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Maria Lucia Sartori Machado
A hermenêutica filosófica como chave para superação da insuficiência
do ordenamento jurídico frente aos novos direitos.
UNISAL
Lorena
2009
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Maria Lucia Sartori Machado
A hermenêutica filosófica como chave para superação da insuficiência
do ordenamento jurídico frente aos novos direitos.
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre
em Direito à Comissão Julgadora do
Centro Universitário Salesiano de São
Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Lino
Rampazzo.
UNISAL
Lorena
2009
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Maria Lucia Sartori Machado
A hermenêutica filosófica como chave para superação da insuficiência
do ordenamento jurídico frente aos novos direitos.
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do grau de Mestre
em Direito do curso de Mestrado em
Direito do Centro Universitário
Salesiano de São Paulo.
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 18/09/2009, pela
comissão julgadora:
_________________________________________
Prof. Dr. Lino Rampazzo/UNISAL
_________________________________________
Prof. Dr. Ivan Martins Motta/Universidade São Judas Tadeu
_________________________________________
Profa. Dra. Keziah Alessandra Vianna Silva Pinto/UNISAL
UNISAL
Lorena
2009
Dedicatória
O resultado desta pesquisa é conseqüência do
que fizeram de mim minha família, meus amigos,
meus colegas e meus professores. A eles, é meu
dever de reconhecimento dedicar este trabalho.
Dedico, de maneira especial, por constituírem a
causa deste trabalho, ao meu marido Moacyr,
amigo inestimável de todas as horas; às minhas
filhas Luciana e Sílvia, por terem despertado em
mim o ímpeto de olhar sempre para a frente e
confiar no futuro; e cheia de emoção, à minha
neta Mila, um sopro de magia que revela, a cada
momento, o mundo quase fictício do eterno
renascer.
Agradecimentos
Agradeço pela graça de ter tanto a agradecer:
Aos alunos, professores e coordenadora do Curso de
Direito do Centro Universitário de Barra Mansa;
Aos Professores do Mestrado em Direito do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo, Unidade de
Lorena;
Aos funcionários do Mestrado;
Aos funcionários da Biblioteca do UNISAL/Lorena,
muito especial e carinhosamente a Ana Correia, que
superando os limites do profissionalismo, não mediu
esforços para disponibilizar boa parte das obras
consultadas;
Às Profªs. Drªs. Maria Aparecida Alkimim e Keziah
Alessandra Vianna Silva Pinto, componentes da
banca de qualificação, pelos aconselhamentos;
Vindo do recôndito da alma, o agradecimento ao meu
orientador, Prof. Dr, Lino Rampazzo, o porto seguro
do saber, onde me refugiei nos momentos de
tormenta.
“Nem neste mundo nem fora dele, nada é possível pensar que
possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma
coisa: uma boa vontade. A argúcia de espírito, a capacidade
de julgar ou como queiram chamar os talentos do espírito, ou
ainda a coragem valorosa, a decisão, a firmeza de propósitos
como qualidades do temperamento são, sem dúvida, em certos
aspectos, qualidades boas e desejáveis;mas também podem se
tornar extremamente más e perniciosas se a vontade que deve
usar desses dons naturais, e cuja constituição particular, por isso,
se chama caráter, não for boa.” (KANT, 2008).
Resumo
Cuida o presente trabalho de pesquisar as possibilidades de se solucionarem
juridicamente as conseqüências produzidas pelas transformações sociais, com propostas
de uma hermenêutica aberta, razoavelmente distante do dogmatismo legal e
razoavelmente distante da extrema liberdade dos juízes. Neste passo a pesquisa
conduzirá, necessariamente, à teoria do ordenamento jurídico e ao mecanismo
desencadeador dos novos direitos, colocando-os frente a frente. Deste cotejo ressaltará a
insuficiência do direito para atender a diversas questões sociais. Em decorrência,
necessário será analisar a ordem do direito e sua eficácia na realidade social, discutindo
os princípios básicos que a orientam (completude, coerência e unidade). Identificar, na
bibliografia utilizada, as possibilidades teóricas para a redução da distância entre as
exigências jurídicas da sociedade e aquilo que o direito efetivamente pode proporcionar.
Apresentar a concepção da sociedade como sistema autopoiético onde se insere o
direito, também como sistema autopoiético e sua conexão com a hermenêutica
filosófica, de fundamento fenomenológico. Dentre as ciências, pode ter se tornado um
equívoco sustentar a idéia de um ordenamento jurídico completo, coerente e unitário.
No século XXI deve-se conceber um direito novo capaz de dar conta dos novos direitos
que surgem em razão da crescente complexidade das relações sociais. Esta concepção
implica, em linhas gerais, numa flexibilização do direito, a ser promovida por quem o
opera. Impõe-se a eles, os operadores do direito, afastar os obstáculos à plena realização
da função social do direito, rompendo com o dogmatismo legal ainda predominante. Um
direito moderno poderá contribuir definitivamente na construção de uma sociedade
inclusiva. Neste cenário a hermenêutica jurídica desponta como importante instrumento
a, de forma paulatina, desvitalizar os antigos paradigmas que devem ser substituídos. É
necessário flexibilizar o direito em nome da efetividade e eficácia dos novos direitos
fundamentais, buscando um ordenamento jurídico aberto pela hermenêutica filosófica.
Palavras- chave: mudança social, novos direitos, ordenamento jurídico, autopoiése e
hermenêutica filosófica.
Abstract
The purpose of the present study is to research the possibilities of juridically resolving
the consequences occurred by social transformations, utilizing an open hermeneutic,
reasonably distant from the legal dogmatism and reasonably distant from the extreme
freedom of the judges. Tracking this path, this research will, necessarily, lead to the
theory of the juridical order and to the mechanisms that initiates new rights, putting
them face to face. The insufficiency of the Law to take care of many social questions
will stand out from this comparison. Therefore, it will become necessary to analyze the
juridical order and its efficiency at the social reality, discussing its basic principles
(completeness, coherence and unity). Identify, within the utilized bibliography, the
theoretical possibilities to reduce the distance between the juridical requirements from
the society and what justice can effectively provide. Present the concept of the society
as an autopoietic system where justice is inserted, also as an autopoietic system and its
connection with the philosophical hermeneutic. Among the sciences, supporting the idea
of a juridical order complete, cohere and unitary might have become a mistake. In the
21
st
century, a new right should be conceived. One that takes care of the new rights that
appear due to the crescent complexity of the social relations. This concept implies, in
general terms, in a flexibilization of the right, to be promoted by who operates it. It is
required, from the right operators, to move away the obstacles to the full realization of
the social function of the right breaking apart the current predominant legal dogmatism.
A modern right will contribute definitely to the construction of an inclusive society. In
this scenario, the juridical hermeneutic becomes an important tool to weaken old
paradigms that must be replaced. In the name of the effectiveness and efficiency of the
new fundamental rights, it becomes necessary to flexibilize the right, looking for a
juridical order, open by the philosophical hermeneutic.
Keywords: social change, new rights, juridical order, autopoiesis and philosophical
hermeneutic.
Sumário
Introdução............................................................................................
10
1 Transformações sociais: sua dinâmica, suas teorias e sua
importância para as transformações na ordem jurídica e
para a ordem social mesma.............................................................
14
1.1 Relação social: fator de transformação........................................................... 15
1.2 Teorias de transformação............................................................................... 18
1.2.1 Teorias Antigas de Mudança Social.................................................... 19
1.2.2 Conceitos de Mudança Social na Idade Média................................... 20
1.2.3 Concepções Modernas........................................................................ 21
1.2.4 Teorias Contemporâneas.................................................................... 23
1.3 As mudanças sociais e sua conexão com o direito......................................... 33
1.4 A sociedade como sistema autopoiético........................................................ 37
2 O ordenamento jurídico e os dogmas da completude,
coerência e unidade...........................................................................
45
2.1 A necessidade de se conceber um ordenamento jurídico............................... 46
2.2 Noção geral e conceitual do ordenamento jurídico........................................ 47
2.3 A sistematização do ordenamento jurídico.................................................... 50
2.3.1 A unidade do ordenamento jurídico..................................................... 52
2.3.2 A coerência do ordenamento jurídico................................................... 55
2.3.3 A completude do ordenamento jurídico................................................ 59
2.4 O problema da visão positivista do direito..................................................... 64
3 Surgimento dos novos direitos ou implicação novos
direitos, direitos humanos, direitos fundamentais e
gerações de direito..............................................................................
69
3.1 Natureza, conceito e fontes dos novos direitos................................................71
3.2 Os novos direitos na pós-modernidade........................................................... 75
3.2.1 Gerações ou dimensões de direito......................................................... 80
3.2.2 Quadro resumo das gerações ou dimensões de direito......................... 87
3.3 Fundamentação dos novos direitos................................................................. 89
3.4 O problema da concretização dos novos direitos............................................ 91
4 A hermenêutica como instrumento de realização do direito
justo, completo e coerente.................................................................
95
4.1 Aspectos gerais acerca da hermenêutica......................................................... 95
4.2 Hermenêutica ou hermenêuticas?.................................................................... 99
4.3 A hermenêutica tradicional............................................................................ 104
4.3.1 Métodos de interpretação..................................................................... 104
4.3.2 Escolas tradicionais de interpretação e sua crítica............................... 105
4.3.2.1 Escola da Exegese.................................................................... 107
4.3.2.2 Escola Histórico-Evolutiva...................................................... 108
4.3.2.3 Escola da Livre Investigação Científica do Direito.................. 110
4.3.2.4 Escola do Direito Livre........................................................... 113
4.4 Ordenamento jurídico e hermenêutica tradicional: direito insuficiente........ 118
4.5 Ordenamento jurídico e hermenêutica renovada: fluidez e amplitude do
Direito..............................................................................................................122
5 Abandonar a visão tradicional do direito sem abandonar o
direito tradicional: olhar o direito tradicional com olhos
filosóficos...........................................................................................
135
5.1 A visão sistêmica do direito proposta por Niklas Luhmann......................... 138
5.1.1 Esboço da teoria dos sistemas sociais.................................................. 138
5.1.2 O direito como um dos sistemas sociais.............................................. 140
5.1.3 A metáfora dos doze camelos: fator de operabilidade do direito........ 146
5.2 Interpretar filosoficamante e as possíveis relações entre o direito
sistêmico e a hermenêutica filosófica............................................................ 156
5.3 Possibilidades da concretização de valores humanos através da
hermenêucia filosófica................................................................................... 165
Conclusão.............................................................................................
171
Referências...........................................................................................
178
10
Introdução
Ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus; ubi homo ibi jus. Reflexões sobre o
brocardo atribuído a Ulpiano, levam, certamente, à compreensão de que o direito é tão
antigo quanto o homem. Nota-se, além disso que a relação homem/sociedade/direito é
necessária e incindível. Impensável, portanto, conhecer a natureza de um sem conhecer
a natureza dos outros dois. A cada estudo sobre o direito corresponderá, ainda que de
forma subjacente, estudos acerca do homem mesmo, sobretudo do homem social e
político, integrado à sociedade. Este é o arcabouço do trabalho acadêmico que ora se
apresenta. Ocorre que esta afirmação, cotejada com o brocardo acima, poderia referir-se
a qualquer pesquisa sobre o homem, sobre a sociedade ou sobre o direito, então, um
ponto específico no arcabouço, sobre o qual se dirige o foco deste estudo. Trata-se da
constatação de que nem sempre o direito alcança os objetivos a que se propõe e da
conseqüente preocupação com a concretização da justiça. Observado deste prisma, o
tema permanece indefinido. Feche-se um pouco mais o foco e se delineará com traços
definidos o tema sobre o qual se debruça, dentro do arcabouço geral da implicação
homem/sociedade/direito: a hermenêutica jurídica como um dos possíveis instrumentos
de concretização dos valores humanos consagrados pelo direito, dogmaticamente
insuficiente para realizá-los. O tema é recorrente mas o olhar que se lança sobre a
problemática é novo, ou pelo menos tem ocupado espaço relevante nas mais recentes
doutrinas. É inequívoca a inspiração buscada nas teorias sistêmicas de Maturana e
Varela, Luhmman e Capra, e por isto a apresentação metafórica do trabalho como
segue.
Trabalhar com sistemas e como sistema proporciona que os capítulos se conectem
uns com os outros como se fosse, cada um deles, camadas transparentes e sobrepostas,
11
produzindo a visão holográfica das dificuldades e possibilidades da concretização da
justiça através do direito.
Cada capítulo, ou camada, isolado fornece noções generalizadas, não obstante,
completas sobre o tema descrito; a combinação dos capítulos, no entanto, abre a
percepção multidimensional da temática, que pode ser resumida como se põe no
parágrafo abaixo.
Partindo-se da indagação a respeito das razões de ampliação do direito e do
surgimento de novos direitos, chegar-se-á a que as transformações sociais são a causa
eficiente de transformações no direito. Ocorre que a despeito das tentativas de
atualização e adequação, o direito permanece anacrônico e insuficiente, pois o
ordenamento jurídico é, por natureza, uma construção lenta. Na busca de meios para se
diminuírem os efeitos do referido anacronismo, despontam várias propostas, e dentre
elas, a hermenêutica.
Na primeira camada, e outra não poderia ser a primeira, pois a tessitura social é o
pano de fundo do direito, tratar-se-á das transformações sociais, sob o enfoque de várias
teorias aduzidas por sociólogos e sintetizadas por Samuel Koenig, analisando a relação
social como fator de transformação; as mudanças sociais em conexão com o direito e a
concepção da sociedade como sistema autopoiético. Com isto está pronta a base para as
camadas ou capítulos subseqüentes.
Embora circunstancial, o capítulo 2 é imprescindível para a composição
holográfica que se tem em vista. Evidentemente o tema deste capítulo: o ordenamento
jurídico e seus pressupostos, é conhecimento obrigatório de todo aquele que se dedica a
examinar o direito em quaisquer perspectivas. Até mesmo para rejeitá-lo por ser
12
carregado de postulados juspositivistas. Assim, permeando a visão panorâmica da
dinâmica social, como um sopro de ordem, além dos outros controladores sociais
(religião, moral e trato social), destaca-se o direito, organizado, teorizado e
sistematizado como ordenamento jurídico, cujos pressupostos são objeto de
detalhamento no presente estudo. Encerra-se o capítulo com uma reflexão sobre os
problemas do positivismo jurídico, quando se podem antever duas dimensões
sobrepostas, revelando a perspectiva em que se vinculam, indissoluvelmente, o fato e a
norma.
A próxima camada a se sobrepor às duas já postas mostrará como as
transformações sociais produzem o direito. Em nome da didática convencionou-se
agrupar em gerações ou dimensões os direitos resultantes das conquistas e
transformações sociais, mas este recurso não deve induzir à idéia de sucessividade dos
direitos, mas à de complementaridade deles, de tal forma que os direitos de primeira
geração suportam os de gerações subseqüentes e se completam com eles. A
preocupação deste capítulo foi analisar a natureza, o conceito, as fontes e a
fundamentação dos novos direitos, bem como o problema de sua concretização no
âmbito social. Encerrado este capítulo, já se tem a dimensão axiológica, não do
direito, mas do presente trabalho. A etapa seguinte é sobrepor a camada constituída das
reflexões em torno dos instrumentos destinados à concretização dos direitos, bem como
à superação das suas deficiências.
Aplicar o direito e concretizar a justiça requer a prévia interpretação. Neste
sentido, o quarto capítulo, ou quarta camada, abordará a questão da hermenêutica
jurídica em suas diversas perspectivas, examinando-as e criticando-as segundo
13
diferentes aportes doutrinários, até que se chegue às concepções mais adequadas e
capazes de conferir fluidez e amplitude ao direito da sociedade atual.
Finalmente, no quinto capítulo, retoma-se a concepção da sociedade e do direito
como sistemas intercomunicáveis através, dentre outros instrumentos, da hermenêutica
fenomenológica, comprovando a possibilidade de se efetivarem novos direitos, mesmo
que não se rompa com o direito velho. O desafio requer que se trabalhe com uma
medida razoável de abstração, suficiente apenas para haurir as hipóteses aplicáveis a
realidades pré-existentes, portanto, concretas. É no capítulo 5 que se completará a
imagem holográfica, segundo a qual, se mostrará que a hermenêutica jurídica adequada
e a observação sistêmica autopoiética sobre a sociedade e o direito, podem representar
um dos caminhos para superar a insuficiência do ordenamento jurídico e atribuir-lhe
flexibilidade, também na medida certa, que não desborde para a anomia.
Todo o estudo se desenvolve mediante revisão bibliográfica, pela utilização desde
argumentos clássicos a contemporâneos e pós-modernos, de onde se extraem idéias
relevantes, coletadas com rigor científico. Pretende-se contribuir, desta forma, com
elementos que aumentem as filigranas de possibilidades de realização da justiça e de
valores que dignifiquem o homem.
14
1. Transformações sociais: sua dinâmica, suas teorias e sua
importância para as transformações na ordem jurídica e para a
ordem social mesma
Neste capítulo serão discutidos aspectos sociológicos, máxime as transformações
sociais, com o intuito de preparar o cenário onde se desenrolará a abordagem central do
presente trabalho. O direito e sua eficácia social jamais poderiam ser compreendidos em
outro ambiente que não o palco das relações humanas. Da mesma forma, não se
compreende o direito se não se compreenderem, antes, as transformações pelas quais a
sociedade passa, exigindo a adequação de qualquer sistema normativo, mormente o
direito. Serão contempladas teorias que explicam e justificam a dinâmica das relações
sociais, como fatores de transformação, desde a Idade Média até os dias atuais e que
constituem relevante suporte teórico para o propósito que se tem em foco. Além disto, o
capítulo deixará estabelecida uma tessitura social, cuja teoria, concebida por Niklas
Luhman (1983), representa importante aporte para a determinação de novas exigências
hermenêuticas.
Falar de mudança ou transformação social requer, antes de mais nada, uma
noção exata do que seja relação social. É óbvio, uma vez que as transformações ocorrem
a partir das relações entre pessoas. Assim, a modalidade, a qualidade e a complexidade
das relações determinam o caminho da sociedade. Neste passo, pode-se vislumbrar que
transformação social significa tanto evolução quanto involução, mormente quando esta
consideração é feita sob um ponto de vista ético e axiológico (KOENIG, 1988, p. 331).
15
1.1 Relação social: fator de transformação
Reale (1999, p. 101-110), ao analisar o direito como fato, traz a lume as
teorias sociologistas que, a despeito do criticável reducionismo com que o
conceituam e entendem, contribuem valiosamente para uma compreensão
científica do direito. Afirmam os sociologistas, principalmente Erlich (1987), que
a compreensão das normas de conduta tem importância fundamental na
compreensão do direito. Refere-se, o autor, não à norma abstrata posta pelo
legislador, mas à norma como expressão das relações sociais. Em outras palavras,
“não haveria como imaginar uma ciência de normas sem a conceber, prévia e
principalmente, como ciência do conteúdo das normas”. (REALE, 1999, p. 102).
Está-se percorrendo um caminho tortuoso em que se tem de identificar, das
relações sociais, as que também são jurídicas, para que se possa justificar o foco
desta pesquisa voltado para as mudanças sociais.
A relação social de onde decorrem as transformações sociais é a unidade
básica a partir da qual será possível construir outros conceitos sócio-jurídicos,
como a interação, a cooperação, a competição e o conflito. Ocorre relação social
sempre que os homens, visando realizar fins, os mais variados, entram em contato
uns com os outros. É a variedade dos vínculos e fins que unem os homens que
determina a teia de relações observáveis. Por exemplo, citam-se as relações
religiosas, econômicas, afetivas, estéticas, utilitárias que determinam a conduta
humana. Infere-se que uma relação social apresenta como elemento essencial para
sua caracterização a intersubjetividade, numa dimensão embrionária e a finalidade
numa dimensão imediatamente mais complexa. Ousa-se afirmar que o momento
intersubjetivo estaria ainda nos domínios do instinto, do irracional e que o
16
primeiro vislumbre de racionalidade estaria situado no fim a que o homem
pretende realizar (REALE, 2002, p. 214).
Como ser teleológico que é o homem organiza a sociedade no intuito de
torná-la cada vez mais adequada para a realização dos seus fins. A esse respeito,
um dos aspectos mais marcantes desta organização, depois da política, é o
trabalho.
A fundamentação da divisão de trabalho de Durkeim é adequada para
explicar as relações sociais. Por não ser autárquico, o homem procura se
relacionar para suprir as necessidades que ele o pode satisfazer por si mesmo.
Os seres humanos, insuficientes como indivíduos e auto-centrados por natureza,
na busca da satisfação de suas necessidades, em primeiro lugar, em seguida de
seus caprichos e ambições, cada vez maiores, desenvolvem uma verdadeira rede
de relações, tão mais complexas quanto maiores forem suas necessidades,
caprichos e ambições. Miguel Reale, explicando a teoria de Durkheim, escreve:
Os homens distribuem-se em campos múltiplos de ação. Cada
qual realiza uma tarefa, que pode estar ou não de acordo com
suas tendências naturais mas que ele deve realizar,
momentaneamente ou definitivamente, para poder subsistir. A
atividade particular de cada homem deve harmonizar-se com as
atividades de todos os outros, daí resultando o estabelecimento de
uma divisão geral do trabalho [...]. O que constitui a sociedade e
lhe dá estrutura é a divisão do trabalho. (1998, p. 442).
Citando Duguit, infere que a sociedade será o mais avançada quanto
mais filigranada for a divisão do trabalho e mais integradas as diferentes
atividades.
17
Quanto mais se multiplicam e se diversificam as atividades dos
indivíduos, mais acentuado é o índice de progresso e de
civilização, desde que se completem e harmonizam as energias
suscitadas por interesses individuais e grupalistas, numa
solidariedade orgânica. (REALE, 1998, p. 442).
Dadas as rias vertentes como se apresenta a dinâmica social, várias são
também as teorias que a sistematizam. Koenig (1988, p. 313) faz uma
apresentação sucinta das circunstâncias em que ocorrem as transformações sociais
sob a ótica de diversas doutrinas, como se verá em seguida.
De início o citado autor esclarece que para se falar em mudança social
deve-se ter em vista os padrões de vida de um povo: se tais padrões sofrem
alterações, sim, se fala em mudança social. Isto equivale a dizer que meros
modismos passageiros, por mais que alterem comportamentos de determinados
grupos, nem sempre conduzem a mudanças profundas, capazes de atingir
estruturas da sociedade.
São vários os fatores responsáveis pelas transformações sociais e seu
ritmo. A própria condição inicial, simples ou evoluída combinando com a força
interna ou externa que incide sobre a sociedade humana, num determinado
momento, determina a mudança. Infere-se que toda sociedade é passível de
transformação mais ou menos profunda e mais ou menos extensa, conforme as
circunstâncias sociais no instante da incidência do agente ou fator transformador.
Os primeiros sociólogos consideravam as culturas dos povos
primitivos como totalmente estáticas. Essa opinião foi
abandonada com o aparecimento de estudos científicos sobre as
culturas pré-letradas. Os antropólogos afirmam que as culturas
primitivas sofreram e estão sofrendo modificações, embora num
18
ritmo tão lento que deixa a impressão de serem estacionárias.
Aqueles que se dedicam ao estudo dos povos contemporâneos
têm observado mudanças ocorridas em seus instrumentos,
técnicas e modo de vida. Da mesma forma, os arqueólogos
puderam descobrir modificações nas civilizações pré-históricas,
enquanto os historiadores registram alterações na civilizações
históricas. (KOENIG, 1988, p. 326).
É perfeitamente visível como se mostram diferentes as velocidades com
que as transformações se processam. Basta volver um olhar para um passado não
muito distante, a metade do século XX, por exemplo, e perceber que naquela
época, os recursos tecnológicos de hoje, pareceriam temas de ficção científica.
Um passado mais remoto dá conta de que o homem sequer poderia supor a
fragmentação do átomo. Com menos recursos, mais lentas se mostram as
conquistas científicas e sociais.
1.2 Teorias de Transformação
Com base nessa constatação e para efeitos didáticos, Koenig agrupou as
diversas teorias, denominando-as de antigas, da idade média, moderna e
contemporânea.
Prima facie parece não interessar muito ao escopo do presente trabalho
abordar o conteúdo das teorias antigas e medievas, por estarem definitivamente
refutadas e inertes. Ocorre que sua própria formulação e posterior rejeição
demonstram a ocorrência de uma transformação social. Por esta razão, pequenos
comentários sobre as teorias trazidas por Koenig, na obra em apreço serão
aduzidos, com a finalidade apenas de ilustração
19
1.2.1 Teorias Antigas de Mudança Social
a) A mais antiga das teorias tem a idéia de deterioração como ponto
central. Segundo esta teoria o homem viveu, originalmente, em perfeito estado de
felicidade, mudando aos poucos para um estado de degradação sempre constante.
Essa era a noção predominante no Oriente Antigo. Os escritos de Lao-Tse (600 a.
C.) e os poemas épicos da Índia, Pérsia e Suméria demonstram que assim pensava
o homem sobre sua origem e sua sucessiva transformação. Koenig justifica: “é
compreensível que seja essa a noção da história do mundo em épocas remotas,
pois a deterioração é um fenômeno facilmente observável em todas as formas de
vida. O conceito baseia-se no raciocínio pela analogia”. (1988, p. 327)
b) Simultaneamente, uma concepção menos comum que a primeira, refere-
se à mudança social verificada em ciclos. Diz a teoria que a história se repete e
que, após o acontecer de vários estágios, a sociedade humana retorna ao estágio
inicial, dando início a um novo ciclo. Alguns dos primeiros escritores indianos
defendiam essa doutrina que ainda hoje orienta o budismo. Segundo J. B. Bury
(apud KOENIG, 1988), também os estóicos abraçaram tal teoria.
c) Mais uma teoria, também proveniente de tempos recuados
1
funda-se na
idéia de ascensão, trazida ao conhecimento atual por Newel de Ray Sims:
Conforme essa teoria, de relativamente pouca aceitação, a
mudança social ocorreu numa direção ascendente. O homem
continuou a avançar, a partir de uma condição muito primitiva,
1
Por volta do Séc. VIII a.C., pensada inicialmente por Hesíodo em “Os Trabalhos e os Dias” onde relata
a deterioração da humanidade, imposta por Zeus, porque os homens mudam. Assim, o resultado da
mudança era sempre pernicioso.
20
até alcançar um estágio no período então existente.
Considerava-se, entretanto, que seu progresso teminava no
presente e era o mais alto estágio de desenvolvimento, além do
qual não se poderia esperar nenhum progresso.
(apud
KOENIG, 1988, p. 327).
Tal teoria consiste na afirmação de que a sociedade humana saiu de um
estado primitivo e evoluiu até o presente, ponto máximo do progresso, além do
qual não é possível avançar. O presente é o marco máximo do desenvolvimento.
Era no que acreditavam Hesíodo, Epicuro e Lucrécio (De Rerum Natura)
2
, a
julgar pelos seus escritos. (KOENIG, 1988, p. 327). A partir deste ponto máximo,
o único movimento possível para a humanidade é a decadência. Qualquer
movimento, mesmo que ascendente, conduziria à degradação.
Percebe-se que para os antigos a mudança estava envolta numa concepção
pessimista de degradação ou estagnação. Embora consignadas em importantes
escritos antigos, como Os Trabalhos e os Diase De Rerum Natura” a ciência
atual não atribui validade a essas doutrinas, assegurando-lhes apenas importância
histórica.
1.2.2 Conceitos de Mudança na Idade Média
Se a concepção social da antigüidade era pessimista, a medieval era
apocalíptica. Viviam, os homens ocidentais da Idade Média, à espera do fim do
mundo que certamente ocorreria porque Deus teria fixado um propósito para a
humanidade e, uma vez atingido, os homens retornariam à vida eterna, plena de
felicidades. O homem se via, então, impotente diante de seu próprio destino.
2
Lucrécio (98-55 a. C.) o poeta latino, na sua obra De Rerum Natura (Da Natureza das Coisa), revela
a concepção que Epicuro tem do mundo e expõe as leis de Demócrito a respeito do Universo.
21
Imaginava-se a sociedade estática, com valores estabelecidos
para sempre. O mundo fora criado por Deus para um objetivo
específico. A qualquer momento esse objetivo poderia ser
preenchido e o universo terminaria. Era uma doutrina de
extremo pessimismo e resignação; o único ponto claro é a
esperança do homem numa feliz vida futura. (KOENIG,1988, p.
328).
Ainda na lição de Koenig, foram os árabes que libertaram o ocidente da
corrupção, destacando-se a importante interferência do filósofo social muçulmano
Ibn Khaldun, cujas teorias sobre a sociedade são uma verdadeira antecipação das
teorias modernas. Para ele a humanidade se transforma, historicamente, de forma
natural e evolucionária. É esta a idéia central das modernas doutrinas das
transformações sociais, com algumas variações, mas não se afastando de
conceitos dinâmicos.
1.2.3 Concepções Modernas
A idéia central de mudança social no início da idade moderna era a de
progresso contínuo. As noções pessimistas foram substituídas pela certeza de que
o homem, vivendo em grupos, é capaz de progredir e atingir altos níveis de
desenvolvimento, num processo contínuo cumulativo. Vários intelectuais
adotaram essa visão otimista de mudança social e entre eles, Francis Bacon (séc.
XVII), Turgot e Condorcet (séc. XVIII), a preconizar que os avanços, graduais e
inevitáveis, ocorriam em todos os aspectos da vida social. (KOENIG, 1988, p.
329).
No conjunto de teorias modernas sobre transformações sociais que se
destacar a formulação de Comte, (KOENIG, 1988) sobre a qual desenvolveu-se o
22
entendimento dos primeiros sociólogos da Idade Moderna. Trata-se dos três
estágios por que passou a humanidade na construção do conhecimento do mundo.
O estágio teológico, em que a humanidade estava imersa no teocentrismo e em
crenças místicas no sobrenatural (este estágio estendeu-se até o início da época
moderna). O estágio metafísico, em que o homem substitui a crença nos poderes
sobrenaturais por abstrações, e o estágio positivo, quando o homem se volta para a
explicação empírica.
As teorias erigidas sobre a concepção comteana identificam a mudança
social com o progresso ao afirmarem que a sociedade se dirige, inevitavelmente,
para um estágio superior, de forma linear, vencendo naturalmente as etapas
anteriores, chegando a um estado de aperfeiçoamento cada vez mais profundo.
Muito mais projeções de aspirações que corolário de fatos comprovados,
esta modalidade de doutrina é rejeitada por sociólogos e antropólogos.
Nenhum sociólogo ou antropólogo aceita-a atualmente. A
mudança social é hoje considerada inevitável e contínua. Não é
identificada com o progresso. De fato, muitos sociólogos e
antropólogos contemporâneos não crêem que se possa falar de
progresso, no sentido de aperfeiçoamento absoluto,
particularmente no domínio do não-material. Afirmam que a
crença no progresso depende de uma avaliação subjetiva.
(KOENIG, 1988, p. 331).
Um pouco mais adiante poder-se-á notar que às teorias de progresso
linear, contrapõem-se as teorias cíclicas, relidas pelos sociólogos modernos.
23
1.2.4 Teorias Contemporâneas
a) Telese social Alguns sociólogos, como Lester F. Ward e Charles A.
Ellwood, insistem na idéia de progresso afirmando que ele pode ser alcançado
através de um planejamento social consciente, baseado no conhecimento
científico. Por esta razão, afirmam que “somente através da educação pode a
inteligência afirmar-se sobre as emoções para que se torne possível um
planejamento eficiente”. (Apud KOENIG, 1988, p. 331). Deixar que a evolução
siga um processo natural, significa um retardamento no progresso, superável pela
telese social.
3
b) Teorias deterministas São aquelas cuja afirmação central é a de que
a mudança social ocorre em razão de uma causa determinada, seja de ordem social
ou natural ou de ambas, muito mais importante que o pensamento ou a vontade
humana. Para Keller,
[...] a mudança é produzida por uma variação nos folkways, a qual
(sic) ocorre como resposta a uma necessidade, mas não é
planejada. [...] o esforço consciente e o planejamento reacional
têm poucas possibilidades de efetuar mudanças, a não ser que os
folkways e mores estejam preparados para ela (Apud KOENIG,
1988, p. 333).
Embora a maioria dos sociólogos contemporâneos aceite a teoria
determinista, não um consenso quanto a qual seja o fator determinante das
mudanças sociais: assim, a teoria determinista se desdobra em teorias
deterministas, que redundam na idéia de que as transformações ocorrem de forma
3
Este verbete significa “escolha consciente, pela sociedade, de seus objetivos e direção inteligente das
forças naturais e sociais para alcançá-los (planejamento social)”. DICIONÁRIO de Sociologia. Porto
Alegre: Globo, 1974, p. 341.
24
automática. Este automatismo coloca Spencer, Keller e Summer (corifeus da
idéia), numa posição de laissez-faire.
Para Spencer e outros cientistas sociais, a evolução da sociedade
assemelha-se à evolução darwinista. Em outras palavras, assim como a vida, a
organização da sociedade
Uma das teorias mais substanciais, e por isso, das mais polêmicas é a
teoria do determinismo econômico, baseada no convencimento de Karl Marx de
que o aspecto econômico é o principal fator de transformação social. também era
determinada por fatores naturais.
Segundo a teoria do determinismo econômico, toda a estrutura social se
constrói e se transforma em virtude principalmente de fatores econômicos, embora
se reconheça a importância também de fatores não-econômicos. É temerário,
evidentemente, sustentar que a história da humanidade esteja vinculada
essencialmente aos fatores econômicos.
A vulnerabilidade de tal teoria está no fato de não definir precisamente o
econômico, tanto que se lhe atribui às vezes, um conceito materialista de
tecnologia ou modo de produção e noutras, um conceito político ou social em que
o econômico é o interesse de classes.
Keller, parecendo contradizer o que afirmou na teoria automática
4
, atribui
as mudanças sociais
4
Teoria segundo a qual as mudanças sociais são automaticamente determinadas por fatores que não se
vinculam a um planejamento humano voltado, especificamente, para as mudanças.
25
[...] à insatisfação de alguns indivíduos, geralmente os
talentosos, com as técnicas ou artefatos; esses indivíduos criam
outros modos ‘melhores’ de produção, os quais, ao serem
aprovados como bons, são eventualmente (sic) adotados como
os modos de produzir do grupo e são incorporados aos mores e
folkways (Apud KOENIG, 1988, p. 336).
Não se pode, de forma nenhuma, por mais materialista que seja a visão
acerca das mudanças sociais, ignorar seus profundos efeitos nas searas não
materiais como a religião, a política, a educação, a família e o direito. Tais
transformações, contudo e inegavelmente se verificam com maior rapidez na
cultura material, como habitação, instrumentos, utensílios, transporte e
manufatura de bens.
Segundo William F. Ogburn, os setores materiais mudam primeiro,
ensejando um lapso de tempo entre a mudança e a adaptação de outros setores da
cultura às novas exigências da sociedade. O que se observa neste lapso de tempo é
um desajustamento que se traduz como um dos problemas do homem moderno.
Diz Ogburn:
... o problema de ajustamento na vida moderna é, sobretudo, o
de permitir aos aspectos não-materiais da cultura alcançar os
aspectos materiais. Em outras palavras, o problema enfrentado
pelo homem moderno é o de adaptar suas maneiras de pensar e
de comportar-se ao estado de tecnologia. (Apud KOENIG,
1988, p. 337).
Com essa tese, Ogburn ressalta a hipótese do atraso cultural e a explica
como um fato inevitável quando a mudança social é ensejada pelo avanço
tecnológico. É nesse contexto que se pode averiguar mais nitidamente o
anacronismo do direito.
26
Outra modalidade contemplada por Koenig, na obra citada, é o
determinismo ideológico oposto ao determinismo econômico por muitos cientistas
sociais como Eugène de Roberty, Gabriel Tarde e Max Weber, entre outros. Para
os ideologistas as mudanças sociais são motivadas por idéias e elementos não-
materiais da cultura.
Max Weber afirma que, dentre os fatores culturais mais importantes a
determinar as mudanças sociais, está a religião, até mesmo como atividade
desencadeadora das mudanças Tal teoria pode ser deduzida do exame que faz
sobre a ética protestante e o capitalismo (CATANI, 1984). Enquanto a concepção
cristã medieval pugnava pelo desprendimento total dos bens materiais como
caminho para a salvação, o que redunda numa desvalorização do trabalho, o
calvinismo combate a ostentação e pompa, recomendando que não se esbanjem os
bens materiais adquiridos com o trabalho, reinvestindo as riquezas conquistadas.
Para Calvino, a prosperidade econômica aproxima o homem de Deus. Esta idéia
constitui-se no gérmem do capitalismo.
Segundo a interpretação de Weber o objetivo do capitalismo é,
sempre e em todo lugar, aumentar a riqueza alcançada,
aumentar o capital. E esse processo de enriquecimento
constitui-se em uma indicação segura de que se está
‘predestinado”. E é justamente neste ponto que é possível
observar, de acordo com a concepção de Weber, as estreitas
relações existentes entre as aspirações religiosas do calvinismo
e as aspirações mundanas do capitalismo. (CATANI, 1984, p.
19).
Tradicionalmente o cristianismo condena o acúmulo de riquezas e prega que
o trabalho, mesmo por baixos salários é recomendável, com o que concorda a
ascese protestante, indo além, ao ponto de conceber o trabalho como “vocação” e
27
meio de atingir a graça. Ocorre que também a atividade do empresário foi
concebida como tal.
E foi a percepção desta situação, nova na época, que fez um
observador tão agudo quanto William Petty atribuir o poder
econômico da Holanda do século XVII ao fato de os numerosos
dissidentes daquele país (calvinistas e batistas) “serem em sua
maioria homens sóbrios, de opinião, e que têm o trabalho e a
industriosidade como um dever para com Deus.” (WEBER,
2009, p. 138).
Embora as mudanças sociais mais visíveis estejam nas conquistas e
ampliação de bens materiais, o fator desencadeador delas está nas posturas
religiosas adotadas pela humanidade, conforme demonstram a observação
weberiana. Weber observa que em países compostos por direções religiosas
mistas, os protestantes representam a grande maioria dos empresários, donos do
capital, “trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e
comercialmente KOENIG das modernas empresas [...]” (WEBER, 2009, p. 39).
c) Teoria pluralista
A teoria do determinismo ideológico é alvo de crítica fulminante
desenvolvida principalmente por Sorokin (Contemporary Sociological
Theories), que afirma: “... a mudança é causada pela interação de vários
setores de uma cultura, nenhum deles podendo ser considerado primordial.”
(apud, 1988, p. 339). Pelo seu conteúdo, a crítica faz surgir uma teoria que
contradiz não só o determinismo ideológico, mas também o econômico,
adotando uma posição pluralista dos fatores de mudança sociais.
