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Universidade Federal de Juiz de Fora
Pós-Graduação em Ciência da Religião
Mestrado em Ciência da Religião
Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTÂNCIA DO SÍMBOLO PARA A COMPREENSÃO DA RELIGIÃO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Juiz de Fora
2009
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Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTÂNCIA DO SÍMBOLO PARA A COMPREENSÃO DA RELIGIÃO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Filosofia da Religião, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Sidnei Vilmar Noé
Juiz de Fora
2009
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Giovannoni, Hermenegildo Ferreira.
A importância do símbolo para a compreensão da religião e da arte
segundo Carl Jung / Hermenegildo Ferreira Giovannoni. – 2010.
116 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião)–Universidade
Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
1.
Religião. 2. Símbolos bíblicos. I. Título.
CDU 2
Hermenegildo Ferreira Giovannoni
A IMPORTÂNCIA DO SÍMBOLO PARA A COMPREENSÃO DA RELIGIÃO E DA
ARTE SEGUNDO CARL GUSTAV JUNG
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião, Área de
Concentração em Filosofia da Religião, do
Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião.
Aprovada em 31 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Gross
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Afonso Araújo
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Profª.drª. Maria Glória Dittrich
Universidade do Vale do Itajaí
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao CNPQ pela bolsa concedida, a qual me permitiu realizar as disciplinas do curso
de mestrado e a pesquisa para esta dissertação.
Meus sinceros agradecimentos ao professor Afonso Rodrigues, do IAD, que desde o início do
meu curso de graduação forneceu-me incentivo e orientação fundamentais para prosseguir nos
estudos paralelos sobre arte, religião e simbolismo.
Agradeço também aos amigos que me apoiaram de diversas maneiras durante a realização
deste trabalho: Juliane, Isabella, Wanessa, Tatiene, Patrícia, Alexandro, Lúcia Helena, Rosani
e Schubert. Agradeço também de forma especial aos amigos Maryanna, Ioneide e Guimarães,
que me ajudaram de forma decisiva, providencial e abnegada na realização deste trabalho.
Meus agradecimentos aos professores do PPCIR, com os quais cursei as disciplinas que me
propiciaram os fundamentos teóricos necessários para efetuar esta pesquisa.
Sou grato aos psicólogos Paulo Bonfatti e Sônia Regina, que se disponibilizaram prontamente
a esclarecer diversas dúvidas referentes à psicologia analítica.
Agradeço especialmente ao meu orientador Dr. Sidnei Vilmar Noé, pela atenção conferida à
minha pesquisa e pelo interesse e dedicação em solucionar minhas dúvidas e em esclarecer
meus questionamentos. Agradeço pelo incentivo a prosseguir sempre nas minhas hipóteses, a
despeito de prejulgamentos, e por sempre confiar em meu potencial, mesmo nos momentos
em que tal confiança mostrou-se imerecida.
RESUMO
Partindo da hipótese de uma fundamentação comum entre religião e arte no âmbito da vida
anímica do ser humano, esta dissertação pretende realizar um estudo do conceito de símbolo
na psicologia analítica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, na medida em que esta considera
tanto os fenômenos artísticos quanto os religiosos como simbólicos. O primeiro capítulo
fornece uma análise dos principais conceitos indispensáveis à compreensão da idéia de
símbolo, partindo das primeiras formulações teóricas e chegando até seu delineamento final.
O segundo capítulo discorre sobre a aplicação do conceito de símbolo anteriormente analisado
aos aspectos psicológicos da criação e da fruição artísticas e da experiência religiosa.
Palavras-chave: símbolo, inconsciente, arte, religião, psicologia analítica, C. G. Jung.
ABSTRACT
Starting with the hypothesis of a common foundation for religion and art in the context of the
psychical life of human beings, this dissertation intends to realize a study of the concept of
symbol in the analytical psychology developed by Carl Gustav Jung, to the extend that it
regards both the artistic and the religious phenomena as symbolical. The first chapter provides
an analysis of the main concepts needful to the understanding of the idea of symbol,
beginning with primary theoretical formulations and coming to their final delineation. The
second chapter deals with the application of the previously analyzed concept of symbol to the
psychological aspects of artistic creation and fruition, and of religious experience.
Keywords: symbol, unconscious, art, religion, analytical psychology, C. G. Jung.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 07
2 ASPECTOS TEÓRICOS DO SÍMBOLO NA PSICOLOGIA ANALÍTICA.. 14
2.1 O CONCEITO DE SÍMBOLO NA TEORIA DOS COMPLEXOS....................... 14
2.2 PENSAMENTO DIRIGIDO E NÃO-DIRIGIDO.................................................. 20
2.3 O CONCEITO DE SÍMBOLO E AS FUNÇÕES PSÍQUICAS............................. 25
2.4 O CONCEITO DE SÍMBOLO E PONTO DE VISTA ENERGÉTICO ................ 40
3 O SÍMBOLO NA RELIGIÃO E NA ARTE ...................................................... 61
3.1 SÍMBOLOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA ................................................................ 61
3.1.1 Arte e teoria dos complexos .................................................................................... 61
3.1.2 Pressupostos fundamentais da abordagem psicológica: arte .................................. 63
3.1.3 Os gêneros das obras de arte ................................................................................... 69
3.1.4 Arte simbólica na psicologia analítica .................................................................... 75
3.2 SÍMBOLO E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA .......................................................... 84
3.2.1 Pressupostos fundamentais da abordagem psicológica: religião ............................ 84
3.2.2 Simbolismo e experiência religiosa ........................................................................ 85
3.2.3 Religião e conceitos fundamentais de psicologia analítica ..................................... 89
3.2.4 O simbolismo religioso e o processo de individuação ............................................ 98
4 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 105
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 113
1 INTRODUÇÃO
É amplamente reconhecida a linha de continuidade histórica e teórica entre a
psicanálise de Freud e a psicologia analítica de Jung. A teoria freudiana constitui o quadro de
referência inicial para o desenvolvimento do pensamento do jovem Jung; além disso, Freud
foi comentador de seu trabalho clínico e teórico: em 1906, Jung enviou-lhe um exemplar de
seu “Studies in Word Association”, fato que iniciou uma ampla e importante troca de
correspondência entre ambos (SAMUELS, 1988, p. 165). É reconhecido também que,
inicialmente, “Freud considerou Jung não somente como seu discípulo mais bem-dotado,
como também o mais importante, seu príncipe coroado, o homem destinado a levar sua obra
adiante no futuro” (PALMER, 2001, p. 118). A ruptura entre ambos ocorreu somente em
1912, ano em que Jung publica o seu Wandlungen und Symbole der Libido (posteriormente
intitulado “Símbolos da Transformação”), trabalho no qual explicita pontos definitivamente
divergentes em relação à psicanálise e que constituíram o núcleo da nova ciência denominada
psicologia analítica.
A teoria de Jung, portanto, é herdeira direta da de Freud, devido ao pioneirismo deste
na exploração do âmbito psíquico denominado inconsciente. Segundo Jung (1995, p.524), a
pesquisa de Freud acerca dos complexos – conjuntos autônomos de conteúdos psíquicos com
forte carga emocional – representou a verdadeira descoberta do inconsciente. Mas, apesar dos
fundamentos básicos de ambos serem compartilhados, a psicologia de cada um seguiu
caminhos diversos e muitas vezes opostos. “‘Símbolos da Transformação’ é, sob muitos
aspectos, a obra decisiva no desenvolvimento da psicologia junguiana e, portanto, de uma
nova compreensão da mente consciente” (PALMER, 2001, p.125).
O primeiro e mais importante ponto de divergência entre os autores refere-se à crítica
de Jung em relação ao papel central que Freud concedia ao instinto sexual, ou pulsão sexual, e
às experiências sexuais infantis. As reservas de Jung em considerar as neuroses como devidas
unicamente à questão sexual já aparecem em artigos e cartas anteriores a 1912 (ibid., p. 123).
Mas é nesta data que Jung elabora explicitamente um novo conceito de libido, que não se
refere mais a uma energia de caráter sexual, sendo uma energia psíquica de caráter muito
mais amplo, podendo assumir aspecto sexual, mas também muitos outros, tão ou mais
importantes quanto esse. Portanto, Jung abandona a “teoria sexual” de Freud e adota um
“modelo energético”, que “tornou possível identificar a expressão ‘energia psíquica’ com o
termo ‘libido’” (JUNG, 1986b, p. 122-123), que se refere agora a um impulso não-específico,
8
“um valor energético que pode transmitir-se a qualquer área, ao poder, à fome, ao ódio, à
sexualidade, à religião, etc.” (JUNG, 1986b, p. 124).
O ponto de vista energético da libido empregado por Jung, segundo ele, permite uma
abordagem do funcionamento da psique em termos finalistas, e não causais, como na
psicanálise de Freud. Nos termos de Jung (1984, p. 22):
A concepção finalista vê as coisas como ordenadas a um fim. Um exemplo
muito fácil é o da questão da regressão: causalmente, a regressão é
condicionada pela ‘fixação na mãe’, por exemplo. Finalisticamente,
entretanto, é a libido que regride à imago da mãe, para aí descobrir as
associações da memória, através das quais a evolução pode passar de um
sistema sexual, por exemplo, para um sistema espiritual.
É nesse sentido que Jung denomina o método causal freudiano de redutivo, enquanto
ao seu próprio método finalista denomina sintético ou construtivo. Referindo-se ao aspecto
causal, ele afirma que “jamais explicaremos exaustivamente por ele a psicologia do
indivíduo”, também por ele nenhum fato psicológico poderá ser explicado, pois “como
fenômeno vivo, está sempre umbilicalmente vinculado à continuidade do processo vital, de
modo que é sempre algo realizado, mas também algo a se realizar, algo criador” (JUNG,
1991, p. 410). Todas essas transformações da energia e dos conteúdos psíquicos, segundo o
aspecto finalista, devem-se justamente à ação dos símbolos, que assim despem-se de seu
determinismo sexual.
Por outro lado, no âmbito da psicologia, o termo símbolo constitui tradicionalmente
sinônimo de signo, indicando uma expressão ou conteúdo que é posto no lugar de outro, o que
lhe confere, primordialmente, uma função apenas substitutiva. A partir desta acepção
alegórica, o símbolo passa a ocupar freqüentemente uma posição rebaixada em relação aos
outros signos, a linguagem simbólica seria expressão de um pensamento primitivo - no
sentido pejorativo - ainda não desenvolvido, permeado de analogias estéticas e elementos
afetivos, tal como aparece no mito, sendo este entendido como tentativa frustrada de
explicação objetiva dos fenômenos. Já o pensamento racional seria expresso por uma
linguagem composta por signos abstratos, depurados de quaisquer elementos que possam
comprometer sua lógica intrínseca.
A psicanálise freudiana, de certa forma, adotou esta concepção substitutiva e
depreciativa do símbolo à sua teoria, conferindo-lhe um papel apenas defensivo e
dissimulador, constituindo-se então de uma representação indireta, destinada a ser superada e
ultrapassada em favor de uma representação superior. De fato, Freud utiliza mais o termo
sintoma do que propriamente símbolo, ele prioriza o adjetivo simbólico para caracterizar as
9
formas de representação indireta típicas do sistema inconsciente, regidas pelos mecanismos de
deslocamento, condensação, sobredeterminação e figurabilidade (LAPLANCHE, 1992, p.
483). Esses mecanismos atuam sobre as representações de pulsões sexuais recalcadas,
deformando-as para que se tornem compatíveis com o ego; são, portanto, formações
substitutivas que ocultam elementos inconscientes. Ao sentido manifesto, portanto, opõe-se
um sentido latente, e a tarefa do analista será decodificar esses simbolismos por meio de uma
interpretação retrospectiva. Afinal, o símbolo na psicanálise é considerado mormente em seu
aspecto patológico ou regressivo.
A abordagem de Jung, por outro lado, ao considerar o inconsciente como uma forma
ativa e autônoma de pensamento, confere ao símbolo não um significado preciso e consciente,
mas uma forma própria de constituir significação. Os símbolos adquirem grande importância
na economia psíquica do indivíduo, pois são capazes de ativar e transformar grande
quantidade de energia. Eles não constituem apenas formações substitutivas, que estão no lugar
de um conteúdo original, mas possuem uma legitimidade própria, ou seja, a função simbólica
segue leis específicas de elaboração de conteúdos no inconsciente, ao mesmo tempo em que
estabelece uma ponte com os conteúdos da consciência, os signos. Para Jung, os símbolos são
elementos muito mais abrangentes, em termos de significação, que os signos; estes são
cristalizações de um aspecto daqueles, tendo em vista que a consciência opera por
diferenciação e exclusão, enquanto o inconsciente opera por conjunção e unificação. Os
símbolos atuam promovendo sentido à vida humana, proporcionando motivações e
convicções especialmente frente aos sofrimentos, à morte e às contradições. Se for possível
afirmar, de maneira geral, que o símbolo é a forma de expressão da psique inconsciente, ou
seja, constitui a linguagem própria do pensamento simbólico, torna-se evidente a extrema
importância do estudo dos símbolos para a compreensão da dinâmica geral da psique, tanto
em pessoas normais quanto em neuróticos, e para a compreensão dos distúrbios psíquicos e da
terapêutica em geral.
De acordo com Jung a religião, enquanto um fenômeno psíquico, deve ser
considerada segundo a acepção original do vocábulo latino religere; “uma acurada e
conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto (...) chamou de ‘numinoso’”
(JUNG, 1980,
p. 3). Dessa forma, a religião seria a atitude do espírito humano caracterizada por uma
“consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como
‘potências’”
(ibid., p. 4).
10
Essas “potências” correspondem, de acordo com Jung, aos arquétipos, “estruturas
fundamentais características, sem conteúdo específico e herdadas desde os tempos mais
remotos”
(JUNG, 1980, p. 524). São, portanto, padrões inconscientes de estruturação de
conteúdos psíquicos, em si mesmos irrepresentáveis, tornando-se evidentes apenas em suas
manifestações, sendo por esse motivo que, inicialmente, Jung faz referência aos arquétipos
pelo termo imagens primordiais. De acordo com Jung (1986b, p. 49), o “fato psíquico ‘Deus’
é um tipo autônomo, um arquétipo coletivo (...). Por isso não só existe em todas as formas
superiores de religião, mas aparece também espontaneamente em sonhos individuais”. Já o
arquétipo constituiria “uma formação psíquica inconsciente, mas que tem existência real,
independentemente da posição tomada pelo consciente”, é uma “existência anímica, que como
tal não pode ser confundida com o conceito de um Deus metafísico” (loc. cit.). Para Jung,
portanto, a imagem de deus é produzida, na psique, pela libido (energia psíquica) através de
modelos arquetípicos, gerando a experiência de uma força anímica tão poderosa que leva à
reverência. Essa energia, por ser “inerente ao arquétipo, isto é, ao inconsciente, não está à
nossa disposição” (ibid., p. 75), à disposição do ego consciente.
Por isso, as estruturas arquetípicas que constituem o inconsciente coletivo são
experienciadas como um agente externo à consciência, fogem ao seu controle e possuem uma
forte carga emotiva que sobrepuja a vontade do ego. Por isso, a experiência dos arquétipos
corresponde à experiência do numinoso, do divino. Segundo Jung (ibid., p. 74), os seres
oriundos dessa estrutura arquetípica sempre foram qualificados como “divinos”, “deuses”.
Para Samuels (1988) os deuses podem ser considerados comometáforas de comportamentos
arquetípicos e mitos como encenações arquetípicas.
Por outro lado, a experiência dos arquétipos só se dá através dos símbolos. De fato,
os símbolos refletem a dinâmica do inconsciente, em especial a do inconsciente coletivo, “o
símbolo não é uma alegoria nem um semeion (sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua
maior parte transcendental ao consciente” (JUNG, 1986b, p. 67). Assim, o símbolo “formula
um fator essencialmente inconsciente”, ou ainda “operacionaliza a participação do
inconsciente” (idem, 1991, p. 446). Justamente por constituírem a linguagem típica da psique
inconsciente, os símbolos possuem uma significação extremamente rica e abrangente, “que
nunca se deixa exaurir ou definir com exatidão”
(Idem, 1998, p. 189). A compreensão racional
não é capaz de definir um símbolo de maneira completa. Por outro lado, os sinais ou signos
apontam diretamente para uma idéia consciente, dessa forma, um
sinal é sempre menos do que a coisa que quer significar, e um símbolo
é sempre mais do que podemos entender à primeira vista. Por isso não
11
nos detemos diante de um sinal, mas vamos até o objetivo para o qual
aponta; no caso do símbolo, porém, nós paramos porque ele promete
mais do que revela (JUNG, 1997, p. 215).
De fato, Jung faz uma diferenciação entre o modo de pensamento não-dirigido e o
dirigido. Este é movido por motivos conscientes e voltado para a adaptação à realidade
objetiva. A linguagem correspondente a esse pensamento é a dos signos, pois seu sentido é
determinado de forma consciente, por convenção. Já o pensamento não-dirigido, ou
pensamento-fantasia, pertence à esfera do inconsciente, e sua forma de expressão é a
linguagem simbólica, que traduz diretamente sentimentos e emoções. Assim, os símbolos são
antes uma realidade vivencial, e não um conceito ou abstração típicos do signo; deve-se viver
os símbolos, e não refletir sobre eles. Para Jung (1991, p. 117), as “funções racionais são, de
acordo com sua natureza, incapazes de criar símbolos”, são capazes de criar apenas signos ou
sinais. Por outro lado, o símbolo não deixa de ser também racional, pois se compõe de dados
de todas as funções psíquicas, tanto as racionais (pensamento e sentimento) quanto as
irracionais (sensação e intuição), o que é característico do âmbito indiferenciado do
inconsciente. O símbolo “possui um lado que fala à razão e outro inacessível à razão, pois não
se constitui apenas de dados racionais, mas também de dados irracionais” (ibid., p. 447).
Ainda de acordo com Jung, a arte mobiliza na psique humana os mesmos
mecanismos simbólicos, ele considera “uma obra de arte simbólica cuja origem (...) deve ser
procurada naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas imagens primitivas pertencem ao
patrimônio comum da humanidade”
(idem, 1985, p. 68). Dessa forma, no processo criativo, o
artista atualiza de forma plástica ou literária as estruturas arquetípicas do inconsciente
coletivo. Nesse sentido, pode-se afirmar que Jung prioriza, em sua investigação psicológica,
não tanto o artista enquanto indivíduo, mas o processo criador. Se o fundamento psíquico da
criação artística está no impulso que brota do inconsciente, tal procedimento mostra-se
coerente, e todo o tratamento consciente ao qual o artista submete sua obra (não é descartado,
obviamente, os aspectos conscientes da criação artística), como acréscimos, subtrações,
substituições, efeitos ou observações de determinadas leis de estilo, reveste-se de importância
secundária. De acordo com Jung (ibid., p. 65), nas obras de arte, “sua linguagem prenhe de
sentido grita para nós que elas significam muito mais do que dizem. Podemos indicar o
símbolo de imediato, muito embora não sejamos capazes de desvendar seu significado para
nossa plena satisfação”, o símbolo na arte, assim como no mito, “é sempre um desafio à nossa
reflexão e compreensão”.
12
Por isso, o processo criativo consiste em uma “ativação inconsciente do arquétipo e
numa elaboração e formalização na obra acabada”
(JUNG, 1985, p. 71). A obra de arte, em
Jung, reveste-se de um caráter eminentemente simbólico, a atividade artística possui como
característica principal o fundamentar-se na fantasia (ou imaginação ativa), ou seja, “uma
atitude orientada para a percepção de conteúdos inconscientes” (idem, 1991, p. 407), o que
caracteriza a função intuitiva. Por isso Jung afirma que o artista “não é mero apresentador,
mas criador e, por isso, educador, pois suas obras têm valor de símbolos que prefiguram as
linhas do desenvolvimento futuro” (ibid., p. 411). Assim, o conceito de símbolo tal como
formulado pela psicologia analítica, no âmbito da psique humana, se relaciona tanto ao
fenômeno religioso quanto ao artístico, tornando-se um elemento essencial no
desenvolvimento da análise psicológica desses fenômenos culturais. Entre arte e religião é
estabelecida uma relação originária, pois tanto a linguagem religiosa quanto a artística devem
ser entendidas e analisadas enquanto linguagens simbólicas, de origem inconsciente.
Percebe-se, portanto, o lugar de destaque conferido ao pensamento simbólico em
Jung. Segundo ele, a energia psíquica resultante da repressão dos símbolos pode se tornar
muito prejudicial ao equilíbrio psíquico. Jung chega a afirmar (1997, p. 260), de forma oposta
a Freud, que o pensamento racional, em sua pretensão de constituir a totalidade da psique, “é
nossa ilusão dominadora”. Segundo ele, as grandes religiões do mundo ajudam os homens e
mulheres a realizarem o seu pleno desenvolvimento psíquico, isto é, o processo de
individuação. Elas atuam como base segura e orientação para que o indivíduo possa ativar
essa poderosa fonte de energia psíquica, o “numinoso”, sem ser consumido por ele. Por isso, a
atuação dos símbolos, através das experiências religiosa e artística, é fundamental para o
pleno desenvolvimento psíquico do indivíduo e da coletividade. Ao contrário, em Freud, a
presença do símbolo indica desequilíbrio e conflito, pois, segundo ele, a defesa somente se
torna patológica quando sujeita aos mecanismos do inconsciente, ou seja, quando se torna
simbólica. Já para Jung é justamente a ausência da função simbólica no indivíduo, devido a
uma atitude unilateral da consciência, que provoca todo tipo de distúrbios e complicações.
Dessa forma, a visão positiva de Jung em relação ao papel da religião e da arte no
desenvolvimento humano geral é incontestável. Mais uma vez, pode-se contrapô-lo a Freud,
já que este afirma serem religião e arte satisfações substitutivas, construídas pelo psiquismo
humano para suportar os problemas da vida e lidar com o desamparo, determinadas
principalmente pelo mecanismo da sublimação. Assim, ambas estariam reduzidas, no contexto
da psicanálise, a uma questão dos destinos da pulsão sexual. Enquanto satisfações
13
substitutivas elas são consideradas ilusões em contraste com a realidade. A arte seria, para
Freud, uma ilusão inócua e benéfica, ou seja, não representa perigo por não possuir a força
necessária para invadir o âmbito do real; e a religião uma ilusão de imenso poder, mas
destinada ao desaparecimento conforme o avanço da ciência. Por isso, a psicologia analítica
foi, e ainda permanece sendo, uma fonte de influência para artistas, estudiosos e críticos de
arte; como afirma Souriau (1995, p. 917), a psicologia junguiana recobre mais amplamente o
domínio da arte e explica melhor a grande diversidade dos artistas do que outras abordagens
psicológicas.
2 ASPECTOS TEÓRICOS DO SÍMBOLO NA PSICOLOGIA ANALÍTICA
2.1 O conceito de símbolo na teoria dos complexos
As primeiras considerações de Jung acerca do conceito de símbolo se dão no
contexto de sua teoria dos complexos. Segundo ele (1999, p. 55-56), o modo típico de
expressão de todo complexo autônomo é simbólico, pois devido a uma série de fatores, o
complexo é capaz de pensar e organizar seus conteúdos apenas de maneira simbólica. Assim,
toda a atividade da fantasia, como os sonhos e os sintomas, cuja origem é atribuída ao
complexo (JUNG, 1984b, p. 54), é constituída essencialmente por símbolos, e deve ser
examinada e interpretada enquanto tal.
O “complexo com carga emocional” (idem, 1995, p. 81), também chamado de
“complexo de tonalidade afetiva” (idem, 1999, p. 31), caracteriza um determinado conjunto
de idéias ou imagens que se referem a uma carga emocional específica e que por esta são
mantidas unidas. Desse modo, a “argamassa que mantém coeso o complexo é a carga
emocional comum a todas as ideias isoladas” (idem, 1995, p. 336); o complexo, portanto,
pode ser considerado, de maneira abrangente, como um “conglomerado de conteúdos
psíquicos, caracterizados por uma carga emocional peculiar” (idem, 1997, p. 65).
Estabelecendo uma analogia com a química, Jung afirma que todos os conteúdos da
vida psíquica, sejam eles sentimentos, idéias ou sensações, agrupam-se na forma de unidades,
tal como as moléculas. Cada unidade possui três elementos distintos: “percepção sensorial, os
componentes intelectuais (representação, imagens de memória, juízos, etc.), tonalidade
afetiva” (idem, 1999, p. 31-32), sendo que todos estão fortemente unidos, de forma que uma
percepção sensorial referente ao complexo, por exemplo, evoca imediatamente os
componentes intelectuais e a tonalidade afetiva. Essas unidades psíquicas não permanecem
isoladas umas das outras, elas se agrupam em um corpo maior, de acordo com uma
determinada tonalidade afetiva comum. Desse modo, “o complexo é uma unidade psíquica
mais elevada” (ibid., p. 33).
Os termos “carga emocional” e “tonalidade afetiva” podem ser considerados como
sinônimos, uma vez que Jung (1997, p. 42) dá o mesmo significado tanto ao afeto quanto à
emoção, “são a mesma coisa que nos afeta, que interfere em nós”. Jung utiliza o conceito de
“afetividade” no sentido atribuído por Eugen Bleuler, como o elemento fundamental que
subjaz e condiciona todas as nossas reflexões lógicas, pensamentos, ações ou inações, e que
15
“designa não apenas os afetos no sentido próprio, como também as leves sensações e
tonalidades afetivas de prazer e desprazer” (BLEULER, 1906, p. 6 apud JUNG, 1999, p. 31,
nota 93). A partir daí, Jung emprega de forma mais específica o conceito de “afeto” ou
“tonalidade afetiva” como um estado de sentimento caracterizado por inervações corporais,
ou seja, que possui também manifestações fisiológicas correlatas aos conteúdos psíquicos. É,
portanto, constituído por um “estado psíquico de sentimento” e por um “estado fisiológico de
inervações, tendo cada qual efeito cumulativo e recíproco sobre o outro” (JUNG, 1991, p.
388).
Dessa maneira, se os conteúdos da vida psíquica são organizados na forma de
complexos, há um destes que constitui o centro de nossa personalidade e identidade
conscientes, o chamado “complexo do eu”, também denominado simplesmente “ego” ou
“eu”. O complexo do eu é a base da psique consciente, é “tanto um conteúdo quanto uma
condição da consciência” (ibid., p. 406), uma vez que qualquer elemento psíquico somente se
torna ou pode ser considerado consciente enquanto estiver relacionado diretamente ao
complexo do eu. Portanto, aquilo que não se relacionar com o eu não é consciente, assim
como a consciência pode ser definida como “a relação dos fatos psíquicos ao eu” (idem, 1997,
p. 29). O complexo do eu é formado principalmente pelos registros da memória pessoal e pela
tonalidade afetiva de todas as sensações corporais, da percepção geral do próprio corpo (loc.
cit.). Consequentemente, exceto em casos de graves distúrbios psíquicos, o complexo do eu é
o mais estável e importante dentre todos os complexos que formam a totalidade da psique,
constituindo o “cerne indispensável da consciência” (loc. cit.).
Portanto, à exceção do complexo do eu, que constitui a esfera consciente da psique, e
de outros complexos a ele assimilados, todos os outros complexos constituem a esfera
psíquica do inconsciente. Consoante Jung, psique não deve ser confundida com consciência,
já que nem todos os conteúdos psíquicos, e nem mesmo a maior parte deles, estão
necessariamente vinculados ao eu. Por conseguinte, deve haver um grande número de
complexos inconscientes, ou seja, não associados ao eu; e outros complexos, a princípio
conscientes, que, por alguma razão, dissociam-se do complexo do eu, tornando-se então
inconscientes.
Dessa forma, os complexos podem ser considerados como “aspectos parciais da
psique dissociados” (idem, 1984a, p. 100), e surge aqui a questão acerca da origem de tal
separação. Conforme Jung, ela deve ser atribuída, algumas vezes, a um “trauma, um choque
emocional (...) que arrancou fora um pedaço da psique” (loc. cit.). Na maioria das vezes,
16
porém, é devido a um “conflito moral cuja razão última reside na impossibilidade de aderir à
totalidade da natureza humana” (JUNG, 1984a, p. 100). A partir daí, o complexo pode ser
mais precisamente definido como “a imagem de uma determinada situação psíquica de forte
carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da
consciência” (ibid., p. 99). Assim, por causa desse conflito ou incompatibilidade intrínsecos,
os complexos são dissociados da consciência, tornando-se “fragmentos psíquicos
desprendidos” (ibid., p. 106); eles se encontram em um estado de “repressão”, ou “inibição
emocional” (idem, 1999, p. 37), isto é, sua carga emocional, devido à incompatibilidade,
reveste-se de um aspecto negativo, sendo então inconscientemente inibida e separada da
consciência. Nesse sentido, o termo “repressão” é ainda usado com referência explícita à
psicanálise de Freud; conforme Jung (1995, p. 203, nota 101): “usamos o termo ‘repressão’
sempre no sentido de Bleuler e Freud, a cujo trabalho Studien uber hysterie devemos valiosos
incentivos para as nossas pesquisas”
Há, portanto, “uma inconsciência pronunciada a respeito dos complexos” (idem,
1984a, p. 101), eles determinam a estrutura do inconsciente, cuja existência e organização
somente podemos deduzir através deles, as “unidades vivas da psique inconsciente” (ibid., p.
104), que constituem a “via regia que nos leva ao inconsciente”, pois são os “responsáveis
pelos sonhos e sintomas” (loc. cit.). Dessa forma, a psique não mais pode ser considerada uma
unidade nem ser identificada apenas com a consciência. Além disso, deve-se atentar para as
perturbações que os complexos podem causar na esfera consciente, comprometendo assim o
desempenho da vontade. De fato, a principal característica dos complexos é a sua autonomia,
pois eles não estão totalmente sujeitos ao controle das intenções conscientes, podendo alterar
o curso normal de nossa volição, memória e outras disposições conscientes. O complexo atua,
“na esfera do consciente, como um corpus alienum [corpo estranho], animado de vida
própria” (ibid., p. 99), podendo também ser chamado de “alma fragmentária” (ibid., p. 100),
“segunda consciência” (idem, 1995, p. 275) ou “uma psique dentro de outra psique” (ibid., p.
524) .
Essa autonomia do complexo é devida, como foi visto, à sua constituição semelhante
ao complexo do eu. Sua forte carga emocional pode, em determinadas ocasiões, a despeito da
inibição da consciência, adquirir um valor que supera a coesão do eu, perturbando sua
atividade. Pode-se dizer que o complexo, devido a sua tonalidade afetiva, tende a formar uma
personalidade parcial, dotada de uma fração mais ou menos significativa de vontade própria
(Idem, 1997, p. 86), não havendo, portanto, diferença marcante entre o complexo do eu e um
17
complexo autônomo, sendo ambos os conteúdos psíquicos dotados de carga afetiva e vontade
próprias (JUNG, 1997, p. 87). Por isso o complexo pode ser comparado a uma
“personalidade fragmentária” (Idem, 1984a, p. 100), que atua em diversos distúrbios da
consciência, como os da memória e das associações. Pode atuar tambémem forma
personificada” (loc. cit.), nos personagens da mitologia, da arte em geral e nas vozes e visões
da religião ou psicopatologia; pode, além disso, devido a uma repressão excessiva que o
fortalece ainda mais, assimilar até mesmo o eu, provocando uma “modificação momentânea e
inconsciente da personalidade, chamada identificação com o complexo” (ibid., p. 101), como
nos fenômenos de possessão na Idade Média. Essa relativa independência do complexo na
estrutura psíquica é evidenciada quando Jung enfatiza que não se deve apenas dizer que temos
complexos, mas também “que os complexos podem ‘ter-nos’” (ibid., p. 98).
A teoria dos complexos começou a ser formulada por Jung no âmbito de suas
primeiras pesquisas em psicologia experimental, através do teste de associação de palavras.
Tal experimento consistia em se pronunciar, uma a uma, determinada lista com
aproximadamente cem palavras à pessoa experimental, que deveria responder a cada uma com
a primeira palavra que lhe ocorresse como reação à palavra estímulo. O tempo de reação era
cronometrado e seguia-se imediatamente o experimento de reprodução, que consistia em
averiguar se a pessoa testada era capaz de se lembrar das próprias reações anteriores. O
objetivo inicial do teste, já conhecido na psicologia experimental, era o estudo de possíveis
leis gerais de associação mental e a determinação de tipos intelectuais particulares.
Jung acrescentou ao teste o objetivo de se averiguar a influência do fator da atenção
no mecanismo das associações mentais, propondo, para isso, o teste de associação com
distração, ou seja, perturbações propositais na atenção da pessoa testada. Tal experimento
gerava diversos distúrbios associativos, comparados aos resultados da mesma pessoa sem o
emprego da distração, como o prolongamento do tempo de reação, falhas na reprodução,
repetição da palavra-estímulo e aumento das associações superficiais, como as associações
por semelhança de som. Assim, o que anteriormente eram consideradas falhas no experimento
passou a ser sistematicamente observado.
Entretanto, o mais surpreendente foi a constatação de que tais distúrbios não
ocorriam somente no experimento com distração, mas também muitas vezes nos experimentos
normais, em determinadas palavras-estímulo. A partir da análise desses distúrbios, das
conexões entre as palavras que os suscitavam e de determinadas informações – ou omissões –
que os indivíduos testados forneciam que Jung formulou sua hipótese da existência dos
18
complexos com carga emocional, os quais perturbavam o desempenho normal da atenção
consciente nas associações.
Jung considera a atenção como um mecanismo psíquico que “liga com inúmeros fios
o processo associativo a todos os outros fenômenos representados na consciência” (JUNG,
1995, p. 14), ela pode ser considerada como um “foco visual da consciência” (loc. cit.), fator
específico e ao mesmo tempo condição desta. O mecanismo da atenção atua de duas formas
distintas: “promovendo todas as idéias associadas, principalmente todas as que estão
associadas com direção”, e também “inibindo todas as idéias não associadas, especialmente as
não associadas com direção” (ibid., p. 144). Essa coesão diretiva na associação de conteúdos
psíquicos é acompanhada por um correlato físico, uma tensão que fornece sua “base
psicofísica” (loc. cit.). De fato, seguindo mais uma vez Bleuler, Jung afirma que a atenção é
um tipo específico de tonalidade afetiva, capaz de promover certos conteúdos e inibir outros
(BLEULER, 1906, p.031 apud JUNG, 1999, p. 33, nota 99), estando diretamente relacionada,
portanto, ao mecanismo da apercepção, ou seja, “o processo particular através do qual
qualquer conteúdo psíquico alcança uma compreensão clara” (WUNDT, 1902, p. 249 apud
JUNG, 1999, p. 9), isto é, uma compreensão consciente, o que evidencia a correlação entre a
atenção e o complexo do eu. Atenção e apercepção estruturam, segundo Jung, um
desempenho psíquico que permite a adaptação ao meio ambiente e às condições novas,
estando, nesse sentido, também relacionadas ao conceito de função do real (fonction du réel)
de Janet (JUNG, 1999, p. 8, nota 33).
Assim, quando um complexo inconsciente é ativado por determinada palavra-
estímulo, ele promove um desvio da idéia diretiva, ou seja, impede o funcionamento normal
do mecanismo da atenção. Na verdade, o complexo atrai para si a tonalidade da atenção, mas,
devido ao estado de repressão no qual se encontra, esta também é inibida, o que impede que o
complexo venha à tona e se torne consciente. Por outro lado, como foi visto, o complexo,
devido à sua carga emocional própria, atua como um ser independente no âmbito da psique,
possui autonomia e pode ser comparado a uma personalidade separada. Por isso, embora não
possua o domínio da atenção, o complexo determina o curso das associações psíquicas através
de sua tonalidade própria, que atua de forma diversa daquela da tonalidade da atenção.
