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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
MARIA EDUARDA MARTINS DE OLIVEIRA
A fraternidade entre alma do mundo e almas individuais
na filosofia de Plotino
São Paulo
2010
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Maria Eduarda Martins de Oliveira
A fraternidade entre alma do mundo e almas individuais na
filosofia de Plotino
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Mestre em
Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Roberto
Bolzani Filho.
São Paulo
2010
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Aos meus pais, Jacy e Milton,
In memoriam.
AGRADECIMENTOS
Seria impossível enumerar aqui todas as dívidas que contraí ao longo destes anos
de estudo de filosofia, que resultaram, afinal, nesta dissertação. Resolvi, então, agradecer
especialmente aos que de um modo mais direto tornaram possível este trabalho. Sem eles, eu
jamais teria chegado ao seu final.
Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, Prof. Roberto Bolzani Filho, a
quem tanto devo pela leitura acurada de meus textos, pelo cuidado no exame de minhas
traduções e por sua interlocução sempre proveitosa. Quando recordo que suas qualidades de
excelente professor sempre vieram acompanhadas de delicadeza e boa-vontade, cresce ainda
mais minha gratidão.
Muito agradeço aos professores componentes da mesa de qualificação, Prof.
Mauricio Marsola e Prof. Fernando Rey Puente. Suas preciosas observações, sugestões e
críticas levaram-me à tentativa de maior profundidade nas investigações. Se estas não
chegaram a bom termo, terá sido exclusivamente por falta minha, que a riqueza de
conteúdo que me foi transmitido no exame de qualificação deveria ser suficiente para render
um excelente trabalho.
Deixo ainda um abraço carinhoso a todos os membros do Épea, grupo de leitura
de grego clássico ao qual tenho o prazer de pertencer. Em especial, quero agradecer ao
Vicente de Arruda Sampaio, meu primeiro professor de grego e hoje amigo e colega de Épea,
graças a quem fui definitivamente enfeitiçada pela língua grega.
Finalmente, agradeço, com amor, ao meu marido e às minhas filhas, esteio seguro
nos momentos de abatimento e desânimo. À Marina e à Cassia, por seu apoio constante, filhas
e amigas que sempre valorizaram tanto os meus estudos. Ao Isidoro, por seu amor,
companheiro sempre. A ele, um agradecimento especial pela paciência: quantas e quantas
vezes eu o fiz ler meus pobres escritos, que, bem sei, pouco lhe interessavam...
Este trabalho é dedicado, com carinho e saudades, aos meus pais falecidos, e
particularmente à minha mãe, que perdi durante este período de mestrado. A eles, que me
deram a vida, devo tudo.
RESUMO
O objetivo desta investigação é demonstrar a identidade de origem entre alma do
mundo e almas individuais, ressaltando a igualdade de patamar em que se encontram.
Procura-se, com isso, combater uma visão persistente até os dias de hoje junto a alguns
comentadores, segundo a qual as almas individuais seriam derivadas da alma do mundo.
Nossa estratégia baseia-se em dois eixos centrais: em primeiro lugar, procuramos observar o
que Plotino tem a dizer a respeito da questão, para, em seguida, observar a necessidade desta
fraternidade entre as almas para a coerência da doutrina plotiniana da alma. Notamos, assim, a
origem do problema no tratado IV 9 [8], demonstrando em seguida a posição de Plotino,
através da análise dos oito capítulos iniciais do tratado IV 3 [27]. É que o filósofo enuncia
claramente a fraternidade entre almas individuais e alma do mundo. A seguir, observamos as
repercussões desta doutrina para o restante da teoria plotiniana da alma, em especial no que
tange à autonomia da alma humana. Neste segundo momento de nosso exame, notamos,
inicialmente, o caráter duplo do homem: por um lado, alma superior e divina, e, por outro
lado, composto animado, pertencente à natureza. Em seguida, por meio do tratado III 1 [3],
observamos a postulação das almas individuais como princípios causais, ao lado da alma do
mundo. Com isto, o filósofo procura dar conta da possibilidade de liberdade humana e de
atribuição de responsabilidade pessoal. A exigência de Plotino, porém, é a purificação da
alma, com a qual sua verdadeira natureza é recuperada: essência inteligível. Somente assim é
possível o pleno exercício da faculdade intelectiva. Deste modo, a alma individual, tendo sua
fonte na Hipóstase Alma, é capaz de voltar-se para o superior e assimilar-se a Deus. Ao
equiparar a alma individual a princípio causal garantidor da liberdade humana, Plotino impede
que abdiquemos de nosso caráter divino. Embora seja dupla a constituição do homem, tal
duplicidade não deve nos iludir quanto à nossa verdadeira identidade, residente no alto.
Palavras-chave: alma individual, alma do mundo, Alma Hipóstase, alma pura, conversão,
purificação.
RÉSUMÉ
Le but de cette recherche est de démontrer l'identité origine entre l'âme du
monde et les âmes individuelles, soulignant leur égalité de niveaux. On cherche, avec cela,
combattre une vision persistante jusqu' à aujourd'hui chez quelques commentateurs, selon
laquelle les âmes individuelles procéderaient de l'âme du monde. Notre stratégie repose sur
deux piliers: d'abord, nous avons essayé d'observer ce que Plotin a à dire sur la question, pour
ensuite observer la nécessité de cette fraternité des âmes à la cohérence de la doctrine de l'âme
plotinienne. Nous avons remarqué, ainsi, l'origine du problème au traité IV 9 [8], montrant,
après, la position de Plotin, à travers l'analyse des huit premiers chapitres du traité IV 3 [27].
C'est là que le philosophe énonce clairement la fraternité entre les âmes individuelles et l'âme
du monde. Ensuite, nous avons examiné les implications de cette doctrine pour le reste de la
théorie plotinienne de l'âme, en particulier en ce qui concerne l'autonomie de l'âme humaine.
Au cours de cette deuxième partie de notre vérification, nous avons d'abord remarqué le
caractère double de l'homme : d´une part, âme supérieure et divine, d'autre part, composé
animé, appartenant à la nature. Ensuite, à travers la consideration du traité III 1 [3], nous
avons observé la postulation des âmes individuelles en tant que principes de causalité, à côté
de l'âme du monde. Avec ceci, le philosophe essaye de rendre compte de la possibilité de la
liberté humaine et de l'attribution de la responsabilité personnelle. L'exigence de Plotin,
cependant, est la purification de l'âme, avec laquelle sa vraie nature est récupérée: essence
intelligible. C'est seulement à ce moment que le plein exercice des facultés intellectuelles est
possible. Ainsi, l'âme individuelle, ayant sa source dans l'hypostase Âme, est en mesure de
retourner vers le supérieur et de s'assimiler à Dieu. En considérant l'âme individuelle comme
principe causal de la liberté humaine, Plotin empêche l´abdication de notre nature divine. Bien
que ce soit double la constitution de l'homme, une telle duplicité ne doit pas se faire
d'illusions sur notre véritable identité, demeurant au sommet.
Mots-clés: âme individuelle, âme du monde, Âme Hypostase, âme pure, conversion,
nécessité, purification.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 7
PARTE I: A ORIGEM DAS ALMAS INDIVIDUAIS ....................................................................... 12
I.1. ALMA DO MUNDO E ALMAS INDIVIDUAIS NAS ENÉADAS.. ................................................... 13
I.2. A UNIDADE DAS ALMAS COMO ORIGEM DO PROBLEMA: IV 9 [8]... ..................................... 23
I.3. A ORIGEM DAS ALMAS NA ALMA HIPÓSTASE: IV 3 [27] 1-8 ................................................ 33
I.3.1. Os argumentos dos adversários: IV 3 [27] 1............................................................ 36
I.3.2. As respostas aos adversários: IV 3 [27] 2-8 ............................................................ 38
PARTE II: O ESTATUTO DAS ALMAS INDIVIDUAIS .................................................................. 70
II.1. A NATUREZA DA ALMA HUMANA....................................................................................... 71
II.1.1. As faculdades da alma ............................................................................................ 71
II.1.2. Os dois homens....................................................................................................... 87
II.2. AS ALMAS INDIVIDUAIS COMO PRINCÍPIOS CAUSAIS .......................................................... 92
II.2.1. O estatuto das almas individuais como fundamento da autonomia humana ......... 92
II.2.1.1. O epicurismo e o problema da responsabilidade humana ...................... 93
II.2.1.2. O determinismo estóico e o problema da liberdade ............................... 95
II.2.1.3. A resposta de Plotino: o tratado III 1 [3] ................................................ 99
II.2.2. A parte pura da alma............................................................................................. 109
II.2.3. A verdadeira identidade humana .......................................................................... 115
II.3. O PAPEL DA VIRTUDE PURIFICADORA PARA INTEGRAÇÃO DAS ALMAS AO INTELIGÍVEL .... 122
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 136
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................ 144
7
INTRODUÇÃO
... não tendo um lugar onde possa, estabelecendo-se, limitar-se e fixar até
onde vai, ao parar de delimitar-se fora da totalidade do ser, irá a todo o Todo
sem avançar a lugar algum, mas permanecendo ali mesmo onde o Todo se
instala
1
.
Assim encerra-se um dos capítulos das Enéadas que mais claramente expressam a
espantosa capacidade de alcance da alma. Infinitamente variada em suas manifestações, não
permanece jamais num único lugar na hierarquia das hipóstases, mas desloca-se em todas as
direções, seja para o corpóreo, onde parece de algum modo enclausurar-se, seja em direção
àquilo que a transcende, onde seus limites desvanecem-se. Realidade paradoxal, que, por um
lado, oferece-nos imobilidade, pois, ao conter em si mesma o Todo, não possui lugar aonde ir,
e, por outro lado, é o próprio movimento, quando avança ela mesma em sua percepção para a
derrubada de limites. Talvez se encontre aqui o objetivo da filosofia plotiniana: a
ultrapassagem dos limites atribuídos a si, uma verdadeira libertação da alma que passa a se
identificar com a Vida Universal, infinitamente difusa
2
. E isto só é possível quando se observa
que o percurso em direção ao Todo e, no limite, ao próprio Um exige um abandono de si,
mas também um aprofundamento interno, uma conversão à interioridade, onde o contato com
Deus se torna possível. Parece estar presente como instância última do percurso ascético
plotiniano a capacidade humana de libertação das amarras impostas pelos corpos e a
identificação com as realidades superiores. A filosofia de Plotino é um convite para que
alcancemos o ponto mais elevado da hierarquia ontológica, identificando-nos com a própria
divindade, o que nos brindaria com o alcance da liberdade.
Se a alma representa, na filosofia de Plotino, o próprio cerne de nosso ser, a
relevância de seu estudo justifica-se por si. Como, porém, compreender uma realidade que
não possui limites fixos, que é capaz de estender-se do sensível ao inteligível, que empreende
efetivamente um movimento em ambas as direções e, ao mesmo tempo, jamais sai de si?
Como compreender algo que ora se confunde com o próprio Noûs e parece ter ali sua
1
VI 5 [23] 7, 14-17: ... ou)k e)/xwn o(/p$ au(to\n sth/saj o(riei= kai\ me/xri ti/noj au)to/j e)stin, a)fei\j
perigra/fein a)po\ tou= o)/ntoj a(/pantoj au(to\n ei)j a(/pan to\ pa=n h(/cei proelqw\n ou)damou=, a)ll”
au)tou= mei/naj, ou(= i(/drutai to\ pa=n. As traduções diretas do grego são minhas, exceto nos casos em que
menciono explicitamente o tradutor utilizado.
2
Cf. VI 5 [23] 12, 1-3.
8
essência, ora mescla-se de tal modo aos corpos que parece tornar-se uma única entidade com
eles? Como, enfim, compreender a natureza de algo que, mesmo recebendo as mais variadas
designações é, não obstante, uma entidade única?
As dificuldades são inúmeras. É preciso, porém, adotar um ponto de partida.
Escolhemos, assim, iniciar pelo que talvez seja o mais óbvio e, contudo, oferece as maiores
dificuldades: dar conta dos diversos aspectos da alma e dos correspondentes termos atribuídos
a eles, para, a partir daí, observar o relacionamento mútuo entre estes aspectos da alma. Mas,
já aqui, deparamo-nos com o primeiro obstáculo: a grande variedade de designações recebidas
pela alma na doutrina plotiniana. Vejamos algumas: o(/lh yuxh/, yuxh\ tou= panto/j,
yuxh\ tou= o(/lou, yuxh\ e(ka/stou h(mw=n, pa=sa yuxh/, ou tão somente yuxh/. A Alma
3
,
tomada como terceira hipóstase, também chamada Alma Total ou Alma Universal (o(/lh
yuxh/ ou pa=sa yuxh/), parece, por vezes, confundir-se com a alma do Todo ou alma do
mundo (yuxh\ tou= panto/j ou yuxh\ tou= o(/lou). Advêm daí possibilidades de leitura que
dão ensejo a diferentes interpretações da relação entre alma do mundo e almas individuais, de
modo tal que, no que toca à origem das almas particulares, os estudiosos enxergam diferentes
respostas. Uma tradição interpretativa iniciada com Zeller, que não faz uma clara distinção
entre Alma hipóstase e alma do mundo, parece ter influenciado a condução de boa parte das
pesquisas nesta área pela via da derivação de nossas almas junto à alma do mundo
4
. Até a
atualidade, esta visão persiste junto a alguns intérpretes
5
que enxergam uma linha única de
derivação das almas a partir da Alma hipóstase, de sorte que esta originasse inicialmente a
alma do mundo, para surgir então, a partir desta última, as demais almas. A descida das almas
individuais no mundo sensível seria explicada como um afastamento destas em relação à alma
3
Passo a grafar a Alma hipóstase sempre com letra maiúscula. Muitas vezes, para evitar ambiidades, esta será
tratada por Alma Total ou por Alma Universal. As demais significações de alma serão escritas com letra
minúscula.
4
É o que observa Helleman-Elgersma (Soul-sisters. A commentary on Enneads IV 3 (27), 1-8 of Plotinus, p. 89).
Este autor apresenta, nas pp. 89-103 desta obra, um panorama geral das diversas interpretações sobre a relação
entre alma do mundo e almas individuais.
5
É o caso, por exemplo, de Luc Brisson e Jean-François Pradeau, que afirmam, na nota introdutória à sua
tradução do Tratado IV 9 [8], a existência de uma relação de derivação das almas individuais a partir da alma do
mundo: “... ele [Plotino] sustenta... que as almas individuais são produzidas pela alma do mundo da qual elas
provêm, assim como a alma do mundo é ela mesma oriunda da Alma única e real que permanece no inteligível (e
que chamamos por comodidade Alma „hipóstase‟).” (Traité 8, p. 40, ed. Flammarion). Também Francesco
Fronterotta , na nota introdutória de sua tradução do Tratado V 1 [10], afirma: “toda alma individual provém de
uma „grande alma‟, que corresponde à alma do mundo que Platão descreve no Timeu, 34a - 40d.” (Traité 10, p.
137, ed. Flammarion).
9
do mundo, e o como um distanciamento da Alma Total
6
. Persiste assim uma visão de que
“nossas almas”, as almas particulares, proviriam da alma do mundo.
7
Sendo assim, pareceu-nos de grande relevância focalizarmos nossa investigação
na essência das almas individuais, o que significa reconhecer em primeiro lugar seu princípio,
sua origem. Estabeleçamos, pois, como objetivo central de nosso exame, demonstrar que a
doutrina plotiniana da alma afirma haver uma relação de fraternidade e não de filiação -
entre as almas particulares e a alma do mundo, derivadas todas elas da Alma Hipóstase. Neste
sentido, será de especial valia o estudo dos oito primeiros capítulos do tratado IV 3 [27]
8
.
Cremos localizar-se aí a doutrina de Plotino inequivocamente enunciada a respeito da origem
das almas humanas. Por essa razão, deixaremos o próprio filósofo expressar sua posição,
procurando segui-lo de perto.
Se a exegese apurada do texto plotiniano impõe a necessidade de
compreendermos almas individuais e alma do mundo como fraternas, a análise de outros
textos demonstrará claramente o imperativo desta doutrina para o encadeamento da própria
filosofia do autor. Assim, o elevado estatuto ontológico das almas individuais, derivadas
diretamente da Hipóstase, há de situá-las ao lado da alma do mundo como princípios causais,
elevando-as, pois, acima da necessidade do destino. É o que procuraremos evidenciar através
da análise do tratado III 1 [3]. Entretanto, se Plotino concede ao homem alguma autonomia e
capacidade de resistência às influências exteriores, é preciso levar em conta que não se trata
de uma liberdade possível a todo e qualquer homem, mas somente àquele que, tendo efetuado
um processo de purificação de sua alma, assimilou-se à divindade. Ou seja, há necessidade de
um trabalho de eliminação dos acréscimos adquiridos pela alma em seu comércio com o
corpo; somente assim, a alma purificada intelectualiza-se e assemelha-se ao que a transcende.
A purificação haverá de ser, deste modo, o ponto chave e final de nosso exame, pois apenas
ela é capaz de conduzir o homem a um estágio superior, a um patamar de efetiva igualdade ao
da alma do mundo.
6
É o que sustenta, por exemplo, Fronterotta na nota introdutória à sua tradução do Tratado V 1 [10]: “...a Alma
se afasta do Intelecto para vir a se ocupar do mundo sensível em seu conjunto sob a forma de alma do mundo,
assim como as almas individuais se afastam da alma do mundo para descer nos corpos particulares...” (Traité 10,
p. 139, ed. Flammarion).
7
Por exemplo: “A alma individual („nossa alma‟) é „da mesma espécie‟ e da mesma natureza que a alma do
mundo da qual ela provém”. (FRONTEROTTA, nota 42 ao Traité 10, p. 178, ed. Flammarion, grifos meus).
8
Os tratados serão sempre referidos pela numeração estabelecida por Porfírio (em caracteres romanos, o número
da Enéada; em caracteres arábicos, o número do tratado). Entre colchetes aparece a numeração cronológica
legada por Porfírio, em seguida, o número do capítulo e, finalmente, a numeração das linhas conforme a edição
de Henry-Schwyzer, Plotini Opera.
10
Talvez a simples tentativa de proporcionar uma explicação clara acerca do
entendimento de Plotino sobre a origem de nossas almas já seja razão suficiente para
empreendermos nossos esforços. isto eliminaria possíveis ambigüidades na doutrina
plotiniana da alma. Contudo, a compreensão da fraternidade entre nossas almas e a alma do
mundo confere ganhos ainda maiores se nos dermos conta do estatuto ontológico
correspondente às almas individuais em cada uma das interpretações. Se aceitássemos a
origem de nossas almas na alma do mundo e o diretamente na Alma Hipóstase,
concederíamos uma inferioridade ontológica às almas individuais com grandes repercussões
contrárias ao pensamento de Plotino a respeito da possibilidade de autonomia humana. Com
efeito, no tratado III 1 [3], “Sobre o Destino”, o filósofo reconhece a existência de uma ordem
cósmica, de um governo do universo pela alma do mundo, mas, ao mesmo tempo, busca uma
solução para a possibilidade de liberdade humana e de responsabilidade pessoal. Considera
ser preciso, de algum modo, conceder autonomia ao homem, para que este não seja simples
membro de um grande corpo cósmico, inexoravelmente atado ao grande encadeamento
universal. Por essa razão, postula as almas individuais como princípios causais, ao lado da
alma do mundo. São as almas individuais, e somente estas, que garantirão a liberdade
humana. Não se trata, é verdade, de qualquer parte da alma individual, mas apenas da porção
pura, “não descida”, residente na própria Hipóstase. Mas é desta vinculação direta com a
Alma Total que resulta seu elevado estatuto ontológico e sua possibilidade de liberdade. A
autonomia concedida por Plotino não representa, evidentemente, liberdade absoluta, pois,
enquanto possuírem corpos, os homens deverão submeter-se, em muitos aspectos, às leis da
necessidade ditadas pela alma do mundo. Mas, na medida em que não são, de fato, corpos,
mas almas, ao fazerem coincidir seu ser com a alma, serão livres.
Nosso exame se dividirá em duas partes: a primeira, que compreende os três
primeiros capítulos, procurará observar o que o próprio filósofo tem a dizer a respeito da
origem das almas individuais; na segunda parte, composta pelos três capítulos finais,
observaremos a repercussão desta doutrina em sua filosofia, fazendo notar as conseqüências
do estatuto conferido às almas individuais para a autonomia humana e apontando o meio
preconizado por Plotino para o efetivo alcance deste estado.
Deste modo, o primeiro capítulo (I.1) procurará apresentar uma perspectiva geral
das Enéadas, observando muito rapidamente o estatuto conferido à alma do mundo e às almas
individuais. O segundo capítulo (I.2) identificará o que nos parece ser a raiz do problema;
para isso, examinaremos o tratado sobre a unidade das almas IV 9 [8]. Cabeao terceiro
11
capítulo (I.3) enfrentar de maneira mais cerrada a questão, acompanhando de perto a
argumentação de Plotino nos capítulos iniciais de IV 3 [27].
Constatada a efetiva fraternidade entre almas individuais e alma do mundo, resta-
nos observar com algum detalhe o estatuto conferido às almas individuais. Para tanto,
pareceu-nos apropriado empreender uma investigação preliminar acerca da natureza da alma
humana. É o que procuramos fazer no primeiro capítulo da segunda parte (II.1), onde notamos
uma bipartição da alma, com a distinção entre “dois homens”, de modo tal que o ser humano
possa agir em conformidade a um destes homens: o inferior, sensitivo e animal, ou o superior,
racional e, no melhor dos casos, intelectivo.
Uma vez que é possível a operação no nível superior da alma, o homem poderá ter
sua alma alçada a princípio causal, subtraindo-se ao destino. É isto que a análise do tratado III
1 [3] permitirá apontar. Contudo, como esta condição elevada efetiva-se somente no caso das
almas puras, será necessário examinar esse nível da alma para constatar a existência do
“verdadeiro homem”, um homem tal que, orientado para o inteligível, vive conforme sua mais
pura essência. Todos estes pontos serão abordados no segundo capítulo da segunda parte
(II.2).
Finalmente, o terceiro capítulo da segunda parte (II.3) tratará do meio pelo qual o
homem pode efetivamente viver segundo sua verdadeira natureza, qual seja, pela execução de
um processo catártico, de eliminação de impurezas e acréscimos presentes em sua alma. Este
capítulo representará o fechamento de um círculo em nosso exame: se iniciamos pela
investigação da origem de nossas almas, num percurso descensional, inverteremos agora o
processo, elevando-nos pela via purgativa à nossa fonte primeva.
12
PARTE I: A ORIGEM DAS ALMAS INDIVIDUAIS
13
I. 1. ALMA DO MUNDO E ALMAS INDIVIDUAIS NAS ENÉADAS
Talvez o primeiro problema relativo à distinção entre alma do mundo e Alma
Universal o que resulta, conseqüentemente, em equívocos relacionados à origem das almas
individuais seja essencialmente terminológico. Por vezes, os tradutores utilizam
indistintamente os termos, gerando mal-entendidos. Há, com efeito, grandes dificuldades em
virtude das diversas conotações do termo yuxh/ ao longo das Enéadas, razão pela qual
importa-nos afastar desde ambigüidades na utilização dos termos. A alma, quando tratada
de maneira bastante geral, raramente recebe especificações, é simplesmente yuxh/. Sendo
assim, quando nos referirmos à alma de modo geral, utilizaremos o termo “alma”, com letras
minúsculas. Há, porém, outras referências à alma que devem ser definidas com mais cuidado.
A alma enquanto Princípio derivado do Intelecto será identificada como “Alma”
ou “Alma Hipóstase” ou “Alma Total” ou “Alma Universal”. Em geral, Plotino refere-se a ela
com as qualificações de o(/lh ou pa=sa. Trata-se da realidade imediatamente inferior ao
Intelecto, do qual depende
9
e é imagem
10
. Embora seja uma unidade, contém a multiplicidade
de almas, isto é, contém as almas individuais e a alma do mundo como “partes” suas. O
tratado IV 3 [27] 1-8 será especialmente útil para demonstrarmos este ponto, esclarecendo que
sua relação com as almas particulares estabelece-se segundo uma relação de gênero (Alma) e
espécies (almas)
11
.
A “alma do mundo”, por sua vez, é a alma governante do universo, que produz e
dirige o corpo do cosmos sensível, geralmente designada como yuxh\ tou= panto/j ou
yuxh\ tou= o(/lou. Em alguns momentos, Plotino designa-a como yuxh\ tou= ko/smou. Pode
ser traduzida por alma do Todo”, “alma do cosmos”, “alma do mundo” ou “alma do
universo”. Procuramos uniformizar a tradução para “alma do mundo”, tendo em vista a larga
utilização do termo na literatura secundária.
Quanto às almas individuais, trata-se das almas dos seres humanos (o que não
significa que se refiram exclusivamente aos homens encarnados, que as almas independem
9
Cf. III 8 [30] 6, 26.
10
Cf. V 1 [10] 3, 7 e V 1 [10] 7, 39-40.
11
Este sentido lógico, porém, não significa que a Alma seja universal no sentido aristotélico, já que se trata de
uma hipóstase, com existência verdadeira. Portanto, a Alma é ao mesmo tempo uma entidade universal e a
totalidade dos entes compreendidos neste universal. Cf. DECK, Nature, Contemplation and the One, p. 51.
14
dos corpos para sua existência)
12
. Plotino costuma nomeá-las com os termos yuxh\
e(ka/stou h(mw=n, a “alma de cada um de s”. Traduziremos por “almas individuais” ou
“almas particulares” e também por “nossas almas”.
A tradução rigorosa dos termos é muito relevante para evitar ambigüidades que
muitas vezes não estão presentes no texto de Plotino, mas que podem surgir com a ausência
de distinção entre os vários aspectos da alma. Como apontamos na “Introdução”, um sério
problema que o tratamento apressado da tradução pode causar é a indistinção entre Alma
Hipóstase e Alma do Mundo. A questão da diferenciação entre estas almas não é simples
por si; não há necessidade de complicá-la com traduções que se afastam da literalidade.
Em nossa argumentação, procuraremos estabelecer com clareza a relação entre as
almas e, para isso, vamo-nos valer especialmente dos primeiros capítulos de IV 3 [27], onde
Plotino preocupou-se em esclarecer a relação entre almas individuais e alma do mundo.
Veremos tratar-se de uma fraternidade, de sorte que nossas almas não devem ser entendidas
como partes da alma do mundo, mas como “partes” da Alma Total ou Alma Universal. Ali, o
filósofo procura refutar a tese de que as almas humanas proviriam da alma do mundo. Dada a
relevância dos argumentos e as fortes conseqüências extraídas a partir dessa análise, vamos
dedicar um capítulo especialmente para este tratado
13
. Por ora, voltemo-nos rapidamente para
outros momentos das Enéadas onde também poderemos encontrar apoio para nossa
interpretação
14
, o que nos permitirá também a exploração de alguns traços da doutrina
plotiniana da alma.
Em V 1 [10], é possível observar o alto grau de dignidade a que Plotino eleva
todas as almas. O segundo capítulo, tendo considerado o modo perfeito de atuação da alma do
mundo, exorta o leitor para que olhe esta “grande alma” (mega/lh yuxh/)
15
e siga seu
exemplo. Após exaltar longamente a potência da alma do mundo, ao final destaca a dignidade
das almas individuais, que são de mesma espécie que aquela:
12
Deve-se levar em conta ainda que as almas individuais não pertencem exclusivamente a seres humanos, pois
Plotino admite a transmigração de almas (que cometeram erros) para corpos de animais. Cf. sobre a
transmigração de almas para animais: IV 7 [2] 14, 2; III 4 [15] 2; VI 4 [22] 16; IV 3 [27] 24 e 27; II 9 [33] 9; VI
7 [38] 6; III 2 [47] 13, 15 e 17; II 3 [52] 8.
13
Cf. capítulo I.3, p. 33-69.
14
Passo a fazer uma seleção de textos, ainda que reconheça as dificuldades que um recorte desse tipo enfrenta.
Não vejo, pom, como não recorrer a este expediente, tendo em vista que Plotino não oferece uma apresentação
sistemática de sua doutrina.
15
V 1 [10] 2, 12.
15
Mas também a nossa alma é de espécie semelhante e, quando quer que a
observes sem seus acréscimos, tomando-a purificada, descobrirás aquela
mesma coisa honorável que, <como dissemos>, era a alma, mais honorável
do que qualquer coisa que seja corporal
16
.
A semelhança de espécie entre nossas almas e a alma do mundo muitas vezes não
é facilmente perceptível, pois o comércio com o corpo acaba por fazer as almas particulares
“descerem”, afastando-se do inteligível. Quando, porém, tomada em seu estado purificado, a
alma individual alcança exatamente o mesmo estatuto da alma do mundo, pois, neste caso,
sem contaminar-se com o corpo, é tão somente alma, exercendo sua atividade puramente no
nível inteligível.
Algumas indicações valiosas para compreender o relacionamento entre as almas
encontram-se em IV 4 [28] 32, onde Plotino estabelece uma diferenciação entre os seres
vivos, enquanto considera o mundo como um único ser vivo, com simpatia entre as partes:
Primeiramente, deve-se postular que este todo é um ser vivo único que
abrange dentro de si todos os seres vivos, tendo uma alma única que se
estende a todas as suas partes, na medida em que cada um é parte dele; e
cada um no todo sensível é parte, e completamente parte no que concerne ao
corpo; e, na medida em que participa da alma do mundo, é, nesta medida,
assim também uma parte; e aqueles que participam apenas da alma do
mundo o completamente partes em relação ao todo, mas todos quantos
participam também de outra <alma> são, deste modo, não completamente
partes, embora sejam, não obstante, afetados pelas outras partes, na medida
em que possuem alguma coisa do todo, e conforme aquilo que possuem
17
.
Da alma do mundo, todos participam, na medida em que estão no mundo e têm
corpos; recebem uma alma da natureza. seres vivos
18
, porém, que possuem algo mais que
16
V 1 [10] 2, 44-47: o(moeidh\j de\ kai\ h( h(mete/ra, kai\ o(/tan a)/neu tw=n proselqo/ntwn skop$=j
labw\n kekaqarme/nhn, eu(rh/seij to\ au)to\ ti/mion, o(\ h)=n yuxh/, kai\ timiw/teron panto\j tou= o(\ a)\n
swmatiko\n $)=.
17
IV 4 [28] 32, 4-13: prw=ton toi/nun qete/on z%=on e(\n pa/nta ta\ z%=a ta\ e)nto\j au(tou= perie/xon to/de
to\ pa=n ei)=nai, yuxh\n mi/an e)/xon ei)j pa/nta au)tou= me/rh, kaqo/son e)sti\n e(/kaston au)tou= me/roj!
me/roj de\ e(/kaston e)sti to\ e)n t%= panti\ ai)sqht%=, kata\ me\n to\ sw=ma kai\ pa/nth, o(/son de\ kai\
yuxh=j tou= panto\j mete/xei, kata\ tosou=ton kai\ tau/t$! kai\ ta\ me\n mo/nhj tau/thj mete/xonta
kata\ pa=n e)sti m/erh, o(/sa de\ kai\ a)llhj, tau/t$ e)/xei to\ mh\ me/rh pa/nth ei)/nai, pa/sxei de\ ou)de\n
h(=tton para\ tw=n a)/llwn, kaqo/son au)tou= ti e)/xei, kai\ kat” e)kei=na, a(\ e)/xei.
18
Em outro momento, quando investigarmos a natureza da alma, será possível analisar com mais vagar as
diferenças entre os vários seres vivos, ou seja, quais faculdades de alma cada um deles contêm. Sem dúvida, o
texto é complicado, pois se “o todo é um ser vivo que abrange todos os seres vivos que estão dentro de si”, resta
saber quais são os seres que recebem o estatuto de ser vivo para Plotino. Certamente deve haver uma distinção
entre os vários seres vivos: plantas, animais irracionais e homens. Sabemos que, por possuírem corpos, todos
eles participam da alma do mundo. Quanto aos minerais, talvez não mereçam o estatuto de “ser vivo”, já que
Plotino é especialmente claro a este respeito em VI 4 [22] 15, 8-17, onde afirma que, embora nenhum corpo seja
16
esta alma e participam também de “outra alma”. Por isso, é impróprio dizer que os seres
humanos são “partes” da alma do mundo; são partes, mas não totalmente, que participam
também de outra alma; são partes apenas na medida em que têm corpos; quanto às demais
faculdades que independem dos corpos, estas são devidas à participação em “outra alma”. E
por não serem completamente partes”, mas participantes também de outra alma, alcançarão,
como veremos em III 1 [3], a possibilidade de escape, em alguma medida, das influências
cósmicas.
A importância da teoria aqui expressa é destacada por Armstrong: “a doutrina
aqui indicada, de que homens são verdadeiramente partes do todo, mas não apenas partes - há
algo neles que transcende a unidade orgânica do cosmos do qual suas naturezas mais baixas
participam -, é de grande importância para Plotino.”
19
E o tradutor e intérprete remete à sua
“Nota Introdutória” a este tratado, onde lemos:
Em primeiro lugar, é importante lembrar que, para Plotino, assim como para
seus predecessores platônicos e estóicos e para seus sucessores
neoplatônicos, “alma” não significa apenas, ou primariamente, alma
humana. O universo físico como um todo é um único ser vivo animado, e
suas grandes partes, os corpos celestes e a terra, têm almas divinas
grandemente superiores em dignidade e poder às almas humanas. O
problema, portanto, surge do relacionamento entre nossas almas e a alma do
mundo, e deveríamos notar que a conclusão da discussão muito cuidadosa
acerca disso, no início de IV 3, é que não somos partes ou produtos da alma
do mundo, mas esta e nossas almas e todas as outras almas são partes da
hipóstase Alma, isto é, seres essencialmente no mesmo nível. A alma do
mundo é nossa irmã mais velha, não nossa mãe, e podemos elevar-nos tão
alto quanto ela e tornarmo-nos suas companheiras em contemplação e
colaboradoras.
20
Nossas almas possuem diversas faculdades. Isso fica claro quando se observa a
tripartição apontada em II 9 [33] 2:
Uma parte de nossa alma está sempre voltada para o alto, outra para as
coisas daqui, e outra está no meio destas; pois, sendo a alma uma natureza
única em muitas potências, ora sua totalidade é levada junto com o melhor
vazio ou sem participação na alma, é somente quando o corpo se aproxima da alma que ele se torna um “corpo
vivo”. Não dúvida que os corpos são sempre animados, ou não seriam “corpos”, mas simples matéria sem
forma; a pedra e a madeira, entretanto, são consideradas “coisas mortas”. Cf. IV 7 [2] 9, 24. Cf. também
BLUMENTHAL, H. J. “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, Le Néoplatonisme, Paris, 1971, pp.
55-66 (=Soul and Intellect: Studies in Plotinus and Later Neoplatonism. Variorum, 1993), p. 63.
19
Nota 1 de sua tradução, p. 235.
20
ARMSTRONG, “Introductory Note”, PLOTINUS. Ennead, IV.3-5, p. 27.
17
de si e do ser, ora a pior parte é arrastada para baixo, arrastando consigo a
parte média; pois não é permitido arrastar a totalidade dela
21
.
O melhor da alma, sua parte superior, é capaz de arrastar consigo todas as
potências da alma, o que significa uma elevação de toda a alma ao inteligível. A pior parte”
da alma, por sua vez, não é capaz de arrastá-la em sua totalidade, mas somente sua porção
intermediária. Essas três potências da alma serão nomeadas em V 3 [49] 3: a razão discursiva,
considerada como aquilo que mais propriamente “nós” somos; acima dela, as atividades
intelectivas; abaixo, a percepção sensorial:
Somos nós mesmos que raciocinamos e nós mesmos que concebemos os
pensamentos na razão discursiva; pois isto somos nós. As atividades do
Intelecto são de cima, assim como as provenientes da percepção sensível são
debaixo; nós somos isto, a parte dominante da alma, o meio entre duas
potências, uma pior e uma melhor, a pior sendo a da percepção sensível, a
melhor, a do Intelecto
22
.
Quanto à faculdade que provê a vida dos corpos, gerando-os e nutrindo-os, que
poderíamos denominar de “vegetativa”, esta sequer é citada dentre as potências da alma
humana. Com efeito, esta é atribuição da alma do mundo, como notaremos a seguir. Os
homens distinguem-se por possuírem três faculdades: razão discursiva, percepção sensível e
atividade intelectiva. O que faz com que homens sejam homens não é sua participação na
alma do mundo, mas sua participação diretamente na Alma Total, que lhes permite exercer a
razão discursiva a potência dominante no caso da alma humana -, mas também perceber o
mundo sensível e estar em contato com o Intelecto. Por vezes, Plotino prefere expressar-se em
termos de bipartição da alma, é o que observa Richard Dufour:
Além desta tripartição da alma entre uma faculdade que permanece sempre
no inteligível, uma faculdade que se volta para o sensível e uma faculdade
que oscila entre as duas, Plotino fala de bom grado de uma bipartição da
alma, entre uma faculdade superior voltada para o Intelecto e uma faculdade
inferior voltada para as coisas daqui debaixo (6 (IV, 8), 8, 1 e 10 (V, 1), 10,
24-30). Plotino parece então opor uma faculdade intelectiva, que o
21
II 9 [33] 2, 4-10: yuxh=j de\ h(mw=n to\ me\n a)ei\ pro\j e)kei/noij, to\ de\ proj tau=ta e)/xein, to\ d” e)n
me/s% tou/twn! fu/sewj ga\r ou)/shj mia=j e)n duna/mesi plei/osin o(te\ me\n th\n pa=san sumfe/resqai
t%= a)ri/st% au)th=j kai\ tou= o)/ntoj, o(te\ de\ to\ xei=ron au)th=j kaqelkusqe\n sunefelku\sasqai to\
me/son! to\ ga\r pa=n au)th=j ou=k h)=n qe/mij kaqelku/sai.
22
V 3 [49] 3, 35-40: h)\ au)toi\ me\n oi( logizo/menoi kai\ noou=men ta\ en) t$= dianoi/# noh/mata au)toi/!
tou=to ga\r h(mei=j. ta\ de\ tou= nou= e)nergh/mata a)/nwqen ou(/twj, w(j ta\ e)k th=j ai)sqh/sewj ka//twqen,
tou=to o)/ntej to\ ku/rion th=j yuxh=j, me/son duna/mewj ditth=j, xei/ronoj kai\ belti/onoj, xei/ronoj
me\n th=j ai)sqh/sewj, belti/onoj de\ tou= nou=.
18
abandona jamais o inteligível, e uma faculdade inferior, que inclui a razão
discursiva e a sensação (6 (IV, 8), 8, 10-11). A faculdade irracional de nossa
alma não compreende a faculdade vegetativa (8 (IV, 9), 2, 10-11), pois esta
última pertence à alma do mundo (8 (IV, 9), 3, 23-25).
23
Diferentemente da alma do mundo, que permanece sempre voltada para o Noûs, a
alma humana, com suas múltiplas potências, afasta-se do inteligível e desce para as coisas
inferiores. A potência da alma do mundo é absolutamente “maravilhosa”
24
, capaz de
contemplar diretamente o inteligível e dirigir o cosmos sem ter comércio com as coisas
sensíveis. Plotino, em V 1 [10], num louvor à alma, recomendara que observássemos de
perto essa “grande alma”. Devemos levar em conta, porém, as diferenças entre nossas almas e
a alma do mundo, cujo ponto central refere-se à maneira de governar o corpo: ela não o
dirige do mesmo modo e não está atada a ele”
25
. Nossas almas, ao contrário, estão duplamente
atadas: “nós estamos atados por um corpo que se tornara um laço”
26
. Este laço é fornecido
pela alma do mundo e mantém unidos todos os elementos componentes do corpo do
universo
27
. Esta é, pois, a dupla atadura das almas individuais: ligam-se a corpos, os quais,
por sua vez, encontram-se ligados ao corpo do universo. Em IV 3 [27] 6, 13-15, somos
informados de que nosso corpo fora preparado, antes de nascermos, pela alma do mundo
28
;
assim, não tendo sido produzido por nossa própria alma, este corpo já constitui uma espécie
de laço para nós, de sorte que jamais temos pleno domínio sobre ele. a alma do mundo,
contrariamente às almas individuais, não é afetada pelos corpos. Nunca é contaminada por
eles, já que sua parte superior, voltada para o divino, é sempre pura, e a parte “inferior” (a
natureza), que dá vida ao corpo, nada recebe deste
29
.
Apesar de serem de mesma espécie, as almas individuais operam de maneira
completamente diferente da de sua “irmã” - termo, aliás, que aparece mais uma vez, quando
Plotino critica a doutrina gnóstica, que encoraja a fuga do corpo
30
:
23
DUFOUR, Traité 33 (II, 9), nota 32, p. 244, ed. Flammarion.
24
II 9 [33] 2, 15.
25
II 9 [33] 7, 8: o(/ti mh\ o( au)to\j tro/poj mhd” e)ndedeme/nh.
26
II 9 [33] 7, 10-11: h(mei=j me\n u(pó\ tou= sw/matoj dede/meqa h)/dh desmou= gegenhme/nou.
27
Plotino acompanha Platão, que no Timeu 38e5 utilizara o termo desmo/j para referir-se à forma como a alma
do mundo mantém unidos os componentes do corpo do universo. Cf. ROBINSON, A psicologia de Platão, p.
117.
28
Cf. também VI 7 [38] 7, 8ss e II 9 [33] 8, 15-16.
29
Cf. II 9 [33] 7, 12-18.
30
Ao contrário da filosofia plotiniana, “que retém a alma junto ao corpo.” (II 9 [33] 18, 3).
19
Mas, tendo corpos, é preciso que permaneçamos nas moradas preparadas
pela boa alma irmã que tem grande poder para produzir sem esforço. Ou será
que <os gnósticos> julgam os piores homens dignos de serem chamados de
irmãos, mas, em sua linguagem delirante, consideram indignos de serem
ditos irmãos o sol, os <astros> no céu e a alma do mundo?
31
A diferença no modo de operação entre as almas individuais e a alma do mundo
levou Blumenthal a apontar em “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus” - artigo
que se tornou referência sobre o assunto - uma inconsistência na doutrina plotiniana da alma:
o filósofo teria sido incapaz de dar uma explicação adequada para a unidade da alma e a
multiplicidade de indivíduos. Teoricamente, considera Blumenthal, alma do mundo e almas
individuais encontram-se no mesmo nível, essencialmente idênticas e formando uma unidade;
contudo, no que tange às suas atividades, ao seu modo de comportamento, não igualdade
entre elas - e nem mesmo há igualdade entre as várias almas particulares. A causa das
diferenças entre as almas parece residir no corpo, de modo que a doutrina plotiniana estaria,
afinal, atribuindo aos corpos o controle da descida das almas; ora, como é a própria alma que
produz primeiramente as diferenças entre os corpos, Blumenthal enxerga uma incoerência
na doutrina, constituindo um problema insolúvel.
Com efeito, se o inferior for causa do superior, ou seja, se o corpo for causa de
alterações na alma, deve haver algum problema em tal doutrina. Contudo, cremos que as
diferenças entre as almas possam ser compreendidas o a partir das diferenças entre os
corpos, mas a partir dos diferentes intelectos
32
. Neste caso, o superior determina o inferior, e
não o contrário. Entretanto, o que nos interessa investigar mais particularmente é a relação
que entretêm alma do mundo e almas individuais e seu modo de funcionamento. E, neste
sentido, a exposição de Blumenthal é particularmente valiosa, já que, para demonstrar sua
posição, este autor detém-se na análise da relação entre as almas individuais e a alma do
mundo, examinando os tratados IV 9 [8] e IV 3 [27]. Assim, indaga, em primeiro lugar,
quantos são os tipos de alma: dois ou três? A resposta a esta questão exige que se compreenda
corretamente o termo h( tou= panto\j yuxh/. Se houver identidade entre tou= panto\j yuxh/
e yuxh/ hipóstase, haverá dois tipos de alma; caso difiram, serão três. O autor mostra que
31
II 9 [33] 18, 14-20: dei= de\ me/nein me\n e)n oi)/koij sw=ma e)/xontaj kataskeuasqei=sin u(po\ yuxh=j
a)delfh=j a)gaqh=j pollh\n du/namin ei)j to\ dhmiourgei=n a)po/nwj e)xou/shj. h)\ a)delfou\j me\n kai\
tou\j faulota/touj a)ciou=si prosenne/pein, h(/lion de\ kai\ tou\j e)n t%= ou)ran%= a)paciou=sin
a)delfou\j le/gein ou)de\ th\n ko/smou yuxh\n sto/mati mainome/n%;
32
Veremos esta explicação surgir quando nos detivermos em IV 3 [27] 5. Cf. também IV 8 [6] 3, 6 ss.
20
seria fácil identificar as duas almas, como fizeram Zeller e outros, como Rist
33
, mas é preciso
levar em conta que Plotino refere-se em vários textos à alma do mundo como irmã das almas
individuais
34
. Entretanto, se a relação é de fraternidade, qual seria a filiação das almas
individuais? Teriam de provir de outra alma, “mãe” tanto da alma do mundo quanto das almas
particulares. Finalmente, após analisar diversas passagens
35
, Blumenthal conclui: “estamos
lidando com três tipos de alma ao invés de dois, e é a alma do mundo que se chama h( tou=
panto\j yuxh/”.
36
Da dupla alternativa aventada por Plotino em IV 9 [8] 1, 10-13
37
, resta,
afinal, uma única possibilidade: todas as almas - alma do mundo e individuais - provêm de
uma única alma, a hipóstase. A alma do mundo é o(moeidh/j às almas individuais, ainda que
seja como uma “irmã mais velha”.
h( tou= panto\j yuxh/ e yuxh/ hipóstase diferem. Se é assim, por que razão
tantos intérpretes foram levados a identificá-las? Em primeiro lugar, Blumenthal aponta
passagens sugestivas de uma relação hierárquica direta entre Noûs e alma do mundo em II 3
[52] 17, 15-16 e II 3 [52] 18, 9 ss. Os dois textos encontram-se em contextos similares e
poderiam prover uma explicação daquilo que aparenta ser uma inconsistência, sem que o seja,
de fato. É preciso, ensina Blumenthal, notar o contexto a que se referem: trata-se de
compreender o papel demiúrgico do Intelecto e da Alma; trata-se do encadeamento entre Noûs
e phýsis para a criação do mundo, caso em que é preciso enfatizar a passagem entre ambos.
Deve-se lembrar ainda que alma do mundo e almas individuais não estão impedidas de
acederem ao Noûs, mas “não se deve inferir que o acesso de qualquer entidade às formas mais
elevadas de ser signifique a inexistência de outras formas de ser entre elas; afinal, a
possibilidade de uno mística para o indivíduo não implica a abolição do Noûs
38
. Em
seguida, Blumenthal indica passagens que evidenciam uma despreocupação da alma do
mundo em relação ao mundo (IV 3 [27] 12, 8ss; IV 8 [6] 8, 13-14), o que também poderia
induzir a uma identificação entre yuxh/ e yuxh\ tou= panto/j. A despeito destes textos,
33
Blumenthal considera que Zeller (Die Philosophie der Griechen III.ii, Leipzig, 1881, p. 538) e Rist (Plotinus.
The Road to Reality, Cambridge, 1967, p. 113) tenham identificado alma do mundo e Hipóstase.
34
Cf. IV 3 [27] 6, 13; II 9 [33] 18, 16.
35
Cf. IV 9 [8] 4, 15-18; IV 8 [6] 3, 11-12; III 9 [13] 3, 4-5 e especialmente IV 4 [28] 32, 8-11e IV 3 [27] 4, 14-
16.
36
BLUMENTHAL, “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, p. 57.
37
Esta passagem oferece uma dupla possibilidade para a origem das almas individuais: a alma do mundo ou a
Alma Total. Aqui Plotino não toma partido por alguma das opções; em qualquer dos casos, estará demonstrada a
tese da unidade das almas. No próximo capítulo, procuraremos observar qual seria o propósito do filósofo ao
oferecer uma dupla possibilidade para a origem das almas particulares.
38
BLUMENTHAL, “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, p. 58.
21
porém, o autor sustenta que “a posição estrita de Plotino é que a hipóstase e yuxh\ tou=
panto/j não são a mesma.”
39
Apesar das explicações propostas por Blumenthal para dar conta do surgimento de
leituras que identificam yuxh\ tou= panto/j e yuxh/, parece ser preciso também reconhecer
que, se uma grande dificuldade para a perfeita compreensão da Alma Total, da alma do
mundo, das almas individuais e da relação entre estas, muito se deve à imprecisão dos termos
empregados pelo próprio Plotino. Diversos são os casos de utilização de uma terminologia
que não apresenta univocidade de referência. Assim, o(/lh yuxh/ ora aparece designando a
alma do mundo (IV 3 [27] 1, 32-33), ora a Alma Total (IV 3 [27] 2, 55). Há, ainda, passagens
em que o filósofo não deixa claro a que alma está se referindo, abrindo espaço para várias
interpretações. É o que ocorre, por exemplo, em II 3 [52] 17, em IV 7 [2] 13, ou ainda em IV
8 [6] 4. A propósito desta última passagem, assim escreve o tradutor:
-se mais uma vez que a distinção entre Alma total (ou Alma universal) e
alma do todo (ou alma do universo) é, às vezes, difícil de ser mantida.
Enquanto permanece “no inteligível” (en tôi noetôi), trata-se bem da Alma
total (hóle psyc), unidade original de todas as almas, mas enquanto
“governa no céu”, esperar-se-ia mais ver mencionada a alma do todo (psychè
toû hólou). Ora, Plotino retoma os mesmos termos que designam a alma total
(metà tês holês).
40
Essa imprecisão no uso dos termos parece suscitar uma perplexidade e indecisão
entre os tradutores, levando alguns a abandonar a literalidade e efetuar traduções que podem
dar ensejo a erros de interpretação
41
. Em todo caso, até onde foi possível observar, Plotino,
39
BLUMENTHAL, “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, p. 58.
40
LAVAUD, Traité 6 (IV, 8), nota 57, p. 262, ed. Flammarion.
41
Um exemplo do problema que ora apontamos pode ser encontrado na tradução efetuada por Jérôme Laurent e
Jean-François Pradeau para o tratado III 9 [13]. Aí, na linha inicial do terceiro capítulo, Plotino trata da Alma
Universal, pa=sa yuxh/, afirmando que ela “não veio a ser em lugar algum nem foi <para algum lugar> (H(
pa=sa yuxh\ ou)damou= e)ge/neto ou)de\ h)=lqen!). A sequência do texto (linha 4) dirá que “as outras <almas>
têm de onde <vir> - pois <vêm> da Alma”. (Ai( d” a)/llai e)/xousin o(/qen - a)po\ ga\r yuxh=j). Aqui o termo
yuxh/ é utilizado sem especificação, já que não necessidade de repetir que se trata da Alma Universal.
Entretanto, os tradutores aqui citados traduzem pa=sa yuxh/ por “alma do todo” (“âme du tout”): “L‟âme du
tout n‟est jamais née nulle part, pas plus qu‟elle ne s‟est déplacée en un lieu car il n‟y avait pas de lieu”. Em
seguida, traduzem yuxh/ sem especificação por “Alma” (Âme): “Quant aux autres âmes, elles possèdent un lieu,
puisqu‟elles proviennent de l‟Âme”. E agora precisam dar conta de qual seja essa alma, sendo obrigados a
acrescentar uma nota que deixa o leitor perplexo: “A maiúscula indica que se trata da Alma “hipóstase”, de onde
todas as almas provêm e com as quais todas são uma, como explicou o tratado 8 (IV, 9), 1 e 4. Certamente,
poderia também tratar-se da alma do mundo, da qual saíram as almas dos seres vivos individuais. É
simplesmente a precisão que vem em seguida, pois ela parece estabelecer uma espécie particular para a alma
universal que não abandona jamais, diferentemente das demais, sua morada inteligível, que pleiteia em favor da
primeira possibilidade”. (Traité 13, nota 21, p. 301, ed. Flammarion). Ora, nenhuma tentativa de explicação seria
22
em geral, utiliza os termos o(/lh yuxh/ e pa=sa yuxh/ para designar a Alma Total, terceira
hipóstase. Este é também o entendimento de Laurent Lavaud, que assim se expressa para
explicar o termo “alma única” que aparece no Tratado IV 8 [6]:
Parece que esta “alma única” designa aquilo que Plotino chama de “Alma
universal” (pâsa psyché) ou “Alma total” (hóle psyché). Esta se distingue da
“alma do universo” por ser considerada em si mesma sem implicar uma
relação com o corpo... Neste caso, a “multiplicidade de almas”, de que fala
Plotino neste capítulo, remete tanto à alma do universo quanto às almas dos
astros e às almas individuais, todas provindas da unidade original constituída
pela Alma universal.
42
É fato que a terminologia plotiniana apresenta dificuldades
43
. Não parece ser
possível, contudo, duvidar da firme posição de Plotino quanto à origem das almas, posição
que, até onde pudemos enxergar, parece ser constante ao longo de toda a obra. As leves
pinceladas dadas em alguns passos das Enéadas procuraram mostrar a constância deste
entendimento do filósofo, mesmo nos mais variados contextos argumentativos.
