunidades
tradicionais devem representar de certa forma as aspirações
ambientais às quais seria necessário voltar a manter, por outro lado
vem corroborar a idéia de que estes povos e comunidades terão de
apoiar e partir da experiência que as organizações não-governamentais
adquiriram para chegar os seus pontos de vista até as instancias que
não os têm em conta”.
14
GERMAN, Castelli; WILKINSON, John. Conhecimento tradicional, inovação e direitos de proteção.
Estudos Sociedade e Agricultura, n. 19, 2002. p. 89-112.
15
Ibid., p. 101.
16
FLOREZ, Margatita Alonso. Proteção do conhecimento tradicional. In: SOUSA SANTOS, Boaventura
de (org.), op. cit., 2005. p. 308.
20
Reforçando este entendimento sobre as populações tradicionais, Diegues e
Arruda propõem a seguinte definição
17
:
São grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que
reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou
menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com
a natureza. Tal noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a
segmentos da população nacional que desenvolveram modos
particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos.
Temos, então, que as comunidades tradicionais receberam forte influência da
população indígena, até porque muitas vezes habitam a mesma região, utilizando as
técnicas regionais de caça, pesca, construção e artesanatos, sendo que a diferença mais
marcante entre essas populações se dá por meio da linguagem.
Já o conhecimento científico, diferentemente do conhecimento tradicional, é
baseado no raciocínio lógico, deriva de certa racionalidade, é seqüencial (produzido
num determinado lugar e num determinado tempo), é mais explícito e objetivo, por ser
codificado é transformado em informação e manipulado como tal. Portanto, se aproxima
das características de uma mercadoria. O saber tradicional é mais intuitivo, as
explicações de fenômenos ambientais não obedecem à forma analítica, são baseados em
experiências coletivas cumulativas. No conhecimento tradicional, todos os elementos do
conhecimento estão interligados e não podem ser entendidos de forma isolada, enquanto
o conhecimento científico trabalha um modelo reducionista, armazenando dados
isolados para formar um todo.
Deve-se ressaltar que, entre os cientistas sociais e ambientais, a noção de
conhecimento tradicional está bem aceita e definida. Entretanto, no Direito ainda são
dados os primeiros passos na formulação e compreensão de uma definição jurídica do
tema.
De acordo com Juliana Santilli
18
:
O conceito de populações tradicionais é desenvolvido pelas ciências
sociais e incorporado ao ordenamento jurídico, pode ser
compreendido com base na interface entre biodiversidade e
sociodiversidade. Entre os cientistas sociais e ambientais, a categoria
populações tradicionais já é relativamente bem aceita e definida.
Ainda que alguns antropólogos apontem as dificuldades geradas pela
forte tendência à associação com concepções de imobilidade histórica
17
DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S. V. (orgs). Saberes tradicionais e biodiversidade no
Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, São Paulo: USP, 2001. p. 26.
18
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005. p. 124-125.
21
e atraso econômico e considerem o conceito problemático em face da
forma diversificada e desigual com que os segmentos sociais se
inserem na Amazônia socioambiental, a categoria populações
tradicionais tem sido bastante reconhecida em sua dimensão política e
estratégica.
O termo socioambientalismo, como preferem alguns autores, nasceu atrelado à
idéia de que as políticas públicas voltadas para a sustentabilidade ambiental devem
também associar a sustentabilidade social
19
. O intuito é promover valores de justiça
social, dignidade humana, consolidando o processo democrático do país, com ampla
participação social na gestão ambiental.
20
Trataremos agora das definições no campo jurídico, apresentando alguns
instrumentos legais que fazem referência ao tema do conhecimento tradicional.
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha proposto que o Poder Público
fiscalize as entidades de pesquisa e manipulação de material genético (art. 225, § 1º,
II)
21
promovendo a sua utilização sustentável, o governo do Brasil veio regular a
matéria (acesso e uso da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado ao
patrimônio genético) em 2001, por meio da Medida Provisória 2.186/01, conceituando o
tema em seu artigo 7º, II: “conhecimento tradicional associado: informação ou prática
individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real
ou potencial, associada ao patrimônio genético”
22
.
19
SOARES, Inês Virginia Prado. Meio Ambiente e Orçamento Público. In: KISHI, Sandra Akemi S.;
SILVA, Solange Teles da (orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem
a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 553-578: “A realização de políticas
ambientais depende prioritariamente dos recursos financeiros, tanto nas tarefas típicas do Estado de
fiscalização quanto nas tarefas que podem ser realizadas em conjunto Estado/sociedade: educação
ambiental, informação, preservação, conservação etc. (...) A busca do desenvolvimento sustentável e a
constante necessidade de acomodação entre o desenvolvimento dos setores produtivos e o direito ao meio
ambiente sadio exigem do Estado tanto uma ação positiva no sentido de investimento financeiro, (...)
quanto negativa, de não financiar (ou mesmo, renunciar receitas fiscais) as atividades produtivas que não
guardem pertinência com o desenvolvimento sustentável e degradem o meio ambiente”.
20
Ibid., loc. cit.
21
Artigo 225, II, da Constituição Federal: “Todos m direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;”
22
O Patrimônio genético também é definido na MP 2.186/01, artigo 7º, inciso I: “Patrimônio Genético:
informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico,
microbiano ou animal, na forma de moléculas e substancias provenientes do metabolismo destes seres
vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ,
inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no
território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva”.
22
No plano internacional, o PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente
23
define conhecimento tradicional como sendo
Um corpo de conhecimento construído por um grupo de pessoas
através de sua vivência em contato próximo com a natureza por várias
gerações. Ele inclui um sistema de classificação, um conjunto de
observações empíricas sobre o ambiente local e um sistema de auto-
manejo que governa o uso dos recursos.
a Lei 9.985/2000, que trata do Sistema Nacional das Unidades de
Conservação da Natureza (SNUC), menciona, em seu artigo 20, as populações
tradicionais, associando-as ao modo sustentável de exploração de recursos naturais:
A reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que
abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao
longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que
desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na
manutenção da diversidade biológica.
Temos, também, a Portaria 22/92, do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais), que criou o Centro Nacional do Desenvolvimento
Sustentado das Populações Tradicionais
24
, estabelecendo a seguinte definição:
“comunidades que tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no
extrativismo de bens naturais renováveis”. Não temos aqui uma definição estritamente
jurídica, mas a regra aponta com clareza a total dependência que as populações
tradicionais têm em relação à biodiversidade local, privilegiando a interação do homem
com a natureza e a preocupação com a valorização da sociodiversidade regional com
desenvolvimento sustentável.
No mesmo sentido, a Lei 11.428/2006, que trata da utilização e proteção da
vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, assim dispõe:
Art. 3
o
Consideram-se para os efeitos desta Lei:
II - população tradicional: população vivendo em estreita relação com
o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua
reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto
ambiental.
23
O PNUMA, estabelecido em 1972, é a agência do Sistema ONU responsável por catalisar a ação
internacional e nacional para a proteção do meio ambiente no contexto do desenvolvimento sustentável.
24
O CNPT, criado pelo IBAMA pela Portaria 22/92, tem como finalidade promover a elaboração,
implantação e implementação de planos, programas, projetos e ações demandadas pelas Populações
Tradicionais através de suas entidades representativas e/ou indiretamente, através dos Órgãos
Governamentais constituídos para este fim, ou ainda, por meio de Organizações não Governamentais.
23
Posteriormente surge o Decreto 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT),
importante passo para o reconhecimento e a tutela dos direitos dessa coletividade.
O Decreto definiu o conceito de povos e comunidades tradicionais além de
reafirmar que tais coletividades são detentoras de territórios, conceituando-se também
este espo, sem prejuízo das conceituações oriundas de atos normativos de
competência estadual ou de outros órgãos governamentais. O mérito desse Decreto está
no reconhecimento da diversidade presente entre os grupos, como os quilombolas,
ribeirinhos, indígenas, babaçueiros, entres outros. O referido conceito é compreendido
pelo artigo 3º, inciso I e II, que assim dispõem:
I Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
II Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução
cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais,
sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado,
no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas,
respectivamente, o que dispõem os artigos 231
25
da Constituição e
68
26
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais
regulamentações;
Apesar das diversas denominações usadas na doutrina e na legislação, quais
sejam: saber local, saber tradicional, conhecimento local, conhecimento indígena,
25
Artigo 231 da Constituição Federal: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § São terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes
o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § O aproveitamento dos
recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras
indígenas podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § As terras de
que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § É
vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em
caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País,
após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que
cesse o risco. § São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais
do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
26
Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
24
conhecimento ecológico tradicional, entre outras, para o nosso estudo, todas, apesar dos
enfoques distintos, possuem um valor significativo, portanto, nossa análise deverá ter
uma visão macro do que é conhecimento tradicional, devendo revelar em que a Medida
Provisória 2.186/01 regula o acesso e a proteção do conhecimento tradicional concedido
por meio de patente para monopólio e exploração comercial.
Nossa preocupação em explicitar as definições do que vem a ser conhecimento
tradicional se pela complexidade jurídica e política dos assuntos que atualmente
envolvem o tema, reconhecendo-se, em primeiro lugar, a valorização do saber, a
consolidação do processo democrático de participação social e a gestão de políticas
públicas relacionadas à sustentabilidade.
De acordo com o entendimento de Paulo de Bessa Antunes
27
,
o chamado conhecimento tradicional associado, nos termos da lei
brasileira, é a informação ou pratica individual ou coletiva de
comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou
potencial, associada o patrimônio genético. O conceito normativo não
é de simples compreensão, ou mesmo de singela aplicação. O sujeito
de direito que se pretende tutelar não é uma pessoa física ou jurídica,
mas uma comunidade que vive de forma tradicional ou diferenciada
da sociedade envolvente. A nota mais marcante do conhecimento
tradicional é a sua característica coletiva.
Essa abordagem inicial sobre o tema do conhecimento tradicional
28
busca
ressaltar as conotações que são dadas quando o assunto é proteção e integração das
comunidades detentoras do saber tradicional. O que temos atualmente é uma oscilação
na valorização do saber tradicional: ora nega-se sua contribuição para a ciência, seja
pelo seu modo de inovar as pesquisas com técnicas simples e rudimentares, ora essas
pesquisas são supervalorizadas, tornando-se fontes de sabedoria aptas a serem
monopolizadas por terceiros. Ora, é inegável a importância do potencial econômico do
27
ANTUNES, Paulo de Bessa. Diversidade Biogica e Conhecimento Tradicional Associado. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 117-118.
28
Sobre conhecimento tradicional temos ainda algumas classificações segundo a matéria a ser tratada.
Tais como: a) conhecimentos tradicionais relacionados a biodiversidade: se referem as práticas e saberes
sobre gestão, conservação e utilização sustentável da diversidade biológica e seus componentes; b)
conhecimentos tradicionais medicinais: todo conhecimento e manejo de enfermidades utilizando
variedades de plantas; c) conhecimento tradicional relativos ao ecossistema: conhecimentos referentes a
bosques, ecossistemas de terras áridas e estepes, marinhos e costeiros, vales e floresta tropical, águas
continentais e ecossistema ártico; d) conhecimento tradicional dos recursos filogenéticos: conhecimento
sobre a variedade de alimentos (conhecimento agrícola) e valor nutricional, energético, conhecimento
sobre sementes, técnicas de cultivo e melhoramento. Podemos inclui também as expressões folclóricas
manifestada por práticas, costumes, danças, artesanatos, pintura, teatro, literatura, etc. ORREGO, Carlos
Ernesto Restrepo. Apropriación indebida de recursos genético, biodiversidad y conocimientos
tradicionales: biopirateria. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito. Universidad Externado de
Colômbia, 2006. p. 88.
25
conhecimento tradicional. Muitas empresas que têm interesse em utilizar esse
conhecimento para a produção de remédios, cosméticos, alimentos, além de agências
financiadoras de pesquisa, têm firmado contratos estabelecendo direitos e deveres sobre
possíveis produtos passíveis de exploração econômica e de proteção por direitos de
propriedade intelectual. A matéria-prima, no caso a biodiversidade, passou a ter maior
valor de mercado, e conseqüentemente, mais atenção dos países detentores, o que fez
com que se buscassem regras para a sua exploração, razão pela qual o tema é objeto de
nossa investigação.
1.2 Espécies e valorização das sociedades tradicionais
O reconhecimento dado às populações tradicionais pode ser visto em várias
modalidades. Neste item faremos uma breve análise sobre algumas espécies de
comunidades tradicionais e seus respectivos instrumentos jurídicos de proteção e
valorização, tendo em vista suas particularidades e a sua importância para o
desenvolvimento do tema.
Iniciaremos pelas comunidades quilombolas, notadamente conhecidas como
grupos sociais cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade. Na definição
da Associação Brasileira de Antropologia, as comunidades quilombolas “consistem em
grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus
modos de vida característicos num determinado lugar”
29
. Sua identidade se define “pela
experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da
continuidade enquanto grupo. Trata-se, portanto, de uma referência histórica comum,
construída a partir de vivência e valores partilhados”
30
.
As pesquisas mais recentes sobre esses grupos sociais revelam a variedade de
formas pelas quais estes conseguiram a liberdade e os seus respectivos territórios. Não
se sabe ao certo quantas comunidades quilombolas existem no Brasil, uma vez que o
Estado brasileiro não possui um censo nacional da população quilombola. “O Cadastro
Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos” sob a responsabilidade da
29
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Documento do grupo de trabalho sobre
Comunidades Negras Rurais, Rio de Janeiro, outubro/94. p. 08-10.
30
Ibidem.
26
Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cultura registra a
existência 1.228 comunidades quilombolas
31
.
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas aponta, no entanto, a existência de mais de três mil comunidades,
distribuídas por todas as regiões do país.
Os quilombos gozam de um regime jurídico privilegiado em relação às
populações tradicionais, que não têm direitos territoriais expressamente assegurados
pela Constituição.
32
Vale ressaltar que, a partir da Constituição Federal de 1988, às comunidades
quilombolas foi garantido o direito de propriedade de seus territórios. O artigo 68 do
Ato das disposições Constitucionais Transitórias
33
reconhece a importância dessas
comunidades para o patrimônio cultural brasileiro, assegurando-lhes o pleno exercício
dos direitos culturais (artigos 215 e 216)
34
. O procedimento para a identificação e a
titulação das terras quilombolas encontra-se disposto no Decreto 4.887/2003 e na
Instrução Normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
20/2005.
O Decreto 4.887/2003 estabeleceu a seguinte definição de remanescentes das
comunidades quilombos: “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
31
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Disponível em: <www.palmares.gov.br>. Acesso em:
16.04.2009.
32
SANTILLI, Juliana, op.cit., p. 169.
33
Como mencionado anteriormente o art. 68 (ADCT) estabelece que “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.
34
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes
segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
§ - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas
de acautelamento e preservação.
27
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionadas com a resistência à opressão histórica
sofrida”
35
.
Pela Medida Provisória 2.186-14, os remanescentes de quilombos também têm
seu reconhecimento assegurado
36
como depositários de conhecimentos tradicionais
associados à diversidade biológica. muitos desafios que ainda hoje se apresentam na
luta dos remanescentes quilombos pelo seu território, pela sua cultura e pelo seu
reconhecimento. Não abordaremos aqui as questões de territorialidade, pontuaremos,
apenas, as questões relativas ao conhecimento tradicional oriundo dessas comunidades e
a sua importância para o manejo e sustentabilidade das áreas que habitam.
Um caso típico de comunidade quilombola é a comunidade Kalunga
37
,
reconhecida oficialmente pelo Governo do Estado de Goiás como sítio histórico que
abriga o Patrimônio Cultural Kalunga. Constituindo-se na maior área de remanescentes
de quilombolas do Brasil, apresentam potencial para o desenvolvimento de uma
agricultura voltada para um mercado diferenciado, pelas próprias aptidões adquiridas
com o manejo da biodiversidade. Trata-se de uma sociedade com pticas voltadas para
a agroecologia, artesanato e turismo etnocultural. Além disso, a comunidade tem acesso
a um número extraordinário de plantas encontradas na região e as utiliza
35
Decreto 4.887/03, art. 2º.
36
“Art.Além dos conceitos e das definições constantes da Convenção sobre Diversidade Biológica,
considera-se para os fins desta Medida Provisória: III - comunidade local: grupo humano, incluindo
remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza,
tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e
econômicas;”
37
THEODORO, Luis Carlos Lisbôa. A construção de parcerias para viabilizar projetos de produção de
energia em comunidades quilombolas e de favelas no Brasil. Dissertação de mestrado ao Programa de
pós-graduação em Engenharia de Energia, Universidade Federal de Itajubá, 2006, Itajubá - MG. p. 23-37.
“A Comunidade Kalunga vive numa área de cerca de 237 mil hectares, no norte do Estado de Goiás, a
375 quilômetros de Brasília/DF. Nesse território, que abrange parte dos municípios goianos de
Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, constam cerca de 50 núcleos comunitários, com seus
respectivos grupos de base familiar, os quais, juntos, constituem cerca de 5.000 habitantes. Segundo
informações obtidas em levantamento de campo, nos últimos 30 anos, a tradição da cultura Kalunga vem
sendo ameaçada pela chegada de cerca de cinqüenta fazendeiros que controlam quase metade da área
quilombola demarcada. As atividades agrícolas desenvolvidas por esses „forasteiros‟ não levam em
consideração as aptidões e restrições ambientais do bioma Cerrado, colocando em risco a sobrevivência
futura de todo o território Kalunga. Ao longo da realização da pesquisa de campo, foi possível perceber
que, por falta de recursos, os jovens deixam de lado tradições centenárias e vão trabalhar nas grandes
propriedades rurais das regiões vizinhas. Dentre suas características culturais, apesar das dificuldades,
observa-se um entusiasmo constante, idoneidade, identidade própria, expectativa de progredir; forte
sentimento de família, de respeito entre as famílias, além de uma efetiva participação das mulheres na
vida comunitária e considerável espírito comunitário com capacidade para viver coletivamente,bem como
expressivos valores culturais, tais como a religiosidade, o apego às tradições culturais, o respeito às raízes
e a sabedoria ancestral”.
28
medicinalmente, fato que desperta grande interesse na indústria farmacêutica, sobretudo
em função de seu potencial para a biotecnologia atual.
Considerando que os quilombos se formam em um ambiente em que as
dimensões sócio-políticas, econômicas e culturais são significativas para a construção e
atualização de sua identidade, a reprodução física e cultural de cada grupo
étnico/tradicional, bem como a garantia da melhoria da qualidade de vida de seus
habitantes, homens e mulheres, as especificidades sócio-culturais de cada comunidade
quilombola devem ser valorizadas e priorizadas quando do planejamento de qualquer
modelo de desenvolvimento sustentável
38
.
No que diz respeito às comunidades indígenas, as mesmas são grandes
provedoras de conhecimento tradicional. De todos os povos tradicionais, os povos
indígenas foram os primeiros a obter o reconhecimento de suas diferenças étnicas e
territoriais, especialmente por meio da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente,
do Decreto 143, de 20 de junho de 2002, que aprovou o texto da Convenção 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho sobre os povos indígenas e tribais em países
independentes), reafirmando o dever do Estado em permitir a participação desses povos
na condução das suas atividades.
A referida Convenção 169 da OIT traz a conceituação de povos indígenas a
partir da seguinte concepção:
Art. - pessoas de países independentes que são conhecidas como
indígenas por serem descendentes de populações que habitavam o
país, ou região geográfica, ao qual o país pertencia no período da
colonização e que independente de sua posição legal, conserva um
pouco ou toda a sua instituição social, econômica, cultural e política.
As comunidades indígenas têm o direito de usufruto exclusivo das riquezas
naturais sob suas terras, utilizando-as para seu sustento e preservação de sua identidade
cultural.
38
Ibidem, loc. cit.
29
A terra cumpre um papel importante para a identidade étnica do grupo. Na área
protegida, a forma de uso da terra e dos recursos naturais deve ser definida no Plano de
Manejo
39
, e este não pode ir contra a finalidade da criação da unidade
40
.
O motivo que leva o Poder Público a reconhecer o direito das comunidades
indígenas à sua terra é o fato desses grupos ocuparem tradicionalmente aquela área e
delas precisarem pra garantir “suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos e costumes” (art. 231, § 10, da
Constituição Federal).
Segundo a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “comunidades indígenas
são aquelas que se consideram segmentos distintos da sociedade nacional em virtude da
consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-colombianas. É índio
quem se considera pertencente a uma dessas comunidades e é por ela reconhecido como
membro”.
41
Retornando ao plano jurídico, a conceituação de índio deve ser buscada no
sentido de o próprio índio poder reconhecer-se como pertencente a um grupo indígena,
tal como conforme afirma José Afonso da Silva:
Enfim, o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que
identifica o índio. A dizer, é o índio que se sente índio. Essa auto-
identificação, que se funda no sentimento de pertinência a uma
comunidade indígena, e a manutenção dessa identidade étnica,
fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que
reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para a
identificação do índio brasileiro. Essa pertinência em si mesma,
embora interagindo um grupo com outros, é que lhe continuidade
étnica identificadora
42
.
De fato, reconhecemos a importância dos povos indígenas para o saber
tradicional e, conseqüentemente, no cenário econômico. Esses conhecimentos
ancestralmente adquiridos sobre as propriedades medicinais das plantas, ervas, animais
39
Plano de Manejo é um projeto dinâmico que determina o zoneamento de uma unidade de conservação,
caracterizando cada uma de suas zonas e propondo seu desenvolvimento físico, de acordo com suas
finalidades. Estabelece dessa forma diretrizes básicas para o manejo da Unidade.
40
BENATTI, José Heder. Unidades de Conservação e as Populações Tradicionais: Uma análise jurídica
da realidade brasileira. Novos cadernos NAEA, vol. 2, n. 2, dezembro, 1999. p. 115-116.
41
CUNHA, Manuela Carneiro. Os direitos do índio: ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.
p. 25.
42
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 26.
30
e alimentos despertam crescente interesse das indústrias associadas à biotecnologia, na
medida em que representam uma fonte de informação relevante ao abreviar anos de
pesquisa em busca de potencial de utilidade.
43
Em relação às comunidades locais, também chamadas de “camponesas”, diz-se
que são aquelas que resultam de uma intensa miscigenação entre os diversos povos que
compõem a identidade do povo brasileiro. São os caiçaras, caipiras, comunidades
pantaneiras, ribeirinhas, pescadores artesanais, pequenos produtores litorâneos e assim
por diante, populações que, em certa medida, guardam um isolamento geogfico
relativo e um modo de vida particularizado pela dependência dos ciclos naturais.
44
A participação das comunidades locais na tomada de decisões sobre qualquer
assunto é fundamental, pois reflete o reconhecimento político dos direitos que possuem
na proteção dos recursos naturais ali existentes. Ignorar o papel de segmentos
diferenciados, que ao longo da história mantiveram a qualidade das áreas que ocupam,
pode contribuir para se estar descartando “uma das únicas vias adequadas para alcançar
os objetivos a que se propõe”.
45
Conforme mencionamos, a Convenção 169 da OIT reconhece a particular
contribuição dessas comunidades para a diversidade cultural, social e ecológica da
humanidade. Assim esclarece em seu artigo 7º:
Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na
medida em que lhe afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-
estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de
alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses
povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos
planos e programas de desenvolvimento nacional e regional
suscetíveis de afeta-los diretamente.
Portanto, é evidente e reconhecida internacionalmente a importância de manter
as comunidades locais nas terras que habitam, conservando assim a integração do
trabalho em conjunto, a participação, administração e conservação da biodiversidade
local. Das comunidades tradicionais mencionadas, constatamos que todas têm em
43
CASTRO, Caterine Vasconcelos de. A proteção do conhecimento tradicional dos povos indígenas sob
a concepção do pluralismo jurídico. Dissertação de Mestrado UFSC Florianópolis, 2007. p. 19-23.
44
DIEGUES, Antonio Carlos. Repensando e recriando as formas de apropriação comum dos espaços e
recursos naturais. In: VIEIRA, F.; WEBER, J. (orgs.). Gestão de recursos naturais renováveis e
desenvolvimento. São Paulo: Cortez Editora. 1998. p. 14.
45
ARRUDA, Rinaldo. S.V. Existem realmente índios no Brasil? Revista São Paulo em perspectiva, São
Paulo, Fundação SEADE, volume 8, n. 3, julho-setembro de 1994. p. 66-77.
31
comum o compromisso com o aproveitamento dos recursos locais, uma habilidade
adquirida pela experiência repassada entre gerações e uma percepção desenvolvida para
as estratégias de sustentabilidade racional, seja pela própria aptidão em lidar com meio
ambiente e/ou até por uma questão de sobrevivência. Podemos assim dizer que a
importância do conhecimento construído e acumulado por estes povos tem total
vinculação com a proteção da diversidade biológica nacional, “onde cada grupo social
adquire o controle sobre certos recursos, traduzindo-se em práticas prudentes de manejo
dos bens comuns da natureza”
46
.
Contudo, no Brasil, a política ambiental vigente tende a ignorar esse potencial
conservacionista do meio ambiente das comunidades tradicionais, principalmente no
que se refere ao conhecimento que esses grupos possuem dos recursos naturais
indispensáveis à manutenção do ecossistema.
1.3 Associação da biodiversidade e conhecimento tradicional
Analisado o que vem a ser conhecimento tradicional e reconhecido este corpo
de conhecimento construído através de gerações de pessoas que vivem em estreito
contato com a natureza”
47
, imprescindível, neste momento, associar esses saberes
tradicionais ao uso dos recursos genéticos e à biodiversidade, considerando o bem-estar
da humanidade nesta e nas futuras gerações.
Sabemos que o conhecimento tradicional adquiriu particular importância com os
atuais avanços tecnológicos, sobretudo no campo da biotecnologia, das indústrias
farmacêuticas, alimentícias, de cosméticos, entre outras. Segundo Vandana Shiva
48
, dos
120 princípios ativos atualmente isolados de plantas superiores e largamente utilizados
na medicina moderna, 75% têm utilidades que foram identificadas pelos sistemas
tradicionais. Menos de doze são sintetizados por modificações químicas simples; o resto
é extraído diretamente de plantas e depois purificado. Diz-se
49
que o uso do
46
LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis:
Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 94.
47
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Parâmetros para o regime sui generis de proteção ao conhecimento
tradicional associado a recursos biológicos e genéticos. In: MEZZAROBA, Orides (org.). Humanismo
Latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux: Fondazione Cassamarca, 2003. p. 459.
48
SHIVA, Vandana. Biopirataria. A pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001.
49
SANTILLI, Juliana, op.cit., p. 197.
32
conhecimento tradicional aumenta a eficiência do reconhecimento das propriedades
medicinais de plantas em mais de 400%.
O país é possuidor de uma megadiversidade
50
biológica em razão da presença
maciça de espécies variadas da flora e da fauna em seus muitos ecossistemas. Esse
patrimônio ambiental guarda um potencial ainda pouco explorado, que é tido, por
alguns, como uma possível fonte de riqueza. Acredita-se que os recursos da
biodiversidade brasileira podem propiciar um grande avanço nas pesquisas científicas e
no desenvolvimento de novos produtos, principalmente na área de fármacos e
cosméticos, vindo a constituir-se em importante fonte de matéria-prima.
Sendo uma das propriedades fundamentais do meio ambiente, a biodiversidade é
um dos componentes básicos da “qualidade ambiental”. Inclui-se, nesse contexto, a
variedade genética dentro das populações e espécies, a variedade de espécies da flora,
da fauna e de microrganismos nos ecossistemas e a variedade de comunidades, habitats
e ecossistemas formados pelos organismos.
Nota-se que os conceitos de biodiversidade deixam clara a harmonia existente
entre a diversidade biológica e a diversidade social, ou seja, sob o ponto de vista da
ecologia social
51
, a biodiversidade não é um conceito apenas biológico, mas também o
resultado de práticas, usos e costumes muitas vezes milenares, das comunidades
tradicionais, indígenas ou não, que manejam espécies, mantendo e aumentando, em
alguns casos, a diversidade local, fruto de uma evolução conjunta e natural das
sociedades.
Nas palavras de Pierina German-Castelli:
[...] desde a alvorada do Homo sapiens, comunidades indígenas,
tradicionais e locais tem conservado uma vasta diversidade de plantas,
50
Sobre o tema ver: TESCARI, Adriana Sader. A Biodiversidade como Recurso Estratégico: Uma
Reflexão do Ângulo da Política Externa. Artigo publicado no CEBRI Centro Brasileiro de Relações
Internacionais. Disponível em: <www.cebri.org.br>. Acesso em: 10.10.2009. “Ante o fato de o Brasil ser
o país mais biodiverso do planeta, a plena implementação da CDB é de interesse para o País, e as
deliberações de seus diversos órgãos inserem-se no contexto mais amplo das preocupações da política
externa brasileira. O progresso na implementação dos compromissos assumidos por todas as Partes da
Convenção contribuirá para reforçar e aprofundas as políticas publicas implementadas pelo Brasil em
matéria de biodiversidade. Entre resultados mais significativos dessas políticas, estão a redução do
desmatamento, especialmente na Amazônia, o aumento da extensão das áreas protegidas e as operações
de combate aos crimes, que causam dano ao meio ambiente, em especial a biodiversidade. Outro aspecto
importante é o investimento realizado na pesquisa cientifica e no desenvolvimento tecnológico ligados ao
uso sustentável dos recursos biológicos e genéticos, inclusive na área agrícola”.
51
DIEGUES, Antonio Carlos & ARRUDA, Rinaldo S. V. Saberes Tradicionais e biodiversidade no
Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. São Paulo: USP, 2001. Disponível em:
<http://www.usp.br/nupaub/saberes/saberes.htm>.
33
animais e ecossistemas. Além disso, os seres humanos têm modelado
os ambientes através de atividades conscientes ou inconscientes por
milênios em uma amplitude tal que freqüentemente é impossível
separar a natureza da cultura (Posey, 1999). [...] Existe uma extensa
bibliografia que demonstra os laços inextricáveis que existem entre a
natureza e a cultura, logo, muitas das paisagens que são chamadas de
“paisagens prístinas”, na realidade são “paisagens antropogênicas”,
tanto criadas pelos seres humanos como modificadas pelas atividades
humanas. Fruto das relações co-evolucionárias entre a natureza e os
seres humanos, onde a estrutura e função dos ecossistemas são
sustentadas por feedbacks sinérgicos entre as sociedades humanas e
seu ambiente, pode-se afirmar que a biodiversidade é produto da
própria natureza e da intervenção humana. Portanto, quando pensamos
na conservação da biodiversidade, concomitantemente devemos
pensar na conservação da diversidade cultural, dados os laços
indissolúveis e interdependências que existem entre ambas.
52
Um marco anterior e de relevância mundial, que trataremos detalhadamente no
decorrer do trabalho, foi a Convenção sobre Diversidade Biológica CDB, assinada
durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em
1992, no Rio de Janeiro.
Ao ratificar a Convenção,
53
o Brasil assumiu a obrigação de estabelecer as regras
para o acesso aos recursos genéticos sob sua jurisdição e de proteger os conhecimentos
tradicionais, de comunidades locais e povos indígenas, relevantes à conservação e
utilização sustentável da biodiversidade. Esse tratado reconheceu a soberania dos países
sobre seus recursos biológicos, e deste modo, os recursos genéticos passaram a estar
sujeitos a legislação nacional, deixando de ser considerados patrimônio da humanidade.
A Convenção é resultado da mobilização da comunidade internacional em torno
da necessidade de uma mudança de comportamento para a preservação da vida no
planeta, que levou ao reconhecimento mundial de que os recursos biológicos da Terra
são fundamentais para as gerações presentes e futuras, as quais dependerão da
conservação e do uso sustentável dessa diversidade biológica para sua sobrevivência.
Assim, a Convenção reconhece a necessidade da conservação da biodiversidade e
identifica o conhecimento tradicional com um dos mais importantes elementos nesse
processo
54
.
52
GERMAN-CASTELLI, Pierina. Conhecimento tradicional, inovação e direitos de proteção. Estudos,
sociedade e agricultura, v. 19, out. 2002.
53
CDB. Disponível em: <http://www.biodiv.org>. Acesso em: 20/05/2009.
54
Ibid.
34
Segundo Adriana Sader Tescari
55
:
A Convenção sobre a Diversidade Biológica procurou refletir um
consenso em torno das regras internacionais e internas que conformem
um regime para a conservação e o uso sustentável dos recursos
biológicos e de seus componentes, bem como a repartição justa e
equitativa de benefícios decorrentes da utilização dos recursos
genéticos, incluindo o acesso a estes e a apropriada transferência de
tecnologia. O estabelecimento desse regime é o reflexo da vontade
política das partes de lidarem com os dilemas resultantes da
contraposição entre interesses e aversões comuns. Por ele, buscou-se
estruturar as relações entre as Partes da Convenção de maneira estável
e mutuamente benéfica, definindo vínculos e mecanismos que lhes
permitam adaptar suas atividades relacionadas com os recursos
biológicos e genéticos aos preceitos acordados.
Observando esses conceitos, conseguimos avaliar a importância da proteção da
biodiversidade, que, além de ser a fonte de recurso natural, possui importância
econômica, social e cultural. quem diga, ainda, que a biodiversidade deve ser
mantida por motivos psicológicos (necessidade de admirar e observar a natureza além
de usufruir dela), éticos (reverência a todas as formas de vida, conceito fundamental
para muitas religiões sistemas morais), filosóficos (sustentabilidade, não violar o direito
da existência das espécies).