Conforme Jung, na atividade normal do complexo do eu, ou seja, da consciência, “os demais
complexos devem ser inibidos, pois, do contrário, a função consciente capaz de dirigir a
associação seria impossível” (ibid., p. 55). Falta aos complexos, portanto, o domínio da
atenção, que “é sempre conseguido através do complexo do eu” (loc. cit.), o que lhes permite
19
um modo de expressão indireto, não explícito, ou seja, suas associações “possuem um caráter
mais ou menos simbólico” (JUNG, 1999, p. 55).
O símbolo, portanto, está associado ao modo de expressão típico do inconsciente, ao
qual falta o controle da atenção, dessa forma, a “repressão do complexo nada mais é do que a
subtração do domínio da atenção, ou seja, da clareza” (ibid., p. 57). A atividade consciente,
regida pelo mecanismo da atenção, é caracterizada pela diretividade, pela clareza de ideias e,
portanto, pela sensibilidade para a diferença. Já o modo de funcionamento do pensar
inconsciente se processa de forma oposta, pois se caracteriza pela não-diretividade e pela
“deficiência de sensibilidade para as diferenças” (ibid., p. 54), o que implica em uma
diminuição da clareza das idéias” (loc. cit.). Isso ocorre porque “a diferença é função
unicamente da atenção ou da clareza” (loc. cit.), mais precisamente, da consciência.
Por conseguinte, o modo de expressão simbólico não se pauta pela diferenciação,
mas pela semelhança, pelas analogias. As associações simbólicas se revestem de
“semelhanças verbais (sonoras) ou das imagens visuais” (ibid., p. 46), dessa forma elaboram
as produções inconscientes, seja nos sonhos, fantasias, sintomas ou reações ao teste de
associação. O complexo inconsciente, portanto, se expressa de forma simbólica, por
semelhanças de imagens ou sons, o que confere ao “conceito de expressão por semelhança de
imagens” (ibid., p. 49) uma grande importância no estudo das manifestações do inconsciente,
ou seja, dos símbolos. Estes, através do concretismo das conexões imagéticas ou sonoras,
podem constituir-se através das mais variadas combinações analógicas ou metafóricas (ibid.,
p. 47), o que evidencia uma forma de configuração que não leva tanto em consideração as
diferenças de sentido abstratas entre os conteúdos psíquicos, mas a sua semelhança de sentido
concreta. Essa não-diferençiação do simbolizar inconsciente permite também a configuração
de imagens que possuem diversos significados aglutinados, como ocorre nas produções
oníricas. Essa “multiplicidade de sentidos das imagens isoladas” (ibid., p. 54) é conseqüência
natural da falta de sensibilidade para as diferenças, ou falta de clareza do pensar simbólico.
Nessa concepção de símbolo formulada por Jung, ainda há grande influência e
referências explícitas às idéias de Freud e o termo simbólico é usado em sentido análogo ao
de sintomático (ibid., p. 55). Nesse contexto, as associações simbólicas são consideradas
como qualitativamente inferiores e às quais falta algo, no caso o domínio da atenção, da
diretividade e diferenciação de idéias. Citando Madeleine Pelletier, Jung afirma que o
“símbolo é uma forma muito inferior de pensamento”, e que poderia ser definido como a
“percepção falsa de uma relação de identidade ou de analogia muito grande entre dois objetos
20
que na realidade só apresentam uma vaga analogia” (PELLETIER, 1903, p. 128 apud JUNG,
1999, p. 56). Ele propõe uma diferenciação entre os conceitos de alegórico e simbólico: a
alegoria seria “uma interpretação intencional do pensamento intensificada por imagens”
(JUNG, 1999, p. 56), ou seja, uma operação consciente, já os símbolos seriam “associações
subsidiárias, obscuras de um pensamento que vela bem mais do que revela” (loc. cit.),
associações de um complexo inconsciente.
Apesar dessa perspectiva a princípio negativa em relação ao conceito de símbolo, a
descrição que Jung elabora do modo de expressão inconsciente dos complexos já aponta para
elementos que podem revestir-se de um aspecto extremamente positivo, o que de fato ocorre
em seus escritos posteriores. A riqueza de imagens e analogias do pensar simbólico possui um
paralelo evidente com as “características do pensamento mitológico” (ibid., p. 54); assim, o
símbolo caracteriza também as produções da mitologia, seja em seu contexto folclórico ou
religioso. Da mesma forma, os símbolos podem ser comparados, como foi visto, às analogias
e metáforas, figuras de linguagem típicas da poesia e outras formas de arte; de fato, Jung
afirma que o modo de pensar simbólico é “um modo de pensar inato num poeta, mas que é
cuidadosamente evitado precisamente no pensar científico que deve ser constelado por idéias
claras” (idem, 1995, p. 305). Aqui está implícita a idéia, que posteriormente será desenvolvida
por Jung, de que a superioridade do pensar consciente e diretivo, é uma superioridade relativa,
pois se refere a objetivos específicos. No âmbito da religião e da arte reveste-se de maior
importância justamente o pensar simbólico inconsciente, que não deve ser considerado tanto
pelo que lhe falta – no caso, a atenção – mas pelo que ele torna presente e pelo que lhe é
específico. Ambos possuem modos de atuação e finalidades diferentes, mas não devem
sobrepor-se um ao outro, pois fazem parte da totalidade psíquica do ser humano, a qual, para
entrar em um estado de equilíbrio, deve alcançar a harmonia entre suas partes constituintes, e
não permanecer em um conflito improdutivo.
2.2 Pensamento dirigido e não-dirigido
A tendência de atribuição de um valor positivo aos mecanismos simbólicos do
inconsciente se confirma quando Jung propõe a divisão das atividades psíquicas em duas
formas distintas de pensamento e as examina de forma detalhada. Há, portanto, um
pensamento consciente, com suas características próprias, e um pensamento inconsciente, cuja
forma de apresentação é eminentemente simbólica e que “obedece a leis e propósitos
21
totalmente diferentes da atividade psíquica consciente” (JUNG, 1986b, p. 9). Aqui o pensar
simbólico ou inconsciente é analisado em sua especificidade, como uma atividade plenamente
desenvolvida, “um processo em si totalmente normal” (ibid., p. 24), e não patológico ou
infantil. As duas formas de pensar atuam segundo estruturas próprias, com objetivos
diferentes e em campos distintos. Portanto, uma não pode ser julgada segundo os critérios da
outra.
Jung denomina o pensar consciente de “pensamento dirigido ou lógico” (ibid., p. 9),
através dele nos adaptamos à realidade e agimos sobre ela. Ele permite uma compreensão
objetiva da experiência, o que permite despojá-la de “todo elemento subjetivo e encontrar
aquelas fórmulas que conferem à natureza e às suas forças a expressão melhor e mais
adequada” (ibid., p. 17); é nesse sentido que tal pensamento “imita a realidade” (ibid., p. 16).
Pode também ser chamado de “pensamento com atenção dirigida” (ibid., p. 10), sendo que o
termo atenção deve ser entendido no mesmo sentido anteriormente descrito, ou seja, como o
mecanismo típico da consciência, a tonalidade afetiva que acompanha e permite a apercepção;
ou seja, a compreensão de determinados conteúdos psíquicos de forma clara. O pensamento
típico da consciência, portanto, caracterizado pela atenção ou clareza e pela diretividade, é
aquele que permite a adaptação ao meio ambiente. Ele também pode ser distinguido por
provocar esgotamento e cansaço mental.
Outra particularidade do pensamento dirigido é dar-se através de palavras, na forma
de linguagem, o que é devido, principalmente, a sua finalidade última de comunicação. Pode-
se afirmar, portanto, que a “matéria com que pensamos é a ”linguagem e o conceito
lingüístico”, e que ao pensarmos de modo dirigido, “pensamos para outros e falamos a outros”
(loc. cit.). Por isso, outra denominação possível do pensar dirigido é “pensamento lingüístico
(ibid., p. 14), mas linguagem aqui deve ser entendida num sentido muito mais abrangente que
o das línguas faladas, como uma organização do pensamento de forma dirigida, de maneira
que este possa desenvolver-se de uma forma subjetiva e individual para uma forma objetiva e
coletiva, compartilhada (loc. cit.). Assim, esta “linguagem ideal” corresponde ao próprio
pensamento dirigido (ibid., p. 12), o que é evidenciado pela evolução da linguagem primitiva,
caracterizada por termos de sentido concreto e específico para a linguagem atual, cujos termos
possuem sentido muito mais abstrato e geral (WUNDT, 1902, p. 365 apud JUNG, 1986b, p.
12). Pensamento e linguagem condicionam-se mutuamente, sendo a questão da primazia de
um sobre o outro alvo de especulações diversas.
22
O desenvolvimento do pensamento com atenção dirigida se deu de forma
relativamente recente na história cultural. Na antiguidade grega ainda predominava um
pensamento mítico, somente alguns poucos indivíduos começavam a voltar seu interesse para
a realidade objetiva. A partir daí o pensamento dirigido progrediu gradualmente, alcançando
elevado grau de desenvolvimento na época contemporânea. Atualmente “as expressões mais
nítidas do pensamento dirigido são a ciência e a técnica por ela alimentada” (JUNG, 1986b, p.
16).
Anteriormente ao pensamento dirigido, portanto, prevalecia um pensar “que se
aproximasse mais do tipo fantástico (...) impregnado de mitologia” (ibid., p. 17). O
“pensamento não dirigido” ou “pensamento-fantasia” (ibid., p. 24), também chamado por
Jung de “sonhar” ou “fantasiar” (ibid., p. 15), é aquele no qual não predomina o sentido de
direção de idéias típico do mecanismo de atenção consciente. Por outro lado, não é possível
um pensamento sem direção, pois os elementos psíquicos devem possuir alguma conexão de
sentido entre si, mesmo que esta seja inconsciente, sem o que não haveria “pensamento”
propriamente dito. Dessa forma, o pensamento não dirigido, na verdade, é “dirigido por
motivos inconscientes” (ibid., p. 15-16).
Esses motivos inconscientes coincidem com os mecanismos associativos do
complexo inconsciente descritos anteriormente. Destacam-se as associações por analogia e
semelhança de imagens e sons entre os conteúdos, e não por leis abstratas ou conceitos
lingüísticos gerais. “Aqui termina o pensamento em forma de linguagem, imagem segue
imagem, sensação a sensação” (ibid., p. 15). Os elementos de tal pensamento não se conectam
arbitrariamente ou absolutamente sem direção alguma, mas de acordo com uma diretividade
própria, que não se estrutura segundo critérios abstratos e leis gerais que os delimitam e
diferenciam em categorias mais ou menos fixas. No pensamento–fantasia, os elementos se
configuram consoante analogias concretas, sensíveis, o que ocorre de modo espontâneo e
involuntário, ou seja, inconsciente, embora as configurações finais apareçam na consciência,
exercendo grande influência sobre ela, devido a sua forte tonalidade afetiva subjacente.
O pensamento não dirigido, portanto, “é motivado, sobretudo subjetivamente, e isto
menos por motivos conscientes do que inconscientes” (ibid., p. 25). Por estar imbuído de
elementos subjetivos, falta-lhe a objetividade do pensar dirigido que permite a adaptação à
realidade, ele “afasta-se da realidade, liberta tendências subjetivas e é improdutivo com
relação à adaptação” (ibid., p. 16). Entretanto, essa improdutividade refere-se apenas à
adaptação imediata, pois “a longo prazo, justamente a fantasia despreocupada revela forças e
23
conteúdos criativos, exatamente como os sonhos” (JUNG, 1986b, p. 16, nota 22). Além disso,
tal fantasia não deve ser considerada a princípio como tão “despreocupada”, pois expressa
verdades psicológicas e preocupações fundamentais do ser humano.
Assim, as tendências subjetivas que o pensamento não dirigido liberta geram os
símbolos que caracterizam o nosso sonhar e fantasiar atuais e toda a riqueza e expressividade
da mitologia dos povos antigos (ibid., p. 17). Tal “atividade do espírito antigo agia de modo
essencialmente artístico. O alvo do interesse não parece ter sido compreender o ‘como’ do
mundo real com a maior objetividade e exatidão possíveis, e sim adaptá-lo esteticamente a
fantasias e esperanças subjetivas” (ibid., p. 18). Por isso, a imagem do mundo gerada por tal
atividade é determinada mais pelas fantasias subjetivas do que por critérios objetivos da
realidade, fato que, entrementes, não indica uma desvantagem ou desqualificação dessa forma
de pensamento, pois inteligência não deve ser identificada com o pensar dirigido. Jung
ressalta que seria “arrogância ridícula e injustificada se afirmássemos que somos mais
energéticos ou mais inteligentes que os homens da Antiguidade” (ibid., p. 17), somente
podemos constatar que aumentou o “nosso cabedal de conhecimento, (...) mas não a
inteligência” (ibid., p. 17). O potencial criador de ambas as formas de pensamento permanece
o mesmo, o que difere são seus mecanismos e focos de interesse específicos.
O simbolismo do pensar não dirigido, portanto, não caracteriza apenas o pensamento
dos povos primitivos e da Antiguidade, mas também os sonhos de todas as épocas, o
pensamento das crianças e os sintomas psicopatológicos da esquizofrenia e da neurose. Isso
deu azo a uma série de interpretações relativistas e desfavoráveis ao pensamento simbólico,
tido como inferior, infantil ou patológico, incapaz de promover uma adaptação satisfatória à
realidade por distorcer a visão objetiva do mundo com elementos subjetivos fantasiosos. Tais
elementos subjetivos seriam típicos da psique infantil e se manifestariam na vida adulta
apenas em estados de consciência enfraquecida, como o sonho, ou em patologias, como no
auto-erostismo das neuroses e no autismo da esquizofrenia.
Entretanto, de acordo com Jung, as “bases inconscientes dos sonhos e fantasias só
aparentemente são reminiscências infantis, (...) trata-se se de formas de pensamento primitivas
ou arcaicas” (ibid., p. 25). O fato de despontar com mais evidência na infância apenas
confirma a hipótese de que “também na psicologia a ontogênese corresponde à filogênese”
(ibid., p. 20). Assim, o pensar simbólico não deve ser entendido como um pensar dirigido que
ainda não se desenvolveu, infantil, mas como um pensar plenamente desenvolvido, afinal, o
mito “é o que há de mais adulto na produção da humanidade primitiva (...) não é uma fantasia
24
pueril, mas um dos requisitos mais importantes da vida primitiva” (JUNG, 1986b, p. 21). O
pensamento simbólico também não deve ser considerado como auto-erótico ou autista, mas
simplesmente como não determinado por motivos racionais e objetivos.
Mesmo essa não-objetividade do pensamento não dirigido pode ser questionada
considerando-se justamente que os motivos inconscientes que dirigem os processos da
fantasia “se baseiam no instinto que, certamente, é um fato objetivo” (ibid., p. 25). O
pensamento-fantasia, refletindo a condição psíquica de nossos ancestrais, corresponde a um
instinto herdado que repete o modo arcaico de pensar, assim, a “base instintivo-arcaica de
nosso espírito é um fato objetivo, preexistente, que não depende da experiência pessoal nem
de qualquer arbitrariedade subjetiva pessoal” (loc. cit.). Portanto, as supostas tendências
subjetivas liberadas pela fantasia correspondem, na verdade, a fatores psíquicos bem
objetivos, que determinam amplamente o comportamento e o pensamento do homem
contemporâneo, tanto quanto o pensamento dirigido mais recente. E isso ocorre não apenas no
âmbito da vida onírica, da infância e da psicopatologia, mas em todas as produções da fantasia
presentes na vida adulta desperta e nas manifestações artísticas e religiosas das culturas em
geral.
Essa “capacidade do espírito de manifestar-se simbolicamente” (ibid., p. 24)
corresponde, portanto, ao modo de pensar do espírito primitivo, herdado pelos indivíduos
atuais através de um instinto psíquico. Isso é possível porque, segundo Jung, a psique, da
mesma forma que o corpo, conserva as marcas ou vestígios das etapas de desenvolvimento e
evolução pelas quais passou (ibid., p. 25). Por isso, as manifestações simbólicas do
pensamento não dirigido constituem “puras condensações de motivos típicos de mitos” (ibid.,
p. 27), uma vez que, como foi visto, a mitologia é a manifestação por excelência da vida
espiritual primitiva. O pensar simbólico, ao acessar as “camadas mais antigas do espírito
humano” (ibid., p. 25), configura-se segundo a estrutura de mitos típicos, também chamados
de “complexos psicológicos dos povos” (ibid., p. 28). Esses padrões psíquicos de estruturação
correspondem ao conceito de arquétipo posteriormente desenvolvido por Jung.
O pensamento dirigido se processa por motivos conscientes, de forma inteiramente
consciente, enquanto o pensamento-fantasia se configura de forma inconsciente e por motivos
inconscientes, pois seus produtos surgem na consciência de forma espontânea e autônoma,
muitas vezes personificados nos sonhos e fantasias individuais e nos mitos coletivos.
Portanto, o modo de pensar simbólico ou fantástico pode ser considerado como
correspondente ao pensamento do complexo autônomo, assim como o pensar dirigido pode
25
ser entendido como correspondente ao modo de pensar do complexo do eu. Essas
equivalências podem ser estabelecidas levando-se em conta, por um lado, as características de
diretividade, adaptação, objetividade e forma lingüístico-abstrata do pensamento dirigido, e,
por outro lado, as características de ausência de direção, não-adaptação, subjetividade e forma
imagético-concreta do pensamento-fantasia. Tais características correspondem,
respectivamente, ao modo de funcionamento psíquico do complexo do eu, regido pela
tonalidade afetiva da atenção, e à atividade dos complexos inconscientes, dotados de
tonalidade própria.
Assim como os complexos são constituídos por determinados conteúdos psíquicos
dissociados da consciência, devido a um conflito ou incompatibilidade gerados pela atitude
dirigida e exclusiva desta, o pensamento-fantasia decorre de “certas tendências da própria
personalidade que ainda não foram reconhecidas ou não mais são admitidas” (JUNG, 1986b,
p. 27). Ele revela tendências e conteúdos excluídos pela atitude consciente e dirigida, não de
forma velada ou indireta, mas configurados conforme o modo simbólico de expressão típicos
do âmbito inconsciente da psique, o qual, como foi visto, é estruturado por complexos de
tonalidade afetiva . Por isso os mitos, produtos típicos do pensamento-fantasia, podem ser
comparados a complexos coletivos, assim como qualquer expressão deste pensamento em
indivíduos isolados, pois sua configuração ocorre no âmbito inconsciente psique.
2.3 O conceito de símbolo e as funções psíquicas
Os modos de funcionamento da psique foram até aqui descritos, de maneira geral,
segundo dois aspectos distintos, o consciente e o inconsciente. Este seria constituído pela
atividade dos complexos autônomos e do pensamento simbólico ou fantástico, e aquele pela
atividade do complexo do eu e do pensamento com atenção dirigida. Posteriormente, no
entanto, é estabelecida por Jung uma distinção mais pormenorizada dos modos de
funcionamento psíquico, que abrange certas particularidades ignoradas na classificação
anterior, indispensáveis para um melhor entendimento da psicologia de cada indivíduo e da
psicologia humana em geral (idem, 1991, p. 475). Assim, a atividade psíquica é subdividida
em diferentes funções e atitudes, que podem estar tanto sob o domínio da consciência quanto
do inconsciente, adquirindo, em cada caso, características específicas.
A constatação da existência de complexos inconscientes e sua atuação através de um
pensamento simbólico não é suficiente para esgotar a variedade dos fenômenos observados,
26
especialmente no que se refere às “peculiaridades das disposições individuais” (JUNG, 1991,
p. 488), pois o mesmo complexo, como o complexo parental, por exemplo, pode gerar reações
diversas em diferentes indivíduos, mesmo que estes sejam irmãos e tenham sofrido a mesma
influência materna e paterna. Assim, o fator determinante é a constituição psíquica individual,
o “modo especial como o complexo atua no indivíduo”, (ibid., p. 487) e não a existência em si
do complexo, ou seja, é a particularidade psíquica que determina o complexo em si e seu
modo de atuação no sujeito, mesmo que, aparentemente, se trate do mesmo complexo em
diferentes indivíduos. É nessa distinção que deve estar, segundo Jung, a resposta à questão do
porque, “numa família neurótica, uma criança reage com histeria, outra com neurose
compulsiva, uma terceira com psicose e uma quarta talvez com nada disso” (ibid., p. 488).
O mesmo ocorre em relação à consciência, pois é evidente a diversidade de formas
que pode assumir em cada indivíduo a atividade do complexo do eu. A constituição psíquica
individual determina o predomínio de uma função específica, gerando conteúdos equivalentes
e um modo próprio de adaptação. A função psicológica constitui uma “forma psíquica de
atividade que, em princípio, permanece idêntica sob condições diversas” (ibid., p. 412),
havendo ao todo quatro funções fundamentais: a sensação, o pensamento, o sentimento e a
intuição. A consciência, enquanto “um órgão de orientação em um mundo de fatos exteriores
e interiores” (idem, 1984a, p. 127), pode dispor dessas quatro funções para se relacionar com
os dados provindos do meio ambiente e com os processos do próprio inconsciente.
A função da sensação abarca todas as percepções através dos órgãos dos sentidos, ou
seja, não se refere apenas a “uma atividade específica de qualquer um dos sentidos, mas da
percepção em geral” (loc. cit. ). Através dela se dá a percepção de estímulos físicos, sejam
eles externos ou internos, isto é, do próprio organismo; ela fornece a representação ou
imagem psíquica dos objetos externos, dos instintos fisiológicos e das transformações
corporais, inclusive dos estados afetivos (idem, 1991, p. 438). Por isso os dados perceptivos
da sensação são os primeiros fornecidos à psique, sendo posteriormente trabalhados por outras
funções, como o pensamento e o sentimento.
O pensamento, por outro lado é a “função psicológica que, de acordo com suas
próprias leis, faz a conexão (conceitual) de conteúdos de representação a ele fornecidos”(ibid.,
p. 434). Não é um processo perceptivo, mas aperceptivo, ou seja, estabelece uma articulação
entre conteúdos novos e conteúdos relacionados pré-existentes, a fim de que aqueles possam
ser assimilados à consciência, sendo então apreendidos e compreendidos (ibid., p. 393). O
pensar, portanto, submete os conteúdos psíquicos de representação a um processo de
27
comparação e diferenciação fundamentados na memória (JUNG, 1984a, p. 147),
estabelecendo conexões significativas que permitem o reconhecimento e o julgamento de tais
conteúdos, chegando assim a determinadas interpretações e conclusões.
A função do sentimento é “também uma espécie de julgamento” (idem, 1991, p.440),
mas distinto daquele operado pelo pensar. O sentimento julga a partir da carga emocional ou
tonalidade afetiva de certos conteúdos psíquicos, estabelecendo assim o seu valor, em termos
de rejeição, prazer, desprazer, agrado ou desagrado. Entretanto, o sentimento não se confunde
simplesmente com o afeto ou sua percepção – o que é função da sensação – é um processo de
julgamento, de avaliação, auxiliado também pela memória, que atribui aos conteúdos
psíquicos valores emocionais específicos. Todo processo de percepção ou apercepção sempre
é acompanhado de determinada carga emocional que provoca uma reação análoga no
indivíduo; o sentimento é, portanto, a função que avalia essa reação emocional e nos informa
acerca de seu valor (idem, 1997, p. 30).
Atuando de forma relativamente distinta das demais funções há a intuição, a “função
psicológica que transmite a percepção por via inconsciente” (idem, 1991, p. 430). Portanto,
também possui um caráter perceptivo, mas que se processa diferentemente daquele que ocorre
na função da sensação. Nesta, os dados fornecidos pelos sentidos configuram-se a nível
consciente, já na intuição a percepção “registra-se ao nível do inconsciente” (idem, 1997, p.
32), a partir de dados perceptivos subliminares, ou seja, “percepções sensoriais tão sutis que
escapam à nossa consciência” (ibid., p. 33). A intuição fornece à consciência, portanto, certas
percepções que, ao contrário da sensação, foram elaboradas no âmbito inconsciente, o que
torna muito difícil ou mesmo impossível restabelecer os elos associativos utilizados no
processo, assim, “qualquer conteúdo se apresenta como um todo acabado sem que saibamos
explicar ou descobrir como este conteúdo chegou a existir” (idem, 1991, p. 430). A percepção
subliminar ou inconsciente não se fixa apenas em objetos isolados no espaço e situados no
tempo presente, ela é capaz de vislumbrar que, espacialmente, “qualquer objeto está em
conexão ilimitada com uma multiplicidade de outros objetos” (idem, 1984a, p. 127) e que,
temporalmente, “o objeto representa apenas uma transição daquilo que ele era antes para
aquilo que será posteriormente” (loc. cit.). A intuição, portanto, permite a percepção das
infinitas possibilidades de relação entre os objetos no espaço e no tempo, o que só é possível
porque ela atua segundo dados perceptuais inconscientes, muito mais vastos que os
conscientes e menos restritos em termos de possibilidades associativas. Por isso a intuição é
chamada vulgarmente de palpite, adivinhação, antevisão, ou mesmo considerada como uma
28
“faculdade mágica” ou “miraculosa” (JUNG, 1997, p. 31). É importante ressaltar que a
intuição, enquanto percepção através do inconsciente, não se limita aos dados de percepção ou
sensações subliminais, mas abrange também os pensamentos e sentimentos subliminais (idem,
1991, p. 431) o que amplia ainda mais as suas possibilidades associativas.
A descrição acima corresponde às “funções de orientação da consciência” (idem,
1984a, p. 128), ou seja, do uso consciente das funções com a finalidade de adaptação ao meio
externo. Entretanto, nos indivíduos isolados, as quatro funções básicas ou fundamentais nunca
estão igualmente desenvolvidas, o que ocorre principalmente devido a uma constituição
psíquica particular e inata. Esta determina um modo de adaptação conduzido essencialmente
por uma das quatro funções, sendo as demais meras auxiliares ou quase totalmente excluídas
da atividade consciente. Essa função que predomina, chamada de função superior ou função
dominante, é aquela “que dá a cada indivíduo a sua espécie particular de psicologia” (idem,
1997, p. 34), estabelecendo assim certas “disposições típicas” (idem, 1984a, p. 128), que
correspondem ao tipo pensamento, tipo sentimento, tipo sensação e tipo intuição, conforme a
predominância das respectivas funções fundamentais.
A função superior ou dominante é aquela que está mais voluntariamente disponível
ao eu, justamente por ser a função mais conscientemente desenvolvida ou diferenciada,
enquanto as outras funções permanecem relativamente indiferenciadas e indisponíveis à
utilização consciente. Em um sentido geral, diferenciação significa “o desenvolvimento de
diferenças, a separação de partes de um todo” (idem, 1991, p. 404), já no âmbito da atividade
psíquica, significa a capacidade que possui a consciência de “separar certas partes estruturais,
de modo a fomentá-las por meio da concentração da vontade e conduzi-las ao máximo de
desenvolvimento” (idem, 1984a, p. 126). Esse procedimento caracteriza uma unilateralidade
da atitude consciente diferenciadora, que favorece certas capacidades e negligencia outras,
seja por motivações externas, sociais, seja por disposições subjetivas inatas. Assim, no que se
refere às funções fundamentais, a diferenciação “consiste em separar as funções umas das
outras e seus elementos individuais um dos outros” (idem, 1991, p. 404), o que está de acordo
com a atitude típica da consciência, uma vez que “sem diferenciação é impossível a direção,
pois a direção de uma função, ou sua orientabilidade, consiste em separar e excluir o que é
irrelevante (...): somente a função diferenciada prova ser capaz de direção” (loc. cit.). Fica
evidente aqui a relação da função dominante na consciência, e sua característica de
diferenciação e direção com o mecanismo da atenção do complexo do eu e a atividade do
pensamento dirigido descritos anteriormente.
29
Em contrapartida, as funções psíquicas que são negligenciadas ou excluídas pela
atitude unilateral e diferenciadora da consciência acabam tornando-se total ou parcialmente
inconscientes, ou seja, indiferenciadas. No inconsciente, uma determinada função está
“fundida em suas partes e com outras funções” (JUNG, 1991, p. 404). A função pensamento
não diferenciada, por exemplo, não pode pensar sem se mesclar a outras funções, como a
sensação ou a intuição; o mesmo ocorrendo com as demais funções. A função não
diferenciada também se mistura em suas próprias componentes distintas, a função sensação
não diferenciada, por exemplo, pode “misturar as diferentes esferas dos sentidos (audição
colorida): um sentimento não diferenciado, (...) misturar amor e ódio” (loc. cit.). Há, portanto,
uma oposição entre as atitudes consciente e inconsciente que se reflete no funcionamento das
funções fundamentais. As funções conscientemente desenvolvidas, ou diferenciadas, podem
também ser chamadas de “funções dirigidas” (ibid., p. 286), enquanto as funções
inconscientes não diferenciadas podem ser consideradas como não dirigidas, ou
“inautênticas”, uma vez que possuem elementos que não lhe pertencem necessariamente”
(ibid., p. 479), ou seja, elementos de outras funções.
Como foi dito, os tipos psicológicos, ou isto é, os tipos pensamento, sentimento,
sensação e intuição, surgem quando há o predomínio das respectivas funções e, a partir do
momento em que “uma função predomina habitualmente surge uma atitude típica” (ibid., p.
397). Atitude deve ser entendida aqui no sentido de disposição, ou seja, a presença de
determinada constelação subjetiva, o que significa uma “certa combinação de fatores
psíquicos ou conteúdos que determinem o agir nesta ou naquela direção prefixada, ou que
concebam um estímulo desse ou daquele modo predeterminante” (ibid., p. 395). Atitude,
portanto, pressupõe uma combinação apriorística de determinados conteúdos que vão
funcionar como um “ponto direcional” (loc. cit.) no processo de assimilação de novos
conteúdos, ou seja, no processo de apercepção. Nesse processo psíquico, ocorre “uma escolha
ou um julgamento que exclui os elementos irrelevantes. O que é relevante será decidido pela
constelação prévia dos conteúdos” (ibid. p. 395-396). A atitude, por conseguinte, corresponde
a certa expectativa, que opera sempre de forma seletiva e direcionadora. A consciência e
todos os seus conteúdos atuam como uma forte constelação subjetiva, o que significa que há
uma atitude, uma expectativa que “fomenta a percepção e apercepção de tudo o que é
homogêneo e inibe as do heterogêneo” (ibid., p. 396). Tal processo constitui a “base essencial
da unilateralidade da orientação consciente” (loc. cit.). Assim, a função dominante na
30
consciência, de acordo com a sua particularidade, determina certas constelações de conteúdos,
que por sua vez determinam uma atitude correspondente.
Conforme Jung, poucos conteúdos efetivamente alcançam elevado grau de
consciência e também poucos conteúdos podem estar presentes simultaneamente no campo
consciente. Disso resulta a unilateralidade da orientação consciente, sua atividade “é
selecionadora. A seleção exige direção. E direção exige exclusão de todo o irrelevante
(JUNG, 1991, p. 399). A atitude geral da consciência, portanto, levaria a um estado de total
desequilíbrio, mas o aparelho psíquico possui um mecanismo de auto-regulação, que equilibra
a unilateralidade da consciência através da atividade do inconsciente. Justamente por abarcar
os conteúdos excluídos pela atitude consciente, o inconsciente atua de maneira compensadora
em relação à consciência. Essa é a “função compensadora” (ibid, p. 479) do inconsciente, que
complementa ou corrige a orientação consciente fornecendo-lhe “todos aqueles conteúdos que
não poderiam faltar no cenário consciente, se tudo fosse consciente” (ibid., p. 426). Assim, o
inconsciente atua através de sonhos e fantasias, por exemplo, a fim de equilibrar a
unilateralidade da atitude consciente, configurando os conteúdos por esta excluídos, “cujo
conhecimento seria indispensável para a consciência se adaptar plenamente” (ibid., p. 400).
Normalmente, essa tensão ou oposição entre consciente e inconsciente é equilibrada pela
função compensadora deste, mas a consciência pode acentuar ainda mais a sua
unilateralidade, inibindo a compensação pelo inconsciente. Desse modo a tensão entre os
conteúdos aumenta de tal forma que “a compensação se manifesta em forma de função
contrastante” (loc. cit.), o que representa um caso extremo típico das neuroses e outras
psicopatologias, quando o inconsciente, através de sintomas, não mais atua de forma a
complementar ou equilibrar a atitude consciente, mas estabelecendo um forte contraste que
gera a dissociação entre as partes.
Essa dinâmica psíquica de oposição e compensação entre consciente e inconsciente
manifesta-se de forma clara no âmbito das funções fundamentais. À função superior ou
dominante, totalmente consciente e diferenciada, corresponde uma função inferior específica,
inconsciente e indiferenciada. Se o pensamento é a função superior, o sentimento será,
necessariamente, a função inferior e vice-versa, o mesmo ocorrendo com as funções que
formam o par da sensação e da intuição. Esses pares de funções se contradizem mutuamente
no âmbito da consciência, por isso um dos componentes é excluído e cai sob o domínio do
inconsciente. O julgamento conceitual do pensamento e a avaliação emocional do sentimento
31
se contrapõem, assim como a percepção imediata e objetiva da sensação e a percepção de
possibilidades da intuição.
A função superior corresponde ao máximo de diferenciação e disponibilidade à
vontade consciente, enquanto a função inferior é mais indiferenciada e inconsciente. Já as
funções do par secundário, aquele que não corresponde às funções superior e inferior,
permanecem relativamente desenvolvidas ou diferenciadas, dependendo da constituição
psicológica particular ou outros fatores. Seus componentes inconscientes vão se juntar à
função inferior, conferindo-lhe o caráter de indiferenciação; já os componentes
conscientemente utilizados de uma ou outra dessas funções vai auxiliar a função principal no
processo de adaptação, conferindo-lhe um caráter particular. Esta é a chamada “função
secundária” ou “auxiliar” (JUNG, 1991, p. 382), que não está em oposição, como a função
inferior, à função superior. Dessa forma, a cada tipo distinto podem se acrescentar dois
subtipos, no caso do pensamento, por exemplo, ao lado da forma pura, lógico-matemática,
pode haver a forma indutiva e especulativa, mesclada à função da intuição, e a forma
empírica, baseada na percepção sensorial, ou seja, mesclada à função da sensação (ibid., p.
482). O mesmo processo vale para cada uma das outras três possibilidades de função
predominante, gerando então doze tipos psicológicos distintos.
Considerando-se ainda o caso do pensamento como função dominante, ao compor-se
seja com a função sensação ou intuição, ele perde parcialmente seu caráter racional, tornando-
se também parcialmente irracional. Isso ocorre a partir do momento em que Jung estabelece
uma classificação das funções em racionais e irracionais: o par pensamento e sentimento é
considerado racional, enquanto o par sensação e intuição, irracional. Racional é tudo aquilo
que está em conformidade com a razão, sendo esta considerada uma atitude que tem por
princípio conformar a atividade psíquica, o comportamento e a ação a determinados valores
objetivos, “estabelecidos pela média das experiências de fatos psicológicos que podem ser
externos ou internos” (ibid., p. 437). É a atitude racional, portanto, que permite a configuração
e a consideração de certos valores objetivos, ou seja, válidos em geral, processo que ocorre no
âmbito da história humana, e não do sujeito particular. São as leis da razão, por conseguinte,
que “designam e regulam a atitude média, ‘correta’ e adaptada”, pois são “expressão da
adaptabilidade à média das ocorrências que se sedimentou aos poucos em complexos
firmemente organizados de representações que constituem os valores objetivos” (loc. cit.). O
pensamento e o sentimento são considerados como funções racionais na medida em que
efetuam “sua finalidade quando concordam plenamente com as leis da razão” (loc. cit.), e
32
tudo o que concorda com as leis da razão é racional, enquanto o que não concorda é
irracional. Essas leis racionais ou valores, portanto, equivalem a complexos de representações
psíquicos pré-existentes que condicionam o pensar, o sentir e o agir. Percebe-se aqui a
analogia com o conceito de apercepção e atitude, uma vez que as leis da razão funcionam
como ponto de orientação no processo de aquisição de novos conteúdos, o “que pressupõe a
exclusão de tudo que é não-racional” (JUNG, 1991, p. 437), ou seja, que não está em
conformidade com estas leis. Racionalidade, portanto, também pressupõe a diferenciação,
direção e exclusão do que é considerado irrelevante.
