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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA (UNESP)
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
PAULO SÉRGIO MARQUES
A ALTERIDADE E O IMAGINÁRIO FEMININO:
O Arquétipo da Grande Mãe em “Maíra”, de Darcy Ribeiro
ARARAQUARA (SP)
2007
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PAULO SÉRGIO MARQUES
A ALTERIDADE E O IMAGINÁRIO FEMININO:
O Arquétipo da Grande Mãe em “Maíra”, de Darcy Ribeiro
Dissertação para aquisição do grau de Mestrado, submeti-
da à Banca de Defesa do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Orientadora: Profa. Dra. Ana Luiza Silva Camarani
ARARAQUARA (SP)
2007
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PAULO SÉRGIO MARQUES
A ALTERIDADE E O IMAGINÁRIO FEMININO:
O Arquétipo da Grande Mãe em “Maíra”, de Darcy Ribeiro
Dissertação para aquisição do grau de Mestrado, submetida à Banca de Defesa do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Le-
tras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara (SP).
Data de aprovação: 27 de fevereiro de 2007.
_______________________________________________
Avaliador: Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto
Instituição: Universidade de São Paulo (USP)
_______________________________________________
Avaliador: Maria Célia Leonel
Instituição: Universidade Estadual Paulista (Unesp)
________________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Ana Luiza Silva Camarani
Para seis gratos avatares da Grande Mãe:
Iracy, Luciana, Haya, Shanda, Alba Maria e Helda Barracco.
Boas e benfazejas bruxas que me conduziram pelos caminhos do feminino.
Uma grande mulher me ensinou um dia que todo trabalho é resultado da convergência de energi-
as, oriundas de diferentes canais em colaboração. Eis algumas dessas forças e desses canais, gra-
ças aos quais este trabalho pôde tomar sua forma:
O Caminho, deu-o Ana Luiza e o trilhou comigo para que eu não me perdesse;
O Modelo, recebi dos mestres, representados aqui pelas professoras Márcia Gobbi e Karin Volo-
buef e pelo saudoso Prof. Péricles Eugênio da Silva Ramos;
A Vontade, Haya e o sonho inspiraram;
A Sustentação e o Amor vêm todos os dias dos parentes e familiares, representados aqui por Leo-
nildo, Iracy, Luciana e Miguilim;
O Incentivo, de todos os amigos, em Mato Grosso e São Paulo, que sempre acreditaram;
A Confiança, dos companheiros de jornada, meus colegas no curso de Pós-Graduação;
A Cooperação, dos colegas professores da Unemat;
O Apoio, de meus alunos mato-grossenses, todos sempre em animada torcida pela Literatura;
A Hospitalidade, dos moradores de Araraquara, cidade que aprendi a amar;
Por último e em primeiro, a Fé, generosa graça diária recebida da Grande Mãe e do Grande Espí-
rito; do Avô Ar, do Avô Fogo, da Avó Água e da Mãe Terra; da bênção xamânica dos Guias e
Ancestrais.
São estas as figurações do divino que percorreram comigo esta prazerosa viagem.
Muito obrigado a todos vocês!
Ignoro si mi lector está convencido; yo no lo estoy.
(Jorge Luis Borges)
RESUMO
O tema desta pesquisa é a primazia do princípio arquetípico feminino no romance Maíra,
do antropólogo e romancista mineiro Darcy Ribeiro. Ao ficcionalizar o Outro e a questão da alte-
ridade, Darcy Ribeiro faz predominar, no romance indigenista Maíra, imagens e recursos narrati-
vos característicos do imaginário antropológico feminino e alusivos a uma cosmovisão pré-
patriarcal. Por meio da tese de Humberto Maturana, sobre a existência de culturas matrilineares
ou matrísticas antes do patriarcado, e da divisão do imaginário em dois regimes, nas teorias de
Gilbert Durand, procura-se demonstrar como a ficção de Darcy Ribeiro inverte paradigmas da
narrativa tradicionalmente elaborada pelo ocidente patriarcal. Apoiando-se numa poética que
gravita em torno de símbolos e imagens do corpo, da morte pacificada e do caos, Maíra positiva
valores que o patriarcado sempre negou. Para apoiar esta análise, recorre-se ainda a outros auto-
res da crítica mítica e da abordagem antropológica, como E. M. Meletínski, Mircea Eliade, Jose-
ph Campbell e Erich Neumann, bem como à abordagem temática desenvolvida nos trabalhos de
Gaston Bachelard.
Palavras-chave: Literatura Brasileira – Indigenismo – Narrativa e Mito – Narrativa e Gênero.
RESUMEN
El tema de esta pesquisa es la primacía del principio arquetipico femenino en la novela
Maíra, del antropólogo y romancista minero Darcy Ribeiro. Al ficcionalizar el Otro y la cuestión
de la alteridad, Darcy Ribeiro hace predominar, en la novela indigenista Maíra, imágenes y re-
cursos narrativos característicos del imaginario antropológico femenino y alusivos a una cosmo-
visión ante-patriarcal. A través de la tesis de Humberto Maturana, sobre la existencia de culturas
matrilineares antes del patriarcado, y de la división del imaginario en dos regímenes, en las teorí-
as de Gilbert Durand, busca-se demostrar como la ficción de Darcy Ribeiro invierte paradigmas
de la narrativa tradicionalmente elaborada por el occidente patriarcal. Apoyándose en una poética
que gravita en torno de mbolos y imágenes del cuerpo, de la muerte pacificada y del caos, Maí-
ra positiva valores que el patriarcado siempre niego. Para apoyar esta análisis, recorre-se también
a otros autores de la crítica mítica y de la abordaje antropológica, como Meletínski, Eliade,
Campbell e Neumann, así como a la abordaje temática desarrollada por los trabajos de Gaston
Bachelard.
Palabras-llaves: Literatura Brasileña – Indigenismo – Narrativa y Mito – Narrativa y Género.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................................
09
“MAÍRA”: UM ROMANCE DA ALTERIDADE ...................................................................
12
1.1 Alteridade e indigenismo ....................................................................................................
18
1.2 “Maíra” e o tema da alteridade ............................................................................................
23
NARRATIVA, ALTERIDADE E PATRIARCADO ...............................................................
30
2.1 Sociedade patriarcal e sociedade matrística ........................................................................
32
2.2 O bem masculino e o mal feminino ....................................................................................
39
2.3 Os gêneros e os regimes do imaginário ...............................................................................
40
2.4 O patriarcado e o cânone da narrativa .................................................................................
49
2.4.1 O trajeto masculino do herói ...........................................................................................
50
2.4.2 A moral da ação e do trabalho .........................................................................................
54
2.4.3 Fábula como expressão da vida e da ordem ....................................................................
56
2.4.4 O espaço conquistado pela ordem ...................................................................................
57
2.4.5 O tempo linear e direcionado ...........................................................................................
59
2.4.6 A voz do “logos” condutor ...............................................................................................
61
2.5 Alteridade, feminino e indigenismo ....................................................................................
63
3 O CORPO E O DOMÍNIO DA “MATER” ...........................................................................
70
3.1 A mirixorã e o corpo sacralizado ........................................................................................
75
3.2 As imagens da Terra e a linguagem especular do Outro .....................................................
83
4 A ABOLIÇÃO DA ORDEM E O CAOS INTEGRADOR ...................................................
105
4.1 Darcy Ribeiro e a poética do caos .......................................................................................
113
5 A SENHORA DA MORTE ...................................................................................................
145
5.1 “Maíra” e a inversão da fábula: a morte gera a vida ...........................................................
152
6 O AGENTE DO CAOS E A INVERSÃO DA MORAL DO TRABALHO .........................
162
6.1 O heroísmo noturno do Outro .............................................................................................
168
6.2 Recusa da moral do trabalho, da competição e do expansionismo .....................................
177
7 O MUNDO ESPIRAL E A NARRATIVA CURVILÍNEA DA MÃE ..................................
185
7.2 O espaço curvo e a geografia do retorno .............................................................................
195
7.3 O tempo urobórico de “Maíra” ............................................................................................
200
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................
205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................
209
1 “MAÍRA”: UM ROMANCE DA ALTERIDADE
Eras um dos nossos voltando à origem
e trazias na mão o fio que fala
e o foste estendendo até o maior segredo da mata.
(Carlos Drummond de Andrade)
Darcy Ribeiro é filho do interior brasileiro, nascido em Montes Claros, no alto sertão de
Minas Gerais, a 26 de outubro, no ano da Semana de Arte Moderna de 1922. Perdeu o pai
com três anos de idade e foi, junto com um irmão mais novo, criado pela mãe, professora de
escola primária. A infância prolongou-se no convívio com a cultura da cidade interiorana e no
contato com pessoas de variados níveis sociais, “o que ajudou a criar um sentimento de brasi-
lidade, experiência semelhante a muitos intelectuais de sua geração” (GOMES, 2000, p. 10).
Três caminhos levam Darcy Ribeiro ao tema da alteridade, um pessoal, outro profissio-
nal e um terceiro na confluência dos dois mundos, do sujeito e de seu socium. Os três conver-
gem para uma cosmovisão e uma atuação no mundo voltada para o problema do Outro.
Mércio Pereira Gomes (2000, p. 20) afirma que o próprio Darcy Ribeiro concebe três
paixões movendo sua vida: um acentuado orgulho de si; uma ânsia pela busca da verdade; e
um amor pelo país de origem. O fortalecimento do ego não se manifesta, contudo, como des-
potismo. Darcy Ribeiro teve uma infância desprovida da experiência de tiranias, o que ele
mesmo atribui à onipresença da mãe e à ausência de uma autoridade masculina (GOMES,
2000, p. 10). Esta inexperiência com atitudes e posições despóticas leva Darcy Ribeiro a con-
ceber a verdade como um “objetivo em processo de elaboração contínuo, de acordo com o
melhor espírito científico”. Por isso Gomes afirma que sua segunda paixão não é propriamen-
te uma “paixão pela verdade”, mas pela busca da verdade” (GOMES, 2000, p. 20, grifo
meu). O estudioso da obra de Darcy Ribeiro argumenta que a posição flexível do antropólogo
mineiro pode ter resultado do convívio com o mestre e amigo Anísio Teixeira, “o intelectual
brasileiro que mais o influenciou em meados da década de 50”. Também Teixeira, segundo
13
Gomes, era dotado de uma “erudição inquiridora” e um “comprometimento com a busca da
verdade” e “Darcy costumava citar uma frase de Anísio segundo a qual ele não tinha com-
promissos com suas idéias. Isto é que seria o verdadeiro sentimento de quem busca a verdade:
não se apegar às idéias que formava, pois elas existiam para serem transcendidas” (GOMES,
2000, p. 22).
Darcy Ribeiro aprendeu, pois, com seu mestre, que a verdade do Eu é sempre uma ver-
dade relativizada pela verdade do Outro. No entanto, isso de alguma forma poderia entrar em
conflito com aquela necessidade de ser e de afirmar sua própria subjetividade, pois “nessa
busca havia também o puro deleite do conhecimento por si” e se, de um lado, “Darcy sempre
se viu como um homem que quer aprender tudo, que vive para aprender”, de outro ainda é o
menino livre e de gênio altivo, “um intelectual que quer convencer outros das verdades que
ele considerava que descobrira” (GOMES, 2000, p. 20).
A reunião das duas primeiras paixões de Darcy Ribeiro cria, pois, terreno propício para
a reflexão sobre a alteridade: primeiro, ele parece ser portador de uma auto-afirmação bastan-
te acentuada; segundo, é um ser humano preocupado com a verdade, que, como bom intelec-
tual, ele via sempre em processo. Esta personalidade ambivalente pode ainda ter sido fruto da
relação entre aquela infância livre e autocentrada e a carreira intelectual, isso se considerar-
mos as duas formas de percepção às quais, segundo o sociólogo Karl Mannheim (2001 p. 90-
91), os dois modos de vida podem conduzir. Em seu Sociologia da cultura, o autor germânico
mostra que o conhecimento pode ocorrer em duas direções distintas: 1) como continuum da
experiência cotidiana”, o conhecimento pode ser adquirido de forma espontânea a partir da
experiência existencial no mundo; 2) pela prática esotérica da educação, pode ser adquirido
mediante “esforços dedicados” a uma “tradição cultivada”. Numa sociedade ágrafa as duas
direções ocorrem juntas; esta é uma das razões, segundo Mannheim, para um respeito mútuo e
uma visão coletiva dos direitos e deveres sociais nessas sociedades, que muitas vezes espanta
e admira um homem civilizado. as sociedades complexas, como a nossa, costumam separar
as duas esferas, o que acaba criando duas visões de mundo distintas, a partir da predominância
de uma ou de outra numa comunidade, num grupo ou num indivíduo: quando falta a primeira
direção, o indivíduo pode se confundir no labirinto dos caprichos intelectuais e “perder a ca-
pacidade de focalizar problemas reais”; quando falta a segunda direção, cai-se num “falso
tradicionalismo”, que se obstina em defender como universal uma visão particular e pessoal
das coisas, pois é a educação e a leitura que nos ensinam a empatia e o conhecimento demo-
crático: nelas é sempre o outro o mediador do conhecimento. Não é à toa que os movimentos
de intolerância, como o neo-nazismo e o fascismo costumam ocorrer em grupos com menor
grau de escolaridade.
14
A infância de Darcy Ribeiro foi uma vivência livre no mundo circundante, em que do-
minava o modo espontâneo de aquisição de conhecimento, sem qualquer empecilho de autori-
dade externa masculina para lhe dirigir ou coibir o pensamento. Isso provavelmente o levou a
desenvolver o forte senso de autoconsciência que lhe marcou o caráter. Por outro lado, este
modo de conhecer o mundo não terminou com a transição para a vida adulta, pois, assim que
se formou, ele se empregou no Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e viveu temporadas entre
os índios, como antropólogo, isto é, um cientista observador cujo conhecimento teórico é
também um conhecimento prático. Além disso, esteve toda a vida em contato com culturas
que, segundo Mannheim, mantêm indistintas as duas direções do conhecimento.
15
No Brasil, a nova antropologia começa a se desenvolver a partir dos estudos de tribos
indígenas. O índio tornou-se tema político nacional desde 1910, quando foi criado o SPI e
iniciaram-se os trabalhos de Rondon.
A questão indígena está incluída na terceira paixão de Darcy Ribeiro apontada por Go-
mes (2000, p. 22): seu amor pelo Brasil. Dela pretendo deduzir os outros dois caminhos que
percebo no pensamento e na produção de Darcy Ribeiro para uma reflexão sobre a alteridade:
a preocupação com os povos colonizados e sua oposição à sociedade civilizadora.
O segundo caminho que vai conduzir Darcy Ribeiro às questões da alteridade é, pois,
seu contato com os índios e sua dedicação à situação indígena e à realidade dos países latino-
americanos. Darcy Ribeiro bacharelou-se em Ciências Sociais e começou a trabalhar, ao lado
do Marechal Cândido Rondon, como naturalista no SPI, onde ficou de 1947 a 1956. Graças ao
trabalho no SPI, teve contato com índios Kaingang, Xokleng, Ofayé-Xavante, Guarani, Kai-
owá-Guarani, Terena, Kadiwéu, Bororo, Xavante, Carajás, Guajajara, Tembé, Krêjê, os Xin-
guanos e os Urubu-Ka’apor, de cujos mitos e costumes vai retirar boa parte da inspiração para
a escritura de Maíra. Em colaboração com Rondon e o sertanista Orlando Villas-Boas, Darcy
Ribeiro é o responsável pela elaboração do projeto do Parque do Xingu (1952) e pela inaugu-
ração do Museu do Índio, no Rio de Janeiro (1953).
As primeiras aldeias visitadas por Darcy Ribeiro foram as dos índios Kaiowá-Guarani e
Terena, no Mato Grosso do Sul, onde o antropólogo viveu três meses. Gomes (2000, p. 63)
informa que “os kaiowá e terena são povos indígenas que vivem em situações bastante precá-
rias, cercados por fazendas, chácaras, povoados e cidades que os comprimem a viver uma
vida nem bem rural, nem bem urbana”. São aldeias que, tendo perdido seus modos de viver
antigos, não conseguem se definir socialmente a partir das novas formas de vida trazidas pela
colonização. Existe, contudo, um outro problema: “Sob o aspecto etnológico, terena e kaiowá
são dois povos totalmente diversos entre si”. Caracterizados como os índios “mais meridio-
nais” da família aruaque, que se estende até a Flórida, os kaiowá são índios de fala tupi, re-
manescentes de guaranis não catequizados, e possuem uma cultura que se desenvolveu como
“intermediária entre a alta cultura andina e os povos do Pantanal”. os Terena, que eram
conhecidos como Guaná na pré-história brasileira e nos tempos coloniais, viviam sob domínio
dos Kadiwéu, de quem recebiam proteção militar em troca de tributos de produtos agrícolas:
“O SPI, descuidadamente e conciliando interesses de fazendeiros, havia juntado diversas al-
deias de Terena e Kaiowá em pequenas reservas” (GOMES, 2000, p. 64).
O espaço conhecido por Darcy Ribeiro é, pois, um lugar de cultura enfrentando cultura,
em formas de vida sempre limítrofes, de ordem instável e perenemente ameaçada. Em contato
com esses povos sobreviventes do massacre colonizador, o autor vai aprofundar seu sentimen-
16
to dos efeitos da política expansionista e denegadora da cultura ocidental. O que talvez e-
xistisse no homem de conflito entre uma auto-afirmação subjetiva e o respeito à existência do
Outro vai se alargar com a experiência adquirida do convívio com a questão indígena.
Esta experiência, por outro lado, levou o antropólogo a identificar, pelo destino das co-
munidades autóctones brasileiras, uma situação que atravessava fronteiras e irmanava todos
os países da América Latina, o que ele teve oportunidade de conhecer ao vivo quando, perse-
guido pela ditadura militar pós-64, precisou se exilar em países como Uruguai, Chile e Peru:
“Exilado, Darcy escolheu ficar na América Latina, onde apreendeu o sentido do sonho de
Bolívar de construir uma pátria latino-americana”. De sua experiência com os povos latino-
americanos e da vontade de integrá-los num grande projeto internacional de reação às opres-
sões globalizadoras resultaram feitos como o Memorial da América Latina, um centro cultural
da América colonizada, cujo projeto foi elaborado por Darcy Ribeiro entre 1987 e 1989 e im-
plementado na capital paulista (GOMES, 2000, p. 13-15).
Finalmente, um terceiro caminho para a alteridade no pensamento e na produção de
Darcy Ribeiro aparece como um desdobramento da atitude prometéica anunciada com o
Romantismo do século XIX: opondo-se à “ação predadora da nação brasileira sobre os povos
indígenas” (GOMES, 2000, p. 72) e aos posicionamentos colonialistas e destrutivos de sua
sociedade de origem, Darcy Ribeiro é um estrangeiro entre os seus. Todavia, é um estrangeiro
da mesma forma que todo homem americano o é, em razão de sua dupla origem: a do europeu
exilado e colonizador e a do autóctone colonizado. A natureza ambígua e mestiça do povo
brasileiro é justamente, na visão de Darcy Ribeiro, sua maior força: “Pensador e homem de
ação, sua causa maior era o Brasil, visto em sua diversidade étnica, coesão cultural e autono-
mia política, ao qual dedicou grande parte de sua vida intelectual e política” (GOMES, 2000,
p. 19), por isso ele “acreditava no potencial cultural do povo brasileiro, como povo mestiço, e
num destino glorioso para o Brasil” (GOMES, 2000, p. 9, grifo meu).
Darcy Ribeiro considerava o Brasil “o melhor lugar do mundo para se viver [...], o país
com as maiores condições para criar e se tornar não uma, mas a nova civilização do futu-
ro”. Via na geografia e na cultura do país os potenciais para se levantar uma nova Roma,
“mais bem feita, mais humana e feliz, precisamente porque era mestiço, fruto da junção de
três raças originais e de mais quantas apareceram para se amalgamar e formar um povo”
(GOMES, 2000, p. 22, grifo do autor). A mestiçagem nacional era ao mesmo tempo resultado
e fonte de uma forma de viver baseada no respeito mútuo entre as diferenças individuais, raci-
ais ou culturais, como uma recuperação dos tempos em que os homens não haviam ainda des-
coberto o despotismo do ego e da negação do Outro como princípios de sobrevivência. É esta
espécie de nostalgia, aliás, que também contribui para sua aproximação com os povos indíge-
17
nas. “O índio interessava, também, como exemplo vivo de um passado da humanidade que
estava por acabar”, informa Gomes (2000, p. 27). É importante recordar ainda, a esse respeito,
uma leitura que, segundo Gomes (2000, p. 32), “impressionara profundamente” Darcy Ribei-
ro: no início da década de 40, ele leu uma versão espanhola de A origem da família, da pro-
priedade privada e do estado (1894), obra de Marx e Engels, em que os autores atribuem ao
patriarcado o surgimento das três instituições que sustentarão futuramente o capitalismo e-
mergente e o impulso expansionista do ocidente. Em Utopia selvagem, romance de Darcy
Ribeiro posterior ao Maíra, ele irmana índios e mulheres na figura da amazona, a quem confe-
re os traços de uma rebelião selvagem contra o macho colonizador, como restituição de um
mundo de liberdade que a hierarquia patriarcal aboliu. Eis como o narrador do romance des-
creve as personagens amazonas: “Aqui entre nós, leitor, eu digo que estas sisudas donas são
nada mais nada menos que as primeiras revolucionárias da história. São as pioneiras da revo-
lução feminista permanente: trotskistas”. Para o narrador, no entanto, teria havido um sistema
de poder feminino que fora tomado pela classe masculina, donde se teria iniciado o sistema de
exploração de um grupo por outro:
Para mim isso começou nos idos em que, aqui nos trópicos, por força
da Revolução Agrícola resultante da domesticação do milho e da
mandioca o nível do desenvolvimento das forças produtivas ultra-
passou o das relações de produção. Criaram-se, assim, condições obje-
tivas para a gestação de uma nova formação econômico-social cuja
expressão sócio-jurídica seria o matriarcado. [...] Quando o poderio
mulheril se consolidava, eis que surge a contra-revolução machista,
cuja liderança histórica é atribuída ao inominável Jurupari. Foi ele, na
verdade, o herói inconteste de toda uma suja guerra contra-
revolucionária (RIBEIRO, 1982b, p. 38-39)
Darcy Ribeiro associa, assim, em seu romance, como Marx e Engels o haviam feito
num ensaio, um poder revolucionário socialista a uma ação da mulher: a antítese do sistema,
seu Outro absoluto, é seu poder de auto-superação. Viria, ao mesmo tempo, do índio, do colo-
nizado e da mulher a força de transformação e de crise da hierarquia patriarcal no ocidente.
Pelas mesmas razões, Gomes (2000, p. 22) considera o livro O Povo Brasileiro, que co-
roa a produção científica de Darcy Ribeiro, uma “declaração de amor maior de Darcy Ribeiro
pelo Brasil” e ao mesmo tempo “um brado antiglobalizante, uma recusa a aceitar que a histó-
ria do mundo estivesse sendo feita por um processo inelutável de homogeneização cultural e
de destruição de etnias e nações”. Darcy Ribeiro recusava a redução unidimensional da cultu-
ra global do século XX e a entendia como um nivelamento, a partir de uma única perspectiva,
da diversidade universal das culturas, com um flagrante desrespeito pelas expressões do Ou-
tro. Contra a globalização de matriz norte-americana, que massificava e submetia toda dife-
18
rença a um plano exclusivista e unilateral, ele sugeria a pluralidade sem direção hegemônica
de uma cultura mestiça:
Ele queria igualmente propor ao mundo que o Brasil, e não os Estados
Unidos, ou quem quer que fosse, é que estava no caminho certo para a
constituição de uma nova civilização para o mundo transcontemporâ-
neo, o mundo que viria depois do débâcle do capitalismo e do comu-
nismo russo, nem que fosse por força de revoluções (GOMES, 2000,
p. 34-35).
A nova ordem proposta por Darcy Ribeiro recusava, pois, qualquer organização hierár-
quica, que posicionasse uma cultura acima de outra. Ele as queria, todas as culturas, lado a
lado, sem despotismos nem denegações. Sua utopia desejava uma sociedade dos tempos pré-
patriarcais, uma comunidade desprovida de centros ou de fronteiras, um espaço límbico em
que todos pudessem exercer-se sem precisar da aniquilação do Outro. Darcy Ribeiro sonhava
com o caos para o patriarcado, e neste sonho o caos era um bem.
1.1 Alteridade e indigenismo
Como afirma Gomes (2000, p. 61), “o primeiro grande tema da obra intelectual de
Darcy Ribeiro foi o universo cultural, social e político dos índios brasileiros”. Se tomarmos o
que diz Todorov (2003) sobre a relação entre a conquista da América e o problema da alteri-
dade para o ocidente, talvez inexista, para o pensamento moderno, melhor tema na exploração
do conceito de “Outro” do que o indigenismo. Para o pensador de uma nação americana, o
tema se torna mais complexo, em função de sua dupla identidade, de colonizador e coloniza-
do. Desse modo, o índio vai fundir dois conceitos opostos do Outro autóctone: ele é a própria
antítese encarnada entre o bem e o mal, nossa identidade enquanto americanos que nossa i-
dentidade de colonizador recusa aceitar.
No caso brasileiro, em princípios do século XX, a questão se acentua com uma nova in-
vestida do crescimento econômico para o interior, mobilizada pelo projeto republicano de
levar ao país o “progresso”. Desta vez, porém, não é o invasor externo que conquista territó-
rios, mas a própria nação se voltando contra uma parte dela, e o ataque ao autóctone provoca
reações no interior da própria sociedade, que é dividida segundo seu posicionamento favorá-
vel ao invasor ou ao indígena. Com a literatura romântica de José de Alencar e Gonçalves
Dias, o índio passou a fazer parte do “sentimento de uma nacionalidade brasileira” (GOMES,
2000, p. 26). A população urbana, cuja visão da questão indígena era vista através dos olhos
19
daqueles autores, não se identificava com os interesses dos novos colonizadores e não aceita-
va o tratamento hostil às tribos; por outro lado, “para o sertão, o índio era a fera indomada que
detinha a terra virgem; era o inimigo imediato que o pioneiro precisava imaginar feroz e inu-
mano, a fim de justificar, a seus próprios olhos, a própria ferocidade” (RIBEIRO, 1982a, p.
128-129). O índio aparece, pois, como uma entidade limítrofe, vista parcialmente como igual
e com direitos iguais aos dos demais sujeitos de cidadania brasileira e parcialmente como o
inimigo, o mal a ser vencido, e o indigenismo torna-se o terreno de confronto entre múltiplas
identidades.
Nesse momento surge o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais (SPI), criado juridicamente pelo Decreto 8.072, de 20 de julho de 1910, e inau-
gurado em 7 de setembro do mesmo ano. Com a criação do SPI, o índio sai, pela primeira vez
na história nacional, de sua posição reificada pelo sujeito colonizador, para o status de sujeito
entre sujeitos, com dignidade de cultura “igual” e não mais subordinada ou negativada por
uma leitura hegemônica. Até então, o índio era contemplado “sobranceiramente das alturas da
civilização européia, orgulhosa de si mesma, era visto como ser exótico, discrepante, cujas
ações de fósseis vivos interessavam enquanto pudessem lançar luz sobre o passado mais
remoto da espécie humana” (RIBEIRO, 1982a, p. 141). Com a criação do SPI, são fixadas
novas linhas para a política indigenista brasileira, cujo princípio era “o respeito às tribos indí-
genas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças, de vi-
ver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que aprenderam de seus antepassados e
que lentamente podia mudar” (RIBEIRO, 1982a, p. 138). A medida foi tão inovadora que,
segundo Darcy Ribeiro, a 39ª Conferência Internacional do Trabalho, realizada em 1956, em
Genebra, inspirou-se em grande parte na legislação brasileira para orientar políticas indigenis-
tas de outros países (GOMES, 2000, p. 141).
O índio agora exige, como Outro interior, indivíduo humano e sujeito que se impõe ao
sujeito, que o homem ocidental perceba os efeitos de sua postura de supremacia patriarcal e
reveja seu comportamento hegemonista e denegador. O índio se faz, assim, no tema nacional
privilegiado para a abordagem da alteridade. Transferido da Metrópole colonizadora para o
governo da República, “o problema indígena não pode ser compreendido fora dos quadros da
sociedade brasileira, mesmo porque existe onde e quando índios e não-índios entram em
contato” é um problema de “interação entre etnias tribais e a sociedade nacional” (RIBEI-
RO, 1982, p. 193).
A necessidade de reavaliar e modificar o posicionamento da cultura hegemônica leva à
crise em modos de compreensão do Outro autóctone e obriga à reflexão sobre atitudes equi-
vocadas no pensamento e no comportamento do homem ocidental. Para Darcy Ribeiro
20
(1982a, p. 194), pelo menos três dessas atitudes dificultavam a compreensão do Outro e a
interação dos dois pólos de interação: 1) “a atitude etnocêntrica, dos que concebem os índios
como seres primitivos, dotados de características biológicas, psíquicas e culturais indesejá-
veis”; 2) a atitude “romântica”, que os como “gente bizarra”, “raridade de jardim zoológi-
co”; e 3) a atitude “absenteísta”, que considera “inevitável e irreversível o processo de expan-
são da sociedade nacional sobre seu próprio território”, tornando inevitável o contato e a con-
seqüente “desintegração progressiva das culturas tribais, seguidas, necessariamente, da extin-
ção do índio como etnia, e da incorporação dos remanescentes”.
O que Darcy Ribeiro e seus companheiros do SPI propunham não era nem extinção nem
isolamento, mas condições de convivência nas diferenças. Por isso a recusa da assimilação, da
conversão da comunidade indígena aos padrões da cultura civilizadora, que não pode ser ad-
mitida porque a sociedade assimiladora ocidental não é modelar, é exclusivista e segregacio-
nista (RIBEIRO, 1982a, p. 195-197). Para a nova antropologia brasileira, o índio jamais pode-
ser sujeito numa sociedade que sempre o tecomo objeto e como Outro reificado, num
sistema hierarquizado que não admite dignidade e exercício livre da vida àquele que ele natu-
ralmente condena à margem de sua ordem.
Fronteira entre o Eu e o Outro, o espaço de alocação indígena é um território de perene
conflito e instabilidade, onde a ordem de uma cultura jamais consegue se estabelecer inteira e
soberana. Ali, a periferia caótica convive no mesmo lugar em que deveria ser o “centro” sa-
grado da comunidade, os limites entre o sagrado e o profano tornam-se fluidos e o convívio
com o caos supera o poder de instauração de um cosmo unificado.
A instabilidade começa pela desterritorialização geográfica, que retira aos índios suas
referências espaciais que definem a cultura da comunidade. Se a expansão patriarcal e capita-
lista descobre uma jazida de minérios, um seringal ou outras vegetações economicamente
interessantes, bem como faixas de terras apropriadas para a agropecuária, os índios são força-
dos a desocupá-las ou morrem chacinados. Expulsos das terras exigidas pelo poderio econô-
mico colonizador, os índios “viviam acoitados nos sertões mais ermos e ali mesmo tinham de
defender-se, à viva força, contra as ondas de invasores que procuravam desalojá-los, cada vez
que suas terras começavam a despertar cobiça por se tornarem viáveis a qualquer tipo de ex-
ploração econômica” (RIBEIRO, 1982a, p. 199).
Avançando para o interior do espaço consagrado indígena, o colonizador leva com ele o
caos periférico para o interior da cultura autóctone. O contato de uma cultura indígena com a
civilização branca significa uma crise no cosmo da comunidade indígena, uma invasão gene-
ralizada de forças caotizantes externas poderosas. “A história das nossas relações com os ín-
dios é, em grande parte, uma crônica de chacinas e sobretudo, de epidemias”, comenta Darcy
21
Ribeiro (1982a, p. 208), acrescentando que o encontro das duas culturas resulta sempre na
“marginalidade sócio-psicológica das tribos indígenas”, cuja cultura organizada é sobrepujada
pela dominante e relegada às margens desta como elemento alterizado.
Os elementos introduzidos no meio indígena pelo choque com a cultura branca constitu-
em “fatores dissociativos” que desintegram o socium da comunidade autóctone e a obriga a
transformações adaptativas. Darcy Ribeiro (1982a, p. 441-442) enumera cinco compulsões
que obrigam as populações indígenas à transfiguração étnica, conceito com o qual o autor
define a luta de uma etnia pela sobrevivência ao contato com sociedades nacionais hegemôni-
cas, através da alteração sucessiva de sua biologia e cultura, para adaptar-se à realidade edifi-
cada pelo convívio: 1) compulsões ecológicas, que afetam as tribos de duas formas, seja pela
competição de um território pelas populações, seja como “mecanismo de miscigenação”, onde
a prole mestiça identifica-se com a etnia paterna hegemônica, uma vez que é assegurado aos
“não-índios o papel de reprodutores”; 2) compulsões bióticas, advindas do contágio de doen-
ças alienígenas; 3) coerções tecnológico-culturais; 4) coerções sócio-econômicas e 5) coer-
ções ideológicas, pela “desmoralização do ethos tribal”. O autor conclui que “todos esses de-
safios convergem para o imperativo de [os indígenas] se transfigurarem biológica, social e
culturalmente a fim de sobreviverem em novas condições, extremamente tensas e sob a amea-
ça permanente de um colapso cultural que condenaria seus membros à anomia” (RIBEIRO,
1982a, p. 221).
Aos olhos de um branco simpático à cultura dizimada, sua própria cultura assume, dian-
te disso, uma posição ambígua: é um bem, pois o indivíduo, nascido em seu seio, aprendeu a
respeitá-la e amá-la como seu próprio cosmo e a defender os valores que a compõem, mas é
ao mesmo tempo um mal, porque nega ao outro seu direito à vida e à existência. A simpatia
por uma cultura marginalizada leva inevitavelmente o indivíduo a uma crise dentro de seu
próprio meio, pois os atos secularmente legitimados por sua cultura não podem mais ser aca-
tados sem censuras, e o sujeito não consegue, então, evitar uma autocrítica que descentraliza
seu olhar, fazendo-o oscilar entre sua posição de sujeito e a perspectiva a partir de um outro
sujeito, que sua própria cultura insiste em negar para existir:
Basta que nos coloquemos no lugar destes índios para imaginar os ter-
ríveis efeitos que decorrem da negação abrupta e insofismável dos va-
lores em que se fundamentava o respeito de uns em relação aos outros,
das justificativas tradicionais para as ações que a tribo sempre teve
como certas e necessárias, ou da legitimidade das sanções que recaiam
sobre o comportamento tido como reprovável (RIBEIRO, 1982a, p.
213, grifo meu).
22
Tudo precisa se relativizar quando o Outro exige seu status de sujeito e insiste em trans-
cender sua condição de alteridade. Nesta situação não se pode mais se manter qualquer identi-
dade, pois toda identidade é uma forma de exclusão. O filósofo francês Félix Guattari, que
estuda as formas de organização e reorganização cultural na modernidade, mostra como o
conceito de identidade supõe e fortalece territórios de cristalização de valores culturais. Para
entender os fenômenos culturais e a formação da identidade, Guattari e seu parceiro intelectu-
al, Gilles Deleuze, propõem os conceitos de subjetivação e singularização. A primeira define
uma forma de assumir valores religiosos, artísticos, econômicos e outros que cruzam os mem-
bros de uma determinada cultura; a singularização, por sua vez, expressa o processo de cria-
ção de novos valores ou modos de existir que os autores chamam de “subjetividades” no
interior da própria cultura. O indivíduo vive, portanto, num cruzamento de energias, percorri-
do transversalmente por uma multiplicidade de referências às quais ele adere sem crítica ou as
modifica para atender desejos e expectativas não contempladas. A identidade cultural seria
uma forma coletiva de territorializar, isto é, circunscrever subjetividades num sistema fechado
de referências, cuja conseqüência imediata seria a exclusão de grupos e indivíduos da possibi-
lidade de pertencimento ou uso dos quadros semióticos da cultura circunscrita, resultando na
oposição clássica entre identidade e alteridade. A identidade é, pois, “um meio de auto-
identificação num determinado grupo que conjuga seus modos de subjetivação nas relações de
segmentaridade social” (
GUATTARI e ROLNIK,
2005, p. 85).
O processo identitário indígena é ainda mais fluido. O convívio numa diversidade de
culturas equivalentes entre si e em oposição a uma cultura hegemônica unificada acentua en-
tre os indígenas o sentimento da “nação” plural, de um “caos ordenado” como alternativa a
uma “ordem caótica” e caotizante. “A principal característica das etnias tribais em relação à
sociedade nacional reside na multiplicidade e heterogeneidade das primeiras em face da uni-
dade e homogeneidade fundamental da última”, nota Darcy Ribeiro. “Em virtude dessa dispa-
ridade, cada tribo é levada a experimentar, de per si e desajudada, as compulsões resultantes
daquela expansão e a reagir de acordo com suas características peculiares” (1982a, p. 222).
Daí nasce a utopia de Darcy Ribeiro e sua aposta no Brasil como modelo de sociedade múlti-
pla e descentralizada. Do interior da mata brasileira, dos modelos indígenas de vida coletiva,
do desafio de preservar toda cultura como legítima para um ideal de democracia, nasce o mó-
vel do pensamento antropológico e ficcional de Darcy Ribeiro. Gomes (2000, p. 71) conclui
que, de sua experiência com os índios brasileiros, em especial os Urubu Ka’apor, com quem
Darcy Ribeiro vive em fins de 1949, na fronteira entre Pará e Maranhão, surge “o sentimento
do valor da floresta amazônica para os índios e também para o Brasil e para a humanidade”.
23
Dessa experiência vem seu amor pela floresta e por seus habitantes e seus posicionamentos
políticos contra a destruição da Amazônia e das culturas autóctones. Dela nasce Maíra.
1.2 “Maíra” e o tema da alteridade
Na introdução à edição de Maíra, o próprio autor define esta obra como seu “romance
preferido”. O texto foi escrito três vezes para chegar à versão publicada. A primeira escritura
foi realizada durante o exílio do Uruguai, enquanto Darcy Ribeiro se curava de uma estafa
resultante dos esforços acentuados na produção de seu livro-compêndio O processo civilizató-
rio, em que ele procura descrever os modos de evolução da cultura no planeta. Vindo ao Bra-
sil em 1969, ele é preso pelo regime militar e, na prisão, desprovido do texto original, decide,
para ocupar o tempo, reiniciar o romance do zero. Afirma o autor que, “nesse segundo impul-
so, Maíra tomou forma, com expressão da dor e do gozo de ser índio”. Finalmente, num se-
gundo exílio, desta vez em Lima, Peru, escreve a terceira versão, que constituirá o texto defi-
nitivo para a publicação do romance, em 1976. Dos quatro romances que Darcy Ribeiro pu-
blicou, este será o mais comemorado pela crítica. Moacir Werneck de Castro (2001, p. 391)
comenta de Maíra “o vigor, o nível, a originalidade de uma obra que, provavelmente, marcará
a segunda metade do século XX na literatura brasileira assim como Macunaíma, de Mário de
Andrade, marcou a primeira metade”.
Embora seja difícil estabelecer um protagonista para a fábula, cujo enredo se multiplica
em tantas narrativas entrecruzadas, é possível afirmar que o ponto concêntrico da trama de
Maíra é a história de Isaías, um índio mairum que, levado por missionários católicos para
tornar-se padre em Roma, retorna agora à aldeia de origem. A protagonização de Isaías no
romance pode ser, aliás, inferida de testemunho do próprio autor, quando, na introdução
citada, informa que o que ele fez em Maíra foi “romancear a história verdadeira de Tiago Ke-
gum Apoboreu, índio bororo que os salesianos quiseram ordenar” (RIBEIRO, 2001, p. 21).
Apoboreu, que os salesianos batizaram Tiago Marques, “fora levado a Roma para ser apresen-
tado ao Papa e exibido como exemplo de uma conversão bem sucedida de um índio brasileiro,
fato extremamente raro desde o tempo de Nóbrega e Anchieta”, comenta Gomes (2000, p.
93). “No entanto, ao voltar para visitar seu povo, o Bororo se deu conta de sua condição étni-
ca, renegou de imediato todo seu aprendizado religioso e civilizacional e voltou a ser índio.
Tanto no caso verdadeiro quanto no ficcional essa readaptação se faz dolorosa e complicada,
tanto para o índio quanto para sua sociedade”. A história de Tiago, que aparece analisada em
artigos antropológicos de Herbert Baldus e Florestan Fernandes, mostra a vida limítrofe a que
24
se confina o sujeito elaborado no cruzamento de culturas. Baldus (apud ANGULO, 1988, p.
17) afirma que Tiago tornou-se um “solitário entre os seus e estranho aos estranhos” e, co-
mentando Florestan Fernandes, Angulo (1988, p. 18-19) define o bororo como um indivíduo
que passa a ser “rejeitado duplamente”, um “homem marginal, localizado entre dois mundos
mentais diversos”, pois, nascido bororo e letrado pela cultura branca, Tiago acabará, “contra-
ditoriamente”, aceitando e repelindo, “ao mesmo tempo e igualmente, as duas culturas”. As-
sim é Isaías, no romance de Darcy Ribeiro: destinado desde a infância, por sua ascendência
real, a tornar-se Avá (chefe) dos mairuns, Isaías vive o conflito entre dois deuses e entre duas
formas diversas de liderança.
A fábula de Darcy Ribeiro se multiplica em histórias entrelaçadas para mostrar o confli-
to do encontro entre culturas. Dividido em quatro partes nomeadas com termos da liturgia
católica Antífona”, Homilia”, “Canon” e “Corpus” –, o enredo começa com o corpo de
uma mulher e dois fetos mortos no interior da selva. Por uma analepse, o narrador nos conduz
à aldeia mairum, onde o tuxaua Anacã prepara sua própria morte, enquanto Isaías retorna de
Roma, aonde foi levado da tribo para tornar-se padre e, no caminho, encontra Alma, a mulher
que será mais tarde identificada como o cadáver descoberto.
Segundo Gomes (2000, p. 48), Isaías e Alma são os protagonistas do romance: um índio
e uma mulher civilizada, “vivem seus dramas pessoais, se cruzam em momentos, e atuam
como representações de suas respectivas sociedades”. Por isso, Gomes aproxima o casal de
um par famoso da narrativa indianista romântica: Peri e Ceci, do clássico romance O Guarani,
de José de Alencar. Se Isaías recebeu inspiração da história de Tiago, Alma, por outro lado, “é
obra de ficção de Darcy, uma mulher moderna, liberada, como se dizia na década de 70, após
anos de psicanálise, que carrega em si a angústia de uma civilização dominadora e machista,
bem como as culpas de uma sociedade violenta e desigual”. Em relações com os mairuns,
Alma engravidará de gêmeos, “como se fora a nova encarnação do mito tupi onde uma índia
engravida de Maíra e do Gambá e à luz os gêmeos que irão desencadear o processo de cri-
ação da cultura indígena”. Se Alma é, portanto, uma brasileira que procura um destino no
meio da selva, e Isaías é o índio que retorna à origem depois de anos de vida entre civilizados,
o próprio povo mairum aparece como herói coletivo da trama. Os mairuns simbolizam a ale-
gria de viver que Alma busca, mas na qual agora “Isaías se sente deslocado e quer se readap-
tar por meio de uma interferência sobre a economia indígena” (GOMES, 2000, p. 93-94).
Os destinos dos três heróis Isaías, Alma e o povo mairum cruzam-se com as jorna-
das de outras personagens também emblemáticas no tema do choque cultural: Juca, o mestiço
que explora o trabalho indígena para encontrar um lugar no competitivo mundo ocidental e
serve um senador interessado em arregimentar latifúndios a partir da apropriação de terras
25
ainda sem escrituração jurídica; Nonato, o detetive federal que investiga a morte de Alma e
indigna-se com os costumes locais; Jaguar, depositório da coragem e da valentia do guerreiro
mairum arquetípico; e os próprios Maíra e Micura, heróis culturais e deuses primordiais do
mito cosmogônico mairum.
Aos poucos, impossibilitado de viver numa ou noutra cultura, a branca e a índia, Isaías
vai degradando de sua missão de Avá, e Jaguar é quem assume, no fim, a posição de novo
tuxaua. Alma encontra paz na vida entre os mairuns e torna-se “mirixorã” da tribo, uma espé-
cie de prostituta-sacerdotisa, que se relaciona com os índios numa função de certa forma sa-
grada para a cultura local, mas morre em condições misteriosas no parto malsucedido. Juca é
morto em confronto, no trabalho de mapear as terras limítrofes às áreas indígenas e missioná-
rias para o senador, que, não obstante, consegue seu latifúndio. Nonato não obtém respostas
definitivas para sua investigação e conclui que provavelmente Alma morreu em função de
complicações de parto em ambiente hostil.
Os dois mundos, colonizador e autóctone, branco e mairum, se entremeiam para tecer,
então, o enredo do romance, amalgamando também ficção e eventos políticos, fábula, mito e
história: “O drama se desenvolve em tempos presentes e passa pelas cidades, pelo ambiente
político repressor da ditadura militar, vai para as bordas da civilização, onde a violência anti-
indígena é palpável, e penetra fundo no mundo do índio” (GOMES, 2000, p. 94).
Maíra, que foi traduzido nas principais línguas européias, no japonês e no hebraico, é
resultado da experiência de Darcy Ribeiro com os índios da Amazônia e do Brasil Central,
quando conviveu com os Urubu Ka’apor, os Kadiwéu, os Bororo e as tribos xinguanas. Para
Regina Aparecida Cirelli Angulo, que escreveu um Roteiro de “Maíra”, “Darcy resgata, atra-
vés da linguagem poética, esse mundo ainda no frescor e originalidade da não estratificação
em classes e que, por isso mesmo, carrega um sabor de paraíso, de vidas realizadas no gozo
do existir, ainda que sob a ameaça sombria da degradação e da extinção totais” (1988, p. 5-6).
Para o próprio Darcy Ribeiro, o tema da obra é a “morte de um deus” (2001, p. 22). Ma-
íra é o nome do herói mítico civilizador dos povos tupis, que, segundo essas culturas, trouxe
para elas seus bens e valores e, portanto, é o responsável pela criação dos homens e do univer-
so circundante. Entretanto, Darcy Ribeiro lembra que, no caso dos Urubu Ka’apor, tribo com
a qual o antropólogo conviveu mais intimamente, Maíra constitui não apenas um herói mítico,
mas assume também o aspecto de uma divindade ainda presente no mundo, como seu mante-
nedor e legislador: “Ainda agora, as hecatombes, as tempestades e toda a vida, concebida co-
mo uma luta, é explicada pelos índios Urubus através da alegoria de um conflito permanente
entre um Maíra pai e um Maíra filho em que duplicaram o herói” (RIBEIRO, 1997, p. 102).
26
Num relato colhido entre os Tenetehara, no município de Amarante (MA), e analisado
por Claudio Zannoni, o conflito incessante é transferido para um par de gêmeos, filhos de
Maíra-pai. Este par será a presença mítica a entrelaçar o enredo de Maíra, o romance, e sim-
boliza justamente o eterno conflito entre os opostos na jornada humana: “Pode-se dizer, antes
de tudo, que no Mito dos Gêmeos Tenetehara, Maíra-ira e Mucura-ira representam o conflito
constante entre homem e natureza, entre humano e sobrenatural, estes representados pelas
dificuldades enfrentadas rumo à caminhada que leva a Maíra” (ZANNONI, 2000, p. 159).
O evento fundador da cultura, na visão Tenetehara, é instituído pela passagem da ativi-
dade econômica de coleta para a agricultura. Os Tenetehara desconheciam a origem dos frutos
da terra, que lhes foi revelado por Maíra, a partir do que a tribo torna-se sedentária. Zannoni
(2000, p. 162) considera interessante notar representações de Maíra em que ele aparece, doen-
te ou cantando, deitado em uma rede: “A rede parece representar a sedentarização obrigatória
com a agricultura. É um povo que acrescentou, às atividades de caça-coleta, a horticultura de
floresta”. Na origem da atividade agrícola, aparece, contudo, a transgressão de uma mulher da
tribo a uma ordem de Maíra, graças à qual, em vez de frutificarem de um dia para o outro, os
frutos precisam esperar no fundo da terra até o dia da colheita. Essa transgressão representa a
“ruptura com o mundo anterior” e, na visão de Zannoni (2000, p. 171), sendo o trabalho a-
grícola eminentemente feminino, é significativo que a mulher seja considerada como a culpa-
da por essa mudança”.
De Maíra, Darcy Ribeiro derivou os mairuns, povo preferido pelo deus dos tupis, no
seio do qual ele vai espelhar, por meio do relato do conflito entre os gêmeos míticos, a histó-
ria do “choque entre duas teogonias” (CASTRO, 2001, p. 392), a do branco “civilizado” e a
do indígena “selvagem”, fábula que faz de Maíra, portanto, uma ficcionalização da questão da
alteridade. Pelos mairuns, o autor vai propor seu sonho de convívio sem expropriação ou de-
negação. Como nota argutamente Antonio Houaiss (2001, p. 396), “os mairuns vivem um
absoluto: são os seres que vivem (em convívio com outros seres de espécies diferentes mas
como que equivalentes)”. Por isso o crítico “duas comoventes lições concomitantes” ensi-
nadas nas páginas do Maíra, lições aprendidas na experiência do próprio Darcy Ribeiro, atra-
vés de seu convívio antropológico com tribos indígenas:
Ninguém é, intrinsecamente, superior a ninguém; ninguém é, intrinse-
camente, inferior a ninguém: toda pretensa superioridade é uma usur-
pação. Se certas extrinsecalidades têm feito do homem o lobo do ho-
mem e cada vez mais, à medida que o extrínseco se faz mais e mais
técnico – esse caminho é o da morte de Maíra, morte de Deus, da mor-
te dos mairuns, da morte da Vida.
27
A crítica Luzia de Maria, num artigo sobre Maíra (2001, p. 402), denuncia o espanto de
um leitor “civilizado” diante do impacto da fábula de Darcy Ribeiro e das emoções desperta-
das pelo encontro com o tema da alteridade: “Ficamos perplexos ante a distância que nos se-
para do ‘outro’ ao acompanharmos rituais como os do ñandeiara ou da sucuridjuredá, ou
mesmo o cerimonial fúnebre do tuxaua Anacã, vendo o gozo da vida nascer da morte, numa
carnavalização plena de todos os possíveis, absoluta orgia dionisíaca” (grifo meu).
As palavras da pesquisadora norte-americana Ellen Spielmann (2001, p. 424-425), por
sua vez, expõem a abordagem inovadora de Darcy Ribeiro sobre o tema da alteridade no ro-
mance. Notando que o texto do autor constitui uma resposta “às posições antropológicas críti-
cas e soberbas dos anos 70”, ela revela que, “em Maíra, ele persevera nos argumentos subver-
sivos e práticos de acabar com aquela antropologia que insiste nos conceitos culturais da des-
coberta dos ‘Outros’ (os índios) com a pretensão de representá-los e de açambarcá-los”. Em
vez de elevar sobre o tema indígena o olhar centralizado do colonizador europeu, Darcy Ri-
beiro obriga-se, pela perspectiva deslocada, a refletir sua posição e analisar sua fala e suas
regras: “A fala sobre o ‘Outro’ é vista como campo de projeção para a representação de pro-
blemas reprimidos da própria cultura (ocidental, metropolitana, global)”, o que “nos leva a
indagar sobre como representar na literatura as minorias da própria cultura”. Darcy Ribeiro
concretiza o problema desta representação na opção estética pelo gênero ambíguo entre a poe-
sia e a ciência, anulando “a pretensão de uma mediação etno-antropológica” e deixando claro
“que se trata de imaginação literária”. Daí a autora concluir que
o romance de Darcy vai além da denúncia e da revelação ético-
sociológicas ao apresentar a antropologia em sua rigorosa separação
dos objetos de análise e a ciência em sua divisão esquemática entre
vida e literatura. Ele resolve ser antropólogo/escritor e narrar de forma
nova a História (as estórias) das transições entre o “estar aqui” e “estar
lá”, entre o “perguntador” e o “perguntado”, no âmbito de contra-
ensaios etnotextuais (SPIELMANN, p. 425).
É o que leva Regina Angulo a defender que, “em Darcy Ribeiro (1988, p. 8), à tradição
de gênero vincula-se a tradição de um tema: o índio”. É que, segundo Gomes (2001, p. 21),
para Darcy Ribeiro, ser antropólogo ou escritor são “facetas” de uma paixão que “estava a-
marrada às circunstâncias da ação política, da necessidade de fazer escolhas, de decidir e agir
sobre elas”. Por isso suas obras, ensaísticas ou ficcionais, compõem-se, como o próprio autor,
numa fronteira entre o real e a ficção, a ciência e a arte. É Alfredo Bosi (2001, p. 387) quem
nota o gênero “misto e impuro” do romance de Darcy Ribeiro, que o crítico define como uma
“epo-tragédia” de “polifonia dissonante”. Para ele, Maíra “não teria sido possível sem que se
28
operasse essa fusão ardente de sujeito e objeto, pathos e verdade, que sai de cada um de seus
episódios”.