28
d) Teorias das origens
Estabelece-se assim, uma polêmica infindável entre os pluralistas e os
deterministas sobre a origem das mudanças sociais. Muito importante para
definições no âmbito da sociologia, essa polêmica acrescenta pouco na seara que
se pretende perscrutar, que se estará indagando, prioritariamente, os efeitos e
não as origens das mudanças sociais. Contudo não se pode deixar de, pelo menos,
mencionar as teorias das origens formuladas pelos deterministas e pelos
pluralistas retro mencionados, como um fundamento sobre o qual se assente a
melhor compreensão dos efeitos, máxime no âmbito jurídico, das transformações
pelas quais a sociedade vem passando ao longo da história. Vale questionar se
origens e efeitos se confundem. É possível que os efeitos de uma mudança sejam
exatamente a origem de outras.
e) Teorias cíclicas
Ainda indagando sobre as origens das transformações sociais, Koenig
apresenta teorias, que, por repetirem o mesmo fundamento, agrupam-se sob a
denominação de teorias cíclicas, segundo as quais as mudanças são uma expressão
da idéia de que “a história se repete”. Sem base científica e de interesse apenas
histórico, a teoria do ciclo biológico, de profundo conteúdo racista e eugênico,
afirma que a raça é o mais importante determinante da cultura. Diz o grupo dos
biologistas que, em sendo superior a raça, alto será o estado de civilização. A
apologia à raça “nórdica” é indisfarçada nas obras tanto de franceses, como o
antropólogo e biólogo Vacher de Lapouge; alemães como o antropólogo Otto
Ammon; ingleses, como Stwart Chamberlain e até de americanos, como Madison
29
Grant e Lothrop Stoddard. Lapouge afirmou que “a civilização ocidental, um
produto da raça ariana, está condenada à extinção, devido à constante infiltração
de elementos estrangeiros inferiores e a seu crescente controle sobre ela”. (apud
KOENIG, 1988, p. 340).
Sem abandonar a idéia de nascimento, desenvolvimento e morte,
características dos ciclos, mas afastando-se do aspecto exclusivamente racial,
Spengler formulou uma das teorias dos ciclos culturais, quando, analisando
civilizações como o Antigo Egito, Grécia e Roma, concluía ser inevitável o
processo de nascimento, maturidade e morte. Afirma ele que a civilização do
Ocidente está caminhando para a inevitável desintegração, a exemplo do que
ocorreu com as civilizações antigas.
Cada cultura percorre fases de envelhecimento iguais às da vida
do indivíduo. Todas elas têm sua infância, sua adolescência, sua
virilidade e sua velhice. Na aurora das épocas românicas e
góticas, revelava-se uma alma jovem, tímida, prenhe de
pressentimentos. [...]. Quanto mais uma cultura se avizinhar do
meio-dia da sua vida, tanto mais viril, [...] seus característicos
delinear-se-ão com crescente nitidez. [...]. Por fim, na
decrepitude da incipiente (sic) civilização, extinguir-se-á o fogo
da alma. (SPENGLER, 1982, p. 97-98).
Um outro enfoque, dentre as abordagens trazidas por Koenig, na obra em
apreço, aparece com a proposição de Vilfredo Pareto, que manteve a visão cíclica
de vigor e declínio, agora voltada para a política. Pareto estabeleceu uma
dicotomia dos cidadãos, colocando uns como tradicionalistas (rendeiros) e outros
como empreendedores (especuladores). Segundo ele, os especuladores iniciam a
era de vigor político, tomando o poder pela força e estabelecendo uma aristocracia
forte. O vigor, contudo, vai aos poucos diminuindo e a elite não consegue mais
30
sustentar um governo enérgico, recorrendo a manipulações e embustes. O grupo
líder, refratário a novos elementos, enfraqueceu-se com a própria corrupção,
sendo então destituído e substituído por novos empreendedores que surgem dentre
os subjugados. E assim recomeça o ciclo. (KOENIG, 1988, p. 341).
Várias outras versões de mudança cíclica se apresentam, segundo Koenig,
todas assentadas no conceito básico de nascimento, desenvolvimento e morte.
Assim como as teorias deterministas mantêm um núcleo invariável, no
caso o fato de que as mudanças sociais se verificam a partir de um fator
determinante a identificação do fator determinante que torna as teorias
diferentes entre si), também as teorias clicas se desenvolvem a partir da idéia
fixa de ciclos. O que as torna diferentes umas das outras é a identificação da
modalidade do ciclo a que se referem.
Os ciclos foram percebidos, nestas teorias, principalmente entre as antigas
civilizações. Enquanto Spengler sustenta que os ciclos se encerram com a morte
das civilizações, Sorokin afirma que o fim do ciclo correspondia a uma renovação
da cultura. (KOENIG, 1988).
Também Arnold J. Toynbee formula uma teoria cíclica, porém sem
nenhum fundamento científico e sociológico. Aliás, segundo Don Martindade e
Elio D. Monchesi, críticos de Sorokin, e Barnes, crítico de Toynbee, as teorias
cíclicas são apenas uma tentativa de se responder à velha questão: “para onde vai
a humanidade”. (Apud KOENIG, 1988).
Pecam tais teorias por se assentarem em fragmentos retidos da história e
dispostos de forma tal a adequar-se àquilo que os teóricos pretendem comprovar.
31
Koenig conclui:
As teorias cíclicas, em suas várias versões, são, em grande
parte, uma reação às desacreditadas teorias lineares e devem-se,
em larga extensão, a um ressurgimento da filosofia da história.
Devem sua proeminência, principalmente, aos intelectuais
motivados por um desejo de fugir às complexidades de um
mundo conturbado. As teorias cíclicas de Pareto e Chapin, que
tratam apenas dos aspectos restritos da cultura – fenômenos
como taxas de natalidade e mortalidade, desemprego, relações
raciais e negócios, chamados ciclos de ‘pequena escala’, em
oposição aos ciclos de ‘grande escala’ têm-se revelado mais
úteis, embora o comportamento cíclico tenha sido
cientificamente comprovado em um número limitado desses
fenômenos. (1988, p. 346)
Seja cíclica ou linear; planejada ou pré-determinada, a mudança social é
um fato incontestável, que se verifica em ritmos diferentes, conforme o progresso
tecnológico de uma sociedade. Nas sociedades com baixo desenvolvimento
material, as mudanças demoram mais a acontecer; o ritmo das mudanças é,
contudo, mais rápido nas sociedades que acumulam mais cultura material.
Cada conquista, seja na forma de novas invenções, descobertas
científicas e aperfeiçoamento tecnológico, produz um distanciamento entre a
cultura material e as instituições sociais, cujo estabelecimento se verifica em ritmo
visivelmente mais lento. Esta situação de desequilíbrio opera um efeito que aliado
à própria natureza do homem em temer o desconhecido, redunda numa natural,
porém vencível resistência à mudança. Sobre esta afirmação, Koenig ressalva:
Nem todas as mudanças, contudo, encontram oposição
generalizada; algumas são, de fato, principalmente aceitas,
especialmente as que envolvem uma mudança ou novo uso de
uma invenção aceita. Além disso, em comparação com uma
sociedade menos evoluída, uma sociedade consciente do valor
32
da tecnologia é mais receptiva à mudança, particularmente na
esfera material. (1988, p. 347).
Muito mais expostas à rejeição, que as invenções tecnológicas, estão as
invenções sociais. Observam Ogburn e Nimkoff que “é um fenômeno curioso
que alguns dos maiores benefícios da raça humana tenham encontrado tão
obstinadas resistências, às vezes com derramamento de sangue, antes que a
humanidade pudesse desfrutá-la ...” (apud KOENIG, 1988, p. 349).
Os fatores que tornam lentas as mudanças sociais são os hábitos e
costumes, tradição ou respeito pelo passado e interesses em manter o antigo
sistema, quer sob o ponto de vista econômico, quer sob o aspecto psicológico. A
esses interesses Koenig refere-se como “interesses investidos”, cujo poder corre
riscos frente às mudanças sociais. Quase sempre as inovações tecnológicas são
desejáveis e desencadeadoras de progresso. as mudanças nas instituições
sociais podem representar um perigo à estabilidade de alguns grupos, que
certamente exercem pressão contrária às mudanças. Barnes em Social Institutions,
escreve: “Essa atitude é responsável pela situação atual, em que uma tecnologia
altamente desenvolvida coexiste com um sistema de instituições sociais obsoleta
...” (apud KOENIG, 1988, p. 351).
Não se pode negar a propriedade da afirmação e é neste ponto, o
descompasso entre a evolução tecnológica e a evolução das instituições sociais,
que se originam os novos direitos, carentes de proteção jurídica formal
(legislação).
33
1.3 As mudanças sociais e sua conexão com o Direito
Antes de se falar nas interferências que operam no Direito as mudanças
sociais, é interessante fornecer um resumo do que pensam os cientistas que se
ocuparam em observar a sociedade e suas transformações.
De um modo geral, os estudos das mudanças sociais se fazem em duas
grandes correntes principais: a dos que consideram mudança social a alteração
“significativa” que atinge a estrutura social; e a daqueles em que se podem
observar mudanças sem que a estrutura da sociedade tenha sido afetada.
alterações na estrutura social, por exemplo (e apenas como exemplo, pois
qualificar de “significativa” uma mudança, implica subjetivismo), quando uma
instituição surge ou desaparece, quando uma lei é criada ou extinta. Para o
segundo enfoque, sempre que houver qualquer movimentação na teia social, desde
que perceptível e cuja permanência no seio social não seja tão passageira como é a
moda, diz-se que houve mudança. (ROSA, 2001).
O autor reúne pontos de vista como o de Tom Burns, que a mudança
social, não na diferença observada entre o atual e o passado, como também a
conceitua como o processo pelo qual tais diferenças ocorrem:
De um determinado ponto de vista, o problema é abordado
focalizando situações modificadas que hajam sido identificadas,
em contraposição a outro enfoque, que se refere ao processo
que produz tais situações, assim, Tom Burns afirma que, de um
lado, mudança social denota uma diferença observada em
relação a estados anteriores de estruturas, instituições, hábitos
ou equipamentos de uma sociedade [...]. De outro lado, para ele
o termo também significa o processo através do qual tais
diferenças ocorrem. (ROSA, 2001, p. 86).
34
Sob tal ponto de vista impende concluir que o direito, ao estabelecer
normas de comportamento, assemelha-se tanto à primeira quanto à segunda
hipótese: é tanto uma modificação de estrutura social quanto um processo de
mudança, quanto um efeito exigido pela própria mudança.
Como o próximo capítulo versará sobre a teoria do ordenamento jurídico e
para que tais considerações sejam compreendidas no contexto hermenêutico em
que se pretende desenvolver o presente trabalho, exige-se ainda mais uma
abordagem sociológica cujo objetivo é demonstrar o quão importante é a visão
que se tem da tessitura social para que se defina a localização ôntica do Direito em
suas várias perspectivas.
Muito em voga como referencial teórico para a pós-modernidade, a
concepção da sociedade como sistema, proposta por Niklas Luhman, será de
grande valia para o propósito. (LUHMANN, 1983).
Ao longo da sua história, a humanidade tem-se esforçado para entender o
mundo e a vida. Nos primórdios da ciência e da filosofia, segundo Fritjof Capra,
Pitágoras estabeleceu uma dicotomia em que o número (ou padrão) é diferente da
substância (ou matéria), relação esta, equivalente à construção aristotélica de que
a forma não tinha existência separada da matéria, mas a relação entre forma e
matéria supunha uma imanência. Para Aristóteles a matéria contém, como
potencialidade, a natureza essencial de todas as coisas. Pelo processo chamado
enteléquia (autocompletude), esta potencialidade se realiza no fenômeno. Assim,
o estagirita lançou as bases do pensamento organicista, que predominou no
ocidente até dois mil anos após sua morte (CAPRA, 2006). A visão organicista,
35
cujo pressuposto é a dicotomia entre substância (matéria, estrutura, quantidade) e
forma (padrão, ordem, qualidade), permitiu conceber o mundo como um universo
orgânico, vivo e espiritual por algum tempo, até que novas descobertas da física,
da astronomia e da matemática impuseram a concepção mecanicista. Nomes como
Copérnico, Galileu Galilei, Descartes, Bacon e Newton surgem com a Revolução
Científica.
Galileu expulsou das ciências as análises qualitativas, dirigindo o foco
científico aos fenômenos possíveis de serem medidos e quantificados. Notável,
neste propósito, o aperfeiçoamento das investigações científicas trazido pelo
método analítico de René Descartes, que inaugurou o mecanicismo cartesiano, a
partir do qual o mundo passou a ser visto como uma máquina perfeita governada
por leis matemáticas exatas. (CAPRA,2006).
Antes que a segunda metade do século XX trouxesse, com grande
proeminência, a concepção da “rede da vida”, a teoria mecanicista foi substituída,
mais uma vez pela idéia organicista, no final do século XVII e na primeira metade
do século XIX, graças a William Blake e suas oposições a Newton. Novamente, o
organicismo desencadeado por Blake cede lugar, a partir da metade do século
XIX, ao mecanicismo, agora voltado, não mais para o organismo como um todo,
mas para a célula. Ainda assim, a concepção mecanicista sofreu objeções dos
organicistas e vitalistas, pois chegou-se à conclusão de que o todo não é
simplesmente a soma das partes, mas um ente próprio. “O comportamento de um
organismo vivo como um todo integrado não pode ser entendido somente a partir
do estudo de suas partes” (CAPRA, 2006, p. 38). Apesar de concordes na objeção,
36
vitalistas e organicistas enfrentam de maneira diferente a questão primordial que
se põe:
Em que sentido exatamente o todo é mais que a soma de suas
partes? Os vitalistas afirmam que uma entidade, força ou campo
não físico deve ser acrescentada às leis da física e da química
para se entender a vida. Os biólogos organísmicos afirmam que
o ingrediente adicional é o entendimento da “organização”, ou
das “relações organizadas”. (CAPRA, 2006, p. 38).
Destas reflexões emerge o que hoje se denomina o pensamento sistêmico,
que substitui a noção de função, essencialmente mecanicista, pela idéia de
organização. Tanto os organismos vivos quanto os sistemas sociais podem ser
examinados à luz do pensamento exsurgente no século XX.
Abaixo se revela a chave para uma melhor compreensão dos sistemas.
De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de
um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que
nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das
relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas
quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em
elementos isolados. [...] o pensamento sistêmico é “contextual”,
o que é o oposto do pensamento analítico. A análise significa
isolar alguma coisa a fim de entendê-la; o pensamento sistêmico
significa colocá-la no contexto de um todo mais amplo.
(CAPRA, 2006, p. 40).
Quando não se tem a visão sistêmica, logo, interdisciplinar, parece
inoportuno desenvolver, num trabalho de temática essencialmente humana, idéias
acerca de ciências biológicas e exatas. Além do acatamento ao pensamento
sistêmico e conseqüentemente da interdisciplinaridade, outro motivo ensejou a
abordagem acima. Trata-se de uma tentativa de demonstrar o quão dinâmico tem
37
sido o pensamento científico e como a percepção da realidade pode se dar em
ciclos, graças a novas descobertas. Assim, o grande sistema universal mostra-se
sob várias perspectivas, bem como cada sistema menor, com suas peculiaridades.
Visto como um dos sistemas sociais, o direito apresenta-se sob diferentes
enfoques e comporta várias teorias, todas válidas, conforme se aninhem numa ou
noutra percepção de mundo.
1.4 A sociedade como sistema autopoiético
Inspirado em Maturana e Varela, biólogos chilenos, que em 1970
conceberam a teoria autopoiética dos organismos vivos, Niklas Luhmann, na
década de 80 concebeu, tomando por empréstimo a teoria acima, a sociedade
como sistema, também autopoiético, que em estudos anteriores o jus sociólogo
alemão já havia tratado da sociedade como sistema, sem mencionar a autopoiese.
Antes que se façam quaisquer considerações acerca da teoria autopoiética
dos sistemas, é importante lembrar que a palavra autopoiese deriva do grego e
significa auto-criação, senão veja-se: auto = si mesmo e poiese = construção,
criação. Sistema, na teoria que se está abordando, é uma palavra que deve ser
entendida a partir do grego. Assim, synhistanai, raiz da qual deriva “sistema”,
significa “colocar junto”, o que supõe a existência de alguma forma de relação
entre vários elementos. (NASCIMENTO, 2006).
Mostra-se necessário esclarecer que o sistema biológico
apresenta seu elemento constitutivo e sua base reprodutiva na
vida, enquanto que o sistema social tem seu ápice na
comunicação. A partir disso, a sociedade que opera mediante
linguagem e comunicação adquire tal complexidade que
começa a criar subsistemas parciais: de direito, de economia,
biologia, etc. (sic) (NASCIMENTO, 2006, p. 54)
38
Infere-se, portanto, que para Luhmann a sociedade é um sistema onde operam
outros sistemas, relacionando-se entre si por meio da comunicação. Fundamental para a
compreensão da teoria social de Luhmann é o fato de que ela é fundada na diferenciação
entre sistema e meio (ou ambiente) (MATHIS, 2008).
O próprio Luhmann recomenda que não se confunda sistema com ambiente. Ele
afirma que famílias, empresas, conventos, associações, ou mesmo festas, conferências
etc, são exemplos de sistemas sociais e que cada sistema é diferente do ambiente onde
se localiza. Por exemplo, o sistema família é diferente do sistema empresa e um é
ambiente em relação ao outro. Com efeito: “Quanto mais complexo é o próprio sistema,
tanto mais complexo pode ser o ambiente no qual ele é capaz de orientar-se
coerentemente”. (LUHMANN, 1983, p. 168).
Como jus sociólogo que é, Luhmann ênfase à estrutura do direito como um
sistema social fundamental para a orientação comportamental normativa dos homens e
para a domesticação do ambiente para outros sistemas sociais. Esta estrutura, portanto,
altera-se conforme evolua a complexidade social, o que revela a inegável relação entre a
teoria do direito e a teoria da evolução social.
Os sistemas criam meios e instrumentos cada vez mais sofisticados para
solucionar seus problemas internos e de relacionamento com o ambiente. Cada
transformação verificada num sistema redunda na exigência de transformação de outros
sistemas, vistos como ambientes do sistema transformado, provavelmente atendendo a
39
exigências de adaptação comunicativa com outros sistemas
5
. Isto implica no aumento da
complexidade das relações humanas e a vida social adquire novas possibilidades.
Este é o contexto vislumbrado por BOBBIO, quando menciona o surgimento dos
novos direitos, oriundos de três fatores básicos: o aumento dos bens a serem tutelados,
o aumento do número de sujeitos de direito e a ampliação do status dos sujeitos. Ora,
tais fatores derivam da dinâmica social e estabelecem “... estreita conexão entre
mudança social e o nascimento de novos direitos...”. (1992, p. 68).
Veja-se que o quadro teórico concebido por Luhmann adapta-se com precisão à
concepção realeana do direito, quando o jus filósofo paulista demonstra e estrutura
tridimensional do direito. O direito não é apenas a norma, como propôs Hans Kelsen
com a sua polêmica Teoria Pura do Direito; assim como não é apenas o fato, como
querem os economistas e sociólogos; tampouco é apenas um valor, como apregoam os
adeptos do Direito Natural. O direito, conforme a fórmula realeana “é uma integração
normativa de fatos segundo valores.” (REALE, 1994, p. 119).
A tridimensionalidade do direito de ser verificada a partir de um fato social
juridicamente relevante, ainda não regulado por normas postas pelo Estado. Tal fato,
qualificado por um complexo axiológico, apresenta uma ampla possibilidade normativa,
ou seja, poderá ser regulado por qualquer uma das normas possíveis. Cabe ao Estado
decidir qual norma eleger para o fato, levando em conta a realização dos valores mais
expressivos para a sociedade.
A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e
dialética, dada a ‘implicação-polaridade’ existente entre fato e valor,
de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução
5
Um sistema assim o é se singularmente considerado. Quando se o considera em relação a outro sistema,
um figura como ambiente do outro.
40
superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de
tempo... (REALE, 1994, p. 57)
O ponto de contato da Teoria Tridimensional do Direito com a Teoria dos
sistemas está nas várias possibilidades de ocorrências fáticas, axiológicas e normativas,
vindas à luz pela comunicação.
Voltando a Luhmann, ele analisa a transformação dos sistemas, concluindo que
os sistemas, ao inventarem as melhores soluções para seus problemas, fazem aumentar a
complexidade das relações humanas, que, num ciclo vicioso, demanda novas soluções.
Trovata la legge, trovato l’inganno. O princípio do desenvolvimento
são as crescentes complexidades e contingências da sociedade. É a
partir daí que as estruturas da sociedade, entre elas o direito, sofrem
pressões no sentido da mudança. (LUHMANN, 1983, p. 172).
Na esteira de Luhmann, além de Reale, outro filósofo do direito se serve da
teoria dos sistemas para fundamentar a análise tridimensional, cotejando a filosofia, a
ciência e o direito. Trata-se de Bruno Romano, para quem a diferenciação entre os
sistemas ocorre num código binário, como: a sociedade e o Estado; o privado e o
público; o sujeito e o indivíduo; a pessoa e a função. Nesta tensão, o filósofo italiano
aponta os principais agentes das mudanças, capazes de aumentar a complexidade social
através da diferenciação dos sistemas:
Con riferimento genético a questo processo di diversificazione, non
destinato alla formazione dell’identità del parlante, ma al
funzionamento dei sistemi sociali, nel moderno si affermano nuove
entità, che hanno um rilievo principale, come l’impresa, i sindicati, le
associazioni ecc. (ROMANO, p. 23).
41
Eis mais uma indicação da importância das transformações ocorridas na
sociedade, para a configuração do direito e vice versa.
Até agora o foco manteve-se na teoria dos sistemas, sem, contudo, abordar a sua
característica autopoiética. Isto porque, a concepção inicial de Luhmann não vislumbrou
a autopoiese, o que só aconteceu na década de 80.
Com base na obra de Luhmann (La sociedad de La sociedad), Leonel Severo
Rocha escreve sobre a fase autopoiética do pensador alemão, e afirma que a teoria
concebida em 1972 (Teoria dos Sistemas), sob a inspiração de Maturana e Varela, foi
aperfeiçoada com a percepção da autopoiese também no âmbito social. Com esta
percepção Luhmann pode enfrentar o problema da alta complexidade social,
levantado na primeira fase da sua teoria.
6
Luhmann parte do pressuposto sociológico de que “tudo está inserido dentro da
sociedade.” (Apud ROCHA, 2008, p. 168). Por isso mesmo não produção humana
que não esteja na sociedade, o que conduz à conclusão de que a sociedade é complexa,
vale dizer, apresenta várias possibilidades de manifestações. “Na sociedade pode
acontecer tudo aquilo que pode acontecer.” (Apud ROCHA, 2008, p. 168).
Assevera o autor que para Luhmann é necessária a organização da complexidade
social de tal sorte que as inúmeras possibilidades sociais sejam reduzidas a uma escolha,
que ele não especifica se será feita por determinação de autoridade ou por consenso.
6
“Complexidade deve ser entendida aqui e no restante do texto como a totalidade das
possibilidades de experiências ou ações, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação
de sentido no caso do direito isso significa considerar não apenas o legalmente permitido, mas
também as ações legalmente proibidas, sempre que relacionadas ao direito de forma sensível ...
(LUHMANN, 1983, p. 12).
42
Esta é a gênese dos sistemas: cada segmento social, cada ramo do conhecimento
humano é ideologicamente organizado em sistemas. Desta forma se infere que para
Luhmann a sociedade é um macro sistema, composto de sistemas menores, que por sua
vez decompõem-se em sistemas menores e assim por diante.
Observa-se que os sistemas maiores não são somatórios dos menores, mas que
cada sistema é um ente em si mesmo, que se auto-constrói, se auto-organiza e se auto-
reproduz, fechando-se operacionalmente. Eis aí a autopoiese. (NASCIMENTO, 2006).
O direito, assim como a política e a economia, é um sistema social, contudo não
se pode afirmar que, por ser um sistema social, seja fechado em sua própria “poiese”.
Evidentemente o “sistema direito” se alimenta das relações sociais verificadas em
quaisquer outros sistemas sociais e busca, na medida do possível, adequar-se às
transformações sociais, que se observam, como visto no desenvolvimento das teorias
retro investigadas, em qualquer âmbito social. A idéia de sistema autopoiético desvia o
direito da concepção normativista de Hans Kelsen e permite uma ampliação e fluidez do
próprio direito. O direito interpenetra todos os sistemas.
Toda convivência humana é direta ou indiretamente cunhada pelo
direito. Como no caso do saber, o direito é um fato social que em tudo
se insinua, e do qual é impossível se abstrair. Sem o direito, nenhuma
esfera da vida encontra um ordenamento social duradouro; nem a
família ou a comunidade religiosa, nem a pesquisa científica ou a
organização partidária de orientações políticas. (LUHMANN, 1983, p.
7).
Equivale a dizer que o direito é um sistema operacionalmente fechado e
funcionalmente aberto, isto é, a validade das tomadas de decisão pelo direito está no
próprio sistema jurídico, enquanto que sua adequação social e efetividade ultrapassam
43
os limites do sistema, colocando-o em constante processo de interação com outros
sistemas.
Desta maneira, podemos chamar aquele sistema de autônomo que
baseado em regulação autopoiética mantém relações com seu meio
guiado pela sua diferenciação principal e por seu modus de operação.
Assim, um sistema autônomo é independente do seu meio, no que diz
respeito a estrutura básica de sua orientação interna, e a forma de
processar complexidade, mas depende do seu meio no que diz respeito
a dados e constelações que servem como base de informação para o
sistema. (MATHIS, p. 4).
Resta ainda anotar que a interação entre os sistemas sociais faz-se mediante a
comunicação discursiva e, neste sentido, há que se questionar sobre a validade do
discurso jurídico. Ora, válidas são as proposições jurídicas, cujo discurso seja também
válido, ou que decorra de uma manifestação de poder
7
.
Qualquer que seja a teoria que tente explicar as transformações sociais, qualquer
que seja a teoria que mostre a estrutura social, o fato é que a sociedade é dinâmica e,
conforme se movimenta, produz a exigência de adequação de suas normas de
comportamento. Entre tais normas, por conseguinte, figuram as jurídicas. Enquanto não
houver uma situação social exigindo regulamentação jurídica, não se fala em novo
direito; contudo, havendo situações sociais carentes de regulação jurídica (note-se que
não se está empregando a expressão “regulação legal”, pois é legal apenas o que é
legislado), tem-se novos direitos. Nascem, portanto, os novos direitos sempre que a
sociedade, qualificada por valores, se transforma.
7
Há quatro esferas de poder capazes de manifestar validamente uma norma jurídica: poder legislativo,
poder judiciário, poder negocial e poder social. As manifestações normativas destes poderes são,
respectivamente: lei, decisões e sentenças, contratos e costumes (REALE, 2002, p. 141).
44
Construiu-se até aqui a base teórica para um próximo capítulo, cuja abordagem central
será o surgimento dos novos direitos, de forma pontual e de acordo com postulados
filosóficos e éticos acolhidos pela sociedade em diversos momentos.
Por se tratar de um estudo sobre a sociedade sob o ponto de vista estrutural, sua
organização política e as conseqüentes observações acerca do Estado foram
postergadas. Não se nega, todavia, a importância de uma análise das transformações
sociais em cotejo com as diversas espécies de organização política das sociedades, o que
certamente merece um trabalho acadêmico exclusivo sobre o tema, em razão da sua
amplitude.
Importante ressaltar que para o escopo da presente dissertação, basta deixar claro
que a sociedade, qualquer que seja sua concepção, sofre transformações que interferem
nas pautas normativas.
45
2. O ordenamento jurídico e os dogmas da completude, coerência
e unidade
Embora o estudo do ordenamento jurídico, principalmente sob o prisma do
positivismo jurídico, possa evocar uma idéia predominantemente acadêmica, é
importante desenvolvê-lo para que se lancem as bases de discussão sobre a
hermenêutica compatível com a pós-modernidade, capaz, portanto, de dar conta dos
novos direitos oriundos das transformações sociais.
Assim, a construção da Teoria do Ordenamento Jurídico, tida como a expressão
máxima do Positivismo Jurídico e atribuída a Hans Kelsen, se mal interpretada,
constitui um obstáculo à fluidez do direito, não obstante ser ela o ponto de partida de
onde se abrirão sendas para o aprofundamento das mais variadas discussões acerca do
direito.
De fato, enquanto doutrinadores brasileiros como Miguel Reale (2002), Paulo
Nader (2002) e Tércio Sampaio Ferraz Junior (2003), entre outros, apóiam suas
doutrinas no ordenamento jurídico, Lenio Luiz Streck (2008b) repudia tal arquitetura
jurídica, principalmente no que se refere à hierarquia das fontes.
Há quem vincule o positivismo jurídico a Estados absolutistas, que se servem da
ordem jurídica como instrumento de manutenção de poder. A esse respeito pronunciou-
se Pio XII em 1955, quando, pugnando pela prevalência do direito natural, condenou o
positivismo jurídico:
[...] uma crise na administração da justiça, que ultrapassa as habituais
deficiências da consciência moral cristã. Buscam-se as causas imediatas de
tal crise principalmente no positivismo jurídico e no absolutismo do estado;
duas manifestações que derivam e dependem uma da outra. [...] este Estado
46
absoluto tratará, necessariamente de submeter todas as coisas ao seu arbítrio,
e especialmente de servir-se do direito mesmo para seus próprios fins.
8
Para o Papa, o direito positivo e o Estado absolutista (referindo-se à Itália),
vivenciados depois da guerra, constituem uma combinação que desfigura a justiça como
o suporte para o direito imaginado pela tradição católica. Embora alguns juristas tenham
levantado a bandeira do direito natural, eles o fizeram tentando vinculá-lo à história,
destarte, carregando-o de positividade. Evidentemente, associar o direito à sua
historicidade, é qualificá-lo com a temporalidade, característica incompatível com o
direito natural, eterno que é (apud SCARPELLI, 1997).
De fato, o ordenamento jurídico é o reflexo do Estado que o constrói. “La
caracteristica esencial del Estado estriba em la capacidad de organizarse a si mismo, es
decir, de acuerdo com su propio derecho” (MAYNEZ, 2001, p.104). Desta forma, o
estado Liberal terá o ordenamento que privilegia o liberalismo; o Estado Social é regido
por ordenamento adequado aos seus propósitos; o Estado Democrático apresenta
ordenamento democrático, pelo menos teoricamente, na medida em que as normas
jurídicas são elaboradas e recepcionadas pelo poder do povo, representado pelo
legislativo. Não há norma jurídica válida que não tenha sido autorizada pelo povo.
2.1 A necessidade de se conceber um ordenamento jurídico
Até o início do séc. XIX o direito nada mais era que um conjunto disforme (e
não um sistema) de normas esparsas, que não apresentavam uma unidade jurídica.
Assim, surge a formulação do ordenamento jurídico, tal qual conhecido hoje, como uma
8
[...] una crisi nell’amministrazione della giustizia, che oltrepassa le abituali deficienze della coscienza
morale Cristiana. Le cause immediate di tale crisi sono da ricercarsi principalmente nel positivismo
giuridico e nell’assolutismo di stato; due manifestazioni che alla lor volta derivano e dipendono l’una
dall’altra. [...] questo stato assoluto cercherà necessariamente di sottomettere tutte le cose al suo arbitrio, e
epecialmente di far servire il diritto stesso ai suoi propri fini.
47
exigência do mundo jurídico da época, principalmente para eliminar os riscos da
incerteza de comportamento e do arbítrio das autoridades. O movimento pela
codificação do direito francês forçou uma concepção unitária e sistêmica do direito.
Antes ainda de se pensar num ordenamento, o positivismo jurídico era definido em
função das teorias da coação
9
e da imperatividade
10
do direito, uma completando e
justificando a outra, tomada a norma jurídica como paradigma. (BOBBIO, 1996a).
Não se de confundir a Teoria do Ordenamento Jurídico com a Teoria do
Direito. São dois cortes epistemológicos diferentes, mas diz-se, na esteira de Bobbio,
que a primeira contribui para a compreensão da última. A Teoria Geral do Direito é a
ciência do direito mesma e comporta a própria Teoria do Ordenamento Jurídico. É
dizer, numa perspectiva luhmanniana (a ser desenvolvida oportunamente, em tratamento
próprio), que a Teoria Geral do Direito é um sistema no qual se incrusta a Teoria do
Ordenamento Jurídico, a Teoria do Ordenamento como sistema menor ou sub-sistema.
“A Teoria do Ordenamento Jurídico encontra sua mais coerente expressão no
pensamento de Kelsen”.
11
(BOBBIO, 1996a, p. 204).
2.2 Noção geral e conceitual do ordenamento jurídico
Em nome da clareza da definição do Ordenamento Jurídico exige-se um prévio
saneamento conceitual, eliminando-se o equívoco de se tomar um termo por outro,
como ocorre com as expressões “positivismo jurídico”, “normativismo jurídico” e
9
Teoria segundo a qual a coação é o elemento essencial e típico do direito, cabendo exclusivamente ao
estado praticá-la e com o intuito de compelir ao cumprimento da norma. (BOBBIO, 1996a).
10
A teoria da imperatividade afirma que a norma jurídica impõe comportamentos de forma obrigatória.
Por não ser mero aconselhamento e sim um comando, a norma jurídica é dotada de sanção. Não fosse
imperativa a norma, qualquer sanção seria arbitrária e consistiria em ato de violência. (BOBBIO, 1996a).
11
“La teoria dell’ordinamento giuridico trova la sua più coerente espressione nel pensiero del Kelsen”.
48
“ordenamento jurídico”. Inegavelmente relações entre tais expressões, mas elas não
significam a mesma idéia. A este respeito tem-se a recomendação “o que cumpre desde
logo desfazer é o equívoco da redução do ordenamento jurídico a um sistema de leis”.
(REALE, 2002, p. 190).
O positivismo jurídico, segundo Bobbio, é uma postura científica frente ao
direito que leva o jurista a estudar o direito tal qual ele é e não como deveria ser.
Preocupa-se, o positivismo jurídico, com a validade do direito e não com o seu valor,
como faz o jusnaturalismo (1996a, p. 134).
Dentro do positivismo jurídico várias correntes de pensamento, até mesmo
em situações de antagonismo umas com as outras. Trata-se das concepções
reducionistas do direito, como por exemplo, o historicismo, o moralismo, o
sociologismo e o normativismo.
Em apertada síntese, e apenas para que se tenha um referencial distintivo, veja-se
sobre o historicismo, que é a redução do direito ao fato histórico, àquilo que a sociedade
vive concretamente no seu dia a dia, prescindindo até mesmo da codificação, desde que
as normas fossem o reflexo do viver social na política, artes, economia etc. Os
costumes, na concepção historicista, têm grande relevância na composição do direito.
A Escola Histórica, especialmente através de Savigny, que foi seu
lídimo chefe, reclamou uma visão mais concreta e social do Direito,
comparando-o ao fenômeno da linguagem, por terem surgido, ambos
de maneira anônima, atendendo a tendências e a interesses múltiplos
revelados no espírito da coletividade ou do povo. (REALE, 1998, p.
422).
Com relação ao moralismo ou eticismo, este vincula o direito à moral, de tal
forma que se compreendia a juridicidade sob a perspectiva dicotômica
49
licitude/ilicitude moral. Para os moralistas é impossível conceber uma norma jurídica
que não apresente conteúdo moral, que não atue na consciência do indivíduo (REALE,
1998, p. 481).
[...] não entre a regra moral a regra jurídica diferença alguma de
domínio, de natureza e de fim. Nem pode haver, porque o Direito deve
realizar a justiça, e a idéia do justo é uma idéia moral.
(Georges
Ripet, apud REALE, 1998, p. 487)
não se pode esquecer que normas jurídicas totalmente desprovidas de
conteúdo moral, e no entanto dotadas de validade, legitimidade e eficácia, como por
exemplo a norma que estabelece o horário de funcionamento de repartições públicas. Se
não afrontar o sistema jurídico a norma mencionada retira deste fato a sua validade; sua
legitimidade se deduz da fonte, ou seja, porque o poder que a colocou (Legislativo,
Executivo ou Judiciário) é competente para isto; na medida em que as repartições
públicas funcionam de acordo com o que determina a norma, ela é eficaz. Nenhum
homem se tornará melhor ou pior, em termos de valores humanos, pelo cumprimento ou
não cumprimento da norma em apreço. Ora, que não exige um comportamento,
embora válida, legítima e eficaz, é desprovida de conteúdo moral por não atingir os
domínios da ética. É norma puramente técnica, indiferente à moral (REALE, 2002).
Outra polêmica visão positivista e reducionista do direito é o sociologismo, ou
realismo, ou empirismo jurídico. No dizer de Miguel Reale o sociologismo jurídico
exagera ao reduzir o direito ao fato social, mostrando-o como “mero componente dos
fenômenos sociais” (1998, p. 435). Não se pode negar que um complexo de fatos
sociais condiciona o sistema de normas jurídicas, mas é preciso evitar o simplismo das
explicações monistas que os sociologistas perseguem. Eles negam autonomia ao direito,
reduzindo-o a um dos objetos da sociologia.
50
Finalmente, o normativismo, corrente que reduz a complexidade jurídica a um
corpo normativo. Hans Kelsen é o grande arquiteto da Teoria do Ordenamento Jurídico,
haurida da sua Teoria Pura do Direito. Considera meta-jurídico tudo o que não seja
norma jurídica e como tal deve ser purgado da explicação do direito como ciência. “É
necessário, dizia Kelsen, conceber o Direito com olhos de jurista, sem procurar a todo
instante elementos que a Psicologia elabora, a Economia desenvolve ou a Sociologia
nos apresenta” (REALE, 1998, p. 455).
Estudando mais cuidadosamente a proposição kelseniana, percebe-se que a
tendência normativista é o pressuposto da Teoria Pura do Direito e é o entendimento
necessário para que se alcance a purgação dos elementos meta-jurídicos como o valor e
o fato social. No entanto, Kelsen aponta para as três dimensões do direito e não se
liberta das perspectivas axiológicas e fáticas (REALE, 1998).
A partir destas divagações é possível vislumbrar que, assim como o
ordenamento jurídico é um ente do positivismo jurídico, também o são as correntes
monistas que explicam o direito de forma reducionista. Não é, contudo, escopo do
presente trabalho indagar sobre o positivismo jurídico e as correntes reducionistas. A
ligeira abordagem deve-se a uma exigência de esclarecimento com o fito de obviar,
mais tarde, à névoa que se põe na compreensão hermenêutica compatível com a pós-
modernidade.
2.3 A sistematização do ordenamento jurídico
Agrupar de forma coerente o complexo de normas que conviviam
desordenadamente e sem uma lógica sistemática, resultou no ordenamento jurídico
como a contribuição mais concreta da racionalidade jus positivista, a despeito das
51
severas críticas que vem sofrendo desde sua gênese e das insuperáveis polêmicas que
suscita, principalmente nos meios acadêmicos de todo o mundo. de se reconhecer
que, depois da teoria do ordenamento jurídico, tornou-se o principal instrumento que
organizou não só o direito, mas o próprio pensamento jurídico.
Neste sentido o ordenamento jurídico é um sistema global de normas que
mantém entre si relações sistemáticas. Logo, se infere que ele é “uma entidade nova,
distinta das normas singulares que o constituem”. (BOBBIO, 1996b, p. 205).
Através do ordenamento jurídico se tem acesso ao direito em todas as suas
dimensões.
Sistema de normas jurídicas in acto, compreendendo as fontes de
direito e todos os seus conteúdos e projeções: é, pois, o sistema das
normas em sua concreta realização, abrangendo tanto as regras
explícitas como as elaboradas para suprir as lacunas do sistema, bem
como as que cobrem os claros deixados ao poder discricionário dos
indivíduos (normas negociais). (REALE, 2002, p. 190).