Já as funções da sensação e da intuição possuem justamente o caráter oposto da
irracionalidade, “não no sentido de anti-racional, mas extra-racional, isto é, que não se pode
fundamentar com a razão” (ibid., p. 431). São funções perceptivas, e não aperceptivas,
“atingem sua plenitude na percepção absoluta do que se passa em geral” (ibid., p. 432), seja
dos conteúdos em si ou de suas relações no tempo e no espaço. Seus conteúdos possuem
portanto, o caráter de algo “dado”, e não de algo “derivado” ou “produzido” dos produtos das
funções racionais (ibid., p. 430), seu objetivo é uma percepção completa, e não derivada de
certas leis pré-estabelecidas; por isso as funções irracionais não devem possuir uma direção
racional e nem operar por diferenciação e exclusão. Dessa forma elas estão aptas a captar o
que é irracional, ou seja, os “fatos elementares”, o “acaso”, enfim, tudo o que está relacionado
a um “fator existencial” (ibid., p. 432) que não pode ser racionalmente compreendido. A
completa explicação racional de um objeto que possui existência real, que não é um objeto
hipotético, é algo impossível, visto que apenas “um objeto que foi suposto pode ter explicação
plena, pois nada existe nele além do que foi suposto pelo pensar racional” (loc. cit.). Por seu
caráter de percepção absoluta, portanto, o modo de funcionamento das funções irracionais
deve ser não-diferenciado e não-dirigido, típico dos processos inconscientes.
É importante observar que, de acordo com Jung, tanto a sensação quanto a intuição
são “a terra-mãe a partir da qual se desenvolvem o pensamento e o sentimento como funções
racionais” (ibid., p. 431), estas últimas “desenvolvem-se ontogenética e filogeneticamente”
(ibid., p. 439) a partir daquelas. Percebe-se aqui, portanto, o caráter de derivação do racional
em relação ao irracional, da apercepção em relação à percepção, do diferenciado em relação
ao indiferenciado e, em última análise, do consciente em relação ao inconsciente.
Entretanto, a racionalidade e a irracionalidade não são qualidades necessárias,
respectivamente, do par pensamento e sentimento e do par sensação e intuição, correspondem
apenas a seu modo ideal de funcionamento. Uma função racional, como o pensamento,
33
atuando como função superior pode assumir parcialmente aspectos irracionais ao mesclar-se
com uma função irracional, como a intuição, relativamente consciente. Nesse mesmo caso a
função inferior, o sentimento, apesar de ser a princípio racional, atua de forma
acentuadamente irracional, uma vez que está no inconsciente e mesclada com os elementos
também inconscientes de outras funções. Já uma função irracional, como a sensação, ao atuar
como função principal, assume um caráter racional, uma vez que cai sob o domínio da atitude
selecionadora e diferenciadora da consciência, tornando-se uma percepção diferenciada ou
abstrata. Há, por conseguinte, a possibilidade tanto de uma sensação quanto de uma intuição
abstratas, em oposição a uma sensação e uma intuição concretas, assim como pensamento e
sentimentos abstratos opostos a pensamentos e sentimentos concretos.
Abstração consiste em se extrair determinado conteúdo específico, como um
significado ou uma característica, de seu contexto mais amplo, composto por outros
elementos que juntos formam uma totalidade única, singular. Dessa forma, a abstração
constitui uma “forma de atividade mental que liberta o conteúdo ou o dado, tido como
essencial, de sua vinculação aos elementos irrelevantes, dele os distinguindo ou
diferenciando” (JUNG, 1991, p. 386). Abstração, portanto, pressupõe a seleção de certos
elementos significativos e a extração de outros elementos considerados significativamente
irrelevantes. Os conceitos ou leis que determinam a seleção e a exclusão abstrativas já existem
na psique do indivíduo, por isso abstração é um processo análogo ao que ocorre na
apercepção e na razão. A “atitude abstrativa” (ibid., p. 387), portanto, é aquela que assimila
novos conteúdos de acordo com conteúdos abstratos já existentes, que assimila apenas a parte
considerada essencial, segundo suas próprias leis racionais, do objeto. O que não se conforma
ao conteúdo abstraído é excluído como irrelevante e não é conscientemente levado em
consideração.
Por outro lado, concreto “significa propriamente ‘crescido junto’” (ibid., p. 400),
coincidindo com a qualidade de indiferenciado. As funções concretas são aquelas cujos
conteúdos estão unidos aos de outras funções. O termo é usado, especialmente, referindo-se
ao caso das funções pensamento e sentimento fusionadas com a sensação. Dessa forma, o
“pensamento concretista se movimenta dentro de conceitos e concepções exclusivamente
concretos, está sempre relacionado com a sensação”, assim como o “sentimento concretista
nunca está separado de seu contexto sensorial” (loc. cit.). O concretismo caracteriza as
funções inferiores do indivíduo contemporâneo, assim como o funcionamento geral da psique
do primitivo, tal como descrita no conceito de pensamento-fantasia.
34
A atitude geral da consciência, portanto, pode ser caracterizada por seguir os
princípios acima descritos de diferenciação, direção, apercepção, racionalidade e abstração,
todos inter-relacionados e referindo-se ao mesmo processo psíquico. Já o inconsciente, em
contrapartida, atua de forma indiferenciada, não-dirigida, perceptiva, irracional e concreta.
Nesse sentido, pode-se falar de uma “atitude inconsciente” (JUNG, 1991, p. 322), não como a
atitude unilateral consciente, mas uma atitude que segue leis específicas que permitem,
inclusive, manter uma relação compensatória com a consciência. As duas atitudes podem
estar presentes nas quatro funções fundamentais, independentemente de seu caráter racional
ou irracional, conforme a atuação destas ocorra de forma consciente ou inconsciente.
A função principal está à disposição da vontade do eu, opera segundo motivos
conscientemente escolhidos, enquanto a função inferior, excluída da atitude consciente, não
está disponível, atua de forma espontânea e autônoma, apenas seus produtos aparecem na
consciência, seguindo uma intencionalidade própria. Podem, portanto, ser comparados aos
complexos autônomos, pois atuam “por estímulo inconsciente, constituem como que uma
contrapersonalidade” (ibid., p. 479). Os complexos surgem não apenas devido a traumas ou
experiências desagradáveis, mas da atitude consciente que exclui aquilo que considera
irrelevante, por isso, “ter um complexo não significa logo uma inferioridade”; mas “apenas
que existe algo discordante, não assimilado e conflitivo” (ibid., p. 487). Os complexos são o
oposto da atitude consciente, aquilo que foi excluído ou que não foi desenvolvido, justamente
por isso representam a possibilidade de uma compensação, de uma complementação dessa
atitude unilateral, “são precisamente focos ou entroncamentos da vida psíquica que não
gostaríamos de dispensar, que não deveriam faltar, caso contrário a atividade psíquica entraria
em estado de paralisação fatal” (loc. cit.).
Portanto, a atividade simbólica do complexo em sonhos, fantasias ou mesmo
sintomas compensam os distúrbios do equilíbrio psíquico causados pela atitude unilateral
consciente, levando até à consciência os conteúdos excluídos. Da mesma forma, no âmbito
das funções psicológicas, cujos conteúdos formam os elementos específicos dos complexos,
há as funções menos desenvolvidas e inibidas, tornadas então inconscientes. No entanto,
mesmo que os processos de determinada função inferior sejam totalmente inconscientes, seus
resultados aparecem na consciência, pois cada função possui sua carga emocional própria que
não pode ser eliminada; não é possível a alguém optar, por exemplo, por não pensar, “pensará
inevitavelmente” (idem, 1997, p. 33), mesmo que por motivações inconscientes. Dessa forma
a função inferior, através de seu pensar, sentir, sensualizar ou intuir simbólicos, que
35
caracterizam a atitude inconsciente, compensam a atitude consciente regida pela função
superior.
A atividade da função inferior, devido a seu aspecto irracional e indiferenciado, ou
seja, mesclado a outras funções, possui um caráter “estranhamente fantástico” (JUNG, 1991,
p. 480). De fato, de acordo com Jung, o modo de funcionamento geral do inconsciente é o
fantasiar, “uma forma específica de atividade que pode apresentar-se em todas as funções
básicas” (ibid., p. 412). A fantasia constitui “um complexo de representações que se distingue
de outros complexos de representação por não lhe corresponder externamente uma situação
real” (ibid., p. 407). Em última instância, a fantasia recorre a elementos derivados de
vivências reais, mas seu conteúdo nunca é o equivalente de uma realidade externa, pois ela é
fundamentalmente o “escoamento da atividade criadora do espírito, uma ativação ou produto
da combinação de elementos psíquicos” (loc. cit.), provindos das diferentes funções
fundamentais. Enquanto manifestações da atividade inconsciente da psique, as fantasias
podem ocorrer na forma de irrupção de certos conteúdos na consciência ou através de uma
atitude intuitiva de expectativa da própria consciência. O primeiro caso corresponde às
fantasias passivas e o segundo às fantasias ativas (loc. cit.).
A função compensatória do inconsciente em relação à consciência se dá através da
atividade geral da fantasia, frequentemente em sua forma passiva, uma vez que os conteúdos
por ela constelados representam algo conflitante incompatível com a atitude consciente. Dessa
forma, as fantasias inconscientes irrompem quando a atenção consciente se enfraquece,
durante o sono, por exemplo, através dos sonhos; ou quando uma atitude excessivamente
unilateral da consciência configura uma disposição inconsciente igualmente forte capaz de se
opor a vontade do eu, tornando-se autônoma. Em ambos os casos, os símbolos, os produtos da
atividade da fantasia inconsciente, apesar de se manifestarem na consciência, não são em
geral, assimilados de fato à atitude consciente. Como foi visto na teoria dos complexos, esses
conteúdos são facilmente esquecidos, como os sonhos e as reações de complexos no teste de
associação, são projetados em situações ou indivíduos externos ou mesmo assimilam o eu,
nos estados de identificação com o complexo. Por isso, apesar de influenciarem realmente o
comportamento e a ação, tais manifestações não eliminam o estado de oposição ou
dissociação entre a consciência e o inconsciente, o que impede a realização plena da função
compensatória, que ocorreria através de uma verdadeira cooperação entre as atividades
consciente e inconsciente.
36
A união das personalidades consciente e inconsciente do sujeito em uma
personalidade unificada, a união dos opostos em uma unidade se torna possível através da
fantasia ativa, de “uma atitude orientada para a percepção de conteúdos inconscientes”
(JUNG, 1991, p. 407). Ela é expressão e ao mesmo tempo condição dessa unidade na
condição psíquica do indivíduo, por isso “pertence, não raro, às atividades espirituais mais
elevadas do homem” (ibid., p. 408). A fantasia passiva corresponde a um estado de acentuada
dissociação psíquica, uma vez que a forte unilateralidade consciente gera uma oposição
inconsciente igualmente unilateral. Já a fantasia ativa é produto “de atitude consciente não
oposta ao inconsciente e de processos inconscientes (...) que se comportam em relação à
consciência de forma compensadora, e não opositora” (loc. cit).
Por conseguinte, a função compensatória constitui a atitude geral do inconsciente
frente à unilateralidade da atividade consciente, mas a verdadeira eliminação de tal separação
se dá através da função transcendente, aquela que “torna possível organicamente a passagem
de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente” (idem, 1984a, p. 74), ou seja, que
possibilita uma nova atitude que une consciente e inconsciente. O termo “transcendente” não
deve ser entendido aqui no seu sentido metafísico, mas no sentido de transição, de
ultrapassagem de um estado de oposição, uma vez que a função transcendente “resulta da
união dos conteúdos conscientes e inconscientes” (ibid., p. 69). Também pode ser considerada
como a função que “lança uma ponte sobre a brecha existente entre o consciente e o
inconsciente” (idem, 1981a, p. 72), essa ponte é o símbolo, o qual, como produto da atividade
não-dirigida ou indiferenciada do inconsciente, ou seja, da fantasia, é capaz de unificar os
contrários em uma unidade e conduzir a uma nova atitude, que se dá através da “colaboração
de fatores inconscientes e conscientes” (idem, 1984a, p. 83). O símbolo, portanto, através da
função transcendente, constitui um terceiro fator resultante da aproximação e união dos
opostos em questão.
Os símbolos, enquanto produtos da atividade da fantasia do complexo autônomo,
composto pelas funções inferiores, constituem tentativas de compensação por parte do
inconsciente. No entanto, justamente por agruparem conteúdos e funções excluídas da atitude
consciente, encontram, por parte desta, grande resistência a sua completa integração, atuam de
forma secreta, semiconsciente, “sua influência reguladora é eliminada pela atenção crítica e
pela vontade orientada para um determinado fim” (ibid., p. 80), comprometendo a própria
capacidade auto-reguladora da psique. Os símbolos reguladores, tal como aparecem em
sonhos, fantasias ou sintomas, são ignorados e depreciados pois, de acordo com o ponto de
37
vista racional da consciência, são algo inferior, desqualificado, que não merece ser levado em
consideração. Tal atitude é compreensível, uma vez que esses fatores reguladores representam
o elemento não desenvolvido, incompatível e, portanto, excluído da consciência, e a tendência
é que assim permaneça, através de um reforço na atitude unilateral consciente. Desse modo, a
influência dos símbolos reguladores é suspensa, pois “apenas através de nossa fraqueza e
incapacidade estamos ligados ao inconsciente” (JUNG, 1997, p. 110), o que gera grande
temor frente à sua devida assimilação. Assim, a atitude consciente que de início excluiu tais
conteúdos continua atuante, impedindo que estes atuem através dos respectivos símbolos.
A função inferior, configurando um complexo inconsciente tem a particularidade de
manifestar-se como uma personalidade separada do eu e, portanto, realmente autônoma. Os
produtos de sua atividade, os símbolos reguladores, são alvo da atitude repressiva da
consciência, que os obriga a aparecer de forma indireta através de sintomas psicopatológicos
ou, quando adquirem valor suficiente, emergem na consciência de forma espontânea, gerando
a “identificação momentânea do eu com essas manifestações, que são renegadas logo depois”
(idem, 1981a, p. 192). O indivíduo se conscientiza de tais pensamentos, sentimentos,
sensações, ou intuições, mas considerando-as “’mera fantasia’, (...) tolices e fraquezas” (ibid.,
p. 189), e por isso são facilmente esquecidas e renegadas, ou seja, permanecem apenas
relativamente conscientes. Outra forma em que isso pode ocorrer é a projeção do complexo
inconsciente em um indivíduo exterior, de forma que seus conteúdos permanecem não
relacionados ao próprio sujeito, pois “aqui o inconsciente não é consciente, mas aí é
consciente”
1
, nas projeções.
Há, portanto, uma grande dissociação na psique do indivíduo, um distanciamento
entre os conteúdos do inconsciente e a atitude consciente, ele possui o “hábito de interromper
o afluxo do inconsciente, corrigi-lo ou criticá-lo” (JUNG, 1981a, p. 192). Essa dissociação
corresponde à oposição entre a função superior, de caráter ativo, conscientemente
determinada, e a função inferior, pela qual o indivíduo é afetado, marcada pela passividade,
posto que é inconscientemente determinada. A origem e a permanência de tal estado é devida
à unilateralidade da posição consciente, no entanto, se esta levar em consideração os
conteúdos inconscientes, torna-se possível a atuação da função transcendente, através da qual
tais conteúdos são de fato integrados à conduta consciente da vida, o que permite a
colaboração do inconsciente, sua junção com trabalho psíquico consciente e, com isso, a
eliminação de influências perturbadoras do inconsciente” (idem, 1991, p. 129). A função
1
Entrevista de C. G. JUNG a Richard I. EVANS. In: HULL, R. F. C. e McGUIRE, W. (Coord.) C. G. Jung
Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 289.
38
transcendente opera através do símbolo, por isso também pode ser denominada “atividade
formadora de símbolos” (JUNG, 1991, p. 121).
Quando os conteúdos da função inferior são simplesmente ignorados, excluídos,
esquecidos ou projetados no exterior, não há um confronto direto com a atitude consciente,
mas, a partir do momento em que esta verdadeiramente se dispõe a assimilá-los, sem as
interrupções, críticas e correções habituais, surge um forte conflito, visto que os conteúdos do
inconsciente e os da consciência, sob o ponto de vista unilateral desta, representam extremos
opostos, a princípio inconciliáveis. De fato, os opostos não podem ser conciliados pela razão,
pois é justamente ela que os estabelece através das leis que caracterizam o processo de
diferenciação; eles “só se deixam conciliar, praticamente, por um compromisso ou
irracionalmente se surgir entre eles um novum (um novo elemento) que seja diferente de
ambos (...), sendo expressão de ambos e de nenhum” (ibid., p. 111). Assim, a possibilidade de
que duas funções opostas sejam vivenciadas simultaneamente, como por exemplo, “sentir
pensando e pensar sentindo” (loc. cit.), é dada através do símbolo, produto da atividade
irracional do inconsciente, de sua função criadora de símbolos (loc. cit.).
O símbolo, portanto, enquanto mediador dos opostos, é produto da fantasia
inconsciente, associada inicialmente à função inferior, mas capaz de congregar elementos de
todas as funções psíquicas, assim, o “terceiro elemento onde confluem os opostos é a
atividade da fantasia” (ibid., p. 112). Nesse sentido, o símbolo não pode ser criado a partir da
atividade consciente, pois “sua essência toda é discriminação, distinção do eu e não-eu,
sujeito e objeto, sim e não” (ibid., p.117); e, justamente por isso, a “separação dos pares de
opostos deve-se totalmente à diferenciação consciente, pois só a consciência pode reconhecer
o conveniente e distingui-lo do inconveniente ou inútil” (loc. cit). O estabelecimento dos
opostos, enquanto uma operação lógica, racional, só pode ser superada por uma operação
irracional, onde não há diferenciação, o que ocorre no inconsciente, “onde todas as funções
psíquicas confluem indistintamente para a atividade primordial do psíquico” (loc. cit). O
conteúdo intermediário deve ter sua origem no inconsciente, o que lhe confere um caráter
eminentemente simbólico, “uma vez que a posição mediadora entre os opostos só pode ser
alcançada pelo símbolo” (ibid., p. 116).
Consequentemente, o símbolo é um produto psíquico cuja estrutura é extremamente
complexa, “pois se compõe de dados de todas as funções psíquicas” (ibid., p. 447), tanto as
funções perceptivas, ou irracionais, quanto as aperceptivas ou racionais. Por isso o símbolo,
potencialmente, tem um aspecto tanto racional quanto irracional, nele há “um lado que fala à
39
razão e outro inacessível à razão” (JUNG, 1991, 447), tendo em vista seus conteúdos
racionais e irracionais derivados das diferentes funções básicas. Dessa forma, a “carga de
pressentimento e significado contida no símbolo afeta tanto o pensamento quanto o
sentimento”, assim como “a plasticidade que lhe é peculiar, quando apresentada de modo
perceptível aos sentidos, mexe com a sensação e a intuição” (loc,. cit.). Por outro lado, a
racionalidade do símbolo é uma possibilidade de compreensão por ele apresentada, sendo a
sua origem devida a um processo essencialmente irracional, pois somente dessa forma torna-
se possível a mediação de opostos estabelecida por uma atitude racional e a união de todas as
funções num único produto psíquico. De acordo com Jung, as funções racionais desenvolvem-
se a partir das funções irracionais, a apreensão de determinado conteúdo segundo leis gerais
preestabelecidas deriva da apreensão absoluta de conteúdos, assim, dados perceptivos ou
irracionais podem ser decompostos em seus componentes, selecionados e articulados
posteriormente às leis da razão. Verifica-se, dessa forma, a prioridade das funções irracionais
na origem e compreensão do símbolo em relação às funções racionais, embora somente pela
conjunção de ambas torna-se possível a função transcendente, “uma função complexa,
composta de outras funções” (ibid., p. 449).
Enquanto resultado de um processo irracional, o símbolo apresenta um conteúdo
“que não é totalmente compreensível em si e só aponta intuitivamente para seu possível
significado” (ibid., p. 111). A imagem simbólica não pode ser totalmente compreendida por
uma atitude abstrativa, pois esta atua segundo leis que selecionam certas partes e excluem
outras, não captando o conteúdo em sua totalidade. Mas o símbolo constitui uma síntese de
diversos elementos e funções, media opostos e as atitudes consciente e inconsciente, por isso
uma atitude abstrativa dissolveria completamente a sua natureza fundamental. O seu sentido
só pode ser compreendido pela consciência de forma intuitiva, ou seja, aberta para as
possibilidades inconscientes contidas na imagem simbólica. De fato, o símbolo somente se
realiza completametente se houver uma atitude consciente correspondente, ou seja, uma
atitude simbólica” (ibid., p. 446) que, ao contrário da atitude abstrativa, não decompõe e
reduz a imagem ao conteúdo já conhecido, mas a percebe como expressão de algo misterioso,
ainda não plenamente conhecido, embora existente e altamente significativo, ou seja, é uma
atitude expectante em relação aos conteúdos inconscientes configurados nos símbolos.
Portanto, “cabe à atitude simbólica da consciência de quem observa atribuir-lhes o caráter de
símbolo” (ibid, p. 447).
40
Sempre há, então, a possibilidade de que o símbolo seja considerado segundo a
atitude abstrativa consciente, o que privilegia a função superior nele contida e despreza a
inferior. Assim, a mediação entre os opostos é dissolvida e, em conseqüência, não há função
transcendente, pois o eu identifica-se novamente com a função dominante e não há mudança
de atitude. O símbolo é, dessa forma, transformado em mero sinal, em “analogia ou
designação abreviada de algo conhecido” (JUNG, 1991, p. 444) ou mesmo em alegorias, que
constituem uma “paráfrase ou transformação proposital de algo conhecido” (loc. cit.). Tanto o
sinal quanto a alegoria, portanto, são produtos da atividade consciente pautada na
racionalidade que, se não for contrabalançada pela atividade inconsciente irracional,
dificilmente admite novas possibilidades ou permite criar ou conceber algo realmente novo,
que esteja além do já conhecido e estabelecido segundo certas leis.
No entanto, o indivíduo não coincide apenas com suas funções conscientemente
desenvolvidas, assim como a psique não coincide com a consciência. O indivíduo em sua
totalidade é constituído também pelas funções relativa ou totalmente inconscientes, pois a
psique abrange um aspecto inconsciente muito mais amplo que a consciência, sendo inclusive
a origem desta. O eu, portanto, não deve simplesmente identificar-se com sua função superior,
presente no processo adaptativo habitual, nem identificar-se com a função inferior nos estados
de identificação momentânea com complexos inconscientes. Em relação a tal estado de
oposição entre fatores conscientes e inconscientes o eu “precisa estar, de certa forma, entre
ambos, e precisa ser no mais profundo um ente essencial propriamente dito que participa de
ambos (...), mas que tamm pode ser distinguido de ambos” (ibid., p. 113). Esta é a
importância fundamental dos símbolos na função transcendente, pois sua atuação permite um
equilíbrio dos fatores e processos psíquicos, sem o que a individualidade não alcançaria sua
unidade e totalidade, mas permaneceria em um estado de fragmentação, dissociação e
incompletude.
2.4 O conceito de símbolo sob o ponto de vista energético
Jung argumenta a favor da adoção, em psicologia, do ponto de vista energético. A
consideração energética, por outro lado, tem sua origem nos estudos dos fenômenos físicos,
que por sua vez podem ser concebidos tanto sob o ponto de vista energético quanto sob o
ponto de vista mecanicista (idem, 1984a, p. 3). Este é fundamentalmente causal, pois entende
os fenômenos como efeitos resultantes de causas específicas, ou seja, parte-se das causas para
41
a compreensão dos efeitos. As explicações causais baseiam-se no conhecimento de
substâncias em movimento, de “substâncias imutáveis” que se movimentam e se influenciam
“segundo determinadas leis fixas” (JUNG, 1984a, p. 3). Nesse sentido, por tratar de
substâncias, o ponto de vista mecanicista ou causal possui um aspecto predominantemente
qualitativo (loc. cit.).
Já o ponto de vista energético possui um caráter essencialmente finalista, pois
compreende os fenômenos “partindo do efeito para a causa” (loc. cit.), no sentido de que,
subjacente às mudanças ocorridas nos fenômenos, “há uma energia que se mantém constante,
produzindo, entropicamente, um estado de equilíbrio geral no seio dessas mutações” (loc.
cit.). O processo energético desenvolve-se segundo uma direção ou objetivos definidos, por
isso não é uma ação progressiva de causas que levam a determinado efeito, mas uma “escolha
regressiva de um meio em ordem a um fim” (ibid., p. 4). A explicação energética baseia-se
não no conhecimento de substâncias em movimento, mas numa abstração das relações de
movimento dessas substâncias. Por basear-se nas relações entre as substâncias, no ponto de
vista energético prevalece o aspecto quantitativo das relações de movimento.
Ambas as explicações constituem diferentes pontos de vista pelos quais o sujeito
pode considerar o objeto de conhecimento. Embora sejam os inversos lógicos um do outro, os
princípios mecanicista e energético podem ser utilizados ao mesmo tempo para se obter uma
perspectiva mais abrangente dos fenômenos, desde que se os considere exatamente como o
que são: “manifestações de nossas disposições psicológicas e das condições apriorísticas do
pensamento” (ibid., p. 5). Os dois pontos de vista são disposições psicológicas, portanto não
devem ser objetivamente, apenas hipoteticamente, projetados no comportamento dos objetos
considerados, não se deve cometer o erro de atribuir princípios subjetivos à experiência
objetiva, ou seja, hipostasiá-los (ibid., p. 4). Dessa forma, no âmbito psíquico, os dois pontos
de vista, embora opostos, não se excluem, o que de fato ocorre se indevidamente projetados
no objeto.
Conseqüentemente, a adoção de um ou de outro princípio depende mais “das
disposições psicológicas do pesquisador e do pensador” (loc. cit.) do que da natureza dos
fenômenos em si. Psicologicamente, o ponto de vista mecanicista está mais relacionado à
empatia e o energético à abstração. Outro fator determinante é a “oportunidade (...), a
possibilidade de êxito” (ibid., p. 5) de cada ponto de vista. Se o aspecto quantitativo é
privilegiado, por exemplo, a explicação energética mostra-se mais adequada que a
mecanicista, que privilegia o aspecto qualitativo.
42
Jung considera, portanto, a possibilidade da explicação energética dos fenômenos
psíquicos, uma vez que estes constituem fatos objetivos da experiência. Assim, ele adota o
conceito de “energia psíquica” e considera a psique como “um sistema relativamente
fechado” (JUNG, 1984a, p. 6). Mesmo não sendo possível uma determinação quantitativa
precisa das variações energéticas no sistema psíquico, pode-se efetuar uma avaliação simples
de suas quantidades, o que já é suficiente para a explicação energética. Há duas possibilidades
de avaliação quantitativa da energia psíquica: uma subjetiva e outra objetiva e indireta. A
primeira se dá através de um “sistema subjetivo de valores”, ou “sistema de valores
psicológicos” (ibid., p. 8), uma forma muito apurada que a psique individual possui de
considerar valores, sendo estes “avaliações de quantidades energéticas” (loc. cit.). Não se trata
aqui de valores objetivos, ou seja, estabelecidos de maneira geral, como os valores morais
coletivos, mas de uma estimativa subjetiva, na qual as funções do sentimento e da intuição são
determinantes (ibid., p. 9).
Tal avaliação, no entanto, falha no que se refere aos valores inconscientes, pois,
como foi descrito, no âmbito inconsciente as funções tornam-se indiferenciadas. As
intensidades energéticas inconscientes precisam, portanto, de “uma avaliação indireta, mas
também objetiva” (loc. cit.), que se refere a elementos psíquicos afetivamente acentuados, aos
complexos. A acentuação dos afetos constitui, “energeticamente falando, uma quantidade de
valor” (ibid., p. 10), possuir uma carga afetiva equivale a possuir um valor energético,
conseqüentemente, o complexo é “uma constelação de conteúdos psíquicos dinamicamente
determinada pelo valor energético” (ibid., p. 11). A avaliação quantitativa baseia-se, portanto,
na força consteladora do complexo, ou seja, sua influência no comportamento e na ação, que
pode ser estimada objetivamente através da observação e aferição do número, freqüência e
intensidade das constelações de complexos e dos fenômenos afetivos correlacionados. Estes
últimos, por possuírem um aspecto fisiológico, podem ser indiretamente determinados por
meios como o exame das variações na respiração, pulsação e na corrente elétrica do corpo, os
chamados fenômenos psicogalvânicos (ibid., p. 11-12). A avaliação desses aspectos
fisiológicos deriva da psicologia experimental, empregada por Jung no teste de associação de
palavras a fim de verificar os efeitos da carga afetiva dos complexos inconscientes.
Portanto, a evidência e a possibilidade de avaliação de relações quantitativas no
âmbito psíquico encerram formas de conhecimento que apenas o ponto de vista energético
pode abarcar e que seriam ignoradas pelo ponto de vista mecanicista. Jung considera os
processos psíquicos como inseparáveis dos processos biológicos, assim, ele inclui o conceito
43
de energia psíquica no conceito mais abrangente de “energia vital, que engloba também a
chamada energia psíquica como componente específico” (JUNG, 1984a, p. 16). Esta energia
vital, admitida de forma hipotética, é chamada “libido” (loc. cit.), sendo o uso do termo
reservado aos estudos relativos à psique e sua energia específica. Assim, fica garantida a
relação entre a psique e os processos biológicos, pois estes também possuem relações
quantitativas, o que permite a aplicação do ponto de vista energético. Por outro lado, o termo
libido refere-se apenas ao campo da psicologia, uma vez que as relações entre os processos
psicológicos e fisiológicos ainda não foram suficientemente esclarecidas.
O princípio básico do ponto de vista energético é o da conservação da energia, que
pode ser distinguido em princípio de equivalência e princípio de constância. O primeiro
afirma “’que, para qualquer quantidade de energia utilizada em ponto qualquer, para se
produzir uma determinada condição, surge em outro ponto igual quantidade dessa mesma ou
de outra forma de energia’”, já o segundo “’que a energia total permanece sempre igual a si
mesma, sendo, por conseguinte, incapaz de aumentar ou diminuir’” (BUSSE, 1903, p. 406
apud JUNG, 1984a, p. 17). O princípio de constância é uma decorrência lógica do princípio
de equivalência, portanto este é que se reveste de maior importância na sua aplicação em
psicologia analítica.
No âmbito da psique, o princípio de equivalência se evidencia quando determinados
valores conscientes diminuem ou mesmo desaparecem, gerando outros valores diferentes.
Estes valores substitutos podem ser também conscientes, facilmente localizáveis, mas podem
ser formados valores inconscientes. Assim, a libido retirada de certos conteúdos da
consciência origina uma atividade inconsciente que se manifesta em determinados produtos
como sintomas, sonhos especiais e fantasias (JUNG, 1984a, p.19). A intensidade, ou seja, o
valor energético dos conteúdos inconscientes deve ser igual à intensidade dos conteúdos
conscientes que perderam energia, “a atividade psíquica só pode ser substituída de forma
equivalente” (ibid., p. 20).
Outro princípio importante da teoria energética é o da entropia, que tamm é
aplicável ao campo da psicologia. Em sistemas relativamente fechados, as transformações
energéticas são possíveis apenas devido às diferenças de intensidade existentes em seu
interior, que geram o fluxo da energia e as transformações conseqüentes. Mas, de acordo com
o princípio da entropia, aplicado originalmente na termodinâmica, “um sistema energético
fechado tende pouco a pouco a reduzir suas diferenças de intensidade a uma temperatura
44
constante, o que exclui qualquer modificação posterior. É o que se chama a morte térmica
(JUNG, 1984a, p. 24).
Na psique também pode ser observado esse “processo de nivelamento das diferenças
que (...) passam de um estado improvável a um estado provável” (loc. cit.), sempre resultando
em atitudes fixas e relativamente imutáveis. De acordo com Jung, os “processos
voluntariamente dirigidos” (ibid., p. 25), tais como pensamentos e sentimentos dirigidos,
formam sistemas psíquicos relativamente fechados que tendem à entropia. Pela exclusão dos
elementos inapropriados, os elementos apropriados entram no processo de nivelamento de
diferenças e entram no estado provável, gerando a morte térmica do sistema, “cuja
estabilidade aparece, por exemplo, no conceito ‘firme’ ou no ponto de vista ‘entranhado’”
(loc. cit.). Essa estabilidade corresponde à unilateralidade da atitude consciente, que
determina a assimilação de novos conteúdos a partir de conteúdos e leis predeterminadas. Tal
estagnação só pode ser superada pela atuação dos conteúdos inconscientes anteriormente
excluídos, que vão substituir os valores conscientes através do princípio de equivalência.
A energia psíquica, enquanto uma abstração das relações dinâmicas dos fenômenos
da psique, possui um caráter geral, não se refere a nenhuma qualidade específica, posto que é
essencialmente quantitativa. Constitui, portanto, uma possibilidade, virtualidade ou condição
subjacente aos elementos ou fatores psíquicos, embora não se referindo a nenhum destes em
especial. A energia psíquica, sendo um aspecto do conceito geral de energia, “não existe
objetivamente no fenômeno como tal, mas se acha presente no fundamento da experiência
específica” (ibid., p. 14). Deve-se distinguir, portanto, os conceitos de energia e força,
correspondendo esta à atuação específica da energia na experiência; é a energia, conceito
virtual, em ato, uma forma individual de energia, revestindo-se então de um aspecto
qualitativo. Em decorrência disso, deve-se considerar uma “energia psíquica”, de caráter
geral e quantitativo, à qual se refere uma “força psíquica” (loc. cit.), específica e qualitativa.
Por conseguinte, as diferenciações existentes entre tipos distintos de energia, como energia
sexual, mostram-se conceitualmente inexatas, pois correspondem, na verdade, a formas
específicas de manifestação da energia psíquica, a determinadas forças psíquicas.
Jung, nesse caso, refere-se à valorização excessiva da sexualidade efetuada pela
psicanálise, o que “levou Freud a reduzir inclusive as transformações que correspondem a
outras forças específicas e coordenadas da alma à sexualidade” (ibid., p. 18). O conceito de
energia psíquica é utilizado, mas no sentido restrito de energia sexual, uma especificação da
energia que corresponde a uma determinada força, que é a sexualidade. Esta constitui
45
claramente um conceito qualitativo, por isso a energia postulada por Freud corresponde
igualmente a um “conceito qualitativo e hipostasiado de energia” (JUNG, 1984a, p. 26), o que
caracteriza o emprego não do ponto de vista energético, mas do ponto de vista mecanicista,
pois trata de uma força psíquica específica, e não do conceito geral de energia psíquica.
A perspectiva mecanicista, quando considera a idéia de energia, vincula-a
indissoluvelmente à substância, anulando completamente seu aspecto quantitativo, ao qual se
sobrepõe o qualitativo. A explicação mecanicista-casual, ao operar com o conceito de
substância imutável, tende sempre a reduzir os fenômenos considerados a efeitos de uma
causa abrangente, que é justamente o movimento da substância. Assim, quanto mais simples,
geral e unilateral for a explicação – as causas – dos fenômenos, melhor para o ponto de vista
mecanicista, o que, por outro lado, também simplifica e generaliza a natureza dos fenômenos
explicados. Uma vez esclarecida a causa, esgota-se completamente a compreensão do sentido
e das características de determinado objeto, que constitui, por conseguinte, mero efeito ou
conseqüência da causa fundamental.