As qualidades artísticas apontadas em Maíra são resultado de escolhas estéticas para fi-
cionalizar o Outro, que é o grande tema na fábula de Maíra: o Outro do herói, o Outro do pa-
triarcado e os temas corolários da morte (o Outro como anulação do Eu), da comunicação (o
canal ao Outro), da linguagem (lugar de existência do Outro). A primeira frase do romance
denuncia o problema da alteridade e o desentendimento que ele provoca: “Ninguém entende
este gringo”. O gringo é um suíço que, ironicamente, veio do Hotel Nacional. O delegado
Doutor Ramiro teme que ele queira “desmoralizar” o Brasil “lá fora no estrangeiro”, e o dele-
gado auxiliar Noronha avisa que o homem “tem licença do governo para andar por onde bem
quiser”. O hábito dos suíços é, na opinião de Noronha, “contar ao pai ou à autoridade tudo de
esquisito” que encontrarem (RIBEIRO, 2001, p. 33-34, grifo meu)
1
. É o suíço que interpreta
os arranhões na pele do cadáver de Alma como sinais de um crime, pois certamente desco-
nhece o costume lutuoso indígena de escarificar o corpo com dentes de piranhas. Assim, o
primeiro capítulo do romance propõe uma série de mistérios, estranhamentos e ocultações
que caracterizam o encontro de culturas, e o que dá o tom ao capítulo é o desentendimento: os
delegados não entendem o suíço Noronha sabe inglês; o informante não entende o depo-
imento dos índios; as crianças índias não entendem a “língua brasileira” (RIBEIRO, 2001, p.
35). Por outro lado, note-se a referência de Noronha à norma suíça de obedecer e prestar con-
tas a um “pai”, o que vincula, na visão do brasileiro, o civilizador e a cultura européia ao pa-
triarcado. No lado oposto dessa civilização estão os índios, representantes, no romance, de
todos aqueles que ela recusa, pois eles são “como os menores, os alienados e as mulheres ca-
sadas –, quer dizer, irresponsáveis perante a lei” (RIBEIRO, 2001, p. 36).
Quando aparece o protagonista (“Isaías”), a hegemonia do ocidente cristão é afirmada
para abrir o conflito que vai caracterizar o herói: “Todos os homens nascem em Jerusalém”.
Isaías é padre, mas se pergunta: “Mas gente, eu sou?” (RIBEIRO, 2001, p. 41). Na verdade, é
visto como um “índio de merda”, excluído da lógica global. Como índio, não pode ser sacer-
dote para os europeus e nega a condição de Outro que a cultura externa lhe impõe: para ele, os
mairuns não são parte, mas “um povo em si”, que a cultura hegemônica relega à existência
diminutiva: “tribozinha” com “lingüinha”, “religiãozinha” e “costumezinhos”, uma “obrinha
de merda” de Deus. O Outro colonizado, a mulher selvagem domesticada, a “avó pegada a
laço”, ele afirma para si: “Minha avó sou eu” (RIBEIRO, 2001, p. 41-42). Maria Luiza Ramos
1
Utilizei, para esta análise, a 14ª edição da Editora Record, que traz, em anexo, uma fortuna crítica sobre o ro-
mance, mencionada, aliás, em parte, na argumentação desta pesquisa e listada entre as referências bibliográficas
fornecidas adiante.
29
(2000, p. 143) diz que Isaías “encarna todo o violento processo de aculturação em que a reci-
procidade é anulada em favor da prepotência do mais forte”. A lógica ocidental e patriarcal
criou as oposições, que agora precisam ser resolvidas. Isaías conclui: “Sou gente, e não ape-
nas mairum ou, pior ainda, um mairum converso, civilizado”. As alteridades são, em qualquer
cultura, “inviáveis, mas presentes”, todavia “terão sua oportunidade”, ainda que não se saiba o
que se poderá fazer com ela. O “único mandado de Deus” é “resistir” (RIBEIRO, 2001, p.
44).
A resposta para esta forma insuspeitada de convívio pode estar na observância da vida
mairum. Isaías define a separação preservada entre os mairuns como inclusiva, ao contrário
daquela separação civilizada. A aldeia mairum divide-se em clãs, mas “o ser de não é um
ser estranho”, “eles são comigo um nós poderoso”, enquanto a “gente Jaguar” é apenas “um
nosinho exclusivista”. O Outro, ali, é um “recíproco, complementar”, os outros são tomados
como “amigos preferidos”, “mais meus” por terem natureza diferente e por isso o elemento
necessário para “formar um nós vigoroso, fecundo, completo” (RIBEIRO, 2001, p. 75). Os
índios de outras tribos que chegam à comunidade mairum não são vistos como inferiores, mas
como “bravos” não “amansados”, “os melhores lutadores”, de onde vêm as mirixorãs, as ín-
dias “mais bonitas”, “orgulho de todos os mairuns” (RIBEIRO, 2001, p. 110 ss.). Na via o-
posta da consciência e da vida coletiva, Isaías sente-se isolado, portador de um mal que se
define pela instituição de uma individualidade: “E eu fui a mairunidade, observa o herói, ago-
ra sou um índio qualquer” (RIBEIRO, 2001, p. 184). Isaías sente sua separação do socium
coletivo como uma redução de ser.
Com Maíra, Darcy Ribeiro estabelece, portanto, uma espécie de poética da alteridade.
Por outro lado, ao firmar as figurações do Outro, Darcy Ribeiro não apenas criou um romance
surpreendente. Elaborado para expressar artisticamente as formas da alteridade, Maíra tornou-
se exemplar como narrativa marcada pela arquetipologia feminina, este depositório milenar
das experiências antropológicas do Outro no patriarcado. Recuperando arquétipos que o oci-
dente, ao fundar um lugar para o Outro, manteve por séculos no lado sombrio da ordem he-
gemônica, Maíra é uma voz inversa no patriarcado, um retorno aos modelos pré-patriarcais do
imaginário.
2 NARRATIVA, ALTERIDADE E PATRIARCADO
A gente nunca deve de declarar
que aceita inteiro o alheio essa
é que é a regra do rei.
(João Guimarães Rosa)
O folclorista russo V. V. Ivánov (1981), num estudo tipológico das principais contrapo-
sições binárias observadas nos sistemas culturais, observa que três contraposições ligam-se
entre si na base semiótica das culturas: o central–periférico, o masculino–feminino e o ritual–
não-ritual ou sagrado–profano. Esta última, para Mircea Eliade (2001, p. 25-29), constitui, em
verdade, a primeira oposição binária de que derivam as demais, em que o sagrado constitui o
lugar da cultura, em torno da qual a sociedade se organiza e que se torna ponto de referência
para toda orientação espacial e simbólica. Fora desse lugar é o caos, o espaço profano.
A periferia, o profano e o caos são o espaço do Outro por definição, ao qual Ivánov
(1981, p. 82) acrescenta o feminino, por entender que o par de opostos sexuais seja um dos
primeiros a organizar os sistemas binários do imaginário, o que ele defende comparando-o
com o par esquerdo-direito. Para ele, a contraposição entre os lados direito e esquerdo foi
uma das primeiras que permitiram distinguir o modelo do mundo do Homo
sapiens fossilis dos sistemas de comportamento sígnico que podem ser recons-
truídos pelos hominídeos de épocas precedentes tendo em conta os dados da
primatologia. Pelo contrário, a contraposição masculino–feminino, que está
estreitamente ligada à central–periférica de que falamos anteriormente, carac-
teriza também as coletividades dos outros primatas (grifo meu).
O par masculino-feminino aparece, portanto, em tempos anteriores ao dos pares seguin-
tes, constituindo um dos eixos semânticos fundamentais para a instituição do imaginário. Ivá-
nov afirma que “na maior parte dos sistemas humanos de classificação simbólicos conhecidos,
31
a contraposição masculino–feminino organiza séries classificativas inteiras” (IVÁNOV, 1981,
p. 183).
Da mesma maneira como o sagrado, o cosmo e o centro são valores positivos para a cul-
tura, pois simbolizam o mundo fundado, no patriarcado o masculino vai associar-se à ação
fundadora e, assim, ser igualmente preferido ao feminino, que se torna, então, para o patriar-
cado, um arquétipo fundador do sentimento do Outro.
Tzvetan Todorov, numa obra escrita para desvelar o sentido do Outro no ocidente A
conquista da América –, define a alteridade como uma emoção surgida do centramento da
autoconsciência num “Eu” soberano que separa uma identidade de tudo o que ela exclui. O
sujeito que se auto-afirma pode ser um indivíduo ou uma identidade coletiva e pode constituir
uma alteridade “exterior” ou “interior”, isto é, negada absolutamente como elemento alieníge-
na à cultura ou integrada num sistema de oposições, cujo elemento marcado pela alteridade
significa a negação dos valores excelentes e hegemônicos da cultura afirmada como sujeito:
Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão e eu estou só aqui,
pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros
como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo
indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como
um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua
vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos
para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ele, uma
outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua (TO-
DOROV, 2003, p. 3, grifos do autor).
Percebe-se que a alteridade “interior” é o Outro admitido porque necessário, a alteridade
não excluída porque imprescindível para a manutenção do próprio sistema. Destes, o mais
obviamente interior à espécie humana é a mulher. Enquanto se pode extinguir uma sociedade
alienígena – é o objetivo de toda atividade bélica –, não se pode fazer o mesmo com a mulher,
pois ela é um de dois sexos numa espécie biológica. Para a cultura patriarcal, a mulher é o
Outro que precisa ser mantido e constitui, portanto, a negação sempre presente, a ameaça ubí-
qua à identidade masculina hegemônica. Como mostra Simone de Beauvoir (1970, p. 91), seja
nas suas formas de natureza, mãe ou deusa, a mulher nunca é “um semelhante” para o ho-
mem, mas se situa como representante interior, que não se pode elidir, do além do reino hu-
mano”, tudo o que está fora desse reino” (grifos da autora). Por isso, para Beauvoir (1970, p.
85), falar da mulher e do universo feminino, no patriarcado, é falar do Outro absoluto, pois, na
opinião da autora, a oposição entre o sujeito e o objeto que subjaz a toda atitude de apropria-
ção e negação é a que opõe semanticamente o feminino ao masculino.
32
Historicamente, o tema do Outro, portanto, remete necessariamente à evolução do patri-
arcado no ocidente e ao imaginário bipolar dos valores femininos em oposição à experiência
cultural masculina.
2.1 Sociedade patriarcal e sociedade matrística
O biólogo chileno Humberto R. Maturana, num trabalho conjunto com Gerda Verden-
Zöller (2004), investiga a origem e o desenvolvimento da cultura patriarcal no ocidente, a
partir de elementos da “Teoria de Santiago”, escola chilena reunida em torno das descobertas
de Maturana e de seu parceiro de pesquisas Francisco Varela. As teorias da Escola de Santia-
go repropõem a discussão antropológica sobre sociedades pré-patriarcais, com o cuidado de
evitar as críticas que autores predecessores, como Frazer e Bachofen, sofreram ao sugerir a
existência de culturas matriarcais ou matrilineares na origem da história, e por isso têm cres-
cido em respeito aos olhos das ciências sociais, em especial daqueles segmentos que abordam
as questões de gênero e da elaboração cultural do elemento feminino. Por isso, procurarei
perseguir as idéias de Maturana, combinando-as a observações de outros autores, para acom-
panhar a evolução do patriarcado em substituição a uma cultura pré-patriarcal.
Segundo a teoria cultural de Maturana, a existência humana se constrói através de “re-
des de conversação” construídas pela prática da linguagem ou “linguajear”. A linguagem, por
sua vez, é resultado das emoções. No fundamento de qualquer atividade humana está uma
forma de emocionar o mundo, maneira de relacionar-se o sujeito com as coisas do ambiente
através de uma mecânica do desejo. “É a emoção que define a ação”, defendem Maturana e
Verden-Zöller (2004, p. 10). As emoções “preexistem à linguagem”, pois, antes de pertencer à
espécie humana, o homo sapiens é o resultado da evolução de uma biologia animal: “A vida
humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional que constitui, a cada instante, o
cenário básico a partir do qual surgem nossas ações” (MATURANA, 2004, p. 29).
Na vida social, os comportamentos consensuais são codificados em coordenações, e
Maturana chama “linguajear” ou ação da linguagem à “coexistência de interações recor-
rentes, sob a forma de um fluxo recursivo de coordenações de coordenações comportamentais
consensuais” (MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 10). O linguajear é uma ativida-
de peculiarmente humana, que consiste em fluir na linguagem, isto é, nesta rede que coordena
os códigos culturais. Esse fluxo, contudo, ocorre sempre num cruzamento com a atividade do
emocionar, sempre manipulado a partir de uma forma de sentir o mundo, e a essa operação no
entrecruzamento de emoção e linguagem Maturana (2004, p. 33) o nome de “conversa-
33
ção”. A conversação é, portanto, o espaço relacional onde a linguagem se cruza com um emo-
cionar contínuo, isto é, na vivência de nossas emoções, seguindo a orientação dos desejos. Por
isso, toda ocupação humana acontece como uma “rede específica de conversações”, e é àquilo
que se define como “uma rede fechada de conversações”, “uma maneira de convivência hu-
mana como uma rede de coordenações de emoções e ações”, que chamamos uma cultura.
O percurso dos desejos pode, entretanto, mudar e muda no trânsito da história. Co-
mo toda ação e linguagem se apóiam num suporte emocional, se muda o emocionar de uma
cultura, muda conseqüentemente sua maneira de linguajear e alteram-se as redes de conversa-
ções (MATURANA, 2004, p. 31-33). Quando as alterações se convertem num jeito novo de
viver a partir de uma nova rede de conversações que se mantém através das gerações, surge
um novo complexo cultural.
Se “a história da humanidade seguiu a trajetória do emocionar” e o curso dos desejos
(MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 11), e se é o modo de emocionar que faz uma
cultura diferente de outra, conclui-se daí que uma investigação sobre a cultura e a linguagem
deve principiar por uma análise do desejo que a fundamenta: “Se quisermos compreender o
que acontece em qualquer conversação, é necessário identificar a emoção que especifica o
domínio de ações que tal conversação implica”, observa Maturana. “Portanto, para entender o
que acontece numa conversação, é preciso prestar atenção ao entrelaçamento do emocionar e
do linguajear nela implicado” e, “se levarmos em conta os fundamentos emocionais de nossa
cultura – seja ela qual for –, poderemos entender melhor o que fazemos ou não fazemos como
seus membros” (MATURANA, 2004, p. 30-32).
A partir de sua teoria da cultura, Maturana explica as diferenças entre a cultura patriar-
cal em que vivemos e uma cultura pré-patriarcal, ou matrística
1
, que a teria precedido, carac-
terizando os dois complexos culturais como “modos diferentes de viver as relações humanas”
(2004, p. 35). Maturana e Verden-Zöller (2004, p. 18-21) afirmam que, quando a humanidade
nasceu, mais ou menos três milhões de anos, vivia, de forma natural e sem reflexões ou
artificialismos, em redes de conversações que “envolviam a colaboração dos sexos na vida
cotidiana, por meio do compartilhamento de alimentos, da ternura e da sensualidade”. Essa
cultura vicejou entre 7.000 e 5.000 a.C. e caracterizou-se por uma religião “centrada no sa-
grado da vida cotidiana”, na “harmonia da contínua transformação da natureza por meio da
morte e do nascimento, abstraída como uma deusa biológica em forma de mulher, ou combi-
nação de mulher e homem, ou de mulher e animal”. Não cultivava o conceito de propriedade
1
Maturana (2004, p. 25) utiliza o termo “matrístico” para “conotar uma situação cultural na qual a mulher tem
uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário
e do hierárquico”, isto é, diferente de “matriarcal”, que designa a cultura onde a mulher teria papel dominante.
34
nem se fundamentava numa “dinâmica emocional da apropriação”, mas centrava suas formas
de viver “na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo
disponível para contemplar a vida e viver o seu mundo sem urgência”.
Tudo isso leva os autores a concluir que tal sociedade não baseava sua rede de conver-
sações em emoções que privilegiassem a negação mútua pela competição e pela guerra, pela
apropriação e pela exclusão do Outro, pela autoridade e pela obediência, pelo poder e controle
do mundo e dos homens, por um sistema de valores baseados no bom e no mau, na tolerância
e na intolerância, em outras palavras, pela “justificação racional da agressão e do abuso”. Es-
tas são emoções, na visão de Maturana, que fundamentam apenas as redes de conversações
patriarcais. Na cultura matrística “o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sis-
têmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era
o que era em suas conexões com tudo mais” (MATURANA, 2004, p. 46-47).
A cultura pré-patriarcal foi destruída por povos pastores indo-europeus. Maturana
(2004, p. 52-53) explica que, dentre os povos paleolíticos de mais de 20 mil anos, alguns
foram “sedentários, coletores e agricultores”, e outros seguiram as migrações de animais sel-
vagens. No rastro desses animais, aparece, em determinado momento, a necessidade de prote-
ger os grupos perseguidos do ataque de outros predadores. Na opinião de Maturana, a cultura
do pastoreio surge justamente “quando os membros de uma comunidade humana, que vive
seguindo alguma manada específica de animais migratórios, começa a restringir o acesso a
eles de outros comensais naturais, como os lobos”.
Ocorre, a partir dessa nova atividade, um emocionar diferente, e uma das primeiras e-
moções modificadas diz respeito à relação do sujeito com a morte. O caçador de épocas ante-
riores, quando matava um animal para se alimentar, entendia que praticava um ato sagrado,
integrado à harmonia do cosmo, segundo a qual a morte existe para gerar a vida. Com a apro-
priação dos rebanhos e o estabelecimento de fronteiras entre o espaço central de ação humana
e o espaço periférico da ação de outros predadores, os grupos pastoris tiveram certamente que
matar os rivais na caça, dos quais os mais evidentes eram as alcatéias de lobos. Caçar para
alimentar-se e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural e agir as-
sim de modo sistemático – são ações que surgem sob emoções diferentes”, comenta Maturana
(2004, p. 54). “No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindo-se diretamente à eliminação
da vida do animal que mata”, isto é, a vida do animal não serve a outra vida, mas é, ao contrá-
rio, dispensada, expurgada, eliminada, para que um outro sujeito exerça sua supremacia sobre
o mundo e as coisas. “Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra
possa prosseguir; aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica defi-
nida como tal nesse mesmo ato” (MATURANA, 2004, p. 55).
35
As emoções despertadas por um e outro ato são, portanto, opostas. No caso do caçador,
o animal caçado é um ser sagrado, divino como qualquer parte de uma natureza divina, que é
sacrificado pelo equilíbrio total da existência e desperta no caçador um sentimento de gratidão
e respeito pela morte; contudo, para o pastor, matar constitui antes um puro assassinato, para
manter, não uma harmonia natural, mas uma ordem artificial, edificada no ato da delimitação
e apropriação de um espaço natural, o rebanho: Na ação de caça o animal caçado é um ami-
go, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo”. Na origem do pastoreio
surge, portanto, o antagonista mítico, “aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer
destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defe-
sa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa” (MATURANA,
2004, p. 56).
Homens e mulheres, sob o patriarcado, vivem, pois, como se todas as ações existenciais
necessitassem do uso da força e concebem cada ocasião para uma atividade e interferência
humana como um desafio a ser vencido no espírito da competição. Por outro lado, agem sob o
regime da desconfiança, sempre no afã de buscar certezas para a conduta e a experiência, por
isso se empenham no controle do mundo natural e de outros seres humanos, bem como no
próprio autocontrole. Com isso, o Outro surge como uma ameaça externa a um equilíbrio inte-
rior do sujeito hegemônico e suficiente: “Fazemos muitas coisas para dominar a natureza ou o
comportamento dos outros, com a intenção de neutralizar o que chamamos de forças anti-
sociais e naturais destrutivas, que surgem de sua autonomia”. A diferença só é tolerada porque
acreditamos que poderemos conduzi-la “ao bom caminho” que nossa individualidade dispôs
ou eliminá-la sob o pretexto de que constitui um equívoco de pensamento ou conduta. Assim,
“justificamos a competição, isto é, o encontro na negação mútua como a maneira de estabele-
cer a hierarquia dos privilégios, sob a afirmação de que a competição promove o progresso
social, ao permitir que o melhor apareça e prospere” (MATURANA, 2004, p. 37-38).
O surgimento da cultura de pastoreio conduziu, assim, a “mudanças adicionais no emo-
cionar”, por meio do desejo e do ato da apropriação, que fez surgir novas redes de conversa-
ções, dentre as quais as mais evidentes e fundamentais são: o sentimento de inimizade; “o
desejo constante por mais, numa interminável acumulação de coisas que proporcionavam se-
gurança”; a sexualidade reprodutiva contra a estética e o prazer, “como forma de obter segu-
rança mediante o crescimento do rebanho ou manada” e a ampliação da população de trabalho
e defesa do grupo, de onde o controle da sexualidade feminina como propriedade do homem;
o estabelecimento da obediência e de hierarquias no convívio social e no trabalho; e o temor
da morte como fonte de dor e perda total” (MATURANA, 2004, p. 59-60). O investimento no
crescimento dos rebanhos e da população ocasionaram
36
giu a expansão do território da comunidade e o conflito com outros grupos humanos: “A guer-
ra, a pirataria, a dominação política, a escravidão devem ter começado nessa época e, eventu-
almente, produziram migrações maciças, em busca de novos recursos a serem apropriados”
(MATURANA, 2004, p. 61).
O encontro dessas comunidades pastoris com a cultura matrística levou os povos patri-
arcais a encararem as diferenças culturais como ameaça à identidade. Os limites impostos
pelas redes de conversações patriarcais criaram um regime de distinção entre o que é e o que
não é permitido, o aceitável e o inaceitável, a correção e o erro: “Se vivermos centrados na
apropriação, viveremos tanto nossas propriedades quanto nossas idéias e crenças como se elas
fossem nossa identidade” (MATURANA, 2004, p. 69-71).
Existem, agora, no mundo, dois grupos humanos que devem se excluir mutuamente.
Assim, se o caçador respeitava e aceitava a morte como uma condição mútua de sobrevivên-
cia entre duas espécies, a partir da experiência pastoril, ao contrário de um bem que traz a
vida, a morte é vista como um mal, que conduz à perda e ao fim. No emocionar do caçador, se
o animal pode ser morto para alimentá-lo, também é natural que um caçador o seja ocasio-
nalmente, para a manutenção do equilíbrio cósmico; na visão do pastor, o Outro, animal pre-
dador ou homem de outro clã, é um inimigo que ameaça, e o imperativo é matá-lo antes de ser
morto. Riane Eisler (1989, p. 86-87) conclui, daí, que os homens com mais qualidades destru-
tivas, como a força física, a insensibilidade e a brutalidade, convertem-se em modelos ideais
de uma cultura que vai se tornar cada vez mais hierárquica e autoritária, reduzindo gradual-
mente as mulheres identificadas com o cálice nutriz da cultura matrística à condição de “tec-
nologias de produção e reprodução controladas pelo homem”.
Apoiando-se, como Maturana, nas pesquisas de Gimbutas, Eisler (1989, p. 76-77) ob-
serva que as investidas nômades pastoris indo-européias ou kurgas sobre as culturas matrísti-
cas ocorreram em três ondas sucessivas de invasões: a primeira, entre os anos de 4.300-4.200
a.C.; a segunda, de 3.400-3.200 a.C.; e a terceira, de 3.000-2.800 a.C. “Governados por pode-
rosos sacerdotes e guerreiros, eles trouxeram consigo seus deuses masculinos da guerra e das
montanhas.” Ao lado deles, porém, Eisler coloca também o povo judeu, que sua cultura vai
exercer forte influência na cultura européia especialmente a partir da ascensão do cristianis-
mo. Vindo do deserto, esse povo semita invadiu a terra matrística de Canaã, hoje Palestina:
“À semelhança dos indo-europeus, eles também trouxeram um deus da guerra e das monta-
nhas, violento e colérico (Jeová ou Javé).” O que todos esses povos têm em comum, segundo
Eisler, é o “modelo dominador de organização social” e a maneira peculiar de obter riquezas:
enquanto as sociedades matrísticas desenvolviam tecnologias de produção, estes povos pri-
mavam por elaborar “tecnologias cada vez mais eficazes de destruição”.
37
A religiosidade, como se pode ver comparando o deus agressivo judeu com a deusa
harmônica matrística, também sofre grandes alterações com a mudança do emocionar nas
tribos pastoris. Uma descrição do conflito histórico entre as formas matrísticas de religiosida-
de da deusa e as religiões patriarcais dos deuses masculinos pode ser encontrada em As deu-
sas, as bruxas e a Igreja, de Maria Nazareth Alvim de Barros. A autora fala de um monoteís-
mo feminino na pré-história, a partir de um imaginário dominado pela religião da Mãe, graças
ao vínculo que se estabelecia entre o feminino e a geração da vida (BARROS, 2004, p. 141).
Mas Simone de Beauvoir acrescenta outras funções femininas, fundamentais para a manuten-
ção da sociedade matrística, como origem da adoração da deusa:
No seu início, a indústria doméstica é também de competência delas: elas te-
cem tapetes e cobertas, fabricam os vasilhames. São, muitas vezes, elas que
presidem à troca de mercadorias; o comércio está nas suas mãos. É, pois, atra-
vés delas, que se mantém e propaga a vida do clã; de seu trabalho e de suas
virtudes mágicas dependem os filhos, os rebanhos, as colheitas, os utensílios,
toda prosperidade do grupo de que são a alma. Tanta força inspira aos homens
um respeito misturado de terror e que se reflete no culto. Nela é que se resume
toda a Natureza estranha (BEAUVOIR, 1970, p. 89).
Aos poucos, esse monoteísmo feminino convergiu para um politeísmo de formas da
deusa associadas a deuses masculinos (BARROS, 2004, p. 67). A ascensão do patriarcado,
porém, trouxe para a frente do cenário deuses como Zeus, Júpiter e Jeová, os “pais da huma-
nidade” em substituição à Grande Mãe (BARROS, 2004, p. 51). A partir daí, o deus masculi-
no será associado a imagens luminosas, como o sol, enquanto as formas da deusa serão rele-
gadas ao aspecto lunar negativo de astro frio, estéril e sem luz própria (BARROS, 2004, p.
40).
Joseph Campbell opõe as duas formas de religiosidade matrística e patriarcal a partir
das diferentes experiências culturais da agricultura e do pastoreio. Enquanto na primeira, de-
pendente dos ciclos sazonais e integrada aos movimentos naturais, “as principais divindades
eram compreendidas filosoficamente como personificações visionárias dos poderes da nature-
za”, na cultura patriarcal dos grupos nômades, os deuses principais representam a coletividade
da tribo. Se para um adorador matrístico, a deusa encontra-se em qualquer lugar do planeta e
até mesmo no interior do mundo estrangeiro, o deus tribal pode sobreviver dentro do seu
próprio espaço comunitário artificialmente delimitado e não se identifica com nada fora desse
centro (CAMPBELL, 2002b, p. 277). É o que ocorre com o deus hebraico que mais tarde vai
dominar o imaginário cristão ocidental. Trata-se de um deus exclusivista e agressivo com toda
divindade externa e de uma religião monoteísta dissociada do elemento natural (BARROS,
2004, p. 68).
38
A hierarquização da sociedade a partir do emocionar patriarcal vai opor, definitivamen-
te, para os séculos futuros, homens e mulheres entre si. Isso vai criar, no seio da sociedade
emergente, formas distintas, para homens e mulheres, de construir a personalidade, se posi-
cionar no mundo e conduzir a existência, a partir da experiência infantil deste choque de
mundos: “É a maneira em que se vive a infância e a forma em que se passa da infância à
vida adulta na relação com a vida adulta de cada cultura, que faz a diferença nas infâncias
das distintas culturas”, afirma Maturana (2004, p. 45), observando que na cultura matrística a
criança, quando passava para a vida adulta, continuava gozando dos prazeres da infância nos
braços maternos. O homem nasce no seio da e e dpassa ao seio da deusa. Nada inter-
rompe a forma de viver aprendida durante a infância no gozo estético próprio ao emocionar
feminino. o crescimento das crianças, no patriarcado, passa por “duas fases opostas”: na
infância ela experimenta o pertencimento à cultura das es, da “biologia do amor”, que o
outro como “legítimo outro em coexistência conosco”; mas, quando entra na vida adulta, é
atirada num mundo centrado na luta e na apropriação, na competição e na negação do outro,
nas “relações de autoridade e subordinação” (MATURANA, 2004, p. 44-45).
Maturana (2004, p. 75-76) compara, num quadro, as redes de conversações matrística e
patriarcal, que reproduzo aqui parcialmente, apenas naquelas características que me interes-
sam de imediato nesta pesquisa:
Conversações definidoras da Cultura
Patriarcal Pastoril
Conversações definidoras da Cultura
Matrística Européia
De apropriação.
De participação.
Nas quais a fertilidade surge como uma
noção que valoriza a procriação, num pro-
cesso contínuo de crescimento.
Nas quais a fertilidade surge como a visão
da abundância harmoniosa de todas as coi-
sas vivas, numa rede coerente de processos
cíclicos de nascimento e morte.
Nas quais a sexualidade das mulheres se
associa à procriação e fica sob o controle do
patriarca.
Nas quais a sexualidade das mulheres e dos
homens surge como um ato associado à
sensualidade e à ternura.
Nas quais a guerra e a competição surgem
como modos naturais de convivência, e
também como valores e virtudes.
Nas quais surgem a valorização da coopera-
ção e do companheirismo como modos na-
turais de convivência.
Nas quais o místico é vivido em relação à
subordinação a uma autoridade cósmica e
transcendental, que requer obediência e
submissão.
Nas quais o místico surge como participa-
39
Nas quais o pensamento é linear e vivido na
exigência de submissão à autoridade na
negação do diferente.
Nas quais o pensamento é sistêmico e é
vivido no convite à reflexão diante do dife-
rente.
2.2 O bem masculino e o mal feminino
Detalhes do processo de dominação patriarcal podem ser encontrados na leitura da his-
tória bíblica da invasão da Palestina pelos hebreus. Maria Nazareth Alvim de Barros (2004, p.
188) observa que, enquanto a religiosidade pré-patriarcal caracterizava-se por um monoteísmo
feminino que via na deusa a expressão máxima da vida universal, “o judaísmo foi a primeira
religião a excluir o elemento feminino e a valorizar um único Deus masculino”, o que faz da
religião judaica o “primeiro grande golpe contra a religião da Mãe”. Grécia e Roma, por sua
vez, asseguraram a inferioridade feminina consolidando as leis patriarcais (BARROS, 2004,
p. 13) e o mitraísmo, culto secreto dos militares romanos, de índole moral e disciplinar, do
qual participavam os membros masculinos da comunidade, cuidou de eliminar do cristia-
nismo seus elementos femininos. A associação das duas religiões pode ser observada, por
exemplo, na instituição do dia 25 de dezembro como data natalícia de Cristo, dia em que, na
antiga Roma, a casta masculina comemorava a natividade do deus Mitras (BARROS, 2004, p.
123).
Assim, aos poucos, as formas pré-patriarcais de religiosidade, voltadas para a sacraliza-
ção da existência cotidiana em todas as dimensões do animal e do humano, cedem terreno aos
deuses exclusivistas, legisladores e moralistas do patriarcado. Quando os difusores da nova
cultura se arrogam o poder sobre as coisas e as criaturas, começa a negação dos valores da
cultura que se lhe opõe, a negação de suas representações e a condenação de suas práticas
como o mal absoluto. Então, “os aspectos físicos e até os espirituais do feminino foram decla-
rados demoníacos”, conclui a psicanalista Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (1998, p. 50),
que resume esse processo de demonização dizendo que “a consciência ocidental se aglutinou
com a hipertrofia da dinâmica masculina e da polaridade yang e a conseqüente desvalorização
do feminino e da polaridade yin(MONTERIRO, 1998, p. 55). Tudo o que é afirmado como
poderoso, agressivo, luminoso, urânico, divino e, portanto, bom, advém do homem; em con-
trapartida, o fraco, submisso, sombrio, infernal, demoníaco e mau define o espírito feminino.
Esta oposição é tomada como manifestação da luta entre o bem e o mal, concepções
que, segundo Maturana (2004, p. 80-81), não existiam nas formas de conversações matrísti-
40
cas: “Na cultura matrística não bem nem mal, pois nada é algo em si mesmo e cada coisa é
o que é nas relações que a constituem”. Por outro lado, a origem pastoril da cultura patriarcal,
como vimos, faz aparecer o sentimento da inimizade, a partir da qual “uma ação inadequada é
vista como ou perversa em si mesma, e seu autor deve ser castigado”. Por isso, ao entrar
em contato com a cultura matrística, o patriarcado a rejeita como “fonte de perversidade”,
enquanto, ao contrário, tudo o que é patriarcal é visto como bom e “fonte de virtude”. O femi-
nino ganha qualidades de “cruel, decepcionante, não-confiável, caprichoso, pouco razoável,
pouco inteligente, débil e superficial enquanto o masculino passa a equivaler ao puro, ho-
nesto, confiável, direto, razoável, inteligente, forte e profundo”.
Acompanhando a evolução do patriarcado no ocidente, Maturana (2004, p. 105-106) re-
cusa aceitar a agressão, a guerra, a exclusão e a negação do Outro como formas de viver ca-
racterísticas da biologia humana. Ao contrário, é o amor que está na base emocional da histó-
ria humana em seus primórdios, que vai constituir a vida social como modo humano funda-
mental de existir, expresso na vida em redes de conversações. Se futuramente nossa cultura
vai ser caracterizada pelo conflito entre o bem e o mal e pela emoção do ódio ao diferente,
isso só acontece graças ao conflito entre as culturas matrística pré-patriarcal e patriarcal pasto-
ril.
Na mitologia e na história dos símbolos e arquétipos, esse conflito vai ser representado
pelas oposições entre pares semânticos: “Dia e noite, sol e lua, ordem e desordem, potência e
fertilidade, razão e desrazão, permeiam os relatos míticos, exprimindo em linguagem simbóli-
ca os pólos opostos dessa união tensional” (OLIVEIRA, 1993, p. 114).
2.3 Os gêneros e os regimes do imaginário
A maior parte dos estágios evolutivos do mito e todos os seus desdobramentos na litera-
tura ocidental ocorrem no interior de um sistema dito patriarcal, isto é, de dominação mascu-
lina. É de se acreditar que esta filiação não tenha sido inócua na elaboração de imagens, figu-
ras, temas, motivos ou mitemas para a representação mitológica ou literária.
Vimos, com Maturana, que nossa linguagem é elaborada a partir de uma forma de nos-
sos sujeitos emocionarem o seu estar-no-mundo. Assim, todo imaginário na base de nossas
atividades lingüísticas, sejam comportamentais, racionais ou estéticas, é resultado de uma
dinâmica relacional entre o sujeito e os objetos do mundo:
41
As emoções são disposições corporais (estruturais) dinâmicas que especifi-
cam, a cada instante, o domínio de ões em que um animal opera nesse ins-
tante. [...] Noutros termos, nós, humanos, na qualidade de entes biológicos, es-
tamos constitutivamente dotados de uma corporeidade dinâmica que, ao adotar
configurações distintas, dá origem a emoções diferentes como disposições
corporais dinâmicas diversas. Estas especificam diferentes domínios de ações,
os quais constituem por esse meio o fundamento operacional de tudo o que fa-
zemos, inclusive o que chamamos de comportamentos, pensamentos e discur-
sos racionais (MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2004, p. 221).
Pressuposto semelhante ao de Maturana rege o pensamento de exploradores do imaginá-
rio como Gaston Bachelard e seu discípulo Gilbert Durand. O primeiro compreendia que, na
base de todo pensamento e atividade da imaginação, estava uma emoção, que ele traduzia
como uma percepção subjetiva da atividade material do corpo na manipulação dos objetos do
mundo. Dividindo a matéria nos quatro elementos pré-socráticos do ar, do fogo, da água e da
terra, Bachelard concebeu quatro categorias do imaginário, a partir da experiência humana
com os elementos pré-configuradores do mundo físico. Gilbert Durand, por sua vez, desvia da
matéria o princípio condutor do imaginário e o enraíza numa dinâmica corporal. Em vez de
sistematizar o imaginário a partir dos componentes físicos da matéria, ele cria categorias es-
truturais e arquetípicas resultantes dos movimentos do corpo humano, os verdadeiros motri-
zes, segundo o autor, para a experiência do sujeito com os objetos do mundo.
Para estudar o imaginário em sua concretude, Durand (2002, p. 41) pretende percorrer o
caminho da antropologia, que ele define como o conjunto de todas as ciências voltadas para a
compreensão da espécie humana. assim, defende o autor, pode-se transcender a polêmica
que opõe entre si culturalistas e psicólogos” e, numa atitude menos reducionista, estudar os
fenômenos culturais segundo o princípio de que “nada de humano deve ser estranho”. Defi-
nindo o “trajeto antropológico” como uma “incessante troca que existe ao nível do imaginário
entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio
cósmico e social”, Durand argumenta que a escolha deste caminho “afastará da nossa pesqui-
sa os problemas de anterioridade ontológica, que postularemos, de uma vez por todas, que
gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio material e social e vice-versa”.
Para ele, o imaginário resulta do “trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar
e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou
magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam ‘pelas acomodações anterio-
res do sujeito’ ao meio objetivo”. Assim, o símbolo será sempre um “produto dos imperativos
biopsíquicos pelas intimações do meio”. Se, de um lado, existe a matéria sobre a qual se exer-
ce alguma atividade, não é possível desconsiderar que o movimento é fruto, por outro lado, de
um desejo que o impulsiona:
42
Para Bachelard, os eixos das intenções fundamentais da imaginação são os tra-
jetos dos gestos principais do animal humano em direção ao seu meio natural,
prolongado diretamente pelas instituições primitivas tanto tecnológicas como
sociais do homo faber. Mas esse trajeto é reversível; porque o meio elementar
é revelador da atitude adotada diante da dureza, da fluidez ou da queimadura.
Poder-se-ia dizer que qualquer gesto chama sua matéria e procura o seu uten-
sílio, e que toda matéria extraída, quer dizer, abstraída do meio cósmico, e
qualquer utensílio ou instrumento é vestígio de um gesto passado. A imagina-
ção de um movimento reclama, diz Bachelard, a imaginação de uma matéria
(DURAND, 2002, p. 41-42).
Lembrando, por meio de uma afirmação de P. Chauchard, que o ser humano é o animal
que nasce incompleto e se desenvolve tão lentamente que a aprendizagem desempenha papel
essencial nas configurações cerebrais, Durand (2001, p. 38) lembra que as fases de maturação
do simbolismo desdobram-se por várias etapas da vida de um espécime humano:
Se no mundo das vértebras inferiores não “articulações simbólicas” com-
plexas, há, pelo menos, “ligações simbólicas” inatas e rudimentares que for-
mam a base de um universo imaginário regularizador dos comportamentos vi-
tais da espécie. [...] Se a ligação simbólica ocorre a partir dos dezoito meses, a
articulação simbólica somente se manifesta por volta dos quatro ou cinco a-
nos. A formação anatômica do cérebro humano se encerra por volta dos sete
anos, e as reações encefalográficas se normalizam aos vinte anos...
Daí, a abordagem antropológica tornar-se o método privilegiado de estudar os fenôme-
nos de simbolização. Ela parte do pressuposto de que o símbolo, obedecendo a uma lei sistê-
mica, emerge a partir de um “vaivém” entre as “raízes inatas da representação do sapiense
as diferentes “interpelações do meio cósmico e social”, numa relação de complementaridade e
influência mútua:
As estruturas verbais primárias representam, de alguma forma, os moldes ocos
que aguardam serem preenchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade,
sua história e situação geográfica. Reciprocamente, contudo, para sua forma-
ção todo símbolo necessita das estruturas dominantes do comportamento cog-
nitivo inato do sapiens. Assim, os níveis da educação” se sobrepõem na for-
mação do imaginário: em primeiro lugar encontra-se o ambiente geográfico
(clima, latitude, localizações continentais, oceânicas, montanhosas etc.), mas
desde já regulamentados pelos simbolismos parentais da educação, o nível dos
jogos (o lúdico) e das aprendizagens por último. E, finalmente, pelo vel que
René Alleau denomina de “sintomático”, ou o grau dos símbolos e alegorias
convencionais determinados pela sociedade para a boa comunicação dos seus
membros entre si (DURAND, 2001, p. 90-91).
Durand exemplifica com os símbolos da ascensão, para a formação dos quais contribui,
de um lado, o movimento corporal que busca elevar a coluna para a posição ereta; de outro, os
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objetos cósmicos que remetem às idéias de alto e baixo, como a montanha e o abismo; e fi-
nalmente, a experiência sociocultural das “pedagogias da elevação”, com suas visões da que-
da e dos mundos inferior e superior:
Para sistematizar os símbolos e arquétipos, Durand parte da teoria dos reflexos corpo-
rais dominantes, desenvolvida pelo psicólogo russo Vladimir Betcherev, da Escola de Lenin-
grado, nas primeiras décadas do século XX. Os eixos de classificação são buscados ao domí-
nio psicológico, a partir da visão bachelardiana de que os símbolos e metáforas devem ser
julgados por sua força e movimento. Essas “imagens motrizes” são retiradas da reflexologia
de Betcherev e seu conceito de “gestos dominantes”. Trata-se dos “mais primitivos conjuntos
44
rar”, que define a conduta heróica; a dominante nutricional sugere o ato de “incluir” proposto
pela experiência alimentar, que absorve o outro e o integra ao corpo do sujeito, e caracteriza a
conduta mística; e a dominante sexual sugere a ação de “dramatizar” pela conduta de disse-
minador que marca a pulsão sexual animal.
Durand identifica “constelações de imagens [...] estruturadas por um certo isomorfismo
dos símbolos convergentes”, por meio de uma investigação que ele chama “pragmática”, isto
é, que classifica as imagens a partir de uma convergência ou homologia entre elas, em vez de
uma correspondência analógica. Ele explica:
A analogia procede por reconhecimento de semelhança entre relações diferen-
tes quanto aos seus termos, enquanto a convergência encontra constelações de
imagens semelhantes termo a termo em domínios diferentes do pensamento. A
45
dade e adequação direta ao esquema. Durand exemplifica com a roda, grande arquétipo dos
movimentos cíclicos, à qual “não se percebe que outra significação imaginária lhe poderíamos
dar, enquanto a serpente é apenas símbolo do ciclo, mbolo muito polivalente”. Assim, o
símbolo é marcado por uma ambigüidade de sentidos que não existe na imagem arquetípica.
Os símbolos são as “imagens diferenciadas” que os arquétipos assumem em distintas culturas,
forma “singular” surgida geralmente como um “objeto sensível”, uma “‘ilustração’ concreta
do arquétipo do esquema”. Se, de um lado, “o arquétipo está no caminho da idéia e da subs-
tantificação”, de outro, “o símbolo está simplesmente no caminho do substantivo, do nome, e
mesmo algumas vezes do nome próprio” (DURAND, 2002, p. 62).
A partir dessa classificação do imaginário, Durand define como “mito” uma rede sistê-
mica e dinâmica de esquemas, arquétipos e símbolos postos em movimento pelo impulso de
um esquema e que se organiza como uma narrativa:
O mito é já um esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no
qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito
explicita um esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o ar-
quétipo promovia a idéia e que o símbolo engendrava o nome, podemos dizer
que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico ou, como bem
viu Bréhier, a narrativa histórica e lendária (DURAND, 2002, p. 63).
Os esquemas, arquétipos e símbolos isomórficos podem se agrupar em estruturas, carac-
terizadas por “protocolos normativos das representações imaginárias, bem definidos e relati-
vamente estáveis”, mas que implicam “um certo dinamismo transformador” e, por isso, o-
põem-se ao conceito de “forma” por esta se definir como “uma certa parada” e “um certo es-
tatismo” na representação do imaginário. Durand (2002, p. 63-64) define a estrutura como
“uma forma transformável”, que serve de “protocolo motivador para todo um agrupamento de
imagens”. Finalmente, as próprias estruturas são ainda suscetíveis de serem agrupadas em
grupos mais gerais de imagens, que Durand denomina “regimes”.
Os regimes de imagens podem ser deduzidos da própria teoria de Bachelard. Para o
mestre de Durand, “é a nossa sensibilidade que serve de médium entre o mundo dos objetos e
o dos sonhos”, por isso o fenomenólogo suíço utiliza a física qualitativa dos antigos para ele-
ger os quatro elementos como “axiomas classificadores” dos símbolos poéticos. Para o autor,
existe uma “regra fundamental da motivação simbólica” para a qual “todo elemento é bivalen-
te, simultaneamente convite à conquista adaptativa e recusa que motiva uma concentração
assimiladora sobre si” (DURAND, 2002, p. 34-35). Diante da matéria e das coisas, podemos,
portanto, ter duas atitudes, opostas e complementares, de aceitação e adaptação ou recusa e
separação. A partir destas duas atitudes, Durand criará dois regimes para o imaginário.
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A elaboração das constelações de imagens é definida por Durand (2002, p. 52) a partir
da combinação dos reflexos dominantes com o ambiente tecnológico humano: “É um acordo
entre as pulsões reflexas do sujeito e o seu meio que enraíza de maneira tão imperativa as
grandes imagens na representação e as carrega de uma felicidade suficiente para perpetuá-
las”. Assim, por meio da equação de Leroi-Gourhan, que determina que uma força unida a
uma matéria produz um instrumento, Durand (2002, p. 54-55) igualmente afirma que cada um
dos gestos implica uma matéria e suscita uma técnica, um instrumento ou utensílio:
É assim que o primeiro gesto, a dominante postural, exige as matérias lumino-
sas, visuais e as técnicas de separação, de purificação, de que as armas, as fle-
chas e os gládios são símbolos freqüentes. O segundo gesto, ligado à descida
digestiva, implica as matérias de profundidade; a água ou a terra cavernosa
suscita os utensílios continentes, as taças e os cofres, e faz tender para os de-
vaneios técnicos da bebida ou do alimento. Enfim, os gestos rítmicos, de que a
sexualidade é o modelo natural acabado, projetam-se nos ritmos sazonais e no
seu cortejo astral, anexando todos os substitutos técnicos do ciclo: a roda e a
roda de fiar, a vasilha onde se bate a manteiga e o isqueiro, e, por fim, sobre-
determinam toda a fricção tecnológica pela rítmica sexual.
Durand acrescenta o que muito me interessa aqui que essa dinâmica do imaginário
pode, por outro lado, ser marcado por traços de masculinidade ou feminilidade, conforme os
instrumentos e utensílios apareçam relacionados distintamente ao ambiente de homens ou ao
de mulheres na sociedade ou conforme o pai ou a mãe, primeiros representantes respectivos,
para a criança, do masculino e do feminino, assumam, por sua vez, o status de objeto para a
experiência da criança:
Pode-se igualmente, neste ambiente tecnológico imediato, reintegrar o que Pi-
aget chama os “esquemas afetivos” e que não são mais que as relações, caras
aos psicanalistas, do indivíduo e seu meio humano primordial. É, com efeito,
como uma espécie de instrumento que o pai e a mãe aparecem no universo in-
fantil, não instrumentos com uma tonalidade afetiva própria segundo a sua
função psicofisiológica, mas instrumentos rodeados eles próprios de um corte-
jo de utensílios secundários: em todas as culturas a criança passa naturalmente
do seio materno para os diversos recipientes que, quando do desmame, servem
de substitutos do seio. Do mesmo modo, se por um lado o pai aparece na mai-
or parte dos casos como obstáculo possuidor do instrumento alimentador que é
a mãe, também é venerado ao mesmo tempo como uma manifestação enviada
da força de que as armas, os instrumentos de caça e de pesca são os atributos.
Parece-nos assim econômico integrar as motivações do meio familiar nas mo-
tivações tecnológicas (DURAND, 2002, p. 55).
47
cal de se relacionar com o Outro. Isso porque, segundo Durand (2002, p. 56), “o levantar-se, a
posição postural será na maior parte dos casos acompanhada de um simbolismo do pai com
todas as implicações, tanto edipianas como adlerianas, que pode comportar, enquanto a mu-
lher e a e se verão anexar pelo simbolismo digestivo com suas implicações hedonísticas”.
Um imaginário surgido da representação paterna conduzirá, pois, a todos aqueles arquétipos
do combate, da separação entre sujeito e objeto, da negação do Outro e da concepção entre
bem e mal; por outro lado, a experiência do mundo materno vai fazer constelar imagens inspi-
radas na cooperação, na fusão harmônica dos seres, na integração e na aceitação pacífica da
morte como condição da vida renascida, percepção adquirida no reflexo da nutrição, que des-
trói o objeto para fazê-lo renascer como energia vital no organismo que o absorveu.
Recordemos que o segundo e o terceiro gesto dominante, a nutrição e a cópula, estão
unidos entre si, que “a libido na sua evolução genética valoriza e liga afetivamente, de modo
sucessivo mas contínuo, as pulsões digestivas e as sexuais”. Isso leva Durand a afirmar que
pode existir um parentesco “metodológico” ou até uma “filiação” entre a dominante digestiva
e a sexual, por isso ele aproxima as duas estruturas advindas destes gestos e as agrupa num
regime único, enquanto a primeira dominante, postural, sozinha, define o regime opositor:
Ora, é tradição no Ocidente [...] dar aos “prazeres do ventre” uma conotação
mais ou menos tenebrosa ou, pelo menos, noturna. Por conseqüência, propo-
mos que se oponha este Regime Noturno do simbolismo ao Regime Diurno es-
truturado pela dominante postural com as suas implicações manuais e visuais,
e talvez também com as suas implicações adlerianas de agres.53846( )64( )250]TJiucue. O
48
constitutivos dos reflexos posturais”: a verticalização, a visão e a manipulação de objetos
permitida pela libertação das mãos na postura ereta. A “estrutura de imaginação e de represen-
tação” é dominada pelo “mecanismo mental da separação”, seus símbolos “constelam em tor-
no da noção de Poderio” e “a verticalidade do cetro e a agressividade eficiente do gládio são
os símbolos culturais desta dupla operação pela qual a psique mais primitiva anexa o poderio,
a virilidade do Destino, separa dele a feminilidade traidora”. Na base dessas representações
está uma “angústia diante da mudança” a partir de nossas experiências do tempo. Durand
(2002, p. 74) lembra que “as primeiras experiências dolorosas da infância são experiências de
mudança: o nascimento, as bruscas manipulações da parteira e depois da mãe e mais tarde o
desmame”.
Não podemos esquecer aqui o emocionar patriarcal, sugerido por Maturana, marcado
pela grande mudança da infância à vida adulta, pela separação dos mundos e dos indivíduos
no abandono da “biologia do amor”. As exigências dessa separação, se por um lado colorem o
mundo infantil e materno com uma aura de idade de ouro perdida, por outro lado vão conferir
à mãe e ao feminino um valor negativo, de mal e desgraça, de imanência física e animal con-
tra a qual o sujeito que quer se integrar ao sistema cultural deve lutar para libertar-se. Esse
mundo de factividade e destino biológico aparece, segundo Durand (2002, p. 89), nos símbo-
los teriomórficos do Regime Diurno: “Terror diante da mudança da morte devoradora, é assim
que nos aparecem os dois primeiros temas negativos inspirados pelo simbolismo animal”, por
isso, é “na goela animal que se vêm concentrar todos os fantasmas terrificantes da animalida-
de”. Destes símbolos, Durand (2002, p. 85) defende que “o lobo é o animal feroz por excelên-
cia”, o que parece confirmar as teses de Maturana sobre ele ter sido a primeira figuração do
inimigo na história do patriarcado ocidental.
Como vimos, podemos remeter os dois regimes do imaginário propostos por Durand a
uma experiência matrística ou feminina e a uma visão de mundo patriarcal ou masculina e
associá-los, como faz o próprio autor em momentos de sua argumentação, ora ao universo da
percepção do sujeito marcado masculinamente, ora a esse mesmo universo caracterizado pela
experiência de uma feminilidade que, na cultura patriarcal, será sempre entendida como opo-
sição e, portanto, como o mal em si. Essas nódoas fixadas pela experiência dos gêneros em
nossa cultura prolongam-se, certamente, nas narrativas míticas ou literárias produzidas no
ocidente e vão, portanto, de alguma forma “sexuar” os modos de narrar na cultura patriarcal.
49
2.4 O patriarcado e o cânone da narrativa
O crítico literário inglês Robert Graves (2003, p. 12) defende que a linguagem européia
desenvolvida pelo mito poético na Antiguidade, e que permanece como “linguagem da verda-
deira poesia”, caracterizava-se por ser “uma linguagem mágica vinculada a cerimônias religi-
osas populares em honra à deusa-lua ou Musa” e datavam, algumas delas, do Neolítico. No
entanto, Graves observa que essa linguagem foi adulterada na tardia era minóica, quando
invasores da Ásia Central começaram a substituir as instituições matrilineares pelas patrilinea-
res e a remodelar ou a refutar os mitos a fim de justificar as modificações sociais”. Riane Eis-
ler (1989, p. 113), por sua vez, nota que a espada foi o grande instrumento da revolução cultu-
ral que instituiu o patriarcado, mas admite que “havia outro, que a longo prazo tornou-se mais
poderoso: o instrumento do escriba e do estudioso a pena ou estilete para marcar as tábuas
com palavras”. A autora observa que o mundo antigo recontou a história e remodelou as idéi-
as quando inventou a escrita. Citando a antropóloga Ruby Rohrlich-Leavitt, Eisler (1989, p.
131) defende que quando as formas da deusa foram substituídas por deuses masculinos, i-
gualmente foram reservados a indivíduos masculinos os empregos nos templos e palácios
dedicados à sagrada função da escrita; a partir daí, a história ganhou cores de uma visão an-
drocêntrica através de uma escrita masculinizada.