56
Segundo Antonio Carlos Diegues
57
:
As populações tradicionais não convivem com a biodiversidade,
mas nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias
categorias e nomes. Uma particularidade, no entanto, é que essa
natureza diversa não é vista pelas comunidades tradicionais como
selvagem em sua totalidade; foi e é domesticada, manipulada. Uma
outra diferença é que essa diversidade da vida não é tida como recurso
natural, mas como um conjunto de seres vivos detentores de um valor
de uso e de um valor simbólico, integrado numa complexa
cosmologia. Pode-se falar numa etnobiodiversidade, isto é, a riqueza
da natureza da qual também participa o homem, nomeando-a,
classificando-a e domesticando-a. Conclui-se, então, que a
biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural como do cultural,
mas é a cultura, como conhecimento, que permite às populações
tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar
suas espécies e colocar outras, enriquecendo-a, com freqüência.
55
Ibid.
56
BRAGA, Benedito (org.). Introdução a Engenharia Ambiental: o desafio do desenvolvimento
sustentável. 2. ed. Escola Politécnica da Universidade de São Paulo Departamento de Engenharia
Hidráulica e Sanitária. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005.
57
DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S. V (orgs). Saberes tradicionais e biodiversidade no
Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, São Paulo: USP, 2001. p. 33.
35
O que se pretende demonstrar é que as comunidades tradicionais devem ter uma
proteção efetiva, sofrendo o mínimo de interferência, garantindo suas características
próprias em face da exploração econômica da biodiversidade. Vandana Shiva concorda
com esse ponto de vista e argumenta que a perspectiva economicista limita as opções de
preservação a uma abordagem comercializada, em que os meios e os fins da preservação
são considerados como valores financeiros de mercado. “A preservação comercializada
mede e justifica o valor da preservação em termos de uso atual ou futuro para a geração
de lucros, sem levar em conta que pode acabar completamente com a diversidade
genética”.
58
O próprio acordo TRIPS
59
alerta para o fato de ser necessário um juízo de
ponderação, ao estabelecer como objetivo “contribuir para a promoção da inovação
tecnológica e para a transferência e disseminação de tecnologia, para a vantagem mútua
dos produtores e usuários do conhecimento tecnológico, e de tal maneira que possa
levar ao bem-estar econômico e social e ao balanço de direitos e obrigações” (art. 7º).
Nos termos do art. 8º, cabe aos Estados-membros reformar suas legislações de
propriedade intelectual, no sentido de adotarem medidas necessárias para proteger a
saúde pública e a nutrição e para promover o interesse público em setores de vital
importância para o desenvolvimento socioeconômico e tecnológico, desde que
compatíveis com o acordo.
Portanto, é preciso pensar em novos sistemas jurídicos nos quais se protejam as
comunidades tradicionais e indígenas e seus sistemas de conhecimento dentro dos seus
próprios sistemas de valores, reconhecendo a importância dos seus saberes para a
manutenção da biodiversidade. No entanto, o que temos atualmente é o reconhecimento
da biodiversidade apenas sob o ponto de vista da rentabilidade, o que está intimamente
ligado à noção de propriedade industrial patentes
60
. Entendemos, contudo, que a
58
SHIVA, Vandana, op. cit., 2003. p. 108.
59
Sobre o Acordo TRIPS: WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Patentes & Conhecimento Tradicional.
Curitiba: Juruá, 2008. “O Acordo sobre a Proteção da Propriedade Intelectual TRIPS, foi fruto da
Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do Acordo Geral de Tarifas e Comércio
GATT, que promoveu discussões durante sete anos e meio. (...) O Brasil também aceitou o Protocolo
referente aos resultados da Rodada Uruguai, (...) promulgado pelo Decreto 1.355/94, que trouxe como o
prazo fatal para a implantação de um sistema normativo eficiente para a proteção da propriedade
intelectual, o ano de 2000”.
60
Sobre patentes: LOUREIRO, Luiz Guilherme de A. V. Patente e biotecnologia: questões sobre a
patenteabilidade dos seres vivos. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 116, out./dez. 1999. p. 18-
19. A noção de patente está intimamente ligada à de invenção, consistindo no meio pelo qual se assegura
ao seu titular proteção, evitando a apropriação por terceiros do esforço alheio. Uma invenção é uma idéia
que permite a solução prática de um problema no campo da tecnologia; constitui uma criação industrial,
um ato de espírito humano, que pelo modo de realização, classifica-se como uma criação de ordem
36
biodiversidade vista tão somente como propriedade não é suficiente para defender o
meio ambiente. A idéia de monopólio
61
do conhecimento tradicional como um forte
potencial industrial não condiz com a proteção dessas populações, condiz sim com a
exploração ilegal e apropriação indébita dos recursos naturais resultando no que se
entende por biopirataria
62
.
De fato, em torno dessa discussão da capitalização da natureza, inovações
biotecnológicas e monopolização do conhecimento tradicional reúnem-se num debate
contraditório, distintos atores da política ambiental e da política econômica, na tentativa
de minimizar a potencial tensão entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade
ecológica.
O atual modelo
63
de desenvolvimento econômico conta com um grande desafio
não para o Brasil, como para todos os países que aspiram uma transformação
64
, um
autêntico desenvolvimento, qual seja, o de fazer coincidir, de modo possível, o
progresso científico e tecnológico com o progresso social. Se por um lado estamos em
plena ascensão científica e tecnológica
65
, por outro lado, o argumento ecológico e o
técnica que visa a atender necessidades práticas. As invenções são normalmente protegidas por patentes,
que podem ser definidas como títulos concedidos pelo Estado que conferem aos seus titulares o direito
exclusivo de exploração da invenção que foi seu objeto.
61
Monopólio é a exclusividade de domínio, exploração ou utilização de determinado bem, serviço ou
atividade. A Constituição Federal reserva uma regra à repressão ao monopólio privado em seu artigo 173
§ 4º, que assim dispõe: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados,
a eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.
62
"A biopirataria abrange a apropriação de plantas, animais e conhecimentos, além de amostras de tecidos
orgânicos, genes e células com potencial para serem explorados economicamente. Trata-se de uma
operação muito especializada, caracterizada pelo contrabando dos recursos naturais e da aprendizagem
dos conhecimentos tradicionais, para serem posteriormente registrados individualmente”. IACOMINI,
Vanessa. Biodireito e o Combate à Biopirataria. Curitiba: Juruá, 2009. p. 94.
63
Sobre o caminho da política ecológica: BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade.
Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 37-40. “Na atual situação, os detentores de poder conduzem a política no
sentido de garantir seus interesses e a satisfação de seus desejos. Os grupos empresariais elaboram seus
planos de desenvolvimento segundo a ideologia da maximização dos benefícios. Sentem-se compelidos
pela gica desse sistema; caso contrário são vencidos pela concorrência. O Estado, por sua vez, conduz
sua política de desenvolvimento industrial, energético, agrícola, viário, urbano etc.,consoante os mesmos
critérios da agressão ao ecossistema (poluição atmosférica, destruição da paisagem etc.).
64
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da
Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 53. “Quando não ocorre nenhuma transformação,
seja social, seja no sistema produtivo, não se está diante de um processo de desenvolvimento, mas da
simples modernização. Com a modernização, mantém-se o subdesenvolvimento, agravando a
concentração de renda. Ocorre assimilação do progresso técnico das sociedades desenvolvidas, mas
limitada ao estilo de vida e aos padrões de consumo de uma minoria privilegiada. Embora possa haver
taxas elevadas de crescimento econômico e aumentos de produtividade, a modernização não contribui
para melhorar as condições de vida da maioria da população”.
65
PINTO, Álvaro Vieira. O Conceito de Tecnologia. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 258-
283. Nas considerações do autor o conceito de técnica deve ser visto, por necessidade como patrimônio
da espécie. Sua função consiste em ligar os homens na realização das ações construtivas comuns.
Constitui um bem humano que, por definição não conhece barreiras ou direitos de propriedade, porque o
único proprietário dele é a humanidade inteira. Entende que não existe era tecnológica e sim
37
discurso de desenvolvimento sustentável não são suficientes para harmonizar toda
essa estratégia de ecodesenvolvimento.
Nesse sentido dispõe Enrique Leff:
A retórica do desenvolvimento sustentável converteu o sentido critico
do conceito de ambiente numa proclamação de políticas neoliberais
que nos levariam aos objetivos do equilíbrio ecológico e da justiça
social por uma via mais eficaz: o crescimento econômico orientado
pelo livre mercado. Este discurso promete alcançar seu propósito sem
uma fundamentação sobre a capacidade do mercado de dar o justo
valor à natureza e a cultura; de internalizar as externalidades
ambientais e dissolver as desigualdades sociais; de reverter às leis da
entropia e atualizar as preferências das futuras gerações.
66
A necessidade de atingir metas de desenvolvimento econômico transformou a
natureza em mera condição de produção. A peça chave desse jogo são os recursos
naturais abundantes em nosso país, que despertam grande interesse nas indústrias
biotecnológicas. Nosso maior patrimônio é explorado, transformado em material
biológico e vendido em grande escala, a preços definidos no mercado externo e interno.
Nessa lógica mercadológica, é evidente que incluímos o conhecimento tradicional, essa
práxis milenar que poderá ser transacionada como qualquer artigo no mercado. “A
degradação da natureza aparece nesta perspectiva como efeito da racionalidade
econômica que nega e desconhece a natureza”
67
.
Temos hoje um quadro de desenvolvimento econômico que valoriza
demasiadamente as inovações tecnológicas no ramo da biotecnologia
68
. Numa tentativa
de justificar o conflito entre os objetivos econômicos e a preservação ecológica, setores
do governo tentam demonstrar a importância do investimento em biotecnologia,
conhecimento cumulativo; a tecnologia é fruto da necessidade pessoal de cada época. “Culpar a ausência
de tecnologia pelo estado de subdesenvolvimento do país é um conceito de ingênuo, prova elementar de
inocência intelectual, pensamento altamente nocivo, de quem não tem o significado dialético da
tecnologia no desenrolar do processo produtivo da existência humana”.
66
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001. p. 24-27.
67
Ibid., p. 190.
68
CHAMAS, Claudia Inês. In: IACOMINI, Vanessa. Propriedade Intelectual e biotecnologia. Curitiba:
Juruá, 2007. p. 92. “A Política de Desenvolvimento da Biotecnologia recém anunciada pelo Presidente
Lula e que prevê investimentos de R$ 10 bilhões nos próximos dez anos, destaca a promoção do uso
estratégico da propriedade intelectual em prol da competitividade nacional. Assim, faz-esse necessário
buscar soluções legais, gerenciais e educacionais que respaldem a proteção e a exploração da
biotecnologia brasileira, considerando-se os interesses dos consumidores e as realidades da saúde pública,
do agronegócio e do meio ambiente, estimulando-se investimentos em pesquisa, desenvolvimento e
fabricações locais e, ao mesmo tempo, evitando-se abusos que não contribuem para o progresso do
Brasil”.
38
justificando o grande interesse do setor industrial e de pesquisa na abundante
biodiversidade encontrada em determinadas regiões, como se este fosse o único
caminho para sairmos do subdesenvolvimento. Na avaliação de Cristiane Derani:
(...) a economia do desenvolvimento sustentável assenta-se na analise
de custo-benefício da preservação do recurso natural a ser utilizado, e
seu resultado não pode ser absolutamente único, pois está ligado ao
tempo e espaço em que este recurso se situa. De qualquer modo, o
valor do recurso natural não é absoluto, e sua preservação está na
dependência da avaliação imediatamente anterior ao emprego para
determinada atividade, sendo inegável a freqüência do conflito criado
entre conservação e uso deste bem. (...) A consecução de um meio
ambiente sadio e equilibrado consiste na busca de múltiplos objetivos,
que envolvem, por sua vez, medidas amplas, nas diversas estruturas da
sociedade, requerendo eficiência econômica e naturalmente definição
sobre a finalidade da produção (o que e para quem produzir),
avaliação dos riscos e julgamentos éticos na distribuição de custos e
benefícios da atividade econômica, bem como opções políticas para
consecução de um conjunto de fatores convencionalmente chamados
de bem-estar.
69
Nesse cenário, seguiremos o nosso debate admitindo que os avanços da
biotecnologia representados pelas técnicas de reprodução assistidas, recomposição de
alimentos geneticamente modificados (OGMs), patentes de produtos farmacêuticos,
clonagem de seres vivos, entre outros, demonstram a real necessidade de o Estado
estabelecer regras jurídicas direcionadas a esses fatos, garantindo o bem comum. Essa
atuação estatal deve ser orientada para a preservação do patrimônio genético do país,
para que, dessa forma, não seja permitida a utilização de bens do interesse comum
de todos, inclusive das futuras gerações. Conforme salienta Ignacy Sachs:
O conceito de desenvolvimento sustentável acrescenta uma outra
dimensão a sustentabilidade ambiental à dimensão da
sustentabilidade social. Ela é baseada no duplo imperativo ético de
solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade
diacrônica com as gerações futuras. Ela nos compele a trabalhar com
escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma a caixa de
ferramentas do economista convencional. Ela nos impele ainda a
buscar soluções triplamente vencedoras, eliminando o crescimento
selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto
sociais quanto ambientais. Outras estratégias, de curto prazo, levam ao
crescimento ambientalmente destrutivo, mas socialmente benéfico, ou
ao crescimento ambientalmente benéfico, mas socialmente destrutivo.
69
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 160-163.
39
(...) Os cinco pilares para o desenvolvimento sustentável são: o social,
o ambiental, o territorial, o econômico e o político.
70
70
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond,
2004. p. 15.
40
CAPÍTULO II PROPRIEDADE INDUSTRIAL EM BIOTECNOLOGIA
2.1 O sistema de patentes
As novas ciências e tecnologias se constituem como elementos de uma nova era;
a biotecnologia
71
vem sendo aplicada, de uma forma cada vez mais intensiva,
contribuindo para o avanço do conhecimento, gerando produtos e serviços em diversos
setores da economia. Tais avanços acabam por revolucionar o antigo padrão
tecnológico, atingindo o comportamento das indústrias e do próprio Estado perante as
relações de mercado. Dado o potencial da biotecnologia, muitas empresas e instituições
públicas envolvidas em pesquisas científicas trabalham buscando uma forma de
regulamentar suas invenções. Neste capítulo abordaremos o modo pelo qual o sistema
de propriedade intelectual, especificamente o sistema de patentes, se aplica neste
contexto, que envolve questões relativas ao progresso tecnológico, científico e
econômico do país, o interesse do inventor, da comunidade tradicional e indígena e,
portanto, interesses gerais da coletividade.
Paralelamente, com o desenvolvimento da biotecnologia e a necessidade de
reordenar princípios éticos, legais e comerciais que envolvem essa prática, surge a
tentativa de criar mecanismos jurídicos de proteção da propriedade intelectual, da
proteção e conservação do meio ambiente e do conhecimento tradicional associado à
biodiversidade. Esse processo é fruto de um novo contexto internacional, de economias
globalizadas e mercados abertos às inovações tecnológicas provenientes dos recursos
genéticos e biológicos
72
.
71
Sobre o desenvolvimento da biotecnologia: Ana Paula MYSZCZUK; Patrícia Luciane de CARVALHO
(coord.). Considerações sobre as patentes biotecnológicas e genoma humano. Propriedade Intelectual -
Estudos em Homenagem à professora Maristela Basso, vol. 2. p. 43. Curitiba: Juruá, 2008. No decorrer
do século XX o mundo passou por uma “revolução” biotecnológica. (...) Todo esse conhecimento
científico aponta para um futuro, não muito distante, onde se possa modificar a realidade humana,
reinventar o homem e a natureza a partir de sua essência bioquímica. Quer dizer: Vivemos em uma
sociedade que tem o conhecimento científico para reinventar o homem e a própria natureza. (...) Nossa
legislação anda em descompasso com a ciência biotecnológica. Talvez não estejamos preparados para
resolver todos os problemas jurídicos advindos destas novas situações, mas a discussão do tema se
impõe.”
72
Fazendo uma análise histórica sobre o desenvolvimento das patentes, Claudia Inês Chamas.
Propriedade Intelectual Genômica. In: IACOMINI, Vanessa (coord.). Propriedade Intelectual e
biotecnologia. Curitiba: Juruá, 2007. p. 71-92. “Com os avanços nas pesquisas, as tentativas de
apropriação dos resultados se intensificaram. As primeiras patentes biotecnológicas no mundo devem ter
41
Esse novo cenário político e econômico trouxe à tona uma revolução nas
legislações referentes à propriedade intelectual, resultando em um grande número de
acordos e tratados
73
firmados no século XX. Analisaremos, a partir de agora, as
questões relativas ao sistema de patentes de invenção sobre produtos e processos
biotecnológicos oriundos do conhecimento tradicional, que “consistem na concessão de
direito temporário a um titular de excluir outros de uso da invenção nova e útil”
74
.
Segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)
75
, que
promove os direitos da propriedade intelectual em escala mundial:
A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de
propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação
tecnológica e para a transferência e difusão da tecnologia, em
benefício mutuo de produtores e usuários de conhecimento
tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social e
econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.
76
Nesse contexto, os países passaram a conceber os direitos de propriedade
intelectual como um modo de conferir aos seus titulares um direito de exclusividade
temporária para produzir, usar, vender e licenciar o fruto de suas criações. Essa
exclusividade tem como objetivo principal o de permitir que seu titular recupere os
investimentos e que seja recompensada por proporcionar novos produtos e tecnologia a
sociedade.
Atualmente, as diretrizes do sistema de propriedade intelectual estão delineadas
pelo Acordo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, o
TRIPS Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights , celebrado no âmbito
sido as de Louis Pasteur, relativas a melhoramentos de processos fermentativos, ainda no século XIX. No
século XX, importantes casos contribuíram para o patenteamento biotecnológico. Em 1930, nos Estados
Unidos, foi aprovado o Plant Patent Act. Em 1969, foi julgado o caso Rote Taube, no Bundesgerichtshof
tribunal supremo da Republica Federal Alemã em matérias civil e penal. O caso tratava da admissão do
princípio da patenteabilidade de processos de natureza biológica com aplicação dos requisitos gerais
(novidade, atividade inventiva e aplicação industrial).
73
Tem-se a Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial e da União de Berna
para a proteção das Obras Literárias e Artísticas, respectivamente de 1883 e 1886. Estas convenções
estabeleceram o início dos trabalhos de proteção na ordem internacional, bem como pelas diversas ordens
jurídicas nacionais. Maior importância possui a Convenção da União de Paris, eis que trata
especificamente da propriedade industrial, a qual envolve as patentes farmacêuticas, e, portanto, a
biotecnologia.
74
DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade in intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia. 2. ed. São
Paulo: RT, 1998. p. 64.
75
A OMPI foi criada em 1967 e instituída em 1970, no âmbito da ONU, tornou-se responsável pela
proteção da atividade intelectual criativa, além de repreender a concorrência desleal.
76
Artigo 7° da OMPI.
42
da OMC
77
(Organização Mundial do Comércio), que prescreve os detalhes mínimos da
legislação sobre os direitos de propriedade intelectual
78
. Tal Acordo estabelecia uma
tentativa de instituir um “Sistema Internacional de Patentes”
79
. No Brasil, o TRIPS
passou a vigorar a partir do Decreto Legislativo 30, de 15 de dezembro de 1994,
sancionando já em 1996 a Lei 9279/96
80
, conhecida como Lei de Propriedade Industrial
(LPI), permitindo novo tratamento às questões referentes às patentes de biotecnologia,
resultando em diversas modificações na sistemática nacional, principalmente no que se
refere ao reconhecimento das patentes de produtos e processos farmacêuticos para a
criação de novos medicamentos.
Estabelece-se, por meio do TRIPS, que a proteção das invenções mediante
patentes deve perdurar por 20 anos a partir da assinatura em se apresenta o pedido. A
obtenção da proteção por esse meio deve ser tanto para produtos como para
procedimentos e se estende praticamente a todos os campos da tecnologia. O sistema de
patentes varia muito de país para país, principalmente quando se trata de patenteamento
de métodos de diagnóstico, terapêuticos ou procedimentos biológicos com plantas e
animais. À luz desse Tratado, os países-membros podem excluir algumas patentes de
invenções tais como aquelas
81
: a) contrárias à ordem pública ou à moralidade, inclusive
para proteger a vida e saúde humana, animal ou vegetal, ou para evitar sério prejuízo ao
meio ambiente; b) relativas a tratamentos com animais e plantas; c) que recaiam sobre
animais que não sejam microorganismos; d) que recaem sobre plantas que não sejam
microorganismos, sendo que para variedades de plantas deve haver um sistema de
77
Sobre a OMC temos: MATTOS, Adherbal Meira. Reflexões sobre o TRIPS e OMC. In: CARVALHO,
Patrícia Luciane de (Org.). Propriedade intelectual: estudos e homenagens à professora Maristela Basso.
Curitiba: Juruá, 2006. p. 107. A OMC surgiu da absorção de mero acordo multilateral, o Acordo Geral de
Tarifa e Comércio (GATT) que tinha como objetivo institucionalizar uma nova ordem econômica
mundial através da progressiva liberalização comercial, respaldada nos princípios da “cláusula da nação
mais favorecida”, “tratamento nacional e transparência” visando ao crescimento econômico e ao
desenvolvimento sustentável. É um organismo internacional cuja personalidade jurídica é de Direito
Internacional Público que se ocupa da regulamentação do comércio entre os países e, diferentemente da
Organização Mundial de Propriedade Intelectual, não está subordinada à Organização das Nações Unidas.
78
BARBOSA, Denis Borges. Propriedade Intelectual: a aplicação do Acordo TRIPS. 2 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 51.
79
Ibid., p. 59.
80
Com relação à Lei 9.279/96, faremos no último item deste capítulo uma análise detalhada dos artigos
relacionados às patentes de biotecnologia.
81
TOLEDO, Simone Seghese de. Organismos Geneticamente modificados e a proteção dos Direitos de
Propriedade Intelectual no Brasil. In: VELAZQUEZ, Victor Hugo Tejerina (org.). Propriedade Intelectual
Setores Emergentes e Desenvolvimento. Piracicaba: Equilíbrio UNIMEP, 2007. p. 113-135.
43
proteção específico
82
; e) que dizem respeito a processos essencialmente biológicos para
produção de animais e de plantas, exceto processos não biológicos ou microbiológicos.
Relevante para o nosso tema é destacar o objetivo central sobre o Acordo TRIPS
exposto no artigo 7°, qual seja: garantir que a proteção e o cumprimento dos direitos de
propriedade intelectual contribuam para a promoção da inovação tecnológica e para a
transferência e difusão de tecnologias, de modo que usuários e produtores de
conhecimentos tecnológicos obtenham vantagens mútuas. Tais relações deveriam
conduzir, em última instância, ao bem-estar social e econômico e ao equilíbrio entre
direitos e obrigações dos países no cenário do comércio mundial. A idéia de equilibrar
benefícios por meio da concessão de títulos de DPI é o conceito chave do desenho, da
estrutura e da forma de implementação da legislação de cunho harmonizador que o
TRIPS pretende implantar.
83
Na prática, sabemos que esse equilíbrio harmonizador suscitado pelo TRIPS
deve ser produto de uma combinação de iniciativas que convergem para a globalização
dos padrões de proteção aos DPI. O intuito é orientar a consolidação de uma nova
estrutura internacional para o acesso e uso de tecnologias. No entanto, é necessário
enfrentar alguns obstáculos. O primeiro deles refere-se ao fato de que tal equilíbrio
depende da contribuição de cada país-membro, isto é, a facilitação da transferência de
tecnologia é uma atribuição nacional geralmente comandada por países desenvolvidos
detentores de tecnologia, industrializados, que desfrutam de uma economia consolidada,
e não exatamente daqueles que deveriam ser beneficiados pela transferência (países em
desenvolvimento). A situação refere-se ao fato de que os países em desenvolvimento,
via de regra, orientam-se no sentido de atrair empresas de capital mundializado. Isso
porque essa constitui uma importante estratégia de elevar seu índice de
desenvolvimento e de fortalecer o mercado econômico, de forma que “endurecer a
legislação nacional sobre DPI representaria uma incongruência com o fomento da
atividade econômica no país”
84
.
82
Ibid., p. 124. “Após a ratificação do TRIPS pelo Brasil, o país se comprometeu a proteger as variedades
vegetais seja pelo sistema de patentes ou por outro sistema. Em janeiro de 1996 foi encaminhado ao
Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.457/96 que determinava que a proteção das variedades vegetais
que ficaram excluídas da Lei de Propriedade Intelectual fosse protegida por um sistema sui generis,
resultando na promulgação e vigência da Lei de Proteção de Cultivares (Lei 9.456/97), aprovada em
28/04/97”.
83
DAL POZ, Maria Ester; SANTOS, Manoel J. Pereira; JABUR, Wilson Pinheiro (coords.). Propriedade
Intelectual em Biotecnologia. Contratos de Propriedade Industrial de novas Tecnologias. São Paulo:
Saraiva 2007. p. 286.
84
Ibid., p. 289.
44
Dessa forma, aos Estados-Membros, quando da incorporação das normas do
Acordo TRIPS, cabe a difícil tarefa de tentar conciliá-las com os interesses nacionais.
Assim, os diversos setores da sociedade devem identificar onde maior espaço para
flexibilização do tratado.
Analisando alguns artigos
85
(arts. 27.1 e 27.3 (b))
86
do Acordo TRIPS, percebe-
se claramente o conflito existente no campo da biodiversidade, principalmente quando o
assunto é patente e biotecnologia. Nota-se, ainda, que os direitos de propriedade
intelectual definidos no TRIPS se tornaram um entrave aos direitos coletivos das
populações tradicionais. Primeiro porque nele os direitos de propriedade são conhecidos
apenas como direitos privados, isto é, direito de propriedade de um individuo ou de uma
empresa, não de uma comunidade ou de um grupo de indivíduos. Segundo porque só se
reconhece tal direito quando o conhecimento e a inovação geram lucros, desprezando-se
o fato de satisfazerem ou não a necessidades sociais
87
.
A doutrina diverge sobre os efeitos do Acordo TRIPs em relação aos DPI.
Maristela Basso
88
tece as seguintes críticas:
(...) os direitos de propriedade intelectual, tal como concebidos pelo
Acordo TRIPS, excluem os conhecimentos coletivos, comuns em
comunidades camponesas e indígenas, onde são repassados de geração
para geração. Conforme declara o preâmbulo do Acordo, os DPI são
reconhecidos apenas como direitos privados, isso exclui todos os tipos
de conhecimento, idéias e inovações que acontecem nas terras
comunitárias intelectuais. (...) A mente se torna monopólio das
grandes empresas. (...) os países em desenvolvimento denunciam
ainda a tendência, em parte causada pelo modelo TRIPS, de supressão
da diversidade local por variedades patenteadas; de transformação na
convivência ecológica de organismos patenteados e geneticamente
modificados afetando a biodiversidade e criando novas formas de
poluição; de controle de mercado pelo seleto grupo de indústria
beneficiadas pelo Acordo TRIPS, dificultando novas invenções
criadas por novas indústrias.
85
Os artigos citados serão discutidos no titulo 2.3: Propriedade e biotecnologia.
86
O artigo 27.1 assim dispõe: “qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores
tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo (não óbvio) e seja
passível de aplicação industrial, e as novas variedades de vegetais tamm devem ser protegidas, ainda
que por um sistema sui generis. Já o artigo 27.3 (b) permite que os membros excluam da patenteabilidade
o seguinte: plantas e animais, com exceção dos microorganismos, e processo essencialmente biológicos
para a produção de plantas ou animais, excluídos os processos não biológicos e microbiológicos.
Entretanto, os Membros providenciarão a proteção de variedades de plantas por meio de patentes, por um
sistema especial que seja eficaz ou por qualquer combinação desses dois.”
87
ZANIRATO, Silvia Helena; RIBEIRO, Wagner Costa. Conhecimento Tradicional e Propriedade
intelectual nas Organizações Multilaterais. Rev. Ambiente & Sociedade, Campinas, 2007. p. 39-55.
88
BASSO, Maristela. Propriedade Intelectual na era pós OMC. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005. p. 111-112.
45
Sob o ponto de vista econômico, a patente
89
tem função de incentivar a pesquisa
técnica e ao mesmo tempo divulgar os seus resultados por meio da aplicação industrial
do produto ou processo com o fim de promover a inovação e a livre concorrência entre
as empresas. sob o ponto de vista jurídico, contempla várias funções, seja no campo
dos direitos difusos e coletivos, seja no que se refere a interesses individuais, como, por
exemplo: o interesse do inventor em ter o reconhecimento pela pesquisa desenvolvida; o
interesse da coletividade no desenvolvimento da pesquisa industrial, na divulgação de
seus resultados; o interesse dos consumidores na circulação de produtos no mercado que
não ofereçam danos às presentes e futuras gerações, entre outros
90
. Segundo Vandana
Shiva, “os direitos de propriedade intelectual e as patentes são um dos artifícios
jurídicos fundamentais para a economia capitalista”. Para a ambientalista indiana, “estes
direitos cobrem não apenas o engenho e o esforço de indivíduos e empresas, mas
freqüentemente também contêm uma privatização de valores de usos sociais visando o
lucro particular”.
91
Se o conhecimento intelectual constitui, fundamentalmente, um conhecimento
de utilização comum para promover-se o desenvolvimento tecnológico, econômico e
social do país, conclui-se que cada inovação e descoberta devem ser estimuladas. Como
há utilidade na descoberta, ainda que não se configure uma aplicação industrial definida,
ela cumpre o escopo da proteção da propriedade intelectual (consubstanciada sua função
social)
92
, qual seja, o estímulo à pesquisa para o progresso do conhecimento útil ao
desenvolvimento da humanidade, e, como tal, merece privilégio da tutela jurídica
temporária, proporcionada pelo instituto da patente.
89
FURTADO, Celso. O capitalismo global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 26. “Historicamente, o
avanço tecnológico dos países desenvolvidos aparece intimamente associado à existência e evolução do
sistema de patentes. Criticado por alguns como gerador de efeitos monopolizadores e condicionadores de
dependência tecnológica, por outros como instrumento necessário para estimular a atividade inovadora e
a transferência de tecnologia, o sistema de patentes tem merecido especial atenção na nova ordem
internacional”
90
DIAFÉRIA, Adriana. Patenteamento de genes humanos e a tutela dos interesses difusos. O
Direito ao Progresso Econômico, Científico e Tecnológico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
91
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Biodiversidade, direitos de propriedade intelectual e globalização.
In: ______ (Org.). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos caminhos rivais. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 351.
92
MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 128-
129. “A idéia de uma função social da patente, consoante aos direitos das comunidades locais que
viabilizaram a própria existência do produto, através da descoberta possibilitada por seus conhecimentos
tradicionais associados a biodiversidade, é claramente definida na Constituição Federal em seu artigo 5º,
inciso XXXIX, que elege o valor social como necessário para a tutela desta espécie proprietária. A ordem
constitucional vigente condiciona a proteção do invento ao interesse social e ao desenvolvimento
tecnológico do país”. In verbis: “XXXIX: A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilegio
temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos
nomes das empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do país.”
46
Ainda sobre o interesse do inventor, o artigo 6° da Lei 9.279/96, ao regulamentar
a questão da titularidade, assim estabelece: “Ao autor de invenção ou de modelo de
utilidade
93
será assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a propriedade,
nas condições estabelecidas nesta Lei”. Quando se tem mais de um inventor requerendo
a patente da mesma invenção o direito será conferido a quem provar o pedido ou o
depósito mais antigo (art. 7°).
Nesse contexto, o sistema de patentes vem fomentar o desenvolvimento
tecnológico, cumprindo com o papel de classificar, reunir e disseminar o valioso
estoque de informação tecnológica existente no mundo, favorecendo: a) a proteção das
patentes vigentes em um determinado país; b) a proteção da criação e das fontes de
informações técnico-científica; c) o incentivo à pesquisa e o aperfeiçoamento de
processos e produtos existentes no mercado; d) a segurança contra uma possível
violação de patente pela empresa concorrente; e) a “racionalização dos recursos
empregados em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), principalmente na área da
biotecnologia”.
94
Ocorre que muitos questionamentos têm sido suscitados com relação à
viabilidade de se utilizar o instituto de patentes para a proteção dos inventos que têm
por objeto a matéria viva ou biológica, ou seja, as patentes de biotecnologia. Primeiro,
por conterem informações genéticas capazes de se auto-replicarem ou replicarem num
determinado sistema biológico, o que dificultaria sua caracterização como produto
acabado, apto à comercialização. Segundo, pela caracterização dos requisitos para a
concessão da patente, e, por último, pela permissão concedida ao inventor de ter o
domínio exclusivo sobre a matéria-prima utilizada no processo ou produto e, dessa
forma, ter o monopólio sobre a informação genética contida no objeto, restringindo-se,
desta forma, as pesquisas científicas nas áreas medicinais. Argumenta-se que não se
deve conceder o uso exclusivo sobre algo que depende de processos essencialmente
biológicos e naturais. Apenas para um breve comentário, pois analisaremos os requisitos
das patentes no capítulo seguinte, salientamos o que dispõe sobre o tema Adriana
Diaféria:
93
A Lei 9.279/96, em seu artigo 9°, traz o que entende por modelo de utilidade: “objeto de uso prático, ou
parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato
inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação”.
94
MACEDO, Maria Fernanda Gonçalves de Macedo; MÜLLER, Ana Cristina; MOREIRA, Adriana
Campos. Patenteamento em biotecnologia: um guia prático para os elaboradores de pedidos de patente.