No âmbito psíquico, a explicação de Freud, partindo de um ponto de vista
mecanicista, reveste-se também de um aspecto unilateral, pois reduz toda a dinâmica psíquica
à sexualidade. De acordo com sua concepção causal, “trata-se sempre das mesmas substâncias
imutáveis, a saber, as componentes sexuais” (ibid., p. 21). São esses fatores sexuais que
constituem a causa fundamental de todos os efeitos psíquicos, o que faz prevalecer a
regularidade, e mesmo a monotonia, do “espírito da reductio ad causam [redução à causa] ou
in primam figuram [à primeira figura]” (loc. cit.). Os conteúdos psíquicos, mesmo os produtos
culturais mais refinados, tornam-se, sob essa perspectiva, meros sucedâneos de impulsos ou
forças sexuais, pois no âmbito psíquico, “qualquer mudança de estado nada mais é do que
uma ‘sublimação’ das substâncias básicas e, consequentemente, uma expressão inapropriada
deste mesmo antigo fato” (loc. cit.).
A psique, no entanto, constitui uma estrutura complexa, na qual operam diversas
forças, além da sexualidade. Cada uma possui um aspecto qualitativo distinto, e para que
nenhum destes seja reduzido a outro, é preciso adotar o conceito quantitativo e geral de
energia, e não o conceito qualitativo e específico. A definição sexual de energia de Freud não
permite uma compreensão adequada da psique, uma vez que “a transformação da energia
psíquica não é uma dinâmica meramente sexual. A dinâmica sexual é apenas um caso
particular da totalidade da psique” (ibid., p. 28). Por isso, além da concepção mecanicista,
deve ser utilizada a concepção energética na explicação dos fenômenos psíquicos.
46
O ponto de vista energético conduz à “idéia de evolução finalista” (JUNG, 1984a, p.
21), ou seja, “vê as coisas como meios ordenados a um fim” (ibid., p. 22). Nesse sentido, não
reduz a compreensão de determinado objeto a sua causa última, considerando-o, por outro
lado, na condição de etapa em um processo evolutivo cujas transformações seguem uma
direção específica. A explicação finalista, portanto, não pode aceitar o conceito de substância
imutável, pois “a ideia de evolução exige a mutabilidade de substâncias que, energeticamente
falando, são sistemas energéticos dotados da capacidade de substituição e permutação”(ibid.,
p. 21). As mudanças observadas nos fenômenos não são entendidas como movimentos de
substâncias que permanecem sempre as mesmas, mas como transformações legítimas de uma
substância em outra, seguindo as leis do processo energético.
Portanto, a perspectiva finalista torna possível a compreensão da complexidade da
estrutura psíquica, constituída por diversos dinamismos, além do sexual. Mesmo que certos
conteúdos tenham sua origem em impulsos fundamentais, devem ser entendidos no sentido de
desenvolvimento e evolução, ou seja, transformações desses impulsos, e não no sentido de
continuidade ou mera conseqüência. Conforme Jung, a psique o constitui “algo orientando
claramente para um fim” (idem, 1998, p. 287), portanto, o princípio finalista não deve ser
excluído. Considerando-se uma determinada série de eventos, o princípio causal é capaz de
estabelecer a relação de causa e efeito, evidenciando sua conexão causal, “mas o significado
deles só se torna compreensível em termos de produtos-fins (efeitos finais)” (ibid., p. 287-
288), o que pode ser descrito apenas pelo emprego do princípio finalista. Os conteúdos
psíquicos devem ser entendidos em termos de seu significado, e não apenas de suas causas, da
mesma forma, estabelecendo uma analogia, pode-se conhecer a constituição e a origem do aço
que compõe as diferentes partes de uma locomotiva, mas com isso “nada ainda saberemos
sobre a função da locomotiva, isto é, seu significado” (ibid., p. 288).
A contraposição entre o ponto de vista mecanicista e o energético corresponde
respectivamente, àquela existente entre os métodos “analítico e causal” e “sintético e
prospectivo” (ibid., p. 284), também chamados, respectivamente, de “redutivo” e
“construtivo” (idem, 1991, p. 402). A principal divergência entre os métodos, adotados em
psicologia, consiste na forma de considerar o símbolo, ou seja, o produto inconsciente. O
método redutivo interpreta o símbolo “semioticamente, como signo ou sintoma de um
processo subjacente” (ibid., p. 437), reconduzindo-o aos elementos básicos: reminiscências
reais ou processos instintivos elementares presentes na psique. Possui, portanto, um aspecto
retrospectivo, seja no sentido histórico ou figurado, pois evidencia os processos elementares
47
que estão na origem de estruturas mais complexas e diferenciadas. Permite, dessa forma,
conhecer apenas os elementos originais que compunham o símbolo, sem nada esclarecer
acerca de seu significado, ou seja, sua função no presente e no futuro. Nesse sentido, o
método empregado por Freud e também o empregado por Adler, seu discípulo, “são redutivos
porque em ambos há uma redução a processos elementares de desejo e de ambição que, em
última análise, são de natureza infantil e fisiológica” (JUNG, 1991, p. 438). Essa redução
dissolve o símbolo e o reintegra aos processos elementares que lhe deram origem, ou seja,
reduz a compreensão do símbolo, simplesmente, à sua causa.
O método construtivo, por outro lado, compreende o símbolo de forma propriamente
simbólica, isto é, como uma expressão que “antecipa uma fase de desenvolvimento
psicológico” (ibid., p. 402). Por isso o símbolo deve ser entendido como “o termo que melhor
traduz um fato complexo e ainda não claramente apreendido pela consciência” (idem, 1984a,
p. 75), o que evidencia seu aspecto prospectivo. Há, portanto, “uma função propriamente
prospectiva do inconsciente” (idem, 1991, p. 402) que, através dos símbolos, estabelece
caminhos futuros de desenvolvimento psíquico. A expressão simbólica, cuja origem é
inconsciente, não pode ser completamente apreendida pela consciência, pois constitui uma
“expressão orientada segundo um fim ou objetivo” (loc. cit.) ainda não conhecidos pela
consciência, devido a seu aspecto unilateral e aperceptivo. Dessa forma, o método construtivo
não reconduz e dissolve o simbolismo nos processos elementares que lhe deram origem, mas
o compreende como transformação desses processos em novos conteúdos, seguindo uma
orientação finalista. Assim, pode-se compreender o sentido – a função ou significado – dos
símbolos do inconsciente em relação à atitude consciente, principalmente através da
orientação compensatória que determina a atividade inconsciente. O símbolo, portanto, não é
um produto acabado, completamente realizado, pois sua atuação aponta para desenvolvimento
futuros que vão muito além dos processos instintivos básicos, o que evidencia a capacidade
criadora, e não meramente reprodutora, da atividade psíquica.
O ponto de vista energético compreende simbolicamente os produtos do
inconsciente, uma vez que, “sem uma compreensão simbolista dos fatos, estes seriam
substâncias imutáveis que continuam a agir incessantemente, como (...) na teoria freudiana
dos traumas” (idem, 1984a, p. 23). Na perspectiva mecanicista, a libido está presa aos fatos
elementares, por isso as transformações são apenas expressões diferentes desses mesmos
fatos. Já na perspectiva energética admite-se a idéia de evolução, e a libido dos processos
básicos pode ser transferida e convertida em outros processos, “expressões simbólicas de um
48
caminho a ser percorrido” (JUNG, 1984a, p. 23). Somente a atitude irracional do inconsciente
pode gerar símbolos transformadores, uma vez que o racional da consciência é unilateral e
atua sob leis fixas. Assim, “a realidade da razão humana é considerada como ‘substância
imutável’, excluindo-se, conseqüentemente, a sua concepção simbolista” (ibid., p. 24).
Há um fenômeno psíquico, que pode ser considerado em seu aspecto energético,
muito importante na compreensão do conceito de símbolo, são os movimentos de progressão
e regressão da libido. A descrição desses processos esclarece particularmente a função
prospectiva do símbolo, estreitamente vinculada à sua função transcendente, ou seja, a função
que une consciente e inconsciente numa nova atitude, apontando, portanto, para novas
possibilidades de desenvolvimento psicológico.
A progressão constitui o movimento do contínuo avançar da libido no processo de
adaptação psicológica às condições externas, operado quotidianamente. A adaptação, por sua
vez, ocorre através da consecução de uma atitude, entendida como disposição, ou seja, a
constelação de certos fatores e conteúdos psíquicos que predeterminam a concepção e o
comportamento numa direção específica. A atitude dirigida da consciência é condição
indispensável do processo de adaptação, mas as condições do meio ambiente podem
facilmente sofrer mudanças, que correspondem a novas exigências adaptativas e,
consequentemente, a novas atitudes psicológicas. Entretanto, a atitude consciente, por ser
necessariamente dirigida e unilateral, torna-se inadequada frente às novas condições externas
que exigem uma atitude inabitual.
Pode ocorrer o caso de um indivíduo cuja atitude predominante seja pensativa, isto é,
na qual o pensamento constitui à função superior, se depare com uma situação que exija uma
atitude afetiva, que reclame a função do sentimento para satisfazer às novas condições da
realidade. Dessa forma a atitude pensativa entra em declínio, e cessa o movimento de
progressão da libido. Consequentemente há um “represamento da libido”, que desencadeia “o
processo de regressão, ou seja, o movimento retrógado da libido” (ibid., p. 32). A regressão
ativa certos fatores inconscientes, processos psíquicos não considerados anteriormente no
processo de adaptação, ou seja, que não eram utilizados de forma consciente. Com isso há um
aumento do valor, da carga energética desses conteúdos excluídos, o que lhes permite superar
“a inibição que a consciência exerce sobre o inconsciente” (ibid., p. 33), resultado da
orientação unilateral da função psíquica dirigida.
A regressão, portanto, ativa conteúdos e tendências inconscientes “de cunho não
somente sexual e infantil, mas simplesmente incompatíveis, em parte imorais e em parte
49
inestéticos e irracionais ou imaginários” (JUNG, 1984a, p. 33). Relativamente à atitude
consciente anterior, esses conteúdos possuem um aspecto notadamente inferior, o que leva a
um julgamento depreciativo por parte do indivíduo e também dos pesquisadores em
psicanálise (loc. cit.). No entanto, uma análise que vá além das aparências percebe nesses
conteúdos não apenas o refugo inútil da atividade consciente, mas também “os germes de
novas possibilidades de vida” (ibid. p. 33-34). Essas novas possibilidades são constituídas
pela função inferior, oposta à função superior, que estava sob o domínio do inconsciente
devido à atitude dirigida da consciência. Esta subtrai a libido da função incompatível, o que a
torna predominantemente inconsciente e, portanto, pouco desenvolvida e diferenciada,
permitindo sua associação com conteúdos inconscientes incompatíveis e relativamente
inferiores.
Assim, a função inferior ativada pela regressão, mesmo em sua forma indiferenciada,
constitui o complemento necessário à atitude consciente que havia se tornado incapaz de
atender às novas exigências do meio externo. No exemplo dado, é ativada a função do
sentimento, oposta à função dominante do pensamento, que vai fornecer novos elementos
para compor uma atitude diferente, capaz de se adaptar às condições inabituais. Esta nova
atitude, composta de elementos conscientes e inconscientes, corresponde, como foi visto, à
função transcendente, que atua através de símbolos cuja origem se deve à fantasia
inconsciente. Percebe-se aqui que a atitude racional da consciência, embora indispensável ao
processo de adaptação, não permite a transformação da energia, pois sua orientação unilateral
exclui o oposto e evita a tensão transformadora tendendo a formar, como foi visto, um estado
de entropia. Cabe, portanto, à função inconsciente e irracional geradora de símbolos operar
tais transformações da libido, indispensáveis no processo de desenvolvimento psicológico e
de novas adaptações ao meio ambiente. Considerando-se sob a perspectiva energética todos os
processos psíquicos, inclusive os racionais, pode-se entender a razão também como “meio em
ordem a um fim, uma expressão simbólica de uma etapa transitória de desenvolvimento”
(ibid., p. 24).
Através dos processos de progressão e regressão da libido fica evidente a função
prospectiva do símbolo, pois mesmo o movimento regressivo deve ser entendido como uma
evolução, uma vez que ativa os fatores inconscientes necessários à atividade psíquica ulterior.
A regressão, enquanto uma modificação do curso habitual da libido que se dá na progressão,
permite que a energia psíquica se manifeste sob novas formas, em novos dinamismos
psíquicos. Com relação às leis da energia, as transformações ocorridas nesse processo seguem
50
o princípio da equivalência, pois a “intensidade da progressão volta a aparecer na
intensidade da regressão” (JUNG, 1984a, p. 37). Se a progressão pode ser considerada uma
“adaptação às condições externas”, a regressão deve ser entendida como uma “adaptação às
condições internas” (ibid., p. 39), portanto, somente a sucessão de ambas, sem o predomínio
de uma em detrimento da outra, permite uma adaptação adequada tanto ao mundo exterior
quanto interior.
Conforme Jung, “o mecanismo psicológico que transforma a energia é o símbolo”
(JUNG, 1984a, p. 44). Essa transformação da libido corresponde à sua canalização ou
conversão, que pode ser entendida como a “transferência das intensidades ou valores
psíquicos de um conteúdo a outro, de acordo com a chamada transformação da energia” (ibid.,
p. 39). Na psique, portanto, a libido inerente a certos conteúdos pode, através de mecanismos
adequados, ou seja, os símbolos, converter-se em outros dinamismos.
Na natureza, quando não há interferências de qualquer espécie, a energia se
transforma de acordo com sua inclinação própria, produzindo fenômenos naturais. Mas
quando o declive natural é aproveitado para outras finalidades, há a produção de trabalho
(ibid., p. 40). Nesse sentido deve ser considerada a cultura, como a máquina criada pelo ser
humano para transformar a energia natural; ela é capaz de aproveitar as condições da natureza
para transformar em trabalho as energias física, química e também a energia psíquica ou
libido. Dessa forma, o homem é capaz de, “com a ajuda de um mecanismo psíquico, converter
os instintos naturais – que, de outra maneira, seguiriam sua tendência natural – em outras
formas dinâmicas que tornaram possível a produção de trabalho” (ibid., p. 40-41). É, portanto,
o “processo contínuo de formação de símbolos que leva o homem à cultura” (ibid., p. 48).
Essa “transformação da energia instintiva se processa com sua canalização para um
análogo do objeto dos instintos” (ibid., p. 41), pois, assim como uma queda natural de água é
imitada por uma usina hidrelétrica, que dessa maneira canaliza sua energia, também o
mecanismo psíquico ou simbólico “imita o instinto e, deste modo, apossa-se de sua energia
para fins especiais” (loc. cit.). Jung cita como exemplo a cerimônia de primavera dos
Watschandis, nativos da Austrália. Nela os participantes, todos homens, cavam no chão um
buraco de formato oval, cujo entorno é enfeitado com folhagens, tornando-o semelhante a um
órgão genital feminino; em volta dele é executada uma dança na qual se empunham lanças
que imitam o pênis ereto. Durante esta dança as lanças são atiradas no buraco, enquanto os
participantes gritam: “pulli nira, pulli nira, wataka! [não é buraco, não é buraco, é uma
51
vulva!]” (JUNG, 1984a, p. 41). Em nenhum momento da cerimônia os homens podem olhar
para uma mulher.
Obviamente, o buraco no chão constitui um análogo do órgão genital feminino, o
objeto do instinto natural. Esta analogia é reforçada pela imitação também do órgão
masculino, através das lanças, pelos movimentos da dança e pelo grito que é repetido diversas
vezes. A ausência das mulheres, da mesma forma, reforça a ilusão pelo afastamento do objeto
real do instinto, assim, “não há dúvida de que se trata de uma canalização da energia e de sua
transferência para um análogo do objeto original por meio da dança (...) e da imitação do ato
sexual” (loc. cit.). Como cerimônia de primavera, essa dança ritual possui um significado de
fecundação da terra, ou seja, a transferência de libido que se realiza ocorre do instinto sexual
para a terra, constituindo assim “um ato mágico”, pelo qual “a terra adquire um valor psíquico
especial e se torna objeto de expectação” (loc. cit.). A partir de então, o espírito pode se
ocupar com a terra, dedicar-lhe atenção, pois é por ela afetado, o que gera as condições
psicológicas necessárias para o cultivo do campo, para a agricultura.
Todos os elementos da cerimônia possuem, portanto, um caráter essencialmente
simbólico, especialmente o buraco cavado na terra. Ele não deve ser entendido como mero
sinal que aponta para o objeto real do instinto, no caso o órgão genital feminino, mas como
“um símbolo que representa a mulher-terra a ser fecundada” (ibid., p. 44). O conteúdo
psíquico, portanto, foi completamente transformado, trata-se agora de uma divindade
feminina diretamente relacionada à agricultura, embora a libido original estivesse vinculada à
mulher real enquanto objeto do instinto sexual. Por isso não se pode olhar para uma mulher,
uma concepção semiótica destruiria todo o mecanismo, ou seja, o símbolo; seria como
considerá-lo uma mulher de fato, e não a terra como divindade feminina. A interpretação
semiótica considera o símbolo sob perspectiva mecanicista, reduzindo-o a suas causas, no
caso, o objeto do instinto sexual. Já a interpretação simbólica entende o símbolo sob o ponto
de vista energético, com uma transformação dos fatores psíquicos elementares visando um
desenvolvimento posterior, no caso, a transformação o objeto do instinto sexual em objeto de
uma atividade agrícola, em produção de trabalho.
Através da cerimônia, portanto, é estabelecida uma estreita analogia entre atividade
sexual e o cultivo do campo, que se reveste de um aspecto mítico-religioso. Essa relação
analógica é que permite a canalização da libido de uma atividade para a outra, o que se deve
não tanto a uma repressão dos instintos sexuais, mas a uma “necessidade vital” (idem, 1998,
p. 285), que leva o ser humano, de acordo com suas capacidades e necessidades, a aperfeiçoar
52
ou desenvolver novas formas de compreensão do meio e de agir sobre ele. A necessidade vital
constitui mais uma justificativa da interpretação simbólica dos produtos da atividade psíquica,
pois a mente humana deve ser considerada também em seu aspecto finalista, dirigido a
determinados fins. Não seria possível ao homem viver somente de acordo com seus instintos
elementares, visão que é reforçada pela interpretação semiótica, a qual reduz praticamente
toda a atividade psíquica a esses instintos, suas causas primordiais. Mas o “indivíduo não é
um complexo fixo e imutável de fatos psicológicos; ele é também um ser extremamente
variável” (JUNG, 1998. p. 285), e essa variação ou transformação de conteúdos psíquicos
ocorre pela atividade simbólica da psique inconsciente, não-dirigida, não-diferenciada e que
se expressa por analogias e semelhanças de imagens. Justamente por esse caráter concreto e
indiferenciado, o inconsciente, atuando na consciência através dos símbolos, constitui a
matriz de novos conteúdos e novas possibilidades de desenvolvimento psíquico. Conforme
Jung, portanto, ao avaliar a atividade simbólica da psique, devemos “render nossa
homenagem ao símbolo como meio inestimável que nos dá a possibilidade de utilizar o mero
fluxo instintivo do processo energético para uma produção efetiva de trabalho” (idem, 1984a,
p. 45).
A libido não é canalizada apenas a partir do instinto sexual, através de analogias
sexuais, mas também a partir do instinto de poder, conforme a psicologia de Adler (ibid., p.
49), e de uma série de outros desejos e tendências, como a questão da forme e auto-
conservação, que constituem uma multiplicidade de instintos característica do homem
primitivo. Da mesma forma, a libido não é canalizada somente para a atividade do cultivo da
terra, uma vez que todos os empreendimentos que exigem maiores esforços, como a caça e a
guerra, “são introduzidos pelo primitivo com cerimônias de analogia mágica (...) que têm
manifestamente como finalidade psicológica canalizar a libido para a atividade que se faz
necessária” (ibid. p. 42). Em qualquer caso, deve-se considerar que somente uma fração da
libido é canalizada, pois a maior parte permanece sustentando as atividades e funções
psíquicas básicas e vitais, como os próprios instintos. A libido, portanto, “está investida nestas
funções como uma força específica que não pode ser transformada” (ibid., p. 45).
Por outro lado, a própria existência de atividades culturais mostra claramente que na
psique humana a libido não está totalmente fixada em formas naturais que determinam um
fluxo rígido, “mas sobra uma certa quantidade de energia que poderia chamar-se de excedente
da libido” (ibid., p. 46). É este excedente de energia que se mostra capaz de outras aplicações,
além das formas naturais, sendo o símbolo o mecanismo que torna possível esse desvio. Os
53
símbolos, portanto, em suas diferentes formas, são “manifestações e expressões do excedente
da libido”, configurando atividades que “devemos chamar culturais, para distingui-las das
funções instintivas que seguem o seu curso regular, de acordo com as leis da natureza”
(JUNG, 1984a, p. 46). Por ser capaz de converter parte da libido de suas formas originais em
representações que lhe proporcionam uma expressão equivalente, o símbolo pode então ser
chamado de “análogo da libido” (loc. cit.). A mitologia como um todo constitui a atividade
cultural por excelência que produz símbolos transformadores de energia, “que vão desde os
objetos sagrados (...), os fetiches (...), até as figuras de deuses” (loc. cit.), assim como todas as
espécies de rituais que envolvem esses objetos e figuras sagradas.
Contrapondo-se ao “polimorfismo da natureza instintiva do primitivo” (ibid., p. 49),
portanto, há processo constante de formação de símbolos, que transforma o excedente de
libido antes atrelada a esses instintos naturais. Tal processo de “transformação da energia por
meio do símbolo (...) vem se realizando desde os inícios da humanidade, e ainda continua”
(ibid., p. 46-47), não devendo, por outro lado, ser atribuído à atividade consciente, pois os
símbolos “nunca foram inventados conscientemente; foram produzidos sempre pelo
inconsciente pela via da chamada revelação ou intuição” (ibid., p. 47). Fato destacado por
Jung é que tanto a psique primitiva quanto a contemporânea possuem uma herança que
remonta a essa atividade ancestral, a qual “inclui não apenas os instintos (...), como também
todas aquelas diferenciações que deixaram traços hereditários atrás de si” (ibid., p. 50). A
herança psíquica do ser humano, por conseguinte, é composta pela predisposição a formar
certos conteúdos de caráter instintivo e também pelas diferenciações de tais conteúdos,
operadas pelo processo de formação de símbolos, que originaram disposições equivalentes na
atividade da psique.
Dessa forma cada criança nasce com certo “desajuste” interno, pois é, ao mesmo
tempo, um “ser mais ou menos semelhante ao animal” e tamm a “corporificação final de
fatores hereditários” (loc. cit.). A atividade dos instintos e a dos símbolos formam, portanto,
um par de opostos, que podem ser descritos, consoante Jung, como natureza e espírito (ibid.,
p. 49). Há na psique humana um princípio natural e um princípio espiritual, que consiste
justamente nas diferenciações simbólicas dos instintos herdados desde um estágio ainda
animal. O contraste entre os dois princípios torna-se evidente ao se considerar, por exemplo, o
sofrimento infligido aos participantes de certos rituais, que vai completamente contra
qualquer motivação natural, e todas as fantasias elaboradas que extrapolam a percepção
simples e objetiva das coisas (ibid., p. 50-51). O traço especificamente humano, portanto, está
54
na possibilidade de transformação simbólica de conteúdos instintivos, herdada pela psique
através do princípio espiritual.
A condição natural da psique humana é constituída por uma instintividade que em si
mesma é inalterável, o indivíduo estaria completamente sujeito à ação de seus instintos, ou
seja, do princípio natural, se a este não houvesse a oposição do princípio espiritual, o qual
deve ser considerado não apenas como “um apêndice ou subproduto dos instintos”, como faz
a teoria freudiana, mas sim como a “contraparte equivalente dos instintos” (JUNG, 1984a, p.
53-51). O princípio espiritual tampouco constitui um simples derivado dos instintos naturais,
pois é um princípio específico e autônomo, que se contrapõe ao princípio natural. A carga
hereditária característica do princípio espiritual “é constituída pelos sedimentos mnêmicos de
todas as experiências legadas pelos ancestrais”, o que, por outro lado, não significa que “se
trata de idéias herdadas”, mas sim de “possibilidades herdadas de ideias, de ‘pistas’ que foram
traçadas gradualmente pelas experiências acumuladas pelos ancestrais” (ibid., p. 51). A
herança de tais possibilidades corresponde à própria hereditariedade do cérebro, pois seria
“um grande equívoco supor que a alma do recém-nascido seja tabula rasa, como se nada
houvesse dentro dela” (idem, 2002, p. 78). O cérebro humano é altamente diferenciado e,
enquanto tal, possui um modo de funcionamento constituído por predisposições específicas.
Os fatores hereditários subjacentes ao princípio espiritual, portanto, são constituídos
por “pistas fisiológicas”, traçadas por “processos mentais ocorridos na série dos ancestrais”
(idem, 1984a, p.52) ou, em outros termos, pelo processo de formação de símbolos. Essas
pistas tornam-se conscientes apenas através de novos processos mentais, ocorridos na
experiência particular, o que os faz aparecer como “aquisições individuais”, mas “são, porém,
pistas preexistentes que foram apenas ‘preenchidas’ com experiências individuais” (loc. cit.).
Dessa forma, as pistas traçadas, ou a estrutura do funcionamento psíquico, permanecem
necessariamente inconscientes, pois o que alcança a consciência são os conteúdos delas
derivados; elas possuem um caráter universal, uma vez que representam o modo de
funcionamento da psique do ser humano em geral, e não de indivíduos ou grupos particulares.
Essas estruturas psíquicas preexistentes foram chamadas por Jung de “‘motivos’, ‘imagens
primordiais’, ‘tipos’ ou ‘arquétipos’’’ (idem, 2002, p. 155), são disposições psíquicas em si
mesmas inconscientes, mas capazes de predeterminar todo o funcionamento mental, formando
assim a ”estrutura individual inata da psique” (ibid., p. 89) típica do ser humano, isto é, a
“psique pré-formada de acordo com sua espécie” (ibid., p. 90).
55
Os arquétipos correspondem aos “temas míticos similares em geral” (JUNG, 1984a,
p. 161), seu modo de expressão característico é mitológico, ou seja, as imagens arquetípicas
que emergem na consciência possuem um paralelo evidente com as imagens míticas de
diferentes culturas e épocas, que, por sua vez, também possuem um paralelismo evidente
entre si. Isso decorre do fato de que o processo de formação de símbolos que deu origem aos
arquétipos possui um aspecto marcadamente mitológico ou fantástico. O modo de expressão
simbólico ou metafórico da mentalidade primitiva corresponde a um modo de expressão
mitológico (ibid., p. 153). Essa atividade da psique primitiva, que constitui o princípio
espiritual, transforma não apenas os conteúdos internos dos instintos, mas também os
conteúdos da percepção externa em geral. Assim, mesmo os fenômenos físicos regulares,
como os meteorológicos, são assimilados através de analogias fantásticas, e não simplesmente
da forma direta oferecida pela percepção sensorial. Com relação às imagens míticas, portanto,
pode-se dizer que “o processo físico penetrou na psique claramente sob essa forma fantástica
e distorcida e aí se conservou, de sorte que o inconsciente ainda hoje reproduz imagens
semelhantes” (ibid., p. 159).
Essa particularidade da atividade simbólica da psique de não registrar o processo
natural, “mas unicamente as fantasias em torno do processo físico” (loc. cit.) pode ser
explicada, conforme Jung, pelo fato de que o primitivo vive em um estado psicológico
equivalente à “participation mystique” (LÉVY-BRUHL, 1912 apud JUNG, 1991, p. 433)
descrita por Lévy–Bruhl. Esse estado corresponde à condição que “entre sujeito e o objeto não
há aquela distinção absoluta que se encontra em nossa mente racional”, dessa forma, aquilo
que “acontece fora, acontece também dentro dele, e o que acontece dentro dele, acontece
também fora” (JUNG, 1984a, p. 159), ou seja, há um processo constante de introjeções e
projeções, de transferências de conteúdos objetivos para o sujeito e de conteúdos subjetivos
para o objeto (idem, 1991, p. 429-430). Na participação mística, portanto, há certa indistinção
entre sujeito e objeto – ou entre a psique do indivíduo e o meio externo – pois ambos estão em
uma relação de identidade parcial. Essa identidade ou indistinção entre eu e não-eu
corresponde a um fenômeno inconsciente, uma vez que a “igualdade consciente sempre
pressuporia a consciência de duas coisas equivalentes e, por conseguinte, uma separação entre
sujeito e objeto” (ibid., p. 416), o que descaracteriza o estado psicológico de identidade.
Essa relação de identidade, fundamento da participação mística enquanto “resíduo da
primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto, portanto do estado inconsciente
primordial”, é característica da mentalidade primitiva, mas também da primeira infância e do
56
“inconsciente do adulto civilizado que, na medida em que não se tiver tornado um conteúdo
da consciência, fica em permanente estado de identidade com o objeto” (JUNG, 1991, p. 416).
A participação mística corresponde, portanto, a um “arcaísmo” (ibid., p. 394), ou seja, um
traço psicológico típico da mentalidade primitiva e seu modo de funcionamento
predominantemente determinado por fatores inconscientes. São considerados arcaicos, além
da identidade psicológica, os “produtos da atividade fantasiadora inconsciente”, o
“concretismo do pensamento e do sentimento”, a “fusão das funções psicológicas” e a “fusão
das partes de uma função” (loc. cit.). Todos esses elementos correspondem, como foi visto, ao
modo de funcionamento indiferenciado e irracional da esfera inconsciente da psique, matriz
de toda a sua produção simbólica em contraposição ao modo diferenciado e racional da esfera
consciente.
O processo de formação de símbolos, portanto, ocorre através da atividade
inconsciente da fantasia, caracterizada pela indiscriminação de conteúdos, sejam eles
subjetivos ou objetivos, o que é permitido pela identificação; ou mesmo opostos racionais, o
que é permitido por sua irracionalidade. Ela opera através das mais diversas analogias, através
de semelhanças concretas de imagens, sons ou da percepção em geral, o que ocorre devido à
prioridade da sensação e da intuição sobre as funções racionais no âmbito inconsciente. A
plasticidade da atividade simbólica da psique atua nos mais variados conteúdos, sejam eles
referentes aos instintos, à percepção, à memória ou a qualquer outra função, os quais
adquirirem um aspecto modificado, acentuadamente fantástico, ou seja, mitológico. Essa
possibilidade de modificação dos conteúdos psíquicos através de analogias é que permite a
transformação da energia em novos dinamismos, o que resulta na formação de símbolos, de
análogos da libido.
Dessa forma, a manifestação dos arquétipos, enquanto herança da atividade
simbólica da psique, se dá através da atividade da fantasia, produzindo “imagens fantásticas”
e “surpreendentes paralelos mitológicos” (idem, 2002, p. 78), encontrados em adultos,
crianças, pessoas normais ou em neuróticos e esquizofrênicos. Das disposições arquetípicas
inconscientes deriva, portanto, a “fantasia criativa”, em cujos produtos “tornam-se visíveis as
‘imagens primordiais’ e (...) que o conceito de arquétipo encontra a sua aplicação específica”
(ibid., p. 90). Assim, enquanto “elementos formais inatos universalmente presentes”, os
arquétipos determinam toda a atividade psíquica, influenciando a “fantasia, percepção e
pensamento” (ibid., p. 55), mas é através dos produtos inconscientes que eles se manifestam
de forma mais espontânea e, portanto, evidente. Entre esses podemos considerar os sonhos em
57
geral, a “imaginação ativa”, enquanto “uma sequência de fantasias que é gerada pela
concentração intencional” (JUNG, 2002, p. 59) – equivalendo, portanto, à fantasia ativa - os
“delírios dos doentes mentais”, as “fantasias em estado de transe” e os “sonhos da primeira
infância (dos 3 aos 5 anos de idade)”(ibid., p. 60). Toda essa variedade de materiais oriundos
da atividade inconsciente da psique pode servir como comprovação da existência dos
arquétipos, uma vez que contenha paralelos mitológicos e que estes não possam ser atribuídos
a um conhecimento adquirido na experiência pessoal do indivíduo, mesmo que
posteriormente esquecido. Os paralelos mitológicos podem ser ampliados emparalelos
históricos” (loc. cit.), uma vez que esses motivos arquetípicos se encontram não apenas na
mitologia, mas na arte, na filosofia e em outras produções encontradas na história cultural da
humanidade.
Como exemplo desse processo de comprovação, Jung cita freqüentemente o caso de
um paciente esquizofrênico que, por volta de 1906, relatou-lhe o seguinte: “O senhor está
vendo o pênis do sol – quando movo a cabeça de um lado para o outro ele também se move e
esta é a origem do vento” (ibid., p. 61). Naquele momento, Jung assume ter compreendido
quase nada acerca de tal delírio, mas, aproximadamente quatro anos após esse evento, ao
realizar estudos em mitologia, ele descobre um livro de Albrecht Dieterich, publicado em
1910, que esclareceu a fantasia do paciente. Esta obra consistia na tradução inédita de uma
liturgia do culto de Mitra, que descreve uma ampla sequência de prescrições, invocações e
visões, uma das quais narra o que segue: “Pois verás pendente do disco solar algo semelhante
a um tubo. E rumo às regiões do oeste, um contínuo vento leste; se outro vento prevalecer em
direção ao leste, verás, de modo semelhante, a face movendo-se nas direções do vento”
(DIETERICH, 1910, p. 6-7 apud JUNG, 2002, p. 61). Posteriormente soube-se que a primeira
edição do livro era de 1903, mas o paciente em questão havia sido internado muito antes
disso, há cerca de vinte anos, dessa forma, permanece excluída qualquer possibilidade de
conhecimento, por parte do paciente, do conteúdo da obra de Dieterich. Há, portanto, um
paralelismo evidente entre a sequência simbólica do ritual antigo e a visão do paciente
esquizofrênico, que não se deve a nenhuma forma de transmissão pessoal.
Tal semelhança simbólica tamm não deve ser considerada como mera casualidade,
uma vez que pode ser verificada em outros paralelos históricos. Entre estes há algumas
pinturas da Idade Média, cujo tema é a Anunciação, nas quais é representado um “dispositivo
tubular ligando o trono de Deus ao ventre de Maria e podemos ver uma pomba ou o menino
Jesus descendo por ele. A pomba significa o fecundador, o vento do Espírito Santo” (JUNG,
58
2002, p. 62). De fato, conforme Jung, referindo-se ao milagre de Pentecostes, o Espírito Santo
é representado como o vento e sua origem é o círculo do sol (JUNG, 1984a, p. 156-157).
Outro caso semelhante relatado por Jung ocorreu durante seus estudos de pacientes
psiquiátricos negros, em 1912. Um desses pacientes narrou-lhe um sonho em que ”surgia a
figura de um homem crucificado sobre uma roda” (idem, 1997, p. 55). De acordo com o
contexto cultural do sonhador, seria mais provável o surgimento do tema da crucificação
sobre uma cruz, e não sobre uma roda, o que constitui uma imagem bastante improvável.
Nesse sonho, pode-se considerar que “o homem sobre a roda é a repetição do motivo
mitológico grego de Íxion, personagem que, por causa de suas ofensas aos homens e aos
deuses, fora amarrado por Zeus a uma roda que girava sem cessar” (ibid., p. 56). Devido a
pouca instrução cultural do sonhador, fica quase excluída a possibilidade de qualquer
conhecimento de mitologia grega, especialmente acerca de Íxion, personagem pouco
conhecido e quase não representado em imagens de qualquer natureza.
Embora tais casos não possam constituir provas cabais da existência dos arquétipos,
indicam que certos símbolos podem “ser reconhecidos como fenômenos típicos, e não meras
coincidências” (idem, 2002, p. 62), o que caracteriza um sistema psíquico de natureza não
pessoal, coletiva. Dessa forma, Jung estabelece uma distinção entre três níveis psíquicos: a
consciência, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. A consciência é constituída pela
relação de conteúdos psíquicos ao complexo do eu. O inconsciente pessoal deve sua origem às
experiências e aquisições pessoais, ou seja, “é constituído essencialmente de conteúdos que já
foram conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou
reprimidos” (ibid., p. 53), além das percepções sensoriais subliminares. Já o inconsciente
coletivo é composto por conteúdos que “nunca estiveram na consciência e, portanto, não
foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade”,
sendo “constituído essencialmente de arquétipos” (loc. cit). O conceito de arquétipo,
portanto, é um correlato necessário do conceito de inconsciente coletivo, cuja “particularidade
mais inerente é o caráter mítico” (idem, 1997, p. 54). O inconsciente coletivo ou impessoal,
como o próprio nome indica, é comum à humanidade em geral, não variando de acordo com
as psiques individuais, uma vez que corresponde à “herança imemorial de possibilidade de
representação (...) comum a todos os homens” (ibid., p. 157).