Diferentemente, e de novo com tendência reducionista, Hans Kelsen deposita no
ordenamento jurídico uma forte idéia de ser o Estado a fonte exclusiva de direito:
O ordenamento jurídico é o conjunto das prescrições de conduta e as
conseqüentes sanções, bem como as normas que definem as
autoridades e os seus procedimentos na aplicação das normas
estáticas
12
. (Apud BASTOS, 1992, p. 112).
São três as características a darem a tal organização das normas a sua condição
de ordenamento jurídico: unidade, coerência e completude. Trata-se de qualidades
essenciais, sem uma das quais o ordenamento não seria o que é; verdadeiros dogmas, a
partir dos quais é possível a explicação sistemática do direito (BOBBIO, 1996b, p. 205).
12
Hans Kelsen menciona um corpo de normas estáticas (ordenamento substancial) e um corpo de normas
dinâmicas (ordenamento formal). As estáticas são aquelas que se relacionam por causa do seu conteúdo e
as dinâmicas são aquelas que derivam umas das outras por sucessivas delegações de poder (BOBBIO,
1996b, p. 205; 2006, p. 72).
52
2.3.1 A unidade do ordenamento jurídico
Uma das condições para que se possa tratar o direito como ciência passa pela
exigência de considerar o ordenamento jurídico com uma unidade, o que quer dizer que
o direito busca a sua validade em si mesmo. Em outras palavras, uma norma jurídica é
válida quando outra norma, também jurídica, lhe atribui validade, desde que válida
também em razão de validade conferida por outra cuja validade se haure em outra, e
assim por diante, o que sugere um processo ad infinitum, não fosse o recurso a uma
norma fundamental
13
destinada a fechar o sistema. Tem, portanto, esta norma
fundamental, a finalidade de assegurar a unidade do ordenamento jurídico e o faz,
criando para isto, a suprema fonte de direito num dado ordenamento jurídico.
O exemplo a seguir ilustra a idéia de poder supremo e realça o processo da
derivação: alguém é condenado a ressarcir um prejuízo porque o juiz de direito assim
determinou; a norma particular (sentença) é válida pois uma lei ordinária autoriza o juiz
a sentenciar; por seu turno, a lei ordinária vale porque emana de poder competente, o
legislativo, cuja autoridade se verifica na Constituição; para ser válida, a Constituição
será posta por poder competente, chamado de poder constituinte, não importando sua
origem (assembléia ou revolução). E surge assim o insuperável dilema do positivismo
jurídico: ou se considera o poder constituinte como o poder supremo do ordenamento
jurídico, o que impede que o sistema se feche em si mesmo, remetendo a gênese do
direito no fato social (pois o poder constituinte é da sociedade enquanto povo), ou
socorre-se do recurso fictício da norma fundamental. Continua-se indagando de onde a
norma fundamental retira sua validade e a única conclusão lógica a que se chega é a de
13
Norma fundamental, como dizem os juristas de acordo com Kant, é a norma que empresta fundamento
não só de validade a todo o sistema jurídico, mas também lhe confere unidade. Ela não existe empírica ou
positivamente... (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 187).
53
que tal norma é válida porque observada de fato, porque a sociedade a tem como válida,
deixando, portanto, sem solução o dilema positivístico.
Neste ponto temos duas possibilidades: ou nos detemos no poder
constituinte como fato social, e então deixamos o sistema aberto,
fazendo com que o direito derive do fato; ou ainda, para fechar o
sistema, consideramos o poder constituinte como autorizado por
uma norma fundamental, a qual estabelece que todos os cidadãos
devem obedecer às normas emanadas de tal poder, isto é, daquela
força política em condições de pôr normas para toda a sociedade e de
impor-lhe a observância. É esta a última alternativa escolhida por
Kelsen, e que o conduziu à concepção da norma fundamental.
(BOBBIO, 1996a, p. 208)
14
.
De fato, a norma fundamental não cumpre seu papel de solucionar o problema
do fechamento do ordenamento jurídico, deixando os puristas do direito à mercê do fato
social como fundamento de validade do direito e seu ordenamento.
Recorrendo à teoria dos sistemas proposta por Niklas Luhmann (1993) é mais
provável que se possa compor o conflito positivista da impossibilidade de fechamento
do ordenamento jurídico. Vale lembrar que um sistema é diferente do seu meio e que se
comunica com ele, guardando uma relação de derivação: mudanças no meio produzem
alterações no sistema e vice versa. Não obstante, os sistemas são autopoiéticos, ou seja,
se auto-constroem e se auto-determinam. Ora, se são auto determinativos mas
comunicam-se com o meio onde se inserem, então se diz que são operacionalmente
fechados e funcionalmente abertos, tal e qual ocorre com o ordenamento jurídico. Só há
sentido no sistema de direito enquanto ele interage com a sociedade (sistema/meio);
logo, conceber um sistema fechado, conforme quer o positivismo, seria condená-lo à
desvitalização, por absoluta falta de finalidade e sentido. A abertura funcional é o
14
Giunti a questo punto, abbiamo due possibilità: o ci fermiamo al potere costituente come fatto sociale, e
allora lasciamo aperto il sistema, facendo derivare il diritto dal fatto; oppure, per chiudere il sistema,
consideriamo il potere costituente come autorizzato da una norma fondamentale, la quale stabilisce che
tutti i cittadini devono ubbidire alle norme emanate da tale potere, cioè da quella forza política in grado di
stabilire norme per tutta la società e di imporne l’osservanza. È quest’ultima l’alternativa scelta dal
Kelsen, e che lo há condotto alla concezione della norma fondamentale
54
conduto por onde flui a vida do ordenamento, até porque não existe, na realidade social,
um direito oriundo de uma única fonte. “A imagem de um ordenamento composto
apenas de dois personagens, o legislador, que põe as normas, e os súditos, que as
recebem, é puramente escolástica”. (BOBBIO, 1993, p. 173).
15
Opõe-se à visão escolástica mencionada acima, a concepção sistêmica do
ordenamento jurídico, segundo a qual a relação sistema/ambiente alimenta o próprio
sistema que opera efeitos no meio social.
Como o sistema social, o sistema jurídico é, para Luhmann, um
sistema autopoiético, isto é, um sistema fechado e auto-referencial.
Isto quer dizer que o sistema jurídico se auto-reproduz com base nos
seus próprios elementos e em suas próprias estruturas, e que ele cria
suas próprias relações com seu meio social, quando comparado ao que
ele mantém, dessa maneira, uma diferença específica. O fechamento
sistêmico não significa que o sistema jurídico seja um sistema isolado.
Bem ao contrário, o sistema jurídico opera em seu meio e, como
resultado disso, a questão que se põe é saber como esse meio exerce
influência sobre o funcionamento interno do próprio sistema, e como é
possível conhecer as conseqüências dessa relação com o meio, ao
tratar-se da própria reprodução do sistema. (ARNAUD; DULCE,
2000, p. 167).
Compreende-se neste ponto, relacionando o que já se expendeu, que a concepção
kelseniana da norma fundamental permite ao jurista antever uma perspectiva
autopoiética para o direito (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 173).
Destarte não como elidir o conhecimento da Teoria do Ordenamento Jurídico
e da norma fundamental de nenhuma proposta de estudo da ciência do direito.
15
“L’immagine di um ordinamento composto da due soli personaggi, il legislatore, che pone le norme, e i
sudditi che le ricevono, è puramente scolastica.”
55
2.3.2 A coerência do ordenamento jurídico
Uma das condições de validade da norma jurídica é a sua compatibilidade com
as demais normas do ordenamento jurídico. Eis o postulado básico da coerência.
Considerado como sistema, o ordenamento jurídico, necessariamente, será coerente.
Seus componentes (as normas jurídicas) haverão de se relacionar harmonicamente, sob
pena de se verificar uma insustentável entropia
16
no sistema a ser eliminada através de
mecanismos estabelecidos pela doutrina. Se uma norma conflitar com outra, tem-se uma
antinomia, que representa a negação da coerência. Preliminarmente se deve dizer que as
normas jurídicas atuam sobre o comportamento de três maneiras: exigindo-o, proibindo-
o ou permitindo-o. Há, então, antinomia se uma norma proibitiva dispuser sobre
determinado comportamento permitido ou exigido por outra norma. Deve-se decidir
qual das normas deverá prevalecer; qual delas é válida e qual deverá ser purgada
(BOBBIO, 1996b).
A despeito da exuberância normativa - há normas demais no sistema –, diante da
antinomia, o que se verifica no ordenamento jurídico é uma lacuna; enquanto não se
decidir qual das normas é válida, nenhuma o será, ficando, portanto, o caso em questão,
desprovido de normatização.
Mesmo que haja antinomia, afirma-se que o ordenamento é coerente pois ele
próprio estabelece, primeiro, a “norma implícita em todo ordenamento, segundo a qual
duas normas incompatíveis (ou antinômicas) não podem ser ambas válidas...”, depois,
critérios instrumentais para se fazer a purgação do sistema (BOBBIO, 1996b, p. 210).
16
Este é um termo tomado por empréstimo da física e opõe-se à sinergia. Designa a medida de desordem
de um sistema.
56
Uma vez identificada a antinomia, o que só é possível quando se conhece
razoavelmente todo o ordenamento jurídico, busca-se a eliminação da norma inválida,
com fundamento nos critérios da cronologia, da especialidade e da hierarquia das
normas, bem como dos meta-critérios, se a situação exigir, por apresentar conflito entre
os critérios.
Pelo critério da cronologia tem-se que a norma posterior prevalece sobre a
anterior, pela razão óbvia de que a norma mais nova atende com mais atualidade às
exigências sociais; o critério da especialidade informa que a norma especial deve
prevalecer sobre a norma geral, pelo fato de que a especialização promove a
diferenciação entre grupos, dando-lhes o tratamento adequado, o que em síntese
significa a igualdade material; pelo critério da hierarquia tem-se que a norma
hierarquicamente superior prevalecerá sobre aquela de hierarquia inferior.
Apenas como um lembrete, já que é conhecimento de domínio público, as
normas hierarquicamente superiores são as constitucionais, como a própria Constituição
Federal que comanda todo o ordenamento jurídico, encimando-o, e as Emendas à
Constituição e as Leis Complementares; em seguida, num mesmo patamar, as Leis
Ordinárias, as Leis Delegadas e as Medidas Provisórias; finalmente, na situação de
inferioridade hierárquica, os Decretos Legislativos e as Resoluções.
Esta noção de hierarquia liga-se à idéia de prevalência de uma norma sobre outra
e indica qual norma vale mais, o que, para Humberto Ávila (2009), é insustentável, por
tratar-se de sistematização linear, simples e não gradual. É preciso, diz ele, perceber a
hierarquização das normas sob várias perspectivas: semiótica, estrutural/formal,
material, lógica e axiológica.
57
Na perspectiva semiótica a explicação da hierarquia desdobra-se em sintática
(relação gica entre as normas) e semântica (pressupostos de formais e materiais
17
a
serem instituídos por uma norma para a edição de outra). Sob o ponto de vista
estrutural/formal, a hierarquia das normas se estabelece em razão dos poderes que
editam as normas de tal forma que a que for editada por poder superior fornece validade
à editada por poder inferior. A hierarquia material pressupõe a existência de uma
terceira norma capaz de decidir o conflito entre duas normas (são os critérios
estabelecidos para a purgação do sistema).
A aplicação de tais critérios é possível numa primeira dimensão de conflito,
através de uma escolha simples. Entretanto, para o conflito mais complexo,
convencionou-se a precedência de critérios segundo a qual o critério mais forte é o da
hierarquia, seguido do da especialidade e depois do da cronologia. Assim, se
conflitarem entre si, duas normas ordinárias, com o mesmo grau de especialidade, e
oriundas de dois atos normativos diferentes, se poderá solucionar o conflito
aplicando-se o critério cronológico; se as normas forem de mesma hierarquia, com
graus de especialidade e datas de criação diferentes, validar-se-á a especial. Na hipótese
de incompatibilidade de duas normas que conflitam nos três aspectos, prevalecerá
aquela de hierarquia superior, ainda que geral e anterior (BOBBIO, 2006).
Bobbio (2006), constrói uma outra hipótese de antinomia: duas normas
hierarquicamente iguais, com o mesmo nível de especialidade e contemporâneas,
dispõem, de forma conflitante, sobre mesma matéria. A solução mais coerente com a
hermenêutica tradicional é validar a lex favorabilis (permissiva) em detrimento da lex
17
Hierarquia semântica formal refere-se a “pressupostos formais que uma norma institui para a edição
de outra”; hierarquia semântica material diz respeito a “pressupostos conteúdo que uma norma estabelece
para a edição de outra”. (ÁVILA, 2009, p. 126).
58
odiosa (imperativa que exige ou proíbe). Bobbio lembra, contudo, que muitas normas
jurídicas, por serem bilaterais, ao mesmo tempo em que atribuem direitos a uma pessoa,
impõem uma obrigação a outra, assim, a lex favorabilis para um sujeito, pode
representar a lex odiosa para outro.
O problema real, frente ao qual se encontra o intérprete, não é o de
fazer prevalecer a norma permissiva sobre a imperativa ou vice versa,
mas sim o de qual dos dois sujeitos da relação é mais justo proteger,
isto é, qual dos dois interesses em conflito é justo fazer prevalecer:
mas nessa decisão a diferença formal entre as normas não lhe oferece
a mínima ajuda. (BOBBIO, 2006, p. 99).
Há também a possibilidade de duas normas paritárias (de mesma categoria
hierárquica), iguais em generalidade e contemporâneas disporem, de maneira
contraditória sobre um mesmo assunto, uma proibindo determinada conduta e outra
exigindo a conduta. Sugere-se, como numa fórmula matemática, que as normas se
anulem reciprocamente, fazendo surgir um tertium, a permissão. “... essas duas normas
anulam-se reciprocamente e, portanto, o comportamento, em vez de ser ordenado ou
proibido, se considera permitido” (BOBBIO, 2006, p. 100).
Este é um dos pontos cruciais para o presente trabalho, conforme se verá
oportunamente, quando se confrontarão a estrutura formal do direito e as exigências
concretas da sociedade na realização da justiça legal. A capacidade para equilibrar da
maneira mais justa possível as relações sociais não está no ordenamento jurídico
concebido pelo positivismo nem nos postulados do direito natural, mas na maior ou
menor percepção de valores que têm aqueles que são chamados para construir e operar o
direito. A atribuição de operar e construir o direito, segundo parâmetros axiológicos,
passa, necessariamente, pela hermenêutica jurídica.
59
2.3.3 A completude do ordenamento jurídico
O direito deve ser suficiente
para
solucionar qualquer situação juridicamente
relevante que se verifica no meio social. Desta afirmação desdobram-se algumas
questões que devem ser postas com equilíbrio e que constituem a guia mestra para a
abordagem central da presente dissertação: a insuficiência do ordenamento jurídico
brasileiro para atender aos novos direitos e o recurso a uma hermenêutica adequada para
suprir as lacunas.
Fosse o ordenamento jurídico a sua exata projeção teórica, ele não teria defeitos.
Ocorre, como já se viu anteriormente, que seus dogmas não se prestam, à primeira vista,
para a adequação teórico-prática, e a esta inadequação dá-se o nome de vício. Viu-se
que o cio da unidade é a impossibilidade do fechamento do sistema, ainda que se
recorra à norma fundamental e que o cio da coerência é a antinomia, produzida pela
exuberância de normas no ordenamento jurídico, cujo remédio é a utilização das
técnicas de purificação do sistema. O dogma da completude, por sua vez, sofre a
ameaça constante das lacunas, por mais que se construam teorias destinadas a
salvaguardar a idéia de que o ordenamento jurídico é completo.
Depois de demonstrar o raciocínio da teoria do espaço jurídico vazio
18
, da norma
geral exclusiva e da norma geral inclusiva
19
, Bobbio (2006) estabelece algumas
categorizações teóricas de grande valia para a compreensão das lacunas do ordenamento
18
Teoria destinada a reforçar a idéia de completude do ordenamento, diz que “até onde o Direito alcança
com suas normas, evidentemente não lacunas; onde não alcança, espaço jurídico vazio e, portanto,
não a lacuna do Direito, mas a atividade indiferente ao Direito”. (BERGBOHM, apud BOBBIO, 2006, p.
129)
19
Recursos teóricos para manter a completude do ordenamento. A norma geral exclusiva é aquela que
exclui todos os comportamentos que não sejam aqueles previstos pelo ordenamento; a norma geral
inclusiva diz que “no caso de lacuna, o juiz deve recorrer às normas que regulam casos parecidos ou
matérias análogas”. (BOBBIO, 2006, p. 135).
60
jurídico. Trata-se da classificação das lacunas em reais e ideológicas; voluntárias e
involuntárias.
lacuna real quando o ordenamento jurídico não dispõe de normas a
regulamentar uma determinada situação, como por exemplo, a ausência de normatização
para questões como a genética e as relações virtuais; é ideológica a lacuna quando se diz
que o ordenamento jurídico não é aquilo que deveria ser, de acordo com as aspirações
de justiça, como por exemplo, as possibilidades de impunidade para determinados
crimes e a definição do salário mínimo, situações deduzidas de normas válidas, porém
injustas. Assim, pode-se entender também por lacuna não apenas a falta de uma solução
para determinado conflito, mas a falta de uma solução satisfatória.
Podemos também enunciar a diferença deste modo: as lacunas
ideológicas são lacunas de jure condendo (de direito a ser
estabelecido), as lacunas reais são de jure condito (do direito
estabelecido). [...]. Quando os juristas sustentam, em nossa opinião,
sem razão, que o ordenamento jurídico é completo, isto é, não tem
lacunas, referem-se às lacunas reais e não às ideológicas. (BOBBIO,
2006, p. 140).
Ao se indagar sobre a origem das lacunas, é possível identificar lacunas por
motivos objetivos e lacunas por motivos subjetivos. Quando relações sociais evoluem,
nova tecnologia é descoberta, novas concepções comerciais e econômicas passam a
freqüentar o ambiente social, o direito, incapaz de acompanhar a rapidez com que se
verificam as transformações, torna-se envelhecido, anacrônico, dando azo às lacunas
ditas objetivas, por serem objetivas suas causas. Por outro lado, são subjetivas as
lacunas oriundas de causa subjetiva, dependentes da figura do legislador, que pode
produzir lacunas voluntárias ou lacunas involuntárias. Descuidando-se da técnica
legislativa, have o risco do aparecimento de lacunas, sem que tenha sido esta a
intenção do legislador. Já, quando se trata de legislar sobre matéria complexa, via de
61
regra o legislador traça linhas gerais, deixando a especificação a cargo de órgãos ou
executores mais aptos que o legislador no conhecimento da matéria. Bobbio afirma que
o vazio deixado voluntariamente não constitui exatamente uma lacuna. “Aqui, de fato, a
integração do vazio, deixado de propósito, é confiada ao poder criativo do órgão
hierarquicamente inferior” (BOBBIO, 2006, p. 145).
Considerando-se o direito como um sistema, verifica-se que além da
completude, também a consistência é sua propriedade. O sistema, composto de
elementos em conexão adquire consistência quando seus elementos não se contrapõem.
Assim, a consistência do sistema é a compatibilidade formal, que repousa na lei da não-
contradição. A esta possibilidade de se completar o sistema através da coerência entre
seus elementos, Lourival Vilanova (1997) chama de completude sintática. Ora, se se
menciona um tipo de alguma coisa, é porque outros tipos diferentes do mencionado.
Com efeito, Vilanova chama a atenção para a exigência da completude semântica,
que o sistema jurídico é um sistema voltado para uma realidade social. “Diversa da
relação entre os símbolos do sistema, que é a relação sintática, é a relação do sistema
com um respectivo modelo”. (VILANOVA, 1997, p. 210). Para os sociólogos o direito
não é completo pois grande porção da realidade social que excede os domínios do
direito. Sobre o descompasso entre o direito como sistema e a realidade, tem-se que
Quem se propõe a fazer política do Direito comprovará o hiato entre o
Direito que é e o Direito que deveria ser, para ser mais justo. [...] Nada
mais legítimo que investigar o subsolo de processos sociais, que estão
a sustentar a teoria da completude do ordenamento jurídico.
(VILANOVA, 1997, p. 211).
62
Isto não significa, contudo, que se deva excluir da investigação da completude,
os pontos de vista sintático (coerência dentro do sistema) e semântico (adequação do
sistema à realidade social).
Analisando-se o problema das lacunas sob o enfoque da concepção de que o
direito é um sistema de normas, é possível detectar que duas correntes se posicionam
antiteticamente: uma delas sustenta que o direito é um todo orgânico, completo e capaz
de contemplar todos os comportamentos humanos, logo, não admite que haja lacunas. A
outra corrente admite vácuos, ainda que se conceba um ordenamento perfeito. Isto
porque o ritmo instável da vida enseja situações sempre novas nas relações sociais de
relevância jurídica. (DINIZ, 1999). A autora, depois de analisar as origens da idéia de
sistema, esclarece a noção empregada no contexto do estudo da completude do
ordenamento jurídico, mostrando que sistema ao mesmo tempo nexo (uma relação de
elementos) e método:
Percebe-se que “sistema” significa nexo, uma reunião de coisas ou
conjunto de elementos, método, um instrumento de análise. De forma
que o sistema não é uma realidade nem uma coisa objetiva; é o
aparelho teórico mediante o qual se pode estudar a realidade. É, por
outras palavras, o modo de ver, de ordenar, logicamente, a realidade,
que, por sua vez, não é sistemática. [...] O que coesão ao sistema é
sua estrutura. (DINIZ, 1999, p. 25).
Assim, conclui ela, o direito é uma realidade estudada através de métodos, sendo
o sistemático um deles, e não exatamente um sistema.
20
Conforme se conceba o sistema
(aberto ou fechado), concebe-se, a reboque, a existência ou não de lacunas, como
conseqüência lógica. Em se considerando fechado o sistema normativo, com o recurso
da regra genérica de que “tudo o que não está juridicamente proibido, está permitido”,
diz-se que não lacunas, pois a referida norma abrange todo o complexo de fatos (os
20
No quinto capítulo se constatará que de fato, quando se fala sem sistema de direito, está-se referindo,
não a um objeto concreto, mas a um complexo de relações.
63
proibidos, que são limitados pelo direito e os permitidos, obviamente em numerus
apertus), acolhendo-os e lhes oferecendo uma resposta jurídica.
Por outro lado, ao se considerar o sistema aberto, o direito revelará não apenas o
seu sistema normativo, mas outras duas dimensões: os fatos e os valores que lhe são
ínsitos. Neste caso lacunas e elas impulsionarão a renovação e dinamismo do direito,
que exigem a busca das soluções para os casos não contemplados pelo ordenamento
jurídico. (DINIZ, 1999).
O direito brasileiro estabelece que nenhum fato juridicamente relevante poderá
ficar sem a apreciação do judiciário quando este for solicitado e socorre o magistrado
com o preceito do art. da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), in verbis:
quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e
os princípios gerais do direito”. Esta é a indicação mais clara de que o ordenamento
jurídico não é isento de lacunas, mas, paradoxalmente, indica, o dispositivo legal, que o
ordenamento se completará sempre que houver lacuna e a integração for realizada pelo
aplicador do direito, ressalvando-se, evidentemente, as impossibilidades dentro do
direito penal. Graças a este recurso os titulares de direitos emergentes poderão receber a
proteção jurídica que lhes garante a Constituição Federal do Brasil, quando consagra o
direito e a proteção à igualdade, à liberdade, à cidadania e à dignidade, além da
proibição do non liquet
21
, esta última, insculpida no art. 5º, XXXV
22
.
21
O non liquet é uma “fórmula latina a indicar que o magistrado pode deixar de se pronunciar por
entender que a causa não estava provada”. Em outras palavras, causas sem previsão legal, ou que não
pudessem ser provadas, estariam excluídas da apreciação do judiciário, pelo menos no que diz respeito à
decisão. Hoje esta possibilidade é repudiada e o princípio é o da proibição do non liquet, ainda que não
haja norma no ordenamento jurídico, destinada ao caso em apreço.
...o juiz deve em cada caso resolver a controvérsia que lhe é submetida, estando excluída a possibilidade
de abster-se de decidir (o assim chamado juízo de non liquet), argumentando com o fato de que a lei não
oferece nenhuma regula decidendi (BOBBIO, 1996b, p. 74).
22
Art. 5º, XXXV: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.
64
2.4 O problema da visão positivista do direito
Embora não seja o propósito do presente estudo discutir o positivismo jurídico,
já que o tema exige dedicação exclusiva, alguma ilação é necessária a fim de se elidirem
eventuais interferências conceituais que possam gerar aparentes conflitos de idéias.
O positivismo jurídico – repete-se - não é apenas uma doutrina, mas desdobra-se
em várias teorias, como o normativismo, o historicismo e o sociologismo, apenas para
exemplificar. Deste complexo teórico resultam divergências e problemas sobre os quais
pesam as mais severas objeções ao positivismo jurídico. Norberto Bobbio levantou sete
destas características problemáticas do positivismo jurídico (1996b).
1) O primeiro dos problemas refere-se ao modo de abordar o direito,
considerando-o como um fato e não como um valor, razão pela qual ao
jurista não cabe fazer juízos valorativos, mas sim, deve comportar-se mais
como um cientista natural que observa seu objeto, abstraindo qualquer valor
que possa incidir sobre ele. Deriva, deste comportamento científico, que a
validade do direito se funda em critérios exclusivamente formais (como por
exemplo, a competência do poder criador do direito), prescindindo, portanto,
do conteúdo da norma.
2) Em seguida Bobbio (1996b) destaca que ao definir o direito em função do
elemento da coação, o positivismo enfatiza a imposição da força como um
meio de compelir ao cumprimento da norma.
3) Como terceiro problema surge a questão das fontes do direito. Para o
positivismo jurídico, a legislação é a fonte preeminente do direito, o que não
significa a exclusão de outras. De fato, admitem-se, como tal, os costumes
65
secundum e praeter legem, mas não os que contrariam disposições legais.
Além da lei e dos costumes, o positivismo jurídico reconhece como fontes de
direito também a eqüidade e a natureza das coisas. Segundo Bobbio (1996b),
esta última proporciona um contato entre o direito positivo e o direito
natural.
4) A teoria da norma jurídica, segundo a qual o positivismo jurídico atribui
caráter imperativo à norma, constitui o quarto problema. A norma contém
um comando, positivo ou negativo, posto de forma heterônoma (indiferente à
adesão interna dos destinatários); ou representa apenas uma permissão.
5) Mediante a construção do ordenamento jurídico, o positivismo rejeita a
possibilidade de lacunas no direito, como se abordou anteriormente;
sustenta a teoria da coerência e da completude, de onde decorre que
eventuais antinomias resolvem-se com instrumentos previstos pelo
ordenamento, assim como é possível ao juiz extrair uma regula decidendi de
normas explicita ou implicitamente contidas no ordenamento jurídico, para
o devido preenchimento de lacunas. O ordenamento jurídico contém em si
os antídotos contra seus próprios males.
6) Este sexto problema levantado por Bobbio é o ponto central do presente
estudo e desenvolve-se principalmente no capítulo quarto. Refere-se ao
problema da interpretação.
7) Finalmente, o sétimo ponto. Um conjunto de posições dentro do positivismo
jurídico sustenta a teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal,
sintetizada no aforismo: lei é lei. A esta teoria Bobbio prefere referir-se
66
como positivismo ético. “Com referência a esta teoria, contudo, melhor do
que positivismo jurídico, dever-se-ia falar de positivismo ético, visto que se
trata de uma afirmação de ordem não científica, mas moral ou ideológica
[...]”. (BOBBIO, 1996b, p. 133).
Acusado de inflexibilidade, o direito positivo, em contrapartida, oferece, ele
próprio, os instrumentos mitigadores, dispostos nos arts. e da Lei de Introdução ao
Código Civil (LICC). Enquanto se diz que a Constituição Federal consagra direitos que
nem sempre se efetivam no âmbito das relações sociais, pode-se dizer que a LICC, por
ser mais específica, permite que o juiz se desprenda do dogmatismo legal fetichista que
imperou durante os áureos tempos da Escola da Exegese, e, através, mormente dos
princípios gerais do direito (ressalte-se que são consagrados em normas positivas), da
exigência do bem comum e da finalidade social, concretize os valores do Estado
Democrático de Direito. É bem verdade que esta Escola da Exegese estende seus
tentáculos e orienta muitos operadores do direito ainda nos dias atuais, porém, diante
das novas concepções jurídicas acerca do homem (dotado de dignidade), cabe ao
homem jurista corrigir a inflexibilidade do direito com a utilização dos instrumentos
mencionados.
Aos poucos, e por isso anacronicamente, o direito positivo abre caminhos para
chegar à proteção efetiva e à concretização dos direitos que surgem a cada
transformação social. Citem-se como exemplos, além das disposições constitucionais, a
Lei 7347/85 (Lei de Ação Civil Pública), que viabiliza a defesa de interesses meta
individuais; a Lei 7.853/89 (Proteção às Pessoas Portadoras de Deficiência); a Lei
9.605/98 (define crimes ambientais); a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor), a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei 10.741/03
67
(Estatuto do Idoso); a Lei 11.105/05 (Biossegurança), entre outras. Antonio Carlos
Wolkmer manifesta-se no sentido de que apesar da produção de novos instrumentos,
ainda falta flexibilidade ao direito positivo.
Reconhecida a importância desses mecanismos legais consagrados,
faz-se necessário avançar ainda mais no sentido de tentar viabilizar as
possibilidades de uma teoria geral para a tutela dos “novos” direitos.
Diante da insuficiência do modelo jurídico liberal-individualista, abre-
se a perspectiva de procedimentos estratégicos pluralistas e mais
democráticos [...]. (2003, p. 23).
Opõe-se ao direito positivo, o direito natural. O primeiro “é o conjunto de normas
jurídicas em vigor num país, numa determinada época”, e o outro
é o conjunto de princípios inerentes à própria personalidade humana, e
que se funda na eqüidade e no bom senso, imposto e reconhecido
apenas pela justa razão. Diz-se, também, do direito peculiar a cada
pessoa, por sua própria condição ou essência. (NEVES, 1997, p. 817).
O direito natural, para os gregos antigos da Grécia antes de Cristo, está acima da
lei humana e independe da vontade do legislador, confundindo-se com a justiça. Neste
sentido,
Antígona, personagem de Sófocles, opondo-se ao direito do tirano,
invoca o direito imutável, não-escrito, de origem desconhecida,
hierarquicamente superior ao direito histórico. Aristóteles a ele se
refere como imutável, acima da lei, impondo tratamento jurídico igual
para todos. (GUSMÃO, 2006, p. 37).
Considerando-se, então, a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana,
tomadas na mais ampla acepção dos termos, como direitos naturais, vê-se que a sua
força se potencializa no direito positivo. Não se pode perder de vista que o direito
positivo instrumentaliza o direito natural. Um é complemento do outro, na medida em
que o direito natural é o fundamento ético e axiológico do direito positivo, que por sua
vez viabiliza o direito natural. Criticável, portanto, não é, generalizadamente, o direito
positivo, mas o direito positivo que impede a realização das potencialidades humanas
68
quando elabora e labora leis injustas. Criticável é o positivismo jurídico que reduz o
direito à norma.
Deste suporte teórico acerca do ser do ordenamento jurídico, deduzir-se-ão
pontos e contra pontos na defesa da possibilidade de dotar o direito de condições
concretas e totalmente legais, sem afronta à certeza jurídica, de se fazer presente e
eficaz na faticidade social.
69
3 Surgimento dos novos direitos ou implicação novos direitos, direitos
humanos, direitos fundamentais e gerações de direito
Para iniciar o presente capítulo é imperioso alertar que “novos direitos, direitos
humanos, direitos fundamentais e gerações de direito” brotam de um mesmo cepo, a
saber, a dignidade da pessoa humana, cuja natureza e definição se encontram em
argumentações morais e políticas. Com efeito, Pasold (2005) propõe mesmo uma
intersecção dos conceitos de direitos humanos: direitos que dizem respeito à proteção e
concretização da dignidade humana; e de novos direitos, resultado de uma multiplicação
de Direitos em conseqüência de três fatores de propulsão: o aumento da quantidade de
bens considerados merecedores de tutela, a extensão da titularidade de certos direitos
típicos a outros sujeitos que não o Homem e a consideração do Homem não mais como
ente genérico ou “em abstrato”, mas sim na concretude das maneiras de ele ser em
sociedade.
Operando a intersecção dos dois conceitos, posso considerar que a
Categoria “Direitos Humanos está imbricada na categoria “Novos
Direitos”, porque é impossível considerar-se como incluso em “Novos
Direitos” qualquer resultado de um ou mais dos três fatores de
propulsão que venha a desrespeitar a Dignidade Humana. (PASOLD,
2005, p. 231).
Direitos devem ser vistos não apenas como consagração formal, resultado da
ação legiferante e da prática jurisdicional, mas como a síntese de conquistas oriundas da
atuação do homem na sociedade e fundamentados na condição humana, seja
considerando o homem singularmente, seja referindo-se a ele como participante da
trama social.
70
São amplas e profundas as transformações que encharcam de pós-modernidade a
sociedade, conforme se pode inferir também da leitura do primeiro capítulo onde se
discorre sobre as várias teorias de transformações sociais apresentadas por Koenig
(1988). A economia, as ciências e as várias éticas, revolucionam-se e revolucionam.
Novas posturas científicas e filosóficas promovem críticas e reflexões
23
.
A reflexão jurídica sobre o direito e a ciência jurídica, portanto,
encontra-se em meio a um processo de transição mundialmente
observável. As ciências se mistificam e os misticismos se
cientificizam; a esfera
pública se privativa e a privada se publiciza; o
direito é moralizado e a moral, juridicizada; o “dever ser” é visto no
plano do “ser” e o plano do “ser” observado a partir do “dever ser”; as
soberanias invadidas pelos mercados comuns e os mercados comuns
capitaneados por determinados Estados soberanos; o masculino cada
vez mais ressaltado em sua feminilidade e a feminilidade, cada vez
mais masculinizada. Com efeito, as certezas e os limites espaço-
temporais existenciais estão em crise. (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p.
1).
Dentre as razões que determinam o aparecimento dos novos direitos, Bobbio
destaca três, das quais quaisquer outras causas poderão derivar. Trata-se do aumento de
bens, produzidos pelo avanço tecnológico, a serem tutelados pelo direito; do aumento de
sujeitos de direitos, colocando sob proteção jurídica não apenas o homem, mas também
instituições como a família, as minorias, o meio ambiente, a paz mundial, entre outros; e
da ampliação do status do homem como sujeito de direito, deixando-se de considerá-lo
abstratamente para destacar suas peculiaridades e diferenças entre uns e outros, como
por exemplo, o tratamento internacional diferenciado destinado à proteção de
23
Interessante, a esse respeito, a seguinte reflexão de Pierre Teilhard de Chardin, “É o poder adquirido
por uma consciência de se dobrar sobre si mesma e de tomar posse de si mesma como um objeto dotado
de sua própria consistência e do seu próprio valor: não conhecer mas conhecer-se a si próprio;
não saber mas saber que se sabe”. Apud SILVA, Reinaldo Pereira. Biodireito: o Novo Direito da
Vida. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (
Orgs.). Os “Novos” Direitos no
Brasil: Natureza e Perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 294.
71
minorias
24
. O pensador italiano ilustra este ponto com a Convenção sobre os Direitos
Políticos da Mulher, de 1952, a Declaração da Criança, de 1959, a Declaração dos
Direitos do Deficiente Mental, de 1971, a Declaração dos Deficientes Físicos, de 1975 e
a Assembléia Mundial de Viena sobre os direitos dos idosos, de 1982 (1992, p. 68-69).
É supérfluo notar que, entre esses três processos, existem relações de
interdependência: o reconhecimento de novos direitos de (onde “de”
indica o sujeito) implica quase sempre o aumento de direito a (onde
“a” indica o objeto). Ainda mais supérfluo é observar, [...] que todas
as três causas dessa multiplicação cada vez mais acelerada dos direitos
do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e explícito, a
necessidade de fazer referência a um contexto social. (BOBBIO, 1992,
p. 68).
Fácil, portanto, compreender que os novos direitos, por misturarem-se à vivência
social, caracterizam-se pela fenomenologia (acontecem concretamente na realidade
social) e historicidade (acompanham lutas e conquistas da humanidade ao longo de sua
existência), além de imporem uma nova juridicidade, não mais assente na neutralidade
científica proposta pelo normativismo jurídico de Hans Kelsen, mas fundada, em
princípios que contemplam, prevalentemente, o homem em sua dignidade. (OLIVEIRA
JUNIOR, 2000, p. 98).
3.1 Natureza, conceito e fontes dos novos direitos
O problema atual com os novos direitos fundamentais não é tanto sua
consagração, mas sim o desequilíbrio entre eles e o interesse da sociedade,
coletivamente considerada. Há, algumas vezes, oposição entre direitos fundamentais
individuais e direitos coletivos. Exemplificando, na medida em que se consagra
formalmente a liberdade de expressão, esta liberdade haverá de ser assegurada. Mas, -
24
Não se fala de minorias em razão de número, mas de proteção jurídica ou social. Assim, minorias são
aqueles a quem se deve atribuir proteção especial para superar a defasagem social ou a maior exposição a
riscos.
72
pergunta-se até que ponto se a assegurará sem comprometer a harmonia das
instituições? “Restringir o uso da palavra que pregue ódio, sob o argumento de que o
governo é auto-destruidor...” significa violar ou efetivar direitos? (OLIVEIRA, 2006, p.
51). conflitos aparentemente insuperáveis (um desafio à lógica) entre direitos do
indivíduo e direitos da sociedade, o que exige a atenção de olhares e reflexões de todos
os segmentos sociais, na busca de equilíbrio. O caminho, segundo Bobbio, é “dar nova
definição aos direitos, para que não haja necessidade de regressão” (apud OLIVEIRA,
2006, p. 50).
De uma análise, ainda que perfunctória, das gerações ou dimensões de direitos,
infere-se que eles se deduzem dos documentos que lançam olhares sobre o Homem e
seus direitos, quer como indivíduo, quer como elemento de um conjunto, razão pela
qual a busca da natureza dos novos direitos termina quando se encontra a natureza dos
Direitos Humanos. É constitucional a natureza dos novos e humanos direitos que
sustentam, filosófica e éticamente o Estado Democrático de Direito. São consagrados
constitucionalmente com base na dignidade da pessoa humana. De tal forma que
“direitos não apenas beneficiam aqueles que os detêm, como lhes atribuem poder”
(DONNELLY, 2003, p. 8).
25
Ainda na esteira do autor norte-americano e sob a luz de
seu agudo pensamento, interessantes conclusões podem renovar conceitos jurídicos
tradicionais que de uma certa maneira retêm o curso da operabilidade do direito. Ele não
admite que a natureza humana seja a fonte dos direitos humanos. Justifica a tendência
de se ligar a expressão “direitos humanos” à natureza humana, afirmando que os direitos
legais têm como fonte a lei, assim como são fontes de direitos contratuais, os contratos e
por isso a tendência de se acreditar na natureza humana como fonte dos direitos
25
Rights empower, not just benefit, those who hold them.