A evolução do relato mítico e da escrita narrativa no ocidente deu-se no interior do pa-
triarcado, em cuja tradição, conforme lembra Oliveira, “a literatura foi domínio reservado do
mundo cultural masculino”. Lembremos, como informou Maturana, que o patriarcado, no
encontro com a cultura matrística, não poderia aceitá-la pacificamente, pois isso significaria a
perda de sua própria identidade cultural:
A criação artística e literária, enquanto elã de comunicação com o público
gesto, palavra ou imagem endereçados a todos, anônimos, desconhecidos –,
enquanto voz voltada para o mundo, não poderia, por isso, ser voz feminina. A
não ser como transgressão da regra fundadora que, separando o Masculino e o
Feminino, atribui a uns e outros estilos, modos de expressão que lhes são pró-
prios e não apropriáveis pelo outro sexo (OLIVEIRA, 1993, p. 114).
Dos tempos pré-patriarcais, portanto, Beauvoir (1970, p. 90) informa com pesar: “Essas
épocas remotas não nos legaram nenhuma literatura”. As primeiras obras do ocidente, aquelas
sobre as quais se fundou uma história literária baseada na perseguição dos grandes modelos, é
eminentemente de origem patriarcal e prolonga, artisticamente, as redes de conversações insti-
tuídas pelo emocionar masculino:
50
51
condicionamento e impulsividade de um estado pré-consciente e ainda sem ego” (NEU-
MANN, 2003, p. 101). Ao sujeito masculino será atribuído o poder da conquista e da vitória
sobre uma pré-consciência que o integrava na totalidade sistêmica do universo e não distin-
guia o humano como sujeito autoconsciente e dominador da natureza circundante, pois foi a
experiência patriarcal com o pastoreio que, como vimos, fez surgir a emoção que vai propor,
como imperativo de sobrevivência, a necessidade da apropriação e da vitória sobre o outro.
As batalhas e guerras, com seu desejo de vitórias e
52
que pertence” (1970, p. 84), o modelo do herói mítico e narrativo que vai protagonizar os rela-
tos da literatura ocidental, surgida no seio da cultura patriarcal que se tornará hegemônica.
Se não dispomos hoje de narrativas escritas produzidas pelas sociedades matrísticas,
temos ao menos, para comparar com as expressões estéticas do patriarcado, as artes plásticas.
Sobre elas, Eisler (1989, p. 45-49) afirma que, “em agudo contraste com a arte posterior, um
tema notável por sua ausência na arte neolítica é o das imagens idealizando o poder armado, a
crueldade e a força baseada na violência”. Falta a essa arte as imagens, comuns ao patriarca-
do, das cenas de batalhas e dos “guerreiros nobres”, como também não existem nela “sinais de
‘conquistadores heróicos’ arrastando cativos em correntes ou outros indícios de escravidão”.
As manifestações físicas da religiosidade são outro indício, para Eisler, de que a reverência do
poder, da agressividade, da competição e do combate não constitui os traços privilegiados da
ética e da mística matrilinear. Esta cultura, representada na Europa especialmente pela arte
cretense, não idealiza a guerra, mas prima pelos mbolos associados à natureza, demonstran-
do um respeito pela harmonia e pelo mistério da vida.
Ao contrário, “na essência do sistema dos invasores, havia a importância do poder que
toma a vida, ao invés de dá-la”, movimento que é simbolizado pela espada “masculina”, que,
segundo “os entalhes rupestres kurgos primitivos, esses invasores indo-europeus literalmente
cultuavam” (1989, p. 80). Os homens fisicamente mais fortes e violentos, por seu “valor téc-
nico na conquista e pilhagem”, começaram a ser “altamente honrados e recompensados”, e os
transportes dos mais bravos, que se tornavam líderes políticos das hordas, eram fabricadas em
metais nobres, como a prata e o ouro (1989, p. 129). Começam então a associar-se ao univer-
so masculino os símbolos e arquétipos que vão compor as constelações durandianas do Regi-
me Diurno do imaginário, definidos pela estrutura heróica e, como vimos, agrupados no ar-
quétipo da luz celestial e nos esquemas da ascensão e do combate, este último denominado
por Durand de esquema “diairético”.
Os símbolos ascensionais representam a vontade da conquista sobre o elemento natural,
o esforço do espírito para elevar-se sobre a animalidade e a temporalidade que destrói a exis-
tência física. “Poder-se-ia dizer que neste estádio conquista de uma segurança metafísica e
olímpica”, conclui Durand (2002, p. 145). Os símbolos da imanência que precisam ser venci-
dos são, por outro lado, concebidos como formas do feminino: “É a feminilidade terrível, a
libido destruidora [...] que é aqui exorcizada pela reconquista dos símbolos da virilidade. O
pensamento toma um estilo heróico e viril desde o ato guerreiro ou o feito cinegético” (DU-
RAND, 2002, p. 144). Alguns dos símbolos, apontados pelo autor, que constelam em torno
deste esquema, por sua referência à conquista do alto e da vida espiritual, são a escada, a
montanha, a asa, a águia, a flecha – que Durand define como a “arma transcendente por exce-
53
lência” (DURAND, 2002, p. 159), uma vez que se associa tanto ao esquema da ascensão
quanto ao do combate –, o cetro do soberano, o céu, a cabeça e seu análogo simétrico, a cau-
da. Pela conquista do alto e do mundo espiritual, chega-se ao arquétipo da luz uraniana e de
seus símbolos privilegiados: o sol, o ouro, a coroa, o olho e a palavra, dentre outros, que re-
metem, todos, à visão da conquista racional do mundo, da vitória da luz do espírito sobre as
trevas da matéria.
Finalmente, como a conquista se realiza por um esforço de movimento agressivo da
vontade contra o Outro aniquilador, completam a estrutura heróica do Regime Diurno os sím-
bolos diairéticos ou de combate: “Esquemas e arquétipos de transcendência exigem um pro-
cedimento dialético: a intenção profunda que os guia é intenção polêmica que os põe em con-
fronto com os seus contrários. A ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as tre-
vas” (DURAND, 2002, p. 158, grifos do autor). Para melhor explicar o esquema diairético,
Durand recorre ao “complexo de Atlas” proposto por Bachelard, segundo o qual um esforço
rumo à verticalização é acompanhado de um “sentimento de contemplação monárquico” que
inferioriza as forças contrárias “para melhor exaltar o gigantesco” e as ambições dos ideais de
ascensão:
O dinamismo de tais imagens prova facilmente um belicoso dogmatismo de
representação. A luz tem tendência para se tornar raio ou gládio e a ascensão
para espezinhar um adversário vencido. se começa a desenhar em filigrana,
sob os símbolos ascensionais ou espetaculares, a figura heróica do lutador er-
guido contra as trevas ou contra o abismo (DURAND, 2002, p. 159).
Nesta luta heróica que parece ter sido a origem dos mitos ocidentais da vitória do cava-
leiro sobre os monstros femininos e ctônicos, aparece como protagonista o herói solar, “guer-
reiro violento” que servirá de modelo à narrativa épica e posteriormente aos seus desdobra-
mentos nas novelas de cavalaria e nos romances que as seguem. A este modelo arquetípico do
Regime Diurno, Durand (2002, p. 161) vai opor um “herói lunar”, que, associado ao astro
feminino e não mais ao sol urânico e diurno, mostrará um comportamento “resignado”. O
símbolo mais evidente do esquema diairético é a arma de combate, figuração ao mesmo tem-
po de poder e pureza, já que “o combate se cerca mitologicamente de um caráter espiritual, ou
mesmo intelectual”. Ao lado dela aparecem o cinto e o nó, o ar, o fogo e a água límpida, os
dois últimos como imagens da espiritualização e de uma “metafísica do puro” (DURAND,
2002, p. 178).
O esquema diairético é, pois, uma espécie de coroação lógica do esquema ascensional e
do arquétipo da luz celestial. Durand (2002, p. 179-180) argumenta que, se nosso reflexo pos-
tural conduz o corpo à posição ereta é “para termos a faculdade de melhor separar, de melhor
54
discernir e de ter as mãos livres para as manipulações diairéticas e analíticas”. Assim, o es-
quema diairético é uma conseqüência natural dos outros dois grupos de imagens do Regime
Diurno. Por outro lado, trata-se de um regime “essencialmente polêmico”, que se erige so-
bre a marca da antítese, os símbolos da virilidade como oposição a outros grupos de imagens
o céu contra a queda, a luz contra a treva e a transcendência contra a imanência, em que o
segundo termo de cada par é associado ao elemento feminino, “a verticalidade definitiva e
masculina contradizendo e dominando a negra e temporal feminilidade”. Trata-se da cosmo-
visão patriarcal, que, como observou Maturana, concebe o mundo dividido em amigo ou ini-
migo, bom ou mau. Citando Minkowski, Durand (2002, p. 188) conclui que
todas as representações e todos os atos são “encarados do ponto de vista da an-
títese racional do sim ou do não, do bem ou do mal, do útil e do prejudicial...”
Minkowski traça um quadro completo dessas antíteses esquizomorfas, nas
quais o pensamento se opõe ao sentimento, a análise à penetração intuitiva, as
provas à impressão, a base ao cimo, o cérebro ao instinto, o plano à vida, o ob-
jeto ao acontecimento e, enfim, o espaço ao tempo.
Vemos, portanto, que todo o imaginário vinculado à jornada do herói que deu origem à
narrativa ocidental marca o protagonista com os traços masculinos da transcendência e da
vitória sobre o inimigo, concebido este com os atributos do elemento feminino. São todos
expressão de uma mesma simbólica diurna: Ulisses enfrentando o mar informe e nefasto, Ar-
tur ou Carlos Magno e seus cavaleiros lutando contra bruxos, dragões ou muçulmanos ou Ro-
binson Crusoé organizando uma natureza caótica e pelejando contra as injunções da brutali-
dade marj1ard2.1653(í)-2.1655816558(v)-0.295585(r)2.80561(95585(n)-0.295585(t)-2)3.74(d)-0.294974(–95585(t)-2.1643294974(2.1653(í)-2o)-2.16436(a)3.74(n)-0.295585(d)-0.216436(o)-0.2957(o)-0..45995( )-50.1761(r)295585( )-160.242(u)-0.2955852.16436(s)-1.1761(r)r)-7.20151(e)3.74(n)-0.295585()3.74(o)-0.29557(o)-0..1714(q)-0.oovrc raoado vn uciossou o ruirooitriiãoda
55
mas ela também constitui a condição psíquica da criança. Quando a autoconsciência desperta,
“a participação é progressivamente desfeita, e a consciência começa sua própria condição
prévia, entrando em oposição ao inconsciente. A partir disto o eu começa a diferenciar-se da
mãe e sua particularidade pessoal vai-se tornando cada vez mais distinta”.
Quero acrescentar às afirmações de Jung e Maturana a observação de Campbell (1990,
p. 147) de que a passagem de uma esfera a outra, da experiência matrilinear à cultura adulta
patriarcal, realiza-se a partir de diferentes emoções para o menino e para a menina. Para esta,
a passagem se de maneira mais ou menos natural, por duas razões: a primeira é que a me-
nina torna-se adulta por um imperativo da natureza, a primeira menstruação; em segundo lu-
gar, quando precisa individuar sua conduta, toma por modelo a feminilidade representada pela
mãe e não precisa, portanto, abandonar o paradigma com o qual conviveu durante toda a in-
fância. Para o menino, porém, de um lado, individuar-se significa substituir voluntariamente o
modelo materno pelo paterno, de outro, tornar-se adulto só ocorre por uma intenção, e não por
um evento natural, que no sujeito masculino, praticamente inexiste. Tornar-se homem adulto,
pois, significa esforçar-se por se separar da mãe para encontrar energia em si mesmo e seguir.
Assim, a esfera do pai é o mundo da ação adulta. Por isso, Campbell (1990, p. 137) a-
firma que a “busca do pai é uma aventura heróica superior, para os jovens”. Trata-se da aven-
tura “de procurar o seu próprio horizonte, a sua própria natureza, a sua própria fonte”. O pai é
a “mãe” de um “segundo nascimento” (CAMPBELL, 2002a, p. 154) e é nisso que Campbell
(2002a, p. 134) o significado dos ritos de iniciação masculinos, nos quais “os garotos são
introduzidos num interessante novo mundo objetivo que lhes compensa a perda da mãe; e o
falo masculino, em vez do seio feminino, torna-se o ponto central (axis mundi) da imagina-
ção”. Tais rituais de passagem são sempre marcados por inúmeras provas em que o iniciado
precisa provar sua força de vontade e seu poder de ação e de vitória sobre a morte. Para Mele-
tínski (1987, p. 309), os motivos mitológicos que caracterizam a experiência dos ritos de ini-
ciação serão empregados no conto maravilhoso e marcarão “etapas no caminho do herói”,
tornando-se “símbolos do próprio heroísmo”.
Com o patriarcado e a supremacia masculina, eleva-se, portanto, o reino do homo faber,
como defende Beauvoir (1970, p. 95-96): “Foi a passagem da pedra ao bronze que lhe permi-
tiu realizar, com seu trabalho, a conquista do solo e de si próprio.” Enquanto o agricultor ma-
trístico “está sujeito aos acasos da terra, das germinações, das estações, é passivo, conjura e
espera”, o operário ocupado na fabricação de armas “molda a ferramenta de acordo com seu
objetivo, impõe-lhe com as mãos a forma de seu projeto” e vence a “Natureza inerte”, afir-
mando-se “como vontade soberana”. Sua vitória se deve a uma ação, não a uma espera, por
isso o imperativo, na cultura patriarcal, é modificar o mundo pela ação.
56
Neumann (2003, p. 102) nota que a atividade esforçada do ego consciente sobre a maté-
ria inconsciente constitui um “incremento da masculinidade” e substitui “a atuação dos impul-
sos inconscientes pela ação consciente”. A partir da experiência do homo faber, “o ego paula-
tinamente se desenvolve como agente” e o “estado de submissão ao conhecimento revelado se
torna a luz do conhecimento consciente”. Por isso o mito se organiza como relato e tem na
ação o seu móvel principal. Não existe narrativa sem ação, mas isso talvez seja um imperativo
do emocionar patriarcal. O agente da narrativa, por sua vez, será um representante modelar,
pois somente os “grandes indivíduos” são “portadores-representantes da consciência do gru-
po. Eles são os precursores institucionais e os líderes que o grupo segue” (NEUMANN, 2003,
p. 102).
2.4.3 Fábula como expressão da vida e da ordem
O mito e a narrativa relatam a instituição de um cosmo e uma ordem se opondo a um
espaço caótico e desorganizado. Assim, toda narrativa será o percurso, num tempo e num es-
paço, de uma ação heróica em combate contra forças de destruição, o que equivale a dizer que
toda fábula reproduz um desejo de cosmicizar o caos, que Neumann resume dizendo:
A luta contra esse medo, contra o perigo de ser engolido de novo pelo caos i-
nicial, de ser dominado pela regressão, anula a emancipação, representada nas
várias versões da luta com o dragão; e essa luta completa a autonomia do
ego e da consciência. Nessa luta, o filho dos Pais Primordiais deve provar ser
um herói, devendo o ego transformar-se de algo criado e impotente em algo
criador e potente. O herói, com a sua vitória sobre o dragão, é um novo come-
ço, é o início da criação, que acontece através do homem e é chamada cultura,
ao contrário da criação da natureza, que precede a existência humana, sobre
cujo início ela lança uma poderosa sombra (NEUMANN, 2003, p. 101).
No patriarcado, esse relato atribui ao agente da ordem os valores positivos da virilidade,
enquanto o elemento feminino caracteriza as forças do inimigo destruidor e caotizante. As
culturas pastoris atribuem a evolução de suas comunidades ao sujeito masculino, na figura de
um deus guerreiro ou caçador, responsável pela confecção das primeiras ferramentas necessá-
rias para a fundação da cultura, em geral armas para abater a presa ou defender o grupo de
agressores.
A cultura nômade pastoril é conquistadora e expansionista. Provavelmente muito dos
bens que seus membros obtiveram e que foram necessários ou até fundamentais para um a-
vanço cultural nos hábitos da comunidade pode ter sido adquirido pela apropriação de culturas
57
exógenas, daí os mitos soberanos do patriarcado se referirem a heróis que conquistam seus
talismãs pela luta, pelo roubo ou pelo engano. Como os “novos senhores” adotaram “tecnolo-
gias, valores e modos de vida mais avançados das populações conquistadas”, boa parte da
cultura matrística deve ter sido incorporada às culturas patriarcais por apropriação, pilhagem
ou comércio no contato das hordas nômades com grupos estranhos. Assim pelo menos ficou
registrado nos mitos dos heróis conquistadores e assim foi definida a matriz da fábula mítica e
literária ocidental, cujos protagonistas são combatentes e instituidores da ordem e da vida a
partir do exercício de uma vontade, da vitória sobre um inimigo e da conquista de um bem
necessário à sobrevivência e à harmonia do grupo ou, no caso do romance burguês individua-
lista, do bem-estar do próprio sujeito litigante.
2.4.4 O espaço conquistado pela ordem
Cosmicizar o caos ou estabelecer uma ordem através de uma ação pressupõe um movi-
mento, que envolve, por sua vez, os fatores do tempo e do espaço. Como nota Meletínski
(2002, p. 124), “a temática da criação está ligada a uma dinâmica no tempo”, na qual “desta-
ca-se o motivo do movimento no espaço e o entrecruzamento de diferentes zonas e mundos”.
Bachelard, n’A poética do espaço, fala de uma oposição entre um espaço da intimidade,
onde vivemos felizes, e que é representado pela casa, e de outro, hostil, misterioso e periféri-
co, o espaço da floresta para o caçador ou do mar inóspito para o marinheiro. Entretanto, exis-
te ainda um terceiro espaço, localizado no desejo e no devaneio, que Bachelard (1988, p. 149)
define com uma antimetábole: “Quem tem um palácio sonha com uma choupana, quem tem
uma choupana sonha com um palácio”. Este último é um espaço utópico, surgido na conflu-
ência dos outros dois: o espaço conhecido, da segurança; e o desconhecido, onde se enfrentam
os inimigos, se sofre e luta.
Para compreender culturalmente esta estratificação do espaço, recorro à exploração que
Eliade (2001, p. 25-33) faz da geografia religiosa em seu O sagrado e o profano, onde o autor
mostra que não existe espaço homogêneo para uma cultura, que sempre separa um espaço
sagrado, “forte” e “significativo”, em oposição a “espaços não-sagrados”, inconsistentes e
“amorfos”, toda “a extensão informe, que o cerca”. Esta ruptura no espaço “funda ontologi-
camente o mundo” da cultura num eixo central, onde vive o homem para quem este lugar se
torna o “Centro do Mundo”, o “cosmo”, primeira localização de um espaço tópico, isto é, co-
nhecido. Tudo o que é excluído e pertence à periferia deste centro é espaço profano e hostil à
cultura, é o espaço do caos indomado. “Sedento do ser”, este homem religioso tem horror do
58
caos que circunda o mundo da cultura e ameaça submergi-la e retirar-lhe o sentimento totali-
zante da identidade e da unidade. Assim, o espaço desconhecido na periferia da cultura, “es-
paço não-cosmizado porque não consagrado”, geografia do amorfo onde o membro da comu-
nidade não consegue se orientar, é o espaço do “não-ser absoluto”, da aniquilação e da morte,
cujos habitantes são demonizados, por constituírem o inimigo da cultura central (ELIADE,
2001, p. 60).
Assim, se tomarmos a hierarquia espacial definida por Bachelard e Eliade, vemos re-
produzido, na gramática espacial do mito e da narrativa, o eixo opositor da ordem e do caos,
nas funções respectivas de um espaço cosmicizado e um espaço caótico. Enquanto o primeiro
constitui o espaço de intimidade do herói, seu lugar seguro e conhecido, sede da harmonia e
bem-estar do protagonista, o outro é o ambiente conflituoso instituído pela ação de forças an-
tagonistas e que geram a ação narrativa, cujo movimento intenta restituir a ordem prejudicada.
O espaço utópico, por sua vez, existe sempre como valor teleológico, desejo que impulsiona o
movimento do herói, causador da fábula e do enredo, e às vezes passa a existir como instância
espacial localizada ao final da narrativa, se couber ao herói a vitória sobre as forças do caos e
a conquista do bem desejado.
Por outro lado, se entendida à luz da tese de Maturana e dos outros autores tematizado-
res do conflito das culturas matrística e patriarcal, veremos que uma hierarquização do espaço
num relato de conquista como o que caracteriza os mitos e narrativas ocidentais cabe melhor
numa rede de conversações própria à cultura pastoril do que à cultura agrícola das sociedades
matrísticas. As primeiras narrativas heróicas são trazidas ao seio da comunidade por viajantes
que enfrentaram mundos novos e relataram aos seus ouvintes as maravilhas experimentadas
fora do espaço central e sedentário do grupo estável. Trata-se, por outro lado, de experiências
melhor imaginadas na rotina do sujeito masculino, cuja convivência com o alheio e o estranho
é mais freqüente do que no universo feminino. Como observa Neumann (2003, p. 112):
O grupo masculino, dado a perambular, caçar e guerrear, mesmo quando per-
manece domiciliado num núcleo matriarcal familiar, é um grupo nômade de
caçadores, bem antes dos criadores nômades de gado, que surgiram com a
domesticação dos animais.
O sistema matriarcal de exogamia dificulta a formação de grupos masculinos,
porque os homens são obrigados a casar fora da sua tribo e, por isso, se disper-
sam, tendo de viver matrilocalmente, como estranhos na tribo da esposa. O
homem é um estrangeiro no clã em que se casou; mas, como membro do seu
próprio clã, encontra-se alienado do seu local de residência. Isto é, quando,
como era originalmente o caso, vive matrilocalmente, no local da residência
de sua esposa, é um estranho tolerado; mas, em seu local nativo de residência,
onde os seus direitos ainda valem, ele só vive ocasionalmente.
59
O primeiro narrador foi provavelmente o caçador e depois o pastor condutor de reba-
nhos, e as primeiras narrativas constituíam relatos que mapeavam o espaço percorrido pelo
sujeito no mundo hostil e profano além das fronteiras de sua cultura. A partir do conflito das
hordas nômades com outros grupos, dentre eles os de sociedades matrilineares, este percurso
passa a ser conduzido por uma vontade de conquista e apropriação do espaço exterior, para
convertê-lo em espaço interior:
Um território desconhecido, estrangeiro, desocupado (no sentido, muitas ve-
zes, de desocupado pelos “nossos”) ainda faz parte da modalidade fluida e lar-
var do “Caos”. Ocupando-o e, sobretudo, instalando-se, o homem transforma-
o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição ritual da cosmogonia.
[...] “Situar-se” num lugar, organizá-lo, habitá-lo são ações que pressupõem
uma escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao
“criá-lo”. Ora, esse “Universo” é sempre a réplica do Universo exemplar cria-
do e habitado pelos deuses (ELIADE, 2001, p. 36).
Desse modo, se no nível da fábula, a narrativa ocidental se caracteriza por uma ação
masculina instauradora da ordem, no nível da ambientação espacial, repete-se o imaginário
viril de saída de um espaço fixo e organizado para a conquista de um espaço hostil e caótico,
num impulso expansionista e de apropriação. Se todo enredo funda-se sobre a ação, toda ação
é sempre caracterizada por uma mudança, e toda mudança reconfigura uma situação espacial.
2.4.5 O tempo linear e direcionado
Durand (2002, p. 188) afirma que “todo o sentido do Regime Diurno do imaginário é
pensamento ‘contra’ as trevas, é pensamento contra o semantismo das trevas, da animalidade
e da queda, ou seja, contra Cronos, o tempo mortal”. A linguagem matrística concebe o tempo
como um movimento cíclico, onde vida e morte se sucedem infinitamente na manutenção da
harmonia cósmica. A imanência do tempo absoluto pode ser vencida por uma vontade que
expulse a morte do cenário e institua um tempo linear e evolutivo, da escravidão animal às
injunções da natureza eterna até uma esfera olímpica de espiritualidade, cujo sentido final seja
uma superação histórica do tempo sem direção:
A experiência de “ser diferente”, que é o fato primário da consciência do ego e
ocorre sob a luz crescente da alvorada da discriminação, divide o mundo nos
opostos de sujeito e objeto; a orientação no tempo e no espaço sucede a exis-
tência vaga do homem na difusa névoa da pré-história, constituindo os primei-
ros momentos da sua história (NEUMANN, 2003, p. 91).
60
A experiência masculina do movimento cria, portanto, uma emoção diferente do tempo,
uma concepção linear, com um princípio, um meio e um fim, que depois é organizado na es-
trutura narrativa unidirecional. Beauvoir (1970, p. 83) observa que as atividades da mulher, ao
contrário, sugerem um tempo estável: “Os trabalhos domésticos a que está votada, porque
eles são conciliáveis com os encargos da maternidade, encerram-na na repetição e na imanên-
cia; reproduzem-se dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua quase sem modifica-
ção através dos séculos: não produzem nada de novo”. Essa divisão de tarefas masculinas e
femininas ocorre mesmo nas sociedades agrícolas. Darcy Ribeiro ([1981], p. 76), na sua obra
mais comentada, O processo civilizatório, mostra que a Revolução Agrícola atribuiu às mu-
lheres as tarefas de semeadura, colheita e preparo dos alimentos cultivados, enquanto aos ho-
mens couberam trabalhos fisicamente mais exigentes, como a derrubada dos bosques e o pre-
paro do terreno para o cultivo. São, contudo, as masculinas, todas tarefas episódicas, com co-
meço, meio e fim, “porque concentradas no tempo”, enquanto às mulheres reservam-se “tare-
fas cotidianas que, como a manutenção da casa, o preparo da comida, a coleta, o cuidado das
crianças, exigem um esforço continuado e sem interrupções para repouso”.
No caso da cultura matrística, predomina o sentimento feminino de um tempo cíclico,
uma vez que as tarefas principais dessa economia concentram-se nos trabalhos contínuos. As
sociedades pastoris, ao contrário, são mantidas pelas atividades masculinas da caça e da con-
dução de rebanhos, do deslocamento e do combate, atividades que têm um início e um fim
bem determinados, lineares como será o tempo instituído por suas redes de conversações.
É o deus masculino que inicia o tempo histórico e linear. A visão jucaica e a cristã que a
seguiu atuam num plano religioso histórico, com um princípio e um fim, uma queda e uma
salvação históricas, cuja noção de eternidade evade-se da imanência no mundo terrestre para
localizar-se, paradoxalmente, na história, seja num momento anterior à conquista humana do
planeta, seja num apocalipse final, na parúsia de Cristo ou na Jerusalém celeste. Atribuindo a
noção de tempo cíclico às formas da Antiguidade, Maria Nazareth Alvim de Barros (2004, p.
175) confere principalmente ao Cristianismo, a “religião do filho”, a ruptura da circularidade
temporal: “A crença de que Cristo viveu, sofreu e morreu por nós uma única vez instituiu um
tempo linear, marcado por um começo, um meio e um fim”. Por isso Neumann afirma que a
“Mãe” é eterna num sentido bem diferente da eternidade do “Pai”.
Portanto, outra característica da narrativa tradicional no ocidente a instituição de um
tempo para a execução de uma ação e o desenrolar de uma trama, num trajeto marcado pela
linearidade e pela unidade fabular de um começo, meio e fim – relaciona-se também com uma
linguagem bastante característica da cosmovisão patriarcal.
61
2.4.6 A voz do “logos” condutor
Erich Neumann (2003) atribui à evolução do patriarcado a instituição de um tipo de
consciência das coisas que vai resultar numa visão racionalista do mundo. Para o autor, esta
seria a origem da cultura em oposição à natureza e da civilização em contraste com a selvage-
ria. Expurgando a teoria do autor de uma possível ideologia patriarcal, que coloca o sujeito
masculino no princípio da cultura, podemos talvez compreender melhor o que se chama “ra-
cionalismo” e separá-lo daquilo que Maturana (2004, p. 90-91) chamou de “pensamento filo-
sófico e científico”, e cuja origem atribuiu a uma nostalgia do convívio harmônico verificado
nas sociedades matrísticas. Se é verdade que o pensamento filosófico e científico nasce da
necessidade de se estabelecer fundamentos para o debate democrático, com o objetivo de pôr
um fim na barbárie provocada justamente pelos combates contínuos entre subjetividades pa-
triarcais desejosas de apropriação, é verdade também que ele surge no interior do patriarcado
e se institui a partir das redes de conversações instituídas pela cultura pastoril: “No curso do
tempo, houve um constante reforço do grupo masculino, que, mais tarde, com o desenvolvi-
mento político-guerreiro e econômico-industrial, levou aos grupos masculinos organizados
em cidades e estados” (NEUMANN, 2003, p. 112). Essas organizações se edificam, portanto,
sobre redes de conversações patriarcais, caracterizadas pelo emocionar masculino.
Quando o sujeito masculino é associado a uma espiritualidade urânica, o “céu” não é
considerado apenas como a morada das divindades masculinas, mas simboliza “o princípio ar-
espírito-pneuma que, na cultura masculina, não levou apenas à divindade patriarcal, mas tam-
bém à filosofia científica”. O renascimento do menino iniciado é, como sabemos, um nasci-
mento espiritual do “homem superior”, associado “à consciência, ao ego e à força de vonta-
de”, princípios “da ação, do conhecimento e da criação conscientes, distintos do impulso cego
de forças inconscientes(NEUMANN, 2003, p. 113-114). Vem dos ritos de iniciação muitos
dos símbolos da luz urânica e dos esquemas ascensionais e diairéticos de que fala Durand:
O fogo e outros símbolos de alerta desempenham papel importante nos ritos
de iniciação dos jovens, que precisam se manter “acordados”, ou seja, apren-
der a vencer o corpo e a inércia do inconsciente e lutar contra o cansaço. Man-
ter-se desperto e suportar o medo, a fome e a dor caminham lado a lado como
elementos essenciais do fortalecimento do ego e da educação da vontade. A-
lém disso, a instrução e iniciação no conjunto tradicional de costumes com-
põem os ritos tanto quanto as provas de força de vontade que devem ser feitas.
[...] Todos esses elementos são expressões [...] do mesmo espírito masculino,
que é propriedade específica do grupo masculino (NEUMANN, 2003, p. 114).
62
É o que faz Neumann concluir, provavelmente de maneira injusta, pois eivada dos valo-
res patriarcais, que “o desenvolvimento da cultura masculina é o desenvolvimento da consci-
ência” (NEUMANN, 2003, p. 114). Não obstante algum exagero da parte do autor na atribui-
ção da origem cultural à supremacia do patriarcado, é inevitável inferir que, pelo menos nos
moldes em que o racionalismo se desenvolveu no ocidente, ele vem de uma experiência da
cultura patriarcal.
Maturana mostrou como a experiência mística pastoril é ao mesmo tempo uma tomada
de consciência da existência individual e solitária. Neumann (2003, p. 115-116) observa, por
sua vez, que “o grupo masculino é o lugar de nascimento, não da consciência e da ‘mascu-
linidade superior’, mas também da individualidade e do herói”. É o que leva Neumann a afir-
mar que, com o mito do herói, a humanidade entra “numa nova fase do desenvolvimento esta-
dial”, que ele identifica com um pensamento consciente, mas que poderia melhor ser definido
como a concepção antitética do pensamento diurno apontado por Durand. “Ao Regime Diurno
da imagem”, esclarece este (DURAND, 2002, p. 180), “corresponde um regime de expressão
e de raciocínio filosóficos a que se poderia chamar racionalismo espiritualista”, que, segundo
o autor, vai evoluir para as formas de pensamento reducionistas do pensamento ocidental:
“Todo o dualismo cartesiano, toda a inspiração do método de clareza e de distinção é, de fato,
na nossa imaginação ocidental, ‘a coisa do mundo mais bem partilhada’. O triunfo do raciona-
lismo é sempre prefigurado por uma imaginação diairética” (DURAND, 2002, p. 182).
Assim, se é difícil concordar com Neumann de que “o herói é o precursor arquetípico da
humanidade em geral”, é bem mais fácil aceitar que o mesmo herói precursiona as formas
narrativas do ocidente patriarcal. Afirmando o socius da cultura patriarcal contra o Outro,
hostil, inimigo, estrangeiro e caotizador, a voz consciente deste herói vai transmitir-se, na
condução de um narrador logocentrado, numa forma linear, concentrando sobre os seus feitos
a primazia de um ethos narrativo que quer para o relato uma direção consciente, um início e
um fim para a ação ordenadora. Um herói modelar precisará sempre de um narrador modelar
que seja sua autoconsciência e a consciência de seus atos.
A voz unidirecional dos narradores na tradição do ocidente reproduzem, assim, a cons-
ciência unidirecional da atividade expansionista e autoconsciente da emoção patriarcal. Sem
voz, o Outro pode existir integrado na consciência diairética que o exclui e o simboliza
como antagonista das forças que o protagonista e seu narrador querem expurgadas da jornada
heróica.
63
2.5 Alteridade, feminino e indigenismo
O Outro nasce no patriarcado, pois só o emocionar pastoril segrega as coisas e os seres e
faz, de outros sujeitos, objetos. A alteridade vem quando o homem separa o ego do cosmo,
o humano da vida universal. “La experiencia de lo sobrenatural es experiencia de lo Otro”, diz
o poeta Octavio Paz (1972, p. 129). “‘Otredade’ es extrañeza, estupefacción, parálisis del
ánimo: assombro”. A alteridade é a experiência de um mistério, o sentimento de uma realida-
de inexplicável, “la inaccesibilidad absoluta”. O Outro é “un ser que es tanbién el no ser”.
Beauvoir (1970, p. 89), por sua vez, nota que “o homem pensa pensando o Outroe
“aprende o mundo sob o signo da dualidade”. Embora essa dualidade o implique, original-
mente, uma distinção de caráter sexual, “sendo diferente do homem que se põe como o Mes-
mo é na categoria do Outro que a mulher é incluída” e, portanto, “o Outro envolve a mulher”
(grifo da autora). É por isso que, como mostra Meletínski (2002, p. 108-109), “à medida que
se desenvolviam as relações patriarcais e a formação de uma mitologia celeste superior (o
deus-fundador, marido da mãe-terra, é freqüentemente identificado com o céu), a Grande Mãe
é mais freqüentemente identificada com o caos, com os velhos deuses”.
A mulher e o Outro, portanto, são identificados com o natural e o selvagem. É assim
que, associando, como Maturana, a cultura pré-patriarcal com as emoções da infância pessoal
e do convívio no mundo da mãe, Neumann (2003, p. 93) aproxima, como formas semelhantes
de perceber o mundo, a visão da mulher, da criança e do membro de sociedades contemporâ-
neas ditas “primitivas”. Por outro lado, os modos de viver ameríndios foram identificados
com formas de pensamento e organização, senão matrísticas, ao menos semipatriarcais, isto é,
reveladoras de traços estranhos ao patriarcado. Como vimos acima, Campbell (2002b, p. 79-
80), por exemplo, classifica de “matriarcais” as sociedades coletoras tropicais e mostra que a
agricultura, e não o pastoreio, foi a matriz econômica da maior parte destas comunidades.
Para Todorov (2003, p. 5-7), o evento que deflagrou a necessidade de aceitar o que ha-
via sido suprimido pelo pensamento ocidental deu-se com a descoberta da América por Co-
lombo. Num alargamento da atitude patriarcal às dimensões globais, o mecanismo expansio-
nista levado adiante com as grandes navegações vai submeter os povos colonizados às mes-
mas injunções impostas ao Outro feminino. Como havia feito com a mulher no passado,
o colonizador masculino vai reificar o Outro americano, confinando-o a uma dimensão pura-
mente física, material e natural: “Colombo fala dos homens que unicamente porque estes,
afinal, também fazem parte da paisagem. Suas menções aos habitantes das ilhas aparecem
sempre no meio de anotações sobre a Natureza, em algum lugar entre os pássaros e as árvo-
res” (TODOROV, 2003, p. 47). Da mesma forma que o elemento feminino no patriarcado, o
64
ameríndio é tratado como selvagem porque distante do que se conhece como cultura: “A pri-
meira referência aos índios é significativa: ‘Então viram gentes nuas...’ (11.10.1492). É bas-
tante revelador que a primeira característica desta gente que chama a atenção de Colombo seja
a falta de vestimenta que, por sua vez, são símbolos de cultura” (TODOROV, 2003, p. 48).
No escambo que praticará com os nativos, aliás, o patriarcado vai oferecer o que tem de sobra
a cultura em troca do que lhe falta a matéria: “Os espanhóis dão a religião e tomam o
ouro” (TODOROV, 2003, p. 62). A revelação do Outro à civilização patriarcal do ocidente
provoca uma inquietação na cultura hegemônica:
Toda a história da descoberta da América, primeiro episódio da conquista, é
marcada por esta ambigüidade: a alteridade humana é simultaneamente reve-
lada e recusada. O ano de 1492 simboliza, na história da Espanha, este du-
plo movimento: nesse mesmo ano o país repudia seu outro interior, conse-
guindo a vitória sobre os mouros na derradeira batalha de Granada e forçando
os judeus a deixar seu território; e descobre o outro exterior, toda essa Améri-
ca que virá a ser latina (TODOROV, 2003, p. 69).
É esta mesma coincidência entre o Outro interior e o Outro exterior que vai levar o pen-
samento europeu a identificar o índio à mulher. No debate que marcou os anos seguintes ao
descobrimento e que procurava decidir sobre a igualdade ou a desigualdade dos povos autóc-
tones com o branco europeu, o filósofo Gines de Sepúlveda vai estabelecer uma relação se-
mântica entre vários pares de opostos: de um lado ele associa espanhóis, adultos (pai), homem
(esposo), humanos, clemência, temperança, forma, alma, razão e bem; de outro, opondo-se a
esta primeira fileira de termos, ele arrola como co-partícipes da mesma essência, índios, cri-
anças (filho), mulher (esposa), animais (macacos), ferocidade, intemperança, matéria, corpo,
apetite e mal. Todorov (2003, p. 5) comenta:
É sem dúvida revelador encontrar os índios assimilados às mulheres, o que
prova a passagem fácil do outro interior ao outro exterior (já que é sempre um
homem espanhol que fala) [...]. Colocar em equivalência essas duas oposições
e o grupo relativo ao corpo e à alma é igualmente revelador: antes de mais na-
da, o outro é nosso próprio corpo; daí também a assimilação dos índios e mu-
lheres aos animais, àqueles que, apesar de animados, não têm alma.
É justamente nesta época do Renascimento que vemos, segundo a exposição histórica
de Meletínski (2002, p. 84-85), a imagem do herói mítico e literário se relativizar. “A literatu-
ra do fim da Renascença procedeu a uma revisão singular do arquétipo do herói”, afirma o
autor, e rebaixa o modelo heróico, por exemplo, nas personagens de Hamlet, Laertes, Fortin-
bras e Dom Quixote, “o simplório magnânimo que não compreende as leis cruéis da vida re-
65
al” e de quem “proveio o tipo do original do romance inglês dos séculos XVIII-XIX, que se
encontra em Fielding, Smollett, Goldsmith, Sterne, Dickens”.
Meletínski acompanha a evolução do conflito arquetípico entre ordem e caos até o final
do século XIX e mostra que o sítio das ações caotizantes vêm, desde a Antiguidade, aproxi-
mando-se cada vez mais do representante da ordem, até, no século romântico, acabar por atin-
gir a própria sociedade do herói: “No quadro do sentimentalismo e do romantismo surgem
heróis que se encontram em conflito com o meio circunstante ou com a sociedade em geral,
sensíveis ou insensíveis, inclinados à tristeza, à resignação melancólica ou, ao contrário, à
revolta demoníaca até a negação de Deus” (MELETÍNSKI, 2002, p. 85). Em algumas corren-
tes românticas, o poder das forças caotizantes são ainda mais temíveis e descobrem-se “forças
demônicas no interior do próprio herói” (MELETÍNSKI, 2002, p. 133). É aquela degradação
heróica iniciada no Renascimento que aqui chega a um ápice no sentimento de impotência do
protagonista: “Os elementos do demonismo no herói que expressa ‘a ofensa universal’, o ‘mal
do século’, estão diretamente ligados à impossibilidade da realização épica” (MELETÍNSKI,
2002, p. 86).
Com o Realismo e a literatura de Dostoievski, surge um protagonista totalmente absor-
vido pelo mal, que se desempenha como um habitante do próprio espaço caótico e muitas
vezes até procura justificá-lo: “Na literatura realista do século XIX, [...] observa-se uma redu-
ção do herói e do heroísmo, sob a influência do meio que se reflete nela” (MELETÍNSKI,
2002, p. 86), enquanto Dostoievski “aprofunda psicologicamente [...] as representações dos
‘homens sem importância’”, nas quais a alma do herói surge alienada. A “luta do cosmo con-
tra o caos” transporta-se então “para a profundeza da alma humana, dando origem ao ‘subso-
lo’ psicológico” (MELETÍNSKI, 2002, p. 210). então um deslocamento do meio em que
ordem e caos se combatiam mutuamente para o interior da vida psíquica do herói.
Finalmente, esse conflito interno e do homem sem rumo no interior de um caos absoluto
em que não se pode encontrar um princípio de ordenação marca a personagem que domina a
narrativa do Modernismo: “A plena deseroicização, a tendência à representação de um herói
sem personalidade, vítima do alheamento, em parte devida à sua aproximação semi-heróica
aos muitos arquétipos mitológicos que se transformam em máscaras descartáveis, é o que se
sente na literatura moderna do século XX” (MELETÍNSKI, 2002, p. 86-87).
Assim, se nos mitos antigos circunscrevia-se a uma região longínqua ou estranha, como
o mundo sobrenatural, o caos vai aos poucos tomando espaços cada vez mais interiores ao
espaço de ordem, assumindo, seqüencialmente, as formas do habitante estrangeiro nas epo-
péias, do inimigo interior nas aventuras que personalizam o herói, da própria sociedade por
ocasião do Romantismo e, finalmente, acaba por alojar-se no interior do próprio indivíduo em
66
finais do período romântico, por ocasião da transição para o Realismo e o Modernismo. Pode-
se dizer, de outra maneira, que a alteridade constituída pela cultura ocidental, circunscrita a
formas estáveis e segregadas dos valores supremos definidos por uma axiologia dominante,
retorna paulatinamente ao interior da ordem delimitada e aos poucos vai novamente se fun-
dindo para recuperar a integridade original, em que Eu e Outro não existiam e o mal não havia
ainda sido experimentado.
Ao invadir a cultura do ocidente, este mal caotizante vai trazer consigo, certamente,
maiores conflitos e assumir cores cada vez mais acentuadas, à medida que mais ameaça a or-
dem constituída. Daí parte do conflito romântico que separa, em definitivo, o herói clássico do
novo herói. Este, pela primeira vez, precisa admitir o mal dentro de seu próprio socium, o que
naturalmente vai resultar em mal-estar pela perda de identidade do sujeito individual com os
seus “iguais”, levando-o a um questionamento de si e de suas verdades, bem como das verda-
des de sua cultura. Não é à toa que especialmente no Romantismo e no seus desdobramentos
simbolistas, as imagens do mal, as criaturas malignas e as ações praticadas nos limites da pro-
ibição sejam tão profícuas. Dentre elas, a mulher e suas ações perturbadoras são especialmen-
te tematizadas. Mario Praz observa:
Belas mendicantes, velhas sedutoras, negras fascinantes, cortesãos aviltadas:
todos esses motivos que o século XVII havia tratado com o coração leve e por
exercício de engenho, reencontramos impregnados de um sabor acre de reali-
dade nos românticos e no poeta em que a Musa romântica destilou os mais ra-
ros venenos, em Baudelaire (PRAZ, 1996, p. 58).
O autor, que publicou estudo sobre A carne, a morte e o diabo na literatura romântica,
não consegue dissociar o tema de sua pesquisa da figura feminina e admite que a mulher fatal
e exemplos da “feminilidade prepotente e cruel” sempre existiram na literatura e no mito. En-
tretanto, o Classicismo renascentista oferece outros modelos em que os dramaturgos elisabe-
tanos vão buscar inspiração: “Nos costumes soltos da Itália da Renascença, e as Vitória Co-
rombone, as Lucrecia Bórgia, as condessas de Challant os ‘diabos brancos’, as ‘condessas
insaciadas’ proclamarão suas paixões com toda ousadia, os seus amores luxuriosos que se-
meiam a ruína e a perdição entre os homens” (PRAZ, 1996, p. 179-180). É no Romantismo
que se estabelece finalmente uma “linha tradicional” dessas mulheres terríveis.
A presença de um crescente paradigma feminino na literatura e da intensificação de
símbolos e arquétipos que retomam experiências matrísticas ou ao menos as reposicionam sob
novas perspectivas no interior do patriarcado leva autores do século XX a afirmarem um “re-
torno do feminino” em nossa época. “Não podemos negar que uma ativação da deusa, isto
é, de um poder dinâmico e energético, de potencialidades interiores que provocam mudan-
67
ças”, afirma a psicanalista Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (1998, p. 69). “Essa dinâmica
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vitorioso do caos demonizado. Na produção do Modernismo e dos seus seguidores o retorno
do oculto deixará suas marcas, especialmente naquela literatura que mais próxima e proposi-
talmente procura abordá-lo, tematizando as questões da alteridade, como espero mostrar, nos
capítulos seguintes, aprofundando a análise de Maíra.
Nesse romance de Darcy Ribeiro, veremos que o tema do indianismo combina-se a i-
magens arquetípicas do sentimento do feminino no ocidente, para representar questões da
alteridade, e aquelas características que foram apontadas acima como peculiares à narrativa
tradicional do ocidente patriarcal (item 2.4) serão substituídas por suas formas de oposição.
Assim, ao herói ordenador sucede o herói que agencia o caos, provocando uma crise na moral
da ação, do trabalho e da expansão patriarcal; o espaço da cultura hegemônica é negado por
uma positivação do selvagem e “estranho”, ao mesmo tempo em que lugares sagrados e pro-
fanos, centrais e periféricos, se relativizam; o tempo mítico e circular abole a linearidade do
discurso; e a multiplicidade das vozes impede a fixação de um logos narrativo.
Por outro lado, no âmbito das imagens, domina a esfera das figuras associadas à obscu-
ridade dos arquétipos femininos. Uma cosmovisão de cunho matrístico inverte a hierarquia
dos pólos opositores, a começar pela substituição do esquema de separação pelo de integra-
ção. Teríamos, portanto, num discurso que privilegiasse a experiência do Outro, buscando
convertê-lo num “outro que também é eu”, dois movimentos opostos ao sistema diairético do
Regime Diurno e da cultura patriarcal: de um lado, uma valorização do que o regime antitéti-
co expressa como a negação da sua própria ordem, isto é, dos elementos que ele tenta expur-
gar como sua alteridade; de outro, um esforço para superar o corte entre sujeito e objeto, entre
ordem e caos. Assim, enquanto o Regime Diurno da imagem converte o desejo da eternidade
em “agressividade”, “negatividade” e gera os “símbolos antitéticos, purificadores e militan-
tes” da combatitividade masculina, o Regime Noturno caracteriza-se por uma “inversão radi-
cal” destes termos e decorre de uma valorização do “aspecto feminino e materno da libido”,
que a relaciona “às coisas agradáveis do tempo, invertendo como que do interior o regime
afetivo das imagens da morte, da carne e da noite”, bem como do desejo de tentar ultrapassar
a ambigüidade antitética “e organizar o devir ambivalente da energia vital numa liturgia dra-
mática que totaliza o amor, o devir e a morte”, isto é, conciliar “as aspirações da transcendên-
cia ao além e as intuições imanentes do devir” (DURAND, 2002, p. 197-198, grifos meus).
Podemos, portanto, consubstanciar as imagens do feminino e, por decorrência, do Outro
patriarcal, no retorno de uma tríplice axiologia: do corpo e da ação imanentista dos instintos;
do caos absorvedor de todas as ordens separadas, numa síntese informe, porém absoluta; e da
morte pacificada e eufemizada.
69
Durand (Id., p. 443) divide o Regime Noturno em estruturas sintéticas (ou dramáticas) e
místicas (ou antifrásicas), respectivamente relacionadas aos reflexos dominantes copulativo e
digestivo. À digestão associa-se o esquema verbal do “confundir”, composto pelas ações de
descer, possuir e penetrar; à dinâmica sexual, estão relacionadas as ações de “ligar”, como
voltar ou amadurecer. A mãe, a mulher, o alimento, a noite são arquétipos especialmente da
primeira estrutura; mas veremos que também arquétipos e símbolos da segunda, como a roda,
a lua, o andrógino, o deus plural, estão presentes em Maíra. Se os símbolos e arquétipos da
dominante digestiva compõem o tema do corpo no romance, os da dominante copulativa, por
sua vez, gravitarão em torno do tema da morte e do caos.
Estas imagens do feminino arquetípico e aquelas inversões da matriz patriarcal citadas
anteriormente são os elementos que buscarei evidenciar pela análise de Maíra, nos capítulos
que seguem.
3 O CORPO E O DOMÍNIO DA “MATER
J’ai vu l’enfer des femmes là-bas ; – et il me sera loisible de
posséder la verité dans une âme et un corps.
(Arthur Rimbaud)
As primeiras percepções humanas da divindade estão relacionadas com os mistérios da
concepção, da gestação e do parto. O corpo feminino é visto, então, como uma expressão do
poder divino de dar a vida e nutri-la, por isso as primeiras manifestações artísticas da divinda-
de são corpos de mulheres, geralmente grávidas, que representavam a própria potência gera-
dora da matéria natural. Parte desta adoração religiosa pela figura feminina vem de uma in-
consciência primitiva da participação do macho na concepção. Segundo Beauvoir (1970, p.
87-88), é o desconhecimento inicial de uma linhagem paterna e a conseqüente atribuição de
um poder partenogênico à mulher, além de sua relação com o divino que a fecunda, que leva
as primeiras comunidades ao sistema matrilinear de organização social e religioso.
Apoiando-se na tradição antropológica, Barros (2004, p. 25-26) afirma que foi a domes-
ticação que trouxe a percepção do papel do macho na concepção, ainda que este papel fosse
inicialmente difícil de quantificar. Surge então o par religioso da Deusa Mãe e de seu Filho
Amante, cuja cópula ritualística, nas culturas agrícolas, é responsável pela fertilização da Ter-
ra. Na cultura pastoril, contudo, o imperativo é a ampliação dos rebanhos e da população
guerreira, o que conduz a uma supremacia do masculino, cuja atividade sexual e dispersão das
sementes não é limitada pela biologia da gestação e, portanto, está mais de acordo com o e-
mocionar da necessidade de aumentar a prole humana e animal. É a partir dessa rede de con-
versações que privilegia a atividade masculina que o papel da fêmea mantenedora da vida
começa a decair a um segundo plano:
Os homens passaram a ter nova concepção de seu papel na procriação, pois
eram os que fecundavam. As mulheres não produziam a semente, criavam.
71
Manter a vida e sua continuidade foi passado para um segundo plano, enquan-
to que a transformação, a força motriz do macho, a renovação e o arriscar a
vida passaram a ser os valores dominantes (MONTEIRO, 1998, p. 51).
Por isso, Beauvoir (1970, p. 99) considera essa percepção do papel masculino na fecun-
dação o fato mais importante para a divisão sexual e o subseqüente rebaixamento do elemento
feminino, ou seja, para a primeira e talvez maior revolução social da história da humanidade,
e mostra como a nova compreensão dos papéis da mulher e do homem vão se refletir nas pri-
meiras manifestações artísticas e religiosas do patriarcado emergente:
Apolo, na Eumênides de Ésquilo, proclama essas novas verdades: “Não é a
mãe que engendra o que se chama filho, ela é apenas a nutriente do germe dei-
tado em seu seio: quem engendra é o pai. A mulher, como um depositário a-
lheio, recebe o germe e, aprazendo aos deuses, o conserva”.
A emoção de direcionamento e controle que nasce com a atividade pastoril leva as dou-
trinas ocidentais a conceber o elemento masculino como a forma espiritual orientadora, en-
quanto a feminina circunscreve-se à atividade sexual puramente sensualista e material do ero-
tismo desorganizado. Julius Evola (1976, p. 177) mostra a nova ideologia já orientando a dou-
trina aristotélica, para a qual o macho “representa a forma específica” e, por isso, é a parte
ativa da natureza, enquanto a fêmea é “matéria passiva”. Neste caso, forma” significa “o
poder que determina, que suscita o princípio de um movimento, de um desenvolvimento, de
um devir”, enquanto a matéria limita-se à causa material e instrumental de todo o desenvol-
vimento, a possibilidade pura e indeterminada, substância ou potência que nada é em si, mas
que uma vez activada e fecundada pode dar origem a tudo”. É, portanto, o poder masculino
que introduz a vida na matéria informe e vazia. Evola lembra que a palavra grega para maté-
ria, “dificilmente inteligível para a mentalidade moderna”, remete a uma “entidade misteriosa,
inatingível, abissal, que o ser tem e simultaneamente não tem”. Platão, por sua vez, define-a
como aquilo que é sempre “outro” e em sua doutrina vemos, portanto, iniciar-se na filosofia a
mulher considerada como a alteridade absoluta da civilização patriarcal do ocidente.
Com Aristóteles, pois, inicia-se a separação que tradicionalmente oporá a mente e o es-
pírito masculinos à matéria e ao corpo femininos: mater, a mãe, é também a raiz para matéria,
que agora aparece segregada de qualquer direcionamento espiritual. Como a atividade huma-
na é justamente a de desenvolver cultura e transcender-se como espécie animal, o elemento
feminino, identificado com aquilo que a humanidade precisa abandonar para se auto-afirmar,
isto é, as injunções dos instintos corporais e as condições impostas pela matéria, será censura-
do como indesejável e desprezível.