44
Através de
uma análise mais aprofundada de alguns textos essenciais, os próximos capítulos procurarão
demonstrar com maior rigor este ponto que por ora anunciamos de modo tão expedito.
necessária se o primeiro termo houvesse sido cuidadosamente traduzido por “Alma Universal” ou “Alma Total”.
De nossa parte, temos de reconhecer que este passo é de difícil interpretação e talvez tenha sido esta a razão pela
qual os tradutores optaram por afastar-se da literalidade. Entretanto, acreditamos que tal opção acabou por
complicar ainda mais o assunto.
42
LAVAUD, Traité 6 (IV, 8), nota 45, p. 260, ed. Flammarion.
43
Além de todos os problemas terminológicos apontados, Plotino considera ainda a existência das almas dos
astros (cf., por exemplo, IV 8 [6], 2, 39; II 1 [40], 5, 8ss; II 9 [33], 18, 30-32) e da alma celeste (yuxh\
ou)rani/a) (cf. II 1 [40], 5).
44
Não nos detivemos no exame de cada um dos contextos das citações aqui expostas por motivos estratégicos.
Em primeiro lugar, tal análise seria demasiado extensa, fugindo ao escopo deste trabalho. Ademais, nosso
objetivo primordial aqui foi lançar um rápido olhar sobre a posição de Plotino quanto à origem das almas em
diversos momentos das Enéadas. Não enxergamos, pois, alguma imperiosa necessidade para determo-nos
excessivamente nestes passos.
23
I.2. A UNIDADE DAS ALMAS COMO ORIGEM DO PROBLEMA: IV 9 [8]
O tratado IV 9 [8], que indaga “se todas as almas são uma”
45
, antecipa
rapidamente a questão tratada nos oito primeiros capítulos de IV 3 [27] acerca da relação
entre as almas individuais e a alma do mundo, mas, principalmente, antecipa a questão que
será desenvolvida em VI 4 [22] e VI 5[23] sobre a unidade da alma. Com a afirmação de que
todas as almas são simplesmente uma única alma, surge também o problema da unidade na
multiplicidade. Se as almas são apenas uma, podem por vezes confundir-se; como distinguir
entre alma do mundo e Alma Hipóstase? Nossas almas seriam partes da Hipóstase ou da alma
do mundo? São questões que não se resolvem aqui, e talvez por isso mesmo tenham permitido
o surgimento de diferentes interpretações sobre o tema. Para um panorama completo do
problema, talvez seja útil debruçarmo-nos rapidamente sobre este curto tratado que inaugura a
questão. Com isso, teremos também a oportunidade de acompanhar a argumentação de
Plotino para sustentar sua tese sobre a origem comum de todas as almas.
Plotino parte de ganhos obtidos em tratados anteriores. Do curto tratado IV 2 [4] -
onde, ao estudar a essência da alma, procurou tratar de sua realidade inteligível, porém com
uma natureza intermediária entre o sensível e o inteligível - obteve a afirmação de que a alma
está inteira em cada um dos corpos em que se encontra.
46
É sempre una, presente por inteiro
ao longo de todo o corpo. Estende-se a todas as regiões corporais sem, contudo, ocorrer
qualquer divisão em partes, de sorte que cada qual viesse a cuidar de uma determinada área do
corpo. Assim, a faculdade sensitiva da alma manifesta-se inteiramente em cada parte do
corpo, e o mesmo faz a faculdade vegetativa
47
. Mas, se é assim, se a mesma alma manifesta-
se inteiramente nas múltiplas regiões corporais, não seria plausível pensar que, do mesmo
modo, existe uma mesma e única alma manifestando-se também inteiramente em cada um de
nós expressando-se, em cada ser, como diferentes almas particulares? Sabemos já da
45
PERI TOU EI PASAI AI YUXAI MIA é o título atribuído por Porfírio a este tratado.
46
Em IV 2 [4] 1, 61-66, estabelece o modo de operação da alma, por um lado divisível entre os corpos, mas
também indivisível, na medida em que se faz presente por inteiro em cada corpo:. a)lla\ meristh\ me/n o(/ti e)n
pa=si me/resi tou= e)n %= e)/stin, a)me/ristoj de\ o(/ti o(/lh e)n pa=si kai\ e)n o(t%ou=n au)tou= o(/lh. “É
divisível, porque está em todas as partes daquilo em que está, e, por outro lado, é indivisível, porque está em
todas as partes como um todo e está inteira em cada uma das partes em que está.” Mas a alma jamais é de fato
dividida, explica logo em seguida (linhas 69-76), pois a divisão ocorre em virtude da peculiaridade dos
corpos, incapazes de receber a indivisibilidade, “de modo que a divisão é afecção dos corpos, não da alma”
(w(/ste ei)=nai tw=n swma/twn pa/qhma to\n merismo/n, ou)k au)th=j).
47
Já em seu segundo tratado, IV 7 [2] 6-7, Plotino afirmara a presença da faculdade sensitiva como uma unidade
nas diversas partes do corpo.
24
unidade da alma em cada indivíduo; haverá, do mesmo modo, uma unidade de todas as
almas? Todas as almas individuais poderiam ser apenas uma?
48
Eis a questão à qual este
tratado procurará responder positivamente.
Em primeiro lugar, estabelece-se a unidade da alma do mundo: é única, já que não
é dividida tal como o seria uma massa; está presente em toda parte. Se já ficara claro
anteriormente que a alma individual é una, também assim deve ser a alma do mundo.
49
Em
seguida, apresenta-se a tese: é necessário que a alma seja uma e dela provenham todas as
almas. Plotino supõe duas hipóteses, e ambas resultarão na unidade de origem das almas. 1ª)
Caso nossas almas provenham da alma do mundo (hipótese que, veremos em IV 3 [27], não
se sustenta), nossas almas formarão uma unidade com a unidade primordial de onde provêm,
que ficara estabelecido acima que a alma do mundo é una. 2ª) Caso nossas almas o
tenham sua origem na alma do mundo, mas sejam esta e aquelas como irmãs, provindas de
uma outra Alma una (e este é o caso, como mostrará IV 3 [27]), também assim todas as almas
serão uma só; e se assim for, será preciso investigar sobre esta Alma. Veja-se o texto: “Se a
minha e a tua alma provêm da alma do mundo, e aquela é uma, também estas almas devem
ser uma. Mas se a alma do mundo e a minha provêm de uma alma, novamente todas as almas
são uma”
50
.
É importante notar que Plotino o afirma em momento algum que as almas
individuais sejam produzidas pela alma do mundo
51
. O que nosso autor faz é afirmar a
necessidade de que todas as almas provenham de uma alma única, supondo duas
possibilidades de origem. Neste tratado, ele não se decide, que isto não importa para seu
objetivo momentâneo: em qualquer dos casos, sempre as almas individuais formarão uma
unidade com sua origem - e é simplesmente isso que está em jogo aqui. Aquilo que é
apresentado a título de hipótese argumentativa tem como finalidade o fortalecimento de sua
tese, enfatizando sua necessidade. Mas, é bom lembrar, não passa de hipótese e o tratado IV 3
[27] deixará clara a opção pela segunda hipótese apresentada aqui.
Plotino propõe, pois, duas hipóteses de proveniência das almas individuais, mas
considera ser preciso, antes de tudo, combater as objeções que poderiam surgir contra a tese
48
Cf. IV 9 [8] 1, 1-7
49
Cf. IV 9 [8] 1, 8-10
50
IV 9 [8] 1, 10-13: ei) me\n ou)=n e)k th=j tou= panto\j kai\ h( e)mh\ kai\ h( sh\, mi/a de\ e)kei/nh, kai\ tau/taj
dei= ei)=nai mi/an. ei) de\ kai\ h( tou= panto\j kai\ h( e)mh\ e)k yuxh=j mia=j, pa/lin au)= pa=sai mi/a.
51
Como acreditam os tradutores deste tratado Luc Brisson e Jean-François Pradeau em nota introdutória: “Ele
sustenta... que as almas individuais são produzidas pela alma do mundo da qual elas provêm, assim como a alma
do mundo é ela própria procedente da Alma única e real que permanece no inteligível (e que chamamos por
comodidade de Alma „hipóstase‟).” (“Notice”, Traité 8 (IV, 9), p. 40, ed. Flammarion).
25
proposta, segundo a qual todas as almas seriam uma só. A primeira objeção diz respeito ao
caráter aparentemente absurdo da tese: se todos formarmos uma unidade, então todos
experimentaremos as mesmas afecções, compartilharemos as mesmas percepções, e o mesmo
acontecerá com a alma do mundo; o que um sofrer, todos sofrerão, o que é, evidentemente,
absurdo.
52
ainda um segundo argumento contrário à tese: como explicar a multiplicidade
de almas: racional, irracional, almas de animais, almas de plantas? Por que haveria almas com
diferentes faculdades em cada ser? Por que alguns seriam plantas, outros animais e outros,
ainda, homens?
53
No segundo capítulo, o filósofo responde à primeira objeção, apoiando sua
argumentação no seguinte ponto: embora as almas individuais sejam uma só, isso o
significa que os compostos de alma e corpo
54
formem uma unidade. Os indivíduos possuem
almas que na verdade constituem-se em uma única alma, mas os compostos variam de
indivíduo para indivíduo. Uma mesma entidade pode estar presente em entes diferentes, com
experiências diferentes em cada caso, e o filósofo exemplifica: a forma do ser humano
manifesta-se em diferentes homens, uns em movimento, outros não, mas é sempre a mesma
forma passando por experiências diferentes. E isso não significa que as percepções de um
homem sejam as mesmas que as de outro
55
. Isso pode ser observado no corpo mesmo: a alma
(presente no corpo todo) percebe o que ocorre com uma das mãos, mas a outra o não o
percebe
56
. Somente se os corpos existissem juntos, formando uma unidade, sem afastamento
algum entre eles, somente assim seria possível a cada homem experimentar as mesmas
afecções dos demais
57
. Nesse caso, porém, não seria mais possível afirmar que homens,
mas um homem, o mais indivíduos, mas um indivíduo. Ora, não é o que ocorre
conosco, que temos corpos separados, e é essa separação corporal que impede a percepção das
afecções dos outros.
52
Cf. IV 9 [8] 1, 14-19.
53
Cf. IV 9 [8] 1, 20-21.
54
O composto (to\ sunamfo/teron), também chamado to\ koino/n, to\ su/nqeton e to\ z%=on é a combinação
entre o corpo e as faculdades inferiores à razão (isto é, as faculdades vegetativa e sensitiva), formando o corpo
animal (ou animado), o ser vivo. Como o próprio nome já indica, corpo e alma não se fundem num novo ente
resultante de sua união, mas tão somente formam uma espécie de parceria, mantendo seu caráter compósito. (cf.
IV 3 [27] 26, 20-22).
55
Cf. IV 9 [8] 2, 1-8.
56
A partir da comparação com as mãos, poderíamos supor que Plotino deseje mostrar que a alma única tem todas
as percepções, sabe o que se passa com cada ser individual, sem que os seres tenham necessariamente
consciência do que se passa com os demais. Contudo, veremos logo em seguida (linhas 13-22) que Plotino
admite que a alma o tenha consciência de todas as afecções. Encontraremos aqui, pois, uma certa iia de
“inconsciência”.
57
Cf. IV 9 [8] 2, 9-13.
26
Nem mesmo é necessário que a alma tenha consciência ou percepção (ai)/sqhsij)
de tudo que se passa nos compostos. Tome-se como exemplo um ser muito grande: pode ter
uma de suas partes afetada sem aperceber-se disso, em virtude da pequenez da perturbação.
Assim, a percepção não é algo que deva necessariamente ocorrer quando uma parte sofre uma
afecção. Isso, porém, não inviabiliza a idéia de que, ainda assim, ainda que não haja
percepção, o todo é afetado em seu conjunto
58
.
Assim como a forma de homem pode manifestar-se no homem em repouso e no
homem em movimento, também é possível que a mesma alma esteja num homem virtuoso e
em outro vicioso, pois a unidade da alma não exclui a participação na multiplicidade. A pura
unidade caberia, com efeito, à natureza mais elevada (ao Um). A alma é “uma e muitas”,
participando, por um lado, da natureza divisível na esfera dos corpos” e, por outro lado, da
“natureza indivisível”, explica Plotino, tomando frases do Timeu 35 a 1-3.
59
As afecções das
partes nem sempre atingem o todo, mas uma afecção àquilo que é essencial afeta as partes; é
isso que vemos acontecer conosco e é isso também que se passa com o Todo. Sofremos
influências do Todo, e isso é evidente, mas nem sempre nossas contribuições para o Todo são
evidentes
60
.
Fica, pois, respondida a primeira objeção
61
: mesmo sendo una e indivisível, na
esfera dos corpos a alma é divisível, isto é, divide-se nos muitos corpos, de sorte que, a partir
dessa divisão, temos os compostos que não formam uma unidade e que experimentam
diferentes afecções sem que os demais tenham percepção disso. Com efeito, nem mesmo a
alma única tem necessariamente a percepção dessas afecções individuais
62
.
58
Cf. IV 9 [8] 2, 13-22.
59
Cf. IV 9 [8] 2, 23-29.
60
Cf. IV 9 [8] 2, 29-34.
61
Cf. IV 9 [8] 1, 14-19. A primeira objeção, como vimos, apresentava o seguinte problema: se todos formos a
mesma alma, todos, inclusive a alma do mundo, experimentaremos as mesmas afecções.
62
Blumenthal (“Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, p. 59) considera insatisfatória a explicação
formulada neste segundo capítulo, incapaz de dar conta das diferenças individuais quanto às qualidades morais:
“Enquanto ela pode explicar por que você e eu não temos as mesmas afecções e percepções, dificilmente pode,
como pretende Plotino, explicar por que você é bom enquanto eu sou mau (IV, 9 [8], 2, 21-4). As almas
individuais podem ser a base de diferentes funções físicas nas várias partes de um organismo, mas estas partes
variadas o têm qualidades morais contraditórias. Quando Plotino retorna a esta questão sobre o bom e o mau
mais tarde, a resposta que emerge é que a diferença depende da extensão em que alguém se associa com o corpo
(VI 4 [22], 15, 17ss).”. Segundo este autor, Plotino não oferece uma explicação clara para as diferenças entre as
almas individuais e alma do mundo, uma vez que as distinções viriam apenas de suas diferentes atividades. Nem
mesmo as diferenças entre as almas individuais estariam explicadas, pois “em geral, suas individualidades não
parecem ser parte de suas definições, e quando o são, isto surge de sua dependência de uma Idéia do individual
(cf. V 7, 1), e Plotino normalmente não leva em conta estas Idéias”, das quais nem mesmo estaria certo.
27
É sempre útil lembrar que o filósofo está todo o tempo a falar dos “compostos” e é
por essa razão que podem ocorrer afecções na alma. Pois, se a alma é impassível (como
sustenta III 6 [26]), como seria possível haver alguma afecção na alma? A afecção ocorre no
composto, na parte da alma que de alguma maneira se mistura com o corpo e, neste sentido,
possui “acréscimos”, não é mais pura alma. Trata-se, portanto, dos corpos animais e, neste
sentido, é possível dizer que as almas sejam partes da alma do mundo, pois as almas dos seres
vivos derivam da natureza, que é a parte inferior da alma do mundo.
O terceiro capítulo enfrentará a segunda objeção
63
: como explicar as diferentes
faculdades da alma em cada ser? Inicialmente, Plotino busca apoio na idéia de uma simpatia
entre as almas: a compaixão (o sofrimento com a dor dos outros) e o alegrar-se com o bem
dos outros só podem ter lugar se houver algum compartilhamento de experiências. Do mesmo
modo, atos mágicos e encantamentos podem produzir efeito em virtude da unidade da
alma
64
. Mas o verdadeiro enfrentamento do problema vem a seguir. “Como, então, se a
alma é única, uma alma é racional (logikh/), outra irracional (a)/logoj), e outra ainda
vegetativa (futikh/)?”
65
A resposta encontra-se na dupla natureza da alma
66
: no nível
racional, ela é absolutamente indivisível; em outro vel, porém, apresenta uma natureza
divisível pelos corpos, que supre a percepção sensorial, uma das potências da alma. Outra
potência da alma é a de fabricar corpos
67
. Com efeito, várias potências da alma, a qual,
nem por isso, deixa de ser uma, a exemplo do que ocorre com uma semente que, mesmo tendo
várias potências e vindo a ser muitas coisas, é apenas uma
68
. Assim, o problema resolve-se
pela compreensão das potências da alma: racional (indivisível) e as potências nos corpos
(divididas), quais sejam, sensitiva e vegetativa
69
. Voltaremos a este ponto no capítulo
dedicado à investigação sobre a natureza da alma
70
.
Ora, se a alma possui todas essas potências, por que elas o se manifestam em
tudo? Em outras palavras, por que seres em que a potência racional não está presente? Ou
então, por que seres, como as plantas, em que nem mesmo a potência sensitiva se
63
Cf. IV 9 [8] 1, 20-21.
64
Cf. IV 9 [8] 2, 1-9.
65
IV 9 [8] 3, 10-11: Pw=j ou)=n, ei) mi/a, h( me\n logikh/, h( de\ a)/logoj, kai/ tij kai\ futikh/;
66
Cf. IV 9 [8] 2, 25-29.
67
Fica claro agora que Plotino está falando da alma ligada aos corpos. A divisão entre os corpos somente é
possível no nível inferior da alma, que exerce as faculdades vegetativa e sensitiva.
68
Cf. também V 9 [5], 6.
69
Cf. IV 9 [8] 3, 11-19.
70
Cf. p. 71-87, onde estudamos as diversas faculdades da alma.
28
manifesta? Tome-se o caso da alma (que sabemos ser uma) no corpo: a potência vegetativa,
por estar ligada à alma do mundo, está em todas as partes (até mesmo onde não há sensação).
Mas o é o que ocorre com as demais potências, que, quando incorporadas, não manifestam
uma unidade: as partes experimentam diferentes sensações e não é todo o corpo que dispõe da
razão. Contudo, afirma Plotino, a unidade continua existindo, tendo simplesmente sido
mascarada pelo corpo; esta unidade se mantém (ainda que não manifestada), de modo que, ao
perecer o corpo, a alma retira-se dele e retorna à unidade.
71
Por que a potência nutritiva não provém de nossa própria alma, mas da alma do
mundo? Porque um caráter de necessidade na natureza: a potência nutritiva é própria da
alma do mundo, ou seja, da natureza, e produz necessariamente.
72
Como a alma do mundo
produz os corpos, não razão por que deveríamos produzir aquilo que foi produzido pelo
todo. Os produtos da alma vegetativa, porém, são passivos, sofrerão as sensações sem emitir
qualquer julgamento. O que é propriamente individual é a percepção das afecções - próprio da
potência sensitiva - e os julgamentos intelectuais - próprios da potência racional
73
.
Respondidas as objeções, o quarto capítulo retoma a tese da unidade das almas e
procura fundamentá-la na unidade de proveniência das almas, como fora aludido
anteriormente
74
. Que as almas sejam uma só, nada de espantoso aí. Esse foi o trabalho dos
segundo e terceiro capítulos, que procurou afastar a incredulidade a esse respeito e aproximar
o leitor da aceitação dessa idéia. A questão agora tratará do sentido em que se deve entender
essa unidade, do modo segundo o qual as almas formam uma unidade. São uma porque
provêm de uma alma ou porque são de fato uma?
75
Veremos que, neste capítulo, Plotino
explicará a unidade pela unidade de origem, mas a unidade ontológica não está descartada e
dela tratará o quinto capítulo.
Supondo que as almas tenham sua origem em uma única alma, como se dará esse
processo de formação das almas? A alma original permanecerá um todo, mesmo produzindo
uma multiplicidade de almas, ou ela se dividirá? Como poderia permanecer a mesma,
produzindo várias almas?
76
Plotino invoca a ajuda divina para afirmar que deve haver uma
71
Cf. IV 9 [8] 3, 19-24.
72
A produção necessária da natureza origina-se diretamente da contemplação ininterrupta que a alma do mundo
dirige para o Intelecto. Contemplando as realidades inteligíveis, a alma do mundo produz a totalidade dos seres
sensíveis.
73
Cf. IV 9 [8] 3, 24-29.
74
Cf. IV 9 [8] 1, 10-13.
75
Cf. IV 9 [8] 4, 1-3.
76
Cf. IV 9 [8] 4, 3-6.
29
que seja primeira, se de fato são muitas, e as muitas devem provir desta”.
77
É bastante
provável que esta invocação divina seja um reconhecimento do próprio filósofo acerca da
dificuldade do problema da unidade de almas e pluralidade de indivíduos discretos
78
.
Entretanto, mais do que a humilde aceitação da dificuldade da questão, talvez seja possível
enxergar a invocação do próprio testemunho de Deus: todo ser supõe algo que lhe seja
anterior; Deus seja ele o Um ou o Noûs, isso não importa agora é anterior a nós. A
invocação a Deus seria, pois, um recurso para lembrar-nos que todos nós temos nossa origem
em algo que nos antecede.
Plotino propõe uma hipótese inicial para esta alma anterior a todas as almas
individuais: supõe que ela seja um corpo. Neste caso, as almas formadas a partir de sua
divisão seriam completamente diferentes de sua origem. Se houvesse, porém, uma
uniformidade (homeomería) nessa alma anterior, a forma das partes seria semelhante à forma
da alma original, as diferenças residindo unicamente na massa corporal. Aqui é preciso
verificar onde se localiza a essência de alma (to\ yuxai\ ei)=nai)
79
, aquilo que a define como
alma: se estiver na massa, as partes da alma diferirão (já que diferem quanto à massa
corporal); se, porém, sua essência localizar-se na forma, não haverá qualquer diferença
entre as almas formadas e a alma original, assemelhando-se todas elas pela forma que lhes é
conferida pela essência de alma. Portanto, caso a essência de alma encontre-se em sua forma,
poderemos afirmar a existência de uma única alma nos diferentes corpos. Poderemos dizer
ainda mais: antes dessa alma única, presente nos diferentes corpos, existe uma Alma que não
está na pluralidade dos corpos. Trata-se da própria Forma de Alma, a Alma Hipóstase, que
operaria como um “anel-selo”, ao passo que as múltiplas almas seriam como impressões em
diferentes pedaços de cera deste “anel-selo”.
80
Na hipótese inicial, de alma corpórea cuja essência localiza-se na massa, a divisão
esgotaria a alma original. Não é, porém, o que ocorreria no segundo caso, de alma incorporal.
E se a alma fosse somente uma afecção (pa/qhma), e não uma essência (ou)si/a)? Ainda
assim, é possível conceber uma qualidade manifestando-se em diversos entes, a partir de algo
único. Do mesmo modo, também no caso de a alma ser um composto de afecção e ousía,
77
IV 9 [8] 4, 7-8: leg/wmen ou)=n qeo\n sullh/ptora h(mi=n gene/sqai parakale/santej, w(j dei= me\n
ei)=nai mi/an pro/teron, ei)/per pollai/, kai\ e)k tau/thj ta\j polla\j ei)=nai.
78
Esta é a leitura de Blumenthal. Cf. “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus”, p. 59.
79
IV 9 [8] 4, 14.
80
Cf. IV 9 [8] 4, 9-21.
30
poderíamos conceber sua manifestação em múltiplas coisas a partir da unidade
81
. A tese de
Plotino, porém, é que a alma é uma essência incorpórea, o que torna sua concepção
plenamente aceitável.
82
Com efeito, a tese plotiniana estaria descartada se a alma fosse
corpórea.
O quarto capítulo mostrou que, se a alma for uma substância incorpórea, tal como
a concebe Plotino, é perfeitamente plausível supor uma origem única para todas as almas, ou
antes, uma única alma que se divide entre os corpos. O quinto capítulo procurará enfrentar o
problema da unidade na multiplicidade: se a alma é apenas uma, como pode estar em muitos?
Como é possível que uma única e mesma essência esteja em muitas essências? Como este
talvez seja um ponto indemonstrável, o interesse de Plotino parece centrar-se muito mais em
apresentar a possibilidade de que pode ser assim do que em efetivamente demonstrá-lo. Sua
preocupação é afastar a incredulidade: é possível que a unidade se manifeste na multiplicidade
e temos exemplos claros disso: a semente e a ciência.
São apresentadas inicialmente duas maneiras em que a unidade pode se apresentar
na multiplicidade: 1) como um todo, em cada um dos muitos; 2) como uma unidade de origem
que se mantém inalterada
83
. Plotino não escolhe entre essas duas possibilidades; com efeito,
ambas parecem descrever a unidade na multiplicidade. Sua preocupação volta-se para a
eliminação da descrença do leitor: \ / j ) /
84
. A unidade na multiplicidade é um
fato e temos como provar sua existência. Tome-se o caso da ciência: é um todo que
permanece inalterado, mesmo possuindo muitas partes derivadas desse todo. Ou tome-se o
exemplo da semente: é um todo cujas partes derivadas formam cada qual um todo. Pode-se
objetar que, na ciência, a parte não é o todo; isto, porém, resolve-se por meio da distinção
entre ato (e)ne/rgeia) e potência (du/namij). Se tomarmos uma parte da ciência (em ato), as
demais partes também estarão presentes, em potência, naquela parte em ato. E na ciência
total, todas as partes estão, de certo modo, em ato ao mesmo tempo. Nas partes, nem tudo está
em ato, mas cada parte tem em si a potência de alcançar o todo. Um teorema não pode ser
isolado dos demais e contém todos eles em potência.
85
81
Cf. IV 9[8] 4, 21-27.
82
Devemos observar que não se trata de efetuar uma demonstração, de fato. O máximo que se pode pretender,
nestes assuntos, é não ser levado a algum absurdo. É com o intuito de provar a plausibilidade de sua tese que
Plotino se empenha.
83
Cf. IV 9 [8] 5, 1-3.
84
IV 9 [8] 5, 8.
85
Cf. IV 9 [8] 5, 9-26.
31
O tratado encerra-se prestando contas da razão de nossa incredulidade acerca
disso: “nossa fraqueza” (dia\ th\n h(mete/ran a)sqe/neian) e a obscuridade causada pelo
corpo (dia\ to\ sw=ma e)piskotei=tai). No mundo inteligível, porém, conclui o autor, tudo
isso é claro.
86
A descrição de Alma-Hipóstase dada neste capítulo, ainda que bastante resumida,
parece conter o essencial da questão:
Aquela <Alma>, então, é uma, mas as muitas vão como uma para ela, que se
a si mesma para a multiplicidade e que não se dá; pois é competente para
oferecer-se ao todo e permanecer uma; pois é capaz de ir para o todo e, ao
mesmo tempo, o está completamente separada de cada um; é a mesma
coisa, portanto, em muitos
87
.
A Alma se para a multiplicidade na medida em que as várias almas derivam
dela, seja a alma do mundo que fornecerá a potência vegetativa aos corpos, sejam as almas
individuais que proverão a faculdade sensitiva aos animais (e, neste nível, também os homens
são animais). Mas, ao mesmo tempo, a Alma não se à multiplicidade, na medida em que
permanece sempre a mesma, sem ser diminuída em nada e mantendo sua essência racional
indivisa, pois a faculdade racional não é própria do corpo animal, mas da alma.
O tratado IV 9 [8] é bastante sintético e, poderíamos dizer, direto, objetivo. Tudo
que almeja é estabelecer a tese da unidade da alma, e, apoiado em seu caráter incorporal, faz
uso, na medida do possível, de analogias que visam não exatamente a obtenção de provas para
sua tese, mas sobretudo o afastamento da descrença
88
, incitando o leitor a aceitar esta
possibilidade. Com este intuito, Plotino não entra na questão da origem das almas, não
uma palavra final sobre o assunto. Ao contrário, opta por oferecer possibilidades de escolha
ao leitor, as quais, em qualquer dos casos, implicarão a unidade da alma. Assim, qualquer que
seja a origem das almas individuais, quer seja na Alma Hipóstase, quer seja na alma do
mundo, o resultado será sempre o mesmo: todas as almas serão uma.
86
Cf. IV 9 [8] 5, 27-29.
87
IV 9 [8] 5, 3-7: e)kei/nh me\n ou)=n mi=a, ai( de\ pollai\ ei)j tau/thn w(j mi/an dou=san e(auth\n ei)j
plh=toj kai\ ou) dou=san! i(kanh\ ga\r pa=si parasxei=n e(auth\n kai/ me/nein mi/a! du/natai ga\r ei)j
pa/nta a(/ma kai\ e(ka/stou ou)k a)pote/tmhtai pa/nth! to\ au)to\ ou)=n e)n polloi=j.
88
Este tratado parece esperar do leitor descrença e rejeição, encontrando-se permeado por expressões tais como
“não é despropositado nem deve ser recusado” (IV 9 [8] 2, 20: ou)k a)/topon ou)de a)pognwste/on) ou “que
ninguém duvide” (IV 9 [8] 5, 7: mh\ dh\ tij a)pistei/tw).
32
Mas esta indecisão ou melhor, este descaso, a nosso ver, deliberado com a
origem das almas - gera problemas para a interpretação da filosofia plotiniana. Com efeito, se
as almas individuais provierem da alma do mundo, estará imediatamente posta em cheque a
possibilidade de autonomia humana, que a alma do mundo seria a grande “administradora
e os homens, como partes, estariam simplesmente sujeitos a seu modo de ordenação. No
entanto, este problema havia sido resolvido em um dos primeiros tratados plotinianos: III 1
[3], “Sobre o Destino”, estabelecera as almas individuais como princípios causais, ao lado da
alma do mundo. Fica assim corroborada a idéia de que, de fato, o se pode aceitar a origem
das almas na alma do mundo, pois aqui, em IV 9 [8], o filósofo tinha em mente este ponto,
tendo-o ignorado propositalmente para melhor afirmar sua tese da unidade da alma. Em IV 3
[27], Plotino de pôr um ponto final na questão sobre a origem das almas, afirmando com
clareza o princípio de todas, inclusive da alma do mundo, na Hipóstase. É o que pretendemos
mostrar a seguir.
33
I. 3. A ORIGEM DAS ALMAS NA ALMA HIPÓSTASE: IV 3 [27] 1-8
A diversidade de termos que Plotino confere à alma acaba por gerar dificuldades
interpretativas acerca da origem e unidade das várias espécies de alma. Pois, se a alma é una,
de que modo surgem tantos aspectos da alma?
89
Parece ser preciso, portanto, definir em
primeiro lugar quantas são as espécies de alma. Não dúvida quanto à existência das almas
individuais; a Alma Total e a alma do mundo, porém, parecem por vezes confundir-se, de
modo que é preciso notar com clareza se Plotino fala em dois ou em três tipos de alma, cada
qual distinto dos demais.
Se há unidade na alma, qualquer que seja o número de almas, deve haver uma que
seja anterior às demais e que as unifique em essência e origem. É esta a própria base
argumentativa do tratado sobre a unidade da alma
90
, que acabamos de examinar, mas esta
afirmação apresenta-se também em outros passos das Enéadas
91
. Sendo assim, a unidade da
alma implicará na derivação de nossas almas de alguma outra alma, que pode ser a alma do
mundo ou a hipóstase Alma. Para a definição da origem de nossas almas é, pois,
imprescindível estabelecer se alma do mundo e Alma Total são ou não a mesma entidade. Por
essa razão, o tratado IV 3 [27] 1-8 será examinado com vagar, que é nele que o filósofo
oferece a resposta mais clara e incisiva acerca dessa questão. Podemos, entretanto, notar
desde que Plotino fala de uma “outra alma” além da “alma do mundo”
92
, o que nos leva a
crer que alma do mundo e Alma Total diferem. Ademais, um passo das Enéadas mostra
claramente a diversidade dos termos, que não se identificam: “Ora, por que a Total (h( o(/lh) e
a do mundo (h( tou= panto/j) terão amor real, mas não a de cada um de nós, e também a
<alma> em todos os outros seres vivos?”
93
. De todo modo, é nos oito capítulos iniciais de IV
3 [27] que a questão fica completamente esclarecida, como veremos.
Porfírio dividiu em três partes um grande tratado, “A respeito das aporias sobre a
alma”, atribuindo-lhes numeração cronológica como 27
o
, 28
o
e 29
o
tratados. O 27
o
tratado ou
89
Ademais, não bastassem os diferentes termos para tratar das almas individuais, da alma do mundo, das almas
dos astros, há ainda diversos níveis de alma com variadas potências, e Plotino chega a falar até mesmo em certo
“vestígio” da alma.
90
Cf. IV 9 [8] 1, 10-13; 4, 15-18.
91
Cf. IV 8 [6] 3, 11-12; III 9 [13] 3, 4-5.
92
Como vimos nas pp. 15-16 desta dissertação. Cf. especialmente IV 4 [28] 32, 8-11.
93
III 5 [50] 4, 2-4: h)\ dia\ ti/ h( me\n o(/lh e(/cei kai\ h( tou= panto\j u(postato\n e)/rwta, h( de\ e(ka/stou
h(mw=n ou)/, pro\j de\ kai\ h( e)n toi=j a)/lloij z%/oij a(/pasi.
34
IV 3 na edição de Porfírio é bastante extenso, contendo 32 capítulos. Como informa seu título,
Plotino busca esclarecer embaraços, “passagens difíceis” relacionadas à doutrina da alma, e
isso inclui o exame de outras doutrinas
94
. No que tange às dificuldades acerca da origem das
almas, os interlocutores principais parecem ser os estóicos
95
, com os quais se estabelece um
diálogo nos oito primeiros capítulos sobre o tema que nos interessa mais especificamente.
As primeiras linhas tratam de exaltar a dignidade desta investigação, pois, afinal,
o estudo da alma serve como ponto de partida para outras duas espécies de exame: por um
lado, dos corpos e de tudo que existe no mundo sensível, já que a alma é o princípio originário
de toda natureza, e, por outro lado, das realidades inteligíveis superiores, das quais a alma
procede e em direção às quais é capaz de se voltar
96
. A alma, com seu estatuto intermediário
entre o sensível e o inteligível, servirá, assim, como ponto de partida para o conhecimento da
realidade em geral. E, neste momento, é possível detectar a identidade entre “nós” termo
freqüentemente empregado por Plotino - e a alma, pois investigar a alma significa “obedecer à
exortação do deus que recomenda conhecermos a nós mesmos”
97
. Nota-se uma forte
proximidade com Platão, que propusera a identificação do homem o com seu corpo, mas
com sua alma. Com efeito, a fórmula inscrita no Oráculo de Delfos, “conhece-te a ti mesmo”,
fora retomada por Platão em sua Apologia de Sócrates
98
e no Alcibíades Maior, 128d - 133c.
Neste diálogo, para responder a uma questão moral (como tornar-se melhor, mais virtuoso),
Platão percebe ser preciso, em primeiro lugar, responder a uma questão psicológica: o que é
“o próprio si mesmo” (auto\ to\ au)to/). Assim, elabora a distinção entre o que é nosso e nos
94
Neste sentido, Plotino acompanha Aristóteles, que considerara a necessidade de coletar as opiniões
precedentes, aproveitando-as ou descartando-as conforme a qualidade de sua formulação: “No exame da alma, é
necessário, ao mesmo tempo em que se expõem as dificuldades cuja solução deverá ser encontrada à medida que
se avança, recolher as opiniões de todos os predecessores que afirmaram algo a respeito dela, aproveitando-se o
que está bem formulado e evitando aquilo que não está.” (De Anima I 2, 403b20-23, tradução de Maria Cecília
Gomes dos Reis). Cf. também Metafísica B 1, 995 a27.
95
Embora a maioria dos estudiosos concorde com a tese de que os interlocutores sejam os estóicos, não
unanimidade sobre a questão, pois é possível enxergar aqui também uma resposta aos gnósticos, a Numênio, a
Amélio e outros. Helleman-Elgersma (Soul-sisters. A commentary on Enneads IV 3 (27), 1-8 of Plotinus, p. 104-
131) apresenta um painel geral sobre o problema, optando pela interlocução com Amélio. De nossa parte, não
entraremos aqui nesta controvérsia, acompanhando simplesmente a opinião predominante de interlocução
estóica, a qual, para os nossos fins, é bastante adequada.
96
uma coincidência parcial com Aristóteles, que o início do De Anima faz o elogio do estudo da alma,
considerando a opinião de que conhe-la resulta num maior conhecimento da natureza, pois a alma é como um
princípio dos animais”. (I 1, 402 a1-9). Mas a semelhança com Aristóteles pára aí, pois, em Plotino, o
conhecimento da alma serve também para o conhecimento do Intelecto e do Um, realidades superiores
inteligíveis.
97
IV 3 [27] 1, 8-10: peiqoi/meqa d” a)\n kai\ t%= tou= qeou= parakeleu/smati au(tou\j ginw/skein
parakeleuome/n% peri\ tou/tou th\n e)ce/tasin poiou/menoi.
98
A Apologia de Sócrates faz uso desta exortação, ao apresentar os motivos da investigação filosófica de
Sócrates, o que o levou ao reconhecimento de sua própria sabedoria: a percepção de sua ignorância.
35
pertence e, por outro lado, o que é “nós mesmos”. O “si mesmo” separa-se de tudo que é
“nosso”: de nosso nome, de nossa história, de nossa personalidade, de nosso corpo. Ainda que
seja um diálogo de juventude
99
o que nos afasta a hipótese de que Sócrates estaria em busca
da forma inteligível de si
100
-, a busca de “si mesmo” remete a um “si mesmo” além do “eu”
empírico. O primeiro ganho que se obtém é a descoberta de que o homem é a alma. Com isso,
afirma-se o que é cada “si”, cada um de nós; é preciso, porém, alcançar o que é o “próprio si
mesmo”. Não se está à cata do que seja cada indivíduo em sua diversidade, mas daquilo que
escapa a todas as diferenças individuais. O conhecimento do que sou como indivíduo é
conseqüência de saber o que é “o próprio si mesmo”. Para isso, o caminho recomendado é
olhar para outra alma
101
, e para um local preciso, para o melhor da alma, onde se localiza o
pensamento (no/esij) e a reflexão (fro/nesij) região que se assemelha ao divino.
Deste diálogo, Plotino retém elementos relevantes para o desenvolvimento de sua
doutrina: em primeiro lugar, a identificação entre homem e alma; em seguida, a distinção
entre o indivíduo, ou o “si” individual, e o próprio si mesmo”, que representa o melhor da
alma. Esta distinção entre nossa personalidade e o verdadeiro “eu”, assemelhado ao divino,
faz-se presente como pano de fundo ao longo de toda doutrina plotiniana da alma, como
procuraremos evidenciar ao longo deste trabalho. Há, porém, uma importante diferença em
relação a Platão: para este, o conhecimento de si exige que a alma olhe para outra alma. Para
Plotino, ao contrário, o conhecimento de si é solitário, direto e imediato. Surge com o
reconhecimento de uma interioridade, com a separação entre o si mesmo e todo o restante
exterior. Contrariamente a Platão, Plotino dique o conhecimento de si pede uma conversão
(e)pistrofh/), não para os outros, mas para si mesmo.
Pode-se afirmar que o grande anseio da busca plotiniana é a apreensão do
“espetáculo adorável do Intelecto”
102
. Deste modo, compreender a alma nada mais é que
compreender aquilo por meio do qual se obtém o objeto de sua aspiração. A meta final será a
99
Não levamos em conta a questão sobre a autenticidade deste tratado. Plotino certamente leu-o como obra de
Platão.
100
Este diálogo é considerado anterior ao Fédon, onde Platão fala pela primeira vez das formas inteligíveis.
101
Platão baseia-se no princípio de que o conhecimento faz-se de semelhante para semelhante. Esta concepção,
segundo a qual o conhecedor deve possuir a mesma natureza do conhecido, está presente na doutrina de
Empédocles, como observou Aristóteles (cf. De Anima I 2, 404b11ss), que nota também sua presença no Timeu
de Platão. Aristóteles refutará esta doutrina em De anima II 5, 417 a 2-9, ao demonstrar sua falsidade no que
tange aos sentidos. Aristóteles relata ainda que, a partir desta tese, elaborou-se a seguinte dedução: como a alma
conhece todas as coisas, ela deve ser composta dos princípios de todas as coisas (cf. De an. I 2, 405 b 15-17).
Contrariamente a isso, Aristóteles demonstrará que, para que possa conhecer tudo, o intelecto deve ser sem
mistura, ou seja, não deve ser composto de todas as coisas. Cf. De an. III 4, 429 a15-18.
102
IV 3 [27] 1, 11-12: ... to/ ge e)rasto\n poqou=ntej labei=n qe/ama tou= nou=.
36
eliminação na alma de tudo que a separa do Intelecto, mas o caminho para isso passa
necessariamente pelo conhecimento da alma.
I. 3. 1. Os argumentos dos adversários: IV 3 [27] 1
Toda a argumentação desenvolvida desde o segundo até o sétimo capítulo de
nosso tratado procura refutar uma tese apresentada no primeiro capítulo, segundo a qual a
origem das almas humanas seria a alma do mundo. Ao iniciar a exposição dos cinco
argumentos a serem combatidos, o filósofo é bastante claro em sua disposição de
enfrentamento:mas agora retornemos aos que dizem que também as nossas almas provêm da
alma do mundo
103
. É difícil afirmar com certeza quem são “os que dizem” (tou\j le/gontaj),
se é de fato a escola estóica ou se poderiam ser os gnósticos ou até mesmo alguém do próprio
círculo de alunos de Plotino.
104
De todo modo, é fato que para a doutrina estóica as almas
humanas provêm da alma do mundo
105
.
Plotino leva em conta basicamente cinco argumentos adversários. O primeiro
deles
106
considera insuficiente a argumentação de que as almas humanas não seriam partes da
alma do mundo simplesmente por possuírem as mesmas faculdades que esta (inteligibilidade
e capacidade de expansão semelhante). Com efeito, tais adversários podem responder a isto
do seguinte modo: as partes são idênticas ao todo; ora, se nossas almas possuem as mesmas
faculdades da alma do mundo é porque são partes da alma do mundo.
O segundo argumento
107
invoca Platão, o qual, para defender a idéia de que o
Todo possui alma, teria se apoiado na afirmação de que, assim como nossos corpos são partes
do corpo do mundo, também nossas almas são partes da alma do mundo
108
.
103
IV 3 [27] 1, 16-18: nu=n de\ pa/lin e)pani/wmen e)pi\ tou\j le/gontaj e)k th=j tou= panto\j yuxh=j kai\
ta\j h(mete/raj ei)=nai.
104
Para nossos objetivos, não parece ser necessário o estabelecimento definitivo da identidade dos adversários.
Esta, aliás, é questão bastante controversa. Cf. HELLEMAN-ELGERSMA, Soul-sisters. A commentary on
Enneads IV 3 (27), 1-8 of Plotinus, p. 104-131, onde ao lado da solução proposta pelo autor, apresenta-se ampla
perspectiva histórica do problema.
105
Cf. os argumentos estóicos em SVF I, 495 e II 774.
106
Cf. IV 3 [27] 1, 18-22.
107
Cf. IV 3 [27] 1, 22-26.
108
Cf. Filebo 30 a 5-6 e Timeu 30 b8. Plotino o cita qualquer passagem de Platão, mas é provável que esteja se
referindo ao Filebo, pois é aí que Sócrates, partindo da premissa de que nosso corpo possui alma, leva a concluir
que esta alma pode ter sido recebida porque o corpo do Todo também é animado e possui características
idênticas ao nosso. O Timeu, por sua vez, considera que este mundo é um ser vivo dotado de alma e inteligência.
37
O terceiro argumento é aquele que se pode designar como “argumento
astrológico” e que buscaria apoio no Timeu
109
: a evidência de que nossas almas sofrem
influência da rotação do mundo é indício de sua origem na alma do mundo. Vejamos o texto:
E [afirmarão] estar dito e suficientemente demonstrado que nós
acompanhamos o movimento circular do mundo, tomando daí nossos
caracteres e destinos e, tendo nascido dentro dele, recebemos nossa alma
daquele que nos envolve.
110
Aqui não parece haver dúvida sobre a identidade dos adversários de Plotino. Pois
é a doutrina estóica que prega a derivação de nossos temperamentos a partir do ambiente, bem
como as influências cósmicas como determinantes para os acontecimentos em nossas vidas.
Se nascemos no Todo, estamos sujeitos às influências do Todo; ora, se o Todo é regido pela
alma do mundo, também nós somos regidos por ela, qual partes suas.
O quarto argumento
111
é uma inferência: assim como cada parte de nós recebe
nossa alma, do mesmo modo nós, enquanto partes do Todo, participamos da “alma total” (th=j
o(/lhj yuxh=j). E aqui não podemos deixar de apontar um problema causado pela imprecisão
do próprio Plotino. Todo o capítulo procura elencar argumentos “daqueles que dizem que
também as nossas almas provêm da alma do mundo”
112
. E é contra estes que os próximos
capítulos combaterão. Veremos que o trabalho do filósofo consistirá em desfazer a crença na
derivação de nossas almas junto à alma do mundo e fazer notar que nossa origem é a
Hipóstase Alma, a qual o se confunde com a alma do mundo. Muito bem, se é assim, não
sentido em inserir na argumentação dos oponentes a afirmação de que possamos ser partes
da “alma total”, pois, sabemos, esta alma total refere-se na grande maioria das vezes à Alma
Hipóstase. Não obstante, é bem isso que fez nosso filósofo, talvez por descuido o vemos
109
Helleman-Elgersma (Soul-sisters. A commentary on Enneads IV 3 (27), 1-8 of Plotinus, p. 197-8) informa ser
esta a opinião de Henri e Schwyzer acompanhados de Armstrong, para quem a base do argumento estaria em
Timeu 90 c8-d1: “Os movimentos que são aparentados àquilo que de divino em nós são os pensamentos e as
revoluções do universo. Helleman-Elgersma nota, porém, haver outras possibilidades: Fedro 246-248,
conforme a hipótese de Bouillet e de Bréhier; segundo Bouillet, esta passagem poderia também ligar-se a II 3
[52] 9, onde há referência à República X, 616 ss. e ao Timeu 41-44. O resumo deste passo do Timeu esem 69c-
d e 90 c-d.
110
IV 3 [27] 1, 26-30: kai\ to\ sune/pesqai de\ h(ma=j t$= tou= panto\j perifor#= kai\ lego/menon kai\
deiknu/menon e)nargw=j ei)=nai, kai\ ta\ h)/qh kai\ ta\j tu/xaj e)kei=qen lamba/nontaj ei)/sw te
genome/nouj e)n au)t%= e)k tou= perie/xontoj h(ma=j th\n yuxh\n lamba/nein.
111
Cf. IV 3 [27] 1, 30-33.
112
IV 3 [27] 1, 17-18: ... tou\j le/gontaj e)k th=j tou= panto\j yuxh=j kai\ ta\j h(mete/raj ei)=nai.
38
outra explicação , utilizando o termo o(/lhj yuxh=j, ao invés de alma “do todo” (tou=
o(/lou).
Finalmente, no quinto argumento
113
, os adversários poderiam citar literalmente
Platão: “toda alma cuida de tudo que é sem alma”
114
. Platão não teria, então, deixado nada
fora da alma, ou seja, nada haveria fora dos cuidados da alma do mundo, que é a alma
encarregada de cuidar dos corpos.
I.3.2. As respostas aos adversários: IV 3 [27], 2-7
Plotino passa agora a refutar cada um dos argumentos propostos. O segundo
capítulo dará conta do primeiro argumento. Ao se afirmar que a alma do mundo e as almas
individuais são de espécies semelhantes (o(moeidh=) e pertencentes a um gênero comum
(ge/noj koino\n), com isso se impede que as almas individuais sejam partes da alma do
mundo. Vale notar que Plotino não discorda da afirmação de que nossas almas sejam de
espécie semelhante
115
à da alma do mundo e que pertençam ao mesmo gênero; pelo contrário,
em V 1 [10] 2, 44-47 afirmara claramente a semelhança de espécie entre as almas.
Aproveita-se, assim, da admissão adversária da semelhança de espécies das almas para fazer
valer a relação lógica entre espécies e gênero. A argumentação é muito sintética, mas o
parece deixar margem para dúvidas: se as almas são todas pertencentes a um gênero único,
então são espécies (ei)/dh) compreendidas no gênero que as engloba. Almas individuais o
podem, portanto, ser consideradas partes da alma do mundo, uma vez que são duas espécies
pertencentes a um mesmo gênero. Com efeito, prossegue Plotino, o correto seria dizer que
apenas uma única alma e que cada alma é toda alma
116
, não podendo esta alma única ser dita
alma de alguma coisa, pois é uma substância (ou)si/a)
117
. Trata-se da Alma Hipóstase. Plotino
113
Cf. IV 3 [27] 1, 33-37.
114
Cf. Fedro 246 b6: yuxh\ pa=sa panto/j e)pimelei=tai tou= a)yu/xou.
115
Espécie semelhante não significa, pom, a mesma espécie. São duas espécies distintas, embora apresentem
semelhanças em virtude de sua origem única.
116
Como foi visto, esta doutrina da unidade da alma é tratada em IV 9 [8].
117
Ousía entendida aqui no sentido aristotélico, como aquilo que não é dito de nada senão de si mesmo (cf.,
entre outros textos de Aristóteles, Categorias 5, 2a11-13 e 3a7-8). Esta noção de alma como ousía é introduzida
em IV 7 [2] 8
4
, 14, onde os dois sentidos platônico e aristotélico parecem presentes, já que estabelece a alma
como parte das realidades inteligíveis e, ao mesmo tempo, situa-a como princípio explicativo de todo o corpóreo.
Blumenthal (Plotinus’ Psychology, p. 11) observa também que a alma como ousía havia sido utilizada por
Aristóteles no Eudemus (fr. 45 Rose
3
= fr. Ross).
39
diferencia, portanto, entre o gênero e as espécies de alma. O gênero Alma é absolutamente
Alma, sem vinculação alguma com os corpos. Quanto às almas, que dependem desta Alma
para existir (a)nartw=sin)
118
- e aqui inclui-se até mesmo a alma do mundo -, todas elas são
alma de alguma coisa e são “contingentes”, pois vêm a ser em um dado momento e por
acidente
119
. E como pertencem ao gênero Alma, neste sentido, pode-se dizer que as almas são
“partes”
120
.
A afirmação da contingência das almas particulares, tanto das almas individuais
quanto da alma do mundo, remete-nos à observação que fizemos relativa à influência do
Alcibíades Maior na doutrina de Plotino. A essência das almas particulares situa-se num nível
anterior à diversidade de cada uma das almas. Não se definem como almas por estarem
ligadas a corpos; ao contrário, é na absoluta desvinculação dos corpos que encontramos o
verdadeiro ser de cada alma: ser eterno, imutável, que o vem a ser” em algum momento.
Esta essência das almas particulares é uma só, única para todas: a Hipóstase Alma.
Expõe-se aqui o fundamento que embasará todo o restante da argumentação
plotiniana: há uma alma única, a Alma Total, sem qualquer associação com os corpos e que se
configura no gênero Alma, com todas as demais almas sendo espécies deste gênero único, de
algum modo ligadas aos corpos.
Neste momento, faz-se necessária uma observação. A absoluta independência da
Alma Total em relação aos corpos, de sorte que seja simplesmente Alma e o “alma de
algo”, bem como sua qualificação como “gênero”, com as almas particulares constituindo
suas espécies, tudo isso pode levar a uma compreensão, a nosso ver, equivocada da Alma.
Uma vez que esta existência absoluta torna-se de difícil entendimento para nosso raciocínio
discursivo, tendemos a supor a Alma Total como uma entidade inexistente, ou, talvez,
existente apenas em potencial, atualizando-se em cada uma das almas particulares. É o que
observamos, por exemplo, na explicação de George Wald acerca da Alma Hipóstase: O que
é, então, a Alma Total? Não é a alma cósmica, pois esta também é uma alma particular (IV 3
[27] 2, 57-58). Penso que podemos dizer que ela é aquilo sem o que não há almas individuais,
118
IV 3 [27] 2, 5.
119
IV 3 [27] 2, 8-10: kai\ ga\r o)rqw=j e)/xei mh\ pa=san th\n yuxh\n tinoj ei)=nai ou)si/an ge ou)=san, a)ll\
ei)=nai h(\ mh/ tino/j e)stin o(/lwj, ta\j de/, o(/sai tino/j, gi/gnesqai/ pote kata\ sumbebhko/j. “E, com
efeito, é correto que não toda a alma seja de algo, uma vez que ela é, de fato, essência, mas que a que não é
absolutamente de coisa alguma seja, e que as outras, todas quantas são de algo, venham a ser em algum
momento por acidente.
120
Cf. IV 3 [27] 2, 1-11.
40
mas ela própria não existe, exceto nas almas individuais.”