73
humanos. Assim como ele refuta esta possibilidade, refuta também a idéia de que as
necessidades humanas possam representar a fonte dos direitos do homem porque
Necessidades têm sido definidas em termos de direitos! ‘Podemos,
inicialmente, definir necessidades humanas, num sentido mínimo,
como uma quantidade de alimento, água limpa, abrigo adequado,
acesso aos serviços de saúde e oportunidades de educação, às quais
todas as pessoas têm direito, em virtude de terem nascido’. (MCHALE
AND MCHALE, apud DONNELLY, 2003, p. 14, nota 9)
26
.
Isto é muito pouco para suprir as exigências da dignidade humana: desta forma,
os direitos humanos são extraídos da natureza moral do homem e proverão, não a vida
simplesmente, mas a vida digna.
A fonte dos direitos humanos é a natureza moral do homem, que é apenas
vagamente relacionada à "natureza humana" definida pelas necessidades
cientificamente verificáveis. A "natureza humana" em que se baseiam os
direitos humanos é uma moral prescritiva da possibilidade humana. A natureza
humana do cientista diz que não podemos ir além disso. A natureza moral de
onde surgem os direitos humanos diz que não podemos nos permitir descer
abaixo disto. (DONNELLY, 2003, p. 14)
27
Disto decorre que a “natureza humana” como fonte de direitos humanos é
extremamente ampla e estaria a qualificar como humanos, quaisquer direitos, mesmo
aqueles não fundamentais. Por outro lado, deduzir os direitos humanos das
“necessidades humanas”, excluiria da pauta de direitos humanos até mesmo alguns
direitos fundamentais. Assim, Donnelly (2003) aponta para a “natureza moral do
homem” (como poderia apontar para a sua “natureza política”) como a fonte mesma dos
direitos humanos: fundamentais ou não, novos ou não, individuais ou coletivos ou
26
Needs have been defined in terms of rights! ‘We can initially define human needs, in a minimal sense,
as that amount of food, clean water, adequate shelter, access to health services, and educational
opportunities to which every person is entitled by virtue of being born’.
27
The source of human rights is man’s moral nature, wich is only loosely linked to the “human nature”
defined by scientifically ascertainable needs. The “human nature” that grounds human rights is a
prescriptive moral account of human possibility. The scientist’s human nature says that beyond this we
cannot go. The moral nature that grounds human rights says that beneath this we must not permit
ourselves to fall.
74
metaindividuais. O pensador norte americano sintetiza seu pensamento afirmando que
os “direitos humanos buscam associar uma visão moral e uma prática política.”
(DONNELLY, 2003, p. 15). Por exemplo, não ser discriminado é um direito humano
estabelecido conforme um postulado moral. Admiti-lo, contudo, como fez a Declaração
Universal dos Direitos Humanos no art. 2º, consiste numa prática política e assegurar
seu exercício exige participação política não pública como privada. (DONNELLY,
2003).
A relação entre a natureza humana, direitos humanos e sociedade
política é “dialética”. Os direitos humanos moldam a sociedade
política, de modo a moldar o ser humano e a perceber as
possibilidades da natureza humana, que fornece, em primeiro lugar, as
bases para estes direitos.
28
Os conceitos de novos direitos como expressão referente aos direitos nascentes
ou emergentes, que decorrem de novas descobertas, avanços tecnológicos etc.
(PASOLD, 2005), ou outros dois conceitos, agora mais completos, também deduzidos
da observação social, serão desenvolvidos a partir deste ponto, invertendo-se, portanto,
a ordem natural que supõe antes, a análise e depois a síntese consubstanciada no
conceito.
[...] resultado de uma multiplicação de Direitos em conseqüência de
três fatores de propulsão: o aumento da quantidade de Bens
considerados merecedores de Tutela; a extensão da titularidade de
certos Direitos típicos a outros sujeitos que não o Homem; e, a
consideração do Homem não mais como ente genérico ou em
abstrato”, mas sim na concretude das maneiras de ele ser em
Sociedade. (BOBBIO, apud PASOLD, 2005, p. 227).
a afirmação contínua e a materialização pontual de necessidades
individuais (pessoais), coletivas (grupos) e metaindividuais (difusas)
que emergem informalmente de toda e qualquer ação social, advindas
28
The relationship between human nature, human rights, and political society is “dialetical”. Human
rights shape political society, so as to shape human being, so as to realize the possibilities of human
nature, wich provide the basis for these rights in the first place
.
75
de práticas conflituosas ou cooperativas, estando ou não previstas ou
contidas na legislação estatal positiva, mas que acabam se instituindo
formalmente. (SARLET, 2001, p. 46).
Isto quer dizer que novos direitos, antes de se tornarem preceitos formais, como
normas jurídicas oriundas do processo legislativo, são conseqüência de afirmações das
necessidades humanas e da exigência de um devir que se processam historicamente,
conforme aponta Wolkmer (2003).
3.2 Os novos direitos na pós-modernidade
A pós-modernidade representa o momento mundial de rompimento com os
paradigmas da modernidade (séculos XVIII, XIX e mais da metade do século XX) e
impõe que o homem adapte-se à globalização do mercado, às novas posturas diante do
meio ambiente, ao pluralismo cultural e à massificação do indivíduo.
Segundo Bittar (2005), diante da insegurança trazida pela nova concepção do
perfil da sociedade mundial, grupos e indivíduos respondem de duas maneiras possíveis:
a) ou implementam a idéia de responsabilidade social das empresas, além de criarem
mecanismos de sobrevivência social, dos quais as ONGs (Organizações Não
Governamentais) são os mais significativos, procurando desligarem-se do Estado
moderno, marcado pelo monopólio da arrecadação e distribuição dos recursos
financeiros e como fonte exclusiva de direito; b) ou rebelam-se e procuram meios
alternativos, porém ilícitos, de sobrevivência, o que faz recrudescer a violência,
implantando, então, a insegurança e as exclusões sociais.
O papel do direito neste cenário não é mais o de apenas atribuir direitos, senão o
de providenciar para que tais direitos sejam exercidos pelos seus titulares. Veja-se aqui
a principal quebra de paradigma: o direito da modernidade preocupa-se muito mais em
76
buscar sua validade; e o direito da s-modernidade, além de válido, almeja-se o mais
eficaz possível. O homem não se satisfaz mais em apenas ter direitos, ele exige que lhe
seja permitido exercitá-lo; e se o Estado não formaliza também a pretendida garantia de
exercício dos direitos consagrados formalmente, os grupos o fazem de maneira
alternativa.
A vida na sociedade transforma-se com a rapidez correspondente às conquistas
de novas tecnologias. O maior nível de sofisticação traz consigo o aumento no nível de
complexidade das relações e a exigência de providências emanadas de uma
racionalidade adequada ao novo contexto. Não é possível, contudo, que o direito formal
acompanhe, em termos de produção normativa, o evoluir social, o que leva o direito
velho a ser chamado a dar conta dos novos direitos emergentes.
De maneira nenhuma se sugere postergar o ordenamento kelseniano, pois ele é a
base racional do direito. O que a pós-modernidade exige é um melhor aparelhamento da
obra prima do positivismo jurídico, melhor ainda, um manejo atualizador dos recursos
técnico-formais à disposição. Mais do que um ordenamento, o contexto social está a
exigir novas posturas humanas, tanto dos autores, quanto dos operadores, dos
aplicadores e dos destinatários do direito.
Concebido sob a égide do Estado moderno, sua fonte exclusiva, o ordenamento
jurídico é geneticamente semelhante a ele, é dizer, carrega consigo a tendência
individualista liberal, insuficiente, portanto, para contemplar as novas relações, cada vez
mais (re)socializantes. Socorrendo-se da parêmia “somos anões sobre os ombros de
gigantes”, atribuída a Bernard de Chartres
29
, deduz-se que cabe aos anões, novos
29
Escolástico do século XII, falecido no ano de 1124 (SARANYANA, 2006, p. 193).
77
detentores da sabedoria, aprimorar o conhecimento. Este é o desafio: operar um
instrumento velho, criado por gigantes, para solucionar situações novas, percebidas
pelos anões.
Para se dimensionar o desafio, note-se que os ordenamentos jurídicos antecedem
a sua teoria. Hans Kelsen (2000) debruçou-se sobre a realidade jurídica pré-existente e
teorizou sobre o ser do Direito. Ele não criou o ser, apenas sistematizou o seu
entendimento.
Tal desiderato - alcançar situações novas com instrumentos anacrônicos exige
que se mude a visão acerca da ciência jurídica, substituindo a idéia de ciência descritiva,
pela idéia de ciência constitutiva; sobre a certeza do que diz a lei, incluir a discussão das
finalidades que a lei pretende alcançar; passar do estruturalismo para o funcionalismo
30
na teoria jurídica (OLIVEIRA JUNIOR, 2000).
Os novos direitos surgem no dia-a-dia das relações sociais, portanto, já nos
séculos passados se debatia sobre o anacronismo do direito em relação aos fatos sociais.
Apenas para ilustrar, traga-se a lume o episódio brasileiro em que não havia
regulamentação para a união estável embora se vivesse esta situação na concretude
social. A solução dos conflitos daí decorrentes não estava prevista na legislação, que
não havia previsão legal para este tipo de convivência. Bobbio (1992), quando se refere
a uma “era” de direitos amplia os limites temporais, a tal ponto, que apenas a História
do Direito os consegue alcançar e revelar que o núcleo das reivindicações humanas
sempre foram os valores referentes à liberdade e à dignidade da pessoa humana.
30
O estruturalismo lança sobre a ciência jurídica uma visão bifurcada: epistemológicamente o objeto do
direito é a norma jurídica estatal; axiológicamente, o direito descreve de forma neutra a realidade
normativa. Quanto ao funcionalismo, este propõe uma composição em que a estrutura do direito se
integre à sociologia jurídica, a partir da teoria dos sistemas (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 41 e
seguintes).
78
Todos estes esforços para o bem (ou, pelo menos, para a correção,
limitação e superação do mal), que são uma característica essencial do
mundo humano, em contraste com o mundo animal, nascem da
consciência, da qual há pouco falei, do estado de sofrimento e de
infelicidade em que o homem vive, do que resulta a exigência de sair
de tal estado. (1992, p. 55).
Ainda em Bobbio (1992), a hostilidade do meio em que vive faz com que o
homem crie mecanismos e instrumentos que lhe permitam sobreviver à dupla
hostilidade: a da natureza e a do próprio homem. Do esforço humano em face do mundo
hostil, proliferam técnicas de sobrevivência e defesa, de onde o crescente avanço
tecnológico e as cada vez mais sofisticadas pautas de comportamento.
Interessante concluir, a partir de indicações da História do Direito, que as
normas de comportamento, expressões do vetare et jubere (proibir e ordenar), dirigiam-
se à proteção do grupo, muito mais que à do indivíduo. Cumpria-se, individualmente, a
lei, buscando-se o fortalecimento e coesão do grupo. Desde o Código de Ur-Nammu
(mais antigo que o Código de Hamurabi)
31
, até a Lei das XII Tábuas, os preceitos
representavam “o remédio ao mal que o homem pode causar ao outro” (BOBBIO, 1992,
p. 56), como por exemplo a exigência do comportamento negativo “não matar”, e não
visavam tanto a proteger o indivíduo, mas a evitar a desagregação do grupo, pois,
desagregado, o grupo fragilizava-se diante dos grupos adversários.
Assim se via o direito: um conjunto de preceitos a estabelecer deveres aos
indivíduos, para benefício coletivo. Gradativamente este ângulo de visão amplia-se e
sem perder de vista a dimensão do dever individual, descortina-se a perspectiva dos
direitos individuais, que sempre estiveram presentes, porém sob o manto da
invisibilidade. No interregno entre o citado Código de Ur Nammu até 1948, quando a
31
Ur-Nammu fundou a 3ª dinastia de Ur, por volta de 2040 antes de Cristo. Hamurabi governou a
Babilônia e redigiu seu Código por volta de 1694 a. C. (GILISSEN, 1995).
79
ONU consagrou para o mundo a dignidade da pessoa humana como o valor em torno do
qual orbitarão todos os outros, revoluções sociais, políticas, econômicas e filosóficas
imprimiram contornos cambiantes às tábuas de comportamento reconhecidas como o
direito idiossincrático de cada época e de cada cultura.
[...]se a pessoa [...] é fonte e medida de todos os valores; ou seja se o
próprio homem, e não a divindade ou a natureza de modo geral, é o
fundamento do universo ético, a História nos ensina que o
reconhecimento dessa verdade foi alcançado progressivamente, e
que sua tradução em termos jurídicos jamais será concluída, pois ela
não é senão o reflexo do estado de “permanente inacabamento” do ser
humano, de que falou Heidegger. (COMPARATO, 2006, p. 36).
Comparato chama a atenção para o sincronismo entre as grandes declarações de
direitos, (sejam particulares, de cada Estado, ou universais) e as diversas etapas de
avanço científico e tecnológico, conducente ao fortalecimento da solidariedade
32
e à
unificação da humanidade em torno de valores universais. Cumpre ressalvar que a
concepção de unificação humana não deve ser homogeneizante, mas refletir o
reconhecimento universal (por todos) das diversidades.
No intuito de facilitar a compreensão da evolução dos direitos que nascem como
“novos” e depois amadurecem, Bobbio (1992) traz
33
uma sistematização dos direitos
fundamentais (pontos de partida para a ampliação de direitos capazes de contemplar os
novos sujeitos ingressantes no âmbito das relações jurídicas), de acordo com seus
32
No sentido técnico-sociológico, solidariedade significa “consistência interna de um agregado social. A
solidariedade varia em razão do grau de integração do agregado. Como índices de solidariedade podem
ser considerados o espirit de corps, os padrões de cooperação interna, a capacidade de prevenir ou
acomodar conflitos entre os componentes do agregado e a eficiência dos padrões de defesa externa. O
mesmo que coesão social.”. DICIONÁRIO de Sociologia, 1974, p. 329.
33
Note-se que se está utilizando o verbo trazer ao invés de fazer. Não obstante a crença de que esta
divisão pedagógica seja devida à Bobbio, George Marmelstein Lima afirma que quem usou a expressão
“gerações de direito” pela primeira vez e despretensiosamente, foi Karel Vasak , em aula inaugural que
proferiu no ano de 1979, em Estrasburgo. (LIMA, 2003)
80
fundamentos e com a orientação política e filosófica, em cinco categorias. Esquema
semelhante se em Bonavides (apud WOLKMER, 2003), com cinco dimensões de
direito. Alerte-se que as gerações ou dimensões não supõem sucessividade de direitos,
uns excluindo os outros para terem existência, mas convivem, obviamente, uns
completando os outros.
3.2.1 Gerações ou dimensões de direito
Após exaustivos debates acerca do Direito Positivo e do Direito Natural em que
se ampliaram as incompatibilidades entre os corifeus das duas doutrinas, finalmente,
nos séculos XVIII e XIX o ideário jusnaturalista foi secularizado, ou seja, os postulados
máximos do direito natural (igualdade e liberdade) inspiraram a concepção do Estado
Democrático de Direito, a partir do qual se pode verificar, sistematizadamente a
evolução dos direitos.
a) Direitos de primeira dimensão
Trata-se de direitos civis e políticos do indivíduo dirigidos à
liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança. (WOLKMER, 2003).
Pressupõem a igualdade formal diante da lei e o tratamento abstrato do sujeito.
Marcam a passagem da ênfase nos deveres dos súditos para a priorização dos
direitos do cidadão (OLIVEIRA JÚNIOR, 2000). Antes concebida como um
organismo que sobreleva aos elementos que o compõem, a sociedade, nesta fase
de reconhecimento de direitos civis e políticos do indivíduo, passa a ser vista de
baixo para cima, no dizer de Bobbio (1992), voltando-se o foco para o indivíduo e
seus direitos. Tal inversão de perspectiva localiza-se, temporalmente, no início da
81
era moderna, tendo como cenário as guerras de religião, onde se pugna pelo
direito de não ser oprimido.
No plano histórico, sustento que a afirmação dos direitos do homem
deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da
formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou
seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é
encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos
não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em
correspondência com a visão individualista da sociedade, segundo a
qual, para compreender a sociedade, é preciso partir de baixo, ou seja,
dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção orgânica
tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos
indivíduos. A inversão de perspectiva, que a partir de então se torna
irreversível, é provocada pelas guerras de religião, através das quais se
vai afirmando o direito de resistência à opressão. (BOBBIO, 1992, p.
4).
Segue Bobbio, afirmando que tal inversão,(indivíduo antes da sociedade),
favorecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, é irreversível e liga-se ao
que ele chama de modelo jusnaturalista, contraposto ao modelo aristotélico, silogístico e
segundo o qual o Estado precede o indivíduo.
Os documentos mais importantes e que proclamaram os direitos de primeira
dimensão antecedem a própria Declaração Universal, como as Declarações de Direitos
da Virgínia EUA (1776) e da França (1787). Posteriormente, as Constituições Norte-
americana (1787) e Francesas (1791 e 1793) consagraram positivadamente os direitos
individuais (de primeira dimensão).
São especificamente direitos negativos
34
, que estabelecidos para defender o
indivíduo contra a opressão exercida pelo Estado absolutista. Qualificar como negativos
os direitos de primeira geração não resiste a uma análise mesmo que superficial, diz
34
Direito de não ser impedido de realizar determinados atos, como por exemplo, a liberdade de
pensamento; direito à não intervenção dos entes públicos em situações jurídico-subjetivas (não violação
de correspondência); direito à não eliminação de posições jurídicas, v. g. propriedade.
82
Lima (2003). De fato, a idéia de direito negativo relaciona-se à atuação do Estado no
âmbito privado, impondo ao poder público que não interfira ali. Ora, vários direitos
de primeira geração que exigem um agir estatal para sua concretização. A segurança,
relacionada como direito fundamental de primeira dimensão, é atribuição do Estado.
b) Direitos de segunda dimensão
Como se alertou, ao invés de sucessividade, melhor se pensar em
complementaridade, pois os direitos de primeira a quinta dimensão ou geração realizam-
se simultaneamente. Aperfeiçoando, agora, a visão do homem tem-se que, além de
indivíduo, o homem recebe tratamento jurídico como pessoa integrada num contexto
social, onde desempenha um papel, onde é uma personalidade. Esta é a dimensão dos
direitos sociais e significa a transição das liberdades negativas, para os direitos que
exigem a atuação do Estado (OLIVEIRA JUNIOR, 2000). de se considerar agora,
não apenas o homem genérico, mas o homem específico, pois “os direitos de liberdade
negativa, os primeiros direitos reconhecidos e protegidos, valem para o homem
abstrato” (BOBBIO, 1992, p. 70).
São os direitos sociais, econômicos e culturais, cujo alcance é positivo e não se
colocam mais como uma proteção do cidadão contra o Estado, mas sim como o seu
reconhecimento como responsável por determinadas categorias de pessoas. O processo
de industrialização dos séculos XIX e XX interferiu na condição do homem, tornando-o
um trabalhador e um consumidor, estabelecendo, portanto, relações novas, carentes de
regulamentação. Ao Estado coube, então, arbitrar as relações entre capital e trabalho
com o fito de proteger principalmente o trabalhador dos reveses socioeconômicos
83
observados. Nasce, assim, um novo Estado, com o perfil do Bem Estar Social, cuja
filosofia política contou com alguns reforços:
A posição da Igreja Católica com sua doutrina social (a encíclica De
Rerum Novarum,, de Leão XIII, de 1891); os efeitos políticos das
Revoluções Mexicana (1911) e Russa (1917); os impactos econômicos
do keynesianismo e o intervencionismo estatal do New Deal. Cria-se
a Organização Internacional do Trabalho (1919); o movimento
sindical ganha força internacional; a socialização alcança a política e o
Direito (nascem o Direito do Trabalho e o Direito Sindical).
(WOLKMER, 2003, p. 9).
Quando se buscam os documentos mais importantes que institucionalizaram
estes direitos e o Estado do Bem Estar Social, encontra-se a Constituição Mexicana de
1917, a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, a Constituição Espanhola, de 1931 e a
Constituição Brasileira, de 1934 (WOLKMER, 2003, p.9).
c) Direitos de terceira dimensão
Nesta dimensão, o foco do direito deixa de ser o homem individual (uma
persona, desempenhando seu papel social como trabalhador, pai, consumidor) e amplia
sua incidência aos grupos, dando-lhes tratamento protetivo. Por isso se diz que estes
direitos são metaindividuais: coletivos, quando a proteção visa a grupos específicos
dentro de um universo (o melhor exemplo para isto são as associações profissionais) e
difusos, sempre que o interesse se encontre na concretude social, sem que se possa
definir quem é o titular do direito, como por exemplo, consumidores de serviços
(telefonia, eletricidade, água). Sob um enfoque objetivo, os direitos difusos não se
fracionam, é dizer, não se satisfaz o interesse de algumas pessoas apenas, deixando
outras sem proteção. Sempre que se proteja o meio ambiente, por exemplo, realiza-se o
interesse de todos da humanidade (WOLKMER, 2003).
84
Aponta o autor algumas causas para o surgimento da proteção a determinados
direitos, mostrando que um fato social, devidamente valorado demanda proteção
normativa. Aconteceu com a preocupação internacional com meio ambiente, após a
destruição causada em Hiroshima e Nagasaki por ocasião da Segunda Guerra Mundial.
35
Por força do vertiginoso desenvolvimento tecnológico, o meio ambiente encontra-se
ameaçado, razão pela qual a comunidade mundial busca instrumentos normativos
capazes de, sem frear o avanço da tecnologia, conter os danos à natureza. Conseqüência
do aperfeiçoamento tecnológico pode-se perceber também na ampliação dos bens e
serviços oferecidos, de onde a preocupação européia e norte americana em criar, nas
décadas de 70 e 80, políticas de proteção aos consumidores. Ampliando-se e
sofisticando-se a lista de bens e serviços, ampliam-se também as listas dos excluídos do
acesso a estas ofertas, o que requer providências públicas e privadas que dêem conta de
estabilizar o desequilíbrio social e de promover a reinclusão.
As transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, a amplitude
dos sujeitos coletivos, as formas novas e específicas de subjetividades
e a diversidade na maneira de ser de uma sociedade têm projetado e
intensificado outros direitos que podem ser inseridos na “terceira
dimensão”, como os direitos de gênero (dignidade da mulher,
subjetividade feminina), os direitos da criança, os direitos do idoso
(Terceira Idade), os direitos dos deficientes físico e mental (sic), os
direitos das minorias (étnicas, religiosas, sexuais) e os novos direitos
da personalidade (à intimidade, à honra, à imagem).(WOLKMER,
2003, p. 12).
Além das ações afirmativas e da jurisprudência, os principais instrumentos de
proteção aos novos direitos de terceira dimensão, decorrem de fonte legislativa. Com
efeito, as Leis 7.347/85, 8.069/90, 8.078/90, 10.741/2003 e 10.671/2003,
35
Neste ponto, a autora do presente trabalho conclui que os novos direitos sempre existiram, senão como
positivação, pelo menos como determinações do direito natural. O que se pode observar, é que sua
violação os coloca em destaque, dando-lhes visibilidade, de onde a exigência de providências normativas.
85
respectivamente da Ação Civil Pública, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código
de Proteção e Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso e Estatuto do Torcedor, apenas
para mencionar algumas, permitem constatar o labor do Poder Legislativo, o que,
certamente não é suficiente para a efetiva proteção aos grupos mencionados.
d) Direitos de quarta dimensão
Referem-se à biotecnologia e seus desdobramentos éticos e legais. Tratam de
regular a manipulação da vida, tornada possível ao homem, pelas descobertas da
engenharia genética. Segundo Wolkmer (2003, p. 12), são os direitos decorrentes da
reprodução humana assistida, aborto, eutanásia, cirurgias intra-uterinas, transplante de
órgãos, clonagem, contracepção, pesquisas com células tronco. Evidentemente, abrem-
se, a este respeito, inesgotáveis reflexões legais, éticas e religiosas, o que delonga as
tomadas de decisão normativa. Isto quer dizer que o ordenamento jurídico mundial não
dispõe ainda de regras claras e suficientes para pacificar, pelo menos juridicamente, tais
questões de tão alta indagação filosófica.
Em busca de respostas para as novas situações advindas desta seara, o
mundo jurídico viu, não apenas novos direitos, mas e sobretudo, uma nova disciplina: o
Biodireito. Seu escopo é discutir e estabelecer, à luz de princípios, normas com o fim
imediato de harmonizar as relações públicas ou privadas, individuais ou coletivas,
vinculadas à vida e a sua manipulação humana. Os valores que orientam o Biodireito
são os mesmos que orientam a Bioética, ou seja, o respeito à vida, à dignidade da pessoa
humana, à liberdade individual, à segurança, à proteção da saúde, entre outros.
(RAMPAZZO, 2006).
86
Bobbio (1992) reputa de traumáticos os efeitos da pesquisa biológica,
portanto, urgente a providência legal com o intuito de impedir os malefícios e obter os
benefícios possíveis da tecnologia em apreço. Embora o termo bioética tenha sido usado
pela primeira vez em 1971, por Van Rensselaer Potter, as reflexões acerca do assunto
foram desencadeadas a partir das experiências médicas dos nazistas na Segunda Guerra
Mundial, o que culminou com o Código de Nuremberg, em 1947, posteriormente
recepcionado pela Declaração de Helsinque, em 1964. Também ensejaram prévias
discussões bioéticas as questões relacionadas às pesquisas a respeito da procriação
assistida, por volta dos anos 70. (WOLKMER, 2003, p. 14).
Além dos dois documentos mencionados, outros, como a Lei
11.105/2005, que trata da Biosegurança Brasileira e revogou a Lei 8.974/95, Lei nº
9.434/97, versando sobre a Doação de Órgãos. Mas ainda não é suficiente.
Resta observar que esses “novos” direitos advindos da biotecnologia e
da engenharia genética necessitam prontamente de uma legislação
regulamentadora e de uma teoria jurídica (quer no que tange à
aceitação das novas fontes, quer no que se refere às novas
interpretações e às novas práticas processuais) capaz de captar as
novidades e assegurar a proteção à vida humana. (WOLKMER, 2003,
p. 14).
Para Bobbio (1992), sempre que o domínio da natureza integrar a lista de
conquistas humanas, o próprio homem pode se ver ameaçado em suas liberdades e
dignidade. Assim, cabe ao Estado intervir de modo protetor, ora impedindo os efeitos
danosos, ora implementando os benefícios daí decorrentes.
Esta dupla postura do Poder (dos Estados Soberanos ou dos órgãos
internacionais), por vezes absenteísta e por vezes intervencionista, é uma exigência
87
subjacente à terceira e à quarta “geração” de direito, conforme ensina o jus filósofo
italiano.
e) Direitos de quinta dimensão
Com a criação de uma nova dimensão de mundo, a virtual, emergem mais
novos direitos. A tecnologia da informação, voltada para a internet e para o ciberespaço,
é a responsável pelo extraordinário impacto sobre a sociedade que deixou no século XX
seus paradigmas industriais e ingressou no terceiro milênio, adotando, desde logo, a
realidade virtual e suas conseqüências (WOLKMER, 2003). Cabe neste âmbito, refletir
sobre a utilização da realidade virtual pelo Direito, para operacionalizá-lo, e cabe
também refletir sobre a demanda normativa que se impõe.
As fontes legislativas sobre o tema são escassas, destacando-se a
existência de inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso
Nacional, principalmente sobre a punição à pornografia e à violência
por meio de mensagens eletrônicas e da internet. (WOLKMWER,
2003, p. 16).
Novas modalidades de relações, verificadas num amplo espectro social,
requerem, com urgência, o devido tratamento jurídico-legal sob pena de se
transformarem em sérios problemas diante das expectativas de progresso humano e
social.
3.2.2 Quadro resumo das gerações ou dimensões de direito
Embora não se refira à quinta geração, o quadro abaixo, formulado por Lima
(2003, p.2) permite uma visualização geral e panorâmica da evolução dos novos
direitos.
88
1
a
Geração
2
a
Geração 3
a
Geração 4
a
Geração
Liberdade Igualdade Fraternidade Democracia (direta)
Direitos negativos
(não agir)
Direitos a prestações
Direitos civis e
políticos: liberdade
política, de
expressão, religiosa,
comercial
Direitos sociais,
econômicos e
culturais
Direito ao
desenvolvimento, ao
meio-ambiente sadio,
direito à paz
Direito à informação,
à democracia direta e
ao pluralismo
Direitos individuais Direitos de uma
coletividade
Direitos de toda a Humanidade
Estado liberal Estado social e Estado democrático e social
Como se percebe, os direitos vão se acumulando na medida em que a economia, a
tecnologia e a própria sociedade avançam no futuro. Ensina Bobbio (1992) que os
direitos não acontecem de súbito, mas nascem quando devem ou podem nascer,
vinculados à ampliação dos poderes dos homens sobre a natureza e sobre o próprio
homem.
Embora seja útil, sob o ponto de vista didático, por favorecer o estudo dos direitos
fundamentais, a teoria das gerações vem sofrendo críticas já que induz à idéia de
sucessividade dos direitos. Neste sentido, assim se expressa George Marmelstein Lima:
Além disso, a expressão pode induzir à idéia de que o
reconhecimento de uma nova geração somente pode ou deve ocorrer
quando a geração anterior estiver madura o suficiente, dificultando
bastante o reconhecimento de novos direitos, sobretudo nos países
ditos periféricos (em desenvolvimento), onde sequer se conseguiu um
nível minimamente satisfatório de maturidade dos direitos da chamada
"primeira geração”. (2003, p. 3).
Não é este o entendimento de Bobbio (1992, p. 70). Para ele não há sucessividade,
mas complementaridade, conforme deixa claro na expressão “os direitos de liberdade
evoluem paralelamente ao princípio do tratamento igual”, ou na interpretação que faz do
89
sentido do art. 1º da Declaração Universal, in verbis: todos os homens nascem iguais em
liberdade e direitos.
Bobbio ressalta o duplo sentido da expressão: “os homens têm igual direito à
liberdade” e “os homens têm direito a uma igual liberdade”. Fica, portanto, afastada a
hipótese de que ele tenha formulado a teoria sobre a base da substituição de direitos.
O direito, contudo, concebido na forma de ordenamento, é e sempre será
insuficiente para acompanhar a velocidade com que acontecem as transformações
sociais, mas isto não exime o Estado do ônus da prestação jurisdicional e da
normatização. Mesmo deficiente em termos de normas, o direito tem de dar conta das
novas situações. Nunca é demais repetir que se está diante de um grande e eterno
desafio, superável até então, com a adequada aplicação da hermenêutica.
3.3 Fundamentação dos novos direitos
Fundamentam-se os novos direitos sob enfoque subjetivo e sob enfoque objetivo,
segundo ensina Canotilho. Objetivamente, os direitos fundamentais repercutem na
coletividade quando se referem à liberdade de expressão ou a um valor geral.
Na perspectiva subjetiva se perquire sobre seus efeitos no indivíduo, tomando-o
como o centro dos direitos. Considerados como direitos subjetivos, contrapõem-se ao
dever objetivo do Estado de consagrar, proteger e, sobretudo, de viabilizá-los.
O autor português aponta para a prevalência dos direitos individuais sobre os
coletivos, quando ambos estejam em conflito, alertando que para o direito o homem
90
deve ser considerado em seu duplo aspecto: pessoa e indivíduo
36
. Quando não
coincidirem as duas dimensões, o indivíduo preterirá a pessoa. Canotilho faz tal ilação
da Constituição Portuguesa, que estabelece defesa, por exemplo, do grupo de
trabalhadores. Ora, em conflito, direitos do trabalhador (pessoa) e do homem
(indivíduo), entende o constitucionalista português, que prevalecerá o interesse do
último.
[...] sua autodeterminação e desenvolvimento se obtenha também
através do reconhecimento de direitos fundamentais a certas
formações sociais onde ele (indivíduo) se insere. Por vezes poderá
existir uma relação de tensão entre estas duas dimensões, ou seja,
entre um direito como direito do indivíduo e um direito da pessoa na
sua qualidade de “unidade interactiva”, inserida em formações sociais,
mas a CRP parece apontar, ainda neste caso, para o princípio da
prevalência do caráter subjectivo individual [...]. (CANOTILHO, p.
1125).
Considere-se como fundamento dos novos direitos, a sociedade ou o indivíduo,
a dignidade da pessoa humana é, em última análise, o valor máximo que deveria
desencadear o surgimento dos direitos em todas as épocas da história da humanidade.
Mais como um reforço à idéia da implicação novos direitos, direitos
fundamentais e direitos humanos, é bom observar que Donnelly, ao considerar a grande
variedade de temas sobre os quais dispõe a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, desde a vida até o lazer, sugere que se os compreendam combinando
perspectivas do direito, da ciência política, da economia e da sociologia, além da
filosofia.
36
Interessante a noção portuguesa a respeito de pessoa e indivíduo trazida por Canotilho. Ele diz que
“pessoa é uma unidade interativa, centro de referência de relações sociais”, diferente, portanto do
indivíduo, o homem, desvinculado do seu papel social. Outro autor, também português compartilha da
mesma concepção e a destaca, como fator de distribuição de justiça. Trata-se de Paulo Ferreira da Cunha.
91
Considere-se a variedade de questões abordadas pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que reconhece direitos pessoais à vida, nacionalidade,
reconhecimento perante a lei, proteção contra tortura, e proteção contra
discriminação em razão de raça e sexo; direito a um julgamento justo, a
presunção de inocência e proteções contra leis ex post facto, prisão arbitrária,
detenção ou exílio, e interferência arbitrária na família, casa ou reputação de
alguém; uma variedade de liberdades civis e direitos políticos; direitos de
subsistência, à alimentação e à saúde; direitos econômicos, ao trabalho, ao
descanso, ao lazer e à segurança social; direito social à educação e à proteção
da família; direito de participar da vida cultural da comunidade. Uma
quantidade abrangente destes direitos demandaria que combinássemos, no
mínimo, as perspectivas de direito, ciência política, economia e sociologia,
além da filosofia, se quisermos entender as bases conceituais dos direitos
humanos e as justificações para esta lista. (DONNELLY, 2003, p. 2)
37
A lista de direitos humanos inclui os novos direitos e os direitos fundamentais,
sob a mesma fundamentação. O fundamento que justifica e explica os direitos humanos
são os mesmos que justificam e explicam os direitos fundamentais e os novos direitos.
3.4 O problema da concretização dos novos direitos
Na constante busca da justiça, reconhecer e consagrar direitos significa apenas
um primeiro passo, que deverá ser, necessariamente, seguido da concretização desses
direitos. Esta questão suscita discussões acerca do acesso à justiça
38
e alcança o direito
formal ou adjetivo, mais diretamente que o direito material ou substantivo. Cabe,
evidentemente, ao direito processual viabilizar aqueles direitos que, embora
estabelecidos pelo direito material, não foram efetivados.
37
Consider the range of issues covered by the Universal Declaration of Human Rights, wich reconizes
personal rights to life, nationality, recognition before the Law, protection against torture, and protection
against discrimination on such bases as race and sex; legal rights to a fair trial, the presumption of
innocence, and protections against ex post facto laws, arbitrary arrest, detention or exile, and arbitrary
interference with one’s family, home, or reputation; a comparable variety of civil liberties and political
rights; subsistence rights to food and health care; economic rights to work, rest and leisure, and social
securuty; social rights to education and protection of the family; and the right to participate in the cultural
life of the community. A comprehensive account of these rigths would require that we combine, at
minimum, the perspectives of law, political science, economics, and sociology, plus philosophy, if we
want to understand the conceptual foundations of human rights and the justifications for this particular
list.
38
Tema complexo e que tem sido matéria prima na elaboração de textos importantes como o de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth (2002).
92
A concretização de tais direitos depende também da tutela judicial, que, em
linguagem de direito processual, significa a obrigação que tem o Estado de proteger ou
resguardar interesses jurídicos (NEVES, 1997, p. 1836). À obrigação do Estado
corresponde o direito do cidadão ao acesso efetivo à justiça que
[...] tem sido progressivamente reconhecido como sendo de
importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma
vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência
de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça
pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais
básico dos direitos humanos- de um sistema jurídico moderno e
igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de
todos. (CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 11).
Todas as transformações, pelas quais a sociedade tem passado, evidentemente
produzem crises paradigmáticas que exigem mudanças de comportamento e adequação
às realidades insurgentes. Tal exigência é premente quando se percebe, na virada do
milênio, um novo cenário, agora composto por “novos atores sociais, demandas e
necessidades emergenciais, conflitos plurais e degradação do ecossistema.”
(WOLKMER, 2003, p. 21). Enquanto o direito não se adaptar, não poderá dar conta dos
novos direitos. Adaptar-se, significa, na visão de Wolkmer, a transposição do modelo
jurídico predominantemente individualista, para um direito de perspectiva coletiva; a
mitigação da dogmática com a utilização mais freqüente de princípios; o
direcionamento do direito para uma concepção interdisciplinar e solidária. (2003, p. 21).
Necessária para a efetividade e eficácia dos novos direitos, proclamados ou não
pelo direito material, é a adequação do direito formal, que de fato, tem sido observada.
[...] sobre a defesa do meio ambiente, consumidor, criança e
adolescente, aposentado etc. duas décadas atrás (sic) significaria
abordar temas que não faziam parte real do mundo jurídico e muito
menos do direito processual. Houve de fato uma superação do
processo civil clássico ligado essencialmente aos interesses
intersubjetivos, para uma adaptação à solução de conflitos de massa;
93
com vistas a esta adaptação decorreu a necessidade da remodelação de
antigos dogmas da processualística tradicional, principalmente os
atinentes à coisa julgada, à legitimação e poder do Juiz. (LEITE, apud
WOLKMER, 2003, p. 22).
Os instrumentos que puderam trazer a tônica da coletividade para o Direito
Processual, capacitando-o a tutelar interesses meta individuais são, por exemplo, a Lei
7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), a Lei 7.853/89 (Proteção às Pessoas
Portadoras de Deficiência), a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), a Lei nº 9.605/98 (Proteção
Ambiental), a Lei 10.743/03 (Estatuto do Idoso), anteriormente mencionados, que,
além de consagrar, formalmente, direitos conquistados, estabelecem também os
procedimentos para a concretização dos referidos direitos.
Pugnam, alguns autores brasileiros, como Wolkmer (2003) e José Rubens Morato
Leite, que além de se explorarem as possibilidades do direito positivo nacional (do qual
as mencionadas leis, destinadas à proteção dos novos e insurgentes direitos, fazem
parte), através, principalmente das Ações Constitucionais
39
, deve-se buscar uma nova
postura dos operadores do direitos, bem como a criação de mecanismos alternativos
40
.
Assim, na busca de elementos para uma teoria geral dos “novos”
direitos, além das diretrizes abertas pela ordem constitucional (art. 5º,
§ 2º) e dos instrumentos flexíveis advindos de um “novo” direito de
ação e de uma nova postura de seus operadores, importa assentar a
rica complementação que podem revelar e oferecer as práticas
extrajudiciais e a pluralidade auto-reguladora no espaço do direito
não-oficial. (WOLKMER, 2003, p. 24).
39
São Ações Constitucionais o Habeas Corpus (tutela a liberdade de locomoção), o Habeas Data (tutela o
direito de informação), o Mandado de Segurança individual ou coletivo - (tutela o direito líquido e
certo), o Mandado de Injução (tutela os direitos relativos à nacionalidade, soberania e cidadania que não
possam ser exercidos diante da falta de norma regulamentadora), a Ação Civil blica (tutela os
interesses difusos e coletivos). (CANOTILHO).