72
Enquanto a mãe exibe qualidades materiais de nutrição, Beauvoir (1970, p. 83-84) lem-
bra que o macho não alimenta a partir de sua própria condição física, mas a partir de atos da
inteligência, que instituem novas regras nas relações do sujeito com o mundo:
O homo faber é desde a origem dos tempos um inventor: o bastão e a maça
com que se arma para derrubar os frutos ou derrear os animais, são instrumen-
tos com os quais ele aumenta seu domínio sobre o mundo. Não se atém a
transportar para o lar peixes pegados nas águas, cumpre-lhe primeiramente as-
senhorear-se destas fabricando pirogas: para apossar-se das riquezas do mun-
do, ele anexa o próprio mundo. Nessa ação, experimenta seu poder: põe obje-
tivos, projeta caminhos em direção a eles, realiza-se como existente. Para
manter, cria; supera o presente, abre o futuro. Eis porque as expedições de ca-
ça e pesca assumem um caráter sagrado. Acolhem-se os seus êxitos com festas
e triunfos; o homem neles conhece sua humanidade.
Esta evolução em direção à consciência é, como afirma Neumann (2003, p. 88-89), “o
que de ‘não natural’ na natureza” e o que confere ao homem sua categoria de Homo sapi-
ens. Como todo “ato de cognição, de discriminação consciente, divide o mundo em opostos” e
o que se chama conhecimento objetivo” das coisas exige um isolamento do ego para con-
templar o outro como objeto separado de um sujeito, o fortalecimento do ego decorrente do
emocionar pastoril levou a associar a atividade inteligente e espiritual ao elemento masculino:
“Uma vez que o ego se instale como centro e se estabeleça por vontade própria como consci-
ência do ego, a situação original é superada à força”, pois a postulação de um ego e de uma
personalidade que com ele se identifica institui “uma consciência auto-orientadora”. Esta per-
cepção, segundo o autor, aparece na vida de toda criança, quando se desenvolve a autoconsci-
ência e o ego contempla o corpo como um elemento estranho e alheio a si. Para Neumann, “a
aquisição do movimento muscular voluntário, isto é, o fato de o ego experimentar, no pleno
sentido da palavra, ‘na própria pele’, que a sua vontade consciente pode apoderar-se do corpo,
é talvez a experiência que está na raiz de toda magia”. O ego, sediado no córtex cerebral, ex-
perimenta as regiões inferiores do corpo como uma “realidade alheia”, estranha, ao mesmo
tempo que percebe nela uma submissão aos comandos da sua vontade, o que ele traduz como
soberania do pensamento. A experiência pode ser estendida, para o homem primitivo, na sua
relação com a ferramenta:
A natureza óbvia desses fatos não nos deve deixar escapar a enorme impressão
que essa mesma descoberta primordial deve causar, e sem sombra de dúvida
causou, no núcleo infantil de todo ego. Se as técnicas são a extensão do ‘ins-
trumento’ como meio de domínio do mundo que nos cerca, o instrumento, por
sua vez, é apenas uma extensão da musculatura voluntária. A vontade do ho-
mem no sentido de dominar a natureza não passa de extensão e projeção dessa
73
experiência fundamental do poder potencial do ego sobre o corpo, descoberto
na ação voluntária do movimento muscular (NEUMANN, 2003, p. 92).
Para Oliveira (1993, p. 16), está nesta associação com o elemento físico, material e cor-
poral o primeiro fator de inferiorização da mulher na sociedade patriarcal:
Em um tempo em que lembrar à humanidade sua dimensão natural significava
atraso e reacionarismo, identificar as mulheres como mais próximas da Natu-
reza significava diminuí-las, colocá-las, de certa maneira, aquém do Humano,
monopolizado pelos homens, situá-las em um plano inferior de desenvolvi-
mento [...]. O lugar inferior ocupado pelas mulheres na relação com os ho-
mens teve, ao mesmo tempo, como causa e efeito, numa circularidade perfeita,
a identificação por todos inclusive pelas mulheres do Feminino com ani-
malização, com atração descontrolada pelo prazer, com ameaça ao princípio
de realidade que, supostamente, funda a civilização pelo viés do controle ins-
tintual e do primado da razão.
A imagem contrária, do espírito humano elevando-se contra a matéria, é apontada por
Evola nos ícones de deuses itifálicos, isto é, divindades masculinas com o falo ereto, que ex-
pressam a verticalidade, a postura em pé, que, confirmando o primeiro gesto dominante apon-
tado por Durand, “se opõe à condição daquele que caiu ou foi abatido” (EVOLA, 1976, p.
214). Por isso, para o imaginário masculino, as mulheres não apenas são vistas como diferen-
tes, mas como inferiores e perigosas, que representam a outra metade da sociedade que a-
meaça a metade ordenadora: “Mais perto da natureza selvagem que da ‘paisagem humaniza-
da’, detentoras da fertilidade da terra e da fecundidade do grupo, delas provém a ameaça su-
prema de que rompam a relação primordial de alteridade/oposição e recusem-se aos homens,
estiole-se o solo e aniquile-se a espécie” (OLIVEIRA, 1993, p. 30).
Como, na sociedade matrística, as relações entre o sujeito e o mundo integram o homem
ao universo concreto cotidiano e à aceitação do ritmo cósmico sem se opor à dinâmica da vi-
da, corpo e matéria são aceitos como a própria condição do estar-no-mundo, como aceita o
mundo natural da mãe a criança que ainda não afirmou contra ele o seu ego segregacionista:
O grupo matriarcal, com a sua preponderância de emocionalidade entre mães e
filhos, os seus vínculos locais mais pronunciados e a sua maior inércia, está,
em larga medida, ligado à natureza e aos instintos. A menstruação, a gravidez
e a lactação são períodos que ativam o lado instintivo da mulher e fortalecem a
sua natureza vegetativa [...]. Em acréscimo, a poderosa conexão com a ter-
ra, que surge com o desenvolvimento da jardinagem e da agricultura pelas mu-
lheres e a dependência dessas atividades com relação à natureza. O aumento
da “participation mystique”, causado pelo estreito convívio do grupo matriar-
cal de mães e filhos na caverna, na casa ou aldeia, também desempenha seu
papel. Todos esses fatores reforçam o estar-no-inconsciente característico do
grupo feminino (NEUMANN, 2003, p. 111).
74
Ao contrário, a iniciação instituída principalmente pelas sociedades masculinas, rompe
com este mundo e funda o espaço do ego e da consciência do sujeito separado. Oliveira
(1993, p. 36) mostra como a iniciação masculina, o rito de passagem da infância matrilinear
para o espaço adulto do pai, representa um ato de expulsão do elemento feminino e identifica-
ção de seus atributos com o que a cultura teme como a negação da ordem estabelecida:
Quer a iniciação exorcize a parte de feminino que cada jovem traz em si para
confirmá-lo na virilidade, quer ela sirva para retirar a criança da mãe e vincu-
lá-la à classe dos homens, quer ela faça o jovem esquecer o tempo da inocên-
cia doméstica e sua vivência no mundo das mulheres, quer represente para o
iniciado um segundo nascimento social depois do nascimento biológico, quer
marque o recalque dos desejos proibidos da infância e sua inserção na socie-
dade com a aceitação de suas leis e obrigações, quer sancione a passagem da
natureza para a cultura, do espaço privado para o espaço público, quer ela pri-
vilegie em cada sociedade um ou alguns desses sentidos, ela reafirma sempre
uma polaridade fundamental: o feminino é o infantil e o natural, o masculino é
o adulto e o social.
Feminino e Masculino se opõem e se contradizem. Misturadas e assimiladas
às crianças, as mulheres são relegadas à parte obscura da sociedade, fração
próxima da Natureza, com suas pulsões selvagens e irracionais, metade subal-
terna e perigosa que deve ficar confinada em um espaço restrito e controlado.
É, pois, apoiando-se na dominação da permanência e da regularidade impostas pela
condição de vida imanente na natureza, que a humanidade se eleva opondo-se ao natural, ao
corpóreo e ao feminino. Nas religiões que sucederam a cultura matrística, os poderes fecun-
dadores da Mater são negados e demonizados. Lilith, que foi moldada em “terra impura”,
concebida a partir de uma mistura de fezes, saliva e sangue, deixa de representar o poder bio-
lógico sagrado para tornar-se chefe de uma legião de íncubos infernais (BARROS, 2004, p.
80). A ela, primeira mulher, criada, como Adão, à imagem e semelhança de Deus, vai suceder
uma segunda fêmea, desta vez oposta à origem espiritual do masculino: enquanto Adão des-
cende direto de Deus, Eva será formada a partir de um osso humano (BARROS, 2004, p. 76).
O poder, que a mulher detinha na cultura matrística, de captar e absorver “o princípio
viril, transcendente ou mágico” será convertido em potência de sedução e aprisionamento: “É
da natureza do feminino escravizar, acorrentar, dominar o princípio viril, pela sedução que ele
sempre exerceu no imaginário masculino”. Daí o caráter demoníaco da mulher: o que seduzia,
incitando à ação, agora paralisa, pelo medo que tem o homem de ser tragado (BARROS,
2004, p. 37). O sexo será a via para o medo e o controle: “A mulher é pura sexualidade, ela
transpira sexo e o homem percebeu isso desde sempre” (BARROS, 2004, p. 150). No pensa-
mento greco-romano e judaico-cristão, o desejo e o prazer femininos serão considerados ani-
malescos; a sexualidade feminina, dirigida puramente aos sentidos, precisa ser domada, e en-
tão o homem obrigou a mulher ao horror do sexo (BARROS, 2004, p. 12). O mesmo despres-
75
tígio pela condição bestial do elemento feminino vai afastar, na Grécia, a mulher da atividade
intelectual. A criação da mulher está relacionada ao ciclo corpóreo e material; dar à luz no
plano espiritual, conceber a palavra e “parir idéias” tornam-se atividades masculinas, uma
forma, segundo Barros (2004, p. 63-64), “da inveja e do encantamento” do macho com o mis-
tério vital da feminilidade. A deusa criava o mundo como mulher: a partir da fertilidade de
seu útero material; o deus masculino, ao contrário, deve criá-lo a partir puramente do espírito.
Aliás, uma das primeiras proibições do deus patriarcal judaico foi a de concretizar a divindade
em ídolos materiais, e seus maiores inimigos eram as divindades naturais, em geral femininas,
das sociedades agrícolas cananéias.
A separação entre corpo e espírito, com o prejuízo do primeiro, continua com a ascen-
são do cristianismo, que separou a masculinidade da sexualidade. Se deus é puro espírito, o
corpo pode ser sua negação e o universo material foi um acréscimo indesejado à alma hu-
mana. O homem não é mais um corpo, mas cada homem é, como deus, um espírito que possui
um corpo ou está, de alguma forma, escravizado à carne: “A religião torna-se um anseio de
escapar do corpo, assim como um comando para controlá-lo. Na religião de um Deus despro-
vido de corpo e de sexo, a sexualidade humana torna-se um fracasso e uma traição, um afas-
tamento de Deus rumo a uma natureza menosprezada, um pecado” (POLLACK, 1998, p. 52).
Como observa Durand (2002, p. 202), na passagem do Regime Diurno, masculino, para
o Regime Noturno, marcado preferencialmente pelo imaginário feminino, “a tomada em con-
sideração do corpo é o grande sintoma da mudança de regime do imaginário”. Por isso, um
dos temas presentes em Maíra e que se configura como uma questão da alteridade é o da re-
conquista do corpo e dos valores da matéria. Ao esbarrar na estranheza do Outro, o homem
divisa sua condição de “barro perguntão” anunciada pelo profeta Xisto (RIBEIRO, 2001, p.
318), a matéria que pensa e segrega.
3.1 A mirixorã e o corpo sacralizado
A personagem Alma é a principal representante do tema do corpo na trama do romance.
É por meio dela que podemos acompanhar o processo de involução para uma imaginação do
corpo, caracterizada, segundo Durand (2002, p. 203-204), por uma dinâmica “ao mesmo tem-
po sexual, ginecológica e digestiva”, em que a imagem do ventre assume um simbolismo he-
dônico de “descida feliz”, “libidinosamente sexual e digestiva”. Quando vai argumentar com
a irmã Petrina sua decisão de se tornar missionária longe da civilização, Alma o faz primeiro
admitindo a inconciliação entre o mundo de espírito do pai de Alma/Pai da alma e a vida ins-
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tintiva da filha: “Deus não cabe no meio de tanta fome, sexo e maconha. [...] Não quero
reabilitar-me aos olhos de meu pai morto. (De Deus, minha filha.) Sim, claro, aos olhos de
Deus” (RIBEIRO, 2001, p. 61). Ela descobre que pode se redimir com o espírito por meio do
corpo e da ação física, e não apenas pela assepsia de uma contemplação abstrata: “Há muitos
caminhos para Deus. Um pode partir da fé e da pureza e por ele chegar ao serviço. Outro pode
partir do mundo, da vivência [...]. quero ascender do pecado à virtude pelo caminho do
serviço de Deus” (RIBEIRO, 2001, p. 63).
Alma recusa a cidade e seus vícios e quer uma espiritualidade mais genuína. Antes era a
palavra do pai; agora, a ação, o “serviço”. O caminho de Alma é uma jornada às avessas, o
outro foi percorrido, do Paraíso ao mundo patriarcal e não lhe serve mais: “Alma pede a
bênção e sai ao jardim, à praça, à cidade, que não é dela” (RIBEIRO, 2001, p. 63). À mar-
gem do mundo ordenado, ela quer a selvageria da floresta. Adiante, Alma sentia vertigem
da descida no avião que a conduz aos mairuns:
Alma controla a ânsia do vômito provocada pela descida e continua cismando:
tive a coragem de deixar para trás aquele mundo. Agora hei de ter a coragem
de enfrentar este. Vou abrir esta porta para o que der e vier. Para trás sei o que
existe: é o mundo de gentes vazias de alma que, para compensar, oferecem
seus corpos. Comigo não: nada mais de mãos estendidas, de corpo ofertado,
dando e pedindo (RIBEIRO, 2001, p. 139, grifo meu).
Ironicamente, esta Alma com inicial maiúscula se preencherá, entre os mairuns, doando
religiosamente seu corpo. Entretanto, veremos que não ocorre, aí, o esvaziamento do espírito,
mas seu resgate por um profundo respeito ao corpo e pela sua doação ao Outro. É reveladora a
expressão com a qual Nonato refere-se a ela em seu inquérito: “Alma (ainda não sei de quê)”
(RIBEIRO, 2001, p. 97), e com a qual demonstra o caráter misterioso da nova força que se
levanta e a indignação do discurso masculino diante do espírito feminino. Esta alma não pode
ser de um corpo, porque ela é o próprio corpo: o espírito separado fundiu-se novamente à ma-
téria.
Por isso, ao chegar à floresta, ela também não poderá integrar a equipe de freiras mis-
sionárias. Também estas estão maculadas pela atividade moralizadora do patriarcado. O capí-
tulo “Missa” descreve o asseio com que a cultura cristã procura livrar-se dos predicados con-
denáveis do corpo:
Dois exercícios quotidianos esforçados, gemidos, suados, mantêm as almas
limpas dentro dos corpos e os corpos pulcros dentro da vida. Orações, memen-
tos, rezas, cantos, exorcismos limpam as almas, as alisam e engomam, duri-
nhas, como os cabeçotes brancos do golete habitual das freiras. Lavações a-
bundantes, espumosas, de água e sabão, lixiviam toda lascívia do corpo. As-
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seiam, separadas, claras roupas íntimas, secretas e negras sotainas e vestes ta-
lares de freiras e padres. Nenhum átomo de suor, nem chulé, nem esperma,
nem catarro, nem vômito, nem sangue, nem excremento, nem mênstruo, nem
urina, nem lágrima, nem nada que seja de bicho de ficar (RIBEIRO, 2001,
p. 159).
A parte natural, isto é, animal do homem precisa ser abolida através da negação do cor-
po. A instituição religiosa leva o nome de Missão Nossa Senhora Grávida de Deus, em que o
feminino se encobre pela função da maternidade, o espírito sobressaindo sobre o corpo, a fe-
minilidade espiritualizada, asséptica e utilitária do patriarcado. Alma não se adapta a esse fe-
minino controlado; sua feminilidade é a original, da liberdade matrística: “Graças a Deus per-
cebi, compreendi, afinal!”, diz ela, quando mirixorã entre os mairuns. “A pureza de Deus
não pode estar na maceração. A pureza de Deus, se existe, se Deus existe, está na vida, na
capacidade de foder, de gozar, de parir” (RIBEIRO, 2001, p. 232). Aliás, contrariando o bom
comportamento da linguagem formal, Alma é a personagem que mais usa um vocabulário
instintivista e selvagem. Quando engravida, diz de si mesma, num monólogo: “Estou prenha!
[...] Vou parir. Daqui a pouco o danadinho ou a danadinha estará dando patadas na minha
barriga(RIBEIRO, 2001, p. 327, grifos meus). Nas palavras grifadas, percebemos a tendên-
cia que o discurso dessa personagem tem para a zoomorfização das ações humanas. Nesse
caso, pelo discurso animalizador, ela devolve à gravidez uma função natural, destituída da
função civilizadora a que a condenou o patriarcado. É que, como diz Bachelard (2003, p. 97 e
126), no imaginário noturno, quando os devaneios descem para o sentimento do peso e do
corpo, “tudo se animaliza quando a descida se acentua” e “assim que a imagem do ventre se
impõe, parece que os seres que a recebem se animalizam”. Em dado momento, Isaías chega a
censurar Alma por seu vocabulário:
– Todo mundo já sabe que eu andei fodendo?
– Que expressão chula, Alma. [...] Você não precisava dizer nada não. Você só
tinha que se agachar. Agachar e fornicar.
Que fornicar, que merda nenhuma, Isaías: trepar, foder (RIBEIRO, 2001, p.
296).
Para os mairuns – e principalmente para as mulheres mairuns –, o conhecimento do cor-
po é um gozo ritual, como naquela cena entre Alma e as índias da tribo, em que estas vascu-
lham, maravilhadas, o corpo da estrangeira:
Depois de uma hora, Alma está deitada numa esteira aberta no chão, rodeada
de mulheres, nua em pêlo e abobalhada. Como não quer fugir, prefere rir, con-
fraternizar com aquela gente que lhe sorri simpática, com malícia e carinho.
Esconde, quando pode, o vexame de se sentir invadida, desvendada, decifrada.
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Mas como reclamar que a queiram ver nua, se todas essas mulheres estão tam-
bém peladas? Por que não se deixar ver e tocar por quem quer vê-la com tanto
empenho, se elas se dão também à curiosidade de Alma, com seus corpos ali
ofertados? (RIBEIRO, 2001, p. 250).
Essa comunhão de corpos, entretanto, não ocorre apenas entre as mulheres mairuns. A-
inda que de uma espécie diferente, também os homens conhecem uma intimidade estranha a
olhos civilizados. É o próprio Isaías que reconhece, satisfeito: “Teró se aproxima mais, encos-
ta seu ombro no ombro do Avá e o abraça, carinhoso. Isaías pensa: esses nossos hábitos de
corpo, essa intimidade masculina, tão nossa, tão mairuna. Como é bom” (RIBEIRO, 2001, p.
275).
Para Alma, aos poucos, o mundo patriarcal se revelará como o mal, a desordem, porque
o masculino secou a fertilidade do feminino, substituindo uma religião do corpo por outra, do
puro espírito. Sobre Alma pesa a mágoa do patriarcado: ela é o corpo, ela sofre a dor e precisa
sofrê-la duas vezes, se não encontra lugar num mundo liberto do masculino:
Quem abrirá o buraco se não tenho marido, nem irmão? Quem me sustentará
pelo sovaco? A quem direi: eu pari? E quem me dirá, reconhecendo-se pai: eu
também pari? Quem ficará de choco para proteger a vida do meu filho? E so-
bretudo Alma, meu bem, filhinha do seu Alberto, do Cosme Velho, sobre-
tudo, Alminha, você não é mairuna, não! Quem garante que você por estar
aqui vai parir fácil que nem elas? Os partos que eu conheço de ouvir contar
são traumas terríveis, com berreiros e sofrimentos medonhos. Sobre nós pesa
até hoje a praga divina: hás de parir com dor (RIBEIRO, 2001, p. 159, grifo
meu).
Como ela é mulher do coletivo tribal, uma moral antipatriarcal devolve-lhe o status di-
vino, pois a devolve ao andrógino e à partenogenia. Então, ela conclui: “Este negócio 4(n16436(:)-2.16436( )-200)(n)-0.300048(ã739(a)3.74(l)7.8413e93142(u)-10.299(e)-6.a)3.742
79
(RIBEIRO, 2001, p. 326). Alma pretende fundar uma descendência matrilinear, de homens
fortes e indepe558(n)-0.295585(d)-0615(e)3.744974(r)2.805(t)-2.16558(e)3.7:974(r)23147
80
estender para sua descendência, pois as mirixorãs “são mais mulheres que as mulheres co-
muns e talvez até mais mairuns”, afirma Isaías. “Não podendo ser tomadas como esposas,
ficam como que suspensas no ar. São mulheres de todos. São mulheres de ninguém. São mu-
lheres de si mesmas, porque se fazem desejadas de todos os homens”. Sua função é guardar os
segredos do amor, como a prostituta sagrada da Grande Mãe. São
mulheres que gostam muito de foder e que sabem tudo do amor. Elas têm suas
artes. As outras mulheres mairunas também gostam de sururucar, mas seu úni-
co artifício é a glória de manter, dentro de si, um homem com o pau duro, sem
esporrar, a noite inteira. As mirixorãs não. Elas têm artes de fazer um homem
gastar todo o óleo, esporrando sem parar, durante a noite inteira (RIBEIRO,
2001, p. 111).
À frente, Isaías explica a Alma a função que, sem perceber, ela assumiu entre os mai-
runs:
– Mirixorã é uma categoria de mulheres que não se casam, nem têm filhos. Es-
tão aí disponíveis, por assim dizer.
– Então é isso que eu sou? Mirixorã quer dizer: puta, puta de índio! A isso me
reduzi, Isaías: puta de índio?
Não tem nada de puta, Alma. Uma mirixorã é uma pessoa muito apreciada.
É até consagrada num cerimonial. [...] Elas são escolhidas e preparadas para
esta função que, de certo modo, é até superior à da mulher comum. [...] Sendo
as mirixorãs mulheres autônomas, livres, sem um clã a que se devam, sem ma-
rido que tenham de cuidar, são parecidas com você. Daí a confusão (RIBEI-
RO, 2001, p. 298).
Assim, por seu ato imoral e de rebeldia contra as regras patriarcais e cristãs, Alma sa-
craliza a sexualidade recorrendo a uma velha prática matrística: “Celebrar os mistérios do
amor carnal pelo rito mágico era uma honra para todas as jovens que, ao praticarem o ritual,
investiam no próprio corpo todo o poder enigmático da Deusa” (BARROS, 2004, p. 29). No
enredo de Maíra, a sacralização de Alma é diretamente anunciada no capítulo “Micura: Ca-
nindejub”, em que o lado escuro de Maíra, noturno, feminino e caótico, identifica-se com a
branca mirixorã e desce para encarnar no corpo dadivoso da fêmea:
Ó mulher macha, vive do seu sumo. De todo o corpo tira gozo, gozoso. Tira e
dá. É uma beleza esta pele lisa, coberta de penugem, com seus tufos de pente-
lhos. Bem esticado, esse pelame daria para cobrir minha cara na cheia. Pele de
pêlos e poros sensibilíssimos. Feita para sentir as virações do ar, para outros
corpos saborear (RIBEIRO, 2001, p. 313).
As descrições sensualistas seguem elogiando o corpo da fêmea e ressaltando-lhe as qua-
lidades eróticas. Fisicamente, Alma ora lembra os ícones da Deusa Mãe que punham em rele-
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vo seus atributos de fertilidade. “Os cabelos loiros, toda peluda por baixo, nas partes dela.
O corpo cheio, seios estufados, dos grandes”, descreve Quinzim (RIBEIRO, 2001, p. 116);
ora apresenta-se, como vimos acima, com essas qualidades das prostitutas sagradas das socie-
dades matrísticas:
A prostituta sagrada é uma figura graciosa com o corpo coberto de véus, com
braceletes nos braços e tornozelos, com brincos nas orelhas, cheia de colares.
Seu perfume inebria, sua pele amaciada com óleos é um convite ao toque. To-
do seu corpo fala, como que dando boas-vindas à paixão. Não palavras, os
braços são estendidos, suave é a expressão dos olhos, as faces radiantes dizem
o que há para ser dito (MONTEIRO, 1998, p. 45, grifo da autora).
Os rituais hierogâmicos nas sociedades matrísticas seguiam-se de festas orgíacas, em
que a sexualidade era praticada de maneira mais franca e livre do que nas culturas posteriores.
A reprodução desses rituais aparece no capítulo “Jurupari”, em que, embora comemorando
um deus americano masculino e patriarcal, a festa assume conotações dos rituais dedicados à
deusa, por sua permissividade e desregramento:
Ainda reconhecemos os irmãos e as irmãs no pátio à luz do sol. Mas logo vem
a noite, e mais e mais cauim. Vai ser preciso muita atenção para que o pai e a
filha não se conheçam. os filhos e suas mães, suponho, e talvez também os
tios e suas sobrinhas saberão uns reconhecer aos outros. esses talvez, mas
nada é seguro. O mais provável é que daqui a pouco ninguém possa garantir
coisa nenhuma no meio desse mundo em que tudo gira girando e a direita fica
canhota, o dia anoitece, o de cima despenca, o de fora entra pra dentro, gozo-
so, e o de dentro sai, vomitado (RIBEIRO, 2001, p. 99-100).
O narrador prevê a desordem que se anuncia para o ritual em que possivelmente se que-
brarão todas as regras de parentesco. Com isso, antecipa, também, o que será o papel de Alma
na sociedade mairum, que, ao chegar com Isaías, instalar-se na casa Jaguar e relacionar-se
com o sobrinho do Avá, confundirá as regras de parentesco, fazendo retornar ao caos matrísti-
co a ordem instituída sobre o tabu do incesto. Quando o Avá a instalou em sua casa, o lar dos
onças, tratando-a como irmã, deu a entender que, segundo as regras de parentesco, ela podia
se relacionar com os outros clãs. “Eu não entendi, então”, diz Alma, “que aquilo era uma re-
cusa, que toda a aldeia estava sabendo que eu era onça e, se era onça, os outros, do outro lado,
podiam trepar comigo” (RIBEIRO, 2001, p. 298). Por outro lado, Isaías informa-a, a respeito
de sua relação com Jaguar, do clã dos onças: “Como você não é realmente uma onça, não
incesto. Ele pode andar com você”. E Alma conclui: “Vocês são uns oportunistas. Por isso ou
por aquilo, pais e filhos me fornicam dentro da lei” (RIBEIRO, 2001, p. 299). Entretanto,
mais tarde, como vimos, se orgulhará de sua condição, que pretenderá prolongar em sua des-
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cendência feminina. Chega a reconhecer que instaurou a desordem nas regras tribais, mas se
coloca acima dessas regras. Diz de seus encontros com Jaguar: “Aparentemente rompemos
com regras clânicas. É como um incesto, talvez por isso seja mais gozoso. [...] O próprio in-
cesto clânico, no nosso caso, meu e do Jaguar, não é essas coisas, porque eu pairo no ar,
acima das classificações ou abaixo, não sei, mas livre delas” (RIBEIRO, 2001, p. 315). É que
Alma naturaliza a lei,espírito às regras e corpo aos traços abstratos da cultura: “Eram bons
aqueles dias de convívio, de maledicência delicada, de riso claro. Eram úteis também porque
davam aos homens o sentimento de segurança de que eu, quando andava à noite pelo pátio,
estava em estado de pureza: era perfeitamente fodível” (RIBEIRO, 2001, 329).
Certamente Isaías também colabora no embaralhamento das regras, pois, como vere-
mos, ele é, ao lado de Alma, importante agente de caotização no enredo do Maíra. Quando
não se apossa da mulher que traz para a tribo, inverte a tradição patriarcal, devolvendo-a à
liberdade e ao convívio coletivo. Com essa ação, Isaías abre caminho para destruir o próprio
tabu do incesto, a lei maior, que, aliás, é o traço peculiar da sexualidade matrística e das reli-
giões da Grande Mãe. Como a deusa copula com o filho amante, “o hieròs-gámos, por princí-
pio, foi sempre incestuoso”, nota Maria Nazareth de Barros (2004, p. 28). É a própria Alma
quem alerta para o que os dois provocaram: “Abra os olhos, rapaz, o incesto solto aqui”. E
conta, para o apático Avá, os encontros de Inimá, prometida de Isaías, com o sobrinho deste,
Jaguar:
Você mesmo é o culpado. Até parece que pegou o tal complexo de castração
dos mairuns. Jaguar me contou a história da mulher com boceta dentada que
nem boca de piranha. Larga de guardar seu rancuãi, rapaz. Ninguém come ele
não. Mulher nenhuma tem dente não. na boca de cima. O que Inimá quer é
fornicar, o que ela gosta é de rancuãi; se você não trepa com ela, ela sai por
trepando com todo mundo (RIBEIRO, 2001, p. 311-312).
A imagem da vagina dentada, em que, aliás, congrega-se a ação nutricional e a sexual
do Regime Noturno, torna-se, então, uma espécie de símbolo para essa fome do corpo, que é
fome feminina, de libertar a matéria e conhecê-la por dentro, no fundo. Fome que levará a
uma predominância, no imaginário de Maíra, do que Bachelard (2003, p. 109) chamou de
“psicologia digestiva” e associou aos devaneios da Terra e das imagens da intimidade.
83
3.2 As imagens da Terra e a linguagem especular do Outro
Retomando a perspectiva de Gilbert Durand, verificamos que predominam em Maíra os
símbolos e termos referentes às atividades biológicas imanentistas, aquelas que orbitam em
torno das experiências e do sentido do corpo físico e de sua existência material. As dominan-
tes digestiva e sexual unem-se nitidamente, por exemplo, nestas palavras de Maíra, ao encar-
nar no corpo de Isaías: “Eta merda de corpo este, desgastado de tão mal gastado. É um tubo:
numa ponta, a boca, que bota a comida para dentro sem sentir o cheiro e o gosto. Na outra, o
cu, por onde caga, também sem gozo” (RIBEIRO, 2001, p. 301). Ou nesta outra passagem,
em que Nairú, falando aos rapazes iniciados, põe em relevo a ambigüidade do verbo comer ao
associá-lo às mulheres: “Atentem bem, de agora em diante nenhum de vocês irá mais às casas
das mulheres. se tiverem muita fome e quiserem comer alguma coisa durante o dia, ou no
futuro, já homens, quando casarem. Mesmo assim, irão à noite para ver suas mulheres”
(RIBEIRO, 2001, p. 103).
As imagens noturnas da dominante digestiva e sexual concentram-se, segundo as cate-
gorias de Bachelard, especialmente na imaginação da matéria terrestre, e caracterizam-se psi-
quicamente pelo desejo de um retorno à mãe.
A condição de geradora e nutriz da vida e o vínculo que une a mulher aos mistérios da
matéria também a associarão à Terra e aos benefícios que esta oferece ao homem através da
coleta de alimentos e da agricultura. Por isso, faz parte da cultura matrística “a predominância
da terra e da vegetação com todo o seu simbolismo” (NEUMANN, 2003, p. 49). A Terra
Tellus Mater, divindade da fertilidade foi o “primeiro elemento cultuado”, deusa que foi
“gerada por ela mesma”, e a figura feminina foi a primeira a se antropomorfizar (BARROS,
2004, p. 17-19). Eliade argumenta que, assim como o homem nasce da mulher, ele também se
acredita nascido da Terra e, portanto, a geração e o parto constituem “versões microcósmicas”
do milagre universal do surgimento do homem, em que “a mãe humana não faz mais do que
imitar e repetir este ato primordial da aparição da Vida no seio da Terra” (ELIADE, 2001, p.
119). A própria palavra “homem”, segundo o autor, significa, em muitas nguas, “aquele que
nasceu da Terra”. O exemplo pode vir de nossa própria língua, em que a palavra “homem”
origina-se de “humus”, isto é, o termo latim para designar a matéria fértil telúrica.
Além de relacionar-se “misticamente” com a Terra em função da analogia entre o parto
e a origem terrestre do homem, para Eliade, existe outra associação entre a fertilidade femini-
na e a telúrica. O autor atribui à mulher a invenção da agricultura, o que constituiria outro
motivo para relacionar a Terra e seus benefícios ao elemento feminino: “O fenômeno social e
cultural conhecido como matriarcado está ligado à descoberta da agricultura pela mulher. Foi
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a mulher a primeira a cultivar as plantas alimentares. Foi ela que, naturalmente, se tornou
proprietária do solo e das colheitas” (ELIADE, 2001, p. 121).
De qualquer forma, a mulher e a agricultura aparecem sempre associadas. Eisler (1989,
p. 50) observa que existem evidências de divinização da fêmea humana “nos três principais
centros de onde se originou a agricultura: Ásia Menor e sudeste da Europa, Tailândia e sudes-
te da Ásia e posteriormente também na América Central”. Beauvoir (1970, p. 88) afirma que
“o agricultor admira o mistério da fecundidade que desabrocha nos sulcos dos arados e no
ventre materno”. Como sabe que também foi concebido e gestado, semelhantemente à rês e às
colheitas, “a Natureza na sua totalidade apresenta-se a ele como uma mãe; a terra é mulher, e
a mulher é habitada pelas mesmas forças obscuras que habitam a terra”. Para a autora é em
parte por esse motivo que é confiado às mulheres o trabalho agrícola: “Capaz de atrair a seu
seio as larvas ancestrais, tem ela também o poder de fazer jorrar dos campos semeados os
frutos e as espigas”. Para o homem dessas sociedades agrícolas, “filhos e searas se lhe afigu-
ram dádivas sobrenaturais e são os misteriosos eflúvios emanando do corpo feminino que
atraem para este mundo as riquezas enterradas nas fontes misteriosas da vida” (BEAUVOIR,
1970, p. 88).
Para Bachelard (2003, p. 48), as imagens da Terra são as mais propícias para alimentar
devaneios de choques e conflitos. “Com muita freqüência a agitação intestina das substâncias
é apresentada como o combate íntimo de dois ou de vários princípios materiais” (grifo do au-
tor). Além disso, por um princípio “simplificador das imagens dinâmicas”, “toda luta é duali-
dade” e, reciprocamente, “toda dualidade é luta”. “Para a imaginação, toda substância fica
necessariamente dividida assim que deixa de ser elementar. [...] À menor desordem imaginada
no interior das substâncias, o sonhador julga-se testemunha de uma luta pérfida” (BACHE-
LARD, p. 50, grifos do autor). Assim, quando impulsionado pela solidez da matéria terrestre,
o sonhador desliga-se de um sentimento de uniformidade do eu para experimentar o conflito
dos elementos. Por conseguinte, essas são as imagens mais presentes quando o tema da ima-
ginação é o encontro com o Outro. É a Terra que oferece aos sentidos humanos a experiência
da matéria que resiste, logo, da realidade que se opõe e do Outro que se impõe. Bachelard
(2001, p. 29 e 31) afirma que o objeto duro e inerte propõe uma “rivalidade imediata” e “o
mundo resistente atrai a nossa agressão”. Por isso, a imaginação da resistência é a “substanci-
alidade imaginária do contra” (BACHELARD, 2001, p. 17, grifo do autor).
Se, por um lado, um primeiro contato com a matéria terrestre sugere uma sintaxe do
“contra”, por outro as imagens da profundeza não têm somente essa marca de hostilidade;
têm também aspectos acolhedores, aspectos convidativos” regidos pelo “signo da preposição
dentro(BACHELARD, 2003, p. 2, grifo do autor). Na verdade, do encontro do espírito com
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a matéria resistente eleva-se a dialética do sujeito e do objeto. A imagem material é, então,
“uma superação do ser imediato, um aprofundamento do ser superficial”, que “abre uma dupla
perspectiva”: para a “intimidade do sujeito” e para o “interior substancial do objeto”. No tra-
balho da matéria, “as intimidades do sujeito e do objeto se trocam entre si” (BACHELARD,
2001, p. 27).
Quando essa intimidade de um ser em outro é atingida, suscita os arquétipos e símbolos
da intimidade, da mãe, do ventre, do colo feminino, do berço (mas também do túmulo), do
centro, do microcosmo, do jardim paradisíaco, etc. Vejamos uma passagem exemplar em que,
reconquistado o direito do corpo, Alma e Jaguar encontram o amor numa concavidade do
mundo:
Este sentimento do mundo como meu ninho eu nunca tivera. Nem podia ter
senão aqui, onde a gente gasta os olhos de olhar adiante, adiante, e as
matas e os céus da criação original, sem marca da mão humana.
Mas o melhor mesmo desta tarde minha foi a inocência da nossa nudez, afinal,
consentida. Inocência culposa, gozosa, porque, na verdade, eu tinha um senti-
mento esquisito, mairum, de pudor absurdo por estar ali pelada, ao sol, tão pe-
luda, e também de vexame por sentir Jaguar nuinho, deitado comigo. A nudez,
aprendi ontem, é o ato íntimo, secretíssimo, da mulher e do homem que, sozi-
nhos no mundo, se desatam um diante do outro para o amor e a contemplação
(RIBEIRO, 2001, p. 330).
O universo todo é um ninho, o infinito encontra-se no muito pequeno, aconchegante e
apertado. Trata-se daquela “perspectiva dialética” anunciada por Bachelard, uma das formas
de contemplar o oculto no Outro. “Os devaneios verdadeiramente possessivos, aqueles que
nos dão o objeto, são os devaneios liliputianos”, defende o autor. Então, “o interior do objeto
pequeno é grande. [...] Assim que vamos sonhar ou pensar no mundo da pequenez, tudo en-
grandece. Os fenômenos do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico” (BACHE-
LARD, 2003, p. 11-12, grifo do autor). Como Adão e Eva redimidos, o casal encontra docili-
dade na culpa pela exposição do Outro. O estar “pelada” salva-se por ser “peluda”, ter um
corpo. A volta à mãe trai-se por uma recusa da consciência expressa pela “mão humana”. A
evolução é um retorno, olhar “adiante” é retornar os olhos para trás. É que “o interior da noz
possui o valor de uma felicidade primitiva”, guarda os sonhos “da intimidade bem protegida”,
e “os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto são devaneios de felicidade”
(BACHELARD, 2003, p. 13-14).
Por essa peculiaridade de suscitar imagens da felicidade primitiva, os devaneios da in-
timidade da Terra são os que encontram maior resistência por parte de um imaginário raciona-
lizado e cientificista. Em Isaías, a fome que redime Alma conduz à tortura psicológica, uma
vez que não se exerce como fome do corpo:
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Somente a vida intelectual me alimenta aqui. Ainda que reduzida à aridez de
Gertrudes, com sua geometria gramatical, e à exuberância demoníaca de Teid-
ju, é só dela que eu vivo. É curiosa essa fome voraz da minha dentadura espiri-
tual e esta inapetência sem remédio de minha boca carnal. Inapetência? Não
posso deixar de admirar e invejar em todos os mairuns, inclusive em Alma, es-
te apetite voraz para viver, esta capacidade de dedicação e de gozo na tessitura
de relações harmoniosas uns com os outros. Não tenho estes talentos. Sou uma
pobre máquina de pensar e de rezar, que Deus me ajude (RIBEIRO, 2001, p.
305).
Alma também lamenta a situação de Isaías: “Quem não gosta da mirixorã Canindejub?
Isaías! Mas que diabo espera ele de mim? Não sou feita como ele. Graças a Deus, tenho
ganas, tesões, desejos” (RIBEIRO, 2001, p. 314).
Alma e Isaías são caracteres complementares e fazem parte, como veremos em capítulo
à frente, da estrutura catóptrica do romance de Darcy Ribeiro. Nos devaneios terrestres, o so-
nhador “coloca um não-eu defronte do eu” (BACHELARD, 2001, p. 29, grifo do autor). Todo
elemento encontra uma imagem especular. Como se nas paisagens descritas pelo narrador:
“Entre o rio e o céu, a canoa corre ligeiro, debaixo do sol, em cima do espelho das águas. Pon-
to negro movente na imensidão. As praias se escondem esfumadas na distância. A mata é uma
faixa escura, no horizonte. Às vezes se projeta invertida, no céu: miragem” (RIBEIRO, 2001,
p. 167); “lá no alto, outro Iparanã parece correr no teto do mundo. Miragem!” (RIBEIRO,
2001, p. 361). Numa projeção inversa, os olhos confundem o objeto com a imaginação do
objeto, e o céu, símbolo da sublimidade espiritual, é dominado pelo mundo físico, baixo, ctô-
nico. Nestas paisagens maculadas pela presença do Outro, o universo nunca é plano: “A canoa
voa no rio, o sol voa no céu” (Ibid., p. 181). Um movimento num plano encontra sempre simi-
lar no movimento em outro plano e o mundo torna-se espaço fechado num círculo. Neste ca-
so, o céu, que poderia projetar a imaginação para um além da cena, repete-a, encerrando a
imagem sobre si mesma.
Mércio Pereira Gomes diz, da prosa de Darcy Ribeiro, que o autor “se deleita com as
palavras e com as idéias que delas se formam, gostando de brincar com palavras, qual um
poeta, com idéias absurdas e delírios do pensamento”, num estilo que lembra e “tenta recupe-
rar a linguagem arcaica, barroca, próximo do estilo de um Guimarães Rosa ou de um José
Saramago”, com um “amor pelas idéias imaginativas” (GOMES, 2000, p. 21). Entretanto,
cabem aqui duas observações.
Em primeiro lugar, a de que a manipulação da linguagem em Darcy Ribeiro não é uma
questão de virtuosismo ou atitude maneirista. A “brincadeira” com palavras e o “barroquis-
mo” de Darcy não é questão de puro ludismo, mas um valioso recurso expressivo, resultado
87
de uma obsessão temática com o Outro e da linguagem catóptrica que ela suscita, ocupada em
manifestar a dialética dos opostos.
Como é na linguagem que se constituem os valores de cultura e seu poder de automanu-
tenção e coerção, Darcy Ribeiro procura desarticulá-la para dissolver esses valores. O meca-
nismo é o da exploração da palavra e da sintaxe, fazendo-as revelar o que escondem, o outro
subsumido pela função que caracteriza toda linguagem lógica de bem representar concei-
tualmente. Em uma palavra, por exemplo, o autor busca remexer sua estrutura, substituindo
ou compondo sufixos e prefixos para multiplicar seus significados, denunciando as diferenças
entre vocábulos de mesma etimologia, mas também suas semelhanças, apesar da diversidade
de formas; ou flexioná-la num modo gramaticalmente proibitivo, para desvelar o que a proibi-
ção oculta; ou, ainda, justapô-la a uma palavra contrária, para que, espelhada assim uma na
outra, cada palavra mostre suas limitações acusadas por suas antíteses. Em: “Aquele anjo-
índio navarro olhará” (RIBEIRO, 2001, p. 320), por exemplo, no substantivo composto justa-
põem-se dois vocábulos semanticamente inversos, em que ao anjo, alusão a uma espirituali-
dade desencarnada, vem juntar-se o índio, expressão do “selvagem”, telúrico e instintivo.
Com mais freqüência, porém, aparece a mesma palavra rearranjada pela manipulação de
prefixos ou sufixos que lhe invertem ou desvirtuam o sentido original: “Esses meus mairuns
se querem assim como estão feitos, refeitos. Bem feito, serão desfeitos(RIBEIRO, 2001,
p. 331). O trocadilho mostra como a escatologia de Maíra não serve para a reinstauração de
uma cultura, mas a da destruição total de qualquer sistema instituído e de todo centro ordena-
dor de sentidos. Uma espécie de sinopse desta intenção aparece duas linhas depois deste ex-
certo, quando Maíra se nomeia um deus “contrafeito”.
Mecanismo semelhante aparece em: “Estou cheio de desgosto com o gosto de minha
boca” (RIBEIRO, 2001, p. 107, grifos meus); “Eta merda de corpo este, desgastado de tão
mal gastado” (RIBEIRO, 2001, p. 301, grifos meus); “desinsofridos, desinfelizes” (RIBEIRO,
2001, p. 203); “despossuídos” (RIBEIRO, 2001, p. 328). Existe, como se pode notar, uma
insistência no prefixo “des”, pelo seu significado de negação, de ação contrária à do vocábulo
prefixado. O deslocamento do sentido original da palavra obriga a uma leitura circular, em
que sentidos opostos dialogam na mesma expressão. Em alguns momentos, este efeito é obti-
do pela simples repetição vocabular, como em: “O fim do fim de toda a vida” (RIBEIRO,
2001, p. 321), onde a duplicação consecutiva da palavra “fim” converte o termo na sua pró-
pria negação, pois o “fim do fim” pode ser um começo ou, ainda melhor, um recomeço,
situação em que o “fim da vida”, isto é, a morte, sofre um processo de eufemização para tor-
nar-se o início da vida.
88
A perversão da norma, por outro lado, também serve, na prosa de Darcy Ribeiro, para
dar expressão às imagens do Outro e do caos. Além de ocasionais desobediências à sintaxe
convencional da frase, ocorrem também em seu texto flexões vocabulares ilícitas. Vejamos
uma passagem: “São trabalhos do Senhor do Universo. D’Ele, de quem nos deu seu olho por
morada. Lá, quem sabe, ele vive, convive, e fala com outros. Quens? Serão Deuses? Cria-
turas? Haverá um Deus de deuses?(RIBEIRO, 2001, p. 318, grifo meu). Flexionando o pro-
nome indefinido invariável na forma plural, o narrador substância ao sentido vácuo e abs-
trato do termo, concretiza e personaliza em muitos o Nada, criando, para os sentidos, uma
imagem sugestiva do Vazio Pleno, uma ausência lingüisticamente materializada.
Ocupado, portanto – pela temática do “Não-Ser” –, em preencher os vãos do signo e ex-
plorar lingüística e esteticamente a falta, é de se esperar que prevaleçam, no estilo de Darcy
Ribeiro com o Maíra, as figuras de exaltação do ilógico: antíteses “alegrias das festas [...]
tristeza do choro” (RIBEIRO, 2001, p. 56); “esperando para ir adiante, voltando atrás” (RI-
89
quismo. O repouso é negado para sempre. A própria matéria não tem direito a
isso. Afirma-se a agitação íntima. O ser que segue tais imagens conhece então
um estado dinâmico que é inseparável da embriaguez: é agitação pura. É for-
migueiro puro (BACHELARD, 2003, p. 57, grifos do autor).
É o processo, na visão do autor, que leva a linguagem aos fenômenos de tropismo, das
metáforas e sinestesias, que buscam “o outro no interior do mesmo”, quando, então, “um sen-
tido é excitado por um outro sentidoe um substantivo pode reunir dois adjetivos contrários.
Isso permite “a oportunidade de viver uma ritmanálise que consegue restituir duas tentações
contrárias em uma situação em que o ser equívoco exprime-se como ser equívoco, como o ser
de dupla expressão”. Na “imaginação tonalizada das duas qualidades contrárias”, as “contra-
dições que seriam intoleráveis em seu primeiro estado sensível tornam-se vivas em uma trans-
posição para outro sentido” (BACHELARD,2003, p. 64-65, grifos do autor).
O segundo comentário que gostaria de fazer ao texto de Mércio Pereira Gomes citado
acima diz respeito à aproximação que com freqüência se faz entre o estilo de Darcy Ribeiro e
o de João Guimarães Rosa. Também se falou de “barroquismo” com relação ao estilo rose-
ano. Entretanto, gostaria de ressaltar algumas diferenças que percebo na linguagem dos dois
autores.
Muitas qualidades aproximam os estilos de Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa: o aprovei-
tamento do linguajear oral, a combinação de semas e extratos lingüísticos contrários, as figu-
ras de harmonia conferindo ritmo poético à prosa, a habilidade, enfim, de desarticular a mor-
fologia e a sintaxe para aproveitar seus recursos expressivos. Numa palavra, existe um traço
que une a prosa dos dois autores mineiros, que alguns críticos definiriam por “barroquismo” e
eu prefiro chamar de exuberância da língua. Ambos desenvolvem uma linguagem perifrástica
e um discurso elíptico: existem mais coisas ocultas do que reveladas em seus textos, graças a
um estilo de superabundância semântica. São ambos autores de profundidade, que descem à
matéria do mundo para buscar uma infinitude do mínimo e, por isso, compartilham estilisti-
camente uma filiação às imagens terrestres. Entretanto, existe uma espessura em Rosa, mas
uma profundeza do abismo em Darcy Ribeiro, distinção que pode ser melhor compreendida
pela dupla segmentação que Bachelard propõe para os devaneios da Terra. O autor dividiu
seus estudos sobre a imaginação da matéria terrestre em dois volumes, para dar conta dos dois
diferentes movimentos, a extroversão e a introversão, a vontade e o repouso: o primeiro cuida
dos “devaneios ativos”, de “agir sobre a matéria”, do trabalho; o segundo segue uma “involu-
ção” para as “imagens da intimidade”. “Parece que a matéria tem dois seres: seu ser de repou-
so e seu ser de resistência”, defende. “Encontramos um na contemplação, o outro na ação”
(BACHELARD, 2001, p. 35). “Funda-se assim uma psicologia da preposição contra que vai
90
das impressões de um contra imediato, imóvel, frio, a um contra íntimo, a um contra protegi-
do por várias barreiras, a um contra que não cessa de resistir” (BACHELARD, 2001, p. 1-2,
grifos do autor).
Como os devaneios da Terra são, pois, devaneios da energia, para ver como essa dinâ-
mica se configura nos estilos de Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa, comparemos duas imagens
de movimento em ambos os autores, e veremos que as diferenças despontam. Primeiro uma
descrição de um temporal com enchente no conto “Um moço muito branco”, de Guimarães
Rosa (1985, p. 90):
Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos,
e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou
casas, remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho tempo-
ral, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córre-
gos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o ter-
reno, em raio de légua, mudara de feições: só escombros de morros, grotas es-
cancaradas, riachos longe transportados, matos revirados pelas raízes, soleva-
dos novos montes e rochedos, fazendas sovertidas sem resto rolamentos de
pedra e lama tapando o estado do chão. Mesmo a distância do astroso arredor,
a muita criatura e criação pereceu. Soterradas ou afogadas. Outros vagavam ao
deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos de outrora.
Agora um excerto do Maíra, do capítulo “Jurupari”, em que se narra uma festa orgíaca
na tribo mairum:
Gira com a força do mijo de Deus, gira que gira a roda da festa. A festa que
agora é a roda da vida e a tudo entrevera: a caatinga do tuxaua Anacã, o cheiro
picante da boa comida e o odor espumante do cauim. O vermelho do urucum,
o negro-azulado do jenipapo e os amarelos de todas as ararajubas e japus. O
gosto de carne e o gosto de peixe. A irmã e a cunhada, o tio e o sogro, a filha e
a nora. O assobio e o ronco. O beiju de mandioca e a bola de piqui. O arroto e
o peido. O vômito e a bosta. O sangue e o leite. O sêmen e o suor.
Rola a roda que rola e torna a rodar. Tudo rola ao redor do umbigo do mundo:
esse pátio mairum com o tuxaua Anacã plantado no meio. ele é fixo no
mundo que roda a girar. Gira a luz na cova do céu azul da amplidão. Nas altu-
ras Maíra e Micura bebem cauim, giram e dançam, caem de bêbados, cantam e
rolam de rir. Roda tudo e rolam despencando do fundo do céu, as estrelas
tombando de bêbadas, girando sem eixo, na pele azulona do jaguariouí de
Deus Pai. embaixo, rodam que rolam no espaço ambir os mortos-manon
bebendo cauim e esperando Anacã. Até os mamaés dos oxins esvoaçam e
grasnam chumbados (RIBEIRO, 2001, p. 100).
É notória a mesma paisagem caótica, agitada e rumorosa nos dois excertos, sugerindo
confrontos e misturas de elementos. Em ambos, os contornos dos objetos se perdem, levados
pela ação de um movimento impetuoso. Mas o mesmo movimento parece ter, em Rosa, um
vetor de direção. Em seu percurso, ele faz emergir das coisas a sua força para as confundir
91
num amálgama, como é a intenção de toda imagem terrestre. Desenraizados, os objetos mos-
tram seu avesso, o espaço revela outra geografia. Esse vetor do movimento, que em Rosa pa-
rece angular, ziguezagueando entre as coisas para realçar-lhes ainda mais suas qualidades, em
Darcy Ribeiro é circular, e os objetos são revelados pelos seus opostos ou complementares.
São, nesse aspecto, significativos os termos aos pares para definir o tumulto que “tudo entre-
vera” no texto do Maíra. Notem-se, ainda, os períodos assindéticos de Rosa em contraste com
o predomínio da preposição aditiva em Darcy Ribeiro. A palavra de Rosa é uma cascata; a de
Darcy Ribeiro, um sorvedouro. A luminosidade semântica do estilo roseano faz da linguagem
um tesouro de jóias e pedrarias; o estilo de Darcy Ribeiro não é a pedra, mas o limo onde tudo
se amalgama e escurece.
Por outro lado, no excerto de Rosa terra e água se embatem, mas continuam imiscíveis,
o que se percebe, por exemplo, na conjunção alternativa que às criaturas mortas destinos
diferentes, “soterradas ou afogadas”. Mas, se lá os elementos lutam entre si, em Darcy Ribeiro
eles se absorvem mutuamente, e o ar na asa dos espíritos (mamaés) tem o peso terrestre do
chumbo. Aliás, em se falando em chumbo, não faltam, nas figuras da língua alquímica de
Darcy Ribeiro, nem as cores espagíricas do negro, do vermelho e do amarelo.