Brasília, DF: EMBRAPA, 2001. p. 22-23
47
A tentativa de adaptação do sistema tradicional às especificidades das
invenções biotecnológicas tem sido sobejamente discutida em
diversos tribunais europeus e norte-americanos, tendo em vista o
difícil enquadramento das invenções biotecnológicas nos três
requisitos exigidos para a proteção do invento mediante patentes:
novidade (versus matéria biológica preexistente em bibliotecas
genômicas já compreendidas no estado da técnica), atividade
inventiva (versus utilização de técnicas conhecidas pelos peritos da
especialidade) a aplicação industrial ou industrialidade (versus a
irrepetibilidade ou irreprodubilidade da invenção em face a
mutabilidade natural do material biológico, somada à dificuldade de
descrição completa da matéria biológica e definição da concreta
aplicação industrial)
95
Entre os argumentos contrários ao patenteamento da biotecnologia estão desde
os problemas relacionados à manipulação genética, até as repercussões do próprio
patenteamento. No campo das melhorias genéticas vegetais e da agricultura, um dos
argumentos é de que o patenteamento pode concentrar o poder econômico nas mãos de
alguns grandes produtores de sementes e possibilitar a imposição de cláusulas abusivas
nos contratos de licença para a utilização dessas sementes. Nossa maior preocupação, no
âmbito deste trabalho, volta-se para as patentes oriundas das pesquisas realizadas com
populações tradicionais, que grande parte dos conhecimentos tradicionais que são
associados à biodiversidade são precisamente conhecimentos sobre a utilização prática
de elementos vivos, plantas, animais ou microorganismos.
2.2 Requisitos da patente
A patente sempre teve papel de destaque na proteção dos sistemas econômicos
nacionais. Mesmo atualmente, tempo de grande internacionalização e delegação de
funções estatais e entidades internacionais, a patente continua desempenhando papel
estratégico, sendo vista como a garantia do investimento em inovação e publicização
das inovações tecnológicas
96
. Para conceder e assegurar o direito relativo às patentes de
invenções, a lei de Propriedade Intelectual determina o cumprimento de três requisitos
95
DIAFÉRIA, Adriana. Patente de genes humanos e a tutela dos interesses difusos. O direito ao
progresso econômico, científico e tecnológico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.p. xxxvi, introdução.
96
BARBOSA, Cláudio R. Propriedade Intelectual: introdução à propriedade intelectual como
informação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. P.123.
48
básicos, assim dispostos no artigo 8°: “É patenteável a invenção que atenda aos
requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial”.
A lei trata separadamente (art. 10)
97
do queo se considera invenção ou
modelo de utilidade por sua natureza em relação àquelas criações que, embora
pertençam à natureza das invenções e modelos, não o patenteáveis. Iniciaremos a
análise a ser aqui desenvolvida pelo requisito da novidade, expresso no artigo 11
98
da
referida lei. No Brasil, uma invenção é considerada nova no sentido de ser original e
desconhecida, quando não compreendida pelo “estado da técnica”. O estado da técnica é
constituído por tudo aquilo que for tornado acessível ao público, seja por uma descrição
escrita ou oral, dentro ou fora do país.
A invenção nova diante da etimologia é aquela que não foi feita por cópia ou
imitação de coisa existente e, sem dúvida, própria ou peculiar de alguém que a tornou
pública, conhecida, após a sua realização, e por via de conseqüência, antes do
requerimento de um privilegio. É, finalmente, o fruto inato do intelecto.
A novidade, definida no art. 11, deve ser compreendida dentro do conceito de
prioridade internacional, da chamada prioridade “interna” e, também, do período da
graça. A prioridade internacional é definida no art. 16
99
e permite que depósitos feitos
no exterior, segundo a previsão de determinados tratados internacionais, sejam
depositados posteriormente no Brasil, considerando-se a data do depósito original no
exterior como a data inicial para fins de aferição da novidade. Os principais prazos de
97
“Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I - descobertas, teorias científicas e
métodos matemáticos; II - concepções puramente abstratas; III - esquemas, planos, princípios ou métodos
comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização; IV - as obras
literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética; V - programas de
computador em si; VI - apresentação de informações; VII - regras de jogo; VIII - técnicas e métodos
operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo
humano ou animal; e IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na
natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e
os processos biológicos naturais.”
98
“Art. 11. A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no
estado da técnica.
§ O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de
depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou
no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17.
§ Para fins de aferição da novidade, o conteúdo completo de pedido depositado no Brasil, e ainda não
publicado, será considerado estado da técnica a partir da data de depósito, ou da prioridade reivindicada,
desde que venha a ser publicado, mesmo que subseqüentemente.
§ 3º O disposto no parágrafo anterior será aplicado ao pedido internacional de patente depositado segundo
tratado ou convenção em vigor no Brasil, desde que haja processamento nacional.”
99
“Art. 16. Ao pedido de patente depositado em país que mantenha acordo com o Brasil, ou em
organização internacional, que produza efeito de depósito nacional, será assegurado direito de prioridade,
nos prazos estabelecidos no acordo, não sendo o depósito invalidado nem prejudicado por fatos ocorridos
nesses prazos.”
49
prioridade estabelecidos no art. 4 da Convenção da União de Paris são de doze meses
para as patentes de invenção. O período de graça
100
é definido no artigo 12 da Lei
9.279/96, permitindo que a divulgão realizada pelo inventor (ou pelo INPI, ou por
terceiros, com base em informações do inventor) não seja considerada estado da técnica,
se tal divulgação tiver ocorrido em até doze meses antes do depósito do pedido da
patente.
101
A reivindicação de prioridade será feita no ato do depósito, por meio da
indicação do número e data do pedido anterior. O pedido anterior ainda pendente será
considerado definitivamente arquivado e publicado.
O conceito de novidade
102
é objetivo, ou seja, considera-se novo aquilo que
ainda não existia, isto é, uma criação ainda desconhecida como situação de fato
103
.
Diferentemente, no campo da proteção jurídica do direito do autor, um dos requisitos é a
originalidade
104
, entendida em sentido subjetivo, pois está relacionada com a esfera
pessoal do autor. Quando a forma possuir suficiente originalidade
105
para merecer
proteção dos direitos autorais, essa proteção não irá depender de qualquer registro, será
fruto do próprio ato de criação.
100
Sobre o período de graça temos: DANNEMANN, SIEMSEN; BIGLER & MOREIRA, IPANEMA.
Comentários à Lei da Propriedade Industrial e Correlatos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 50-51. “O
período da graça garante ao inventor um prazo de 12 meses para que deposite seu pedido de patente,
contando a partir da primeira divulgação que fizer de sua criação. Com isto o inventor pode exibir sua
criação, sem prejuízo do requisito de novidade. Essa disposição é de grande importância para a
preservação dos direitos do inventor nacional, particularmente o inventor individual ou de pequenas
empresas, que, por desconhecer as regras que regem o sistema de patentes, comumente divulgam seu
invento antes de depositar o respectivo pedido de patente”.
101
BARBOSA, Cláudio R., op. cit., p. 123.
102
SOARES, José Carlos Tinoco. Tratado da Propriedade Industrial. Patentes e seus sucedâneos. São
Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1998. p. 340-341. O conceito de novidade como requisito da patente
não é recente temos decretos e atos normativos que vislumbravam que a invenção deveria ter o caráter
de ser “novo” e desconhecido do domínio. No Brasil o Ato Normativo do INPI 017, de 11.05. 1976,
dispõe: “Novidade - Considera-se novidade o que não esteja compreendido no estado da técnica. Estado
da técnica - Constitui o estado da técnica tudo aquilo que, em qualquer ramo de atividade, tenha sido
colocado ao alcance do público, em qualquer parte do mundo, por qualquer meio de comunicação e/ou
pelo uso, antes da data do deposito do pedido de privilegio, ressalvada a prioridade mais antiga,
representada esta: a) por depósito anterior de garantia de prioridade; b) por deposito com reivindicação de
prioridade comprovada no país de origem.”
103
SILVEIRA, Newton. A propriedade Intelectual e as novas leis autorais. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva 1998. p. 9-10.
104
Sobre o requisito de novidade: CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. V.
II, T. I, Parte II. Rio de Janeiro: Forense, 1952. p. 69. “O conceito de novidade, convém observar desde
logo, não se confunde com o de originalidade, que muitos autores consideram como requisito intrínseco
da invenção. A novidade, como requisito da concessão dos privilégios, é um conceito puramente legal,
podendo variar de um país para outro. A invenção pode ser nova, no sentido legal, sem ser original (...).
Com a palavra originalidade, os autores indicam que a invenção, considerada em si, deve ser diferente
daquilo que é conhecido, e, considerada em relação ao seu autor, deve constituir criação sua, isto é,
deve resultar de sua própria concepção. Ora, uma invenção original, que venha a ser divulgada antes de
requerido o respectivo privilegio, deixa de ser nova no sentido legal, sem perder sua originalidade”.
105
Sobre o direito do autor e a originalidade temos o art. 97, que assim dispõe: “O desenho industrial é
considerado original quando dele resulte uma configuração visual distintiva, em relação a outros objetos
anteriores”.
50
O requisito da atividade inventiva definida no art. 13
106
pressupõe uma atividade
de criação, no campo técnico, pelo inventor. Essa atividade inventiva ou ato inventivo é
auferido sempre que o objeto, o produto ou processo de patente de invenção seja
compreensível para um “técnico no assunto” e não decorra de maneira evidente ou
óbvia do estado da técnica. Trata-se do ato de constituir produto ou processo totalmente
novo, sem precedentes ou que não apresente uma melhora funcional significativa em
comparação ao que existe no mercado.
107
A invenção deve representar algo mais do
que o resultado da simples aplicação de conhecimentos técnicos usuais: tenta-se
mensurar o grau de relevância tecnológica do que se pretende patentear.
Podemos definir esse requisito em termos negativos, explicando o que não é
atividade inventiva:
Diz-se óbvio ou sem atividade inventiva o produto do trabalho que,
utilizando-se dos conhecimentos disponíveis, resulta em uma
decorrência óbvia dessas informações. Em termos econômicos, este
trabalho nada acrescenta ao existente de capital
108
.
Contudo, a atividade inventiva deve apresentar-se como um salto qualitativo no
produto a ser patenteado, sendo possível identificar a atividade intelectual desenvolvida
pelo inventor, tornando-o, por conseqüência, merecedor de proteção legal.
De acordo Adriana Diaféria
109
:
A atividade inventiva deve caracterizar um esforço intelectual que
ultrapasse os limites do conhecimento existente no estado da técnica,
ou seja, que não decorra da obviedade, da previsibilidade ou do
exercício profissional rotineiro de um técnico especializado na
matéria, originando uma inovação ou um efeito técnico diversificado
que acresça o acervo de informações técnicas disponibilizado ao
público interessado.
O terceiro elemento da patenteabilidade é a aplicação industrial. De acordo com
o artigo 15 da Lei 9.279/96: “A invenção e o modelo de utilidade são considerados
suscetíveis de aplicação industrial quando possam ser utilizados ou produzidos em
106
Artigo 13 da Lei 9.279/96: “A invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico
no assunto, não decorra de maneira evidente ou obvia do estado da técnica.”
107
VIEIRA, Marcos Antonio. Propriedade Industrial: Patentes. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
p. 114-115.
108
BARBOSA, Antonio Luiz Figueira. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva
crítica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p. 60.
109
Op. cit., p. 47-48.
51
qualquer tipo de indústria”. Temos também o entendimento da Convenção de Paris, art.
1 (3), que assim dispõe: “A propriedade industrial entende-se na mais ampla acepção e
aplica-se não a indústria e ao comércio propriamente dito, mas também as indústrias
agrícolas e extrativas e a todos os produtos manufaturados ou naturais, por exemplo,
vinhos, cereais, tabaco em folha, frutas, animais, minérios, águas minerais, cervejas,
flores, farinhas”.
Nota-se que o sentido de indústria deve ser considerado de uma maneira ampla,
abrangendo qualquer ramo de atividade econômica de produção, ou seja, a invenção
poderá ser um produto ou um resultado industrial, um instrumento, uma máquina ou
uma disposição mecânica qualquer, um processo ou método de produção industrial. A
utilidade industrial é que irá determinar se o invento terá aplicação no mercado e,
conseqüentemente, se irá resultar em algum retorno financeiro.
Theotônio dos Santos
110
aborda a concepção de aplicação industrial nos
seguintes termos:
Quando uma empresa incorpora uma invenção à produção, ela está
realizando uma inovação. Enquanto que a invenção é um produto
essencialmente intelectual, a inovação já é um fenômeno econômico
que depende estritamente da sua organização. Este processo de
incorporação de uma invenção à produção (inovação) dentro de um
regime de mercado implica num grau bastante elevado de risco, pois
não existe nenhuma segurança com respeito à atitude a ser adotada
pelos consumidores. Esta é uma das razões pelas quais as invenções
não tendem a ser aplicadas imediatamente nas empresas.
O critério adotado na legislação brasileira de propriedade industrial e na de
muitos países europeus sobre a aplicação industrial de uma invenção é o de que: a) a
invenção poderá ser utilizada em qualquer tipo de indústria, ou seja, que seu objeto seja
tecnicamente alcançável e não apenas teoricamente atingível, isto é, a invenção precisa
funcionar de fato; b) que a invenção possa ser repetida diversas vezes no processo de
fabricação, obtendo-se sempre o mesmo resultado para o qual se reivindicou a proteção.
Relacionando os requisitos legais para se obter o benefício estatal das patentes e
a proteção do conhecimento tradicional, observamos que são institutos que divergem
em vários pontos, primeiro porque “a patente é um instrumento que protege os direitos
de propriedade industrial de um indivíduo, ou seja, os direitos do inventor sob sua nova
110
SANTOS, Theotônio dos. Revolução cientifica-técnica e acumulação de capital. Petrópolis: Vozes,
1987. p. 71.
52
criação, com utilidade industrial e passo inventivo”
111
, e o conhecimento tradicional
constitui-se de inovações de cunho coletivo, fruto das práticas de povos indígenas,
quilombolas e populações tradicionais, enfim, são inovações intrínsecas aos povos
tradicionais, apresentando características eminentemente coletivas.
Ressalta-se que a natureza do conhecimento tradicional aproxima-se do conceito
de descoberta
112
, isso porque é um conhecimento coletivo e tradicional de propriedades
e usos da diversidade biológica, transmitido oralmente de geração em geração, ainda
que não disponibilizado fora de determinados círculos das comunidades locais. Diante
de tais características, não poderia, portanto, ser classificado como novo. Se a técnica
desenvolvida é conhecida em algum lugar do mundo, está prejudicada a novidade”
113
. Temos no conhecimento tradicional outra dificuldade que é a de divulgar em termos
técnicos ou químicos o procedimento utilizado para se chegar até a atividade inventiva,
geralmente este conhecimento é utilizado de forma indutiva, com dados singulares, que
não envolve um procedimento técnico e preciso. Nota-se, também, que o acesso pelo
público por meio da tradição oral, também é considerado um obstáculo para o
reconhecimento da novidade
114
.
O requisito de inventividade exigido pela lei de propriedade industrial exige um
esforço intelectual por parte do inventor que ultrapasse os limites existentes, no estado
da técnica, não expressando um exercício rotineiro e óbvio por parte dos técnicos
115
.
Como o conhecimento tradicional é, na sua grande maioria, um conhecimento coletivo,
sua técnica é conhecida, por todos os membros da comunidade, faltando-lhe então a
inventividade.
Já o requisito de aplicação industrial (art. 15 LPI) é o que justifica a invenção, ou
seja, o termo abrange todos os ramos da economia em diversas atividades. Parte-se da
111
MAIA, Ynna Breves. Uma abordagem sobre o regime de proteção jurídica dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade. Patentes x regime "sui generis". Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9377>. Acesso em: 28.09.2009.
112
HAMMES, Bruno Jorge. O direito de Propriedade Intelectual. 3. ed. Rio Grande do Sul: Unisinos,
2002. p. 280-281. Sobre o conceito de descoberta temos a seguinte assertiva: “O inventor resolve
problema técnico. O descobridor põe à luz algo existente que não era conhecido. É o que fazem os
cientistas. Pesquisa a natureza, o mundo (físico, matemático, botânico, etc.). Quem acha uma jazida de
ouro ou outro metal precioso não inventa, descobre. O inventor, ao conhecer as leis da física, cria um
mecanismo que torna as leis da física úteis ao homem. Um cientista descobriu a eletricidade. O inventor
criou uma lâmpada, (...) Diga-se logo que no direito da propriedade industrial não se protegem os
cientistas, os descobridores, mas os inventores. O inventor terá o direito exclusivo de utilizar a técnica por
ele desenvolvida. Dar semelhante poder ao descobridor seria bloquear o progresso, paralisando a ciência”.
113
Ibid., p. 287.
114
MOTTA, Mauricio (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p.
120-121.
115
Ibid., p. 121.
53
idéia de que o produto inventado deverá ser utilizado e produzido por qualquer tipo de
indústria. Além do mais, o produto deve se prestar a diversas aplicações, obtendo-se
sempre o mesmo resultado. Sob o ponto de vista da aplicação industrial dos
conhecimentos tradicionais, nota-se certa restrição quanto a essa produção em larga
escala e repetidas vezes. As misturas de plantas e extratos caracterizam-se, muitas
vezes, pela mutabilidade, pela inconstância natural da matéria viva, fruto de processos
biológicos naturais inerentes, o que acaba por inviabilizar a compreensão plena do
processo, inviabilizando a concretização da aplicação industrial da invenção”.
116
Portanto, muitos conhecimentos adquiridos por meio das comunidades tradicionais não
poderão ser considerados como patenteáveis, tendo em vista o fato de tais invenções não
terem aplicação industrial direta.
De forma muito clara Vandana Shiva
117
expõe a incompatibilidade entre os
direitos de propriedade intelectual e os conhecimentos e a criatividade de comunidades
locais:
Os DPI (Direitos de Propriedade Intelectual) são reconhecidos apenas
quando o conhecimento e a inovação geram lucro e não quando
satisfazem necessidades sociais. Segundo o artigo 27.1, para ser
patenteável, uma inovação deve ter potencialmente uma aplicação
industrial. Isto imediatamente exclui todos os setores que produzem e
inovam fora do modo de organização industrial. O lucro e a
acumulação de capital são os únicos fins da criatividade; o bem social
não é mais reconhecido.
Os DPI são um mecanismo eficiente de colher os produtos da
criatividade social. Eles são um mecanismo ineficiente para criar e
alimentar a árvore do conhecimento.
Vejamos como a matéria é tratada por parte da doutrina, iniciando por Juliana
Santilli:
O sistema de patentes permite que indivíduos e empresas se apropriem
de recursos coletivos (...). Os conhecimentos tradicionais são
produzidos e gerados de forma coletiva com base em ampla troca e
circulação de idéias e informações e transmitidos oralmente de uma
geração a outra. O sistema de patentes protege as inovações
individuais (ou, ainda que as inovações sejam coletivas, os seus
autores/inventores podem ser individualmente identificados),
promovendo uma fragmentação dos conhecimentos e a dissociação
dos contextos em que são produzidos e compartilhados
coletivamente
118
.
116
Ibid., p. 122.
117
SHIVA, Vandana. Biopirataria. A pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001.
p. 32-38.
118
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005. p. 210-211.
54
Apesar das dificuldades acima elencadas, muito se fala na possibilidade da
adaptação do sistema de patentes de maneira a abranger os conhecimentos tradicionais,
ou até mesmo na construção de um sistema novo o regime sui generis
119
de proteção.
Essa é uma tentativa muito invocada pela Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI) e, no plano interno, pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial
(INPI).
Um sistema de proteção sui generis é um sistema especial adaptado a uma
matéria particular. De acordo com Juliana Santilli
120
:
A expressão regime juridico sui generis tem sido muitas vezes
utilizada também por aqueles que defendem uma adaptação do regime
patentário sem nenhuma alteração significativa dos seus pressupostos
conceituais para proteger conhecimentos tradicionais. Entretanto,
quando empregamos a expressão regime sui generis”, estamos nos
referindo a um regime jurídico verdadeiramente sui generis, isto é,
distinto do sistema de propriedade intelectual e baseado em outros
conceitos e pressupostos.
Como exemplo desse mecanismo no Brasil temos a Lei 9.456/97, conhecida
como Lei de Proteção de Cultivares
121
.Tal regra jurídica orientada pelo Acordo TRIPS
prevê, em seu artigo 27, § 3º, que cada país deve proteger variedades de plantas por
meio de patenteamento ou de um sistema sui generis ou pela combinação de ambos.
Aprofundaremos, no capítulo seguinte a reflexão acerca dos elementos necessários para
a construção de um regime jurídico sui generis no Direito brasileiro de proteção aos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
119
SULLIVAN, Amy C. When the creative id the enemy of the true. Database protection in the U.S. and
abroad. AIPLA Quarterly Journal. vol. 29, 2001. p. 317. In: BARBOSA, Claudio R., op. cit., p. 176. “A
cada salto tecnológico novas formas de proteção à informação deverão ser inevitavelmente consideradas,
pois o sistema econômico precisa da intervenção jurídica para assegurar a exclusividade e garantir o
contínuo progresso da informação. Nesse sentido, a informação precisa (e quer) ser protegida. Pode-se,
contudo, optar entre duas alternativas: a criação de medidas tecnológicas que assegurem artificialmente a
exclusividade ou estabelecer, pelos mecanismos adequados (doutrina, jurisprudência ou atividade
legislativa), uma proteção jurídica especifica”. No caso o regime sui generis de proteção.
120
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Peirópolis, 2005. p. 214.
121
A opção de adotar um regime sui generis para se proteger as variedades vegetais vem primeiramente
do Acordo TRIPS, sendo que seu artigo 27,3(b) ao disciplinar a biotecnologia, expressamente estabelece:
“Os países-membros da Organização Mundial do Comercio poderão excluir da patenteabilidade plantas e
animais, exceto os microorganismos, e os procedimentos não biológicos, entretanto os países-membros
deverão providenciar um sistema de proteção de variedades de plantas, seja por patentes ou por um
mecanismo sui generis, ou mediante a combinação de ambos”. A Lei de Cultivares, 9.456/97, protege as
variedades de vegetais, refere-se à planta como um todo, considera o conjunto de suas características.
Para a concessão dessa distinção, é necessário que haja os requisitos da “novidade, originalidade, e
utilidade do bem”. A proteção dos cultivares não segue a rigidez dos requisitos à atribuição de patente de
invenção. Para conseguir o registro do vegetal, são necessárias as características da distintividade, da
homogeneidade e da estabilidade.
55
2.3 Propriedade intelectual e biotecnologia: os artigos da lei de propriedade
intelectual
Ao longo da história, a Lei de Propriedade Industrial recebeu inúmeras
modificações, fruto dos desafios das novas tecnologias que romperam com os limites
tradicionais de proteção, exigindo um questionamento mais reflexivo por parte dos
interessados (empresas, inventores, a sociedade e do próprio legislador); isso significa
que a biotecnologia moderna
122
tem sido um campo em que se multiplicam desafios
administrativos e legais para todos os envolvidos na busca de proteção legal propiciada
pelo sistema de patentes.
Atualmente, no campo agrícola, grande parte das pesquisas e invenções está
voltada para o melhoramento do cultivo, apoiando-se em ferramentas biotecnológicas
que envolvem a engenharia genética, genômica, técnicas microbianas, entre outras. A
implementação do cultivo de transgênicos constitui um claro exemplo do impacto que
as inovações biotecnológicas têm tido no ramo da agroindústria. Neste capítulo,
trataremos do tema da propriedade e biotecnologia
123
, restringindo-se a alguns pontos
conflitantes da Lei 9.279/96, destacando a necessidade da regulamentação do acesso à
diversidade biológica do país, decorrente da proliferação de pedidos de patentes.
Atentamos para o fato de que o “desenvolvimento
124
de novos produtos e processos
biotecnológicos não pode ser tratado isoladamente, sem considerar a preservação da
biodiversidade, a tutela do acesso ao patrimônio genético e dos conhecimentos
122
POZ, Maria Ester Dal; BARBOSA, Denis Borges. In: IACOMINI, Vanessa (coord.). Propriedade
Intelectual e Biotecnologia. Curitiba: Juruá, 2007. p. 93-138. “A biotecnologia moderna se caracteriza
pela elevada dependência da pesquisa em ciências básicas, pela multidisciplinaridade e complexidade,
pela aplicação em diversos setores produtivos, pela elevada incerteza das atividades da pesquisa e
desenvolvimento tecnológico, de seus riscos e elevados custos das aplicações comerciais”.
123
Sobre a definição clássica de biotecnologia temos: SOARES, José Carlos Tinoco. Tratado da
Propriedade industrial: patentes e seus sucedâneos. São Paulo: editora jurídica Brasileira, 1998. p. 589-
590. “O simples termo „biotecnologia cobre uma classe diversa de atividades técnicas, e várias
definições sobre seu alcance foram proposta. Biotecnologia tem sido descrita como incluindo alguma
técnica que usa os organismos vivos (ou parte dos organismos) para fabricar ou modificar produtos, para
aperfeiçoar plantas e animais ou ainda para desenvolver microorganismos para uso específicos. Talvez na
mais sucinta definição do objeto, biotecnologia é considerada como a exploração industrial de processos e
sistemas biológicos, entendendo-se que nesta indústria inclui-se a agricultura (...) alcança a maioria das
áreas da ciência da vida, através da química biológica, enzimologia, virologia, bacteriologia e imunologia
tanto quanto dentro da tecnologia das mais altas formas de vida incluindo planta e animais. O objeto,
portanto é no seu todo, desde pesquisa inicial e subseqüente desenvolvimento das fases para se conduzir,
finalmente, ao estabelecimento de um novo processo ou produto industrial”.
124
Ibid., p. 57.
56
tradicionais”. No entanto, impossível discutir a biotecnologia sem fazer considerações
voltadas à questão financeira. Esses fatos estimulam as empresas que realizam pesquisas
a buscar proteção dos direitos de propriedade intelectual com muita antecipação, para
garantir o retorno do investimento e os lucros derivados das aplicações industriais dos
novos produtos e processos
125
.
A lei de propriedade industrial em vigor, em consonância com o art. 27 do
TRIPs, § 3º, que trata dos casos passíveis de exclusão de patenteabilidade pelos países,
define com clareza, em seu artigo 10, os limites da proteção conferida às invenções de
biotecnologia
126
: “Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I
descobertas... IX o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos
encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou
germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”.
Importante, neste momento, fazer a distinção entre descoberta e invenção dentro
do contexto das patentes de biotecnologia. Theotônio dos Santos
127
fixa a noção de
invenção aproximando-a da dinâmica econômica:
A invenção implica em mudanças tecnológicas quando ela afeta
potencialmente o processo produtivo e alteram os equipamentos,
produtos e organizações até então existentes. Todavia, para que esta
mudança tecnológica se converta numa realidade produtiva serão
necessários vários passos intermediários entre a produção do novo
conhecimento e a sua adoção nas unidades produtoras.
Já a descoberta, diferentemente, ocorre de forma inesperada, é um encontro
casual de um processo ou produto existente, porém desconhecido.
125
Fazendo uma análise histórica sobre o desenvolvimento das patentes, Claudia Inês Chamas.
Propriedade Intelectual Genômica. In: IACOMINI, Vanessa (coord.). Propriedade Intelectual e
biotecnologia. Curitiba: Juruá, 2007. p. 71-92.
126
Artigo 10 da Lei 9.279/96, na integra: “Não se considera invenção nem modelo de utilidade:
I - descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos;
II - concepções puramente abstratas;
III - esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos,
publicitários, de sorteio e de fiscalização;
IV - as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética;
V - programas de computador em si;
VI - apresentação de informações;
VII - regras de jogo;
VIII - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico,
para aplicação no corpo humano ou animal; e
IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que
dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos
naturais.”
127
SANTOS, Theotônio dos, op.cit., p. 71.
57
Um invento ou uma invenção é algo que resulta do engenho humano, voltando-
se à resolução de um problema técnico, concreto ou à satisfação de uma necessidade
prática. Isto implica dizer que a descoberta no campo da biotecnologia pode ser:
“passível de patenteamento desde que seja identificada a função da seqüência parcial ou
total dos genes que foram isolados e caracterizados, ou seja, para qual aplicação
industrial ela se torna utilizável, de forma que o objeto protegido pela patente não limite
ou impossibilite a utilização da mesma seqüência genética para outras aplicações
industriais”
128
.
Nota-se que serão atribuídos direitos exclusivos apenas à detenção de técnicas,
aquelas dotadas de aplicação imediata e direta na esfera da produção.
Uma das grandes dificuldades na concessão de patentes de invenções
biotecnológicas encontra-se na própria corrida em busca do monopólio das invenções,
ou na necessidade de se proteger legalmente o invento. O direito de exclusividade
obtido por meio da concessão da patente confere aos seus titulares o direito temporário
de produzir, usar, vender, licenciar o fruto de sua criação. Essa exclusividade tem como
objetivo principal o de permitir que seu titular recupere os investimentos em pesquisa e,
ao mesmo tempo, proteja o invento da concorrência desleal daqueles que aproveitam da
tecnologia alheia para comercializar imitações. Entretanto, a condução de processos de
solicitação de patente sobre invenções biotecnológicas
129
requer exigências mais
específicas e pontuais que se diferenciam de um pedido de patente comum, tendo em
vista que os produtos biotecnológicos são difíceis de serem descritos pela própria
capacidade das informações genéticas em se auto-replicarem ou replicarem num
determinado sistema biológico ao longo das pesquisas, de tal forma a comprometer as
informações do relatório descritivo
130
do pedido. Além disso, algumas empresas omitem
informações valiosas
131
do ponto de vista comercial, dificultando o exame da concessão.
128
DIAFÉRIA, Adriana, op. cit., p. 46-48.
129
Sobre a descrição do pedido de patente. Maria Ester Dal Poz, op. cit., p. 297-300. “O requerimento de
algumas patentes exige a identificação dos campos técnicos aos quais a invenção se relaciona. Os níveis
de categorização desses campos podem ser mais ou menos específicos, segundo a legislação de cada país.
Se a declaração de conteúdo for excessivamente concisa, será difícil decidir a respeito do caráter
inovativo do produto, para que então possa ser aceito enquanto objeto de patenteamento. Ao contrário, se
forem excessivamente detalhados, tais aspectos poderão limitar a proteção de muitas invenções e
descobertas, já que multiplica os atributos do produto a serem considerados para que o objeto seja
definido como invenção. A redução do nível de detalhamento é uma estratégia amplamente utilizada para
guardar segredo sobre a invenção”.
130
Sobre o relatório do pedido de patente temos os seguintes artigos da Lei 9.279/96: “Art. 24. O relatório
deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no
assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução.
58
De acordo com Adriana Diaféria
132
:
No âmbito das invenções biotecnológicas envolvendo seqüências
parciais ou totais de genes humanos, a inventividade tem sido
analisada, levando em consideração os seguintes aspectos: a) a
superação de específicas dificuldades técnicas no processo de
isolamento do fragmento genético; b) a identificação da função desse
fragmento e a finalidade para qual se destina. (...) o que importa dizer
que o processo de isolamento de seqüências genéticas deve ter uma
finalidade específica, que deverá constar claramente na reivindicação
do pedido de patente, demonstrando a promoção de uma nova solução
técnica.
Quando a regra jurídica diz que não serão patenteados “o todo ou parte de seres
vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela
isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os
biológicos naturais”, isso significa que não serão objeto de patente os processos
biológicos que não sofreram intervenções do homem. Isto é, não qualquer atividade
inventiva envolvida, por tratar-se de descobertas.
Ainda sobre a questão da patente de biotecnologia, temos as seguintes
observações:
A descoberta de elementos, forças e leis existentes na natureza não são
suscetíveis de proteção patentearia. Deste modo, a descoberta de um
microorganismo, sua identificação e, em determinados casos, sua
obtenção em meio adequado não é suscetível de patenteamento.
Precisa tratar de um produto biológico novo, que não existia
anteriormente na natureza
133
.
Parágrafo único. No caso de material biológico essencial à realização prática do objeto do pedido, que
não possa ser descrito na forma deste artigo e que não estiver acessível ao público, o relatório será
suplementado por depósito do material em instituição autorizada pelo INPI ou indicada em acordo
internacional.
Art. 25. As reivindicações deverão ser fundamentadas no relatório descritivo, caracterizando as
particularidades do pedido e definindo, de modo claro e preciso, a matéria objeto da proteção.”
131
Quando enfatizamos as informações valiosas nos referimos ao segredo industrial. A proteção do
segredo pode ter como objetivo: 1) proteger uma invenção patenteável, enquanto o pedido da patente
ainda está pendente; 2) proteger o know-how periférico não revelado, o qual é circunjacente a uma
invenção patenteada e, portanto, publicamente conhecida; ou 3) proteger, por um considerável período,
uma tecnologia comercialmente importante que pode ser não-patenteável, ou fraca e ineficazmente
protegida por patente. É difícil, senão impossível, decidir se a proteção de “segredo” de uma inovação
biotecnológica é apropriada, sem analisar qual desses propósitos deve ser atendido. MACEDO, Maria
Fernanda Gonçalves; MULLER, Ana Cristina Almeida; MOREIRA, Adriana Campos. Patenteamento em
biotecnologia. Um guia prático para elaboradores de pedidos de patentes. Brasília, DF: Embrapa, 2001.
p. 63.
132
Ibid., p. 48.
133
BARBOSA. Denis Borges. Biotecnologia e Propriedade Industrial, 1995.
59
No o entendimento de Antonio P. Carvalho
134
:
É importante não cairmos na armadilha de que tudo que é biológico é
natural e não pode ser patenteado. Entende que toda invenção
produto da engenhosidade humana deve ser patenteada, desde que
tenha finalidades claras de produção de bens e serviços, mesmo que se
use uma seqüência modificada de DNA, sua inclusão num vetor de
expressão ou estratégia efetivamente criativa de geração de um novo
serviço ou produto.