40
Wolkmer (2003), relaciona, como meios alternativos os juízos arbitrais, a criação de comitês ou
conselhos populares de Justiça, criação de tribunais de bairros e de vizinhança, justiça itinerante.
94
Além da proteção e concretização dos direitos novos que surgem inexoravelmente
na medida em que a sociedade se transforma, de se pensar nos conflitos que possam
emergir e providenciar para eles não ficarem fora da apreciação do Estado Juiz, na falta
do Estado Legislativo. Sempre houve, repita-se, defasagem entre o direito constituído e
a realidade social, no entanto, o próprio ordenamento jurídico recomenda, pelos arts.
e da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)
41
, que se encontrem, além do direito
formalmente estabelecido, as soluções judiciais para conflitos sociais, o que exige,
evidentemente, a adequada postura do operador do direito. Esta postura passa, sem
nenhuma dúvida, pela questão hermenêutica, a ser examinada no próximo capítulo.
41
LICC, art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito. Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige
e às exigências do bem comum.
95
4 A hermenêutica como instrumento de realização do direito justo,
completo e coerente
A razão de ser deste trabalho outra não é senão a problemática da sociedade em
constante transformação e cada vez mais exigente em temos de proteção jurídica para
suas relações individuais, coletivas e difusas, bem como às suas instituições emergentes.
O direito não pode mais sacrificar os postulados da justiça ao apego à tradição,
mas não pode, da mesma forma, desvincular-se da autoridade que o põe, o que à
primeira vista pode parecer um desafio intransponível, eis que o direito posto pela
autoridade é o tradicional. A transposição deste dilema se poderá dar pela hermenêutica.
4.1 Aspectos gerais acerca da hermenêutica
Nada melhor, para examinar um tema árido, que empreender uma passagem pelo
dicionário e assim, iniciar o exame do termo em questão.
Hermenêutica: ciência, técnica que tem por objeto a interpretação
de textos religiosos ou filosóficos, especialmente das Escrituras
Sagradas. Interpretação dos textos, do sentido das palavras. Ciência
voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico.
Conjunto de regras e princípios usados na interpretação do texto
legal (HOUAISS, 2001, p. 1519).
Em razão das especificidades dos vários setores do conhecimento humano, tem-
se várias espécies de hermenêutica. A jurídica, por sua vez, estabelece critérios
adequados e compatíveis com o significado e o sentido da ciência jurídica, conforme se
depreende do verbete acima.
Etimologicamente a palavra hermenêutica deriva do grego (hermeneuein), e liga-
se a Hermes, filho de Zeus e Maia, cuja missão é transmitir e esclarecer aos mortais, as
96
mensagens dos deuses. Como os deuses não falavam diretamente para os mortais, nunca
se soube o que eles disseram, mas tão somente o que Hermes disse que eles disseram.
Trata-se, pois, de uma (inter)mediação. Desse modo, a menos que se
acredite na possibilidade de acesso direto às coisas (enfim, à essência
das coisas), é na metáfora de Hermes que se localiza toda a
complexidade do problema hermenêutico. Trata-se de traduzir
linguagens e coisas atribuindo-lhes um determinado sentido
(STRECK, 2008a, p. 97).
Ora, se o Direito visa a atender as exigências da vida social mantendo o
equilíbrio e harmonia das relações
42
, é certo que os critérios hermenêuticos haverão de
se ajustar a tal sentido. Disto decorre a percepção até intuitiva de que, uma vez alterada
a tessitura social, em se mantendo o direito até certo ponto intacto, deverão ser
atualizados os postulados e posturas hermenêuticos.
43
Questão insuperável se apresenta, no entanto, quando se colocam frente a frente
a realidade social, altamente dinâmica e espontânea e a estrutura jurídica, quase sem
dinamismo, por sua gênese intelectual, e portanto, reflexiva, de onde sobressai o
anacronismo do direito em relação à dinâmica social. Tal constatação se reforça pelo
seguinte pensamento:
As formas sociais se diferenciam de todas as demais concreções do
espírito objetivo pelo fato simples, porém fundamental, de que são
formas cuja matéria é a vida, enquanto as obras de arte, os sistemas
jurídicos, os idiomas etc. são obras criadas pelo espírito humano e
que, embora possuam um sentido, não arraigam vida em si [...]
(FREYER, apud BASTOS,2001, p.17).
É certo que a sociedade se transforma, conforme se examinou no primeiro
capítulo; o ordenamento jurídico se constrói sobre a base teórica de direito positivo,
como se viu no segundo capítulo. Por esta razão, a hermenêutica jurídica deverá,
42
É assim que Miguel Reale conceitua o direito: A ordenação heterônoma, coercível e bilateral
atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores
(2002, p. 67).
43
Veja-se delineado neste raciocínio um esboço para a inserção da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmman, conforme se discutiu no primeiro capítulo do presente trabalho.
97
necessariamente, proporcionar a indispensável adequação, que não se pode deter o
curso da evolução social, como também não se pode pretender um rompimento com a
ordem jurídica estabelecida. Desta forma, o descompasso entre o tempo que leva a
sociedade para movimentar-se e o tempo que leva o direito para adequar-se, traduz-se
num distanciamento insuperável, a não ser que se recorra a uma hermenêutica
renovadora e atualizadora do direito.
Novos direitos exigem um direito novo, não sob o ponto de vista estrutural do
ordenamento jurídico, mas sob o enfoque funcional da hermenêutica e do processo. Dito
de outra maneira, o ordenamento jurídico, considerado como um sistema de normas
construído intelectual e reflexivamente, é sempre anacrônico em relação às
transformações sociais, por mais que se esforce o labor legislativo para atualizá-lo.
Então, não é apenas criando normas que se atende aos novos direitos, mas aplicando,
com um jeito novo (ponto central do presente capítulo) as já existentes.
Segundo o pensador clássico da hermenêutica no Brasil, Carlos Maximiliano,
antes de se iniciar qualquer estudo acerca da hermenêutica jurídica é necessário
estabelecer a distinção nas acepções de hermenêutica e interpretação, sob pena de se
carrear sérios problemas para a tecnologia. A relação entre uma e outra está em que a
primeira estabelece, aproveitando-se das conclusões da Filosofia do Direito, princípios e
processos de interpretação; esta, socorrendo-se dos instrumentos teóricos fornecidos por
aquela, determina o sentido e alcance do direito. Em outras palavras, a interpretação é a
aplicação da hermenêutica, segundo a assertiva a hermenêutica é a teoria científica da
arte de interpretar” (2000, p. 1). Explica ainda que a tendência perniciosa de se tomarem
por sinônimos os termos hermenêutica e interpretação origina-se na língua alemã. O
correspondente alemão à “interpretação” é auslegung, mas seu significado é mais
98
abrangente que “interpretação”, pois encerra também a idéia de “construção”. Portanto,
para os tedescos hermeneutik e auslegung são usados como sinônimos sem nenhum
problema (2000, p. 2).
Não sinonimizar hermenêutica e interpretação preocupa também a outros
juristas. Bobbio assevera que interpretar é tarefa da jurisprudência, e os juízes, ao julgar,
o fazem com os recursos da hermenêutica, o que, a propósito atrai as críticas dos
opositores ao positivismo jurídico
44
(1996b, p.133).
Na mesma esteira, Vicente Ráo apresenta uma tríade com elementos distintos,
porém, incindíveis uns dos outros:
A hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar por modo
sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que
disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas
jurídicas e a restauração do conceito orgânico do direito, para o efeito
de sua aplicação; a interpretação, por meio de regras e processos
especiais, procura realizar, praticamente, estes princípios e estas leis
científicas; a aplicação das normas jurídicas consiste na técnica de
adaptação dos preceitos nela contidos e assim interpretados, às
situações de fato que se lhes subordinam (1999, p. 456).
No dizer de Ráo, o que distingue hermenêutica, interpretação e aplicação (os três
elementos da tríade) “é a diferença que vai entre a teoria científica, sua prática e os
diferentes modos técnicos de sua aplicação” (1999, p. 456). Disto se pode deduzir a
possibilidade matemática de várias combinações de elementos, o que redunda em vários
resultados aptos a orientar a solução de conflitos, e a conseqüente exigência de decisão
discricionária do juiz. Evidentemente, os opositores ao positivismo jurídico apontam a
discricionariedade judicial como um dos principais “nervos expostos” do direito
tradicional. De fato, são sempre contundentes as observações adversárias, como se
verifica em Lenio Luiz Streck (2007), cujas idéias serão, oportunamente, trazidas ao
presente trabalho.
44
Questão a ser debatida mais adiante.
99
Continuando com os aportes doutrinários acerca da distinção entre hermenêutica
e interpretação, chama a atenção o tratamento dispensado ao assunto pelo jusfilósofo
brasileiro, Miguel Reale. A forma como nomeia um dos seus capítulos induz ao
entendimento de que ele não se importa com a distinção entre os termos, até porque, ao
longo do texto não se vê nenhum esclarecimento a respeito: “Da Hermenêutica ou
interpretação do direito”. É assim que ele nomeia um dos seus capítulos (2002, p. 277).
Para Reale, a interpretação representa um desvelar leis para compreender seu sentido e
fim para aplicá-las à universalidade de fatos que correspondam aos objetivos da lei
interpretada.
Não é esta, no entanto, a discussão que se pretende desenvolver, mas sim a
importância de uma nova hermenêutica para efetividade e concretização dos novos e
dos velhos direitos. Far-se-ão incursões nos aspectos metodológicos, dogmáticos e
filosóficos, capazes de delinear contornos diferentes para uma mesma hermenêutica, de
acordo com diferentes propostas de diferentes pensadores.
4.2 Hermenêutica ou hermenêuticas?
Inicialmente, a palavra de Bobbio é no sentido de se considerar a hermenêutica
jurídica como um método da ciência do direito:
[...] método da ciência jurídica, isto é, o problema da interpretação
(entendendo-se o termo “interpretação” em sentido muito lato, de
modo a compreender toda a atividade científica do jurista:
interpretação stricto sensu, integração, construção, criação do
sistema): o positivismo jurídico sustenta a teoria da interpretação
mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento
declarativo sobre o produtivo ou criativo do direito (empregando uma
imagem moderna, poderíamos dizer que o juspositivismo considera o
jurista uma espécie de robô ou de calculadora eletrônica). Este foi o
ponto escolhido pelos adversários para desencadear a contra-ofensiva
contra o positivismo jurídico o que gerou logo um debate tremendo,
chamado pelos alemães de “batalha dos métodos” (Methodenstreit)
(1996b, p. 133).
100
O trecho transcrito é o sexto ponto de um rol de sete características vistas pelo
jusfilósofo italiano, como os principais alvos de ataque ao positivismo jurídico.
Concebida como uma espécie de dogmática, a hermenêutica jurídica, para
Tércio Sampaio Ferraz Junior, equivale à Ciência do Direito como Teoria da
Interpretação, cuja tarefa é determinar o sentido da normas, seu alcance e intenções,
tornando viável a decisão judicial na solução de conflitos. Antes disto, o autor trata da
dogmática analítica que tem por escopo identificar o direito e o faz, partindo do
conceito fundamental da validade da norma jurídica. Assim, a norma jurídica válida é o
dogma a partir do qual se constrói o saber jurídico. Ultrapassada a etapa da identificação
do direito, sobra a tarefa da hermenêutica que consiste em “determinar sob que
condições o direito identificado será entendido” (2003, p. 256), para que possa ser
aplicado na decisão judicial, em atendimento ao princípio do non liquet. Convém
lembrar que o referido princípio se traduz no “caráter compulsório da decisão que a
dogmática jurídica impõe ao juiz” (LAFER, apud FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 17).
Para compreender melhor o acento dogmático impresso na hermenêutica por
Tercio, tenha-se claro que dogmática opõe-se a zetética, conforme ele dispõe:
Uma disciplina pode ser definida como dogmática à medida que
considera certas premissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes
de uma decisão), como vinculantes para o estudo, renunciando-se,
assim, ao postulado da pesquisa independente. Ao contrário das
disciplinas zetéticas, cujas questões são infinitas, as dogmáticas tratam
de questões finitas.por isto podemos dizer que elas são regidas pelo
que chamaremos de princípio da proibição da negação, isto é,
princípio da não-negação dos pontos de partida de séries
argumentativas, ou ainda princípio da inegabilidade dos pontos de
partida (2003, p. 48).
Bom exemplo disto para o direito contemporâneo é o princípio da legalidade que
vincula o jurista às bases legais como premissas de pensamento sobre o comportamento
humano juridicamente possível. Embora não ao jurista a liberdade de pensar contra a
101
lei, a dogmática não se reduz ao seu princípio básico (inegabilidade dos pontos de
partida)
45
, mas apenas depende dele (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 49).
Por sua vez, Lenio Luiz Streck arquiteta a hermenêutica a partir do enfoque
filosófico e propõe o rompimento com o esquema sujeito/objeto, através da
fenomenologia hermenêutica (STRECK, 2008a).
Profundamente arraigada no conceito de sistemas, a hermenêutica proposta por
Streck é a gadammeriana e vincula interpretação, compreensão e pré-compreensão de
acordo com a seguinte relação:
... para interpretar, necessitamos compreender; para compreender,
temos que ter uma pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do
sentido que se funda essencialmente em uma posição prévia
(Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff)
que já une todas as partes do “sistema” (2008a, p. 100).
Isto significa que a interpretação se liga fortemente ao “nosso modo de ser no
mundo”, e que, portanto, se “estamos condenados a interpretar”, o fazemos conforme
nossa constituição existencial, a partir da nossa faticidade e historicidade. O problema é
afastar a discricionaridade, ou seja, a escolha do sentido que mais convém ao intérprete
(STRECK, 2008a).
O homem é um sujeito histórico “jogado no mundo”, que conclamado a viver
em torno das possibilidades percebidas pela sua finitude, não tem como fugir da sua
própria compreensão de mundo.
O processo de compreender não é controlável, não é calculável e
tampouco passível de ser aprisionado tecnicamente. Por isto a
hermenêutica não é método, não é procedimento, mas modo-de-ser-
no-mundo, uma relação histórica do homem com a complexidade dos
acontecimentos percebidos pela sua natureza finita (LUCAS, 2007, p.
22)
.
45
Este princípio é considerado por Luhmman no desenvolvimento da sua teoria dos sistemas, conforme
expressa Ferraz Júnior no capítulo sobre a Dogmática Jurídica (2003, p. 47 et seq).
102
Considerando que interpretar é encontrar o sentido de um texto, forçoso admitir
a inafastável questão do discurso e as técnicas, leis e princípios (padrões científicos,
portanto), que envolvem a linguagem. Interpretar, desta forma, consiste em fazer
referências a normas que se revelam por enunciados, cujo sentido contextualiza-se nas
condições sociais historicamente caracterizadas (CANOTILHO). Por esta razão, o
constitucionalista português acredita que na tarefa de interpretar não de se buscar
uma intenção qualquer, seja da lei (voluntas legis), na interpretação objetiva; seja do
legislador (voluntas legislatoris), na interpretação subjetiva, mas sim o sentido que
resulta da convenção lingüística. Este argumento pode marcar
... uma decidida ruptura com a metodologia tradicional quer na
interpretação subjectiva (interpretação = investigação da mens
legislatoris) quer da interpretação objectiva (interpretação =
investigação da mens legis). A atribuição de um significado
(mediação semântica de um enunciado lingüístico-normativo) não
procura ou investiga “vontades” com “pré-existência real”; estas
“vontades” podem ser tomadas em conta no processo de
interpretação se e na medida em que tenham expressão lingüística
(CANOTILHO, p. 1083).
A escolha do intérprete deverá recair numa ou noutra época da convenção
lingüística: naquela do tempo em que a norma foi elaborada, então, numa postura
histórica ou naquela do tempo da aplicação da norma, assim, tida como postura
atualista. Estas posturas equivalem, respectivamente, às teorias subjetivista e objetivista
de interpretação (SILVA E COSTA, 2002).
Grande problema enfrentam os juristas. Evidentemente todos os comprometidos
com a justiça anelam contribuir para que os direitos consagrados abstrata e
genericamente sejam concretizados. Não se discute que o que se busca é o sentido da
lei, o problema é saber se seu sentido está na própria lei ou na vontade do legislador.
Uma das soluções propostas, em relação ao problema, consiste em
afirmar que o sentido da lei não pode ser senão a vontade do
103
legislador. Os defensores de tal postura argumentam deste modo: a lei
é obra do poder legislativo; este se vale dela para estabelecer o direito;
em conseqüência, seu sentido deve ser o que o autor pretendeu dar-
lhe. Haverá, pois, que investigar o que o legislador quis dizer, já que a
lei é uma expressão sua (MAYNEZ, 2001, p. 327)
46
Máynez explica que a tese acima repousa na idéia de que a legislação, que põe
as normas de direito, é a vontade do legislador, logo, o direito é o direito que ele, o
legislador quer. Critica, contudo tal entendimento, anotando que nem sempre o que quer
o legislador coincide com o que ele expressou na lei. Para expressar aquilo que deseja, o
legislador haverá de valer-se de um conjunto de signos, cujo significado outras pessoas
desvelarão. A significação dos signos empregados pelo autor da lei não dependem dele,
a não ser em estreitíssima escala, o que pode provocar inadequações entre o que se
pretendia expressar e o que de fato se expressou. Logo, “lo susceptible de interpretación
no es la intención real del sujeto, sino las formas expressivas que emplea” (MÁYNEZ,
2001, p. 328). Apesar disto não se deve pensar numa interpretação puramente
gramatical. A hermenêutica disponibiliza para o intérprete outros elementos, como as
investigações histórica, sistemática, teleológica e mais recentemente com maior ênfase,
a principiológica, com base nos princípios constitucionais, a partir do conceito
socializante da constituição (CANOTILHO).
Inegavelmente, interpretar o direito é uma exigência de justiça que supõe a
passagem por todos os métodos hermenêuticos, nem sempre sucessivamente, mas como
um ato complexo e único (BETIOLI, 1996). Depois de proceder à investigação
gramatical o intérprete deverá socorrer-se de processos subseqüentes para confirmar,
46
Una de las soluciones propuestas, em relación com el problema, consiste em afirmar que el sentido de
la ley no puede ser sino la voluntad del legislador. Los defensores de tal postura argumentan de este
modo: la ley es obra del poder legislativo; este se vale de ella para establecer el derecho; em
consecuencia, su sentido debe ser el que su autor pretendió darle. Habrá, pues, que investigar lo que el
legislador quiso decir, ya que la ley es expressión suya.
104
refutar ou aperfeiçoar os resultados iniciais da pesquisa interpretativa (RÁO, 1999, p.
485).
4.3 A hermenêutica tradicional
Conforme se verá a seguir, a tarefa interpretativa obedeceu a uma evolução do
pensamento dos estudiosos do direito. Melhor dizer, a hermenêutica tem evoluído, por
conta das exigências sociais e do espírito criativo dos juristas. A hermenêutica
tradicional, superada pelas hermenêuticas principiológicas, pautou-se no ordenamento
jurídico como pressuposto para interpretação e organizou-se metodologicamente.
4.3.1 Métodos de interpretação
No intuito de guiar o intérprete na tarefa árdua e fundamental de interpretar para
melhor construir e aplicar o direito, a hermenêutica jurídica estabelece métodos dos
quais se socorrerá o jurista. Aliás, a dogmática jurídica aponta mesmo para a
hermenêutica tradicional, assentada em elementos e métodos axiais. Assim é porque a
hermenêutica dogmática cinge-se ao dever-ser ideal da interpretação, dotada de
segurança, pois baseada em métodos estabelecidos segundo os critérios da correção ou
coerência, do consenso e da justiça.
A coerência ou a busca do sentido correto exige um sistema
hierárquico de normas e conteúdos normativos. O consenso ou a
busca do sentido funcional exige respaldo social. A justiça ou a busca
do sentido justo exige que se atinjam os objetivos axiológicos do
direito. Em função deles, podemos falar em métodos lógico-
sistemático, sociológico e histórico e teleológico-axiológico
(FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 286).
Vicente Ráo (1999) menciona que a interpretação se faz por meio de processos,
como o gramatical ou filológico; o gico, com desdobramentos em gico-analítico,
lógico-sistemático e gico-jurídico ou científico; histórico; e sociológico, que
105
correspondem à utilização dos instrumentos gramaticias, históricos, sistemáticos e
teleológicos.
Além das interpretações pelos métodos gramatical, sistemático, histórico e
evolutivo, Miguel Reale acrescenta os métodos da Escola da Livre Pesquisa do Direito e
a Escola do Direito Livre (2002).
É possível reunir em Correntes ou Escolas as tendências e preferências pela
utilização de um ou de outro método. Assim, na esteira de Miguel Reale (2002), tem-se
a Escola da Exegese, Escola Histórico-evolutiva, Escola do Direito Livre e Escola da
Livre Investigação Científica do Direito, sobre as quais se discorrerá com brevidade,
apenas como informação circunstancial, a completar o pano de fundo onde se desenrola
o presente tema.
4.3.2 Escolas tradicionais de interpretação e sua crítica
A Escolástica impregnou o direito com o princípio in claris cessat interpretatio
(embora expresso em latim, o brocardo não tem origem romana, pois dos romanos era
exigido interpretar os textos), com o intuito de evitar a desvirtuação do que diziam os
textos claros. Isto se deve ao fato de que o raciocínio escolástico reduziu a hermenêutica
a uma casuística cheia de meandros, o que exigia a intervenção de doutores com seus
pareceres para decifrar os textos. Quem pretendesse desvirtuar os textos encontrava
terreno propício. O princípio in claris cessat interpretatio, cujo conteúdo é: “textos
claros não devem ser interpretados”, surgiu na hermenêutica com o fim de restabelecer a
certeza e a estabilidade do Direito, evitando, assim, que os textos fossem substituídos
por entendimentos particulares dos hermeneutas (MAXIMILIANO, 2000).
106
A reação à reação, quer-se dizer, a reação ao princípio que impedia a interpretação
de textos claros e remetia a uma literalidade absoluta da lei, deu-se aos poucos, com a
percepção de que o referido princípio traz em si a sua própria insustentabilidade. De
fato, a simples conclusão de clareza ou obscuridade de um texto, decorre, naturalmente
de um processo interpretativo. Assim, na metade final do século XIX, Savigny
fundamentou a necessidade de se interpretarem os textos legais: “Admitir uma
imperfeição acidental das leis, como condição necessária da interpretação, é considerá-
la como um remédio a um mal, remédio cuja necessidade deve diminuir à medida que as
leis se tornem mais perfeitas.” (Apud NADER, 2002, p. 258). Por outro lado, de se
considerar que as palavras são apenas o invólucro das idéias a serem desveladas
juntamente com os valores subjacentes. Neste passo, rejeita-se o princípio e inaugura-
se, ou restabelece-se, a interpretação científica do direito, que por razões meramente
didáticas organiza-se, em razão de sua doutrina e metodologia, em correntes ou escolas.
O Positivismo Jurídico, no intuito de ser fiel à vontade do legislador, prima pela
interpretação textual do direito, utilizando-se de quatro expedientes ou meios
hermenêuticos que Bobbio (1996b) nomeia como meio léxico, meio teleológico, meio
sistemático e meio histórico. O primeiro consiste em se definir o significado dos termos
usados pelo legislador, com base em contextos lingüísticos. É o elemento gramatical. O
segundo meio, ou elemento teleológico destaca a ratio legis cujo significado é o motivo
e finalidade do legislador ao por a lei. No terceiro meio hermenêutico, o sistemático,
busca-se identificar a coerência do legislador como um pressuposto de fidelidade do
sentido da norma interpretanda ao sentido das demais normas do ordenamento jurídico.
Finalmente, o meio histórico tem como finalidade reconstruir a vontade do legislador,
levando-se em consideração a occasio legis, isto é, os contextos, espacial e temporal do
107
perfil social, como por exemplo, a definição dos valores predominantes à época de
elaboração do texto a ser interpretado.
4.3.2.1 Escola de Exegese
A Escola da Exegese, que surgiu no século XIX com o objetivo de estudar o
Código de Napoleão (BOBBIO, 1996b, p.83), apóia-se no método tradicional ou
clássico de interpretação, em que prevalece o meio gramatical e a gica interna, como
conseqüência do pensamento predominantemente codicista da Escola. Isto quer dizer
que para os adeptos da Escola de Exegese os códigos (direito escrito e posto pelo
Estado) contêm todo o direito possível, ou seja, não apresentam lacunas. Não caberia ao
intérprete procurar direitos além dos que se dispõem na lei. Repeliam-se os costumes e
outras fontes vivas de direito, do que se conclui que a única fonte de direito é o Estado.
Sustentam, também, os seguidores da referida escola, que “a única interpretação correta
seria a que traduzisse o pensamento de seu autor” (NADER, 2002). Elegeram como
postulados básicos da Escola, o dogmatismo legal, a subordinação à vontade do
legislador (teoria subjetivista) e a crença no Estado como único autor do direito
(NADER, 2002). Bobbio amplia esta relação de postulados, acrescentando “a inversão
das relações tradicionais entre direito natural e direito positivo”
47
e o “respeito pelo
princípio de autoridade” (1996b).
Com a metodologia descrita, interpretar o direito, além de restringir seu alcance
produz seu endurecimento. Neste sentido, assim se expressa Miguel Reale:
O dever do jurista era ater-se
ao texto, sem procurar soluções
estranhas a ele. Lançaram-se, assim, as bases do que se costuma
denominar Jurisprudência conceitual, por dar mais atenção aos
preceitos jurídicos, esculpidos na lei, do que às estruturas sociais, aos
47
“Em lugar de mensurar a validade do direito positivo com base na sua conformidade com o natural,
afirma que este último é tanto mais relevante quanto seja consagrado pelo primeiro” (DEMOLOMBE,
apud BOBBIO, 1996b).
108
campos de interesse aos quais aqueles conceitos se destinam (REALE,
2002, p. 278).
Criticável sim, na medida em que a Escola produz os efeitos estagnadores do
direito pela utilização fetichista dos métodos, e sobretudo porque não se utiliza mais
amplamente da hermenêutica que oferece suporte para que o direito seja construído,
interpretado e aplicado conforme as exigências sociais. Ora, o Código Civil Francês foi
promulgado num país essencialmente agrícola onde ainda eram incipientes as idéias de
mecanização da Revolução Industrial no mundo. a partir das transformações sociais
ocorridas com o avanço científico e tecnológico trazido pelo capitalismo industrial,
verificou-se o desajuste entre a lei e a sociedade, pois a ampliação dos bens, interesses
e sujeitos de direito fugia do âmbito do Código Civil, cada vez mais obsoleto em relação
aos fatos. A idéia de “plenitude legal” da Escola da Exegese reduziu-se a mera
pretensão, razão pela qual cogitou-se de novos meios de interpretação que pudessem
resultar mais adequados ao momento (REALE, 2002).
4.3.2.2 Escola Histórico-Evolutiva
A partir da idéia de que a lei representa uma realidade histórica, situada na
progressão dos tempos, a Escola Histórica de Savigny inspirou o novo caminho de
interpretação, agora capaz de manter o direito atualizado, de acordo com as vicissitudes
sociais (REALE, 2002).
Transformam-se as situações, interesses e negócios que teve o Código
em mira regular. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas
idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia
presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isto se deve censurar
o legislador, nem reformar sua obra. A letra permanece: apenas o
sentido se adapta às mudanças que a evolução opera na vida social
(MAXIMILIANO, 2000, p. 12).
109
Com o fito de manter o direito atualizado era mister que o intérprete se libertasse
das fórmulas estratificadoras. Ora, o direito deve ser um reflexo da evolução social. Em
não o sendo ele pode se tornar inócuo, ou o que é pior, lesivo à sociedade. O
pensamento da Escola é o de que não se pode aprisionar o direito no passado em que ele
foi elaborado. Paulo Nader argumenta, a esse respeito:
O raciocínio se faz da seguinte maneira: ao elaborar determinada lei, o
legislador contemplou a realidade existente em 1850, quando foi feita;
se o legislador, elegendo iguais valores e princípios, fosse legislar para
a realidade atual, teria legislado na forma “X”. O trabalho é apenas de
atualização (NADER, 2002, p. 275).
Além de descobrir a intenção expressa no texto, ao intérprete cabia ainda a tarefa
de descobrir uma possível intenção do legislador, com base numa hipótese, cuja
confirmação jamais ocorreria: o que teria querido o legislador se ele pudesse presenciar
os fatos atuais, que não aconteciam no passado? O que quis o legislador e o que
quereria agora, mostra dois caminhos a seguir: o da Escola de Exegese, que aprisionaria
o direito no passado e ignoraria a atualidade dos fatos; e o da Escola Histórico
Evolutiva, na qual o juiz combina os dois quereres do legislador e aplica aquele que
melhor atende ao momento. Por isto se diz que não intromissão do Poder Judiciário
no Poder Legislativo. A atividade do juiz não é criadora, mas visa a estender o alcance
de uma norma existente, revelando novos aspectos dela (NADER, 2002).
O método da Escola mitiga o exagero do apego legal e a subordinação à estrita
vontade do legislador da Escola da Exegese, contudo, ainda não supera as deficiências
de interpretação e aplicação do direito. Existe um limite para a ampliação do alcance de
um texto que nem sempre permite a projeção do passado no presente. Alem disto,
fatos novos que não encontram equivalente legal estabelecido, situados, portanto, fora
do âmbito das normas legisladas e insuscetíveis de solução judicial que não se pode
110
ampliar o alcance de uma norma que não existe. Assim, o problema das lacunas resta
insolúvel (NADER, 2002).
4.3.2.3 Escola da Livre Investigação Científica do Direito
François Gény concorda que se busque o pensamento do legislador, mas não
aceita que a lei seja a única fonte do direito, tampouco acredita que o direito seja amplo
o suficiente para cobrir todas as questões concretas. Desta forma objeta a Escola da
Exegese. Opõe objeções também à Escola Histórico-Evolutiva, principalmente, negando
a possibilidade de se deduzirem soluções para fatos reais, a partir de uma ficção
(MÁYNEZ, 2001). A Escola denominada por Livre Investigação Científica do Direito,
por reconhecer que por mais perspicaz que seja o legislador na elaboração da lei, não é
possível contemplar todas as situações de fato, concebe um método tal, de forma a
permitir a integração do direito, ou seja, o preenchimento de lacunas. Assim,
Para alcançar este fim, dentro dos limites que marcam sua atividade as
diversas fontes formais, está obrigado a exercer uma atividade livre,
mas baseando-se sempre nos dados objetivos que apresentam as
situações por resolver, que, do contrário, tal atividade careceria de
valor científico.
Podemos formular, desde logo, este primeiro postulado: a investigação
que se impõe ao juiz diante de uma lacuna da lei, é muito semelhante
à que incumbe ao legislador (MAYNEZ, 2001, p. 344)
48
.
A Escola sob comento exige que tanto a tarefa do legislador, ao elaborar normas
de caráter genérico e abstrato, quanto a do juiz, de especificar a norma no caso concreto,
por terem a mesma índole, se pautem nas exigências da justiça e do bem comum. Aliás,
justiça e bem comum não são exigências apenas políticas ou jurídicas, mas sua
persecução se verifica também na filosofia e na religião, contida nos Livros Sagrados:
48
Para lograr este fin, dentro de los limites que señalam a su actividad las diversas fuentes formales, está
obligado a ejercer una actividad libre, pero basándose siempre en los datos objetivos que presentan las
situaciones por resolver, ya que, de lo contrario, dicha actividad careceria de valor científico. [...]
Podemos formular, desde luego, este primer postulado: la investigación que se impone al juez em
presencia de una laguna de la ley, es muy semejante a la que incumbe al legislador.
111
“Ai daqueles que fazem leis injustas, e dos escribas que regem sentenças opressivas,
para afastar os pobres dos tribunais e denegar direito aos fracos de meu povo.” (Isaías,
Cap. 10, vers. 1 e 2).
A denominação “livre” que se ao método da Escola deve-se ao fato de que o
intérprete não fica condicionado às fontes formais do direito. de se observar, não
obstante, que esta liberdade é limitada pela cientificidade, por isto a livre investigação
será científica, o que quer dizer, baseada nos critérios objetivos a serem descobertos
pela ciência, através da “naturaleza de las cosas” (MAYNEZ, 2001).
Para o idealizador do método de interpretação que deu azo ao surgimento da
Escola da Livre Investigação Científica do Direito, François Gény, não se pode separar
a investigação gramatical da lógica, cuja relevância para a interpretação está em que é
pela investigação lógica que se chega à occasio legis e à ratio legis (NADER, 2002).
Infere-se, assim, que há uma forte recomendação para que se perquira a intenção real do
legislador, dadas as circunstâncias sociais, econômicas e morais em que vivia a
sociedade (occasio legis), e os valores que se pretendia realizar à época da criação da
norma (ratio legis). Comparando tais circunstâncias às circunstâncias atuais, é possível
para o intérprete, encontrar a melhor solução para o caso concreto, sem se desvincular
da segurança jurídica proporcionada pela fonte legislativa. Na hipótese de lacuna, a
Escola remete o intérprete à analogia, mas como não aceita uma “vontade presumida”
do legislador, em sendo inviável a analogia, socorra-se, o intérprete, dos costumes
atuais, sem perder de vista a justiça e o bem comum (NADER, 2002).
Diz François Gény que “o intérprete da lei deve manter-se fiel à sua intenção
primeira. Segundo ele, a lei tem uma intenção, que é aquela que ditou seu
aparecimento” (GÉNY, apud REALE, 2002, p. 284). Não sendo a lei adequada para o
112
momento atual, reconhece-se então uma lacuna a ser colmatada segundo a analogia, os
costumes e os princípios gerais do direito.
A liberdade de pesquisar na natureza das coisas, (condições econômicas,
políticas, tecnológicas, científicas e na pauta de valores morais), encontra limites nos
princípios do sistema jurídico e na idéia de justiça. “O intérprete não poderia extrair da
sua vontade própria as normas reitoras, mas ler o Direito nos fatos da vida e as regras
captadas deveriam estar conforme os princípios do sistema jurídico” (NADER, 2002, p.
276), de tal forma a não violar a lógica interna do direito. Impensável chegar-se, pelo
esquadrinhamento da natureza das coisas, por exemplo, a soluções de índole coletiva e
pretender implantá-las num sistema jurídico construído sobre bases de caráter
individualista. Recomenda, portanto, a Escola, que não se perca de vista a concepção
sistêmica do direito.
Por outro lado, perquirir na natureza das coisas pode conduzir a um sofisma, por
ser ilusória a relação entre tal natureza e a regra de direito.
A natureza das coisas é uma noção que nasce portanto (sic) da
exigência de garantir a objetividade da regra jurídica. O problema é
saber se existe efetivamente esta relação entre a natureza do fato e a
regra. A nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela
que, em filosofia moral, é chamada de falácia naturalista, isto é, pela
convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa
realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que
implica num juízo de valor). O sofisma da doutrina da natureza das
coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de valor
de um juízo de fato (BOBBIO, 1996b, p. 177).
Apesar desta crítica, graças a algumas substituições, como por exemplo, as
discussões de palavras ou de argumentos, pelas considerações morais e sociais; os
conceitos, pela utilidade; a construção teórica, pela apreciação dos interesses, a livre
investigação científica do direito é uma hermenêutica libertadora, porém cautelosa. Não
aprisiona o direito ao estrito texto legal nem ao passado, mas também não se afasta da
113
segurança jurídica trazida pelo prévio estabelecimento de regras de comportamento. É,
no dizer de Maximiliano (2000, p. 63), “a visão de um direito seguro, menos abstrato e
mais verdadeiramente humano”.
Insatisfeito com a liberdade limitada, proposta pela hermenêutica da Escola da
Livre Investigação Científica, proclama Kantarowicz, sob o pseudônimo “Gnaeus
Flavius”, a busca pelo direito justo, a despeito da lei. Lançam-se, assim, as sementes da
próxima escola.
4.3.3.4 Escola do Direito Livre
Sob a divisa “a justiça dentro ou fora da lei”, estabelece-se uma nova forma de
pensar o direito e sua interpretação. Os adeptos desta teoria, entre eles, Eugen Ehrlich e
Hermann Kantarowicz, reúnem-se em torno da Corrente ou Escola do Direito Livre.
Há três pontos principais sobre os quais se fundam os ideais da corrente: o repúdio
à doutrina da Escola da Exegese, sobre a suficiência da lei; ampliação do labor
judiciário, concedendo-lhe uma larga margem para o subjetivismo e criatividade; e a
tese de que a função do juiz deve ser o mais próxima possível da atividade legislativa.
(REICHEL, apud MAYNEZ, 2001, p. 347).
A principal inspiração da Escola é a jurisprudência sentimental, associada aos
julgamentos proferidos pelo Tribunal de primeira instância de Château-Thierry. Seu
presidente, o “bom juiz Magnaud”, guiado por espírito humanitário, julgava com
clemência os mais fracos e humildes e com energia os opulentos e poderosos, afastando-
se dos moldes comuns, do direito estabelecido. O fenômeno Magnaud mostra duas
situações opostas: a prevalecer o critério subjetivo absolver-se-ia o pequeno roubador
114
do milionário; a prevalecer, no entanto, o instinto social, punir-se-ia o pequeno roubador
por ser perigoso para a comunidade (MAXIMILIANO, 2000).
A liberdade concedida ao intérprete ultrapassa em muito a liberdade proposta pela
Escola anteriormente examinada. No Direito Livre o critério de justiça do intérprete e
do aplicador da lei prevalece sobre a lei mesma, logo, a atividade do operador do direito
vai além de descobrir o sentido e alcance da lei; ultrapassa a descoberta da intenção do
legislador e sua atualização; não se limita a restringir ou ampliar o sentido e alcance do
texto legal; não se prende a apenas preencher lacuna por intermédio da analogia,
costumes e princípios gerais do direito. Julga-se a própria lei: se ela não satisfaz os
ideais de justiça do julgador, que seja ignorada e substituída por uma norma criada
especialmente para o caso concreto sob exame. O Direito Livre dota o juiz da liberdade
de legislar, exceto em matéria penal
49
.
Bom anotar que o Direito Livre tende a proteger os mais fracos da sociedade, em
termos econômicos e culturais, aproximando-se, assim, dos ideais gerais e massivos de
justiça. Por outro lado, compromete a segurança jurídica, conquistada pela sociedade a
partir do direito escrito. Este ponto concentra e atrai a maioria das críticas à escola.
Vicente Ráo, por exemplo, aduz:
Adotar semelhante doutrina, diz muito bem Enneccerus, equivale a
entronizar a vontade do juiz, sobrepondo-a à vontade coletiva; importa
menoscabar em extremo a consideração devida à lei e, o que é mais
grave, à segurança do direito e à avaliação prévia, a que todos temos
direito, das conseqüências de nossos atos
(1999, p. 519).