Em Rosa, o Bem e o Mal se enfrentam; em Darcy Ribeiro, se confundem. Como Rio-
baldo, as personagens de Rosa se incomodam com o mal, enquanto as de Darcy Ribeiro bus-
cam acomodar-se a ele. Comprova-se o estilo fusionista de Darcy Ribeiro observando-se a
linguagem de Alma e Isaías, povoada de figuras de ambigüidade, como neste pensamento da
moça: “Servi-lo com minha alma e com meu corpo, no sentimento e na dor. Do mundo nada
quero e tudo quero. Isso é o que peço agora: [...] o gozo de sofrer pelo amor de Deus” (RI-
BEIRO, 2001, p. 91), em que as antíteses iniciais conduzem à fusão dos contrários no oxímo-
ro do gozo sofredor, ou no paradoxo de uma explicação a Isaías, em que ela afirma, ao mesmo
tempo, o bem e o mal de sua escolha: “Meu desejo egoísta de colocar-me a serviço de Deus”
(RIBEIRO, 2001, p. 128).
Igualmente, mas talvez com maior intensidade, pois registrado num estado de maior
tensão e insolubilidade, o discurso de Isaías também é marcado pela antítese e pela negação.
Cada frase afirmada é consecutivamente negada por outra:
Preciso rezar ainda mais. Mas rezo cada vez menos e com menos fé. Minha
está minguando. Será de tanto pedir o que ela não me pode dar? Não tenho di-
reito de esperar milagres. Ainda milagres? Talvez nunca tenha havido. E,
afinal, o milagre que peço, qual é? É que Deus mude minha substância, me fa-
ça genovês ou congolês ou brasileiro ou um homem qualquer. Isto não é pro-
blema pra Deus. É problema meu. Tenho é que me aceitar tal qual sou, para
92
mais respeitar em mim a sua obra. Obrinha de merda, Deus que me perdoe
(RIBEIRO, 2001, p. 43, grifos meus).
Por uma série de recursos e pela presença de expressões dubitativas, o texto torna-se pe-
rifrástico, e fica a impressão de um pensamento viscoso, que não avança, mas volve sempre
sobre si para negar-se: orações afirmativas são seguidas por suas próprias negativas, num pa-
ralelismo sintático que as irmana em mútua exclusão; expressões interrogativas abrem lacunas
no pensamento e são freqüentemente respondidas negativamente; frases alternativas impedem
a afirmação de fixar-se num único sentido; sentenças aparentemente seguras são logo destitu-
ídas de sua verdade por juízos contrários. A negação parece, sempre, de alguma forma, acom-
panhar as afirmações da maioria das personagens: “Você me acha abominável, não é Isaías?
Abominável ou não, agora mesmo ela foi trepar . Você sabe com quem, ?”; Ninguém co-
mo ele não. Mulher nenhuma tem dente não”; “Eu não tenho nada com o mundo de fora.
Tenho tudo é com essa vidinha daqui. Não largo esse osso, não(RIBEIRO, 2001, p. 311-
312, grifos meus); ou ainda: “Ó, eu, Teidju! Eu já, não agora, nada! Nenhum: ninguém. Não
eu, eu não!” (RIBEIRO, 2001, p. 269, grifos meus).
Isaías tem uma definição para o seu discurso e o de Alma que, a meu ver, é precisa e e-
loqüente: “Ambos fazemos discursos gordos, dona Alma”, conclui o ex-padre, percebendo
que essa “obesidade discursiva” está justamente numa rotundidade, na circularidade das falas
e intenções: “Veja só, prossegue ele, a senhora pedia, ao que parece, minha ajuda. Agora quer
me ajudar. Temo muito que nenhum de nós possa ajudar a ninguém” (RIBEIRO, 2001, p.
129). No estilo de Darcy Ribeiro e de suas personagens, impera a simetria, em que todo ele-
mento sempre devolve ao outro uma face desconhecida e oculta que precisa revelar-se. Da
certa freqüência de uma sintaxe elaborada a partir de frases diádicas e catóptricas, como nes-
tes trechos: Isaías se pergunta o que significa esse encontro de uma mulher que vai e de um
homem que vem, pelo mesmo caminho” (RIBEIRO, 2001, p. 131); “Estão todos desejando
uma espécie de milagre, uma eclosão, que faça sair de dentro das suas poucas carnes, de den-
tro do seu corpo esquálido um outro ser” (RIBEIRO, 2001, p. 254-255, grifos meus); “Um
menino, Toí; uma menina, Manitzá. Todos repetem gritando Toí, para Toí; Manitzá, para Ma-
nitzá” (RIBEIRO, 2001, p. 59). É como se tudo tivesse que ser dito pelo menos duas vezes, a
sugerir ao leitor, sempre, a possibilidade de, no mínimo, duas vias de leitura na frase, como a
denunciar que toda ação é recíproca, de direção dupla: “Como evitar o desastre inevitável que
a eles e talvez a mim, a nós também, soçobrará?” (RIBEIRO, 2001, p. 332, grifos meus).
Esta obsessão pela simetria manifesta-se, às vezes, em curiosas ocorrências, como neste
discurso do apocalíptico Xisto: “O cordeiro de Deus virá para rasgar as sete cartas, romper os
93
sete selos, soprar as sete cornetas, montar os sete cavalos, soltar os sete anjos de fogo, quei-
mar as sete igrejas infiéis e elevar à glória os sete espíritos puros que encontrará” (RIBEIRO,
2001, p. 320, grifos meus), em que a ênfase no místico número sete rege a elaboração do perí-
odo em sete verbos e sete orações.
É bom atentar, contudo, que simetria, em Darcy Ribeiro, não tem o sentido vulgar da
regularidade de proporções, mas atende, antes, ao significado original de “justa proporção”,
entendendo-se por “justo” um modo eqüitativo e imparcial de tratar a linguagem. Simetria é,
portanto, a multiplicação de vetores num espelhamento en abyme do código, em que uma
forma ecoa em outras, como na algaravia miscigenada da canção da personagem Boca:
Iparanã, paraná-panema: Ipanema.
Iparanã, paraná-d’água
Panem-panam: barbuleta
Barbuleta azul – Panam-oui, panam-oui, ouii
Tanajura. Tanajura, bunda mole, bunda dura.
[...]
Ê Belém bom. Puta, tanta puta
Puta, putada. Deputado, deputada
[...]
Te mata, negra descarada
Negra relaxada, regaçada, reganhada (RIBEIRO, 2001, p. 50-51).
Na fala de Boca, simlaridades sonoras suscitam similaridades semânticas, níveis de lin-
guagem se confundem, o jogo de “palavra-puxa-palavra” sugere uma infinitude da linguagem,
pela infinitude potencial de qualquer termo individual, uma vez que, de uma palavra, por as-
sociações, pode-se encontrar todas as outras, como se cada signo conservasse, oculto, um
germe de todos os sentidos que exclui, o Não-Ser sacrificado pelo conceito. Retirar a porção
oculta e reuni-la à que foi apartada parece ser o móvel que conduz a voz narrativa em Maíra.
A síntese é a utopia lingüística do estilo de Darcy Ribeiro.
Maria Luiza Ramos (2000, p. 144) compara o enredo literário de Maíra com a forma-
sonata, dos gêneros musicais, explicando: “Na forma-sonata, além de se anunciarem os dois
tons que vão dialogar, há todo um desenvolvimento deles, que retornam depois da exposição e
terminam numa coda em que se pode verificar um stretto quando os dois temas se fundem –
ou a vitória de um sobre o outro”. A autora argumenta que, analogamente, a trama do roman-
ce obedece a uma lógica em que, primeiro se apresenta um tema, desenvolvido em seguida a
partir do confronto com um termo contrário, para, ao final, ser re-exposto numa síntese dialé-
tica. Uma dessas tríades ocorre quando, no segundo
94
para encerrar com o mito de “Jurupari”, em que, no contexto mairum, narra-se a supremacia
masculina através do temor inspirado pelo monstro mitológico.
Gostaria de acrescentar que esta “forma-sonata” caracteriza não apenas a gramática ma-
croestrutural de Maíra, mas se revela também no nível frásico ou segundo a terminologia
adotada por Todorov (2003, p. 24-25) – no aspecto verbal do romance. É freqüente a presença
de expressões diádicas e triádicas no estilo de Darcy Ribeiro. Essas construções são profusas
no texto de Maíra, onde aparecem com os mais variados matizes e nos três aspectos do signo
vocabular – fonético, sintático e semântico.
Em Maíra, tudo tem seu duplo: a missão católica tem seu contraponto na protestante; o
relato de Isaías confronta-se com o relato de Nonato; mas, entre um e outro elemento, sempre
há um termo médio, a encruzilhada, o Caos: Xisto é a reunião sincrética das religiões, como o
relato mítico de Maíra-Micura serve de signo de confluência para os relatos antitéticos de
Isaías e Nonato. Por isso, mais que as construções diádicas, prevalece no texto de Darcy Ri-
beiro um modo tresdobrado de afirmar e narrar, num estilo marcado predominantemente por
uma gradação de três termos frásicos. Repare-se nestes excertos: “Os que comem beiju, os
que gostam de pacu, os que riem com gozo” (RIBEIRO, 2001, p. 60); “Hoje, afinal, Anacã
será chorado e sepultado. Morrerá, por fim, para si mesmo, para nós mairuns, para o mundo
inteiro” (RIBEIRO, 2001, p. 119); “Ora choram baixinho, um choro lamuriento, cantado. Ora
choram alto, num pranto aberto, lamentoso. Ora choram aos gritos sufocados, lavando-se em
lágrimas” (RIBEIRO, 2001, p. 121); “Hoje muito casamento se faz, se desfaz, se refaz” (RI-
BEIRO, 2001, p. 105). Em todos os casos, o estilo prima por fazer da frase uma vereda que
conduz de um conceito a outro com um ponto médio, em que podemos identificar modos de
gradação expressos por diferentes vias: pelos verbos “comer”, “gostar” e “rir”, no primeiro
excerto; pela expansão da morte de Anacã, do indivíduo para o mundo, com a tribo de inter-
médio, no segundo; pela intensidade do choro das mulheres, no terceiro, que cresce do baixi-
nho/lamuriento/cantado ao alto/aberto/lamentoso e finalmente até os gritos sufoca-
dos/lágrimas; pelos sufixos “des” e “re”, que se apóiam no verbo “fazer” para mostrar o ritmo
cíclico de toda criatura ou processo, que nasce e morre para renascer como eterno.
Este último tipo de gradação é especialmente exemplar do estilo do autor, no qual, mais
freqüentemente, o terceiro termo aparece como confluência semântica dos dois anteriores.
Como são muitos os trechos que recolhi para exemplificar esta característica estilística de
Darcy Ribeiro, listo-os, um a um, seguidos de um comentário explicando-lhes a estrutura triá-
dica:
95
“Ele sou eu. Eu sou ele, sou nós, e assim havemos de viver” (RIBEIRO, 2001, p.
109) – A epanástrofe entre os pronomes singulares das primeiras sentenças reúne-
se, em seguida, na forma plural;
“Não digo não. Não digo sim. Não faço tudo” (RIBEIRO, 2001, p. 305) A frase
final expressa a relatividade de comportamento sugerida pela combinação das du-
as primeiras;
“São mulheres de todos. São mulheres de ninguém. São mulheres de si mesmas”
(RIBEIRO, 2001, p. 111) Ao descrever-se as mirixorãs, espécie de prostituta
sagrada entre os mairuns, a preposição “de” tem os sentidos deslocados de uma
frase a outra, para que se consiga dar conta da ambigüidade de seu status na tribo:
a personagem afirma-as como dedicadas à coletividade, mas sem donos, sem ma-
ridos exclusivos, isto é, entregues à sua própria vontade e senhoras do seu desti-
no;
“Não sou o soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado que re-
torna com saudades da raiz. Sou o outro em busca do um. Sou o que resulto ser,
ainda, nesta luta por refazer os caminhos que me desfizeram” (RIBEIRO, 2001,
p. 107) Depois de duas sentenças negativas em paralelismo sintático, a perso-
nagem finaliza com uma oração afirmativa, como a definir o que as outras o
fazem pela exclusão; não obstante, também a definição mantém a vacuidade das
orações predecessoras, pelo hermetismo de sua linguagem, como a resumir, afir-
mando, o que só se diz por meio de negativas – o vazio;
“Não sou só. Não sou único. Nem sou deles” (RIBEIRO, 2001, p. 331) O
primeiro termo (“só”) é retomado na frase final com outro sentido, adquirido do
termo da oração mediadora e, de “sozinho”, “isolado”, passa a novo significado,
de posse; ou, de outra maneira: o sujeito nega-se estar sozinho, numa frase auto-
reflexiva, isto é, cujo sentido se encontra exclusivamente na referência do próprio
falante; em seguida, nega-se ser “único”, o que já exige, para que se interprete o
termo, que se pense num referencial alheio ao sujeito – ele não é “único”, com re-
lação a terceiros que devem existir como ele; finalmente, sujeito que afirma e ter-
ceiro oculto na segunda frase combinam-se sintaticamente na terceira;
“É uma dança cantada, triste e alegre, de negação da morte, de afirmação da vida,
de reintegração do mundo” (RIBEIRO, 2001, p. 60) No trio de atributos para a
dança ritualística dos mairuns, o terceiro termo congrega a antítese de morte e vi-
da, pois define a primeira como a passagem para a segunda, isto é, a destruição de
um mundo para a criação de outro;
96
“Vendo, com doçura, a velhice nos que conheci maduros. Vendo, com gosto, nos
meninos de ontem, os homens de hoje. Vendo, com amor, toda a gente nova que
nada sabe de mim” (RIBEIRO, 2001, p. 108) A frase do Avá caminha da velhi-
ce à infância dos mairuns, do passado ao futuro (ou vice-versa), para encerrar
com uma sentença cumulativa, que reúne todos os indivíduos no substantivo
“gente”; repare-se ainda a gradação nas locuções adverbiais: “doçura”, “gosto”,
“amor”;
“Nunca atravessei este estirão sem cobrar um pacu ou um tucunaré, ou os dois”
(RIBEIRO, 2001, p.334) Estrutura simples (e freqüente no texto do romance),
em que o último termo soma os anteriores;
“Eles andam, desconfiados, olhando para os lados, reconhecendo um, outro, cada
um” (RIBEIRO, 2001, p. 368) – Duas tríades sobrepostas, forma enriquecida que
aparece muitas vezes no estilo do autor e que abrilhanta as melhores passagens do
texto: na primeira, três verbos em diferentes modos sintetizam a ação do sujeito,
um estado e uma circunstância; o quarto verbo (e segundo gerúndio) inicia uma
segunda tríade “um, outro, cada um” em que o terceiro termo distribui-se en-
tre os dois anteriores;
“Talvez seja bom. Talvez seja ruim. Quem sabe?” (RIBEIRO, 2001, p. 55) O
conteúdo dubitativo das duas orações paralelísticas resume-se numa pergunta fi-
nal e geral;
“Que será este meu filho ou esta minha filha? Será mairum como eu quero que se-
ja? Será um branco caraíba como eu era, como ainda sou, apesar de mim? Ou
não?” (RIBEIRO, 2001, p. 328) – Caso semelhante ao anterior, em que a pergun-
ta final relativiza as anteriores e as repropõe;
“Quem é que desperta, cada dia, a manhã com suas luzes, deixando ver, em seu
esplendor, a obra de Deus? Quem é que, de tardezinha, solta as trevas noturnas e
acende no céu a lua e as estrelas? Quem é que destila a chuva e a derrama no
mundo para renovar os verdes?” (RIBEIRO, 2001, p. 318) Forma mais comple-
xa, em que a triangulação se multiplica em mais de um plano: em um pode-se ve-
rificar uma gradação demiúrgica nas instâncias de criação, em que a pura luz des-
dobra-se em astros e em vida sobre a Terra; em outro, novamente o ciclo vida-
morte-vida encontra outra figura, pela combinação da manhã (nascimento) e da
tarde (morte), para reunir-se na expressão primaveril “renovar os verdes”; num
terceiro, o dia e o mundo (“obra de Deus”) opõem-se à noite e ao céu (“a lua e as
97
estrelas”), mas os dois pólos se comunicam pelo elemento de transição da chuva,
o líquido fertilizante celeste que se derrama na Terra.
“Sai a florida canoa-ubá, com o patuá de ossos recamados e o mastro deitado, em-
purrada pelas varas que Jaguar e Teró firmam no fundo do rio. Atrás, aos poucos,
vão saindo todas as dezenas de ubás dos mairuns que entram pelo rio adentro, a-
companhando o funeral. Navegam devagar, rio acima, com varas e remos, até o
furo que vai dar na Lagoa dos Mortos” (RIBEIRO, 2001, p. 123) Imagem i-
gualmente complexa: em primeiro lugar, três perspectivas do rio congregam-se
nessa imagem dividida em três períodos gradativos: o fundo do rio, o rio adentro
e o rio acima; o elemento humano do cenário também se gradua, da individuali-
dade da ubá de Teró e Jaguar, para a multidão de canoas mairuns que os segue e,
finalmente, para a coletividade total na Lagoa dos Mortos; finalmente, a imagem
terminal da Lagoa une as pontas do rio numa massa de água circular, como no
trecho que segue;
“Navegam rio acima, rio abaixo e pelas lagoas em grandes voltas” (RIBEIRO,
2001, p. 254)O vai-e-vem expresso nos advérbios das orações paralelas encon-
tra sua imagem final na circularidade das voltas e das lagoas;
“Minúsculos beija-flores, cuitelos, cada qual de sua cor, colibrincam: revoam, pa-
ram instantâneos no ar, indo e vindo em riscos lineares de flor a flor” (RIBEIRO,
2001, p. 57) Um dos momentos mais felizes do estilo trinário do autor, em que
as triangulações se acumulam e sobrepõem-se: o par sinonímico de “beija-flores”
e “cuitelos” reúnem-se num terceiro sinônimo, convertido em verbo “colibrin-
cam” –, cuja ação se desenvolve numa segunda gradação verbal, em que os mo-
dos indicativos passam a gerúndio no terceiro termo; aqui, desdobram-se as tría-
des: “revoam” e “param” opõem o movimento à estaticidade dos pássaros, confe-
rindo à paisagem uma dinâmica que se intensifica no par de verbos no gerúndio
(“indo e vindo”).
Os excertos acima são passagens em que pude perceber semas deslocando-se de um
termo a outro da triangulação, para estabelecer, estilisticamente, aquela “forma-sonata” que
Maria Luiza Ramos percebera no enredo de Maíra. Entretanto, ainda que não seja tão evi-
dente uma aproximação semântica dialética entre os termos, é inegável uma presença obsessi-
va da construção triádica na sintaxe dos períodos e orações. Vejamos outros casos: “É um
cheiro agudo como ponta de flecha, leve como penugem, cortante como lasca de taquara”
(RIBEIRO, 2001, p. 55); “Saúdam, persignam-se, abençoam, tranqüilizantes. [...] Uns e ou-
98
tros, silentes, se vêem, se julgam e se perdoam” (RIBEIRO, 2001, p. 160); “Só fartura de
água, de céu, de luz” (RIBEIRO, 2001, 167); “Tira algum gozo recôndito desta mirada furti-
va, roubada, envergonhada. É a primeira vez que vê, desde rapaz, uma mulher em pêlo, nua,
nuela, pelada. É a primeira vez na vida que uma fêmea despida, peludíssima, em armas”
(RIBEIRO, 2001, p. 185); “Saem agora, clarinhas, matinais, resplandecentes” (RIBEIRO,
2001, p. 265); “Debaixo da minha luz: tecnicolor, cintilante, luminoso” (RIBEIRO, 2001, p.
285); “O corpo todo está aceso, pronto, de alcatéia. A cabeça erguida, ameaçante, vigilante. O
tronco gira livre sobre as pernas, os braços se abrem com gosto, as mãos e os dedos são bons
para apalpar, para acariciar, bolinar” (RIBEIRO, 2001, p. 285); “Logo virão as chuvas, e vai
haver muita folha nova, folha verde, folha vermelha” (RIBEIRO, 2001, p. 304); “Tratando
quantos doentes há, quantos peçam, quantos queiram” (RIBEIRO, 2001, p. 304); “Anulados
no próprio convívio estereotipado: ‘bom dia’, ‘passe bem’, ‘muito prazer’” (RIBEIRO, 2001,
p. 328); “Tudo seria repartido para que cada família tivesse sua roça, sua vaca, seu cavalo”
(RIBEIRO, 2001, p. 335).
Mesmo em momentos de pura repetição enfática de vocábulos e expressões, aparece
com freqüência a forma trinária, como nesta epizeuxe: “Quero que o meu filho que cresce
dentro de mim seja igualzinho, igualzinho, igualzinho a Jaguar” (RIBEIRO, 2001, p. 330).
O que se verifica, sempre, é, como disse acima, uma linguagem catóptrica, que se di-
namiza a partir de um processo de duplicação estilística. Se não se expressam apenas semanti-
camente, as duplicações mostram-se ainda por paralelismos fonéticos, em que são os sons que
se repetem, aliando as palavras e irmanando-as. Eis alguns casos: assonâncias e aliterações em
“Quem do mando é o dono manda em tudo, mas não manda na sua sina” (RIBEIRO, 2001, p.
78); “Lá estão eles revivendo o vivido: constantes, contentes” (RIBEIRO, 2001, p. 331); “O
Iparanã, contido a custo no seu leito, corre vertiginoso, vibrante e vermelho como uma leoa
suçuarana” (RIBEIRO, 2001, p. 351); aliterações e rimas imperfeitas em “O cerimonial vai
chegando ao máximo para alcançar o término” (RIBEIRO, 2001, p. 99) e “Isaías se concentra,
mascando seu talo, calado” (RIBEIRO, 2001, p. 311); rimas coroadas em “Obrigado, Lilith,
Lilithinha minha” (RIBEIRO, 2001, p. 311).
Em trechos mais desenvolvidos, as figuras de harmonia se combinam numa profusão de
sons, uma música de caos, como neste excerto: “Na cara, o sorriso mais claro. Em todo o cor-
po as alegrias raiadas de urucum e jenipapo. Na cabeça, esvoaçante, a enorme cabeleira ne-
gro-azulona, provocante. A franja cobrindo a boca. As pernas enfaixadas com embiras, abom-
badas, barrocas”; “Brotos, renovos da vida que desabrocha, renova” (RIBEIRO, 2001, p.
265); ou ainda: “Que fazer? Se submerjo e confluo, emerjo com os mais, confundido. Fico.
Mas, se estaco, me destaco no instante de glória, mas me acabo. Passo. Esquecido? Ignora-
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100
fragmentos de palavras que na frase anterior aparecem separados constitui freqüentemente
outra maneira de sugerir o amálgama lingüístico pelo qual prima o estilo do autor: “Blasfema-
ram do Santo de Israel... disrael / Voltaram para trás ...... aratrás / [...] Tu, ó Filistina toda tre-
me! ....... odatreme (RIBEIRO, 2001, p. 81).
O conteúdo do discurso de Xisto é, aliás, elucidativo para denunciar a dinâmica dupli-
cante do texto de Maíra, constituindo, talvez acima até mesmo dos discursos de Alma e
Isaías –, um sítio privilegiado para a investigação estilística. Chamo atenção para um excerto:
Aqui, em Corrutela mesmo, nasce gente todo ano, vive a vida de menino,
cresce, casa, fornica, pare gente, depois envelhece, morre. Tudo dentro da re-
gra, da sina, do destino, e tudo entreverado. Um para casar com o outro, o ou-
tro para matar o um. Essa para ser casada com ele e esse outro pra morrer na
mão daquele. Culpa, de quem é a culpa? Quem pode salvar o matador? Quem
pode desfazer o casamento destinado? (RIBEIRO, 2001, p. 78-79).
O sermão começa com os verbos traçando uma curva em parábola, para descrever o ci-
clo da vida, do nascimento à morte, e prossegue numa expressão triádica, sucedida pelo parti-
cípio do “entreverado”, que confunde os substantivos do triângulo gradativo – “regra”, “sina”,
“destino”; o parágrafo continua num quiasmo e novamente numa tríade de orações interroga-
tivas, em que, ao contrário, o termo sintético parece ser o primeiro, com sua epanadiplose
enfática sobre a palavra “culpa”. Outro caso:
Este mundo tem mistério, tudo aqui é encantado. Até a velha Calu, lavando
roupa e se coçando. Até o velho Izupero, que trabalha no ofício de dia e de
noite, ferrando cascos. Até eles têm mistério. um que manda, o Senhor.
Outro que desmanda, é o Demo. Mas também o que há-de-vir, o Encanta-
do. Ninguém sabe quem é. Não é Deus, nem o Diabo. É gente feito nós, um de
nós. Eu, quem sabe? Nem eu mesmo não sei. Deus existe e está com o mando
pra mandar até o fim do mundo, mas Ele também sofre. Quem do mando é o
dono manda em tudo, mas não manda na sua sina. O destino que Ele fez, que
Ele tramou pra mim, pra você, pra todos, tramou pra Ele também. Nunca eu
vou entender, nunca jamais. E devia, tenho olhos pra ver, ouvidos pra escutar
e até alguma manha pra desmanchar enredos enredados. Mas o que vejo é
muito menos do que não vejo. E o que entendo é um tiquinho desse mundo
grande em que eu também estou enovelado. [...] Vejo tanta coisa impossível
suceder e tanta coisa inevitável não acontecer. Antes pensava que não havia
regra. Hoje sei que tudo tem regra, tino, destino. O Encantado é o dono da si-
na. Fala pela boca da gente. Cada um, sem querer, vai dizendo, sem saber,
uma coisa aqui, outra coisa ali, acolá. Eu vou ouvindo, vou olhando. Só de as-
suntar vou regrando as coisas sem querer. Não é o Diabo, assombração. Nem é
Deus, santidade. É gente feito nós. Eu, um de vocês sentado aqui nessa roda.
Porque você, eu, qualquer um pode ser o Encantado. [...] Estou cheio de dúvi-
das. Minha dúvida cresce todo dia. Não sei nada do que de suceder e por
muito tempo não sabia nem do sucedido. Hoje acho que, muitas vezes, no su-
cedido eu tenho minha mão metida. A mão, não a vontade. O tino, não o des-
tino. É a regra do Encantado (RIBEIRO, 2001, p. 77-79).
101
Proliferam as estruturas diádicas e triádicas e dois termos com freqüência se encami-
nham a um terceiro: “Até [...] Calu [...]. Até [...] Izupero [...]. Até eles têm mistério”; “man-
da”, “desmanda”, “há-de-vir”; “Senhor”, “Demo”, “Encantado”; “Deus”, “Diabo”, “gente”.
De entremeio, frases duplicadas e sintaxes paralelas; presença considerável de classemas ex-
pressivos de neutralidade, negação ou indefinição: “ninguém”, “quem”, não”, “nem”, “nun-
ca”, “jamais”; interrogações seguidas de respostas negativas; orações adversativas consecuti-
vas; subordinações condicionais tudo retira o peso significativo das frases, desviando senti-
dos, impedindo que eles se fixem e desaguando numa mensagem de significados fluidos e
deslocáveis, carentes de lastros semióticos, de tanta opulência significante.
O “estilo gordo” definido por Isaías e que domina, como vimos, a tessitura de Maíra,
resulta, como é de se esperar, numa predominância de figuras sintáticas paralelísticas de repe-
tição e omissão. Aparecem em abundância: anáforas, epíforas e símploces “Cada um está
sozinho. Cada um tem que rogar com sua boca e seu coração, dele. Cada um tem que pur-
gar. Cada um tem que se salvar ou se perder” (RIBEIRO, 2001, p. 187); “os dias azuis, as
águas azuis, os céus azuis” (RIBEIRO, 2001, p. 295); “Acabaram com a riqueza dele. Acaba-
ram com a saúde dele. Acabaram com a família dele. Acabaram com a honra dele. Acabaram
com a alegria dele” (RIBEIRO, 2001, p. 188); assíndetos “músculo vivo, fugidio, longuís-
simo” (RIBEIRO, 2001, p. 84); polissíndetos, epizeuxes – “Farfalhando suas palhas e zunindo
e zunindo o zunidor solar” (RIBEIRO, 2001, p. 102); “T’esconjuro, esconjuro dessa verdade
torta” (RIBEIRO, 2001, p. 188); diácopes “Nós, coitadinhos de nós, nós, Deus bem sabe,
nós não podíamos” (RIBEIRO, 2001, p. 188); derivações – “Quem do mando é o dono manda
em tudo” (RIBEIRO, 2001, p. 78); “Mas o ser de lá não é ser estranho” (RIBEIRO, 2001, p.
74); epímones “Aqui ninguém bebe, beber ele não bebe” (RIBEIRO, 2001, p. 79); “Rola a
roda que rola e torna a rodar” (RIBEIRO, 2001, p. 100); paligogias “Que será? E vem de
novo o urro aterrador; umm... Que será?” (RIBEIRO, 2001, p. 100); “É certo? Aqui sozinho,
dentro de mim eu me pergunto: ‘Isto é certo? [...] É certo? [...] Não, não é certo!’” (RIBEIRO,
2001, p. 274); pleonasmos e epítetos “Me esvaziar outra vez de mim” (RIBEIRO, 2001, p.
109); “Viver com este medo medonho” (RIBEIRO, 2001, p. 274); a verei, a ela, aquela
gaviã azul que será minha mulher” (RIBEIRO, 2001, p. 110);“Este mundo tem mistério, tudo
aqui é encantado” (RIBEIRO, 2001, p. 77); “Vêm do fundo das águas, do mundo de baixo
(RIBEIRO, 2001, p. 100); quiasmos“Ele sou eu. Eu sou ele”; “Deus é Deus e Maíra. Maíra
é Deus” (RIBEIRO, 2001, p. 109); “deixa-me ouvir Jaguar, me deixe ouvir” (RIBEIRO, 2001,
p. 285); anacolutos“Quantas mulheres haja para um homem, seja irmã, seja cunhada, ele as
espera a todas. Quanto homem seja do xodó de uma mulher, hoje será lembrado, cuidado,
102
zelado amado (RIBEIRO, 2001, p. 104); epânodos “E foi pro bem ou foi pro mal? Foi pro
bem, talvez, se estava na hora dela. Foi pro mal, talvez, se ela não estava pronta pra morrer”
(RIBEIRO, 2001, p. 81); “Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim
está ele” (RIBEIRO, 2001, p. 109). No nível semântico, o resultado é, como vemos aqui e
atrás, as figuras de pensamento cumulativas ou antitéticas: antíteses, acumulações, amplifica-
ções etc., como se nota neste exemplo, em que o paralelismo serve, ao mesmo tempo, à ênfase
na escolha do sujeito pelo amor que o perde, mas também à antítese do sentimento ambíguo
que o tensiona: “Se com ela hei de perder-me, sem ela não quero salvar-me” (RIBEIRO,
2001, p. 352).
Para privilegiar o efeito cumulativo e anti-hierárquico, predominam frases curtas e perí-
odos paratáticos, mas curiosamente não aparece neste discurso altamente dubitativo uma figu-
ra da hesitação por excelência: as reticências. É que a vaguidão de Darcy Ribeiro não é a da
falta, mas do a do excesso, do “discurso gordo”. Seu vazio não é o nada infértil, mas o caos da
plenipotencialidade; sua linguagem não é aberta por estar despontada ou lacunosa, mas por se
fartar numa gramática perifrástica e circular: nada se fixa, mas tudo é inteiro, porque tudo
retorna sobre si.
Citarei, para encerrar este nível da análise, um capítulo que acredito modelar para co-
nhecer a estrutura simétrica da forma de Maíra e do estilo catóptrico de seu autor: “Kyrie”, o
antepenúltimo capítulo do romance, sucedido apenas pelos capítulos “Tuxauareté” e “Indez”,
em que, respectivamente, Jaguar, o novo Avá, finalmente amarra o uluri dos guerreiros mai-
runs e inicia a tribo num heroísmo inverso e noturno, e as tramas se amalgamam na algaravia
terminal do livro. “Kyrie” abre com a seguinte descrição:
Missão Nossa Senhora do Ó. Dois velhos conversam na sombra da latada. Não
se olham. Cada um fala sentado em sua cadeira voltada para um lado. Padre
Vecchio olha a capela que não se cansa de admirar. Olha sem ver. Olha,
dentro, a capela que viu antes do glaucoma. Padre Aquino olha para fora, olha
o rio, esperando uma canoa que nunca vem. Como todas as tardes.
Uma freira e um padre saem das casas conventuais por duas portas opostas e
simétricas. Ela, à frente das meninas. Ele, à frente dos meninos. [...] Defron-
tam-se. Os meninos olham para baixo. As meninas olham os meninos. Entram.
Fora, arrodilhadas no chão, quatro índias velhas resmungam. Como todas as
tardes (RIBEIRO, 2001, p. 361, grifo meu).
Como nos trechos supracitados, ocorrem também aqui as tríades sintáticas, os parale-
lismos, as duplicações enfáticas e outros recursos estilísticos, para pintar um quadro que, a
meus olhos, resume toda a estrutura de composição do romance: a simetria e a insistência nos
eixos de opostos. Não por acaso, acredito, a posição dos olhares masculino e feminino é de-
nunciadora da temática de Maíra: a mulher olha, para saber e saber-se –, para o “macho
103
supremo” do patriarcado, que não olha para ninguém ou apenas para os próprios pés; mas
também são ambíguos estes olhares, pois a cabeça se ergue do lado feminino e não do mascu-
lino, de maneira que, para a composição do quadro, torna-se difícil dizer de que lado está a
positividade do sistema.
Também os padres opõem-se e vão, adiante, empreender um diálogo, não se encarando,
mas quase de costas um para o outro e olhando, cada qual, um elemento de outro sistema de
oposições: a capela e o rio, a cultura e a natura. O diálogo entre os dois também será contra-
pontístico e narrado pelo foco dramático, como falas num texto teatral, em que cada um, pri-
meiramente, defenderá uma visão sobre os eventos dúbios do romance e, em seguida, prosse-
guirá defendendo sua perspectiva apontando no outro o contrário ou o ponto de partida de sua
própria argumentação:
Padre Vecchio: O nosso anjo se foi, padre Aquino. Como nos enganou aquela fra-
queza disfarçada de virtude. Afinal, teve a força de romper conosco.
Padre Aquino: Isaías não é fraco, nem forte: é inocente. E não é deles o reino do
céu?
[...]
Padre Vecchio: Você sempre foi ambicioso demais. Ambicioso consigo. Ambicioso
com a ordem. Ambicioso com a Igreja. Até com o mundo, padre Aquino. Eu não. Ao
menos tento ser humilde, tolerante. Vivo com minhas verdadezinhas, sem veemência e
sem heroísmo.
Padre Aquino: Verdadezinhas, duvidazinhas, no mesmo. Mas talvez você tenha
razão. Talvez não valha a pena discutir. De fato, esse debate começou por 1560,
com um anzol os converto, com dois os desconverto..
Padre Vecchio: [...] Esta dúvida é que está roendo você. Atrás de tudo isso está a i-
déia maligna da futilidade da nossa obra: edificamos na areia: quarenta anos de traba-
lho em vão.
Padre Aquino: É verdade. Nós ambos chegamos a isso como os lóios antes de nós.
Mas você arrepiou carreira, padre Vecchio. Não quer enfrentar a responsabilidade de
usar seu próprio juízo, para pensar, na frente de Deus, a descoberto, sobre nossa obra.
É impossível fugir. [...] Mas, agora, eu me pergunto: estamos aqui é por amor d’Ele? É
por amor dos índios? Ou é por amor de nós somente? Muito temo que não lavramos
este horto para a salvação dos índios. Nem para clamar a Deus. Foi por nós somente,
por nossa pequena salvação, por nosso suspirado martírio, por nossa aspirada santida-
de (RIBEIRO, 2001, p. 361-363).
Um dos interlocutores parece representar a visão unilateral do sistema falido; o segundo
é o Outro integrador, cujo discurso prima pela argumentação dialética que predominou no
romance. Este último conclui que toda a colonização decorreu de uma visão unilateral do
mundo: nem o amor pelos índios (amor pelo outro), nem o amor por Deus (pelo Outro), mas
um amor pela parte, que, de resto, não é amor, pois vive de um sentimento autocentrado no
sujeito da consciência, na porção apartada que dividiu o mundo em um bom e outro mau.
A confusão de todas as línguas, todas as tramas e discursos, encerra o romance, cujas úl-
timas linhas repropõem a incomunicação do caos, a linguagem sem direção de Maíra:
104
Tanta viagem para não esclarecer nada, né, Noronha? [...] Mas o senhor preci-
sa ver no relatório é como ele enterrou o tal funcionário da Funai. [...] O major
inventou uma tal de incúria-funcional-criminal ou criminal-administrativa com
dois hífens pelo meio ligando e separando as três palavras, que vai acabar com
a carreira do tal agente. Aquele não levanta mais, está descadeirado. Inimá,
porá tebi, ne tebicua h rancuái sururuc potare eté. I’Jaguaroui, hebi catú
hebe xeremymbotá apo. Heteti rereco hebi xebi. Inimatai, cuña tebi, ne tebiro-
eté carapuáh ypy sururucatú
4 A ABOLIÇÃO DA ORDEM E O CAOS INTEGRADOR
Irmãos, eu vos oferto a rocha, e desejais o mar. Se erijo para vós
a instante pátria, em que possais ao menos respirar; se lavro um
feudo sem senhor e claro, e justo, e único: vós rides infini-
tamente, e mergulhais nas águas várias de um minuto e outro
minuto. Declaro o dia, e desejais a noite: empunho a noite, e a
pisoteais... porque somente ardeis pelo que é muito, numeroso,
transitório.
(Péricles Eugênio da Silva Ramos)
A conversão do caos em cosmo é representada em relatos míticos pela ação de um herói no
combate contra monstros ctonianos, que, na cosmovisão patriarcal, significará também a vitória
da cultura pastoril masculina sobre as sociedades matrísticas femininas, identificadas com o mal
que é preciso extinguir. Conforme Beauvoir (1970, p. 100-101),
no momento em que o homem se afirma como sujeito e liberdade, a idéia de Ou-
tro se mediatiza. A partir desse dia a relação com o Outro é um drama: a existên-
cia do Outro é uma ameaça, um perigo. A velha filosofia grega, que nesse ponto
Platão não desmente, mostrou que a alteridade é a mesma coisa que a negação e,
portanto, o Mal. Pôr o Outro é definir um maniqueísmo. Eis por que todas as reli-
giões e os códigos tratam a mulher com tanta hostilidade. [...] O Outro é a passivi-
dade em face da atividade, a diversidade que quebra a unidade, a matéria oposta à
forma, a desordem que resiste à ordem.
O projeto masculino não podia reconhecer na mulher e no sistema matrístico um semelhan-
te, pois nem o sujeito feminino nem os membros das comunidades matrilineares compartilhavam
dos modos de trabalhar e pensar próprios das redes de conversações pastoris e masculinizadas:
“A vontade masculina de expansão e domínio transformou a incapacidade feminina em maldi-
ção” (BEAUVOIR, 1970, p. 98). Apesar disso, uma aura de sobrenaturalidade ainda envolvia a
106
mulher, pois, como vimos, ela é o Outro necessário ao projeto do patriarcado, graças a uma de-
pendência biológica que acorrenta o macho àquela que lhe garante uma prole. Assim, para Beau-
voir (1970, p. 96), a mulher era venerada por causa de um temor masculino: “Era no terror e
não no amor que ele lhe rendia um culto. podia realizar-se começando por destroná-la. É o
princípio masculino de força criadora, de luz, de inteligência, de ordem que ele reconhece então
como soberano”.
Curiosamente, Evola associa a sexualidade à dimensão noturna da existência, que também
vai constituir o reino feminino por excelência. Reparando que é à noite que os corpos se encon-
tram para a aventura sexual, o autor nota o imperativo em algumas culturas de que o homem a-
bandone imediatamente o leito conjugal tão logo o dia surja. É preciso, então, acordar para o tra-
balho e para o projeto masculino de dominação do mundo. Num processo associativo simbólico,
Evola reúne sob o mesmo signo o sexo, a noite, a mulher e o amor:
Intervêm aqui fatores sutis de ordem cósmica e analógica: cósmica, porque [...] é
durante a noite que, e de um modo cíclico, a passagem da consciência à sede do
coração assim, mesmo quando se está acordado durante a noite, verifica-se uma
tendência a esta deslocação queira integrar tudo quanto o eros pode oferecer; ana-
lógica, porque o amor se coloca sob o signo da mulher e a mulher corresponde ao
aspecto obscuro subterrâneo e noturno do ser, ao inconsciente-vital; o seu reino
será, por conseqüência, a noite, a obscuridade. A noite será assim precisamente o
tempo mais propício para as obras da mulher, quer pelo seu melhor clima para os
desenvolvimentos subtis do eros, quer para a evocação das forças profundas sob a
superfície iluminada da consciência individual finita (EVOLA, 1976, p. 121).
O autor segue mostrando que o princípio feminino é geralmente associado ao ato da sedu-
107
Esta morte do sujeito aniquilando-se na fusão com outro ser remete ao próprio conceito
grego de Eros, especialmente aquele apontado na obra de Empédocles:
Dupla é a gênese das (coisas) mortais, dupla a desistência.
Pois uma a convergência de todos engendra e destrói,
e a outra, de novo (as coisas) partindo-se, cresce e se dissipa.
E estas (coisas) mudando constantemente, jamais cessam,
ora por Amizade convertidas em um todas elas,
ora de novo divergidas em cada por ódio de Neikos (EMPÉDOCLES, 1989, p.
31).
Eros é a força que une, como Éris é a força que separa. Se ordenar é “dispor cada coisa em
seu lugar”, isto é, separá-las e isolá-las entre si, caotizar significa, ao contrário, reuni-las de tal
maneira que não se pode mais distinguir umas das outras. As coisas, portanto, deixam de ser,
porque não existem mais em uma forma determinada. O caos é uma “mistura confusa de todos os
elementos do mundo, antes de eles serem ordenados por uma potência organizadora” e, por con-
seqüência, “é um conjunto desordenado e sem nexo” (LALANDE, 1999, p. 134), um amálgama
onde nada ainda é, embora todas as formas possam existir em potência; a ordem, por outro lado,
ocorre quando uma “pluralidade de membros, elementos ou partes, é governada e dominada por
uma lei, sentido ou unidade”, do qual o organismo é um exemplo, que “mostra que a ordem não é
equivalente de uniformidade ou monotonia”, pois, “quanto mais dominarem numa multiplicidade
o sentido e a unidade, tanto mais desaparece a uniformidade” (BRUGGER, 1987, p. 308-309,
grifos do autor); trata-se, portanto, de uma hierarquia em que cada parte existe porque se opõe a
outras funcional ou ontologicamente. Por isso, no mito grego, “tudo o que provém de Kháos per-
tence à esfera do não-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos (exceto Éter e Dia) são potências
tenebrosas, são forças de negação da vida e da ordem” (TORRANO, 1995, p. 44). A filiação de
Éter, no entanto, embora este seja representante da luz superior, guarda ainda uma natureza caóti-
ca, uma vez que constitui uma luz cega onde também não se pode distinguir formas: “Éter (Aithér
vem de aítho = ‘queimar, abrasar’) é a região superior e de esplêndida luminosidade do céu diur-
no. Nem Noite nem Dia são aqui períodos cronométricos, não têm vínculos com o Sol e os as-
tros” (TORRANO, 1995, p. 45). O Éter é, portanto, um equivalente celestial do Tártaro ctônico:
cegueira e escuridão por excesso de luz.
Se, por outro lado, Dia e Noite (Hemera e Nix) são também filhos do Caos, é porque são,
como Géia e Urano, princípios elementares de todos os opostos: “Dia e Noite aqui são princípios
ontológicos, a exprimirem imageticamente a esfera do Ser e a do Não-Ser” (TORRANO, 1995, p.
108
45). Sua ascendência no Caos prova apenas a essência de conciliação dos opostos que constitui a
natureza dessa divindade primordial, desse espaço e tempo absolutos onde todas as formas se
integram. Caos não é apenas o Outro, ou o é na medida em que este é necessário para o Eu ser
absoluto e em que não se pode pensar um “Outro” se não for em relação a um “Eu”: “Dia e Noite,
Ser e Não-Ser, guardam em si uma relação íntima e profunda entre si: o Ser vige e configura-se
segundo uma estrutura configurada pelo Não-Ser, de tal forma que o pensamento que pensa o que
é o Ser não pode não pensar o Não-Ser” (TORRANO, 1995, p. 45). Caos significa, portanto, exa-
tamente isto: o Outro, mas – por ser o Outro, que não existe sem um “Eu” caos é também fusão
de Eu e Outro, sujeito e objeto. Daí a aproximação de Eros com o caos.
O mitólogo brasileito Junito de Souza Brandão, percorrendo a genealogia de Eros, observa
que “o mito do deus do amor evoluiu muito, desde a era arcaica até a época alexandrina e roma-
na”. Nas primeiras teogonias, Eros aparece como filho direto de Caos, o “abismo insondável”, o
“espaço homogêneo” onde toda energia está desordenada e a matéria permanece ainda informe,
sem a direção de um “pensamento ativo”. Eros nasce desse mistério primeiro ao lado de Géia, o
princípio feminino, e Tártaro, o lugar mais profundo da Terra, a escuridão no ventre de Géia
(BRANDÃO, 1986, p. 184-190). Este é o mito que podemos ver reproduzido, por exemplo, em
Hesíodo (1995, p. 111):
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Percebe-se, portanto, por esta genealogia, que Eros irmana-se, ao mesmo tempo, ao princí-
pio feminino e à escuridão remanescente de Caos presente no interior de Géia, a Mãe. Todos os
três descendem diretamente da matéria homogênea, informe e caótica de antes da ordem cósmica
e são, por assim dizer, sua continuidade no mundo ordenado.
Por sua vez, o Céu, ou princípio masculino, nasce, segundo o texto de Hesíodo, de Géia,
versão que mantém a visão primordial da Grande-Mãe como geratriz única e absoluta de tudo o
que existe, incluindo o próprio ser masculino. Em outra versão do mito, no entanto, a Terra, o
Céu e Eros nascem de um mesmo parto: no início era a escuridão total, da qual surge um ovo
cósmico; ao partir-se o ovo, de uma metade faz-se a Terra feminina e da outra o Céu masculino,
109
enquanto do interior, como força que aglutinava os opostos, surge o deus Eros. Por isso Brandão
(1986, p. 189) esclarece que, “do ponto de vista cósmico, após a explosão do ser em múltiplos
seres, o Amor é a dýnamis, a força, a alavanca que canaliza o retorno à unidade; é a reintegração
do universo, marcada pela passagem da unidade inconsciente do Caos primitivo à unidade cons-
ciente da ordem definitiva” (grifo do autor). Esse retorno ocorre porque Eros busca superar a se-
paração que isolou a consciência do sujeito da imanência do objeto, dividindo o universo em par-
tes antagônicas e apartando o Eu do Outro: Eros é “o contato com o outro, através de uma série
de trocas materiais, espirituais, sensíveis, o que fatalmente provoca choques e comoções”
(BRANDÃO, 1985, p. 189, grifo do autor). Não é, portanto, gratuitamente, que Maturana nomeia
o emocionar matrístico de “biologia do amor”: a cosmovisão marcada pelo princípio feminino
associa-se de perto com as representações míticas de Eros e de Caos como, respectivamente, for-
ça e espaço de integração das criaturas e manutenção das formas indistintas e não hierarquizadas
de subjetividades.
As imagens da mulher, do amor e da escuridão original (Terra, Eros e Caos) permanecem,
pois, unidas no imaginário ocidental. A mulher detém os segredos da magia sedutora noturna que
busca incorporar a si o outro, o que margem a outros desdobramentos da figura feminina, ge-
ralmente associados com a magia e o encanto: “À imagem da Grande Mãe estão provavelmente
ligados os diferentes contos e relatos de bruxas e
110
maternidade de cada mulher, como a afirmar sua autonomia e auto-suficiência, seu poder herdado
da Terra-Mãe de ser “capaz de conceber sozinha, sem o auxílio de um companheiro” (ELIADE,
2001, p. 121).
A onipresença do princípio feminino e sua superioridade mítica reprimida como negativi-
dade manifestam-se ainda biologicamente. Em primeiro lugar, a História Natural descreve os
primeiros organismos como “femininos”, reproduzindo-se por cissiparidade, isto é, pela separa-
ção da mãe em dois seres: a própria mãe e uma filha gerada à sua semelhança. O masculino
surge numa etapa bastante avançada da evolução, como uma “mutação do feminino” (POL-
LACK, 1998, p. 38-39). Esta é a forma de reprodução do próprio Caos, como divindade primor-
dial: “A imagem evocada pelo nome Kháos é a de um bico (de ave) que se abre, fendendo-se em
dois o que era um só. [...] Kháos é a potência que preside à procriação por cissiparidade” (TOR-
RANO, 1995, p. 44). Uma segunda precedência biológica do elemento feminino aparece na em-
briologia, que demonstra seguirem os fetos humanos, durante os dois primeiros meses, um padrão
de desenvolvimento que, se não interrompido, os transformará em bebês do sexo feminino: “Os
órgãos sexuais e o cérebro de todos os embriões humanos, de início, seguem um caminho femini-
no de desenvolvimento; esses órgãos se tornam masculinos se forem modificados através da
ação de hormônios masculinos” (COLE & COLE, 2003, p. 397). Para muitos, isto equivale a
dizer que somos todos, até uma determinada fase intra-uterina, mulheres, o que aqui é sinônimo
de andrógino, o ser indiferenciado. Eisler, por exemplo, observa como “algumas das estatuetas
primitivas da Deusa são não apenas híbridos de traços humanos e animais, mas também possuem
muitas vezes características, tais como pescoços muito compridos, que podem ser interpretados
como andróginas” (EISLER, 1989, p. 55). A androginia, qualidade do ser que reúne os opostos
primordiais de masculino e feminino, remete àquele estado urobórico da consciência, definido
por Neumann (2003, p. 52):
O caráter urobórico da Grande Mãe transparece sempre que ela é adorada em for-
ma andrógina [...]. A mulher de barba ou que tem falo trai o seu caráter urobórico
na não-diferenciação entre masculino e feminino. mais tarde esse híbrido será
substituído por figuras sexualmente inequívocas, tendo em vista que a sua nature-
za mista e ambivalente representa o estágio mais remoto a partir do qual os opos-
tos serão diferenciados.
Por seu caráter andrógino, “a uroboros simboliza também o impulso criador do novo come-
ço, a ‘roda que gira por si mesma’, o primeiro movimento e a espiral, como o movimento ascen-
dente em círculos da evolução” (NEUMANN, 2003, p. 33). É a uroboros, que “mata a si mesma,
111
casa-se consigo mesma e engravida a si mesma. É homem e mulher, gerando e concebendo, de-
vorando e dando à luz, ativa e passiva, em cima e embaixo, ao mesmo tempo”. Por isso a urobo-
ros representa um “estado perfeito do ser”: a autarquia é um estado de perfeição, “onde os opos-
tos estão contidos”, e sua “auto-suficiência, auto-satisfação e independência de todo ‘tu’ e de
todo ‘outro’ são indícios da sua eternidade autocontida”. O ser representado pela mãe urobórica é
perfeita porque “repousa em si mesmo”, “circula em si mesmo”, sendo própria razão e sua força
de manutenção e prologamento: “Embora sendo algo estático e eterno, imutável e, portanto, sem
história, o repouso absoluto é, ao mesmo tempo, o lugar de origem e a célula-semente da criativi-
dade” (NEUMANN, 2003, p. 28).
No estado inicial da uroboros, tudo é indefinido, ambíguo, pois não distinção “entre
Eu e Tu, dentro e fora, ou entre homens e coisas, assim como não havia uma linha divisória clara
entre o homem e os animais, o homem e o homem, o homem e o mundo”. Não surgiu ainda um
centro do ego para subordinar as demais criaturas ao seusentimento de ser. O que existe é uma
participation mystique”, em que o homem secomo sendo “todas as coisas a um só tempo”, o
interno sendo externo e a vida uma “inspiração” ordenada pelo espírito universal. Ao contrário do
emocionar pastoril patriarcal, havia nesta comunidade matrística urobórica uma “relação mágica”
entre o animal caçado e a vontade do caçador, “tal como havia entre a cura da ferida e a arma que
a produzira, visto que a ferida deteriorava se a arma fosse aquecida”. Por outro lado, “essa falta
de diferenciação é justamente o elemento que constituía a fraqueza e incapacidade de defesa do
ego, o que reforçava, por seu turno, a participação”, por isso essa permanência “na uroboros sig-
nificava, ao mesmo tempo, a ligação mais profunda com o inconsciente e a natureza, entre os
quais havia um contínuo fluir como uma corrente de vida circulando em si mesma, a qual atra-
vessava o homem”. Cada indivíduo, como membro do todo, “estava envolvido nessa torrente
circular que fluía do inconsciente para o mundo e do mundo para o inconsciente, cujo empurrar e
soltar alternados o lançavam para e para cá no ritmo pendular da vida, ao qual ele estava aban-
donado, sem disso se aperceber” (NEUMANN, 2003, p. 89-91).