121
Esta interpretação parece
esquecer-se do caráter hipostático da Alma Total: se alguma alma pode ser dita “real” em
pleno sentido é exatamente a Alma Hipóstase, verdadeiro ente derivado diretamente do
Intelecto. O intérprete trata-a como ousía no sentido aristotélico o que, em certo sentido,
pode ser verdadeiro; com efeito, a Alma Total é o substrato e essência de todas as almas
particulares, a partir do qual estas são geradas, constituindo-se como “aquilo em que” todas as
almas particulares subsistem. Contudo, para Plotino, a Alma encerra também o significado
platônico de ousía. Possui vida, sendo “a primeira Alma, que vem em seguida ao Intelecto,
mais próxima da verdade, e ela própria possui a forma do Bem através do Intelecto”
122
.
Trata-se, pois, de ente absolutamente real, vivo, o primeiro da hierarquia psíquica, a partir da
qual são geradas todas as demais almas. É esta Alma que, tendo procedido do Intelecto como
ente indeterminado, executa o ato de conversão para o Intelecto e, contemplando-o, torna-se
um ser determinado e recebe como forma os traços das hipóstases anteriores: do Intelecto
recebe o Ser; do Um recebe o caráter unitário. Com a conversão ao Intelecto, o que era
indeterminado torna-se determinado, constitui-se em “Alma primeira”; com a contemplação,
preenche-se dos conteúdos do Intelecto e torna-se Alma Universal, gerando a multiplicidade
de almas particulares. Deste modo, perfaz-se a estrutura da terceira hipóstase. Assim, se as
almas particulares existem em ato, isto se deve em primeiro lugar à contemplação executada
pela Alma primeira que permite a existência em si da totalidade das imagens do Intelecto.
Retornemos à argumentação de Plotino, passando à reflexão sobre o significado
do termo “parte”. Se as almas podem ser ditas “partes” por pertencerem ao gênero Alma, é
preciso entender o significado de “parte” quando referido a objetos incorpóreos
123
. Como o
primeiro argumento dos adversários fundava-se na idéia de que as almas individuais são
“partes” de uma alma que as engloba, a estratégia de Plotino se fundará na incorporalidade da
alma, pois é em virtude de uma concepção materialista de alma que esta é concebida passível
de ser dividida em porções. Por outro lado, se a alma for admitida como incorpórea, é preciso
observar se algum modo de concebê-la em partes. Para os objetos corpóreos, parte”
refere-se sempre à massa (o)/gkoj) do corpo e não à forma. Assim, por exemplo, a brancura de
121
WALD, Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 160: “What is, then, the All-Soul? It is
not the cosmic soul, for this too is a particular soul (IV.3.2.57-58). I think we can say that it is that without which
there are no individual souls, but it does not itself exist except in the individual souls.” (Grifos nossos).
122
I 7 [54] 2, 6-7: yux$= de\ to\ zh=n, t$= me\n prw/t$ t$= meta\ nou=n, e)ggute/rw a)lhqei/aj, kai\ dia\ nou=
a)gaqeide\j au(th!
123
Para Plotino, a alma é incorpórea e aí se encontra desde uma divergência de base com o estoicismo. Cf.
IV 7 [2] 2-8
3
, onde o filósofo procura demonstrar que a alma não é um corpo, combatendo as concepções
materialistas da alma, e, em especial, a doutrina estóica da alma.
41
uma porção de leite não é uma parte da brancura total do leite, mas é a brancura de uma parte
do leite: “é a brancura de uma porção e não uma porção da brancura”
124
. por este exemplo
pode-se perceber aonde Plotino quer chegar: o podemos falar em parte da brancura”, pois
a brancura está sempre inteira em cada porção; sempre se pode dizer “parte” quanto à massa,
mas a brancura - um incorporal - não se divide em partes. Apenas a quantidade e a massa
podem sofrer algum fracionamento; a forma, porém, apresenta-se por inteiro em cada porção
da matéria. A brancura está toda na porção de leite e não há como separá-la da brancura como
um todo. Como a brancura é uniforme no leite todo, as partes e o todo são o(moeidh=. É o que
ocorre também no caso da alma: a Alma está inteira em cada indivíduo (assim como está
inteira na alma do mundo), e cada alma particular é toda a Alma. As almas e a Alma são
o(moeidh=.
125
Se a Alma não se divide em porções e se ela é incorpórea, em que sentido pode-se
falar de partes da Alma? Para os incorporais, é possível notar três casos em que o sentido de
parte é aplicável: i) para os números, tal como 2 é parte de 10; ii) para os objetos geométricos;
iii) para os teoremas, que são ditos partes de uma ciência. Plotino descarta, em relação à
Alma, o sentido de partes nos dois primeiros casos: a Alma não se divide como as grandezas
e, portanto, seu sentido de “parte” não deve ser entendido no sentido que assume para os
números e as figuras geométricas
126
. Assim, dentre os três sentidos propostos para os
incorporais, o único admissível para a Alma será aquele do teorema como parte de uma
ciência, pois neste caso a divisão representa uma manifestação e atividade de cada parte”,
com cada parte contendo em potência o Todo (sem que este seja jamais diminuído, a despeito
de quantas divisões sejam feitas).
124
IV 3 [27] 2, 17-18: a)lla\ mori/ou me/n e)sti leuko/thj, mo/rion de\ ou)k e)/sti leuko/thtoj!
125
Cf. IV 3 [27] 2, 12-20.
126
Sinteticamente, a argumentação de Plotino é a seguinte: nos dois primeiros casos, a exemplo dos objetos
corpóreos, as partes são menores que o todo, pois são quantidades. Entretanto, o termo “parte” não pode ser
aplicado à alma nestes dois primeiros sentidos, de acordo com os seguintes argumentos: i) a alma não é algo
quantificado (como são os números), como se, por exemplo, a Alma Total fosse o 10 (deka/da) e a alma
individual fosse o 1 (mona/da). A aceitação de que as partes e o todo devem ser o(moeidh= leva à
impossibilidade de que a alma possa seguir o critério da divisão numérica. A prova é feita por redução ao
absurdo: cada unidade deve ser uma alma, caso contrário a Alma Total (o 10”) seria composta de unidades sem
almas, mas fora admitido que Alma Total e almas são o(moeidh=. Neste caso, então, a soma das dez unidades
de alma não formaria algo uno, como deve ser a Alma. ii) A alma não é como as supercies contínuas, não segue
o caso da geometria cujas partes não são necessariamente como o todo, ou onde, no nimo, não é necessário
que todas as partes sejam semelhantes ao todo. Novamente vemos aqui atuante o critério da semelhança de
espécies; iii) A alma também não é como a linha, pois, ainda que a parte mantenha a mesma propriedade da linha
toda, diferencia-se dela pelo tamanho (ou seja, a linha e um trecho dela, mesmo sendo o(moeidh=, não possuem a
mesma magnitude); e como uma diferença de grandeza pode ocorrer em quantidades ou em corpos, a alma
não pode ser quantidades nem corpos, que, como fora admitido anteriormente, todas as almas são semelhantes
e totais (Cf. IV 3 [27] 2, 21-44).
42
Muito bem, [a alma] é parte assim como se diz que um teorema da ciência é
parte da ciência total, a qual, não obstante, continua existente [total], mas sua
divisão é como uma manifestação (profora/) e atividade (e)ne/rgeia) de
cada parte [da ciência]? Num caso como este, cada teorema contém em
potência a ciência total, mas, ainda assim, a ciência é um todo
127
.
As almas estão para a Alma assim como os teoremas estão para a ciência da qual
eles fazem parte. Com esta analogia, entram em jogo os elementos fundamentais que,
juntamente com a relação lógica espécies-gênero formulada, permitirão compreender o
relacionamento entre as almas particulares e a Hipóstase Alma. Cada teorema é uma
determinada manifestação ou enunciação (profora/) da ciência; nem toda a ciência está ali
explicitamente enunciada, apenas parte dela; do mesmo modo, cada alma individual é uma
determinada manifestação ou enunciação da Alma Total, e neste sentido, a alma individual é
parte da Alma Total, pois não manifesta toda a Alma. O conceito aristotélico de ato e potência
esclarece melhor este ponto: cada teorema é a ciência em ato, é uma atividade (enérgeia), mas
não é toda a ciência em ato; com efeito, somente a totalidade de seus teoremas poderia
manifestar a totalidade daquela ciência. Assim também, cada alma particular é a Alma em ato,
sem ser, contudo, toda a Alma em ato. Cada alma é, em potência, a Alma Total, mas cada
parte é enunciada e atualizada parcialmente. É neste sentido que cada alma individual é, em
ato, uma parte da Alma Total; em potência, porém, é a Alma Total. E se a ciência permanece
um todo, o importando em quantos teoremas se divida, também a Alma permanece um
todo, sem importar o número de vezes em que é enunciada e atualizada como cada uma das
almas particulares. Assim, qualquer que seja a quantidade de divisões efetuadas, tanto a
ciência como a Alma permanecem um todo único e indiviso
128
.
A partir da comparação com a ciência, Plotino conclui:
Ora, se é assim no que concerne à Alma, tanto a Total quanto a das outras, a
Total, da qual estas são partes, não será <alma> de algo, mas será por si
mesma; assim, nem mesmo será a alma do mundo, mas também esta será
127
IV 3 [27] 2, 50-54: a)=r” ou)=n ou(/tw me/roj w(j qew/rema to\ th=j e)pisth/mhj le/getai th=j o(/lhj
e)pisth/mhj, au)th=j me\n menou/shj ou)de\n h(=tton, tou= de\ merismou= oi(=on profora=j kai\ e)nergei/aj
e(ka/stou ou)/shj; e)n dh\ t%= toiou/t% e(/kaston me\n du/namei e)/xei th\n o(/lhn e)pisth/mhn, h( de/ e)stin
ou)de\n h(=tton o(/lh.
128
ao defender a tese da unidade da alma, Plotino utilizara a comparação com a ciência: “pois ela [a Alma] é
capaz de se dirigir a todas as coisas e, ao mesmo tempo, não está absolutamente cortada de nenhuma delas;
portanto, é a mesma coisa em muitas. Que ninguém duvide, pois também a ciência é um todo e suas partes são
tais que a ciência permanece total e suas partes derivam dela.” (IV 9 [8] 5, 6-9).
43
uma das <almas> parciais. Portanto, todas serão partes de uma, sendo
semelhantes
129
.
Aqui, a posição de Plotino torna-se clara: as almas individuais são partes no
sentido que ficou estabelecido, mas não partes da alma do mundo; esta e aquelas são todas
partes da Alma Total, a qual, independente dos corpos, o é alma de algum corpo, nem
mesmo do corpo do universo. A alma do mundo também será uma das almas particulares, será
mais uma manifestação da Alma absoluta. A relação entre as almas individuais e a alma do
mundo é, portanto, muito mais de uma “fraternidade”, como dirá Plotino em outros
momentos
130
. Mas, se são almas fraternas, surge a questão que encerra o segundo capítulo:
“de que modo, então, uma torna-se a alma do mundo, e as outras tornam-se almas de partes do
mundo?”
131
Por que uma alma torna-se, diferentemente das demais, alma do mundo? O
terceiro capítulo ensaia uma tentativa de resposta que permitirá refutar o quarto argumento
dos adversários
132
. O interlocutor
133
indaga se as almas seriam partes tal como a alma no dedo
é parte da alma total no ser vivo
134
. Já em outras ocasiões
135
, o exemplo do dedo havia sido
utilizado para explicar o funcionamento da alma no corpo: cada corpo possui apenas uma
alma governando-o; a mesma alma opera em cada parte do corpo. A suposição do
companheiro permite que se extraiam algumas conseqüências: se as almas forem partes da
alma do mundo tal como a alma no dedo é parte da alma total do ser vivo, então haverá duas
possibilidades: 1) ou bem nenhuma alma poderá estar fora de um corpo, 2) ou bem nenhuma
alma estará num corpo, e neste caso, a alma do mundo seria exterior ao corpo do mundo
136
.
De que maneira decorrem estas conseqüências, eis aí algo que Plotino deixou a cargo dos
leitores imaginar. Ensaio aqui uma explicação: 1) supondo que a alma do mundo governe todo
o corpóreo no mundo, inclusive nossos corpos, e supondo que nossa alma seja parte da alma
129
IV 3 [27] 2, 54-58: ei) dh\ ou(/twj e)pi\ yuxh=j th=j te o(/lhj kai\ tw=n a)/llwn, ou)k a)\n h( o(/lh, h(=j ta\
toiau=ta me/rh, e)stai tino/j, a)lla\ au)th\ a)f” e(auth=j! ou) toi/nun ou)de\ tou= ko/smou, a)lla\ tij kai\
au(/th tw=n e)n me/rei. me/rh a)ra pa=sai mi=aj o(moeidei=j ou)=sai.
130
IV 3 [27] 6, 13; II 9 [33] 18, 16.
131
IV 3 [27] 2, 58-59: a)lla\ pw=j h( me\n ko/smou, ai( de\ merw=n tou= ko/smou;
132
Como vimos, o quarto argumento defendia que, assim como cada parte de nós recebe nossa alma, do mesmo
modo nós, enquanto partes do Todo, recebemos parte da alma do mundo.
133
Os escritos de Plotino possuem a peculiaridade de apresentarem constantemente um interlocutor imaginário,
como um aluno ou companheiro, que apresenta soluções ou questões que serão criticadas ou respondidas por
Plotino.
134
Cf. IV 3 [27] 3, 1-3.
135
Cf. IV 7 [2] 7 e IV 2 [4] 2.
136
Cf. IV 3 [27] 3, 3-5.
44
do mundo no sentido do “dedo”, então nossa alma deverá estar sempre ligada a um corpo,
pois se existisse independentemente do corpo deixaria de ser parte da alma do “grande corpo”
chamado mundo; 2) supondo que nossa alma exista fora do corpo e supondo que ela faça
parte da alma do mundo, então também esta deverá ser independente do mundo, dos corpos.
Estas conseqüências serão examinadas mais adiante
137
. Por ora, indaga-se sobre a
validade da comparação com o dedo. Ainda que se dividisse a alma do mundo em partes (em
almas individuais), esta alma do mundo teria que permanecer como um todo, sem ser em nada
diminuída, de modo a estar presente em cada uma das coisas sempre uma e a mesma
138
. Ora,
se é assim, se a alma for dividida permanecendo uma e a mesma em todas as coisas, de sorte
que cada parte mantenha as mesmas faculdades da alma total, então não é mais possível
afirmar que uma das almas é o todo e que as demais são partes, que todas desfrutam do
mesmo conjunto de faculdades
139
. Quanto aos órgãos do corpo, ainda que haja diferentes
atividades associadas a cada um deles, ainda assim todos se submetem à alma como um todo,
ou seja, não há uma parte da alma agindo num determinado órgão do corpo. As formas são
percebidas segundo diferentes órgãos de percepção, mas a alma recebe-as todas
140
, sendo
encaminhadas para um “centro único”
141
que efetua o “julgamento” sobre elas
142
. Entretanto,
mesmo apresentando diferentes funções, a alma é uma e a mesma
143
. Ora, se cada alma
individual for comparável às sensações, então não poderia haver pensamento individual,
que as sensações por si não são capazes de julgamento, mas exigem um centro (nóesis) para
efetuá-lo. Assim, somente a alma do mundo pensaria e nós, enquanto almas individuais
incapazes de exercer o pensamento, dependeríamos do julgamento da alma do mundo. Por
outro lado, se a intelecção for própria a cada indivíduo, então cada alma é uma realidade
por si
144
. E, com efeito, em IV 9 [8] 3, 26-27, Plotino afirmara que “a percepção que julga
137
Cf. IV 3 [27] 4, 1-21.
138
Esta necessidade fora apontada no capítulo 2 do Tratado, quando foi explicada a maneira como devemos
entender as divisões da alma, divisões no mesmo sentido das divisões da ciência.
139
Cf. IV 3 [27] 3, 8-13.
140
Quanto à recepção de todas as formas pela alma, Henri e Schwyzer remetem ao Teeteto 184 d3-4. Luc
Brisson, na nota 67 de sua tradução ao Traité 27, p. 217-218, informa que Harder (Plotins Schriften, Leipzig,
1930-1937) remete a Aristóteles (De anima II 2, 424 a18; III 7, 434 a1; III 8, 431 b26) e que o próprio Plotino
faz remissão a Aristóteles em VI 6 [34] 10. Brisson observa ainda que, para Harder, paralelo com Alexandre
de Afrodisia, De l’âme, p. 91, 9-13 da tradução de R. Dufour.
141
Cf. sobre a necessidade desse centro em IV 7 [2] 6, 10-15.
142
Cf. IV 3 [27] 3, 14-25.
143
É o que foi dito aqui, em IV 3 [27] 3, 13-18, mas também em IV 9 [8] 1, 7 e VI 4 [22] 4, 32 ss.
144
Cf. IV 3 [27] 3, 26-29.
45
com inteligência pertence a cada um”
145
. Observe-se a força que adquire a alma individual:
cada alma pensa por si, possui todas as faculdades que possui a Alma Total. O pensamento
faz-se presente na alma em cada alma, aliás - e não no Noûs
146
.
A racionalidade das almas humanas é um fato, o que permite a conclusão:
“sempre que a alma seja também racional, assim como a Alma Total é dita racional, o que é
chamado parte será idêntico <ao todo>, e não parte do todo”.
147
As partes desfrutam das
mesmas faculdades do todo, de sorte que não é possível afirmar que uma das almas seja o
todo e as demais sejam partes. Permanece, porém, sem resposta a questão proposta ao final do
segundo capítulo; continuamos ignorando a razão pela qual as almas diferenciam-se.
O quarto capítulo prossegue com a refutação do quarto argumento e apresenta
mais dois problemas
148
: 1) Como algo que é uno pode estar ao mesmo tempo em todas as
coisas? 2) Como é possível a unidade se uma das almas individuais pode estar num corpo, ao
passo que outras não?
149
Pois bem se poderia perguntar: como é possível a unidade se uma
alma (a do mundo) deve estar sempre ligada ao corpo, enquanto as almas particulares podem
abandonar seus corpos? Como explicar que uma alma abandone o corpo e outra não, já que se
trata da mesma Alma?
150
Tais questões parecem retomar o problema exposto no final do segundo capítulo e
desdobrá-lo. É preciso conciliar a diversidade entre as almas, que é um fato, com a tese
plotiniana de sua unidade; é necessário dar conta do “um em muitos”. Se a multiplicidade de
almas se resume em uma única alma, se uma unidade subjacente às múltiplas almas, como
entender que uma delas se torne a alma do mundo, indagava o final do segundo capítulo. A
solução proposta a estas duas novas questões permitirá compreender a transcendência da
Alma Hipóstase, que, permitindo as diversas manifestações das almas individuais, permanece
sempre a mesma, idêntica, única e indivisa:
145
h( de\ ai)/sqhsij h( kri/nousa meta\ nou= e(ka/stou.
146
É grande a distância entre Plotino e a longa tradição aristotélica que se estendeu pelo período medieval, cuja
leitura do De Anima, III considerava haver um único intelecto para todos - idéia que só veio a ser rompida com a
interpretação feita por Tomás de Aquino (A unidade do intelecto. Contra os averroístas).
147
IV 3 [27] 3, 29-31: o(/tan de\ kai\ logikh\ $)= yuxh/, kai\ ou(/tw logikh\ w(j <h(> o(/lh le/getai, to\
lego/menon me/roj tau)to/n, a)ll” ou) me/roj e)/stai tou= o(/lou.
148
Cf. IV 3 [27] 4, 1-4.
149
Este exame relaciona-se com as conseqüências extrdas da analogia entre almas particulares e o dedo, em IV
3 [27] 3, 3-5.
150
Cf. IV 3 [27] 4, 4-9.
46
[Há muitas dificuldades], a menos, é claro, que se estabeleça a [alma] única
por si mesma sem cair no corpo, e que todas <as almas>, a do mundo e as
outras, provenham dela, convivendo umas com as outras, por assim dizer, até
certo ponto e sendo uma única alma pelo fato de não serem <alma> de coisa
alguma; e que, estando ligadas ao alto por suas extremidades, projetam-se
aqui e ali, como a luz que, logo que alcança a terra, divide-se entre as casas e
não é dividida, mas é, apesar de tudo, única
151
.
Na extremidade superior, as almas estão todas unidas, formando uma unidade,
mas multiplicam-se em manifestações (proforai/), projetando-se em todas as direções. O
exemplo da luz ajuda a perceber o aspecto intangível da alma e sua possibilidade de divisão
infinita sem a perda de suas características de totalidade e unicidade.
Originadas da mesma fonte, provindas do mesmo gênero, semelhantes em espécie,
alma do mundo e almas particulares diferenciam-se por seu comportamento: a primeira
permanece sempre no alto, sem se voltar para as coisas debaixo, ao contrário de nossas almas,
que têm um papel a desempenhar com as coisas daqui, necessitadas de cuidados
152
.
Ao final do capítulo, Plotino propõe alguns paralelos para as várias faculdades da
alma: i) a parte inferior da alma do mundo é comparada ao princípio organizador de uma
grande árvore ou planta; analogia bastante apropriada, já que em outros momentos das
Enéadas, Plotino refere-se a esta seção da alma do mundo como natureza (fu/sij). Trata-se
da faculdade vegetativa, que provê a geração e nutrição dos seres vivos; ii) a parte inferior de
nossa alma é comparada a vermes que vivem numa parte podre da árvore ou seja, nosso
corpo animado depende, para viver, da faculdade vegetativa; iii) a parte superior de nossa
alma compara-se a um agricultor preocupado com o bem-estar da árvore. Note-se o elevado
estatuto concedido à parte racional das almas individuais, assemelhado ao agricultor
(gewrgo/j) cuja preocupação diz respeito tanto ao crescimento da árvore (sobre o qual não
tem, de fato, poder algum, que este depende da faculdade vegetativa, ligada à alma do
mundo) quanto às possíveis ameaças a ela; mas embora cuide da planta, o gewrgo/j não
depende dela para existir (ao contrário dos vermes que não poderiam viver sem a árvore).
Quando o homem identifica-se com a parte inferior de sua alma, torna-se “escravo” do corpo,
dependente dele para existir (como vermes junto à árvore); mas, se for capaz de viver em
151
IV 3 [27] 4, 14-21: ei) mh/ tij to\ me\n e(\n sth/seien e)f” e(autou= mh\ pi=pton ei)j sw=ma, ei)=t” e)c
e)kei/nou ta\j pa/saj, th/n te tou= o(/lou kai\ ta\j a)/llaj, me/xri tino\j oi(=on sunou/saj <a)llh/laij>
kai\ mi/an t%= mhdeno/j tinoj gi/nesqai, toi=j de\ pe//rasin au)tw=n e)chrthme/naj [kai\ sunou/saj
a)llh/laij] pro\j to\ a)/nw w(di\ e)piba/llein, oi(=on fwto\j h)/dh pro\j t$= g$= merizome/nou kat” oi)/kouj
kai\ ou) memerisme/nou, a)ll” o)/ntoj e(/noj ou)de\n h(=tton.
152
IV 3 [27] 4, 22-25.
47
conformidade com o nível superior de sua alma, será capaz de cuidar do corpo sem
escravizar-se a ele
153
.
Enquanto a alma humana possui esta dupla possibilidade de ação, a alma do
mundo age sempre do mesmo modo: jamais desce; organiza toda a natureza sem submeter-se
a esta; permanece em constante contemplação do Intelecto, voltada para o superior; em sua
elevada atividade, não se rebaixa ao nível da faculdade propriamente humana da diánoia
(pensamento discursivo)
154
, a qual, dividindo, permite ao homem afastar-se do alto e voltar-se
para as coisas debaixo
155
. A alma do mundo não executa uma conversão (e)pistrofh/) em
direção às coisas debaixo. Muitas vezes, Plotino incita-nos a imitarmos esta grande alma. A
raiz dessa atitude encontra-se aqui mesmo: se a alma humana tem a possibilidade de voltar-se
tanto para o alto quanto para baixo, pode bem espelhar-se na alma do mundo e inclinar-se
para cima. Pois a inclinação para baixo significa entregar-se ao que é inferior, ou seja, aquilo
que deveria ser o princípio diretor torna-se subserviente ao mais baixo; se, ao contrário,
permanecer orientada para o alto, agindo de maneira semelhante à alma do mundo, comandará
tudo sem ser arrastada. É a este trabalho de conversão ao alto e de permanência em contato
com as realidades superiores que Plotino exorta seu leitor constantemente.
Tendo estabelecido a Alma Hipóstase permanentemente no alto, sem se ligar a
corpos, e as demais almas particulares e alma do mundo projetando-se a partir desta Alma
única, parecem solucionadas as questões propostas no quarto capítulo relativas à conciliação
entre unidade e multiplicidade das almas. A questão geral apresentada no final do segundo
capítulo, porém, ainda não está inteiramente resolvida. É por essa razão que no quinto
capítulo surge o problema da individualidade. Como explicar as diferentes almas, uma para
cada indivíduo? Seriam, em sua parte inferior, almas de indivíduos particulares, mas perdendo
essa individualidade na unidade superior? Se for assim, quando o corpo de Sócrates perece, a
alma de Sócrates deixa de existir. Ora, não é possível que seja deste modo, responde Plotino,
pois os verdadeiros entes (ta\ o)/nta), entre os quais se conta a alma, jamais perecem
156
. A
153
Cf. IV 3 [27] 4, 26-38.
154
Cf. II 9 [33] 2, 13-15: me/nei te a)pragmo/nwj au)th\ ou)k e)k dianoi/aj dioikous=a ou)de/ ti
diorqoume/nh, a)lla\ t$= ei)j to\ pro\ au)th=j qe/# katakosmou=sa duna/mei qaumast$=. <A alma do
mundo> permanece imperturbada, sem governar o corpo pelo pensamento discursivo nem de algum modo
corrigi-lo, mas ordenando-o com um maravilhoso poder por sua contemplação daquilo que está antes dela.
155
Contudo, será por meio desta mesma faculdade que o homem terá oportunidade de iniciar o percurso inverso e
voltar-se para o alto.
156
Plotino parece acompanhar Parmênides, fragmento B 8. 19: pw=j d”a)\n e)/peit”a)po/loit” e)o/n... Sobre a
repercussão de Parmênides em algumas das concepções plotinianas, remeto ao estudo de Giannis Stamatellos,
Plotinus and the Presocratics. O autor mostra a influência de Parmênides refletindo-se na concepção plotiniana
48
verdadeira identidade humana evidencia-se aqui: Sócrates o deixa de existir quando seu
corpo perece. Com efeito, precisamente no momento em que abandona o corpo e toma
contato com a mais pura realidade de sua essência, justamente Sócrates deixaria de existir?
Os intelectos reúnem-se numa unidade, mas sem perder cada qual sua alteridade,
sua individualidade
157
. É o que ocorre tamm com as almas, que dependem cada qual de um
intelecto, sendo “expressões” ou “razões” (lógoi)
158
mais expandidas destes intelectos, e que
permanecem ligadas ao intelecto por meio daquilo que nelas é menos dividido (i.e, pela parte
intelectiva da alma). A divisão completa não é possível, de modo que cada alma mantém tanto
a alteridade quanto a identidade, permanecendo uma, e, ao mesmo tempo, juntamente com as
demais formando uma só alma:
Ora, nada dentre os entes perece, uma vez que também
159
os intelectos
não desaparecem, reduzidos a um único, porque não são divididos
corporalmente, mas cada um permanece na alteridade, tendo o mesmo ser
que é. Assim, também as almas, dependentes respectivamente de cada
intelecto, sendo expressões (lógoi) dos intelectos e mais desdobradas do que
aqueles, tendo elas surgido como um grande número a partir de um pequeno
número, estando unidas ao pequeno número por meio do mais indivisível
delas, e não sendo capazes de ir até a divisão total ainda que tenham
desejado dividir-se, mantendo identidade e alteridade, permanecem cada
qual uma e todas em conjunto uma
160
.
de ai)w/n como eternidade sem tempo, onde entram em cena as características de imutabilidade,
incorruptibilidade e indestrutibilidade do Ser parmenidiano. Também o Um plotiniano poderia encontrar seus
fundamentos no Ser parmenidiano (bem como em outras doutrinas pré-socráticas: a Mônada dos pitagóricos teria
influído sobre o conceito de inefabilidade do Um; no lógos de Heráclito, na philía de Empédocles e no Noûs de
Anaxágoras, Plotino teria reconhecido sua característica de primeiro princípio). Contudo, o filósofo não teria
simplesmente acatado estas doutrinas, mas criticado-as por não haverem elaborado a distinção entre a unidade
que contém em si a multiplicidade (e(/n polla/) e o Um absolutamente transcendente e uno. Deste modo, os pré-
socráticos teriam misturado os dois primeiros princípios plotinianos, o Um confundindo-se com o Ser, o que
levou Plotino a aproveitar-se das doutrinas antigas muito mais para sua concepção do Intelecto, o qual reúne em
si as características de unidade e de ser. Neste aspecto, no que diz respeito ao Intelecto e ao Ser, Stamatellos
observa a importância de Parmênides na consideração plotiniana da identidade entre Ser e Pensamento.
157
Se aqui, em IV 3 [27] 5, 1-9, fica claro que os intelectos individuais não perecem no Intelecto Total, em VI 7
[38] 17, 27-33 explicita-se a existência de diferenças entre cada um dos intelectos parciais, cada qual possuindo
uma particularidade que lhe confere identidade própria.
158
Armstrong traduz lógoi por “expressions” e Brisson emprega “raisons.
159
Uma vez que Plotino freqüentemente utiliza o termo e)kei= como sinônimo de e)n t%= noht%=, optamos por
aplicar letras maiúsculas em sua tradução, como designação do mundo inteligível. Cf. os diversos usos do termo
no verbete e)kei= em Sleeman & Pollet, Lexicon Plotinianum.
160
IV 3 [27] 5, 5-14: h)\ a)polei=tai ou)de\n tw=n o)/ntwn! e)pei\ ka)kei= oi( no/ej ou)k a)polou=ntai, o(/ti mh/
ei)si swmatikw=j memerisme/noi, ei)j e(/n, a)lla\ me/nei e(/kaston e)n e(tero/thti e)/xon to\ au)to\ o(/ e)stin
ei)=nai. ou(/tw toi/nun kai\ yuxai\ e)fech=j kaq” e(/kaston nou=n e)chrthme/nai, lo/goi nw=n ou)=sai kai\
e)ceiligme/nai ma=llon h)\ e)kei=noi, oi(=on polu\ e)c o)li/gou geno/menai, sunafei=j t%= o)li/g% ou)=sai
a)mereste/r% e)kei/nwn e(ka/st%, meri/zesqai h)/dh qelh/sasai kai\ ou) duna/menai ei)j pa=n
merismou= i)e/nai, to\ tau)to\n kai\ e(/teron s%/zousai, me/nei te e(ka/sth e(/n kai\ o(mou= e(\n pa=sai.
49
Cada alma é o lógos (razão ou expressão) de um intelecto, expressando-o de modo
mais desdobrado ou expandido. Por ser uma realidade inferior ao Intelecto, originada a partir
deste e menos perfeita que ele, a Alma encontra-se em um estado menos unificado. Assim
como o Intelecto, derivado do Um, é menos perfeito, mais expandido e não apresenta a
unidade absoluta que é sua origem, assim também a Alma expressa o Intelecto de maneira
mais desdobrada. A partir da pequena multiplicidade existente no Intelecto, a Alma
desenvolve-se em uma enorme gama de almas almas, porém, que sempre mantêm a unidade
em virtude de sua origem única, da qual, por mais que se espalhem e se expandam, não se
separam.
Neste momento, devemos fazer uma pausa na leitura de nosso tratado para
observarmos mais atentamente de que maneira se pode conceber a multiplicidade de almas e,
ao mesmo tempo, sua unidade. Com efeito, se o tratado IV 9 [8] tratou de afastar a
incredulidade a respeito desta possibilidade, nem por isso esclareceu plenamente como a
existência de entidades individuais se coaduna com a unidade essencial dos múltiplos entes.
Em outras palavras, um “ser Alma”, idêntico em todas as almas e que subjaz à unidade
desta multiplicidade; por outro lado, o “ser alma”, infinitamente variado e que dota cada
alma individual de caracterização própria. Como entender esta multiplicidade una? A solução
estava presente naquele tratado, embora pouco desenvolvida, quando foi apresentada a
analogia com a ciência e seus teoremas. Vimos ali a relação entre todo e partes expressar-se
através da utilização dos conceitos de ato e potência. Em VI 4 [22] 4, o problema é retomado,
buscando-se uma explicação convincente para a questão da unidade e multiplicidade. E não se
trata somente de multiplicidade de almas, mas também de intelectos, que o próprio
Intelecto é uno e múltiplo
161
. Em primeiro lugar, a multiplicidade de almas não se deve à
grandeza dos corpos, que “mesmo antes dos corpos existirem, elas eram muitas e uma”
162
.
Trata-se de uma anterioridade ontológica da alma em relação ao corpo que se explica
mediante o conceito de ato: a multiplicidade está em ato no todo, “pois na [Alma] Total, as
muitas [almas] existem, não em potência, mas cada uma delas em ato”
163
. Assim, afasta-se
a idéia de que as almas individuais pudessem existir na Alma Total apenas em potência,
aguardando a encarnação para se atualizarem. Ao contrário, são em ato na Alma Universal e
161
Cf. acerca da multiplicidade presente no inteligível, entre outros, V 4 [7] 2, 7 e ss; VI 7 [38] 8, 17-32. Em II 4
[12] 5, 28-36, Plotino explica o surgimento da multiplicidade a partir da alteridade: do Um procede a díade
indefinida (matéria inteligível) que, ao converter-se em direção ao Um, estabelece-se como díade definida: o
Intelecto contendo todas as formas e números.
162
VI 4 [22] 4, 38-39: a)lla\ pro\ tw=n swma/twn ei)=nai kai\ polla\j kai\ mi/an.
163
VI 4 [22] 4, 39-40: e)n ga\r t%= o(/l% ai( pollai\ h)/dh ou) duna/mei, a)ll” e)nergei/# e(ka/sth!
50
não devem sua existência ao nascimento dos corpos. Por outro lado, a existência de várias
almas não implica a inexistência da alma única. Todas as almas Universal e particulares
coexistem em ato, pois elas se distinguem sem se separar e estão presentes umas às outras
sem se alterarem; com efeito, não estão divididas por limites, assim como não <estão
divididas por limites> as muitas ciências em uma alma única, e a alma única é de um tipo tal
que possui em si mesma todas”.
164
Esta coexistência entre as almas significa sobretudo
unidade de origem. Como observou Matteo Andolfo, em um sistema “henológico” como o de
Plotino, “a unidade não pode jamais ser conseqüência da multiplicidade, e por isso a unidade
dos muitos se realiza mesmo se estes últimos são em ato”
165
. Não se trata, portanto, de uma
unidade como “soma” a partir das muitas almas, mas da geração das muitas a partir da única.
Por sua vez, no domínio do Intelecto também impera a unidade e a
multiplicidade. Há o Intelecto Universal e os intelectos particulares. Assim como almas
particulares e Alma Total, também ali Formas inteligíveis particulares e o Intelecto Total,
cada Forma contendo em si, em potência, todas as demais. A diferenciação interna no
Intelecto deve-se à necessária presença de alteridade
166
. Lá, porém, a multiplicidade é, por
assim dizer, mais compacta, pois, diferentemente da Alma, o Intelecto permanece em
quietude. As Formas encontram-se em estado condensado, “como em pensamento, mas em
pensamento que não é discursivo”
167
. A eternidade está presente no Intelecto, ou melhor, o
Intelecto é a própria eternidade, com a totalidade presente sempre idêntica, “como se todas as
coisas estivessem juntas num ponto sem jamais avançar em escoamento, mas permanecendo
no mesmo em si mesmo e não se modificando de modo algum”.
168
Contudo, a partir desta
quietude do Intelecto, de alguma maneira as Formas avançam de modo a fazerem-se presentes
na matéria. Isto se por meio dos lógoi, princípios formativos de todas as coisas, que são
“doados” pelo Intelecto: “O Intelecto imóvel e quieto produziu todas as coisas, dando algo de
164
VI 4 [22] 4, 42-45: die/sthsan ga\r ou) diestw=sai kai\ pa/reisin a)llh/laij ou)k
a)llotriwqei=sai! ou) ga\r pe/rasi/n ei)si diwrisme/nai, w(/sper ou)de\ e)pisth=mai ai( pollai\ e)n
yux$= mi#=, kai\ e)/stin h( mi/a toiau/th, w(/ste e)/xein e)n e(auth= pa/saj.
165
ANDOLFO, L´ipostasi della “Psyche” in Plotino, p. 154-5.
166
Cf. VI 7 [38] 13 14.
167
VI 2 [43] 21, 27-28: e)/xei de\ nou=j w)j e)n noh/sei, noh/sei de\ ou) t$= e)n dieco/d%!
168
III 7 [45] 3, 19-21: oi(=on e)n shmei/% o(mou= pa/ntwn o)/ntwn kai\ ou)/pote ei)j r(u(sin proio/ntwn, a)lla\
me/nontoj e)n t%= au)t%= e)n au)t%= kai\ ou) mh\ metaba/llontoj...
51
si para a matéria; e este lógos flui do Intelecto, pois o que escoa para fora do Intelecto é o
lógos, e sempre escoa, até que o Intelecto esteja presente nos entes”.
169
A racionalidade da Alma é recebida como um “traço” (i)/xnoj) do Intelecto
170
, ou
seja, a natureza racional da Alma provém da natureza intelectual do Intelecto, de sorte que os
lógoi são os próprios inteligíveis existindo não mais em si mesmos no Intelecto, mas
manifestados na Alma
171
. A Alma é imagem do Intelecto (ei)kw/n ti/j e)sti nou=)
172
e a
comparação entre lo/goj e)ndia/qetoj (discurso interior, pensamento íntimo) e
lo/goj
proforiko/j (discurso pronunciado), que aparecera com os estóicos
173
, permite compreender
melhor a Alma como expressão desdobrada do Intelecto: “assim como um discurso em sua
enunciação é uma imagem do discurso na alma, assim também a própria alma é o discurso do
Intelecto (lo/goj nou=) e sua atividade total e a vida que é enviada para estabelecer outra
realidade (ei)j a)/llou u(pó/stasin).”
174
Todavia, se o Intelecto doa algo de si, isto se deve
ao fato de ser a Alma uma espécie de receptáculo (w(j to\ dexo/menon) capaz de receber
aquilo que escoa do Intelecto
175
. Assim, os lógoi são recebidos na Alma e constituem sua
essência como imagens das Formas presentes no Intelecto.
Relacionando as almas particulares a intelectos particulares, Plotino parece ter
dado conta da questão do quinto capítulo de nosso tratado. Por que diferentes almas, tantas
quantas forem os indivíduos? Ou melhor, por que os indivíduos? A resposta encontra-se
num nível superior, na segunda hipóstase. Há almas particulares porque intelectos
particulares. Estes intelectos em ato no Intelecto são as próprias Formas inteligíveis, que
derivam para as almas na forma de lógoi. Também no Intelecto existe a multiplicidade; as
almas simplesmente expandem essa multiplicidade de Formas presentes na unidade do
169
III 2 [47] 2, 15-18: nou=j toi/nun dou/j ti e(autou= ei)j u(/lhn a)tremh\j kai\ h(/suxoj ta\ pa/nta
ei)rga/\zeto! ou(=toj de\ o( lo/goj e)k nou= r(uei/j. to\ ga\r a)porre/on e)k nou= lo/goj, kai\ a)ei\ a)porrei=,
e(/wj a)\n $)= parw\n e)n toi=j ou)=si nou=j.
170
Cf. VI 7 [38] 17, 37-39.
171
Cf. V 8 [31] 3, 7-8.
172
V 1 [10] 3, 7.
173
Cf. SVF II 135.
174
V 1 [10] 3, 7-9: oi(=on lo/goj o( e)n profor#= <ei)kw/n ti/j e)sti> lo/gou tou= e)n yux$=, ou(/tw toi kai\
au)th\ lo/goj nou= kai\ h( pas=a e)ne/rgeia kai\ h(\n proi/etai zwh\n ei)j a)/llou u(po/stasin!
175
Cf. V 1 [10] 3, 22-23.
52
Intelecto
176
. Em IV 8 [6] 3, Plotino oferece uma explicação mais detalhada a respeito da alma
humana (peri\ th=j a)nqrwpei/aj yuxh=j) e suas múltiplas manifestações:
Uma vez que o Intelecto Universal está todo e inteiro no lugar da intelecção,
que chamamos de mundo inteligível, e uma vez que também estão
compreendidos nele as potências intelectivas e os intelectos individuais
pois ele não é apenas um, mas um e muitos era preciso haver também
muitas almas e uma única, e que da única partissem as muitas almas
diferentes, como espécies provindas de um único gênero, umas melhores,
outras piores, algumas mais intelectuais, outras inferiores nesta atividade.
Pois no Intelecto há, por um lado, o Intelecto que contém os demais em
potência como um grande ser vivo, e, por outro lado, os intelectos
individuais em ato, os quais o outro [i.e., o Intelecto Universal] contém em
potência.
177
Com a divisão entre gênero e espécies, todas as almas ficam englobadas num
único gênero, de sorte que as almas individuais pertencem todas ao gênero Alma. Suas
diferenças devem-se à sua capacidade de atualização do Intelecto. A Alma Universal atualiza
o Intelecto Universal (sem, contudo, tornar-se idêntica a ele, pois, procedendo dele, é-lhe
hierarquicamente inferior). As almas individuais, por sua vez, atualizam os intelectos parciais.
A alma do mundo deve atualizar o Intelecto Universal, porém difere da Alma Universal que
permanece em si mesma sem qualquer relação com o corpo; assim, também a alma do mundo
tem como origem a Alma Universal.
Finalmente, o caminho parece limpo para resolver a questão proposta no final do
segundo capítulo, retomada agora no sexto capítulo: dado que nossa alma é de forma ou
espécie semelhante (o(moeidh/j) à da alma do mundo, e dado que cada alma individual já
contém tudo, isto é, contém todas as razões (lógoi) deste mundo
178
, por que coube à alma
do mundo fazer o universo, e o às almas individuais? Por que aquela ficou encarregada de
176
Daí a concluir e afirmar que Formas ou Idéias de cada indivíduo parece ser um simples passo. Eis, porém,
questão bastante espinhosa que tem mobilizado vários estudiosos e na qual não há espaço aqui para adentrarmos.
A doutrina da existência de Formas dos indivíduos é apresentada em V 7 [18]. Cf. BLUMENTHAL, Did
Plotinus believe in Ideas of Individuals?, Phronesis 11 (1966), 61-80; ARMSTRONG, “Form, Individual and
Person in Plotinus”, Dionysius 1 (1977), 49-68 (=Plotinian and Christian Studies, London, 1979, XX).
177
IV 8 [6] 3, 6-16: o)/ntoj toi/nun panto\j nou= e)n t%= th=j noh/sewj to/p% o(/lou te kai\ panto/j, o(\n dh\
ko/smon nohto\n tiqe/meqa, o)/ntwn de\ kai\ tw=n e)n tou/t% periexome/nwn noerw=n duna/mewn kai\
no/wn tw=n kaqe/kasta - ou) ga\r ei)=j mo/noj, a)ll” ei)=j kai\ polloi/ - polla\j e)/dei kai\ yuxa\j kai\
mi/an ei)=nai, kai\ e)k th=j mia=j ta\j polla\j diafo/rouj, w(/sper e)k ge/nouj e(no\j ei)/dh ta\ me\n
a)mei/nw, ta\ de\ xei/rw, noerw/tera, ta\ d” h(=tton e)nergei/# toiau=ta. kai\ ga\r e)kei= e)n t%= n%= to\ me\n
nou=j perie/xwn duna/mei ta)=lla oi)=on z%=on me/ga, ta\ de\ e)nergei/# e(/kaston, a(\ duna/mei periei=xe
qa/teron!
178
Cf. V 7 [18] 1, 10: “ora, nós afirmamos que tudo aquilo que o mundo contém de razões, cada alma também
contém.”
53
produzir e administrar o Todo e a estas coube apenas o governo de uma pequena porção deste
Todo?
179
Ora, embora sejam de espécie semelhante, Plotino responde, de fato uma
diferença entre as almas, pois a alma do mundo não se separou da Alma Total, mas
permanece junto a ela, ao contrário das demais almas que vêm habitar corpos preparados para
elas por sua “alma irmã”
180
. E ainda que as almas particulares fossem capazes de produzir o
universo, o fato é que a alma do mundo tomou a dianteira
181
. Porém, a razão pela qual esta é
responsável pela produção do universo parece ser, de fato, sua maior potência, já que as almas
que se inclinam para o alto, como é o seu caso, são mais potentes. Com efeito, se sua
contemplação é do Intelecto Total
182
e se a produção não se separa da contemplação
183
, é
evidente que a alma que contempla o Todo deve produzir tudo. Por estar firmemente ancorada
no alto, a alma do mundo não é afetada pela sua produção e pode produzir com muita
facilidade
184
. uma diferença de comportamento entre as almas: a alma do mundo,
“permanecendo em si mesma, produz, e as coisas produzidas dirigem-se a ela, mas as almas
particulares vão elas mesmas para as coisas.”
185
As almas particulares dirigem-se para as
profundezas (ei)j ba/qoj), à matéria. É preciso deixar claro, porém, que não é a alma inteira
que mergulha no inferior, mas apenas uma parte dela; aquilo que nelas é múltiplo ou seja, a
razão discursiva (diánoia) e as potências inferiores da alma - é passível de ser arrastado para
baixo. A potência intelectiva, porém, permanece sempre voltada para o alto. Por isso, de
acordo com seu grau de afastamento do inteligível, as almas podem ser ditas de segundo ou de
terceiro nível, como sustenta Platão no Timeu 41d7. É o que ocorre também entre nós,
homens, que, embora possuindo todos as mesmas potências, não as utilizamos igualmente
186
.
Conforme a direção de nosso olhar, estabelecemos nossa própria estatura e alcance. O sexto
capítulo encerra-se com uma divisão tripartite do homem: i) os que se unem ao Alto; ii) os
que chegam perto; iii) os menos dispostos à união. Unir-se ao Alto significa utilizar a primeira
179
Cf. IV 3 [27] 6, 1-8.
180
O termo “alma irmã” (a)delfh\ yuxh/) é literalmente utilizado (IV 3 [27] 6, 13). É esta irmã que proporciona
os corpos, ou seja, a vida vegetativa aos embriões que, ao nascerem, se ligarão às almas particulares. Cf. II 9
[33] 18, 14-17. Cf. a explicação de Porfírio em A Gauros. Sur l manière dont l´embryon reçoit l´âme.
181
Cf. IV 3 [27] 6, 11-20
182
Cf. IV 3 [27] 6, 15-16: “<A alma do mundo> olha para o Intelecto Total, mas <as almas particulares> olham
mais para seus próprios intelectos parciais.” (e)/sti de\ kai\ th\n me\n pro\j to\n o(/lon nou=n i)dei=n, ta\j de\
ma=llon pro\j tou\j au(t=wn tou\j e)n me/rei).
183
Sobre a indissociabilidade entre contemplação e produção, cf. III 8 [30], em particular cap. 4.
184
Sobre a produção feita sem esforço, cf. IV 8 [6] 2, 28 e 4, 7-9.
185
IV 3 [27] 6, 24-5: me/nousa ou)=n e)n au(t$= poiei= prosio/ntwn, ai( de\ au)tai\ prosh=lqon. (tradução de
Armstrong).
186
Cf. IV 3 [27] 6, 26-35.
54
potência da alma, a intelecção (nóesis), alcançando a união com o Intelecto e divinizando-se.
Outros não se alçam tanto, ficando próximos do Intelecto; neste caso, fazem uso da segunda
potência, a razão. Finalmente, aqueles que se apegam à parte irracional da alma, fazendo
simplesmente uso da terceira potência, ligada à animalidade
187
.
Vimos que o segundo capítulo respondeu ao primeiro argumento antagonista;
observamos também que desde o terceiro até o sexto capítulo tratou-se de refutar o quarto
argumento. No sétimo capítulo, Plotino dará conta do segundo, do terceiro e do quinto
argumentos. O segundo argumento sustenta que nossas almas são partes da alma do mundo,
enxergando como testemunho disso o Filebo 30a. Com efeito, Sócrates defende ali que nosso
corpo tem uma alma e pergunta a Protarco onde o corpo a teria obtido, “a menos que o corpo
do universo tivesse uma alma, já que aquele corpo possui os mesmos elementos que os
nossos, só que em tudo superior”
188
. Plotino, porém, explica o sentido em que se deve
entender tal passagem, onde o interesse de Platão centra-se em mostrar que o mundo é dotado
de uma alma e, para demonstrá-lo, afirma que até mesmo nós, cujos corpos são partes do
corpo do mundo, somos dotados de alma; como, então, não seria também dotado de alma o
corpo total do mundo? Entretanto, o ponto de vista platônico está bem mais claro no trecho do
Timeu ao qual Plotino remete: “... retomou a cratera em que antes misturara e fundira a alma
do mundo e nela deitou o que sobrara dos primeiros ingredientes, misturando-os quase da
mesma maneira, porém sem que estes tivessem a pureza originária; ficaram dois ou três graus
abaixo”
189
.
A exegese deste passo do Timeu interessa-nos especialmente já que é este o
alicerce central que serve de fundamento à sustentação da fraternidade entre as almas.
Recuemos um pouco e observemos o momento em que se fala da criação do mundo; em
primeiro lugar, são criadas as almas dos deuses imortais, compreendidos os astros, sempre
visíveis, e outros deuses que se mostram apenas quando desejam”. Nascem diretamente do
Demiurgo e são imperecíveis na medida em que são sustentados pela vontade de seu
criador
190
. Em seguida, os deuses recebem a incumbência de exercerem o papel de artífices
dos seres mortais, já que se estes nascessem diretamente do Demiurgo tornar-se-iam
187
Estes três graus são apresentados também em VI 7 [38] 9, 18-22.
188
PLATÃO, Filebo, 30 a5-6.
189
PLATÃO, Timeu, 41 d4-7.
190
Os laços que os constituem são indissolúveis porque gerados diretamente pelo Demiurgo. Na verdade, uma
vez que foram ligados, também poderiam ser desligados; porém, ainda que não sejam essencialmente imortais
nem indissolúveis, o Demiurgo garante-lhes a indissolubilidade em virtude do laço potente instaurado pela sua
vontade. Cf. Timeu, 41 a- b.
55
semelhantes aos deuses em imortalidade. Uma parte, entretanto, divina e imortal, é semeada
diretamente pelo Demiurgo, cabendo aos deuses produzir as partes mortais e perfazer a
ligação entre estas e aquela imortal. Vejamos as ordens dadas pelo Demiurgo aos deuses:
Se estas <espécies mortais> nascessem e participassem da vida através de
mim, igualar-se-iam aos deuses. Então, para que sejam mortais e para que
este Todo seja realmente todo, dedicai-vos, conforme a vossa natureza, à
confecção dos seres vivos, imitando a minha potência utilizada na vossa
geração. E quanto àquela parte deles que convenha ter o mesmo nome dos
imortais, que é dita divina e que governa os que entre eles desejam sempre
seguir a justiça e a vós, eu darei o sêmen e o princípio. Quanto ao resto, vós,
entrelaçando o mortal ao imortal, perfazei e gerai seres vivos e, dando-lhes
nutrição, fazei-os crescer e, ao morrerem, recebei-os novamente.
191
Os seres mortais capazes e desejosos de seguir a justiça são os seres humanos. A
estes é concedida diretamente pelo Demiurgo uma centelha imortal. Nesta parte divina,
homens e deuses assemelham-se por possuírem todos eles o mesmo criador. É, pois, o mesmo
Demiurgo que comporá as almas individuais, na mesma cratera em que anteriormente
compusera a alma do universo. Os ingredientes utilizados na segunda mistura, porém, não são
tão puros quanto os utilizados na composição anterior. A seguir, dividindo a mistura,
designou um astro para cada uma das almas particulares.
192
Infelizmente, Plotino não se aprofunda no exame deste passo, simplesmente
remetendo a este momento do Timeu. Em II 1 [40] 5, porém, encontraremos sua exegese. Para
explicar a razão pela qual os astros são imperecíveis, ao contrário dos seres vivos, resume esta
passagem:ora, diz Platão, [os corpos celestes] são engendrados por Deus, mas os seres vivos
daqui originam-se dos deuses engendrados por Ele; e não é lícito
193
que as coisas engendradas
por Ele pereçam.
194
A partir daí, Plotino passa à sua interpretação: “isto significa que a alma
celeste e também as nossas almas são imediatamente seguintes ao Demiurgo; a partir da alma
191
Timeu 41 c2-d2: di) e)mou= de\ tau=ta geno/mena kai\ bi/ou metasxo/nta qeoi=j i)sa/zoit” a)/n! i(/na ou)=n
qnhta/ te $)= to/ te pa=n to/de o)/ntwj a(/pan $)=, ter/pesqe kata\ fu/sin u(mei=j e)pi\ th\n tw=n z%/wn
dhmiourgi/an, mimou/menoi th\n e)mh\n du/namin peri\ th\n u(mete/ran ge/nesin. kai\ kaq o(/son me\n
au)tw=n a)qana/toij o(mw/numon ei)=nai prosh/kei, qei=on lego/menon h(gemonou=n te e)n au)toi=j tw=n a)ei\
di/k$ kai\ u(mi=n e)qelo/ntwn e(/pesqai, spei/raj kai\ u(parca/menoj e)gw\ paradw/sw! to\ de loipo\n
u(mei=j, a)qana/tw qnhto\n prosufai/nontej, a)perga/\zesqe z%=a kai\ genna=te trofh/n te dido/ntej
au)ca/nete kai\ fqi/nonta pa/lin de/xesqe.