Com efeito, esta doutrina subtrai a segurança jurídica trazida pela lei, e seus
efeitos podem ser tão devastadores quanto os da retroatividade da lei; cria-se a
49
Excepciona-se o direito penal pois neste âmbito é inafastável o princípio da reserva legal, segundo o
qual, nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege poenale. Não pode, assim, criarem-se crimes ou
penas, a não ser pela lei. Ora, a lei é produto legislativo e legislar nunca foi função do Pode Judiciário,
portanto, submeter valores como a liberdade do réu, ao talante de quem não tem competência legislativa
repugna a todos os setores da sociedade.
115
“incerteza das conseqüências futuras dos atos e fatos incidentes na esfera do direito”
(RÁO, 1999, p. 520).
Carlos Maximiliano (2000) qualifica a doutrina de audaciosa e revolucionária por
postergar a própria lei, e tal audácia atrai críticas e defesas acirradas: evidentemente
Ehrlich, um dos corifeus, se bem que moderado, da Escola, defende a doutrina dos
ataques afirmando que o problema não está na doutrina em si, mas na personalidade do
juiz, isto é, o juiz poderá tanto ser a garantia real da verdade e justiça, quanto poderá
desviar-se e desviar a finalidade do direito. Assim, recomenda-se, para o sucesso da
Escola, que
O magistrado moderno, libertado das estreitezas da dogmática,
investido da prerrogativa de melhorar a lei e suprir-lhe as lacunas,
guiado pela finalidade humana, atento aos fatores sociológicos dos
fenômenos jurídicos, não pode ter apenas a tradicional cultura
romanista e clássica; necessita de um preparo menos especializado,
mas amplo e completo. Homens de tanto valor não se encontram
comumente nos pretórios [...] (EHRLICH, apud MAXIMILIANO,
2000, p. 75).
Depreende-se, desta forma, que decidir com justiça depende em grande parte do
“coeficiente pessoal” do juiz. Seria retrógrada a substituição da justiça concebida de
conformidade com a vontade geral (expressa na lei), pela vontade do juiz, estabelecida
por critério altamente subjetivo, pois o magistrado seria elevado à altura de soberano do
direito privado. Os postulados da Escola Livre “substituem a impessoalidade e a
objetividade da norma pela ação da individualidade, pela obra pessoal e arbitrária do
juiz: manifestação nova de irracionalismo e super-humanismo estético”
(BARTOLOMEI, apud MAXIMILIANO, 2000, p. 79).
Icilio Vanni, (apud MAXIMILIANO, 2000), objeta as pretensões da Escola,
lembrando que o direito assegura as condições fundamentais da coexistência humana
de forma coativa, e com a exigência de se observarem os preceitos vigentes. Ora, se o
116
juiz não os obedece, e não os aplica aos casos concretos, impossível exigir seu
cumprimento pelos demais.
Miguel Reale manifesta-se contrário à filosofia da Escola do Direito Livre,
principalmente pelo fato do desprezo à segurança jurídica que ela enseja.
Para nós o Direito não pode prescindir de sua estrutura formal,
tampouco de sua função normativa ou teleológica, de maneira que a
conduta humana, objeto de uma regra jurídica, se acha qualificada
de antemão por esta, tal como o exigem a certeza e a segurança (2002,
p. 289).
Sob a inspiração da Escola do Direito Livre, emerge, com grandes repercussões, o
Direito Alternativo, cuja aspiração é superar as injustiças praticadas contra a sociedade,
em nome da segurança jurídica proporcionada pela estrita conformação dos julgamentos
ao direito objetivo. “A idéia central dessa doutrina é a de que a lei não esgota o direito”.
(MILLER, 1994, p. 46). Sua fundamentação consiste em afirmar que o direito deve
estar atento às mudanças e rever a adequação da própria norma jurídica.
Esta corrente surgiu como dissidência no interior da Associazone Nazionale
Magistrati, quando magistrados italianos, na década de 60, fundaram a Magistratura
Democrática, cujos influxos se difundiram e encontraram eco no Brasil. Inicialmente no
Rio Grande do Sul, com os Magistrados Alternativos e depois também em São Paulo,
com os Magistrados pra a Democracia, o Direito Alternativo implantou-se no Brasil,
com a proposta de realizar a justiça, ainda que isto contrarie o direito objetivo.
(BETIOLI, 1996).
O movimento alternativista comporta duas frentes: aquela que opera nos planos do
direito institucionalizado e aplica o direito positivo, que de alguma forma é sonegado às
classes populares. Trata-se de concretizar as normas que beneficiem os mais pobres; e a
outra, que usa o direito alternativamente, utilizando-se das suas ambigüidades e
117
vaguezas (antinomias e lacunas, respectivamente) cabe ao juiz, na tarefa interpretativa,
“optar por aquela interpretação que esteja mais comprometida com a democracia e os
interesses das classes e grupos menos privilegiados dentro do contexto social.”
(BETIOLI, 1996, p. 323).
A par das duas aplicações do direito como se viu acima, uma tendência muito
mais polêmica que envolve a criação de normas pelo juiz. Isto se daria no caso de
normas pré existentes serem notadamente injustas. O juiz, julgando-as injustas, deixa
de aplicá-las e cria outra adequada, segundo seu juízo de valor, ao caso concreto em
apreço. Este julgamento desborda em decisões “contra legem”, alvos de críticas dos
juristas mais tradicionalistas. Tanto a vertente que se utiliza do direito instituído,
quanto a que tende a instituir um direito, funda-se no objetivo de concretizar,
irrestritamente, os direitos básicos (vida, liberdade etc), por estarem eles, acima de
qualquer ordem jurídica positivada. (BETIOLI, 1996).
Tem-se buscado uma hermenêutica que atenda aos anseios de justiça da
sociedade, que se projete como um manto protetor sobre a dignidade da pessoa humana,
que possa dar conta dos novos direitos, que contemple as minorias e que promova a
inclusão jurídica e social, sem que isto signifique um rompimento total com a ordem
consubstanciada no ordenamento jurídico. As tentativas prosseguem no trabalho
incansável de pensadores ao redor do mundo todo.
Novas doutrinas, novas formas de conceber a relação direito/sociedade vertem
como promessas de atingimento do ideal, como por exemplo, a hermenêutica
principiológica que se verá adiante.
118
4.4 Ordenamento jurídico e hermenêutica tradicional: direito insuficiente
Como se examinou, o ordenamento jurídico constrói-se sobre a teoria
positivista do direito (mitigada pela nova concepção de Estado e a partir dos novos
direitos coletivos e difusos) tendo como premissa a idéia de um sistema unitário,
coerente e completo. Os dogmas da unidade, completude e coerência, assim
considerados, enrijecem o direito, impedindo o amplo alcance tão desejado pela
sociedade.
A hermenêutica jurídica predominante no pensamento dogmático (na
doutrina e na jurisprudência) continua refém das práticas dedutivas
subsuntivas, que pressupõem a existência de categorias ou
significantes primordiais-fundantes. Em outras palavras, a
hermenêutica tradicional (de cunho reprodutivo) calca-se ainda na
subsunção do particular ao geral-abstrato-universal (STRECK, 2008b,
p. 164).
Pensa-se, então, que uma hermenêutica adequada possa flexibilizar o direito de
molde a ajustá-lo aos contornos sociais. É possível transportar para o tema, a ilustração
aristotélica a respeito da eqüidade, quando o filósofo de Estagira a compara à gua de
Lesbos. Por ser de chumbo, a régua é flexível bastante para ajustar-se a diferentes
superfícies, assim como a eqüidade é capaz de ajustar o direito aos contornos dos fatos
(ARISTÓTELES, 1992, p. 110), assim como também, acrescente-se, toda hermenêutica
voltada para os casos concretos.
É possível notar a diferença de percepção do direito nos dois acórdãos, cujo tema
é relação homoafetiva e cujas ementas seguem abaixo. Na primeira situação o julgador
manteve-se vinculado ao entendimento tradicional e baseou-se no fato de que a lei não é
explícita acerca do acolhimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, justificando,
assim, o indeferimento ao pleito. No segundo exemplo, vê-se claramente uma visão
119
flexível do direito, baseada no fato concreto e nos postulados constitucionais da
dignidade da pessoa humana.
Exemplo 1
Relator(a): Grava Brazil
Comarca: São Paulo
Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado
Data do julgamento: 23/06/2009
Data de registro: 17/07/2009
Ementa: Ação de reconhecimento de união estável e partilha -
Relação homoafetiva - Improcedência - Inconformismo -
Desacolhimento -
Entendimento deste Relator e desta Câmara de que
a união estável só é possível entre pessoas do sexo oposto -
Requisitos
para a configuração da união estável, ademais, que não foram
demonstradas - Convivência
contínua, duradoura e morada comum
não comprovadas -
regras da sociedade de fato -
Não demonstração da efetiva
contribuição para a formação do patrimônio a ser partilhado -
Sentença mantida - Recurso desprovido. (TJSP)
Exemplo 2
Relator(a): Rui Portanova
Comarca: Porto Alegre
Órgão Julgador: 8ª Câmara Cível
Data do Julgamento: 02 de outubro de 2008
Ementa:Apelação. União Homossexual. Competência.
Reconhecimento de união estável.
A competência para processar e julgar as ações relativas aos
relacionamentos afetivos homossexuais A união homossexual merece
proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o afeto entre dois
seres humanos com o intuito relacional. Uma vez presentes os
pressupostos constitutivos, é de rigor o reconhecimento da união
estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes,
centrados na valorização do ser humano. Via de conseqüência, as
repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, em face do
princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união.
Negaram provimento. (TJRS)
Manter fidelidade estrita ao ordenamento jurídico e suas normas generalizantes
significa estandadizar os fatos sociais, subsumindo-os a modelos jurídicos.
120
Ainda que se utilizem das normas que atribuem maior subjetividade ao aplicador
do direito, como o art. 4º da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil), que ao referir-se
a lacunas da lei, remete a solução de conflitos à analogia, aos costumes e aos princípios
gerais do direito, cumpre examinar dois aspectos daí decorrentes: 1) a permanência da
subsunção silogística e 2) o aprisionamento da solução jurídica à personalidade do
magistrado. No primeiro caso, privilegia-se a segurança jurídica, como uma construção
teórica haurida do positivismo jurídico, em detrimento da maior abrangência do direito,
conformada à concretude social dos fatos; no segundo caso, a preferência pela
ampliação das possibilidades de aplicação do direito, representa um risco à segurança
jurídica que poderá resumir-se à vontade do magistrado.
Tanto um quanto outro desfecho funda-se na hermenêutica tradicional proposta
pela dogmática jurídica. Evoquem-se as diversas orientações constantes no ordenamento
jurídico a respeito da eliminação de antinomias, tratadas no capítulo do presente
trabalho, para se constatar que elas representam recursos no interior do ordenamento e
não ultrapassam seus limites. Os critérios mostrados por Bobbio resguardam a coerência
do sistema como condição de certeza e justiça.
A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a
justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas
contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a
aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que
são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais
em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos
jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou
da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da
igualdade) (2006, p. 113).
Falar de coerência do ordenamento jurídico neste momento justifica-se pela
estreita relação que guardam entre si, antinomia e lacuna. A incompatibilidade de
normas produz lacuna na medida em que é o aplicador que deverá optar pela regra a ser
121
utilizada no caso concreto. A propósito, também a colmatação do direito se faz, segundo
a orientação da dogmática jurídica, nos limites das fontes oficiais do direito. Ora, o
próprio art. da LICC, receptáculo que é dos instrumentos de integração, constitui um
limite dogmático à atividade criadora do juiz, preservando a certeza e segurança
jurídicas.
O tema central do presente trabalho, vale lembrar, é a insuficiência do direito face
ao dinamismo social e as tentativas de superação do problema. A idéia principal que
subjaz à temática é a presença das lacunas na lei e no direito que obviam o afastamento
das relações sociais conflitivas, que poderiam ser minimizadas quer pela prevenção,
quer pela solução satisfatória de conflitos
50
.
Ocorre que lacunas são inerentes ao sistema jurídico e constituem, portanto, uma
questão eminentemente sistemática, mormente para aqueles que, empregando o modelo
teórico analítico, concebem o direito como um sistema de enunciados logicamente
concatenados, cujo escopo é proporcionar a decidibilidade. Para um determinado
conflito, oferece uma decisão possível (DINIZ, 1999). A autora alerta para o fato de que
tantos conceitos de lacuna quanto tantas as concepções do direito. Considerando a
abordagem eleita para o presente trabalho, as lições de Maria Helena Diniz, no que
concerne a lacunas do direito, interessam, especialmente quando elas são analisadas sob
o ponto de vista dos sistemas, como a reunião de objetos e seus atributos, relacionados
entre si segundo um nexo. equivalência, entre o que a autora afirma e o que diz,
50
Solucionar satisfatoriamente um conflito significa eliminá-lo da vida real e concreta , restabelecendo a
paz e a harmonia entre as pessoas. O poder judiciário nem sempre atinge este ideal, e o ultrapassa da
solução de conflitos no âmbito jurídico. É dizer, para o direito a situação foi pacificada, mas na
experiência social o conflito persiste. “Decidido, isto não quer dizer, todavia, que o conflito deixe de
existir. Muito ao contrário, apenas uma requalificação do conflito social. Ele volta a se manifestar em
nível diferente no plano social [...].” (BASTOS, 2001, p. 7).
122
Luhmann (2004) quanto à sua concepção sistêmica do direito, embora a civilista
brasileira não o mencione.
O recurso à analogia consiste num retorno à vontade do legislador, o recurso aos
costumes levaria à vontade do magistrado fortemente atada à vontade do legislador e o
recurso aos princípios gerais do direito (quando operará a técnica da ponderação) remete
a solução de conflitos à vontade exclusiva do magistrado.
A hermenêutica tradicional espreme os fatos nos contornos da norma. Miguel
Reale percebe bem que modelos jurídicos, mas que o direito é uma experiência e
assim, o direito ideal é aquele modelo jurídico que reflete a experiência social. Aliás,
não poderia ser diferente, principalmente se a observação se der sob o ponto de vista da
tridimensionalidade do direito. A partir da teoria tridimensional do direito chega-se à
percepção da experiência fática sintetizada nos modelos jurídicos, por causa da
incidência de valores.
As estruturas sociais, quando focalizadas sob o prisma dogmático-
jurídico, põem-se, em suma, como estruturas normativas, de tal sorte
que a experiência social, que para o sociólogo se configura como um
sistema de estruturas, apresenta-se aos olhos do jurista na objetividade
do sentido normativo que lhes é imanente, isto é, enquanto sistema de
modelos.
Poder-se-ia dizer que a compreensão da experiência jurídica em
termos de modelos é de uma estrutura normativa que ordena fatos
segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos
futuros, a que se ligam determinadas conseqüências (REALE, 1999, p.
162).
Propõem, os pensadores pós-modernos, a hermenêutica fulcrada em valores, como
um meio de se dar maior flexibilidade ao direito. Esta corrente, de caráter internacional
congrega nomes como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Carlos Eduardo de Abreu
Boucault, Antonio Carlos Wolkmer, apenas para exemplificar e introduzir o próximo
item.
123
4.5 Ordenamento jurídico e hermenêutica renovada: fluidez e amplitude do
direito
Juridicamente considerada, a sociedade é um composto de pessoas vinculadas
umas às outras pelo objetivo de conquistarem o bem comum, de tal forma que não
existência humana voltada exclusivamente para si. “Viver é respirar incessantemente:
receber do ambiente e a ele devolver” (VON JHERING, 2002, p. 66).
Neste contexto, o direito constitui-se numa das condições vitais da sociedade.
Contudo, está fadado a errar eternamente, pois cada geração de juristas recrimina a
geração anterior, que acreditava ter encontrado o melhor caminho. Diferentemente das
outras ciências, cujas conquistas são para sempre, as afirmações do direito, legitimadas
pela autoridade, ainda que erradas, vigoram temporariamente, até que se a substituam
outras, atuais e com pretensões de serem verdadeiras (VON JHERING, 2002).
Quem exprime tais protestos contra esta situação do direito, deve
acusar-se a si próprio, eis que toma para ele um critério inadequado: o
da verdade. A verdade é o escopo do conhecimento, mas não da
conduta. A verdade é sempre uma, de forma que todo desvio dela,
constitui erro. A oposição entre a verdade e o erro é absoluta. Para o
agir, contudo, ou, o que significa o mesmo, para a vontade não
critério absoluto, de tal arte que apenas um conteúdo volitivo fosse
verdadeiro, os outros todos sendo falsos. O critério é relativo: o
conteúdo volitivo pode, nesta situação, neste estágio, ser diverso do
daquela situação, daquele estágio e, sem embargo, ser, nos dois casos,
o certo, ou seja, aquele que atende ao objetivo. [...] o critério do
direito não é o absoluto que se toma para a verdade, mas o relativo
que aplica com relação ao fim (p. 290).
O direito é apenas um dos instrumentos sociais de distribuição de justiça. A
sociedade como um todo e também considerada em termos de instituições, é a grande
responsável por si mesma. Isto quer significar que cada pessoa (no sentido estrito do
termo) e cada ser humano constituem, por si sós, unidades de fonte de justiça ou
124
injustiça. O problema em se definir a justiça, contudo, tem acompanhado o homem ao
longo da sua existência na terra. Perceber a justiça é, antes de mais nada, desviar o olhar
de si mesmo e perceber o outro, conforme pregam doutrinas religiosas que a
humanidade conhece, entre elas, o cristianismo. A despeito da recomendação da
filosofia cristã do “amai-vos uns aos outros”, os homens enfrentam uma dificuldade
quase que insuperável em privilegiar interesses alheios em detrimento dos seus. Fosse
isto possível e não haveria necessidade de se recorrer à força do poder. Assim, é preciso
que um consenso defina o que é justo, ainda que ao arrepio das vontades singulares, e as
justificativas para esta exigência abrem-se sob os diversos pontos de vista e a miríade de
possibilidades teóricas que se constroem em torno do poder e do direito.
Para o homem comum, o direito por vezes aparece como um conjunto
de símbolos incoerentes, que o torna inseguro, por exemplo, quando
se envolvido numa pendência processual. Confrontando com os
direitos do outro, estes, embora lhe pareçam ilegítimos, também são
afirmados. É claro que seria impensável que o direito admitisse
oficialmente que se move em múltiplas e incoerentes direções. Seu
êxito, como força depende, pois, de se dar um significado à idéia de
um governo do direito, unificado e racional. Para isto trabalha a
hermenêutica. Funcionalmente a finalidade da teoria dogmática (da
interpretação) consiste em ser uma caixa de ressonância das
esperanças prevalecentes e das preocupações dominantes dos que
crêem no governo do direito acima do arbítrio dos homens (FERRAZ
JUNIOR, 2003, p. 285).
O justo está estabelecido formalmente nas constituições, coincida ou não com o
que cada um deseja ou aspira. E este justo constitui o pressuposto para a preocupação
sobre as hermenêuticas, as interpretações e as aplicações para que ele se concretize na
sociedade.
Em linguagem bastante simplificada, o ideal social é que todos tenham um
mínimo de condições para uma sobrevivência digna, ou que tenham assegurados e
concretizados os direitos fundamentais, cuja consagração se verifica nos dispositivos
125
das Constituições inspiradas no Welfare State, sustentadas pela prevalência do princípio
da dignidade da pessoa humana. De nada adianta apenas afirmar os valores. O desafio é
garantir sua efetividade, tarefa que cumpre, em grande parte, ao direito, com sua força
coercitiva, da qual não se pode prescindir.
Sabemos que os homens não são anjos, pois do contrário não seriam
necessárias normas de quaisquer espécies para regê-los. Não acredito
que chegaremos um dia a prescindir de ordens coercitivas como o
direito. Ainda que todos se comportassem de forma absolutamente
correta segundo certo padrão de conduta eleito como o melhor
afirmação que, desde já, parece pertencer ao terreno do impossível
haveria sempre a possibilidade de que, no futuro, um ou alguns
destoassem do modelo geral. [...] o homem é livre para escolher a
estrada do bem, da virtude e da perfeição, ou a estrada do mal, do
vício e do pecado (MATOS, 2004, p. 63/64).
Canotilho fala de uma hermenêutica concretizante como método que parte da
idéia da pré-compreensão que o intérprete tem de um texto normativo, concretizando-o
para e a partir de uma situação histórica concreta. O autor português destaca os três
pressupostos do método, que tem em vista o problema concreto ao invés de orientar-se
para um pensamento axiomático:
... (1) os pressupostos subjetivos, dado que o intérprete desempenha
um papel criador (pré-compreensão) na tarefa de obtenção do texto
constitucional: (2) os pressupostos objetivos, isto é, o contexto,
atuando o intérprete como o operador de mediações entre o texto e a
situação em que se aplica: (3) relação entre o texto e o contexto com a
mediação criadora do intérprete, transformando a interpretação em
“movimento de ir e vir” (círculo hermenêutico) (p. 1086).
Como se vê, concretizam-se direitos a partir deles mesmo. Não como
concretizar um direito que não existe, o que implica em reconhecer a importância
fundamental de se levar em conta o conjunto de normas substantivas (aquelas que
consagram direitos, que lhes dão substância), como ponto de partida para uma
interpretação concretizadora.
126
Com o ponto de vista concretizador, chega-se, inevitavelmente à concepção
fenomenológica da hermenêutica arquitetada por Heidegger e retomada por Gadamer
(BITTAR, 2002). Para Gadamer, hermenêutica e interpretação referem-se ao modo de
existir do ser, em sua experiência no mundo e não devem ser concebidas como uma
criação teórica que visa a “descrever coisas ou criar hipóteses científicas” (BITTAR,
2002, p. 183).
A hermenêutica arranca de um pré-conceito - no sentido de pré-compreensão -
que o intérprete tem do objeto a ser interpretado, e chega à descoberta do sentido do
objeto. Em linguagem filosófica, tem-se o círculo hermenêutico assente nas idéias de
“pré-conceito” e de experiência, o que antagoniza com os postulados da neutralidade
científica.
Está formado, a partir desta idéia, o círculo hermenêutico, pois, se
conheço as coisas a partir de “pré-conceitos”, estes passam a se
incorporar às coisas de modo que quando conheço coisas conheço
também “pré-conceitos”; à ciência é dado o dever de desvendar estes
“pré-conceitos” que se arraigam às coisas (BITTAR, 2002, p. 184).
Esta é a razão pela qual se associam tão fortemente hermenêutica e linguagem: a
historicidade ou o “ser no mundo” se expressa pelo código lingüístico. “A
lingüisticidade da compreensão é a concepção da consciência da história efeitual”
(GADAMER, apud BITTAR, 2002, p. 188). Com isto chega-se à conclusão que o ser se
relaciona com as evidências do mundo expressas pela linguagem, não com o mundo em
si. Assim, nem se pense numa relação com o direito mesmo, mas com sua representação
lingüística. Corolário desta afirmação é que hermenêutica jurídica na mediada em
que se debruça sobre um ordenamento jurídico comum a todos os membros de uma
comunidade, ou seja, um sistema jurídico vigente para todos, incluindo os que
constroem tal sistema e ditam as regras a serem cumpridas (BITTAR, 2002).
127
Reconhece-se, pela filosofia hermenêutica, o quão ilusória se mostra a
hermenêutica tradicional, apregoada pela dogmática jurídica, ancorada na intenção de
neutralidade e objetividade do direito. O direito é experiência histórica, cujo sentido se
deflui na sua linguagem e mostra-se tão plural quanto as experiências do “ser no
mundo” (BITTAR, 2002).
Segundo Streck, a hermenêutica fenomenológica não necessita de método e não se
prende a uma epistemologia da interpretação. Baseia-se na ontologia da compreensão,
como um modo de ser e não como um modo de conhecer, onde o papel da interpretação
é o de explicitar o que se compreendeu.
Compreender não é um modo de conhecer, mas um modo de ser. Por
isso [...] compreender, e, portanto, interpretar (que é explicitar o que
se compreendeu), não depende de um método, saltando-se assim, da
epistemologia da interpretação para a ontologia da compreensão
(STRECK, 2007, p. 100).
A hermenêutica estabelece a relação do homem com a complexidade dos
acontecimentos, por isto, não é um método, tampouco procedimento. Levando em conta
a historicidade na qual se funda a hermenêutica fenomenológica, Lucas (2007), ressalta
a necessidade de se buscar na Constituição Brasileira os dilemas e possibilidades da
realidade histórica dos brasileiros, levando, assim a que o direito ultrapasse os limites
do procedimentalismo metodológico da hermenêutica tradicional e que seja apto a
contemplar as diversidades verificáveis na dinâmica das relações sociais. Não basta
conhecer o direito, revelando seu sentido, mas deve-se, para concretizá-lo, compreendê-
lo como um ente dotado de um ser. “Interpretar não é tomar conhecimento de que se
compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão”
(HEIDEGGER, 1988, p. 204). Ou se interpreta conforme a posição do intérprete e do
objeto interpretado no mundo, ou se o faz através de métodos, que trazem em si, as
128
respostas. A segunda possibilidade tem acompanhado o direito, e a primeira, é o anseio
de uma interpretação concretizadora, sensível ao mundo real das relações entre os
homens, onde cada caso ou fato é circundado por condições especiais e próprias.
Os postulados gerais de justiça, no Brasil, estão inscritos na Constituição Federal
Brasileira, quando afirma os valores a que o Estado compromete-se a realizar, seja para
o indivíduo, seja para a coletividade, obedecendo as concepções de Estado Democrático
de Direito. Para ser eficaz, isto é, produzir concretamente os efeitos previstos em
abstrato, a Constituição de ser interpretada e aplicada como um modo de ser no
mundo considerando a historicidade do Estado, mormente de seus cidadãos, com o
fundamento axiológico da ética e da justiça (CAMARGO, 2002). Nesse passo, tem-se
que responder a uma questão fundamental e fundamentadora: por que, modernamente,
se fala tanto em princípios ou princípios constitucionais? Pelo fato de que os
paradigmas anteriores, voltados para as relações privadas, produziram e exacerbaram as
diferenças sociais que modernamente se quer minimizar. O foco, voltado para a
economia e a liberdade de mercado, deverá, agora, ser desviado para o homem, não
mais considerado apenas em sua atuação nas relações econômicas, mas em suas
peculiaridades, com base na liberdade e na dignidade da pessoa humana. Ademais, é
preciso revitalizar o Estado de Direito, renunciando-se à idéia de Estado do legalismo
(em que tudo o que é legal é lícito), recepcionando-se o Estado da legalidade dos
direitos fundamentais
51
.
... verificamos a necessidade de repensar algumas noções importantes,
como a de Estado de Direito, por exemplo. Ainda que, em pleno
século XXI, possamos contestar a validade de suas bases históricas e
políticas, não se pretende o afastamento do princípio da legalidade,
capaz de conter o arbítrio e controlar a conduta política e social.
51
Estas afirmações, como se pode concluir, decorrem de uma hermenêutica constitucional, filosófica e
concretizante.
129
Portanto, é o Estado de Direito que se quer revigorado. Mas não o
Estado do legalismo puro e simples, artificial e inconteste, conforme
preconizado por Locke e Montesquieu, mas o Estado da legalidade: da
legalidade dos direitos fundamentais. Sua base são os direitos
humanos originados no pós guerra, quando a lei não é mais vista como
sinônimo do justo. Tornando-se necessário, para alguns, o apoio em
uma ordem moral transcendente às disposições legais traduzidas em
competências. Afinal, norma jurídica e justiça não se confundem.
(CAMARGO, 2007, p. 371).
Entender principiológicamente a Constituição Federal, requer que o estudioso
perceba a hierarquia de princípios fundantes e fundados. Qualquer princípio
constitucional assenta-se no fundante princípio da dignidade da pessoa humana, a partir
do qual se compreenderá, não todo o sistema constitucional como também qualquer
sistema infraconstitucional (CHALITA, 2007).
Quanto mais protegidos e viabilizados os direitos fundamentais, mais próximo
estará o Estado das expectativas de justiça social, razão pela qual figuram, estes direitos,
num “catálogo de diretos positivados, a merecerem apoio coercitivo da máquina estatal”
(CAMARGO, 2007, p. 372). Há, portanto, uma relação de inegável complementaridade
entre Estado de Direito e direitos fundamentais: “O Estado de Direito exige e implica,
para sê-lo, garantir os direitos fundamentais, enquanto estes exigem e implicam, para
sua realização, o Estado de Direito” (LUÑO, apud CAMARGO, 2007, p. 373). Decorre,
desta relação, em que o Estado garante o que o garante, a valorização do Poder
Judiciário, como o poder capaz de realizar as escolhas. Dito de outra maneira, a relação
entre Estado e direitos fundamentais produz uma tensão entre a segurança e a justiça,
que deve ser equilibrada, sem que se descure nem um, nem outro dos valores em tensão.
Esta é a tarefa desafiadora proposta pela hermenêutica valorativa aos juízes
(CAMARGO, 2007). O Estado Democrático de Direito exige a redefinição do papel
destinado ao Poder Judiciário, atribuindo-lhe o papel de guardião dos valores
positivados na Constituição, no intuito de resgatar a força do Direito, comprometido
130
com a ética comunitária (STRECK, 2009). Sobreleva, assim, o Poder Judiciário, ao
Poder Legislativo “como uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade,
onde o acesso à justiça assume um papel de fundamental importância, através do
deslocamento da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para
os procedimentos judiciais” (STRECK, 2009, p. 38). A valorização do Poder Judiciário
é, portanto, um pressuposto do Estado Democrático de Direito.
Enquanto os valores são positivados em normas de caráter geral e abstrato, pelo
Poder Legislativo, cabe ao Poder Judiciário, através da hermenêutica concretizadora,
aplicá-los aos casos concretos, levando em consideração as circunstâncias de cada caso,
sopesando e ponderando aqueles em eventual oposição uns aos outros.
Rasga-se, então, o pano de fundo da hermenêutica clássica, deixando emergir a
ponderação como instrumento da nova hermenêutica anunciada pelos postulados
axiológicos do Estado Democrático de Direito, cujos princípios substituem
vantajosamente os princípios gerais do direito.
... com o advento do constitucionalismo principiológico, não mais
que falar em “princípios gerais do direito”, pela simples razão de que
foram introduzidos no direito como um “critério positivista de
fechamento do sistema”, visando a preservar, assim, a pureza e
integridade” do mundo de regras. (STRECK, 2009, p. 109).
Fenômeno contemporâneo, o constitucionalismo (idéia de que a Constituição é o
centro do sistema jurídico) tem impactado a dogmática jurídica brasileira com o esforço
de superação do legalismo estrito, sem, contudo, se fixar no jusnaturalismo e suas
categorias metafísicas. Com esta colocação, entre outras, Luís Roberto Barroso prefacia
a obra de Ana Paula Barcellos, que trata exatamente do princípio da ponderação e da
racionalidade, além da atividade jurisdicional (BARCELLOS, 2005), exigências do que
131
se convencionou chamar de neoconstitucionalismo, sobretudo para a nova
hermenêutica.
Ponderação vem a ser “a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que
envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas
hermenêuticas tradicionais” (BARCELLOS, 2005, p. 23). Este conceito opõe-se à noção
de amplitude que muitos (incluindo Ronald Dworkin, Aleksander Peczenik e Humberto
Ávila) atribuem à ponderação, dando azo (apenas isto. Não é, certamente o que
pretendem os citados pensadores) a que ao desviar-se dos caminhos tradicionais, do
aprisionamento do direito aos dogmas do ordenamento jurídico, o jurista trilhe
caminhos opostos, cujos pontos de chegada sejam o extremo da total discricionariedade
do Poder Judiciário.
...não parece democrático delegar ao juiz o preenchimento das assim
chamadas “cláusulas gerais” (a mesma crítica pode ser feita ao uso da
ponderação para a “escolha” do princípio que será utilizado para a
solução do problema causado pela “textura aberta da cláusula”).
Em pleno paradigma do Estado Democrático de Direito, em que os
princípios resgatam a razão prática, não parece recomendável sem
um adequado “cuidado constitucional” – que o Código Civil introduza
cláusulas que autorizem o juiz solipsisticamente a “colmatar
lacunas” ou incompletudes legislativas, a partir da descoberta” de
valores que estariam em uma metajuridicidade (STRECK, 2008b, p.
171/172).
52
Neste sentido, Barcellos cuida de alertar para a possibilidade de se compreender a
ponderação sob três formas diferentes, inadequadas para a hermenêutica concretizadora
que se pretende: 1) como forma de aplicação de princípios pelos quais o juiz afasta-se
52
Uma das cláusula gerais mencionadas pelo autor é o princípio da boa-fé, segundo o qual o juiz solve
conflitos contratuais, por exemplo, decidindo qual dos contentores agiu de boa ou de má-fé. A este
respeito, Streck traz, em nota de roda-pé, interessante posicionamento de José Carlos Moreira da Silva
Filho (Hermenêutica Filosófica e Direito – o exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual
Lumen Juris, 2006, p. 246): para que as cláusulas gerais, entre elas, a boa-fé, funcionem como o
esperado, é fundamental um ambiente juscultural propício a esta prática. De nada adianta a simples
previsão legal se não houver uma verdadeira reformulação no modo de pensar do jurista, mormente
associado ao paradigma filosófico da consciência e à mumificação de conceitos e categorias jurídicas
expressivas de um contexto ideológico diverso ao que hoje se desenha.
132
das fórmulas das regras e os “pesa”, considerando as possibilidades jurídicas; 2) como
um meio de solucionar quaisquer conflitos normativos (de caráter principiológico ou
não); 3) como elemento da teoria da argumentação, confundindo-se, desta forma, com a
interpretação jurídica como um todo, pois “Ponderação, neste sentido, é a atividade pela
qual se avaliam não apenas enunciados normativos ou normas, mas todas as razões e
argumentos relevantes para o discurso, ainda que de outra natureza (argumentos morais,
políticos, econômicos etc.)” (BARCELLOS, 2005, p. 27). uma quarta compreensão
da ponderação, esta sim, segundo Barcellos, eficaz e adequada aos propósitos de justiça.
Trata-se, exatamente daquela, cujo conceito abriu a presente discussão: a ponderação
como técnica jurídica apta a solver conflitos normativos insuperáveis pela hermenêutica
tradicional, pelo fato de envolverem valores em conflito ou oposições entre opções
políticas (2005). Evidentemente, os valores consagrados na Constituição Federal
orientarão o juiz ao ponderar.
Alerta Canotilho que o apego à idéia de ponderação surgiu no afã de se “encontrar
o direito” e para resolver as tensões entre interesses. Liga-se ao direito constitucional e
representa uma viragem metodológica porque não existe ordenação abstrata dos bens
constitucionais. Ademais, normas principiais, principalmente aquelas que consagram
direitos fundamentais, das quais podem derivar conflitos de princípios, superável pelo
método da ponderação. Outra razão que recomenda o uso da ponderação é o fato do
multiculturalismo dentro de uma mesma comunidade. Segundo o constitucionalista
luso, a ponderação é um elemento de interpretação pelo qual é possível ao juiz criar uma
norma de decisão. Dois exemplos da jurisprudência alemã ilustram o que se expôs:
133
Caso 1. Direito à informação contra o direito à ressocialização
individual
Um determinado indivíduo cometeu um crime grave (assassínio de
sentinelas de um quartel militar) e por esse fato foi julgado e
condenado à pena de prisão. Pouco antes do termo da sua pena e
conseqüente regresso à liberdade e à sociedade, um canal de televisão
anunciou a emissão de um filme-documentário sobre este caso. Reagiu
o condenado argumentando que a passagem televisiva do filme
implicava nova condenação pública, perturbando seriamente a sua
ressocialização. Replicou a estação de televisão com o argumento do
direito e liberdade de informação. Não é possível metodologicamente
estabelecer, de forma abstrata, esquemas de supra/infra-ordenação
entre os direitos conflituantes dizendo que o direito à informação
“pesa” mais do que o direito à ressocialização ou vice-versa, afirmar
que este último se sobrepõe ao primeiro. É necessário um esquema de
prevalência parcial estabelecido segundo a ponderação dos bens em
conflito e tendo em conta as circunstâncias do caso. Por mais que
procurassem, os juízes não encontravam na “interpretação” das
normas constitucionais a solução para o conflito de direitos. O
balancing ad hoc levou-os a considerar que nas exatas circunstâncias
do caso (o “caso Lebach”) o direito à ressocialização prevalecia sobre
o direito à informação.
Caso 2. O direito à vida, o dever de proteção de bens constitucionais e
o direito das vítimas
No segundo caso, um outro indivíduo (Lüth), também autor de um
crime grave, estava em vésperas de julgamento público. No entanto,
ancorado em relatórios médicos, invocou o risco de perder a vida (por
enfarte) se fosse submetido a uma audiência pública de julgamento. O
conflito entre o direito à vida e o direito/dever do estado de
prossecução da ação penal colocou-se com toda acuidade. Além disso,
deveria ainda ter-se em conta o direito das vítimas a uma decisão
judicial justa e eventual reparação. Era inútil prosseguir a rota
interpretativa “batendo” nos textos para obter uma norma de decisão
situativa. Impunha-se um balanceamento, uma ponderação para
resolver a situação de tensão entre bens constitucionais. E o
reconhecimento do direito ao adiamento do julgamento para a
proteção do bem da vida (como foi o caso) não significa sempre um
esquema de prevalência deste direito sobre o dever de prossecução da
ação penal e o direito das vítimas a uma decisão justa e uma eventual
reparação de dano. (CANOTILHO, p. 1110)
Com isto, os casos não previstos pelo legislador (lacunas), os casos em que se
apresentam conflitos de normas (antinomias) e os casos que apresentam conflitos de
134
valores e que portanto, não podem ser decididos pela lógica subsuntiva, encontram-se
amparados. Há, a despeito do caráter atualizador e concretizador da ponderação,
conseqüências contrárias à justiça. A mais séria delas é a discricionariedade com que se
dota o juiz, o que, segundo Streck, põe por terra o desiderato de superação dos
parâmetros juspositivistas.
Ora, se, ao fim e ao cabo, cabe ao intérprete hierarquizar (e escolher) o
princípio (ou a regra) aplicável, a pergunta que cabe é: qual é a
diferença entre o “intérprete ponderador” e o “intérprete do
positivismo” que discricionariamente escolhe qual a “melhor”
interpretação? Parece-me que o positivismo, neste ponto, era mais
explícito. E mais sincero (STRECK, 2008b, p. 183).
Por esta razão, a proposta de Streck é substituir a teoria da argumentação, de
caráter procedimentalista, pela hermenêutica filosófica, com raízes na fenomenologia
reformulada pela superação do esquema sujeito/objeto, sob o argumento de que “o
direito é uma questão de caso concreto” que até então, pela hermenêutica tradicional foi
obnubilado por verbetes pretensamente unívocos (STRECK, 2007). A principal
superação que se propõe é a questão da teoria da norma, segundo a qual o “direito é um
sistema de regras em que não há espaço para os princípios” (STRECK, 2007, p. 390).
Assim, a teoria positivista das fontes vem a ser superada pela
Constituição; a velha teoria da norma dará lugar à superação da regra
pelo princípio, e o velho modus interpretativo subsuntivo-dedutivo
fundado na relação epistemológica sujeito-objeto vem dar lugar ao
giro lingüístico-ontológico, fundado na intersubjetividade (STRECK,
2007, p. 335).
Para Streck, os princípios vieram para permitir a concretização do direito e da
justiça, pois voltam-se para o homem, sua historicidade e seu modo de ser no mundo.