O mundo conhecido como ordem pode aparecer com o ato consciente simbolizado pela
luz urânica, “que constela a oposição entre u e terra como o símbolo básico de todos os opos-
tos” (NEUMANN, 2003, p. 90). Tudo o que constituirá a ordem nasce da separação dos “Pais do
Mundo” em pares de opostos, dia e noite, alto e baixo, homem e mulher, exterior e interior, eu e
tu, sagrado e profano, bem e mal. Por isso o dragão urobórico será simbolizado, na cultura sus-
tentada pela separação dos opostos, como o monstro do caos, a “promiscuidade original” que,
112
aliás, remete também à promiscuidade matrística, quando a paternidade, importante para o sujeito
masculino pastoril e patriarcal, era desconhecida e misteriosa. Por isso, igualmente, a imersão do
ego na uroboros corresponde, socialmente, “ao estado em que prevaleciam idéias coletivas e a
consciência de grupo era dominante”, lugar em que o ego não constituía ainda “uma entidade
autônoma e individualizada, dotada de um conhecimento, de uma moralidade, de uma volição e
atividade próprias; funcionava tão-somente como parte do grupo, sendo este, com o seu extraor-
dinário poder, o único sujeito real” (NEUMANN, 2003, p. 91). Ali o homem ainda não é; está
contido. Daí a simbologia das “coisas profundas” comporem o grupo de imagens desses arquéti-
pos relacionados com o feminino envolvente: “abismo, vale, solo, assim como o mar e o fundo do
mar, fontes, lagos e poços, a terra, o mundo interior, a caverna, a casa e a cidade”, isto é, tudo o
que é grande e envolvente e contém, circunda, envolve, protege, preserva e nutre qualquer coisa
pequena pertence ao reino maternal primordial” (NEUMANN, 2003, p. 31).
São todos símbolos da queda, mas também da descida. Aqui se unem as imagens femininas
terríveis ao Regime Diurno com sua pacificação no Regime Noturno, pois, se a terra é o ventre,
também é o túmulo: “Como representante da lei antiga o inconsciente urobórico faz tudo para
impedir a emancipação do filho-consciência e, desse modo, voltamos à esfera de influência da
Mãe Terrível, que quer matar o filho” (NEUMANN, 2003, p. 100). No mundo da Deusa Mãe, a
personalidade egóica se dissolve no encantamento de Circe, “que transforma o homem em animal
e que, como senhora dos animais, despedaça e sacrifica o masculino”. É como animal que o ho-
mem se enquadra no reino cósmico da deusa, pois é como qualquer outra parte do ciclo da vida, e
sua masculinidade apenas serve ao prolongamento da harmonia cósmica: a deusa “domina o
mundo animal dos instintos que servem a ela e à sua fecundidade” (NEUMANN, 2003, p. 61).
Queda e descida, a natureza do elemento feminino é, pois, ambígua:
A figura esmagadora do inconsciente, o seu aspecto devorador e destrutivo, [...] é
vista figurativamente como mãe malvada, como senhora sanguinária da morte e
da peste, da fome ou do dilúvio, do impulso da violência ou da doçura sedutora
que leva à ruína. Mas, como mãe boa, ela é a plenitude do mundo generoso, a dis-
pensadora de vida e felicidade, a terra nutridora, a cornucópia do ventre fértil. Ela
é a experiência instintiva que a humanidade tem da profundidade e da beleza do
mundo, da bondade e da graça da profundeza criadora que a cada dia promete e
sempre cumpre a ressurreição, a reanimação e o novo nascimento (NEUMANN,
2003, p. 47-48).
A Grande Deusa reina em dois mundos opostos: um benevolente, uraniano, celeste, lumi-
noso e solar como o será apenas o masculino para a cultura patriarcal; e um demoníaco, reino da
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mãe cruel, ctônico, subterrâneo, lunar, e mortal. O elemento da deusa é o sangue, líquido da vida,
da menstruação, da defloração e do parto, mas líquido da morte, do sacrifício e da esterilidade
(BARROS, 2004, p. 24). Associado ao poder unificador e caotizante de Eros, o elemento femini-
no ocupa um nível intermediário entre os seres, unificando dois mundos, o do desejo centrado na
vontade de um Eu e representado pela mãe angelical e a do temor diabólico diante do Outro sim-
bolizado pela figura sedutora e perigosa da amante. Paradoxo para o pensamento binário da razão
patriarcal, a mulher e o elemento feminino tornam-se a essência do Inacessível, do Inviolável e
do Inesgotável (BARROS, 2004, p. 37).
A autora recorda que o elemento masculino sempre se identifica, na cultura patriarcal, com
o Uno, estável, ordenado, cognoscível, limitado, sólido, espiritual, enquanto o feminino, ao con-
trário, remete a tudo que não pode ser domesticado ou entendido, como o múltiplo e fragmenta-
do, as estruturas diádicas, o instável, o desordenado, o incognoscível, o ilimitado e sujeito a mu-
danças infinitas, como o corpo, a carne, a matéria e os sentidos animais (BARROS, 2004, p. 61).
Até a psicanálise se assusta com a psique feminina como um território indevassável: “As mulhe-
res guardam um psiquismo marcado pelo Feminino que a psicanálise tem tentado decifrar, des-
crevendo-o ora como ‘continente negro’, no caso da psicanálise freudiana, ora como ausência,
como fazem seus prolongamentos lacanianos, ora como palavra que se busca ou que busca fazer-
se entender” (OLIVEIRA, 1993, p. 96).
A mulher é, pois, o grande silêncio do patriar30.356(a)12.2425(u)-96262(r)4..441715(l)0. pis tudo o que no ns mudo para a
conscincia: a o do Outro o maior dos seruos
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guagem através de uma contestação, de um processo antitético que sempre impediria a voz narra-
dora de firmar sua perspectiva unidirecional sobre as coisas. O mesmo Xisto explica:
Na verdade, nenhum olho é tão vivo que veja sempre o bom e o ruim de cada coi-
sa. O que todos vemos é a guerra sem fim, e, nela, eles dois atracados. Eles juntos,
se destroçando, tão juntos que um e outro são um bolo só, entreverado, misturado,
confundido. O sol e o dia são de Deus, a lua e a noite são do Demo. Mas quando
anoitece e amanhece são uma coisa só (RIBEIRO, 2001, p. 189).
O pregador mostra a segregação do mundo no imaginário, mas avisa que ela é falsa, visão
de um olho só. A verdade está além da ordem e pode ser atingida na observação do caos das
coisas. Um olhar é o olhar errado; a ordem mente e só o caos é absoluto.
O primeiro cuidado que Darcy Ribeiro terá, pois, em obediência a esta lei da anti-ordem, é
impedir que a narrativa se afirme no eixo tradicional do enredo que caminha de uma situação de
conflito inicial para a de uma estabilidade final. Os principais fundamentos que vimos ser aqueles
que sustentaram a narrativa tradicional na história do patriarcado serão desrespeitados: em vez da
ordem instituída por um protagonista, o caos generalizado, onde bem e mal se confundem, herói e
vilão se entrelaçam; no lugar de um enredo linear, a multiplicidade de direções; em vez da ão
de um herói elaborando um mundo ou elaborando-se, a crise e a vacuidade de toda atividade or-
denadora. Com isso, toda seqüência e leitura linear se torna fantasmática, fruto de uma causalida-
de que o leitor, vítima do pensamento cronológico e da convenção literária, luta embalde por es-
tabelecer. O próprio Darcy Ribeiro (2001, p. 19) avisa, na introdução ao romance, que, para a
composição da narrativa, ele “compaginou os capítulos para que cada um afetasse o outro, dando
uma ilusão de seqüência para engabelar o leitor”.
No tema e na forma, a fundação de Maíra é, pois, o caos. Isso porque, como vimos, o caos
é o encontro de todas as formas na informidade, é a ausência da ordem, a carência de uma razão
que isole o mundo em duas esferas: o Ser e o Não-Ser, o sim e o não, o Eu e o Outro. Por isso,
em Maíra, nada e ninguém se pode afirmar sem que o Outro venha imediatamente contestá-lo.
Por isso, o duplo, o antitético e o paradoxal constituem a estrutura básica de composição do ro-
mance. É o que observa Regina Angulo (1988, p. 24), em seu Roteiro de Maíra, ao afirmar que o
texto de Darcy Ribeiro demonstra uma “preocupação tanto formal quanto semântica de dualida-
de, de jogo de duplas, de abordagem bipolar”. Maria Luiza Ramos (2000, p. 145) também chama
atenção para “a importância do binarismo no romance”. Segundo ela, “trata-se de um binarismo
estrutural, marcado pela contradição interna”, uma lógica “que preside toda a narrativa”.
115
Por outro lado, se Maíra reduz o eixo semântico das categorias fundamentais possíveis ao
eixo básico Ser X Não-Ser, neste caso, se algo é positivado, é o segundo termo. Por isso, os moti-
vos, figuras, símbolos e metáforas gravitarão em torno dos arquétipos femininos e serão valoriza-
dos os aspectos da noturnidade: morte, noite, trevas caóticas. No segundo capítulo, Anacã, o a-
bre-alas deste desfile de imagens do caos, anuncia que pretende ver “o sol da noite [...] ver a luz
do sol negro iluminando” (RIBEIRO, 2001, p. 38). Bachelard (2003, p. 57) lembra que, nos de-
vaneios terrestres da intimidade, “as imagens materiais de um fogo frio, de uma água seca, de um
sol negrosão freqüentemente encontradas nos textos de alquimia. Elas “indicam uma vontade
de contradizer inicialmente as aparências, depois de assegurar para sempre essa contradição me-
diante uma discórdia íntima, fundamental” (grifos do autor).
Ora, positivar o Não-Ser significa positivar coisa nenhuma. Daí uma aparente falta de rumo
e conclusão a tudo o que compõe o enredo de Maíra: aqui, é o caos que assume a condução da
narrativa. Ele ameaça, oculto, toda tentativa de ser, como os antropófagos epexãs, que rondam o
cenário dos episódios, no lado esquerdo da margem do Iparanã, para carnear cristão e comê-lo
“moqueado” (RIBEIRO, 2001, p. 158 e 173). “São os tais selvagens comedores de gente”, nota
Alma, reminiscências da Grande-Mãe devoradora, do canibalismo das religiões matrísticas e dos
hábitos ameríndios antes da revolução cultural de Jurupari, o deus masculino do autóctone.
Falar, pois, do caos é invadir o terreno da ambigüidade. O Outro exige a duplicidade como
método. O termo cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 e consagrado pelo movimento românti-
co Doppelgänger traduz-se como “duplo” ou “segundo eu”. Por isso, pesquisadores do duplo
na literatura afirmam que “uma das primeiras denominações do duplo é o alter ego”, explicando
que o termo de Richter significa literalmente “aquele que caminha do lado”, o “companheiro de
estrada” (BRAVO, 1997, p. 261), e admitem que o mito do duplo representa “o humano como
um ser dividido entre um ‘eu’ e um ‘alter ego’” (MARTINHO, 2005). Uma das principais ex-
pressões deste mito está no motivo dos gêmeos. Informa Perrot (1997, p. 391):
O casal gemelar, com efeito, conduz-nos ao centro físico da personalidade e a um
território mental em que a força dos tabus se impõe da forma mais coercitiva. Ele
torna exemplar um outro mistério que é tão provocante para o “ensamento selva-
gemcomo para espíritos formados na complexidade crescente da ciência: [...] I-
dênticos na aparência, os gêmeos não o são do ponto de vista intelectual e afetivo.
[...] Essa duplicação que se torna desdobramento, se encarada sob outro ângulo, é
um desafio ao humanismo fundado na unidade do indivíduo, e, como tal, compor-
ta um elemento de transgressão no inconsciente moderno: suscita o júbilo particu-
lar que provoca o espetáculo de uma falha instalada na representação do sujeito.
116
O duplo é, pois, a forma que ameaça a unilateralidade do Eu, que desmonta a autoconsciên-
cia e obriga-a a ver num Outro um Si-Mesmo. O duplo é uma “estranha presença” (BRAVO,
1997, p. 261), o estrangeiro que se impõe à vista e à nossa segurança de um emocionar ordenado
sob uma única perspectiva. Este estrangeiro, entretanto, só se torna ameaçador quando, concebido
como alienado, como externo a um sistema, mostra-se, subitamente, como interno e não-
alienável. É o que podemos deduzir da argumentação de Sigmund Freud no ensaio que dedicou
ao tema e onde retira a essência do duplo de uma ambígua acepção da palavra “estranhoem a-
lemão – unheimlich. “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido,
de velho, e muito familiar”, defende o psicanalista (1976, p. 277). Ele observa que a palavra
alemã unheimlich é “o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstico’], ‘heimisch’ [‘nativo’] o oposto do
que é familiar”. Notando que, por isso, “somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é
assustador precisamente porque não é conhecido e familiar”, o autor alerta para o fato de que, ao
contrário, “nem tudo o que é novo e não familiar é assustador” e, por isso, “algo tem de ser acres-
centado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho” (FREUD, 1976, p. 277, grifo do
autor). Para explicar a complexidade semântica da palavra, Freud mostra a ambigüidade que
existe no termo original de derivação:
A palavra “heimlich” não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de
idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um la-
do significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se man-
tém fora da vista. “Unheimlich” é habitualmente usado, conforme aprendemos,
apenas como o contrário do primeiro significado de “heimlich”, e não do segun-
do. [...] Schelling diz algo que um novo esclarecimento ao conceito do Unhei-
mlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo Schelling, u-
nheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz
(FREUD, 1976, p. 282).
Aplicado à esfera cultural, não é difícil perceber que o “familiar mas oculto” é justamente
algo que a cultura conhece, mas como aquilo que a nega, o objeto que foi rejeitado pela ordem e
reprimido ao nível inconsciente do sistema, uma espécie de alter ego cultural. Por isso, comenta-
dores de Freud relacionam, como nesta minha argumentação, o problema do duplo à questão da
alteridade e das polêmicas identitárias: “A busca da verdadeira identidade é, de uma ou de outra
maneira, o objetivo que persegue as histórias de duplo vistas dentro da perspectiva freudiana. A
abordagem do inconsciente é em tais casos ‘o discurso do outro’, fornecido pelo duplo” (BRA-
VO, 1997, p. 280, grifo meu). Prova disso podemos encontrar ainda no ensaio de Freud, quando o
autor, comentando uma passagem de Otto Rank, mostra as imagens e emoções relacionadas ao
117
tema do duplo. Freud observa como Rank aponta a associação do duplo “com reflexos em espe-
lhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte” e
conclui que o duplo constitui uma segurança contra a destruição do ego, uma “enérgica negação
do poder da morte” (apud FREUD, 1976, p. 293). É assim que o duplo “transforma-se em estra-
nho anunciador da morte” (1976, p. 294), isto é, daquilo que talvez seja a mais forte emoção des-
pertada pela separação dos mundos matrístico e patriarcal.
O tema do duplo na narrativa ocidental aparece com a eclosão da questão da alteridade: “A
emergência do sentimento de uma autêntica alteridade, de uma visão romântica do eu, aparece
condicionada pela componente histórica e política (a revolução francesa) e pela filosofia idealis-
ta” (FICHTE, apud BRAVO, 1997, p. 269). O tema desponta justamente quando se acentua no
ocidente a noção de identidade e o pensamento que polariza os termos da visão racionalista entre
o Eu pensante e o Outro pensado: “O mito do duplo, no Ocidente, acha-se em estreita ligação
com o pensamento da subjetividade, lançado pelo século XVII ao formular a relação binária su-
jeito-objeto, quando até então o que prevalecia era a tendência à unidade”, informa Nicole Bravo
(1997, p. 264), para quem “essa oposição – concepção unitária do mundo/concepção dialética – é
refletida pela reviravolta que sofre o mito literário do duplo”. A autora mostra que, da Era Clássi-
ca ao final do Renascimento, o mito do duplo surge como identidade e homogeneidade e a seme-
lhança física entre dois seres é usada apenas “para efeitos de substituição, de usurpação de identi-
dade, o sósia, o gêmeo é confundido com o herói e vice-versa, cada um com sua identidade pró-
pria”, prevalecendo uma “tendência à unidade”.
A argumentação da autora segue, por outras vias, aquilo que já expus a partir de Meletínski,
segundo o qual, a partir do Romantismo, o caos se interioriza na personagem e a ordem unidire-
cional da narrativa – de um herói em combate contra o mal externo – passa a representar as forças
antagonistas na expressão de um mesmo Eu dividido e projetado. A crise do Eu é expressão da
crise maior, de toda a cultura hegemônica, pois, numa época de convulsão política, em que as
hierarquias não se mantêm e a autoridade do Estado e da Igreja é posta em discussão, a problemá-
tica da identidade pessoal torna-se cruciale é assim que um idealismo filosófico serve de su-
porte metafísico à teoria do eu duplo (duplicado)” (BRAVO, 1997, p. 269-270).
Esta Europa perturbada por “mudanças radicais” em suas formas políticas e religiosas, “es-
tá preocupada com a busca da identidade”. Esteticamente, “além de duplicar o sujeito e objeto da
narrativa, e reduplicar a linha narrativa, a literatura do século XIX acrescenta o duplicar do cará-
ter individual para retratar conflitos interiores, mostrar uma décalage entre a mente consciente e
118
inconsciente das personagens(MARTINHO, 2005). Recordando Meletínski, a partir da literatu-
ra romântica, o caos se instala no lado interior: primeiro na sociedade e nas regras da comunidade
a que pertence a personagem; posteriormente e em algumas obras de um Romantismo tardio, no
interior da alma do próprio herói em Álvares de Azevedo, por exemplo, temos protagonistas
espiritualmente perturbados e condutores do próprio mal.
Como, em arte, conteúdo e forma andam irmanados e indivisos, brevemente uma obsessão
temática converte-se em uma poiesis peculiar. É assim que a narrativa duplicada pode ser encon-
trada, em uma de suas expressões mais precípuas, na técnica contrapontística desenvolvida por
Gustave Flaubert e que a crítica apontou em algumas de suas obras. Neste sentido, os eventos,
motivos e símbolos que marcarão a evolução da trama de Madame Bovary ocorrem sempre pelo
menos duas vezes – a primeira na inconsciência da personagem e da narração; a segunda, presen-
te à consciência da personagem e, por conseguinte, ao âmbito perceptivo do narratário: o aciden-
tado baile de La Vaubyessard e o buquê de casamento atirado à lareira antecipam o fim do casa-
mento de Emma; a perda do cão de estimação no caminho de Rouen anuncia a iminente perdição
da protagonista; a destruição do da estátua em Rouen sugere a desgraça com o paciente de
Charles. Por outro lado, os símbolos também opõem entre si as personagens: o ridículo chapéu de
Charles na escola contrasta com o chapéu grego do medíocre Homais e com o elegante e ultra-
passado chapéu de Rodolphe. O ápice desta técnica aparece quando, agora de forma mais apro-
ximada, o narrador entrelaça o discurso sedutor de Rodolphe ao do político no comício agrícola,
buscando denunciar ao narratário o “outro lado”, oculto e “verdadeiro”, de toda ação. Buscarei
mostrar à frente como esta técnica contrapontística aparece modificada para cumprir as intenções
estéticas no romance sobre a alteridade de Darcy Ribeiro. De momento é importante notar que
muitos dos motivos e símbolos em Maíra estão virados do avesso e as personagens e suas ações
aparecem sempre espelhadas em elementos que, segundo o imaginário convencionado ou institu-
ído pela própria trama, constituem com elas um discurso contrapontístico.
A natureza ambígua da narrativa e o tema do duplo são anunciados no primeiro capítulo do
romance (“A morta”), no diálogo, citado, entre o delegado Ramiro e o delegado auxiliar Noro-
nha, que falam de um cadáver encontrado na mata por um pesquisador suíço. Trata-se como
vimos e é anunciado em capítulo futuro do romance do corpo de Alma, que estava grávida de
gêmeos, cujos corpos também foram encontrados ao lado da moça morta.
Os gêmeos natimortos de Alma simbolizam, dentre outras coisas, os gêmeos Maíra e Micu-
ra, deuses primordiais da cultura mairum, cuja morte será o fio condutor da trama de Darcy Ri-
119
beiro: Maíra é um poema que fala do mundo encantado dos índios, criado por um Deus que os
ensinou a alegria de viver. É também o relato da morte desse Deus que não suportou testemunhar
a agonia do seu povo. É ainda a história da profanação da existência e do desencantamento do
mundo” (JUNQUEIRA, 2001, p. 397).
Notei, em capítulo anterior, que o enredo é dividido em quatro partes, numa estrutura que
imita o ritual litúrgico cristão. Enquanto a primeira parte apresenta as personagens envolvidas na
trama e os temas que explorados, a segunda apóia-se especialmente sobre o relato do mito de
Maíra-Micura. Ali, enquanto os capítulos da cosmogonia avançam em direção do estabelecimen-
to da cultura mairum, de outro lado e num vetor de direção contrária, as histórias de Isaías, Alma,
Jaguar e de todo o povo mairum involuem para o estado de caos inicial, aquele em que as dife-
renças ainda não haviam sido estabelecidas e que parece constituir um antiparaíso, lugar ambí-
guo, de terror e paz, pois, se, de um lado, signifi
bi, toe
120
do em muitos seres para se contemplarem mutuamente: “O diabo é que de Deus pouco sabemos.
Muito mais ignoramos. [...] Eu nada sei, às vezes enredo que este mundo nosso, o que parece, é
um olho que olha o universo. O olho de Deus? Nós, agarrados à menina daquele olho, vemos
um pouquinho do reino do olho, o mais adivinhamos” (RIBEIRO, 2001, p. 317). O mundo é,
assim, o olho que se contempla pelo Outro.
Na primeira parte da cosmogonia narrada em Maíra, o mito concentra-se na imagem de
Mairahú, ou Maíra-Ambir, uma variação do caos. Baseando-se em pesquisa de Francis Huxley,
Regina Angulo (1988, p. 102) traduz “hú” como “grande”; então Mairahú é o “grande Maíra”, o
que faz de Maíra um deus menor. Esta redução do deus não se refere, entretanto, a um status de
poder, pois Maíra é o senhor do mundo dos mairuns, isto é, de todo o mundo, que todo deus
pretende-se hegemônico. Maíra é menor porque, como veremos, ele é a parte de Mairahú que
se torna soberana, mas terá um irmão, Micura, que representará a outra parte, sombria e apartada
de si para que a cultura pudesse se erigir. Mairahú é o senhor do mundo subterrâneo, descrito
como o “Sem-Nome”, uma “escuridão sem começo”. Informe e sem regras, o reino do deus é um
lugar em que tudo se confunde e nada pode ter existência individual, por isso é sentido como in-
desejado: “Não era muito bom aquele mundo do Velho. Não havia dia nem noite, somente pe-
numbra. E tinha pouca comida. Não havia homem, nem mulher; todos eram iguais” (RIBEIRO,
2001, p. 134). Os seres brotam de Mairahú por cissiparidade, o processo reprodutivo do caos e da
Grande Mãe, e o “Velho” se reproduz na terra (como veremos, a seguir, fazer o andrógino de
Aristófanes, em Platão), até o filho Maíra separar os seres e criar um universo dual:
Logo adiante acrescenta que Mairahú, ou seja, o Pai, esse Sem-Nome (o sufixo hu
designa pai-de), “desenhava cada bicho na areia e redesenhava com cuidado até
gostar. Aí soprava seu alento sobre o desenho e o bicho levantava espantado”. [...]
Até então ele havia criado animais e gente, mas ao mesmo tempo em que aque-
les se comportavam como humanos, usando da fala, por exemplo, a gente era uma
mistura de homem e bicho, ou de gente indiferenciada [...]. Até que Maíra [...] re-
solveu fazer reformas para melhorar a humanidade. Começou por diferençar os
sexos e redistribuir as riquezas. [...] Maíra faz com que os homens conheçam as
suas diferenças, inventa o pecado e [...] preocupa-se em melhorar a sua vida eco-
nômica (RAMOS, 2000, p. 150-151).
Por este resumo de Maria Luiza Ramos, pode-se perceber, na visão de Maíra propagada pe-
lo narrador do romance, o fundador de uma cultura exclusivista, que estabelece hierarquias de
capital e poder, separa o centro da periferia marginalizada e institui a lei e o crime. Como prega
Xisto, em um momento da obra: “A culpa é a culpa e Deus é o juiz. Só Deus. O Diabo é o cobra-
121
dor” (RIBEIRO, 2001, p. 82), segregando os papéis entre o sujeito instituidor da lei e o Outro,
sobre o qual recai o dogma do pecado, do crime, do marginal. A separação, no mito mairum, é
denunciada pelo aparecimento de um gêmeo, um Outro de Maíra, em quem se concentram as
qualidades negativas do deus fundador. No capítulo “Mairaíra”, a intenção de Maíra de intervir
no mundo é apresentada através de um diálogo entre o par de gêmeos, sem narrador, como no
foco dramático. Maíra se auto-afirma, primeiramente, pela palavra, e tudo ganha nome, quando
antes era indistinto. É, pois, o pensamento autoconsciente a se anunciar e a isolar-se do mundo,
ao mesmo tempo em que estabelece o novo modo de relacionar-se com as coisas, atribuindo-lhes
substância “objetiva” com a linguagem. A palavra é o ato fundador, porque nomeia os objetos e,
ao nomeá-los, submete-os à manipulação do sujeito pensante. A partir daí, Maíra dirige-se ao seu
Outro e reclama um novo mundo:
Sou Maíra lembrou –, sou o arroto de Deus-Pai. Ele, o Ambir, agora tem no-
me: é Mairahú, meu pai. Meu filho será Mairaíra. Pegou então a conversar com
o irmão, Micura, sobre o que podiam fazer.
Maíra: – O mundo de Mairahú, meu pai, é feio e triste. Não é um mundo bom para
a gente viver. Podemos melhorá-lo (RIBEIRO, 2001, p. 163).
O ato criador de Maíra tem efeitos colaterais. Entregando o fogo do Urubu-Rei ao povo ma-
irum, Maíra cria a cultura, mas ao mesmo tempo a morte e o trabalho. A primeira vem como uma
“maldição” do Urubu-Rei; o outro, como uma invenção de Micura, o lado sombrio de Maíra:
Urubu-rei: Fiquem com o fogo vocês, mairuns. Mas façam muita carniça para
nós.
[...] Micura disse:
Não, assim não é bom. Esses safados dos mairuns, não trabalhando, vão ficar pre-
guiçosos. Pôs o mel no oco do pau ou no fundo do cupinzeiro e cercou tudo de
abelha e marimbondo. Riu e disse: –Quem quiser comer um melzinho doce vai
encontrar dificuldade, vai ter que trabalhar (RIBEIRO, 2001, p. 164).
O mal, como se vê, aparece na imagem do gêmeo de Maíra, sua face negativa, a sombra
criada pelo ato de separação, a alteridade elaborada pela separação do mundo entre o sujeito e o
objeto, o Eu e o Outro. Mairahú enxerga o mal da separação, contemplando o mal encarnado em
Micura: “Mairahú, o Velho, olhava de longe aquela confusão com desgosto. Pensava que seu
filho estava sendo mal-aconselhado pelo falso irmão que ele mesmo inventou. Não podia deixar,
senão eles estragariam a criação(RIBEIRO, 2001, p. 165). A cosmogonia volta a ser narrada
três capítulos adiante. O título desse capítulo é “Maíra-Poxi”, que, literalmente, poderia ser tradu-
122
zido como o “Maíra feio” (cf. BUENO, 1987, p. 585: poxi, feio). O capítulo começa com a ação
de Maíra separando os seres e opondo-os entre si: “Começou os trabalhos de refazer o mundo
juntando toda a gente-ambir que existia e dividindo em dois grupos: os de e os de lá” (RIBEI-
RO, 2001, p. 177). A partir desse primeiro ato, Maíra funda a aldeia mairum, dividindo-a em me-
tades contrapostas, e cria a lei e o tabu do incesto. Outra vez, Mairahú incomoda-se com a inter-
venção do filho: “Lá de cima, Maíra-Ambir olhava com raiva aquele estrago que seu filho estava
fazendo na criação” (RIBEIRO, 2001, p. 178). Com a separação do mundo em dois lados, repre-
sentada pelo afastamento de Maíra do deus original que o criou e a substituição da antiga divin-
dade pelo par de gêmeos, inicia-se o tempo dos conflitos: “Começou a guerra do mundo. Ela es-
gotou todo o tempo da antiguidade em lutas sem fim e continua até hoje, sem trégua. Cada dia,
cada noite é uma batalha. Uma dura batalha em que Maíra enfrenta Mairahú para que o mundo
fique como é” (RIBEIRO, 2001, p. 179). Todo o episódio da cosmogonia de Maíra é resumido no
diálogo final entre Mairahú e Maíra:
Mairahú: Maíra-Poxi, cagão, me ouça.
Maíra: Fala, Mairaíra, meu filho, escuto.
Mairahú: Sou seu pai, me respeite.
Maíra: Sem mim você não seria pai.
Mairahú: Eu sou o um.
Maíra: Eu, o outro.
Mairahú: O outro é nenhum.
Maíra: Eu sou quem é (RIBEIRO, 2001, p. 179).
O excerto é modelar para expor a dialética da alteridade. Maíra refere-se ao pai como “Mai-
raíra”, seu filho, numa inversão de causalidade que agora mostra o caos como efeito do ato de
Maíra e não sua condição predecessora. Percebe-se aqui como, ao instituir uma ordem, o ato fun-
dador constitui, ao mesmo tempo, uma não-ordem, o lugar das coisas que não compõem os valo-
res do sistema instituído; mas esse lugar será identificado, por ser o caos opositor ao sistema fun-
dado, com o caos inicial, quando não havia sistema divisor algum. O Outro é criado quando uma
parte do caos se eleva sobre ele e o concebe como oposição. É assim que o filho do caos cria seu
próprio pai, pois depois de sua ação criadora o mundo se divide e o caos pode ser “visto” pela
consciência que o recusou. Como o deus que se multiplica para ver-se, Mairahú precisa de Maíra
para existir; sem este, aquele “não seria pai”.
As frases paradoxais e tautológicas ao final do diálogo revelam a complexidade da temática
através de sutilezas sintáticas. Ao afirmar “Eu sou o um”, Mairahú manifesta em linguagem as
123
grandes contradições do caos: um eu que se afirma sem legitimidade, pois não existe, na outra
ponta do verbo predicativo, um objeto ao qual se ligar, de forma que a única coisa que ele pode
dizer de si é que é inteiro, ou, ainda melhor, que é, sem poder, contudo, conferir-se uma qualida-
de ou essência particular. Por outro lado, o numeral substantivado pelo artigo indica que existe
uma essência onde não existe essência nenhuma: Maíra é o vazio pleno do caos potencial, a subs-
tância total, por não realizar substância nenhuma, lugar onde tudo é porque nada existe individu-
almente e formalizado. Já Maíra responde com uma frase de verbo elíptico, dividida em dois he-
mistíquios em que se opõem os termos “eu” e “outro”. Confrontada com a frase de Mairahú, a
resposta de Maíra torna-se ambígua. Pode, em primeiro lugar, ser interpretada como o índice do
isolamento de Maíra em relação a Mairahú, isto é, “eu sou o outro que se opõe a você, o um”;
mas pode também ser a afirmação de que “eu sou o outro de mim”, numa denúncia da consciên-
cia de que eu crio um terceiro e só existo em função desta elaboração da alteridade, é através dela
que sou visto, como o deus inicial no espelho que o multiplica; finalmente, a elipse pode ser ain-
da preenchida por um conectivo, em vez de um verbo, vindo a significar, a frase, uma resposta
confirmativa do que disse o Velho Ambir, isto é, que “eu e o outro” somos Mairahú, o todo. Em
duas frases curtas, o autor concentra tudo o que se pode sintetizar da questão da alteridade e dos
problemas que a constituição de uma autoconsciência e da fundação de uma cultura isolada traz à
experiência humana: o Outro e Eu somos partes do que era Um; ao separar-me deste Todo, Eu
crio a minha parte, que é a que fica imanente ao Todo.
percorremos esse percurso, em capítulo anterior, no emocionar masculino separando-se
da sociedade matrística: o que era um e incluía o lado “rebelde” passa a ser o Outro, no par de
oposição. Por isso, Maíra-Poxi é a feiúra de Maíra, que fragmentou o mundo harmonizado, é o
lado masculino de Mairahú, solar e guerreiro, que, isolando-se do todo, converte o outro lado em
seu par sombrio e indesejado, Micura, o deus lunar, noturno e feminino. Mairahú mostra a falsi-
dade desse Outro, denunciando que ele “é nenhum”, e repare-se o inusitado da construção sintáti-
ca, estabelecendo como predicativo do verbo afirmativo um pronome de negação com função
habitual de excluir o que parece real ao contrário de “ninguém”, “nenhum” carrega semantica-
mente a idéia de negação de algo que parece ser, outra vez estamos diante de uma construção
que dualiza a essência de um termo, mas, enquanto no “um” de Mairahú entendemos a substância
do que parece não ser, aqui, ao contrário, “nenhum” nega a realidade do que parece existir. A
última frase de Maíra, por sua vez, divide-se igualmente em dois hemistíquios, agora com a pri-
meira pessoa de um lado e a terceira de outro, ambas afirmadas pela presença de dois verbos se-
124
parados, mas igualmente identificando o Eu e o Outro, o primeiro e o terceiro. Assim, se sujeito e
objeto aparecem separados como sujeitos de orações exclusivas, o terceiro ainda aparece subme-
tido ao principal pela subordinação, embora identificados entre si pelo verbo “sou”. É a lingua-
gem, criada por Maíra, que desvela sua lógica necessária: falar é hierarquizar o mundo.
Como disse acima, tudo é, então, espelho na composição de Maíra, em que o sujeito a-
prende como se e o Outro: “Espelhos, reflexos, sombras de diversos planos inauguram i-
magens deformadas, caleidoscópios de Narciso” (MARTINHO, 2005). É assim que, no início da
jornada de Alma e Isaías pelo universo mairum, na fronteira entre dois mundos, na porta que
guarda a travessia, o autor fixa uma réplica da casa de Maíra: a Casa dos Espelhos dos missioná-
rios protestantes, Bob e Gertrudes. Intitulado “O vômito”, o capítulo está exatamente na metade
do enredo, no final da segunda das quatro partes, anunciando, portanto a terceira parte, que gravi-
tará em torno das descidas de Maíra-Micura para os corpos dos homens, a fim de observar o
mundo através de suas criaturas, de onde os deuses perceberão o “mal” do mundo criado. Nesta
terceira parte (“Canon”), Maíra o mundo pelos olhos de Remui, o aroe, chefe religioso da tri-
bo, como o tuxaua é chefe guerreiro; de Teidju, o oxim, xamã das forças sombrias e negativas; de
Jaguar, o jovem guerreiro mairum; e do próprio Isaías. A última “possessão”, localizada no pe-
núltimo capítulo da terceira parte, é de Micura sobre Canindejub, isto é, a “arara amarela”, nome
que os mairuns deram à loura Alma; o último capítulo intitula-se “Armagedon”, o anúncio do fim
do mundo. É, pois, Micura e seu poder feminino, depois de todas as encarnações masculinas de
Maíra, que trará o mundo novo e apocalíptico que se mostrará na última parte do romance, o
“Corpus”, quando Isaías vai se fixar em sua ambigüidade de homem de dois deuses, Alma em sua
dupla cidadania de mulher estrangeira e mulher mairum, e o mundo mairum desintegra-se no
encontro com o poder branco.
No capítulo em que aparece, portanto, a Casa dos Espelhos (O mito”), faz-se a inversão
especular do romance, para o início da visão sobre o Outro, que se encarregará de destruir qual-
quer perspectiva hegemônica e conduzirá para o caos final das indistinções identitárias. Se, até
aquele capítulo, o narrador apresentou o universo do romance e sua elaboração a partir do mito de
Maíra, a partir dali inverte-se o movimento, e é o princípio da noite feminina que tomará conta
das personagens e do mundo mairum, até sua vitória final, antevista no último discurso de Xisto,
que confunde bem e mal, Deus e o Diabo, numa única divindade, amalgamando no caos inicial as
forças apartadas e eternamente inimigas. mito designa o movimento contrário da ingestão,
uma devolução ao mundo do que foi morto para a sobrevida de alguém, uma vez que alimentar-se
125
é matar um outro para tirar-lhe a energia de que se precisa. Vomitar é um ato de rejeição, uma
rebeldia do alimento contra as forças da vontade de viver. De um vômito do Ambir nasceu Maíra;
por um vômito, Ambir devolve-se ao mundo mairum.
A Casa dos Espelhos, “mais ofuscando que mostrando as formas” (RIBEIRO, 2001, p.
234), é emblemática, portanto, para inspirar o tema da alteridade e revelar o plano de conteúdo e
forma de Maíra. Diante da estranheza arquitetônica da morada dos missionários, Alma sugere
que a Casa dos Espelhos seja um objeto de outro mundo: “É um disco voador. Não pode ser outra
coisa, queimou a mata toda ao redor. está: metálico, redondo, achatado, brilhando ao sol. É
um disco! É o disco voador”. Isaías a princípio duvida da sugestão, mas, pelo discurso indireto
livre, o narrador mostra sua hesitação: “Casa não pode ser com esse aspecto de dois pratos em-
borcados um no outro. A forma é de disco voador: fantástico, redondo. Por que tão redondo? E
aquele torreão, em cima, com escotilhas de avião? Meu Deus, que disco é esse?” (RIBEIRO,
2001, p. 234). O espanto dos recém-chegados revela-se, portanto, pela interpretação de uma pre-
sença estranha e de outro mundo, uma invasão de mundo desconhecido no mundo conhecido,
uma ameaça alienígena. Eles estão no mundo mairum, em plena selva, e aqui essa presença não
faz sentido. Então a porta do “disco voador” se abre e, como numa estória de ficção científica, os
habitantes saúdam o casal:
Mais perto vêem surgir no alto do barranco, ao lado do disco, um casal e três cri-
anças, todos louros. Saíram do disco por um alçapão que baixou da parede incli-
nada e estão como que esperando por eles. Que será? Gente como nós? Mais perto
se tranqüilizam ao ouvirem a saudação cordial num sotaque carregado:
– Bem-vindos sejam à nossa casa.
Alma e Isaías se entreolham: que é isso?
– Somos pastores norte-americanos – explicam ( RIBEIRO, 2001, p. 234).
A presença do disco e de seus habitantes é descrita como inesperada e assombrosa, o Outro,
em sua prodigiosa e estupenda existência, desvelando-se. Insistindo, contudo, em sua estrutura
especular, o enredo inverte o modo comum das tramas de ficção científica e, em vez de os terrá-
queos”, os autóctones darem boas vindas, é o alienígena que recebe o habitante local como estra-
nho visitante: o disco não é uma presença extraordinária, está em “casa”. De seu solar esquisito,
os protestantes levam ao interior da selva mensagens de um deus distante:
Contam, também, com um poderoso sistema de alto-falantes, postos no alto da ca-
sa, por onde poderão parlamentar com os atacantes, uma vez determinada qual a
língua que falam. Para isso contam com gravações de um elenco de frases de sau-
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dação em vários idiomas indígenas. O importante é que dali de dentro da casa po-
dem parlamentar numa posição absolutamente inexpugnável: inexpugnável, reite-
ra Bob (RIBEIRO, 2001, p. 236).
A Casa dos Espelhos é, portanto, uma Torre de Babel às avessas: traduzindo, em uma vari-
edade de línguas, sempre a mesma mensagem totalitária, procura falar em nome de todos, mas
fala em nome de um só. Uma Babel diferente se instaura, para caotizar essa mensagem uniforme,
quando Isaías, no capítulo final do romance, aparece sincretizando o texto bíblico com traços do
imaginário mairum. Com o auxílio do ex-padre, Gertrudes estuda a gramática mairum para tradu-
zir a mensagem cristã, mas começa a achar que, ao ajudá-la, Isaías está deturpando o texto origi-
nal, a cuja acusação ele responde: “Cada povo, a senhora sabe, cada povo pensa dentro do quadro
do seu idioma. Sem situar a tradução no quadro do idioma mairum, nenhum mairum vai entender
nunca a Santa Bíblia. Não pode ser como a senhora quer, palavra por palavra, substantivo por
substantivo, verbo por verbo”. Bob procura defendê-lo, mas a mulher replica: “O que você não
sabe, que você não quer perceber é que seu Isaías não trata de reduzir tudo à sintaxe mairum,
não. Além de palavras ele acrescenta frases e imagens. E isso é inadmissível, abominável” (RI-
BEIRO, 2001, p. 374). O caos reinante ao final do romance confunde todas as mensagens, a mai-
rum e a cristã, e dissolve a hegemonia da palavra do pregador cristão.
A palavra é representativa da colonização branca no Brasil. A arquitetura da Casa dos Es-
pelhos é, também ela, um amálgama da arquitetura do Congresso Nacional: os dois “pratos”, um
côncavo e um convexo, ladeando o edifício central, aparecem, na descrição de Darcy Ribeiro,
justapostos num disco, com a torre encimando-os. Mas, o que lá, no desenho de Niemeyer, estava
separado, aqui surge confundido num único bloco: tudo se mistura no encontro das culturas e a
hierarquia desaparece. A Casa dos Espelhos é um símbolo da atividade colonizadora e de seus
“espelhinhos” de troca, emblema dos “caciques” de Brasília a chefiar autoritariamente o interior
do país e enviando-lhes sempre a mesma mensagem, traduzida em muitos “idiomas”. Como os
“espelhinhos” do colonizador português, a casa tem por função atrair os índios para a conversão:
Logo depois levam Alma e Isaías para outro lado da casa, onde levantam um toldo
de lona para mostrar, muito bem arrumado, um estoque de facões, machados, fa-
cas, tesouras, miçangas e muita coisa mais. Tudo destinado a brindar os índios pa-
ra cevá-los, conforme a boa técnica, e, assim, chamá-los à paz.
Aqui estamos tranqüilos explica Bob –, esperando o ataque inevitável que se
converterá numa confraternização. – Mais dia menos dia os índios aparecerão. Isto
é inevitável. [...] Os índios acabarão por ver a casa e9(i)-1.3558531605(e)1.9638
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O espelho é o simulacro da reciprocidade, o lugar onde o Eu encontra Outro que sabe ser
ele mesmo, como Maíra, o senhor dos espelhos, quando começa a descer no corpo de seus filhos
para ver, pela luz dos olhos deles, o mundo que criou – o ego assumindo perspectiva de alter:
Daqui de cima, riscando este céu sem fim nem começo, olho e vejo. Vejo tudo. Lá
de baixo todos me olham e me vêem com a luz que lhes dou, devolvida. Quem
pode existir, senão debaixo do peso de minha claridade? Olho e vejo, lá, esse
mundinho meu. Vejo água de mar e de rio. Vejo também, lá no fundo, eles, o meu
povinho Mairum (RIBEIRO, 2001, p. 301).
O mito do duplo e do par de gêmeos remete à cultura matrística. Neumann (2003, p. 83-84)
alerta para o simbolismo da Grande Mãe presente no motivo dos gêmeos hostis, que aparece
“quando o elemento masculino se separa, mediante a autodivisão”, e configura-se, duplamente,
como “elemento destrutivo-assassino, de um lado, e, de outro, elemento positivo-criador, che-
gando à autoconsciência”. A separação, como vimos com o mito de Maíra-Micura, origem ao
hostil antagonista da parte que se autonomiza no elemento masculino, e “é uma fase importante
no caminho que leva à dissolução definitiva da uroboros, à separação dos Pais Primordiais e à
consolidação da consciência do ego”.
Sílvia M. S. de Carvalho (1979, p. 148-149), em estudo sobre mitologia brasileira, afirma
que os heróis gêmeos figuram em mitos de quase todo o território brasileiro. “Identificados com o
Sol e a Lua em várias mitologias”, eles são “heróis civilizadores de várias tribos brasileiras. E,
mesmo quando esta sua caracterização é posta em vida, percebe-se que o Sol representa, entre
muitas delas, justamente o padrão de caráter masculino valorizado pela cultura”. É o caso do mito
entre os Urubu-Kaapor, em que Maíra, “na sua caracterização de Maír-mimi”, é o herói modelar
apontado como “ideal-tribal” a ser imitado. “Maír-mimi é uma reedição do pai (o Sol, a ‘onça-
boa’) e como tal se opõe a Mikur-mimi (caracterizado freqüentemente como Lua)”.
A autora alerta para o fato de que o mito veicula, em verdade, uma história de adultério, o
que se verifica em todas as versões indígenas brasileiras e pode ser denunciado pela presença, no
caso dos gêmeos, de um pai diferente para cada membro do par, situação em que um dos dois
será, por conseguinte, um filho adulterino: “A vítima do ciclo dos gêmeos é uma mulher, em mui-
tas versões adúltera ou incestuosa, embora a causa imediata de sua morte seja, geralmente, o fato
de se ter comprazido do ato (não o ato em si), ou simplesmente em decorrência de sua ausência
de cultura, se podemos falar assim” (CARVALHO, 1979, p. 153). Por isso, é a morte de Alma, a
mãe dos gêmeos, que abre o enredo de Maíra. Pesquisando uma versão do mito entre os Tenete-
128
hara, Claudio Zannoni (2000, p. 166) interpreta o homicídio da mãe, que, nesta como em muitas
outras versões, é devorada pelas onças, como o sacrifício da mulher para dar à luz o par de gê-
meos. “É um sacrifício necessário como reposição à natureza pelo nascimento de dois novos se-
res”, defende o autor, a morte instituída pela Mãe, que existe como necessidade para a eternidade
da vida. Nos mitos indígenas brasileiros, a mulher aparece “estraçalhada”, o que em Alma se a-
presenta no ventre aberto e na pele estriada por queixadas de piranhas. Trata-se, no romance co-
mo no mito, de “uma mulher andarilha (como o estágio que ela representa), grávida ou não [...],
abandonada, deixada para trás pelo marido ou pela família, e que acaba sendo devorada [...] pelos
animais” (CARVALHO, 1979, p. 154). Para Sílvia Carvalho, a mulher é mbolo “da condição
pré-cultural, e assim, por uma gica interna do mito, destinada a desaparecer, ao entrar em cena
a onça, dona do fogo” (CARVALHO, 1979, p. 154), o jaguar, totem do clã de Isaías, grupo que,
entre os mairuns, está mais próximo da virilidade guerreira. Com Alma, no entanto, a dualidade é
abortada e a morte não mais significa a segregação, a autodivisão e a negação do Outro para a
sobrevida do mais forte, mas apenas, como na cultura pré-patriarcal, fator onipresente e inaliená-
vel à vida. Os gêmeos natimortos anunciam, assim, a anti-utopia de Maíra: um mundo de caos,
que não admitirá mais nenhuma ordem unilateral e dicotômica. O feminino morre, não para per-
mitir a supremacia do masculino, mas para ensejar, paradoxalmente, que o feminino se dissemi-
ne. O anúncio é confirmado no segundo capítulo do romance, cujo tema é a morte do tuxaua A-
nacã, o chefe dos guerreiros mairuns, que precisará ser substituído, mas cujo candidato, Isaías,
não é um bom representante da gica viril patriarcal e não logrará, portanto, continuar a ordem
instituída com a criação dualista do deus Maíra.
Entre os índios brasileiros, parece que a mãe dos gêmeos assassinada remete ainda à prática
canibalista, que, como vimos com Neumann, está associada ao auto-sacrifício dos membros das
sociedades matrísticas para a permanência do grupo, simbolizado pela uroboros, a serpente que se
autodevora. “Outros povos primitivos com cultura semelhante à dos nossos indígenas (na África,
na Melanésia), praticavam sacrifícios humanos”, compara Carvalho (1979, p. 154). “Eles ocorri-
am também nas culturas andinas, presumivelmente desde tempos remotos. Não parece fora de
cogitação que tenha existido algum rito (possivelmente secreto e por isso praticamente inestuda-
do) em que se dramatizasse um mito de tão vasta distribuição”. Para ela, “o tema da mulher devo-
rada [...] pelos animais, reflete uma mentalidade que se poderia definir, de certa forma, como
endocanibalística, já que a vítima sacrificada é escolhida entre os membros do próprio grupo”,
por isso, “a difusão do mito dos gêmeos representa também uma inovação ideológica: ela reflete
129
na realidade uma mentalidade exocanibalística”, em que o sacrifício é substituído pela guerra e
pela antropofagia ritual de guerreiros estrangeiros aprisionados (CARVALHO, 1979, p. 158).
Esta é a função de Jurupari. “Nos mitos que se enquadrariam, em linhas gerais, no tipo do de Ju-
rupari [...], é no seio do grupo que surge a antropofagia, como um elemento de desordem que
precisa ser eliminado, para a preservação da integridade tribal, da civilização” (CARVALHO,
1979, p. 153). Jurupari é sinônimo de “demônio, espírito imundo”, e é descrito como o “‘dono
dos animais’, ‘senhor terrível’, ‘onça antropófagaque poupa o caçador porque este lhe oferece a
virgem de madeira como compensação” (CARVALHO, 1979, p. 165). A madeira, aqui, simboli-
za o estado desordenado e pré-cultural da natureza bruta. A cultura matrística brasileira teria sido
uma extensão de culturas centro-americanas que tribos guerreiras nacionais buscaram reprimir.
Sílvia Carvalho (1979, p. 369) explica:
As invasões aruák e particularmente a tariâna trazem para a América do Sul repre-
sentações que se originaram tanto na América Central como no Noroeste da Amé-
rica do Sul, e em que se sobressai uma divindade feminina (certamente resultante
dos sacrifícios humanos), Amaná ou Seucy.
Esta divindade feminina passa a ser neutralizada e, pode-se dizer, expulsa do pan-
teon dos deuses, pela religião de Jurupari. Isto corresponde a uma necessidade de
homogeneização da cultura com as outras tribos para possibilitar a paz inter-tribal
necessária ao novo gênero de vida sedentário que se instala; ao mesmo tempo, a
mulher, sendo identificada como inimigo 1 generalizado pela sociedade dos
homens, permite (através da manutenção como eternas estrangeiras das que en-
tram no grupo pelo casamento) uma defesa da autonomia local.
Ao contrário, porém, do que ocorreu com a cultura européia, Sílvia Carvalho (1979, p. 159)
conclui que as mudanças talvez não tenham interferido muito no status tribal da mulher e, de
qualquer forma, diz que “é difícil” determiná-lo com precisão. “O que importa”, diz a pesquisa-
dora, “é que com o mito dos gêmeos adota-se, em muitas tribos, o exocanibalismo ritual. [...] Efe-
tivamente, a guerra canaliza a hostilidade para fora do grupo, e o sacrifício do bode expiatório
não mais implica numa parcial autodestruição”.
No romance de Darcy Ribeiro, a mulher morre misteriosa e “naturalmente” e não é vinga-
da, pois morrem também os filhos. Quebra-se, com isso, o tabu do incesto e abole-se a renúncia
ao selvagem. Em outras palavras, o sacrifício que abre o Maíra é inócuo, não funda nenhum
mundo ordenado. Os gêmeos que ela pare não dividirão o mundo em dois. Seus filhos natimortos
se espelharão, na tessitura da trama, no mito de Maíra-Micura, para que, ao final se perceba que
nenhuma nova ordem, a partir deste novo nascimento, será edificada. Os gêmeos, como lembram
Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 465),
130
exprimem, ao mesmo tempo, uma intervenção do Além e a dualidade de todo ser
ou o dualismo de suas tendências, espirituais e materiais, diurnas e noturnas. São
o dia e a noite, os aspectos celeste e terrestre do cosmo e do homem. Quando eles
simbolizam, assim, as oposições internas do homem e o combate que ele tem de
travar para superá-las, revestem significado sacrifical: a necessidade de uma ab-
negação, da destruição ou da submissão, do abandono de uma parte de si mesmo,
para o triunfo de outra (grifos dos autores).
Por isso, muitas tribos expõem os gêmeos recém-nascidos, isto é, os expulsam da comuni-
dade, devolvendo-os à natureza, à Terra-Mãe que os gerou. É que não podem estar no mundo, ao
mesmo tempo, os dois lados da divindade: um deve erigir-se sobre o outro para que a ordem exis-
ta. Eles simbolizam, como vimos com o tema do duplo, a ambigüidade de todo sistema dual, o
dilema da alteridade, em que o diferente é um meu igual. Interpretando o motivo dos gêmeos na
simbologia zodiacal, Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 467) afirmam que eles expressam a “dua-
lidade na semelhança e, até, na identidade”, e por isso, são representativos “de todas as oposições
interiores e exteriores, contrárias ou complementares, relativas ou absolutas, que se resolvem
numa tensão criadora. [...] Dois efebos enlaçados representam esse signo dito duplo, que nos
introduz no mundo dos contrários polares: masculino-feminino, trevas-luz, sujeito-objeto, interi-
or-exterior...” (grifo meu).
Jean Perrot (1997, p. 391) nota que “o mito literário dos Gêmeos relaciona-se com o do
Andrógino”, pois a primeira e maior oposição é a dos gêneros: “Célula reveladora das linhas de
força de uma época ou de uma cultura, os gêmeos encarnaram, em primeiro lugar, com seu nas-
cimento em duplas, a oposição maior do masculino e do feminino, do divino e do humano nos
mitos das origens” (PERROT, 1997, p. 396, grifo meu). Sua presença nos mitos cosmogônicos
representa, como em Maíra-Micura, a oposição das forças na luta pelo estabelecimento de uma
cultura hegemônica, por meio dos conflitos entre os “gêmeos epônimos, soldando-se a civilização
por meio da eliminação do mais fraco (Abel, Remo etc.) ou pelo recolhimento dos deuses do
Empíreo (Plauto)” (PERROT, 1997, p. 396-397).