192
Cf. Timeu 41 d.
193
Szlezák (Platone e Aristotele nella dottrina Del Nous di Plotino, p. 260) nota uma relação entre o
impedimento exposto aqui (ou) qemito\n fqei/resqai) e a impossibilidade de se arrastar para baixo toda a alma,
afirmada em II 9 [33] 2, 9. Cf. p.16-17 desta dissertação.
194
II 1 [40] 5, 2-5: h)/, fhsi\n o( Pla/twn, ta\ me\n para\ qeou= gege/nhtai, ta\ d” e)ntau=qa z%=a para\
tw=n genome/nwn par” au)tou= qew=n! geno/mena de\ par” e)kei/nou ou) qemito\n fqei/resqai.
56
celeste, avança uma imagem dela e como que escoa das coisas do alto e produz os seres vivos
sobre a terra.”
195
A “imagem” (i)/ndalma) da alma é termo inserido pela exegese
plotiniana, uma vez que não aparece no texto platônico. Não é, pois, a própria alma celeste,
segundo Plotino, quem produz os seres vivos, mas uma imagem desta alma. Eis aí, aliás, mais
um termo não utilizado por Platão: alma celeste (yuxh\ ou)rani/a). A que alma Plotino se
refere com esta designação: à Alma Total ou à alma do mundo? Parece ser a alma do mundo,
visto afirmar uma igualdade originária entre nossas almas e a celeste: ambas derivam
diretamente do Demiurgo. Mas quem é o Demiurgo: o Intelecto ou a Alma Hipóstase? Em
outro lugar, Plotino interpreta o demiurgo platônico como o Intelecto
196
. Se isto for válido
aqui, então teremos a alma celeste (ou alma do mundo) e as nossas almas derivadas
diretamente do Intelecto. Trata-se de um trecho bastante delicado e de difícil solução, pois, no
caso de encararmos o Demiurgo como o Intelecto possibilidade textualmente presente em
Plotino -, estará descartada a presença ou mesmo a necessidade da Alma Hipóstase. Não se
deve esquecer, entretanto, que o vocabulário da processão é bastante presente aqui, com a
utilização de termos como “avança”, flui” e “imagem”. Como, então, descartar a ordem
processional e afirmar uma derivação imediata das almas particulares junto ao Intelecto?
Sabemos que, neste eterno fluxo processional, em primeiro lugar origina-se a “alma
primeira”, que se define como Alma Total ao contemplar os conteúdos do Intelecto
197
. Ora,
Plotino afirma aqui quea alma celeste e também as nossas almas são imediatamente
seguintes ao Demiurgo”. Se é assim, o Demiurgo tede ser, ao menos neste caso, a Alma
Hipóstase.
Deixemos de lado este problema e voltemo-nos aos ganhos efetivamente obtidos
até aqui: as almas individuais equiparam-se à alma do mundo quanto à sua origem divina; a
imagem desta última avança e produz os seres vivos. Continuando sua exegese, Plotino
considerará esta imagem da alma também como alma - “uma espécie de alma”, “um tipo de
alma” (yuxh\ toiau/th) que, embora procure imitar a superior, não é plenamente capaz
disto, em virtude dos corpos com os quais opera, bem como pelo seu próprio local de
195
II 1 [40] 5, 5-9: tou=to de\ tau)to\n t%= e)fech=j me\n t%= dhmiourg% ei)=nai th\n yuxh\n th\n ou)rani/na,
kai\ ta\j h(mete/raj de/! a)po\ de\ th=j ou)rani/aj i)/ndalma au)th=j i)o\n kai\ oi(=on a)porre/on a)po\ tw=n
a)/nw ta\ e)pi\ gh=j z%=a poiei=n.
196
Cf. V 1 [10 8, 5-6: dhmiourgo\j ga\r o( nou=j au)t%! tou=ton de/ fhsi th\n yuxh\n poiei=n e)n t%=
krath=ri e)kei/n%. “Pois, para ele [Platão], o Intelecto é demiurgo; e ele afirma que este faz a alma naquela
cratera.”
197
Cf. p. 40 desta dissertação.
57
operação. Esta “espécie de alma” é a “natureza”, parte inferior da alma do mundo. Vejamos
agora o que diz respeito às almas individuais:
Mas nós fomos plasmados pela alma doada pelos deuses no céu e pelo
próprio céu, e por esta alma <doada pelos deuses> temos comércio com os
corpos; pois a outra alma, pela qual nós <somos nós>, é causa do nosso bem-
estar, não do nosso ser. Com efeito, ela vem quando o corpo foi gerado,
contribuindo pouco para o nosso ser pelo raciocínio.
198
Pela parte inferior da alma do mundo, constitui-se o corpo animado, que é um
composto de corpo e alma inferior ou imagem de alma. O homem, porém, é dotado também
de uma alma doada “pelo próprio céu”, pelo Demiurgo; esta é a alma intelectiva, que
permanece em contemplação do Intelecto. Esta não desce, não entra em contato com o corpo e
permanece no inteligível.
Todo este passo do Timeu está implicado no argumento de Plotino para rebater
seus opositores no tratado IV 3 [27]. Fica evidente aqui a relação de fraternidade entre as
almas: a alma do mundo teria surgido em primeiro lugar, a partir de uma mistura de
ingredientes puros; posteriormente nascem as almas individuais, como irmãs da primeira, mas
elaboradas com ingredientes inferiores em pureza. Se Platão quisesse dizer que as almas
particulares provêm da alma do mundo, não teria utilizado a imagem da fusão na mesma
cratera
199
.
Retomemos a leitura de nosso tratado IV 3. Rebatido o segundo argumento, o
filósofo enfrenta a quinta objeção, a qual invoca a afirmação do Fedro 246 b6 de que “toda
alma cuida de tudo que é sem alma”. E de fato, concorda Plotino, quem senão a alma poderia
administrar e produzir o corpo? Mas isso é da natureza de qualquer alma. A alma do mundo,
porém, dirige tudo sem descer, ao contrário das outras almas, que perderam as asas”
200
. A
mítica distinção platônica entre almas aladas e almas caídas por terem perdido as asas serve
bem para Plotino diferenciar alma do mundo e almas particulares. É interessante observar
como a exegese do texto platônico também neste caso serve ao propósito de Plotino para
estabelecer o modo de operação das almas. Já vimos no Timeu como a alma do mundo é
elaborada com elementos puros, enquanto as almas individuais possuem elementos inferiores
198
II 1 [40] 5, 18-23: h(mei=j de\ plasqe/ntej u(po\ th=j didome/nhj para\ tw=n e)n ou)ran%= qew=n yuxh=j
kai\ au)tou= tou= ou)ranou= kat” e)kei/nhn kai\ su/nesmen toi=j sw/masin! h( ga\r a)/llh yuxh/, kaq” h(\n
h(mei=j, tou= eu)= ei)=nai, ou) tou= ei)=nai ai)ti/a. h)/dh gou=n tou= sw/matoj e)/rxetai genome/nou mikra\ e)k
logismou= pro\j to\ ei)=nai suneklambanome/nh.
199
Cf. IV 3 [27] 7, 1-12.
200
Cf. PLATÃO, Fedro, 246 b7-c2
58
em sua composição. Isso terá repercussões no modo como as almas se comportam. No Fedro
246 a7-b3, aparece distinção semelhante: a alma é comparada a uma biga alada; somente os
carros dos deuses são compostos por aurigas e cavalos todos eles bons; nos demais carros,
ocorre uma mistura. As bigas dos homens são compostas cada qual por um auriga com dois
cavalos, um deles belo, bom e de boa estirpe, enquanto o outro cavalo é exatamente o oposto.
Por esse motivo, a condução deste carro é feita com bastante dificuldade.
Os ingredientes cavalos e auriga - da composição das almas dos deuses são
perfeitos, ao contrário das almas humanas. Tanto no Timeu quanto no Fedro, verifica-se uma
inferioridade das almas humanas em relação às divinas. Plotino, porém, atenua esta diferença,
que sua doutrina o afirma qualquer diferença ontológica entre as almas. Alma do mundo
e almas individuais diferenciam-se por seu modo de operação. A própria interpretação dos
textos platônicos caminha nesta direção. A pureza da alma do mundo, constituída de bons
cavalos e auriga, permite que este governe facilmente seu carro, diz o mito. Plotino afirmará,
pois, que o governo do universo efetuado pela alma do mundo é “sem esforço” (a)/ponoj)
201
.
Mas a forma de governo praticada pela alma do mundo é uma possibilidade também para a
alma humana. A parte não descida de nossas almas responderia por essa capacidade de
contemplação ininterrupta das realidades inteligíveis. Se as almas individuais governam os
corpos com esforço, isso se deve não a algum “defeito” intrínseco das almas, mas dos corpos
que estas dirigem. Há uma diferença de estatuto entre os governados
202
. É inevitável que as
almas individuais mergulhem no mundo sensível para que possam controlar os corpos
perecíveis e sujeitos à desagregação, assaltados por forças externas e sempre exigentes de
cuidados. Por isso, elas não se mantêm eternamente no alto, mas suas partes médias são
compelidas a descer para cuidar dos corpos
203
. Ao examinarmos a natureza da alma, ficará
claro qual seja esta parte média da alma. Por ora, adiantemos tratar-se da parte racional, da
faculdade dianoética. A alma do mundo, por sua vez, governa o corpo perfeito do universo,
completo, auto-suficiente, imperecível e em constante harmonia. Como nada há fora do Todo,
este não é perturbado por intrusões e, portanto, sua governante não tem necessidade de descer.
Mas o arranjo das duas espécies de alma é semelhante
204
. Ambas apresentam as mesmas
capacidades, é o que nos mostra IV 7 [2] 12: “pois cada uma delas é princípio de movimento e
201
Cf. II 1 [40] 4, 31.
202
Cf. IV 8 [6] 2; IV 3 [27] 12.
203
Cf. IV 3 [27] 12, 6-8.
204
Cf. III 4 [15] 6, 21-23: xrh\ ga\r oi)/esqai kai\ ko/smon ei)=nai e)n t$= yux$= h(mw=n mh\ mo/non nohto/n,
a)lla\ kai\ yuxh=j th=j ko/smou o(moeidh= dia/qesin! ”Pois deve-se pensar que também na nossa alma há
um universo, o apenas inteligível, mas também uma disposição de espécie semelhante à da alma do universo.
59
cada uma delas vive por si mesma e está em contato com as mesmas coisas pelo mesmo meio,
inteligindo as coisas no céu e as que estão além do céu e buscando tudo o que é substancial e
ascendendo até o primeiro princípio.
205
Há uma identidade de estatuto entre as almas: ambas
contemplam o Intelecto e utilizam os mesmo meios para isso, qual seja, a parte não descida da
alma, e é por mesmo que são capazes de elevar-se não apenas até o Intelecto, mas até o
Um. Ambas são princípio de movimento e, portanto, ambas cuidarão do universo. É assim
que Plotino responderá ao argumento adversário extraído do Fedro, segundo o qual “toda
alma cuida de tudo que é sem alma”. As duas espécies de alma governam o mundo, a alma do
mundo permanecendo no alto, as almas individuais descendo para dirigir os corpos, sempre
mantendo, contudo, algo fora do corpo.
206
A perfeição da alma consiste em continuar possuindo asas e governar tudo do alto,
sem descer. As almas humanas, porém, descem para governar os corpos e nesse sentido
perdem a perfeição. De todo modo, porém, é sempre a alma a cuidar e reger o corpo, seja
entregando-se a ele, como fazem as almas caídas, seja mantendo-se elevada, qual a alma do
mundo
207
. A exegese do mito platônico das almas aladas permeia toda a obra de Plotino para
explicar, por um lado, a perfeição da alma do mundo e, por outro, a queda das almas. Deve-se
notar, porém, que a imperfeição das almas individuais o se deve à ausência de algum
elemento, como poderia parecer a partir de uma leitura rápida do texto platônico. A ausência
das asas não significa um defeito essencial das almas, mas deve-se, ao contrário, a elementos
estranhos que se acrescentaram a elas. Vejamos um passo das Enéadas em que isto é
elucidado: em I 8 [51] 14, Plotino investiga sobre a causa da fraqueza da alma e observa que
esta está presente em almas completamente separadas ou nas que estão na matéria ou em
ambas”
208
. Se é assim, todas as almas apartadas da matéria são puras, aladas e perfeitas, diz
Plotino citando Fedro, ficando a fraqueza relegada às almas que perderam as asas, quais
sejam, as que são impuras. A fraqueza não se deve, porém, a uma privação, mas à presença de
algo hostil e alheio à alma, de sorte que a impureza da alma surge por seu comércio com a
205
IV 7 [2] 12, 6-8: a)rxh/ te ga\r kinh/sewj e(kate/ra, kai\ z$= par” au(th=j e(kate/ra, kai\ tw=n au)tw=n
t%= au)t%= e)fa/ptetai noou=sa ta/ te e)n t%= ou)ran%= ta/ te ou)ranou= e)pe/keina kai\ pa=n o(/ e)sti kat”
ou)si/an zhtou=sa kai\ me/xri th=j prw/thj a)rxh=j a)nabai/nousa.
206
Em IV 7 [2] 13, capítulo que, como notou Szlezák (Platone e Aristotele nella dottrina Del Nous di Plotino, p.
238), é baseado no Fedro 246 b6-c2, é possível observar de que modo cada uma das espécies de alma cuida do
universo.
207
Cf. IV 3 [27] 7, 13-20.
208
I 8 [51] 14, 17-19: a)na/gkh dh\ th\n toiau/thn a)sqe/neian yuxh=j h)\ e)n tai=j xwristai=j pantelw=j
h)\ e)n tai=j e)nu/loij h)\ e)n a)mfote/raij ei)=nai.
60
matéria. Será preciso, pois, que as almas individuais tratem de purificar-se para que retomem
sua verdadeira condição, perfeita e divina.
Finalmente, Plotino ataca o terceiro argumento
209
, segundo o qual a influência da
rotação cósmica sobre nossas almas seria indício de nossa origem na alma do mundo. Ora,
responde o filósofo, esta influência nada prova, que a alma também absorve outras
influências, oriundas dos lugares, águas, ar, cidades e compleição corporal. Chama a atenção
do leitor que o defensor da incorporalidade da alma aceite influências materiais sobre esta.
Contudo, o que é preciso notar é que Plotino fala aqui da parte inferior da alma, que se
imiscui com o corpo. Na medida em que temos corpos informados pela natureza, nesta
medida recebemos influências externas, mas não somos “nós” como alma individual e
racional que sofremos influências e sim nossos corpos, os compostos. É verdade que algo de
nós provém da alma do mundo (ou não poderíamos viver neste mundo); há, porém, uma outra
alma em nós que se opõe às influências exteriores. E é essa sua capacidade de resistência que
mostra tratar-se de outra alma
210
. Quem sofre afecções é o composto; a outra alma em nós é
impassível
211
.
Este argumento “astrológico” traz graves conseqüências para a autonomia das
almas e precisa ser combatido por Plotino. A resposta bastante expedita emitida aqui resume
todo um tratado, “Sobre o Destino” (III 1 [3]), de que trataremos no próximo capítulo.
Respondidos os argumentos dos adversários, o início do oitavo capítulo
212
retoma
a questão da diversidade entre as almas, surgida nos capítulos quinto e sexto. Como explicar
as diferenças entre as almas? Plotino identifica quatro causas destas diferenças: os corpos, os
caracteres, o uso que fazem da razão discursiva e as vidas anteriores. É neste ponto que
Blumenthal
213
acusa uma incoerência na doutrina plotiniana da alma. Como pode o corpo,
ontologicamente inferior à alma, criado por ela, determinar-lhe diferenças? A solução do
problema, porém, parece residir no próprio texto, pois logo em seguida Plotino mostra que as
almas são e tornam-se aquilo que olham. Neste sentido, o corpo é capaz, sim, de produzir
diferenças nas almas, o por algum poder que lhe seja intrínseco, mas pelo olhar que a alma
lhe dirige.
209
Cf. IV 3 [27] 7, 20-31.
210
Sobre a capacidade de resistência da alma, cf. III 1 [3] 8.
211
Cf. III 6 [26] sobre a impassibilidade da alma.
212
Cf. IV 3 [27] 8, 1-17.
213
Cf. “Soul, World-Soul and Individual Souls in Plotinus, p. 60.
61
Todas <as almas> são tudo, mas cada qual segundo o que está ativo nela;
isto é, uma devido ao fato de unificar-se em ato, outra por estar em
conhecimento, outra por estar em desejo, e pelo fato de almas diferentes
olharem coisas diferentes e serem e tornarem-se aquilo que olham; e a
plenitude e completude para as almas não é a mesma para todas.
214
Todas as almas possuem a potência de tornarem-se todas as coisas, mas diferem
pela ação, diferem pelos objetos para os quais olham. Compreende-se assim que as diferenças
apontadas entre as almas resumem-se a seus modos de ação: os corpos causam diferenças
conforme a inclinação da alma em sua direção; o caráter da alma diz respeito à forma como a
alma se comporta, pois algumas têm maior tendência a contemplar o inteligível, outras
conduzem-se racionalmente, outras deixam-se levar pelos desejos; o uso da razão discursiva
também representa diversos modos de ação da alma, pois algumas utilizam-na com o intuito
de elevarem-se acima dela e unirem-se ao Intelecto, enquanto outras pautam sua vida pela
racionalidade, e outras ainda utilizam a razão discursiva com a finalidade de realizar seus
desejos corporais. Quanto às vidas anteriores, Plotino é bastante lacônico e encontramos
poucas explicações sobre o assunto, mas parece ser possível supor que, conforme o modo
como as almas se conduzem em suas vidas, assim também estabelecem seus caracteres,
criando hábitos que prosseguirão em outras vidas.
A influência dos hábitos, isto é, dos modos de conduta da alma, é mais evidente
no tratado IV 8 [6], quando, no quarto capítulo, o filósofo trata da descida das almas humanas.
Em primeiro lugar, nota o elevado posto ocupado por elas quando o se vinculam a corpos,
livres de perturbações ao permanecerem junto à Alma Total no inteligível
215
. Em seguida,
descreve o processo da descida em passagem tão rica que vale a pena ser citada:
214
IV 3 [27] 8, 12-17: ... kai\ o(/ti pa/nta pa=sai, kata\ de\ to\ e)nergh=san e)n au)t$= e(ka/sth! tou=to de\
t%= th\n me\n e(nou=sqai e)nergei/#, th\n de\ e)n gnw/sei <ei)=nai>, th\n de\ e)n o)re/cei, kai\ e)n t%= a)/llhn
a)/lla ble/pein kai\ a(/per ble/pei ei)=nai kai\ gi/gnesqai! kai\ to\ plh=rej de\ tai=j yuxai=j kai\
te/leion ou)xi\ tau)to\n pa/saij.
215
Cf. IV 8 [6] 4, 5-6: a)ph/monaj me\n ei)=nai meta\ th=j o(/lhj menou/saj e)n t%= noht%=. Veja-se aqui a
dificuldade que os intérpretes ainda manifestam com o uso dos conceitos “alma do mundo” e “Alma Total”. O
texto aqui fala da permanência das almas individuais junto à total” (th=j o(/lhj), ou seja, à Alma Universal,
Hipóstase. Os tradutores em geral, até onde pudemos notar, traduzem corretamente o trecho utilizando o termo
“Alma Total” ou “Alma Universal”. A despeito disso, Fronterotta (Traité 10 (V,1), “Notice”, p. 139, ed.
Flammarion), ao comentar este passo não parece manifestar clareza acerca do que seja esta o(/lh yuxh/,
afirmando: “a Alma se afasta do Intelecto para vir ocupar-se do mundo sensível em seu conjunto sob a forma de
alma do mundo, assim como as almas individuais se afastam da alma do mundo para descer nos corpos
particulares, em razão de sua vontade „de estarem consigo mesmas‟, e, portanto, de seu audacioso desejo de
autonomia e de independência em relação ao princípio que as engendrou.O autor confunde Alma Total com
alma do mundo, considerando esta como princípio gerador das almas individuais. Nada mais distante da leitura
que acabamos de fazer do tratado IV 3 [27].
62
Mas elas mudam do Todo para serem parte e pertencerem a si mesmas e, por
assim dizer, cansando-se de estarem com a outra, retiram-se cada qual para
si mesma. Quando faz isto durante algum tempo, escapando do Todo e
abandonando-o com a separação, e não olha para o inteligível, ao tornar-se
parte, isola-se, enfraquece, ocupa-se de muitas coisas...
216
É digno de nota o verbo utilizado para a modificação sofrida pelas almas:
metaba/llein. Seu primeiro sentido é de uma mudança de lado, de um virar-se para outro
lado, deslocar-se, ir de um lugar para outro. A partir daí decorrem, entre outros, os sentidos de
transformar-se, mudar, assumir um estado diferente e até mesmo alterar o caráter e os hábitos.
Todas estas significações estão implicadas nesta meta/basij da alma individual. O primeiro
momento da mudança deve-se a uma “virada” da alma que responde por uma modificação em
seu olhar. Em seguida, nota-se um desejo de parcialidade, isto é, as almas, ao se voltarem para
a parte, desejam ser esta parte, desejam o isolamento. A separação do Todo significa uma
“apostasia”
217
, uma defecção e abandono, um dar as costas ao ente ao qual pertencia. Com
isso, a alma enfraquece, perde potência, que a capacidade produtora da alma está
diretamente ligada à contemplação; se não contempla mais o inteligível, há de tornar-se fraca,
impotente. Ademais, torna-se “multiatarefada”: o verbo polupragmonei=n, de difícil
tradução, significa ocupar-se de muitas coisas, mas apresenta também uma conotação
depreciativa, no sentido de alguém imiscuir-se em coisas que não lhe dizem respeito. Talvez
os dois sentidos estejam presentes aqui, pois a alma parcial passa a ocupar-se devotadamente
do corpo, chegando mesmo a contaminar-se com ele. Mas o trecho que nos interessa
especialmente para compreender de que maneira os hábitos podem influenciar encontra-se
enunciado pela expressão dia\ xro/nwn. Quando a alma executa este ato por certo tempo,
acaba por tornar-se efetivamente isolada e fraca. “Acostuma-se” a ficar afastada do
inteligível, esquece-se de sua pátria e nem sabe mais que poderia voltar-se para a realidade
superior. É provável que aqui se encerre o sentido da afirmação de que as diferenças entre as
almas devem-se aos corpos, aos caracteres e às vidas anteriores. O isolamento das almas, sua
entrega aos corpos, sua insistência em permanecer em estado de afastamento, tudo isso
repercute nas diferentes caracterizações atribuídas aos homens.
216
IV 8 [6] 4, 10-15: metaba/llousai de\ e)k tou= o(/lou ei)j to\ me/roj te ei)=nai kai\ e(autw=n kai\ oi(=on
ka/mnousai to\ su\n a)/ll% ei)=nai a)naxwrou=sin ei)j to\ e(autw=n e(ka/sth. o(/tan dh\ tou=to dia\
xro/nwn poi$= feu/gousa to\ pa=n kai\ t$= diakri/sei a)posta=sa kai\ mh\ pro\j to\ nohto\n ble/p$,
me/roj genome/nh monou=tai/ te kai\ a)sqenei= kai\ polupragmonei=...
217
Este termo, com grande presença junto ao cristianismo, é usado aqui no particípio do verbo a)fi/sthmi.
63
Se as almas variam conforme a direção de seu olhar, podemos mais uma vez
retomar a tripartição antropológica apresentada no final do sexto capítulo: i) os homens que se
unem ao Alto são aqueles unidos em ato (e)nergei/#), ou seja, são aqueles que exercem a
atividade intelectual pura, contemplando o Intelecto e assemelhando-se a ele
218
; são
semelhantes a deuses; ii) os que chegam perto da união são os homens em estado de
conhecimento (e)n gnw/sei), que utilizam a parte racional da alma; sua visão dirige-se,
portanto, para aquilo que é mais próprio da alma e que constitui sua própria essência, os lógoi;
iii) os demais, menos dispostos à união, são os que se encontram em estado de desejo (e)n
o)re/cei); estando mais fortemente ativada a parte irracional da alma, seu olhar volta-se para
os corpos e sua atenção centra-se nas sensações e desejos oriundos daí.
Tripartição semelhante encontra-se em V 9 [5] 1, onde Plotino se vale da imagem
de pássaros pesados para referir-se ao tipo inferior de homem: possuem asas são pássaros
mas são incapazes de voar devido ao peso excessivo obtido pelo acúmulo de coisas terrenas.
Outros, em situação intermediária, elevam-se um pouco, mas não conseguem enxergar a
região superior e terminam simplesmente vivendo as virtudes práticas, voltados para as ações
terrenas
219
. Há, porém, um terceiro tipo de homens com o olhar afiado, capazes de
efetivamente perceber a luz superior e elevar-se “acima das nuvens”, permanecendo na região
da verdade que é sua própria pátria.
Cada homem, ao contemplar coisas diferentes e tornar-se aquilo que contempla,
terá variáveis graus de perfeição, e reside a verdadeira diferença entre os homens. O
primeiro passo para alcançar o estatuto que nos é de direito consiste em livrar-nos do peso das
coisas terrenas, o que se perfaz através de um processo catártico. Mas é preciso também
acurar o olhar e ser capaz de contemplar as realidades superiores. É neste momento que nos
tornamos semelhantes ao contemplado e reconhecemos nossa própria origem divina.
* * *
Os oito primeiros capítulos do tratado IV 3 [27] apresentaram claramente a
posição de Plotino quanto à origem de nossas almas. Ficou nítida sua derivação direta da
Alma Hipóstase, evidenciando-se os laços de fraternidade, e não de filiação, que nos unem à
218
No último capítulo desta dissertação (II.3), retornaremos a este ponto fundamental da doutrina plotiniana da
alma, que trata do processo de purificação e assimilação da alma ao Intelecto.
219
Faz-se aqui a crítica do epicurismo (primeira espécie de homens) e do estoicismo (segunda espécie de
homens) seguida de um elogio aos platônicos (terceira espécie de homens).
64
alma do mundo. A leitura destes capítulos, por sua vez, leva-nos às seguintes indagações: por
que razão é preciso enfatizar, como fez Plotino aqui, a fraternidade entre alma do mundo e
almas individuais? Por que não pode ser aceita uma derivação de nossas almas junto à alma
do mundo? Nosso filósofo fez questão de dedicar todo o início do tratado 27 à demonstração
desta fraternidade e à refutação de diversos argumentos adversários à tese. O que está por trás
deste trabalho minucioso do autor?
O que está em jogo aqui, cremos, é a autonomia das almas humanas. É preciso
que estas possuam estatuto semelhante ao da alma do mundo para exercerem por si mesmas a
conversão ao intelecto que lhes garantirá a liberdade. Vejamos, no que concerne a este
aspecto, algumas conseqüências passíveis de serem extraídas da leitura destes capítulos.
Em primeiro lugar, houve um ganho de natureza lógica que servirá de alicerce
para a autonomia da alma humana. Alma do mundo e almas individuais são espécies
semelhantes (o(moeidh=) pertencentes a um gênero comum (ge/noj koino\n). Estabelecendo o
gênero Alma como alma absoluta, desvinculada dos corpos, alma que não é alma de algo,
definiram-se todas as espécies de alma como dependentes da Alma. Alma do mundo é dita
alma de algo, e é, portanto, tal qual as almas particulares, contingente e acidental. Vale
lembrar as palavras de Plotino para designar a absoluta independência dos corpos conferida à
Alma Hipóstase, bem como o caráter acidental das demais almas, em virtude de sua ligação a
corpos:
E, com efeito, é correto que não toda a alma seja de algo, uma vez que ela é,
de fato, essência, mas que a que não é absolutamente de coisa alguma seja, e
que as outras, todas quantas são de algo, venham a ser em algum momento
por acidente.
220
Como pertencem ao gênero Alma, todas as espécies de alma inclusive a alma do
mundo podem ser ditas, neste sentido, “partes” da Alma. Mas, por tratar-se de incorporais,
as partes mantêm a homogeneidade de características possuídas pela Alma, de sorte que as
várias espécies de alma e a Alma Hipóstase são o(moeidh=. Assim, a semelhança de estatuto
ontológico entre nossas almas e a alma do mundo, em virtude de sua semelhança de espécies e
identidade de gênero, bem como a manutenção em cada alma das faculdades possuídas pela
Alma Hipóstase, tudo isso representa uma garantia de possibilidade de operação semelhante
para as duas espécies de alma.
220
IV 3 [27] 2, 8-10: kai\ ga\r o)rqw=j e)/xei mh\ pa=san th\n yuxh\n tinoj ei)=nai ou)si/an ge ou)=san, a)ll\
ei)=nai h(\ mh/ tino/j e)stin o(/lwj, ta\j de/, o(/sai tino/j, gi/gnesqai/ pote kata\ sumbebhko/j.
65
Contudo, ainda que não seja impossível às almas individuais agirem de maneira
semelhante à alma do mundo, isto não está imediatamente garantido, uma vez que existe uma
diferença básica quanto ao modo de operação das duas espécies de alma. A alma do mundo
jamais “desce”, não se envolve com o corpo, sendo capaz de governar o cosmos
contemplando ininterruptamente as realidades superiores. Por mais que se expanda em sua
constante produção, alcançando as mais longínquas e minúsculas partes do Todo, o se
inclina para baixo. Deste modo, é capaz de organizar toda a natureza sem submeter-se a ela.
Seu modo de funcionamento representa a alma operando em sua máxima perfeição. Mas, se a
alma do mundo não se afasta de sua origem, não é assim que agem as almas individuais.
Estas, ao virem habitar corpos que lhe foram preparados pela alma do mundo, inclinam-se
para estes corpos particulares, deixando de contemplar o mundo inteligível que é sua origem.
Ora, a potência da alma está diretamente ligada à sua capacidade de contemplação. Não
dúvida que a alma do mundo, permanecendo sempre voltada para o alto, de ter maior
potência que as almas individuais e, por conseqüência, exercer maior atividade produtora.
Com efeito, a poíesis em Plotino é sempre uma atividade noética, teorética, sem
deliberação
221
. A produção nunca é, pois, fruto de atividade prática, mas de uma abundância
excessiva. Tal é a produção a)pragmo/nwj
222
da alma do mundo. Ao contrário desta, porém,
as almas individuais enchem-se de trabalho, tornam-se “polipragmáticas”, multiatarefadas,
como resultado da inversão de seu olhar. A alegoria da cratera, onde Platão apresenta a
produção das almas
223
, ajuda-nos a compreender a diferença de potência entre as almas: a
fusão na mesma cratera, executada pelo mesmo demiurgo, não deixa dúvidas quanto à
fraternidade das almas; contudo, a utilização de ingredientes de categorias diferentes para as
duas espécies de alma cabendo à alma do mundo elementos de melhor qualidade indica a
maior dificuldade que as almas individuais encontrarão para o exercício pleno de suas
possibilidades.
Ao contrário da alma do mundo, que permanece em si, permitindo que as coisas
produzidas dirijam-se a ela, as almas individuais vão elas próprias para as coisas. E é esta
direção de seu olhar que as afasta da percepção das realidades superiores, o que implica uma
221
A produção que se faz com deliberação é de outro tipo, uma arte produtora de imitações fracas (cf. IV 3 [27]
10, 16-17). A depreciação da arte, bastante próxima da crítica platônica, prende-se ao fato de ser uma atividade
originada num nível humano, de racionalidade humana e não divina. Entretanto, é possível outra espécie de arte,
dirá Plotino discordando de Platão em V 8 [31] 1, 34-40, quando o artista contempla diretamente as Formas
inteligíveis e não suas imagens no mundo.
222
Cf. II 9 [33] 2, 13: a)pragmo/nwj au)th\ ou)k ek) dianoi/aj dioikou=sa. Sem esforço, a alma do mundo
não administra o corpo pela diánoia.
223
Cf. Timeu, 41d 4-7.
66
diminuição de sua atividade. O sentido de parte fica, então, plenamente explicado quando
observamos a noção de ato e potência posta em jogo aqui. Cada espécie de alma contém o
Todo em potência, mas o expressa em ato necessariamente este Todo. A diferença deve-se
à diversidade de contemplação em cada uma das almas. Eis aí a distinção entre as almas: a
alma do mundo, voltada plenamente para o Intelecto, exerce a atividade intelectiva da maneira
mais perfeita que lhe é possível, ao passo que as almas particulares são incapazes de manter-
se em constante intelecção e voltam-se para as coisas inferiores. Contudo, não está vedado às
almas humanas agirem semelhantemente à alma do mundo; pelo contrário, a filosofia
plotiniana é uma constante exortação para que se atue neste sentido. Ainda que as almas
particulares devam preocupar-se com os corpos necessitados de seus cuidados, isto não
acarreta um completo envolvimento com o mundo corpóreo, e nosso filósofo abriu de fato
esta possibilidade ao enunciar uma doutrina reconhecidamente nova, afirmando haver uma
parte da alma que não abandona jamais o mundo inteligível.
Entretanto, embora em potência os homens tenham a possibilidade de alçar-se tão
alto quanto a alma do mundo, sabemos que em ato as coisas são diferentes. Com efeito, ao
inclinar-se para o mundo sensível, o homem não reconhece sua identidade superior e mantém-
se em completa inconsciência de seu verdadeiro lar. É preciso, portanto, imitar a alma do
mundo, caso o homem deseje ser plenamente sua própria essência. O convite que Plotino faz
nesta direção aponta para a ação contemplativa e intelectual, o que significa elevar-se acima
não apenas da percepção sensível, mas dar um passo para além da racionalidade e contemplar
o mundo do Intelecto. Pois a alma do mundo não delibera, não calcula, enfim, não faz uso da
diánoia. Enquanto permanecermos limitados ao exercício desta faculdade o humana,
seremos incapazes de agir pelo intelecto e assimilarmo-nos aos deuses, condição primordial
para a obtenção da liberdade. Pode causar alguma estranheza o fato de afirmarmos a
necessidade de um abandono, por assim dizer, da diánoia. Afinal, foi o próprio Plotino quem
estabeleceu a necessidade do exercício desta faculdade para o alcance das Formas inteligíveis,
no tratado “Sobre a dialética”, I 3 [20]. Aí, apresentam-se três espécies de homem, o filósofo,
o músico e o amante, dentre as quais somente o filósofo é naturalmente “alado” mais uma
vez, a apropriação do mito do Fedro (246 c1) e não precisa efetuar o processo de separação
das coisas visíveis
224
. Isto significa que, por natureza, exerce a parte racional da alma, aquela
que não se mistura com o corpo, que “não necessita de nenhum órgão corporal para
raciocinar, mas mantém sua atividade em pureza para que seja capaz de raciocinar de maneira
224
Cf. I 3 [20] 3, 1-2.
67
pura”.
225
Sendo o tipo mais elevado de homem, deve voltar-se para os estudos matemáticos e,
em seguida, tornar-se um perfeito dialético, capaz de distinguir as Formas e discriminar
completamente a estrutura do mundo inteligível
226
. Evidentemente, toda esta atividade só
pode ocorrer mediante o exercício da diánoia. Entretanto, todo esse esforço não se detém aí.
Tudo isso é meio para um fim, para o alcance da completa união com a realidade superior,
onde nada mais além de contemplação. Com o exercício do processo dialético em toda sua
plenitude, a própria diánoia exaure-se, esgota-se. No final, a alma filosófica um basta à
atividade dianoética e simplesmente contempla:e então, mantendo a quietude, já que está em
quietude pelo fato de estar Lá, não se ocupando mais com a multiplicidade de coisas, tendo se
tornado una, contempla”
227
. Neste estágio superior, a atividade polipragmática” da alma e
todo raciocínio lógico são abandonados, pois agora basta a contemplação direta da realidade
inteligível. O caminho ascensional passa, pois, pela diánoia, mas não se detém . No último
tratado segundo a edição de Porfírio, lemos, mais uma vez, de que modo Plotino propõe o
exercício dialético, sem estacionar aí. O percurso de conhecimento efetuado pela alma
reconhece, em primeiro lugar, sua derivação do Intelecto e sua participação no princípio
racional; mas, “depois disso, deve-se apreender um Intelecto diferente daquele chamado
raciocinativo e calculador, e apreender os raciocínios agora como que em separação e
movimento”
228
. Se observarmos a tripartição antropológica proposta no tratado que acabamos
de estudar
229
, veremos que o tipo humano intermediário é aquele que vive racionalmente,
procura praticar as virtudes, está em “estado de conhecimento”, mas ainda não é o homem
superior almejado por Plotino. Este ultrapassou a diánoia e uniu-se em ato ao Intelecto,
com atividade puramente intelectual e contemplativa.
Outra importante conseqüência do reconhecimento da origem de nossas almas na
Alma Hipóstase é a garantia de uma permanente ligação com o mundo superior. Aliás, trata-
se de um relacionamento direto, sem intermediários, de sorte que cada indivíduo é dotado de
intelecção própria. A mesma faculdade intelectiva que possui a Alma Total está presente
225
V 1 [10] 10, 13-16: to\ dh\ logiz\o/menon tou=to th=j yuxh=j ou)deno\j pro\j to\ logi/zesqai deo/menon
swmatikou= o)rga/nou, th\n de\ e)ne/rgeian e(autou= e)n kaqar%= e)/xon, i(/na kai\ logi/zesqai
katarw=j...
226
Cf. I 3 [20] 3- 4.
227
I 3 [20] 4, 16-18: to/te de\ h(suxi/na a)/gousa, w(j me/xri ge tou= e)kei= ei)=nai e)n h(suxi/#, ou)de\n e)/ti
polupragmonou=sa ei)j e(\n genome/nh ble/pei.
228
VI 9 [9] 5, 8-10: meta\ de\ tau=ta nou=n labei=n e(/teron tou= logizome/nou kai\ logistikou=
kaloume/nou, kai\ tou\j logismo\j h)/dh oi(=on e)n diasta/sei kai\ kinh/sei...
229
Cf. IV 3 [27] 6, 26-34 e 8, 12-17.
68
inteira em cada alma humana. Alma do mundo e almas individuais, possuindo origem
comum, mantêm-se unidas pelo alto, não perdendo jamais a ligação com a fonte de onde
provêm, por mais que se estendam e se projetem nos corpos. É altíssimo, portanto, o estatuto
de cada uma das almas. Todas elas são realidades imperecíveis, ligadas cada qual a um
intelecto, o que lhes confere alteridade e individualidade em meio à unidade da alma. Isto nos
torna imediatamente princípios de ação, não subordinados à direção de outro intelecto (nem
mesmo à direção da alma do mundo), mas capazes de agir por nós mesmos. Veremos este
ponto claramente expresso em III 1 [3].
Esta liberdade, porém, o é dada senão à parte superior da alma, aquela parte
pura, transcendente, intelectiva, que não desce jamais. Somente atuando por meio desta alma,
identificando-nos com ela, seremos, de fato, livres de afecções. E é neste sentido que a
refutação do “argumento astrológico”
230
vem conceder-nos o ganho final, ao mostrar a
impassibilidade da alma superior. Ao estabelecer uma distinção entre dois tipos de alma em
cada um de nós, uma formadora dos corpos e provinda da alma do mundo, outra superior, que
não desce jamais, Plotino foi capaz de, por um lado, reconhecer a sujeição de nossos corpos às
influências exteriores, mas, por outro lado, garantir a autonomia ao homem que se identifica
com sua alma mais elevada. É fato que o homem encarnado é dotado de um corpo; este corpo
é formado pela natureza e configura-se num composto corpo e alma intrincados; trata-se do
animal homem. Não como este animal não sofrer as influências externas, pois pertence ao
Todo e é governado pela alma do Todo. Plotino aceita a existência de uma sympátheia
231
entre as almas e a influência astrológica sobre os corpos. Não obstante, é preciso notar que
aquele que sofre as afecções e se submete ao governo da alma do mundo é o composto. Nós,
porém, somos mais do que isto. Não somos o animal homem, um corpo animado, mas somos
dotados de uma alma intelectiva. Cada alma individual possui a faculdade intelectiva, ao
menos em potência. Basta-nos colocá-la em ato, por meio da conversão de nosso olhar. E esta
alma superior, que se encontra identificada à Hipóstase, é absolutamente impassível, não se
submete às influências externas. É princípio de ação e garante-nos a liberdade.
É otimista, pois, a perspectiva de Plotino acerca da autonomia humana. É preciso,
porém, uma verdadeira ascese no sentido de exercitarmos plenamente aquilo que nos é dado
230
Como vimos, o “argumento astrológico”, apresentado em IV 3 [27] 1, 26-30, considera a influência da
rotação do mundo sobre nossos caracteres e destinos como fato evidente, que permite extrair como conseqüência
a origem de nossas almas na alma do mundo. Assim, uma vez que nascemos no Todo, estaríamos sujeitos a
inflnciassmicas e ambientais determinantes para nossos temperamentos e para os acontecimentos em nossas
vidas. E se o Todo é regido pela alma do mundo, também nós estaríamos submetidos ao seu governo.
231
Cf. IV 3 [27] 8, 2.
69
em potência. Há, por parte do filósofo, uma profunda admiração pela alma do mundo. E pode-
se bem entender por quê: o modo de ação de nossa “irmã” deve ser imitado se realmente
almejamos a autonomia. O elevado poder que lhe é concedido, sua capacidade de governo do
mundo, deve-se à sua constante contemplação do Intelecto e, assim, a filosofia plotiniana é
centrada na conversão do olhar. Para onde dirigirmos nosso olhar, ali estará nosso ser. Em um
de seus últimos tratados, Plotino permanece na mesma via, insistindo na alma superior que
caracteriza nosso verdadeiro ser e exortando, mais uma vez, à conversão do olhar para ela:
Portanto, <dizemos> “nós” em dois sentidos, ou incluindo o animal, ou
como aquilo que já agora o transcende. O animal é o corpo que recebeu vida.
Mas o verdadeiro homem é outro, limpo destas coisas, possuindo as virtudes
que pertencem à intelecção, as quais se estabelecem de fato na alma separada
- separada e separável mesmo quando esaqui embaixo. (...) Mas nossos
amores pertencem a qual destes? Alguns, ao composto, outros, ao homem
interior.
232
232
I 1 [53] 10, 5-15: ditto\n ou)=n to\ h(mei=j, h)\ sunaritmoume/nou tou= qhri/ou, h)\ to\ u(pe\r tou=to h)/dh!
qhri/on de\ zwwqe\n to\ sw=ma. o( d”a)lhqh\j a)/nqrwpoj a)/lloj o( kaqaro\j tou/twn ta\j a)reta\j e)/xwn
ta\j e)n noh/sei ai(\ dh\ e)n au)t$= t$= xwrizome/n$ yux$= i(/druntai, xwrizome/n$ de\ kai\ xwrist$= e)/ti
e)ntau=qa ou)/s$! (...) fili/ai de\ ti/noj; h)\ ai( me\n tou/tou, ai( de\ tou= e)/ndon a)nqrw/pou.
70
PARTE II: O ESTATUTO DAS ALMAS INDIVIDUAIS
71
II. 1. A NATUREZA DA ALMA HUMANA
A aqui mantivemo-nos numa leitura bastante colada aos principais textos de
Plotino a respeito da origem das almas. Cremos que isto se fez necessário para que ficasse
clara a doutrina plotiniana neste aspecto. Nosso intuito primordial foi afastar interpretações
que até os dias de hoje insistem em enxergar a derivação das almas individuais junto à alma
do mundo. Se ficou clara a fraternidade entre nossas almas e a alma do mundo, assim como o
pertencimento destas duas espécies de alma ao gênero Alma, hipóstase absolutamente
desvinculada dos corpos, podemos agora voltarmo-nos para as repercussões desta leitura na
filosofia de Plotino. A exegese que fizemos dos oito primeiros capítulos do tratado IV 3 [27]
nos permitirá agora compreender a necessidade desta leitura em nome da coerência da
doutrina de nosso filósofo. A origem das almas individuais na Alma Universal, com o elevado
estatuto ontológico resultante desta filiação, torna possível a autonomia humana, formulada
por Plotino já em um de seus primeiros escritos, “Sobre o Destino”, III 1 [3].
Este é, pois, nosso objetivo nesta segunda parte: observar de que maneira nossa
filiação direta da Hipóstase permite-nos sermos “princípios causais”, livres, capazes de
elevarmo-nos à condição de deuses. Para isso, a exegese do tratado III 1 [3] será ferramenta
fundamental. Se já neste que é um dos escritos iniciais de Plotino encontramos a alma humana
alçada a tão alto vel, é evidente que esta concepção se faz possível porque o filósofo
tinha presente ainda que não claramente enunciada - a consideração das almas individuais
como semelhantes em dignidade, e não inferiores, à alma do mundo. Nosso trabalho, porém, é
árduo, uma vez que a correta compreensão deste ponto exige, em primeiro lugar, uma
investigação preliminar sobre a natureza da alma. Parece-nos imprescindível observar com
algum detalhe o modo de operação da alma, suas faculdades. É o que faremos imediatamente,
lembrando que nosso alvo será a observão do funcionamento da alma no homem encarnado,
manifestado em corpo físico.
II.1.1. As faculdades da alma
Plotino afasta-se bastante do “divino Platão”
233
ao tratar da partição da alma.
Raramente utilizará a tripartição tal como propõe o livro IV da República, e é bastante
plausível que nas ocasiões em que se refere à alma tripartite tenha em mente outras questões
233
III 5 [50] 1, 6; IV 8 [6] 1, 23.
72
que não o modo de operação da alma. Sem nos determos aqui nesta argumentação, podem ser
mencionados dois textos em que a tripartição platônica aparece associada às virtudes: I 2 [19]
1, 16-20 e III 6 [26] 2, 17-29. Trata-se de contextos voltados a discussões éticas, onde o
funcionamento da alma não é de modo algum analisado.
234
Parece, de fato, optar por uma bipartição da alma inspirada no livro X da
República, 604b: “quando, no homem, ocorrem simultaneamente impulsos em sentidos
contrários em relação ao mesmo objeto, dizemos que necessariamente nele duas
<partes>”
235
. A divisão platônica da alma neste momento pode ser assim descrita: 1) a parte
melhor (to\ be/ltiston), cuja função (e)/rgon) exerce-se graças à faculdade racional (to\
logistiko/n); 2) as partes inferiores (tw=n fau/lwn) em oposição à faculdade racional
236
.
Compartilhando desta concepção platônica de uma bipartição da alma, importará muito mais a
Plotino sublinhar a diferença entre as almas puras, que nada contêm que não seja sua própria
natureza, e as demais almas, contaminadas pelos acréscimos advindos a partir do nascimento.
Se é possível enxergar a partição da alma em Plotino como uma divisão em dois
grandes níveis, racional e irracional, é preciso notar, porém, que o filósofo preocupa-se com o
estabelecimento de diversas faculdades ou potências (du/nameij) da alma, aproximando-se,
neste sentido, de Aristóteles, que, no De Anima, distinguira várias faculdades da alma
237
.
Considera que o vel racional da alma o se divide entre os corpos, uma vez que seu
funcionamento independente da corporeidade, com a divisão entre os corpos ocorrendo para
as potências relacionadas à percepção sensível e à nutrição e formação dos corpos. Não
obstante a multiplicidade de potências da alma, sua unicidade permanece mantida. É sempre a
mesma alma que se manifesta dos mais diversos modos, podendo dividir-se ou não entre os
234
Este é o ponto de vista de Blumenthal (Plotinus psychology, p. 21-22), que chega a afirmar que Plotino
“critica a tripartão como base para uma psicologia séria” (“Plotinus‟ Psychology: Aristotle in the Service of
Platonism”, p. 349). Não é este o entendimento de Igal (“Aristoteles y la evolución de la antropologia de
Plotino”, p. 318), para quem o filósofo não teria rechaçado a tripartição platônica em sua psicologia, mas
reinterpretado-a, preferindo o Timeu à República, que o Timeu apresenta a psicologia da alma humana e da
alma do mundo, descrevendo a atividade e união destas almas com seus corpos. De nossa parte, acreditamos
encontrar uma forte bipartição da alma, como procuraremos mostrar a seguir.
235
PLATÃO, República, X, 604 b3-4: E)nanti/aj de\ a)gwgh=j gignome/nhj e)n t%= a)nqrw/p% peri\ to\ au)to\
a(/ma, du/o fame\n au)tw\ a)nagkai=on ei)=nai.
236
Cf. ibid., X, 603 a1-7.
237
Cf. De Anima III 10, 433a31ss: “Para aqueles que distinguem as partes da alma, no caso de as distinguirem e
separarem de acordo com as potências, elas se tornam múltiplas: nutritiva (qreptiko/n), perceptiva
(ai)sqhtiko/n), intelectiva (nohtiko/n), deliberativa (bouleutiko/n) e ainda desiderativa (o)rektiko/n), pois
estas diferem mais umas das outras do que a apetitiva difere da emotiva.” (tradução de Maria Cecília Gomes dos
Reis). Cf. também De An. II 2, 413b1-12; II 3, 414a29 ss.
73
corpos, conforme a sua potência
238
. Esta alma única é responsável pelas mais variadas formas
de seres vivos, como plantas, animais e homens, sendo capaz de estender-se a tudo sem perder
sua integridade
239
. Não se deve esquecer, entretanto, que a defesa da unidade da alma não
implica, em Plotino, um monopsiquismo clássico, segundo o qual a alma única individualiza-
se somente quando vem aos corpos
240
. vimos que a singularidade das almas existe no
inteligível, independentemente dos corpos. Assim, a vinda a um corpo e não a outro é
determinada pela própria constituição da alma individual, que se encaminha a corpos
compatíveis com sua potência
241
.
Há, na alma humana, uma faculdade própria das almas individuais e há faculdades
próprias da alma do mundo. Própria das almas individuais é a faculdade discriminativa,
proveniente de uma percepção acompanhada de noûs. A alma do mundo, por sua vez, provê a
percepção passiva e a faculdade nutritiva:
Mas se a faculdade nutritiva
242
provém do todo, tem também <algo> daquela
[alma do todo]. Por que, então, a faculdade nutritiva não obtém também
<algo> da nossa alma? Porque o que é alimentado é parte do todo, o qual
também é perceptivo passivamente, mas a percepção que julga por meio do
intelecto é de cada um, e não era de modo algum necessário que ela
plasmasse o que é plasmado pelo todo.
243
Não cabe às almas individuais plasmarem e nutrirem os corpos, uma vez que esta
função é exercida pela alma do mundo. Os campos de atividade das duas espécies de alma
238
Cf. IV 9 [8] 3, 10-18: Pw=j ou)=n, ei) yuxh\ mi/a, h( me\n logikh/, h( de\ a)/logoj, kai/ tij kai\ futikh/; h)\
o(/ti to\ me\n a)me/riston au)th=j kata\ to\ logiko\n takte/on ou) merizo/menon e)n toi=j sw/masi, to\ de\
merizo/menon peri\ sw/mata e(=n me\n o)\n kai\ au)to/, peri\ de\ ta\ sw/mata merizo/menon parexo/menon
th\n ai)/sqhsin pantaxou= a)/llhn du/namin au)th=j qete/on, to/ te plastiko\n au)th=j kai\ poihtiko\n
swma/twn du/namin a)/llhn. ou)x o(/ti de\ plei/ouj ai( duna/meij, ou) mi/a! kai\ ga\r e)n t%= spe/rmati
plei/ouj ai( duna/meij kai\ e(/n! kai\ e)c e(no\j tou/tou polla\ e(/n. “Como, então, se a alma é uma, por um
lado é racional e, por outro lado, é irracional, e é até mesmo vegetativa? É porque o que é indivisível dela deve
ser posto no <nível> racional, não dividido nos corpos, mas aquilo que é divisível nos corpos é também isto
mesmo um, mas, como está dividido nos corpos, ao fornecer por toda parte percepção sensível, deve ser
considerado como outra potência sua, e sua capacidade para plasmar e fazer corpos como outra potência. Não é
porque as potências são muitas que ela não é uma; pois também na semente muitas potências e ela é uma; e
desta única provêm muitas unidades.
239
Cf. IV 9 [8] 5, 1-7.
240
Cf. WALD, Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 163.
241
Cf VI 4 [22] 15, 3-6.
242
Um dentre os vários termos pertencentes ao vocabulário aristotélico. Cf., entre outros, De An. II 2, 413b8; II
4, 415a22 ss.
243
IV 9 [8] 3, 23-28: to\ de\ qreptiko/n, ei) e)k tou= o(/lou, e)/xei kai\ e)kei/nhj. dia\ ti/ ou)=n ou) kai\ para\
th=j h(mete/raj yuxh=j to\ qreptiko/n; o(/ti to\ trefo/menon me/roj tou= o(/lou, o(\ kai\ paqhtikw=j
ai)sqhtiko/n, h( de\ ai)/sqhsij h( kri/nousa meta\ nou= e(ka/stou, $(= ou)de\n e)/dei pla/ttein to\ u(pó\ tou=
o(/lou th\n pla/sin e)/xon.
