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Desta maneira, Gödel se baseou no paradoxo de Epimênides
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e construiu uma fórmula
aritmética G que representa o enunciado “a fórmula G não é demonstrável”, que é um
enunciado auto-referencial. Gödel definiu a relação entre números naturais que indica
quando uma proposição é demonstrável e provou que G é demonstrável se, e somente
se, sua negação, ~G, for demonstrável.
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Como isto implicaria na inconsistência da
aritmética, deduz-se que se a aritmética for consistente, nem G e nem ~G são
demonstráveis, isto é, G é indecidível. No entanto, embora seja indecidível, G é uma
fórmula do sistema formal, pois consiste em uma propriedade aritmética válida para
todos os números naturais. Logo, a aritmética é incompleta. Como corolário, Gödel
construiu uma fórmula que corresponde ao enunciado “a aritmética é consistente” e
provou que esta fórmula não é demonstrável, donde segue que o sistema formal
aritmetizado não é capaz de provar a consistência da aritmética.
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Nas linhas que seguem, procuraremos detalhar os procedimentos de Gödel
descritos. No entanto, a complexidade da demonstração, tal como Gödel apresentou,
foge dos nossos propósitos e, por isso, traçaremos um fio condutor que segue por outra
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Também conhecido como paradoxo do mentiroso, pois trata-se da asserção “eu sou um mentiroso”. É
um dos paradoxos semânticos gregos descritos na seção 1.2.
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O cálculo é feito via a aritmetização construída para o sistema formal, mas é possível compreender
esta demonstração por via de argumentos que não utilizam linguagem técnica. Para tanto, deve-se
compreender o paradoxo do mentiroso. Considere a frase: “eu sou um mentiroso”. Se frase for
verdadeira, então quando afirmei “eu sou um mentiroso”, eu menti. Logo, a frase “eu sou um mentiroso” é
falsa. Reciprocamente, se a frase “eu sou um mentiroso” for falsa, então eu não sou mentiroso e,
portanto, a minha frase “eu sou um mentiroso” é necessariamente verdadeira. Em síntese, a frase “eu
sou um mentiroso” é verdadeira se, e somente se, ela for falsa. Considere agora o enunciado G: “eu não
sou demonstrável”. Se G for demonstrável, então, é possível prová-lo e, portanto, o seu enunciado “eu
não sou demonstrável” é verdadeiro. Mas, se este enunciado for verdadeiro, então provamos que G não
é demonstrável. Suponha, por outro lado, que não seja possível provar G. Isto significa que a sua
negação é verdadeira, a saber, “eu sou demonstrável”. Isto implica, portanto, que podemos provar G.
Resumindo, G é demonstrável se, e somente se, sua negação for demonstrável.
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A possibilidade de existir sentenças indecidíveis em um sistema formal não é nada trivial. Pensando
nisto, Hofstadter (1979, p. 33) criou um pequeno sistema formal que contém uma fórmula não
demonstrável. O sistema utiliza três letras do alfabeto M, I, U e as seqüências com estas letras
pertencem a este sistema. A formação de uma seqüência do sistema deve obedecer cinco regras
básicas: 1ª) MI é uma seqüência do sistema; 2ª) Se uma seqüência terminada com I pertence ao sistema,
então podemos acrescentar U a esta, formando uma nova seqüência do sistema; 3ª) Se Mx pertence ao
sistema, sendo x uma variável que pode representar uma letra ou uma seqüência, então Mxx também
pertence ao sistema; 4ª) Se o sistema possui uma seqüência contendo III, então a seqüência formada
pela troca de III por U também pertence ao sistema; 5ª) Se o sistema possui uma seqüência contendo
UU, então a seqüência obtida pela omissão de UU da outra também pertence ao sistema. O que
Hofstadter prova (p. 260-267, 439), usando a numeração de Gödel, é que a seqüência MU que, por
definição, pertence ao sistema, não pode ser produzida por este sistema.