Um dos primeiros e o mais clássico aparecimento do andrógino no pensamento do ocidente
está na descrição pronunciada por Aristófanes no Banquete, de Platão. Para explicar o amor, que
é o tema do colóquio em casa de Agatão, o comediante grego propõe um antigo mito que fala de
uma criatura que reúne os dois sexos no mesmo corpo, cuja arquitetura é dominada pela geome-
tria circular:
131
Inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo;
quatro mãos ele tinha, e as pernas, o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um
pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos
um ao outro era uma [...]. Apoiando-se nos seus oito membros de então, rapi-
damente eles se locomoviam em círculo (PLATÃO, 1987, p. 22-23).
Comentando argumento do escritor argentino Jorge Luís Borges, Nicole Bravo recorda que
o duplo mantém uma “relação privilegiada com a figura da circularidade”, pois ele “renasce sem-
pre das cinzas que marcam a relação com a morte” (BRAVO, 1997, p. 287). Neumann, por sua
vez, associa a circularidade ao estado emocional da sociedade pré-patriarcal:
O círculo, a esfera e o redondo são aspectos do Autocontido, sem começo nem
fim; na sua perfeição pré-mundo, precede todo processo, é eterno, porque, em sua
rotundidade, não antes nem depois, não em cima nem embaixo, não es-
paço. Tudo isso só pode surgir com o surgimento da luz, da consciência, que ainda
não está presente; aqui ainda domina a divindade não exteriorizada, cujo símbolo
é, por conseguinte, o círculo. [...] É também o estado perfeito em que os opostos
estão unidos o princípio perfeito, pois os opostos ainda não se separaram e o
mundo ainda não começou; é o final perfeito, uma vez que, nele, os opostos torna-
ram a juntar-se numa síntese e o mundo se encontra, uma vez mais, em repouso
(2003, p. 27).
Por isso, para Nicole Bravo, “mais que o círculo, é a imagem da espiral que viria ao caso, o
símbolo da morte-renascimento” (1997, p. 287). Na verdade, estudiosos da religião da Grande-
Mãe apontam na espiral um dos primeiros símbolos ritualísticos das culturas que adoram a deusa.
Segundo eles, a espiral é a geometria mais perfeita para a essência religiosa da Deusa, pois mos-
tra o movimento em ciclos: “Uma religião baseada no corpo divino é uma religião de mudança,
desse movimento espiralado que volta e se abre para novas experiências” (POLLACK, 1998, p.
19). Por isso, o rompimento da circularidade e de sua autonomia criadora aparece em mitos, co-
mo o de Platão, como um decaimento:
Diz Zeus: [...] Eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão
mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais nu-
merosos [...]. A cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda
do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação,
fosse mais moderado o homem. [...] Zeus consegue outro expediente, e lhes muda
o sexo para a frente – pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reprodu-
ziam não um no outro, mas na terra (PLATÃO, 1987, p. 23-24).
Daí o andrógino representar, muitas vezes, como informa Marie Miguet (1997, p. 33), a
harmonia do todo e alcançar o status de “símbolo por excelência da totalidade procurada, a fusão
132
dos contrários”. Comentando o romance de Robert Musil, O homem sem qualidades, a autora
conclui que o andrógino é não apenas como “ombolo do paradoxo sexual, mas o da impossível
resolução de todas as contradições”40.637(d).2066 ç
133
À partenogênese sucede o mundo binário dos separados. Maíra é a força do deus que assu-
me as formas em que o Não-Ser se multiplica: “Se numa brincadeira de bicho Maíra dizia: eu sou
a cutia, virava ali, na hora, uma cutia. Os meninos pediam: Vamos brincar de tamanduá? E
Maíra se transformava num tamanduá alegre e falador, ali diante de todos. Mas dentro perma-
necia ele mesmo, porque depois voltava ao natural” (RIBEIRO, 2001, p. 150).
Outro momento que denuncia a anterioridade do feminino ao masculino ocorre naquele ca-
pítulo que comentei acima, em que Maíra é o deus “feio” (“Maíra-Poxi”). Neste capítulo, o
narrador descreve a fundação do patriarcado entre os mairuns. Como vimos, Maíra separa “os de
cá e os de lá”. Em seguida,
aos de mandou fazer uma casona para ser o baíto e ensinou ali mesmo como é
que se construía. Quando estava pronta, Maíra entrou lá, sentou-se no chão e foi
134
Maíra faz do irmão o seu lado sombrio e refletor, numa masculinização do mundo traída,
aqui, pelo artigo masculino para o satélite feminino.
O enredo de Maíra, na contrapartida do mito mairum, propõe a involução da cosmogonia
até o feminino original. Como apontam Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 53), “o masculino e o
feminino são apenas um dos aspectos de uma multiplicidade de opostos que demandam nova
interpenetração”. A experiência de duplicação da consciência e de substantificação da alteridade
verificada com o Romantismo leva a uma abertura para o mundo e para a questão do Outro: “A
alteridade dentro do eu é o que vai permitir um diálogo, um reencontro, até mesmo uma solidari-
edade com o outro. A desapropriação já não significa um empobrecimento, uma nadificação do
ser, mas uma possibilidade de enriquecimento” (BRAVO, 1997, p. 287). A partir desta abertura,
funda-se uma nova cosmovisão no ocidente: “O homo sapiens que se liberta de seu duplo divino
transforma-se num homo ludens e num homo communicans”. O que era caos maligno e precisava
ser expulso para a margem do sistema transforma-se em fator dialético no interior da própria cul-
tura: “A ambigüidade, a incerteza, a indecisibilidade que fazem parte do refinado jogo de troca
entre o eu e seu duplo confundem a referência, ao expressarem uma dúvida (construtiva) sobre o
real, dúvida graças à qual é cabível imaginar que o individual poderá ser superado (utopia musili-
ana)” (BRAVO, 1997, p. 287). Percebe-se, como em Maíra, o parentesco e a igualdade de status
entre o que se havia separado em bem e mal. Como afirma Luzia de Maria (2001, p. 404), “o mi-
to de Maíra e Micura se aparenta com os inúmeros relatos que apontam a consangüinidade do
bem e do mal, Deus e o Diabo como irmãos gêmeos, a participação do Diabo na criação do mun-
do, Deus criando um irmão gêmeo, o Diabo, por sentir-se solitário”.
Esta segregação do caos no interior de uma divindade outrora absoluta, se no mito de Maí-
ra-Micura ainda revela com sutilezas o mal da unilateralidade cultural, no mito cristão, ao contrá-
rio, aparece como fonte de todo sofrimento humano na civilização. Mais incômodo ainda que
Maíra é o deus cristão de Isaías, absolutamente masculino, cuja esterilidade o ex-padre acusa em
seu próprio espírito:
Por que toda a Ordem se alimentou de mim, por tanto tempo? Talvez porque vi-
ram em mim a capacidade de erradicar todas as ervas daninhas que os mairuns ti-
nham na alma. As que cultivaram em séculos e séculos de heresia. Não sabiam é
que, no lugar delas, não plantavam nada. Enchi meu peito de fórmulas. Fórmulas
de amor a Ti, meu Pai, fórmulas ocas. Aqui estão todas elas na ponta da língua.
Sei todas de cor, mas apenas com o cor da mente e da boca. Meu coração está se-
co.
Ultionis... Remissionis... Rationis (RIBEIRO, 2001, p. 218).
135
O sagrado natural foi substituído pelo artificialismo de uma religião racional, puramente
mental, um deus de fórmulas, racionalista e verborrágico, mas sem a “memória” do sentimento,
sem a vivência espiritual dos rituais e a comunhão de sentidos com a divindade, como talvez ain-
da se tenha preservado na religião mairum. É um deus de “punição”, “remissão” e “razão”, um
deus que salva castigando e age assim em nome de uma razão; no tríptico latim, uma gradação
conduz da punição à razão, num percurso intermediado pela “remissionis”, que, originalmente,
significa um “afrouxamento”, “decréscimo, declínio”, denunciando que o que se vê como “razão”
é um abrandamento da segregação e da “vingança” (“ultionis”) inicial. Antes todo-poderoso, ago-
ra o deus romano reconhece-se prisioneiro de uma unilateralidade denegadora e manifesta-se,
então, como um deus de negativas, uma dualidade buscando a unidade: “Sou o outro em busca do
um” (RIBEIRO, 2001, p. 107). Percebendo-se reducionista, o deus concebe-se reduzido e con-
templa-se pelos olhos do mal que criou. Comportamento análogo é o de Maíra, que, não obstante
seja um deus total como todo deus –, descobre-se, por outro lado, parcial, relativizando-se por
se saber invenção de uma cultura para perceber o universo. A morte dos mairuns é, pois, a sobre-
vivência da divindade suprema, o Humanitas de Quincas Borba; o deus unilateral, parcial, tribal,
é mortal. No capítulo “Mairañe(i.e., “a fala de Maíra”, “a fala de Deus”), o deus dos mairuns
reconhece que não pode ser absoluto e recusa a eternidade à representação elaborada pela cultura
de seu povo:
Sobe a mim o murmúrio sem fim. É meu povo embaixo pedindo o milagre: a
exceção. Quer ficar.
Se este mundo é feito de mudar, por que só estes mairuns hão de ficar?
[...]
Nada é tão bom, suspeito, como o ser sempre um eu, único, sozinho, em si conti-
do, de si contente. Onipotente. Quem há-de?
Se os outros todos confluíram, perderam a cara, o nome e o jeito, por que este meu
povo há de ficar?
[...]
Querer-se assim, com tanta teima, tal qual são, não será seu modo maior de que-
rer-me a mim que os fiz assim?
Não. Senão o ser meu povo eleito a mim é que me obrigaria, cativo: um Deus tri-
bal. Contrafeito.
Como os mais eu também, de vocação, sou ecumênico. [...] Universal.
[...] isto pedem: permanecer inalterados, salgando-se no seu próprio sal. Eter-
namente. Quem pode?
Eu não! Não sou só. Não sou único. Nem sou deles (RIBEIRO, 2001, p. 331,
grifos meus).
136
O sincretismo desejado por Maíra é o mesmo pronunciado em orações de Isaías, em refe-
rência ao seu deus. Vejamos uma delas, a meu ver bastante significativa:
Meu Deus-Pai, criador do céu e da terra
Meu Deus-Filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor
Morto na Cruz, por vontade do Pai, para nos salvar
(Salvar quem se houvera salvo sem o Teu santo sangue)
Meu pobre Anjo das Trevas, servo rebelde do Senhor
Minha Nossa Senhora: útero de Deus.
Meu Deus-Pai, mairum: Maíra-Monan
(Com seu membro imenso crescendo debaixo da
terra, como uma raiz para todas as mulheres)
Meu Deus-Filho: Maíra-Coraci, Sol luminoso.
Micura, Teu irmão fétido: gambá sarigüê
Mosaingar, homem-mulher, ventre de Deus
Deus-Pai, Deus-Filho, Arcanjo Decaído
Maira Santíssima, Açucena do Senhor
Maíra-Monan, Maíra-Coraci, Micura
Mosaingar: parida dos gêmeos de Deus
Meu Deus de tantas caras, eu que tanto creio
como descreio, peço a cada um e a todos; rezo
e peço humildemente;
Que eu não chegue lá, se não for de Tua vontade
Que eu só chegue lá, se esta é Tua vontade
Mas, se chegar, que eu possa ser um entre todos
Indistinguível. Indiferenciável. Inconfundível
Um índio mairum dentro do povo mairum (RIBEIRO, 2001, p. 108-109).
A oração encaminha-se por uma gradação que parte do deus cristão masculino até o deus
indígena, passando por Satanás e a Virgem, até a confusão de todos num só, numa teogonia às
avessas, rumo ao Caos primordial. O percurso começa com o panteão cristão, que, na segunda
metade, revela-se análogo ao panteão mairum: Deus-Pai criador ~ Deus-Pai mairum (Maíra-
Monan); Deus-Filho Jesus Cristo ~ Deus-Filho Maíra Coraci; Anjo das Trevas ~ Micura; Nossa
Senhora ~ Mosaingar. A figura feminina, nos dois casos, sucede sempre à divindade sombria,
mas também aparece isolada num verso, depois do registro das três anteriores, o que poderia trair
sua identidade de divindade unificadora da santíssima trindade, em que o terceiro termo, do Espí-
rito Santo, é substituído pelo “Arcanjo Decaído”, o pobre Anjo das Trevas”. Sua qualidade de
divindade reversível, total e unificadora é ainda divisada na maneira inversa como a causalidade
teogônica é apresentada nas duas versões da deusa registradas pela oração: Nossa Senhora é des-
crita como “útero de Deus”, expressão ambígua, que tanto pode indicar o útero que serve a Deus
e a seus desígnios, como o útero de onde nasce o Deus, isto é, o útero original, que, neste caso,
faz a divindade feminina preceder a masculina. Por outro lado, Mosaingar, que o mito mostra
137
como mãe dos gêmeos Maíra-Micura, é aqui definida como “parida dos gêmeos”. Os vetores
temporais confundem-se, já não é mais possível direcionar a ordem da criação.
Daí o simbolismo do ventre aberto de Alma. Alma é uma parúsia às avessas de Mosaingar,
versão feminina de Maírahú, a “barriga do Ambir”, como se deduz do capítulo “Mosaingar”, que
abre a última parte (“Corpus”) e cuja temática é regida pela reflexão de Alma sobre seu papel
entre os mairuns (RIBEIRO, 2001, p. 325 ss.). Este papel é o de avatar da feminilidade caótica de
Mosaingar, o ventre gerador dos gêmeos, que agora dá à luz gesto paradoxal! a morte e as
sombras. Como lembra Neumann, “o ventre aberto é o símbolo devorador da mãe urobórica, es-
pecialmente quando relacionado com símbolos licos. [...] O ventre abocanhador, isto é, castra-
dor, aparece com as mandíbulas do inferno” (NEUMANN, 2003, p. 77). É que também Alma,
uma das protagonistas do enredo, procura a unidade do ser: “O que eu quero é tão simples. Quero
ser uma pessoa com um nome, uma cara, sempre a mesma: hoje, amanhã, qualquer dia. A mesma
para mim, para todo mundo, sempre” (RIBEIRO, 2001, p. 137). Alma é, na tessitura do romance,
a força do vazio pleno, cujas qualidades contraditórias de totalidade e nadificação o próprio Isaías
denuncia, quando a analisa: “Você parece esganada, diz, com uma fome terrível, não sei de quê.
Mas ao mesmo tempo parece saciada para todo o sempre, também não sei de quê” (RIBEIRO,
2001, p. 170), com o que Alma concorda: “Meu Deus, estou desesperada outra vez, por quê? Sa-
ciada e com fome, diz ele com razão” (RIBEIRO, 2001, p. 171). É que ela leva dentro de si um
mundo que nascerá morto, porque se recusa a fundar qualquer mundo; Alma é o ovo da criação, o
caos feminino que contém em si os opostos, os gêmeos filhos de Maíra e Micura, que desta vez,
porém, não vingarão. Ela é a mulher fertilizada por dois deuses, para dar à luz a dualidade: pri-
meiro, por Maíra, mas também depois por Micura: “Fica, quieta, mulher, diz o segundo, quando
ela está grávida do irmão, eu bem que queria ficar aqui nesse calorzinho do seu itã que pede
um filho. O outro posso dar”; “Talvez deixe uma semente” (RIBEIRO, 2001, p. 313-314 e 316,
grifo meu), germe que legará a herança da alteridade. Mesmo quando grávida, Alma ainda não
sabe que vai parir gêmeos, mas a duplicidade do filho aparece no momento em que ela não
consegue posicionar precisamente o caráter e o papel da criança que está por nascer, pois, dada
sua condição de estranha na tribo e consideradas as relações que travou, as regras sociais foram
embaralhadas:
Aqui um filho pertence à mãe. É do clã da mãe. Respeitará ao tio, nunca ao pai.
Este meu filho, por isso, apesar de tão mairum que é, é um filho meu, do clã que
eu não tenho. O homem de quem ele devia herdar a posição é meu irmão, que
também não tenho. O não ter ninguém, o estar só, o estar aqui na casa-dos-onças
138
não fará dele um pouco onça também? Mas é muito ruim para uma pessoa ser a-
penas um pouco alguma coisa. Fica dependurado entre dois mundos, como este
pobre Isaías, ou como eu mesma (RIBEIRO, 2001, p. 328).
Sem papéis precisos e separados no mundo, os gêmeos não cabem nele e nascem abortados.
A certa altura, Alma define-se pela ausência, pelo que não é: “O que é mesmo que eu sou?
Sei lá. Candidata a enfermeira da Funai, ex-vocação missionária, ex-amiga do ex-Isaías, isso é
tudo o que eu sou concretamente aqui” (RIBEIRO, 2001, p. 328). Através de sua autodefinição,
Alma expõe a ambigüidade do caos: “Comparado com o que sou agora, aqui, onde não sou nin-
guém, no Rio onde eu era muito mais, na verdade eu não era nada” (RIBEIRO, 2001, p. 328).
Esta é a essência paradoxal do caos: onde vida, morte; onde é, não é; onde não é, então é
que é.
A situação de Isaías é semelhante, pois, como mostrei atrás, eles formam uma dupla es-
pecular. Alma é psicóloga; Isaías, um ex-padre; nesta condição, ambos se confessam mutuamen-
te, espelham-se. O capítulo “A língua” faz intertextualidade com o epílogo do romance O guara-
ni, de José de Alencar: embrenhando-se na mata sobre uma canoa, Alma e Isaías repetem o gesto
dos heróis Peri e Ceci, que se afundam na mata para fundar a cultura miscigenada do Brasil. Nes-
te capítulo, Alma e Isaías discutem, falam de si para o outro, do outro para ele mesmo, acusam-se
mutuamente ou a si próprios, desculpam-se, buscando definir-se e definir ao outro enquanto cons-
troem seu diálogo. Esta é a abertura do capítulo: “Entre o rio e o céu, a canoa corre ligeiro, de-
baixo do sol, em cima do espelho das águas. Ponto negro movente na imensidão. As praias se
escondem esfumadas na distância. A mata é uma faixa escura, no horizonte. Às vezes se projeta
invertida, no céu: miragem. [...] A canoa corre nas águas, o sol sobe nos céus” (RIBEIRO, 2001,
p. 167). O excerto fala de espelhamentos e inversões, em que não se sabe mais o que é o real e o
que é imaginado, pois a miragem parece estar na forma de cima e não na imagem que se projeta
na água. Assim, um vai descobrir o que é a partir do outro, abandonando suas certezas pelo que
sempre pareceu falso, mas agora revela sua verdade. Veja-se, por exemplo, o que Isaías condena
em Alma: “Seu pecado é vaidade, Alma. Você quer tomar de Deus o que não alcançaram nem
Santa Teresa de Jesus, nem Santa Rosa de Lima. Somos umas alminhas à-toa, purgando não sei
que culpas, neste mundo sem remédio. E você querendo mundos e fundos(RIBEIRO, 2001,
p. 168, grifo meu). Ora, a totalidade que Alma busca, sabemo-lo, também é o anelo de Isaías, o
que ele acusa nela é o que conhece em si. Por isso, Alma é reduzida por um diminutivo, no mo-
mento em que ele a torna um emblema da fraqueza de ambos.
139
Também ele, Isaías, quer a totalidade, numa procura, aliás, até mais angustiada. A ousadia
de sua intenção aparece em episódio à frente, quando Isaías defende, junto ao tio Teró, que
Deus criou o homem para conhecer-se a si mesmo, vendo-se refletido no espelho
embaçado das mentes humanas. Eu, confessa o Avá, quero ver Deus nesses mes-
mos espelhos. Para isso preciso olhar cuidadosamente. assim poderei, para a-
lém das pessoas, conhecer Deus e decifrar seus desígnios. assim tenho a espe-
rança de que possa um dia alcançar o que mais quero como homem. Coisas sim-
ples que para os outros estão ao alcance das mãos, mas que para mim são quase
inatingíveis (RIBEIRO, 2001, p. 343-344, grifo meu).
A simplicidade de ter um deus transforma-se, em Isaías, em aventura desesperada, pela in-
capacidade de abraçar apenas uma representação. O que o Avá procura é um deus unificado e
absoluto, que só pode existir culturalmente através da negação. O problema é que todo deus insti-
tuído é um deus limitado. O impasse é realmente insolúvel, ainda que Isaías pretenda-o conclusi-
vo no reencontro com o deus mairum:
Desde muitos anos exilado de sua gente, Isaías faz uma oração que é uma variante
do Salmo 42 [“Judica me” – 3º capítulo, “Isaías”], que diz: ‘Com ferida mortal em
meus ossos me afrontam os meus adversários, quando todo dia me dizem: Onde
está o teu Deus?’ A diferença é que Isaías o inverte, por questionar qual o seu ver-
dadeiro deus, que cada vez mais não lhe parece o de Roma, mas o de sua aldeia
(RAMOS, 2000, p. 142-143).
No antigo panteão, contudo, Isaías não logramais se identificar com o deus Maíra, tam-
bém ele parcial e limitado a olhos que contemplaram, como os seus, a complexidade do mundo à
altura de onde tudo se confunde e a alteridade inexiste, como em sua chegada de avião à tribo
mairum: “Daqui de cima, recolhido no meu oco, eu vejo minha aldeia mairum esfumaçando nesta
tarde de sol” (RIBEIRO, 2001, p. 71, grifo meu). Para adentrar a morada do caos, é preciso abdi-
car de toda firmeza e toda comunhão com a cultura instituída: “O caminho da perfeição androgí-
nica tem como recompensa a mutilação, a solidão, a reprovação divina ou humana; mesmo apre-
sentada como exaltante, permanece ligada ao perigo assinalado nas suas primeiras formas” (MI-
GUET, 1997, p. 39). O espaço fronteiriço que Isaías ocupa é o lugar do Não-Ser, por isso, as per-
sonagens melhor arraigadas e detentoras de qualidades firmes, como seu sobrinho Jaguar, m
dificuldades para descrevê-lo e, aos seus olhos, o Avá aparece como um espectro, um “anhé”,
como neste excerto, em que Alma pergunta a Jaguar sobre o tio:
140
Perguntei a ele o que pensa do Avá. Não respondeu. Insisti e ele tentou explicar
que não se pode vê-lo, não se pode enxergar o Avá. Só o aroe e talvez nem o aroe.
Ninguém sabe ver o Avá porque o Avá não é: está sendo. Está saindo do seu cou-
ro, disse, como as cobras que mudam de couro todo ano. Mas uma cobra muda de
couro para ser mais cobra ainda. O Avá não: muda de couro para ser o outro e o
outro ninguém sabe ainda o que de ser. Mas como ele é o outro, ninguém o
vê no que ele é (RIBEIRO, 2001, p. 346).
O Avá não pode ser visto, porque não está definido, como os demais membros e objetos da
comunidade mairum; falta-lhe um referencial sólido, ele foi ao outro mundo e agora habita o li-
141
portanto, gravita o desejo de não nascer, de não escolher para não separar-se, pois “a saída do
ventre é automaticamente um regresso à vida consciente e mesmo a uma vida que quer uma nova
consciência” (BACHELARD, 2003, p. 117).
A atitude harmonizante de Alma faz com que Maria Luiza Ramos (2000, p. 145) fale dela
como “repetição e diferença” de Isaías e Ângulo (1988, p. 21) explica:
Alma é o reverso de Isaías. Ponto de contato também, mas num sentido inverso ao
percorrido pelo Avá. Isaías está voltando, Alma está indo. O problema de Isaías,
integrar uma coletividade, diferencia-se do de Alma, individual, que almeja a re-
denção através da atividade missionária. [...] Como dois pólos diferentes, Alma-
Isaías atraem-se, formam um duplo com o objetivo de buscar e recompor as pró-
prias identidades. E nesse sentido o final é trágico tanto para um como para outro
(grifo meu).
O fundo trágico está na impossibilidade de se compor identidades, o que parece ser, a meu
ver, a mensagem essencial do romance. Como defende Ramos (2000, p. 148),
naturalmente, o pragmatismo de Isaías se fundamenta no mundo capitalista em
que foi educado. Mas o seu comportamento tem raízes ainda mais profundas. Ele
é ambíguo, e como tal engendra contradições que não podem resolver-se comple-
tamente, mas que provocam uma tensão para o equilíbrio, para o senso comum e o
bom senso. E o bom senso, como diz Deleuze, supõe uma direção. A sua es-
sência é dar-se uma singularidade, caminhar do mais diferenciado ao menos dife-
renciado – o morno, o pardo. Sua função é prever, distribuindo e repartindo. [...] A
ambigüidade existencial provoca sofrimento em Isaías, justamente porque ele vive
na ânsia do uno, do indiferenciado. Apesar do seu casamento com Inimá, perma-
nece sozinho e estéril. Vive infeliz a sua vida, como que condenado a ela. Alma,
que não se casa, vive na plenitude do não-senso e consegue formar com os índios
o nós fecundo de que fala Isaías. Entretanto, morre. E com ela os filhos gêmeos,
em adiantado estado de gestação.
Alma experimenta, pois, a tranqüilidade, porque se recusa a escolher e não sente necessida-
de de “ser”, isto é, de possuir alguma substância cultural. Entretanto, ela encarna o que qualquer
mundo humano clássico sempre rejeita: a falta de uma ordem unidirecional. Por isso,
a morte de Alma ratifica o impossível de sua existência. Porque o seu comporta-
mento na tribo não é ambíguo. É paradoxal. E a força dos paradoxos, segundo De-
leuze, ‘reside em que não são contraditórios, mas nos faz assistir à gênese da con-
tradição. O princípio da contradição se aplica ao real e ao possível mas não ao im-
possível de que ele deriva (RAMOS, 2000, p. 148).
142
Certamente, não concordo integralmente com Maria Luiza Ramos no tocante a esta obser-
vação sobre o simbolismo da morte de Alma, que, em minha opinião, não ratifica propriamente a
impossibilidade da existência paradoxal. Precisamos entender esta morte como a morte é sugerida
pela fábula do romance: prenúncio de nascimento do novo. Se Alma morre, é porque, segundo a
visão matrística que se quer recuperada pela trama, a morte é necessária ao ciclo da vida. Acredi-
to que não é no cadáver de Alma que a morte assume seu significado de termo ou fim, mas na
morte dos fetos gemelares. Devemos lembrar que, segundo o mito, a partir do qual Darcy Ribeiro
elaborou seu romance, a mulher deve realmente morrer para permitir a vida da cultura nascente;
não é de sua sobrevivência que vem a promessa do mundo novo, mas do parto dos gêmeos heróis
fundadores, a partir dos quais se ergue a cultura segregacionista. O que Maíra anuncia, portanto,
não é uma mensagem trágica de fim de mundo, mas o reconhecimento trágico de que o mundo
novo deve nascer, mas isso acontecerá sobre o sacrifício do velho. Em Maíra, o que separa
vai, aos poucos, retornando ao Todo que era, vai concedendo seu corpo à ocupação de outros,
como nas diversas encarnações de Maíra em suas criaturas (“Maíra: Remui”, “Maíra: Teidju
etc.) e, ao final, revela-se o que verdadeiramente é: também o Outro (“Micura: Canindejub”). A
re-união de ambos deságua na Mosaingar que abre as portas para o novo e caótico mundo que
encerra o romance na quarta parte, o “Corpus”. Por isso, a estrutura mítica presente em Maíra
não é propriamente a escatológica, uma vez que o caos está instalado e o que se narra é verda-
deiramente uma nova criação, mas desta vez às avessas: não é um retorno clássico ao caos, mas a
cosmogonia do “mal”, o nascimento de um mundo a partir do Outro os elementos expulsos da
cosmogonia tradicional são agora os responsáveis pela edificação de um novo universo, que não é
mais réplica do anterior.
Recordemos que o romance inicia-se com o encontro dos cadáveres de Alma e seus filhos,
por um explorador que procura formigas. Bachelard (2003, p. 46) aponta o formigueiro como
uma imagem teriomórfica do caos. A multiplicidade é agitação”, nota o filósofo. “Não há, na
literatura, um único caos imóvel(grifo do autor). Contudo, “como todas as imagens fundamen-
tais, a imagem do formigueiro pode ser valorizada e desvalorizada. Pode transmitir tanto uma
imagem da atividade quanto uma imagem da agitação. Neste último caso, fala-se de ‘uma vã agi-
tação’” (BACHELARD, 2003, p. 47). É que as formigas são também agentes da decomposição e
da ruína, simbolizam o trabalho destruidor ou a destruição que se exerce como um trabalho, uma
produção. Adiante, o pregador apocalíptico Xisto “sabe tudo sobre formigas e sobre a Bíblia”
(RIBEIRO, 2001, p. 115). Xisto é o que destrói para elevar um mundo, não das, mas de ruínas. O
143
método moral de Xisto é o do ocidente, o método da faca de Ockham: promove e define o “bem”
destruindo o “mal”. Mas, paradoxal e ironicamente, é justamente este método que vai conduzir o
próprio sistema ao apocalipse, porque toda obra unilateral é mortal e precisa desaparecer para dar
lugar ao infinito movimento dos contrários. Por isso o discurso ambíguo do pregador é, ao mes-
mo tempo, moralista e segregador, mas também herético e fusionista:
Esse beato Xisto é seu tanto fanático, lembra Bob. Por sua vontade ninguém traba-
lharia, só rezaria. É também seu tanto confuso: não tira da cabeça a idéia de cha-
mar o Messias de Dom Sebastião o Sombra Tornado. [...] Ele acabou a bebedeira
mandando o povo quebrar, uma por uma, todas as garragas de pinga na venda de
seu Melchior. A prostituição, amontoando as putas num barco com bastante co-
mida e fazendo-as remas rio abaixo para Creciúma (RIBEIRO, 2001, p. 333).
O sebastianismo fanático de Xisto irmana o sol cristão, o Cristo-Messias, à sombra que re-
torna, a parúsia é também a chegada do Anticristo. O modo de se instituir um novo mundo é co-
meter crimes contra o velho, desobedecer suas regras. No entanto, nesta atitude, Xisto mostra o
próprio mal de se fundar mundos. Por isso seu discurso suicida, que se volta contra si mesmo e
termina numa autonegação através da fusão de divindades, em que se tornará impossível encon-
trar novamente o bem e o mal. Xisto alerta o ouvinte/leitor para a necessidade de malícia para
entender o novo mundo: “Temos também, e precisamos ter, além da fé, a manha. Sem ela quem é
que se salva? Manha com tino, com justiça, manha sem perfídia. Deus Nosso Senhor abomina
toda afronta” (RIBEIRO, 2001, p. 187). A manha é, pois, a atitude que substitui o hábito mascu-
lino do combate frontal. Manha é finura e esperteza, o jeito de agir do trickster Micura; mas é
também um “defeito”, um segredo que dificulta a compreensão, pois “a verdade não é esta só”
(RIBEIRO, 2001, p. 187), por isso, o que aparece inicialmente separado, isto é, o deus e o diabo,
o bem e o mal, acaba confundido, no discurso de Xisto, pela “manha” do orador que almeja e
aconselha a manha do ouvinte:
Deus e o Diabo estão muito misturados e muito apartados. Depende de quem olha.
É preciso saber ver. Muito mais fácil é entreverar, confundindo tudo, do que dife-
renciar, apartando. [...] A noite embolada com o dia, querendo nascer dentro dele.
Ou o dia saindo de dentro da noite que não quer se acabar. Deus e o Diabo en-
rolados, confundidos. Deus e o Demo se combatendo, porfiados. O fogo é o De-
mo, a água é de Deus, mas quem é que pode viver sem fogo? Morre quem tentar.
[...] O Diabo está aí metido em tudo, tudinho. [...] Quem se meter na água, na con-
fiança de que é de Deus, se afoga. Mas quem pode passar sem água? (RIBEIRO,
2001, p. 189-190).
144
Notável é a propriedade do verbo “entreverar”, conjugando a preposição “entre”, de função
mediadora, o verbo ver”, e os substantivos “vera” e “treva”, sugerindo, na legítima contempla-
ção da divindade, uma verdade das sombras, “entrevada” e que se pode “entrever” entreve-
rar, entreverado, são, aliás, palavras freqüentes no texto, especialmente nos discursos de Xisto e
Isaías (RIBEIRO, 2001, p. 78-79, 109, 189-190). É por esta ambigüidade que a religião de Xisto
é sincrética, misto de doutrina cristã com paganismo, pelo que os observadores do pregador não
conseguem definir a que divindade ele adora. Assim é para o missionário protestante Bob: “Em
duas ocasiões tive de reclamar para que parassem de bater os pés e balançar o corpo num ritmo e
numa postura de dança com os braços para o céu. Rezariam assim todas as noites? Nisto não
estaria a mão do Diabo?(RIBEIRO, 2001, p. 334-335). Dessa maneira, no discurso de Xisto,
paulatinamente os conceitos vão se convertendo em seus opostos: Deus transfigura-se no Diabo,
e vice-versa, assim com tudo:
Vejam, vem o Tião Comboieiro com a sua tralha. É olhar para ver e enten-
der. De-dentro-dele, Deus levanta as forças para sustentar a carga. De-fora-dele, o
Demo força a carga pra baixo. [...] Quando o Demo entra dentro de alguém, que é
que se pode fazer? Nada não. Não tem mais jeito nenhum. [...]Assim é a lei, meus
irmãos. Lei dada por Deus [...]. Lei só de Deus Nosso Senhor.
Ele está em cima, ao de Deus-Pai, vigiando. Vigia o caçador dele aqui em-
baixo, o Demo. [...] A vontade de Deus é misteriosa. O Demo mesmo era o Anjo
Negro, o anjo calado. O anjo que ele mais amava. [...] O Demo, que está entre
nós, atentando, é o caçador de Deus. Deus e o Diabo estão entreverados. A vonta-
de de Deus é misteriosa, é recôndita, encoberta. Deus é como a luz do sol [...]
mostrando a cara e a figura de cada um. Deus entra até no íntimo insubornável do
negrume que é o reino do Demo. [...] Misterioso é o mistério do Senhor (RIBEI-
RO, 2001, p. 261-263).
De lei que era, Deus se manifesta no cumprimento de sua vontade, assegurada pelo anjo ca-
çador, expressão da escura, sombria, misteriosa, indevassável vontade de Deus. Numa sutileza
mefistofélica de pensamento, Xisto transforma o Diabo na vontade misteriosa de Deus, logo, no
próprio Deus. Esta é a doutrina apocalíptica do orador: mostrar que, ao final, o que se apresentava
como ordem é a mentira e o caos; ao contrário, é no caos que resta a única verdade aceitável. Nos
dois sentidos, a ordem é, paradoxalmente, caótica.
5 A SENHORA DA MORTE
Que a nossa vida
é a mesma que a morte,
– noutra medida.
(Cecília Meireles)
O tema da morte é tão presente em Maíra, que Maria Luiza Ramos chega a apontá-lo
como o leitmotiv da obra, fundamentando-se na estrutura litúrgica dos capítulos do romance:
O autor tomou à missa o rito do sacrifício, para cultuar a morte individual e a
morte coletiva: o extermínio de um povo. Mas vai ainda mais longe. Dá-nos
também a morte dos deuses. É que no Livro de Isaías se anuncia a vinda do
Salvador: o nascimento sobrenatural de um menino, sobre o qual repousará o
espírito do Senhor [...]. E em Maíra também uma concepção envolta em
circunstâncias sobrenaturais. É a dos filhos de Alma (RAMOS, 2000, p. 159).
Mas, se isso acontece, é apenas porque a morte é a conseqüência do sentimento do Ou-
tro: para o habitante de uma ordem constituída, subsumir-se no Outro é abandonar a consciên-
cia de um Eu e experimentar o vácuo do Não-Ser.
Precisamos lembrar que, se o sentimento da morte é onipresente no romance, especial-
mente pelo mistério que envolve o parto funesto de Al-0.29872(o)-0.29872F1( )-70.1879(e)3.742442.16493.74(s)-1..74r2.16558(o)-0.2.295585( )-10.1525(O)1.57564(u)-0.295585(t)-2
146
morte surge quando Maíra decide apartar-se do pai Mairahú e criar, sozinho, seu próprio
mundo. Quando os mairuns, temerosos das conseqüências do nascimento dos gêmeos, atiram-
nos aos porcos para serem devorados, Maíra e Micura dominam a vara e a atiram contra a
própria aldeia: “Afinal, cercaram um homem e o comeram. [...] Sem querer, por inocência,
Maíra havia fundado a morte” (RIBEIRO, 2001, p. 151).
Para entender as qualidades da morte em Maíra, precisamos outra vez retornar à cos-
movisão matrística e ao Regime Noturno e feminino do imaginário.
Concentrar-se na condição física e na dimensão corporal do ser humano é abrir-se para a
sua realidade de criatura mortal. Se o Regime Diurno e patriarcal da imagem quer abjurar o
corpo é porque é nele que se projetam os efeitos do tempo e a tirania da morte. É esta, em
verdade, a maior inimiga da consciência desperta e do ego autoconsciente temeroso de se ver
aniquilado. A ela está, pois, associado o grande temor do elemento feminino, que nos lembra
nossa condição de corpos nascidos de um corpo. Para o sujeito masculino, encarnam-se no
corpo da mulher todos os temores que ameaçam o poder apropriado e sua liberdade de sujeito
autônomo e desacorrentado das injunções instintivas:
O medo da mulher é tão antigo quanto a civilização. Pesquisas antropológicas
e históricas levantaram provas deste medo em antigos mitos e folclore de po-
vos primitivos. Vaginas dentadas, mulheres assassinas, enfim, o medo da mu-
lher parecia ser endêmico. Este medo nasce da dependência completa do me-
nino em relação à mãe e de seu amor carinhoso e frustrado por ela; nasce da
consumação sexual, da vulnerabilidade masculina, e da lassidão indefesa do
homem após o coito; nasce do aspecto assustador e das implicações assombro-
sas dos órgãos genitais para o menino. A Medusa, ou a mulher perigosa, é um
arquétipo eterno. Apresenta-se como Eva tentadora, Dalila que corta o cabelo
de Sansão, Salomé decapitando João Batista, Lorelei a sereia sedutora, a dia-
bólica cigana Carmen, de Merimée. O século XIX, como nenhum outro, retra-
tou a mulher desnudamente como vampira, castradora e assassina (MONTEI-
RO, 1998, p. 67, grifo da autora).
A condição de mortal tem origem no desenvolvimento da consciência apartada. O ego
autoconsciente concedeu ao homem o poder e ao mesmo tempo impôs-lhe a necessidade de
manipular o ambiente como condição para sua própria sobrevivência. Por outro lado, ele lhe
revelou a morte como oposição da vida, ao separá-la da visão harmônica em que vida e morte
participam do mesmo ritmo cósmico. Esta concepção harmônica já foi apontada por Maturana
como característica das sociedades matrísticas e Neumann (2003, p. 50) a simboliza com a
figura da uroboros, a serpente que morde a própria cauda. Trata-se de uma imagem do tempo
cíclico, onde morte é apenas um estado de transição para o renascimento e a manutenção da
eternidade através da perene mudança e do constante movimento dos seres:
147
O estágio da uroboros maternal se caracteriza pela relação entre a criança pe-
quena e a mãe que alimenta, mas é, ao mesmo tempo, um período histórico em
que a dependência do homem com relação à terra e à natureza alcança o auge.
Ligada a ambos os aspectos, a dependência do ego e da consciência diante
do inconsciente, cuja predominância determina esse estágio da existência.
Esse estágio de desenvolvimento é regido pela imagem da Deusa e com a
Criança Divina, enfatizando a natureza carente e indefesa da criança e o lado
protetor da mãe. [...] Mesmo para o deus jovem, a Grande Mãe é o destino.
Na psicologia humana e na evolução do indivíduo, corresponde, pois, ao estágio infan-
til, quando o ego ainda não se encontra diferenciado. O homem nasce inacabado e a espécie
humana é a que fica mais tempo junto ao seio materno, pois, como nota Campbell (2002a, p.
17-18), quando nascem, os bebês humanos “ainda não estão preparados para o mundo”. Disso
decorre que somos a espécie que por mais tempo depende da mãe para defender-nos dos peri-
gos do mundo e vivemos a infância como um prolongamento da vida intra-uterina. Durante
essa fase, “toda ausência prolongada da mãe provoca tensão na criança e conseqüentes impul-
sos agressivos; da mesma maneira, quando se vê obrigada a controlar a criança, a mãe desper-
ta nela respostas agressiva”. Estas ausências da mãe são experimentadas como ameaças de
morte.
O caráter ameaçador da mãe, portadora da vida e da morte para a criança, estende-se pa-
ra a experiência do sujeito com o mundo todo. Vimos como, nas sociedades matrísticas, o
mundo era a deusa e a terra era a mãe universal, dotada dos atributos femininos de proteção e
nutrição. Como afirma Campbell (2002a, p. 115), “há uma estreita e evidente correspondência
entre a atitude da criança com relação à mãe e a do adulto com relação ao mundo material
circundante”. Por outro lado, para uma cultura dominada pelas experiências masculinas, o
elemento feminino, a mulher e os atributos e valores que a cercam são mistificados e idealiza-
dos. Essa idealização, segundo Jung (2000, p. 112), resulta justamente do medo que o elemen-
to feminino provoca no homem, em razão de sua ameaça de mergulhar o sujeito na escuridão
do não-ser e da morte.
A vida é um processo em que cada criatura vive em função da morte de outra, num flu-
xo contínuo de transferência de energia de um ser a outro, que mantém a eternidade do uni-
verso. Esta percepção levou a duas posturas diferentes diante da morte, conforme ela surja de
um emocionar patriarcal ou de um emocionar matrístico. Campbell (2002b, p. 91) define a
postura das culturas pastoris como “negativa em relação à morte e positiva em relação ao ego”
e a das sociedades agrícolas ou dos “plantadores tropicais” como “negativa em relação ao ego
e positiva em relação à morte”. A cultura matrística identifica, portanto, a morte com a pró-
pria vida: a deusa é senhora absoluta das duas condições; todavia, para a cultura patriarcal, a
morte é indesejável para a vida, pois, com o ego autoconsciente acentuado e identificado co-
148
mo a condição de um vivente, tudo o que o anula é morte e, por conseguinte, oposição à vida.
Para a primeira, a morte está na vida; para a segunda a vida exige a morte:
Numa fase em que a consciência começa a obter a sua autoconsciência, isto é,
a se reconhecer e a discriminar-se como um ego e individual distinto, a pre-
ponderância da uroboros maternal se torna tragicamente funesta para esse ego.
Sentimentos de transitoriedade e de mortalidade, de impotência e isolamento,
colorem agora a imagem que o ego faz da uroboros, em absoluto contraste
com a situação original de contentamento. [...] Agora, a uroboros maternal
passa a ser a escuridão, a noite, o posto do dia e da vigilância da consciência.
A transitoriedade e o problema da morte passar a ser a dominante do senti-
mento de vida (NEUMANN, 2003, p. 51).
Exposto à crueza do ambiente, sozinho na lida e no cuidado do seu rebanho, o homem
pastoril sente a vida como “perigo constante”. A deusa não é mais o símbolo da generosidade,
que gera seus filhos e os recebe de volta na tranqüilidade do útero da terra, mas sede “de peri-
go e incerteza”, expressão demoníaca das ameaças do mundo exterior, “onde doenças e
morte, inanição, dilúvios, secas e terremotos” (NEUMANN, 2003, p. 48). Surgem daí os deu-
ses imortais, separados da mortalidade terrena e símbolos da esperança da eternidade em uma
outra vida no além. Pollack comenta que, se comparadas entre si, a mitologia matrística de
Creta e a da posterior religião da Grécia continental, “obteremos uma sensação de que a idéia
dos ‘Deuses imortais’, vivos para sempre, para sempre os mesmos, isolados da natureza e do
sofrimento humano, se desenvolvia quando a sociedade se separava da Deusa cíclica da
morte e do renascimento” (1998, p. 49). Campbell (2002b, p. 91-92) observa que “nas fases
ocidentais judaico-cristãs do desenvolvimento pós-neolítico da civilização”, surgiu “uma re-
sistência masculina ao mistério da morte e da geração”, o que conduziu a uma religiosidade
“messiânica”, manifesta numa “refutação do mundo como ele se apresenta agora e uma ora-
ção por algo melhor em um tempo intemporal que há de vir”. A religiosidade expressa pela
cultura agrícola “da vida na morte é sutilmente transformado, nas culturas históricas posterio-
res, em um mito da vida como morte, e novamente aquele senso de alienação nos é devolvido,
na tela de uma promessa para o futuro”. Para as comunidades matrísticas, “o dia do Messias é
hoje: aqui e agora”; na visão dessas sociedades agrícolas, “a divindade ou poder divino
habita em todas as coisas, porque morta para si mesma”; a deusa “está em nós” e “nós somos
Ela na medida em que nós também estamos mortos para o ego”.
Se a deusa é expressão da imortalidade da matéria e do mundo físico através do ritmo
incessante de vida–morte–vida, o indivíduo, como parte material deste mundo eterno é, por
sua vez, mortal. Opõem-se, assim, um feminino material eterno e um masculino material pe-
recível. Daí a experiência masculina da eternidade ser vivida apenas num plano olímpico e
149
espiritual. Na evolução da psique, a oposição surge com a separação dos elementos masculino
e feminino na tentativa de libertação do ego:
A transição da uroboros para o estágio adolescente era caracterizada pelo sur-
gimento do medo e da sensação de morte. [...] A ação do ego, ao separar os
Pais do Mundo, é uma batalha, um ato criador [...]. Essa façanha, embora ma-
nifesta como surgimento da luz e como criação do mundo e da consciência, é
acompanhada de uma sensação de sofrimento e perda tão forte que, pelo me-
nos à primeira vista, não parece compensar o ganho criador (NEUMANN,
2003, p. 94).
Um dos dois, pai ou mãe, homem ou mulher, precisa morrer em definitivo para a exis-
tência do outro. Na experiência patriarcal, o feminino precisa ser sacrificado para a existência
da masculinidade auto-afirmadora. Em outras palavras, a mulher deve ser expulsa para o reino
da morte e de sua inconsciência aniquiladora, para que seja edificado o Olimpo masculino do
espírito imortal. Por outro lado, o movimento é verdadeiramente experimentado, pelo indiví-
duo, como uma morte, como a extinção de um mundo, que, a partir daí, será sempre e apenas
vivenciado como aquele que deixou de ser, o Não-Ser das imagens espectrais e da morte.
Como vimos acima, enquanto cada homem, individualmente, morre, a deusa, o grande
princípio feminino do ciclo da vida, é eterna. Mais do que isso, a morte dos seres individuais
parece necessária à manutenção da eternidade no ritmo cósmico e coletivo. Trata-se do ima-
ginário do Regime Noturno de Durand, fundamentado nas dominantes da nutrição e da sexua-
lidade. Neumann lembra que a imagem da uroboros é a de um autocanibalismo em que a vida
se alimenta dela mesma, por isso “o símbolo do canal alimentar domina todo esse estágio”,
como, aliás, Durand também aponta, referindo-se ao Regime Noturno do imaginário. Todo ser
vive de alimentar-se da energia de outro e a vida se devora para existir: “O estágio pantanoso
da uroboros e do matriarcado primitivo, segundo a descrição de Bachofen, é um mundo onde
todas as criaturas se entredevoram. O canibalismo é sintomático desse estado de coisas”. A
fase corresponde à infância dependente da criança, em que “a uroboros maternal em seu as-
pecto mãe-filho” representa toda necessidade como fome e toda satisfação como saciedade
(NEUMANN, 2003, p. 39-41). No processo de alimentar-se o homem experimenta o senti-
mento da vida na morte: um ser é destruído, mas renasce como energia de vida – não morre; é
incorporado:
Pelo acolher e pôr-para-dentro daquilo que representa o conteúdo do alimento
ingerido ocorre uma transformação ou mudança. A transformação da unidade
celular do corpo pela alimentação é a experiência transformadora mais ele-
mentar, de natureza animal, do homem. O modo como u
150
to se refresca ou até, pela bebida alcoólica, se transforma, continua e continua-
sendo, enquanto existirem homens, uma experiência fundamental da huma-
nidade (NEUMANN, 2003, p. 42).
Por isso Campbell 2002b, p. 91) nota que em todo lugar onde o sistema matrilinear dei-
xou suas marcas prevaleceu, ao contrário de religiões que apostam num mundo feliz além
desta vida, uma religiosidade caracterizada por “um arrebatamento ardente, dionisíaco (que
para o outro lado parece tão monstruoso quanto a própria vida), onde o banquete canibalístico
da vida que vive da vida e é sempre renovada, poderosamente [,,,] é celebrado com um grito e
um urro. Pela mesma razão, a experiência da morte nas sociedades matrísticas encontra sua
correspondência, no âmbito cultural, no sacrifício do jovem à deusa, nos ritos de morte e res-
surreição das culturas agrícolas: “Nascida para morrer, nascendo para renascer, a criança é
associada ao ritmo anual da vegetação” (NEUMANN, 2003, p. 50). Para que haja a colheita, a
terra precisa receber o grão que morrerá e dará frutos: “O ventre da terra quer e precisa ser
fecundado, e os sacrifícios de sangue e os cadáveres são o seu alimento preferido.” Aqui a
mãe revela seu aspecto mais cruel. Senhora da lei cósmica, “segundo a qual não pode haver
vida sem morte”, a deusa das culturas agrícolas fortalece a vida com a morte de seus filhos
(NEUMANN, 2003, p. 51). É assim que, “no fundo do arquétipo da terrível Mãe Terra, asso-
ma a experiência da morte, quando a terra retoma a sua progênie sob a forma dos mortos, des-
pedaçando-os e dissolvendo-os para fecundar-se”. Como o elemento masculino é o fecunda-
dor universal, geralmente eram os rapazes a serem sacrificados, pois “a terra feminina exige a
fertilização pela semente-sangue masculina” (NEUMANN, 2003, p. 59). Por isso, “quanto
mais forte se torna, tanto mais a consciência do ego masculino percebe a natureza emascula-
dora, enfeitiçadora, mortal e estupefaciente da Grande Deusa” (NEUMANN, 2003, p. 63), e o
sacrifício humano pode ter sido, assim, uma das razões a mais para a cultura patriarcal abomi-
nar os rituais e hábitos matrísticos e, com ele, pode ter se intensificado a emoção que repudia-
va a morte como o inimigo maior a ser enfrentado na manutenção da vida.
Todorov (2003, p. 93-94) observa que a morte só pode mesmo ser vista como nociva a
partir de um emocionar exclusivista, que separa o sujeito do mundo circundante: “A morte
é uma catástrofe numa perspectiva estritamente individual, ao passo que, do ponto de vista
social, o benefício obtido da submissão à regra do grupo pesa mais do que a perda de um in-
divíduo”. Entretanto, devemos recordar que, no patriarcado, a morte de um indivíduo pode ser
a morte do grupo, pois um pastor morto significa um rebanho perdido. Por isso a difícil acei-
tação, por esta cultura, de uma cosmovisão matrística, que aceita a morte do indivíduo para a
manutenção da vida coletiva. É por isso, também, que, a partir da ascensão da cultura patriar-
cal no ocidente, a preocupação com a morte se torna mais presente e operante nos ritos e nos
151
mitos emergentes. Eisler (1989, p. 87) informa que quando os aqueus passam a controlar a
região grega, no período micênico que sucede à cultura de Creta, a arte cretense “tornou-se
menos espontânea e livre” e nota-se crescer “uma preocupação e ênfase bem maiores em rela-
ção à morte”. A religião matrística anterior, ao contrário, refletia e reforçava “uma ordem so-
cial na qual, para citar Nicolas Platon, ‘o medo da morte era praticamente obliterado pela oni-
presente alegria de viver’” (EISLER, 1989, p. 63).
É por sua relação com os mistérios da morte e do além que, segundo Beauvoir, a mulher
acabou cercada de tabus na cultura patriarcal: “Ídolo supremo nas regiões longínquas do céu e
do inferno, a mulher acha-se, em terra, cercada de tabus como todos os seres sagrados; ela
própria é tabu. Em virtude dos poderes que detém olham-na como feiticeira, como mágica”
(BEAUVOIR, 1970, p. 90). Neumann (2003, p. 58) exemplifica esses tabus com as proibições
em torno das manifestações biológicas como a menstruação, a defloração e o parto, todas en-
volvendo o sangue, expressão da vida física e da morte corporal. Por isso, para ele, como,
aliás, para outros autores, como Meletínski (2002), o grande tabu do incesto não encontra sua
explicação nas relações edipianas sugeridas por Freud, mas na proibição ao ego de mergulhar
no sono da inconsciência materna e na prisão da vida instintiva governada pela Grande Mãe:
O incesto urobórico é uma forma de penetração na mãe, de união com ela,
contrastando com outras formas de incesto posteriores. No incesto urobórico,
a ênfase o prazer e no amor não é, de forma alguma, ativa, mostrando-se mais
como desejo de se dissolver e ser absorvido; é um deixar-se tomar passiva-
mente, um submergir no pleroma, um perecer no oceano do gozo e morrer no
amor. A Grande Mãe recolhe e acolhe dentro de si o infantilmente pequeno e
repetidas vezes a morte está sob o signo do incesto urobórico da dissolução fi-
nal, da união com a Mãe. A caverna, a terra, a tumba, o sarcófago e o caixão
mortuário são os símbolos desse ritual de religamento que se inicia com o se-
pultamento em posição fetal nos túmulos da Idade da Pedra e termina com as
urnas cinerárias dos modernos” (NEUMANN, 2003, p. 32-33).