74
são bem delimitados: a faculdade nutritiva é gerida pela alma do mundo, nada havendo de
individual aí, por tratar-se do reino da natureza, provedor de cuidado e nutrição a todos os
seres vivos. Até mesmo as percepções passivas, relativas a um nível puramente animal, não
dizem respeito às almas individuais. Nossas almas, por sua vez, operam com o julgamento
racional a partir dos dados da percepção sensível. Sob esta ótica, não como dizer que as
almas individuais tenham propriamente um nível irracional, já que toda irracionalidade
encontra-se relegada à phýsis, ligada à alma do mundo.
De que modo, porém, pode-se afirmar a existência de uma ligação entre alma do
mundo e natureza? Não é propriamente a alma do mundo quem se dirige aos corpos, dando-
lhes vida, provendo-lhes o crescimento e a sensação. Trata-se, antes, de uma imagem da alma,
produzida por um movimento em sentido oposto ao da contemplação. uma variedade de
níveis de alma, explica o tratado V 2 [11] 1. A alma é uma atividade (e)ne/rgeia) e move-se
produzindo uma imagem (ei)/dwlon): a sensação (ai)/sqhsij) e a natureza nas plantas
(fu/sij e)n toi=j fu/toi=j). Mas, como não poderia deixar de ser para o filósofo que defende a
unidade da alma, nem mesmo a mais baixa das potências da alma está separada de seu
princípio originário
244
. Há, porém, uma gradação entre as várias potências
245
: no nível
inferior, há a alma das plantas, que chamamos de vegetativa (futikh/), a parte “mais
estúpida” (a)frone/staton)
246
e “audaciosa(tolmhro/taton)
247
da alma, e também aquela
que mais se afasta da fonte. Num nível intermediário, há a alma dos animais, onde prevalece a
percepção sensível; mais acima, no homem, a alma pode funcionar em dois níveis: ou
totalmente na parte racional (o(/lwj e)n logik%=) ou também a partir do intelecto que lhe é
próprio (a)po\ nou= w(j nou=n oi)kei=on e)xou/shj)
248
. Porém, a despeito da diversidade de
níveis de operação da alma, bem poderíamos, em última instância, reduzir a divisão a dois
244
Cf. V 2 [11] 1, 20-27.
245
A geração dos níveis inferiores não implica diminuição do gerador, que permanece idêntico, mas aquilo que é
gerado encontra-se em um nível inferior, ainda que essencialmente se mantenha o mesmo que seu gerador, sem
separar-se dele. Cf. V 2 [11] 2, 1-4 e III 8 [30] 5, 24-25.
246
Ponto de vista bastante semelhante ao presente no Timeu 77 b5, em que essa alma das plantas é considerada
não participante do raciocínio e do intelecto, e nem mesmo da opinião: %(= do/chj me\n logismou= te kai\ nou=
me/testin to\ mhde/n.
247
A audácia é, para Plotino, motivo de “queda” das almas. Cf. V 1[10] 1,4, onde a ousadia (to/lma) é
considerada causa do afastamento entre as almas individuais e a Histase.
248
Cf. V 2 [11] 2, 4-10.
75
níveis: irracional (relativo à natureza e à percepção sensível dos animais) e racional (que
parece ser duplo
249
: raciocinativo e intelectivo
250
).
A divisão em níveis da alma reaparece em III 4 [15], 1-2, onde Plotino afirma que
também em nós está presente a natureza, degrau mais baixo da escala hierárquica da alma.
Diferentemente das plantas, porém, nossa alma domina a phýsis, que é apenas uma parte;
nas plantas, a natureza é dominante, uma vez que é a única alma existente ali
251
. Embora caiba
à natureza cuidar dos corpos, até mesmo os demais níveis de alma dirigem-se a eles. Citando
literalmente Fedro, 246 b8 e ss, Plotino afirma que a alma “percorre o céu inteiro”, seja sob a
forma sensitiva, seja sob a forma racional, seja sob a forma vegetativa. No homem, as
faculdades inferiores permanecem associadas à superior, o governo devendo caber a esta.
Contudo, nem sempre o nível superior domina, que as demais faculdades também estão
presentes, pois os homens são dotados de percepção sensível, como os outros animais, e, em
certo sentido, são como as plantas, já que seus corpos também crescem e engendram. A forma
total, porém, é homem devido à sua faculdade melhor
252
.
A consideração da phýsis como o nível inferior da alma que é, ao mesmo tempo,
uma imagem da alma aparece nos tratados da primeira fase dos escritos plotinianos, como
apontamos acima
253
. Ao que parece, esta posição não se modifica na fase intermediária, mas
explicita-se com maior clareza. Assim, em IV 4 [28] 13, Plotino esclarece que a natureza,
último limite da alma, onde lampejam os últimos raios dos princípios racionais (lógoi), produz
espontaneamente, doando-se ao corporal e material, como que por um contato tal como um
corpo aquecido aquece aquilo que entra em contato com ele, ainda que com temperatura
inferior. A natureza é um reflexo da alma do mundo na matéria, constituindo-se no limite
inferior das realidades inteligíveis:
E o que é refletido dela [i.e., da alma do mundo] na matéria é natureza, na
qual os entes se detêm, ou mesmo antes disso, e este é o último <grau> do
inteligível; pois agora o que vem a partir daí são imitações. Mas a natureza é
agente e paciente em relação à matéria, e aquela <alma> que lhe é anterior e
249
uma grande dificuldade para delimitação dos campos de operação do Intelecto e da Alma quando esta
opera em seu nível mais elevado. Cf. BLUMENTHAL, Nous and Soul in Plotinus: some Problems of
Demarcatione ARMSTRONG, “Aristotle in Plotinus: the Continuity and Descontinuity of Psyché and Nous”.
Dada a complexidade do tema, não será possível determo-nos sobre este ponto.
250
Por nível raciocinativo entende-se a dia/noia, isto é, o raciocínio que se realiza no tempo, próprio da
atividade discriminativa e julgadora da razão; já o nível intelectivo é aquele em que a alma exerce sua atividade
em absoluta união com o Intelecto, em estado de pura contemplação, onde não cabe falar em tempo.
251
Cf. III 4 [15] 1, 2-5.
252
Cf. III 4 [15] 2, 1-11.
253
Em V 2 [11] 1, 20.
76
próxima é agente sem sofrer afecção, e aquela que é ainda mais superior não
age sobre os corpos nem sobre a matéria.
254
Descrevem-se aqui os três graus de realidade relacionados à alma do mundo:
abaixo dela, a natureza como imagem sua; acima dela, a Alma Hipóstase. Aparecem três
graus de ação e afecção: a natureza interage com o corpo, agindo sobre ele, mas também
sendo afetada por ele; a alma do mundo apenas age sobre os corpos, sem sofrer qualquer
afecção; a Alma Total, o sabemos
255
, é absolutamente desvinculada dos corpos, de sorte
que nem é agente nem tampouco paciente em relação ao corpóreo.
Fica claro, portanto, que a natureza, existente nas plantas, nos animais e também
nos seres humanos, provém da alma do mundo. Se esta não se inclina para o inferior, a
natureza, ao contrário, age na matéria e é afetada por ela. Em virtude da ação da natureza, os
corpos das plantas e animais tornam-se corpos animados, “compostos”, “corpos qualificados”.
Como explica IV 4 [28] 18, “o corpo do animal e da planta têm como que uma sombra de
alma e o fato de sentir dor e de fruir os prazeres do corpo são relativos a este tipo de
corpo.”
256
Nós, porém, isto é, nossa alma superior, não sentimos dor ou prazer, apenas
tomamos conhecimento disso, sem padecer qualquer afecção. O corpo animado é nosso, mas
não é “nós”; depende de nós, a quem está ligado. Por essa razão, voltamos nossa atenção para
ele, para seus prazeres e dores. E quanto mais fracos formos, maior será nossa incapacidade
de nos separamos dele, acabando por considerá-lo o que temos de mais nobre, confundindo-
nos com ele. Mas, lembre-se sempre, que toda afecção diz respeito ao composto (to\
sunamfo/teron)
257
.
Neste momento, talvez seja útil determo-nos no que seja esta imagem da alma que
entra em comunhão com o corpo. Tem-se considerado a possibilidade de existência de uma
evolução na doutrina plotiniana da alma a partir da segunda fase dos escritos, ou seja, a partir
do tratado VI 4 [22]. Igal
258
reconhece não haver indícios de alguma evolução importante
exceto no campo da antropologia, com o aparecimento de novos elementos a partir da fase
254
IV 4 [28] 13, 19-25: to\ de\ e)c au)th=j e)mfantasqe\n ei)j u(/lhn fu/sij, e)n $(= i(/statai ta\ o)/nta, h)\ kai\
pro\ tou/tou, kai\ e)/stin e)/sxata tau=ta tou= nohtou=! h)/dh ga\r to\ e)nteu=qen ta\ mimh/mata. a)ll” h(
fu/sij ei)j au)th\n poiou=sa kai\ pa/sxousa, e)kei/nh de\ h( pro\ au)th=j kai\ plhsi/on au)th=j poiou=sa
ou) pa/sxei, h( d” e)/ti a)/nwqen ei)j sw/mata h)\ ei)j u(/lhn ou) poiei=.
255
Cf. IV 3 [27] 2, 54-58.
256
IV 4 [28] 18, 6-9: kai\ e)/sti to\ sw=ma tou= z%/ou kai\ tou= futou= de\ oi(=on skia\n yuxh=j e)/xonta,
kai\ to\ a)lgei=n kai\ to\ h(/desqai de\ ta\j tou= sw/matoj h(dona\j peri\ to/ toio/nde sw=ma/ e)stin!
257
Cf. IV 4 [28] 18, 9 ss.
258
Cf. “Aristoteles y la evolución de la antropología de Plotino”, p. 315-346.
77
intermediária da obra. Teriam surgido termos como “imagem” e vestígio” da alma, os quais
diriam respeito a um novo nível no psiquismo humano; do mesmo modo, a fórmula
aristotélica “corpo caracterizado” serviria como referência para o corpo animado. Assim, a
partir da etapa média, Plotino teria estabelecido um nível psíquico intermediário entre a
phýsis, nível ínfimo da alma, e o corpo orgânico. Tal nível seria designado como imagem ou
simulacro (ei)/dwlon), aparência ou vislumbre (i)/ndalma), pegada ou vestígio (i)/xnoj),
sombra (sxia/), espécie de aquecimento (oi(=on qermasi/a), espécie de luz ou brilho (oi(=on
fw=j, e)/lamyij) e espécie de eco (oi(=on e)naqhxhqe\n)
259
. Este vestígio da phýsis se
identificaria às faculdades irascível e apetitiva, constituindo “a outra espécie de alma”, afirma
Igal citando I 1 [53] 12, 20-21. É esta alma que encarna, não a própria alma. O corpo
apropriado orgânico - participa, então, num vestígio da alma e torna-se assim um corpo
vivo. uma concepção de “homem duplo”, observa Igal, que estaria ausente na primeira
fase, mas presente nas demais: o “homem verdadeiro”, transcendente e preexistente, e “o
outro homem”. O primeiro é a alma real e, sustenta Igal, alma compreendendo todos os níveis,
inclusive vegetativo; o segundo é o composto de corpo e imagem da alma, que adere ao
homem verdadeiro.
Parece, porém, que embora seja fato que os termos passem a ser utilizados de
maneira mais acurada a partir da fase média dos tratados, eles não estão ausentes das fases
anteriores. A idéia de que os corpos humanos são formados por corpos orgânicos e por uma
imagem da alma pode ser depreendida no primeiro tratado (I 6), onde Plotino explica que
os corpos nada mais são que imagens da alma às quais não devemos nos apegar: “Pois, ao ver
a beleza nos corpos, não se deve correr em direção a eles, mas, sabendo que são imagens,
traços e sombras, deve-se fugir para aquilo de que estes são imagens.”
260
(I 6 [1] 8,6-7). Note-
se os termos utilizados para fazer referência ao corpo animado (e a menção que logo em
seguida se fará ao mito de Narciso deixa claro tratar-se efetivamente de corpos vivos):
imagens (ei)ko/nej), vestígios (i)/xnh) e sombras (skiai/). Se os corpos vivos são imagens da
alma é porque contêm em si esta imagem provinda da alma. Não possuem vida própria, a
menos que a alma lhes conceda a vida, e sua existência assemelha-se à de uma sombra que
existe enquanto o objeto real está presente para produzi-la. Esta imagem de alma que constitui
o corpo vivo não é o homem real, é o que afirma a seqüência do texto: “Pois se alguém
259
Cf. IGAL, “Aristoteles y la evolución de la antropología de Plotino”, p. 325.
260
I 6 [1] 8, 6-8: i)do/nta ga\r dei= ta\ e)n sw/masi kala\ mh/toi prostre/xein, a)lla\ gno/ntaj w(/j ei)sin
ei)ko/nej kai\ i)/xnh kai\ skiai\ feu/gein pro\j e)kei=no ou(= tau=ta ei)ko/nej.
78
corresse [para a imagem] querendo apreendê-la como <se fosse> verdadeira...”
261
. Quem é
este que pode correr para a imagem senão o verdadeiro homem, a alma? Narciso, o verdadeiro
homem, enamorou-se de seu reflexo e afundou nas profundezas. Do mesmo modo, o homem
(leia-se, a alma) que se deixa seduzir pela imagem da alma acaba “descendo”, desprezando
sua verdadeira origem, sem reconhecê-la como a autêntica realidade que dá vida ao corpo.
É verdade que o texto aqui não deixa claro que tipo de imagem da alma é essa.
Tudo que sabemos é que esta imagem constitui o corpo animado. Com efeito, a existência dos
corpos é condicionada à doação por parte da alma de algo que venha informá-los. A matéria
por si é incapaz de ser imagem de algo, assim como não possui existência. É a alma que
lhes dará a determinação inteligível, com um vestígio seu fazendo-se presente nos corpos e
tornando-os imagens da própria alma. Isto faz parte do esquema processional, sabemos. Por
um dom da alma, o mundo sensível participa do inteligível. Não é, porém, a própria alma que
se une aos objetos materiais, mas algo “doado” por ela e que “se acrescenta” aos corpos. Isto
era dito no segundo tratado (cf. IV 7 [2] 8
1
, 28-31). As potências presentes nos corpos são
incorporais e são estas, e não a alma, que se acrescentam aos corpos materiais dando-lhes
“qualidades” que o tornarão um “corpo qualificado”. Mesmo sem utilizar o termo “corpo
qualificado” é certamente a isto que Plotino se refere ao afirmar que a matéria “faz coisas
diferentes quando adquire „qualidades‟(poio/thtej)”. Assim, os corpos em si são impotentes
para executar qualquer atividade, mas ao receberem “qualidades” da alma tornam-se um
“corpo qualificado”, com certas potências. E as qualidades adquiridas são “princípios
racionais imateriais e incorporais” (lo/goi a)/uloi kai\ a)sw/matoi)
262
. Fica claro, pois, que
são os lógoi que se acrescentam aos corpos conferindo-lhes o estatuto de “corpos
qualificados”, e estes lógoi derivam da alma
263
. É significativo o fato de que ao buscar a
definição do “homem daqui”, em VI 7 [38], Plotino se detenha no exame do lógos nos
capítulos 4 e 5. Vai, pois, explorar aquilo que estava contido em germe no seu segundo
tratado, tornando imanente um princípio transcendente
264
.
261
I 6 [1] 8, 8-9: ei) ga/r tij e)pidra/moi labei=n boulo/menoj w(j a)lhqino/n...
262
IV 7 [2] 8
1
, 31.
263
Mais tarde, em VI 7 [38] 5, 4-5, Plotino explicará a respeito destes lógoi com maior clareza. Mas, não se
afastará da concepção apontada aqui de princípios racionais imateriais e incorporais” que conformam os
corpos e dão-lhes vida. E embora não sejam sem alma “não são inteiramente alma” (VI 7 [38] 5, 5).
264
Cf. WALD, Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 83.
79
Ainda observando a primeira fase dos tratados, encontramos em III 4 [15] o
ensinamento de que cada um de nós é um mundo inteligível”
265
e que “permanecemos no
alto com todo o restante mundo inteligível”
266
, mas ligados à extremidade inferior, dando-lhe
uma “espécie de emanação” (oi(=on a)po/rroian) daquele mundo superior, sem que a parte
inteligível seja diminuída
267
. O termo iluminação” aparece logo em seguida, no capítulo 4,
para explicar que a alma do mundo não se inclina para as últimas profundezas (leia-se, a
matéria) nem mesmo sua parte inferior; é o corpo do universo que se ata a ela e é “como que
iluminado” (oi(=on ekatala/mpetai) sem causar perturbações à alma
268
. A alma do mundo
fornece aos corpos vivos as faculdades vegetativa e sensitiva como potências à alma, sem
absolutamente entregar-se; é por isso que Plotino o encontra outro modo de expressar essa
presença a não ser com antíteses: “portanto, a faculdade vegetativa (to\ futiko\n) está
presente <nos corpos> sem estar presente e do mesmo modo ocorre com a faculdade sensitiva
(to\ ai)sqhtiko\n)”
269
.
As faculdades vegetativas e sensitivas estão presentes nos corpos, portanto, não
exatamente como “alma”, mas como faculdades ou potências doadas pela alma aos corpos, de
sorte que, dotados de tais potências os corpos passam a executar múltiplas atividades. Não
seria correto, pois, traduzirmos futiko/n por “alma vegetativa”, pois não é exatamente a alma
que exerce esta função geradora e nutritiva, mas uma potência sua, que provêm dela qual uma
iluminação. Trata-se de um princípio racional (lo/goj) capaz de informar a matéria e
produzir-lhe vida, mas é um “traço” da alma e não propriamente a alma
270
. Mais apropriado
seria acompanhar a tradução de Armstrong: “princípio de crescimento”. De nossa parte,
utilizamos a consagrada tradução do vocabulário aristotélico (faculdade vegetativa) para
referir-nos a esta faculdade proposta por Plotino cuja inspiração é certamente aristotélica.
Fica claro também neste trecho do tratado III 4 [15] que as faculdades vegetativa e
sensitiva presentes nos seres vivos provêm da alma do mundo. É esta que, por uma espécie de
iluminação do corpo do universo, cede-lhes os princípios de crescimento, de nutrição e de
sensação. Isto, aliás, era explicado no tratado V 2 [11]. Ali, o filósofo explica a natureza
265
III 4 [15] 3, 22: kai\ e)sme\n e(/kastoj ko/smoj nohto/j...
266
III 4 [15] 3, 24: kai\ me/nomen t%= me\n a)/ll% panti\ noht%= a)/nw...
267
Cf. III 4 [15] 3, 21-27.
268
Cf. III 4 [15] 4, 1-7.
269
III 4 [15] 4, 12-13: pa/restin ou)=n kai\ to\ futiko\n ou) paro\n kai\ to\ ai)sqhtiko\n w(sau/twj.
270
Ainda assim, Plotino utiliza por vezes o termo futikh/ para referir-se à alma, como alma vegetativa”.
80
móvel da alma que, contrariamente ao modus operandi do Intelecto e do Um, não permanece
imóvel ao produzir, mas gera uma imagem (ei)/dwlon). Contempla o Intelecto e, num
movimento em direção oposta, “gera sua própria imagem” (genn# ei)/dwlon au(th=j): a
sensação (ai/)sqhsij) e a natureza nas plantas (fu/sij h( e)n toi=j futoi=j).
271
Trata-se de um
nível inferior produzido pela alma, como uma extensão dela, sem rompimentos abruptos, mas
mantendo a escala gradativa de processão, formando assim um outro nível de existência
(u(po/stasij a)/llh), que poderíamos chamar de phýsis. Assim, as faculdades vegetativa e
sensitiva já neste tratado da primeira fase aparecem como imagens da alma; o elas que
“descem” para compor os corpos e dar-lhes vida e movimento.
Constata-se, pois, que, desde os primeiros tratados, a formação das plantas e dos
animais é explicada em termos de uma “iluminação” ou “reflexo” da alma. É segundo esta
medida que se explica a formação dos corpos humanos enquanto animais. Os homens
encontrarão sua determinação de homens não por meio destas imagens da alma que produzem
sua vida corporal e a percepção sensível própria de animais. Serão homens em virtude de
outro princípio, superior, que se identifica com a própria alma individual e que lhes concede o
raciocínio e o acesso às realidades inteligíveis.
A concepção de um reflexo enviado pela alma talvez seja útil para que o filósofo
conta da participação do sensível no inteligível, já que deste modo não exatamente uma
mistura entre elementos heterogêneos como o corpo e a alma. Com efeito, a alma passa a
animar o corpo não por interpenetração, mas por meio de uma imagem sua, de uma
“iluminação”, o que permite salvar a impassibilidade da alma. Se a doutrina foi tomando
forma mais clara ao longo dos escritos de Plotino, isso o significa que não estivesse
presente em seus primeiros tratados. Por outro lado, a presença de uma alma que se mistura ao
corpo (e não uma imagem de alma) mais constante nos tratados iniciais, comparece ainda na
última fase dos escritos, de sorte que lemos em III 5 [50] sobre uma alma “misturada”
(memigme/nhj)
272
. Só nos resta constatar a extrema dificuldade da doutrina plotiniana da alma
que tanto dificulta o trabalho dos intérpretes.
Retomemos a questão da bipartição da alma. Como foi observado, Plotino não
parece realmente supor a tripartição platônica, mas serve-se desta apenas como o primeiro
momento de um exame que termina por afastar-se completamente da partição inicial. É o que
se pode observar, por exemplo, em I 2 [19]. Aí, no primeiro capítulo, ao investigar sobre a
271
Cf. V 2 [11] 1, 18-28.
272
Cf. III 5 [50] 4, 25.
81
possibilidade de existência das chamadas virtudes cívicas no inteligível, retoma a discussão de
República IV, 427e-434d, associando as virtudes às partes platônicas da alma
273
. No terceiro
capítulo, entretanto, em lugar das virtudes cívicas, entra em cena outra espécie de virtude, a
purificação (ka/qarsij), que, diferentemente das demais, é, de fato, capaz de tornar-nos
semelhantes a Deus. Esta virtude trata de separar da alma tudo que não seja sua própria
natureza.
A alma purificada, desembaraçada do corpo, age absolutamente só, sem sofrer
influências corporais, de modo que as virtudes tornam-se naturais e a alma manifesta-as sem
esforço algum. Sua atividade ocorre no nível racional e intelectual, onde não lugar para
opiniões derivadas da relação com o corpo. As chamadas virtudes cívicas passam agora a
expressar-se naturalmente, como conseqüência da desvinculação com o corpo. A temperança
e a coragem são próprias daquele que não é afetado pelo corpo e, por isso, não partilha de
suas afecções nem teme afastar-se dele. A justiça, enfim, é a própria manifestação da pureza
de alma, na qual imperam a razão e o intelecto. A purificação é, pois, uma assimilação da
alma ao divino, ao Intelecto, que resulta na separação entre a alma mais elevada e as
atividades inferiores da alma, relacionadas ao corpóreo, com a conseqüente identificação do
“eu” com a alma superior. Que o filósofo supõe tão somente duas partes da alma, isto é
explicitado em seguida:
Ela própria [a parte racional] será totalmente pura de todas estas coisas e
querefazer a irracional também pura, de modo tal que nem esta venha a
ser atingida, e se o for, seus golpes não serão violentos, mas poucos, e logo
dissolvidos pela vizinhança: tal como alguém, sendo vizinho de um sábio,
poderia tirar proveito da proximidade do sábio, seja tornando-se semelhante
a ele, seja experimentando um sentimento de pudor, de sorte que não ousasse
fazer nada que o homem bom não desejasse. Portanto, não haverá conflito,
pois a razão, estando presente, governa, e será respeitada pela pior <parte>
de modo tal a até mesmo esta ficar desapontada caso haja algum movimento,
por não ter se calado na presença de seu senhor, e reprovará sua própria
fraqueza.
274
273
Cf. I 2 [19] 1, 16-21, onde Plotino associa a sabedoria (fro/nhsij) à parte discursiva (to\ logizo/menon), a
coragem (a)ndri/a) à parte irascível (to\ qumou/menon), a temperança (swfrosu/nh) à concordância e harmonia
entre a parte apetitiva (to\ e)piqumhtiko/n) e o raciocínio (to\ logismo/n), e considera a justa (dikaiosu/nh)
como a virtude que permite a cada uma das três partes cumprir a função que lhe é própria.
274
I 2 [19] 5, 21-31: o(/lwj de\ au(/th me\n pa/ntwn tou/twn kaqara\ e)/stai kai\ to\ a)/logon de\
boulh/setai kai\ au)to\ kaqaro\n poih/sai, w(/ste mhde\ plh/ttesqai! ei) d” a)/ra, mh/ sfo/dra, a)ll”
o)li/gaj ta\j plhga\j au)tou= ei)=nai kai\ eu)qu\j luome/naj th= geitonh/sei. w(/sper ei)/ tij sof%=
geitonw=n a)polau/oi th=j tou= sofou= geitnia/sewj h)\ o(/moioj geno/menoj h)\ ai)dou/menoj, w(j mhde\n
tolma=n poiei=n w(=n o( a)gaqo\j ou) qe/lei. ou)/)koun e)/stai ma/xh! a)rkei= ga\r parw\n o( lo/goj, o(\n to\
82
Há, portanto, basicamente duas espécies de alma no homem manifestado no
mundo sensível: a racional, à qual cabe o governo, e a irracional, que deve respeito e
obediência àquela que lhe é superior. No interior desta bipartição, operam as várias faculdades
da alma. Aliás, o emprego do vocabulário aristotélico relativo às potências da alma permite a
elaboração de diversos aspectos que teriam ficado obscuros na doutrina platônica da alma.
Assim, a parte apetitiva platônica é aproximada da faculdade vegetativa, chegando Plotino a
afirmar a coincidência entre esta e o princípio da faculdade apetitiva
275
.
A relação entre apetite e faculdade vegetativa reaparece em IV 3 [27] 23, onde
nosso filósofo retoma o caminho aberto por Platão no Timeu, 70d-71d. Relaciona, assim, as
capacidades de geração, nutrição e crescimento com a faculdade apetitiva, que é alojada” no
fígado, na proximidade dos órgãos cuja função é nutrir. A parte irascível (qumo/j), por sua
vez, estará ligada ao coração. Mais adiante, em IV 4 [28] 28, o assunto é retomado. Estabelece
com bastante facilidade a origem dos apetites na faculdade vegetativa: esta fornece um traço
ou vestígio (i)/xnoj) seu a todo o corpo, mas sobretudo à região em torno do fígado, local onde
ela é especialmente ativa e que, portanto, será considerado origem dos apetites no corpo
276
.
Não é fácil, entretanto, identificar a origem da irascibilidade, tendo em vista sua inclinação
para escutar ora a razão ora os apetites. Será necessária uma longa investigação para localizar
as variadas origens da cólera. Primeiramente, observa que os sentimentos de ira surgem não
apenas quando nós próprios enfrentamos algum sofrimento corporal, mas também quando
isso ocorre junto a pessoas próximas, o que indica a necessidade de alguma sensação
(ai)/sqhsij) e entendimento (su/nesij) para que a cólera ocorra. Por conseqüência, sua
origem não pode ser simplesmente a faculdade vegetativa, mas é necessário algo mais.
Facilmente, porém, pode-se considerar a ira como algo que segue a inclinação corporal
quando se observa que acessos de raiva - ou sua ausência - decorrem do temperamento
corporal. Também as doenças, a fome ou a sede influem na ira, de modo que nestes casos “o
sangue ou a bile são imediatamente postos em movimento e, ocorrendo uma sensação, tendo a
xei=ron ai)de/setai, w(/ste kai\ au)to\ to\ xei=ron dusxera=nai, e)a/n ti o(/lwj kinhq$=, o(/ti mh\ h(suxi/an
h)=ge paro/ntoj tou= despo/tou, kai\ a)sqe/neian au)t%= e)pitimh=sai.
275
Cf. III 6 [26] 4, 32-34, contrariando Aristóteles, que relacionara o apetite (e)piqumi/a) com a percepção
sensível, em De Anima II 3, 414 a 29 ss.
276
Cf. IV 4 [28] 28, 10-18.
83
imaginação (fantasi/a)
277
colocado a alma em comunicação com a disposição do corpo
qualificado, nesse momento a alma se lança contra aquilo que provocou a dor.”
278
. Por outro
lado, o ponto de partida do processo pode não ser o corpo, mas a alma racional, a qual, ao
deparar-se com algo injusto, ativa o mesmo processo anterior para fazer deste um aliado
contra a injustiça. Em resumo, há duas espécies de cólera: “uma que é irracionalmente
despertada - e a razão é arrastada pela imaginação - e outra que começa na rao e termina
naquilo que é naturalmente apto a encolerizar-se; e ambas derivam da faculdade vegetativa e
gerativa que prepara o corpo para ser receptivo a prazeres e dores, e isto o faz bilioso e
amargo”.
279
A faculdade vegetativa está, pois, na origem do processo. Prova disso é que
pessoas menos desejosas dos prazeres corporais são menos movidas pela cólera. Não basta,
porém, a presença da faculdade vegetativa, pois, neste caso, até mesmo as plantas sentiriam
ira. É preciso também a presença de sangue e bile - o que permite haver algum tipo de
irritação - e percepção sensível, que permite algum movimento contra o causador da ofensa
280
.
Ora, se o processo depende fundamentalmente da faculdade vegetativa, Plotino pode, então,
opor-se à distinção platônica entre partes apetitiva (to\ e)piqumhtiko/n) e irascível
(qumoeide/j)
281
:
277
Mais um termo extraído do vocabulário aristotélico, com o qual Plotino procurará explicar a cognição que
tem lugar na alma sensitiva. Tocamos aqui, entretanto, em um ponto aparentemente nevrálgico da doutrina
plotiniana da alma. Segundo Blumenthal (Soul and Intellect: Studies in Plotinus and Later Neoplatonism, cap. V,
p. 347), Plotino não teria conseguido fornecer nenhuma “explicação séria sobre como a alma pode agir no corpo,
ou como ela é capaz de perceber eventos corporais”. Sem dúvida, a distinção entre corpo e alma é de tal
envergadura que dificilmente se pode conceber como pode haver a união entre elementos tão díspares. Este
talvez seja um dos mais complicados problemas do platonismo, que exige, em última instância, que se conta
da participação do sensível no inteligível. Contudo, talvez o exame das Enéadas VI 4-5 [22 e 23] permita o
alcance de alguma solução, se aceitarmos a observação de O‟Meara (Plotin. Une introduction aux Ennéades, p.
31), que concede a estes tratados o estatuto de “primeiro texto platônico que enfrenta verdadeiramente o
problema” da relação entre sensível e inteligível. observamos também a importância do estabelecimento de
uma entidade intermediária entre a alma e o corpo, qual seja, a imagem ou vestígio da alma. Talvez se encontre
a solução plotiniana para tão sério problema. O assunto mereceria mais atenção, porém, tendo em vista a
própria envergadura do problema, não será possível dedicarmo-nos a ele nesta dissertação.
278
IV 4 [28] 28, 40-43:... eu)qe/wj kinei=sqai to\ ai(=ma h)\ th\n xolh/n, ai)sqh/sewj de\ genome/nhj th\n
fantasi/an koinw/sasan th\n yuxh\n t$= toiou=de sw/matoj diaqe/sei h)/dh pro\j to\ poiou=n th\n
a)lghdo/na i(/esqai!
279
IV 4 [28] 28, 47-52: kai\ ei)=nai to\ me\n e)geiro/menon a)lo/gwj kai\ e)fe/lkesqai t$= fantasi/# to\n
lo/gon, to\ de\ a)rxo/menon a)po\ lo/gou kai\ lh=gon ei)j to\ pefuko\j xolou=sqai! kai\ para\ tou=
futikou= kai\ gennhtikou= a)/mfw gi/gnesqai kataskeua/zontoj to\ sw=ma oi)=on a)ntilhptiko\n
h(de/wn kai\ luphrw=n, to\ de\ pepoihke/nai xolw=dej kai\ pikro/n.
280
Cf. IV 4 [28] 28, 52-64. Cf. também PLATÃO, Rep. IV, 439d-e e ARISTÓTELES, De Anima III 9, 432b25-
26.
281
Cf. PLATÃO, Rep. IV, 439d-440a.
84
Mas, se <a parte> irracional da alma fosse dividida em apetitiva e
irascível
282
, e a primeira fosse a faculdade vegetativa, e a irascível fosse um
traço desta no sangue, na bile ou no composto, a divisão não seria correta,
que uma seria anterior e outra posterior. Ora, nada impede que ambas sejam
posteriores e que a divisão seja entre coisas derivadas da mesma origem;
pois a divisão é de desejos, enquanto são desejos, não da essência da qual
eles provêm. Esta essência, porém, em si mesma, não é desejo, mas talvez
ela realize o desejo ao ligar-se à atividade que vem dele.
283
Tanto os apetites quanto os sentimentos de cólera (e as emoções em geral)
originam-se na faculdade vegetativa, e em qualquer dos casos o corpo estará envolvido. A
dicotomia entre parte apetitiva e parte irascível não se refere a uma divisão da essência da
alma, ou seja, não é a própria alma que se divide assim, mas trata-se de uma partição dos
desejos, que derivam de uma faculdade desiderativa (to\ o)rektiko/n) presente nos corpos
animados. Por esta razão, por referirem-se em última instância a desejos, as “partes
platônicas” epithymía e thymoeidés - e as afecções em geral fundam-se na faculdade
vegetativa
284
.
O gado corresponde no corpo à parte apetitiva da alma, e o coração, à parte
irascível. Ambas as partes, porém, referem-se a desejos e têm como princípio a faculdade
vegetativa, cuja sede” é o gado. Quanto à faculdade sensitiva, aproveitando-se das
descobertas médicas
285
que relacionavam o sistema nervoso e o cérebro, Plotino localiza “o
princípio da percepção e do impulso, e em geral do ser vivo todo, no cérebro”
286
. Isso não
significa, contudo, que alguma parte da alma esteja, de fato, no corpo, que o filósofo
constantemente afirma que a alma, sendo incorporal, o pode situar-se no corpo. O que está
282
Cf. PLATÃO, Timeu, 69c-e.
283
IV 4 [28] 28, 64-73: a)ll” ei) to\ a)/logon th=j yuxh=j diairoi=to ei)j to\ e)piqumhtiko\n kai\
qumoeide\j kai\ to\ me/n ei)/h to\ futiko/n, to\ de\ qumoeide\j e)c au)tou= i)/xnoj peri\ ai(=ma h)\ xolh\n h)\ to\
sunamfo/teron, ou)k a)\n o)rqh\ h( a)ntidiai/resij gi/noito, tou= me\n prote/rou, tou= de\ u(ste/rou o)/ntoj.
h)\ ou)de\n kwlu/ei a)/mfw u(/stera kai\ tw=n e)pigenome/nwn e)k tou= au)tou= th\n diai/resin ei)=nai!
o)rektikw=n ga\r h( diai/resij, $(= o)rektika/, ou) th=j ou)si/aj, o(/qen e)lh/luqen. e)kei/nh de\ h( ou)si/a
kaq” au(th\n ou)k o)/recij, a)/ll” i)/swj teleiou=sa th\n o)/recin suna/yasa au)t$= th\n par” au(th=j
e)ne/rgeian.
284
É interessante observar a reprovação de Julia Annas (Introduction à la République de Platon, p. 429) ao
tratamento dado por Platão no livro X da República à parte inferior da alma - parte considerada como
“crapulosa” e “sem valor” -, “relegando para segundo plano o fato de que, para que sua definição fosse coerente
com os papéis que ela desempenha alhures, seria necessário compreendê-la como a parte desejante”. Ora, é
exatamente como uma correção a Platão que Plotino proe considerar epithymía e timoeidés não como partes
de uma dicotomia da alma irracional, mas situá-las ambas no plano do desejo (órexis), relacionando-as à
faculdade desiderativa.
285
De Herófilo e Erasístrato, com a posterior elaboração por Galeno.
286
IV 3 [27] 23, 12-14: ... th\n th=j ai)sqh/sewj kai\ o(rmh=j a)rxh\n kai\ o(/lwj panto\j tou= z%/ou
e)ntau=qa [a)po\ e)gke/fa/lou] e)/qesan fe/rontej...
85
em jogo aqui é o modo de operação da alma em sua relação com o corpo, ou seja, a maneira
como as várias funções da alma são desempenhadas por meio de algum órgão corporal. Por
isso, o filósofo utiliza freqüentemente o termo “traço da alma” (yuxh=j i)/xnoj)
287
ao tratar da
operação da alma no corpo. E como todas as afecções - impulsos, apetites, paixões, etc. -
dizem respeito ao corpo, Plotino poderá afirmar a impassibilidade da alma. Assim, em III 6
[26], esclarece que as percepções sensíveis (ai)/sqhseij) não são afecções (pa/qh), mas
atividades (e)nergei/ai) e julgamentos (kri/seij) relativos às afecções. Estas pertencem aos
“corpos qualificados de um certo modo”, ou seja, aos corpos animais, mas o julgamento - que
não é afecção - pertence à alma. Contra a idéia estóica
288
de que, ao ocorrer um julgamento,
alguma impressão da coisa julgada ficaria impregnada na alma, Plotino defende que os
julgamentos são semelhantes a atos de pensamento, atividades onde se conhece sem ser
afetado. A explicação da impassibilidade da alma baseia-se, em primeiro lugar, em seu caráter
incorpóreo e incorruptível, mas sempre se poderia objetar que a alma sofre algum tipo de
modificação, pois, se possui opiniões falsas, isto significa que algo penetrou nela e a
modificou. Ainda poderiam ser oferecidas como evidência em apoio a esta objeção as
diversas mudanças de estado da alma, ora corajosa ora covarde, ora luxuriosa ora temperante,
o que implicaria alguma afecção na alma. A argumentação de Plotino deve muito a
Aristóteles: a alma pode estar em estados diferentes sem que haja alteração intrínseca, mas
somente a passagem da potencialidade para a atualidade. Nada lhe foi acrescentado e a alma
simplesmente age de acordo com sua própria natureza. A perfeita virtude da alma ocorrerá
quando ela for ativa segundo sua essência, de sorte que a faculdade racional comande-a
completamente. Não como negar as inúmeras variações de sentimentos, desejos e prazeres
presentes no ser humano. Mas, embora seja verdade que as afecções têm como causa a alma,
elas ocorrem no corpo. É este que se altera por meio do sangue, enrubescendo, por exemplo,
quando vergonha na alma. Os movimentos têm origem na alma, mas ela não é movida por
eles, permanecendo essencialmente a mesma
289
.
Enfatizada a impassibilidade da alma, Plotino pode agora referir-se à faculdade
produtora de afecções (to\ paqhtiko/n)
290
sem que o leitor incorra no engano de considerar
287
Cf., por exemplo, IV 4 [28] 28 passim e IV 4 [28] 29, 50.
288
SVF II, 55. Cf. SVF I, 141, 234 e 484; III, 459.
289
Cf. III 6 [26] 1-3.
290
Termo herdado do vocabulário estóico, de difícil tradução. As opções de tradução oferecidas por Bréhier (“la
partie passive de l‟âme”) e por Armstrong (“part of the soul which is subject to affections”) parecem abrir espaço
para um entendimento equivocado de Plotino, já que nenhuma parte da alma - nem mesmo o paqhtiko/n - está
86
esta faculdade como algo realmente afetado. Esta faculdade é responsável pelo surgimento de
afecções, por exemplo, o sentimento de medo que nasce a partir da opinião de que se
morrerá
291
. Neste caso, a alma ativa a função da imaginação (fantasi/a), produzindo uma
imagem mental (fa/ntasma) que perturba o corpo, de modo que, alcançado o nível da
percepção sensível, ocorre palidez, tremor, incapacidade de falar. Nada disso, porém, está na
alma, pois são afecções corporais. Como a alma não é corpo, mas forma (ei)=doj), ela
permanece estática e somente a matéria da qual ela é o motor é que é afetada
292
.
Outra faculdade dependente da percepção sensível é o que poderíamos nomear por
faculdade opinativa (doxastikh/)
293
, que será contada junto à “pior parte” da alma
294
. Trata-
se da capacidade de formar opiniões e consiste na elaboração de retratos mentais”, que
podem ser verdadeiros ou falsos e devem ser submetidos ao julgamento da razão.
A despeito da multiplicidade de funções da alma, todas estas remetem, em última
instância, às três principais faculdades: vegetativa, sensitiva e racional. A faculdade
vegetativa tem por função gerar, plasmar, nutrir e prover o crescimento dos corpos; a
faculdade sensitiva é aquela que permite a formação de imagens mentais com as quais será
possível à faculdade racional, esta sim absolutamente independente dos corpos, efetuar
julgamentos. As duas primeiras estão intimamente relacionadas com os corpos, ao contrário
da faculdade racional, independente do corpo.
A alma do mundo rege a operação das faculdades inferiores da alma - vegetativa e
sensitiva -, cabendo à alma individual a condução da faculdade racional. Conseqüentemente,
os homens no mundo sensível são, por assim dizer, duplos, compostos de uma alma mais
divina e outra proveniente da alma do mundo
295
, que os torna partes da natureza. Assim, no
início do capítulo 32 do tratado IV 4 [28], o Todo é apresentado como um “único ser vivo que
engloba todos os seres vivos dentro dele
296
, com “uma única alma que se estende a todas as
suas partes”, de sorte que “cada um é uma parte dele”. No que tange aos corpos de cada coisa
sujeita a afecções. A função desta faculdade da alma é produzir afecções no corpo, sem ser ela mesma afetada.
Por isso pareceu-nos bastante adequado considerar o paqhtiko/n como a “faculdade produtora de afecções”.
291
Note-se, porém, que a afecção está em uma parte, isto é, no corpo, e a opinião está em outra parte, na alma.
292
Assim também, exemplifica Plotino, a faculdade vegetativa é causa do crescimento dos corpos, mas ela
mesma não cresce (cf. III 6 [26] 4, 38-41).
293
Cf. V 3 [49] 9, 28-30; III 6 [26] 4.
294
Cf. I 1 [53] 9.
295
Cf. IV 3 [27] 27, 1-3: A)lla\ ti/noj yuxh=j, th=j me\n legome/nhj u(f” h(mw=n qeiote/raj, kaq” h(\n
h(mei=j, th=j de\ a)/llhj th=j para\ tou= o(/lou; - “Mas de que alma, daquela que nós chamamos mais divina,
pela qual somos nós mesmos, ou da outra que vem do Todo?”
296
Citação tirada do Timeu 30d3-31a1.
87
individual, cada um deles é parte deste Todo e, portanto, partícipe da alma do mundo. Neste
sentido, todos os seres que vivem dentro do Todo sensível são partes da alma do mundo,
que possuem corpos. Alguns participam somente desta alma do mundo
297
e são, portanto,
partes, em todos os sentidos. Há, porém, quem participe em outra alma” - leia-se, a Alma
Hipóstase - e, por essa razão, não são completamente partes
298
. Plotino certamente refere-se
aos homens: somos partes do Todo, mas não em todos os sentidos, pois há algo em nós que se
destaca da organicidade do universo e que nos permite escapar, de algum modo, à fatalidade
cósmica. Enquanto temos um corpo, participamos da alma do mundo, tal como os demais
animais. Mas é por participarmos também de uma alma mais divina, a Hipóstase, que somos
capazes de alcançar o patamar de igualdade junto à alma do mundo, equiparando-nos a
princípios causais derivados diretamente da Hipóstase
299
.
II.1.2. Os Dois Homens
Talvez seja possível compreender com mais clareza a natureza da alma humana se
examinarmos com algum detalhe os capítulos 4-6 do tratado VI 7 [38], onde Plotino procura
responder à questão sobre quem é o homem. Inicialmente, no quarto capítulo, investiga sobre
a natureza do homem no mundo inteligível, mas logo percebe ser necessário compreender, em
primeiro lugar, quem é o “homem daqui” (o( t$=de a)/nqrwpoj)
300
. Observa que homem e
alma não são o mesmo e aporta precisão à identificação platônica entre estes termos
301
.
Embora Plotino jamais tenha se afastado desta concepção, professada em seu segundo
tratado
302
, vê-se o tratado 38 apresentar os termos de maneira mais acurada. O homem é “uma
razão formal (lógos) diferente da alma”
303
, ou seja, é uma das determinações ou atualizações
possíveis para a alma. Sua essência é a alma, é verdade, mas o homem é um certo “modo de
ser” da alma, um ato da alma. Como explica Pierre Hadot, “o homem é um composto, não de
297
Embora não explicitado no texto, é bastante razoável supor que Plotino se refira às plantas e aos animais
irracionais.
298
Cf. IV 4 [28] 32, 4-13.
299
Cf. o próximo capítulo “As almas individuais como princípios causais” (II.2).
300
Cf. VI 7 [38] 4, 1-6.
301
Cf. PLATÃO, Alcibíades (Primeiro), 129e-130c: “O homem é, então, diferente de seu próprio corpo? (...)
Resta, creio, que ele [o homem] ou não é nada, ou, se de fato é algo, resulta que o homem o é outra coisa
senão a alma”.
302
Cf. IV 7 [2] 1, 22-25.
303
VI 7 [38] 5, 1-2: Lo/gon toi/nun dei= to\n a)/nqrwpon a)/llon para\ th\n yuxh\n ei)=nai.
88
uma alma e de um corpo, mas de uma alma e de uma razão formal, a razão formal que faz que
homem seja homem e que se une à alma para fazer dela uma alma humana: este lógos, é a
alma que o escolhe, ela se determina a ser e a agir segundo este tipo de ser.”
304
Em seguida, Plotino retoma a distinção entre três potências da alma: vegetativa,
sensitiva (inferior) e racional (superior). Agora, porém, é oferecida uma explicação mais
detalhada do processo que resulta na constituição do homem daqui”. Ao nascer, a alma
racional une-se à alma sensitiva, produtora do animal. Mas, se somos compostos de uma alma
mais divina e outra oriunda da alma do mundo, o que nos torna “nós mesmos” é a alma
racional, que se une ao corpo constituído. Assim, explica o quinto capítulo do tratado VI 7
[38], no nascimento, o “homem superior”, isto é, a alma racional com o lógos de homem
racional, une-se ao “homem inferior”, isto é, à alma sensitiva com o lógos de homem. Embora
viva e aja como um homem, o homem inferior nada mais é que uma imagem fraca e
obscurecida do homem superior. A constituição do ser humano explica-se assim: a ligação
entre alma racional e corpo não é uma união direta entre alma e corpo, e nem mesmo é
possível dizer, com Platão
305
, que a alma racional simplesmente se serve do corpo; a alma
racional, diz Plotino, serve-se do corpo por meio da alma sensitiva. Ao ocorrer a mistura entre
alma racional e alma sensitiva, forma-se um único sujeito consciente e perceptivo e, desta
unidade, o homem inferior é como que iluminado pelo superior, sem que este saia do
inteligível.
Além destes dois homens, superior ou racional e inferior ou sensitivo, o sexto
capítulo fala ainda sobre um terceiro homem, o homem no Intelecto, o mais elevado de todos.
É este homem Lá”, no inteligível, que Plotino buscava no início de sua investigação. É a
Idéia ou Forma eterna de Homem, da qual os lógoi de homem são a manifestação ou
atualização. O homem superior é iluminado pela Idéia de Homem, participa desta Forma, e
transmite esta iluminação ao homem sensitivo. O homem racional pode viver segundo
qualquer um dos três níveis: pode elevar-se ao Homem no Intelecto ou dirigir-se para o corpo,
isto é, para o homem sensitivo. Mas, ainda que se una ao homem sensitivo, o homem racional
não deixa jamais de ser parte do mundo inteligível, pois a alma racional, mais divina, não
abandona jamais o inteligível
306
.
304
HADOT , Traité 38, p. 219.
305
Cf. Alcibíades (Primeiro), 129e11.
306
Por mais que a alma individual se estenda e se aproxime do sensível, há sempre uma parte dela que não deixa
o inteligível. Este, vale frisar, é um dos pontos centrais da doutrina plotiniana da alma. Cf. IV 8 [6] 8, 1-3; V 8
[31] 10, 22; II 9 [33] 2, 4-10. Hadot (Traité 38, p. 225) considera que Plotino provavelmente apóia-se no Fedro,
249 e5. Cf. mais adiante, p. 109-115.
89
A distinção entre homem inferior e superior mantém-se até os últimos tratados.
Assim, em seu penúltimo tratado, I 1 [53], Plotino, ao tratar do ser vivo, explica claramente o
que seja este homem inferior. Nada mais é que um animal, uma entidade em que corpo e alma
inferior estão em comunhão; é um composto. Possuidor de opiniões, desejos e paixões, só este
- o composto - é passível de erro, ficando a alma superior isenta de responsabilidade por
quaisquer males. As opiniões formam-se na parte inferior da alma e, se não forem submetidas
ao crivo da razão, podem ser enganadoras e causa de muitos males. Neste caso, somos
dominados pelo que é pior em nós - pelo apetite, pela paixão ou por alguma imagem
(ei)/dwlon kako/n). Em suma, o mal ocorre quando pensamos falsidades - e isto significa
elaborar um retrato mental (fantasi/a) e não aguardar o julgamento da faculdade inteligente
(h(/ tou= dianohtikou= kri/sij) e, assim, agimos obedecendo às piores partes
307
. Quanto à
alma superior, esta, por estar diretamente em contato com o inteligível, não comete faltas. O
erro deriva sempre da união com o corpo, quando a alma deixa-se levar pelo que provém do
corpo, por imagens e opiniões que não passaram pelo escrutínio da razão.
É preciso distinguir, continua Plotino
308
, entre aquilo que é próprio da alma e
aquilo que é próprio do composto. Próprio da alma é tudo que não requeira corpo; o que é
próprio do composto sempre exige a presença do corpo. Deve-se, portanto, observar a
diferença entre o raciocínio capaz de operar absolutamente desvinculado do corpo e o
raciocínio que atua baseado no corpo, o qual “não espera pelo julgamento da faculdade
inteligente”. Neste caso, quem julga é a faculdade opinativa, ligada à percepção sensível, e
não a alma racional.
A função da alma é dupla
309
: deve prover a vida - das plantas e animais,
incluindo-se aqui o homem -, mas deve também deliberar racionalmente, julgar, inteligir. A
primeira função é perfeitamente cumprida pela alma do mundo, que governará os corpos,
plasmando-os e nutrindo-os, enquanto a segunda função é própria das almas individuais. Estas
atuam essencialmente separadas dos corpos, de modo que, ainda que estejam junto a corpos
humanos, podem - e devem - separar-se e manter-se no inteligível. O homem encarnado tem
um caráter claramente composto: por um lado, é um animal, unido à natureza e dotado das
faculdades provindas da alma do mundo, mas sua essência é, como vimos anteriormente, a
307
Cf. I 1 [53] 9, 1-12.
308
Cf. I 1 [53] 9, 15 ss.
309
Acompanhando Platão, que no livro I da República (353d) atribuía à alma duas funções: por um lado,
administrar, governar e deliberar; por outro lado, prover a vida.
90
alma racional. É por essa razão que o homem, a bem dizer, não necessita de um corpo sico,
mas será homem ainda que se manifeste apenas no inteligível.
Contudo, embora as almas individuais sejam, por essência, racionais e devam
operar neste nível racional, é possível volvermos o olhar ora para o que está acima de nós, o
Intelecto, ora para o que está abaixo, o mundo da percepção sensível. E, devido a essa dupla
possibilidade de direção do olhar, podemos alçar-nos ao que nos transcende, ao mundo
inteligível, ou sermos arrastados para as coisas corporais
310
. No tratado V 3 [49], Plotino
deixa claro que os atos de raciocínio e de inteligência, próprios da razão discursiva (diánoia),
referem-se à nossa própria identidade:
Somos nós mesmos que raciocinamos e nós mesmos que concebemos os
pensamentos na razão discursiva; pois isto somos nós. Mas os atos do
intelecto vêm de cima, assim como os atos da percepção sensível vêm de
baixo; e nós somos isto, a parte soberana da alma, no meio entre duas
potências, uma pior e outra melhor, a pior sendo a percepção sensível, a
melhor, o Intelecto.
311
Os homens manifestados no mundo sensível podem tender a três direções
diferentes: à razão discursiva - que é o que é mais propriamente nosso -, à percepção sensível
- ligada à nossa animalidade no mundo e responsável pelos desejos e paixões próprios do
corpo -, ou à atividade puramente intelectual, contemplativa - própria do nível do Noûs. Ora,
em virtude dessa multiplicidade de potências da alma humana, pode acontecer - e em geral é o
que ocorre - de voltarmo-nos para o universo das coisas sensíveis e aproximarmo-nos do
inferior, como que mesclando-nos com ele. Neste caso, a razão, que deveria simplesmente
dirigir o corpóreo, acaba por ser arrastada pela pior parte e escraviza-se a ela, tornando-se sua
servidora. Assim, o superior submete-se ao inferior e a razão passa a buscar a satisfação dos
desejos corporais. Felizmente, nem toda a alma é arrastada, pois a parte em contato com o
inteligível permanece lá, em pura contemplação.