A Lei 9.279/96 é sem dúvida pertinente sobre a matéria de patentes de
biotecnologia, inclusive alguns estudiosos do tema entendem que o Brasil internalizou
com muito rigor as especificações do Acordo TRIPS
135
e não soube aproveitar certas
flexibilizações destinadas aos países em desenvolvimento, por exemplo: não utilizou
prazos maiores para adequação da legislação nacional, concedidos para os países menos
desenvolvidos; não previu as lesões ao meio ambiente como fundamento da recusa das
patentes; previu, por outro lado o conhecido pipeline
136
, que permite a proteção de
tecnologias integrantes do domínio público
137
, entre outras. Destaca-se esse rigor
quando o assunto é patente de microorganismo, elencadas no artigo 18, inciso III,
quando dispõem que não são patenteáveis: “III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto
os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial previstos no art. e que não
134
CARVALHO. Antonio P. Biotecnologias de terceira geração. FIOCRUZ, 2007.
135
À luz do Acordo TRIPS, os países-membros apenas podem excluir patentes de invenções: a) contrárias
a ordem publica ou à moralidade, inclusive para proteger a vida e saúde humana, animal ou vegetal, ou
para evitar sério prejuízo ao meio-ambiente; b) métodos de diagnóstico, de tratamento e de cirurgia,
animal ou humana; c) animais que não sejam microorganismos; d) plantas que não sejam
microorganismos, mas quanto às variedades de plantas deve haver um sistema de proteção especifica; e)
processos essencialmente biológicos para a produção de animais e de plantas, exceto processos não
biológicos ou microbiológicos. Assim o Acordo estabelece uma obrigatoriedade, ainda que limitada, à
concessão de patentes em biotecnologia, ao vedar exclusões legais de qualquer área da tecnologia do
campo da proteção. BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. Vol. II. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 1998.
136
Sobre a patente pipeline. DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER & IPANEMA MOREIRA.
Comentários a Lei da Propriedade Industrial e Correlatos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 483-484. O
art. 230 trata das patentes que ficaram popularmente conhecidas no Brasil como patentes pipeline: Art.
230. “Poderá ser depositado pedido de patente relativo às substâncias, matérias ou produtos obtidos por
meios ou processos químicos e as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-
farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou
modificação, por quem tenha proteção garantida em tratado ou convenção em vigor no Brasil, ficando
assegurada a data do primeiro depósito no exterior, desde que seu objeto não tenha sido colocado em
qualquer mercado, por iniciativa direta do titular ou por terceiro com seu consentimento, nem tenham sido
realizados, por terceiros, no País, sérios e efetivos preparativos para a exploração do objeto do pedido ou
da patente”. Em resumo, esse artigo concedeu aos titulares de patentes e pedidos de patentes estrangeiros
relativos a invenções cuja patenteabilidade era proibida pela legislação brasileira anterior, a saber,
produtos químicos, produtos e processos químico-farmacêuticos e alimentícios, o direito de ainda obter
proteção no Brasil mesmo que tais matérias já tivessem sido divulgadas e, portanto, não mais atendessem
ao requisito de novidade. Portanto, a pipeline representa na realidade uma exceção ao conceito básico de
patenteabilidade e funcionou como uma espécie de “revalidação” de patentes requeridas no exterior.
137
Ibid., loc. cit.
60
sejam mera descoberta”. E no parágrafo único o legislador achou oportuno definir o que
são microorganismos transgênicos como forma de reforçar que tipo de produto ou
processo poderá ser beneficiado com a concessão da proteção da propriedade industrial.
Assim dispõe: “Para fins desta lei, microorganismos transgênicos
138
são organismos,
exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção
humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não
alcançável pela espécie em condições naturais”.
Nota-se que a discussão gira em torno da possibilidade de patentear material
biológico em seu estado natural, ou se somente são objetos de proteção aqueles
microorganismos modificados que preencham os requisitos de novidade, atividade
inventiva e aplicabilidade industrial. Existem diversas tendências no âmbito
internacional sobre a possibilidade de se patentear ou não os materiais biológicos e
genéticos: os que concordam geralmente são países industrializados e desenvolvidos.
Segundo a interpretação da Diretiva 98/44/EC
139
e do Parlamento Europeu, a proteção à
propriedade intelectual para invenções baseadas em genes deverá representar um papel
importante no estímulo ao investimento em tecnologia, usando as informações do
genoma humano para desenvolver novos produtos de interesse, por exemplo, na área de
saúde. O mesmo raciocínio é válido para plantas, animais ou microrganismos.
O mercado internacional no ramo de tecnologia se tornou mais competitivo e
organizado sob a forma de redes entre aqueles que oferecem melhores condições para a
concorrência, atraindo, assim, grandes investimentos em ciência e tecnologia. O país
com forte infraestrutura científica será bem sucedido, devido a sua capacidade de
importação e exportação, tanto em tecnologia como em conhecimentos básicos.
Portanto, o avanço no ramo da biotecnologia tem influenciado pesquisas em vários
locais ao longo dos últimos anos, fortalecendo os vínculos entre a pesquisa básica e a
aplicada.
138
Sobre transgênicos: ORREGO, Carlos Ernesto Restrepo. Apropiación indebida de recursos genéticos,
biodiversidad y conocimientos tradicionales: “biopirateria”. Colômbia: Universidad Externado de
Colômbia, 2007. p. 47-50. “Fruto de la modificación genética y el respectivo patentamiento de algunos
componentes de la biodiversidad, surge uma nueva categoria de espécies, que están acaparando la
atención mundial, generando profundos análisis y preocupaciones em distintos sectores tales como la
agricultura, la salud y la alimentación: los trangénicos. (...) Los grandes riesgos de la ingenieía genética
radican precisamente em su poderosa capacidad de interferir em los procesos biologicos, ecológicos y
evolutivos, cuyo funcionamento estamos lejos de comprender y controlar.”
139
A Diretiva Comunitária 98/44/CE, que estabelece critérios para a proteção jurídica das invenções
biotecnológicas proíbe o patenteamento de invenções que utilizem embriões humanos para fins
comerciais e industriais. (art. 6º, 1, “c”)
61
CAPÍTULO III RECURSOS GENÉTICOS E PROPRIEDADE INDUSTRIAL:
A MEDIDA PROVISÓRIA 2.186/01
3.1 O surgimento da Medida Provisória 2.186/01
O presente capítulo destina-se a investigar o papel da Medida Provisória
2.186/01 na proteção do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético
140
na gestão da biotecnologia. O intuito é demonstrar em que momento histórico, jurídico e
social estabeleceu-se a criação deste mecanismo legal, ou, melhor dizendo, qual foi o
momento político determinante que trouxe à tona a discussão da proteção da
biodiversidade por meio da utilização racional dos recursos naturais e como ela se
relaciona com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e a Lei de Propriedade
Intelectual (LPI).
As práticas, processos, atividades e inovações das populações indígenas e
tradicionais exercem significativa contribuição para a preservação da biodiversidade e é
notadamente aceitável que a diversidade biológica não é apenas fruto da própria
natureza, mas é produto da ação humana, que por meio da convivência, do manejo e da
manipulação sustentável propicia o aumento da biodiversidade. Esse conhecimento
constitui uma efetiva contribuição para a pesquisa e o desenvolvimento, particularmente
na indústria farmacêutica, de cosméticos, produtos agrícolas e para a própria
preservação ambiental. O desafio consiste em proteger os direitos dos povos indígenas e
tradicionais
141
e, ao mesmo tempo, conservar a diversidade biológica, com medidas que
140
Sobre o patrimônio genético, temos o entendimento de Paulo Bessa Antunes, que assim dispõe: “O
patrimônio genético, conforme a definição normativa contida na Medida Provisória é informação de
origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou
animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos
obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou
mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na
plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. Ele não é, portanto, um conjunto de bens
materiais, pois é uma informação, um conjunto de bens imateriais. A norma estabelece que tal conjunto
de informações, mesmo que ainda não tenha sido revelada, é propriedade do estado brasileiro e que, em
função de tal regime de titularidade, os benefícios econômicos e outros que possam dele advir devem ser
repartidos entre o Estado e os outros intervenientes no processo de seu desvendamento”. ANTUNES,
Paulo de Bessa. Diversidade Biológica e Conhecimento Tradicional Associado. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002. p. 41.
141
DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Los Pueblos Indígenas Brasileños y los Derechos de
Propriedad Intelectual. In: RUBIO, David Sanchez (org.). Nuevos colonialismo Del capital: Propriedad
intelectual, biodiversidad y derechos de los pueblos. Barcelona: Icaria, 2004. p. 305-350. “Los
62
garantam a proteção do conhecimento das comunidades, mas também incentivem a
preservação ambiental. Sobre o papel das comunidades tradicionais para a proteção da
biodiversidade, afirma Eduardo Viveiros de Castro
142
:
Sabe-se hoje que parte da floresta tropical é fruto da atividade
humana. Boa parte das espécies úteis, difundidas em todo o planeta,
crescem diferencialmente na Amazônia em função do ambiente
modificado pela ação humana. Muitas das espécies clássicas da
Amazônia como a castanha-do-pará, a pupunha, e o babaçu, são
árvores que proliferam de maneira diferenciada e tendem a se
concentrar, em termos de distribuição espacial, em áreas modificadas
pela ação antropogênica. Este ponto é fundamental porque existe uma
tendência a pensar-se que a atividade humana é necessariamente
redutora da biodiversidade, empobrecedora do ambiente, e que o
ambiente ideal é aquele sem seres humanos. Porém indícios muito
significativos de que, dependendo da forma de interação de uma
população com o ecossistema, a biodiversidade pode aumentar.
As comunidades tradicionais desempenham papel importante na preservação
ambiental, por outro lado, a perda de ambientes ricos em diversidade biológica, por
meio de atividades como a exploração da madeira, desmatamento e mineração, tem
conseqüências profundas sobre os grupos indígenas ou tradicionais, cujos meios de
sobrevivência dependem desses ambientes. Tal processo envolve, também, a perda do
conhecimento acumulado por milênios, conhecimento que oferece uma riqueza de
matérias-primas utilizadas em uma gama de produtos e processos, principalmente os de
uso medicinais. Há, nesse sentido, uma relação direta entre a manutenção da diversidade
cultural e a conservação da diversidade biológica. Tais fatos fazem levantar algumas
questões sobre como devemos atribuir valor à natureza
143
: quem se beneficia com a
exploração da biodiversidade? A natureza pode ser medida em termos científicos e
monetários? Pode haver equilíbrio entre a conservação e a proteção da biodiversidade?
conocimientos de los pueblos indígenas brasileños (...) constituyen fenómenos complejos construidos
socialmente a partir de prácticas y experiencias culturales relacionadas com el espacio social, los usos, las
costumbres y las tradiciones, cuyo doimino generalmente es difuso. (...) Los conocimientos tradicionales
entonces configuran derechos colectivos de los pueblos que los detentan. Así, la natureza colectiva de
estos derechos se contrapone al caracter individualista,privatista y exclusivista de los derechos de
propriedad intelectual, em la forma en que éstos se encuentran formalizados y padronizados em las
legislaciones nacional e internacional.”
142
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Biodiversidade e Sócio-diversidade. Conhecimento Tradicional e o
Mito da ciência oculta. In: ARAUJO, Ana Valéria; CAPOBIANCO, João Paulo (Organizadores).
Documento do ISA n. 02. Biodiversidade e Proteção do Conhecimento de Comunidades Tradicionais.
São Paulo: Editora Instituto Socioambiental, 1996. p. 21.
143
Acrescenta-se, segundo, José Rubens Morato Leite, “que o uso do bem ambiental de forma ilimitada,
pela apropriação, a expansão demográfica, a mercantilização, o capitalismo predatório são alguns dos
elementos que conduzem a sociedade atual à situação de periculosidade”. In: CANOTILHO, Jo
Joaquim Gomes (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 131-
133.
63
Segundo José Rubens Morato:
144
Percebe-se, claramente, que necessidade de o Estado melhor se
organizar e facilitar o acesso aos canais de participão, gestão e
decisão dos problemas e dos impactos oriundos da irresponsabilidade
política no controle de processos econômicos de explorão
inconseqüente dos recursos naturais em escala planetária. A
proliferação das causas ameaçadoras expressa-se, agora, na forma de
riscos inseguráveis, que são originados de processos de decisão
desenvolvidos em espaços institucionais de acentuado déficit
democrático, com poder de vitimizar gerações em uma escala espacial
e temporal de difícil determinação pela ciência e pelos especialistas.
A discussão sobre o acesso aos recursos genéticos e a proteção do conhecimento
tradicional remonta ao ano de 1992, durante a conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que, como destacado anteriormente, resultou na
assinatura da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)
145
pelo Brasil,
incorporada à legislão nacional pelo Decreto Legislativo 02, de 08.02.1994, deixando
claro em seu artigo 8º, j,
146
que a utilização dos conhecimentos deve ocorrer em
consonância com a vontade do povo detentor do referido conhecimento
147
.
De acordo com o sociólogo Laymert Garcia dos Santos,
148
é interessante
destacar que, “em meados da década de 80 o desmatamento propulsou a floresta
amazônica para o centro do debate econômico mundial e, na verdade, foi ele quem
suscitou o próprio conceito de biodiversidade”. Nota-se que a grande preocupação da
época tem o mesmo fundamento do que se discute atualmente, ou seja, que o progresso
144
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patrick de Araújo. Direito Ambiental na sociedade de risco.
Rio de Janeiro. Forense, 2002. p. 89-113.
145
A Convenção Sobre Diversidade Biológica, assinada durante a Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e Desenvolvimento (que ficou conhecida como ECO-92), ratificada pelo Decreto
legislativo 02/1994, em artigo 8j, aborda sobre o tema comunidades locais e populações indígenas com
superficialidade, assim como é usual em inúmeros documentos internacionais, deixando ao cargo do
legislador de cada país signatário a responsabilidade da definição. MOTTA, Mauricio (coord.) Função
Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
146
Sobre o artigo 8ºj:
“Art. 8º Cada parte contratante deverá, na medida de possível e conforme o apropriado:
(...)
j) De acordo com a sua legislação, respeitar, preservar e manter o conhecimento, as inovações e as
práticas das comunidades indígenas e locais que envolvam estilos tradicionais de vida relevantes para a
conservação e utilização sustentável da diversidade biológica e promover a sua aplicação mais ampla,
com a aprovação e participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas, e encorajar para
que os benefícios derivados da utilização desse conhecimento, inovações e práticas sejam equitativamente
partilhados”. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/sbf/chm/doc/cdbport.pdf>. Acesso em:
09/10/2009.
147
WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Patentes & Conhecimento Tradicional. Curitiba: Juruá, 2008. p.
118.
148
SANTOS, Laymert Garcia dos. A desordem da nova ordem: aceleração tecnológica e ruptura do
referencial. In: DINIZ, Nilo (orgs.). O desafio da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil.
São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. p. 89-93.
64
econômico não deve vir à custa da degradação ambiental e que os fatores de
sustentabilidade, consumo e produção não poderão mais ser desconsiderados pela
economia global.
Uma das primeiras
149
propostas apresentadas pelo Congresso brasileiro na
tentativa de regulamentar o acesso aos recursos genéticos e o conhecimento
tradicional
150
foi o Projeto de Lei 306/95, apresentado pela então Senadora do Acre
Marina Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Um dos pontos mais relevantes do
projeto
151
foi a elaboração de medidas de proteção ao acesso aos recursos genéticos
vegetais e animais, excluindo o material humano, além da definição dos contratos de
acesso e transferência de tecnologia. Após ampla discussão no Senado e em audiências
públicas com a participação da sociedade representada por ONGs, Universidades,
governos estaduais e pelo setor privado, o Senador Osmar Dias, representante do Estado
do Paraná, ofereceu um projeto substitutivo
152
, que foi aprovado pela Câmara dos
Deputados no final de 1998.
Nesse mesmo ano, outros dois Projetos de Lei foram apresentados à Câmara dos
Deputados: um deles de autoria do então Deputado Jacques Wagner (PL 4.579/98) e o
outro de autoria do Executivo federal (PL 4.751/98), este último acompanhado da
proposta da Emenda Constitucional 618/98. O Projeto de Lei aprovado pelo Senado e
149
A Constituição Federal de 1988 já determinava no artigo 225, inciso II, a incumbência do poder
público de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.
150
A proteção ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade encontra respaldo constitucional
no Direito Brasileiro. O artigo 215, parágrafo 1º, da Carta Magna estabelece a proteção das
“manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasieliras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional”. os artigos 231, 232 e artigo 68 do ADCT asseguram proteção
especial aos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas e remanescentes de quilombos.
151
Alguns artigos do projeto de lei destacavam-se como um ensaio a regulamentação aos recursos
genéticos, sobre o tema corrobora Juliana Santilli. Os artigos (44,45 e 46 e seus diversos parágrafos)
estabelecem que o “Poder Público reconhece e protege os direitos das comunidades locais e populações
indígenas de se beneficiarem coletivamente por seus conhecimentos tradicionais e a serem compensadas
pela conservação dos recursos genéticos, mediante remunerações monetárias, bens, serviços, direitos de
propriedade intelectual ou outros mecanismos”. “Determina a criação de um cadastro nacional onde serão
depositados registros de conhecimentos associados a recursos genéticos pelas comunidades locais e
indígenas, e estabelece que as comunidades locais e indígenas detêm os direitos exclusivos sobre seus
conhecimentos tradicionais, somente elas podendo cede-los, por meio de contratos”. Dispõe ainda que a
proposta de contrato de acesso a recursos genéticos (quando situados em terras indígenas) “somente será
aceita se for precedida do consentimento prévio fundamentado da comunidade local ou população
indígena, obtido segundo as normas claras e precisas que serão definidas para esse procedimento pela
autoridade competente” (arts. 44 e 45). SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e Conhecimentos
tradicionais. Regimes legais de proteção e a pirataria legislativa. Disponível em:
<www.biodiversidadla.org.layout/set/print/content/download/3641/10848/version/1/file/biodiversidade+c
onhecimentos+tradicionais.doc>. Acesso em: 24.09.2009.
152
Projeto de Lei 4.842/1998.
65
aquele apresentado pelo Deputado Jacques Wagner foram inspirados na Decisão 391
153
da Comunidade Andina das Nações, prevendo contratos, inclusive para fins de pesquisa
científica, como requisito para obtenção de autorização de acesso a recursos genéticos.
o Projeto de Lei de autoria do Executivo Federal introduziu o termo “patrimônio
genético”, utilizado pela Constituição Federal, e previu contratos apenas para os acessos
ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado nos casos em que
potencial uso econômico
154
.
Naquele momento, a sociedade civil e alguns setores do governo discutiam a
formulação de uma proposta legislativa que implementasse a Convenção da Diversidade
Biológica, regulamentando o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento
tradicional. Enquanto isso, o Poder Executivo, sob a gestão do então Presidente
Fernando Henrique Cardoso (2000), optou por lançar mão de uma Medida Provisória
(MP)
155
regulando a matéria que estava sendo discutida no legislativo. Na ocasião, a
edição da MP 2.052/00 deixou o cenário político um tanto quanto obscuro:
interromperam-se as discussões no Congresso Nacional sobre os projetos de lei e
paralisou-se boa parte das pesquisas envolvendo recursos genéticos. E, apesar das
críticas, o dispositivo acabou por vigorar indefinidamente, assumindo, após última
153
Sobre a Decisão 391, ver: SANTILLI, Juliana, op. cit., p. 12: É um acordo regional entre a Colômbia,
Equador, Venezuela, Peru e Bolívia, países que representam a região andina no norte da America do Sul.
Tal regime deixou a cargo de cada país o papel de regulamentar e implementar o acesso aos recursos
genéticos. Estão excluídos do âmbito de aplicação da Decisão 391 os recursos genéticos humanos e seus
produtos derivados, bem como o intercambio de recursos genéticos, seus produtos derivados, e de
produtos biológicos que os contém, bem como o intercâmbio dos componentes intangíveis associados a
estes, realizado pelas comunidades indígenas, afroamericanas e locais dos países membros, entre si e para
seu próprio consumo, com base em suas práticas consuetudinárias. (...) A Decisão 391 fez uma distinção
entre o recurso genético e o componente intangível, definindo este último como „todo conhecimento,
inovação ou prática individual ou coletiva, com valor real ou potencial, associado ao recurso genético, e
seus produtos derivados ou ao recurso biológico que os contém, protegido ou não por regimes de
propriedade intelectual‟”.
154
AZEVEDO, Cristina M.; AZEVEDO, Eurico de Andrade. A teoria Inacabada de uma regulamentação.
Revista eletrônica Comciência, SBPC, n. 26, junho 2000. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/reportagens/biodiversidade/bio11.htm>.
155
SANTILLI, Juliana, op. cit., p. 12. “A Medida Provisória foi editada às pressas pelo governo para
“legitimar” o acordo firmado entre a organização social Bioamazônia e a multinacional Novartis Pharma,
em 29/05/2000, que prevê o envio de 10 mil bactérias e fungos da Amazônia ao referido laboratório
suíço. A organização social Bioamazônia foi criada pelo próprio governo federal para coordenar
implantação do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da
Amazônia (Probem). (...) O casuísmo motivador de sua edição está expresso no art. 10, que dispõe: “À
pessoa de boa fé que, até 30 de junho de 2000, utilizava ou explorava economicamente qualquer
conhecimento tradicional no país, será assegurado o direito de continuar a utilização ou exploração, sem
ônus, na forma e nas condições anteriores”. Ou seja, com o objetivo de legitimar o acordo da
Bioamazônica com a Novartis, o governo não legalizou toda e qualquer biopirataria e espoliação dos
conhecimentos tradicionais praticados no país até o dia 30/06/2000, como também assegurou aos
biopiratas o direito de continuar a piratear nossos recursos genéticos e conhecimentos de nossas
comunidades tradicionais, sem ônus, na forma e nas condições anteriores”.
66
reedição, uma nova numeração MP 2.186-16/2001. No entendimento de Alessandro
Octaviani
156
:
As origens da Medida Provisória 2.186/01 (...) não foram
democráticas: encartando-se no “escândalo Novartis”, surgiu como
produto da Casa Civil em movimento que expressamente ignorou os
povos indígenas, comunidades locais e tradicionais, movimento
ambientalista e organizações científicas comprometidas com o
interesse público. Resultando de trabalho de política legislativa
tecnocrática, o desenho que postula para a gestão dos recursos
genéticos não tem diferente qualidade (o que, face aos superiores
comandos da Constituição e da CDB) não constitui impeditivo para
práticas de democracia participativa, mas revela o sentido da
apropriação dos recursos impulsionados pelo governo emissor da MP.
O contrato Bioamazônia-Novartis foi um dos motivos que precipitou uma
sucessão de medidas provisórias. Teve repercussão entre vários setores da sociedade,
incluindo parte do governo, e, sobretudo, na comunidade científica. Temia-se a
privatização do patrimônio genético pelas mãos de uma corporação transnacional, já que
a negociação previa a exclusividade da exploração, com “possibilidades de
licenciamento a terceiros, de produzir, usar e vender quaisquer produtos contendo o
composto original ou derivados, bem como quaisquer patentes ou Know-how
relevantes”
157
. Portanto, a Medida Provisória 2.186/01 surgiu em um período de grande
relevância política, consagrando um momento em que a sociedade fixava as primeiras
noções de desenvolvimento sustentável
158
, postulando um direito ao desenvolvimento
com responsabilidade das presentes para com as futuras gerações.
A necessidade de preservar a biodiversidade frente ao desenvolvimento
tecnológico e científico, somada ao surgimento das inovações no campo da
biotecnologia, chamou a atenção da comunidade jurídica para a importância das
156
Ibid., p. 231-232.
157
BAPTISTA, Fernando Mathias. Os impasses da abordagem contratualista da política de repartição de
benefícios no Brasil: algumas lições aprendidas no CGEN e caminhos para sua superação. In: ______.
Dilemas do Acesso a biodiversidade a aos conhecimentos tradicionais, p. 142-155.
158
“O desenvolvimento sustentável foi divulgado primeiramente como um princípio diretor para o
planejamento do desenvolvimento econômico pela WCED (World Commission on Environment and
Development), em documento sobre estratégias do desenvolvimento em 1987. Segundo este documento,
o desenvolvimento é sustentável quando satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a habilidade
das futuras gerações em satisfazer suas próprias necessidades”. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental
Econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 110-111.
No denominado “informe Brundtland”, um estudo de alternativas para o desenvolvimento e meio
ambiente, elaborado por uma comissão presidida pela ex-primeira ministra da Noruega, e que foi
encomendado pela Assembléia Geral da ONU, em 1983, pode-se encontrar a seguinte definição: “o
desenvolvimento sustentável pretende satisfazer as necessidades do presente sem comprometer os
recursos equivalentes de que farão uso no futuro outras gerações”. World Commission on Environment
and Development, Our Common Future. p. 07.
67
comunidades indígenas e tradicionais quando se trata da preservação do meio ambiente.
De acordo com Pierina German Castelli
159
:
Dentro da estratégia de firmar a política ambiental global em torno do
resgate do valor do homem dentro da natureza, por vias da introdução
do conceito de desenvolvimento sustentável, observou-se a
emergência de uma novidade dentro do Direito Internacional do Meio
Ambiente: a valorização dos povos indígenas e das comunidades
tradicionais.
O problema é que as discussões sobre o acesso aos recursos genéticos,
conhecimentos tradicionais e inovações tecnológicas reúnem diferentes interesses: as
indústrias que exploram a biotecnologia e preconizam a concessão de patentes; as
ONGs, juntamente com alguns movimentos sociais, que reivindicam os direitos dos
povos indígenas
160
e das comunidades locais de manterem sua identidade cultural; os
cientistas e os pesquisadores, que esperam pela liberdade de fazer uso da biodiversidade
e assim fomentar novas descobertas terapêuticas. Nota-se que o tema da proteção dos
conhecimentos tradicionais associados não está apenas limitado à CDB, mas possui
outros foros e vias de reflexão que foram sendo incorporados ao debate.
Destacamos, aqui, a intensa mobilizão social em torno da Medida Provisória
2.186/01, o que indica um período de autodeterminação e emancipação das
comunidades tradicionais e indígenas por meio de movimentos sociais e organizações
ambientalistas na busca do reconhecimento desses “grupos sociais em poder decidir seu
próprio modo de ser, viver e organizar-se política, econômica, social e culturalmente,
sem serem subjugados ou dominados”
161
. Neste sentido, destaca Enrique Leff
162
:
159
CASTELLI, Pierina German. Governança Internacional do acesso aos recursos genéticos e aos saberes
tradicionais: para onde estamos caminhando? In: BARROS, Benedita da Silva (org.). Proteção aos
conhecimentos das sociedades tradicionais. Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém Pará, 2007. p. 47-
48.
160
“A definição Constitucional para as terras indígenas (art. 231, § 1º) não se justifica em relações de
apropriação, mas na proteção de tipos de uso culturalmente estabelecidos, que somente podem ser
considerados de forma coletiva, cuja proteção interessa também as futuras gerações. Essa circunstância é
enfatizada pela condição usufrutuários permanentes, atribuída coletivamente aos povos indígenas”.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba:
Juruá, 2001. p. 144.
Constituição Federal: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as
utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.”
161
ALBUQUERQUE, Antonio Armando Ulian do Lago. Multiculturalismo e o direito à
autodeterminação dos povos indígenas. Dissertação de Mestrado. UFSC, Florianópolis, 2003. p. 159.
68
Além da capitalização da natureza pela via de uma racionalização
econômico-ecológica formal, a sustentabilidade se debate no campo
emergente da ecologia política, onde entram em jogo as percepções e
interesses dos grupos majoritários da sociedade, das populações do
terceiro Mundo e dos povos indígenas, que resistem a serem
globalizados, reduzidos a condição de produtores e consumidores de
um sistema de mercado esverdeado. Diante das perspectivas do
desenvolvimento sustentável, esses movimentos sociais reivindicam
seus espaços de autonomia para reapropriar-se de seu patrimônio de
recursos naturais e culturais e para definir novos estilos de vida.
Para esses povos, o conhecimento ecológico tem importância vital para sua
sobrevivência, fazem da biodiversidade local seu abrigo e alimento. A reivindicação do
saber tradicional envolve a integridade cultural, econômica, social e espiritual das
comunidades tradicionais, tendo em vista que para as comunidades indígenas a terra tem
valor sagrado. Afirmam que a colheita, a triagem e patenteamento de plantas, sementes
e outros produtos da biodiversidade estão sendo apropriados sem o devido respeito aos
detentores e à proteção da diversidade biológica. Tal situação se agrava pelas incertezas
legislativas que abarcam o tema, aumentando a fragilidade das comunidades indígenas e
locais em face dos interesses envolvidos na apropriação indevida do conhecimento
tradicional.
Apesar de passível de críticas
163
, a referida Medida Provisória abraçou alguns
dos ditames da CDB sobre os conhecimentos tradicionais associados, demarcando a
necessidade do consentimento dos povos tradicionais e repartição de benefícios justa e
eqüitativa dos resultados das pesquisas, desenvolvimento de tecnologias e
bioprospecção de produtos, por meio da realização de um contrato de acesso, uso e
repartição de benefícios, que necessariamente será submetido à aprovação do órgão
162
LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental e a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis
Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 150. O autor, em outra obra denominada
Saber Ambiental, identifica como conseqüência da globalização econômica, o surgimento de movimentos
da cidadania que legitimam novos valores e direitos humanos que, segundo ele, trata de uma cidadania
que emerge “configurando novos atores sociais fora dos campos de atração das burocracias estatais e dos
círculos empresariais, que reclamam a autodeterminação de suas condições de existência e a autogestão
de seus meios de vida”. LEFF, Enrique. Saber Ambiental. Tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth.
Petrópolis: Vozes, 2001. p. 129.
163
MOTA, Mauricio, op. cit., p. 110. “A Medida Provisória vem sendo criticada porque, apesar de estar
em vigor desde 2001, não conseguiu estabelecer normas claras e eficazes de acesso ao patrimônio
genético do País. Até o ano de 2008, praticamenteórgãos públicos e instituições universitárias haviam
conseguido, do CGEN, autorizações para o acesso a componentes do patrimônio genético, para fins de
desenvolvimento tecnológico. De instituições privadas, apenas três empresas (Natura Inovação e
Tecnologia de Produtos, Extracta Moléculas Naturais S.A e Quest International do Brasil Indústria e
Comércio Ltda) haviam obtido tais autorizações, e nenhuma delas com acesso a conhecimento tradicional
associado a biodiversidade. A falta de licenças reguladoras de operações vem retardando os trabalhos
dessas empresas e, também, a possível repartição de benefícios, junto às comunidades locais, dos ganhos
auferidos por produtos desenvolvidos com o auxilio dos conhecimentos tradicionais associados a
biodiversidade”.
69
governamental responsável. No Brasil, este órgão é representado pelo Conselho Gestor
do Patrimônio Genético, composto no âmbito do Ministério do Meio Ambiente
164
,o qual
trataremos nos tópicos seguintes.
3.2 Conhecimentos tradicionais e propriedade intelectual: uma análise da Medida
Provisória 2.186/01 e da Lei 9.279/96 (LPI)
Neste tópico destacaremos alguns artigos da Medida Provisória 2.186/01,
especialmente aqueles relacionados à questão da propriedade intelectual sobre o
patrimônio genético
165
nacional, à divisão de benefícios e, fundamentalmente, ao
problema do acesso ao conhecimento tradicional, um dos pilares da nossa pesquisa. O
texto legal estabeleceu os marcos legais para a regulamentação do inciso II, do § 1º, e o
§ do artigo 225 da Constituição
166
, assim como dos artigos 1º, 8º, alínea j, 10º alínea
c, 15º e 16º, alíneas 3 e 4, da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), entre
outros.
Inicialmente, no capítulo I da Medida Provisória, temos as Disposições Gerais,
que basicamente definem que o acesso a componentes genéticos podeocorrer para
satisfazer a três fins
167
: pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico ou
164
MOREIRA, Eliane. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus Conhecimentos associados à
Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus cenários de disputa. In: BARROS, Benedita;
GARCÉS, Claudia; MOREIRA, Eliane Cristina Pinto; PINHEIRO, Antônio (orgs). Proteção aos
Conhecimentos das Sociedades Tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; Centro
Universitário do Pará, 2006. p. 309-332.
165
De acordo com MP, art. “I - patrimônio genético é: a informação de origem genética, contida em
amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas
e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos
vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex
situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona
econômica exclusiva;”
166
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;”
167
“Artigo 1º da MP 2.186/01.
Art. 1º Esta Medida Provisória dispõe sobre os bens, os direitos e as obrigações relativos:
I - ao acesso a componente do patrimônio genético existente no território nacional, na plataforma
continental e na zona econômica exclusiva para fins de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico
ou bioprospecção;
II - ao acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, relevante à conservação da
diversidade biológica, à integridade do patrimônio genético do País e à utilização de seus componentes;
70
bioprospecção
168
, desde que não prejudiquem direitos de propriedade material ou
imaterial que incidam sobre o componente do patrimônio acessado ou sobre o local de
sua ocorrência.
169
Deve-se garantir, ainda, a repartição justa e equitativa dos benefícios
que derivam do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado.
Nesse primeiro momento é imprescindível destacar a relação do direito
intelectual coletivo
170
das comunidades tradicionais (locais, indígenas, quilombolas,
entre outras) com as transformações ocorridas na forma de apropriação do
conhecimento.
171
A apreensão do conhecimento se faz de uma maneira específica: o conhecimento
tradicional que antes era de uso restrito da comunidade, utilizado em proveito do
próprio grupo, aprimorado e repassado de geração em geração, num esforço conjunto e
coletivo, passou a ser explorado mediante complexas pesquisas científicas, geralmente
financiadas por grandes empresas, com o interesse na obtenção de um novo produto.
Concluída a etapa do desenvolvimento, a empresa solicita o registro de uma patente
relativa ao produto ou processo em questão, buscando enquadrá-lo como uma nova
invenção tecnológica ou industrial.
Desta forma, a sistemática de patentes garante o monopólio ao titular do
privilégio temporário (20 anos), instrumento por meio do qual os produtos,
III - à repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração de componente do patrimônio
genético e do conhecimento tradicional associado; e
IV - ao acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e a utilização da diversidade
biológica.