Embora permaneça o mesmo, o ordenamento jurídico pode ser flexibilizado,
adaptado e suficiente para contemplar a contento as situações sociais decorrentes da
ampliação dos interesses jurídicos e dos sujeitos de direito. A flexibilidade está no
135
hermeneuta e na hermenêutica eleita. Na medida em que se elege a hermenêutica
concretizadora, fenomenológica, que substitui os princípios gerais do direito pelos
princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, é possível ampliar e
melhorar o alcance do direito.
5 Abandonar a visão tradicional do direito sem abandonar o direito
tradicional: olhar o direito tradicional com olhos filosóficos
O propósito das discussões e considerações entabuladas nos capítulos anteriores
foi preparar o quadro teórico de onde se deduzirão as respostas para a questão crucial da
insuficiência do ordenamento jurídico, sem perder de vista as especificidades do direito.
O presente capítulo pretende sugerir que o direito pode ser a visão que se tem sobre ele.
Antes que se iniciem as considerações previstas para o presente capítulo, é bom
lembrar que razões (não se discute ainda se boas ou más) para que as coisas sejam
como são e por isto “a astúcia do Direito consiste em valer-se do veneno da força para
impedir que ela triunfe”. (REALE, 2002, p. 72). Fosse possível manter o equilíbrio
social apenas com sanções morais e religiosas, não haveria necessidade de se recorrer à
força da qual o Estado dota o direito. Sem esta força externa atuando sobre seu
comportamento, impondo-o, o homem tende a ampliar sua esfera de interesses e invadir
a esfera alheia.
Em prefácio a uma edição mexicana do Leviatan, seu tradutor conta de que
Hobbes (1998), ao analisar o Homem, afirma que a energia humana de expansão,
encontra limite no medo da morte, de tal forma que ele precisa proteger-se deste perigo
iminente e imprevisível. Neste temor, percebido pela razão, Hobbes entende que se
localiza a gênese da lei e do Estado, considerados os instrumentos mais eficazes de
136
proteção do homem contra o homem e por isto, o aparente paradoxo entre os interesses
individuais e sociais. “Obedecer é honrar, porque nenhum homem obedece a quem não
pode ajudá-lo ou prejudicá-lo. Em conseqüência, desobedecer é desonrar” (1998, p.
71).
53
Resta agora conciliar a percepção que se tem do gregarismo humano (observando
que se por mote instintivo e por mote político), da qualidade axiológica das normas
que o homem obedece, bem como a qualidade moral e política de quem as põe e de
quem as aplica.
Isto coloca a questão sob a perspectiva de que a obediência é fator de agregação
da sociedade e que a norma jurídica compreende três etapas, também jurídicas, a saber:
sua elaboração; a obediência a ela e a respectiva sanção pelo descumprimento; e sua
aplicação.
Neste sentido, não se pode perder de vista os determinantes humano e social. A
norma, posta por homens e obedecida por homens, inevitavelmente, quando necessário,
será corrigida por homens, o que implica dizer que por ser manifestação humana,
carrega consigo valores e desvalores, mas não se confunde com o valor ou desvalor que
contém. Ora, os valores são eternos e imutáveis, contudo, sua referibilidade e
acatamento, históricos. Por exemplo, o belo é valor que existe se se refere a um
objeto (o que quer dizer que o objeto é belo) e o que era considerado belo numa época,
pode não ser mais numa outra. Assim, quando se diz que a norma visa a realizar valores
e afastar desvalores através da conduta humana, deve-se entender que serve a uma pauta
53
Obedecer es honrar, porque ningún hombre obedece a quien no puede ayudarle o prejudicarle. Y em
consecuencia, desobedecer es deshonrar.
137
de valores determinada por determinado perfil social e quem a põe, obedece e aplica é
integrante desta sociedade (REALE, 1998).
Isto posto, é imperioso admitir que as pautas éticas refletem o modo de ser da
sociedade e os valores acatados por ela. Com o direito não é diferente. Ele deve estar em
consonância com a organização social na qual se situa e deve conformar-se às
concepções da sociedade sobre si mesma.
Cabe, a partir de várias propostas teóricas, escolher uma delas, sem pretender que
seja a melhor ou a correta, e sob a sua luz, lançar novos olhares para o direito, dando-lhe
a configuração adequada à sociedade a que se propõe servir.
Apenas para elidir qualquer assombro acerca do título do presente capítulo, é bom
que se evoque o emblemático exemplo da Constituição Norte Americana, cujo primeiro
postulado é o da igualdade perante a lei. Ao tempo da declaração de independência dos
Estados Unidos, 1776, o conteúdo de “Todos os homens nascem livres e iguais em
direito”, por conta das características sociais, referia-se apenas às pessoas brancas e do
sexo masculino. Mais de duzentos anos depois o texto legal, consagrado desde a
Constituição Americana de 1787, após passar por sete interpretações sucessivas,
exigidas pelas transformações sociais, é lido da maneira mais inclusiva possível,
igualando todas as pessoas, sem diferenciação em razão de credo religioso, etnia, cor,
sexo, origem econômica ou nacional.
Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a
mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as
compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se
afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-
compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos
significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmos
significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói
na linguagem que é reconstruída pela marcha econômica e social [...].
138
Estas mudanças acontecem na cabeça das pessoas. (MAGALHÃES,
2004).
Não importa que mudanças ocorram e em que ritmo acontecem, o que não se pode
é perder de vista o homem e a sua dignidade, por isto a demanda por atualizações
conceituais que permitam a inserção de pensamento e práticas que elevem o homem, em
qualquer segmento da sua existência.
5.1 A visão sistêmica do direito proposta por Niklas Luhmann
Ao propor a concepção sistêmica, certamente Niklas Luhmann (1983) prevê que
se concebam outros sistemas, sob pena de não ser possível pensar a sociedade como
sistema.
Inicialmente deve-se retomar, apenas para clarificar o ambiente
54
e de forma
sintetizada, o esboço da sociedade concebida pelo pensador alemão.
5.1.1 Esboço da teoria dos sistemas sociais
É próprio do homem, olhar, diferenciar, concluir, explicar e, com isto, comunicar,
retornando, em seguida, a olhar de novo e perceber as transformações sobre suas
próprias conclusões. A partir desta percepção que se tem acerca do homem erigem-se
as teorias do conhecimento, decorrentes do esforço do homem em explicar-se e
justificar-se em suas relações com o mundo, com a realidade que ele mesmo constrói e
da qual ele é fruto. Na medida em que se torna mais complexa a sociedade, novas
alternativas de análise se impõem (FAVA, 2008). A teoria dos sistemas, proposta por
Niklas Luhmann é uma alternativa de pensar a sociedade e de reduzir sua complexidade.
Paradoxalmente, o reduzir complexidades consiste mesmo em criar novas
54
“Ambiente”, em relação ao direito, conforme se verificará a partir de agora, é o próprio sistema social,
ou qualquer outro sistema externo ao direito.
139
complexidades (ou novos complexos), mediante a utilização de um intrincado de
conceitos.
“Toda a teia de conceitos que estrutura a teoria sistêmica nos dá a possibilidade de
nos depararmos com discursos cuja base é o paradoxo” (QUEIROZ, 2003, p. 90). Com
efeito, o paradoxo é a base do discurso da teoria sistêmica. Quando se determina o que
não faz parte do sistema, está-se dizendo que embora fora do sistema, o elemento, de
alguma forma deverá ser contemplado pelo sistema que o exclui, que foi julgado pelo
sistema como não-sistema. Pensar sistemicamente torna impossível desconsiderar o que
está sendo negado, pois o que se nega são as possibilidades conhecidas (QUEIROZ,
2003).
Para Claudio Baraldi (apud FAVA, 2008, p. 289), um sistema social “é um
sistema auto referencial autopoiético, que se constitui como diferenciação em relação a
um entorno. Além disto, é constitutivo de sentido. Suas operações e últimos elementos
são comunicações”.
55
Fava (2008) desdobra este conceito destacando as características
do sistema: 1) é auto-referencial e autopoiético porque é comunicativo e toda
comunicação implica auto-referência que a emissão confirma a existência do
emissor” (p. 290) e as operações do sistema se repetem, criando novas comunicações,
retro-alimentando-se, sem, todavia, imiscuir-se em outros sistemas e no ambiente
(entorno); 2) o próprio sistema diferencia-se do ambiente onde ele existe, por conta da
especificidade das suas operações, típicas de um sistema e não de outro. O sistema só se
diferencia porque o ambiente e outros sistemas, o que já traz ínsita a idéia de código
binário (dentro/fora; sistema/ambiente) a orientar a teoria; 3) o sistema constitui sentido,
isto é, seleciona as possibilidades existenciais de tudo o que pode acontecer na
55
Es um sistema autorreferencial autopoiético, que constituyse como diferencia com respecto a um
entorno. Es además constitutivo de sentido. SUS operaciones y ultimos elementos son comunicaciones.
140
sociedade, ordenando-as em dois lados (o que pertence e o que não pertence ao
sistema); 4) “as principais operações de um sistema resumem-se em comunicações” (p.
289), com tanto mais emissores e receptores quanto mais complexa for a sociedade.
Corolário deste entendimento, é a exclusão do homem do interior dos sistemas, eis
que as operações humanas se realizam por meio do pensamento, enquanto que a
sociedade trabalha com comunicação. “Até onde as ciências cognitivas pesquisaram, um
pensamento não pode abandonar a consciência que os produziu e sair andando por aí.
Ele precisa da linguagem, que opera como um meio de acoplamento entre os seres
humanos e a comunicação social.” (MAIA, 2006, p. 178).
Os sistemas apresentam a função como seu elemento fundamental e essencial, de
tal forma que a estrutura, por não ser o eixo, altera-se continuamente e consiste na “pré-
seleção de possíveis relações entre os elementos admitidos em dado momento”
(ROCHA, 2005, p. 62). Esta é a visão funcional estruturalista que se deve ter dos
sistemas autopoiéticos e como tal, do direito.
5.1.2 O direito como um dos sistemas sociais
É próprio das sociedades diferenciadas e complexas, que o papel desempenhado
pelo direito seja especificamente garantir as expectativas normativas, utilizando-se de
mecanismos próprios. Esta afirmação, vista sob a ótica dos sistemas, oferece a
perspectiva do seu fechamento operacional, isto é, o direito opera com seus próprios
elementos e produz direito por meio do direito (CAMPILONGO, 2000).
Paradoxalmente o direito se abre à complexidade do ambiente, pois reage às irritações
56
56
O termo irritação do sistema é utilizado por Luhmann para significar os estímulos (cooperativos ou
conflitivos) que um sistema recebe de outros, em forma de complexidade.
141
produzidas por outros sistemas, como por exemplo, o econômico e o político, “num
contexto de contingência e complexidade constantes”. (CAMPILONGO, 2000, p. 169).
Além de conceber o sistema do direito, muito mais como uma ordenação e
unidade, concepção esta construída a partir de várias inspirações
57
, Canaris alerta que o
tratamento sistêmico do direito deve primar por dois pontos principais, quer sejam: “o
conceito geral ou filosófico de sistema e, [...] a tarefa particular que ele [sistema] pode
desempenhar na Ciência do Direito”. (2002, p. 9). Canaris não menciona, contudo, os
elementos enfatizados por Luhmann e passa ao largo da idéia de autopoiése, voltando-
se, isto sim, para a análise ontológica e científica do Direito. Enquanto Luhmann propõe
a renúncia a fundamentos axiológicos para a concepção de sistema, Canaris afirma que
“a exigência de ‘ordem resulta diretamente do reconhecimento do postulado da
justiça...” (2002, p. 18).
É sob o teto da construção luhmanniana que se desenvolve o presente estudo, o
que exige o abandono de um aporte mais aprofundado acerca da abordagem feita por
Canaris. A propósito, o estudo cotejado das duas concepções parece constituir
importante tema para ser desenvolvido em pesquisa própria.
São próprios dos sistemas em geral, os códigos binários, a começar pela oposição
sistema/ambiente, input/output e em seguida, do ponto de vista do direito, legal/não
legal e lícito/não lícito. Segundo Gunther Teubner, jurista alemão comprometido a dar
continuidade ao pensamento de Niklas Luhmann, seria inadequado traduzir
“Recht/Unrecht” e “Recht/ Nicht-Recht” como justo/injusto, binômio afeito muito mais
57
Canaris remete a Savigny, segundo o qual sistema é a “concatenação interior que liga todos os
institutos jurídicos e as regras de Direito numa grande unidade”; Stammler “uma unidade totalmente
coordenada”; Binder, “conjunto de conceitos jurídicos ordenado segundo pontos de vista unitários”;
Hegler, “a representação de um âmbito do saber numa estrutura significativa que se apresenta a si própria
como ordenação unitária e concatenadora”; Stoll, “conjunto unitário e coordenado”; Coing, “ordenação
de conhecimentos segundo um ponto de vista unitário”. (2002, p. 10).
142
ao sistema ético que ao jurídico; traduzir como correto/incorreto, seria para ele,
“demasiado maçante” e direito/não direito, revela-se falso como designação do código
interno do direito (2004, p. 112), assim, legal/não legal e cito/não lícito, são mais fiéis
aos propósitos do direito.
A fim de que se definam as oposições, os sistemas autopoiéticos operam com
diferenciações, isto é, atribuem relação de sentido a cada uma das possibilidades
ocorrentes a partir das experiências sociais. A cada experiência vivida pela sociedade ou
por qualquer sistema, um complexo de possibilidades se verifica exigindo uma decisão
que possa diminuir a complexidade, mas que em contrapartida produz um risco
(QUEIROZ, 2003).
Colocada em outras palavras, a idéia de sistemas representa o instrumental teórico
que permite o enfrentamento da complexidade de temas simplificando-a através da
diferenciação e com base no código binário. Para exemplificar, no sistema do direito, de
um fato podem manifestar-se várias possibilidades, das quais apenas uma passará a
integrar o sistema, mediante decisão; as demais, às quais se renuncia, deixam de fazer
parte do sistema, quiçá, dando origem a um novo sistema. Luhmann (2004), atribui à
decisão também o papel de “des-paradoxizar” o direito, evidentemente, em se tratando
de sistema jurídico.
Essa prática de des-paradoxização do direito torna-se mais simples e
perfeita através da representação de que a legislação tem por base uma
decisão política. Considera-se a introdução de novo direito ou a
modificação do antigo como contingência; contudo, absorve-se essa
contingência em um sistema funcional diferente: na política. (p. 39).
58
58
Esta afirmação de Niklas Luhmann conduz à percepção de que os vários sistemas sociais mantêm
relações entre si, segundo e por meio da comunicação. Metaforicamente, “cada sistema figura como uma
bola de bilhar, na mesa de jogo. É do jogo, que essas bolas batam umas nas outras, mas é essencial à
continuidade ou, noutra, da (sic) validade do jogo, que as bolas, batendo, não se dilacerem, não se
deformem, não se excluam, com a remessa para fora da mesa de operações”. (FAVA, 2008, P. 298).
143
Da função decisória dos sistemas, ou seja, operação de redução de complexidade,
ou atribuição de sentido a cada possibilidade, novos elementos, que por força de decisão
adquiriram sentido compatível, podem integrar-se ao sistema, realimentando-o.
Neste sentido Celso Campilongo (2000) acrescenta que a decisão além de
contingente, é própria da sociedade complexa. Explica que a complexidade significa a
pluralidade de alternativas e que a contingência da decisão é uma opção não necessária,
mas possível. Nas palavras do próprio autor:
Contingência significa que se a decisão, hoje, recaiu sobre a hipótese
“x”, nada impediria que, legitimamente, tivesse recaído sobre a
alternativa “y”, ou que, no futuro, recaia sobre a via “z”. Vale dizer,
quanto mais complexa e contingente a sociedade, mais escassas as
chances de decisões consensuais (diante da multiplicidade das
escolhas) e mais nítidas as artificialidades que informam o processo
decisório (dada sua contingência). Em razão dessas características,
decidir equivale a fazer escolhas árduas, em curto espaço de tempo,
sobre matérias não rotinizadas e com conseqüências sociais
imprevisíveis. Os temas da política se reproduzem nesse contexto.
(2000, p. 83).
Ao processo de auto-reprodução de elementos é que se reconhece como
autopoiese, que nos sistemas vivos se por meio da vida e nos sociais, pela
comunicação. Neste passo, pode-se afirmar, - aliás, é exatamente o que pretende o
arquiteto da teoria que ora se comenta - que os sistemas se auto-observam, levando a
que, ao debruçar-se sobre o estudo dos sistemas, o observador externo opera a meta
observação, pois observa o observar, isto é, observa como o direito observa a si próprio
(ROCHA, 2008).
Se nos sistemas vivos o fluxo de energia e matéria constitui sua base e define sua
clausura organizacional e sua abertura estrutural (CAPRA, 2006, p. 141), nos sistemas
sociais é o fluxo de comunicação que os torna operacionalmente fechados e
estruturalmente abertos. Desta forma, o número elevado de possibilidades ou
144
“ressonâncias” produzidas num sistema, por outros, reduz-se a algumas alternativas
relevantes para o próprio sistema e pelo próprio sistema. Tais alternativas são
processadas pelo sistema como informação. Diz-se, então, que o sistema é fechado pois
produz seus elementos a partir de seus próprios elementos, num processo auto-
referencial e de auto-observação (MURICY, 2002). É aberto o sistema, sob a
perspectiva da estrutura, no sentido de que conecta-se, cognitivamente (ou dá-se a
conhecer e conhece) com os demais sistemas, ou dimensões do mundo da vida.
Em relação a um sistema que não ele próprio, o homem é ambiente, assim como
em relação ao homem, considerado como sistema, os demais é que são ambientes.
Depreende-se que “a teoria dos sistemas busca a ligação de diferentes áreas do saber, e
utilizando a física, a química, a biologia e a cibernética, percebe a sociedade como um
sistema estruturado de ações significativamente relacionadas”. (NASCIMENTO, 2006,
p. 54). Estabelecer significados, na linguagem dos sistemas, é o mesmo que estabelecer
diferenciações, o que redunda na complexidade crescente, de tal forma que
Tudo o que se pode imaginar e observar, pode acontecer. Porém, para
se criar certos sentidos perante esse excesso de possibilidades,
surgiram, na sociedade, nesse processo de enfrentamento da
complexidade, sistemas. [...] Sistemas que ordenam essa
complexidade a partir de certo tipo de perspectiva conforme o tipo de
diferenciação funcional evolutivamente consagrado. (ROCHA, 2008,
p. 168).
Esta sociedade, altamente complexa, tem de enfrentar tomadas de decisões sempre
diferentes, portanto, não cabe mais a concepção de um direito eterno, imutável,
indiferente às transformações verificadas no seu entorno. Segundo Rocha (2008), é o
direito positivo, diferenciado e construído por decisões, que sobreviverá neste tipo de
sociedade indeterminada.
Diferentemente do que ocorria no direito primitivo, amalgamado com a religião,
em que as normas não se diferenciavam e que os ilícitos se confundiam com pecados, -
145
“a distinção entre regra religiosa e regra jurídica é aqui muitas vezes difícil, porque o
homem vive no temor constante dos poderes sobrenaturais” (GILISSEN, 1995, p. 35) -
o direito moderno, por força de exigência da constituição das sociedades de ser
escrito.
Neste sentido, diz-se que o Estado de Direito submete o poder político a uma
pauta normativa, que segundo a sociedade exprime o justo. Este poder comanda os
homens por meio de leis; o governo se faz por leis e não por homens. Assim ensina
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, quando se refere à lei escrita como o pressuposto
máximo do primado da Constituição:
A supremacia do direito espelha-se no primado da Constituição. Esta,
como lei das leis, documento escrito de organização e limitação do
Poder, é uma criação do século das luzes. Por meio dela busca-se
instituir o governo não arbitrário, organizado segundo normas que não
pode alterar, limitado pelo respeito devido aos direitos do Homem.
(1996, p. 3).
A textualização do direito representa uma grande possibilidade de evolução,
[...] porque se presta ao reconhecimento de imprevisíveis
possibilidades combinatórias que derivam não somente do texto, mas
das contínuas e imprevisíveis formas de recomposição da unidade das
respectivas diferenças entre texto e aquilo que continuamente se
separa em relação ao texto. (DE GIORGI, 2006, p. 176).
Olhar o direito sob o prisma da teoria do sistema autopoiético revela aquilo que a
teoria kelsenian preconizou: o direito é um sistema unitário, fechado e autônomo.
Ocorre que entre a concepção luhmanniana e a teoria de Hans Kelsen há grandes
diferenças. No sistema proposto por Kelsen o fechamento é lógico e se faz por meio da
norma fundamental. Vale lembrar que a norma fundamental é concepção kelseniana,
destinada a fechar o ordenamento jurídico, como a solução para o problema da busca de
validade num regressus in infinitum. Seja a ordem normativa, Moral ou de Direito,
caberá à norma fundamental fechar o sistema, o que resulta na afirmação da “norma
146
fundamental como o supremo fundamento de validade de uma ordem jurídica”.
(KELSEN, 1986, p. 326). Além disto, a experiência jurídica constitui ameaça à pureza
do direito e pode corromper a unidade do sistema, diz Kelsen.
Niklas Luhmann, por seu turno, considera que a clausura do sistema não resulta de
fatores epistemológicos, mas sim, da própria operação do sistema, cuja base é a
comunicação. O direito se faz autônomo e unitário por força da autopoiése do sistema,
logo, definir os limites do direito, recorrendo à metodologia, contradiz a própria teoria
autopoiética, segundo a qual só o direito limita o direito (MURICY, 2002).
A validade do direito é pressuposto da teoria sistêmica. Apenas o direito válido
pode legitimar o direito posterior (lembrando que a legitimação se faz pela operação), e
“o direito é válido, quando ele é válido, até ser modificado”. (LUHMANN, 2004, p. 38).
Resulta, deste pressuposto, que Luhmann renuncia à legitimação política e axiológica
das decisões (operações), para não colocar em risco a segurança promovida pela
legalidade (MURICY, 2002).
5.1.3 A metáfora dos doze camelos: fator de operabilidade do direito
Autopoiése, códigos binários, diferenciação e sentido, legitimação pelo
procedimento, paradoxo, des-paradoxição, clausura operacional, abertura cognitiva e
outras expressões, compõem a linguagem da teoria dos sistemas. No intuito de manter
coerência com o pensamento sistêmico, que ele se funda na comunicação e que a
comunicação supõe conhecimento do código lingüístico pelo destinatário da
mensagem
59
, o recurso a metáforas e alegorias mostra-se adequado como meio de
elucidação de conceitos estabelecidos em linguagem peculiar. Utilizando-se da metáfora
59
No verbete “comunicação” encontra-se a seguinte definição: intercâmbio que se processa, por meio de
um código lingüístico, entre um emissor, que produz um enunciado, e o interlocutor ao qual este
enunciado é dirigido. (HOUAISS, 2001, p. 781).
147
que segue, Niklas Luhmann desenvolve estudo sobre as relações entre o direito, como
sistema e a sociedade
60
.
Um rico beduíno estabeleceu a sucessão por testamento a seus três
filhos. A partilha foi estabelecida em torno de seus camelos. O filho
mais velho, Achmed, deveria receber a metade. O segundo filho, Ali,
ficaria com um quarto do previsto. O filho mais novo, Benjamin, teria
apenas um sexto. Esta disposição [a princípio] parece [resultar] numa
divisão desigual, arbitrária e injusta. [Porém] ela corresponde mais
exatamente ao valor proporcional dos filhos sob a perspectiva
histórica de perpetuação do clã, e esta corresponde precisamente à
alegria do pai com o nascimento de cada um deles: o segundo filho
seria privilegiado somente no caso de o primeiro morrer sem deixar
descendente varão etc. Daí a proporção de diminuição das partes.
Entretanto, e devido a imprevistos, o número [total] de camelos foi
reduzido consideravelmente antes da morte do pai. [Assim], quando
ele morreu, restavam apenas onze camelos. Como deveria dividir? Ali
(sic) reivindicou, sob protesto, seu privilégio de filho mais velho, ou
seja, seus seis [camelos]. Porém, isto seria mais do que a metade. Os
outros [por isso] protestaram. O conflito foi levado ao juiz, o qual fez
a seguinte oferta: eu ponho um camelo meu à vossa disposição, e
vocês restituir-me-ão, se Alá quiser, o mais rápido possível. Com doze
camelos a divisão ficou simples. Achmed recebeu a metade, quer
dizer, seis. Ali recebeu seu quarto, ou seja, três. Benjamin não foi
prejudicado, recebendo seu sexto, ou seja, dois. Assim os onze
camelos foram divididos e o décimo segundo pôde ser devolvido.
(LUHMANN, 2004, p. 33/34).
Onde Hans Kelsen viu a norma fundamental, Niklas Luhmann vê o camelo.
Recurso hipotético para propiciar o fechamento do ordenamento jurídico, a norma
fundamental encima o processo de derivação do sistema jurídico, situada no ápice da
pirâmide hierárquica “como o supremo fundamento de validade de uma ordem
normativa” (KELSEN, 1986, p. 326). É dela, norma fundamental, que as demais normas
do ordenamento jurídico extraem sua validade, fechando o sistema jurídico. Dito de
outra maneira, graças à norma fundamental, todas as demais normas do ordenamento
jurídico haurem sua validade dentro do próprio ordenamento, fechando, destarte, o
sistema. O décimo segundo camelo, para Luhmann, representa a possibilidade de
fechamento do sistema autopoiético pelas operações do direito, baseadas na validade,
60
Oportunamente se trará a crítica aduzida por Marcelo Neves quanto à metáfora proposta por Luhmann.
148
sem que se mencione como faz Kelsen a hierarquia das fontes do direito.
Naturalmente, Kelsen ao identificar o Estado ao Direito, reduzindo aquele a uma ordem
jurídica, remete a validade do direito à derivação hierárquica, segundo a qual, as normas
buscam validade umas nas outras, de acordo com o patamar em que cada uma delas se
encontra. Para Kelsen “Uma norma que representa o fundamento de validade de uma
outra norma é figurativamente designada como norma superior [...]” (2000, p. 215).
O décimo segundo camelo representa os pressupostos sobre os quais cada
operação do sistema se apóia, ou ainda, a auto-referência do sistema. Contudo, este
pressuposto não pode ser fixado logicamente no sistema, pois ele deve variar conforme
variam as operações, razão pela qual Luhmann o designa como “essência”, “norma
suprema” ou “variável essencial”
61
(2004).
Kelsen não localiza a justiça nos domínios do direito, mas sim nos da ética, pois
um comportamento é justo ou injusto, na medida em que ele se conforme ou não a uma
norma. Ademais, afirma Kelsen que “o juízo de valor não pode incidir sobre normas”
(1996, p. 5), pois isto estaria negando validade ao direito positivo que somente a poderia
extrair de uma norma de justiça, estabelecida pelo direito natural. Falar de um direito
positivo bom ou mau, justo ou injusto corresponde a comparar
[...] as normas do direito positivo com uma norma de justiça, que ,
portanto avaliamos uma norma através de outra norma e, por essa via,
elaboramos um juízo segundo o qual a norma do direito positivo é
justa quando corresponde à norma de justiça na medida em que
estatui o que a norma de justiça prescreve ou segundo o qual ela é
injusta quando não corresponde à norma de justiça na medida em
61
Este é o ponto que, pela percepção da autora deste trabalho, permite a miríade de interpretações. O
décimo segundo camelo, como variante essencial, a despeito de sua generalidade e abstratividade,
significa a operabilidade do direito no caso concreto. Acrescente-se a isso a seguinte observação: “Os
textos jurídicos são problematizáveis[...] porque estão redigidos em linguagem corrente, ou então numa
linguagem especializada a eles apropriada, cujas expressões – com ressalva de números, nomes próprios e
determinados termos técnicos apresentam uma margem de variabilidade de significações que torna
possível inúmeros cambiantes de significação. É precisamente na profusão de tais cambiantes que se
estriba a riqueza expressiva da linguagem e a sua susceptibilidade de adequação a cada situação”.
(LARENZ, 1997, p, 283).
149
que estatui o contrário do que a norma de justiça prescreve. (1996, p.
5).
O valor justiça, assim, de se verificar na atitude humana, seja daquele que
cumpre a norma, seja daquele que a põe.
Da mesma forma, mas com outro viés, Niklas Luhmann exclui das considerações
sistêmicas do direito, o valor justiça, porque admitir dentro de um sistema, elementos de
outros sistemas, contraria os postulados da auto-referência, do fechamento operacional e
da autopoiése do sistema. Para superar este ponto é que Luhmann aponta para o décimo
segundo camelo que ao mesmo tempo integra e não integra o sistema, num paradoxo a
ser resolvido pela decisão. “O direito é paradoxalmente constituído, por isto o camelo é
e não é necessário”. (LUHMANN, 2004, p. 36). Em sendo necessário, traz-se-o para
dentro do sistema, atribuindo-lhe juridicidade, o que o torna parte integrante do sistema.
Recorrer ao camelo pode representar tanto o direito positivo quanto o direito natural,
conforme se conclua se ele deve ou não ser restituído ao juiz: em não o sendo,
representa o direito positivo e sua validade; do contrário, o direito natural e sua
legitimidade. São, portanto, dois pontos de vista diferentes para o mesmo fenômeno, o
que constitui mais um paradoxo, desta feita entre o olhar do jurista e o olhar do
sociólogo, ou, respectivamente, entre um olhar interno e um olhar externo ao sistema
(LUHMANN, 2004).
Neste sentido, Teubner, aponta para a acusação de alienação dirigida ao direito
pelos sociólogos, afirmando que a sociologia quer o retorno do direito à sua formação
espontânea, baseada em normas sociais. Por isto, o fechamento operacional do sistema
significa, para eles a alienação do direito.
O objeto dessa crítica visa o desvio [alienação] do direito de suas
origens sociais e humanas, a abstração da brutal relação entre ego e
alter. Nas diferentes variantes, a crítica do jurídico reivindica o retorno
para aquilo que considera como as fontes primárias do direito: as
150
normas sociais, uma formação espontânea das regras, uma
racionalidade discursiva ou uma justiça desconstrutiva. (2004, p. 110).
Pelo fato de que o direito reconstrói um conflito social sob a linguagem própria do
direito e sob condições procedimentais, para que possa ser objeto de decisão judicial, o
conflito é expropriado da sua fonte original. Isto porque o direito não pode sair de si
mesmo para entender conflitos exteriores a ele, assim, ele traz para dentro de si,
transformando em questões técnicas jurídicas, o fato externo que requer uma solução
jurídica. O camelo emprestado pelo juiz é o recurso que propicia a juridicização do
conflito social. “Particularmente o direito não é de todo apropriado para resolver
conflitos interpessoais de um modo satisfatório para as pessoas envolvidas”.
(TEUBNER, 2004, p. 111).
Foi exatamente a oferta do décimo segundo camelo, elemento exclusivamente do
direito, que permitiu a solução jurídica para o conflito social da partilha da herança dos
onze camelos deixados pelo beduíno, na metáfora proposta por Luhmann. Teubner
(2004) destaca que se não fosse a dogmática jurídica, com sua linguagem artificial e
produzida, seria impossível a reconstrução do conflito social sob circunstâncias que
permitam a quaestio juris.
Marcelo Neves
62
adverte que o excesso de abstrações pode levar à desestruturação
de uma teoria. Assim, ele pondera sobre a possibilidade de faltar o décimo segundo
camelo (NEVES). Já que o camelo é apresentado por Luhmann como o símbolo do
fechamento operacional e da abertura cognitiva do direito, Neves questiona sobre a
teoria do direito como sistema, nas condições mostradas pelo pensador alemão, caso não
seja possível contar com o camelo. Sua preocupação consiste na carência de direitos
62
NEVES, Marcelo. E se faltar o décimo segundo camelo? Do direito expropriador ao direito
invadido. Texto fornecido pelo autor, retirado de seus arquivos eletrônicos pessoais.
151
quando “cairemos na virtualidade de um direito soft irresponsável em relação ao mundo
hard (da falta) dos direitos básicos”. (p. 73). Neves não acredita na plenitude da
autopoiése, face à invasão que o direito sofre do seu entorno, o que torna difícil definir o
jurídico do não-jurídico e neste clima de descrédito ele fala em alopoiese jurídica “tendo
em vista que a reprodução jurídica é impulsionada diretamente por fatores
extrajurídicos, diluindo-se na autopoiése da sociedade”. (p.76). Sua objeção não se
dirige exatamente à teoria autopoiética, mas à realidade social onde se instala o direito,
onde com freqüência o símbolo da positividade do direito, o décimo segundo camelo, é
insuficiente. Desta constatação resulta a dificuldade de decisões juridicamente
consistentes e adequadas à sociedade, principalmente porque, acrescendo-se à carência
do décimo segundo camelo, sonegam-se camelos reais (direitos ou deveres) reduzidos a
textos de dispositivos constitucionais e legais (NEVES).
Possivelmente, a alienação das questões sociais, a serem reconstruídas com
arquitetura de discurso jurídico, seja o grande desafio enfrentado pela hermenêutica
jurídica. Segundo Jean Clam (apud ROCHA, 2005), o sistema recebe do ambiente,
variadas interferências provindas de outros sistemas, o que exige uma clivagem operada
pelo sistema estimulado externamente, sob pena de desmembramento do próprio
sistema.
Jean Clam (apud ROCHA, 2005), desdobra sua abordagem acera do direito como
sistema autopoiético, nos seguintes aspectos: suas referências, seu enceramento, sua
legitimidade, sua reflexão dogmática e teórica, seu paradoxo, seu centro judiciário e seu
fim imprevisto. Resumindo o tratamento dispensado nas perspectivas acima, tem-se
como resultado uma síntese de como se concebe o direito sob a luz da teoria de sistemas
autopoiéticos.
152
1) O direito concebido sistêmicamente só pode ser compreendido assim, como sistema,
por ter como referência básica a sociedade. Uma vez localizado (um sistema em
comunicação com seu ambiente), o sistema jurídico referir-se-á a si próprio, auto-
observando-se. Isto significa que as operações do direito não podem ter referência
fora dele, o que implica na sua clausura operacional.
2) Conseqüência da auto-fererência, o encerramento do direito, ou seu fechamento
operacional não importa em isolamento do sistema em relação ao ambiente, mas
paradoxalmente, permite sua abertura cognitiva, comunicacional. Segundo Jean
Clam, “o encerramento é a pré-condição da abertura, a maior possível, à contingência
do mundo ao redor dos sistemas”. (Apud ROCHA, 2005, p. 117). Por ser
operacionalmente fechado, o sistema jurídico não opera senão dentro de si mesmo e
com seus próprios elementos, o que resulta naquilo que se convencionou chamar de
circularidade, o que quer significar que o sistema vai das operações às estruturas,
retornando, depois às operações, e assim, num moto contínuo. Dada a circularidade
dos sistemas, tem-se que resta superada a velha ordem de estratificação hierárquica,
impondo-se a ela, a função. “Nossa sociedade não tem centro nem vértice.” (MAIA,
2006, p. 186). Donde se infere que tampouco o direito teria centro ou vértice. No
intuito de manter fidelidade à teoria, melhor corrigir a afirmação e não incluir nela o
“centro”, já que Luhmann se refere aos tribunais como “o centro do sistema jurídico”
3) Quanto à legitimidade, Clam (apud ROCHA, 2005) conclui que não pode ser
atribuída a outra coisa que não ao sistema mesmo. O pressuposto da legitimação é a
ficção legal de uma validade positiva das normas de direito, à parte de qualquer
referência axiológica. Buscar a fundação racional do sistema equivale a buscar um
fundamento exterior ao direito e à teoria do direito, portanto não-normativo, que
153
remete à política. Ora, a política é outro sistema, e deduzir dele a legitimidade do
sistema jurídico equivale a deitar por terra toda a construção teórica da autopoiése. O
direito é legítimo porque válido positivamente. E Clam (apud ROCHA, 2005) diz
mais: a validade do direito representa elemento essencial à autopoiése sistemática, no
que diga respeito à auto-referência e recursividade, assim como o dinheiro representa
o símbolo circulante da economia. A comunicação econômica se faz mediante um
pagamento monetário a exigir, em contrapartida, outro pagamento capaz de
reconstituir a capacidade de pagamento de uma das partes. No direito, a validade,
como símbolo circulante, faz com que as operações válidas dentro do sistema
mantenham conexão umas com as outras, transportando a validade. Disto se pode
inferir que “toda mudança que se refere ao direito é, na verdade, a mudança de um
direito válido”. (CLAM, apud ROCHA, 2005, p. 122).
4) A reflexão do direito se põe como condição da autopoiése do sistema. Exige-se,
portanto, para a compreensão do direito como sistema autopoiético, verificar que ele
organiza, por si mesmo, sua auto-referência, se auto-relata e que observa a si próprio
em duplo grau. Dito de outra maneira, observa e relata um ato jurídico, mas em
segundo grau, observa e relata a observação e relato que fez sobre a primeira
operação (ato jurídico). Para reconhecer um determinado fato como direito ou não
direito, é preciso que antes o direito reconheça-se como direito. A primeira operação
(a diferenciação de um fato a partir do binômio direito/não direito) pressupõe a
capacidade de reconhecimento de si próprio, o que se constitui, em última análise a
dogmática jurídica. (Apud ROCHA, 2005, p. 124).
5) Por tudo o que se analisou, é inevitável uma certa paradoxologia, sob pena de se
deixarem lacunas na teoria dos sistemas. Com efeito, a teoria dos sistemas
154
autopoiéticos se erige sobre a dualidade e a diferença, o que supõe a renúncia à base
de identidade e unidade. O direito se observa tautologicamente e não conhece outro
direito a não ser o seu. Por ser sistema autopoiético, o direito “é o que é, sem poder
designar o que o faz ser o que ele é”. (CLAM, apud ROCHA, 2005, p. 128).
6) Para Luhmann o centro do sistema jurídico autopoiético são os tribunais, conforme
leciona Jean Clam (apud ROCHA, 2005). Tal centralidade decorre, principalmente
da obrigação que têm os tribunais de julgar; contudo, Luhmann nega que seja
importante a utilização de argumentos legitimadores ligados a valores.
[...] Luhmann nega importância a argumentos legitimadores que
guardem relação com questões de valor. Em cenário demarcado pela
elevada seletividade das regras (programas) e pela incerteza quanto ao
conteúdo da decisão final, pouco importam os aspectos éticos,
políticos ou orientados pelo benefício econômico’. (MURICY, 2002,
p. 122).