312
É preciso, portanto, não esquecer nossa
verdadeira identidade, absolutamente independente do corpo, e a filosofia de Plotino é um
constante alerta contra a queda das almas:
310
Cf. II 9 [33] 2, 4-10.
311
V 3 [49] 3, 35-40: h)\ au)toi\ me\n oi( logiz\o/menoi kai\ noou=men ta\ e)n t$= dianoi/# noh/mata au)toi/!
tou=to ga\r h(mei=j. ta\ de\ tou= nou= e)nergh/mata a)/nwqen ou(/twj, w(j ta\ e)k th=j ai)sqh/sewj ka/twqen,
tou=to o)//ntej to/ ku/rion th=j yuxh=j, me/son duna/mewj ditth=j, xei/ronoj kai\ belti/onoj, xei/ronoj
me\n th=j a)isqh/sewj, belti/onoj de\ tou= nou=.
312
Cf. II 9 [33] 2.
91
Mas nós - quem somos nós? Acaso somos aquele que se aproxima e que vem
a ser no tempo? Ora, mesmo antes deste nascimento acontecer, nós
estávamos sendo outros homens, e alguns até deuses, almas puras e
intelecto unido à essência total, sendo partes do inteligível não delimitadas
nem separadas, mas pertencentes ao Todo; com efeito, nem mesmo agora
estamos separados. Agora, porém, outro homem desejoso de ser aproximou-
se daquele homem; e tendo nos encontrado - pois nós não estamos fora do
Todo - acercou-se de nós e acrescentou-se àquele homem que era então cada
um de nós (...); e nós nos tornamos a união deles - e não aquele outro que
éramos antes - e, por vezes, apenas o outro que se acrescentou
posteriormente, quando aquele primeiro está inativo e de algum outro modo
não presente.
313
Nossa verdadeira existência é absolutamente independente do corpo e não se
vincula ao nascimento neste mundo. Estamos de tal modo atados ao inteligível que, mesmo
encarnados, nossa alma superior jamais se aparta de lá, ainda que nos falte consciência disso.
O grande problema do ser humano resume-se, pois, em sua identificação com o homem
inferior, por esquecimento ou por incapacidade de percepção de sua origem e essência
inteligível. Por essa razão, a filosofia plotiniana é enfática quanto à necessidade de
purificação, de separação entre a parte superior da alma e as demais partes que têm comércio
com o corpo. Seu objetivo central - é preciso insistir neste ponto - é promover o apartamento
entre a alma pura e a alma contaminada pelo corpo, pelos acréscimos, de modo a alcançar
uma comunhão entre alma e Intelecto. Assim, em V 3 [49] 9, ao tratar da possibilidade de
conhecimento do Intelecto pela alma, Plotino fala daquela “parte mais divina da alma” que
deve ser conhecida por quem almeja conhecer o Intelecto. Para isso, é preciso efetuar a
separação entre corpo e homem (ou si mesmo) e, em seguida, afastar-se da alma formadora do
corpo, e separar-se sobretudo daquilo que nos inclina para o que é mortal: a percepção
sensível, os apetites, as paixões e “outras frivolidades” semelhantes
314
. A libertação de todos
estes “acréscimos” permitirá a identificação do homem com a “parte mais divina da alma”,
que é uma “imagem do Intelecto”, de modo que esta alma pura será capaz de, a partir de si
mesma, contemplar o Intelecto e tirar conclusões a seu respeito.
313
VI 4 [22] 14, 16-31: h(mei=j de/ - ti/nej de\ h(mei=j; a)=ra e)kei=no h)\ to\ pela/\zon kai\ to\ gino/menon e)n
xro/n%; h)\ kai\ pro\ tou= tau/thn th\n ge/nesin gene/sqai h(=men e)kei= a)/nqrwpoi a)/lloi o)/ntej kai\
tinej kai\ qeoi/, yuxai\ kaqarai\ kai\ nou=j sunhmme/noj t$= a(pa/s$ ou)si/#, me/rh o)/ntej tou= nohtou=
ou)k a)fwrisme/na ou)d” a)potetmhme/na, a)ll” o)/ntej tou= o(/lou! ou)de\ ga\r ou)de\ nu=n a)potetmh/meqa.
a)lla\ ga\r nu=n e)kei/n% t%= a)nqrw/p% proselh/luqen a)/nqrwpoj a)/lloj ei)=nai qe/lwn! kai\ eu(rw\n
h(ma=j - h)=men ga\r tou= panto\j ou)k e)/cw - perie/qhken e(auto\n h(mi=n kai\ prose/qhken e(auto\n
e)kei/n% t%= a)nqrw/p% o(\j h)=n e(/kastoj h(mw=n to/te! (...) kai\ gegenh/meqa to\ suna/mfw kai\ ou)
qa/teron, o(\ pro/teron h)=men, kai\ qa/tero/n pote, o(\ u(/steron proseqe/meqa a)rgh/santoj tou=
prote/rou e)kei/nou kai\ a)/llon tro/pon ou) paro/ntoj.
314
Acompanhando Platão, Fédon, 66c3.
92
II. 2. AS ALMAS INDIVIDUAIS COMO PRINCÍPIOS CAUSAIS
II.2.1. O estatuto das almas individuais como fundamento da autonomia
humana
Temos procurado mostrar que a relação entre as almas individuais e a alma do
mundo não é uma relação de subordinação e derivação, mas que as almas individuais
apresentam um estatuto ontológico semelhante ao da alma do mundo e que a relação entre
estas é de fraternidade, o de filiação. Mas, quais seriam as conseqüências do entendimento
desta relação como uma filiação e o uma fraternidade? Que diferença faria aceitarmos um
estatuto ontológico inferior para nossas almas?
A resposta parece ser dada pela Enéada III, 1 [3], “Sobre o destino”, onde Plotino
busca uma solução para a possibilidade de autonomia humana e responsabilidade pessoal.
Sem dúvida, uma ordem cósmica, um governo do universo pela alma do mundo; não
podemos, contudo, ficar simplesmente atados a este grande encadeamento universal. É
preciso, de algum modo, conceder liberdade ao homem, para que este não seja simples
membro de um grande corpo cósmico. Por essa razão, as almas individuais serão
estabelecidas como princípios causais, ao lado da alma do mundo, garantindo a liberdade
humana. No entanto, não se trata de qualquer parte da alma individual, mas apenas da porção
que permanece pura. A liberdade vincula-se à capacidade da alma para distanciar-se do corpo
e agir de maneira independente deste, capacidade que cabe exclusivamente à parte não
descida da alma, por onde nos ligamos à Alma Hipóstase.
O debate entre livre-arbítrio (ou “o que está em nosso poder”, to\ ef h(mi=n) e
determinismo, permeou a Antigüidade e rendeu diversos tratados “sobre o destino”, onde são
expostos os argumentos epicuristas e estóicos. O cético acadêmico Carnéades, tendo
identificado os problemas de ambas as posições, não teria, contudo, solucionado a questão.
Plotino, por sua vez, insere-se no debate e procura dar uma resposta positiva.
Examinemos inicialmente, de maneira bastante expedita, as origens do problema
com o qual Plotino se defronta, tratando um pouco do epicurismo e do estoicismo. Em
seguida, a palavra será dada diretamente a Plotino, para que responda a seus interlocutores e
tome posição, exigindo a elevação ontológica das almas individuais.
93
II.2.1.1. O epicurismo e o problema da responsabilidade moral
Epicuro, ao herdar de Demócrito a explicação da natureza por meio do movimento
dos átomos no vazio, reconheceu um sério problema: a ação humana fica enrijecida em um
sistema determinista em que tudo decorre da necessidade física do movimento atômico.
Epicuro procura, pois, enfrentar o problema entre livre-arbítrio e determinismo, já que parece
haver uma incompatibilidade entre o determinismo causal e a possibilidade de se fazer de
outro modo, condição necessária para a atribuição de responsabilidade moral
315
. Se tudo for
necessário, também nós agiremos segundo a necessidade, e o poderá, portanto, ser-nos
imputada qualquer responsabilidade por nossos atos
316
.
Epicuro teria, então, introduzido um elemento de indeterminação ao movimento
atômico, o “desvio”. Vejamos o relato crítico de Cícero a respeito deste conceito:
Mas Epicuro pensa que a necessidade do destino é evitada pelo desvio
(declinatio) dos átomos. Assim, um terceiro tipo de movimento surge em
adição ao peso e ao impacto, quando o átomo desvia por um intervalo
mínimo, ou e)la/xiston como ele o denomina. Que este desvio ocorra sem
uma causa, ele é forçado a admitir na prática, mesmo sem tantas palavras.
Pois não é pelo impacto de outro átomo que um átomo desvia. Como, afinal,
pode-se ser atingido por outro se os corpos atômicos viajam
perpendicularmente em linhas retas pelo seu próprio peso, como Epicuro
afirma? Pois segue-se que nunca se é afastado de seu curso por outro, se um
nem mesmo é tocado pelo outro. A conseqüência é que, mesmo supondo que
o átomo de fato exista e que ele desvie, ele desvia sem uma causa.
317
A declinatio apontada por cero é o clinamen para Lucrécio, que considera o
desvio como princípio explicativo para a ausência de determinação no comportamento
humano:
315
Ao menos, esta é a interpretação tradicional, segundo a qual a a atenção de Epicuro estaria voltada para a
incompatibilidade entre o determinismo causal e a responsabilidade moral. Cf. O‟KEEFE, Epicurus on freedom,
p. 1-2, 14. Cf. também LONG&SEDLEY, p. 107, que consideram Epicuro como o primeiro filósofo a
reconhecer o problema do livre-arbítrio.
316
Cf., por exemplo, a Carta a Meneceu: “(1) Quem, afinal de contas, você considera superior ao homem que...
ridicularizaria o <destino>, o qual alguns introduzem como senhorio de tudo, < mas que algumas coisas são
inevitáveis (são por necessidade), > outras são devidas à fortuna, e outras dependem de nós, uma vez que a
necessidade não é responsável para ninguém, e a fortuna é uma coisa instável de se observar, enquanto que
aquilo que depende de nós, com o que a culpabilidade e seu oposto estão naturalmente associados, é livre de
qualquer senhorio? (2) Pois seria melhor seguir a mitologia sobre os deuses que ser um escravo do “destino” dos
filósofos naturais: o primeiro, pelo menos, sugere a esperança de escusar-se junto aos deuses por meio do culto,
ao passo que o último envolve uma inexorável necessidade”. (Epicuro, Carta a Meneceu, 133-4, apud LONG &
SEDLEY, 20A).
317
CÍCERO, De Fato, 22. As traduções dos textos de Cícero seguem a tradução francesa de Albert Yon.
94
Mas que a mente não deve ela mesma possuir uma necessidade interna em
todo seu comportamento, e ser dominada e, por assim dizer, forçada a sofrer
e a ser influenciada, isto é produzido por um minúsculo desvio de átomos em
uma região não fixada do espaço nem em tempo fixado.
318
A finalidade do desvio seria, pois, excluir a ação humana da rigidez e da
necessidade física do movimento atômico, como nos informa Cícero:
A razão de Epicuro para introduzir esta teoria era seu receio de que, se o
movimento do átomo fosse sempre o resultado do natural e necessário peso,
nós não teríamos liberdade, que a mente (animus) seria movida de
qualquer modo que fosse compelida pelo movimento dos átomos.
Demócrito, o originador dos átomos, preferiu aceitar esta conseqüência de
que tudo acontece pela necessidade do que privar os corpos atômicos de seus
movimentos naturais.
319
Se Cícero não estava convencido da qualidade da resposta epicuriana ao problema do
livre-arbítrio, outros, como Lucrécio
320
, enxergaram uma boa solução, reconhecendo o desvio
como princípio explicativo da responsabilidade nas ações morais, capaz de garantir a
atribuição de louvor ou de censura ao agente. É o caso do filósofo epicurista Diógenes de
Enoanda (séc. II d.C.):
Uma vez eliminada a profecia, como pode haver qualquer outra evidência
para o destino? Pois se alguém usa a explicação de Demócrito, dizendo que
os átomos, por causa de suas colisões uns com os outros, não têm
movimento livre, e que como conseqüência todos os movimentos são por
necessidade, nós lhe replicaremos: “Não sabes, quem quer que tu sejas, que
há também um movimento livre nos átomos, que Demócrito falhou em
descobrir, mas que Epicuro trouxe à luz, um movimento desviante, como ele
demonstra de fatos evidentes?” Mas o ponto central é este: se se acreditar no
destino, este é o fim de toda censura e admoestação, e mesmo o mau <não
estará sujeito a censura>.
321
Tal solução, porém, tomada isoladamente, parece ser bastante insatisfatória, já que
introduz um princípio dificilmente capaz de explicar a autonomia do agente
322
. O desvio,
ainda que produza alguma indeterminação, nem por isso é princípio propriamente explicativo
da liberdade humana, já que as volições seriam simplesmente identificadas com os desvios ou,
no mínimo, constituídas por eles. Se for assim, cada ação que executamos bem poderia ser
318
SVF 2. 292, apud LONG&SEDLEY, 20F.
319
CÍCERO, De fato, 23.
320
Cf. SVF 2.251-93
321
DIÓGENES DE OENOANDA, 32.1.14-3.14, apud LONG&SEDLEY, 20G.
322
Cf. LONG&SEDLEY, p. 107.
95
diferente, se o desvio (e, por conseqüência, a volição) não tivesse ocorrido, ou então,
ocorresse em outro momento
323
. Com efeito, o papel desempenhado pelo desvio talvez tenha
sido superestimado pelos intérpretes da teoria epicurista da ação
324
e certamente o problema é
bem mais complexo do que se pode esboçar em algumas poucas linhas. Embora novas
interpretações acerca deste assunto tenham surgido
325
, não daremos espaço para elas, pois
interessa-nos aqui a perspectiva da interpretação de Plotino. Por essa razão, vamo-nos deter
no entendimento rapidamente esboçado segundo alguns testemunhos dos antigos. Certamente
terá sido neste viés que Plotino compreendeu a teoria epicurista do desvio.
II.2.1.2. O determinismo estóico e o problema da liberdade
No debate em torno da liberdade humana e da responsabilidade moral, os estóicos
possuíam a reputação de partidários de um determinismo estrito, sendo censurados pela falta
de espaço em sua filosofia para a responsabilidade moral. Independentemente da veracidade
desta imputação
326
, nosso intuito aqui será observar os argumentos estóicos utilizados por
seus oponentes que Plotino também se inserientre eles - no que tange à liberdade
individual.
Inicialmente, é bom observar que o sistema estóico forma um todo coerente, no
qual ética e física o se separam. Assim, a teoria estóica da causalidade tem implicações
323
Cf. O‟KEEFE, Epicurus on freedom, p. 14-15.
324
É o que pensa, por exemplo, O‟Keefe (Epicurus on freedom, p. 1), argumentando que “o desvio desempenha
um papel apenas periférico na teoria geral de Epicuro, e que uma ênfase excessiva no papel do desvio tem
causado significantes distorções em nosso entendimento da ética de Epicuro, da filosofia da mente, da teoria da
ação e da metafísica.”
325
O‟Keefe (Epicurus on freedom, p. 15-17) faz um recenseamento das diversas interpretações: a “anti-
reducionista”, partilhada por David Sedley, Julia Annas e Philip Mitsis; embora concordem com a interpretação
“tradicional” defendida por Cyril Bailey, Elizabeth Asmis, Jeffrey Purinton e Don Fowler, a qual considera que o
problema entre o determinismo causal herdado de Demócrito e a possibilidade da livre escolha seja a
preocupação de Epicuro, estes intérpretes entendem que Epicuro nega que a mente possa ser explicada
exaustivamente em termos de movimentos atômicos, pois isto excluiria a existência de propriedades psicológicas
como as volições. O‟Keefe apresenta também a interpretação da “causa interna”, proposta por David Furley e
Suzanne Bobzien, para quem a preocupação de Epicuro não seria apresentar o desvio como produtor da ação
livre, mas salvar-nos da “necessidade interna”, isto é, de apresentarmos caracteres necessários, caso sua
formação decorresse unicamente do ambiente e da hereditariedade, fatores externos além de nosso controle.
Assim, o desvio romperia a cadeia de causa e efeito e permitiria que o agente tivesse como origem de suas ações
uma causa interna. Por fim, O‟Keefe apresenta sua própria tese, de que a preocupação principal de Epicuro não
seria com a responsabilidade moral, mas com a preservação da eficácia e da racionalidade na deliberação acerca
de ações futuras, coisa à qual o determinismo se opõe, já que em toda deliberação eficaz deve entrar em mputo
a contingência do futuro, mas, para o determinismo, o futuro é necessário.
326
Long, por exemplo, sustenta que o determinismo estóico “não exclui uma teoria coerente da ação humana
voluntária” e que “o conceito estóico de responsabilidade moral, ainda que insatisfatório, representa um avanço
em relação a Aristóteles, ao levantar com agudeza os problemas de hereditariedade e do ambiente” (Problems in
Stoicism, p. 174)
96
diretas na questão da liberdade humana. Como relata Cícero sobre um argumento de Crisipo,
“não movimento sem causa. Se é assim, tudo que acontece ocorre por meio de causas
antecedentes - neste caso, tudo acontece através do destino.”
327
O problema, é claro, não está
em afirmar que todos os acontecimentos possuem uma causa; Platão e Aristóteles
aceitavam a impossibilidade de um evento sem causa alguma. Contudo, os estóicos foram
além ao afirmar um nexo causal estrito por meio do qual cada evento interliga-se a seu
antecedente e é, ao mesmo tempo, causa de seu sucessor:
[Fala Quintus Cícero em defesa da teoria estóica da adivinhação] (1) Por
“destino”, eu entendo aquilo que os gregos chamam ei(marme/nhn
328
- um
ordenamento e seqüência de causas, uma vez que é a conexão de causa a
causa que, a partir de si mesma, produz algo. (2) É uma verdade sempiterna,
fluindo desde toda eternidade. Conseqüentemente, nada aconteceu que não
fosse acontecer, e, do mesmo modo, nada acontecerá cuja natureza não
contenha as causas eficientes para aquilo mesmo. (3) Isto torna inteligível
que o destino deva ser, não o “destino” da superstição, mas aquele da física,
uma causa eterna das coisas - por que as coisas passadas aconteceram, por
que as coisas presentes estão agora acontecendo, e por que as coisas futuras
serão
329
.
Para os estóicos, o mundo é uma unidade toda interligada e o desenrolar dos
acontecimentos é comparado ao “desenrolar de uma corda”.
330
Mas essa unidade inclui as
ações humanas, de modo que dificilmente o homem poderia ser visto como um verdadeiro
agente, como um princípio de movimento. um plano traçado por Deus
331
e certamente os
estóicos sustentavam suas idéias por razões teleológicas. A racionalidade divina, o lógos,
confunde-se com este nexo causal ou destino:
(1) Crisipo chama a essência do destino de um poder pneumático (du/namin
pneumatikh/n) realizando o governo ordenado do todo... “Destino é a razão
(lo/goj) do mundo” ou “a razão (lo/goj) dos atos de providência do
governo no mundoou “a razão (lo/goj) segundo a qual eventos passados
aconteceram, eventos presentes estão acontecendo e eventos futuros
acontecerão”. (3) E como substituto para razão (lo/goj) ele usa “verdade”
(alh/qeia), “explicação” (ai)ti/a), natureza (fu/sij), necessidade
327
CÍCERO, De fato, 21.
328
Particípio do verbo mei/romai (receber como parte que lhe cabe, receber como lote).
329
CÍCERO, De divinatione 1.125-6, SVF 2.921, apud LONG&SEDLEY, 55L.
330
CÍCERO, De div. 1.127 apud LONG, Problems in Stoicism, p. 177.
331
O deus estóico é “em primeiro lugar, um princípio ativo, racional, providencial e imanente impregnando toda
matéria, às vezes identificado com a natureza ou com o destino; segundo, o mundo todo ou suas massas
elementais constitutivas; e terceiro, os deuses tradicionais do panteão grego, interpretados alegoricamente como
simbolizando a deidade imanente estóica nestes vários aspectos.” (LONG & SEDLEY, vol. 1, p. 331).
97
(a)na/gkh) e outros termos, tomando-os para aplicá-los à mesma essência de
diferentes pontos de vista
332
.
É notável a variedade de nomes dada por Crisipo a essa ordenação do mundo -
ordem que será assemelhada por Plotino à alma do mundo, que não se trata de uma
ordenação simplesmente mecânica de alguma lei de causa e efeito, mas de uma ordenação
determinada por uma racionalidade cósmica ou divina. uma natureza universal” que
executa os planos de Deus
333
.
Estando os eventos determinados de antemão, teríamos que afirmar com Crisipo
que “nenhum evento particular, ainda que pequeno, tem lugar sem que esteja de acordo com a
natureza universal e seu princípio”.
334
A doutrina estóica da causalidade tem, portanto, fortes
repercussões na ética, expressando um determinismo capaz de excluir a autonomia do campo
da ação humana:
[Os estóicos dizem que] Todas as coisas foram fixadas e arranjadas desde o
início, inclusive aquelas consideradas situadas em nosso poder e aquelas
consideradas fortuitas e sujeitas ao acaso... Os movimentos de nossas mentes
nada mais são que instrumentos para cumprir decisões determinadas
(ministeria decretorum fatalium), uma vez que é necessário que estas sejam
executadas por nós (per nos) pela agência do destino (agente fato). Assim,
os homens desempenham o papel de uma condição necessária, tal como o
lugar é uma condição necessária para o movimento e o repouso
335
.
O homem seria, então, parte da natureza, inserido como mais uma peça na
grande engrenagem cósmica. Os oponentes desta doutrina bem podem se perguntar, pois, se
ainda a possibilidade de algum papel autônomo a ser desempenhado nessa ordem eterna.
Ao que parece, o haveria lugar para o livre-arbítrio, que todas as decisões humanas
seriam predeterminadas. É bem possível que Calcídio não reflita aqui a inteireza do
332
STOBAEUS, 1.79, 1-12, SVF 2.913, parte; LONG & SEDLEY, 55M.
333
Há, em Crisipo, uma identidade entre destino e providência divina, segundo o depoimento de Calcídio:
“Assim, alguns acreditam existir uma presunção de que há uma diferença entre provincia e destino; a realidade
é que eles são uma mesma coisa. Pois a providência será a vontade de deus, e, além disso, sua vontade é a série
de causas. Em virtude de ser sua vontade, é providência. Em virtude de também ser a série de causas, ganha o
nome adicional de “destino”. Conseqüentemente, tudo em acordo com o destino é também o produto da
provincia, e, do mesmo modo, tudo em acordo com a providência é o produto do destino. Esta é a visão de
Crisipo. Mas outros, como Cleantes, ao mesmo tempo em que também consideram os comandos da providência
por acontecer como destino, permitem que coisas que acontecem por destino não sejam o produto da
provincia.” (CALCIDIUS, 144, SVF 2.933; LONG & SEDLEY, 54U).
334
PLUTARCO, De Stoic. rep. 34, 1050A, SVF 2.937.
335
CALCIDIUS, In Tim. CLX-CLXI; SVF 2.943; apud LONG (Problems in Stoicism), p. 177.
98
pensamento estóico, como nota Long
336
, mas é sobretudo esta posição que nos interessa, já
que é esta a idéia que Plotino tem em mente ao enfrentar o problema desencadeado pelo
determinismo estrito.
É preciso, contudo, mencionar que, de alguma maneira, os estóicos procuraram
dar conta do problema da responsabilidade moral, e o fizeram por meio da inclusão da
influência da hereditariedade e do ambiente. A partir da natureza particular de um homem,
conferida a ele em seu nascimento como herança de seus pais, e a partir de sua educação,
forma-se o caráter individual, que servirá de causa interior para uma determinada ação
337
. De
todo modo, porém, o determinismo permanece, uma vez que o próprio caráter, que conduzirá
o comportamento humano, é determinado, seja pela origem seja pela educação. Isto significa
que os atos de vontade não são genuinamente livres, que dependentes do caráter e das
causas formadoras deste caráter. Veremos que Plotino dialogará também com esta questão da
hereditariedade e do ambiente como determinantes do comportamento.
338
Como confiavam na existência de uma racionalidade cósmica predeterminando
todos os eventos, os estóicos aceitavam também a possibilidade de previsão dos
acontecimentos futuros. Como conciliar, então, a autonomia do agente com a
interdependência dos eventos? Para o entendimento humano, o futuro parece conter diversas
possibilidades, mas, para Deus, tudo já está traçado e somente o que vai acontecer é realmente
possível. O homem executará seus atos de vontade de uma maneira, ao que parece,
completamente determinada: sua vontade é determinada por seu caráter (que, como vimos, é
determinado também), e mais, seus atos são limitados pelas situações externas, também
336
LONG, Problems in Stoicism, p. 178-9: Sob uma perspectiva, as observações de Calcídio provavelmente são
acuradas; mas, se tomadas simplesmente como estão, elas dão uma impressão completamente falsa de toda
posição estóica primitiva sobre o destino e a ação humana... O mundo pode ser visto como nada mais que a
atividade do pneuma que tudo permeia. Ainda assim, o lógos, a causa principal, está dentro do homem
individual, assim como é uma força externa constrangendo-o. Deus está expresso no todo, a soma de todas as
substâncias, o que inclui os lógoi particulares; descrever o homem como nada mais que uma condição necessária
para o cumprimento do plano de Deus é enganador.”
337
Veja-se a resposta de Crisipo ao problema da impossibilidade de se responsabilizar as ações humanas num
mundo em que tudo é obra de um inevitável destino: Embora seja verdade que todas as coisas estão unidas por
um certo princípio necessário e fundamental e que elas estão conectadas ao destino, ainda assim, as verdadeiras
disposições de nossas mentes só estão sujeitas ao destino segundo sua qualidade particular. Pois se suas
formações desde o início forem naturalmente saudáveis e se elas forem moldadas apropriadamente, ultrapassam
sem oposição ou obstáculo toda a pressão que vier externamente do destino. Se, por outro lado, forem ásperas,
incultas e rudes, sem o suporte de alguma cultura civilizada, elas então afundam-se em contínuos vícios e erros
de sua própria vontade e natureza viciosa, mesmo quando são importunadas por pouca ou nenhuma oposição de
uma infelicidade destinada. O próprio fato de que os homens comportam-se de maneiras diferentes é o resultado
da seqüência de eventos natural e necessária chamada destino. Pois é, por assim dizer, o destino de seu
verdadeiro gênero humano e uma conseqüência deste que más disposições não estejam livres de cometer faltas e
erros.”(Aulus Gellius, Noctes atticae VII 2; SVF 2.100; apud Long, Problems in Stoicism, p. 186)
338
Cf. p. 105 desta dissertação.
99
determinadas pelo destino. E qualquer que seja a ação executada pelo homem, ela não poderia
ser outra, que tudo está traçado de antemão e é, portanto, previsível pelos métodos
divinatórios.
Sem dúvida, há, dentro do próprio estoicismo, uma resposta ao problema da
liberdade individual: trata-se da liberdade do nosso, por assim dizer, estado de espírito. Essa
idéia é bem evidente em Epiteto. Ao menos, o homem pode escolher a maneira como vai
enfrentar os dados inevitáveis do destino; pode reconhecer pelo lógos a ordenação cósmica e
consentir em tomar parte dela ou oferecer-lhe resistência. O destino se cumprirá de qualquer
modo, mas ele pode participar disso de boa vontade ou não. Permanece o fato, porém, de que
não como interferir nos eventos exteriores, absolutamente determinados. Seríamos como
cães amarrados a um carro, sendo puxados e sem outro remédio que não seguir aquele carro;
poderíamos, é claro, acompanhá-lo docilmente ou rebelarmo-nos e procurarmos puxar para
outro lado; de todo modo, porém, o fato é que teríamos que acompanhar o carro. Esta
imagem, atribuída a Crisipo e a Zenão
339
parece ilustrar bem o problema geral do
determinismo estóico.
II.2.1.3. A resposta de Plotino: o tratado III 1 [3]
O problema sobre o destino recebeu a atenção de Plotino neste que é um de seus
primeiros escritos. Talvez se possa considerar a existência de um caráter convencional neste
tratado, que utiliza argumentos bastante conhecidos na época e serve-se especialmente de
críticas elaboradas por Carnéades
340
. Com efeito, o De fato de Cícero apresenta, em diversos
339
Cf. Hippolytus (Diels Dox. Graec. p. 571, 11 = SVF 2.975); LONG&SEDLEY, 62A.
340
Carnéades participou do debate de maneira que parece ter sido devastadora para ambos os lados. Se o
determinismo recusava a introdução de “movimentos sem causa”, propostos na explicação epicurista do desvio,
já que isto significaria a abolição do sistema causal no universo, Carnéades enxergou que nenhum dos dois lados
estava correto: a introdução do desvio epicurista era inútil, pois bastaria observar que as escolhas humanas não
são predeterminadas, o que não significa que sejam sem causa, uma vez que a causa se encontra na própria
natureza da ação voluntária (cf. CÍCERO, De fato, 23ss). Embora amplamente aceita a argumentação de
Carnéades, ela é ainda bastante insatisfatória, como mostra Sharples: “Afirmar que a causa da ação reside no
agente, ou que escolhas humanas são de espécies diferentes das dos eventos físicos e devem ser discutidas em
diferentes termos, não altera o fato de que no nível dos eventos físicos - o qual as escolhas humanas certamente
afetam - ou cada resultado é a inevitável conseqüência da situação precedente, ou então não. Não como sair
deste dilema, ao menos se supomos que a discussão diz respeito a um sistema fechado, cujos estados sucessivos
podem, pelo menos em princípio, ser descritos. O sistema estóico é definitivamente deste tipo; e enquanto o
universo epicurista é espacialmente infinito, o fato de a velocidade dos átomos ser finita, ainda que muito
grande, significa que é apenas a posição e movimento de um número finito de átomos que deve ser levada em
conta ao considerar os antecedentes, um tempo finito anterior, de qualquer evento particular. Epicuro estava
certo ao enxergar o desvio atômico, ou algum evento correspondente não determinista, como, no mínimo, uma
condição necessária para a liberdade do determinismo, ainda que não seja uma explicação completa dela, e
100
aspectos, bastante similaridade com este tratado; também o De fato, de Alexandre de
Afrodísia, traz contribuições que parecem presentes aqui. Tal como Carnéades, Plotino
atacará a visão estritamente determinista do destino, seja ela estóica ou atomista; tampouco
poderá concordar com a resposta epicurista ao problema. Entretanto, sua solução, ao conciliar
o determinismo estóico com a liberdade individual, parece trazer o problema para um novo
campo, com o abandono da visão materialista predominante nos adversários. Parece ter
residido o erro de Carnéades: dentro de um sistema materialista, físico, em que não se
admite uma ação sem causa - e, para os materialistas, sem causa material -, não parece ser
possível abolir o determinismo sem que se introduza algum elemento material, não
determinístico. É este o ponto que Plotino parece ter percebido, e sua concepção de alma
incorporal permitirá alcançar uma resposta aparentemente mais adequada.
Logo no início do tratado, após anunciar a investigação sobre as causas
341
, Plotino
aponta o alvo de sua argumentação: atacará a teoria epicurista do desvio (pare/gklisij),
bem como qualquer concepção que suponha a possibilidade de movimento dos corpos sem a
existência de alguma causa precedente. Plotino alinha-se assim à tradição grega (presente
em Melisso, DK B 1), segundo a qual nada pode vir do nada, ou seja, não é possível que algo
seja absolutamente sem causa. Pelo mesmo motivo, recusa a hormé estóica, constatando a
impossibilidade de um primeiro impulso ou movimento da alma sem qualquer causa que o
anteceda. Tais explicações não podem ser aceitas, pois, ao invés de explicar a liberdade,
afastam justamente qualquer possibilidade de executarmos uma ação por nossa própria
vontade. Neste caso, a alma seria arrastada por movimentos involuntários (a)boulh/tai) e
sem causa, não pertencendo a si mesma, mas atada a uma necessidade que a dominaria
342
.
Sem dúvida, tudo tem uma causa imediata, e Plotino, conhecedor da filosofia
aristotélica
343
, reconhece uma grande variedade de causas para os eventos
344
. Mas não pode se
contentar com isso; é preciso ir além, pois como explicar que, dadas as mesmas
Carnéades errou ao sugerir que o desvio poderia ter sido dispensado.” (Stoics, Epicureans and Sceptics. An
Introduction to Hellenistic Philosophy, p. 78).
341
Começa apontando dois tipos de causas: 1) a causa do vir a ser das coisas pertencentes ao mundo do devir; 2)
a causa de existirem as coisas que realmente existem (isto é, os inteligíveis). Quanto ao Um, nada pode ser causa
de sua existência, que é o primeiro, mas quanto às realidades que dependem do Um, estas têm seu ser a partir
dele, a partir do que é primeiro. Plotino parece falar aqui do Intelecto e das Formas. Já quanto às coisas que são
geradas (os seres sensíveis) e quanto às coisas que sempre existem mas nem sempre agem do mesmo modo
(Plotino estaria se referindo aqui, talvez, às almas), estas certamente têm uma causa para vir a ser, pois não se
pode admitir neste domínio algo que seja sem causa. Cf. III 1 [3] 1, 8-16.
342
Cf. III 1 [3] 1, 16-24.
343
Plotino utiliza um exemplo da Física, II, 5, 196b33-34.
344
Cf. III 1 [3] 1, 24-36.
101
circunstâncias, um, por exemplo, fique doente e outro o, ou este enriqueça e aquele não?
Embora não se negue a existência de causas próximas, é preciso dar conta daquelas mais
remotas. É o que todos os filósofos procuraram fazer. Uns, diz ele, encontram como causas
primeiras princípios corporais, como os átomos. Trata-se da teoria dos atomistas, entre os
quais Epicuro se alinha, ainda que introduza o “desvio”. Para os atomistas, a existência e
modo de ser das coisas são explicados pelo choque e entrelaçamento dos átomos, pelo modo
como estes se combinam e agem uns sobre os outros, de tal sorte que até mesmo nossos
impulsos e disposições seriam produzidos pelos átomos. Isto significa, entende Plotino, que
os verdadeiros entes (ta\ o)/nta) estariam sujeitos à necessidade proveniente dos átomos. Ora,
nada mais inaceitável para o filósofo que preconiza a superioridade do incorporal sobre o
corporal, a soberania da alma e tudo que é produzido por ela (pensamentos, volições) sobre
movimentos materiais. Como aceitar que a necessidade material possa produzir efeitos
naquilo que lhe é anterior em todos os sentidos? Pelo mesmo motivo, devem também ser
rejeitadas as teorias que propõem outros corpos como princípios. Plotino refere-se
provavelmente aos filósofos da natureza que supuseram os quatro elementos fogo, terra, ar e
água como princípios.
345
Se o é possível aceitar como causas remotas princípios materiais, tampouco se
deve supor que a causa de tudo seja um determinado princípio do universo (que, veremos,
Plotino assimilará à alma do mundo), um princípio que penetra tudo, que move e faz cada
coisa individual. Com isso, o filósofo recusa o determinismo estrito, segundo o qual o destino
é considerado causa suprema, capaz de penetrar e mover todas as coisas - o apenas as
corpóreas, mas até mesmo os nossos pensamentos. Tal concepção assemelha-se à idéia de um
grande ser vivo do qual seríamos partes, de sorte que nada teríamos de propriamente nosso,
mas tudo seria causado por este ser a que pertenceríamos
346
.
Também deve ser rejeitada a explicação causal proposta pela astrologia, segundo
a qual tudo aconteceria em virtude de uma rotação universal. Baseados em predições obtidas a
partir das posições dos planetas e estrelas, os astrólogos nada mais fazem que manter o
encadeamento causal estrito, de modo a, também eles, colocarem o destino em posição
soberana
347
.
Temos assim delineado o quadro dos oponentes: por um lado, encontram-se os
que supõem um único princípio causal; dentre estes, alinham-se os estóicos, os astrólogos e os
345
Cf. III 1[3] 2, 9-17.
346
Cf. III 1 [3] 2, 17-25.
347
Cf. III 1[3] 2, 26-36.
102
filósofos da natureza. Por outro lado, há quem admita uma multiplicidade de princípios, como
fazem os atomistas e Epicuro.
Os atomistas, Epicuro incluído, são os primeiros a ser atacados. é absurdo e
impossível supor que a razão e a alma governante possam advir da desordem dos corpos -
sejam átomos ou elementos -, mas, mais impossível ainda é supor que tudo seja produzido a
partir de átomos. Contra estes, Plotino utiliza um argumento estóico: como é possível advir a
ordem - e nosso mundo é, com efeito, ordenado - a partir de uma desordem, tal como é o
movimento dos átomos? Lança outros argumentos: i) Num mundo assim não haveria lugar
para nenhum tipo de adivinhação e profecia - e importa-lhe salvar a possibilidade de
predição
348
, esta entendida como a leitura, interpretação ou reconhecimento de sinais que
corresponderiam a certos eventos (não como causas dos eventos). ii) Não vida que os
corpos se submeterão à necessidade, sofrendo os efeitos do choque entre os átomos; mas, e
quanto à alma? Como relacioná-la ao movimento dos átomos? Como um movimento atômico
poderia forçar a alma a ter um determinado raciocínio ou algum impulso? Afinal, como a
alma poderia ter seus movimentos submetidos a objetos materiais como são os átomos? iii)
Além disso, casos em que a alma se opõe às afecções do corpo; ora, como os átomos
poderiam explicar essa atitude da alma? iv) E quais seriam os movimentos atômicos que
levariam cada homem a exercer uma atividade diferente, a ter pendores diferentes? Não
haveria como explicar nossos caracteres e disposições, caso fôssemos movidos e atirados
aleatoriamente pelos corpos, qual seres inanimados. As mesmas objeções poderiam ser
dirigidas a outros que supõem corpos como princípios de tudo. As operações da alma o
podem provir de corpos, mas devem ter origem em outro princípio.
Em seguida, enfrenta os defensores de um único princípio causal. Seu primeiro
alvo será o determinismo estrito. Contra estes, Plotino dirá que a causa de nossas ações o é
a alma do mundo, mas nós mesmos”, isto é, nossa alma individual. Vejamos sua
argumentação. Em primeiro lugar, apresenta (para refutar em seguida) a idéia de uma causa
longínqua como responsável pelos destinos individuais. Analisa, pois, a situação em que a
alma do mundo seria a única causa de tudo que se passa no universo. Seria uma única alma
permeando todo o universo, com cada coisa sendo movida para onde esta alma a dirige. Se for
assim, pode-se chamar de destino ao movimento ordenado executado por esta alma, onde cada
parte, completamente entrelaçada no Todo, interage com as demais para executar aquilo que
poderíamos chamar de destino do Todo. A analogia com uma árvore é útil para compreender
348
Cf. III 1 [3] 8, 1-4.
103
o significado desta concepção: tendo a raiz como princípio único, para onde quer que a planta
se espalhe, esta poderia ser considerada como sua “direção”, pois é para lá que ela se
encaminha, com todas as suas partes interagindo, isto é, agindo e sofrendo a ão
reciprocamente, mas todas elas cumprindo o “destino da árvore”. Do mesmo modo, se o
comando couber unicamente à alma do mundo, tudo estará sob seu domínio, inclusive nossas
almas, e nada mais faremos senão cumprir o “destino da alma do mundo”, encaminhando-nos
passivamente para onde quer que ela nos leve
349
.
Talvez Plotino não esteja aqui a se contrapor ao estoicismo, que de algum modo
abre espaço para a ação individual
350
, mas a um determinismo estrito que estaria presente
junto a alguns representantes do platonismo, segundo o qual o destino seria uma substância.
Assim, lemos em Plutarco:
Por outro lado, considerado como substância, o Destino parece bem ser
totalmente a alma do mundo, que está dividida em três partes: a parte fixa, a
parte vista como errante e, em terceiro lugar, a parte situada acima do céu na
região terrestre. A mais elevada se chama Clotho, a seguinte, Átropos, e a
mais baixa, Lachésis. Esta recebe as atividades celestes de suas irmãs, liga-
as junto e transmite-as às regiões terrestres que estão submetidas à sua
autoridade.
351
Ora, paradoxalmente, esse determinismo estrito, que Plotino chama de “excesso
de necessidade e de destino”, abole o destino, que o mesmo que age seria o mesmo que
sofre. Tudo seria uma coisa única, um grande corpo cósmico movido por uma inteligência
única, num grande encadeamento de causas entrelaçadas. O argumento exige algum esforço
de imaginação para ser compreendido. Pensemos em nosso próprio corpo ao mover-se.
Diríamos que é movido pelo destino? É evidente que o. Quem o move é nosso princípio
diretor de maneira direta, sem quaisquer causas intermediárias. É isto mesmo que ocorre no
Todo, segundo esta concepção determinista estrita: é o próprio Todo que age e sofre a ação,
sem que haja uma seqüência de causas. Este ponto de vista levaria, portanto, à abolição do
entrelaçamento de causas e à extinção do destino. Nada aconteceria segundo causas
conseqüentes, mas tudo seria regido pela causa primeira e única, ou seja, pela alma do
mundo
352
.
349
Cf. III 1 [3] 4, 1-9.
350
Plotino enfrentará o estoicismo no capítulo 7 deste tratado.
351
Du destin, 568E. A tradução aqui segue a tradução francesa de Jean Hani.
352
Cf. III 1 [3] 4, 9-20.
104
E mais, tal determinismo aboliria também a liberdade individual. Estaríamos
fadados, como partes da alma do mundo, a cumprir nosso papel numa grande ordenação
cósmica, sem ões propriamente nossas. Tal como, na analogia com o corpo, a
responsabilidade por nossos passos cabe o a nossos pés, mas a nosso princípio diretor, do
mesmo modo, não haveria qualquer ação propriamente nossa, provinda do nosso princípio
diretor particular, pois tudo teria como causa a direção da alma do mundo. Esta seria
responsável a mesmo por nossos pensamentos, que nem mesmo poderiam ser ditos
“nossos”. A conseqüência da consideração das almas humanas como partes da alma do
mundo seria a completa submissão das ações humanas à regência da alma do mundo, sem
qualquer autonomia e conseqüentemente sem qualquer possibilidade de atribuição de
responsabilidade pessoal. Não executaríamos atos propriamente nossos; nossas decisões e
raciocínios não seriam nossos. Isto não pode ser aceito, pois é preciso que cada um seja
singular, que existam ações e pensamentos nossos e que as ações belas e feias de cada um
tenham por origem o próprio indivíduo; mas, ao menos, não se deve atribuir a execução de
ações feias ao Todo”
353
. Cremos residir aqui uma afirmação crucial do pensamento plotiniano,
ao estabelecer o indivíduo como centro de suas ações, respondendo pelos atos que devem ser
atribuídos unicamente a si. Com efeito, sem a caracterização do indivíduo e a elevação de seu
estatuto moral, torna-se impossível a possibilidade de atribuição de responsabilidade.
Do mesmo modo, não pode ser aceito o determinismo representado pela
astrologia, que, neste caso, tudo seria governado por uma ordem celeste, por meio da qual
seria possível prever os eventos no Todo e também os relativos a cada indivíduo. Tudo estaria
sujeito à influência simpática dos planetas, que responderia por nossos temperamentos,
desejos, modos de vida e caracteres.
354
Ora, isto significaria retirar de nossa alçada aquilo que
é propriamente nosso, de modo que também aqui não haveria possibilidade de atribuição de
louvor ou censura a nossos atos. Isto nos deixaria, afirma Plotino, na condição de “pedras
rolantes e não de homens que m um trabalho originado de si mesmos e da sua própria
natureza”.
355
Ainda que certos elementos vindos do Todo se agreguem a nós, é preciso
reconhecer o que é propriamente nosso:
353
Cf. III 1 [3] 4, 24-28: a)lla\ ga\r dei= kai\ e(/kaston e(/kaston ei)=nai kai\ pra/ceij h(mete/raj kai\
dianoi/aj u(pa/rxein kai\ ta\j e(ka/stou kala/j te kai\ ai)sxra\j pra/ceij par” au)tou= e(ka/stou,
a)lla\ mh\ t%= panti\ th\n gou=n tw=n ai)sxrw=n poi/hsin a)natiqe/nai.
354
Cf. III 1 [3] 5, 7-15.
355
III 1 [3] 5, 18-20: ... li/qoij ferome/noij..., a)ll” ou)k a)nqrw/poij e)/xousi par” au(tw=n kai\ e)k th=j
au(tw=n fu/sewj e)/rgon. Acompanhamos aqui a opção de Armstrong (par” au(tw=n e e)k th=j au(tw=n) e não
seguimos a edição de Henry-Schwyzer, que utiliza par” au(tw=n e e)k th=j au)tw=n.
105
Mas é preciso conceder, por um lado, o que é nosso a nós, e, por outro lado,
conceder que venha ao que é nosso que é algo e que nos é próprio
alguma coisa do Todo, distinguindo entre o que nós executamos e o que nós
experimentamos por necessidade, sem atribuir tudo àqueles <princípios>.
356
Há algo que vem agregar-se a nós a partir do ambiente e dos pais. Plotino
reconhece o papel da hereditariedade e do ambiente, concordando neste aspecto com o
estoicismo. Isto significa que, no aspecto corporal, sofreremos a influência do Todo, de modo
que nosso corpo esteja de fato submetido ao governo da alma do mundo. A semelhança com
os pais, a determinação de características físicas e temperamentais conforme a região onde
vivemos, todos esses fatos não podem ser negados. Mas, o que efetivamente diferencia os
homens são seus caracteres e pensamentos - e isso deve vir de outro princípio
357
. E é por
que nos subtraímos em muitos aspectos às influências cósmicas, sendo capazes de resistir até
mesmo aos temperamentos que recebemos do Todo.
A discussão com os astrólogos continua
358
, mas passemos adiante para chegarmos
àquele que talvez seja o momento mais importante da demonstração, ao menos quanto ao
enfoque de nossa leitura. Pois agora torna-se absolutamente clara a relevância da doutrina
segundo a qual as almas individuais o são partes da alma do mundo. É a partir daqui que
Plotino afirmará nosso estatuto próprio, independente, e é preciso que seja assim, caso
contrário fica comprometida nossa autonomia. Assim, enfrenta o ponto de vista estóico
segundo o qual tudo decorre de um encadeamento universal - e Plotino aproxima esta ordem
universal necessária da alma do mundo. O problema desta posição reside em conceber um
único princípio entrelaçando e encadeando tudo, o que implica uma necessidade universal
absoluta, sem possibilidade de que as coisas pudessem vir a ser de outro modo. A importância
deste momento impõe que leiamos o capítulo integralmente:
Resta ver a [teoria do] princípio proposto como único, que entrelaça e como
que encadeia todas as coisas entre si e que confere o modo de ser de cada
coisa individual, a partir do qual todas as coisas são determinadas segundo
princípios seminais racionais. Esta opinião também é próxima daquela que
diz que todos os estados e movimentos, tanto os nossos quanto todos os
outros, provêm da alma do mundo, ainda que [esta teoria] queira, de algum
356
III 1 [3] 5, 20-24: a)lla\ xrh\ dido/nai me\n to\ h(me/teron h(mi=n, h(/kein de\ ei)j ta\ h(me/tera h)/dh tina\
o)/nta kai\ oi)kei=a h(mw=n a)po\ tou= panto\j a)/tta, kai\ diairou/menon, ti/na me\n h(mei=j e)rgazo/meqa,
ti/na de\ pa/sxomen e)c a)na/gkhj, mh\ pa/nta e)kei/noij a)natiqe/nai!
357
Cf. III 1 [3] 5, 24-33.
358
Cf. restante do cap.5 e cap. 6.
106
modo, conceder-nos, como indivíduos, alguma produção nossa. Ela
compreende certamente a necessidade de tudo de maneira total, e uma vez
incluídas todas as causas, não como cada coisa individual não acontecer;
pois nada que ainda a impedisse ou que a fizesse acontecer de outro
modo, se tudo está incluído no destino.
359
Ainda que o determinismo estóico afirme a existência de ações cuja origem estaria
em nós, suas conseqüências são, não obstante, inaceitáveis para Plotino, que implicam a
perda da liberdade. Plotino nem mesmo reconhece que esta doutrina abra algum espaço para a
ação propriamente nossa, já que a hormé não dá conta de explicar nossa autonomia:
Se as coisas forem assim, impulsionadas a partir de um único princípio, nada
será deixado para nós, exceto sermos levados para onde quer que aquele
princípio nos empurre. Com efeito, as imaginações <se seguirão> aos fatos
precedentes e os impulsos serão de acordo com elas, e “aquilo que está em
nosso poder” será apenas uma palavra; pois não é porque somos nós que
temos impulsos, que <o que está em nosso poder> existirá em maior grau,
uma vez que o impulso surge segundo aquelas <causas precedentes>; o que é
nosso será de um modo tal como o dos outros animais e de criancinhas que
se conduzem segundo impulsos cegos, e de loucos, pois também estes têm
impulsos; sim, por Zeus, até o fogo tem impulsos, e tudo quanto, estando
escravizado a esta estrutura, move-se de acordo com ela. Ora, todos que
enxergam isto não discutem, mas procuram outras causas deste impulso e
não se detêm neste princípio <único>.
360
Não basta que tenhamos algum impulso. É preciso que sejamos também a causa
de nossos impulsos. Mas, se formos entendidos como partes derivadas da alma do mundo, não
como nos conceder isso. A causa e origem dos impulsos teria que residir naquela alma em
que teríamos nosso ser. Lembremo-nos aqui da analogia com o corpo: uma vez que a causa
359
III 1 [3] 7, 1-12: Loipo\n de\ i)dei=n th\n e)piple/kousan kai\ oi(=on sunei/rousan a)llh/loij pa/nta
kai\ to\ pw\j e)f” e(ka/stou e)pife/rousan a)rxh\n tiqeme/nhn mi/an, a)f” h(=j pa/nta kata\ lo/gouj
spermatikou\j perai/netai. e)/sti me\n ou)=n kai\ au(/th h( do/ca e)ggu\j e)kei/nhj th=j pa=san kai\
sxe/sin kai\ ki/nhsin h(mete/ran te kai\ pa=san e)k th=j tw=n o(/lwn yuxh=j h(/kein legou/shj, ei) kai\
bou/letai/ ti h(mi=n kai\ e(ka/stoij xari/zesqai ei)j to\ par” h(mw=n poiei=n ti. e)/xei me\n ou)=n th\n
pa/ntwj pa/ntwn a)na/gkhn, kai\ pa/ntwn ei)lhmme/nwn tw=n ai)ti/wn ou)k e)/stin e(/kaston mh\ ou)
gi/nesqai! ou)de\n ga\r e)/ti to\ kwlu=son h)\ a)/llwj gene/sqai poih=son, ei) pa/nta ei)/lhptai e)n t$=
ei(marme/n$.
360
III 1 [3] 7, 12-24: toiau=ta de\ o)/nta w(j a)po\ mia=j a)rxh=j w(rmhme/na h(mi=n ou)de\n katalei/yei, h)\
fe/resqai o(/p$ a)\n e)kei=na w)q$=; a(/ te ga\r fantasi/ai toi=j prohghsame/noij ai(/ te o(rmai\ kata\
tau/taj e)/sontai, o)/noma/ te mo/non to\ e)f” h(mi=n e)/stai! ou) ga\r o(/ti o(rmw=men h(mei=j, tau/t$ ti ple/on
e)/stai th=j o(rmh=j kat” e)kei=na gennwme/nhj! toiou=to/n te to\ h(me/teron e)/stai, oi(=on kai\ to\ tw=n
a)/llwn z%/wn kai\ to\ tw=n nhpi/wn kaq” o(rma\j tufla\j i)o/ntwn kai\ to\ tw=n mainome/nwn! o(rmw=si
ga\r kai\ ou(=toi! kai\ nh\ Di/a kai\ puro\j o(rmai\ kai\ pa/ntwn o(/sa douleu/onta t$= au)tw=n
kataskeu$= fe/retai kata\ tau/thn. tou=to de\ kai\ pa/ntej o(rw=ntej ou)k a)mfisbhtou=sin, a)lla\
th=j o(rmh=j tau/thj a)/llaj ai)ti/aj zhtou=ntej ou)x i)/stantai w(j e)p” a)rxh=j tau/thj.
107
dos impulsos reside no princípio diretor, se este papel couber à alma do mundo, nada restará
como ação propriamente nossa. O vocabulário utilizado aqui é bastante forte:
“escravização” a uma estrutura, que, ao final, assemelha homens a animais e coisas. Assim,
Plotino recusa a existência de um único princípio no mundo e exige a busca de outro, em
nome de nossa liberdade individual. A nova causa ainda preservará a ordem, pois as coisas
ainda virão a ser segundo uma causa, mas também permitirá nossa existência individual
independente. Estabelece, pois, as almas individuais como princípios, ao lado da alma do
mundo:
É preciso que a alma seja outro princípio que trazemos à realidade, não
apenas a alma do mundo, mas também a alma individual junto com ela, para
entrelaçar todas as coisas, sendo um princípio de não pequena
importância.