§ 1º O acesso a componente do patrimônio genético para fins de pesquisa científica, desenvolvimento
tecnológico ou bioprospecção far-sena forma desta Medida Provisória, sem prejuízo dos direitos de
propriedade material ou imaterial que incidam sobre o componente do patrimônio genético acessado ou
sobre o local de sua ocorrência.
§ 2º O acesso a componente do patrimônio genético existente na plataforma continental observará o
disposto na Lei n
o
8.617, de 4 de janeiro de 1993.”
168
Art. 7º, VII, da MP 2.186/01: “Bioprospecção: atividade exploratória que visa identificar componente
do patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com potencial de uso
comercial.”
169
YAMAMURA, Simone. Propriedade Intelectual e Plantas Transgênicas: Quadro regulatório e
implicações sobre pesquisa e inovação no Brasil. In: CARVALHO, Patrícia Luane de. Propriedade
Intelectual: Estudos em Homenagem à professora Maristela Basso. Vol. 2, Curitiba: Juruá, 2008. p. 299-
325.
170
Sobre o direito intelectual coletivo das comunidades tradicionais temos: SANTILLI, Juliana, op.cit., p.
227-228. “Quando pensamos no conteúdo normativo dos direitos intelectuais coletivos assegurados a
povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais sobre os seus conhecimentos tradicionais deve
estar presente a dupla natureza: moral e patrimonial. Os direitos morais devem implicar a possibilidade
jurídica que deve ser expressamente assegurada de se negar o acesso a tais recursos quando os povos
tradicionais entenderem que riscos ou ameaças à sua integridade intelectual, cultural e de valores
espirituais. Trata-se de um direito de objeção cultural, que implica também o direito de manterem tais
conhecimentos sob sigilo e confidencialidade.”
171
DIAFÉRIA, Adriana, op. cit., p. 176-177.
71
conhecimentos ou tecnologias são transformados em bem econômico, passível de
apropriação privada e alienação.
172
Nas palavras de Mauricio Mota:
173
O direito surge da mudança da forma de apropriação do conhecimento
tradicional. O que era velado, restrito, passa a ser público e
instrumentalizado, por terceiros, através de uma patente de invenção.
Por essa forma de disponibilização do seu conhecimento e pela
contribuição econômica de caráter indireto que essa disponibilização
representa para o processo de desenvolvimento do produto, os povos
indígenas e comunidades locais devem ser beneficiados, justa e
equitativamente, na exata medida de sua contribuição, para que não
ocorra um enriquecimento sem causa, por parte de nenhum dos
interessados no processo.
A Medida Provisória 2186-16/01 consolidou uma gama de direitos dos quais são
titulares os detentores de conhecimentos tradicionais, entre os quais os seguintes: a) de
se opor contra a exploração ilícita de seu conhecimento e outras ações lesivas ou não
autorizadas; b) de decidir sobre o uso de seus conhecimentos; c) de ter indicada a
origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações,
explorações e divulgações; d) de impedir terceiros não autorizados de utilizar e divulgar
seus conhecimentos; e) de perceber benefícios pela exploração econômica de seus
conhecimentos (artigos e 9º). No âmbito do Ministério do Meio Ambiente, a MP cria
o CGEN Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (art. 10º)
174
, órgão colegiado
composto por representantes do governo e da sociedade civil. Trata-se de entidade de
âmbito nacional, com poder normativo e deliberativo sobre as autorizações de acesso a
recursos genéticos e a conhecimentos tradicionais associados. Tal órgão coordena a
implementação de políticas para a gestão do patrimônio genético e estabelece normas e
diretrizes sobre a matéria, entre outras atribuições das quais trataremos detalhadamente
no capítulo seguinte.
172
DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade Intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998. p. 70.
173
MOTTA, Mauricio (coord.). Função Social do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p.
130-131.
174
“Artigo 10º: Fica criado, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, o Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético, de caráter deliberativo e normativo, composto de representantes de órgãos e
entidades da Administração Pública Federal que detêm competência sobre as diversas ações de que trata
esta Medida Provisória.”
72
Essa gama de competências, mesmo que passível de críticas
175
indica a fiel
observância aos princípios da Convenção sobre Diversidade Biológica CDB,
principalmente nos artigos 8º, j, 15 e 16. O consentimento prévio fundamentado e a
repartição justa e equitativa dos benefícios, princípios determinados pela CDB, têm
dupla implicação: por um lado, cabe aos países-membros estabelecerem, por meio de
legislação interna, normas disciplinando o acesso e a repartição de benefícios entre
países provedores e destinatários/utilizadores desses recursos; por outro, o respeito ao
artigo 8(j)
176
implica o consentimento prévio fundamentado dos povos indígenas,
quilombolas e populações tradicionais, detentores de conhecimentos tradicionais, e a
repartição dos benefícios derivados de sua utilização com seus detentores
177
.
Nota-se que o art. 8º, (J),
178
da CDB deixa claro que a utilização dos
conhecimentos deve estar de acordo com a vontade do povo detentor do referido
conhecimento, devendo para isso contar com o papel promocional do Estado,
consubstanciado na criação de políticas publicas
179
dirigidas às comunidades
tradicionais, “garantindo e observando os requisitos essenciais de validade dos
instrumentos jurídicos que concretizam a vontade desses povos de assegurar que a
175
Uma das críticas que a Medida Provisória 2.186/01 vem sofrendo está relacionada às reiteradas
versões admitidas desde sua primeira edição até hoje.
176
Sobre o artigo (j) da CDB temos: ORREGO, Carlos Ernesto Restrepo. Apropiación indebida de
recursos genéticos, biodiversidad y conocimientos tradicionales: “biopirateria”. Colômbia: Universidad
Externado de Colômbia, 2007. p. 80-87. “Los conocimientos tradicionales, en contexto CDB, es um
termino utilizado para describir um conjunto de conocimientos construído por um grupo de personas a
través de generaciones que viven em estrecho contacto com la naturaleza. Este conjunto incluye um
sistema de clasificación, um conjunto de observaciones empriricas acerca Del médio ambiente local y um
sistema de autogestión que rige la utilizacion de los recursos.(...) Tienem um valor econômico real o
potencial: su aplicación em el mercado generalmente produce dividendos econômicos. Si no tuviera esse
valor, el término conocimientos tradicionales pasaría desapercebido em la actualidad, y el tema seria de
interes solo para sociólogos, antropólogos e indigenistas entre otros”.
177
SANTILLI, Juliana, op.cit., p. 08-12.
178
Artigo 8º da CDB dispõe: “Cada parte contratante deve, na medida do possível e conforme o caso”:
J) “Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento,
inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais
relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla
aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e
encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento”.
179
Para o aprofundamento do conceito, ver: BUCCI, Maria Paula Dollari. Direito administrativo e
políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. “As políticas públicas são consideradas atividades típicas do
Estado social de direito e conseqüência direta da necessidade de participação social em sua efetivação. A
autora compreende por políticas públicas, a organização sistemática dos motivos fundamentais e dos
objetivos que orientam os programas de governo relacionados à resolução de problemas sociais.” PEREZ,
Marcos Augusto. A administração blica democrática: institutos de participação popular na
administração blica. Belo Horizonte: Fórum, 2004. “As políticas públicas permitem romper com as
barreiras que separam a administração pública da sociedade. Esta passa a participar da concepção, da
decisão e da sua implementação. Pode-se citar as audiências públicas e as consultas públicas, como
exemplos práticos da participação na elaboração das políticas públicas. Já o plebiscito administrativo, o
referendo, as comissões de caráter deliberativo são exemplos da participação no processo de decisão.
Exemplos de execução de políticas públicas são as comissões de usuários, a atuação de organizações
sociais ou de entidades de utilidade pública e a expansão dos serviços públicos.”
73
manifestação de vontade dos detentores de conhecimentos tradicionais seja livre de
vícios (simulação, fraude ou erro) e plenamente consciente e informada”
180
.
Sobre a questão do conhecimento prévio e da indicação da origem ao acesso do
conhecimento tradicional, temos o artigo 9º
181
da Medida Provisória 2186/01 e, no
mesmo sentido, o artigo 15 (5) da Convenção sobre Diversidade Biológica,
estabelecendo especificamente que “o acesso a recursos genéticos deve estar sujeito ao
consentimento prévio fundamentado da parte contratante provedora desses recursos, a
menos que de outra forma determinado por essa parte”. No entendimento da autora
Eliane Moreira
182
:
A Convenção passa a estabelecer regras para o acesso aos recursos
genéticos da biodiversidade constantes no artigo 15, dentre os quais
devem ser destacadas: a autoridade para determinar o acesso a
recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à
legislação nacional; o acesso deve ocorrer de comum acordo entre os
países; o acesso deve estar sujeito ao consentimento prévio
fundamentado da parte contratante provedora desses recursos, a
menos que de outra forma esta parte determine; as pesquisas com
recursos genéticos, providos por outras partes contratantes, devem se
dar com sua plena participação e, na medida do possível no seu
território; cada parte contratante deve adotar medidas que permitam o
compartilhamento justo e equitativo dos resultados da pesquisa e do
desenvolvimento tecnológico baseado nos recursos genéticos, bem
como a sua utilização comercial.
O consentimento prévio funciona como um mecanismo de consulta às
populações tradicionais detentoras do conhecimento. O interessado no acesso (empresa,
instituição ou pessoa física) deve divulgar a natureza, o objetivo, os riscos ou os
benefícios da atividade, respeitando as formas de organização e representação das
comunidades tradicionais. No âmbito desse consentimento, devem-se incluir o direito
180
Ibid., loc. cit.
181
MP 2.186/01, art. 9º: “À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm
ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:
I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações,
explorações e divulgações;
II - impedir terceiros não autorizados de:
a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento tradicional associado;
b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento
tradicional associado;
III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de
conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida
Provisória.
Parágrafo único. Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional associado ao
patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro
dessa comunidade, detenha esse conhecimento.”
182
Ibid., loc. cit.
74
dos povos detentores de negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais, quando
entenderem que a atividade traz riscos ambientais, culturais ou econômicos à
comunidade, ou quando não sentirem que os benefícios serão satisfatórios.
Para Juliana Santilli
183
:
O consentimento prévio fundamentado pode ser definido como o
procedimento pelo qual os povos e comunidades detentores dos
recursos tangíveis e intangíveis da biodiversidade autorizam,
voluntária e conscientemente, e mediante o fornecimento de todas as
informações necessárias, o acesso e a utilização, por terceiros, de tais
recursos. Deve ser considerado um processo ou procedimento,
constituído de varias fases e etapas, e não um ato contratual isolado.
A aplicação do princípio do consentimento prévio mostra-se de início uma
garantia para as comunidades tradicionais, na medida em que tal mecanismo visa a
estabelecer uma participação efetiva sobre as decisões relativas ao uso e coleta de
material genético. No entanto, temos que considerar que o conhecimento tradicional
continuará sendo tratado como matéria-prima. O consentimento por meio de uma
contra-prestação remunerada, ou da proposta de repartição de benefício, torna as
comunidades mais dependentes de contratos e não viabiliza melhores condições para a
proteção do saber tradicional e da diversidade biológica.
Uma das críticas dirigidas a MP está relacionada justamente à possibilidade de
substituição do princípio do consentimento livre, prévio e informado, consagrado pela
CDB, pelo conceito de “anuência prévia” (ato que compõe o procedimento do
consentimento prévio informado), referente ao art. 11, IV, b,
184
que é desprovido de
uma roupagem formal, tratando-se apenas de uma condição para autorização.
185
O
termo anuência não pode ser entendido como sinônimo de consentimento prévio
informado, “em que um sim ou não, infundados, viriam apenas para superar uma etapa
procedimental”
186
, pois desfigura o caráter de diálogo permanente, agregado pela CDB
ao conceito de consentimento, ao passo em que o termo anuência prévia não possui um
conceito definido na MP e margem a interpretações restritivas, concretizadas sob a
183
Ibid., p. 230.
184
MP 2186/ 01, art. 11: “Compete ao Conselho de Gestão: IV - deliberar sobre: b) autorização de acesso
a conhecimento tradicional associado, mediante anuência previa de seu titular.”
185
BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In:
LIMA, André et al. Quem Cala Consente?: Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais.
São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. p. 13.
186
KISHI, Sandra Akemi Shimada; KLEBA, John Bernhard (coord.). Dilemas de acesso a biodiversidade
e aos conhecimentos tradicionais: direito, política e sociedade. Belo Horizonte: Forum, 2009. p. 209-
210.
75
forma de propostas de adoção de procedimentos informais, a título de anuência
187
. Neste
sentido, a MP contraria o princípio da participação social, suscitado pelo art. 15 (5) da
CDB, excluindo a efetiva participação das comunidades tradicionais de discutirem sobre
o consentimento ou não de seus saberes, expandindo para outros órgãos decisão que
deveria ser restrita apenas aos povos tradicionais. Conforme dispõe o artigo 16, § 9º, da
MP:
Art. 16. O acesso a componente do patrimônio genético existente em
condições in situ no território nacional, na plataforma continental e na
zona econômica exclusiva, e ao conhecimento tradicional associado
far-se-á mediante a coleta de amostra e de informação,
respectivamente, e somente será autorizada a instituição nacional,
pública ou privada, que exerça atividades de pesquisa e
desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, mediante prévia
autorização, na forma desta Medida Provisória.
§ 9º A Autorização de Acesso e de Remessa dar-seapós a anuência
prévia: I - da comunidade indígena envolvida, ouvido o órgão
indigenista oficial, quando o acesso ocorrer em terra indígena; II - do
órgão competente, quando o acesso ocorrer em área protegida; III - do
titular de área privada, quando o acesso nela ocorrer; IV - do Conselho
de Defesa Nacional, quando o acesso se der em área indispensável à
segurança nacional; V - da autoridade marítima, quando o acesso se
der em águas jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na
zona econômica exclusiva.
A Medida Provisória, na busca de cumprir os objetivos da Convenção sobre
Diversidade Biológica, menciona, ainda, no capítulo VII (artigos 24º a 29º) a repartição
justa e equitativa dos benefícios derivados do uso de conhecimentos tradicionais,
listando possibilidades como royalties, divisão de lucros etc. Trata-se da possibilidade
das comunidades detentoras de conhecimentos tradicionais participarem dos resultados
das pesquisas, que poderá derivar em perspectiva de uso comercial.
A CDB, em seu artigo 15, ao recomendar a repartição justa e equitativa dos
benefícios gerados por meio do uso do material genético coletado, estabelece as formas
de troca admissíveis, que poderão tratar de: benefícios financeiros advindos de várias
formas, como pagamento antecipado de royalties
188
e dividendos, permitindo a
participação dos países provedores dos recursos genéticos nos ganhos econômicos
alcançados com a exploração comercial desses recursos; transferência de tecnologia e
187
BORGES. Paulo Roberto Vieira. A Ausência de Proteção Legal aos Conhecimentos Tradicionais
Indígenas no Brasil. Brasília: UNB, 2002. p. 51.
188
Royalties é um direito que o titular da patente tem de receber benefícios (compensação) a partir do uso
de sua invenção por terceiros.
76
capacitação de recursos humanos para o país ou comunidade que concedeu o acesso;
além de outros meios mutuamente acordados
189
.
Nesse sentido, temos o entendimento de Alessandro Octaviani
190
:
A CDB, em seu artigo 15 (“Acesso a Recursos Genéticos”) e 8
(“Conservação in situ”), traz enunciações com a lógica da repartição
dos benefícios advindos da utilização dos recursos genéticos.
Basicamente está-se diante de textos normativos que encartam, dentro
da exploração tecnológica e econômica, o compartilhamento dos
resultados alcançados com aqueles que (ainda que não integrando a
operação com nenhum titulo jurídico salvo o de provedores dos
recursos genéticos ou detentores de conhecimentos tradicionais que
tornaram possível a sapiência sobre a informação a ser utilizada)
devem receber algo, pois sem eles simplesmente a operação não
existiria, quer porque a biodiversidade seja encarada como resultado
de uma interação histórica na qual o homem constitui o ambiente,
quer, de maneira direta, porque o conhecimento acumulado em
gerações permite identificar possibilidades que a pesquisa
contemporânea levaria muito tempo para enxergar.
O lado positivo do mecanismo da justa repartição de benefícios
191
é a garantia de
que o conhecimento tradicional utilizado naquele novo produto patenteado transformou-
se em ativo e, conseqüentemente, em capital. Um acordo de partilha de benefícios
forneceria a auto-suficiência econômica do grupo, tendo em vista que muitas das
comunidades locais e povos indígenas vivem hoje em situação de extrema pobreza.
Além disso, tal procedimento incentivaria a conservação e utilização sustentável dos
recursos naturais. No entanto, parece-nos que os mecanismos mais eficientes são
aqueles que implicam a participação e o envolvimento das comunidades nas atividades
de pesquisa e proteção dos recursos biológicos e não apenas uma participação formal e
189
SILVA, Américo Luis Martins de. Direito do Meio Ambiente e dos recursos naturais. V. 3. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006. p. 191.
190
LUIS, Alessandro S. Octaviani. Recursos Genéticos e Desenvolvimento: Os desafios furtadiano e
gramsciano. Tese de Doutorado em Direito Econômico e Financeiro. São Paulo: Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo USP, 2008. p. 192.
191
DAVIS, Michael. Indigenous peoples and intellectual property rights. Research paper n. 20.
Information and Research Services, Departamento of the Parliamentary Library, Canberra, 1997.
Destaca-se a iniciativa realizada pela Austrália no âmbito do Governo do Commonwealth que será
relevante para a biodiversidade e conhecimentos tradicionais. “A Commonwealth Estado Grupo de
Trabalho sobre Acesso a Recursos Biológicos da Austrália está a desenvolver uma proposta de um quadro
regulamentar ao acesso aos recursos biológicos da Austrália. Este documento está em discussão desde
1996 e propõe uma abordagem nacional coerente em matéria de gestão de acesso, e defende um sistema
de multi-finalidade contratual. Este sistema é baseado no desenvolvimento de contratos entre aqueles que
pretendem coletar recursos biológicos, e os proprietários em causa desses recursos. Segundo o relatório,
este tipo de contratos tem flexibilidade de ser concebido para atender às circunstâncias e condições
específicas, bem como as exigências de leis e políticas nas jurisdições particulares nas quais se aplicam.
Entre os supostos benefícios deste sistema é que ele iria garantir um retorno justo para a jurisdição de
quaisquer benefícios financeiros resultantes da exploração dos recursos e para a partilha de benefícios e
outras informações sobre o recurso que pode ajudar ainda mais a sua conservação e gestão”.
77
vulnerável de um contrato que muitas vezes não observa a dimensão coletiva do
conhecimento tradicional.
No entendimento de Marcelo Dias Varella
192
:
A repartição de benefícios pode ser realizada de diversas maneiras:
pagamento monetário direto; transferência de tecnologia; construção
de infra-estrutura para a comunidade que fornece o recurso; pesquisa
sobre enfermidades locais, equipamentos; participação em benefícios
monetários associados aos direitos de propriedade intelectual, dados e
informações taxonômicas, bioquímicas, ecológicas, hortícola e outras,
por meio de resultado de pesquisa, publicações e materiais
educacionais: acessos a coleções e banco de dados; benefícios em
espécies, tais como ampliação de coletas nacionais no país de origem
e apoio ao de treinamento em ciência; entre outros.
O contrato de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios
deverá indicar e qualificar com clareza as partes contratantes, quais sejam, de um lado,
o proprietário da área publica ou privada, ou o representante da comunidade indígena e
do órgão indigenista oficial, ou o representante da comunidade local, e, de outro, a
instituição nacional autorizada a efetuar o acesso e a instituição destinatária
193
.
Notadamente, de acordo com o artigo 28 da MP, o contrato deverá conter cláusulas
essenciais que disponham sobre: “I – objeto, seus elementos, quantificação da amostra e
uso pretendido; II prazo de duração; III forma de repartição justa e equitativa de
benefícios e, quando for o caso, acesso à tecnologia e transferência de tecnologia; IV
direitos e responsabilidades das partes; V direito de propriedade intelectual; VI
rescisão; VII penalidades; VIII foro no Brasil”. Observa-se ainda que o Contrato de
Utilização do Patrimônio Genético terá eficácia após a anuência do Conselho de
Gestão
194
.
Em última análise, quanto à MP 2.186/01 abordaremos um tema que tem sido
alvo de intensos debates
195
na comunidade acadêmica, que são os registros do
192
VARELLA, Marcelo Dias. Tipologia de normas sobre controle do acesso aos recursos genéticos. In:
PLATIAU, Ana Flavia Barros; VARELLA, Marcelo Dias. Diversidade Biológica e Conhecimentos
Tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 121.
193
Artigo 27 da Medida Provisória 2.186/01.
194
Artigo 29 da MP 2.186/01.
195
Sobre o tema ver: TESCARI, Adriana Sader. A Biodiversidade como Recurso Estratégico: Uma
Reflexão do Ângulo da Política Externa. Artigo publicado no CEBRI Centro Brasileiro de Relações
Internacionais. Disponível em: <www.cebri.org.br, a cessado em 10.10.2009>. “Estima-se que o acesso
ao conhecimento tradicional, proveniente de comunidades tradicionais que utilizam a biodiversidade não
apenas para alimentação, mas igualmente para fins medicinais, em rituais, de combate a pragas e na
agricultura, pode proporcionar uma redução de até 50% nos custos de pesquisa e de desenvolvimento de
um novo produto químico. O potencial econômico desses conhecimentos associados a biodiversidade
78
conhecimento tradicional e do patrimônio genético coletado em banco de dados
196
,
como preconiza alguns artigos da Medida Provisória 2.186/01, tais como: art. 8º, § 2º,
que assim dispõe: “O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de que
trata esta Medida Provisória integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto
de cadastro, conforme dispuser o Conselho de Gestão ou legislação específica”; art. 11º,
II, (d): “Compete ao Conselho de gestão: II estabelecer: d) critérios para a criação de
base de dados para o registro de informação sobre conhecimento tradicional associado”;
art. 15º, IX, (b): “Fica autorizada a criação, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente,
de unidade executora que exercerá a função de secretaria executiva do Conselho de
Gestão, de que trata o art. 10º desta Medida Provisória, com as seguintes atribuições,
dentre outras: IX criar e manter: b) base de dados para registro de informações obtidas
durante a coleta de amostra de componente do patrimônio genético”.
A implementação de um banco de dados relativos aos conhecimentos
tradicionais funcionaria como fonte de consulta para as empresas, laboratórios de
pesquisa, universidades, órgãos de propriedade intelectual, facilitando o reconhecimento
e a originalidade de determinado conhecimento tradicional. Seria um registro gratuito,
facultativo e meramente declaratório, que ajudaria no exame dos requisitos de
patenteabilidade, principalmente no que se refere à novidade e atividade inventiva. Esse
recurso facilitaria, também, a identificação das comunidades detentoras de certos
conhecimentos, agilizando o processo de consentimento prévio, além de promover a
repartição de benefício entre as comunidades detentoras.
O Decreto 3.551/2000
197
instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial sob a responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
resulta em debates polêmicos, como o da criação de bancos de dados. Distingue-se nesse debate países
megadiversos que se posicionam a favor de registros ou base de dados sobretudo porque os
conhecimentos tradicionais estão, nesses países, predominantemente disseminados na sociedade e
países como o Brasil, em que os conhecimentos tradicionais são detidos por comunidades indígenas e
locais que advogam o direito de não registrá-los ou torná-los públicos. No entendimento dos países que se
aliam ao Brasil, tais bases de dados ou registro não estariam protegendo ou preservando os
conhecimentos, mas sim facilitando sua apropriação indevida, em desrespeito aos direitos das
comunidades”.
196
Dentre os marcos legais a serem considerados visando à elaboração de diretrizes para a criação de
bases de dados envolvendo conhecimentos tradicionais associados, possui especial relevância a
Convenção 169, de 1989, da Organização Internacional do Trabalho, principal instrumento internacional
vinculante de defesa de direitos indígenas na atualidade.
197
Decreto 3.551/00: “Art. - Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que
constituem patrimônio Cultural Brasileiro.
§ 1º - Esse Registro se fará por meio de um dos seguintes livros:
I Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no
cotidiano das comunidades;
79
Nacional (IPHAN), efetuando o registro e associando mais de uma forma de saber, por
meio de quatro livros: I Livro de Registro dos Saberes, para conhecimentos do
cotidiano das comunidades; II Livro de Registro das Celebrações, para festas e rituais;
III Livro de Registro de Formas de Expressão, para musicas, obras literárias, artes
plásticas e cênicas; IV Livro de Registro dos Lugares, onde se concentram e
reproduzem práticas culturais coletivas
198
.
Embora pareça totalmente relevante a criação de um banco de dados para o
registro das comunidades e dos respectivos conhecimentos tradicionais, alguns
doutrinadores argumentam que tal registro não reduziria em nada a prática da
biopirataria, pois os dados armazenados são públicos e a apropriação dos conhecimentos
seria de fácil acesso, sem ao menos se precisar de consentimento prévio. O assunto é
tratado por Juliana Santilli
199
com o seguinte enfoque:
Na ausência de normas relativas ao acesso às informações disponíveis
em bancos de dados e registro, a disponibilização de informações em
tais bancos apenas facilita o trabalho de bioprospectores, que poderão
acessá-las livremente e sem o cumprimento dos requisitos da CDB:
consentimento prévio informado e repartição de benefícios derivados
de sua utilização comercial. Ademais, os registros podem tornar
publicas informações que os povos indígenas e tradicionais
eventualmente preferem manter sigilosas e confidenciais, por razões
culturais e/ou espirituais.
Outro ponto desfavorável à criação de banco de dados consiste na
impossibilidade de catalogar e registrar muitas das variadas práticas reconhecidas como
conhecimento tradicional, advindas de múltiplas comunidades como: quilombolas,
ribeirinhas, seringueiros etc. “Empreender tamanho esforço de catalogação e
II Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência
coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
III Livro de Registro das Fontes de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais,
plásticas, cênicas e lúdicas;
IV Livro de Registro de Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.
§ 2º - A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referencia a continuidade histórica do bem
e sua relevância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.
§ - Outros livros de registro poderão ser abertos para inscrição de bens culturais de natureza imaterial
que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no parágrafo
primeiro deste artigo”.
198
BELAS, Carla Arouca. Mecanismos de Proteção dos Conhecimentos Tradicionais: um diálogo entre
as esferas ambiental e cultual. Assessoria Jurídica e Propriedade Intelectual Museu Paraense Emilio
Goeldi. Texto adaptado de palestra proferida no encontro para discussões sobre Direitos Culturais
Difusos, 2004. p. 67-68.
199
Ibid., p. 235-239.
80
documentação não nos parece prioritário como instrumento de proteção aos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade”
200
.
Neste sentido, salienta Ela Wiecko V. de Castilho
201
:
O conhecimento tradicional não é estático. Estocá-lo ex situ é fixá-lo
temporalmente e transformá-lo numa peça de museu com utilização e
eficácia bastante restritas, pertinentes a um passado que se tornará
cada dia mais e mais remoto. Ademais, coletar e documentar
conhecimentos tradicionais quando os direitos de propriedade
intelectual de seus detentores são ignorados, e quando os resultados
arquivados são inacessíveis a eles, é, no mínimo, antiético.
Apesar dos argumentos contrários à criação dos bancos de dados acima
expostos, acreditamos que tal instrumento apresenta traços mais positivos do que
negativos. Primeiro, porque funcionaria como fonte de consulta, a fim de se provar a
origem do material genético, facilitando a confirmação de que o conhecimento utilizado
na pesquisa de determinado produto ou processo a ser patenteado realmente pertence a
tal comunidade. Segundo, porque esse processo ainda contribuiria para previsão de
participação dos benefícios ou para facilitar o pedido de anulação de uma patente que
não tivesse autorização para utilizar tal conhecimento. “No Brasil, o INPI vem
desenvolvendo um trabalho com pajés de diversas etnias para a criação de um banco de
dados de registro dos conhecimentos e povos indígenas relacionados ao uso de plantas
medicinais e demais recursos naturais”
202
.
No âmbito internacional,
203
a catalogação dos conhecimentos tradicionais pode
vir a significar a criação de procedimentos para atestar a utilização de determinados
recursos biológicos e conhecimentos na obtenção de um novo tipo de produto ou
processo. O instrumento funcionaria como uma espécie de garantia para os países e as
para as comunidades que forneceram os recursos e conhecimentos para a obtenção de
200
Ibid., p. 238.
201
CASTILHO, Ela Wiecko V. Parâmetros para o regime jurídico sui generis de proteção ao
conhecimento tradicional associado a recursos biológicos e genéticos. In: MEZZAROBA, Orides (org.).
Humanismo latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, Fondazione Cassamarca, 2003.
p. 453-472.
202
BELAS, Carla Arouca. Curso de Introdução a Propriedade Intelectual. Museu Paraense Emilio Goldi.
Belém Pará, 2004. p. 30.
203
SANTILLI, Juliana, op. cit., p. 235-236. A autora cita algumas experiências realizadas com banco de
dados em outros países tais como: a) banco de dados e registros realizados pelos próprios indígenas, como
o caso dos Inut, de Nunavik, Canadá; b) a Biblioteca Digital de Conhecimento Tradicional, na Índia,
voltada especialmente para proteger a medicina tradicional; c) o FUDECI Fundação para o
Desenvolvimento das Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais, vinculadas a Academia Nacional de
Ciência da Venezuela, que contém informações sobre medicina tradicional, tecnologias ancestrais e
conhecimentos tradicionais relacionados a agricultura e nutrição; entre outros.
81
uma nova invenção biotecnológica, por exemplo. Além disso, esse tipo de organização e
disponibilização de informação pode servir de subsídio às atividades científicas,
diminuindo custos das pesquisas e agilizando o desenvolvimento científico e
tecnológico do país, sem, contudo, monopolizar o conhecimento tradicional.
ainda algumas questões pertinentes a serem tratadas com base na Medida
Provisória 2.186/01, não mais sob o olhar da CDB, mas da Lei de Propriedade
Intelectual Lei 9.279/96, que é a questão da titularidade da patente. De acordo com o
artigo 6º § 2º, da LPI,
204
o autor da invenção terá o direito assegurado de obter a patente
que lhe garanta a propriedade de tal invenção, nas condições estabelecidas em lei.
Estamos nos referindo ao benefício do registro da patente para o inventor devidamente
identificado. Com a carta patente de invenção (documento comprobatório da autoria da
invenção), fica assegurado não apenas a propriedade do invento, como também o direito
de exploração industrial do produto.
Contudo, permanece o inconveniente de que o registro da patente é reconhecido
à pessoa, como sujeito de direito individual, e como tal mostra-se inadequada a sua
aplicação ao conhecimento tradicional fruto da interação coletiva. O sujeito de direito
nas comunidades tradicionais é a coletividade, de modo que esse conhecimento não
poderá ser atribuído a uma só pessoa ou a uma comunidade, pois estamos falando de
uma titularidade difusa
205
e dispersa entre várias comunidades
206
.
204
O artigo 6 § 2º da LPI assim dispõe:
“Art. 6º: Ao autor de invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente que lhe
garanta a propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.
§ A patente poderá ser requerida em nome próprio, pelos herdeiros ou sucessores do autor, pelo
cessionário ou por aquele a quem a lei ou o contrato de trabalho ou de prestação de serviços determinar
que pertença a titularidade”.
205
Sobre o caráter difuso da comunidade tradicional ver entendimento de Eliane Moreira, op. cit., p. 31-
32. “(...) o conceito de conhecimentos difusos quando aplicados aos conhecimentos tradicionais jamais
poderá ser confundido com conceito de conhecimento de domínio público, posto que relacionados com
um feixe de direitos originários dos povos tradicionais que lhes imprime a marca dos direitos
consuetudinários. Ora domínio público é o conhecimento de ninguém, conhecimento difuso é
conhecimento de alguém: titulares indetermináveis, mas existentes. Essa mesma gica se aplica aos
conhecimentos tradicionais disponibilizados nos livros, em banco de dados, feiras livres, etc.”
206
Ver também observações de Juliana Santilli sobre o tema (op. cit., p. 234). “Quando os conhecimentos
tradicionais forem compartilhados por mais de um povo indígena, quilombola ou população tradicional, o
exercício dos direitos por um ou mais detentores não deve prejudicar ou restringir os direitos de outros
povos e comunidades co-detentoras. Assim é que se propõe e estabelecimento e o reconhecimento dos
direitos intelectuais coletivos sobre os conhecimentos tradicionais, dando-se a máxima extensão possível
ao próprio conceito de „coletivo‟, para que abarque não os conhecimentos compartilhados de um povo
ou comunidade. Dessa forma, se estará rompendo com o paradigma individualista do nosso direito, que se
limita a prever a titularidade ou co-titularidade individual de direitos, e reconhecendo os povos
tradicionais como sujeitos coletivos de direitos, o que melhor traduz a sua realidade cultural”.
82
De acordo com Carla Arouca Belas: “Os conhecimentos tradicionais, na maioria
dos casos, não estão restritos a uma única comunidade. São compartilhados por várias,
não se sabendo ao certo qual comunidade detém a autoria e nem, ao menos, a extensão
da difusão desse conhecimento”.