Os arquétipos são formas psíquicas preexistentes, herdadas por todos os indivíduos,
de todos os lugares e épocas. É importante ressaltar que se trata apenas de “formas sem
conteúdo”, ou seja, da “possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação” (idem,
59
2002, p.58) e não de imagens já preenchidas com algum conteúdo específico. Os arquétipos,
por conseguinte, podem ser determinados apenas quanto à forma, e não quanto a seu
conteúdo, o que pode ocorrer somente quando a forma arquetípica é “preenchida com o
material da experiência consciente” (JUNG, 2002, p. 91), nesse caso forma-se uma imagem
primordial ou arquetípica. O que é herdado pela psique através do inconsciente coletivo são
formas, e não idéias, uma vez que o arquétipo é um “elemento vazio e formal em si, nada
mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma da
sua representação (loc. cit.). Por essa razão, o arquétipo em si, enquanto forma inata da
psique, é essencialmente inconsciente, nunca pode tornar-se diretamente objeto da
consciência, apenas através de imagens arquetípicas, do arquétipo revestido por conteúdos
específicos. Essas imagens são símbolos propriamente ditos, uma vez que são o produto de
disposições psíquicas herdadas através do processo de formação de símbolos. A psique “cria
símbolos cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja imagem aparente provém das idéias que
o consciente adquiriu” (idem, 1986b, p. 220-221), por outro lado, a origem dos arquétipos
está relacionada à capacidade da psique em formar símbolos, que “funcionam como
transformadores, conduzindo a libido de uma forma ‘inferior’ para uma forma superior”
(ibid., p. 221), processo esse herdado através de sua contínua realização na história humana.
Conforme Jung, os instintos atuam de forma mais livre quando não há uma
consciência que se lhes oponha ou quando uma “consciência já presente está inteiramente
adaptada a eles” (ibid., p. 217). Mas este não é o caso do homem primitivo, pois nele já se
encontram sistemas psíquicos capazes de se opor à pura impulsividade. Dessa forma, mesmo
que a tribo possua apenas indícios de cultura, pode-se verificar a “fantasia criativa ocupada
em produzir analogias dos processos instintivos para libertar a libido da instintividade pura,
transferindo-a para idéias análogas” (loc. cit.). A fantasia criativa corresponde a uma
atividade inconsciente, de fato, pode-se considerar que “o homem primitivo é muito mais
inconsciente, muito mais um ‘fenômeno natural’ do que nós” (idem, 1984a, p. 43). Isso deve
ser entendido no sentido de que a natureza diferenciada e dirigida dos conteúdos da
consciência constitui uma aquisição relativamente tardia na história da humanidade, faltando
em nossos ancestrais e nos primitivos de hoje. Assim, a “inconsciência” do primitivo, que
resulta em sua acentuada atividade fantasiosa, não deve ser considerada como um predomínio
em relação à uma consciência dirigida, pois a própria consciência do primitivo possui um
aspecto diverso daquele que atribuímos ao “nosso conceito de consciência” (idem, 1997, p.
28).
60
O estado psíquico do homem primitivo é prévio à dissociação marcante entre uma
consciência dirigida e um inconsciente não dirigido ou fantástico. Nossa consciência
corresponde a “um estado reflexo (...), consciente e conhecido, ou seja, uma relação de
representações ou conteúdos com determinado complexo do eu” (JUNG, 1984a, p. 195). Por
outro lado, há uma possibilidade na qual “o complexo do eu perde muito de sua significação e
a consciência, conseqüentemente, se modifica de maneira característica” (loc. cit.). Tal estado
peculiar corresponde a “uma consciência sem ter consciência do eu” (idem, 1997, p. 26),
presente na mentalidade primitiva e na primeira infância das crianças de hoje, o que é possível
devido ao complexo do eu possuir vários graus possíveis de acentuação. Assim, “no nível
infantil e primitivo, a consciência ainda não possui uma unidade, por não ter sido centrada por
um complexo do eu firmemente estruturado” (idem, 1984a, p. 196), mas desponta em
diferentes complexos carregados de afeto ou energia que, pela ausência de um eu capaz de
reprimi-los, podem atuar livremente, dando a esta consciência não integrada um aspecto
fantástico, capaz de produzir símbolos por analogia, indiferenciação e todos os mecanismos
que caracterizam o modo “inconsciente” de funcionamento da psique.
Foi dessa forma que o sistema psíquico do primitivo atuou sobre as percepções dos
instintos e do mundo externo: o princípio espiritual opõe-se ao natural, ou seja, “o espírito
confronta o processo da natureza com a imagem simbólica” (idem, 1991, p. 420). O que se
reflete na psique, portanto, não são apenas os conteúdos derivados dos fatos naturais em si,
mas estes fatos confrontados com o princípio espiritual, capaz de transformar tais conteúdos
num sentido próprio, através da atividade simbólica. Conforme Jung, não são os fatos naturais
“que se fixam como imagens na alma, mas as fantasias causadas pelos afetos” (idem, 1984a,
p. 160), ou seja, os símbolos gerados em tais experiências. Por outro lado, a experiência
humana ancestral corresponde a certas situações típicas da vida, como a relação com os
fenômenos naturais, a percepção dos instintos, a relação com pai, mãe, filhos, marido e
mulher, que assumem um aspecto mitológico, gerando os símbolos correspondentes. Assim,
“intermináveis repetições imprimiram essas experiências na contstituição psíquica”,
conformando a “possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação” (idem, 2002, p.
58), ou seja, a estrutura arquetípica do inconsciente coletivo, a “formidável herança espiritual
do desenvolvimento da humanidade que nasce de novo na estrutura cerebral de todo ser
humano” (idem, 1984a, p. 163).
3 O SÍMBOLO NA RELIGIÃO E NA ARTE
3.1 Símbolo e criação artística
3.1.1 Arte e teoria dos complexos
A relação entre o símbolo e a criação artística foi estabelecida por Jung em seus
primeiros escritos, que tratam da teoria dos complexos com carga emocional. Nesse período
ele ainda não diferencia sua própria abordagem da psicanálise desenvolvida por Freud,
considerando-se então um seguidor deste (JUNG, 1995, p. 304). O conceito de símbolo
empregado por Jung, portanto, deriva diretamente daquele presente na teoria freudiana,
embora, como foi visto, já apresentasse novos desdobramentos e pontos de vista que
formaram a base de uma concepção totalmente diversa acerca desse mesmo conceito e de uma
série de outros. Por outro lado, embora a concepção do símbolo em Jung tenha se alterado
fundamentalmente, seu objeto continuou praticamente o mesmo, ou seja, o que era
considerado símbolo assim se conservou, à exceção de algumas manifestações patológicas do
inconsciente pessoal, que foram caracterizadas como sintomáticas, e não propriamente
simbólicas. Não é caso da arte e também da religião que, enquanto representações oriundas da
atividade de complexos inconscientes, eram consideradas simbólicas e assim permaneceram.
No contexto da formulação da teoria dos complexos, portanto, Jung afirma que “faz
parte da psicanálise uma orientação típica do pensar que visa à reprodução de simbolismos”,
sendo que tal orientação constitui o “modo de pensar inato num poeta (...). Pensar em
simbolismos exige de nós uma atitude nova, como se devêssemos começar a pensar com fuga
de idéias” (ibid., p. 305-306). O pensar com fuga de idéias é aquele no qual falta um princípio
diretor, ou uma idéia diretiva no fluxo de associações. Isso corresponde a uma ausência ou
perturbação no mecanismo da atenção, que faz o fluxo associativo se tornar mais superficial,
gerando, no caso do discurso verbal, o predomínio de associações automatizadas na
linguagem pelo uso freqüente, associações por coexistência, identidade, semelhança, contraste
e associações por sonoridade (idem, 1999, p. 10).
A atenção corresponde a uma tonalidade afetiva específica que promove a associação
de certos conteúdos psíquicos com direção e inibe as associações sem o direcionamento
prévio, é um complicado mecanismo “que liga com inúmeros fios o processo associativo a
todos os outros fenômenos representados na consciência” (idem, 1995, p. 14), isto é, no
62
complexo do eu. A atenção, portanto, é o fator psíquico responsável por manter o “foco visual
da consciência” (JUNG, 1995, p. 14), promovendo um funcionamento dirigido das funções
psicológicas que estão sob sua influência. Por conseguinte, o mecanismo da atenção é uma
prerrogativa da atividade do complexo do eu, que dessa forma é capaz de elaborar um
pensamento racional, dirigido, constelado por idéias claras, uma vez que sua atitude unilateral
exclui os conteúdos incompatíveis com a direção associativa preestabelecida, os quais vão se
aglomerar, conforme a sua carga emocional em complexos de representações inconscientes.
A forma de pensar característica do complexo inconsciente ou autônomo é simbólica,
o que significa que ela não possui o domínio do mecanismo da atenção. Dessa forma, o pensar
simbólico corresponde ao funcionamento não-dirigido das funções psíquicas, sua tonalidade
afetiva específica não atua promovendo associações diretivas de certas idéias e excluindo
associações não diretivas, mas sim por analogias e semelhanças concretas de conteúdos
psíquicos. O pensamento simbólico do complexo inconsciente promove associações de outra
natureza, uma vez que “se reveste de semelhanças verbais (sonoras) ou das imagens visuais”
(idem, 1999, p. 46). Dessa forma ele se expressa por semelhança de imagens, as quais podem
adquirir, cada uma, uma multiplicidade de sentidos, pois o pensar simbólico não possui
sensibilidade para as diferenças entre as idéias (ibid., p. 54). Assim, o material associativo de
conteúdos inconscientes dos complexos autônomos permite criar, por exemplo, uma
infinidade de associações verbais que oferece “ao poeta a possibilidade de inúmeras variações
sobre uma mesma idéia” (idem, 1995, p. 123).
Uma perspectiva semelhante é oferecida pelos estudos do fenômeno da atenção na
psicologia contemporânea, não vinculada à consideração do âmbito inconsciente da psique.
Essa psicologia distingue duas formas de atenção: uma “seletiva” e outra “difusa” (PIERI,
2002, p. 60). A atenção seletiva “possui - sob o aspecto da vigilância – as características da
concentração e seleção, e manifesta – sob o aspecto da eficiência das prestações – tempos de
reação rápidos e uma discriminação ótima”; já a atenção difusa, inversamente, possui
“características úteis às associações livres e torna manifestos o pensamento criativo e a
reflexão” (loc. cit.). Por conseguinte, a atenção difusa está presente de forma determinante no
âmbito da criação artística, seja ela literária, plástica, musical, coreográfica ou relativa a
qualquer outra linguagem, uma vez que o próprio processo criativo decorre desta forma de
atenção. Por outro lado, fica evidente a equivalência entre a atenção seletiva e o pensar
dirigido referente ao complexo do eu, e entre a atenção difusa e o pensar não-dirigido dos
complexos autônomos; dessa forma, o que Jung denomina simplesmente de atenção
63
corresponde à atenção seletiva. A relação direta da atenção difusa com a criação artística
confirma também o aspecto simbólico, isto é, referente aos complexos inconscientes, que
Jung confere à arte em geral. A questão da arte como símbolo será mantida e desenvolvida a
partir das novas concepções teóricas que configuraram em seu conjunto a psicologia analítica.
3.1.2 Pressupostos fundamentais da abordagem psicológica: arte
Conforme Jung, a alma, ou seja, a psique, constitui a origem de todo o
comportamento e de todas as formas e atividades do espírito humano. Embora a alma não
possa ser captada em si mesma, em sua essência, pode ser percebida e compreendida em suas
diversas formas de manifestação, que correspondem aos vários domínios do conhecimento.
Ela é, portanto, “ao mesmo tempo mãe de toda ciência e vaso matricial da criação artística”, a
psicologia, dessa forma, enquanto “ciência dos processos anímicos” (JUNG, 1985, p. 74-75),
é capaz de relacionar-se com o campo das artes em geral. Há uma relação estreita entre arte e
psicologia, assim como, mais especificamente, entre arte e psicologia analítica, que se baseia
“no fato da arte, em sua manifestação, ser uma atividade psicológica e, como tal, pode e deve
ser submetida a considerações de cunho psicológico” (ibid., p. 54), tornando-se objeto
legítimo da psicologia.
Por outro lado, a aplicação do ponto de vista psicológico corresponde
necessariamente a uma limitação, pois somente o aspecto da arte capaz de ser submetido à
análise psicológica deve ser considerado, do contrário haveria uma violação da própria
natureza do fenômeno artístico. A psicologia, por conseguinte, deve “se limitar ao processo
psíquico da criação artística e nunca atingir a essência profunda da arte em si” (ibid., p. 55), a
qual somente pode ser objeto de considerações estético-artísticas. Tais considerações não
devem ser substituídas pela perspectiva psicológica, uma vez que esta pressupõe a criação
artística enquanto fenômeno psicológico, não abrangendo a totalidade do fenômeno artístico.
A psicologia, portanto, não deve reivindicar para a sua hipótese uma validade geral, mas
considerá-la apenas como um ponto de vista específico, “e seria uma violência ao objeto
tornar um ponto de vista uma verdade obrigatória, mesmo em termos de pretensão” (ibid., p.
74). Dessa forma, ficam preservadas as abordagens da literatura, da estética e das artes em
geral, cujo objeto é o fenômeno artístico em si, “aquele aspecto (...) que constitui o próprio
ser da arte” (ibid., p. 54).
64
O mesmo tipo de ressalva deve ser feita no que diz respeito ao estudo do campo
religioso, pois “também aí a consideração psicológica só se aplica aos fenômenos simbólicos e
emocionais sem tocar a essência da religião” (JUNG, 1985, p. 54). Se a abordagem
psicológica se considerasse capaz de captar a essência tanto da religião quanto da arte, estas
se tornariam apenas subdivisão ou apêndices da psicologia, o que claramente representa
unilateralidade e dogmatismo, prejudiciais ao desenvolvimento de qualquer campo do
conhecimento. Entretanto, conforme Jung, essa restrição não é adotada pela ciência
psicológica em geral, que se inclina sempre a buscar uma derivação causal em relação a todos
os fenômenos psíquicos, ou seja, que adota o ponto de vista causal-mecanicista.
A partir dessa perspectiva redutiva, busca-se retroceder “aos primórdios da evolução
do espírito, a ponto de as diferenciações entre cada campo espiritual ficarem em princípio,
invisíveis” (ibid., p. 55). De fato, tanto na psique infantil quanto na primitiva, a arte, a ciência
e a religião ainda não se manifestam em suas particularidades específicas, permanecendo
“pacificamente adormecidas” ou “lado a lado no caos diferenciado da mentalidade mágica”;
além disso, “nenhum traço do ‘espírito’ pode ser encontrado no animal, mas somente o
‘instinto natural’” (loc. cit.). Tudo isso justifica, conforme a perspectiva causal pressupor uma
essência, uma causa primeira, presente na unidade original instintiva da arte, ciência, religião
e outras atividades do espírito. No entanto, conforme Jung, tal redução a um estado elementar
corresponde apenas a um recuo a um estado anterior, no qual os campos espirituais não se
encontravam ainda diferenciados, o que não proporciona, por outro lado, o “conhecimento de
um princípio mais profundo de sua unidade” (loc. cit.). Embora realmente derivem desse
estado elementar, tal fato não permite “tirar alguma conclusão sobre a natureza de estados
posteriores e mais evoluídos” (loc. cit.), o que é feito pelo ponto de vista causal, ao subordiná-
los a uma derivação causal genérica, que leva à imposição de apenas um elemento como
necessário e à desconsideração da essência mesma de cada diferenciação no campo psíquico.
Entretanto, conforme Jung, é impossível estabelecer encadeamentos precisos de
causa e efeito no campo da arte, como pretende a psicologia. Só é possível revelar tais
encadeamentos no âmbito dos instintos e reflexos, que é semipsicológico, e nos processos
psíquicos conscientes, o que não ocorre em relação ao “momento criador, cujas raízes
mergulham na imensidão do inconsciente” (ibid., p. 76). Assim, o processo criativo
permanece fechado a um conhecimento baseado na causalidade, pois “os elementos criadores
irracionais que se expressam nitidamente na arte desafiarão todas as tentativas
racionalizantes” (JUNG, 1985, p. 76); ele pode apenas ser descrito em suas manifestações,
65
mas nunca captado em essência nem tampouco reduzido a qualquer elemento psíquico em
particular.
Em contrapartida, freqüentemente as obras de arte são interpretadas conforme uma
perspectiva que as reduz a certos estágios elementares, na qual suas características são
explicadas a partir das relações pessoais do poeta quando criança com seus pais. Jung se
refere, nesse caso, à “psicanálise da obra de arte” (JUNG, 1985, p. 57), iniciada por Freud, o
qual “acreditou ter encontrado a chave que lhe permitia penetrar na obra de arte, a partir da
esfera das vivências pessoais do artista” (ibid., p. 88). Dessa forma, certos aspectos do
trabalho artístico podem ser relacionados com experiências da vida íntima e pessoal de seu
autor; a escolha do tema e a forma como ele é tratado, por exemplo, é referido ao universo
particular do artista. Por outro lado, a constatação da presença de traços da experiência
pessoal do autor em sua obra, de forma direta ou indireta, proposital ou não, já havia sido
feita, por exemplo, pela análise literária, ou seja, não é tão original. O diferencial da
interpretação de Freud está em proporcionar “uma visão radical e mais completa das vivências
que remontam até a primeira infância e que influíram na criação artística” (ibid., p. 56), o que
mostra a dimensão da influência dessas experiências pessoais do artista em sua obra, e
também “ter revelado os modos singulares e as analogias mediante os quais ela se produz”
(ibid., p. 88).
O “método redutivo de Freud” (ibid., p. 58) consiste em uma técnica, empregada no
âmbito médico-psicológico, que permite uma análise do estado psíquico do doente. Esta
técnica “se ocupa unicamente dos caminhos e meios para contornar o primeiro plano
consciente a fim de atingir o fundo psíquico, ou seja, o próprio inconsciente” (loc. cit),
baseando-se na hipótese de que o paciente neurótico reprime determinados conteúdos devido
à sua incompatibilidade com a consciência. Esta repressão é determinada por padrões morais,
que tornam incompatíveis principalmente conteúdos psíquicos de caráter “sexual infantil,
obsceno ou até criminoso” (loc. cit.), impedindo seu acesso ao plano da consciência,
formando então o pano de fundo inconsciente, encontrado em todo ser humano.
Os conteúdos reprimidos, embora tornados inconscientes, não permanecem por isso
inativos, pois exercem influências sobre os conteúdos conscientes. Eles podem gerar produtos
fantasiosos, distúrbios dos processos conscientes, sonhos ou outras atividades que são, via de
regra, atribuídas a representações de fundamento sexual, principalmente relacionadas à
sexualidade infantil. O método de interpretação freudiano, a partir de uma análise detalhada
desses produtos da atividade inconsciente, consiste em “reconstruir os processos instintivos,
66
elementares e inconscientes” (JUNG, 1985, p. 59). Segundo Jung (loc. cit.), o erro de Freud,
devido ao seu dogmatismo inflexível, está em identificar a técnica com a doutrina, “no fundo
ambas completamente diferentes entre si”. A técnica psicanalítica pode ser empregada com
sucesso em muitos casos, mas não deve ser transformada em doutrina, pois esta “se
fundamenta em hipóteses bastante arbitrárias” (loc. cit.), que podem ser resumidas em se
atribuir exclusivamente a repressões sexuais a causa de sintomas neuróticos ou psicóticos, de
sonhos e de praticamente todas as manifestações na consciência da atividade do pano de
fundo inconsciente.
Freud reduz a obra de arte ao relacionamento infantil do artista com seus pais,
podendo então ser analisada “à base dos recalques pessoais” (ibid., p. 89) de seu autor. A
mesma interpretação é aplicada em outros campos, uma vez que “Freud coloca a religião, a
filosofia, etc; na mesma situação” loc. cit.). O mesmo procedimento redutivo é aplicado,
como foi visto, em diversos casos, inclusive nos distúrbios patológicos; entretanto, admitir a
mesma explicação para casos tão díspares levaria à constatação de “que eles também são uma
coisa única e idêntica” (ibid., p. 56), seria colocá-los no mesmo nível. Dessa forma a partir do
momento em que “uma obra de arte é interpretada como uma neurose, de duas uma: ou a obra
de arte é uma neurose ou a neurose é uma obra de arte” (loc. cit.), ambas inaceitáveis, uma
vez que, para Freud, a neurose é simplesmente “uma satisfação substitutiva (...) algo
inadequado, um erro, um pretexto (...); em resumo, é alguma coisa de essencialmente
negativa” (ibid., p. 89). Consequentemente, a arte, assim como a religião, seriam consideradas
da mesma forma, seriam confundidas com fenômenos patológicos.
A interpretação psicanalítica, portanto, ressalta apenas os condicionamentos pessoais
presentes no processo de criação artística, assim a análise da obra de arte é desviada para
certos pressupostos ou condições psíquicas presentes no autor, que se torna “um caso clínico -
eventualmente mais um dos tantos exemplos da psychopathia sexualis” (ibid., p. 57). Com
isso, a discussão se detém nas particularidades pessoais do artista e se afasta justamente do
que há de específico nele, que é sua arte. De fato, conforme Jung, “todos tiveram pais e todos
têm um pretenso complexo de pai e mãe; todos possuem sexualidade e, por isso também,
certas dificuldades típicas” (ibid., p. 56), mas nem por isso somos todos neuróticos ou toda a
arte possa ser reduzida a uma neurose, uma vez que “a obra de arte não é uma doença e
requer, pois, orientação totalmente diversa da médica” (ibid., p. 60).
A questão do sentido da obra de arte não pode ser exemplificada apenas a partir dos
condicionamentos pessoais de seu autor, conforme Jung, a “causalidade pessoal tem tanto ou
67
tão pouco a ver com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele brota”
(JUNG, 1985, p. 60). Essa insistência na causalidade pessoal é característica de uma
“psicologia puramente causal” (loc. cit.), ou seja, orientada pela perspectiva causal-
mecanicista, para a qual todos os fenômenos são meros derivados de certas condições
inalteráveis. Porém, para uma psicologia não apenas causalista, mas que leve em conta
também a finalidade, a obra de arte “não é apenas um produto ou derivado, mas uma
reorganização criativa justamente daquelas condições das quais uma psicologia causalista
queria derivá-la”; assim como a planta em relação ao solo, é “um processo em si, vivo e
criador (...) uma realização criativa, aproveitando livremente as condições prévias” (ibid., p.
60-61). O processo criativo faz referência direta ao processo de transformação da libido presa
aos instintos, em novos conteúdos através do mecanismo da formação de símbolos.
Na concepção de Freud, os conteúdos psíquicos que se manifestam na consciência
como expressão do pano de fundo inconsciente são denominados de símbolos. Porém,
consoante Jung, essa denominação é equivocada, pois na teoria freudiana “eles apenas fazem
o papel de sinais ou sintomas de processos subliminares” (ibid., p. 59), ou seja, são
representações indiretas dos conteúdos reprimidos do inconsciente. Por se apresentarem nessa
forma “disfarçada” ou “dissimulada”, tais conteúdos não mais são considerados
incompatíveis, escapando assim à censura da esfera consciente, nela emergindo então como
sintomas das representações originais reprimidas. Na teoria freudiana, portanto, o símbolo não
possui um sentido próprio, pois constitui apenas a expressão indireta de outros conteúdos, o
substituto desses elementos psíquicos inconscientes, evidenciando a sua “função substitutiva”
(PIERI, 2002, p. 458), de caráter essencialmente defensivo.
Por isso Jung rejeita a denominação de símbolos para tais representações
substitutivas, uma vez que, para ele, o verdadeiro símbolo “deve ser compreendido como
expressão de uma concepção para a qual ainda não se encontrou outra melhor”, ou, mais
especificamente, como “tentativas de expressar alguma coisa para a qual ainda não existe
conceito verbal” (JUNG, 1985, p. 59). Nessa concepção, o símbolo possui um sentido
próprio, que ultrapassa qualquer tentativa de apreensão racionalizante e quaisquer conteúdos
elementares dos quais possa constituir um mero substituto ou expressão indireta. O sentido ou
a expressão simbólica é direta, uma vez que o símbolo é produto de estruturas psíquicas que,
mesmo sendo derivadas filogeneticamente de instintos elementares, possuem autonomia e
legitimidade própria. Os símbolos, por conseguinte, são a expressão do princípio espiritual da
psique, ou seja, dos arquétipos que conformam o inconsciente coletivo.
68
De acordo com Jung, portanto, a psicanálise da obra de arte não constitui, na
verdade, o “estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte”, mas sim das “circunstâncias
psicológicas do homem criador” (JUNG, 1985, p. 75). Esses dois enfoques possíveis de
consideração psicológica do fenômeno artístico são fundamentalmente diferentes, uma vez
que, em um caso, “o objeto da análise e interpretação psicológicas é a obra de arte concreta”,
e no outro, “trata-se da abordagem do ser humano criador, como personalidade única e
singular” (loc. cit.). Embora estejam realmente interligados, numa interação mútua, a obra de
arte e o homem criador não podem ser explicados um através do outro, uma vez que a
psicologia de cada um difere essencialmente da do outro, são sendo coerente, portanto,
qualquer tipo de redução que favoreça um dos termos, como faz a psicanálise em relação ao
homem criador. Pode-se até admitir que a obra de arte revele aspectos da psicologia pessoal
de seu autor, mas não que esta última seja capaz de explicar a estrutura psicológica da obra
em si, pois para isso “seria necessário admitir que aquilo que a obra contém de pretensamente
criador não passaria de um mero sintoma e isto não seria vantajoso nem glorioso para a obra”
(loc. cit.).
Já para a psicologia analítica, fundamental na compreensão psicológica da obra de
arte não são as particularidades pessoais às quais está sujeita, mas, pelo contrário, justamente
a sua capacidade de “elevar-se muito acima do aspecto pessoal” (ibid., p. 89). Os
condicionamentos pessoais constituem uma limitação para a arte, e quanto mais determinantes
eles forem, menos “artística” será a obra em questão. Somente nesse caso, ou seja, de uma
pretensa obra de arte “única ou essencialmente pessoal”, é que ela “mereceria ser tratada
como uma neurose” (loc. cit.). Uma consideração adequada do fenômeno artístico, por outro
lado, deve priorizar a obra em si, e não o homem que a cria, podendo inclusive ser
considerada como “um ser que utiliza o homem e suas disposições apenas como solo
nutritivo, cujas forças ordena conforme suas próprias leis, configurando-se a si mesma de
acordo com o que pretende ser” (ibid., p. 61), conforme a analogia da semente em relação ao
solo.
O artista, portanto, pode ser considerado enquanto pessoa, enfatizando-se seus
aspectos individuais, particulares, e enquanto criador, a partir de seus aspectos impessoais e
até mesmo sobre-humanos, uma vez que “enquanto artista ele é sua obra, e não um ser
humano” (ibid., p. 89). Dessa forma, se a obra de arte não é o individuo que a cria, nem se
identifica com ele, não deve ser julgada ou explicada a partir de critérios pessoais. Conforme
Jung, todo artista constitui em si mesmo uma dualidade, um paradoxo, pois é, de um lado,
69
“uma personalidade humana, e por outro, um processo criador, impessoal” (JUNG, 1985, p.
89). Há, portanto, a possibilidade de uma psicologia do artista, do homem criador e seus
traços pessoais, e de uma psicologia da obra de arte, do processo criador em sua
impessoalidade determinante. Neste último caso, o artista torna-se um “homem coletivo,
portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade” (ibid., p. 90), tornando-se
um mero instrumento do qual se apodera a arte que nele é inata. Em relação ao processo
criativo, portanto, a direção não é determinada pelo homem, mas pela obra em si,
conseqüentemente, na psicologia analítica, o enfoque recai não sobre os condicionamentos
pessoais do artista, mas sobre a obra de arte concreta, sobre o processo criador impessoal, que
constitui justamente o que há de mais específico no campo da criação artística.
3.1.3 Os gêneros das obras de arte
A partir desse enfoque específico, Jung distingue dois possíveis gêneros de obras de
arte, resultantes de duas maneiras distintas de criação. O primeiro tipo refere-se às obras que
“nascem totalmente da intenção e determinação do autor, visando a este ou àquele resultado
específico” (ibid., p. 61). Todo o material a ser trabalhado, assim como o tratamento a ele
conferido e a técnica utilizada estão sujeitos aos propósitos definidos pelo artista, que
considera atentamente todos os efeitos possíveis, destacando uns e reduzindo outros. Da
mesma forma ele opta por seguir as leis estilísticas de determinada escola, em detrimento de
uma série de outras possibilidades, ou mesmo decide por violar qualquer lei de estilo por ele
conhecida. O autor possui um propósito artístico bem definido, a partir do qual determina seu
agir e julga os efeitos obtidos com absoluta liberdade de expressão, “é isto que ele quer
produzir e nada além disto” (loc. cit.). Neste caso, a consciência do autor se identifica com o
processo criativo, ambos são idênticos entre si, pois o artista “é a própria realização criativa e
está completamente integrado e identificado com ela, com todos os seus propósitos e todo o
seu conhecimento” (loc. cit).
Exemplos característicos desse primeiro gênero de arte, fornecidos por Jung, são os
chamados romances psicológicos. Nestes o autor busca essencialmente antecipar os traços
psicológicos de seus personagens, deixando de simplesmente narrar ou descrever os eventos,
objetos e comportamentos para tentar discutí-los e esclarecê-los no âmbito de suas motivações
psicológicas. Por conseguinte, o romance psicológico “explica-se a si próprio; tem por assim
dizer sua própria psicologia, que o psicólogo poderia, no máximo, completar ou criticar”
70
(JUNG, 1985, p. 76). Tais características constituem um princípio psicológico que pode estar
presente não apenas no romance, mas em outros gêneros literários e outras formas de
expressão artística. Esse princípio corresponde ao “modo psicológico de criar”, que “tem
como tema os conteúdos que se movem nos limites da consciência humana”, ou seja,
conteúdos que correspondem a certas vivências que a “consciência genérica conhece, ou pelo
menos pode pressentir” (ibid., p. 77).
O modo psicológico, portanto, empresta uma forma artística a temas cuja origem é a
esfera humana comum, O autor trabalha com conteúdos da consciência, ou com aquilo “que
se sentia confusa e penosamente”, o que, quando a obra em questão é literária, é colocado,
“por sua nova expressão, no primeiro plano da consciência do leitor” (ibid., p. 78), o mesmo
ocorrendo com outras manifestações artísticas. Trata-se, nesse caso, de conteúdos do
inconsciente pessoal, mais acessíveis à conscientização, uma vez que já foram conscientes.
Assim, independentemente da forma artística empregada, os “conteúdos do modo psicológico
de criar provêm sempre do domínio da experiência humana, do primeiro plano de suas
vivências anímicas mais fortes” (loc. cit.). A criação artística resultante desse processo é
também chamada de psicológica, no sentido de que sempre se move “nos limites do que é
psicologicamente compreensível e assimilável” (loc. cit.). Por isso, a criação psicológica não
interessa à psicologia em geral, uma vez que tudo nela é evidente, explicando-se por si
mesmo, e menos ainda à psicologia analítica, pois a consideração psicológica de uma obra
dessa natureza não diferiria do estudo dos traços psicológicos pessoais de seu autor.
Por outro lado, há um gênero distinto de obras de arte, nas quais o fator determinante
não é o artista enquanto pessoa, operando a partir de sua consciência e vontade particulares,
mas o processo criativo em si, que age como um impulso estranho, alheio às vontades do
próprio artista. Essas obras nascem como que já prontas e completas, impondo-se ao autor
independentemente de seu julgamento. Elas trazem sua própria forma, a qual predetermina o
trabalho do artista e os efeitos a serem obtidos através dele. Durante esse processo, “seu
consciente está perplexo e vazio (...), ele é inundado por uma torrente de pensamentos e
imagens que jamais pensou em criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona”
(ibid., p. 61). O artista, portanto, não mais se identifica com a realização criativa, “ele tem
consciência de estar submetido à sua obra ou, pelo menos, ao lado, como uma segunda pessoa
que tivesse entrado na esfera de um querer estranho” (ibid., p. 62). A consciência do autor não
é capaz de controlar o processo criativo, ela é sobrepujada e coagida por um impulso de
origem inconsciente. Nessas condições, a obra de arte surge na consciência do artista a partir
71
de um anseio ou ímpeto criativo inconsciente, que o coloca inteiramente a serviço da obra por
se realizar. A obra de arte, nesse caso, não é mais “uma produção intencional, acompanhada e
dirigida pelo consciente”, mas “um acontecimento de natureza inconsciente que se impõe sem
a participação da consciência” (JUNG, 1985, p. 64).
Assim como o romance psicológico serve de exemplo para a produção artística
intencional, o romance não-psicológico constitui um caso de produção não-intencional ou
inconsciente. Ele diverge em todos os aspectos do romance psicológico, uma vez que o autor
não busca antecipar a psicologia de seus personagens, detendo-se primordialmente na
narração e descrição dos fatos. Dessa forma, o romance não-psicológico não é auto-
explicativo, deixando espaço para a análise e interpretação, seja do leitor ou do psicólogo;
nele “toda a narração se edifica sobre um pano de fundo psicológico inexpresso”, e a análise
posterior “distingui-lo-à com tanto maior pureza e clareza quanto mais o autor estiver
inconsciente de seus pressupostos” (ibid., p. 77). Esse processo criativo corresponde ao
“modo visionário da criação artística” (ibid, p. 78), no qual os temas ou as vivências que
formam seu conteúdo são totalmente desconhecidos do autor, uma vez que não se referem a
suas experiências pessoais.
A temática referente ao modo visionário de criação possui um aspecto estranho,
profundo e arcaico, que não corresponde a uma vivência consciente comum, mas a uma
“vivência originária” (loc. cit.), incompreensível, terrificante e de grande valor emocional. Ela
pode surgir tanto como algo “frio e estranho” quanto como “sublime e significativo”, sua
manifestação pode ser ora “demoníaca, grotesca e desarmônica”, ora “uma beleza que seria
vão tentar apreender com palavras” (ibid., p. 78-79). De qualquer forma, a vivência originária
irrompe na consciência humana como algo desconcertante, que abala seus valores e formas
arraigadas de pensar e agir, as quais se mostram incapazes de sondar tal experiência
incomum, que ultrapassa a “extensão da sensibilidade e compreensão humanas” (ibid., p. 79).
Essa vivência configura uma visão originária, que exige da criação artística algo diferente das
experiências comuns, às quais a consciência está habituada. Por isso o modo psicológico de
criação mostra-se inútil, dando lugar ao modo visionário, capaz de dar uma forma artística a
essa visão originária, que extravasa “os limites das possibilidades humanas”, que “rasga de
alto a baixo a cortina na qual estão pintadas as imagens cósmicas, permitindo uma visão das
profundezas incompreensíveis daquilo que ainda não se formou” (loc. cit.). Essas visões,
portanto, enquanto nascidas da própria fonte originária da alma humana, correspondem às
72
possibilidades do eterno configurar e reconfigurar do sentido e experiência humanas (JUNG,
1985, p. 79).
Ao contrário do que ocorre em relação à obra de arte psicológica, sempre surge o
questionamento sobre em que consiste e o que significa o tema da obra visionária, uma vez
que ele não evoca nenhum aspecto da experiência cotidiana, mas sim “os sonhos, as angústias
noturnas, os pressentimentos inquietantes que despertam nos recantos obscuros da alma”
(ibid., p. 80), ou seja, uma experiência visionária. Devido a esse desconhecimento ou
obscuridade acerca da origem da temática visionária, pode-se interpretá-lo como algo
premeditado como uma dissimulação de vivências pessoais do artista. Esse tipo de explicação
foi reforçado pela teoria freudiana para qual a criação artística pouco difere de “uma criação
mórbida e neurótica”, e que tende “a considerar esse fenômeno sob o ponto de vista da
patologia”, interpretando “as imagens singulares da experiência visionária como substitutivos
e tentativas de camuflagem” loc. cit.).