361
.
Postulam-se, assim, dois princípios últimos causais para o universo e para os
indivíduos que este abriga: a alma do mundo, ordenadora do universo em geral, dos corpos, e
as almas individuais, soberanas sobre os comportamentos individuais. Esta soberania de
nossas almas, porém, apresenta uma séria restrição: o corpo. Com efeito, a alma desvinculada
do corpo é absolutamente autônoma, mas, quando ligada ao corpo, perde algum controle,
que o homem, na medida em que é composto também de corpo, faz parte de uma ordem
juntamente com as demais coisas. Ao encarnar, a alma humana cai numa posição
intermediária entre o sensível e o inteligível, na medida em que deve dirigir o corpo e parece
ser incapaz de fazê-lo sem voltar-se para ele. Esta talvez seja a maior distinção entre nossas
almas e a alma do mundo, que nossa “irmã” não desce para governar o universo. Há,
porém, diversos graus de inclinação para o corpóreo e é aí que reside a diferea entre as
várias almas, conforme a intensidade do comércio com o corpo. O problema reside menos no
fato de estar-se encarnado e mais na forma como se experimenta a ligação com o corpo, com
maior ou menor entrega às coisas materiais:
A fortuna, na maior parte das vezes, dirige todas as coisas ao redor, entre as
quais a alma cai quando vai para o ponto médio, de modo que faz algumas
coisas por causa destas <circunstâncias entre as quais caiu> e conduz outras
coisas para onde deseja, dominando-as. A alma melhor domina mais, a pior,
menos. Pois a alma que concede algo ao temperamento do corpo é
compelida a sentir desejo ou raiva, a ser abjeta na pobreza ou inflada na
361
Cf. III 1 [3] 8, 4-6: yuxh\n dh\ dei= a)rxh\n ou)=san a)/llhn e)peisfe/rontaj ei)j ta\ o)/nta, ou) mo/non
th\n tou= panto\j, a)lla\ kai\ th\n e(ka/stou meta\ tau/thj, w(j a)rxh=j ou) smikra=j ou)/shj.
108
riqueza ou tirânica no poder; mas a alma boa por natureza resiste nestas
mesmas circunstâncias, e modifica-as mais do que é modificada, de modo
que altera algumas coisas e cede a outras, se não houver mal nestas.
362
A causa dos acontecimentos é, pois, uma mistura entre fortuna e ação individual
autônoma. Quanto maior for o desprendimento do corpóreo, maior será a autonomia. Se a
alma deixa de agir racionalmente e deixa-se levar por outras causas, não é capaz de resistir às
circunstâncias e é arrastada. É evidente que fatos que fogem do domínio da alma
individual, mas nem por isso é necessário escravizar-se às situações. A alma que se mantém
elevada não se perturba com a modificação das situações exteriores. Assim, age segundo o
princípio diretor racional e, neste caso, o impulso para a ação é autônomo. Em todos os
demais casos, segue-se o impulso universal, ditado pela alma do mundo.
Quando, porém, ela tem um impulso, tendo como dirigente sua própria razão
pura e imperturbada, então apenas este impulso deve ser dito estar em nosso
poder e ser voluntário, e este ato é nosso, ele que não vem de outro, mas de
dentro de nossa alma pura, de um primeiro princípio governante e poderoso,
não experimentando erro da ignorância ou derrota da violência das paixões,
as quais, quando a acometem, dirigem-na e arrastam-na, e o permitem
mais que haja atos provindos de nós, mas apenas afecções.
363
A liberdade exige o uso do lógos. Note-se, entretanto, a forte especificação que se
aplica ao uso da razão: não se trata de qualquer lógos, mas de uma razão pura e não
perturbada. Pois, certamente casos em que a razão, deixando-se levar pelos desejos e
necessidades ditados pelo corpo, termina por subordinar-se ao inferior. Trata-se de um mau
uso da razão. O ato propriamente “nosso” só pode provir “de dentro de nossa alma pura”, sem
qualquer influência exterior. O princípio diretor mediante o qual somos livres não se
confunde, então, com a totalidade da alma individual, mas apenas com aquela parte pura, a
parte não descida da alma.
362
III 1 [3] 8, 11-20: tu/xai de\ ta\ ku/kl% pa/nta, oi(=j sune/pesen e)lqou=sa ei)j me/son, ta\ polla\
h)/gagon, w(/ste ta\ me\n poiei=n dia\ tau=ta, ta\ de\ kratou=san au)th\n tau=ta o(/p$ e)qe/lei a)/gein.
plei/w de\ kratei= h( a)mei/nwn, e)la/ttw de\ h( xei/rwn. h( ga\r kra/sei sw/matoj ti e)ndidou=sa
e)piqumei=n h) o)rgi/zesqai h)na/gkastai h)\ peni/aij tapeinh\ h)\ plou/toij xau=noj h)\ duna/mesi
tu/rannoj! h( de\ kai\ e)n toi=j au)toi=j tou/toij a)nte/sxen, h( a)gaqh\ th\n fu/sin, kai\ h)lloi/wsen au)ta\
ma=llon h)\ h)lloiw/qh, w(/ste ta\ me\ne(teroiw=sai, toi=j de\ sugxwrh=sai mh\ meta\ ka/khj.
363
III 1 [3] 9, 9-16: lo/gon de\ o(/tan h(gemo/na kaqaro\n kai\ a)paqh= to\n oi)kei=on e)/xousa o(rm#=,
tau/thn mo/nhn th\n o(rmh\n fate/on ei)=nai e)f” h(mi=n kai\ e)kou/sion, kai\ tou=to ei)=nai to\ h(me/teron
e)/rgon, o(\ mh\ a)/lloqen h)=lqen, a)ll” e)/ndoqen a)po\ kaqara=j th=j yuxh=j, a)p” a)rxh=j prw/thj
h(goume/nhj kai\ kuri/aj, a)ll” ou) pla/nhn e)c a)gnoi/aj paqou/shj h)\ h(=ttan e)k bi/aj e)piqumiw=n, ai(\
proselqou=sai a)gousi kai\ e(/kousi kai\ ou)ke/ti e)/rga e)w=sin ei)=nai, a)lla\ paqh/mata par” h(mw=n.
109
II.2.2. A parte pura da alma
A postulação da existência de uma parte da alma individual que permanece no
inteligível é enunciada em diversos momentos das Enéadas, e com especial clareza na
investigação sobre a descida da alma nos corpos. Tal concepção é considerada por Plotino
como “ousada”: E se é necessário, contra a opinião dos outros, ousar dizer mais claramente
minha convicção, nem mesmo a nossa alma desceu toda, mas algo dela no inteligível
sempre”.
364
Este que parece ser um dos raros momentos em que Plotino reconhece sua
originalidade, ou, ao menos, sua ousadia, merece que reflitamos um pouco a respeito da
maneira como ele encara sua filosofia. Em primeiro lugar, é preciso observar o que o próprio
autor reivindica para si: contra qualquer acusação de não ortodoxia, sustenta apresentar
doutrinas antigas de Platão, exercendo o papel de simples exegeta
365
. Isto talvez fosse
necessário pelas circunstâncias da época em que viveu. Com efeito, ensina Dodds
366
, no
século III, a originalidade não era posta em questão, aliás, nem se esperava que os filósofos a
possuíssem. Assim, a autoridade de Platão é sempre trazida à tona quando nosso filósofo
pretende apresentar aspectos característicos de seu sistema. Entre outros exemplos desta
atitude, Dodds relembra a caracterização dos três princípios divinos como prw=ton e(/n, e(\n
polla\ e e(\n kai\ polla/, quando obras de Platão, como o Parmênides ou a Segunda Carta
(cuja autoria não era então posta em dúvida), são reivindicadas como autoridade. O recurso a
Platão, porém, talvez não significasse um interesse fundamental de Plotino a respeito do
pensamento de Platão sobre algum tema; o que Dodds sugere é que Plotino buscava a verdade
sobre o assunto. É claro que o filósofo tentava conciliar a verdade com Platão, e para isso
lançaria mão de quaisquer ajustes necessários, mas seria Platão quem teria de adequar-se à
verdade, e não esta àquele. Seria ingenuidade, pois, supor que a doutrina platônica fosse o
ponto de partida para seu desenvolvimento filosófico, que representava, antes, um
364
IV 8 [6] 8, 1-3: Kai\ ei) xrh\ para\ do/can tw=n a)/llwn tolmh=sai to\ faino/menon le/gein
safe/steron, ou) pa=sa ou)d h( h(mete/ra yuxh\ e)/du, a)ll” e)/sti ti au)th=j e)n t%= noht%= a)ei! Cf.
também outros passos onde esta doutrina é enunciada: IV 8 [6] 4, 31; V 1 [10] 10, 24; III 4 [15] 3, 21-28; IV 1
[21] 1; II 5 [25] 3, 31-33; IV 3 [27] 12, 1-5; V 8 [31] 10, 22; II 9 [33] 2, 4-10; VI 7 [38] 5, 28; III 3 [48] 5, 16-18.
365
Cf. V 1 [10] 8, 10-14.
366
DODDS, “Tradition and Personal Achievement in the Philosophy of Plotinus”, p. 127-8.
110
fundamento para a defesa de sua filosofia: “ele não acredita no Um porque o encontrou no
Parmênides; ao contrário, encontra-o no Parmênides porque já acredita nele.”
367
Merlan
368
, por sua vez, nota a importância da doutrina da alma não descida para
dar conta das inconsistências geradas a partir da doutrina platônica da alma: se, sob uma
perspectiva cosmológica, deve-se aceitar a naturalidade e necessidade na encarnação das
almas, e, portanto, como fato não passível de censura, por outro lado, sob o ponto de vista
ético, a alma em comércio com o corpo encontra-se em condição miserável. Com efeito, a
doutrina platônica acerca da encarnação gerou problemas que Plotino talvez tenha
considerado necessário resolver. Vejamos: no Timeu (41e), lemos que a encarnação é
ordenada pela divindade e não resulta de alguma queda ou erro; no don
369
, entretanto, o
corpo é considerado uma prisão ou túmulo para a alma. Como nota Merlan
370
, Platão ora
encara a encarnação de maneira neutra”, no caso do Timeu, ora pessimista”, como no
Fédon, ora “otimista”, quando considera a encarnação da alma do mundo. Se este último caso
não é problema para Platão, também não o é para Plotino. Por outro lado, como dar conta da
descida das almas individuais, coadunando perspectivas o díspares? Surge, assim, uma
possível explicação para a concepção da doutrina da parte não descida da alma. Se uma
parte que permanece sempre no inteligível, isso significa que, de algum modo, é possível não
haver queda, ou, ao menos, uma queda prejudicial para a alma. O governo dos corpos não
implica necessariamente queda e aprisionamento no corpo; basta observar o exemplo da alma
do mundo, que dirige o Todo sem descer. Do mesmo modo, nossa alma superior permanece
sempre na realidade inteligível, ainda que o tenhamos consciência disso
371
. Sendo assim, o
problema da queda é muito mais um problema do “eu”, não da alma. Somos “nós” que nos
identificamos com o inferior e, com isso, submergimos no sensível, levando conosco algumas
faculdades da alma. Arrastar a totalidade de nossa alma, porém, é impossível: uma parte
jamais desce.
Pode-se afirmar, portanto, que Plotino estabelece duas identidades possíveis para
cada homem: a superior, que se mantém unificada com o inteligível, e a inferior, que se volta
para o corpo e dedica-lhe sua atenção. Esta parte da alma, com a qual geralmente nos
identificamos (já que raramente consciência da parte não descida), deixa de contemplar o
367
DODDS, “Tradition and Personal Achievement in the Philosophy of Plotinus”, p. 128.
368
MERLAN, “Plato´s cosmogony and psychology” in The Cambridge History of Later Greek and Early
Medieval Thought, p. 29.
369
Cf. PLATÃO, Fédon, 66b -67b; 79c. Cf. também Górgias, 493a, com perspectiva semelhante.
370
Cf. MERLAN, op. cit., p. 29.
371
Cf. IV 8 [6] 8.
111
inteligível, isola-se, enfraquece e torna-se muito preocupada (polupragmonei=) com a parte
na qual se isolou
372
. Distingue-se, diferencia-se com o isolamento, mas isso não significa que
exerça sua verdadeira identidade. Pelo contrário, sua diferenciação está ligada ao corpo. A
consciência voltada para o sensível, esquecendo-se de sua verdadeira essência residente na
parte superior da alma, identifica-se com qualidades acidentais, com o que poderíamos
chamar de personalidade”
373
, ou seja, com aquilo que, segundo o sentido etimológico do
termo, diz respeito ao homem vestido com uma máscara, a “persona”.
A descida das almas representa um certo modo de individuação. Mas outro,
oposto a este, que é alcançado mediante o esforço da alma que se volta para o superior. Há em
cada um de nós um homem interior em constante intelecção
374
. É preciso voltar a ele a
atenção para “escutá-lo” e apreendê-lo
375
. Assim, distinguem-se duas espécies de indivíduos:
o inferior, quando a alma de algum modo se ata aos corpos - fato que é um mal para a alma; e
o superior, quando, com a atenção voltada para a interioridade, a alma unifica-se com a
verdadeira realidade e vive conforme sua essência e isto é o bem para a alma. Entretanto,
este retorno à totalidade com o concomitante abandono do homem particular não significa
perda de individualidade. Já vimos que Sócrates não perece, pois nenhum dos entes perece
376
.
Paradoxalmente, o ápice da individualidade coincide com o retorno à totalidade.
Podemos agora perceber com maior clareza a conciliação efetuada por Plotino a
respeito das noções herdadas de Platão
377
: o Fedro ensinava que a alma humana era culpada
por ter caído de um estado anterior elevado, passando a experimentar uma espécie de
violência por sua condição junto ao corpo
378
; o Timeu, por seu lado, considerava a alma como
uma realidade intermediária à qual cabe governar o corpo, constituindo uma necessidade para
a perfeição no universo
379
. O que diz Plotino? Em primeiro lugar, a alma do mundo não caiu e
não é objeto de preocupação para ele (como o era para Platão). Segundo, a condição caída
da alma explica-se pela presença do corpo; até aqui, a doutrina praticamente não difere da
platônica. Surge agora, porém, um novo elemento: Plotino explicao estado degradado da
372
Cf. IV 8 [6] 4, 14-16.
373
Como propõe Wald (Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 165).
374
Cf. IV 3 [27] 30, 11
375
Cf. V 1 [10] 12, 13-15.
376
Cf. IV 3 [27] 5, 1-14. Cf. p. 47-48 supra.
377
Em IV 8 [6] 1, 23-50, Plotino faz um apanhado geral da doutrina platônica da descida das almas ao longo de
vários diálogos: Fédon 62b2-5, 67d1, Crátilo 400c2, República 514a5, 515c4, 517b4-5, 619d7, Fedro 246c2,
247d4-5, 249a6 e Timeu 34b8.
378
Fedro 246-248.
379
Timeu 34a-35b, 41d-42e.
112
alma não simplesmente pela presença do corpo, mas pela perda de contato com a parte
superior da alma. Com efeito, este é o estado de queda, e esta é a grande “ousadia” de Plotino.
Buscou a solução para o problema da queda” e, sem abandonar seu papel exegético, deu
conta do problema utilizando o próprio Platão: de fato, a idéia de um núcleo intacto da alma,
divino, já estava presente no livro X da República, onde a alma é comparada ao deus marinho
Glauco
380
, repleto de incrustrações.
O mero ato de governar o corpo não implica queda, pois há duas formas de
direção dos corpos
381
: i) o comando “geral” (to\ me\n kaqo/lou) com “autoridade real
(e)pistasi/a basilikh/), em que o governante age “sem esforço” (a)pra/gmwn) e o
entra diretamente em contato com o comandado; ii) o comando “particular” (to\ de\
kaqe/kasta), em que o governante vai ele mesmo para a ação (au)tourgo/j), e, neste caso,
contamina-se pelo contato com o inferior. O primeiro caso diz respeito ao modo de governo
da alma do mundo; o segundo caso significaria a forma de comando praticada pelas almas
individuais. Se o primeiro sentido explica a necessidade da encarnação, mas com uma
perspectiva otimista em concordância com o Timeu, o segundo sentido representa uma queda
moral, partilhando dos problemas expostos no Fedro e Fédon.
Talvez Plotino considere possível a encarnação humana com apenas o primeiro
sentido ativado. É o que parece resultar da leitura dos cinco primeiros capítulos de IV 8 [6],
onde se aponta para a possibilidade de governo do corpo sem que a alma se contamine com
ele. Sem dúvida, o corpo é danoso à alma, um obstáculo à intelecção, é o que se em muitos
passos
382
. Mas a alma não é idêntica ao Intelecto, já que é uma natureza intermediária, com
dupla polaridade: um pólo dirigido para o inteligível, outro para o sensível. Se a alma do
mundo e os astros são capazes de governar os corpos sem inclinar-se para eles, de algum
modo, ao menos de maneira intermitente, também as almas individuais devem ser capazes de
fazer o mesmo.
Toda a questão diz respeito à própria natureza das almas individuais. Porque o
contemplam a totalidade do Intelecto, mas os intelectos parciais, atualizam a parcialidade.
Não há problema nisso: o Intelecto e os intelectos, de sorte que a gênese das almas
particulares reside no intelecto parcial. Porém, devemos lembrar, possuem uma potência
380
Cf República, 611 a10 612 a6. Cf. SZLEZÁK, Platone e Aristotele nella dottrina Del Nous di Plotino, p.
229-233, que demonstra a forte aproximão entre a doutrina da alma não descida presente em IV 7 [2] 10 e este
trecho da República, onde se postula que a “verdadeira natureza” da alma estaria encoberta, repleta de
acréscimos que se lhe agregaram, mas passível de ser revelada por um processo de purificação.
381
Cf. IV 8 [6] 2, 26-30.
382
Cf., por exemplo, I 8 [51] 4, 1-4 e 17-25.
113
dirigida para o mundo sensível, não são pura inteligência, têm uma função a desempenhar
383
.
Assim, ao contemplarem um determinado intelecto, por seu outro pólo vinculam-se a um
corpo particular. Trata-se da própria lei da processão, que determina que o mundo inteligível
não permaneça estático em si mesmo. o haveria queda alguma se tudo parasse aqui, mas
um perigo” presente neste processo: a atenção demasiada para o inferior e o mergulho da
alma em direção a esta profundeza. Este é o mal para a alma.
384
É por necessidade que a alma se torna “anfíbia”
385
, vivendo entre dois mundos, o
de Lá e o de cá. E aparecem as diferenças entre os homens: alguns são capazes de viver
mais a vida de Lá, outros vivem mais a vida debaixo. Assim, em IV 8 [6] 5, Plotino concilia
as contrariedades da doutrina platônica: que a alma desça e vá ao encontro da necessidade do
que está abaixo, isto “é eternamente necessário pela lei da natureza”
386
. Isto pode ser
considerado um erro? Parece que sim, mas a punição é simplesmente a própria descida
387
.
Mais uma vez deparamo-nos com um passo difícil da doutrina plotiniana. A
descida das almas é naturalmente necessária e, ao mesmo tempo, é um erro. Como
compreender esse paradoxo? Lembremos inicialmente a razão proposta em V 1 [10] para a
queda das almas:
O que, porventura, fez as almas esquecerem-se do pai Deus, e, mesmo sendo
partes de e completamente pertencentes a Ele, ignorarem a si mesmas e a
Ele? O princípio do mal para elas foi a audácia, o nascimento, a primeira
alteridade e o fato de desejarem pertencer a si mesmas.
388
Em primeiro lugar, houve uma audácia ou ousadia (to/lma) das almas, que as
conduziu ao afastamento do Todo e, por isso, à contemplação de intelectos parciais. Como
conseqüência, resulta, no pólo oposto, sua ligação a corpos particulares aos quais
necessariamente terão de reger. Há, pois, um erro inicial, qual seja, particularizar-se. Mas,
uma vez perpetrado o erro, não punição, exceto o cumprimento da necessidade da descida
tendo em vista a regência do corpo. Entretanto, se a alma for capaz de escapar rapidamente,
383
Cf. IV 8 [6] 3, 25.
384
Cf. IV 8 [6] 4, 10 ss.
385
Cf. IV 8 [6] 4, 33.
386
IV 8 [6] 5, 11: a)nagkai=on ai)di/wj fu/sewj no/m%.
387
Cf. IV 8 [6] 5, 16-19.
388
V 1 [10] 1, 1-5: Ti/ pote a)/ra e)sti to\ pepoihko\j ta\j yuxa\j patro\j qeou= e)pilaqe/sqai, kai\
moi/raj e)kei=qen ou)/saj kai\ o(/lwj e)kei/nou a)gnoh=sai kai\ e(auta\j kai\ e)kei=non; a)rxh\ me\n ou)=n
au)tai=j tou= kakou= h( to/lma kai\ h( ge/nesij kai\ h( prw/th e(tero/thj kai\ to\ boulhqh=nai de
e(autw=n ei)=nai.
114
isto é, não afundar demasiado no corpóreo, não prejuízo; a alma simplesmente tomou
conhecimento do mal sem se contaminar com ele. Há, porém, outra espécie de pecado
389
, que
é praticar o mal
390
, ou seja, aprofundar-se no corpo, e neste caso haverá uma punição maior.
A tólma como um desejo de independência e separação não é algo exclusivo da
alma, mas encontra-se presente também no Intelecto. Com efeito, Plotino nos informa sobre a
tólma do Intelecto que produz a primeira separação do Um. Segundo Armstrong
391
, a provável
origem deste conceito encontra-se junto aos neopitagóricos: a tólma identifica-se com a
primeira díade, a primeira separação da mônada, sendo, pois, o princípio que torna possível a
multiplicidade. Representa, pois, a um tempo, a possibilidade de toda existência, mas
também, nas palavras de Armstrong, o pecado original radical”. De alguma maneira,
neste desejo do Intelecto um certo mal; melhor seria, afirma Plotino, se este fato não tivesse
ocorrido
392
. O mesmo poderia ser dito sobre as almas: melhor seria se não tivessem se
particularizado e afastado da origem. Aí reside o primeiro pecado. No caso do Intelecto,
porém, o mal detém-se aí, pois, com a permanente contemplação do Um que gera o desejo
de união com a fonte , uma espécie de contraposição de forças, de sorte que a
multiplicidade se mantém una. Também a alma do mundo, permanencendo em constante
contemplação do Intelecto, não comete mais erros. Ora, as almas individuais, ao perderem a
contemplação de sua origem geradora, perdem também esta coesão interna que poderia
mantê-las em união íntima com o mundo inteligível. Este é o mal maior que pode ocorrer
para a alma.
E, contudo, apesar de toda separação, não se perde a unidade da alma. Todas as
almas permanecem uma só. Como pode ser isso, uma vez que a alma ousou distanciar-se,
diferenciou-se, atou-se a um corpo e não permaneceu voltada para o inteligível? Aqui entra
em jogo, mais uma vez, a concepção da parte não descida da alma: é pelo alto que as almas
mantém-se unidas. Não parece ser gratuito o surgimento desta doutrina tantas vezes ao longo
das Enéadas.
393
De fato, trata-se de importante solução para a garantia do estatuto ontológico
de nossas almas e para o encadeamento de toda sua doutrina da alma. Ao estabelecer uma
389
“Pecado” aqui traduz a(marti/a, que, apesar do forte sentido cristão que tem impregnado o termo, parece-me
ser o que melhor engloba a riqueza de seu significado, onde entrelaçam-se erro por falta de conhecimento e
perversidade da ação.
390
Com isso, o filósofo e também em acordo República 617e. Contudo, em Plotino, não se trata de alguma
escolha que teria ocorrido antes do nascimento, mas é uma escolha moral durante a vida humana.
391
Cf. The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy, p. 242.
392
Cf. III 8 [30] 8, 32-36.
393
A onipresença desta doutrina na obra plotiniana foi bem notada por Szlezák (Platone e Aristotele nella
dottrina Del Nous di Plotino, p. 229): já aparece ao escrever seu segundo tratado (IV 7).
115
bipartição da alma humana, com seu ápice sempre no mundo inteligível, Plotino poderá
sustentar, por aí, a unidade de todas as almas. Assim, em IV 3 [27] 4, 12-21, explica que, por
sua parte superior, as almas individuais e a alma do mundo unem-se à Alma Hipóstase. E é
esta parte superior da alma que torna possível a liberdade humana, como vimos ao analisar o
tratado III 1 [3]. Ademais, esta doutrina garante-nos a possibilidade de retorno à origem sem a
necessidade de algum mediador externo
394
, pela coincidência de nosso centro com o centro de
toda a realidade
395
. Assim, a novidade proposta por Plotino torna possível o alcance da
unificação total e da assimilação a Deus.
II.2.3. A verdadeira identidade humana
Temos observado a importância do estabelecimento da bipartição da alma para
refutar o “argumento astrológico”, segundo o qual estaríamos todos sujeitos ao governo da
alma do mundo. Ao definir a existência de, por assim dizer, duas almas em cada ser humano
uma provinda da alma do mundo, governante das funções corporais, outra individual,
derivada diretamente da Alma Hipóstase -, Plotino garantiu-nos a possibilidade de autonomia.
A liberdade reside exclusivamente na parte pura da alma, permanentemente no inteligível
396
e
afastada do corporal regido pela alma do mundo (e, por isso, predeterminado). É verdade que,
por termos corpos, estamos atados ao destino cósmico, submetidos à necessidade. Plotino
admite que muito do que chamamos de “nosso” vem de nossa inclusão no Todo. Assim, ao
investigar se os astros seriam causas dos eventos, em um de seus últimos tratados, II 3 [52], o
filósofo não se afasta da posição de seu terceiro tratado, que examinamos há pouco. Considera
que nosso caráter moral, nossas ações habituais e nossas emoções derivam do Todo e estão
submetidos aos astros a que estamos ligados. A exegese de Timeu 69c5-d3 leva ao
394
Como eram obrigados a supor Philon ou os gnósticos. Cf. DODDS, Tradition and Personal Achievement in
the Philosophy of Plotinus”, p. 137.
395
Cf. VI 9 [9] 10, 15 ss.
396
A afirmação de que uma parte da alma permanece no inteligível poderia induzir à idéia de que ela esteja no
próprio intelecto, de modo a perder-se a distinção entre alma e intelecto. Deck, Nature, Contemplation and the
One, p. 49, observa este problema: se o mundo inteligível é o Noûs, como é possível que a alma, distinta do
Noûs, esteja nele? Como uma hipóstase pode estar em outra hipóstase? Ou talvez não haja distinção entre elas. O
estudioso aponta uma possível solução que, contudo, reconhece problemática por implicar perda de clareza
quanto às diferenças entre estes entes: dizer no mundo inteligível talvez signifique dizer que um princípio está
em algo de que depende, como o corpo está na alma. Acreditamos, porém, que a dificuldade desta interpretação
resida justamente na igualdade estabelecida por Deck entre mundo inteligível e Noûs, pois é possível que estes
termos não sejam equivalentes. Com efeito, em III 3 [48] 5, 16-18, constata-se que ambos, alma e intelecto
residem no mundo inteligível: “Pois no mundo inteligível tudo é lógos e acima do lógos; pois é intelecto e alma
pura.” Assim, no mundo inteligível, convivem intelecto e alma.
116
reconhecimento de dois princípios em cada um de nós: a parte superior e divina, proveniente
do próprio Demiurgo, e a parte inferior da alma, ligada às paixões e aos desejos, recebida dos
deuses. Qual destes seria verdadeiramente “nós” - e o “nosso”? Em meio a tantos males
recebidos através do corpo, um dom de Deus, uma virtude que nos torna aptos a dominar
as paixões.
397
Este dom é a alma pura, onde reside nosso verdadeiro “eu”. Quando voltamos
nossa atenção para esta parte, podemos alcançar nossa verdadeira identidade. algo que
somos nós realmente, mas para reconhecê-lo é preciso que nos purifiquemos, é preciso que
nos separemos daquilo que nos foi acrescentado:
Por isso, é preciso fugir daqui e separarmo-nos das coisas que estão
acrescentadas e não ser o composto, corpo animado no qual domina
principalmente a natureza do corpo que recebe um traço da alma, de modo
que a vida comum seja sobretudo do corpo. Pois todas as coisas corporais
pertencem a esta <natureza do corpo>. E pertencem à outra <alma>, exterior
<ao corpo>, o movimento para o alto, para o belo e para o divino, os quais
ninguém domina, mas os utiliza para que seja isto e viva segundo isto,
afastando-se; caso contrário, tornando-se destituído desta alma <superior>,
vive sob o destino, e não apenas os astros sinalizam <seu destino>, mas
ele próprio torna-se como uma parte e segue o Todo, do qual é parte. Pois
cada qual é duplo: por um lado, é de algum modo o composto, por outro
lado, é ele mesmo.
398
Mais uma vez, nota-se a insistência de Plotino em relação à duplicidade presente
no ser humano: há, por assim dizer, dois homens em nós, um deles é “uma máscara”
399
que
nos permite perceber o mundo, o outro é o autêntico homem, que permanece no inteligível.
Em virtude da grande amplitude do domínio da alma pela parte inferior é fronteiriça ao
corpo, pela parte superior é vizinha do Intelecto -, resulta a dupla orientação do homem
encarnado. Ora, o primeiro homem é o superior, do qual o inferior se aproximou, e é com este
que cada alma individual deve buscar identificar-se, pois de fato somos partes do
inteligível
400
.
397
Cf. II 3 [52] 9, 12-19.
398
II 3 [52] 9, 19-31: dio\ kai\ feu/gein e)nteu=qen dei= kai\ xwri/zein au)tou\j a)po\ tw=n
prosgegenhme/nwn kai\ mh\ to\ su/nqeton ei)=nai sw=ma e)yuxwme/non e)n %(= kratei= ma=llon h(
sw/matoj fu/sij yuxh=j ti i)/xnoj labou=sa, w(j th\n zwh\n th\n koinh\n ma=llon tou= sw/matoj ei)=nai!
pa/nta ga\r swmatika/, o(/sa tau/thj. th=j de\ e(te/raj th=j e)/cw h( pro\j to\ a)/nw fora\ kai\ to\ kalo\n
kai\ to\ qei=on w(=n ou)dei\j kratei=, a)ll” h)\ prosxrh=tai, i(/n” $(= e)kei=no kai\ kata\ tou=to z$=
a)naxwrh/saj! h)\ e)/rmoj tau/thj th=j yuxh=j geno/menoj z$= e)n ei(marme/n$, kai\ e)ntau=qa ta\ a)stra
au)t%= ou) mo/non shmai/nei, a)lla\ gi/netai au)to\j oi(=on me/roj kai\ t%= o(/l% sune/petai, ou(= me/roj.
ditto\j ga\r e(/kastoj, o( me\n to\ sunamfo/tero/n ti\, o( de\ au)to/j.
399
Aproveitando o termo proposto por Wald, Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 168.
400
Cf. VI 4 [22] 14, 16 15, 2.
117
Não como o leitor do livro X da República não reconhecer uma forte
semelhança entre Plotino e seu mestre. Que se recorde a passagem sobre o mito de Glauco
401
,
onde Sócrates insta o interlocutor a contemplar a verdadeira natureza da alma, quando esta se
encontra livre dos danos provocados por sua associação com o corpo. A dificuldade, porém,
de contemplar a alma em seu estado puro é semelhante à que se poderia enfrentar ao procurar
reconhecer a natureza original do deus marinho Glauco, mutilado pelas ondas e repleto de
acréscimos (cracas, algas e pedras). Platão insiste no parentesco da alma com o divino e seu
desejo pela sabedoria, o qual reflete sua verdadeira natureza. Há um claro contraste entre a
alma pura, unicamente em contato com o inteligível, e a alma imersa no mundo da
sensibilidade. Este mito do deus marinho Glauco expressa o forte dualismo platônico
(também presente em Fédon, 65c e 78b-80b) - em que a alma racional é completamente
apartada da natureza corporal.
Contudo, o dualismo corpo/alma traz consigo sérios problemas. Por exemplo, a
desvinculação entre alma e corpo estabelece uma cisão tal que torna difícil explicar como é
possível à alma, naturalmente impassível e impecável, cometer faltas. Plotino, entretanto, ao
postular uma duplicidade de almas no homem encarnado, parece dar conta da
responsabilidade moral, com a conseqüente possibilidade de atribuição de censura. Todo
homem possui, ou melhor, é a alma que permanece atada ao inteligível, pura. Há, porém, uma
“outra espécie de alma” que se lhe acrescenta - e esta, unida ao corpo, é capaz de errar. Graças
a essa duplicidade de almas no homem, Plotino é capaz de resolver o conflito entre, por um
lado, a impecabilidade e perfeição da alma, cuja dignidade é elevadíssima e que é, afinal de
contas, um verdadeiro ente, e, por outro lado, a constatação do pecado no mundo, o que exige
que se efetue algum julgamento para a alma pecadora com a atribuição de penas após a
morte, bem como uma reencarnação punitiva. Eis mais uma das razões por que Plotino
necessita introduzir um elemento reconhecidamente novo na doutrina platônica da alma: a
alma superior eternamente no inteligível garante o estatuto de impecabilidade e perfeição
requerido para a alma e, ao mesmo tempo, concede ao homem, mediante um processo de
purificação, a possibilidade de alcance deste estágio divino onde não erro. Todo erro fica
relegado à alma inferior que, pela proximidade dos corpos, acaba por imiscuir-se a eles, de tal
modo entrelaçada que se identifica com o composto, ao qual deveria somente iluminar.
Assim, a própria alma torna-se um composto, produzido a partir de tudo
<que lhe foi acrescentado>, e de fato é afetada completamente, e o composto
401
PLATÃO, Rep. X, 611c-612a.
118
erra, e, para ele [i.e., para Platão], é este que recebe punição, não aquela
<alma superior>. Por isso ele diz: “Temos contemplado a alma como aqueles
que vêem o deus marinho Glauco. Mas, se alguém deseja ver sua natureza, é
preciso arrancar-lhe as incrustrações, e conhecer sua filosofia, ver a que está
ligada e por que parentesco ela é o que é.” Portanto, outra vida e outras
atividades, e o que é punido é outra coisa. O afastamento e a separação não
são apenas deste corpo aqui, mas de tudo que se acrescentou. Com efeito, a
adição ocorre no nascimento; ou melhor, o nascimento pertence totalmente à
outra espécie de alma.
402
A purificação da alma diz respeito, então, a um afastamento de tudo aquilo que se
acrescentou à alma. Se o homem é, em última instância, a alma superior, alma individual
derivada diretamente da Alma Hipóstase, que permanece sempre, por mais que se estenda,
unida ao inteligível, é preciso reconhecer que tudo mais são acréscimos que não constituem
sua verdadeira essência. A purificação plotiniana exige, pois, que se execute um movimento
de conversão ao Inteligível, o que resulta num apartamento não apenas da natureza corpórea,
mas amesmo da alma inferior que funciona em estreita união com o corpo. Note-se, porém,
que, dada a característica absolutamente incorporal da alma e sua vinculação ao inteligível -
inclusive no caso da alma inferior, que comercia com o corpo -, Plotino não poderá aceitar a
possibilidade de que qualquer parte da alma pereça. Por essa concepção, parece afrontar
interpretações que atribuam à partição da alma a possibilidade de seu perecimento em virtude
de seu caráter composto (pois, em Rep. X, 611b, Platão expusera a dificuldade em relação à
imortalidade de algo composto, tal como se revelou ser a alma ao longo da República).
Plotino não reconhece a possibilidade de perecimento de parte alguma da alma:
Mas se é dito que a alma do homem, sendo tripartite, será dissolvida porque
é composta, também nós diremos que as almas puras, quando libertadas,
soltarão o que foi acrescentado no nascimento, e as outras terão comércio
com isto por muito tempo; mas ao ser abandonada a pior <parte>, nem
mesmo esta perecerá, enquanto exista aquela de onde tem seu princípio. Pois
nada que provém do ente perece.
403
402
I 1 [53] 12, 10-21: su/nqetoj ou)=n kai\ to\ e)k pa/ntwn h( yuxh\ au)th\ gi/netai kai\ pa/sxei dh\ kata\
to\ o(/lon kai\ a(martanei to\ su/nqeton kai\ tou=to/ e)sti to\ dido\n di/khn au)t%=, ou)k e)kei=no. o(/qen
fhsi/! teqea/meqa ga\r au)th/n, w(/sper oi( to\n qala/ttion Glau=kon o(rw=ntej. dei= de\
perikrou/santaj ta\ prosteqe/nta, ei)/per tij e)qe/lei th\n fu/sin, fhsi/n, au)th=j i)dei=n, ei)j th\n
filosofi/an au)th=j i)dei=n, w(=n e)fa/ptetai kai\ ti/si suggenh\j ou)=sa/ e)stin o(/ e)stin. a)llh ou)=n zwh\
kai\ a)/llai e)ne/rgeiai kai\ to\ kolazo/menon e(/teron! h( de\ a)naxw/rhsij kai\ o( xwrismo\j ou) mo/non
tou=de tou= sw/matoj, a)lla\ kai\ a(/pantoj tou= prosteqe/ntoj. kai\ ga\r e)n th= gene/sei h( prosqh/kh!
h)\ o(/lwj ge/nesij tou= a)/llou yuxh=j ei)/douj.
403
IV 7 [2] 14, 8-14: ei) de\ th\n a)nqrw/pou yuxh\n trimerh= ou)=san t%= sunqe/t% luqh/sesqai
<le/getai>, kai\ h(mei=j fh/somen ta\j me\n kaqara\j a)pallattome/naj to\ prosplasqe\n e)n t$=
119
Em primeiro lugar, cabe observar que Plotino não está aqui a defender a
tripartição platônica da alma. Como expusemos em outro momento, nosso filósofo não parece
de fato concordar com ela. O que se enfatiza aqui é que, mesmo no caso da crença em uma
tripartição da alma, tal como é proposta ao longo da República, nem mesmo esta composição
da alma será capaz de torná-la perecível, pois a alma é verdadeiro ente e todas as partes
inferiores, que se afastam de seu princípio puro e inteligível, estão, ainda assim, unidas à parte
superior. Ao final de algum tempo, a alma acabará por se soltar de tudo que não constitui sua
natureza própria e retornará à origem. Assim, com a morte do corpo, a alma pura facilmente
se desprende dos acréscimos advindos do nascimento; a alma pior”, por estar entrelaçada ao
corpo, custa a desvencilhar-se dele.
Esta alma misturada ao corpo, consideremo-la “outra espécie de alma”, “vestígio
de alma”, constitui-se, de todo modo, no “homem inferior”. E, neste sentido, a insistência do
filósofo a respeito da purificação da alma dá o tom para toda sua obra. Afinal, não se trata de
simples escolha moral, mas o que está em jogo é a própria essência humana: purificar-se
significa viver segundo a própria essência, significa ser quem realmente somos. É preciso uma
conversão do olhar, uma concentração não no inferior, mas no superior - que somos nós
mesmos, afinal.
* * *
Ao concluirmos este capítulo, esperamos ter evidenciado a alta dignidade de que
se revestem as almas individuais, com a qual o filósofo garante a liberdade humana. Não se
trata, é certo, de uma liberdade absoluta, pois, por possuírem corpos, em muitos aspectos os
homens terão de submeter-se às leis necessárias da natureza. A identificação do eu com a
parte não descida da alma resulta, porém, na possibilidade de retorno à origem, onde impera a
liberdade. Se os três princípios Um, Intelecto e Alma estão presentes em cada um de
nós
404
, ao fazermos coincidir nossa identidade com a alma pura, atingimos nosso verdadeiro
centro, que é também o centro mediante o qual comungamos com o Intelecto e com o Um.
Esperamos também ter feito notar, ao longo deste e do capítulo anterior, a elevada
complexidade da alma na filosofia plotiniana, com sua grande variedade de níveis e modos de
gene/sei a)fh/sein, ta\j de\ tou/t% sune/sesqai e)pi\ plei=ston! a)feime/non de\ to\ xei=ron ou)de\ au)to\
a)polei=sqai, e(/wj a)\n $(=, o(/qen e)/xei th\n a)rxh/n. ou)de\n ga\r e)k tou= o)/ntoj a)polei=tai.
404
Cf. V 1 [10] 10, 1-6.
120
operação. Todas as almas encontram-se, de algum modo, ligadas à totalidade da alma, uma
vez que existe uma continuidade entre todos os níveis de alma. A alma humana, entretanto,
tem a capacidade de deslocar-se entre todos estes estágios. Por sua parte inferior, entramos em
contato com o mundo sensível, mas, por sermos “cada qual um mundo inteligível”
405
,
vivemos também no vel superior da alma. Por um lado, atado ao corpo, mas, por outro,
capaz de ascender às realidades superiores, o homem possui o direito e o dever - de viver a
vida de Lá. E, ao identificar-se com esta realidade, subtrai-se ao destino que submete o mundo
corpóreo.
Se cabe ao homem alguma autonomia e Plotino faz questão de resguardar essa
possibilidade -, o é possível que as almas individuais sejam derivadas da alma do mundo,
pois é na parte não descida de nossa alma que reside a liberdade humana. Ora, esta parte
encontra-se unida à Alma Hipóstase, é o que procuramos mostrar no terceiro capítulo da
primeira parte
406
. O ganho oferecido pela Enéada III 1 [3] parece-nos considerável, ao
equiparar a alma individual a princípio causal garantidor da liberdade humana. Esta é,
acredito, uma das razões pelas quais não se pode ler em Plotino almas individuais como
derivadas ou partes da alma do mundo. Não se pode abdicar de nosso caráter divino. Embora
seja dupla a constituição do homem, tal duplicidade não deve nos iludir quanto à nossa
verdadeira identidade, residente no alto, na nossa pátria:
Nós, tendo sido plasmados pela alma doada pelos deuses no céu e pelo
próprio céu, por esta alma também temos comércio com os corpos. Pois a
outra alma, pela qual nós somos, é responsável pelo nosso ser excelente, o
pelo nosso ser. Com efeito, quando o corpo já existe é que ela vem, trazendo
consigo um pouco de raciocínio para o ser.
407
Se a alma inferior, doada pela alma do mundo, permite-nos existir neste mundo, é
pela parte superior, portadora de racionalidade ao homem encarnado, que verdadeiramente
existimos. É este o verdadeiro homem, que transcende a própria racionalidade, que é capaz
de intelecção. A razão é um aporte introduzido no ser humano ao nascer, derivado da alma
superior, mas não se resume a nossa identidade. Assim, todos desfrutam desta alma, que
405
III 4 [15] 3, 22.
406
Cf. especialmente p. 46.
407
II 1 [40] 5, 18-23: h(mei=j de\ plasqe/ntej u(po\ th=j didome/nhj para\ tw=n e)n ou)ran%= qew=n yuxh=j
kai\ au)tou= tou= ouranou= kat” e)kei/nhn kai\ su/nesmen toi=j sw/masin! h( ga\r a)/llh yuxh\, kaq” h(\n
h(mei=j, tou= eu)= ei)=nai, ou) tou= ei)=nai ai)ti/a. h)/dh gou=n tou= sw/matoj e)/rxetai genome/nou mikra\ e)k
logismou= pro\j to\ ei)=nai suneklambanome/nh.
121
raciocinam. Mas o alvo de Plotino é o alcance de uma completa coincidência de si com esta
alma transcendente.
122
II.3. O PAPEL DA VIRTUDE PURIFICADORA PARA INTEGRAÇÃO DAS
ALMAS AO INTELIGÍVEL
As almas individuais possuem estatuto de princípios causais - ao lado da alma do
mundo e são, portanto, livres do determinismo. Ao postular, porém, que o princípio causal
diz respeito somente à parte pura da alma, à parte não descida que permanece sempre no
inteligível, Plotino parece excluir da liberdade a maior parte dos seres humanos. Se os homens
encarnados apresentam almas compostas, almas mescladas com o corpo, então certamente
devem submeter-se ao destino e não para eles qualquer autonomia. Assim, a filosofia
plotiniana é um constante alerta para que escapemos desta condição degradada e resgatemos
nossa condição divina. O percurso a ser trilhado é de purificação da alma, com a eliminação
das impurezas e sua conseqüente simplificação. Purificar-se significa resgatar a alma ao
inteligível, ao qual pertence por direito, significa retornar à nossa origem e verdadeira
natureza.
Assim, parece ser útil, se não imprescindível
408
, observar com algum detalhe os
ensinamentos do filósofo acerca do modo de restauração da natureza da alma humana, o que
nos deixará em condições de reconhecer sua origem. Não basta, acredito, compreender de que
modo se a descida das almas, enxergar qual seja seu ponto de partida; é preciso também
reconhecer por que meios podemos retornar à nossa origem. Estudar as duas fases do processo
cíclico de processão e purificação levará certamente a uma melhor compreensão da fonte da
qual partiram as almas individuais e à qual podem retornar.
* * *
A doutrina de Plotino insiste sobre a impassibilidade da alma. Dedica-se
especialmente ao assunto no tratado III 6 [26], procurando explicar como é possível que a
alma não esteja sujeita a afecções. O eixo central de sua resposta prende-se à incorporeidade
da alma: todas as afecções - impulsos, apetites, paixões - dizem respeito ao corpo; a alma, por
sua vez, julga as afecções e, note-se, o julgamento não é afecção, mas uma atividade do
pensamento, onde se conhece sem ser afetado
409
. As afecções ocorrem no corpo. Tome-se o
408
Como afirma George WALD, nas primeiras linhas de Self-intellection and identity in the philosophy of
Plotinus, “qualquer tentativa de discutir a filosofia de Plotino que não leve em conta a ascensão da alma para o
intelecto e para o Um está errada desde o início.” (p. 17).
409
Cf. p. 85 supra.
123
medo como exemplo: a visão de um animal perigoso imediatamente desencadeia uma reação
dentro do composto animado, que, conseqüentemente, experimenta medo. A alma, porém,
simplesmente toma conhecimento do medo, sem ela própria senti-lo.
Pois bem, a alma é impassível, afirma Plotino. Por que, então, esforçar-se por
buscar a a)pa/qeia se a alma é a)paqh/j? Qual a necessidade de uma disciplina moral que
mantenha a alma impassível, quando ela é assim por natureza? Este problema não passa
despercebido pelo filósofo
410
. O que está em jogo é uma questão ética bastante pungente ao
tempo de Plotino, mostrada com agudeza no tratado II 9 [33], “Contra os gnósticos”, quando
o filósofo insurge-se contra um ensinamento que reputa irracional e imoral. Rejeitando a
salvação por meio da virtude e da sabedoria, os gnósticos consideram-se já salvos de antemão
sem necessidade de qualquer esforço, beneficiários privilegiados de algum arbítrio divino. A
conseqüência inevitável de tal crença é, enxerga Plotino, a imoralidade
411
. Acusa-os de jamais
terem se preocupado com a virtude, sendo incapazes de afirmar-lhe a definição, ou quantas
partes possui, nem sua causa, nem tampouco como alcançá-la. Sem jamais haverem escrito
um tratado sobre o tema, também silenciam sobre os cuidados da alma ou sobre a maneira de
purificá-la. De nada adianta incitar-nos a olhar para Deus, se esta doutrina não ensina também
de que modo fazer isso. Não percebem que, antes de atingir a meta proposta, é necessária a
presença da virtude, e é somente esta em conjunção com a sabedoria que permite a
contemplação de Deus. Afinal, conclui Plotino, “sem a verdadeira virtude, Deus é <apenas>
um nome que dizemos”.
412
A conversão do olhar para Deus é possível àquele que purificou sua alma,
àquele que, pela prática da virtude, assimilou-se a Deus e pode agora contemplar algo que lhe
é semelhante. Assim, a alma em sua verdadeira natureza, purificada, é de fato impassível. O
homem, porém, nem sempre é impassível, pois pode identificar-se com o composto animado e
não apenas com a alma. Esta é a razão da importância do processo purificador em Plotino. Ao
contrário dos gnósticos, o filósofo escreveu muito sobre a virtude, mas dedicou um tratado
especificamente para a questão: a Enéada I 2 [19], “Sobre virtudes”.
A virtude em Plotino assume um papel bastante peculiar em relação às virtudes
tradicionais da ética grega. Como a ética plotiniana não se dissocia da metafísica, é preciso
notar o caráter “anfíbio” da alma, capaz de voltar-se para o mundo sensível ou para as
superiores realidades inteligíveis, para compreender de que maneira a purificação é a chave
410
Cf. III 6 [26] 5.
411
Cf. II 9 [33] 15.
412
II 9 [33] 15, 39-40: a)/neu de\ a)reth=j a)lhqinh=j qeo\j lego/menoj o)/noma e)stin.
124
para o afastamento das coisas corpóreas e conversão ao Intelecto, ou Deus, já que é de Lá que
provém a Alma. Utilizando o tratado I 2 [19] como fio condutor, vamos agora procurar
observar de que maneira Plotino encara as virtudes e de que modo elas podem alçar-nos à
contemplação das realidades inteligíveis e à união com Deus.
* * *
A Enéada I 2 [19] inicia com uma citação de Teeteto onde Platão recomenda a
fuga do mundo sensível por meio de uma assimilão a Deus: “Uma vez que os males estão
aqui e circundam este lugar necessariamente, e a alma quer escapar dos males, deve-se fugir
daqui. Qual, então, é esta fuga? Assemelhar-se a Deus, diz [Platão].”
413
Observemos as
próprias palavras de Platão, pronunciadas pela boca de Sócrates:
Mas não é possível que os males desapareçam, Teodoro pois é necessário
haver sempre algo contrário ao bem , nem tampouco possível> que eles
se instalem entre os deuses, mas necessariamente circundam a natureza
mortal e este lugar aqui. Por isso mesmo é preciso tentar fugir daqui para
o mais rapidamente possível. E a fuga é assimilação a Deus na medida do
possível.
414
Embora utilize termos bastante semelhantes aos de Platão, Plotino omite
atenuantes presentes no texto platônico que alterarão significativamente o sentido das
passagens. A fuga proclamada por Plotino é imperativa: feukte/on e)nteu=qen. Deve-se fugir
daqui. Em Platão, ainda que também seja dada uma ordem, o que se ordena não é a fuga, mas
o esforço para fugir. Devemos “tentar” (peira=sqai), esforçarmo-nos por escapar daqui. Em
Plotino, nem mesmo cláusulas temporais estão presentes, como no caso de Platão, que
recomenda a fuga “o mais rápido possível” (o(/ti ta/xista). A fuga exigida por Plotino é
incondicional. Prova disso é a omissão do termo kata\ to\ dunato/n. Se a fuga deve ocorrer
mediante uma assimilação a Deus “na medida do possível”, Platão parece reconhecer a
413
I 2 [19] 1, 1-4: E)peidh\ ta\ kaka\ e)ntau=qa kai\ to/nde to\n to/pon peripolei= e)c a)na/gkhj,
bou/letai de\ h( puxh\ fugei=n ta\ kaka/, feukte/on e)nteu=qen. ti/j ou)=n h( fugh/; qe%=, fhsin,
o(moiwqh=nai.
414
PLATÃO, Teeteto, 176 a4 - b1: A)ll” ou)/t” a)pole/sqai ta\ kaka\ dunato/n, w)= Qeo/dwre -u(penanti/on
ga\r ti t%= a)gaq%= a)ei\ ei)=nai a)na/gkh - ou)/ten qeoi=j au)ta\ i(dru=sqai, th\n de\ qnhth\n fu/sin kai\
to/nde to\n to/pon peripolei= e)c a)na/gkhj. dio\ kai\ peira=sqai xrh\ e)nqe/nde e)kei=se feu/gein o(/ti
ta/xista. fugh\ de\ o(moi/wsij qe%= kata\ to\ dunato/n.
125
impossibilidade de um escape completo do mundo sensível
415
. Cremos haver aqui um
afastamento entre Plotino e Platão. Nosso filósofo considera exeqüível a fuga, e pode fazê-lo
porque postulou uma parte não descida da alma. Toda nossa tarefa será purificarmo-nos,
abandonando as excrescências ajuntadas à alma. Identificando-nos com a parte pura da alma,
estaremos imediatamente Lá. Seremos seres do mundo inteligível, assemelhados a deuses,
ainda que tenhamos corpos. O imperativo plotiniano não é de ordem moral, mas ontológica e
“henológica”. O conhecimento filosófico deve levar à compreensão de nossa verdadeira
natureza, realidade superior dependente das realidades superiores, Intelecto e Um, mas capaz
de unir-se a elas. Fugir daqui representa viver a vida de Lá, unificando-se com aquilo que nos
transcende. A união com Deus é possível, pensa Plotino, desde que nos assimilemos a ele
completamente e não em termos, na medida de nossas possibilidades. Com efeito, se somos
um mundo inteligível, com as realidades inteligíveis presentes em nós, então deve ser
perfeitamente possível alcançar a identificação com essa realidade. Ainda que a assimilação
se de forma descontínua, momentânea, ainda assim, enquanto perdure, será uma
assimilação completa a Deus.
