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Ora, voltando no tempo em 60 anos, veremos um espetáculo bastante
interessante ao passear por entre os anúncios publicitários aqui analisados e pelo quadro de
campos de referência composto a partir dessas observações, que me possibilitaram criar esse
esquema onde estão organizados os anúncios em indicações de possibilidades de vidas a partir
de um núcleo familiar, num total de sete campos, e que o leitor pode encontrar na folha dupla
adiante inserida ao fim da introdução. Veremos que não só através de cada anúncio e de seu
grupo, mas também da composição desse mosaico, o marketing e a publicidade se envolveram
(e se envolvem) continuadamente em um trabalho que visa mostrar apenas uma das faces de
Janus
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para o público consumidor.
A categorização dos anúncios aqui proposta, em campos significativos do
tipo “vida eletrodoméstica”, “vida para os outros”, “vida de saúde”, “vida de modelo”, “vida
de trabalhadora”, “vida para si” e “vida de família”, vem caracterizar o discurso publicitário
como um processo contínuo de construção de representações do social através da linguagem
visual, referindo, sintetizando ou mesmo antecipando tendências culturais e comportamentais
vulgarizadas através da veiculação das peças publicitárias em diferentes mídias, como visões
de um mundo perfeitamente ideologizado e compartimentalizado e que vai se dissolver em
campos mais amplos de maneira mais abrangente, porém, contraditoriamente, pulverizando-
os em hábitos cotidianos, homeopaticamente, como apropriação social das peças publicitárias
e como fator de composição do imaginário cultural.
O discurso publicitário atual vai muito além da representação da realidade,
evidenciando o jogo das representações reais e imaginárias, produzindo e reproduzindo os
temas mais importantes do mundo contemporâneo, que são as representações sobre a própria
sociedade e seus grupos de formação (GASTALDO, 2001; CANEVACCI, 2001). Neste
sentido, minha hipótese é que não é a mulher como um ser biológico, dotado de uma anatomia
e socialmente construído ao longo dos séculos que é representada nesses anúncios, mas um
ícone/imagem que vende bem qualquer produto no mercado, sem contradição, seja ele local
ou global. A publicidade contribui, e muito, para a construção de múltiplos significados,
colaborando para delimitar a hegemonia de determinadas visões de mundo — mas não se
pode negar que, ao encorajar, nos indivíduos, a leitura das diferenças nos sinais que ela
comunica, a publicidade vai destruir os sinais anteriormente construídos por ela própria, numa
liquefação cultural constante de símbolos, ícones e mitos.
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Estamos novamente frente à manipulação do merchandising, muito utilizado, de várias maneiras, no mercado.
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Na iconografia de Roma, o Jano de dois rostos vigiava entradas e saídas, o passado e o futuro, os viajantes que partiam e
voltavam (TRESIDDER, 2003, p. 59). Era tido, também, como o porteiro do céu, que abria o ano, como divindade guardiã
das portas, geralmente apresentado com duas cabeças, pois as portas se voltam para dois lados (BULFINCH, 2004, p. 17).