Dessa forma, uma determinada experiência pessoal do artista, de caráter sexual, teria
sido reprimida pela consciência devido à sua incompatibilidade com certas categorias morais.
Uma vez no inconsciente esse desejo reprimido se valeria do mecanismo das fantasias
patológicas para tentar se impor à consciência de forma disfarçada, “mas como essa tentativa
consiste num processo de substituição, sendo, portanto, insatisfatória, deve repetir-se, numa
série quase inesgotável de configurações” (ibid., p. 81). Essa seria a origem, conforme a teoria
psicanalítica, das supostas visões originárias, mas com a redução dessas vivências a uma
experiência pessoal, “o conteúdo visionário perde seu ‘caráter originário’”, transformando-se
“em algo de inadequado, um mero ‘substitutivo’” (loc. cit.), ou seja, é reduzido a um mero
sintoma, a uma ilusão à qual se entrega o artista. Mas essa “redução à anamnese pessoal”
(loc. cit.) equivaleria a uma volta à psicologia do homem, desviando-se da psicologia da obra
de arte, do processo criativo.
Conforme a perspectiva psicanalítica, o modo de criação artística psicológico, cuja
temática alude às vivências pessoais do autor, corresponde a um estado psíquico normal,
enquanto o modo de criação visionário, cuja temática é composta pelas mesmas vivências
pessoais, porém disfarçadas e deformadas, corresponde a um estado neurótico. Essa
teorização inverte a perspectiva de Jung, para qual uma obra de arte predominantemente
pessoal é que deve ser considerada como neurótica. Assim, uma explicação psicológica da
obra de arte deve reconhecer na visão originária que a constitui uma experiência mais
profunda que as experiências pessoais do artista, pois “é indubitável que a visão é uma
73
vivência originária autêntica, (...) não é algo de derivado nem de secundário, e muito menos
um sintoma; é um símbolo real, a expressão de uma essencialidade desconhecida” (JUNG,
1985, p. 82). Portanto, uma vez que a obra de arte, conforme Jung, jamais deve ser
confundida com os traços pessoais de seu autor, ela reveste-se de um caráter essencialmente
simbólico, ou seja, é a expressão de uma vivência originária, inacessível ao conhecimento
racional da consciência, pois o símbolo que se torna consciente se origina além dos limites
daquilo que é ou já foi consciente, ou seja, da consciência e do inconsciente pessoal. Embora
não corresponda a um elemento da realidade física, como os conteúdos das experiências
pessoais do artista, o símbolo que constitui a obra de arte corresponde a uma realidade
psíquica, ambos são fatos reais que possuem a mesma dignidade.
Assim, apesar de não se apresentar como algo que tenha correspondência na
experiência consciente comum, o símbolo que expressa a visão originária constitui um fato
real, uma experiência interior de elementos inconscientes reais e atuantes. Ele “remete
fatalmente a uma metafísica obscura, a ponto de a razão ainda que benevolente, não desejar
intervir” (loc. cit.); provém, portanto, de uma esfera inconsciente e obscura, da “angústia
noturna do caos”, de uma “crença da noite” contra a qual a “crença diurna” em um cosmo
ordenado tenta se defender “com o escudo da ciência e da razão” (ibid., p. 83). Essa esfera
obscura da psique, apesar de essencialmente desconhecida, uma vez que é inconsciente, não
deve ser considerada como totalmente desconhecida, pois sempre e em toda parte se
manifestou à consciência através dos símbolos, sendo, inclusive, o elemento fundamental e
constitutivo da imagem que o homem primitivo tem de seu mundo. Somente num
desenvolvimento posterior da consciência humana essa esfera simbólica foi desconsiderada,
“nós a excluímos (...), a fim de construir um mundo de consciência seguro e manipulável”
(ibid., p. 84), através do emprego da racionalidade e do progresso científico, que tentam
configurar a realidade e sua compreensão num conjunto de leis preestabelecidas.
Mas a realidade simbólica sempre volta a aparecer, pois não deixa de existir
simplesmente por ser ignorada, e uma das formas pela qual isso ocorre é através da arte, uma
vez que o artista, em seu processo criativo, é capaz de discernir “as imagens do mundo
noturno, os espíritos, demônios e deuses” (loc. cit.), e plasmá-las em obras de arte que dão
testemunho dessa realidade psíquica anterior. Assim, as obras que nascem a partir de um
impulso criativo inconsciente, ou do modo visionário de criar, transcendem o alcance da
compreensão consciente, proporcionalmente ao afastamento da consciência do autor do
desenvolvimento de seu trabalho artístico. Dessa forma, elas “teriam o valor de autênticos
74
símbolos, porquanto expressam, do melhor modo possível, o ainda desconhecido e são pontes
lançadas a uma longínqua margem invisível” (JUNG, 1985, p. 64).
As obras de arte que se originam de um impulso inconsciente e que possuem,
portanto, qualidades simbólicas ultrapassam a consciência contemporânea, no sentido de que
o símbolo significa a “possibilidade e indício de um sentido mais amplo e elevado, além de
nossa capacidade de compreensão atual” (ibid., p. 65). A linguagem simbólica é repleta de
significado, pois seu caráter originário possibilita a presença de sentidos muito além do que a
consciência atual seria capaz de fornecer. Por isso o símbolo sempre desafia a capacidade de
reflexão e compreensão da consciência, podendo até ser apropriado por ela, mas nunca
completamente decifrado. Desta característica do símbolo resulta que certas obras de arte, ou
mesmo um conjunto de obras de determinado autor, são inesperadamente redescobertas, o que
ocorre “quando nossa evolução consciente já alcançou graus mais elevados” (loc. cit.), o que
permite ver um novo significado em conteúdos que supostamente estavam esgotados. Os
significados “inéditos” na verdade já estavam presentes como possibilidade na obra de arte,
“mas era um símbolo escondido que nos foi permitido ler após uma renovação do espírito da
época” (loc. cit.). Através de um olhar novo e diferente tornou-se possível à consciência ver
além do que estava acostumada a ver.
Jung chama de “obra simbólica” (loc. cit.) esses trabalhos artísticos de natureza
inconsciente, que ultrapassam a compreensão consciente contemporânea a eles. Tal obra,
através de “sua linguagem cheia de pressentimentos nos diz bem alto: Estou em condições de
dizer mais do que realmente digo; eu ‘entendo’ para além de mim” (loc. cit.). Em
contraposição há a obra não simbólica, que surge da intenção de seu autor, dirigida por
motivações conscientes, a qual “fala mais genuinamente à sensibilidade estética porque nos
permite a contemplação harmônica da sua realização perfeita” (ibid., p. 66). Isso ocorre
porque o autor, estando consciente de seus propósitos artísticos, opta por seguir determinadas
leis de estilo na realização da obra. O deleite estético a que se refere Jung, portanto, constitui
uma experiência superficial no sentido de que não ultrapassa os limites daquilo que já foi
conscientemente estabelecido para a apreciação artística. A obra de arte simlica, por outro
lado, freqüentemente não permite uma experiência estética desse tipo, pois ela constitui
fundamentalmente uma experiência muito mais profunda, originária, que extrapola os limites
do que foi estabelecido pela compreensão consciente, inclusive possíveis leis de estilo que
determinariam a realização “perfeita” de uma obra. É preciso destacar também que uma
violação consciente e deliberada das leis vigentes de estilo, simplesmente com o intuito de
75
criar algo novo, polemizar ou chocar o público não constitui por si só uma obra de arte
simbólica, que deve surgir de um impulso espontâneo inconsciente, o qual pode ou não se
opor às formas artísticas tradicionais.
3.1.4 Arte simbólica na psicologia analítica
Esse impulso criativo possui uma autonomia relativa, pois surge do inconsciente e
atua independentemente da vontade consciente, e às vezes até mesmo contra ela. Por isso
pode-se “considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do
homem”, sendo que a “psicologia analítica denomina isto complexo autônomo” (JUNG, 1985,
p.63). Como foi visto, os complexos são conjuntos de elementos psíquicos dotados de uma
carga emocional própria, ou seja, possuem energia específica que os mantém unidos.
Constituem, portanto, fatores psíquicos cujo valor energético pode freqüentemente superar o
das intenções conscientes, do complexo do eu. A psique não pode ser identificada com uma
unidade de elementos conscientes, uma vez que, além do próprio complexo do eu, há uma
série de complexos, cuja autonomia, devido a sua energia própria, permite considerá-los como
corpos estranhos, fragmentos psíquicos dissociados. Essa dissociação ocorre devido à atitude
consciente unilateral, que exclui desde o início certos conteúdos durante o processo de
apercepção, ou seja, esses conteúdos não se tornaram conscientes e, num momento posterior,
foram reprimidos. Eles foram, já de início, desconsiderados por uma constelação consciente
incapaz de assimilá-los devido à sua unilateralidade. Esse processo, todavia, não exclui a
possibilidade da repressão no sentido freudiano, que se aplica também em inúmeros casos.
Dessa forma, os complexos formam a estrutura de toda a psique, seja consciente,
através do complexo do eu, seja inconsciente, através dos complexos autônomos. Jung
denomina justamente a “obra in statu nascendi como um complexo autônomo” (ibid., p. 67),
pois ela se desenvolve primeiramente no âmbito do inconsciente e nas situações propícias
irrompe na consciência. A relação que então se estabelece com a consciência é de percepção,
e não de assimilação, no sentido de apercepção, o que significa que o complexo é
principalmente percebido em sua totalidade, e não de acordo com uma disposição
preestabelecida, que necessariamente excluiria certos elementos em favor de outros. Nisto
reside a autonomia do complexo, pois ele “é resguardado; não pode ser submetido ao controle
consciente, nem à inibição, nem a uma reprodução arbitrária (...), aparecendo e desaparecendo
de acordo com a tendência que lhe é inerente” (loc. cit.).
76
O complexo autônomo surge, portanto, a partir do momento em que “uma região até
agora inconsciente da psique é ativada; pela reanimação ela se desenvolve e se amplia
mediante inclusão de associações afins” (JUNG, 1985, p. 68). A energia necessária para esta
finalidade, que consiste num acréscimo à energia específica do complexo, é fornecida pela
própria consciência através do movimento de regressão da libido. Assim a atividade da
fantasia do complexo torna-se capaz de se desenvolver conscientemente, através da
progressão da libido. A fantasia, inconsciente, ou o “complexo fantasioso de representações”
(idem, 1991, p. 48) possui grande autonomia, mas pode irromper na consciência de forma
ativa ou passiva. A fantasia passiva surge devido a um estado de forte dissociação psíquica,
conseqüência de uma atitude consciente excessivamente unilateral que gera um processo
inconsciente oposto igualmente intenso, o qual irrompe de forma evidente quando falha a
inibição consciente. Já a fantasia ativa é precedida pela intuição, por uma disposição
consciente para a percepção de conteúdos inconscientes, não havendo, portanto, uma oposição
forte entre ambos.
Conforme Jung, a fantasia constitui “a característica principal da atividade artística
do espírito” (ibid., p. 411) e se pode considerar que a fantasia ativa predomina freqüentemente
na disposição consciente dos artistas em geral. Tanto na fantasia passiva quanto na ativa a
consciência perde ou cede parte de sua energia ao complexo autônomo, dessa forma “surge
aquilo que Janet qualificou de abaissement du niveau mental (...) condição bastante comum
nos artistas” (idem, 1985, p. 68). Essa condição é distinguida por certa apatia, ou seja, uma
diminuição da intensidade de interesses e atividades conscientes e por “um desenvolvimento
regressivo das funções conscientes, isto é, uma descida às suas condições infantis e arcaicas”
(loc. cit.). A consciência do artista, portanto, não possui um aspecto acentuadamente dirigido,
o que é fundamental para o desenvolvimento de uma adaptação regular e racional. Por outro
lado, isso favorece as “qualidades criativas” do artista, que consistem “precisamente na
permeabilidade do muro divisório entre a consciência e o inconsciente” (idem, 1984a, p. 70),
o que aproxima, de certa forma, o estado psíquico do artista ao da criança e do primitivo. A
diferença está no fato de que nestes a permeabilidade corre previamente a um
desenvolvimento pleno da consciência, os conteúdos inconscientes são mais acessíveis
justamente devido a um estágio de consciência ainda não centralizado num complexo do eu
forte e estável. Já no artista há uma consciência plenamente desenvolvida que se dispõe a
perceber as fantasias inconscientes, o que permite a formação de uma personalidade mais
ampla e unificada, capaz de atividades espirituais elevadas através da criação artística.
77
O complexo autônomo subjacente à atividade artística é chamado por Jung de
“complexo criativo” (JUNG, 1985, p. 67), e por esta razão a arte, às vezes, é comparada com
fenômenos psíquicos patológicos, pois estes também são causados por complexos
inconscientes. Aqui surge a possibilidade de uma analogia do estado psíquico do artista
também com aquele do neurótico ou psicótico, e a “analogia está na existência de um
complexo autônomo” (loc. cit.). Mas o impulso criativo do artista, sua “fúria divina” (loc.
cit.), não deve ser identificado com um estado psíquico patológico, já que os complexos são
elementos normais da psique de qualquer indivíduo, cuja consciência é freqüentemente
influenciada por eles sem, por isso, tornarem-se doentes; “o complexo autônomo nada tem de
doente em si, apenas sua manifestação freqüente e incômoda evidencia sofrimento e doença”
(loc. cit.). A manifestação do complexo de forma patológica, através de sintomas, caracteriza
um estado psíquico dissociado, cuja atitude consciente acentuadamente unilateral gera uma
forte oposição inconsciente, que impõe seus conteúdos à consciência, chegando ao caso
externo da identificação momentânea desta com o complexo, na qual o eu é por ele
assimilado. Esse estado difere essencialmente da integração entre consciente e inconsciente
que predomina na psique do artista através da fantasia ativa.
O complexo autônomo criativo, através da obra de arte, “nos oferece uma imagem
elaborada no sentido mais amplo”, a qual devemos “conhecer como símbolo” (ibid., p. 68),
isto é, como uma imagem que significa mais do que aparenta, que diz mais do que diz
abertamente, indo além de nossa capacidade atual de compreensão consciente, apontando para
uma possibilidade de desenvolvimento psicológico futuro. Nesse sentido, a imagem simbólica
desenvolvida na obra de arte corresponde a uma “imagem primordial do inconsciente
coletivo” (loc. cit.). A obra de arte simbólica considerada por Jung, portanto, tem sua origem
não no “inconsciente pessoal do autor, mas naquela esfera da mitologia inconsciente, cujas
imagens primitivas pertencem ao patrimônio comum da humanidade”, isto é, no
“inconsciente coletivo” (loc. cit.). O inconsciente pessoal é formado por conteúdos psíquicos
adquiridos na vivência pessoal, conteúdos esquecidos, reprimidos ou percebidos de forma
subliminar. Como foi visto, eles também podem estar presentes no contexto da produção
artística, porém “quando predominantes, fazem da obra de arte não um símbolo, mas um
sintoma” (ibid., p. 69), o que a aproxima mais da neurose do que da obra de arte simbólica.
O que foi dito acerca do complexo criativo e suas imagens simbólicas vale também
para a visão ou experiência originárias do modo visionário de criação artística, pois aquilo
“que aparece na visão, com efeito, é uma imagem do inconsciente coletivo, a saber, da
78
estrutura inata e peculiar dessa psique que constitui a matriz e a condição prévia da
consciência” (JUNG, 1985, p. 85). Ao contrário do inconsciente pessoal, que em geral já foi
consciente e que pode voltar a sê-lo, o inconsciente coletivo não pode tornar-se diretamente
consciente, não pode ser rememorado, uma vez que não foi esquecido ou reprimido. Ele, de
fato, nunca foi consciente, pois constitui apenas uma possibilidade “que nos foi legada desde
os tempos primitivos na forma de imagens mnemônicas ou, falando em linguagem anatômica,
dentro da estrutura cerebral” (ibid., p. 69), são possibilidades inatas de idéias, e não idéias
inatas em si. Isso ocorre porque, de acordo com Jung, a estrutura psíquica, assim como a
estrutura anatômica ou fisiológica, segue a lei filogenética, segundo a qual os estágios pelos
quais a genealogia ancestral passou em seu desenvolvimento são herdados. Essas
possibilidades herdadas são algo como categorias que determinam a formação de idéias e de
fantasias, são fatores “a priori”, que “só aparecem na matéria formada como princípios
reguladores de sua formação”, isto é, “somente após o término da obra de arte,
conseguiremos reconstruir o projeto primitivo da imagem primordial” (loc. cit.).
Essas estruturas psíquicas herdadas, que formam possibilidades de conteúdo, são
chamadas de arquétipos, e sua manifestação através de conteúdos específicos é denominada
imagem primordial. Essa imagem “é uma figura – seja ela demônio, ser humano ou processo -
que reaparece no decorrer da história, sempre que a imaginação criativa for livremente
expressa” (loc. cit.). Os conteúdos por ela veiculados caracterizam a condição anímica
primitiva, por isso apresentam características essencialmente mitológicas; a mitologia em
geral “seria uma espécie de projeção do inconsciente coletivo” (idem, 1984a, p. 158). Por essa
razão, freqüentemente, o artista recorre às figuras mitológicas de sua tradição cultural ou
mesmo de outras, e delas se apropria para expressar a sua visão originária. Ele não busca
imagens apenas por um interesse pessoal, para seguir padrões de estilo, para mostrar erudição
ou qualquer outro motivo semelhante, o faz porque cria a partir de uma vivência originária,
“cuja natureza obscura necessita das figuras mitológicas e por isso o artista busca avidamente
as que lhe são afins para exprimir-se através delas” (idem, 1985, p. 85). Jung cita exemplos de
artistas renomados nos quais esse processo é evidente: Dante Alighieri, que recorre às
imagens do Céu, Inferno e Purgatório da tradição católica; Goethe, que utiliza também a
mitologia grega; Wagner, que cria uma importante obra musical a partir da mitologia nórdica,
principalmente a lenda de Parsifal; e William Blake, que produz poemas, desenhos e pinturas
recorrendo, entre outras, à mitologia hindu (loc. cit.). Esses motivos mitológicos sempre
aparecem quando o inconsciente coletivo é ativado através das imagens primordiais, mesmo
79
que “dissimulados na linguagem moderna das imagens” (JUNG, 1985, p. 86). Dessa forma, a
águia de Zeus ou o Pássaro Roca aparecem como aeronaves; dragões ou serpentes surgem
como trens, e o combate entre eles como uma colisão ferroviária; o herói mítico transforma-se
em um cantor ou ator que interpreta personagens heróicos; a mãe ctônica é substituída por
uma mulher obesa e assim por diante (loc. cit.).
Dessa forma, independentemente da natureza das imagens consideradas, o “processo
criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e
numa elaboração e formalização na obra acabada” (ibid., p. 71), o que corresponde a uma
autêntica manifestação do inconsciente coletivo. Conforme a psicologia analítica, essas
manifestações possuem sempre um caráter complementear ou compensatório em relação à
situação consciente. A condição da consciência é caracterizada por uma atitude específica, e
atitude implica necessariamente em unilateralidade, em uma tendência determinada. A
unilateralidade da consciência é acompanhada pela exclusão, o que “significa que muitos
elementos psíquicos, que poderiam participar da vida, não podem fazê-lo por serem
incompatíveis com atitudes gerais” (loc. cit.). Dessa forma, a vida consciente unilateral tende
a ser equilibrada pelas imagens primordiais que trazem os conteúdos indevidamente
excluídos.
Via de regra, essa compensação ocorre no âmbito pessoal, na psique de cada sujeito
em particular, mas da mesma forma que “os indivíduos isoladamente, também os povos e as
épocas têm suas atitudes ou tendências espirituais características”, o que Jung chama de
“espírito da época” (loc. cit.) ou “consciência da época” (ibid., p. 86). Essa consciência da
época não se restringe ao domínio pessoal, ela abarca a cultura de um determinado tempo, e o
mesmo ocorre com a compensação inconsciente dela resultante. As diferentes épocas podem,
portanto, ser comparadas às almas singulares, elas “têm sua unilateralidade, seus preconceitos
e males psíquicos”, apresentam “uma situação consciente específica e restrita, necessitando
por esse motivo de uma compensação” (ibid., p. 87). A obra de arte, enquanto uma
manifestação arquetípica, constitui uma compensação desse tipo; conforme Jung, não se deve
considerar a criação artística apenas como a expressão de uma compensação pessoal em
relação à situação consciente do artista, mas como uma compensação à situação consciente da
época. Dessa forma, quando “o inconsciente coletivo se encarna na vivência e se casa com a
consciência da época, ocorre um ato criador que concerne a toda a época; a obra é, então, no
sentido mais profundo, uma mensagem dirigida a todos os contemporâneos” (ibid., p. 86).
80
Da mesma maneira como a unilateralidade da atitude consciente de um indivíduo é
compensada ou corrigida por reações do inconsciente, “a arte representa um processo de auto-
regulação espiritual na vida das épocas e das nações” (JUNG, 1985, p. 71). O artista parte das
insatisfações ou necessidades negligenciadas da consciência de seu tempo, e dispõe sua
própria consciência a encontrar no inconsciente coletivo “aquela imagem primordial adequada
para compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época” (loc.
cit.). O processo criativo, portanto, consiste na ativação do arquétipo, isto é, sua aproximação
da consciência através da configuração de uma imagem primordial, a qual contém os
conteúdos e funções excluídas pela atitude dirigida. O artista então elabora e concretiza essa
imagem através de seus materiais e técnicas específicos, ele “modifica sua forma até que esta
possa ser compreendida por seus contemporâneos” (loc. cit.). Dessa forma, os diferentes
períodos que assinalam a história da arte, como Renascimento, Barroco, Classicismo,
Romantismo e todos os demais, são na verdade “tendências da arte que trazem à tona aquilo
de que a respectiva atmosfera espiritual mais necessitava” (loc. cit.).
O artista, portanto, é aquele indivíduo capaz de “exprimir o inexprimível de uma
época” (ibid., p. 87), isto é, capaz de dar uma forma concreta aos elementos por ela excluídos
e dos quais, conseqüentemente, mais necessita. Por isso, a obra de arte possui um grande
“significado social”, atuando na educação do espírito da coletividade, o que inevitavelmente
confere ao artista que produz a obra o papel de “educador de sua época” (ibid., p. 71).
Educação, entretanto, implica em transmissão e desenvolvimento de conhecimento, vivências
e aptidões, por isso a experiência do artista em seu processo criativo, sua visão originária,
deve ser comunicada aos outros indivíduos em geral. Assim, pode-se considerar que o
trabalho artístico, através da configuração de uma imagem primordial, constitui uma
“transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando a cada um a possibilidade de
encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado”
(loc. cit.). O espectador ou fruidor da obra de arte, portanto, tem acesso à mesma vivência
originária do artista, o que permite a atuação da função compensatória do inconsciente
coletivo. Mas essa experiência só pode ser realmente compartilhada por “quem se aproxima
da obra de arte, deixando que esta atue sobre ele, tal como ela agiu sobre o poeta”; para a
compreensão de seu sentido mais profundo, “é preciso permitir que ela nos modele, do
mesmo modo como modelou o poeta” (ibid., p. 93). O mesmo processo ocorre também com
as outras linguagens artísticas, como a música, pintura, escultura e dança, e é através dele que
a vivência originária do artista pode ser dividida e disseminada.
81
Não basta apenas a elaboração da imagem primordial na obra de arte, é preciso, por
parte do espectador, de uma atitude consciente disposta a perceber os conteúdos originários
nela presentes. De fato, se a obra de arte visionária é simbólica, como símbolo exige uma
disposição simbólica correspondente para que possa atuar; somente a “atitude simbólica”
(JUNG, 1991, p. 446) da consciência do observador permite atribuir à obra observada o
caráter de um verdadeiro símbolo, e não de mero signo ou alegoria. À fantasia ativa do artista
deve se seguir a atitude simbólica do espectador, ambas correspondem a uma atitude
consciente de expectativa em relação aos conteúdos de origem inconsciente, que se sobrepõe
à atitude abstrativa e unilateral que prevalece ordinariamente. Para a psicologia analítica, que
emprega uma concepção finalista dos fenômenos psíquicos, “a fantasia se apresenta como
símbolo que procura, com a ajuda de materiais disponíveis, caracterizar ou apreender (...)
certa linha de desenvolvimento psicológico futuro” (ibid., p. 411). É exatamente isso o que
ocorre na criação artística, pois a fantasia é seu traço fundamental, dessa forma “o artista não
é mero apresentador, mas criador, e por isso, educador, pois suas obras têm valor de
símbolos que prefiguram as linhas de desenvolvimento futuro” (loc. cit.).
A obra de arte surge, portanto, como “um símbolo, e não apenas uma indicação
semiótica ou alegoria de algo há muito conhecido”, constitui a “expressão de um dado antigo,
vivo e atuante” (idem, 1985, p. 91), é uma imagem originária configurada a partir da herança
psíquica dos arquétipos. Por conseguinte, a obra não é criada pelo artista enquanto individuo,
através de seu trabalho consciente, mas pelo processo criador impessoal que há nele, por isso
não se pode atribuir ao artista o papel de “intérprete de sua própria obra. Configurá-la foi sua
tarefa suprema. A interpretação deve ser deixada aos outros e ao futuro” (ibid., p. 93).
Conforme Jung, a obra de arte simbólica “é como um sonho que apesar de todas as suas
evidências se interpreta a si mesmo e também nunca é unívoco (...); ele apenas propõe uma
imagem, tal como a natureza que faz uma planta crescer” (loc. cit.). De fato, uma vez que a
linguagem simbólica dos sonhos, da arte, da religião e outras manifestações do inconsciente é
“uma linguagem impregnada de significado” (ibid., p. 64), ela não pode ser unívoca, o que
não permite uma interpretação simples, clara e imediata, um fato acompanha necessariamente
o outro.
A busca assídua por interpretação, de acordo com Jung, ocorre devido à “necessidade
de um intelecto faminto de sentido” (ibid., p. 66). Intelecto deve aqui ser entendido como “a
faculdade do pensamento dirigido”, uma “função racional (...), pois ordena em conceitos os
conteúdos das representações, segundo a pressuposição da norma racional de que tenho
82
consciência” (JUNG, 1991, p. 434). Portanto, interpretação seria o mesmo que tentar adequar
a imagem simbólica a conceitos e leis racionais preestabelecidos na consciência, o que
equivale a lhe atribuir um significado unívoco, homogêneo e externo ou heterônomo, já que
ele não deriva da imagem em si, mas do intelecto que a analisa. Esse procedimento acaba
atribuindo ao símbolo um sentido ou uma significação que não são adequados, pois sua
origem não está na consciência, mas no inconsciente, cuja forma de significação é
completamente diversa, a começar por sua atividade ser não-dirigida e irracional. Assim, a
interpretação, ao analisar a obra de arte ou qualquer outra produção simbólica, “imagina mais
do que nela existe” (idem, 1985, p. 66).
Surge aqui a questão do “sentido e significação da obra de arte (...): será que a arte
realmente ‘significa’?” (loc. cit). Se a significação for considerada da forma acima descrita,
como uma interpretação intelectual, que atribui um sentido racional, então possivelmente “a
arte nada ‘signifique’ e não tenha nenhum ‘sentido’, pelo menos não como falamos aqui sobre
sentido. Talvez ela seja como a natureza que simplesmente é e não ‘significa’” (loc. cit.). A
arte, portanto, não significa, não remete para um sentido externo, de caráter unívoco e
racional; ela apenas é, ou seja, significa por si mesma, o que constitui uma contradição em
relação ao que se entende, num contexto racional, científico e mesmo do senso comum, por
significar. A arte simbólica, como foi dito, unicamente propõe uma imagem, e essa imagem
não aponta para algo externo, possui autonomia, “ela se realiza e se basta a si mesma. Ela não
precisa ter sentido. A pergunta sobre o sentido nada tem a ver com a arte” (loc. cit.), pois esta,
assim como outros conteúdos simbólicos, se origina a partir de uma atividade psíquica não-
dirigida e irracional, e por isso inconsciente, cuja vivência exige uma disposição equivalente
da consciência, isto é, uma disposição simbólica, e não uma disposição abstrativa ou
interpretativa, a qual dissolveria completamente o aspecto originário da experiência.
Essa questão do significado da obra de arte se refere diretamente à oposição entre o
“sentido manifesto” e o sentido ”latente” (idem, 1991, p. 408) das representações
inconscientes. O sentido manifesto “decorre da contemplação imediata da imagem fantasiosa,
do enunciado do complexo fantasioso de representações” (loc. cit.). Por conseguinte, ele
constitui sempre “um processo visual e concreto que, devido à sua irrealidade objetiva, não
consegue satisfazer a exigência de compreensão da consciência” (ibid., p. 409). A fantasia,
portanto, não remete para um significado externo, além do que ela mostra por si mesma, não
oculta ou dissimula um sentido claro, unívoco e racional. Ela é simbólica, isto é, a expressão
mais adequada de uma concepção relativamente desconhecida, e tal desconhecimento não
83
deve ser considerado como “uma ocultação intencional, mas uma simples lacuna em nossa
compreensão da linguagem das imagens” (JUNG, 1997, p. 207). É a incompreensão da
consciência, imbuída de uma atitude dirigida, que exige a busca de significados além do
sentido manifesto da fantasia, que exige “uma interpretação dela, um sentido latente” (idem,
1991, p. 409).
A procura de um sentido latente e a interpretação, portanto, são processos
equivalentes, e sua aplicação aos conteúdos simbólicos implica necessariamente em uma
saída da vivência simbólica em si mesma, não se trata mais da experiência ou da visão
originária, pois a disposição simbólica correspondente foi substituída por uma disposição
racional interpretativa. Esse é o caso de qualquer abordagem científica, inclusive psicológica,
referente ao campo da criação artística. A partir do momento em que é estabelecida uma
relação entre a psicologia e a obra de arte, “já estamos fora da arte e nada mais nos resta senão
especular e interpretar para que as coisas adquiram sentido, caso contrário, nem podemos
pensar sobre o assunto” (idem, 1985, p. 66). Essa forma de compreensão implica em um
afastamento da vivência imediata da arte, seja em sua criação ou recepção, e de acordo com
ela, “devemos deslocar-nos para fora do processo criativo e olhá-lo desse lado, pois só então
ele se tornará imagem que exprime um sentido” (loc. cit.), embora, para aquele que se coloca
realmente dentro da arte, não haja qualquer necessidade de tal questionamento, pois a arte
simplesmente é, e não significa.
Essa restrição também se aplica à própria psicologia analítica, na medida em que esta
pretende constituir uma abordagem científica dos fenômenos anímicos, inclusive os de caráter
simbólico. Ela também busca o sentido latente das representações inconscientes, mas não a
partir de um estudo “de natureza puramente causal”, que procura “saber as origens
psicológicas da fantasia”, chamada por Jung de interpretação “redutiva” (idem, 1991, p. 409).
A psicologia analítica propõe uma explicação finalista destes fenômenos, através do método
construtivo, que não os reduz a causas externas, mas reconhece sua autonomia e legitimidade
própria, isto é, atribui-lhes um sentido simbólico, e não apenas sintomático ou semiótico, que
se referem à pura significação, ao sinalizar para algo já conhecido. Aqui se evidencia um
aspecto paradoxal presente na linguagem simbólica, na qual inclui-se a obra de arte: o fato
dela não significar, não ser unívoca, não remeter para um sentido único, racional e externo,
isto é, dela simplesmente ser por si mesma, estar paralelo ao fato dela construir uma
linguagem repleta de significado, uma vez que oferece inúmeras possibilidades de sentido a
uma disposição interpretativa, sendo que essas nunca esgotarão plenamente a expressão
84
original. Tal fato torna-se compreensível ao se considerar a origem inconsciente da
representação simbólica, na qual, devido a seu aspecto não-dirigido e irracional, todas as
oposições, diferenciações e categorizações conscientes são dissolvidas em favor do
estabelecimento de analogias concretas.
3.2 Símbolo e experiência religiosa
3.2.1 Pressupostos fundamentais da abordagem psicológica: religião
Consoante Jung, a religião certamente constitui “uma das expressões mais antigas e
universais da alma humana” (JUNG, 1980, p. 1), por essa razão ela deve ser alvo de uma
consideração psicológica. Assim como no campo da criação artística, isso significa que serão
considerados apenas os aspectos do fenômeno religioso que podem ser submetidos ao método
da psicologia, ou seja, seus aspectos propriamente psicológicos, e nunca o que constitui a
religião em si, pois “a consideração psicológica só se aplica aos fenômenos simbólicos e
emocionais sem tocar a essência da religião” (idem, 1985, p. 54). A abordagem psicológica,
portanto, não deve ser confundida com uma abordagem metafísica ou filosófica, o que, por
outro lado, não significa uma depreciação ou invalidação dessas perspectivas, mas apenas
uma delimitação dos critérios a serem utilizados.
A psicologia analítica, por conseguinte, compartilhando o método da psicologia em
geral, se defronta com o problema religioso a partir de seu proeminente aspecto psicológico,
isto é, de fatos psicológicos observáveis. Tal abordagem é fundamentalmente científico-
natural, pois corresponde à aplicação do ponto de vista fenomenológico, o qual se baseia na
estrita observação dos fenômenos, nos fatos empíricos ou dados da experiência. Por outro
lado, conforme Jung, os princípios do empirismo não devem se restringir unicamente ao mero
acúmulo e classificação de materiais e dados obtidos pela experiência, devem ser feitas
reflexões e considerações a partir desse material acumulado, uma vez que “não há experiência
possível sem uma consideração reflexiva, porque a ‘experiência’ constitui um processo de
assimilação, sem o qual não há compreensão alguma” (idem, 1980, p. 1). Dessa forma,
qualquer conhecimento válido somente pode ser obtido a partir de ponderações que
ultrapassem os dados proporcionados pela experiência, embora estes constituam o principal
fator que diferencia, pela sua presença, a abordagem psicológica da filosófica.
85
Conforme essa perspectiva científica, adotada pela psicologia analítica, certas idéias
e conteúdos espirituais são considerados como dados e fatos empíricos, ou seja,
acontecimentos concretos, cuja “verdade é um fato e não uma apreciação” (JUNG, 1980, p.
2). Assim, uma determinada idéia, como uma concepção religiosa qualquer, é considerada
psicologicamente verdadeira porque existe de fato, de forma objetiva. Tal concepção não
constitui “uma conclusão lógica, nem corresponde a uma asserção ou juízo subjetivo de um
intelecto criador. É simplesmente um fenômeno” (loc. cit.). De acordo com Jung, há um
preconceito segundo o qual os acontecimentos psíquicos são simplesmente arbitrariedades ou
invenções criadas pelo indivíduo; de fato, a existência psicológica pode ser considerada
subjetiva, na medida em que pode se dar apenas em um indivíduo particular. Mas tamm
deve ser considerada objetiva, pois pode ser compartilhada por um grupo mais numeroso, ou
até mesmo ser verificada a sua universalidade, uma vez que “certas idéias ocorrem em quase
toda a parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um modo espontâneo,
independentemente da migração e da tradição” (ibid., p. 3). Essas idéias não são criadas ou
inventadas pelo sujeito, elas simplesmente aparecem, isto é, irrompem na consciência
individual; são símbolos cuja origem está no inconsciente coletivo, herdado na estrutura de
cada psique particular.
3.2.2 Simbolismo e experiência religiosa
A partir dessas considerações, Jung define a religião como “uma acurada e
conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de ‘numinoso’,
isto é, uma existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário” (loc. cit.). Isto
significa que o numinoso constitui uma condição à qual o indivíduo está sujeito, que o domina
e dele se apodera, e cuja causa deve ser atribuída, portanto, conforme a concepção religiosa
geral, a algo externo a ele próprio. O indivíduo não cria voluntariamente o efeito numinoso, o
qual irrompe espontaneamente como “a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de
uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência” (loc. cit.).