207
Portanto, é visível a incompatibilidade entre a MP 2.186/01 e a LPI no aspecto
da titularidade da patente. A dificuldade se no processo de identificação e
qualificação dos inventos exigidos pela Lei de Propriedade Intelectual para se obter o
registro da patente. Por mais que as comunidades tradicionais tenham um líder ou um
representante (como é o caso das populações indígenas) que possa assumir a titularidade
do invento, não nos parece possível a identificação individualizada de um conhecimento
que é coletivo. Ainda que seja possível admitir a proteção do conhecimento tradicional
pelo instrumento da Lei de Propriedade Intelectual, este seria voltado para a proteção do
saber tradicional como exploração econômica, pois é este o intuito da LPI (patente):
proteger o produto ou processo. Já no que se refere ao conhecimento tradicional, espera-
se a proteção de sua cultura, usos e costumes, técnicas de manejo para proteção
ambiental, estilo de vida, entre outros. Ressaltam-se, também, as questões relativas aos
requisitos da concessão do benefício da patente (novidade, atividade inventiva e
aplicação industrial)
208
, tratadas anteriormente e que também corroboram o
entendimento de que a Lei de Propriedade Intelectual não é o mecanismo adequado de
proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
No mesmo sentido dispõem Catherine Albertin e Valérie Boisvert
209
:
De fato, os conhecimentos tradicionais jamais caberão na forma dos
direitos de propriedade intelectual, pois esses se servem à proteção de
um direito gerado em bases e em campos próprios, possuindo
fundamentos ontológicos diferenciados, em verdade, no caso da
propriedade intelectual trata-se de proteger o produto (ou processo),
em se tratando de conhecimento tradicional importa proteger a cultura
e seus elementos circundantes, ainda que possa, subsidiariamente,
servir-se de outro sistema. Na essência, os conhecimentos tradicionais
se distanciam do sistema de propriedade intelectual, esse distanciado
da utilidade social das invenções e próximo da lógica de mercado,
segundo o primado do lucro e do individualismo, é preciso que se
reconheça que a ética, a transparência da pesquisa e seu controle
público não são itens que compõem a lógica do sistema de
propriedade intelectual.
207
Ibid., p. 31.
208
Artigo da Lei 9.279/96: “É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade
inventiva e aplicação industrial”.
209
AUBERTIN, Catherine; BOISVERT, Valérie. Os Direitos de Propriedade Intelectual a Serviço da
Biodiversidade: uma questão conflituosa. Ciência e Ambiente. Santa Maria: UFSM, 1999. p. 67-68.
83
Se vários autores tiverem realizado a mesma invenção ou modelo de utilidade,
de forma independente, o direito de obter o benefício da patente caberá àquele que
provar o depósito mais antigo, independentemente das datas da invenção ou criação.
Esse é outro ponto identificado na LPI (artigo 7º)
210
que podemos considerar
inadequado com a proteção do conhecimento tradicional, tendo em vista que “é
impossível definir um marco temporal de vigência para quaisquer direitos intelectuais
sobre conhecimentos tradicionais, cuja origem exata no tempo dificilmente poderá ser
precisada (...)”
211
. Sabemos que o processo de crião do conhecimento tradicional é
compartilhado com a coletividade em um processo de produção contínua e
intergeracional, além do mais, tal conhecimento é transmitido no decorrer do tempo
pelos usos e costumes por meio da oralidade sendo muito complexo determinar o
momento da criação, fator que condiciona a definição do prazo de vigência da patente a
ser concedida. O conhecimento tradicional tem seu próprio sistema científico, não
trabalha com prazos de vigência nem tampouco tem como provar a data da criação de
seus inventos. Neste sentido, o prazo de 20 anos de vigência da patente estabelecido no
artigo 40
212
da Lei LPI também torna-se um ponto negativo para a proteção do
conhecimento tradicional, pois, se é impossível precisar qual a data da criação do
invento das comunidades tradicionais, como executar este prazo estabelecido pela lei?
Atenta-se também ao fato de que, se concedida a patente, o conhecimento ficaria restrito
e monopolizado pelo inventor ou pelos inventores por esse período, restringindo o
intercâmbio e a circulação de idéias e informações referentes a tais conhecimentos
213
.
No entendimento de Manuela Carneiro da Cunha
214
:
O sistema de patentes torna reservado um conhecimento que era
compartilhado de maneira diversa, seja por especialização local, seja
por livre circulação de idéias e informações. O sistema de patentes
210
Artigo 7º da Lei 9.279/96: “Se dois ou mais autores tiverem realizado a mesma invenção ou modelo de
utilidade, de forma independente, o direito de obter patente será assegurado àquele que provar o depósito
mais antigo, independentemente das datas de invenção ou criação.”
211
Ibid., loc. cit.
212
Artigo 40 da Lei 9.279/96: “A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de
modelo de utilidade pelo prazo de 15 (quinze) anos contados da data de depósito”.
213
ORREGO, Carlos Ernesto Restrepo, op. cit., p. 104. “Suponiendo que a los conocimientos
tradicionales se les concede una protección como a los DPI, más precisamente como las patentes de
invención (20 os), uma vez vencido el termino de la proteccion, esse conocimiento devine de privado a
publico, y cualquiera puede acceder a él y utilizarlo. Incluso antes de esta situación, si se explotaran
economicamente los conocimientos tradicionales y los reursos naturales de los cuales se derivan,
implicarían uma deforestación sin precedentes.”
214
CUNHA, Manuela Carneiro. Introdução. Enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: práticas e
conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 11-30.
84
prejudica o modo como se produzem e usam os conhecimentos
tradicionais, e não é possível usar, para proteger os conhecimentos
tradicionais, os mesmos mecanismos que protegem a inovação nos
países industrializados, sob pena de destruir o sistema que os produz e
matar o que se queria conservar. Afinal, o que é “tradicional” no
conhecimento tradicional não é sua antiguidade, mas o modo como ele
é adquirido e usado, pois muitos desses conhecimentos são de fato
recentes.
Diante da inadequada adaptação da Lei de Propriedade Intelectual para proteção
do conhecimento tradicional e do efetivo fracasso da Mediada Provisória 2.186/01,
retomaremos a idéia de criação de um mecanismo de proteção diferenciado sui
generis , que atenda aos interesses coletivos das comunidades tradicionais e à
conservação da biodiversidade, considerando os verdadeiros imperativos de tutela e
respeito do saber tradicional e das práticas sociais de cada população.
3.3 Um regime sui generis de proteção do conhecimento tradicional
A idéia de um mecanismo sui generis de proteção do conhecimento tradicional
não é apenas uma tentativa de adaptação ao sistema patentário preconizado pela Lei de
Propriedade Intelectual. A proposta é a criação de um novo regime de proteção que
atenda às características culturais e coletivas das comunidades tradicionais, baseando-se
na realidade desses povos, deslocando-se o debate do campo do utilitarismo econômico
para o campo da defesa do patrimônio cultural, garantindo a sua identidade coletiva e
atuando também no combate à biopirataria.
No sentido de aprofundarem as discussões sobre a criação de um sistema de
proteção dos seus conhecimentos associados à biodiversidade, diversas iniciativas
foram tomadas no Brasil pelos povos indígenas e suas organizações. Uma dessas
iniciativas foi o Encontro de Pajés, ocorrido em 2001, resultando no documento
atualmente conhecido como a “Carta de São Luís do Maranhão”
215
. Esse documento
ilustra em alguns pontos os temas que deveriam ser tratados na criação de um regime
sui generis de proteção das populações tradicionais. Dentre eles destacam-se:
Propomos aos governos que reconheçam os conhecimentos
tradicionais como saber e ciência, conferindo-lhe tratamento
215
Carta de São Luis do Maranhão, em anexo.
85
equitativo em relação ao conhecimento científico ocidental,
estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a
importância dos conhecimentos tradicionais.
Propomos que se adote um instrumento universal de proteção jurídica
dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui
generis, distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade
intelectual (...).
Propomos que a criação de banco de dados e registros sobre
conhecimentos tradicionais seja discutida amplamente com
comunidades e organizações indígenas e que a sua implantação seja
após a garantia dos direitos mencionados neste documento.
Como representantes indígenas, afirmamos nossa oposição a toda
forma de patenteamento que provenha da utilização dos
conhecimentos tradicionais e solicitamos a criação de mecanismo de
punição para coibir o furto da nossa biodiversidade.
O debate sobre a necessidade de criação de um regime legal sui generis de
proteção dos direitos coletivos das comunidades sobre seus conhecimentos tradicionais
vem ocorrendo tanto no âmbito nacional quanto internacional. A proposta é defendida
por vários autores, entre eles Vandana Shiva e Gurdial Nijar, que propõe a eliminação
de qualquer tipo de monopólio ou apropriação exclusiva sobre conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade. Essa proposta teórica, que depende, para sua
efetivação, da reconstrução crítica de categorias tradicionais do direito, prega, em
síntese, que os conhecimentos tradicionais devem circular de forma livre e que a sua
utilização comercial ou industrial deve ser remunerada e previamente consentida por
seus detentores, que, como já visto, integram um universo coletivo.
216
Cabe salientar que o Acordo TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual), mencionado anteriormente de forma crítica, em seu artigo
27, 3 (b),
217
admite que os países signatários excluam plantas e animais da
patenteabilidade, sendo-lhes facultado dispor de um sistema sui generis para a proteção
da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado
218
. Esse é o único
dispositivo do acordo TRIPS a fazer referência à propriedade intelectual da agricultura
216
FREIRIA, Rafael Costa. Perspectivas para uma teoria geral dos novos direitos: uma leitura crítica
sobre Biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados. Franca: UNESP, 2004. Dissertação.
Mestrado. Direito. Faculdade de História, Direito e Serviço Social. UNESP. p. 105.
217
Acordo TRIPS, art. 27.3: “Os Membros também podem considerar como não patenteáveis: b) plantas e
animais, exceto microorganismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas e
animais, não sendo alcançados pela exceção os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante,
os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um
sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos”.
218
Ibid., loc. cit.
86
e, como salienta Vanessa Iacomini
219
, “o faz de maneira bastante ampla, abrindo uma
margem considerável aos Membros para que regulamentem a proteção das variedades
vegetais conforme lhes convenha”. A permissão poderá ser na forma de patentes, um
sistema sui generis ou até mesmo a combinação de ambos. Nota-se que o intuito é que
se harmonizem regras jurídicas de proteção, que atenda questões culturais, sociais e
econômicas. Conforme mencionado anteriormente, tal mecanismo foi adotado pelo
Brasil quando estabeleceu o Direito de Melhorista
220
regulado pela Lei de Cultivares
9456/97, numa tentativa de definir regras distintas da propriedade intelectual, com base
em outros conceitos e pressupostos. Dessa forma, nosso país deve seguir as
determinações constantes na Convenção para a Obtenção das Variedades Vegetais,
estabelecidas pela União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais
(UOPV)
221
A Lei 9456/97, em seu artigo 3º, inciso IV, define cultivar
como a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que
seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por
margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja
homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações
sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo
agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e
acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos.
A proteção de cultivares proporciona ao melhorista o reconhecimento do direito
à propriedade intelectual de novas obtenções vegetais. Estas não poderão ser
reproduzidas comercialmente sem a sua autorização. Os interessados na multiplicação
das sementes e mudas da nova variedade deverão negociar os royalties, que deverão ser
pagos, com o obtentor. Antes desse sistema sui generis, o novo material caía no
domínio público e as sementes e mudas eram multiplicadas por terceiros, para obter
lucros sem nenhum retorno ou estimulo para o melhorista. Portanto, o novo mecanismo
possibilitou a recuperação do investimento financeiro e o tempo na pesquisa que, em
alguns casos, dependendo da espécie, pode demorar até 20 anos. Todo o processo de
proteção no Brasil ocorre baseado na análise documental das informações apresentadas
219
IACOMINI, Vanessa, op. cit., p. 34-35.
220
DEL NERO, Patrícia Aurélio, op. cit., p. 314. “Direito de melhorista é uma modalidade de propriedade
intelectual que tem como objetivo ou finalidade reconhecer o desenvolvimento por parte dos obtentores
das novas variedades de plantas, conferindo, por prazo determinado, direito exclusivo para sua
exploração”.
221
O sistema da UPOV de proteção de variedades vegetais surgiu com a adoção da Convenção
Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais por intermédio de uma Conferência Diplomática,
em 02 de dezembro de 1961, em Paris. A partir de então, foram reconhecidos, em todo o mundo, os
direitos de propriedade intelectual dos obtentores sobre suas variedades vegetais.
87
pelo obtentor. A entidade responsável pela certificação de cultivares no Brasil é o
Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), representado pelo Ministério de
Agricultura, entidade para a qual deve ser dirigida os pedidos de proteção.
a proposta de um mecanismo sui generis de proteção aos conhecimentos
tradicionais deve ser fundamentada no reconhecimento da pluralidade étnica e na
aceitação dos parâmetros coletivos das comunidades indígenas e locais, consentindo o
livre intercâmbio de seus saberes, difundindo suas tradições e criatividade,
contribuindo, assim, para a própria existência material dos recursos biológicos.
A seguir destacaremos alguns pressupostos a serem contemplados por um
regime de proteção sui generis ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade:
Elaboração de políticas públicas que assegurem a continuidade da produção
dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, reconhecendo a
necessidade da proteção tanto dos componentes tangíveis (recursos naturais),
como os intangíveis (saberes tradicionais) que regem a sustentabilidade
desses povos. “O regime jurídico de se pautar pelo paradigma de gestão
ambiental fundamental, que oriente a uma política publica consistente de
conservação de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais
associados”
222
.
Elaboração de um regime jurídico que contemple a valorização dos
conhecimentos tradicionais na promoção do manejo e uso sustentável da
biodiversidade, prevenindo a exploração ilícita dos recursos biológicos,
punindo a prática da biopirataria, respeitando as regras locais, por meio do
consentimento prévio, de modo que as comunidades autorizem ou não
expressamente o acesso de quaisquer recursos genéticos situados em seus
territórios, com previsão de forma de participação nos lucros gerados por
processos ou produtos resultantes dos mesmos repartição justa e equitativa
de benefícios.
“Garantia da titularidade coletiva dos direitos intelectuais de povos indígenas
e populações tradicionais. Ainda que as normas internas de alguns povos ou
222
ARAÚJO, Ana Valéria, op. cit., p. 372-373. In: MOTA, Maurício (coord.). Função Social do Direito
Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009
88
populações possam atribuir direitos individuais sobre determinados
conhecimentos em alguns casos, o regime jurídico sui generis deve se limitar
a reconhecer os direitos coletivos daqueles povos, delegando ao direito
interno de cada comunidade regular as suas relações internas”
223
.
Previsão expressa de que são nulas e não produzem efeitos jurídicos as
patentes concedidas por invenções resultantes da exploração dos
conhecimentos das comunidades indígenas e tradicionais, promovendo a
inversão do ônus da prova em favor das comunidades em ações judiciais
visando a anular a patente, de forma que competirá à pessoa ou empresa
demandada provar o contrário.
Verifica-se que qualquer regime jurídico sui generis voltado para a proteção do
conhecimento tradicional apresentará traços de resistência contra o regime
predominante de proteção da propriedade intelectual, que por sua característica
individualista e monopolista tende a desvalorizar os saberes tradicionais associados à
biodiversidade. Conforme entendimento de Juliana Santilli
224
:
A simples transformação dos conhecimentos tradicionais em
mercadorias e commodities, a serem negociadas no mercado,
representa a subversão da lógica que preside a própria produção
desses conhecimentos. Entretanto, a relações entre os povos indígenas,
quilombolas e populações tradicionais e a sociedade envolvente e o
chamado “mercado” obedecem a uma lógica e a contextos sociais,
econômicos e culturais que escapam ao controle de um instrumento
jurídico.
Embora a possibilidade de proteção dos conhecimentos tradicionais apresente
diversos enfoques, atualmente as tentativas de um mecanismo efetivo de proteção
jurídica estão voltadas para a adaptação das características fundamentais do
conhecimento tradicional e dos parâmetros estabelecidos pelos direitos de propriedade
intelectual. Contudo, essa postura, como estrutura básica de um regime sui generis, não
nos parece muito positiva. Adaptar os conhecimentos tradicionais e as exigências da Lei
de Propriedade Intelectual é uma imposição aculturada, que desconhece o sentido
genuíno dos saberes tradicionais em troca de valores mercantilistas, ou seja, os debates
sobre o tema acabam cumprindo as exigências de uma demanda de mercado.
223
Ibid., loc. cit.
224
SANTILLI Juliana, op. cit., p. 215.
89
CAPÍTULO IV CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
(CGEN) E O INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL
(INPI): BIOPIRATARIA
4.1 Conflitos entre o CGEN e o INPI: biopirataria
Destinamos este capítulo para análise desses dois órgãos (CGEN e INPI),
considerados como fundamentais quando o assunto é regulamentação e acesso ao
patrimônio genético e concessão da propriedade intelectual sobre conhecimento
tradicional associado à biodiversidade.
O Conselho de Gestão de Patrimônio Genético CGEN, citado anteriormente,
foi instituído no ano de 2002 pela Medida Provisória 2.186/01, complementado por
diversos instrumentos, tais como: os Decretos 3945/2001, 4946/2003 e 5459/2005, além
de várias resoluções e orientações técnicas. Esse órgão, coordenado pelo Ministério de
Meio Ambiente (MMA), formulou as regras para o acesso a componentes do patrimônio
genético e a conhecimentos tradicionais, sendo sua competência: coordenar a
implementação de políticas públicas para a gestão do patrimônio genético; estabelecer
normas técnicas, critérios para as autorizações de acesso e de remessa, diretrizes para a
elaboração do Contrato de Utilizão do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios; e ainda formular os critérios para a criação de bases de dados para o registro
de informação sobre conhecimento tradicional associado.
Cumpre registrar que a principal função do CGEN é deliberar e emitir
autorização
225
específica sobre as solicitações de acesso a recursos do patrimônio
genético e ao conhecimento tradicional para quaisquer das finalidades a seguir citadas:
pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico. A autorização de
225
RODRIGUES, Edson Beas Jr. Aquecimento Global, destruição da Amazônia e o Sistema
TRIPS/OMC: Um Diálogo com Sabrina Safrin. In: IACOMONI, Vanessa. Propriedade Intelectual e
Biotecnologia, p. 181-202. “A MP e seu decreto regulamentador, excepcionalmente, não se aplicam às
seguintes atividades, estando dispensada da obtenção de autorização de acesso a componente do
patrimônio genético emitida pelo CGEN: I) as pesquisas que visem elucidar a história evolutiva de uma
espécie ou de grupo taxonômico (...), avaliação da diversidade genética da população ou das relações dos
seres vivos entre si ou com o meio ambiente; II) os testes de filiação, técnicas de sexagem e analises de
cariótipo que visem à identificação de uma espécie ou espécime; III) as pesquisas epidemiológicas (...);
IV) as pesquisas que visem à formação de coleções de ADN, tecidos germoplasma, sangue ou soro”.
90
acesso e de remessa, nos termos da MP (art. 7º, inciso X), é o “documento que permite,
sob condições específicas, o acesso à amostra de componente do patrimônio genético e
sua remessa à instituição destinatária e o acesso a conhecimento tradicional associado”.
Somente com essa autorização, a instituição poderá acessar o patrimônio genético,
devendo, ainda, cumprir com as determinações legais impostas pelo CGEN para
continuar o andamento da sua pesquisa. Portanto, qualquer instituição, pública ou
privada, que queira desenvolver pesquisa, processo ou produto que utilize o patrimônio
genético nacional e/ou saber tradicional deverá submeter-se ao CGEN.
O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético era composto unicamente por
representantes da Administração Pública Federal, mas, em agosto de 2002, o governo
Fernando Henrique Cardoso encaminhou ao Congresso um projeto de lei que altera a
composição do referido conselho, prevendo a participação de convidados permanentes
representantes de setores da sociedade civil, na proporção de até 20% da totalidade de
seus membros. Esses representantes passaram a participar, ainda que em caráter
informal, das reuniões temáticas do CGEN. São eles: ONGS, organizações indígenas,
quilombolas, populações tradicionais, instituições de pesquisa científica, empresários,
etc.
Com o intuito de tornar mais ágil o procedimento de autorização e buscando
facilitar a realização de pesquisa científica, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis IBAMA foi credenciado pelo CGEN
226
em 2003,
para autorizar as atividades de acesso ao patrimônio genético, com a finalidade de
pesquisa científica. O objetivo era evitar a concentração, num único órgão, das
autorizações de acesso ao patrimônio genético e de coleta de material biológico
bioprospecção. O termo bioprospecção, da forma como vem previsto na MP (art. 7º,
inciso VII), denota a “atividade exploratória que visa identificar componente do
patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com
potencial de uso comercial”.
O solicitante da autorização para fins de bioprospecção deve cumprir os critérios
relacionados no Decreto 4.946/03, devendo, para isso, iniciar o procedimento
administrativo junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Dentre
alguns critérios, destacamos: a) comprovação de que a instituição está constituída sob as
leis brasileiras, exerce atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e
226
Deliberação 40/2003.
91
afins; b) apresentação de anuência prévia da comunidade indígena e local envolvida; c)
indicação do destino das amostras de componentes do patrimônio genético ou das
informações relativas ao conhecimento tradicional associado; d) localização geográfica
e cronograma das etapas do projeto, especificando o período em que serão
desenvolvidas as atividades de campo; e) discriminação do tipo de material ou
informação a ser acessado e quantificação aproximada de amostras a serem obtidas; f)
identificação da equipe de pesquisadores envolvidos, entre outros.
o Decreto 5459/05 regulamentou o artigo 30 da MP 2.186/01, disciplinando
as sanções aplicáveis às condutas lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento
tradicional associado, dando outras providências relativas à matéria. Pelos artigos 24 e
25
227
do referido Decreto, o exercício ilícito das prerrogativas inerentes à patente
consubstancia uma série de infrações passiveis de multas, que terão sua exigibilidade
suspensa se o autuado, por termo de compromisso aprovado pela autoridade
competente, obrigar-se à adoção de medidas específicas para adequar-se ao disposto na
MP.
228
Essa medida reforça a necessidade da observância dos direitos dos povos
indígenas e das comunidades tradicionais sobre a indicação da origem do conhecimento
acessado e da justa e equitativa repartição de benefícios, além da necessidade do
consentimento prévio informado dessas comunidades.
Na MP 2.186-16/01 a propriedade intelectual é mencionada no artigo 31, que
declara a concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes sobre
processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético,
devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento
tradicional associado, quando for o caso.
227
Decreto 5459/05. Art. 24. Omitir ao Poder Público informação essencial sobre atividade de acesso a
conhecimento tradicional associado, por ocasião de auditoria, fiscalização ou requerimento de autorização
de acesso ou remessa: Multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 100.000,00 (cem
mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$ 200,00 (duzentos reais) e máxima de
R$ 5.000,00 (cinco mil reais), quando se tratar de pessoa física.
Art. 25. As multas previstas neste Decreto podem ter a sua exigibilidade suspensa, quando o autuado, por
termo de compromisso aprovado pela autoridade competente, obrigar-se à adoção de medidas específicas
para adequar-se ao disposto na Medida Provisória no 2.186-16, de 2001, em sua regulamentação e demais
normas oriundas do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.
§ Cumpridas integralmente as obrigações assumidas pelo autuado, desde que comprovado em parecer
técnico emitido pelo órgão competente, a multa será reduzida em até noventa por cento do seu valor,
atualizado monetariamente.
§ 2 º Na hipótese de interrupção do cumprimento das obrigações dispostas no termo de compromisso
referido no caput, quer seja por decisão da autoridade competente ou por fato do infrator, o valor da multa
será atualizado monetariamente.
§ 3 º Os valores apurados nos termos dos §§ 1º e serão recolhidos no prazo de cinco dias do
recebimento da notificação.
228
MOTA, Mauricio, op. cit., p 132.
92
O que se pretende com esse dispositivo é condicionar a concessão dos direitos
relativos à patente, conforme os ditames da MP, ou seja, para se obter o benefício da
propriedade industrial, o requerente deverá comprovar a anuência prévia, a garantia de
repartição de benefício e a autorização do CGEN. É neste dispositivo que se instala um
dos maiores conflitos entre o CGEN e o INPI, que resiste em cumprir as determinações,
alegando a necessidade de regulamentação do artigo 31. Alegam, ainda, que tais
exigências descumprem as regras do Acordo TRIPS sobre a criação de novos requisitos
para a obtenção da patente. O texto que foi objeto de regulamentação é o art. 31 da MP
2.186/01, que assim dispõe:
A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos
competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de
componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância
desta Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do
material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for
o caso.
De acordo com o biólogo Henry de Novion
229
, num de seus comentários sobre o
relatório do Tribunal de Contas da União sobre Biopirataria.
Segundo o TCU, o INPI não está aplicando o artigo 31 da MP
2186/01, que exige a comprovação da legalidade do acesso ao
material genético ou conhecimento tradicional utilizado no processo
ou produto sobre o qual se requer a concessão da patente, impedindo
que o Brasil cumpra um dos objetivos da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB): repartição justa e equitativa dos
benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. Além disso,
segundo o relatório, o não cumprimento parte do INPI ameaça as
negociações internas nacionais conduzidas pelo Ministério das
Relações Exteriores junto à organização Mundial do Comercio para
adequar o Acordo TRIPS aos dispositivos da CDB.
Visando a discutir as formas de implementação do artigo 31 da MP 2.86/01, que
exige o certificado de procedência legal para a concessão de patentes biotecnológicas
pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI, o CGEN, por meio da
Resolução 23
230
, criou um Grupo de Trabalho, com o intuito de rastrear, por intermédio
229
NOVION, Henry. Tribunal de Contas da União revela omissão do INPI no cumprimento da
legislação de acesso a recursos genéticos. Notícias Socioambientais. São Paulo: Instituto Socioambiental,
06.09.2006. Disponível em: <www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2318>. Acesso em: 10/11/2009.
230
Atualmente, a questão é tratada na Resolução 34, de 12.02.2009, do CGEN que revogou a resolução
23.
“Art. Esta Resolução estabelece a forma de comprovação da observância da Medida Provisória no
2.186-16, de 23 de agosto de 2001, para fins de concessão de patentes de invenção pelo Instituto Nacional
da Propriedade Industrial INPI, em observância ao disposto no art. 31 da referida Medida Provisória.
Art. Para efeitos de comprovação da observância das disposições da Medida Provisória 2.186-16, de
2001, o requerente de pedido de patente de invenção cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de
acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional realizado a partir de 30 de junho de
93
desses dois órgãos, a repartição de benefícios, estabelecendo um controle da concessão
de patentes sobre o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. Tal
resolução determinou que o depositante de pedido de patente de invenção resultante do
acesso a componente do patrimônio genético realizado entre 30/06/2000 e a data da
publicação da resolução 10/11/2006 declarasse ao INPI a origem do material genético e
do conhecimento tradicional associado, além de informar o número e data da
autorização de acesso correspondente.
Em observância à MP 2186/01 e à Resolução 23 do CGEN, o INPI editou a
Resolução 134
231
em 13.12.2006, que normalizou os procedimentos relativos ao
requerimento de pedidos de patente, exigindo do requerente que informe ao INPI se o
objeto do pedido foi obtido ou não em decorrência de um acesso a componente do
patrimônio genético nacional. Em caso afirmativo, o requerente deverá informar a
origem do componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional. A
prestação da informação é condição para a continuação do trâmite do pedido da patente.
Com essa Resolução, os requerentes de pedidos de patentes cujo objeto decorra de
amostra do patrimônio genético nacional, acessados a partir de 30 de junho de 2000 e
que estejam depositados no INPI na entrada em vigor da Resolução 23, de 10 de
novembro de 2006 do CGEN, deverão comprovar em formulários específicos que estão
de acordo com as normas da MP 2.186/01, além de informar a data da autorização, bem
como a origem do material genético ou do conhecimento tradicional. Pedidos de
patentes resultantes de acesso realizado antes dessa data não necessitam comprovar a
procedência legal, na medida em que o acesso foi feito antes da vigência do primeiro
marco legal sobre o assunto, no caso a MP 2.186/2001.
Contudo, apesar de essas duas medidas apresentarem os principais mecanismos
defendidos pela Convenção da Diversidade Biodiversidade para obter um regime
internacional de repartição dos benefícios oriundos dos recursos genéticos ou dos
conhecimentos tradicionais, esses instrumentos constituem um procedimento lento e
burocrático, pois o CGEN levava em torno de dois anos para analisar e conceder a
autorização necessária para o depósito da patente. O longo período necessário para a
obtenção de autorização do CGEN configurava um entrave às pesquisas envolvendo
2000 deverá informar ao INPI a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado,
quando for o caso, bem como o número da correspondente Autorização de Acesso concedida pelo órgão
competente.
Art. 3º Fica revogada a Resolução 23, de 10 de novembro de 2006.”
231
Resolução 134, de 13.12.2006, em anexo.
94
componentes do patrimônio genético nacional. Desse modo, os investimentos e a
exploração de direitos de propriedade intelectual associados à biotecnologia também
acabam ficando sujeitos aos longos anos de análise de pedidos de patentes pelo INPI.
Outro ponto passível de crítica é observado em ambas as resoluções, tanto do
CGEN, quanto do INPI, que exigem do requerente do pedido de patente uma mera
declaração da origem do material genético, não havendo a imposição de nenhuma força
coercitiva no caso de descumprimento das determinações, pois não há, também, a
previsão de nenhum órgão ou medida de fiscalização sobre as autorizações. Conforme
entendimento de Dutfield
232
:
(...) alternativamente, estas exigências poderiam ser apresentadas fora
dos processos de pesquisa e exame, como medidas administrativas. O
problema é que um solicitante de patente pode ser tentado a omitir a
divulgação do conhecimento tradicional relevante. Não existe
nenhuma razão particular para que um examinador suponha que uma
dada invenção seja baseada em conhecimento tradicional, a menos que
o candidato revele. Assim, na maioria dos casos, é improvável que o
examinador suspeite disso, e a patente será então concedida sob o
pressuposto de que preenche as exigências normais.
Atendendo à solicitação do INPI para que se definisse o momento adequado para
a apresentação da autorização pelo CGEN, o Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético revogou a resolução 23, aprovando a Resolução 34
233
, publicada no Diário
Oficial da União em 24 de março de 2009, determinando que:
para efeitos de comprovação da observância das disposições da
Medida Provisória 2186-16, de 2001, o requerente de pedido de
patente de invenção cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de
acesso à amostra de componente de patrimônio genético nacional
realizado a partir de 30 de junho de 2000 deverá informar ao INPI a
origem do material genético e do conhecimento tradicional associado,
quando for o caso, bem como o número correspondente a Autorização
de Acesso concedida pelo órgão competente.
Posteriormente, o INPI, atendendo a solicitação das diversas entidades de
pesquisa científica e, ainda, na tentativa de dinamizar o processo de pedidos de patentes,
acabou revogando a Resolução 134, apresentando a Resolução 207,
234
de 24.04.2009,
determinando em seu artigo 3º que: “por ocasião do exame do pedido de patente, o INPI
232
DUTFIELD, Grahan. Repartindo benefícios da biodiversidade: qual o papel do sistema de patentes?
In: PLATIAU, Ana Flavia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (org.). Diversidade Biológica e
conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 93.
233
Resolução 34 CGEN, em anexo
234
Resolução 207, INPI, em anexo
95
poderá formular a exigência necessária a sua regularização, com vistas ao cumprimento
do disposto no artigo
235
, que deverá ser atendida no prazo de sessenta dias, sob pena
de arquivamento do pedido de patente, nos termos do art. 34
236
, inciso II da Lei 9.279,
de 14 de maio de 1996.”
Nota-se que a teia burocrática estabelecida pelo CGEN somada às dificuldades
de adaptação as regras pelo INPI acabaram por desestimular o acesso e uso legal do
patrimônio genético local: “entre os anos de 2003 e 2006, segundo os dados disponíveis
pelo CGEN, foram autorizadas apenas 41 (quarenta e uma) solicitações de acesso a
recursos genéticos, sendo que 37 (trinta e sete) das autorizações foram concedidas em
favor de universidades ou centros de pesquisa públicos brasileiros, e apenas 4 (quatro)
foram concedidas em favor de instituições privadas brasileiras”
237
, tais como: Natura
Inovação e Tecnologia de Produtos Ltda., Quest International do Brasil Indústria e
Comércio Ltda., Extracta Moléculas Naturais S.A. e a UNIP (Universidade Paulista).
Os obstáculos existentes na regulamentação do acesso e uso dos recursos
genéticos refletem, primeiro, como fator desestimulante e limitador do progresso
tecnológico no setor público e privado envolvido com pesquisa e desenvolvimento
(P&D) na área biotecnológica, segundo na facilitação da apropriação clandestina do
nosso patrimônio genético nacional caracterizado pela biopirataria
238
. O que se pode
inferir é que o Brasil, apesar de ser um dos maiores defensores do certificado de
procedência legal
239
no âmbito internacional sobre acesso ao patrimônio genético, tem
235
Art. 2º da resolução 207- INPI: “O requerente de pedido de patente de invenção cujo objeto tenha sido
obtido em decorrência de acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional, realizado a
partir de 30 de junho de 2000, deverá informar ao INPI, em formulário especifico, instituído por este ato,
na forma de seu Anexo I, isento do pagamento de retribuição, a origem do material genético e do
conhecimento tradicional associado, quando for o caso, bem como o numero da Autorização de Acesso
correspondente”.
236
“Art. 34. Requerido o exame, deverão ser apresentados, no prazo de 60 (sessenta) dias, sempre que
solicitado, sob pena de arquivamento do pedido:
I - objeções, buscas de anterioridade e resultados de exame para concessão de pedido correspondente em
outros países, quando houver reivindicação de prioridade;
II - documentos necessários à regularização do processo e exame do pedido; e
III - tradução simples do documento hábil referido no § 2º do art. 16, caso esta tenha sido substituída pela
declaração prevista no § 5º do mesmo artigo.”
237
IACOMINI, Vanessa, op. cit., p. 191.