Interpretação é a tarefa judicante dos tribunais e seu desempnho mediante a
observação da consistência de decisões anteriores, que também se incumbiram de
observar as que as antecederam. “O que importa é que o resultado da atividade
hermenêutica possa neutralizar a insatisfação, sendo irrelevante a natureza intrínseca
dos argumentos de que se vale”. (MURICY, 2002, p. 122). Ademais, a razão da
argumentação baseada em valores ou princípios, leva a que aquele que fixa os
princípios deve buscar no entorno do sistema, portanto, fora dele, o reconhecimento
dos princípios, complementando-os com a moral, a ética e a razoabilidade. Isto viria
a negar a tese da clausura operativa do sistema do direito. Outros elementos também
determinam a centralidade do subsistema judiciário e dão sentido e consistência à
teoria autopoiética do direito, como a auto-referência, a clausura operacional (pela
recursividade), a abertura cognitiva e a (ainda não mencionada neste trabalho)
155
posição heterárquica
63
do judiciário e do legislativo. Se os tribunais são o centro do
sistema jurídico, o legislativo é o centro do sistema político. Olhando dentro do
sistema jurídico não se pode afirmar que o judiciário deva submeter-se ao legislativo
por acatar as normas previamente postas pelo último. As normas representam um
instrumental operativo para o sistema jurídico. Elas são partes integrantes do sistema,
mas o legislativo é ambiente em relação ao direito. Esta diferenciação (legislação e
jurisprudência), contudo, não se localiza no plano organizacional, senão no sistema
jurídico da sociedade (LUHMANN, 1990). Luhmann não coloca os tribunais no
centro do sistema jurídico simplesmente como um pressuposto teórico, mas o faz
apenas depois de ter explicado a idéia hierarquizante sobre legislativo e judiciário,
predominante na sociologia jurídica. Em seguida, adverte que não basta objetar as
teorias que hierarquizam, mas é mister que se coloque outra concepção no seu lugar,
e o faz, “com ajuda da distinção entre centro e periferia”. (1990, p. 160). Nenhum
outro sistema que não o jurídico pode coagir os tribunais à decisão: nem o legislador
e nem os cidadãos. Em nota de rodapé, Luhmann mitiga o impacto que esta firmação
pode trazer:
Não quero negar com isso que também os legisladores ou as partes
contratantes entram em apuros, nos quais não lhes resta outra
possibilidade senão a decisão. Mas esses apuros estão nesses casos
fundados em outros sistemas funcionais, não no sistema jurídico. Eles
são de natureza política, econômica ou ainda familiar. (1990, p. 160).
Tudo o que não for direito é periferia, inclusive o legislativo, em relação ao sistema
jurídico.
63
Este termo constitui um neologismo e como tal não é encontrado nos dicionários. Por dedução é
possível determinar seu sentido: hetero= outro, diferente e arquia= poder, donde, heterarquia= poderes
diferentes ou paralelos, sem relação de superioridade um relação ao outro.
156
7) Não há previsão para o fim do direito, pois um sistema autopoiético não sofre
colapso ainda que não esteja adaptado ao seu ambiente, porque os sistemas, mesmo
em crise continuam a funcionar recursivamente, através de medidas, reformas ou
modificações do sistema, decretadas pelo próprio sistema. (CLAM apud ROCHA,
2005).
Pretendeu-se, com a análise acima, tornar o menos discutível possível, ou, em
linguagem sistêmica, reduzir a complexidade, ou ainda, dar sentido ao fato de que o
direito é aquilo que o direito afirma de si mesmo. É aquilo que o “Direito diz ser
Direito”. (CLAM apud ROCHA, 2005, p. 41). Ora, não se chega a esta afirmação a não
ser quando se observa o direito sob o ponto de vista operacional e a luz lançada sobre o
direito pela teoria dos sistemas autopoiéticos facilita esta compreensão e orienta para
um caminho conducente não à impossível realização da justiça máxima, mas à máxima
realização da justiça. Evidências sobejamente demonstradas informam que a gradação
da justiça realizada (se é que se pode graduá-la) é proporcional à qualidade da
interpretação. Desta forma, voltar o olhar para a hermenêutica compreendendo-a
consiste num dos pressupostos de concretização da justiça.
5.2 Interpretar filosoficamente e as possíveis relações entre o direito
sistêmico e a hermenêutica filosófica
se verificaram no capítulo quarto deste estudo, as linhas gerais pelas quais
vem se conduzindo a hermenêutica ao longo da história. Desde o princípio in claris
cessat interpretatio passando pela Escola da Exegese até as discussões da pós-
modernidade acerca das hermenêuticas principiológicas (constitucionais) em suas
157
possíveis vertentes e da maneira filosófica de interpretar, considerando o fenômeno (a
hermenêutica filosófica).
Um bom ponto de partida para discussões em torno de hermenêuticas á a
afirmação de que “não existe nenhuma concepção no intelecto humano que não tenha
sido recebida, totalmente ou em parte, pelos órgãos dos sentidos”. (HOBBES, 1998, p.
6).
64
Assim, quando se diz que “o mundo é constituído de sentido, e a maneira como ele
é apresentado depende do olhar do observador” (MAIA, 2006, p. 175), reforça-se a
possibilidade de substituição de uma hermenêutica eminentemente lógica e racional pela
hermenêutica mais humana, que leve em conta a existência do homem no mundo, o que
para Heiddeger é o dasein.
65
(1989). O hermeneuta observa o mundo e filtra os dados
observados, dando-lhes a necessária configuração jurídica, o que permite que tais dados
integrem o sistema. A partir desta idéia básica levantam-se as várias teorias da
interpretação jurídica. Maia (2006) lembra que o direito moderno não se reproduz
com a utilização de critérios religiosos, morais ou econômicos, mas apenas com
elementos do próprio sistema jurídico, graças ao seu fechamento operacional.
Isto torna possível a atuação social do direito em todos os segmentos que se
possam juridicizar, mas, alerte-se, apenas neles. Compreende-se, portanto, que a
insuficiência do direito é muito mais uma conseqüência das expectativas, tanto dos
juristas, quanto da sociedade em geral, em torno dele. Espera-se que o direito solucione
problemas que se situam nos limites de outros sistemas sociais, transferindo para o
direito as suas responsabilidades. Ocorre que o direito só pode dar conta daquilo que lhe
é concernente. Assim, um problema complexo, embora solucionado no âmbito jurídico
64
“no existe ninguna concepción em el intelecto humano que antes no haya sido ricibida, totalmente o
em parte, por los órganos de los sentidos”.
65
Oportunamente se comentará a respeito do dasein.
158
poderá subsistir em outros segmentos (afetivo, econômico, religioso, cultural, de saúde
etc.), a não ser que seja possível juridicizar tais aspectos e clarificá-los à luz do direito.
A hermenêutica supõe também um ato de escolha entre as alternativas que se
apresentam. A adequação da escolha depende da expectativa de quem se vê afetado por
ela e da visão de mundo de quem fez a escolha. A este mecanismo Luhmann chama de
dupla contingência e ele se fará subjacente a qualquer processo de interpretação.
Resumindo: a complexidade social exige tomada de decisões, o que constitui escolha
pautada em visão de mundo e que traz em si mesma os riscos. A presença destes riscos é
contingente. Outras pessoas, com expectativas diferentes das expectativas de quem fez a
escolha, certamente teriam preferido alternativa diferente, o que leva a que, além das
expectativas de quem escolhe, consideram-se também as expectativas da sociedade. Eis
o que Luhmann designa como dupla contingência. “Em resumo, para orientar-me
socialmente, preciso esperar que minhas expectativas sejam levadas em conta pelas
expectativas dos outros e, vice-versa, preciso levar em consideração as expectativas dos
outros”. (MAIA, 2006, p. 183).
Além da metáfora do décimo segundo camelo, na qual Luhmann expõe um
paradoxo, uma outra história, esta atribuída ao Talmud (MAGALHÃES, 2002),
contribui para reforçar a concepção luhmanniana do direito, assentada em paradoxos.
Diz a história que a um professor, dois alunos solicitaram a intervenção no sentido de
solucionar uma discussão. Após ouvir o primeiro aluno, o professor atribuiu-lhe razão,
mas atribuiu razão também ao segundo depois de ouvi-lo. Os dois alunos alegaram,
então, que não era admissível que o professor desse razão a duas versões contraditórias
sobre o mesmo fato. Após longa reflexão, o professor responde que de fato, ambos
estavam com a razão sobre a última observação.
159
Este dilema, a hermenêutica deverá decidir, “primeiro através da superioridade
de um intérprete capaz de descobrir, a cada situação concreta, a melhor resposta e,
depois, através de procedimentos e construção de argumentos que levam à construção
intersubjetiva da resposta adequada”. (MAGALHÃES, 2002, p. 152).
Um dos principais paradoxos do direito é o da sua legitimidade, ou da diferença
entre o direito e o não direito e o direito do direito para produzir decisões jurídicas,
contrapondo-se a algumas expectativas, que por frustradas, não reconhecem o direito
como tal. Neste sentido coloca-se o intérprete do direito como o elemento capaz de
estabelecer uma conexão entre o direito (texto) e a sociedade (contexto), pressupondo,
desde logo, a validade do direito. (MAGALHÃES, 2002).
A despeito de ser acusada de relativista e irracional, a hermenêutica filosófica
proporciona, segundo Streck, a possibilidade de se encontrar a resposta correta para as
questões submetidas ao judiciário (2007). Diz Streck que é possível alcançar respostas
corretas, sob o enfoque da hermenêutica, pois o sentido que as coisas têm não está nelas,
tampouco “na consciência de si do pensamento pensante” (2007, p. 363), mas na
intersubjetividade que se realiza por intermédio da linguagem. Nesta perspectiva não
mais lugar para o parâmetro sujeito/objeto, segundo o qual o direito é o objeto
trabalhado pelo sujeito operador, que atribui ao objeto o sentido que melhor lhe
aprouver, discricionariamente. O apelo de Streck é no sentido de que se leve a sério o
texto, pois ele de dizer alguma coisa ao intérprete. Não se nega, no entanto que um
mesmo texto pode ter várias leituras. Isto não é problema quando se trata de texto
artístico, porém, em se tratando da seara jurídica, em que cada leitura pode representar
uma vertente para a solução de conflitos, deve-se redobrar os cuidados, pois os conflitos
são concretos e envolvidos pelas próprias circunstâncias.
160
Streck refuta a idéia de que o intérprete deve procurar um sentido oculto no
texto, mas sim a norma que se contém no texto e apenas nele. “Isto significa poder
afirmar que o texto sempre traz “em si” um compromisso que é a pré-compreensão
que antecipa esse “em si” e que é o elemento regulador de qualquer enunciado que
façamos a partir daquele texto”. (2007, p. 365). A propósito, pré-compreensão é um dos
pressupostos da interpretação, que, segundo Gadamer “começa sempre com conceitos
prévios que serão substituídos por outros mais adequados.” (2002, p. 402).
Para compreender um texto é necessário um projeto, uma pré-compreensão que
deve ser constantemente revisada na medida em que o intérprete avança na penetração
do sentido do texto. É exigência fundamental que o intérprete examine a validez e
legitimação das opiniões prévias que subjazem ao texto e não o aprisione de imediato a
tais pré-compreensões. “Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões
prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. [...] A compreensão somente
alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões prévias, com as quais ela
inicia, não são arbitrárias.” (GADAMER, 2002, p. 403). Karl Larenz completa este
entendimento quando afirma:
A pré-compreensão de que o jurista carece não se refere só à ‘coisa do
direito’, à linguagem, em que dela se fala, e à cadeia de tradição em
que se inserem sempre os textos jurídicos, as decisões judiciais e os
argumentos habituais, mas também a contextos sociais, às situações de
interesses e às estruturas das relações da vida a que se referem as
normas jurídicas. (1997, p. 290).
Realizar o direito por meio de interpretação concretizadora, superando a
discricionaridade judicial passa por uma visão difusa entre o direito e a sociedade, na
sua faticidade e na sua maneira de entender o direito, conforme se via em Hugo
Grotius: “a medida de uma reta interpretação é a indução da vontade, tirada dos sinais
mais prováveis. Esses sinais são de dois tipos: as palavras e as outras conjecturas. São
161
considerados separadamente ou conjuntamente.” (2005, p. 679). Para ele, a terminologia
jurídica, tão hermética, deve ser entendida segundo sua propriedade usual e conforme às
conjecturas quando elas conduzirem a soluções claras. Em não havendo conjecturas a
indicar um sentido, as palavras devem ser tomadas no seu sentido usual, mais do que no
seu sentido gramatical, lembrando que o uso popular é o árbitro, o mestre, e o regulador
da linguagem (GROTIUS, 2005). Não se pode esquecer que quem legisla não é o
legislador, mas a sociedade e provém dela o sentido dos textos legais. “Na verdade, o
legislador humano [...] apenas declara a lei, não a faz.” (FERREIRA FILHO, 1996, p. 2)
Veja-se, na passagem abaixo, como se comporta a sociedade diante das regras
postas:
Os habitantes de Locri recorreram a uma louca escapatória de perfídia,
quando ao prometer que ficariam fiéis a sua convenção ‘tanto tempo
quanto haviam de caminhar sobre a terra e que haviam de levar as
cabeças sobre seus ombros’, sacudiram o de seus calçados e
desvencilharam-se das cabeças de alho que carregavam nos ombros,
como se tivessem podido deste modo se desligar do juramento.
(GROTIUS, 2005 p. 680).
É assim que nio Luiz Streck entende que deva se conduzir o trabalho de
interpretação e aplicação do direito: sobrelevando a faticidade social à generalidade
subsuntiva da norma; substituindo a dicotomia texto e norma, pela diferenciação
filosófica entre texto e sentido do texto (2007).
Fikentscher recomenda que o juiz concretize o direito muito mais pelo que
chama de aproximação hermenêutica entre norma e situação de fato, do que pela
utilização de procedimento intuitivo. Assim ele propõe que se leve em conta a norma do
caso, ou norma de decisão
66
, quando não seja possível a subsunção, em sentido lógico, à
previsão normativa (apud LARENZ,1997). No processo de criação da norma do caso, é
imperioso que o juiz se atenha ao “escopo legislativo, à valoração ínsita na lei, ao
66
Emoldurando esta idéia com a concepção sistêmica do direito, pode-se considerar que a norma de
decisão equivalha ao décimo segundo camelo de Luhmann. (Observação da autora do presente trabalho).
162
sistema de normas e aos esquemas de pensamento [...].” (Apud LARENZ, 1997, p.
199). Quando não for mais possível ao juiz vincular-se ao sentido literal do texto legal
inicia-se o processo de vinculação a precedentes e ao estrito procedimento casuístico.
É o sistema jurídico que confere validade à norma de decisão, através de uma
proposição normativa geral capaz de subsumir a norma individual criada para atender às
necessidades emergentes. O sistema convalida a decisão, razão pela qual a construção
do sistema de normas é fator de validade do próprio direito.
Sem essa construção jurídico-dogmática, a decisão judicial inovadora
ficaria como fato inserindo-se na hipótese de outra norma que o
tomasse como pressuposto de ilicitude: convertendo-se num caso de
antijuridicidade, fato, pois, jurídico. Ou, para o sistema, não
produziria “efeitos”, o que é ainda juridicizar (negativamente) o fato.
(VILANOVA, 1997, p. 225).
A missão dos tribunais é produzir decisões justas, portanto, se a aplicação da lei,
subsuntivamente, não oferece garantias de decisão justa, o caminho a ser trilhado na
busca de soluções justas aos conflitos apresentados aos tribunais é o da análise dos
dados materiais, trazendo à colação, os pontos de vista obtidos a partir da lei e os de
natureza extrajurídica (LARENZ, 1997).
Ensina Canotilho que a verdadeira normatividade de uma norma se revela
quando esta norma é aplicada na decisão de um caso jurídico. “[...] uma norma jurídica
que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual imediata através da
sua passagem a norma de decisão que regula concreta e vinculativamente o caso
carecido de solução normativa.” (p. 1.094).
“O poder de dizer o direito não é justo ou injusto, mas é o poder de praticar no
mundo a distinção entre o justo e o injusto.” (DE GIORGI, 2006, p. 176). Desta forma,
a interpretação com fulcro na hermenêutica filosófica, capaz de contemplar os
163
fenômenos
67
, não precisa despojar-se dos recursos lógicos e seguros, como por exemplo
o texto legal, mas utilizar-se dos fatos, atribuindo-lhes configuração jurídica, sempre
que possível, transformando-os em elementos do sistema jurídico autopoiético. Depois
da construção luhamanniana,
[...] dirigir-se diretamente à unidade e interpretar, em uma intuição ou
uma idealização, como pensava a metafísica, exalta os pressupostos
que o aumento de saberes, a emergência de modelos altamente
abstratos e sua capacidade de se dar conta de uma profundidade
complexa, até então insondada, tornaram completamente desusados.”
(CLAM, apud ROCHA, 2005, p. 123).
Busca-se um equilíbrio: a aplicação da justiça com base apenas na
fenomenologia conduziria à exigência de um judiciário monstruosamente grande que
pudesse dar conta de cada caso; a hermenêutica tradicional baseada na lógica
subsuntiva, segundo a qual as soluções dos casos concretos se pautariam em silogismo,
conduz à massificação e indiferenciação, incompatíveis com a idéia sistêmica do direito.
A hermenêutica fenomenológica, proposta por Heiddeger e analisada
posteriormente por Gadamer, é retomada como o caminho menos acidentado para a
concretização dos postulados de justiça do sistema jurídico.
É o Estado Democrático de Direito o contexto em que se pretende a aplicação
das teorias concretizadoras. O Estado construído por uma Constituição que privilegia a
cidadania, sobre a qual se aplica o grande giro hermenêutico, que em palavras simples
não é mais do que a concretização da norma, ao invés de interpretação do texto da
norma (STRECK, 2007).
É neste contexto [...] que as velhas teses acerca da interpretação darão
lugar a uma hermenêutica que não trata mais da interpretação jurídica
como um problema (meramente) lingüístico de determinação das
67
Fenômeno entendido geral e filosoficamente, como um acontecer, como fato perceptível sensorial e
intelectualmente pelo homem. “Tudo o que é percebido, que aparece aos sentidos e à consciência”.
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 1990, p. 97).
164
significações apenas textuais dos textos jurídicos. Trata-se,
efetivamente, de aplicar o grande giro hermenêutico à Constituição.
Ou seja, na feliz assertiva de Müller, estamos a tratar da
“concretização da norma ao invés de interpretação do texto da norma”.
(2007, p. 351).
Neste sentido, entende Canotilho que concretizar a constituição implica num
processo de densificação de regras e princípios constitucionais, que vai do texto da
norma (enunciado) para uma norma de decisão (aquela que o juiz aplica depois de tê-la
descoberto no cotejo entre a norma constitucional e o caso concreto). “A concretização,
como se vê, não é igual à interpretação do texto da norma; é, sim, a construção de uma
norma jurídica.” (p. 1075).
As soluções jurídicas nem sempre correspondem às expectativas sociais. O
direito é apto, como sistema, a solucionar problemas no âmbito jurídico. A realização
social da justiça demanda a atuação concreta de outros sistemas, num processo de
interação sistêmica. O direito não pode, por exemplo, pacificar questões religiosas
enquanto estas não sejam convertidas em questões jurídicas; os conflitos políticos
serão apaziguados nos aspectos que tocam ao direito; as questões familiares recebem do
direito apenas o tratamento jurídico, que não alcança a faceta afetiva do problema; o
sistema de saúde recebe do direito aquilo que o direito tem de jurídico para oferecer,
mas não a técnica inerente à proteção da saúde.
O Estado Democrático de Direito exige a “concretização de direito, o que implica
superar a ficcionalização provocada pelo positivismo jurídico no decorrer da História,
afastando da discussão jurídica as questões concretas da sociedade.” (STRECK, 2007,
p. 328). A superação do paradigma positivista é um fenômeno possível quando, no
Estado Democrático de Direito, se ultrapassa o sistema de regras e se enfatizam os
princípios que apontam para o mundo prático, transportando-o para dentro do sistema
165
jurídico. Em outras palavras, a Constituição de 1988 trouxe para seu âmbito “temáticas
que antes eram reservadas à esfera privada.” (STRECK, 2007, p. 329). Estas temáticas,
uma vez constitucionalizadas, repousam sob o resguardo de princípios, que por sua vez
são carreados para dentro da concepção sistêmica de direito, como fatores de
operacionalidade. Assim, a concretização dos direitos, fundada numa hermenêutica
filosófica, que estabeleça conexões entre o texto legal, os princípios e o fato concreto,
compatibiliza-se com o sistema jurídico e o faz cada vez mais complexo, diferenciado e
operativo. “Quanto menor a isomorfia entre o sistema e seu ambiente, menos o sistema
é sensível às variações ambientais, adquirindo, dessa maneira, mais latitude e liberdade
para se tornar compatível com um número cada vez maior de estados do mundo”.
(CLAM, apud ROCHA, 2005, p. 117).
5.3 Possibilidades da concretização dos valores humanos através da
hermenêutica filosófica
Para suplantar as dificuldades e a difícil herança deixada pelo dogmatismo
jurídico, ao longo da história, vive-se, na contemporaneidade o que Streck denomina a
“era dos princípios”, quando os princípios constitucionais, voltam-se à proteção dos
direitos fundamentais do homem. Esses princípios é que deverão nortear a aplicação do
direito de tal forma que prevaleçam os valores sobre a forma. Ao contrário do que
podem sugerir, prima facie, os princípios não abrem a hermenêutica, mas como normas
que são, na visão de Streck, institucionalizam a moral no direito, a partir de sua
construção democrática e não devem ser entendidos como “álibis teóricos para suplantar
problemas metodológicos oriundos da insuficiência das regras.” (STRECK, 2009, p.
114).
166
O paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito não se coaduna com a
tradicional teoria positivista das fontes que
vem a ser superada pela Constituição; a velha teoria da norma dará
lugar à superação da regra pelo princípio, e o velho modus
interpretativo subsuntivo-dedutivo fundado na relação
epistemológica sujeito-objeto
68
- vem dar lugar ao giro lingüístico-
ontológico, fundado na intersubjetividade. (STRECK, 2007, p. 335).
Por detrás de toda regra jurídica um princípio que a mantém atada ao mundo
prático. Pela regra faz-se a justificativa da subsunção, pelo princípio, opera-se a
compreensão. Quem se apega a essa idéia realiza um novo paradigma interpretativo em
que se renuncia ao modelo de conhecimento subsuntivo. Passa da fundamentação
positivista para a compreensão hermenêutica do direito, o que implica na hermenêutica
da faticidade a partir da diferença filosófica entre texto e sentido do texto (norma).
Quando se fala em casos fáceis e casos difíceis, está-se estabelecendo uma
respectividade com regras e princípios da seguinte maneira: aos casos fáceis aplicam-se
as regras e aos difíceis, os princípios. Ocorre que os últimos subsumem os primeiros de
tal forma que nos casos simples a regra encobre o princípio por estar no plano da
objetivação. Em havendo insuficiência de objetivação (de regras), entram em cena os
princípios a serem descobertos e postos em atividade, permitindo, destarte, a
concretização dos direitos consagrados pela nova ordem jurídica.
A todo momento em que se foca a hermenêutica filosófica é preciso lembrar que
hermenêutica não é filologia. Da interpretação de textos deve-se saltar para a
concretização de direitos. Para isto não se pode sacrificar a singularidade dos casos
concretos em nome de pautas gerais estabelecidas por juristas (conceitos lexicográficos,
68
Sujeito é o intérprete e objeto é o texto. (STRECK, 2007).
167
verbetes doutrinários e jurisprudenciais ou súmulas) com a finalidade de solucionar
casos futuros.
Streck afirma que a hermenêutica será concretizadora se romper com o
paradigma metodológico e assumir-se como filosofia; separar-se das teorias da
argumentação jurídica, de caráter procedimental e discursivo e voltar-se à pré-
compreensão, principalmente porque a pré-compreensão não depende da
discricionariedade do intérprete e nem de controle metodológico, mas é orientada, isto
sim, pela tradição social, pois não há interpretação jurídica sem que haja relação social.
Assim, hermenêutica tampouco é método, mas, definitivamente, compreensão do
mundo. A hermenêutica não é o procedimento, nem argumentação que imprimem ao
direito as finalidades desejadas pelo intérprete, mas é uma referência às possibilidades
que se apresentam ao ser humano no curso da historicidade da existência; é o
reconhecimento das potencialidades e riquezas “das tradições que definem a posição do
homem no mundo, as suas (pré) compreensões e os sentidos que ele alcança.” (LUCAS,
apud STRECK, 2007, p. 22). Ao direito, ao longo do predomínio da cultura
objetificadora da cientificidade positivista, foi imposta uma visão procedimentalista e
metodológica, cuja finalidade era fabricar sentidos e verdades. A historicidade do
direito e do homem foi suplantada pelo rigor científico e substituída por generalizações
e técnicas que ignoraram a concretude. Segundo Lucas, “o processo de compreender
não é controlável, não é calculável e tampouco passível de ser aprisionado
tecnicamente.” (apud STRECK 2007, p. 22).
As contribuições de Heiddeger e Gadamer, ao construírem a hermenêutica
filosófica têm marcado o mundo jurídico e ensejado uma nova percepção do direito,
168
localizado também nas realidades, precariedades e perspectivas históricas de tal forma,
que os textos jurídicos, tenham algo a dizer sobre elas.
Na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa.
A interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-
versa. Interpretar não é tomar conhecimento de que se compreendeu,
mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão.
(HEIDDEGER, 1998, p. 204).
Isto quer dizer que para Heiddeger a interpretação não prescinde do dasein (o
“ser-aí”, a pre-sença), que projeta seu ser para as possibilidades, pois o dasein
compreende o ser a partir de sua abertura para o mundo, a partir de sua historicidade e
finitude”. (LUCAS, apud STRECK, 2007, p. 32). Há uma estrutura de interpretação que
revela três momentos fundamentais: a posição prévia (a indicar que a interpretação
tem uma posição que possibilita o horizonte de articulações), a visão prévia (ou a
perspectiva em que se encara e o conjunto de articulações), e a concepção prévia (a
apreensão do conjunto de posições e visões prévias), todos eles acontecendo conforme o
dasein. (CAVALCANTI apud HEIDDEGER, 1998, p. 323)
69
Já, Canotilho, ao referir-se à hermenêutica constitucional concretizadora, não
abdica da referência ao método, contudo, pauta-se, também na idéia da pré-
compreensão. “O método hermenêutico-concretizador arranca da idéia de que a leitura
de um texto normativo se inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do
intérprete.” (p. 1086).
Segundo o constitucionalista português, o intérprete é o mediador criativo entre o
texto e o contexto e faz da interpretação um “ir e vir” (círculo hermenêutico), que ao
invés de partir de pensamentos axiomáticos, parte de pensamentos problematicamente
orientados.
69
Márcia de Sá Cavalcanti é a tradutora de Heiddeger e faz observações acerca da terminologia utilizada
pelo filósofo, em anexo à obra.
169
Se o homem está hermeneuticamente relacionado com o mundo, como um “ser-
no-mundo”, sua compreensão e descrição do mundo se a partir da sua historicidade,
da sua visão de mundo, o que leva à inevitável conseqüência de que uma interpretação
nunca estará acabada, pois o mundo está em andamento. (LUCAS, apud STRECK,
2007, p. 37). Infere-se, também que o sentido do direito resulta de experiências
hermenêuticas, contextualizadas historicamente no mundo e não significa um ato de
imposição, nem de apropriação do jurista. A cada experiência vivida pela sociedade, o
sistema jurídico, autopoiético que é, atribui relação de sentido.
Não se discute que a sociedade brasileira tem caminhado, desde a Constituição de
88, em direção à afirmação de seu projeto democrático, mas um longo trecho do
caminho pela frente. Só se atingirá a meta democrática no momento em que a proposta
da Constituição for percebida como uma pauta de escolhas sociais orientada pela
experiência. A hermenêutica filosófica denuncia que a objetificação do Direito
Constitucional reduz a percepção do jurista e o mantém preso no universo
metodológico, produtor de sentido artificial e tendencioso do direito. Enquanto isto, diz
Lucas,
[...] o cárcere ainda fede para muitos brasileiros, a fome ainda mata
tanto quanto antes e os juristas, em sua grande maioria, são tão juristas
como sempre foram, sempre sem percepção de historicidade,
aprisionados na especificidade da sua função. (Apud STRECK, 2007,
p. 55).
Para acessar o conteúdo e sentido da Constituição, que projeta a democracia e
aponta para realização da cidadania, a racionalidade jurídica haverá de renunciar aos
ideais do liberalismo individualista sobre o qual se pautou o direito positivo, renunciar
às respostas cartesianas para os conflitos e reconhecer a força normativa do texto
constitucional e de seus princípios voltados para a concretização dos direitos
fundamentais.
170
A insuficiência do direito, portanto, não é exatamente um problema do “ser”
direito, mas sim da visão míope que tem sobre o direito o “ser” que o interpreta.
171
CONCLUSÃO
Quando uma sociedade se propõe a vivenciar o Estado Democrático de Direito,
assume os encargos de realizá-lo da forma mais plena possível. Além dos atributos
políticos entre outros, o jurídico é fundamental e determinante para tal desiderato.
Quanto maior a mobilidade do direito e sua capacidade de adequação às
mudanças sociais e ao conseqüente surgimento de novos direitos, tanto mais eficiente
se apresentará. Contudo, observa-se, a complexidade social aliada ao seu dinamismo
exige muito mais do que o direito pode oferecer, em termos de evolução na sua
estrutura, levando, destarte, à utilização de mecanismos operacionais que proporcionem
adequações imediatas e simultâneas ao surgimento de novos direitos. Esta proposta, por
impor rompimento com antigos paradigmas, consiste num desafio a ser enfrentado por
juristas. A eles cabe olhar a sociedade e o direito como duas realidades que coexistem
numa relação vital, ou, tomando por empréstimo um termo da biologia, em simbiose.
À evidência de que a sociedade se transforma em ritmo cada vez mais acelerado,
ensejado por razões localizadas em diferentes fatores, quais sejam, ideológicos,
tecnológicos, institucionais, políticos, científicos etc., a sociologia de diversas gerações
e de diversas culturas debruça-se sobre as transformações, organizando-as em teorias.
No entanto, quaisquer que sejam elas, antigas, medievais, modernas ou contemporâneas;
télicas, deterministas, pluralistas, genéticas ou cíclicas, e a despeito de divergências
quanto aos fundamentos justificadores, todas afirmam que a sociedade se transforma.
Posto desta forma, pode até surgir a ilusão de que tudo é simples e acontece mediante
um esquema bem organizado e pacífico. Ocorre que interesses em oposição exercem
pressão, ora estimulando, ora obviando as mudanças, o que muitas vezes redunda em
172
descompasso entre uma tecnologia e uma ciência avançadas e um sistema de
instituições obsoleto.
Nesta tensa dinâmica social é que surgem, transformam-se e extinguem-se
direitos. Ao evoluir ou regredir a sociedade se vê afetada por novas relações, em
quaisquer de seus segmentos ou sistemas e isto produz constantes necessidades de
adaptação. Torna-se imprescindível que o direito se adapte, sob pena de perder a razão
de ser, na medida em que novos direitos se verificam, novas pautas axiológicas são
introduzidas, novos paradigmas políticos se instalam, novas tecnologias produzem
novos produtos e interesses, e outros fatores se apresentam na experiência humana.
Do vórtice da vertiginosa evolução do mundo pós-moderno emergem os novos
direitos, sob a orientação de novos paradigmas. Em outras palavras, surgem direitos
diferentes dos direitos patrimoniais e individualistas; novos interesses, diferentes dos
patrimoniais, passam a receber a tutela jurídica do Estado, como é o caso dos direitos
sociais, culturais, metaindividuais (coletivos ou difusos), direitos decorrentes da
biotecnologia e orientados pelo respeito à vida, à dignidade da pessoa humana, à
liberdade individual, à segurança, à proteção da saúde, entre outros. Como se percebe,
os direitos se acumulam na medida em que a economia, a tecnologia e a própria
sociedade avançam para o futuro.
O desafio de manter o direito apto a atuar na sociedade requer que se esteja atento
ao entorno do direito. Mudar os olhares sobre o direito exige que se mudem os olhares
sobre a sociedade e entender a sociedade e o direito como sistemas autopoiéticos
contribui para diminuir o descompasso entre eles.
173
O fechamento operacional e abertura cognitiva dos sistemas permitem melhores
definições das suas funções e, conseqüentemente, maior eficiência do sistema. Além
disto, a concepção sistêmica acolhe qualquer teoria acerca do direito, desde a teoria
tridimensional até a teoria pura.
Assemelha-se à teoria tridimensional no que diga respeito à nomogênese: um fato
social juridicamente relevante, ainda não regulado por normas postas pelo Estado, ao ser
qualificado por um complexo axiológico, apresenta possibilidades normativas, das
quais, uma, através de decisão de escolha, integrará o ordenamento jurídico. Um sistema
autopoiético também se constitui mediante diferenciações e escolhas, orientadas por
códigos binários, como por exemplo, direito/não direito. A hipótese normativa
escolhida integrará o sistema jurídico; as descartadas, poderão eventualmente integrar
um outro sistema. Isto significa que o direito interpenetra todos os outros sistemas,
podendo até transformar elementos de qualquer um deles em direito, como se depreende
da metáfora do décimo segundo camelo utilizada por Luhmann.
Com relação à arquitetura kelseniana, a semelhança reside na clausura, tanto do
sistema autopoiético quanto do ordenamento jurídico sustentado pela trilogia unidade,
coerência e completude e fechado pela norma fundamental. O sistema autopoiético
também é unitário (tem autonomia e destaca-se do ambiente), é fechado (opera com
elementos do próprio sistema), completo (só atua legitimanente sobre questões que
permitam a quaestio juris) e coerente (na medida em que o sistema se estrutura a partir
de si mesmo, desconsiderando e desvitalizando por desuso os elementos estranhos a
ele).
174
Nenhuma das duas concepções recorre à justiça para fundamentar o sistema e
ambas exortam a validade do direito como pressuposto.
Apesar de coincidirem em algumas pretensões semelhantes, as duas concepções
tomam sentidos opostos, principalmente quanto ao normativismo pugnado por Kelsen e
a operabilidade, por Luhmann, o que afasta a kelseniana idéia de hierarquia de fontes.
Pela teoria dos sistemas é possível entender porque o direito não dá conta de todas
as questões sociais. O direito é um sistema e as relações sociais se verificam em todos
os sistemas sociais, de tal forma que nem sempre o direito é capaz de solucionar
problemas econômicos ou políticos, por ser inconcebível um sistema imiscuir-se em
outros. Não se pode aplicar recursos extra-jurídicos para solucionar casos de direito. A
teoria dos sistemas permite que se façam escolhas e que se transformem em jurídicos,
recursos estranhos ao direito como é o caso do décimo segundo camelo.
Interessante aprofundar estudo sobre a concepção sistêmica da sociedade em
pesquisa própria, o que pode trazer importante contribuição para a necessária mudança
de paradigma e para proporcionar a visão de um direito fluído e interpenetrante.
Realidade irrefutável, ordenamento jurídico é o reflexo do Estado que o constrói
e pauta-se em escalas de valores determinados pela ideologia predominante, assim, não
há, no Estado Democrático de Direito, norma válida que não tenha sido autorizada pelo
povo. Uma sociedade desprovida de pautas normativas e sancionadoras não pode
oferecer certeza e segurança aos cidadãos, tampouco garantir a realização dos direitos
naturais (humanos e fundamentais). Os ordenamentos modernos, representados pelas
constituições democráticas, trazem, por detrás da forma, princípios suficientes para a
superação da deficiência formal.
175
O fundamento humano do Estado Democrático de Direito é o princípio da
dignidade da pessoa humana, valor que foi elevado à categoria constitucional após
transformações e conquistas sociais. Com o foco voltado para os princípios que
derivam deste fundamento, é possível ao jurista corrigir as deficiências do ordenamento
jurídico, como as lacunas e antinomias, no momento da aplicação do direito, desde que
para isto se posicione diante da sociedade, do direito e do caso concreto, com a postura
crítica haurida da hermenêutica filosófica, o que lhe permitirá também corrigir sua pré-
compreensão do mundo, desviando-se do seu dasein, para enxergar o que deve ser
visto, o dasein do mundo.
Durante o século XX recorreu-se aos dispositivos da LICC (Lei de Introdução ao
Código Civil) como a atitude jurídica para mitigar a inflexibilidade das leis, porém, não
isenta de críticas. Recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito no
preenchimento de lacunas, bem como recorrer às exigências do bem comum e da
finalidade da norma, para encontrar a melhor solução para o caso concreto não satisfaz
a demanda de justiça do Estado Democrático de Direito. Ademais, representam
fórmulas generalizantes a serem aplicadas pela discricionariedade dos juízes, sobretudo
pelos juízos de ponderação pelo qual, face a conflito de princípios, o juiz escolhe a
melhor resposta, que nem sempre é a resposta correta.
Transformações sociais, novos direitos, direitos humanos, ordenamento jurídico,
concepção sistêmica autopoiética da sociedade e do direito, concretização de valores,
hermenêutica filosófica e linguagem, analisados cotejadamente, mostram um
intrincado de conceitos complementares que formam a teia protetiva do homem, para o
homem, pelo homem.
176
Com a presente pesquisa, chega-se à conclusão de que não há um caminho
conducente à justiça e à realização dos valores, a ser ainda descoberto; não há correções
a serem feitas nos sistemas, de uma única lufada; não é nas rivalidades doutrinárias e
nem na sofisticação intelectual das teorias expostas em linguagem rebuscada e quase
incompreensível que se localiza o melhor direito. isto sim, uma combinação de
caminhos; um constante aperfeiçoar dos instrumentos. Metaforicamente, a hermenêutica
não é o caminho, mas o farol que ilumina e mostra os vários caminhos.
A hermenêutica é uma forma de interpretar não apenas os textos, mas um modo de
olhar e compreender o direito como um todo. Se o jurista vir o direito como um sistema
em interação com os demais sistemas sociais, contextualizando-o, a sua hermenêutica,
diz-se, é a fenomenológica.
Longe de ser um método ou uma técnica, a hermenêutica filosófica ou
fenomenológica representa a revisão do direito (não sua recriação) a exigir a revisão do
jurista. Portanto, quem deve mudar e assumir o encargo da concretização dos direitos é
o jurista.
Corrigir os sete pontos suscetíveis de crítica que Bobbio apontou no positivismo
jurídico não depende tanto de corrigir o ordenamento jurídico, mas de adotar a visão
nova sobre o direito e compreendê-lo, por meio da hermenêutica filosófica, no contexto
social. Neste sentido, o método de interpretação que mais se aproxima do ideal, desde
que adaptado à fenomenologia e à linguagem, é o método da livre investigação
científica do direito.
A tarefa interpretativa deve evoluir com a sociedade, razão pela qual, a formação
de juristas convictos de que a promoção humana é fator de desenvolvimento e
177
realização do Estado Democrático de Direito, precisa ser reformulada. As faculdades de
direito devem desviar o foco, dirigido exclusivamente à dogmática (que conduz ao
dogmatismo) e voltá-lo também a oportunidades de reflexão, mostrando ao futuro
bacharel que no centro do direito está o homem e não as técnicas de procedimento e
argumentação.
Esta temática merece ser desenvolvida em pesquisa própria por constituir assunto
relevante para o direito e de grande utilidade social.
A distribuição da justiça não depende tanto do ordenamento jurídico ou da opção
por um direito diferente do direito positivo, mas da índole de quem interpreta o direito
e da índole de quem o aplica. Paradoxalmente, as cláusulas gerais, que permitem maior
fluidez e abertura ao direito, adequando-o ao evoluir dos tempos, representam a solução,
mas também a origem de problemas. É com base nestas cláusulas que cidadãos,
legisladores, administradores e juristas cometem as incúrias que têm estarrecido a
sociedade.
O homem é capaz de criar instrumentos cada vez mais sofisticados e eficientes
para suprir suas necessidades, contudo, se ele não souber utilizá-los, ou não o fizer de
forma ética, o instrumento, que poderia elevar, certamente diminuirá o homem.
178
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