A psicologia analítica, portanto, considera a religião como uma atitude do espírito
humano, a qual está mais de acordo com o significado originário do termo latino “‘religio’”,
isto é, “uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos
como ‘potências’: espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra
denominação dada pelo homem a tais fatores” (ibid., p. 4). São, por conseguinte, fatores que
86
apresentam para o sujeito ou grupo características acentuadas de poder, beleza, grandiosidade,
utilidade ou mesmo periculosidade e que, por essas razões, tornam-se merecedores de uma
consideração respeitosa e de uma piedosa adoração, mesmo fora de um contexto religioso
estabelecido tradicionalmente. A partir dessa definição, fica evidente que Jung não considera
psicologicamente os aspectos de um credo religioso em particular, e sim a “psicologia do
homo religiosus, do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem
sobre ele e sobre seu estado geral” (JUNG, 1980. p. 5). Assim, o que importa não são apenas
os fatores numinosos já conhecidos e determinados pelas tradições religiosas ou mesmo pelo
saber etnológico, mas qualquer fator psicológico que possua um efeito numinoso equivalente.
Segundo essa perspectiva, o conjunto desses fatores psicológicos pode incluir, além das
figuras típicas de deuses, demônios ou outras entidades, certas leis, idéias ou ideais e também
a criação artística, que certamente desperta uma consideração e observação acuradas tanto nos
artistas quanto nos admiradores de obras de arte.
Conforme Jung, predomina a idéia preconcebida e relativamente recente que
considera todos os estados psíquicos possíveis como produzidos pelo próprio indivíduo, ou
seja, trata-se de uma psicologia que identifica a psique unicamente com a consciência. Por
outro lado, há pouco tempo atrás, pessoas psicologicamente sadias, e mesmo possuidoras de
grande cultura, acreditavam em “agentes psíquicos capazes de influenciar nosso ânimo. Havia
magos e bruxas, espíritos, demônios e anjos, e até mesmo deuses que podiam provocar certas
mudanças psicológicas no homem” (ibid., p. 9). Apesar do aspecto projetivo e antropomórfico
dessas concepções, elas descrevem melhor o fato de que nem todos os produtos da psique são
conscientes. Pode-se considerar “a consciência como sendo nossa própria existência
psíquica”, mas há fatores que possuem “sua existência psíquica própria, independentemente
de nós mesmos” (loc. cit.). Há certos elementos atuantes na psique que não se identificam
com a consciência, que se manifestam como formações autônomas, irrompendo na
consciência já prontos e, muitas vezes, independentemente da vontade desta.
Essas formações correspondem aos complexos psíquicos inconscientes, que se
comportam como seres autônomos, capazes de perturbar as intenções do complexo do eu.
Tais complexos se “comportam como personalidades secundárias ou parciais, dotadas de vida
espiritual autônoma” (loc. cit.). Conforme Jung, há dois tipos principais de complexos,
classificados de acordo com sua origem: alguns complexos “só estão separados da
consciência porque esta preferiu descartar-se deles, mediante a repressão”, e há outro grupo
de complexos que “nunca estiveram na consciência e, por isso, nunca foram reprimidos
87
voluntariamente. Brotam do inconsciente e invadem a consciência com seus impulsos
estranhos e imutáveis” (JUNG, 1980, p. 9-10). O primeiro grupo corresponde aos complexos
do inconsciente pessoal e o segundo aos complexos do inconsciente coletivo, ou seja, são
complexos de representações de natureza arquetípica. Dentre estes devem ser incluídos os
complexos referentes às idéias religiosas e também o complexo criativo descrito
anteriormente, que pertence ao campo da criação artística, uma vez que a obra de arte
constitui uma ativação e formalização do arquétipo inconsciente.
Para a psicologia analítica, toda a estrutura da psique é constituída de complexos,
sendo a própria consciência caracterizada como a relação de determinados conteúdos ao
complexo do eu. O mesmo ocorre com a estrutura do inconsciente, pois “o nosso inconsciente
pessoal e o inconsciente coletivo constituem um indefinido, porque desconhecido, número de
complexos ou de personalidades fragmentárias” (idem, 1997, p. 87). São manifestações
inconscientes espontâneas, cuja base é formada por conteúdos não encontrados no estado
consciente atual, por isso, levando-se em conta a função psíquica desempenhada pelo
complexo, deve-se considerá-lo como uma “formação inconsciente compensatória ou
complementar” (idem, 1980, p. 21) em relação à consciência. Os complexos manifestam-se na
consciência através de símbolos, os quais conformam as produções da fantasia, os sonhos ou
mesmo as reações ao teste de associação e os sintomas psicopatológicos; o seu significado
simbólico evidencia o sentido finalista de compensação presente em tais conteúdos, é como
“se proviessem de uma fonte inteligente, como que pessoal, orientada para determinados fins”
(loc. cit.).
Os símbolos, portanto, em qualquer forma que se manifestem à consciência, como
em sonhos ou visões, “são exatamente aquilo que parecem ser. Não são disfarces de algo
diferente, mas um produto natural, sem motivações exteriores” (ibid., p. 79), isto é, sem
motivações conscientes. Dessa forma é valorizado o sentido manifesto, ou seja, concreto e
imediato do símbolo; e o denominado sentido latente corresponde à incapacidade de sua
adequada compreensão pelo estado consciente momentâneo, o que exige da parte deste um
esforço interpretativo, que às vezes pode se revestir de um aspecto causalista. De fato,
conforme a psicanálise de Freud, “os sonhos nada mais são do que uma fachada, por trás da
qual algo se esconde, deliberadamente”, mas para Jung, ao contrário, o sonho, ou qualquer
outra manifestação simbólica, não deve ser considerado como “algo diferente daquilo que
realmente parece ser” (ibid., p. 25). Jung segue, nesse sentido, a autoridade judaica expressa
no Talmud, segundo a qual “o sonho é a sua própria interpretação”, ele toma o sonho tal
88
como é” (JUNG, 1980, p. 25). É a limitação da compreensão consciente do símbolo que a faz
supor que este disfarça, oculta ou dissimula um determinado conteúdo, a princípio claro e
racional. Mas é justamente esse tipo de interpretação que obscurece o entendimento da
autonomia de sentido característica do simbolismo inconsciente, a qual nos leva a “admitir
que o inconsciente revela às vezes uma inteligência e intencionalidade superiores à
compreensão consciente de que somos capazes no momento” (ibid., p. 38).
Em contrapartida, a religião não é constituída unicamente pela irrupção involuntária,
seja em sonhos ou visões, de símbolos provenientes de complexos de representações
arquetípicos – embora possa se originar dessa forma – pois é, antes de tudo, como afirma
Jung, uma atitude do espírito, e o conceito de atitude, como foi visto, refere-se a uma
constelação consciente de certos conteúdos psíquicos. Dessa forma, a religião também pode
ser definida como “a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do
numinoso” (ibid., p. 4). Por outro lado, a atitude possível da consciência em relação aos
conteúdos simbólicos autônomos é, justamente devido a essa autonomia, de expectativa e de
percepção, mas nunca de assimilação ou de apercepção. Isso significa que a consciência capta
o símbolo religioso em sua totalidade e de forma imediata, isto é, sem a mediação de
conteúdos ou leis conscientes prévios, o que permite uma verdadeira transformação geral da
atitude anterior. Essa atitude consciente de expectação em relação aos conteúdos
inconscientes é denominada fantasia ativa, atitude marcada pela função psíquica intuitiva. De
fato, conforme Jung, o termo mais adequado para designar os produtos inconscientes que
dessa forma se manifestam à consciência é “intuição”, levando-se em consideração “o fato de
que uma intuição jamais é produzida. Ela surge espontaneamente. Tem-se a idéia de que se
apresenta por si mesma, e que só podemos captá-la se formos suficientemente rápidos” (ibid.,
p. 40). Por sua manifestação espontânea, os conteúdos simbólicos captados por uma atitude
consciente intuitiva constituem uma experiência psíquica diferente da usual, são “experiências
da ‘gnose’ – consideradas como reveladas e imediatas” (ibid., p. 44), entendendo-se aqui o
termo gnose não como a doutrina do gnosticismo, mas como “forma especial de
conhecimento” (loc. cit., nota 13). As representações simbólicas, portanto, não são produzidas
pela atividade racional da consciência, mas percebidas como produtos já prontos e de origem
inconsciente, tais “representações pertencem à categoria da revelação”, sendo que a “revelatio
é, em primeira instância, uma descoberta das profundezas da alma humana, a ‘manifestação’
(...) de um modus psicológico que como se sabe, além disso, nada nos diz acerca do que ela
89
poderia ser” (JUNG, 1980, p. 72), isto é, não se deve confundir o sentido psicológico do
termo revelação com um possível significado metafísico.
3.2.3 Religião e conceitos fundamentais de psicologia analítica
Os conteúdos de origem consciente possuem um sentido racional, isto é,
predeterminado pelas leis da razão já conhecidas pela consciência. Já os conteúdos de origem
inconsciente possuem um sentido simbólico, cuja manifestação assume um caráter numinoso,
devido à sua autonomia em relação à consciência. Por sua numinosidade, os produtos do
inconsciente devem ser considerados como “possuindo um significado que poderíamos
chamar de ‘sacro’” (ibid., p. 52), dessa forma , o significado simbólico é identificado com o
significado sagrado de certas representações psíquicas. De fato, conforme Jung, certas
representações psíquicas possuem uma “natureza divina” porque constituem , “em termos
psicológicos, (...) um conteúdo que se origina no inconsciente e transcende os limites da
consciência” (ibid., p. 94), tal conteúdo, como foi visto, corresponde ao conceito de símbolo.
Dessa forma, o divino, tal como foi caracterizado pelas experiências religiosas da
humanidade, corresponde a certos fatores psíquicos numinosos, ou seja, os arquétipos que
conformam o inconsciente coletivo.
Consoante Jung, na experiência religiosa em geral, “na mitologia e no folclore dos
diversos povos certos temas se repetem de forma quase idêntica”, os quais ele denominou de
arquétipos (...), que surgem por toda parte como elementos constitutivos dos mitos e ao
mesmo tempo como produtos autóctones individuais de origem inconsciente” (ibid., p. 49-
50). A origem dos arquétipos, como visto anteriormente, está no processo de formação dos
símbolos, que constitui o princípio espiritual da psique humana; os temas arquetípicos,
portanto, são “criações do espírito humano transmitidas não só por tradição e migração, como
também por herança”, uma vez que “imagens arquetípicas complexas podem ser reproduzidas
espontaneamente, sem qualquer possibilidade de tradição direta” (ibid., p. 50). Dessa forma, o
arquétipo constitui uma condição psíquica inconsciente que determina a formação de
conteúdos capazes de se tornarem conscientes, condição essa idêntica em todos os indivíduos,
“como que um a priori herdado” (ibid., p. 104), caracterizando então um inconsciente
impessoal ou coletivo. O que é herdado, por outro lado, não são as representações em si, o que
seria impossível, mas “a possibilidade formal de produzir as mesmas idéias ou, pelo menos,
idéias semelhantes”, o arquétipo, portanto, é uma possibilidade, “uma qualidade ou condição
90
própria da psique que, de algum modo, se acha ligado ao cérebro” (JUNG, 1980, p. 104). A
estrutura arquetípica do inconsciente é algo como os vestígios ou marcas deixadas por
“situações espirituais repetidas ao longo da história” (ibid., p. 52), esses traços herdados
atuam como motivos que, embora invariáveis, podem revestir-se de diversas representações;
há, “por exemplo, muitas representações dos irmão inimigos, mas só existe um motivo”(idem,
1997, p. 230) . A partir dessa hipótese formulada sobre a natureza dos arquétipos, pode-se
afirmar que a “verdadeira história do espírito não se conserva em livros, mas no organismo
vivo de cada indivíduo” (idem, 1980, p. 34).
Entrementes, o arquétipo não constitui apenas uma predisposição funcional para
produzir certas idéias ou imagens, pois sua manifestação sempre é acompanhada de uma forte
carga emocional. Os arquétipos “são imagens e ao mesmo tempo emoções. Só podemos falar
de um arquétipo quando estão presentes esses dois aspectos ao mesmo tempo” (idem, 1997, p.
256). O aspecto emocional ou afetivo, como já foi visto, corresponde à ação de quantidades
energéticas, isto é, da energia psíquica ou libido. De fato, os arquétipos possuem uma energia
específica, que lhes confere como que uma iniciativa própria, certa autonomia em relação às
intenções conscientes, uma vez que a “energia inerente ao arquétipo, isto é, ao inconsciente,
(...) não está à nossa disposição” (idem, 1986b, p. 75), à disposição da consciência. Esta
energia específica do arquétipo pode ser percebida justamente quando “se é tomado por um
legítimo sentimento de numinosidade que a acompanha como uma fascinação ou encanto que
dela emanam” (idem, 1997, p. 239). Os conteúdos arquetípicos, portanto, podem ser
caracterizados como forças emocionais, ou seja, numinosidades, e é este caráter numinoso que
lhes confere autonomia. Dessa forma, de acordo com a psicologia analítica, a numinosidade
de certos conteúdos equivale ao seu valor emocional, isto é, à sua energia inconsciente,
indisponível à consciência, o “númeno” corresponde à “energia especifica própria do
arquétipo” (idem, 1986b, p. 221).
Os arquétipos manifestam-se na consciência através de símbolos, que dessa forma
constituem verdadeiros órgãos pelos quais os conteúdos inconscientes são integrados à
consciência. A numinosidade inerente aos arquétipos acompanha os símbolos por eles
produzidos, gerando “os símbolos numinosos, considerados sagrados pelo consenso comum,
isto é, pela fé” (idem, 1997, p. 255). De fato, conforme a definição de religião aventada por
Jung, é a numinosidade que confere o sentido sagrado às experiências simbólicas da psique.
Dessa forma, os símbolos religiosos ou numinosos constituíram tradicionalmente os órgãos de
integração das imagens arquetípicas à vida psíquica consciente na história da humanidade. As
91
figuras divinas, isto é, as divindades das diversas religiões históricas, sejam politeístas ou
monoteístas, foram construídas a partir das disposições arquetípicas da psique inconsciente; a
“libido produz a imagem de Deus usando modelos arquetípicos”, e o homem, “em
conseqüência da força anímica que nele age, reverencia o divino” (JUNG, 1986b, p. 74). A
partir de uma perspectiva psicológica, portanto, “a figura de Deus é um complexo de idéias de
natureza arquetípica (...) que aparece de forma projetada” (ibid., p. 48).
O aspecto numinoso ou divino, por conseguinte, constitui um fator psíquico que é
projetado, seja em objetos concretos, como pedras, fontes de água, animais, plantas ou
fenômenos da natureza; seja em figuras criadas pela atividade da fantasia, em deuses ou
demônios, geralmente de aspecto antropomórfico, zoomórfico ou antropozoomórfico; e
também em determinados indivíduos que, por uma característica ou comportamento fora do
comum, são dotados de um elemento mágico ou divino, como os magos, bruxas, xamãs e
outras figuras semelhantes. Conforme Jung, no contexto das “principais religiões da
atualidade os atributos de Deus parecem ser derivados da imago paterna, em religiões mais
antigas também da imago materna” (ibid., p. 49). Em certas imagens divinas destas últimas,
inclusive, o “lado materno sobressai muito, acrescentando-se o elemento animal, o
teriomorfo” (loc. cit.). O termo imago deve ser entendido como sinônimo de arquétipo (idem,
1997, p. 233), ambos referem-se às formas sem conteúdo herdadas pela psique humana que se
manifestam como símbolos numinosos, os quais são vivenciados como realidades autônomas
e extra-psíquicas, isto é, projetadas no mundo externo visível ou invisível, assumindo então o
papel de uma divindade, de uma potência a ser venerada e cuidadosamente observada. Estas
projeções ocorrem devido ao estado de participação mística, de identidade ou não
diferenciação psíquica entre sujeito e objeto, característico da mentalidade primitiva e que
permanece na atividade inconsciente do homem civilizado.
Deve-se ressaltar que essas teorizações elaboradas por Jung não devem ser
consideradas como algum tipo de demonstração da existência ou não-existência de deuses ou
de Deus. Constituem unicamente uma demonstração da existência de imagens arquetípicas
correspondentes às divindades presentes nas diversas religiões atuais e do passado, não é,
portanto, uma constatação metafísica, mas unicamente psicológica e empírica. Segundo este
ponto de vista, “todas as experiências religiosas consistem em um estado especial da alma”
são experiências de imagens arquetípicas que, devido ao grande e indefinido número de
arquétipos presentes na psique e suas diversas disposições individuais características, podem
assumir “todas as formas imagináveis” (idem, 1980, p. 61). O ponto em comum nessa
92
variedade de experiências é o seu significado psicológico em cada indivíduo, assim, se essa
experiência “significa alguma coisa para aqueles que a têm, este algo é: ‘tudo’ (...).
Poderíamos até mesmo defender a experiência religiosa como aquela que se caracteriza por
seu extremo valor independentemente do seu conteúdo” (JUNG, 1980, p. 61). Esse valor
determinante corresponde, como foi visto, à energia ou numinosidade inerente aos arquétipos,
não importando qual destes tenha sido ativado na experiência.
Portanto, a religião ou, em termos psicológicos, a atitude religiosa, corresponde a
uma “relação com o valor supremo ou mais poderoso, seja ele positivo ou negativo”,
entendendo-se por “valor” um “fator psíquico cheio de energia” (ibid., p. 79). Este assume
então um aspecto numinoso, e o “fator psicológico que, dentro do homem, possui um poder
supremo, age como ‘Deus’, porque é sempre ao valor psíquico avassalador que se dá o nome
de Deus” (ibid., p. 80). Se uma divindade perde o seu poder, a sua numinosidade, ela deixa de
ser vivenciada como um fator psíquico avassalador e torna-se uma simples figura ou nome,
perde o seu fator essencial, deixando de ser um verdadeiro símbolo e convertendo-se em mero
sinal. Mas, enquanto ela conservar o seu sentido, ela atuará como o “fator efetivamente mais
poderoso e decisivo da psique individual” e provocará, “forçosamente, fé ou medo, submissão
ou entrega, que um deus poderia exigir do homem” (ibid., p. 85).
Os conteúdos das vivências arquetípicas, devido ao seu valor psíquico dominante,
são extremamente significativos, seja em um sentido negativo ou positivo, gerando fascínio e
atração ou terror e medo. Mas se esses conteúdos não forem devidamente integrados à
consciência por meio de uma atitude religiosa, no sentido de uma atitude de expectativa, de
uma verdadeira disposição simbólica, eles podem dela se apoderar, ocorrendo então uma
identificação momentânea ou possessão da consciência pelo complexo de representações
arquetípico. Os arquétipos, de fato, constituem forças coletivas ou impessoais inconscientes,
capazes de subjugar, sob as condições apropriadas, quaisquer intenções conscientes e
pessoais. Conforme Jung, na maioria das pessoas há um receio, uma “espécie de
deisidaimonia em relação aos possíveis conteúdos do inconsciente” (ibid., p. 10). Esse temor
tem a ver “menos com a primitividade do que com a emotividade dos conteúdos”, por essa
razão eles são capazes de produzir “até mesmo pânico e, quanto mais reprimidos forem, mais
perpassam a personalidade na forma de uma neurose” (idem, 1997, p. 258).
Conseqüentemente, “é preferível ‘observar e considerar cuidadosamente’ os fatores exteriores
à consciência” (idem, 1980, p. 10), sob o risco de aumentar ainda mais o seu poder de jugo.
93
Essa situação torna-se mais evidente em relação à mentalidade do homem primitivo,
o qual vive em um estado de consciência não-reflexo, isto é, não centralizado em um
complexo do eu coeso e estável. Por isso eles são mais suscetíveis a uma perda de consciência
devido a um fator psíquico de forte carga emocional. Esses fatores que podem subjugar a
consciência, os perigos psíquicos, são assiduamente evitados pelos primitivos, e “a expressão
exterior desse fato é a criação de áreas de tabus”, que constituem “áreas psíquicas delimitadas
que devem ser religiosamente observadas” (JUNG, 1980, p. 14), pois podem desencadear
forças incontroláveis e imprevisíveis. Outra expressão do mesmo fato é a existência de
“inúmeros ritos mágicos cuja única finalidade é a defesa contra as tendências imprevistas e
perigosas do inconsciente” (loc. cit.). Essa propensão a se tomar medidas protetoras contra os
perigos psíquicos pode ser observada desde o início da humanidade, limitando-se a
“irrefreável e arbitrária influência do ‘sobrenatural’ mediante fórmulas e leis. E este processo
continuou através da história, sob a forma de uma multiplicação de ritos, instituições e
convicções” (ibid., p. 15).
Mas as experiências arquetípicas não constituem apenas perigos psíquicos, como se
fossem algo essencialmente negativo, isso ocorre apenas se não forem devidamente
observadas e integradas à consciência. Pelo contrário, os arquétipos conformam o princípio
espiritual, são a herança do processo simbólico ocorrido na linhagem ancestral, sem os quais a
humanidade não teria superado o estágio puramente instintivo e se desenvolvido em termos
culturais. Por isso eles também exercem um fascínio e atração irresistíveis, proporcionando
muitas vezes a solução, através de símbolos, para problemas que a consciência por si só não
seria capaz de resolver e, às vezes, nem mesmo de formular adequadamente. Dessa forma, o
desenvolvimento de rituais, idéias e ordens religiosas exerce não apenas uma função
protetora, no sentido de afastar sua influência negativa, mas também de mediadora, no sentido
de aproximar e integrar à vida consciente os seus efeitos positivos. De acordo com Jung, já
nos alvores da sociedade humana podemos encontrar “vestígios dos esforços psíquicos para
encontrar formas propiciatórias e exorcismos próprios para invocar ou expulsar realidades
obscuramente pressentidas” (idem, 1985, p. 84).
A experiência religiosa corresponde à vivência ou visão originárias descritas no
contexto da criação artística, ambas se referem à experiência imediata de imagens primordiais
ou arquetípicas. Conforme a abordagem científica adotada pela psicologia analítica, não se
deve “considerar a pretensão de todo credo religioso: a de ser possuidor da verdade exclusiva
e eterna”, e sim a “experiência religiosa primordial”, o “aspecto humano do problema
94
religioso, abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele” (JUNG, 1980, p. 5). As
confissões religiosas ou confissões de fé podem ser definidas como “formas codificadas e
dogmatizadas de experiências religiosas originárias. Os conteúdos da experiência foram
sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e,
freqüentemente, complexa” (ibid., p. 4-5). A experiência original, ocorrida inicialmente num
âmbito individual, foi transmitida e transformada coletivamente e seu exercício repetido deu
origem aos ritos e instituições religiosas. As experiências religiosas primordiais
correspondem, conforme Jung, às experiências do misticismo, segundo ele os “místicos são
pessoas que têm a vivência particularmente aguda do inconsciente coletivo. É a experiência
dos arquétipos” (idem, 1997, p. 111). Dessa forma, não há distinção entre as formas místicas e
as arquetípicas, assim como não há diferença entre estas e a “inspiração artística (...); são a
mesma coisa” (ibid., p. 51).
Por outro lado, as confissões de fé não constituem apenas uma “petrificação em
vida” (idem, 1980, p. 5) da experiência religiosa originária, embora isso possa realmente
acontecer em alguns casos. Via de regra, elas representam uma forma legítima de experiência
religiosa para muitas pessoas, perdurando por séculos. Isso ocorre porque os símbolos
veiculados pela confissão religiosa são capazes de abarcar ou de despertar uma experiência
originária nos indivíduos isolados, desde que estes possuam a fé necessária, isto é, a
disposição simbólica para se deixar influenciar por tais conteúdos. Como a vida psíquica dos
indivíduos e das coletividades de cada época são dinâmicas, sempre alterando o equilíbrio
alcançado entre fatores conscientes e inconscientes, é exigida certa flexibilidade em relação
aos dogmas e rituais, ou seja, aos símbolos estabelecidos. Isso de fato ocorre nas confissões
religiosas, a despeito de seu aspecto predominantemente tradicionalista; na Igreja Católica,
por exemplo, de acordo com Jung, admite-se que o dogma é vivo, podendo sofrer
modificações em sua formulação original. Com o ritual ocorre o mesmo fato, ele sofre
alterações no decorrer do tempo, conforme as transformações culturais, as mudanças nos
meios de comunicação e outros fatores. Por essa dinâmica da vida psíquica o protestantismo
que, a princípio, “se libertou quase totalmente da tradição dogmática e do ritual codificado”
(ibid., p. 5) acabou se subdividindo em inúmeras denominações. Em qualquer caso,
independentemente das codificações dogmáticas e cerimoniais estabelecidas ou
institucionalizadas, todas as confissões religiosas, por um lado, se fundam “na experiência do
numinoso e, por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na confiança em relação a
95
uma determinada experiência de caráter numinoso e na mudança de consciência que daí
resulta” (JUNG, 1980, p. 4).
Como foi visto, as experiências imediatas das imagens arquetípicas podem revestir-
se de um aspecto negativo e perigoso para a consciência do indivíduo, devido à sua
imprevisibilidade, ambigüidade e ao arrebatamento em que podem resultar. Por isso os
dogmas e os rituais estabelecidos pelas confissões religiosas, como a Igreja cristã, exercem
uma importante “função mediadora e protetora entre essas influências e o homem” (ibid.,
p.15). Dessa forma, todos os símbolos do cristianismo tradicional, por exemplo, como os
conteúdos dogmáticos, a missa, a confissão, a liturgia e o sacerdote como o representante de
deus servem como uma espécie de muro protetor, de amparo e guia para as experiências
religiosas originárias que ocorrem nos indivíduos isolados. O dogma e o culto, portanto,
constituem a “quintessência incomparável da experiência religiosa, tanto cristã como pagã”
(ibid., p. 20); já no âmbito protestante, o rito e a barreira dogmática perderam a sua autoridade
e eficácia, foram derrubados “alguns dos muros cuidadosamente erigidos pela Igreja”, o que
fez o protestantismo “sentir os efeitos destruidores e cismáticos de uma revelação individual”
(loc. cit.).
As religiões tradicionais, chamadas por Jung de confissões, desempenham na
sociedade humana uma importante função, que consiste em “substituir a experiência imediata
por um grupo adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente
organizados”, desta forma, os indivíduos permanecem “adequadamente protegidos contra a
experiência religiosa imediata” (ibid., p. 42), enquanto tais medidas se mostrarem válidas e
eficazes. Além disso, mesmo que uma experiência imediata ocorra no indivíduo, ele pode
recorrer à autoridade de sua confissão para compreender e julgar as imagens vivenciadas. Por
conseguinte, as religiões assumem um papel decisivo no estabelecimento e manutenção do
equilíbrio entre as forças psíquicas nos indivíduos e nas sociedades, tanto que Jung afirmava
aconselhar os seus pacientes, caso fossem católicos praticantes, a “confessar-se e a comungar,
para resguardar-se de uma experiência imediata, que poderia ser superior às suas forças”
(ibid., p. 43). Se as experiências imediatas constituem um perigo ou um “grave risco”
psíquico, devido a sua “terrível ambigüidade” (ibid., p. 44), os símbolos religiosos revestidos
pelo dogma e pelo ritual formam um meio defensivo eficaz.
Outro mecanismo de defesa utilizado contra as forças imensuráveis do inconsciente é
a formulação de teorias científicas baseadas no ponto de vista causal ou redutivo, como as
teorias psicológicas que identificam psique com consciência, e a consideram como um mero
96
“epifenômeno, um produto secundário do processo orgânico do cérebro” (JUNG, 1980, p. 7),
a partir do que a qualquer transtorno psíquico ou atividade que não coincida com o
funcionamento normal da consciência, como os próprios conteúdos do inconsciente, são
atribuídas causas orgânicas ou fisiológicas específicas. No mesmo contexto situa-se a teoria
psicanalítica freudiana que atribui uma origem primordialmente sexual a todos os produtos da
atividade inconsciente, inclusive às experiências originárias de caráter numinoso. Entretanto,
em termos de verdade psicológica, toda teoria científica redutiva possui pouco valor
exatamente por ser incompleta, uma vez que é formulada unicamente pela consciência, mais
restritamente ainda por um intelecto exclusivamente racional. Assim, a teoria científica é
formulada em conceitos abstratos, que subestimam necessariamente os valores emotivos das
experiências imediatas.
Já o dogma é uma realidade totalmente diversa, pois ele “constitui uma expressão da
alma muito mais completa do que uma teoria científica” (ibid., p. 45), não é formulado apenas
pela consciência, mas por uma união de fatores conscientes e inconscientes através da função
transcendente do símbolo. Utilizando todas as funções psíquicas, especialmente a intuição, o
dogma é capaz de exprimir, “por meio de sua imagem, uma totalidade irracional”, o que
garante uma “reprodução bem melhor de fato tão irracional quanto a existência psíquica”
(ibid., p. 44). O dogma não se expressa por meio de conceitos abstratos, mas por “imagens
sagradas” (ibid., p. 46) e pela “forma dramática do pecado, da penitência, do sacrifício e da
redenção”, através dos quais “logra exprimir adequadamente o processo vivo do inconsciente”
(ibid., p. 45). A partir dessas observações feitas por Jung, pode-se constatar que a experiência
religiosa, mediada pelos dogmas, ocorre através de formas, e não necessariamente conteúdos,
equivalentes àquelas das diversas experiências artísticas. Mesmo em termos de conteúdo
verifica-se que, na história da arte, desde os períodos primitivos até os inícios da Era
Moderna, a temática artística geral encontra-se intimamente vinculada à temática religiosa.
Assim, se o dogma é expresso por meio de uma forma dramática e é, de certo modo,
“encenado” pelo ritual, pode-se estabelecer uma evidente analogia com as artes cênicas. A
grande variedade de imagens sagradas é plasmada por meio de desenhos, pinturas, esculturas,
mosaicos e vitrais. Desempenha um papel muito importante também a arquitetura e decoração
dos templos, a música cerimonial e também as danças e todo o gestual característicos de
algumas formas de culto. Percebe-se então o grande valor da chamada arte religiosa que, nos
termos colocados por Jung, constitui a forma de expressão fundamental da experiência
97
religiosa mediada pela codificação tradicional. Forma de expressão que é a única capaz de
abarcar o processo vivo do inconsciente.
Por processo vivo ou vivência deve-se entender uma experiência de conteúdos
psíquicos carregada de valor emocional, de numinosidade, o que falta à teoria científica, mas
que constitui o fundamento do dogma. Este, de fato, deve sua origem às vivências originárias
imediatas, obtidas por meio da revelação, intuição ou fantasia ativa, e “pela colaboração
ininterrupta de muitos espíritos e de muitos séculos” (JUNG, 1980, p. 45). Essa é uma das
razões pelas quais Jung designa “certos dogmas como ‘experiências’” (loc. cit.), apesar deles
constituírem justamente um expediente defensivo contra essas experiências. A origem do
dogma está na vivência imediata de imagens arquetípicas em sonhos, visões ou estados de
transe que ocorreram num passado remoto, além disso, como essas imagens são derivadas de
arquétipos, ou seja, de fatores psíquicos herdados, elas podem ressurgir espontaneamente
através de símbolos em qualquer indivíduo no presente. Por isso o dogma pode ser
considerado também de forma simbólica, “como um sonho que reflete a atividade espontânea
e autônoma da psique objetiva, isto é, do inconsciente” (loc. cit.). Ele oferece ao indivíduo
religioso, àquele que observa os fatores inconscientes numinosos de sua psique, um meio de
proteção contra os riscos da experiência imediata, mas não a impedindo e sim permitindo que
ela ocorra de forma segura, orientada pelos símbolos veiculados pela tradição.
Deve-se considerar aqui a distinção estabelecida por Jung entre símbolos
“individuais” e “coletivos” (idem, 1997, p. 214) ou, em outros termos, entre “símbolos
naturais” e “símbolos culturais” (ibid., p. 253). Ambos provêm de arquétipos, isto é, são
imagens arquetípicas carregada de numinosidade, o que às vezes torna a classificação de
determinado símbolo a um tipo ou outro, no âmbito das produções inconscientes de um
indivíduo em particular, uma tarefa muito difícil. Os símbolos individuais ou naturais são
aqueles “derivados diretamente dos conteúdos inconscientes e apresentam por isso, grande
número de variantes de motivos individuais” (loc. cit.), embora o motivo arquetípico
permaneça obviamente inalterável. Já os símbolos coletivos ou culturais correspondem aos
símbolos individuais ou naturais que “passaram por muitas transformações e por alguns
processos maiores ou menores de aprimoramento” (loc. cit.). Os símbolos nunca são
inventados, mas “revelados” através de uma atitude intuitiva, dessa forma, os símbolos
culturais surgiram através de revelações, isto é, de imagens arquetípicas expressas em sonhos
e fantasias criadoras, as quais “foram objeto de desenvolvimento e diferenciação cuidadosos e
conscientes durante séculos” (ibid., p. 214). Conforme Jung, os símbolos culturais
98
constituem-se “principalmente de imagens e forma religiosas” (JUNG, 1997, p. 214) e são
eles que fundamentam todas as religiões em todos os tempos e lugares.
Por conseguinte, se as “figuras simbólicas de uma religião constituem sempre a
expressão da atitude moral e espiritual específica que lhes são inerentes” (idem, 1980, p. 62),
deve-se considerar essa atitude consciente não como individual, mas coletiva, e a expressão
simbólica como complementar a ela. De fato, as manifestações do inconsciente coletivo
possuem uma função compensatória em relação à situação consciente unilateral. No caso dos
símbolos naturais, essa compensação se refere a uma atitude consciente individual, já os
símbolos culturais, por serem produtos de uma coletividade, compensam a atitude unilateral
da consciência de toda uma época, da mesma forma como foi visto no caso dos símbolos que
surgem nas obras de arte. Assim, pode-se afirmar que “toda religião que se enraíza na história
de um povo é uma manifestação de sua psicologia” (ibid., p. 79), seus símbolos são capazes
de compensar não apenas a unilateralidade de uma consciência individual, mas da consciência
da época, os “mitos de caráter religioso” funcionam “como uma espécie de terapia espiritual
para os sofrimentos e temores da humanidade, como a fome, a guerra, a velhice e a morte”
(idem, 1997, p. 240)
3.2.4. O simbolismo religioso e o processo de individuação
A função dos símbolos, sejam eles naturais ou culturais, é a de compensar a
unilateralidade da atitude da consciência, oferecendo a esta os conteúdos e as funções
psíquicas excluídas por sua disposição excludente e também soluções irracionais para
conflitos insolúveis à racionalidade consciente. Os complexos psíquicos que formam o
inconsciente, devido à sua autonomia, possuem uma espécie de vida própria, como um eu ou
uma consciência particulares, por isso eles tendem a se manifestar de forma personificada à
consciência do indivíduo. De um modo geral, o inconsciente do homem é personificado por
uma figura feminina denominada por Jung de anima, e o inconsciente da mulher é
personificado por uma figura masculina denominada animus.