238
A essa utilização indevida chama-se biopirataria. De modo geral, o termo significa: “a apropriação de
recursos genéticos e/ou conhecimentos de comunidades tradicionais, por indivíduos ou por instituições
que procuram o controle exclusivo ou monopólio sobre estes recursos e conhecimentos, sem autorização
estatal ou das comunidades detentoras destes conhecimentos e sem a repartição justa e eqüitativa de
benefícios oriundos destes acessos e apropriações”. Definição de Biopirataria extraída de:
<http://www.cenargen.embrapa.br/cenargenda/opiniao.html>. Acesso em: 02/11/2009.
239
“O certificado de procedência legal nada mais é do que a exigência de que o interessado em uma
patente biotecnológica apresente ao INPI a autorização de acesso a patrimônio genético expedido pelo
CGEN para que seu pedido seja analisado. A autorização do Cgen atesta que o acesso que resultou
96
dificuldades administrativas e legislativas de programar tais mecanismos, o que nos leva
a concluir que a difícil interpretação jurídica e as atuais exigências burocráticas para a
autorização de pesquisa no campo da biodiversidade impedem os objetivos maiores
estabelecidos pela CDB que são: a conservação da biodiversidade local por meio de sua
utilização ampla e sustentável em favor das presentes e futuras gerações; a garantia do
acesso e da remessa legal de material biológico; o consentimento prévio fundamentado;
a repartição justa e equitativa de benefícios às comunidades tradicionais envolvidas na
pesquisa.
Ao tratarmos das questões centrais sobre o debate da proteção jurídica do
conhecimento tradicional e a proteção da biodiversidade, vemos o grande impasse
estabelecido entre as comunidades científicas e as tentativas do governo em fixar
parâmetros para regulamentar o acesso aos recursos naturais e o patrimônio genético
nacional.
A primeira questão diz respeito à necessidade de se garantir o equilíbrio entre a
proteção dos conhecimentos tradicionais e as atividades de pesquisa, sem que isso opere
no sentido de inviabilizar as atividades, tendo em vista que a fixação de normas
excessivamente rigorosas cria obstáculos nem sempre superáveis pelos pesquisadores.
Segundo, temos a questão da facilitação ou a criação de vias rápidas de acesso aos
conhecimentos tradicionais para pesquisas chamadas de pura, ou seja, aquelas que a
priori não seriam exploradas para fins econômicos. Nesse caso, a dificuldade se no
momento de definir limites precisos para separar a chamada pesquisa pura da pesquisa
aplicada, que busca antecipadamente um objeto ou um processo a ser patenteado.
Portanto, seria um risco acreditar que uma pesquisa pura não seja futuramente objeto de
exploração econômica, seria uma insegurança jurídica para as comunidades tradicionais
aceitar esse tipo de negociação.
Assim expressa Ana Valéria Araújo
240
:
Os cientistas alegam que o excesso de normas torna a realização da
pesquisa com conhecimentos tradicionais uma corrida de obstáculos
quase impossível de ser vencida, onde a proliferação de exigências faz
com que qualquer pesquisador possa ser alvo da acusação de que
naquele pedido contou com o consentimento prévio informado do provedor do patrimônio genético ou do
conhecimento tradicional (quando for o caso), bem como a repartição de benefícios derivados do seu uso
comercial”. MATHIAS, Fernando. CGEN cria grupo para discutir certificado de procedência legal para
patentes biotecnológicas. Publicação do Instituto Socioambiental, ISA, em 03.08.2006. Disponível em:
<https://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2295>. Acesso em: 09/11/2009.
240
ARAUJO, Ana Valéria, op. cit., p. 376-377.
97
estaria agindo em desacordo com a legislação e, portanto, praticando
uma irregularidade, que o tornaria passível inclusive de algum tipo de
punição na esfera penal. Para os cientistas, isto levaria a uma
criminalização das suas atividades, que os colocaria diante de um
dilema: ou abandonar suas pesquisas, ou levá-las adiante correndo o
risco de serem acusados de quebrar normas e desrespeitar direitos.
Observa-se que o tema da biopirataria, reflexo deste conflito burocrático
existente entre o CGEN e o INPI, esteve presente em todos os tópicos tratados neste
trabalho: a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais, as inovações biotecnológicas,
o regime de acesso aos recursos genéticos e a propriedade intelectual. Isso demonstra a
amplitude desse fenômeno, que ainda não é penalizado pela legislão brasileira.
Comentamos anteriormente que a bioprospecção é um processo que se inicia
com uso de recurso genético e do conhecimento tradicional, envolvendo uma série de
atividades de coletas e pesquisas de amostras biológicas, terminando na fabricação de
um novo produto para uso medicinal, os fármacos. Pois bem, para Vandana Shiva
241
, a
bioprospecção seria uma mera forma sofisticada de biopirataria, uma maneira
“camuflada” de descrever esse mesmo processo, uma vez que também se utiliza da
exploração da biodiversidade e do saber tradicional.
Não temos ainda um conceito universal do que seja biopirataria, porém algumas
tentativas visam a criar uma definição compatível com esse fenômeno, são elas:
Biopiratería es una práctica mediante la cual investigadores o
empresas utilizan ilegalmente la biodiversidad de países en desarrollo
y lo conocimientos colectivos de los pueblos indígenas o campesinos,
para realizar productos y servicios que se explotan comercial y/o
industrialmente sin la autorización de sus creadores o innovadores.
242
Biopirataria é o ato de transferir recurso genético (animal ou vegetal)
e/ou conhecimento tradicional associado a biodiversidade, sem a
expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso da
comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado
conhecimento ao longo dos tempos
243
(...) a biopirataria abrange a apropriação de plantas, animais e
conhecimentos, além de amostras de tecidos orgânicos, genes e
células com potencial para serem explorados economicamente. Trata-
se de uma operação muito especializada, caracterizada pelo
241
Ibid., p. 307-310.
242
DELGADO, Isabel. Biopiratería en América latina. Casos célebres de apropiación ilegal de nuestros
conocimientos colectivos. Biodiversidad, junio de 2004, Uruguay. p. 25.
243
MESQUITA, Andréa. Biopirataria: fauna e flora brasileira ameaçada pela ação de traficantes. Revista
Justilex, ano II, n. 15, mar. 2003. Disponível em: <www.justilex.com.br>. Conceito do Instituto
Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, da Tecnologia da Informação e Desenvolvimento
(CIITED).
98
contrabando dos recursos naturais e da aprendizagem dos
conhecimentos tradicionais, para serem posteriormente registrados
individualmente.
244
A pesquisadora sobre biopirataria Marilena Lavorato acrescenta ainda que:
a biopirataria é o desvio ilegal das riquezas naturais (flora, águas e
fauna) e do conhecimento das populações tradicionais sobre a
utilização dos mesmos. (...) Em várias regiões da Amazônia,
pesquisadores estrangeiros desembarcam com vistos de turista, entram
na floresta, muitas vezes, infiltrando-se em comunidades tradicionais
ou em áreas indígenas. Estudam diferentes espécies vegetais ou
animais com interesse para as indústrias de remédios ou de
cosméticos, coletam exemplares e descobrem, com o auxílio dos
povos habitantes da floresta, seus usos a aplicações. Após obterem
informações valiosas, voltam para seus países e utilizam as espécies e
os conhecimentos das populações nativas para isolarem os princípios
ativos. Ao ser descoberto o princípio ativo, registram uma patente, que
lhes o direito de receber um valor a cada vez que aquele produto
for comercializado. Vendem o produto para o mundo todo e até
mesmo para o próprio país de origem, cujas comunidades tradicionais
já tinham o conhecimento da sua utilização.
245
Além da Medida Provisória 2.186/01, que, por intermédio do CGEN, criou
regras para o acesso e remessa de componentes do patrimônio genético, outras medidas
legais adotaram procedimentos especiais na tentativa de coibir a biopirataria. O Decreto
4.339/2002 criou a Política Nacional da Biodiversidade, que tem como objetivo a
implementação e o detalhamento das diretrizes trazidas pela CDB, considerando que a
preservação e a utilização sustentável dos recursos genéticos são estratégicos para o
desenvolvimento. O Decreto 4.703/2003 instituiu o Programa Nacional da diversidade
Biológica (PRONABIO), que tem por objetivo orientar a elaboração da Política
Nacional da Biodiversidade, mediante parcerias com a sociedade civil para o
conhecimento e a conservação da diversidade biológica, assim como a repartição justa e
equitativa dos benefícios derivados de sua utilização
246
.
Contudo, apesar de os decretos terem pontos relevantes para o combate à
biopirataria, o tema não tem sido diretamente abordado no âmbito jurídico. A doutrina
244
IACOMINI, Vanessa. Biodireito e o combate à biopirataria. Curitiba: Juruá, 2009. p. 94-95.
245
LAVORATO, Marilena Lino de Almeida. Biodiversidade, um ativo de imenso valor: biopirataria,
plantas medicinais e etnoconhecimento. Disponível em: <http://www.ecoterrabrasil.com.br/home/index.
1359>. Acesso em: 09/11/2009.
246
MAGALHÃES, Vladimir Garcia. Bioprospecção dos recursos genéticos no Brasil: Autorização ou
licença administrativa? In: BENJAMIN, Antonio Herman; LECEY, Eladio, CAPPELLI, Silvia (coords.).
Congresso Internacional de Direito Ambiental. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2008. p. 762-774.
99
tem se debruçado sobre temas específicos, como os alimentos transgênicos, o
conhecimento tradicional e indígena, a exploração da biodiversidade, as patentes de
biotecnologia, entre outros, que oferecem distintas menções sobre biopirataria, dando
por finalizada a pertinência do tema.
Podemos dizer que o que desperta interesse econômico nos biopiratas sobre a
biodiversidade são os recursos biológicos (entendidos como plantas e animais), com a
finalidade de extrair recursos genéticos e composições químicas. sobre o
conhecimento tradicional, o interesse está exatamente nas práticas acumuladas ao longo
de varias gerações sobre planta e medicamentos, produtos da medicina natural. Temos
também a biopirataria sobre componentes humanos, representados pelos componentes
do corpo humano, órgãos, genes, seqüências de genes e células. Tal interesse foi
intensificado na última década tendo como fatores preponderantes a transferência de
tecnologia (as novas biotecnologias, a genômica, a bioinformática e a nanotecnologia),
entre outros.
As deficiências na legislação que trata do acesso de recursos genéticos e
conhecimento tradicional (MP 2.186/01) e conseqüentemente do Conselho de Gestão
(CGEN) contribuíram para a prática da biopirataria no Brasil. Ao analisarmos a CPI
247
da Biopirataria, notamos que esse fenômeno é muito mais abrangente e nocivo do que
parece e que o Brasil é o grande alvo dos infratores. Primeiro, por abrigarmos em nosso
território nacional uma vasta riqueza nos biomas da Floresta Amazônica e da Mata
Atlântica; segundo pela existência de populações nativas, indígenas, ribeirinhas,
caboclas, quilombolas e outras mais, dotadas de conhecimentos milenares aplicados na
prática da conservação e uso sustentável da biodiversidade local. Portanto, esse
conjunto de riquezas biológicas se tornou um grande atrativo para as empresas
interessadas em pesquisa e patente de material biológico.
As informações coletadas pela CPIBIOPI são bem variadas e apontam para
inúmeros casos identificados de tráfico da fauna e flora nacionais, bem como comércio
ilegal de madeira. Quanto ao contrabando de animais, apurou-se que a comercialização
247
A CPI da Biopirataria reconhecida pela sigla CPIBIOPI, teve por objetivo investigar o tráfico de
animais e plantas silvestres brasileiras, a exploração e o comércio ilegal de madeira. Teve como autor o
Deputado Sarney Filho e outros. Composta por 22 membros, sua primeira reunião aconteceu em
25/08/2004, com a instalação dos trabalhos e a eleição do Presidente Antonio Carlos Mendes Thame. Seu
relatório final foi publicado em março de 2006.
100
ilegal se dava pela imprensa, Internet e, a mesmo, em criadouros e centros de
triagem
248
.
Na prática, os Centros de Triagem e Recuperação de Animais Silvestres,
conhecidos como CETAS, foram criados pelo IBAMA para abrigar temporariamente as
espécies apreendidas pelo tráfico, por abandono e por doações. A CPIBIOPI, em suas
investigações, verificou que o número de CETAS implantados pelo IBAMA é
insuficiente para receber a quantidade de animais apreendidos pelo instituto
249
, além do
mais, muitos se encontram em situações precárias de manutenção, reduzindo-se a
viveiros improvisados. “Essa é uma das razões pelas quais o índice de mortalidade
nessa etapa pode chegar a 50%, dependendo da maneira como os animais são
acondicionados e transportados”
250
. De acordo com os depoimentos colhidos nas
investigações, muitos abrigos não têm uma fiscalização efetiva pelo IBAMA,
facilitando o fomento do tráfico, principalmente das espécies mais valorizadas pelo
mercado de animais silvestres.
As questões indígenas e dos povos tradicionais também foram alvo de
investigação da CPI. Além dos casos de comércio ilegal de artesanato indígena e
exploração de suas terras por garimpeiros, madeireiros e missionários, outra constatação
foi a de que a legislação existente e o Estatuto do Índio não têm acompanhado e
evolução e as necessidades das populações indígenas no que se refere aos problemas
sociais encontrados na região Amazônica, como o alcoolismo, desnutrição infantil,
prostituição. Tais problemas foram confirmados pelo Presidente da FUNAI, que admitiu
à CPI “a dificuldade de controlar a entrada de missionários religiosos e de madeireiros
nas áreas indígenas, em função da representatividade que este detém no próprio
248
Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Biopirataria (CPIBIOPI). Câmara dos
Deputados. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/internet/comissao/index/cpi/Rel_Fin_CPI_Biopirataria.pdf>. Acesso em:
24.11.2009.
249
De acordo com o relatório do Projeto CETAS-Brasil, de 2005, do MMA/IBAMA, também
encaminhado a esta CPIBIOPI, o número de animais apreendidos pelo instituto que passou pelos CETAS
de a 2003 apresentou media em torno de 44 mil espécimes por ano, excluindo-se os peixes ornamentais.
A grande maioria (80% a 90%) constitui-se de aves, seguidas de répteis (por volta de 11% na média dos
anos 2002 e 2003) e de mamíferos (cerca de 5% na média dos dois anos citados)”. Dados referentes a
CPIBIOPI. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/internet/comissao/index/cpi/Rel_Fin_CPI_Biopirataria.pdf>. Acesso em:
10/11/2009.
250
Ibid., loc. cit.
101
Congresso”.
251
Reconhece também o fato de que pesquisadores atuam em terras
indígenas sem o conhecimento da FUNAI.
Quanto ao conhecimento tradicional, a CPIBIOPI alerta para o fato de que a
fiscalização das atividades desenvolvidas por pesquisadores estrangeiros no Brasil deve
ser rigorosa, contudo, sugere que os mecanismos de controle não criem empecilhos à
pesquisa séria e comprometida com a conservação da natureza e o desenvolvimento
nacional. Quanto ao acesso ao patrimônio genético, elaborou algumas diretrizes de
políticas públicas que reforçariam o combate a biopirataria, destacando-se entre seus
objetivos: a) promover a ampliação do controle social no acompanhamento dos
contratos aprovados pelo CGEN, bem como a participação das populações tradicionais
da Amazônia nas discussões sobre biopirataria; b) implantar o Programa Nacional de
Registro Etnobiológico, visando à proteção do conhecimento tradicional e a articulação
política entre os Estados e Países da Amazônia; c) implantar um controle permanente
das atividades desenvolvidas por organizações não-governamentais em terras indígenas,
com a participação da FUNAI e outros órgãos, entre outros.
Com efeito, as condutas relacionadas à biopirataria discutidas na CPI
demonstram a necessidade de complementação do ordenamento jurídico em diversos
temas. Destacamos do relatório final da CPIBIOPI algumas recomendações específicas
em relação às regras legislativas, tais como:
A) Rever as normas constantes da MP 2.186/01, visando a: a)
aprimorar os mecanismos de repartição de benefícios; b) facilitar as
regras de acesso à pesquisa; c) determinar o fato gerador para efeito de
repartição de benefícios; d) ampliar a segurança jurídica da
bioprospecção.
B) Finalizar a tramitação do Projeto de Lei 7.211/02 que prevê o tipo
penal de biopirataria, assegurando que ele seja apenado com sanções
severas, e que se permita aos operadores da fiscalização dispor de
todas as ferramentas investigativas necessárias.
C) Tipificar como crime a apropriação dos conhecimentos tradicionais
de comunidades locais;
D) Definir a titularidade do patrimônio genético, finalizando-se as
discussões em torno da PEC 618/98, de modo a consagrar o
patrimônio genético como bem da União, assegurada a previsão de
repartição de benefícios envolvendo o Estados, Municípios e
comunidades tradicionais;
E) Independente de qualquer regulamentação, garantir a aplicação
plena e imediata à determinação do artigo 31da MP 2186/01, de 23 de
agosto de 2001, qual seja “a informão pelo requerente da origem do
material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for
251
Ibid., loc. cit.
102
o caso”, pelo órgão governamental responsável pela concessão de
patentes. “Definir a titularidade do patrimônio genético, finalizando-se
as discussões em torno da PEC 618/98, de modo a consagrar o
patrimônio genético como bem da União assegurado a previsão de
repartição de benefício envolvendo Estados, Municípios e
comunidades tradicionais.”
252
De um modo geral, a CPI da biopirataria não chegou a uma posição sobre a
configuração do ilícito propriamente dito. Os indícios, apesar de graves, não foram
suficientes para atribuir tal fenômeno como crime. Contudo, revelou-se que essa prática
envolve um processo complexo, que tem como fator determinante a patente de recursos
obtidos sem autorização estatal ou das comunidades detentoras e conseqüentemente sem
a repartição justa e equitativa dos benefícios, ou seja, o uso da propriedade intelectual é
utilizado para legitimar a biopirataria e monopolizar a exploração predatória por
algumas empresas.
A compreensão a respeito da biopirataria confirma nossa discussão inicial sobre
as mazelas que originaram a Medida Provisória 2.186/01 e sua fragilidade em
regulamentar o patrimônio genético nacional e os conhecimentos tradicionais. E tal
problema deixará de evoluir a partir de um esforço no âmbito legislativo que
consagre a proteção da biodiversidade, os recursos genéticos e conhecimentos
tradicionais por meio de disposições restritivas e coercitivas que permitam aplicar com
rigor o que foi estabelecido pela Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB).
252
Ibid., loc. cit.
103
CONCLUSÃO
Diante do panorama estudado, o trabalho procurou demonstrar a necessidade de
compatibilização que deve existir entre os estilos de vida tradicional, a proteção e
manutenção da biodiversidade e o direito de propriedade intelectual. Este último é
responsável pelo surgimento de novos produtos no mercado derivados de componentes
extraídos do patrimônio genético e de técnicas e inovações adquiridas pelos povos
tradicionais indígenas e locais. O eixo da questão são as dificuldades encontradas pelo
Poder Legislativo em apresentar um modelo normativo adequado que associe a proteção
do patrimônio genético e do conhecimento tradicional, sem interferir nos avanços das
pesquisas biotecnológicas, impulsionados principalmente pelas empresas de produtos
farmacêuticos, alimentícios e cosméticos.
Os conflitos socioambientais, provocados pela racionalidade da exploração
econômica dos recursos naturais, centralizada na luta pela concorrência mudaram a
interpretação inicial simplista do conceito de desenvolvimento sustentável, reconhecido
meramente como propulsor da preservação ambiental, saúde e qualidade de vida das
presentes e futuras gerações. O movimento ambiental nos últimos tempos trouxe à tona
novas exigências, como o reconhecimento do potencial ecológico encontrado na
biodiversidade nacional, fonte de inovação tecnológica para um novo mercado no ramo
da biotecnologia. Como conseqüência passou-se a levar em conta a perspectiva
ambiental, orientada pelos anseios de justiça social e cultural, centralizada nas lutas pelo
reconhecimento de novas etnias responsáveis pelo manejo e controle dos recursos
produtivos e, conseqüentemente, por direitos humanos.
No Brasil, o acesso aos recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais são
regulamentados pela Medida Provisória 2.186, de 2001. Tal regulamentação teve como
base a normas editadas pela Convenção sobre Diversidade Biológica CDB,
reafirmando em seu preâmbulo a soberania dos países sobre seus próprios recursos
biológicos.
No entanto, apesar das recomendações internacionais a MP desprezou o debate
legislativo sobre conhecimentos tradicional associado ao patrimônio genético, não
conseguindo, até o momento, garantir a construção de um sistema jurídico que prime
pela inclusão das diferenças dos povos tradicionais. Tratou de forma genérica as
104
diretrizes sobre a autorização do acesso e a remessa de componentes do patrimônio
genético para a repartição justa e equitativa dos lucros gerados pela exploração do
conhecimento tradicional, criando um órgão (CGEN) extremamente burocrático, dando
margem para a biopirataria. Além disso, deixou explícito o seu caráter individualista
para tratar de um tema notadamente coletivo, possibilitando que os produtos novos
inventados em decorrência da aplicação comercial ou industrial de conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade pudessem ser patenteados, ou seja, tratados na
forma de propriedade privada.
A questão da proteção dos conhecimentos, técnicas e inovações das populações
tradicionais é tratada nas mais diversas instituições nacionais e internacionais sendo
alvo de intensos debates legislativos. quem defenda a protão dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade por meio do regime de propriedade industrial,
isto é, pelo mecanismo de patentes do conhecimento tradicional, e, por outro lado, a
proposta de criação um mecanismo sui generis de proteção, sugerido pelo Acordo
TRIPS.
O propósito é a efetiva construção de um sistema jurídico que realmente respeite
os direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas, quilombolas e das comunidades
locais, estabelecendo a não-patenteabilidade do saber tradicional e exigindo o
consentimento prévio das comunidades para o acesso aos recursos genéticos existentes
em suas terras e a criação de um sistema nacional que cadastre essas práticas em um
banco de dados único.
Verificou-se ao longo da discussão ser a patente a proposta mais ineficaz para a
proteção de quaisquer saberes tradicionais, sejam eles indígenas, quilombolas,
campesinos, ribeirinhos ou locais. Destaca-se que esse instrumento, baseado em
interesses individualistas, tem o escopo de proteger os direitos do inventor sob sua nova
criação, concedendo-lhe o monopólio temporário e uso exclusivo de explorar
economicamente o invento por um período determinado, obedecendo aos requisitos de
novidade, passo inventivo e aplicação industrial.
Entretanto, como poderíamos atribuir aos conhecimentos tradicionais os
requisitos de novidade e atividade inventiva se tais conhecimentos são determinados
pelas práticas diárias, transmitidas oralmente por diversas gerações, sendo
constantemente modificadas e de difícil comprovação técnica? Registra-se ainda a
incompatibilidade do requisito individualista da lei de patente no que se refere à
105
titularidade do invento, com o caráter coletivo do conhecimento das comunidades
tradicionais
Do exposto, fica evidente que valorar o conhecimento tradicional por meio da
Lei de Propriedade Intelectual significa transformá-lo em um produto comercializável,
ligado a interesses corporativistas das empresas nacionais e multinacionais difusoras das
patentes. Torna-se, portanto, imprescindível a criação de um mecanismo sui generis de
proteção, que leve em conta a idéia que a proteção ambiental é capaz de reconhecer os
direitos dos povos tradicionais, dada sua relevância na conservação da biodiversidade e
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116
ANEXOS
MEDIDA PROVISÓRIA N
o
2.186-16, DE 23 DE AGOSTO DE 2001
Regulamenta o inciso II do § 1
o
e o § 4
o
do art. 225 da Constituição, os arts. 1
o
, 8
o
,
alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade
Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao
conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e
transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art.
62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1
o
Esta Medida Provisória dispõe sobre os bens, os direitos e as obrigações
relativos:
I - ao acesso a componente do patrimônio genético existente no território nacional,
na plataforma continental e na zona econômica exclusiva para fins de pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção;
II - ao acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético,
relevante à conservação da diversidade biológica, à integridade do patrimônio genético
do País e à utilização de seus componentes;
III - à repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração de
componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado; e
IV - ao acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e a
utilização da diversidade biológica.
§ 1
o
O acesso a componente do patrimônio genético para fins de pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção far-se na forma desta
Medida Provisória, sem prejuízo dos direitos de propriedade material ou imaterial que
incidam sobre o componente do patrimônio genético acessado ou sobre o local de sua
ocorrência.
§ 2
o
O acesso a componente do patrimônio genético existente na plataforma
continental observará o disposto na Lei n
o
8.617, de 4 de janeiro de 1993.
Art. 2
o
O acesso ao patrimônio genético existente no País somente será feito
mediante autorização da União e terá o seu uso, comercialização e aproveitamento para
quaisquer fins submetidos à fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos
termos e nas condições estabelecidos nesta Medida Provisória e no seu regulamento.
Art. 3
o
Esta Medida Provisória não se aplica ao patrimônio genético humano.
117
Art. 4
o
É preservado o intercâmbio e a difusão de componente do patrimônio
genético e do conhecimento tradicional associado praticado entre si por comunidades
indígenas e comunidades locais para seu próprio benefício e baseados em prática
costumeira.
Art. 5
o
É vedado o acesso ao patrimônio genético para práticas nocivas ao meio
ambiente e à saúde humana e para o desenvolvimento de armas biológicas e químicas.
Art. 6
o
A qualquer tempo, existindo evidência científica consistente de perigo de
dano grave e irreversível à diversidade biológica, decorrente de atividades praticadas na
forma desta Medida Provisória, o Poder Público, por intermédio do Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético, previsto no art. 10, com base em critérios e parecer técnico,
determinará medidas destinadas a impedir o dano, podendo, inclusive, sustar a
atividade, respeitada a competência do órgão responsável pela biossegurança de
organismos geneticamente modificados.
CAPÍTULO II
DAS DEFINIÇÕES
Art. 7
o
Além dos conceitos e das definições constantes da Convenção sobre
Diversidade Biológica, considera-se para os fins desta Medida Provisória:
I - patrimônio genético: informação de origem genética, contida em amostras do
todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de
moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos
obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive
domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in
situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva;
II - conhecimento tradicional associado: informação ou prática individual ou
coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial,
associada ao patrimônio genético;
III - comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de
quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por
gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e
econômicas;
IV - acesso ao patrimônio genético: obtenção de amostra de componente do
patrimônio genético para fins de pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico ou
bioprospecção, visando a sua aplicação industrial ou de outra natureza;
V - acesso ao conhecimento tradicional associado: obtenção de informação sobre
conhecimento ou prática individual ou coletiva, associada ao patrimônio genético, de
comunidade indígena ou de comunidade local, para fins de pesquisa científica,
desenvolvimento tecnológico ou bioprospecção, visando sua aplicação industrial ou de
outra natureza;
VI - acesso à tecnologia e transferência de tecnologia: ação que tenha por objetivo o
acesso, o desenvolvimento e a transferência de tecnologia para a conservação e a
118
utilização da diversidade biológica ou tecnologia desenvolvida a partir de amostra de
componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado;
VII - bioprospecção: atividade exploratória que visa identificar componente do
patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com
potencial de uso comercial;
VIII - espécie ameaçada de extinção: espécie com alto risco de desaparecimento na
natureza em futuro próximo, assim reconhecida pela autoridade competente;
IX - espécie domesticada: aquela em cujo processo de evolução influiu o ser
humano para atender às suas necessidades;
X - Autorização de Acesso e de Remessa: documento que permite, sob condições
específicas, o acesso a amostra de componente do patrimônio genético e sua remessa à
instituição destinatária e o acesso a conhecimento tradicional associado;
XI - Autorização Especial de Acesso e de Remessa: documento que permite, sob
condições específicas, o acesso a amostra de componente do patrimônio genético e sua
remessa à instituição destinatária e o acesso a conhecimento tradicional associado, com
prazo de duração de até dois anos, renovável por iguais períodos;
XII - Termo de Transferência de Material: instrumento de adesão a ser firmado pela
instituição destinatária antes da remessa de qualquer amostra de componente do
patrimônio genético, indicando, quando for o caso, se houve acesso a conhecimento
tradicional associado;
XIII - Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios: instrumento jurídico multilateral, que qualifica as partes, o objeto e as
condições de acesso e de remessa de componente do patrimônio genético e de
conhecimento tradicional associado, bem como as condições para repartição de
benefícios;
XIV - condição ex situ: manutenção de amostra de componente do patrimônio
genético fora de seu habitat natural, em coleções vivas ou mortas.
CAPÍTULO III
DA PROTEÇÃO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO
Art. 8
o
Fica protegido por esta Medida Provisória o conhecimento tradicional das
comunidades indígenas e das comunidades locais, associado ao patrimônio genético,
contra a utilização e exploração ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo
Conselho de Gestão de que trata o art. 10, ou por instituição credenciada.
§ 1
o
O Estado reconhece o direito das comunidades indígenas e das comunidades
locais para decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados ao
patrimônio genético do País, nos termos desta Medida Provisória e do seu regulamento.
119
§ 2
o
O conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de que trata esta
Medida Provisória integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de
cadastro, conforme dispuser o Conselho de Gestão ou legislação específica.
§ 3
o
A proteção outorgada por esta Medida Provisória não poderá ser interpretada
de modo a obstar a preservação, a utilização e o desenvolvimento de conhecimento
tradicional de comunidade indígena ou comunidade local.
§ 4
o
A proteção ora instituída não afetará, prejudicará ou limitará direitos relativos
à propriedade intelectual.
Art. 9
o
À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem,
detêm ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é
garantido o direito de:
I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as
publicações, utilizações, explorações e divulgações;
II - impedir terceiros não autorizados de:
a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento
tradicional associado;
b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou
constituem conhecimento tradicional associado;
III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou
indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua
titularidade, nos termos desta Medida Provisória.
Parágrafo único. Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento
tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade,
ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse
conhecimento.
CAPÍTULO IV
DAS COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAIS
Art. 10. Fica criado, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, o Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético, de caráter deliberativo e normativo, composto de
representantes de órgãos e de entidades da Administração Pública Federal que detêm
competência sobre as diversas ações de que trata esta Medida Provisória.
§ 1
o
O Conselho de Gestão será presidido pelo representante do Ministério do
Meio Ambiente.
§ 2
o
O Conselho de Gestão terá sua composição e seu funcionamento dispostos no
regulamento.
Art. 11. Compete ao Conselho de Gestão:
120
I - coordenar a implementação de políticas para a gestão do patrimônio genético;
II - estabelecer:
a) normas técnicas;
b) critérios para as autorizações de acesso e de remessa;
c) diretrizes para elaboração do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de
Repartição de Benefícios;
d) critérios para a criação de base de dados para o registro de informação sobre
conhecimento tradicional associado;
III - acompanhar, em articulação com órgãos federais, ou mediante convênio com
outras instituições, as atividades de acesso e de remessa de amostra de componente do
patrimônio genético e de acesso a conhecimento tradicional associado;
IV - deliberar sobre:
a) autorização de acesso e de remessa de amostra de componente do patrimônio
genético, mediante anuência prévia de seu titular;
b) autorização de acesso a conhecimento tradicional associado, mediante anuência
prévia de seu titular;
c) autorização especial de acesso e de remessa de amostra de componente do
patrimônio genético à instituição nacional, pública ou privada, que exerça atividade de
pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e afins, e à universidade nacional,
pública ou privada, com prazo de duração de até dois anos, renovável por iguais
períodos, nos termos do regulamento;
d) autorização especial de acesso a conhecimento tradicional associado à instituição
nacional, pública ou privada, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas
áreas biológicas e afins, e à universidade nacional, pública ou privada, com prazo de
duração de até dois anos, renovável por iguais períodos, nos termos do regulamento;
e) credenciamento de instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento
ou de instituição pública federal de gestão para autorizar outra instituição nacional,
pública ou privada, que exerça atividade de pesquisa e desenvolvimento nas áreas
biológicas e afins:
1. a acessar amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento
tradicional associado;
2. a remeter amostra de componente do patrimônio genético para instituição
nacional, pública ou privada, ou para instituição sediada no exterior;
f) credenciamento de instituição pública nacional para ser fiel depositária de
amostra de componente do patrimônio genético;
121
V - dar anuência aos Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de
Repartição de Benefícios quanto ao atendimento dos requisitos previstos nesta Medida
Provisória e no seu regulamento;
VI - promover debates e consultas públicas sobre os temas de que trata esta Medida
Provisória;
VII - funcionar como instância superior de recurso em relação a decisão de
instituição credenciada e dos atos decorrentes da aplicação desta Medida Provisória;
VIII - aprovar seu regimento interno.
§ 1
o
Das decisões do Conselho de Gestão caberá recurso ao plenário, na forma do
regulamento.
§ 2
o
O Conselho de Gestão poderá organizar-se em câmaras temáticas, para
subsidiar decisões do plenário.
Art. 12. A atividade de coleta de componente do patrimônio genético e de acesso a
conhecimento tradicional associado, que contribua para o avanço do conhecimento e
que não esteja associada à bioprospecção, quando envolver a participação de pessoa
jurídica estrangeira, será autorizada pelo órgão responsável pela política nacional de
pesquisa científica e tecnológica, observadas as determinações desta Medida Provisória
e a legislação vigente.
Parágrafo único. A autorização prevista no caput deste artigo observará as normas
técnicas definidas pelo Conselho de Gestão, o qual exercerá supervisão dessas
atividades.
Art. 13. Compete ao Presidente do Conselho de Gestão firmar, em nome da União,
Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios.
§ 1
o
Mantida a competência de que trata o caput deste artigo, o Presidente do
Conselho de Gestão subdelegará ao titular de instituição pública federal de pesquisa e
desenvolvimento ou instituição pública federal de gestão a competência prevista no
caput deste artigo, conforme sua respectiva área de atuação.
§ 2
o
Quando a instituição prevista no parágrafo anterior for parte interessada no
contrato, este será firmado pelo Presidente do Conselho de Gestão.