Vejamos agora a que deus nos assemelharíamos? Não pode ser à alma do mundo,
entende Plotino; tanto esta quanto nós mesmos, almas individuais, aspiramos pelos
inteligíveis presentes no Intelecto. Isto significa que a contemplação deste que nos é superior,
deste Deus, o Intelecto, é o meio pelo qual as almas buscam fugir do mundo sensível, e
somente assemelhando-nos a este Deus alcançaremos, de fato, o afastamento da corporeidade.
Como, porém, proceder a esta assimilação? Que virtudes possuídas pelo Intelecto poderíamos
imitar?
Em primeiro lugar, se é do Intelecto que provêm as virtudes, isto não significa que
ele próprio tenha virtudes. É até mesmo bastante improvável que possua aquelas chamadas
“cívicas” - sabedoria prática ou reflexão, relacionada ao raciocínio discursivo (to\
logizo/menon), coragem, ligada às emoções (to\ qumou/menon), temperança, que é uma
harmonia entre apetite (to\ e)piqumhtiko/n) e razão (o( logismo/j), e justiça, que ocorre
quando cada parte cuida do que lhe cabe
416
. A assimilação a Deus não deve se basear,
portanto, na obtenção das virtudes cívicas, mas de virtudes superiores a estas, o que o
implica excluir a presença de virtudes cívicas em alguém que se assemelha ao divino. É
preciso notar, entretanto, que a semelhança a Deus baseia-se na posse de virtudes superiores.
415
Ainda que não se canse de recomendar esse empreendimento, como vemos também em Rep. X, 613 a-b, Tim.,
90 a-c, Leis IV, 716 c-d. Cf. também o elogio da assimilão às Formas em Rep. VI, 500 b-c.
416
Cf. Rep. IV, 427b-434d; 441c-444e.
126
E, contudo, Deus não possui virtudes, nem mesmo as superiores. Paradoxalmente,
porém, nossa possibilidade de assimilação ao divino exige a posse de virtudes
417
. Que virtudes
são essas que, sendo imitações do inteligível
418
, nos tornam semelhantes ao divino? Seguindo
o caminho aberto pelo Fédon, 69 b-c, Plotino considera a purificação como a única virtude
capaz de produzir a procurada assimilação a Deus. E por meio desta purificação alcançamos
um estado tal em que inclusive as virtudes cívicas se encontrarão presentes, mas obtidas o
por alguma espécie de esforço ou tensão sobre o corpo e suas paixões. Na verdade, seu
significado é transportado para um nível mais elevado e tornam-se constituintes da própria
essência da alma purificada. Assim, a alma virtuosa não compartilha das opiniões do corpo,
mas é capaz de, sozinha, inteligir (noei=n) e ser sábia (fronei=n); não partilha das afecções do
corpo, por isso sabe ser temperante (sofronei=n); não teme afastar-se do corpo, o que
significa ser corajosa (a)ndri/zesqai), e é justa (dikaiosu/nh) por ser liderada unicamente
pela razão e pelo intelecto (lo/goj kai\ nou=j)
419
. “Tal disposição da alma, segundo a qual ela
intelige e é, assim, impassível, se alguém a designasse como semelhança a Deus, não
erraria.”
420
Tal é o estado da alma que conseguiu assemelhar-se a Deus. Imita a pureza do
divino extirpando tudo que é estranho a si e retorna à sua natureza original. Após o processo
de purificação, o que resta o é o bem em si (pois, neste caso, sua natureza seria tal que não
poderia ter um dia se tornado má), mas é algo semelhante ao bem que, entretanto, não
permanece necessariamente no bem e tende para duas direções opostas. É um bem para a
alma a convivência com o que lhe é aparentado; mal, a convivência com o que lhe é oposto.
Mas, conviver com o bem é possível à alma que se purificou, que executou o movimento
de conversão para ele e foi capaz de contemplar as realidades superiores. A alma purificada
encontra-se agora no estado de virtude, capaz de contemplar o inteligível e ter implantada e
417
I 2 [19] 3, 31: h( de\ a)reth\ yuxh=j! nou= de\ ou)k e)/stin ou)de\ tou= e)pe/keina. “A virtude é da alma; mas
não pertence ao Intelecto nem ao que está além.
418
O Intelecto fornece à alma modelos de virtude sem que tais modelos sejam eles mesmos virtudes. Questão
semelhante é tratada em II 4 [12] 9, que procura dar conta do argumento do Parmênides, 131 e-132 b, referente à
“regressão ao infinito”. Plotino afirma que a forma da grandeza não é ela própria grande, assim como a forma da
brancura não é branca.
419
Cf. I 2 [19] 3, 11-19.
420
I 2 [19] 3, 19-21: th\n dh\ toiau/thn dia/qesin th=j yuxh=j kaq” h(\n noei= te kai\ a)paqh\j ou(/twj
e)stin, ei)/ tij o(moi/wsin le/goi pro\j qeo/n, ou)k a)\n a(marta/noi.
127
ativa em si uma impressão do que foi visto; é capaz de promover a concordância entre as
impressões das Formas, presentes na alma, e a realidade da qual elas são impressões
421
.
E como alcançar a purificação? Afastando-se do corpo, ensina Plotino, tomando
consciência apenas do que for absolutamente necessário, o se identificando com o
composto nem compartilhando com ele os sofrimentos que porventura este venha a padecer;
tampouco deve participar da excitação emocional própria do corpo. Entretanto, é preciso
observar que este modo de agir é resultado da atitude de conversão para o Intelecto; o se
trata de um esforço de dominação sobre o corpo, o que significaria manter nele o foco da
atenção, em igualdade de nível. Com efeito, qualquer tentativa de imposição de virtudes
cívicas representa ainda uma luta contra um inimigo que reputamos valoroso. Uma é a
temperança cívica, “que mede” (metrou=sa), que subordina os desejos, outra, a virtude
superior que nos “desembaraça” deles (a)nairou=sa)
422
; uma coisa é a subordinação do temor
pela coragem; outra, a completa ausência de temor. A partir do momento em que o homem se
apercebe da existência de uma realidade transcendente e aspira a ela, essa própria percepção é
um movimento que dirige seu olhar para a luz, a qual, iluminando-o, permite-lhe viver num
nível superior. Mas, se o plano superior nos transcende, para que ele se torne acessível a nós,
é preciso que de algum modo rompamos com nossa “maneira de ver” habitual
423
. Esta
metamorfose do olhar é o movimento que somente o homem pode executar e em nome do
qual toda filosofia plotiniana é um apelo. Se somos dotados de múltiplas potências
424
, se a
atualização de uma delas não suprime as demais, sempre um estatuto de precariedade na
fixação do “eu”. Onde situá-lo: no vel da percepção sensível e da ação, como faz a
maioria
425
, ou no mundo inteligível, como reconhece o sábio?
426
O homem deve enxergar que
identificar-se com os patamares inferiores da existência significa privar-se do melhor de si.
A assimilação a Deus tem dupla significação: é em primeiro lugar a busca de
semelhança com Deus, mas, ao final do processo, representa a assimilação plena - não apenas
no sentido de semelhança, mas de identificação: assimilação que é união a Deus. Por isso a
exortação do início do tratado para que se proceda a uma assimilação a Deus como única
maneira de escapar aos males deste mundo sensível. Esta deve ser a única preocupação do
421
Possuímos impressões das Formas, que são como que realidades obscuras, não iluminadas. A alma purificada,
convertida para o Intelecto, é capaz de contemplar as próprias Formas.
422
Cf. I 2 [19] 7, 18.
423
Cf. I 6 [1] 8.
424
Cf. VI 5 [23] 7; I 8 [51] 14; I 1 [53] 11.
425
Cf. V 3 [49] 3; I 1 [53] 10
426
Cf. III 4 [15] 3, 23.
128
sábio. Não é essencial buscarmos ser livres do pecado, pois esta é a condição natural daquele
que se tornou deus
427
. O homem neste estado não erra, convertido no próprio inteligível.
Tendo restaurado sua verdadeira natureza, pode agora até mesmo auxiliar no processo de
purificação do que lhe é inferior.
A natureza humana, como vimos, é dupla: a parte superior da alma, racional, e
a parte inferior que convive com o corpo e, unida a ele, forma o composto que comumente
chamamos homem. Plotino, já sabemos, não identifica nossa verdadeira natureza à deste
composto. Somos, de fato, a parte superior da alma, cuja natureza “anfíbia”, entretanto, é
capaz de viver em dois mundos, voltando-se ora para o sensível, ora para o inteligível. O
trabalho de purificação da alma significa extirpar tudo que, tendo provindo da parte inferior,
agregou-se à alma, prejudicando-a e pervertendo-a. Por sua vez, esta natureza inferior poderá
ser, por assim dizer, redimida pela alma superior, procurando assemelhar-se a esta segundo a
sua capacidade. É o que vimos, por exemplo, em I 2 [19] 5, 21-31
428
, onde se observa a
submissão do homem inferior ao superior, seu mestre e senhor. Assim, o composto servirá e
buscará honrar o que lhe é superior eo o contrário
429
.
O estado de integração ao Intelecto é garantia de virtude para a alma e
conseqüentemente, de impassibilidade. Vejamos a razão disso no capítulo 6 de nosso tratado.
Sabedoria é a contemplação do conteúdo do Intelecto. Para o Intelecto, a sabedoria já lhe está
presente por contato imediato e não é virtude, pois é seu próprio ato e essência. Já a virtude é
o que vem de Lá e existe em outro. Nem a justiça absoluta nem qualquer outro absoluto moral
são virtudes, mas são como paradigmas. A virtude é o que, na alma, deriva destes modelos; é
sempre de alguém, ao contrário de seu paradigma no Intelecto, que só pertence a si mesmo.
430
A alma que alcançou a sabedoria, que contempla os paradigmas do Intelecto,
contempla a verdadeira justiça, que não é, como parece indicar a República (434 c8), cada
qual cuidar de seu próprio assunto. Tal justiça requer, com efeito, uma pluralidade de partes
para existir e, conseqüentemente, tem como função ordenar a multiplicidade. Entretanto, a
verdadeira justiça absoluta, emenda Plotino, pode também ser entendida como o cuidado com
o próprio assunto, mas este assunto é a unidade, é a disposição de uma unidade onde não haja
427
Cf. I 2 [19] 6, 1-3.
428
Cf. p. 81 desta dissertação.
429
Cf. I 2 [19] 6, 7-11.
430
Como notou Bréhier, em sua nota introdutória ao tratado I 2 [19], bastante semelhança aqui com a visão
aristotélica de que as virtudes são excelências especificamente humanas e não se encontram na divindade, que
está acima da virtude. Cf. Ét. Nic. VII, 1, 1145 a 25-27.
129
partes
431
. Da conversão para o Intelecto resulta, pois, a completa justiça na alma bem como a
mais elevada temperança e coragem. A alma liberta-se das afecções ao assemelhar-se ao
objeto de sua contemplação, que é absolutamente livre de afecções. Pela virtude, a alma torna-
se efetivamente impassível, uma vez que não compartilha das afecções de seu companheiro
inferior.
A purificação resulta, portanto, na virtude, poderíamos dizer, absoluta - virtude
que significa a posse de todas as virtudes. O capítulo 7 apresentará a unidade e mútua
implicação das virtudes. A alma que orientou sua visão para o Intelecto é sábia, pois
contempla a sabedoria em si
432
. E isto vale para as demais virtudes. Ora, se o processo
catártico resulta na contemplação do Intelecto, então resulta na contemplação de todas as
virtudes, pois o Intelecto é todas elas simultaneamente. E assim fica explicado por que o é
importante buscar ser livre do pecado, mas sim assemelhar-se a Deus. Com efeito, se a
assimilação a Deus resulta na posse das virtudes superiores, isto implica necessariamente a
presença das virtudes inferiores em potência. Já o contrário não ocorre com necessidade, uma
vez que existem homens virtuosos no sentido inferior, homens bons, praticantes das virtudes
cívicas, que, no entanto, não são sábios no sentido completo do termo, pois jamais
contemplaram os paradigmas presentes no Intelecto. Assim, o homem verdadeiramente
virtuoso deixa, por exemplo, de considerar a temperança como simples observação de medida
e limites. Ele agora se separa de sua natureza inferior e não vive mais a vida do homem bom,
que cumpre as virtudes cívicas. Vive a vida dos deuses, pois assimilou-se a deuses, o a
homens bons. “A assimilação a homens bons é como uma imagem assemelhar-se a outra,
ambas do mesmo modelo; mas a assimilação <a Deus> é como a assimilação ao modelo”.
433
* * *
A alma purificada, completamente simples, restaura sua verdadeira natureza e
liberta-se do pecado. Mas este estado de beatitude é próprio unicamente do sábio. Aquele que
se mantém entrelaçado à parte inferior, que de algum modo se identifica com o composto, tal
homem é sujeito a erros, uma vez que o composto é passível de afecções. É este quem erra e
431
Talvez por pudor em rejeitar o ensinamento do mestre de maneira definitiva, Plotino ajeita a definição
platônica de justiça e dá-lhe um sentido inteiramente outro.
432
Mais uma vez, vale salientar, o Intelecto não é sábio, mas é a própria sabedoria. Se a alma possui virtudes, o
Intelecto é estas virtudes em ato.
433
I 2 [19] 7, 28-30: o(moi/wsij de\ h( me\n pro\j tou/touj [pro\j a)nqrw/pouj a)gaqou\j], w(j ei))kw\n
ei)ko/ni w(moi/wtai a)po\ tou= au)tou= e(kate/ra. h( de\ pro\j a)/llon w(j pro\j para/deigma.
130
sofre punições, explica Plotino em um de seus últimos tratados (I 1 [53] 12), curiosamente
escolhido por Porfírio para iniciar as Eadas. Aproveitando-se do mito de Héracles narrado
na Odisséia (XI, 601-2), mostra a existência de “duas almas”, uma que é punida no Hades,
outra que vive eternamente com os deuses. Quando a alma está completamente purificada,
contemplando o Intelecto, até mesmo aquela parte inferior, iluminada pela alma superior,
unifica-se, de sorte que asombra” deixa de existir; não há alma ou “sombra” a ser punida no
Hades. Se o poeta afirma a permanência de uma sombra” de Héracles no Hades, enquanto o
próprio Héracles encontra-se entre os deuses, isso se deve à sua nobreza de caráter, que o
tornava digno de ser chamado “deus”; porém, na medida em que não era uma pessoa
contemplativa (ou) qeorhtiko/j), mas voltada à vida prática (praktiko/j), não poderia estar
completa e unicamente no mundo inteligível, permanecendo uma parte dele ainda embaixo
434
.
Com este exemplo, pode-se observar a exigência de um caráter absolutamente
comtemplativo ao homem que almeja manter sua alma pura. Ao voltar-se para a práxis, ,
por assim dizer, uma “duplicação” da alma. Assim, a existência de duas partes da alma - “a
alma interior” (h( e)/ndon yuxh/) e “a sombra do homem exterior” (h( e)cw a)nqrw/pou
skia/)
435
- permite explicar a existência do pecado e da responsabilidade moral. Permite
também compreender a importância da disciplina representada pela purificação, processo em
que o homem deve empenhar-se, caso queira tornar-se efetivamente livre de males. Enquanto
“pertencer” a um corpo, será parcial, e, como tal, cindido. Aqui , porém, um aspecto digno
de nota
436
: a separação do corpo não significa que não possamos “ter” um corpo. É natural
que a alma, estando, por assim dizer, “na beira do inteligível”
437
, ilumine a matéria, assim
como é também natural que se aproxime da imagem que lhe é assemelhada. Uma lei
inevitável compele cada uma das almas a encaminhar-se àquilo que corresponde à sua
disposição:
Assim, o fato inescapável e a justiça no domínio natural <estabelecem> cada
qual encaminhar-se ordenadamente em direção à respectiva imagem
engendrada de seu propósito e disposição original, e isto significa que toda
434
O mito de Héracles “duplo” aparece também em IV 3 [27] 29 e 32.
435
Termos propostos em III 2 [47] 15, 48-49.
436
Na verdade dois aspectos a serem observados, mas um deles - relativo à manutenção da identidade após o
processo de purificação - talvez não seja pertinente ao nosso propósito atual. Creio que a purificação não
significa uma dissolução no Todo com conseqüente perda de identidade, como pode parecer à primeira vista,
mas é, ao contrário, a recuperação da verdadeira identidade. Por ora, note-se apenas um ponto que parece
reforçar esta interpretação: “pois no Todo as muitas <almas> <existem>, não em potência, mas cada qual em
ato”. (VI 4 [22] 4, 39-40: e)n ga\r t%= o(/l% ai( pollai\ h)/dh ou) duna/mei, a)ll” e)nergei/# e(ka/sth!)
437
IV 8 [6] 7, 6-7.
131
espécie de alma é próxima daquilo em direção ao qual a <conduz> a
disposição que possui em si, e não necessita de algo que a envie ou a
introduza num determinado momento no corpo para o qual ela vai nem
[necessita de algo que a envie ou a introduza] em algum corpo determinado,
mas, quando o momento se apresenta, <as almas> descem e entram onde
devem como que automaticamente.
438
Cada alma “desce” para um corpo capaz de recebê-la e que corresponde à sua
disposição. O homem sensível tem, por sua natureza, capacidade para receber a faculdade
racional da alma, que, assim, dirige-se ao composto preparado à semelhança do homem
inteligível
439
. Esta inclinação da alma não é erro, é parte de uma lei universal
440
. O problema
surge quando a alma identifica-se com seus “reflexos” e agrega-os a si. E assim, a alma, qual
Narciso confundindo imagem e realidade
441
, “mergulha” para fora do mundo inteligível e
afunda nos males do sensível. Aquele, porém, que for capaz de manter-se completamente
voltado para o inteligível, ainda que governe um corpo - exemplo dado pela alma do mundo,
que governa o universo sem se entregar a ele -, não sofrerá os males que possam advir ao
corpo. Não será perturbado por paixões, desejos, sofrimentos, medos, falsas opiniões, pois
tudo isto diz respeito apenas ao composto
442
. Esta é a razão da insistente exortação de Plotino
para que escapemos daqui, para que “fujamos para nossa pátria”, para que sigamos o exemplo
de Odisseu, o nos deixando enfeitiçar pelas belezas dos sentidos
443
. E o único modo de
perfazer isto é despertando “outro modo de ver, que todos têm, mas poucos utilizam”
444
.
Ao contrário da alma do mundo e das almas dos astros, que controlam os corpos
sem esforço e sem abandonar a contemplação
445
, as almas humanas têm sob seus cuidados
uma estrutura bastante instável, sempre necessitada de preenchimento e sujeita a perturbações
438
IV 3 [27] 13, 1-8: To\ ga\r a)napo/draston kai\ h( di/kh ou(/twj e)n fu/sei kratou/s$ i)e/nai e(/kaston
e)n ta/cei pro\j o(/ e)stin e(/kaston geno/menon ei)/dwlon proaire/sewj kai\ diaqe/sewj a)rxetu/pou,
kai\ e)/stin e)kei=no pa=n yuxh=j ei)=doj e)kei/nou plhsi/on, pro\j o(\ th\n dia/qesin th\n e)n au(th= e)/xei,
kai\ tou= to/te pe/mpontoj kai\ ei)sa/gontoj ou) dei=, ou)/te i(/na e)/lq$ ei)j sw=ma to/te ou)/te ei)j todi/,
a)lla\ kai\ tou= pote\ e)nsta/ntoj oi(=on au)toma/twj ka/teisi kai\ ei)/seisin ei)j o(\ dei=.
439
Cf. IV 3 [27] 12-13 e VI 7 [38] 4-6.
440
Cf. I 1 [53] 12, 24-26. Também em IV 8 [6] 3, 21-27, Plotino esclarece a dupla função da alma: inteligir, mas
também ordenar, comandar e governar aquilo que procede de sua intelecção. É esta função “demiúrgica” da alma
que a distingue do Intelecto e que a estabelece ontologicamente como realidade posterior a ele. Cf. ainda IV 8 [6]
7, 1-7.
441
Cf. I 6 [1] 8, 8-16 ; V 8 [31] 2, 34-35.
442
Cf. I 8 [51] 15, 14-21
443
Cf. I 6 [1] 8. 16 ss.
444
I 6 [1] 8, 25-27: a)ll” oi(=on mu/santa o)/yin a)/llhn a)lla/casqai kai\ a)negei=rai, h(\n e)/xei me\n pa=j,
xrw=ntai de\ o)li/goi.
445
Cf. II 9 [33] 7, 1-18; III 4 [15] 4, 2-7; IV 8 [6] 2, 14 ss.
132
externas, o que requer constante intervenção. A razão, parte intermediária da alma situada
entre o inteligível e o sensível - isto que mais propriamente nos define enquanto homens
encarnados -, precisa voltar seus cuidados para a parte inferior, cujas requisições são
freqüentes: apetites e desejos, necessidades corporais, paixões. Tudo parece querer arrastar
para baixo a parte racional. Mas, lembra Plotino, é preciso observar que o melhor não deve se
sujeitar às opiniões (errôneas) do que lhe é inferior. Uma boa imagem dessa inversão - ou
perversão - de tarefas é uma assembléia conturbada, onde todos gritam e exaltam-se, enquanto
o melhor conselheiro é incapaz de prevalecer e senta-se quieto, derrotado pelo clamor dos
piores. Como seres compostos, os homens acabam por ser governados por alguma destas
partes - os piores homens são sempre regidos pela pior parte, os homens medianos ora
deixam-se levar pelo pior, ora não, os melhores fazem a melhor parte governar. Mas mesmo
estes ainda são compostos, restando neles uma espécie de luta interior pelo comando. No
melhor homem, porém, “no homem que se separa”, neste não mais conflito e um único
princípio diretor impera: o inteligível
446
. Deste modo, a assimilação a Deus permite ao homem
operar de maneira semelhante à alma do mundo, sem esforço e sem se entregar ao inferior.
Não mais identificação com o corpo. Tal homem sabe que possui um corpo animado, mas
sabe que não é ele mesmo aquele composto. Assim, nem sempre o cuidado com o inferior
impede que a alma se mantenha no inteligível. A alma do mundo é o melhor exemplo disso,
mas também a alma humana pode, purificando-se, agir do mesmo modo
447
.
A filosofia deve, então, libertar a alma, convertendo seu olhar para o inteligível.
Assimilada ao Intelecto, a alma integra-se efetivamente à sua parte superior não descida. A
própria conversão do olhar afasta o interesse pelo inferior, de sorte que até mesmo a
memória das coisas experimentadas no mundo sensível será deixada para trás
448
. Isto se
explica: a perspectiva segundo a qual Plotino avalia as ações humanas tem sempre em vista a
capacidade de uma dada ação fazer-nos assemelhar ao divino
449
. Ora, a memória tanto pode
ser pensamento (isto é, intelecção das formas, noeîn)
450
quanto imaginação
451
446
Cf. IV, 4 [28] 17.
447
Conforme mencionamos anteriormente (p. 112), em IV 8 [6] 2, 26-30, Plotino distingue dois tipos de
governo: o geral, “que comanda organizando sem esforço com autoridade real”, e o particular, em que o próprio
comandante pratica o ato e, “pelo contato com aquilo que está sendo feito, infecta-se com a natureza do que está
fazendo”. O primeiro é característico da alma do mundo, divina, o segundo, das almas humanas não purificadas.
Agora poderemos acrescentar que também as almas puras exercerão o primeiro modo de comando do corpo.
448
Cf. IV 3 [27] 32, 10 ss.
449
Cf. DILLON, “An Ethic for the Late Antique Sage”, p. 320.
450
Uma vez que no inteligível tudo é puro ato, a própria intelecção aqui é chamada de memória, mas de maneira
muito larga, pois a memória, tal como a entendemos, envolve tempo e seqüência de eventos.
133
(fanta/zesqai), escreve em IV 4 [28] 3, e o modo como a alma vê reflete o modo como ela
está disposta. Estando a alma na fronteira entre dois mundos, a memória do inteligível pode
sustentá-la e evitar sua queda; a memória das coisas inferiores, ao contrário, arrasta-a para
baixo. “De maneira geral, a alma é e torna-se aquilo de que se lembra”
452
, de sorte que a alma
boa é esquecida
453
(das coisas do mundo sensível). Há dois Héracles, um no Hades, outro que
vive com os deuses; o do Hades lembra-se de seus feitos, mas não o habitante do mundo
divino, onde não há tempo e onde tudo é puro ato
454
.
Em I 4 [46] 4, Plotino afirmará que o homem assim purificado tem “a vida
perfeita” (h( telei/a zwh/), é bem-aventurado (eu)daí/mwn)
455
. E o que é a vida perfeita para
o homem? É ter “não apenas a percepção sensível, mas também raciocínio e verdadeira
inteligência”
456
. Todo homem, para que mereça essa denominação, deve necessariamente
possuir estes três elementos, potencial ou ativamente. Os homens, em geral, possuem o noûs
apenas potencialmente, utilizando-o por vezes, mas o homem de vida perfeita” é o noûs em
plena atividade. Tudo o mais é algo de que ele faz uso, mas com o qual não se identifica. Tal
homem nada mais busca, pois não o que buscar, tem em si tudo de que necessita. Tudo
que vier a buscar será, não para ele, mas para o corpo que lhe pertence, que está junto a ele.
Vive sua própria vida, não a do corpo. Ainda assim, supre as necessidades corporais, sem ser
em nada diminuído. Ainda que ocorram as maiores adversidades, como mortes de amigos e
parentes, permanecerá bem. O sofrimento só pode ocorrer na parte irracional, mas tal homem
não permitirá que isso o abale
457
.
A ética plotiniana, com sua exigência de separação entre alma e corpo
458
, resulta
na real possibilidade de alcance do ideal estóico de apátheia por parte do homem que
451
E a imaginação sempre requer a presença de corpo. Cf. VI 8 [39], 3. 9-10.
452
IV 4 [28] 3, 6: kai\ o(/lwj, ou(= mnhmoneu/ei, e)kei=no/ e)sti kai\ gi/netai.
453
Cf. IV 3 [27] 32, 17-18.
454
Cf. IV 3 [27] 32 - IV 4 [28] 1.
455
I 4 [46] 4, 1-5.
456
I 4 [46] 4, 5-7: ou) th\n ai)sqhtikh\n mo/non e)/xwn, a)lla\ kai\ logismo\n kai\ nou=n a)lhqino/n.
457
Cf. I 4 [46] 4, 29-36.
458
A distinção entre corpo e alma não significa, porém, um dualismo radical, já que tanto a participação do
sensível no inteligível quanto a processão tornam impossível sustentar uma absoluta separação. Não se trata de
fato de uma oposição entre substâncias diferentes, nem mesmo, creio, entre mundos diferentes, mas de um
antagonismo de perspectivas, de sorte que a corrupção da alma não provém de algo que lhe seja exterior: é a
própria alma que se corrompe. Nas palavras de J. Trouillard, “alma e corpo não estão entre si nem como
substâncias heterogêneas nem como funções metafísicas complementares, mas como perspectivas diferentes...
No degrau superior, o corpo aparece espiritualizado, no degrau inferior, a alma parece quase materializada.” (La
134
purificou sua alma. Plotino demonstra a incoerência da apátheia estóica, dados os princípios
materialistas desta filosofia. O paradoxo a respeito do “touro de Falaris”
459
é utilizado por
Plotino para criticar a psicologia estóica
460
: não se sustenta a afirmação de que um homem
submetido à tortura do touro de Falaris possa considerar este estado agradável, pela simples
razão de que aquele que faz esta afirmação é o mesmo que experimenta a dor. Não há, na
antropologia estóica, considera Plotino, uma separação entre o sábio e seu corpo, o que
inviabilizaria a possibilidade de que tal homem viesse a não sentir dor e, mais ainda, sentir
prazer nesta situação. Com efeito, uma doutrina materialista da alma dificilmente é capaz de
dar conta da impassibilidade face a torturas físicas. , segundo a doutrina plotiniana, “há o
que sente dor, mas o outro, que está ligado a este, enquanto por necessidade tiver de ligar-se,
não estará privado da contemplação do bem universal”
461
. Assim, a identificação do eu - ou
“nós” na terminologia plotiniana - com a parte superior da alma garante a impassibilidade,
ficando as paixões relegadas ao composto. E se a sensação é julgamento, não impressão, se é,
não a dor, mas o “conhecimento da dor”
462
, a afecção da sensação é, como nota J. Trouillard,
menos sofrida que consentida, pois supõe, além de órgãos, uma orientação psíquica
determinada: neúein pròs tà aisthetá (IV.4.25.2)”
463
.
Em IV 7 [2] 10, Plotino observa o resultado do processo purificador na alma
individual, na “nossa alma”. Afastam-se os males representados pelos acréscimos externos e a
alma retoma seu caráter divino “em virtude de seu parentesco e consubstancialidade” com o
Intelecto
464
. Tal homem pode, enfim, contemplar a si mesmo, puro, no Intelecto. Pode
contemplar a eternidade e o mundo inteligível, pois ele mesmo tornou-se um mundo
inteligível (ko/smoj kai\ au)toj nohto\j)
465
. É este homem que pode saudar a si mesmo
purification plotinienne, p. 16. Cf. também, p. 53). Cf. ainda O´MEARA, Structures hiérarchiques dans la
pensée de Plotin, p. 10 e 35.
459
“Touro de Falarisé o nome de um cruel método de execução, consistente numa réplica de touro executada
em metal (bronze ou latão), com um intrincado sistema de tubos na parte correspondente ao focinho. O touro,
com o condenado em seu interior, era “assado”. Os gritos de dor repercutiam no sistema de tubos, assemelhando-
se ao som de um touro.
460
Para os estóicos, nenhum evento exterior é capaz de impedir a felicidade do sábio, nem mesmo ser queimado
no touro de Falaris. Cf. SVF III, 586.
461
I 4 [46] 13, 10-12: ... to\ me\n a)lgou=n a)/llo, to\ de\ a)/llo, o(\ suno\n au)t%=, e(/wj a)\n e)c a)na/gkhj
sun$=, ou)k a)polelei/yetai th=j tou= a)gaqou= o(/lou qe/aj.
462
IV 4 [28] 19.26; IV 3 [27] 26.
463
La purification plotinienne, p. 30. (grifos do autor).
464
Cf. IV 7 [2] 10, 17-19
465
Cf. IV 7 [2] 10, 32-37
135
reconhecendo-se um deus, já que alcançou a completa semelhança com a divindade. Qual
ouro de que se retiram as impurezas, pode perceber a si mesmo puro, belo, imortal.
Como notou Trouillard
466
, um “caráter inumano”, “no melhor sentido da
palavra”, para a filosofia de Plotino, na medida em que esta almeja sobretudo salvar o homem
de sua humanidade e finitude. A ascese plotiniana exige a condução por vias superiores ao
que é próprio do ser humano, exige que ultrapassemos até mesmo a razão (lógos) para sermos
conduzidos pelo próprio Noûs
467
. Seremos, então, capazes de alcançar a união última, o
contato com o Um. Neste ponto, não há mais lugar para a dialética, para a expressão
discursiva ou qualquer outra mediação. O que é puramente contato com a própria
luz”
468
. Tal é a meta da filosofia plotiniana: alcançar o transcendente que, contudo, sempre foi
imanente a cada um de nós. O retorno ao mais íntimo de si encerra toda busca do filósofo.
Nem poderia ser outra a meta de Plotino, se esta é a própria meta da alma:
E esta é a verdadeira finalidade da alma: tocar aquela luz e contemplá-la por
si mesma, não por outra luz, mas por aquilo mesmo através do qual também
contempla. Deve contemplar aquilo pelo que é iluminada; pois não <vemos>
o sol através de outra luz. Como, então, isto poderia acontecer? Despoja-te
de tudo!
469
466
La purification plotinienne, p. 97.
467
Cf. II 9 [33] 9, 51.
468
Cf. V.3 [49] 17, 34.
469
V 3 [49] 17, 34-38: kai\ tou=to to\ te/loj ta)lhqino\n yux$=, e)fa/yasqai fwto\j e)kei/nou kai\ au)t%=
au)to\ qea/sasqai, ou)k a)/llou fwti/, a)ll” au)t%=, di” ou(= kai\ o(r#=. di” ou(= ga\r e)fwti/sqh, tou=to/
e)stin, o(\ dei= qea/sasqai! ou)de\ ga\r h(/lion dia\ fwto\j a)/llou. pw=j a)\n ou)=n tou=to ge/noito; a)/fele
pa/nta. Nas linhas 35-6, fazendo uso do aparato crítico fornecido por Henry-Schwyzer, optamos por Volkmann.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As almas humanas são irmãs” da alma do mundo, como espécies semelhantes e
pertencentes ao mesmo gênero. Entretanto, a dessemelhança entre seus modos de operação é
nítida. Nossas almas ora dirigem sua atenção para as realidades inteligíveis, ora para o mundo
sensível, ora ficam no meio entre estes extremos, ao passo que a alma do mundo permanece
sempre no alto, imperturbada
470
. Ora, por que razão a alma do universo não desce, mas as
almas individuais sim?
Uma primeira resposta talvez resida na leitura que Plotino fez do Timeu, relativa
ao passo da formação das almas: a alma do mundo foi produzida com elementos puros,
enquanto que a composição das almas individuais utilizou elementos de segunda e terceira
categorias. Somos, portanto, de mesmo gênero, mas não da mesma espécie da alma do
mundo. Que poderiam significar estes elementos de grau inferior utilizados na produção de
nossas almas? Vejamos, em primeiro lugar, a diferença central entre estas espécies de alma.
Plotino concebe o modo de operação da alma do mundo como uma produção
“sem um propósito adventício, que não espera nem por deliberação nem por exame”
471
. Sua
atividade é, pois, isenta de raciocínio (logismo/j). Permanece em contemplação do Intelecto,
do que resulta o cosmos sensível como imagem do inteligível. É uma alma perfeita, imutável,
pois permanece em contemplação eterna do Intelecto
472
. Assim, ao governar o universo, o
emprega diánoia, razão discursiva, nem é preciso que corrija coisa alguma, pois produz não
por acidente, mas porque conhece o que deve ser e ordena seus inferiores de acordo com o
modelo. É a)pra/gmwn, sem atividade prática
473
, com uma sabedoria eterna e idêntica
474
.
A alma do mundo governa sem esforço. Um dos motivos desta facilidade é a
unicidade do corpo cósmico. Por ser um único ser vivo, nada fora dele que possa atraí-lo
ou distrair-lhe a atenção. Como nada que lhe seja exterior, não ocorre sucessão temporal,
movimento ou qualquer atividade externa, de modo que sua concentração no inteligível não
sofre perturbações. Não há, assim, necessidade do emprego da razão “dianoética”, que parte
470
Cf. II 9 [33] 2.
471
Cf. IV 3 [27] 10, 15: h( de\ poiei= ou)k e)pakt%= gnw/m$ ou)de\ boulh\n h)\ ske/yin a)namei/nasa.
472
Cf. IV 4 [28] 10, 14: ou) ga\r o(te\ me\n ble/pei e)kei=, o(te\ de\ ou) ble/pei..“Pois não está ora a olhar Lá, ora
a não olhar”.
473
Cf. II 9 [33] 2, 12-18 e IV 4 [28] 12, 29-36.
474
Como afirma Deck em Nature, Contemplation and the One, p. 63, “a alma do mundo não é uma descobridora
ou receptora cognitiva das coisas que vem depois dela, mas sim sua produtora teorética-poiética.
137
de premissas para chegar a conclusões; basta a nóesis, uma apreensão intelectual imediata.
Sara Rappe
475
observa que o pensamento discursivo associa-se, em Plotino, a duas espécies de
alteridade (com a predominância do segundo sentido): (i) alteridade conceitual, onde há
passagem de um conceito para outro, e (ii) alteridade ontológica, quando não identidade
entre o sujeito pensante e o objeto de pensamento. O pensamento discursivo, por considerar
seu objeto como distinto de si mesmo, diferencia-se do conhecimento intelectual, onde
conhecedor e conhecido identificam-se
476
.
Esta distinção entre pensamento discursivo e conhecimento intelectual permite-
nos compreender a diferença entre o modo de funcionamento das almas individuais e da alma
do mundo. As primeiras, ao “descer” para governar os corpos particulares, tornam-se “parte”,
mirando conteúdos parciais. Instala-se a alteridade e, com ela, o pensamento que discorre de
um ponto ao outro e não consegue apreender instantaneamente a totalidade. Deste modo, a
razão, se por um lado nos distingue dos demais animais, por outro, nos diferencia dos deuses.
Por essa razão, a alma do mundo é tantas vezes tomada como paradigma para o movimento
ascensional humano. Em IV 8 [6], esta diferença entre as duas espécies de alma é bastante
clara: a alma do mundo “por sua parte que está junto ao corpo, ordena com beleza o Todo,
mantendo-se no alto sem esforço, porque não <o faz> a partir do raciocínio, como nós, mas
pelo intelecto”
477
.
Entre as razões por que Plotino teria concebido a novidade da doutrina de uma
parte da alma individual que jamais desce, poderíamos talvez considerar a seguinte. Se nossa
alma é una, com uma parte permanente em identificação com o inteligível, o acesso ao que
nos transcende é perfeitamente possível, que a intelecção é algo próprio de nossa natureza.
Cada um de nós tem de fato a capacidade de alcançar este estágio, pois, se a alma é capaz de
raciocinar sobre a justiça e a beleza, é porque “há em nós o intelecto que não raciocina, mas
que sempre possui o justo”.
478
Segue daí a necessidade de purificação, de sorte a tornar nosso
“eu” coincidente com a parte superior da alma. Aquele que alcança essa identificação com o
superior age semelhantemente à alma do mundo e vive em perfeita conformidade com sua
natureza. Portanto, não está vedado à alma individual comportar-se semelhantemente à alma
475
Cf. Reading Neoplatonism. Non-discursive thinking in the texts of Plotinus, Proclus and Damascius, p. 73-77.
476
Cf. III 8 [30] 6.
477
IV 8 [6] 8, 13-15: t%= au)th=j me/rei t%= pro\j to\ sw=ma to\ o(/lon kosmei= u(pere/xousa a)po/nwj, o(/ti
mhd” e)k logismou=, w(j h(mei=j, a)lla\ n%=...
478
V 1 [10] 11, 5-7: ... dei= to\n mh\ logizo/menon, a)ll” a)ei\ e)/xonta to\ di/kaion nou=n e)n h(mi=n ei)=nai...
138
do universo, já que a intelecção é por excelência a atividade própria da alma
479
. Mas é preciso
que esta efetivamente olhe para o intelecto e cale suas atividades discursivas, voltando sua
atenção para a interioridade e deixando de se absorver pelas condições exteriores
480
.
É preciso notar, porém, que a obtenção da intelecção e da união mística não
significa a negação da razão, que o ascetismo de Plotino se sempre pela via intelectual,
com o hábito do pensamento analítico constituindo a via disciplinar para ascender às
realidades superiores. Se o homem de temperamento filosófico tem a possibilidade de chegar
à contemplação do mundo superior (por ser naturalmente “dotado de asas”
481
para tanto), nem
por isso prescinde do estudo da matemática e posteriormente da dialética. Não se pode
esquecer que o pensamento de nosso filósofo está solidamente fundado na tradição
racionalista grega. Assim, percorrendo dialeticamente a estrutura do mundo inteligível é que
se alcança o silêncio (h(suxi/a) deste mundo superior, acalmando a natureza de múltiplas
atividades (polupragmonou=sa) da alma. No final do percurso, a alma contempla
(ble/pei), unificando-se (ei)j e(\n genoume/nh)
482
. Pode-se afirmar com Dodds
483
que “a
união mística não é um substituto para o esforço intelectual, mas seu coroamento e meta”,
assim como também não é, lembra Dodds, um substituto para o esforço moral.
A diferença no modo de operação das almas esclarece-se: a alma do mundo jamais
desce, pois não se torna parte, que nada fora do Todo para onde pudesse dirigir sua
atenção. Deste modo, sua inteligência funciona sempre por apreensão imediata do Intelecto,
sem necessidade da razão discursiva. Não é o que ocorre com as almas individuais, as quais,
porque contemplam conteúdos parciais do intelecto, não apreendem a totalidade, do que
resulta um funcionamento que identifica a alteridade como algo exterior a si.
Da diferença entre os conteúdos contemplados resulta a diferença entre os corpos
governados, o que, como em um círculo vicioso, implica a necessidade de descida das almas
individuais para exercer o governo sobre corpos exigentes de maiores cuidados.
Blumenthal
484
enxergou uma incoerência na doutrina plotiniana, entendendo que as almas,
embora ontologicamente superiores aos corpos, teriam suas atividades determinadas por estes.
479
Cf. V 1 [10] 3, 16-20.
480
Por vezes, o filósofo propõe algum exercício nesse sentido. Assim, por exemplo, em V 8 [31] 9, por meio de
uma espécie de meditação, passa-se da diánoia à intelecção das Formas ou, em outras palavras, o pensamento
racional eleva-se para uma compreensão religiosa ou stica do mundo superior.
481
Cf. I 3 [20] 3, 2 em alusão ao mito da alma alada no Fedro 246c1.
482
Cf. I 3 [20] 4, 17-18.
483
DODDS, “Tradition and Personal Achievement in the Philosophy of Plotinus”, p. 138.
484
Como apontamos nesta dissertação, p. 19 e p. 60.
139
Assim, para este estudioso, as diferenças entre os modos de operação das almas seriam
definidas, em última instância, pela diferença entre os corpos a elas ligados. Cremos, porém,
ser preciso levar em conta, antes de tudo, a razão pela qual as almas são distintas: a diferença
de conteúdo contemplativo.
* * *
Ao final deste percurso pela via da alma individual em Plotino, talvez seja
proveitoso realçar algumas das questões principais aqui tratadas e os ganhos obtidos.
Em primeiro lugar, esperamos ter estabelecido com clareza o pensamento do
filósofo a respeito da origem de nossas almas. Ao contrário de interpretações que persistem
até os dias de hoje, Plotino defendeu energicamente a derivação das almas individuais
diretamente da Hipóstase Alma. O exame dos capítulos iniciais de IV 3 [27] esclareceu o
assunto. Reconhecemos também a responsabilidade do próprio Plotino ao obscurecer a
doutrina, seja pela apresentação do problema em IV 9 [8] sem inclinar-se para alguma
solução, seja pela utilização, por vezes, ambígua de alguns termos. De todo modo, cremos ter
afastado quaisquer dúvidas sobre a questão, dada a clareza do filósofo em IV 3 [27].
Em seguida, procuramos observar a repercussão desta concepção para o
encadeamento de sua doutrina. Assim é que a refutação do “argumento astrológico”
485
empreendida em IV 3 [27] 7, 20-31 encontra-se fundamentada em um de seus primeiros
tratados, III 1 [3], “Sobre o Destino”. É aí que ocorre a postulação das almas individuais como
princípios causais, ao lado da alma do mundo. Concede-se a nossas almas autonomia diante
dos embates do destino, desde que devidamente purificadas, que neste caso situamo-nos no
domínio das realidades inteligíveis. Neste sentido, consideramos necessário examinar com
algum detalhe a natureza da alma presente junto ao homem encarnado. Isto incluiu a
investigação da “bipartição” da alma, notando a existência de “dois homens”, um animalesco,
outro racional e capaz de intelecção. A existência neste nível superior intelectivo, porém, só é
possível ao homem que purificou sua alma, de sorte que a finalização de nosso estudo não
poderia deixar de lado este importante tópico da doutrina plotiniana da alma: a purificação.
Com isso, esperamos ter compreendido a essência e modo de operação das almas
individuais em seus diversos aspectos: sua origem, seu funcionamento junto ao homem
485
Cf. IV 3 [27] 1, 26-30, onde os adversários de Plotino defendem a derivação de nossas almas junto à alma do
mundo argumentando que sofremos as influências do movimento circular do mundo, do qual tomamos nossos
caracteres e destinos.
140
encarnado, sua verdadeira natureza residente no inteligível e o modo de restauração deste
estado original.
Ao encerrarmos nossas considerações, poderíamos talvez refletir um pouco sobre
este estado primevo da alma. Se as almas individuais têm sua fonte e término na própria
Hipóstase, se são de fato realidades inteligíveis, isto significa que são semelhantes a deuses. A
purificação da alma conduz, pois, a um estado de liberdade, que somente os deuses são
verdadeiramente livres, dirá Plotino em VI 8 [39], “Sobre o Voluntário e a Vontade do Um”
tratado que, infelizmente, não coube aqui examinarmos. É aí, logo nos capítulos iniciais que o
filósofo promove uma completa inversão no sentido dos termos usualmente utilizados para a
liberdade, descartando-os para as práticas humanas e exigindo seu emprego exclusivamente
para os atos divinos
486
. Plotino dirá que a única liberdade possível é a liberdade divina e o
homem obterá esta liberdade ao assemelhar-se ao divino, identificando-se com o Intelecto.
A purificação será eleita como única virtude efetivamente necessária, capaz de promover o
descarte de todos os acréscimos que não nos constituem propriamente. Somente ao vivermos
em nosso nível mais elevado, intelectualizando a alma, assemelhamo-nos a Deus e somos
verdadeiramente livres. Ao identificarmo-nos com a Hipóstase Alma, nosso princípio, somos
capazes de exercer a atividade intelectiva e, assimilando-nos ao Intelecto, obter,
conseqüentemente, a liberdade.
No fundo, todo homem possui, ou melhor, é a alma que permanece atada ao
inteligível, pura, mas é preciso saber afastar-se dos acréscimos que lhe advêm com o
nascimento. Somente deste modo será possível a contemplação e união com o Intelecto
estado permanente da Alma Hipóstase. A purificação representa, então, agir de maneira
absolutamente semelhante à nossa irmã alma do mundo, governando o corpo sem descer, sem
misturar-se com ele. Não como alcançar nosso verdadeiro estado sem que se empreenda
um processo purificador, mediante o qual se torne possível o contato direto, ou melhor, a
identificação com nossa essência inteligível. Reconhecer nossa origem significa reconhecer
quem somos de fato e qual é nossa meta fundamental: a união com o divino.
486
Cf. VI 8 [39] 5, 7-27, passagem com notável semelhança com o livro X da Ética Nicomaquéia (1177 a 27-
33). As chamadas virtudes cívicas, por estarem voltadas para a exterioridade, envolvem sempre a presença de
circunstâncias que escapam de nossa alçada. Isto significa que não há como praticá-las sem contar com a
presença de algo que as contrarie. O homem virtuoso no plano da práxisterá condições de exercer sua virtude
caso se defronte com circunstâncias que exijam sua intervenção. Ora, não se pode esperar que a liberdade resulte
daquilo que é, de algum modo, compelido pelo exterior. A verdadeira virtude não se cumpre, pois, com as ações
no mundo, mas situa-se fora da ação.
141
Vimos o freqüente aparecimento do termo nós” (h(mei=j)
487
, por meio do qual
Plotino procura situar em que nível da alma o “eu” se encontra. Pode-se dizer que este termo
está relacionado a uma determinada perspectiva de consciência. A alma expressa uma extensa
possibilidade de ser para o homem, que pode identificar-se com qualquer extrato da alma.
reside o “nós”, ocupando uma posição intermediária entre o intelecto e a sensação
488
. O nível
propriamente humano não é o intelecto ou a faculdade intelectiva, que “vem de cima” e se
expressa em nós por meio da razão discursiva. Tampouco é a sensação ou a faculdade
sensitiva, que “vem de baixo”. Nós, de fato, somos a razão discursiva, de sorte que não se
deve afirmar que raciocinamos por meio de uma faculdade racional”, mas é esta razão em
ato que somos nós, seres humanos. É ela que nos dá propriamente a essência de homens.
Se é assim, o eu” não se identifica com toda a alma, apenas com uma parte dela.
Ora, o que “nós” desejamos é alcançar a porção da alma que permanece no Intelecto, onde
estão as Formas, onde está o “nosso” intelecto particular, onde, afinal, reside nossa verdadeira
identidade
489
. Com este intuito, é necessário que o eu” passe por uma profunda
transformação no sentido de elevar-se ao Intelecto.
490
Plotino faz menção a fenômenos inconscientes
491
, o que nos possibilita
compreender a distinção entre alma e “nós” com base nos diversos níveis de inconsciência. A
inconsciência de que fala o filósofo não diz respeito apenas a movimentos corporais
inconscientes, como a respiração e os batimentos cardíacos, ou a percepções a que estamos
desatentos, mas trata-se também da inconsciência do que ocorre em um vel superior ao de
nossa consciência comum. funções da alma altamente elevadas de que não temos
consciência, como é o caso da função intelectiva operada pela parte não descida da alma. Na
verdade, a alma está sempre voltada para as realidades inteligíveis, com sua parte superior
constantemente ativa, mas nem sempre esta intelecção torna-se apreensão (a)nti/lhyij),
consciência. Para que haja apreensão é preciso que o ato intelectual (to\ no/hma), cujo
conteúdo é fechado em si mesmo, desdobre-se pelo discurso (lo/goj) e seja transferido para a
487
Por vezes, Plotino utiliza “eu” (e)gw), como em III 3 [48] 3, 1 e V 7 [18] 1, 1 (ei)j e)mauto\n, IV 8 [6] 1, 1).
488
Cf. V 3 [49] 3, 31-43.
489
Wald, Self Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus¸ p. 151, nota a freqüente designação do que
é superior por au)to/ e au)to/j, de sorte a ser esta “a mais alta identidade possível”.
490
Cf. VI 8 [39] 14-15, onde este aspecto é demonstrado.
491
Cf., por exemplo, V 1 [12]. A iia de fenômenos inconscientes e, conseqüentemente, de autoconsciência está
presente em Plotino mediante o uso de termos como sunai/sqesij ou parakolou/qhsij e(aut%=. Note-se
também que nosso filósofo não tem em alta conta a autoconsciência, que considera em geral prejudicial à
concentração.
142
faculdade imaginativa (to\ fantastiko\n)
492
. É preciso, pois, um certo exercício, uma ascese
que nos torne capazes de executar um movimento de conversão, de modo que nossa apreensão
da exterioridade passe a apreender o que nos é interior, o Intelecto
493
. Assim, a consciência
pode alcançar possibilidades às quais ordinariamente é incapaz de atingir, com a suspensão da
percepção sensível e do raciocínio
494
.
Se a doutrina plotiniana se caracterizasse simplesmente por uma eterna processão,
com as realidades superiores num incessante escoar em direção às inferiores - e estas sempre
em inferioridade ontológica em relação à sua fonte -, nada mais teríamos que uma via de mão
única, cujo resultado haveria de sofrer a regência do determinismo. Seria inevitável o
completo esmagamento do indivíduo, sem que lhe coubesse qualquer possibilidade de escape
de sua condição degradada.
Ora, não somos o produto deste escoamento cósmico, mas seres dotados de
vontade e capazes de autonomia. Evidentemente, não se trata de uma independência que nos
separe das realidades superiores. Tal tentativa estaria fadada ao fracasso, pois não estamos de
modo algum desvinculados deste mundo que nos transcende. Ao contrário, o alcance de nossa
liberdade reside no retorno a nosso verdadeiro lugar, o que só pode ser obtido quando
voluntariamente identificamo-nos com nossa fonte. É preciso, pois, um ato de vontade para
invertermos o sentido do eterno fluxo universal e promovermos nosso retorno à tria. O
homem livre é aquele que voluntariamente orienta-se em direção à sua fonte transcendente.
Por isso o Intelecto é livre, voluntariamente voltado ao Um; o mesmo se com a alma do
mundo em sua conversão para o Intelecto. Cabe também a cada alma individual em primeiro
lugar identificar-se com sua própria essência, a Hipóstase, permanentemente no inteligível. A
união consciente, visto que inconscientemente sempre há uma parte de nossa alma no
inteligível com esta realidade implica a imediata conversão ao Intelecto e nossa assimilação
a ele. Restaura-se, assim, nossa condição perdida, que nos torna seres autenticamente livres,
sem qualquer servidão ao inferior. Deste modo, a postulação do processo catártico da alma
como contraponto à processão abre espaço na doutrina plotiniana para que se concilie
necessidade e liberdade.
Nosso ato de vontade reside em direcionar o ponto médio da alma, a razão, local
de funcionamento de nossa consciência ordinária, para a região superior. Ao entrar em contato
492
Cf. IV 3 [27] 30, 11-15.
493
É o que prescreve V 1 [10] 12, 13-15.
494
Cf. WALD, Self-Intellection and Identity in the Philosophy of Plotinus, p. 151-9.
143
com essa alma superior, divina e constituinte de nosso princípio intelectual, vivemos
essencialmente a vida intelectiva, própria dos deuses. E ainda que nosso acesso a este mundo
superior seja intermitente, pontuado por interrupções promovidas pelas necessidades
corporais, ainda assim será possível orientarmos nossa vontade para vivermos em
conformidade com o princípio intelectual. O Intelecto é nosso “rei”, “mas nós também
reinamos quando vivemos de acordo com ele”
495
.
495
V 3 [49] 4, 1: Basileu/omen de\ kai\ h(mei=j, o(/tan kat” e)kei=non!
144
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