A anima corresponde à imago da mulher, representa a “imagem coletiva da mulher
no inconsciente do homem” (idem, 1981a, p. 180), isto é, o arquétipo feminino presente na
psique masculina. A imagem da anima, portanto, corresponde aos sedimentos das
experiências típicas dos homens com todas as mulheres de tempos passados, os quais deram
origem ao arquétipo correspondente. Historicamente, consoante Jung, o “ideal tipicamente
99
masculino a ser alcançado” se dá “pela repressão da sensibilidade. Sentir é uma virtude
especificamente feminina” e o homem, portanto, “reprime todos os traços femininos que
possui” (JUNG, 1993, p. 47). O aspecto predominante na formação da imagem da mulher, da
anima é, conseqüentemente, a função do sentimento. O ideal masculino certamente se repete
na vida psíquica de cada homem singular, o que o faz reprimir ou excluir os traços e
tendências femininos, relacionados aos sentimentos, os quais se acumulam no inconsciente,
sendo a imago da mulher “o receptáculo de tais pretensões” (idem, 1981a, p. 179). Por isso, a
anima constitui a “personificação das funções inferiores que relacionam o homem com o
inconsciente coletivo. A totalidade do inconsciente coletivo apresenta-se ao homem sob forma
feminina” (idem, 1997, p. 102). A ligação da consciência com o inconsciente, portanto, ocorre
através de sua função menos desenvolvida, de sua função inferior, “apenas através de nossa
fraqueza e incapacidade estamos ligados ao inconsciente” (ibid., p. 110). Por essa razão as
pessoas em geral apresentam grande resistência em relação à conscientização dos aspectos
inconscientes de suas personalidade, que se manifestam inicialmente como produtos de uma
função inferior reprimida, mesclados a conteúdos incompatíveis do inconsciente pessoal.
O animus, por outro lado, corresponde à imago do homem, é a imagem coletiva do
homem no inconsciente da mulher, o arquétipo masculino presente na psique feminina.
Possui, portanto, todas as características do complexo de representações arquetípico,
apresentando-se como a personificação do inconsciente coletivo na consciência da mulher. A
diferença está em que o ideal feminino, segundo Jung, é justamente o desenvolvimento do
aspecto sentimental da psique, assim a função oposta, isto é, o pensamento, é que determina a
origem e as características do animus. Dessa forma, tanto o animus quanto a anima surgem a
princípio como função inferior preenchida de conteúdos do inconsciente pessoal, o que
determina na consciência uma atitude de “animosidade” (idem, 1993, p. 47), emoções
desagradáveis em relação a eles. Mas isso ocorre apenas na situação psíquica na qual a
consciência insiste em uma atitude repressiva, o que o obriga a anima ou o animus a se
manifestarem de forma oposta e contraditória, às vezes subjugando completamente as
intenções do eu. Já uma atitude consciente de expectativa em relação a esses complexos
arquetípicos permite que atuem de forma compensatória, permitindo o desenvolvimento de
uma personalidade mais completa, “podemos convertê-los em pontes que nos conduzem ao
inconsciente”, utilizando-os “intencionalmente como funções” (idem, 1981a, p. 200).
Enquanto arquétipos, a anima e o animus não são compostos apenas por conteúdos reprimidos
do inconsciente pessoal, representam os sedimentos de experiências ancestrais e, portanto, a
100
possibilidade de formulação de conteúdos superiores à capacidade da consciência individual.
Por isso, a partir do momento em que são utilizados como funções de relação com o
inconsciente coletivo, podem se manifestar de forma positiva, “como fonte de iluminação,
como mensageiros (...) e como mistagogos” (JUNG, 1980, p. 29, nota 38).
No âmbito da religião as figuras do animus e da anima são personificados e
projetados em entidades divinas ou semi-divinas, como demônios, ninfas e semelhantes,
constituindo símbolos culturais adequados que protegem os indivíduos contra a experiência
imediata dessas imagens arquetípicas. Na medida em que representam o inconsciente como
um todo, constituem o aspecto inconsciente da personalidade complementar à consciência.
Dessa forma, deve-se considerar que “a personalidade consciente constitui uma parte de um
todo, como um círculo menor contido em outro, maior” (ibid., p. 39). A personalidade
humana como um todo, é composta, por um lado pela psique consciente e, por outro, pela
psique inconsciente. Uma vez que o eu representa o centro da personalidade consciente, deve-
se considerá-lo, por conseguinte, como “subordinado ou contido num ‘Si-mesmo’ (Selbst)
superior, que constitui o centro da personalidade psíquica total, ilimitada e indefinível”
(loc.cit.). O Si-mesmo, portanto, designa a totalidade psíquica do ser humano, a qual abarca
seus aspectos conscientes e inconscientes e que “não pode ser delimitada nem suscetível de
formulação, só podendo ser expressa por meio de símbolos” (ibid., p. 81). Constitui um
arquétipo do inconsciente coletivo que assume “uma posição central correspondente à
importância de seu conteúdo e numinosidade” (idem, 1991, p. 443).
Assim, a finalidade última do mecanismo compensatório do inconsciente em relação
à consciência consiste no desenvolvimento de uma personalidade mais ampla, mais completa,
o que é designado por Jung como processo ou “caminho da individuação” (idem, 1981a, p.
163). Desta forma, através da integração na consciência das contribuições compensatórias
originadas nos diversos arquétipos do inconsciente coletivo, forma-se a totalidade do Si-
mesmo, alcança-se uma individualidade, entendida como a “nossa singularidade mais íntima,
última e incomparável” (loc. cit.). A individuação, portanto, constitui a síntese peculiar das
qualidades coletivas do ser humano, a melhor e mais completa que cada indivíduo é capaz,
conforme suas condições internas e externas, é uma combinação única de fatores universais.
Através dela ocorre a realização do Si-mesmo, arquétipo que pré-existe ao indivíduo e, ao
mesmo tempo, é realizado por ele, o que se dá pela síntese pessoal de uma potência coletiva.
A realização do Si-mesmo deve ser entendida como um processo sem fim, e nunca
como algo acabado, como um estágio final a ser alcançado, uma vez que ultrapassa
101
amplamente a capacidade da compreensão consciente a totalidade indeterminada da psique
inconsciente. É totalmente impossível para o eu abarcar, mesmo que de forma aproximada, o
Si-mesmo em sua plenitude, “por mais que ampliemos nosso campo de consciência sempre
haverá uma quantidade indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence
à totalidade do Si-mesmo” (JUNG, 1981a, p. 167). Assim, o fator fundamental no processo de
individuação não é a quantidade ou a natureza dos conteúdos inconscientes que são integrados
à consciência, mas sua atitude de abertura em relação a esses conteúdos, a disposição intuitiva
ou simbólica que possibilita a atuação dos símbolos através da função transcendente. O que
importa não é a perfeição, impossível de ser alcançada, pois nenhuma consciência é capaz de
desenvolver igualmente todas as funções psíquicas ou de conhecer todos os conteúdos
inconscientes. Os arquétipos, em si mesmos, são incognoscíveis, são formas sem conteúdo
que só podem tornar-se conscientes na forma de imagens, ou seja, já preenchidos por um
conteúdo pessoal. O que é possível é o desenvolvimento de uma personalidade plena,
completa, pela expectativa consciente em relação ao inconsciente, através da qual o Si-mesmo
pode ser realizado.
De um modo geral, o arquétipo do Si-mesmo se manifesta a partir do significado
simbólico no número quatro, isto é, da quaternidade, sendo que o “símbolo assume também a
forma um círculo dividido em quatro partes, ou que contém quatro partes principais” (idem,
1980, p. 51). Por derivarem de um arquétipo central, os símbolos quaternários possuem um
caráter numinoso acentuado, e estão presentes, assim como qualquer imagem arquetípica, nas
manifestações do inconsciente desde os tempos primitivos. Dessa forma, o símbolo da
quadratura do círculo está presente já nas rodas solares rodesianas do período paleolítico, nas
imagens egípcias de Hórus e seus quatro filhos, na tetraktys pitagórica, no quatérnio cristão
dos evangelistas representados pelas figuras do anjo, da águia, do touro e do leão, nas quatro
fases na obra alquímica e muitas outras representações semelhantes (ibid., p. 56). A
quadratura do círculo, portanto, “é um dos numerosos temas arquetípicos que estão à base da
configuração de nossos sonhos e fantasias”, sendo “um dos mais importantes do ponto de
vista funcional” (idem, 2002, p. 386).
A partir do modelo de certas figuras presentes principalmente no budismo tibetano,
Jung denomina esses diversos símbolos de mandalas, palavra sânscrita que significa círculo
(ibid., p. 351), designando dessa forma as “imagens circulares que são desenhadas, pintadas,
configuradas plasticamente ou dançadas” (ibid., p. 385), seja num contexto individual,
artístico ou religioso. Neste último caso, o mandala representa em geral o Deus que se revela
102
na criação dos quatro elementos, pois o número quatro “simboliza as partes, as qualidades e
os aspectos do Uno” (JUNG, 1980, p. 56). Assim, a quadratura do círculo, no âmbito das
confissões religiosas, está sempre relacionada com a concepção de uma divindade que criou o
mundo, que se manifestou em sua criação. Fica evidente, portanto, o papel fundamental
desempenhado pelos símbolos culturais religiosos no processo de individuação do conjunto
de indivíduos que têm para com eles uma disposição equivalente. Os símbolos referentes aos
diversos arquétipos do inconsciente coletivo, seja o animus, a anima, o Si-mesmo ou outros,
constituem meios seguros para integrar seus conteúdos à consciência, evitando possíveis
riscos da experiência imediata dos símbolos naturais.
No tratamento com seus pacientes, Jung afirma ter-se deparado com a produção
espontânea, em sonhos e fantasias, de inúmeros mandalas. Num contexto confessional, esses
símbolos representariam a divindade criadora, geralmente localizada no centro do mandala.
Entretanto, esses indivíduos raramente tinham esse tipo de interpretação, para eles a
quadratura do círculo “os simboliza a eles mesmos, ou melhor, a algo dentro deles mesmos
(JUNG, 1980, p. 80). Portanto, o mandala moderno representa uma situação psicológica
específica, na qual não há divindade e tampouco submissão a ela, em tais símbolos há a
sugestão de que “o lugar da divindade acha-se ocupado pela totalidade do homem” (loc.cit.).
Isso se deve ao estágio moderno de desenvolvimento psicológico caracterizado
principalmente pelo aprimoramento do conhecimento consciente. Essa ascensão da
consciência só se tornou possível com a dissolução do estado psíquico de participação
mística, com a retirada das projeções inconscientes num processo contínuo de “‘des-
animação’ do mundo” (ibid., p. 82). Dessa forma, num estágio mais avançado de
desenvolvimento da consciência, torna-se muitas vezes “impossível continuar sustentando
qualquer mitologia no sentido de uma existência não psicológica” (ibid., p. 84). São retiradas
as projeções das imagens arquetípicas em entidades divinas ou demoníacas, o que é o
pressuposto básico da formação de símbolos culturais religiosos; o que era projetado em uma
realidade exterior, visível ou invisível, retorna ao interior da psique humana.
Tal situação geralmente leva o homem moderno, segundo Jung, à concepção errônea
de que seu eu consciente abarca a totalidade da psique, o que induz inevitavelmente a uma
hybris da consciência”, a uma “absurda suposição de que o intelecto, mera parte e função da
psique, basta para compreender a totalidade da alma” (ibid., p. 83) . Por outro lado, esta
concepção não anula a existência dos fatores psíquicos numinosos: os arquétipos, o que é
evidenciado pelo próprio surgimento espontâneo de símbolos correspondentes em tais
103
indivíduos, mesmo que não personificados e projetados em divindades externas. Conforme
Jung, os fatores psíquicos dominantes, os poderes, domínios e potências sempre existiram,
não precisamos criá-los, por isso, “‘Deus’ não é criado, mas escolhido” (JUNG, 1980, p. 86).
Essa escolha se refere à concepção ou imagem que se formula de Deus, dos fatores numinosos
da psique, a partir de uma observação cuidadosa destes, seja num contexto confessional ou
não. Para aqueles que possuem religio em relação aos símbolos veiculados por uma
determinada confissão, um caminho seguro de individuação está garantido, já aqueles para os
quais essas projeções não são mais possíveis resta o conhecimento, em termos de psicologia
propriamente dita, acerca da estrutura psíquica e como ela atua. Para a compreensão dos fatos
religiosos, no sentido formulado por Jung, apresenta-se o caminho da psicologia, mais
especificamente o da psicologia analítica, o que constitui certamente uma tarefa difícil, na
medida em que se deve “reencontrar a ponte que liga a concepção do dogma com a
experiência imediata dos arquétipos psicológicos, mas o estudo dos símbolos naturais do
inconsciente nos oferece os materiais necessários” (ibid., p. 88). Esse estudo, enquanto uma
abordagem científica, corresponde a uma operação do intelecto, do pensamento consciente e
racional, mas uma vez que parte de uma perspectiva finalista, resguardar a autonomia das
experiências simbólicas, não as reduzindo como outras teorias científicas, a causas
racionalmente determináveis.
Entretanto, mesmo levando em conta os símbolos naturais, essa forma de
conhecimento psicológico é limitada, pois o simbolismo inconsciente ultrapassa a capacidade
de compreensão consciente, podem ser descritos em suas manifestações, mas nunca,
completamente decifrados. Apesar de, em última análise, todos os acontecimentos psíquicos
se fundarem nos arquétipos (loc. cit.), eles permanecem essencialmente uma “realidade
desconhecida”, uma “grandeza não-reconhecível” (ibid., p. 86), só é possível ter uma
experiência imediata deles. Qualquer tentativa de extrair conhecimento implica em sair desta
experiência, reduzí-la a conceitos e interpretações abstratas, as quais buscam um sentido para
algo que, como foi dito acerca da arte, “simplesmente é e não ‘significa’” (idem, 1985, p. 66).
A religião, portanto, é uma questão de “experiência”, e a “experiência religiosa é algo de
absoluto” (idem, 1980, p. 105), não pode ser reduzida a um sentido formulado pela
consciência e nem considerada como algo ilusório, pois, conforme a psicologia analítica,
corresponde a experiência de fatores psíquicos indiscutivelmente reais, os quais podem gerar
desde uma neurose desagradável até as criações mais elevadas do espírito humano. A
compreensão psicológica dos fatos religiosos, a busca de um sentido racional para eles,
104
corresponde, portanto, a uma saída da experiência religiosa em si mesma. Por outro lado, uma
vez que a compreensão proposta pela psicologia analítica parte de um exame atento das
experiências arquetípicas de culturas e épocas as mais diversas, consideradas em sua
autonomia de sentido e em seu aspecto finalista, sempre relacionadas às experiências
imediatas dos indivíduos singulares, ela acaba atuando, assim, como o dogma e outros
símbolos culturais, como um meio protetor que garante um caminho seguro para a integração
dos símbolos naturais.
4 CONCLUSÃO
Segundo as considerações elaboradas por Jung ao longo de sua obra, religião e arte se
aproximam de forma evidente pelo fato de ambas se fundamentarem no mesmo fator
psíquico, constituído por complexos de representações de natureza arquetípica. Em
consonância com essa afirmação, não somente as confissões de fé, como também a criação e a
fruição artísticas devem ser consideradas como atitudes propriamente religiosas, no sentido
proposto pela psicologia analítica, pois pressupõem religio, isto é, uma consideração
cuidadosa das experiências das imagens arquetípicas e pistis ou lealdade frente a tais
experiências para nelas se fixar e dar-lhes prosseguimento (JUNG, 1980, p. 42). De fato,
muitas vezes se afirma que o artista possui uma “fúria divina” (idem, 1985, p. 67) ou
“centelha divina” (ibid., p. 90), uma vez que está sempre aberto à vivência dessas imagens
primordiais. Essas visões ou experiências originárias que promanam do inconsciente se
manifestam à consciência através de símbolos individuais ou naturais, os quais,
posteriormente, se desenvolvem em símbolos coletivos ou culturais. Nas diversas confissões
religiosas há um desenvolvimento e transformação conscientes e coletivos durante séculos,
que geram os dogmas e outras imagens sagradas. Já em relação às obras de arte, o artista,
partindo de uma imagem arquetípica, “modifica a sua forma até que ela possa ser
compreendida por seus contemporâneos” (ibid., p. 71), ela fala “por milhares e dezenas de
milhares de seres humanos, proclamando de antemão as metamorfoses da consciência de sua
época” (ibid., p. 87). Em ambos os casos, portanto, originam-se símbolos coletivos ou
culturais que compensam a atitude unilateral típica de toda uma época.
Dessa forma, segundo Jung, além dos sonhos, visões e dos conteúdos das neuroses e
psicoses, são os mitos e as obras provenientes das diversas linguagens artísticas que
representam, no âmbito cultural, a capacidade simbolizadora da psique. Os enunciados das
religiões de todos os tempos e lugares e de todas as obras de arte simbólicas ou visionárias
constituem “expressões do processo mitológico interior”, entendendo-se a mitologia em geral
como a “dramatização de uma série de imagens que formulam a vida dos arquétipos”
2
. Por
outro lado, o desenvolvimento consciente pelo qual passam os símbolos naturais no âmbito da
religião e da arte não deve ser confundido com uma assimilação ou racionalização
voluntárias, as quais dissolveriam completamente seu aspecto propriamente simbólico. A
visão originária corresponde à experiência imediata de uma imagem arquetípica que, devido à
2
Entrevista de C. G. JUNG a Richard I. EVANS. In: HULL, R. F. C. e McGUIRE, W. (Coord.) C. G. Jung
Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 309.
106
acentuada numinosidade e ambigüidade que lhe são inerentes, podem inclusive representar
um risco para a psique consciente unilateral; ela “é carente de palavra e imagem, tal como
uma visão num ‘espelho que não reflete’ (...) é um pressentimento poderoso que quer
expressar-se, um turbilhão que se apodera de tudo o que se lhe oferece, imprimindo-lhe uma
forma visível” (JUNG, 1985, p. 85). Dessa forma a imagem primordial se apodera dos meios
de expressão, dos conteúdos e funções que a consciência lhe disponibiliza, o que representa a
fantasia ativa, a atitude de expectação em relação aos produtos do inconsciente. Devido à
autonomia destes, a relação estabelecida com a consciência é essencialmente a de percepção,
e não de apercepção. A tendência do inconsciente é de compensar a atitude unilateral da
consciência, o que se dá através da função transcendente do símbolo, estabelecendo uma
solução, uma união entre as oposições conscientes ou entre consciente e inconsciente. Em
ambos os casos, cabe ao inconsciente estabelecer, através dos símbolos, a conciliação, pois
somente em seu âmbito irracional e indiferenciado, matriz de toda a vida psíquica, é possível
transcender as oposições conscientemente estabelecidas.
Por conseguinte, os símbolos culturais veiculados pela religião e pela arte são
expressões legítimas do modo de funcionamento específico da psique inconsciente. Por
constituírem uma transcendência coletiva, abarcam os conteúdos conscientes e inconscientes
de toda uma época, o que não descaracteriza o mecanismo simbólico subjacente, estruturado
pelos arquétipos. De fato, estes têm a sua origem, como foi visto, no processo de formação de
símbolos, marcado pelo estabelecimento de analogias concretas, as quais permitem uma
transformação da energia psíquica em novos conteúdos. Assim, uma vez que os arquétipos
herdados coletivamente são ativados, eles repetem o processo simbólico que lhes deu origem,
caracterizando o pensamento analógico do inconsciente. Esse fato torna-se mais evidente ao
se considerar que, filogeneticamente, as funções da sensação e da intuição constituem a matriz
das funções do pensamento e do sentimento, sendo aquelas essencialmente irracionais e estas
racionais. Constituindo os arquétipos uma herança ancestral da psique humana, seu modo de
funcionamento se baseia principalmente nas funções sensitiva e intuitiva, originando
conteúdos de caráter concreto e irracional, e nunca conteúdos abstratos e racionais típicos da
atividade consciente. Esse concretismo caracteriza a participação mística, pela qual a
realidade interior dos arquétipos é projetada no exterior. No caso da arte a projeção se dá nos
aspectos concretos da obras produzidas, nas suas formas, cores, materiais, sons e ritmos; na
religião, o concretismo das narrativas mitológicas, das imagens sagradas e do dogma também
107
assume uma forma personificada, o que gera uma “projeção antropomórfica” (JUNG, 1980, p.
84).
A linguagem simbólica, portanto, constitui uma forma de expressão muito diferente
em relação à linguagem abstrata ou lógica, ela se apresenta principalmente “por meio de
comparações e semelhanças”, e não através de “abstrações” (idem, 1984a, p. 253); o modo
abstrativo de funcionamento da consciência se contrapõe ao modo concretista de
funcionamento do inconsciente. Por isso os símbolos “não são diretamente acessíveis à
compreensão” (idem, 1997, p. 192), no sentido de uma compreensão consciente, racional e
abstrata, e nem podem ser inventados, isto é, “produzidos pela intenção consciente e por
escolha da vontade” (ibid., p. 194), eles apenas surgem espontaneamente, são percebidos pela
consciência como produtos já prontos e completos. A atividade consciente, portanto, é
incapaz de produzir símbolos, mas apenas signos ou sinais, isto é, representações
convencionais que indicam um conteúdo já conhecido, são produtos psíquicos que não
contêm nada mais do que neles foi colocado pela própria consciência, o que caracteriza sua
atitude tipicamente diretiva e aperceptiva. Já o símbolo é a formulação de um fator
inconsciente e irracional, sendo, por conseguinte, relativamente desconhecido para a
consciência. Assim, o símbolo permanece enquanto constituir a melhor expressão de algo
desconhecido ou, em outros termos, de algo apenas pressentido ou intuído por uma atitude
simbólica por parte da consciência que o considera. Uma vez que esta elabora uma
interpretação do símbolo, formulando para ele um sentido racional e unívoco, dissolve-se sua
riqueza de significado e ele torna-se então um símbolo morto (idem, 1991, 444).
O desconhecimento ou a incompreensão da consciência em relação ao símbolo leva à
concepção errônea de que ele, à semelhança do signo, possui um sentido racional, porém
oculto, dissimulado ou deformado. Mas o símbolo “significa o que realmente diz, pois não há
razão plausível para supor que ele seja outra coisa do que é” (idem, 1997, p. 196). É nesse
sentido que se afirma que o símbolo é, e não significa, deve ser considerada a “imagem
simbólica” (ibid., p. 190) em si, seu sentido manifesto, isto é, sua forma e mensagem próprias.
A linguagem dos símbolos, portanto, não disfarça, dissimula ou aponta para algo além de si
mesma, ela apenas “significa” de forma diferente que a linguagem dos signos, ela constitui
uma “linguagem plástica e clara em contrapartida a expressões pálidas e puramente
racionais”, uma “linguagem das imagens” (ibid., p. 207). Como é cofigurada principalmente a
partir das funções da percepção e intuição que predominavam na mentalidade ancestral,
corresponde a “um modo de expressão mais primitivo, mais colorido, mais figurativo e
108
concretista” (JUNG, 1997, p. 209). A estrutura arquetípica do inconsciente, dessa forma, se
expressa através de “imagens e emoções”, e não por intermédio do “discurso racional, que é
demasiadamente superficial e sem cor” (ibid., p. 212). Os arquétipos são fatores psíquicos que
correspondem a um modo de pensamento não dirigido, analógico, os quais “não podem ser
expressos através de conceitos intelectuais” (ibid., p. 249).
Os signos possuem um sentido unívoco determinado pela consciência, já os símbolos
apresentam uma riqueza de significado que não pode ser conscientemente conhecida,
apercebida, mas apenas intuída, percebida de forma imediata. O símbolo constitui uma
representação concreta, manifesta, que significa por si mesma, não apontando para um sentido
predeterminado. Por outro lado, justamente por não constituir um sinal convencionado, o
símbolo possui uma grande variedade de significados possíveis, ele não é unívoco e sim
plurívoco, pois “exprime uma diversidade de aspectos, representações e emoções; (...)
simboliza muitas coisas” (ibid., p. 250). O mesmo símbolo, inclusive, pode apresentar um par
de sentidos opostos entre si, como no caso da “stella matutina (estrela da manhã) ou Lúcifer
(o que carrega a luz), que é um conhecido símbolo de Cristo e, ao mesmo tempo, o demônio”
(ibid., p. 228). Essa polissemia do símbolo é coerente com o fato dos arquétipos derivarem de
um pensamento que estabelece semelhanças e analogias e de constituírem um núcleo de
inúmeras possibilidades de sentido, já que correspondem à herança psicológica de
experiências típicas, que aglomeram sentidos diversos e às vezes opostos, embora sempre
análogos entre si e sempre referentes ao mesmo fato. Um exemplo dessa característica está no
arquétipo materno, que concentra em si todos os aspectos do atributo maternal vivenciados
historicamente, que podem ir da sabedoria elevada, da bondade, proteção e cuidado extremos
até a destruição, sedução, obscuridade e morte aterradoras (idem, 2002, p. 92). Por isso pode-
se considerar que o símbolo significa “apenas aquilo que é e nada mais”, ao mesmo tempo em
que “aponta para várias direções e deve significar algo que é inconsciente ou que, ao menos,
não é consciente em todos os seus aspectos” (idem, 1997, p. 249).
Outra distinção formulada por Jung consiste na afirmação de que “os símbolos são
realidades vivas, existenciais e não simples sinais de algo já conhecido” (ibid., p. 250), o que
é válido, certamente, apenas enquanto o símbolo permanece vivo, não sendo transformado em
signo estático. Como foi visto, a “vida” dos símbolos, ou seu aspecto vivencial, se refere a sua
carga energética ou emocional própria, a sua numinosidade. Os arquétipos se apresentam
através dos símbolos como imagens e emoções simultaneamente, são realidades vivas
justamente por possuírem energia própria; assim, ao se retirar das “images arquetípicas sua
109
carga emocional específica, a vida foge delas e elas se tornam meras palavras” (JUNG, 1997,
p. 257). Com “palavras” Jung se refere aqui aos conceitos ou termos intelectuais destituídos
de qualquer sentido emocional ou numinosidade, pois a palavra em si pode ser utilizada de
forma bem diversa, por exemplo, na linguagem poética, que explora justamente seu sentido
originário ou arquetípico, suas infinitas possibilidades de significação simbólica. Mas para
uma disposição racional e diretiva, a palavra perde seu valor originário e se torna “mera
abstração, uma moeda circulante no comércio intelectual” (loc. cit.).
Conforme Jung, o estado do espírito de nossa época, a nossa condição psíquica
predominante caracteriza-se por essa hipertrofia do intelecto, por um modo de funcionamento
acentuadamente dirigido das funções psicológicas. Tal atitude não é capaz, por si mesma, de
eliminar a produção de símbolos pelo inconsciente, mas a ausência culturalmente valorizada e
incentivada de uma disposição simbólica correspondente não permite que eles sejam vividos
plenamente, apenas que se reflita sobre eles, tornando-os símbolos mortos ou sinais de algo já
conhecido. Para essa consciência que pretende abarcar toda a realidade externa e interna
através de pré-conceitos não é possível, portanto, uma atitude religiosa, tanto no sentido
confessional quanto psicológico, uma vez que ela desconsidera, ao invés de considerar
atentamente, os fatores numinosos da psique. Essa desconsideração não elimina, entretanto, a
realidade psicológica desses fatores, o que caracteriza uma verdadeira ilusão, no sentido de
uma consciência muito desenvolvida, mas iludida quanto a sua pretensão de constituir a
totalidade da psique.
Essa consciência que se desenvolveu de forma acentuada, eliminando a observação e
a projeção das imagens arquetípicas no âmbito religioso tradicional, fica então completamente
exposta à experiência imediata dos arquétipos, sem os meios defensivos ou guias espirituais
elaborados ao longo dos séculos. Esse estado de desequilíbrio psíquico, reforçado pela
ausência de meios adequados pelos quais integrar as contribuições complementares dos
símbolos do inconsciente, gera uma propensão à neurose e todo tipo de distúrbio patológico
característica, conforme Jung, da condição psíquica atual. Ele afirma, por outro lado, que não
sendo mais possível uma atitude religiosa, resta o caminho da compreensão psicológica dos
fatores numinosos da psique, uma interpretação científica não redutiva ou finalista dos
símbolos naturais do inconsciente.
Mas é possível levantar a questão da arte como uma forma de se vivenciar os
símbolos num âmbito cultural e seguro, portanto, mesmo para aqueles que não podem mais
sustentar projeções em um contexto confessional ou dogmático. Conforme as próprias
110
observações de Jung não somente o artista tem a experiência imediata das imagens
arquetípicas e a capacidade de projetá-las e elaborá-las de forma concreta em uma obra de
arte. O espectador ou o fruidor dessa obra, na medida em que a considerar simbolicamente,
não como sinal de algo previamente conhecido, mas em si mesma, em sua riqueza de
possibilidades significativas, pode então ter acesso à mesma vivência originária que o artista
criador. Assim é possível estabelecer uma atitude religiosa em relação à criação artística ou a
partir de seus resultados, o que seria amplamente favorecido por uma valorização cultural da
arte como um todo, por um acesso irrestrito dos indivíduos aos conhecimentos, meios e
técnicas necessários tanto à criação quanto à apreciação artísticas.
Infelizmente essa condição não é observada na sociedade atual e muitas vezes a arte
é motivada mais por interesses externos do que pela própria expressão simbólica de conteúdos
do inconsciente, assumindo um traço marcante de inautenticidade. Isso a aproxima mais do
modo psicológico do que do modo visionário de criação, ou seja, daquele que segue intenções
conscientemente determinadas, pautando-se por leis de estilo, padrões de gosto popular ou
erudito, conteúdos preestabelecidos de acordo com situações específicas e outras condições
restritivas. Por outro lado, mesmo nessa situação, deve-se considerar o fato de que um modo
criativo aparentemente psicológico guarde a possibilidade de uma experiência propriamente
simbólica, pois o inconsciente opera também a partir dos elementos fornecidos pela
consciência, inclusive os padrões de estilo racionalmente estabelecidos e apreendidos pelo
artista. É conhecido o processo segundo o qual um artista após um longo período de
assimilação consciente de uma série de conhecimentos, materiais, leis e técnicas artísticas
somente alcança uma expressividade realmente autêntica após “esquecer” todos esses
pressupostos racionalmente determinados, não no sentido de deixar de seguí-los em sua
criação, o que caracterizaria uma ruptura de estilo, mas de utilizá-los intuitivamente, a partir
de uma atitude simbólica. As rupturas ocorrem quando os padrões artísticos estabelecidos
devido a uma mudança e desenvolvimento da consciência individual do artista ou da época
como um todo não são mais adequados para expressar os conteúdos do inconsciente, mas
dessa forma acabam apenas sendo criados novos padrões a serem novamente rompidos ou
posteriormente retomados.
Entrementes, é interessante observar como mesmo a compreensão psicológica
proposta por Jung não elimina em absoluto a necessidade da vivência simbólica propriamente
dita, a qual deve preceder qualquer tentativa de formulação intelectual. A linguagem
simbólica do inconsciente sempre se vale dos mesmos mecanismos de expressão: do
111
pensamento analógico, das projeções em realidades concretas e das personificações, mesmo
fora dos padrões estabelecidos pela tradição artística ou religiosa da qual o indivíduo faz
parte. Esse fato é evidenciado pelo principal método adotado por Jung “cuja finalidade é
tornar conscientes os conteúdos inconscientes” (JUNG, 1980, p. 79, nota 28), designado
tecnicamente como imaginação ativa e que, como o próprio termo indica, está estreitamente
vinculado à fantasia ativa, sendo aquele mais usado no contexto psicoterapêutico. Na
imaginação ativa também se trata de uma atitude de abertura da consciência em relação aos
símbolos de origem inconsciente, a partir dessa técnica surgem “imagens dotadas de vida
própria e os acontecimentos simbólicos se desenvolvem de acordo com uma lógica que lhes é
peculiar (...) se a imaginação consciente não interferir” (idem, 1997, p. 176). Os conteúdos
simbólicos acionados possuem uma forte tendência para a visualização, são imagens
carregadas de emotividade que suscitam nos indivíduos que as vivenciam uma acentuada
necessidade de objetivação concreta. Talvez, se esses indivíduos estivessem psicologicamente
inseridos num âmbito artístico ou confessional, já encontrassem tais conteúdos objetivados
em símbolos culturais, mas no procesos analítico eles começam então a concretizar suas
visões, de acordo com suas habilidades específicas, na forma de pinturas, desenhos,
modelagens e até mesmo pela dança ou tecedura, podendo também serem submetidas a uma
descrição através da escrita. Esse fato mostra como, independentemente das interpretações
posteriores que a consciência poderá lhes propor, inclusive a completa destituição de sentido,
as manifestações do inconsciente sempre devem “ser expressas não racionalmente, mas por
meio de símbolos” (ibid., p. 178). Nesse caso trata-se de uma objetivação em forma plástica
das imagens arquetípicas, processo que, conforme Jung, já constitui um excelente meio
defensivo contra as invasões e possui um notável efeito positivo e curativo, pois restabelece o
equilíbrio psíquico ao proporcionar a devida expressão aos conteúdos do inconsciente.
Por conseguinte, esses “desenhos do inconsciente expressam a verdadeira condição
psicológica do indivíduo” (ibid., p. 185), permitindo aos símbolos atuarem segundo a função
transcendente, o que estabelece novos caminhos de desenvolvimento e harmonização da
psique. O mesmo processo, consoante Jung, se dá no “uso de imagens sagradas, de ídolos, de
ícones. Elas lançam sua mágica em nosso sistema, fazendo também que nos objetivemos
nelas. Se nos entregarmos a um ícone ele falará conosco” (loc. cit.). Esse “diálogo” refere-se à
ressonância que se estabelece entre as imagens arquetípicas de tais símbolos culturalmente
desenvolvidos e as imagens internas do indivíduo, também arquetípicas. Portanto, não
importa se os conteúdos são considerados pela consciência como imagens ou dogmas
112
as.
religiosos, como obras de arte ou mesmo como fatores psicológicos, desde que esta forneça os
meios necessários para que a linguagem simbólica atue conforme sua especificidade, sem
reprimí-la ou transformá-la em linguagem abstrata ou sígnica. Conforme Jung, o simples ato
de desenhar, “e as fantasias e visões que isso ocasionava era uma coisa muito valiosa. Agora,
batemos fotografias, e isso não preenche, em absoluto, a mesma necessidade.”
3
Não se
discute atualmente o grande valor artístico da fotografia, assim, deve-se entender a afirmação
de Jung como a substituição de uma forma de expressão da realidade interior do indivíduo em
um meio exterior extremamente plástico, como o desenho, por uma reprodução mecânica que
não permite a configuração de imagens simbólic
Além das formas tradicionais de arte e religião presentes nas diferentes épocas e
culturas, Jung identifica outros conjuntos de símbolos culturais que veiculam imagens
arquetípicas, são eles as “séries de imagens alquímicas”, o “sistema dos chacras tântricos”, o
“sistema nervoso místico da ioga chinesa”, a “série de imagens tarô”, as combinações do “I
Ching” (JUNG, 2002, p. 47), a astrologia, que constitui uma projeção do inconsciente coletivo
no céu estrelado, entre outras. Não importa se através de um sistema de símbolos coletivos ou
individuais, a consciência humana precisa estabelecer esse contato com a realidade
inconsciente da psique, a fim de se colocar num caminho de individuação, de realização de
uma personalidade completa, plena, o que não deve ser confundido, como foi visto, com
perfeição. O homem precisa, então, vivenciar os seus símbolos, o seu “processo mitológico
interior”, a sua “verdade mitológica”
4
, que é bem diversa de uma verdade racional ou
científica, embora não necessariamente incompatível com ela. Conforme Jung, o “homem
sempre viveu no mito, e pensamos que somos capazes de nascer hoje e de viver sem o mito,
sem história. Isso é uma doença, absolutamente anormal, porque o homem não nasce todos os
dias”
5
. A função da formação de símbolos constitui o patrimônio espiritual herdado na psique
de cada indivíduo e, ao contrário do que possa aparentar, não caracteriza um mecanismo
estático ou de repetição, mas um processo dinâmico, capaz de realizar as mais diversas
transformações de conteúdos psíquicos, configurar soluções criativas para as oposições que
represam o desenvolvimento e de proporcionar um verdadeiro sentido emocional para as
diversas situações da existência humana, a qual, em sua totalidade, na perspectiva junguiana,
constitui um fenômeno irracional.
3
Entrevista de C. G. JUNG a Georges DUPLAIN. In: HULL, R. F. C. e McGUIRE, W. (Coord.) C. G. Jung
Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 364.
4
Entrevista de C. G. JUNG a Richard I. EVANS. In: HULL, R. F. C. e McGUIRE, W. (Coord.) C. G. Jung
Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 309.
5
Ibid., p. 310.
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