Art. 14. Caberá à instituição credenciada de que tratam os números 1 e 2 da alínea
"e" do inciso IV do art. 11 desta Medida Provisória uma ou mais das seguintes
atribuições, observadas as diretrizes do Conselho de Gestão:
I - analisar requerimento e emitir, a terceiros, autorização:
a) de acesso a amostra de componente do patrimônio genético existente em
condições in situ no território nacional, na plataforma continental e na zona econômica
exclusiva, mediante anuência prévia de seus titulares;
122
b) de acesso a conhecimento tradicional associado, mediante anuência prévia dos
titulares da área;
c) de remessa de amostra de componente do patrimônio genético para instituição
nacional, pública ou privada, ou para instituição sediada no exterior;
II - acompanhar, em articulação com órgãos federais, ou mediante convênio com
outras instituições, as atividades de acesso e de remessa de amostra de componente do
patrimônio genético e de acesso a conhecimento tradicional associado;
III - criar e manter:
a) cadastro de coleções ex situ, conforme previsto no art. 18 desta Medida
Provisória;
b) base de dados para registro de informações obtidas durante a coleta de amostra
de componente do patrimônio genético;
c) base de dados relativos às Autorizações de Acesso e de Remessa, aos Termos de
Transferência de Material e aos Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de
Repartição de Benefícios, na forma do regulamento;
IV - divulgar, periodicamente, lista das Autorizões de Acesso e de Remessa, dos
Termos de Transferência de Material e dos Contratos de Utilização do Patrimônio
Genético e de Repartição de Benefícios;
V - acompanhar a implementação dos Termos de Transferência de Material e dos
Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios referente
aos processos por ela autorizados.
§ 1
o
A instituição credenciada deverá, anualmente, mediante relatório, dar
conhecimento pleno ao Conselho de Gestão sobre a atividade realizada e repassar cópia
das bases de dados à unidade executora prevista no art. 15.
§ 2
o
A instituição credenciada, na forma do art. 11, deverá observar o cumprimento
das disposições desta Medida Provisória, do seu regulamento e das decisões do
Conselho de Gestão, sob pena de seu descredenciamento, ficando, ainda, sujeita à
aplicação, no que couber, das penalidades previstas no art. 30 e na legislação vigente.
Art. 15. Fica autorizada a criação, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, de
unidade executora que exercerá a função de secretaria executiva do Conselho de Gestão,
de que trata o art. 10 desta Medida Provisória, com as seguintes atribuições, dentre
outras:
I - implementar as deliberações do Conselho de Gestão;
II - dar suporte às instituições credenciadas;
III - emitir, de acordo com deliberação do Conselho de Gestão e em seu nome:
a) Autorização de Acesso e de Remessa;
123
b) Autorização Especial de Acesso e de Remessa;
IV - acompanhar, em articulação com os demais órgãos federais, as atividades de
acesso e de remessa de amostra de componente do patrimônio genético e de acesso a
conhecimento tradicional associado;
V - credenciar, de acordo com deliberação do Conselho de Gestão e em seu nome,
instituição pública nacional de pesquisa e desenvolvimento ou instituição pública
federal de gestão para autorizar instituição nacional, pública ou privada:
a) a acessar amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento
tradicional associado;
b) a enviar amostra de componente do patrimônio genético para instituição
nacional, pública ou privada, ou para instituição sediada no exterior, respeitadas as
exigências do art. 19 desta Medida Provisória;
VI - credenciar, de acordo com deliberação do Conselho de Gestão e em seu nome,
instituição pública nacional para ser fiel depositária de amostra de componente do
patrimônio genético;
VII - registrar os Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição
de Benefícios, após anuência do Conselho de Gestão;
VIII - divulgar lista de espécies de intercâmbio facilitado constantes de acordos
internacionais, inclusive sobre segurança alimentar, dos quais o País seja signatário, de
acordo com o § 2
o
do art. 19 desta Medida Provisória;
IX - criar e manter:
a) cadastro de coleções ex situ, conforme previsto no art. 18;
b) base de dados para registro de informações obtidas durante a coleta de amostra
de componente do patrimônio genético;
c) base de dados relativos às Autorizações de Acesso e de Remessa, aos Termos de
Transferência de Material e aos Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de
Repartição de Benefícios;
X - divulgar, periodicamente, lista das Autorizações de Acesso e de Remessa, dos
Termos de Transferência de Material e dos Contratos de Utilização do Patrimônio
Genético e de Repartição de Benefícios.
CAPÍTULO V
DO ACESSO E DA REMESSA
Art. 16. O acesso a componente do patrimônio genético existente em condições in
situ no território nacional, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, e
ao conhecimento tradicional associado far-se mediante a coleta de amostra e de
informação, respectivamente, e somente seautorizado a instituição nacional, pública
124
ou privada, que exerça atividades de pesquisa e desenvolvimento nas áreas biológicas e
afins, mediante prévia autorização, na forma desta Medida Provisória.
§ 1
o
O responsável pela expedição de coleta deverá, ao término de suas atividades
em cada área acessada, assinar com o seu titular ou representante declaração contendo
listagem do material acessado, na forma do regulamento.
§ 2
o
Excepcionalmente, nos casos em que o titular da área ou seu representante não
for identificado ou localizado por ocasião da expedição de coleta, a declaração contendo
listagem do material acessado deverá ser assinada pelo responsável pela expedição e
encaminhada ao Conselho de Gestão.
§ 3
o
Sub-amostra representativa de cada população componente do patrimônio
genético acessada deve ser depositada em condição ex situ em instituição credenciada
como fiel depositária, de que trata a alínea "f" do inciso IV do art. 11 desta Medida
Provisória, na forma do regulamento.
§ 4
o
Quando houver perspectiva de uso comercial, o acesso a amostra de
componente do patrimônio genético, em condições in situ, e ao conhecimento
tradicional associado poderá ocorrer após assinatura de Contrato de Utilização do
Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios.
§ 5
o
Caso seja identificado potencial de uso econômico, de produto ou processo,
passível ou não de proteção intelectual, originado de amostra de componente do
patrimônio genético e de informação oriunda de conhecimento tradicional associado,
acessado com base em autorização que não estabeleceu esta hipótese, a instituição
beneficiária obriga-se a comunicar ao Conselho de Gestão ou a instituição onde se
originou o processo de acesso e de remessa, para a formalização de Contrato de
Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios.
§ 6
o
A participação de pessoa jurídica estrangeira em expedição para coleta de
amostra de componente do patrimônio genético in situ e para acesso de conhecimento
tradicional associado somente será autorizada quando em conjunto com instituição
pública nacional, ficando a coordenação das atividades obrigatoriamente a cargo desta
última e desde que todas as instituições envolvidas exerçam atividades de pesquisa e
desenvolvimento nas áreas biológicas e afins.
§ 7
o
A pesquisa sobre componentes do patrimônio genético deve ser realizada
preferencialmente no território nacional.
§ 8
o
A Autorização de Acesso e de Remessa de amostra de componente do
patrimônio genético de espécie de endemismo estrito ou ameaçada de extinção
dependerá da anuência prévia do órgão competente.
§ 9
o
A Autorização de Acesso e de Remessa dar-se-á após a anuência prévia:
I - da comunidade indígena envolvida, ouvido o órgão indigenista oficial, quando o
acesso ocorrer em terra indígena;
II - do órgão competente, quando o acesso ocorrer em área protegida;
125
III - do titular de área privada, quando o acesso nela ocorrer;
IV - do Conselho de Defesa Nacional, quando o acesso se der em área
indispensável à segurança nacional;
V - da autoridade marítima, quando o acesso se der em águas jurisdicionais
brasileiras, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva.
§ 10. O detentor de Autorização de Acesso e de Remessa de que tratam os incisos I
a V do § 9
o
deste artigo fica responsável a ressarcir o titular da área por eventuais danos
ou prejuízos, desde que devidamente comprovados.
§ 11. A instituição detentora de Autorização Especial de Acesso e de Remessa
encaminhará ao Conselho de Gestão as anuências de que tratam os §§ e deste
artigo antes ou por ocasião das expedições de coleta a serem efetuadas durante o
período de vigência da Autorização, cujo descumprimento acarretará o seu
cancelamento.
Art. 17. Em caso de relevante interesse público, assim caracterizado pelo Conselho
de Gestão, o ingresso em área pública ou privada para acesso a amostra de componente
do patrimônio genético dispensará anuência prévia dos seus titulares, garantido a estes o
disposto nos arts. 24 e 25 desta Medida Provisória.
§ 1
o
No caso previsto no caput deste artigo, a comunidade indígena, a comunidade
local ou o proprietário deverá ser previamente informado.
§ 2
o
Em se tratando de terra indígena, observar-se o disposto no § 6
o
do art. 231
da Constituição Federal.
Art. 18. A conservação ex situ de amostra de componente do patrimônio genético
deve ser realizada no território nacional, podendo, suplementarmente, a critério do
Conselho de Gestão, ser realizada no exterior.
§ 1
o
As coleções ex situ de amostra de componente do patrimônio genético
deverão ser cadastradas junto à unidade executora do Conselho de Gestão, conforme
dispuser o regulamento.
§ 2
o
O Conselho de Gestão poderá delegar o cadastramento de que trata o § 1
o
deste artigo a uma ou mais instituições credenciadas na forma das alíneas "d" e "e" do
inciso IV do art. 11 desta Medida Provisória.
Art. 19. A remessa de amostra de componente do patrimônio genético de
instituição nacional, blica ou privada, para outra instituição nacional, pública ou
privada, será efetuada a partir de material em condições ex situ, mediante a informação
do uso pretendido, observado o cumprimento cumulativo das seguintes condições, além
de outras que o Conselho de Gestão venha a estabelecer:
I - depósito de sub-amostra representativa de componente do patrimônio genético
em coleção mantida por instituição credenciada, caso ainda não tenha sido cumprido o
disposto no § 3
o
do art. 16 desta Medida Provisória;
126
II - nos casos de amostra de componente do patrimônio genético acessado em
condições in situ, antes da edição desta Medida Provisória, o depósito de que trata o
inciso anterior será feito na forma acessada, se ainda disponível, nos termos do
regulamento;
III - fornecimento de informação obtida durante a coleta de amostra de componente
do patrimônio genético para registro em base de dados mencionada na alínea "b" do
inciso III do art. 14 e alínea "b" do inciso IX do art. 15 desta Medida Provisória;
IV - prévia assinatura de Termo de Transferência de Material.
§ 1
o
Sempre que houver perspectiva de uso comercial de produto ou processo
resultante da utilização de componente do patrimônio genético será necessária a prévia
assinatura de Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios.
§ 2
o
A remessa de amostra de componente do patrimônio genético de espécies
consideradas de intercâmbio facilitado em acordos internacionais, inclusive sobre
segurança alimentar, dos quais o País seja signatário, deverá ser efetuada em
conformidade com as condições neles definidas, mantidas as exigências deles
constantes.
§ 3
o
A remessa de qualquer amostra de componente do patrimônio genético de
instituição nacional, pública ou privada, para instituição sediada no exterior, será
efetuada a partir de material em condições ex situ, mediante a informação do uso
pretendido e a prévia autorização do Conselho de Gestão ou de instituição credenciada,
observado o cumprimento cumulativo das condições estabelecidas nos incisos I a IV e
§§ 1
o
e 2
o
deste artigo.
Art. 20. O Termo de Transferência de Material terá seu modelo aprovado pelo
Conselho de Gestão.
CAPÍTULO VI
DO ACESSO À TECNOLOGIA E TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
Art. 21. A instituição que receber amostra de componente do patrimônio genético
ou conhecimento tradicional associado facilitará o acesso à tecnologia e transferência de
tecnologia para a conservação e utilização desse patrimônio ou desse conhecimento à
instituição nacional responsável pelo acesso e remessa da amostra e da informação
sobre o conhecimento, ou instituição por ela indicada.
Art. 22. O acesso à tecnologia e transferência de tecnologia entre instituição
nacional de pesquisa e desenvolvimento, pública ou privada, e instituição sediada no
exterior, poderá realizar-se, dentre outras atividades, mediante:
I - pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico;
II - formação e capacitação de recursos humanos;
III - intercâmbio de informações;
127
IV - intercâmbio entre instituição nacional de pesquisa e instituição de pesquisa
sediada no exterior;
V - consolidação de infra-estrutura de pesquisa científica e de desenvolvimento
tecnológico;
VI - exploração econômica, em parceria, de processo e produto derivado do uso de
componente do patrimônio genético; e
VII - estabelecimento de empreendimento conjunto de base tecnológica.
Art. 23. A empresa que, no processo de garantir o acesso à tecnologia e
transferência de tecnologia à instituição nacional, pública ou privada, responsável pelo
acesso e remessa de amostra de componente do patrimônio genético e pelo acesso à
informação sobre conhecimento tradicional associado, investir em atividade de pesquisa
e desenvolvimento no País, fará jus a incentivo fiscal para a capacitação tecnológica da
indústria e da agropecuária, e a outros instrumentos de estímulo, na forma da legislação
pertinente.
CAPÍTULO VII
DA REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS
Art. 24. Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo
desenvolvido a partir de amostra de componente do patrimônio genético e de
conhecimento tradicional associado, obtidos por instituição nacional ou instituição
sediada no exterior, serão repartidos, de forma justa e eqüitativa, entre as partes
contratantes, conforme dispuser o regulamento e a legislação pertinente.
Parágrafo único. À União, quando não for parte no Contrato de Utilização do
Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios, será assegurada, no que couber, a
participação nos benefícios a que se refere o caput deste artigo, na forma do
regulamento.
Art. 25. Os benefícios decorrentes da exploração econômica de produto ou
processo, desenvolvido a partir de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento
tradicional associado, poderão constituir-se, dentre outros, de:
I - divisão de lucros;
II - pagamento de royalties;
III - acesso e transferência de tecnologias;
IV - licenciamento, livre de ônus, de produtos e processos; e
V - capacitação de recursos humanos.
Art. 26. A exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de
amostra de componente do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional
associado, acessada em desacordo com as disposições desta Medida Provisória,
128
sujeitará o infrator ao pagamento de indenização correspondente a, no mínimo, vinte por
cento do faturamento bruto obtido na comercialização de produto ou de royalties
obtidos de terceiros pelo infrator, em decorrência de licenciamento de produto ou
processo ou do uso da tecnologia, protegidos ou não por propriedade intelectual, sem
prejuízo das sanções administrativas e penais cabíveis.
Art. 27. O Contrato de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios deverá indicar e qualificar com clareza as partes contratantes, sendo, de um
lado, o proprietário da área pública ou privada, ou o representante da comunidade
indígena e do órgão indigenista oficial, ou o representante da comunidade local e, de
outro, a instituição nacional autorizada a efetuar o acesso e a instituição destinatária.
Art. 28. São cláusulas essenciais do Contrato de Utilização do Patrimônio Genético
e de Repartição de Benefícios, na forma do regulamento, sem prejuízo de outras, as que
disponham sobre:
I - objeto, seus elementos, quantificação da amostra e uso pretendido;
II - prazo de duração;
III - forma de repartição justa e eqüitativa de benefícios e, quando for o caso, acesso
à tecnologia e transferência de tecnologia;
IV - direitos e responsabilidades das partes;
V - direito de propriedade intelectual;
VI - rescisão;
VII - penalidades;
VIII - foro no Brasil.
Parágrafo único. Quando a União for parte, o contrato referido no caput deste
artigo reger-se-á pelo regime jurídico de direito público.
Art. 29. Os Contratos de Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de
Benefícios serão submetidos para registro no Conselho de Gestão e terão eficácia
após sua anuência.
Parágrafo único. Serão nulos, o gerando qualquer efeito jurídico, os Contratos de
Utilização do Patrimônio Genético e de Repartição de Benefícios firmados em
desacordo com os dispositivos desta Medida Provisória e de seu regulamento.
CAPÍTULO VIII
DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS
Art. 30. Considera-se infração administrativa contra o patrimônio genético ou ao
conhecimento tradicional associado toda ação ou omissão que viole as normas desta
129
Medida Provisória e demais disposições legais pertinentes. (Vide Decreto 5.459, de
2005)
§ 1
o
As infrações administrativas serão punidas na forma estabelecida no
regulamento desta Medida Provisória, com as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa;
III - apreensão das amostras de componentes do patrimônio genético e dos
instrumentos utilizados na coleta ou no processamento ou dos produtos obtidos a partir
de informação sobre conhecimento tradicional associado;
IV - apreensão dos produtos derivados de amostra de componente do patrimônio
genético ou do conhecimento tradicional associado;
V - suspensão da venda do produto derivado de amostra de componente do
patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado e sua apreensão;
VI - embargo da atividade;
VII - interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento;
VIII - suspensão de registro, patente, licença ou autorização;
IX - cancelamento de registro, patente, licença ou autorização;
X - perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo;
XI - perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em
estabelecimento oficial de crédito;
XII - intervenção no estabelecimento;
XIII - proibição de contratar com a Administração Pública, por período de até cinco
anos.
§ 2
o
As amostras, os produtos e os instrumentos de que tratam os incisos III, IV e
V do § 1
o
deste artigo, terão sua destinação definida pelo Conselho de Gestão.
§ 3
o
As sanções estabelecidas neste artigo serão aplicadas na forma processual
estabelecida no regulamento desta Medida Provisória, sem prejuízo das sanções civis ou
penais cabíveis.
§ 4
o
A multa de que trata o inciso II do § 1
o
deste artigo será arbitrada pela
autoridade competente, de acordo com a gravidade da infração e na forma do
regulamento, podendo variar de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$ 100.000,00 (cem mil
reais), quando se tratar de pessoa física.
130
§ 5
o
Se a infração for cometida por pessoa jurídica, ou com seu concurso, a multa
será de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais),
arbitrada pela autoridade competente, de acordo com a gravidade da infração, na forma
do regulamento.
§ 6
o
Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
CAPÍTULO IX
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 31. A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos
competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do
patrimônio genético, fica condicionada à observância desta Medida Provisória, devendo
o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento tradicional
associado, quando for o caso.
Art. 32. Os órgãos federais competentes exercerão a fiscalização, a interceptação e
a apreensão de amostra de componente do patrimônio genético ou de produto obtido a
partir de informação sobre conhecimento tradicional associado, acessados em desacordo
com as disposições desta Medida Provisória, podendo, ainda, tais atividades serem
descentralizadas, mediante convênios, de acordo com o regulamento.
Art. 33. A parcela dos lucros e dos royalties devidos à União, resultantes da
exploração econômica de processo ou produto desenvolvido a partir de amostra de
componente do patrimônio genético, bem como o valor das multas e indenizações de
que trata esta Medida Provisória serão destinados ao Fundo Nacional do Meio
Ambiente, criado pela Lei n
o
7.797, de 10 de julho de 1989, ao Fundo Naval, criado
pelo Decreto n
o
20.923, de 8 de janeiro de 1932, e ao Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, criado pelo Decreto-Lei n
o
719, de 31 de
julho de 1969, e restabelecido pela Lei n
o
8.172, de 18 de janeiro de 1991, na forma do
regulamento. (Regulamento).
Parágrafo único. Os recursos de que trata este artigo serão utilizados
exclusivamente na conservação da diversidade biológica, incluindo a recuperação,
criação e manutenção de bancos depositários, no fomento à pesquisa científica, no
desenvolvimento tecnológico associado ao patrimônio genético e na capacitação de
recursos humanos associados ao desenvolvimento das atividades relacionadas ao uso e à
conservação do patrimônio genético.
Art. 34. A pessoa que utiliza ou explora economicamente componentes do
patrimônio genético e conhecimento tradicional associado deverá adequar suas
atividades às normas desta Medida Provisória e do seu regulamento.
Art. 35. O Poder Executivo regulamentará esta Medida Provisória até 30 de
dezembro de 2001.
Art. 36. As disposições desta Medida Provisória não se aplicam à matéria regulada
pela Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995.
131
Art. 37. Ficam convalidados os atos praticados com base na Medida Provisória n
o
2.186-15, de 26 de julho de 2001.
Art. 38. Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 23 de agosto de 2001; 180
o
da Independência e 113
o
da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
José Gregori
José Serra
Ronaldo Mota Sardenberg
José Sarney Filho
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 24.8.2001
132
CARTA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO
Nós representantes indígenas no Brasil pluriétnico onde vivem 220 povos, falando 180
línguas distintas entre si, com uma população de 360 mil indígenas, ocupando 12% do
território brasileiro, reunidos na cidade de São Luís do Maranhão, de 04 a 06 de
dezembro de 2001, para discutir o tema “A Sabedoria e a Ciência do Índio e a
Propriedade Industrial”, convidados pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial
(INPI), declaramos:
1. Que nossas florestas têm se mantido preservadas graças aos nossos conhecimentos
milenares;
2. Como representantes indígenas, somos importantes no processo da discussão sobre o
acesso à biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais conexos porque nossas terras
e territórios contém a maior parte da diversidade biológica no mundo, cerca de 50%, e
que têm um grande valor social, cultural, espiritual e econômico. Como povos indígenas
tradicionais que habitam diversos ecossistemas, temos conhecimento sobre o manejo e o
uso sustentável desta diversidade biológica. Este conhecimento é coletivo e não é uma
mercadoria que se pode comercializar como qualquer objeto no mercado.
Nossos conhecimentos da biodiversidade não se separam de nossas identidades, leis,
instituições, sistemas de valores e da nossa visão cosmológica como povos indígenas;
3. Recomendamos ao Governo do Brasil que abra espaço para que representação das
comunidades indígenas possam participar no Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético;
4. Recomendamos ao Governo Brasileiro que regulamente por lei o acesso a recursos
genéticos e conhecimentos tradicionais e conexos, discutindo amplamente com as
comunidades e organizações indígenas;
5. Nós representantes indígenas, expressamos firmemente aos governos e aos
organismos internacionais nosso direito à participação plena nos espaços de decisões
nacionais e internacionais sobre biodiversidade e conhecimentos tradicionais como na
Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), na Organização Mundial de
Propriedade Intelectual (OMPI), na Comissão das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento, na Organização Mundial do Comércio (OMC), no Comitê
133
Intergovernamental de Propriedade Intelectual relativo a Recursos Genéticos,
Conhecimentos Tradicionais e Folclore da OMPI, entre outros organismos;
6. Recomendamos que os países aprovem o Projeto de Declaração da ONU sobre
Direitos Indígenas;
7. Como representantes indígenas, afirmamos nossa oposição a toda forma de
patenteamento que provenha da utilização dos conhecimentos tradicionais e solicitamos
a criação de mecanismos de punição para coibir o furto da nossa biodiversidade;
8. Recomendamos a criação de um fundo financiado pelos governos e gerido por uma
organização indígena que tenha como objetivo subsidiar pesquisas realizadas por
membros das comunidades;
9. Recomendamos ao Governo Federal a criação de cursos de capacitação e treinamento
de profissionais indígenas na área dos direitos dos conhecimentos tradicionais;
10. Recomendamos que seja realizado um II Encontro de Pajés sobre a Convenção da
Diversidade Biológica e Conhecimentos Tradicionais;
11. Recomendamos que seja assegurado a criação de um Comitê Indígena para o
acompanhamento dos processos de discussão e planejamento da produção dos
Conhecimentos Tradicionais;
12. Recomendamos que o governo adote uma política de proteção da biodiversidade e
sociodiversidade destinada ao desenvolvimento econômico sustentável dos povos
indígenas. É fundamental que o governo garanta recursos para as nossas comunidades
desenvolverem programas de proteção dos conhecimentos tradicionais e preservação
das espécies in situs ;
13. Até que o Congresso Nacional brasileiro aprove o projeto de lei 2057/91 que
institui o Estatuto das Sociedades Indígenas parado na Câmara dos Deputados, mais
de 10 anos, e a ratificação da Convenção 169 da OIT, parado no Senado 8 anos e,
aprovado pela Câmara dos Deputados, propomos que os povos indígenas discutam a
necessidade do estabelecimento de uma moratória na exploração comercial dos
conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos;
14. Propomos aos governos que reconheçam os conhecimentos tradicionais como saber
e ciência, conferindo-lhe tratamento eqüitativo em relação ao conhecimento científico
134
ocidental, estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a
importância dos conhecimentos tradicionais;
15. Propomos que se adote um instrumento universal de proteção jurídica dos
conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui generis, distinto dos
regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual e que entre outros aspectos
contemple: o reconhecimento das terras e territórios indígenas, consequentemente a sua
demarcação; o reconhecimento da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais
como imprescritíveis e impenhoráveis e dos recursos como bens de interesse público;
com direito aos povos e comunidades indígenas locais negarem o acesso aos
conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos existentes em seus territórios; do
reconhecimento das formas tradicionais de organização dos povos indígenas; a inclusão
do princípio do consentimento prévio informado e uma clara disposição a respeito da
participação dos povos indígenas na distribuição eqüitativas de benefícios resultantes da
utilização destes recursos e conhecimentos; permitir a continuidade da livre troca entre
povos indígenas dos seus recursos e conhecimentos tradicionais;
16. Propomos que a criação de bancos de dados e registros sobre os conhecimentos
tradicionais sejam discutidos amplamente com comunidades e organizações indígenas e
que a sua implantação seja após a garantia dos direitos mencionados neste documento.
Neste encontro estão reunidos membros das comunidades indígenas com fortes
tradições bem assim como líderes experts para formular estas recomendações e
propostas. Preocupados com o avanço da bioprospecção e o futuro da humanidade, dos
nossos filhos e dos nossos netos que, reafirmamos aos governos que firmemente
reconhecemos que somos detentores de direitos e não simplesmente interessados. Por
esta razão temos certeza de que as nossas recomendações e proposições seo acatadas
para a melhoria da humanidade.
Em São Luís do Maranhão, 06 de dezembro, de 2001.
135
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE
CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
RESOLUÇÃO Nº 23, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2006
Estabelece a forma de comprovação da observância da Medida Provisória nº 2.186- 16,
de 23 de agosto de 2001, para fins de concessão de patentes
de invenção pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial INPI
O CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO, no uso das
competências que lhe foram conferidas pelo art. 11, inciso II, alínea “a”, da Medida
Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, resolve:
Art. Esta Resolução disciplina a forma de comprovação da observância da Medida
Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, para fins de concessão de patentes
pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, em observância ao disposto no
art. 31 da referida Medida Provisória.
Art. Para efeitos de comprovação do atendimento do disposto na Medida Provisória
2.186-16, de 2001, o requerente do pedido de patente de invenção de produto ou
processo resultante de acesso a componente do patrimônio genético realizado desde 30
de junho de 2000, depositado a partir da data de publicação desta Resolução, deverá
declarar ao INPI que cumpriu as determinações da Medida Provisória, bem como
informar o número e a data da Autorização de Acesso correspondente, sob pena de
sujeição às sanções cabíveis.
Art. 3º O requerente de pedido de patente de invenção de produto ou processo resultante
de acesso a componente do patrimônio genético realizado entre 30 de junho de 2000 e a
data de publicação desta Resolução deverá regularizar seu pedido junto ao INPI com
vistas ao cumprimento desta Resolução.
Art. 4º Esta Resolução entra em vigor em 2 de janeiro de 2007.
MARINA SILVA
Ministra de Estado do Meio Ambiente
136
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE
CONSELHO DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
RESOLUÇÃO Nº 34, DE 12 DE FEVEREIRO DE 2009.
Estabelece a forma de comprovação da observância da Medida Provisória 2.186-16,
de 23 de agosto de 2001, para fins de concessão de patente de invenção pelo Instituto
Nacional da Propriedade Industrial, e revoga a Resolução 23, de 10 de novembro de
2006.
O MINISTRO DE ESTADO DO MEIO AMBIENTE faz saber que o Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético, no uso das atribuições que lhe foram conferidas pelo
art.11, inciso II, alínea “a”, da Medida Provisória no. 2.186-16, de 23 de agosto de
2001, resolve:
Art. 1º Esta Resolução estabelece a forma de comprovação da observância da
Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, para fins de concessão de
patentes de invenção pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, em
observância ao disposto no art. 31 da referida Medida Provisória.
Art. Para efeitos de comprovação da observância das disposições da Medida
Provisória 2.186-16, de 2001, o requerente de pedido de patente de invenção cujo
objeto tenha sido obtido em decorrência de acesso a amostra de componente do
patrimônio genético nacional realizado a partir de 30 de junho de 2000 deverá informar
ao INPI a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando
for o caso, bem como o número da correspondente Autorização de Acesso concedida
pelo órgão competente.
Art. 3º Fica revogada a Resolução nº 23, de 10 de novembro de 2006.
Art. 4º Esta Resolução entra em vigor em 30 de abril de 2009.
CARLOS MINC
Ministro de Estado do Meio Ambiente
O texto acima foi originalmente publicado no Diário Oficial da União de 24 de março
de 2009,
Seção 1 p.72, e consolidado de acordo com retificação publicada no Diário Oficial da
União de
28 de abril de 2009 Seção 1, p. 70.
137
MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA, DO COMÉRCIO E DO TURISMO
INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
P R E S I D Ê N C I A
13/12/2006
RESOLUÇÃO 134/06 INPI
Assunto: Normaliza os procedimentos relativos ao requerimento de pedidos de patentes
cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de um acesso a amostra de componente do
patrimônio genético nacional.
O PRESIDENTE DO INPI, no uso das suas atribuições, tendo em vista o disposto no
art. 31 da Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, originária da Medida
Provisória nº 2.052, de 29 de junho de 2000, e, ainda, o disposto na Resolução nº 23, de
10 de novembro de 2006, do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - CGEN,
RESOLVE:
Art. Esta Resolução normaliza os procedimentos relativos ao requerimento de
pedidos de patente cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de acesso a amostra de
componente do patrimônio genético nacional.
Art. O requerente de pedido de patente depositado a partir da data da entrada em
vigor da Resolução 23, de 10 de novembro de 2006, do CGEN, deverá declarar ao
INPI, no campo específico do formulário de depósito de pedido de patente ou do
formulário PCT-entrada na fase nacional, conforme o caso, se o objeto do pedido de
patente foi obtido, ou não, em decorrência de um acesso a amostra de componente do
patrimônio genético nacional, realizado a partir de 30 de junho de 2000.
Parágrafo único. Na hipótese do objeto do pedido de patente ter sido obtido em
decorrência de um acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional,
nos termos do caput, o requerente deverá declarar ao INPI, também, que foram
cumpridas as determinações da Medida Provisória 2.186-16, de 2001, informando,
ainda, o número e a data da Autorização do acesso correspondente, bem como a origem
do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for o caso.
Art. Os requerentes de pedidos de patente cujo objeto tenha sido obtido em
decorrência de um acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional,
realizado a partir de 30 de junho de 2000, que estejam depositados no INPI na data da
entrada em vigor da Resolução 23, de 10 de novembro de 2006, do CGEN, deverão
declarar ao INPI, em formulário específico, instituído por este ato, isento do pagamento
de retribuição, que foram cumpridas as determinações da Medida Provisória 2.186-
16, de 2001, informando, ainda, o número e a data da Autorização do acesso
correspondente, bem como a origem do material genético e do conhecimento tradicional
associado, quando for o caso, independentemente de notificação por parte do INPI.
Art. 4º Esta Resolução entra em vigor no dia 02/01/2007.
Jorge de Paula Costa Ávila
Presidente
Carlos Pazos Rodriguez
Diretor de Patentes
138
MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA, DO COMÉRCIO E DO TURISMO
INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
P R E S I D Ê N C I A
24/04/2009
RESOLUÇÃO Nº 207/09
Assunto:
Normaliza os procedimentos relativos ao requerimento de pedidos de patentes de
invenção cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de um acesso a amostra de
componente do patrimônio genético nacional revoga a Resolução 134, de 13 de
dezembro de 2006.
O VICE-PRESIDENTE DO INPI, no exercício da Presidência, e o DIRETOR DE
PATENTES, no uso das suas atribuições, tendo em vista o disposto no art. 31 da
Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, originária da Medida
Provisória nº 2.052, de 29 de junho de 2000, e, ainda, o disposto na Resolução nº 34, de
12 de fevereiro de 2009, do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético - CGEN
RESOLVEM:
Art. Esta Resolução normaliza os procedimentos relativos aos pedidos de patente de
invenção cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de acesso a amostra de
componente do patrimônio genético nacional.
Art. 2º O requerente de pedido de patente de invenção cujo objeto tenha sido obtido em
decorrência de acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional,
realizado a partir de 30 de junho de 2000, deverá informar ao INPI, em formulário
específico, instituído por este ato, na forma do seu Anexo I, isento do pagamento de
retribuição, a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado,
quando for o caso, bem como o número da Autorização de Acesso correspondente.
Art. 3º Por ocasião do exame do pedido de patente, o INPI poderá formular a exigência
necessária a sua regularização, com vistas ao cumprimento do disposto no art. 2º, que
deverá ser atendida no prazo de sessenta dias, sob pena de arquivamento do pedido de
patente, nos termos do art. 34, inciso II, da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996.
§ Por ocasião do cumprimento da exigência de que trata o artigo anterior, o
requerente de pedido de patente cujo objeto tenha sido obtido em decorrência de acesso
a amostra de componente do patrimônio genético nacional, realizado a partir de 30 de
junho de 2000, deverá informar a origem do material genético e do conhecimento
tradicional associado, quando for o caso, bem como o número da Autorizão de
Acesso correspondente, em formulário específico, instituído por este ato, na forma do
seu Anexo I, isento do pagamento de retribuição.
139
§ 2º Em se tratando de pedido de patente cujo objeto não tenha sido obtido em
decorrência de acesso a amostra de componente do patrimônio genético nacional,
realizado a partir de 30 de junho de 2000, deverá informar essa condição em formulário
específico, instituído por este ato, na forma do seu Anexo II, isento do pagamento de
retribuição.
Art. 4º Fica revogada a Resolução nº 134, de 13 de dezembro de 2006
Art. 5º Esta Resolução entra em vigor em 30 de abril de 2009.
Ademir Tardelli
Vice-Presidente
Carlos Pazos Rodriguez
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