A morte na Mãe é, pois, uma morte com prazer, ao contrário da morte a olhos patriar-
cais. É que ela se confunde com a experiência erótica. É aqui, aliás, que a dominante da nutri-
ção mostra-se mais também próxima da dominante sexual. Julius Evola, na sua Metafísica do
sexo, mostra como a morte e o amor se associam quando aquela é entendida como doação e
incorporação do outro em vez de sua negação e exclusão:
Será, pois, possível falar de uma ambivalência de todo o impulso erótico in-
tenso pois ao mesmo tempo que se afirma o ser que se ama, desejar-se-ia tam-
bém destruí-lo, matá-lo, assimilá-lo, absorvê-lo; sentindo nele o nosso com-
plemento, gostaríamos que deixasse de existir como outro ser. Daqui derivan-
do, também, o elemento de crueldade que está ligado ao desejo e que é fre-
152
qüentemente comprovado pelos aspectos físicos do amor e do próprio acto se-
xual (EVOLA, 1976, p. 131).
A morte torna-se, então, uma porta para o caos, nos seus dois sentidos: primeiro, como
fim da ordem instituída pelo sujeito e pela consciência, segregacionista e apartadora do sujeito
e do objeto; e, segundo, como mergulho no espaço indefinido onde Eu e Outro deixam de
existir separadamente. A morte é, assim, como propõe Durand para o Regime Noturno, paci-
ficada através de sua correspondência com um mundo harmônico onde o ego não se distingue
de sua alteridade. É deste caos que, como no primeiro ato criador, se tira a nova ordem. A
mulher, no Regime Noturno, reencontra seu status de instauradora de mundos, porque não
pode surgir um novo Ser, senão de um Não-Ser: para se tornar outro, é preciso abandonar o
que agora se é; o Outro deve ser buscado e trazido à superfície; como numa viagem ao infer-
no, o encontro com Perséfone, a Core, a semente feminina do novo que reina absoluta no
caos.
5.1 “Maíra” e a inversão da fábula: a morte gera a vida
Em Maíra, Darcy Ribeiro coloca em tensão os dois sentidos da morte, o patriarcal e o
matrístico, para afirmar o primado do segundo. Na abertura do romance, nos dois primeiros
capítulos, a morte da branca Alma é seguida pela morte do índio Anacã. Enquanto a primeira
aparece fatalizada no cadáver encontrado na mata e denuncia seu poder nulificador pelo título
inominado de “A morta”, a morte do chefe mairum é preparada e ritualizada, de forma a per-
der seus contornos trágicos, e o capítulo leva o nome próprio do tuxaua que, imortalizado, não
o perderá. Como afirma Maria Luiza Ramos, “ao contrário da morte violenta da mulher bran-
ca, na exuberância de seus prováveis trinta anos, a morte do tuxaua representa a saturação do
exercício de uma vida que, atingindo a idade avançada, deve se extinguir” (RAMOS, 2000, p.
142). É, portanto, uma morte necessária e desejada.
No romance, a visão patriarcal da morte nulificante aparece na óptica das personagens
que representam a cultura civilizadora, especialmente em Nonato. No capítulo “Exumação”, o
detetive que investiga o mistério em torno de Alma trata a morte de forma racional, ao contrá-
rio do que faz o narrador coletivo ao apresentar a morte de Anacã, como nos trechos que se-
guem:
Vendo todos acomodados ao redor, o aroe timbra seu pequeno maracá, trina a
flauta de cabacinha e depois tira e dependura os dois instrumentos cerimoniais
153
no seu próprio pescoço. Estende então os dois braços em toda a extensão para
os lados, os aproxima depois lentamente, um do outro, junta as mãos espalma-
das e as baixa, simultaneamente, afundando-as na terra mole da cova. As en-
terra juntas, devagar, e começa a afastar a crosta de barro para os lados. Des-
cobre, assim, por debaixo, uma camada de lama mole escura, de onde sai um
cheiro intensíssimo, terrível. Trabalha, agora, com as mãos retirando aquela
lama debaixo e escorrendo com uma cuia o líquido verde, espesso, gordo, em
que se desfizeram as carnes de Anacã. A caveira começa a aparecer cinzenta,
sobre o fundo da cova, brilhando à luz da manhã (RIBEIRO, 2001, p. 120).
E:
Disse Elias que, para eles, estávamos cometendo uma profanação, que ele
mesmo tinha escrúpulos de proceder à exumação. [...] Não concordei. Além de
se tratar de uma ação indispensável ao inquérito criminal, em nenhum sentido
estávamos profanando nada. [...] O que me pareceu é que se divertiam, gaia-
tos, vendo-nos suar debaixo do sol e negando-se a prestar qualquer ajuda. [...]
Desfizemos um dos buracos, fazendo a retirada da terra, cuidadosamente,
até encontrar a paliçada. [...] Os ossos subiam prodigiosamente limpos; Elias
atribuiu esse serviço aos cupins. Mesmo das ligaduras não havia sinais. Algu-
mas cartilagens, como a do esterno, haviam desaparecido. O crânio, que guar-
do comigo para o caso de que possa servir como prova, está perfeito, com to-
dos os ossos intactos, a dentadura completa, inclusive um molar de ouro e al-
gumas obturações de metal branco (RIBEIRO, 2001, p. 222-225).
Nonato não compreende a postura respeitosa e de veneração dos mairuns diante da e-
xumação. Além disso, a descrição de Nonato é direta, objetiva, precisa, enquanto a do narra-
dor indefinido da exumação de Anacã demora-se na extração dos restos do tuxaua, ritualizan-
do-a. Enquanto Nonato preocupa-se com a descrição dos ossos, da matéria dura, resistente, o
outro narrador prefere as imagens da intimidade da massa terrestre, o lodo e o barro. Nonato
busca explicações: os cupins limparam os ossos, o crânio é guardado como “prova”; para o
narrador da exumação de Anacã, importa mais sentir nas mãos o húmus vital em que se trans-
formou a carne do tuxaua, cujo crânio surge do barro verde da cova reluzindo na manhã como
um sol nascente. À reflexão sobre a morte opõe-se uma materialização de suas qualidades.
“Esse materialismo da morte é muito diferente de nossa noção clara das causas da morte”,
compara Bachelard. Trata-se de “um devaneio mais secreto, mais substancialista, em que o
homem medita sobre uma dissolução carnal ativa. Então ele já não teme apenas as imagens do
esqueleto. Tem medo das larvas, tem medo das cinzas, tem medo do (BACHELARD,
2003, p. 54). Por isso, enquanto o aroe revira com as próprias mãos o caldo larval em que se
transformou o corpo do tuxaua, Nonato leva consigo água de colônia para aspergir sobre o
cadáver exumado de Alma (RIBEIRO, 2001, p. 224).
Igualmente, a morte de Alma e toda sua jornada entre os mairuns são nulificadas pela
visão do mundo ocidental, nas duas últimas ginas do romance, pela conversa de dois ami-
154
gos da moça: “Você também viu a reportagem com o retrato do Major com o crânio dela na
mão? To bestificado, Fred, quem pensaria? Alminha morta. [...] O que é que a gente pode
fazer, Fred? Meu caro, a morte é a morte: definitiva” (RIBEIRO, 2001, p. 376-377). Para o
homem civilizado, a morte é apenas o fim, uma perda, luto.
Para os mairuns, contudo, e sua cosmovisão antipatriarcal, morte é, paradoxalmente, vi-
da; e, ao contrário, o que se pensa ser vida, revela-se em verdade morte. Como esta descrição
das mulheres da Missão de Nossa Senhora Grávida de Deus: “Secas vidas de cinzas, sem doce
nem sal. Vidas duras, de carinhos segadas, de desejos podadas. Sofrido povo de Deus, proibi-
do de si. Enlutados, porque não morrem” (RIBEIRO, 2001, p. 160, grifo meu).
Por isso Anacã deseja sua própria morte: “Preciso morrer para que surja e cresça o tu-
xaua novo”. É que a morte, concebida no interior da própria vida, não é sua negação, mas a
conseqüência de sua intensidade: “Já dancei muito Coraci-Iaci. cantei muito maré-maré. Já
comi muito pacu. bebi muito cauim. Fodi bastante. ri demais. Estou velho. Chegou mi-
nha hora, vou acabar” (RIBEIRO, 2001, p. 37). Quando, então, recebem o comunicado do
tuxaua, os mairuns contemplam o pôr-do-sol recebido “quase com alegria”. O que define3.74(a)3.74(u(e)3.74(i)-2.164938(n)-0.295585(e-2.16436(2.1643(r)2.80561(u)-06.471 -20.76 Td[80561(a)3.74(,)-0.(0)5585(i)-71( )-14074(l)-2.16436(h)-5 )-140n)-0.295585(t)-2.16558.295585(7)-0.295585())2.802.1643(r)2.89-2.16558.295585(7)-0.295585()6 Td[80561(a)3.74(585(c)3.74(i)-12.1715(32873(a)312( )-0.146571(o)-0.295585( )-0.146571(f)2.804-90.2009(é)-6.2659(6571(v)-0.295585(i)-2.80439(t)-12.1703(e)3.74(:i)-2.80439(-70.1879(r)2.7.20151( )-70.13015(a)3.74i)-2.16558(585()3.74244(s)-1-70.189.578081.70.295585(a)3.74(n)-0.o)-0.295585(r)2.80439()-0.294363(e)3.74(:)-2.165582.80439(561(u)-06.471 -20.76 Td[80561(a)0439(é)-2.165582.80439(.146571( )-60.182(F)5.6593 -20.64 )-6.2-2.45995(o)- )-6.2-2 )-60.182(d)-0.295 )-140.229(Q)1)-80.1938(é)3.74( )-2.80439(561(u)-06.471 -20.76 Td[.)-0.561(a)0439(é)-2.17(P)-4.32873(a).293142(e)-6146571( )-30.1643(p)-0.(s)-1.2312(t)3015(e)3.”2.46239(a)3.74244(s)81.70.9(d)9.71276(-0.294974(n))-2.16558(u)-0.294936()-2.16436(-)333]TJ-249.147)3.74(c))-30.1655(d)-03(o)-0.295585( )61(o)-0.295585(r)2.80439(t)-2.16436()3.74(c)0.1655(V)1.57442(i)-2c c mulhcase é é g5.80561(o)-0.oo1é gd alé evalé
155
rola ao redor do umbigo do mundo: esse pátio mairum com o tuxaua Anacã plantado no mei-
o” (RIBEIRO, 2001, p. 100)
Anacã, portanto, não morre, como insiste o mundo civilizado em dizer de Alma. Quan-
do ele decide morrer, torna-se, em verdade, um “morto-vivo” (RIBEIRO, 2001, p. 38). Como
observa Maria Luiza Ramos (2000, p. 168), sua morte é “predeterminada”: “O chefe decide
que vai deitar-se para dormir e não mais acordar. Já viveu bastante e é preciso que se afaste
para que a vida de seu povo se renove; não sepultamento nem cremação, nada que faça
desaparecer o cadáver por motivos éticos ou metafísicos”.
Exposta no enredo, como diz Antonio Candido (2000, p. 384), “por etapas”, a morte de
Anacã é uma morte experimentada, uma morte vivida, e esta é a força do tema em Maíra: se o
poder maior da literatura é fazer viver o impossível, Maíra é o mais literário dos livros, pois
logrou ao leitor a experiência viva da morte.
A morte do tuxaua é, portanto, um ato consciente, por isso não cai no não-ser absoluto,
mas num modo de ser absolutamente, pois, com a morte, o indivíduo se integra ao natural e
invade os interstícios do mundo, o que se inscreve no texto pelo impregnante miasma de Ana-
cã tomando conta da tribo:
Anacã [...] apodrece e fede com uma catinga doce, penetrante, terrível. Sua
presença já se sente conforme sopre o vento, desde as dunas do Iparanã até o
oco da mata. Não é um fedor de carniça de bicho morto ou de defunto desen-
terrado. É um cheiro agudo como ponta de flecha, leve como penugem, cor-
tante como lasca de taquara. E sempre eternamente presente no nariz de cada
um. Até no meio da mata, caçando, fugindo dele, ele cheira; levado na pele,
nos cabelos, sabe-se lá onde (RIBEIRO, 2001, p. 55).
Morrer é, então, viver plenamente: “Nunca Anacã, o tuxaua, esteve tão presente e do-
minador” (RIBEIRO, 2001, p. 67). Digno de nota é que, aos membros adultos masculinos da
tribo, repugna essa presença ubíqua do cadáver, e eles fogem para a floresta atrás de ocupa-
ções, como a caça e a pesca: “Só as mulheres e as crianças suportam a catinga aguda de Ana-
cã” (RIBEIRO, 2001, p. 83).
A onipresença de Anacã é simbolizada ainda em seu prolixo sepultamento, que percorre
as imagens dos quatro elementos materiais: primeiro enterrado e regado com a água da Lago
Negra, depois seus restos são pendurados ao vento sobre o leito da lagoa, mas não sem antes
ter os ossos enfeitados com “plumas de cores” como “pássaros vivos”, figura que remete ao
fogo e à fênix que o simboliza, célebre imagem da eternidade e do poder de ressurreição. Seu
enterro nas águas confere-lhe também a divindade tribal, uma vez que “o lugar de Maíra fica
nas águas” (ZANNONI, 2000, p. 171).
156
No capítulo da exumação do tuxaua, intitulado “Manon”, que é a palavra mairum para o
espírito presente do morto, durante a cerimônia fúnebre e antes do sepultamento final, os os-
sos de Anacã são distribuídos aos clãs (RIBEIRO, 2001, p. 121). Ainda nesse capítulo, pará-
grafos atrás, o tuxaua era descrito como aquele que “juntou os mairuns”, “fundiu os clãs”, que
antes viviam dispersos (RIBEIRO, 2001, p. 119). Daí o papel aglutinador de Anacã, que ele
agora cumpre ainda na morte. Então, as imagens relacionadas à transformação da morte em
vida seguem. A certa altura do ritual, os presentes escarificam a pele: “Quando o sarjador des-
ce dilacerando, o que se primeiro são simples linhas brancas. Mas elas prontamente escu-
recem, depois brilham de repente em tons rubros e afinal jorram sangue pela cara, pelos pei-
tos, pelos braços” (RIBEIRO, 2001, p. 121). Do branco ao escuro ao vermelho, a pele dos
mairuns transita pelas três cores alquímicas do branco e preto, afirmação e negação, para o
vermelho final, de união dos opostos, quando então jorra o líquido representativo da vida a-
nimal.
Mesmo a morte de Alma é prenúncio de nova vida. No avião a caminho da selva, ela re-
flete: “Duas vezes tentei matar-me, recorda, mas essa viagem será minha morte. Não o fim da
existência que tive até hoje, mas uma interrupção brusca, brutal (RIBEIRO, 2001, p. 135). Por
uma antecipação, a morte está presente aos olhos da personagem e do leitor que sabe de
seu destino final pelo início do romance in media res: “Este meu dia de hoje tem gosto de
último dia. É uma premonição. O tempo es8s0.295585(a)3.74( r)2.80439(m)-2.45995(e)3.74(l)-2.16436(h)-0.295585(o)r.293142())2.80439(.)-0.29558e
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157
mente em que pelo negativo se reconstitui o positivo, por uma negação ou por
um ato negativo se destrói o efeito de uma primeira negatividade. [...] Este
processo constitui uma mutação dos valores: eu ato o atador, mato a morte, u-
tilizo as próprias armas do adversário. E por isso mesmo simpatizo com a tota-
lidade ou uma parte do comportamento do adversário (DURAND, 2002, p.
203-204).
tive oportunidade de mostrar como o mecanismo de negar a negação para afirmar é
fortemente presente no estilo do Maíra, por meio das figuras antitéticas e de acumulação. A-
qui repete-se o processo, num nível figurativo: o ritual quase primaveril dos funerais de Ana
contrastam com o tom elegíaco do tema. E a eufemização reverbera nos paradoxos lingüísti-
cos: “A catinga que sobe é finíssima, agudíssima, dulcíssima” (RIBEIRO, 2001, p. 67) e “pa-
rece também azul” (RIBEIRO, 2001, p. 119), caso, este último, em que a sinestesia serve ain-
da para indicar a ubiqüidade do corpo do tuxaua.
Essa imaginação da descida, resultante de uma inversão no sentimento da morte,
Bachelard soube definir por um “complexo de Jonas”, aludindo ao profeta bíblico que passou
três dias no ventre da baleia e foi vomitado vivo. Por meio desse complexo, a urna funerária
converte-se em ventre: “Sair do ventre é nascer, sair de um sarcófago é renascer. Jonas, que
permanece no ventre da baleia três dias como Cristo permanece no túmulo, é pois uma ima-
gem de ressurreição”, comenta Bachelard (2003, p. 137), para quem a essa imagem associa-se
o “tema da Morte maternal”, o “tema da crisálida”, que “tem naturalmente as seduções de
toda forma envolta” e, por isso, “é como que um fruto animal”, isto é, como uma urna de car-
ne, um ventre. As imagens da crisálida e do sarcófago “têm o mesmo centro de interesse: um
ser encerrado, um ser protegido, um ser escondido, um ser restituído à profundidade de seu
mistério. Este ser sairá, este ser renascerá. Há aí um destino da imagem que exige essa ressur-
reição” (BACHELARD, 2003, p. 139, grifos do autor).
Eufemizada em renascimento, a morte então se torna benfazeja e desejada. Até o incóg-
nito narrador do capítulo “Egosum”, que testemunha a história à distância, sente este impulso
sedutor da morte na floresta: “Ali senti, pela primeira vez, o duplo gosto terrível do medo e do
desejo de morrer. [...] O que sei é da minha inveja enorme das vidas na morte dos meus dois
amigos amados e apagados: Ernesto e Salvador” (RIBEIRO, 2001, p. 206-207, grifo meu).
Este sentimento duplo de medo e desejo da morte é também o dilema que consome Isaí-
as. O ex-padre esvazia-se até chegar àquele ponto nadificado e nadificante da pura liberdade:
“Eu também estou vazio, só. Regresso com as cinzas da minha brasa ardente. Com essas cin-
zas frias a quem posso incandescer? Ai de mim que esfriei. Parei, meu Pai. Na verdade, morri.
Morri muito tempo” (RIBEIRO, 2001, p. 216). Ele também viverá, à maneira de Anacã,
como um “morto-vivo” e, ao final, “já não recebe as atenções de antes, nem desperta curiosi-
158
dade. Raramente alguém se senta a seu lado para puxar conversa” (RIBEIRO, 2001, p. 339).
O esvaziamento vai revelar uma essência de sombra, uma forma espectral que transita entre
dois mundos, mas nunca se fixa: “Assim se limpará para que comece a surgir, com força, a
sua verdadeira natureza, a natureza anhé de oxim-anhé de Maíra-Monan que está sufocada
dentro dele” (RIBEIRO, 2001, p. 343).
A dinâmica de Isaías consiste numa espécie de autodigestão, em que ele se consome até
dissipar-se. Isaías foi, aliás, antropofágico, no sentido oswaldiano do termo: consumiu a cultu-
ra branca e a cultura mairum e agora luta por fazer uma nova criatura dos valores em conflito.
O mestre do avá será Teidju, o sombrio feiticeiro que vive de metamorfosear o mal no bem, a
morte na vida, purificando a carne que os mairuns consomem: “A carne é por si mesma a casa
da podridão, é a perigosa, a viciada. Tanta carne ruim que eu purifiquei para eles. Carnes ca-
pazes de apodrecer um povo: perdê-lo, matá-lo, envenená-lo. Carnes capazes de derreter os
ossos. [...] Uns sacos cheios de ossos moles, chocalhantes. Isso é o que acontece quem come
carne impura” (RIBEIRO, 2001, p. 270).
Maria Luiza Ramos vê no próprio ato de superdominação do cadáver de Anacã um “ato
canibalesco” e “incestuoso”, a condição de “um-só-corpo da relação mãe-filho”, pois, enquan-
to é absorvido pela respiração, o miasma de Anacã passa a fazer parte de outro corpo, desres-
peitando “os limites do domínio corporal do outro”. Então, “a função paterna cede lugar à
função materna, ao estágio dual em que o corpo assume um papel predominante. Não a pele,
em que a lei se escreve, mas o próprio corpo, em que a catinga de Anacã se inscreve” (RA-
MOS, 2000, p. 169-170).
Outra vez a nutrição e o sexo combinados. Esta é a identidade que, no último capítulo,
servirá à lamentação de uma situação da mulher e à proclamação de uma nova ordem: “Desti-
no de mulher é muito ingrato. As mulheres não deviam engravidar, nem sofrer as dores do
parto, sozinhas. Tudo isso é uma injustiça. Deviam é botar ovo. Em tempo de crise, se comia,
em tempo de fartura se chocava” (RIBEIRO, 2001, p. 372). Recusa-se a moral patriarcal e
cristã da dor e da sexualidade controlada, do corte e da separação, e à obrigação de parir subs-
titui-se o descompromisso da sociedade urobórica e antropofágica, em que vida e morte, sexo
e nutrição, reúnem-se no mesmo prazer. Nesse sentido, Maria Luiza Ramos nota a importân-
cia da figura da boca no enredo:
Alma e Isaías vivem um rito de passagem. Sua situação é estar à margem. E
ambos empreendem a grande viagem, na qual devem passar por provas diver-
sas e cada vez mais difíceis, no processo de morte simbólica característico da
iniciação. [...] É interessante a insistência na imagem ‘a boca da mata’ e ‘a bo-
ca desse mundão’. O que pareceria uma desgastada metáfora tem a força
mágica de criar o ambiente para a morte simbólica por que deverão passar o
159
herói e seu coadjuvante nesse caso a moça no processo mítico. Eles vão
ser devorados e devolvidos à nova vida, num capítulo intitulado ‘O Vômito’”
(RAMOS, 2000, p. 146).
De fato, Bachelard (2003, p. 104 e 111) observa que a imagem de Jonas tem um “perfil
gastronômico”, é um “fenômeno psicológico da deglutição”. Trata-se da “máxima cósmica:
devorai-vos uns aos outros”. Além disso, o complexo de Jonas segue “os princípios do encai-
xamento natural” (BACHELARD, 2003, p. 107). Faz parte desse complexo a imagem da ser-
pente que devora outra, a uroboros representante da cosmovisão matrística.
A serpente, e em especial essa serpente autofágica – ou autofecundadora, o que quer di-
zer o mesmo –, é talvez o principal símbolo da cultura pré-patriarcal. Maria Nazareth de Bar-
ros (2004, p. 33) conta que a imagem da serpente representava a vida e a imortalidade e o
poder feminino da natureza de auto-sustentar-se e perpetuar-se. Apenas mais tarde, por sua
relação com a Grande Mãe, passou a simbolizar o filho amante da Deusa e então associou-se
ao falo. Ela argumenta a relação da serpente com a Deusa por meio dos mistérios gnósticos,
que mantiveram muitos dos valores das antigas religiões e cultuam a Deusa no avatar da Sa-
bedoria: a palavra serpente em grego – Ophis – é um anagrama de Sophia (BARROS, 2004, p.
34). Eisler (1989, p. 123), por sua vez, lembra a onipresença da imagem da serpente nas cultu-
ras matrísticas: “Nas escavações arqueológicas em todo o neolítico, a serpente é um dos temas
mais freqüentes. ‘A cobra e seu derivado abstrato, a espiral, são os motivos dominantes na
arte da Europa antiga’, escreve Gimburtas”. Para ela, os diversos mitos em que deuses mascu-
linos matam serpentes são relatos da vitória do patriarcado sobre a antiga cultura.
Bachelard (2003, p. 202) defende que “a serpente é um dos arquétipos mais importantes
da alma humana” e é “o mais terrestre dos animais. [...] A serpente dorme embaixo da terra,
na sombra, no mundo escuro. Sai da terra pela menor fissura, entre duas pedras. Torna a en-
trar com uma rapidez assombrosa” (grifo do autor). Isso a torna um dos principais arquétipos
do imaginário da Terra.
Um outro traço da serpente une-a ao tema da morte, em especial desta morte convertida
em renascimento presente no enredo do Maíra. Segundo Bachelard (2003, p. 214-215), a ser-
pente é “uma realização animal do anel”, participa da “eternidade de todo anel”. Explica o
autor: “A serpente que morde a cauda não é um fio enrolado, um simples anel de carne, é a
dialética material da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte, não
como os contrários da lógica platônica, mas como um inversão infindável da matéria de morte
e da matéria de vida” (grifo do autor). Traço, aliás, que a associa também às imagens do caos,
uma vez que o anel é um símbolo ambivalente, que a um tempo une e isola. Da mesma forma
que simboliza um ciclo indefinido e eterno, o anel é um dos principais ícones do caos, pois,
160
além de remeter aos caminhos sem saída, à idéia do labirinto circular, apresenta-se como um
aro que cerca o vazio (CHEVALIER e GHEERBRANT, 53-55).
Darcy Ribeiro cria uma imagem impressionante da serpente urobórica no capítulo “Su-
curidjuredá”. Regina Angulo (1988, p. 78) sugere que o título pode significar “o lugar da su-
curi amarela”, lembrando que a palavra sucuri significa “o que morde ligeiro”. A cor associa a
serpente ao aspecto solar, como nas culturas pré-patriarcais. Mas apenas isso não seria sufici-
ente para recuperar uma visão matrística deste símbolo tão fálico e masculino. Então, o autor
recria, na floresta dos mairuns, um ritual simbólico das religiões da Grande Mãe.
Incomodados com a “catinga” de Anacã, os membros masculinos da tribo “saem para
longe da aldeira”. Um grupo, liderado por Teró, vai em busca de “uma sucuridju sem tama-
nho: a maior do mundo”. Encontram-na digerindo uma presa, confundida ao meio natural, “só
visível para quem sabe vê-la”. Então,
Teró comanda, com gestos, os onze homens que saltam no mesmo instante e
arrodeiam a sucuridju por todos os lados. [...] A um assobio de Teró, eles sal-
tam simultaneamente e agarram o cobrão por todos os lados: a cabeça, o pes-
coço, o corpo em várias de suas rodelas aneladas e a cauda que se desenrosca,
querendo dar rabanadas.
Lutam horas contra aquele músculo vivo, fugidio, longuíssimo. É um cano e-
lástico que se encolhe e engrossa e se distende e afina. Às vezes arqueia levan-
tando os homens no ar e logo se endireita e enrijece atirando-os no chão. Fir-
ma-se na força dos próprios homens que seguram sua cabeça para dar rabana-
das que fazem dançar atônitos os que agarram a cauda. Mas todos a mantêm
firmemente presa, por mais que ela os agite no chão e no ar (RIBEIRO, 2001,
p. 84).
Na luta entre animal e homens, os contendores se confundem num mesmo fluxo de mo-
vimento, a cobra apoiando-se na força dos índios para dar seus golpes. Significativa imagem
do tempo que espicha e encolhe, ondula, sobe e desce e leva consigo os seres agarrados ao seu
“cano elástico”. Importante é o número de homens ao longo desse eixo, doze como as casas
zodiacais num giro completo no céu.
Dispostos todos da cabeça à cauda da sucuri, Teró manda que o primeiro, que está a se-
gurar a cabeça, dê o rosto à cobra para que o morda, e então para o fim da fila, grudar-se à
calda do animal:
Assim, um por um, os jovens homens vão se sucedendo da cabeça para a cau-
da, cada um deles oferecendo a cara para receber a marca do lanho da sucurid-
ju. Uma vez mordido, sai imediatamente para segurar a cobra no lugar do
companheiro que de seguir. Assim, do princípio ao fim, a sucuridju conti-
nua sempre agarrada e mantida quase imóvel, por mais de vinte mãos vigoro-
sas (RIBEIRO, 2001, p. 85).
161
Uma uroboros construída no corpo de homens e animal: em que outra imagem se con-
substanciaria mais completamente os sentidos da lei autofágica universal?
Depois de soltar a cobra, os homens vangloriam a audácia de tê-la controlado. Mas o
poder é falso, o que se verá, quando, no próximo capítulo ambientado na aldeia mairum (“Ju-
rupari”) o narrador cuida então de desmascarar o ritual patriarcal que põe medo às mulheres e
crianças e por meio do qual a parte masculina mantém seu poder na tribo.
Bachelard (2003, p. 203) fala da serpente como um “símbolo motor, um ser que não tem
‘nadadeiras, nem pés, nem asas’, um ser que não confiou suas capacidades motoras a órgãos
externos, a meios artificiais, mas que se fez o móvel íntimo de todo o seu movimento”. A ser-
pente é o movimento que existe sem se explicar e, como alertou uma crítica do romance de
Darcy Ribeiro, “recuperar a vida em movimento é o grande desafio de Maíra(COELHO,
2001, 422).
Por isso a morte coletiva serve como um dos temas condutores da questão da alteridade
e da transfiguração cultural, este, sim, o verdadeiro leitmotiv do romance. É o próprio Deus
Maíra quem o indica, no monólogo de um dos capítulos que Maria Luiza Ramos indicou co-
mo dos principais a tratar do tema da morte no romance (“Mairañe”):
Se este mundo é feito de mudar, por que só estes mairuns hão de ficar? [...] Se
os outros todos confluíram, perderam a cara, o nome e o jeito, por que este
meu povo de ficar? [...] Querem que eu volte para ajudar no seu obstinado
desejo de ficar. isto pedem: permanecer inalterados, salgando-se no seu
próprio sal. Eternamente. Quem pode? (RIBEIRO, 2001, p. 331).
O verbo utilizado pelo Deus para falar do destino dos povos que se foram não lembra
em nada a extinção nulificante da morte: confluíram” aponta mais para uma fusão num ser
maior do que para o desaparecimento definitivo.
Por isso Darcy Ribeiro pede mais: pede principalmente ao homem branco civilizado pa-
triarcal que conclame sua morte, como os mairuns conclamaram a sua. O fim do herói civili-
zador e da moral conquistadora e expansionista: essa é a morte maior desejada por Maíra.
6 O AGENTE DO CAOS E A INVERSÃO DA MORAL DO TRABALHO
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
(Fernando Pessoa)
Cada fábula, história e lenda componente de um corpo mitológico e de uma cultura lite-
rária remete ao tempo primordial das primeiras ações. Não primordial simplesmente em razão
de uma aura divina que o separa do tempo histórico vivido e experimentado cotidianamente,
mas no sentido também de “primeiro”, porque depois desse ato guardado numa memória
sublimada, o próprio tempo passa a existir, pois o ato é o registro de um momento inicial, em
que as coisas do mundo foram dispostas de forma a estabelecer a ordem conhecida e vivenci-
ada pelos indivíduos da comunidade unificada pelo mito no tempo histórico. “A época mítica
é a época dos objetos primordiais e das ações primeiras”, escreve Meletínski (1987, p. 201,
grifos do autor). Todo mito busca, portanto, reconstruir pela narrativa o tempo de existência
das coisas. Em outras palavras, está em relação com o início e o fim de tudo o que existe.
Para registrar os momentos da fundação da humanidade, perdidos nas sombras imemo-
riais dos princípios do mundo, criaram-se narrativas que preservassem a lembrança das ori-
gens e ao mesmo tempo os mantivessem vivos, honrados e reproduzidos no interior dos gru-
pos que eles conceberam. Assim, como nota Eliade (2002, p. 39), a idéia de uma origem pres-
supõe, no mito, um ato criador. “Uma coisa tem uma ‘origem’ porque foi criada, isto é, por-
que um poder se manifestou claramente no Mundo, porque um acontecimento se verificou.
Em suma, a origem de uma coisa corresponde à criação dessa coisa”. Por isso, no centro de
uma narrativa mítica, como responsável pela ação primeira, ordenadora do mundo da tribo,
ergue-se o vulto do primeiro herói, a figura lendária cuja mão criadora faz de seu gesto “o
fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de
163
vida” (CAMPBELL, 1990, p. 145). Pela ação do herói constrói-se tudo o que é humano, vale
dizer, cultural. Daí o epíteto antropológico que define esse primeiro herói como “herói cultu-
ral”. Pela sua mão nascem os grupos humanos e seus costumes e toda a cultura material ins-
trumentalizada para a sobrevivência e manutenção das sociedades. O herói cultural é o pai do
próprio homem, naquilo que ele tem de distinção sobre outras criaturas: a esfera da cultura. A
história desse herói, convertida e memorializada na narrativa mitológica, traduz, pois, a ori-
gem “de todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se conver-
teu no que é hoje um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar
para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras” (ELIADE, 2002, p. 16).
Para Eliade (2002, p. 85), imaginar o início de seres e coisas é dominar o sentido de ca-
da um deles. Para o homem, narrar a própria criação é dar-se um sentido e significar, dentro
de sua vida, o ambiente e as coisas que o cercam, o que constitui o fundamento dos mitos e
religiões. Se o homem é o que é, foi em algum momento criado para ser assim: “Para o homo
religiosus, o essencial precede a existência. [...]. O homem é como é hoje porque uma série de
eventos teve lugar ab origine”. A existência é, para o pensamento mítico-religioso, resultado
de uma idéia e uma prática em evolução: um objeto passa a existir quando é imaginado e cria-
do, e é necessária uma atuação sobre o mundo para elevar dele a existência de uma nova cria-
tura. Assim, a existência dos seres e objetos é, desde o início de sua representação gnica,
vinculada ao conceito de ação, que pressupõe, por sua vez, um agente, o herói cultural.
Esse herói vai construir-se a partir de dois atributos: de um lado, o poder de um feito
humano que gerou, por seu ato, a própria humanidade que, entretanto, é visto como
sobre-humano pelos membros que sua ação criadora nutriu e fez existir; e, de outro, uma ca-
racterização fantasmática, pois sua figura perde-se no mistério das origens, para sempre ina-
cessíveis à história humana. Trata-se da grande incógnita de toda elaboração mítica, o pai
desconhecido de todo homem. Por conseguinte, todo mito é um discurso do indizível e o herói
é o signo de um sentido vazio. Lá onde não sabemos o que pomos, pela divindade do gesto e
pelo mistério da mão que o acena, erigimos a ação heróica. E assim nasce a narrativa, como
criação de uma fala para o que não pode ser tocado. A primeira palavra é sempre, pois, uma
oração: revela um deus e para ele se dirige.
Conforme Meletínski (2002, p. 47-48), as primeiras descobertas humanas foram, sem
dúvida, frutos da casualidade e aos poucos o homem foi tomando consciência de suas pró-
prias ações e das maneiras de conduzi-las para determinados fins. Portanto, os primeiros feitos
como que não possuem agentes, no sentido de uma consciência subjetiva humana para
explicá-los e é assim que, da imagem do herói emerge a excelência de um deus. À medida, no
entanto, em que o relato mítico evolui para formas narrativas laicas ou dialoga com elas, as
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qualidades do herói modificam-se para adaptar-se às problematizações de gêneros distintos.
Traça-se, então, uma rota inversa à divinização do herói, que lhe confere atributos menos ele-
vados e mais “humanos”. Meletínski (2002, p. 41) observa que no mito heróico mais tardio e
no conto maravilhoso, é a personalidade particular do herói que se torna emblemática da força
de cosmicização, e não mais sua representatividade cultural ou coletiva. Essas formas mais
biográficas da personagem heróica correspondem aos rituais de passagem, em que um indiví-
duo do grupo deve abandonar a condição infantil para, através da superação de provações,
tornar-se um “membro plenamente válido da tribo”, submeter-se à socialização e ao ingresso
e integração no “meio social ‘maduro’”. Esse parentesco homológico do conto maravilhoso
com o rito de iniciação leva Eliade (2002, p. 174) a defender que, embora no ocidente ele seja
abordado como literatura de entretenimento ou de evasão, sua estrutura revela “uma aventura
infinitamente séria e responsável”: a passagem, “através de uma morte e ressurreição simbóli-
cas, da ignorância e da imaturidade para a idade espiritual do adulto”.
Portanto, para Meletínski, no conto maravilhoso a jornada do herói configura já um des-
tino individual e “abre caminho para um longo antagonismo no plano da psicologia da reali-
zação do desejo, da realização do sonho, do medo e das fantasias compensatórias”, culminan-
do na celebração do herói como uma exaltação pessoal, relacionada “a uma mudança do sta-
tus social” (MELETÍNSKI, 2002, p. 42). Nesse caso, são mais evidentes que o próprio herói,
na narrativa, os papéis dos opositores e auxiliares, representantes que são, mais que o herói,
das fontes de poderes sobrenaturais, pois nos ritos de passagem, o sagrado está no mito con-
dutor do indivíduo ao socium da tribo e não na personalidade particular do iniciado. Posteri-
ormente, em especial as forças de oposição assumirão funções ainda mais nítidas como anta-
gonistas e rivais particulares do herói. Quanto à épica, Meletínski atribui a ela a formação da
imagem arquetípica do herói, a partir da elaboração do caráter heróico, apenas “esboçado” no
mito, para uma forma mais acabada na epopéia (MELETÍNSKI, 2002, p. 65).
Herdeiro daquela primeira personagem divinizada e detentora dos talentos mágicos e
criadores de universos, o herói servirá, no mito e nas formas narrativas laicas, suas sucessoras
ou coetâneas, como princípio de organização do sistema narrativo. Flávio R. Kothe (1987, p.
7-8) define-o como a verdadeira “dominante” da narrativa, isto é, “um poder secreto que im-
pera em todo o sistema, o conjunto das conexões entre as partes”, a “diretriz política” e a “teia
íntima” do enredo. Ele é a essência da narrativa, “enquanto vontade de poder”, e, portanto, o
“percurso do herói” reproduz, no relato ficcional, o “curso da história”. Frye observa:
Os mitos de deuses imergem nas lendas de heróis; as lendas de heróis imer-
gem nos enredos das tragédias e comédias; os enredos das tragédias e comé-
dias imergem nos enredos da ficção mais ou menos realista. Mas essas são
165
mudanças de contexto social antes que da forma literária, e os princípios estru-
turais da narração de histórias permanecem constantes através delas, embora
naturalmente se adaptem a elas (FRYE, 1973, p. 57).
É o que faz autores como Campbell buscarem, nas narrativas míticas ou maravilhosas
de diversas culturas, uma estrutura basilar e a identificá-la como a unidade nuclear de um
“monomito”, ou percurso padrão para o herói. Segundo Campbell, o enredo de toda narrativa
mítica ou maravilhosa vai apresentar, sumariamente, uma seqüência de três momentos para a
aventura do herói: uma separação ou afastamento do mundo conhecido; uma iniciação, evi-
denciada pela penetração numa fonte de poder; e um retorno ao mundo original com nova
força, que enriquece a vida e, portanto, modifica de alguma forma aquele mundo (CAMP-
BELL, 2002, p. 36). Numa narrativa, o herói ou o mundo em que ele vive sofre alguma carên-
cia ou falta, mas os dons excepcionais de que o primeiro é portador podem restituir a harmo-
nia desequilibrada. Então o herói é chamado a estimular esses dons a partir de uma nova esfe-
ra de atividade, em que o horizonte familiar é ultrapassado. Como mostra Campbell, o cha-
mado para a aventura transfere o “centro de gravidade” da sociedade habitual para uma região
desconhecida, de onde o herói deve retirar a energia para restituir o equilíbrio abalado: “Um
erro [...] revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação com forças que não
são plenamente compreendidas” (CAMPBELL, 2002, p. 60). Esta seria, pois, a estrutura mí-
nima de qualquer narrativa, mítica ou poética: um conflito original obriga o protagonista a
buscar a solução numa dimensão desconhecida, seja ela uma região inóspita, seja uma nova
realidade psíquica ou social. Trata-se de um arranjo basilar que constitui a essência última de
qualquer narrativa tradicional, símile que ela é dos ritos de iniciação e de suas provas e desa-
fios propostos a um sujeito no limite de uma crise. Como nota Eliade (2002, P. 174-175),
começamos hoje a compreender que o que se denomina “iniciação” coexiste
com a condição humana, que toda existência é composta de uma série ininter-
rupta de “provas”, “mortese “ressurreições”, sejam quais forem os termos de
que se serve a linguagem moderna para traduzir essas experiências (original-
mente religiosas).
Dessa forma, às diversas crises e suas respectivas superações pelo protagonista de um
enredo narrativo corresponderia aquele traço que é universal na condição humana: sua exis-
tência sempre crítica, sua inalienável situação de escolhas seqüenciais que a levam sempre de
uma circunstância estável para um momento de conflito e daí para um “final” de apazigua-
mento, seja pela superação do conflito, seja pela queda sob suas forças, resultando, de qual-
quer modo, numa realidade nova para o herói e o mundo que ele representa. Numa palavra,
toda situação dramática vai sempre recuperar os conflitos originários para a criação de um
166
novo mundo, pois “a queda da ordem da existência e o retorno dessa ordem constituem um
problema fundamental da existência humana” (ELIADE, 2002, p. 50).
Pelas razões expostas, Meletínski defende que o fundo original de toda narrativa – o pa-
thos do mito é o conflito entre cosmo e caos, uma força de ordem e uma força de entropia,
expressa sempre que a consciência percebeu um princípio ativo organizando a matéria caótica
e introduzindo uma diferença criativa, um novo objeto, uma nova força, um novo sentido ou
um novo mundo. Meletínski (2002, p. 113-114) declara muito simples e “indevida” a opinião
de que o mito e o conto maravilhoso tenham por fundamento a luta entre o bem e o mal. “Tra-
ta-se antes, desde o começo, da contraposição ‘próprio’/‘alheio’, ‘caos’/‘cosmos’”, defende.
Nesse caso, o “próprio”, que representava inicialmente o socium da tribo, o clã ou a coletivi-
dade, acaba designando o “humano” universal, uma vez que toda cultura pretende ser total e
exclui da condição humana tudo que a ela escapa. Esse “próprio” será então personificado no
herói em luta contra tudo o que é inumano, ou seja, todas as forças hostis ao grupo resguarda-
do pelo mito. Dessa forma, o herói na literatura tradicional é a força dramática que se opõe e
luta contra toda energia inimiga ou desestabilizadora da ordem reinante, e “a lei básica consis-
te no fato de que o matiz positivo ou negativo das ações das personagens não é determinado
propriamente por sua atitude em relação ao herói, mas por seu posicionamento ao lado do
cosmos ou do caos”. Daí Meletínski (2002, p. 126-128) deduz que o motivo arquetípico “mais
importante” e “específico” do mito, do conto maravilhoso, da epopéia e do romance de cava-
laria, é o embate ativo entre o herói e os representantes demônicos das forças caóticas, sob o
qual permanece comum a todas elas “a existência de uma individualidade que luta e defende
seu próprio socium humano” e a prosperidade do mundo defendido, na forma de uma vitória
da fertilidade sobre a seca, da luz sobre um mundo noturno, “da vida sobre a morte, do indiví-
duo sobre o indivíduo, do cosmos sobre o caos, da religião superior sobre o paganismo, dos
defensores do país sobre seus pilhadores, dos ‘próprios’ sobre os ‘alheios’”.
O folclorista russo prossegue afirmando que o destino dos arquétipos ancestrais no de-
senvolvimento da literatura define-se por um “alargamento da função do herói” e por uma
gradual “estereotipização do enredo”, quando a ênfase do modelo de mundo desloca-se para a
ação da trama (MELETÍNSKI, 2002, p. 123). Como nota Campbell, o herói típico das cultu-
ras primitivas ainda é um matador de monstros, para atender a um momento em que “o ho-
mem estava moldando o seu mundo, a partir da selvageria perigosa, informe”, da natureza
hostil (CAMPBELL, 1990, p. 144). Quando, porém, o arquétipo adapta-se às formas épicas,
Meletínski observa que os “forasteiros” e os infiéis, isto é, adeptos de uma religião excluída
da cultura do socium, substituem a figura dos monstros demoníacos.
168
cosmicizante do herói, que, nas obras realistas e naturalistas, vai decair da posição de subli-
midade que originalmente o habilitava a constituir-se no móvel ordenador de mundos.
É assim que o Realismo-Naturalismo abre as portas à modernidade, que vai confundir as
forças arquetípicas de embate na alma de um herói problemático, mostrando o alto como bai-
xo e o baixo como elevado, erigindo uma nova poética, que constitui a reversão do percurso
do herói atávico (KOTHE, 1987, p. 61-65). Numa sociedade fragmentada e carente da força
ordenadora hegemônica, não cabe mais a imagem do herói cosmicizante. Ele próprio se
tornou representativo do conflito original, campo de luta para as forças que antes o definiam e
se definiam a partir de sua atividade. “A plena deseroicização, a tendência à representação de
um herói sem personalidade, vítima do alheamento, em parte devida à sua aproximação semi-
heróica aos muitos arquétipos mitológicos que se transformam em máscaras descartáveis, é o
que se sente na literatura moderna do século XX”, resume Meletínski (2002, p. 86-87).
6.1 O heroísmo noturno do Outro
Em Maíra, o protagonista Isaías não é agente da ordem, mas representa, antes, o herói
lunar e feminino apontado por Durand como duplo especular do herói viril e solar da narrativa
de índole patriarcal. O Avá que os mairuns aguardam é um ícone da masculinidade:
Ele é o herói perdido que volta com seu rancuãi enorme, coroado de pêlos es-
pessos, como um pentelhame de arame farpado [...]. vem o Avá para suru-
rucar com todas as mulheres mairuns. Numa noite ele pode repassar todas no
seu rancuãi de ferro. [...] O Avá traz um mocasé enorme [...], um mocasé de
balas explosivas que derrubam até uma casa de pedra [...]. Também traz um
arco de aço [...] enormíssimo, flexível como uma cobra de aço (RIBEIRO,
2001, p. 228).
Mas o oxim, feiticeiro que vive no lado escuro e lunar, desengana as expectativas e avi-
sa: “O Avá não volta como tuxauarã, volta como anhé. Ele é o Anti-Maíra. É o senhor dos
filhotes do jaguarouí que vivem no mundo subterrâneo do Sol noturno. [...] Ele sururuca pou-
co. não sururuca quase nunca, para não perder as forças trepando demais” (RIBEIRO, 2001,
p. 229). Adiante, o próprio Isaías vai perceber o quão distante está do ideal heróico e guerreiro
que os mairuns esperam dele:
Ele comenta com Alma as dificuldades que enfrenta. É visível que não corres-
ponde à expectativa dos mairuns. Explica que tudo é mais grave, no seu caso,
por seu ele do clã Jaguar, que dá os tuxauas. É o clã que exige e exibe força e
eficiência. Se não fosse assim, se ele fosse do clã dos Carcarás, por exemplo,
169
com vocação de aroe, bem podia ser um homem recatado, quieto. Mesmo se
fosse do clã tão detestado dos Quatris, ninguém se preocuparia com suas inefi-
ciências físicas. Imaginariam que as inabilidades, se havia, se compensavam,
porque nele estaria se formando um futuro oxim, um pajé-sacaca, um feiticeiro
(RIBEIRO, 2001, p. 254).
Seu destino de tuxaua exige valores de heroísmo viril. Entretanto, ele será um jaguar
que, contrariamente ao que se espera de seu clã guerreiro e masculino, se tornará um pajé-
sacaca, um oxim, com seu papel odioso de transitar entre as sombras e o mal e guardar os
segredos do limiar entre os mundos. Isaías não pode cumprir o papel de tuxaua porque não
tem mais a visão unilateral necessária ao estabelecimento de toda ordem. Porque ordenar,
paradoxalmente, torna-se sinônimo de caotizar quando o olhar não é mais o do sujeito civili-
zado, mas o do excluído, do estranho, do marginalizado, do Outro:
Pobre Aruá, ele não podia supor que os brancos não eram uma tribozinha co-
mo a nossa ou como as outras que ocupam um rio, dois no máximo. Não sabia
que aqueles eram os primeiros de um mundo de gente, um formigueiro inaca-
bável, que ocupam a terra toda, que enxameiam o mundo inteiro, insaciáveis.
[...] Então, estaremos reduzidos a uma ilhazinha no mar da branquitude (RI-
BEIRO, 2001, p. 181-182).
Duas metáforas do caos associam-se aqui à civilização branca: a do formigueiro e a do
“mar de branquitude”. A primeira, como já vimos em capítulo anterior, alude à efervescência
da matéria caótica e à produção que se apresenta como apenas produção da ruína; a outra su-
gere a vacuidade absoluta cercando uma pequena sobra de identidade e firmeza.
O próprio narrador do capítulo “Ergo sum”, apontado pela crítica como uma manifesta-
ção do autor no interior do romance, expressa a perda do referencial unilateral que o levou a
narrar a história de Isaías: “Anos meus desaflitos aqueles. Desinsofridos, desinfelizes, em que
eu era igualzinho a mim e me sabia. Hoje, quem sabe de mim? [...] Eu sou resto. [...] O ho-
mem, aquele que não há, sou eu.. [...] E eu não sei nada” (RIBEIRO, 2001, p. 203-204).
A ordem tornou-se, pois, o vilão, e o herói não pode mais servi-la sem deixar de ser he-
rói, nem combatê-la sem combater-se. Isaías está “convencido de que nem ele nem ninguém,
no Iparanã, nada pode contra a ordem das coisas” (RIBEIRO, 2001, p. 168). Ironicamente, é
Alma, a mulher, que pede a ação e desdenha as soluções passivas, enquanto a personagem
masculina, corroída pela autopiedade, prega a inércia:
Só Deus, talvez, talvez nem Deus possa nos salvar. E você aí, a pedir que eu –
coitadinho de mim –, que eu faça e aconteça. Não sou Maíra! Nem Micura
sou.
170
– Não posso com essa frouxidão, Isaías. É preciso reagir. Talvez a solução não
esteja na santidade, no milagre, mas também não está no desengano. É preciso
descobrir algum modo eficaz de agir (RIBEIRO, 2001, p. 169).
O problema de Isaías é que, maculado pela visão do outro lado, não caberá mais unila-
realmente em nenhum dos mundos. Mesmo entre os seus, entre os mairuns, ele “é tratado co-
mo uma espécie de visita que um dia irá embora” (RIBEIRO, 2001, p. 339). Apenas o oxim,
Teidju, trata-o com admiração e respeito e vê nele um ser quase divino por sua particularidade
de habitante de dois mundos. Ocorre que o oxim é um representante do lado mau da cultura
mairum, uma “coisa que Micura fez cuspindo na boceta da mãe dele”, que Maíra define como
uma “porcaria de corpo”, uma “criatura lunar do meu irmão Micura”, em que a única coisa
“que presta” é uma “lucidez desesperada” (RIBEIRO, 2001, p. 269). O oxim, face sombria
das coisas, o afastado do convívio e do centro da cultura, um Outro interior para os mairuns,
reconhece, porém, em Isaías a força e a fraqueza de sua ambigüidade, percebe, como a crítica
Carmen Junqueira (2001, p. 398), que “o desejo de voltar e a covardia em se aceitar fazem
dele [Isaías] o duplo de si mesmo e onde quer que esteja é apenas seu próprio eco” (grifo
meu). Essa natureza especular de Isaías revela-se no modo como Teidju mostra o Avá para ele
mesmo, método ambíguo, processo de dizer e desdizer contínuo, que vai desvelando a dupli-
cidade de caráter do ex-padre:
Avá ouve com atenção. O oxim diagnostica lentamente, dia a dia, desdobran-
do cada raciocínio pouco a pouco. Hoje diz alguma coisa que amanhã renega e
depois volta a afirmar e a negar, até que domina o argumento. Assim vai com-
pondo para o Avá e para si próprio um quadro que é uma tentativa de explicar
por que ele, o Avá, é como é – tão raro.
Sua idéia básica, afinal definida, é a de que Isaías sofre de uma ambigüidade
essencial. [...] Nasceu e cresceu contraditório. Por uma parte, ele é um ho-
mem-onça e, como tal, devia ser forte, vigoroso, corajoso. Por outro lado, é
um homem-micura e, como tal, fraco, pálido, preocupado com coisas espiritu-
ais (RIBEIRO, 2001, p. 341-342, grifo meu).
Curioso neste processo de definição do ser, conduzido pelo oxim, é o método de chegar
a um conceito para si construindo-o para o outro, num tipo de ciência que surge de um diálo-
go e não da imposição de uma percepção pessoal. Vejo, neste elogio da falta de uma essência
particularizada em Isaías, uma aposta naquela miscigenação cultural defendida por Darcy
Ribeiro como a força da cultura brasileira: Isaías seria o próprio povo brasileiro perdido em
uma necessidade de explicar-se com um termo identitário, quando, na verdade, nossa vanta-
gem estaria justamente na fluidez de todas as identidades. Para encontrar uma identidade, se-
ria preciso abandonar outras: “O problema está em separar aquelas duas substâncias anímicas,
diagnostica Teidju, fazendo morrer uma a que não tem forças para crescer e fazendo sur-
171
gir, revigorada, a outra – a que tem mais possibilidades”, que, na opinião do oxim, é “sua par-
te lunar, a herança micura”. Teidju conclui, entretanto, que Isaías não tem forças para levar a
cabo esta autodivisão e deve, portanto, aceitar sua condição de ser ambíguo, o que lhe da
certamente muito trabalho, mas fará dele um homem especial. “Um tuxaua é um pequeno
Maíra, explica, um oxim é pequeno Micura, mas um Anhereté não é Micura, nem Maíra. É
um ser de Maíra-Monan, do Velho Ambir do Sol Negro” (RIBEIRO, 2001, p. 342). Aceitando
seu estado limítrofe e o parentesco de seu espírito com o do caos original, Isaías terá o poder
de “suportar nas mãos, de mansinho, o peso dos dois maracás” e, com isso, representar a ver-
dade absoluta, que “a verdade não está num lugar. E não é uma coisa única. Ela está em
toda parte, é múltipla, dispersa e contraditória”. Certamente, para assumir este destino, deve
percorrer um caminho de “aprendizado e tratamento”, em que “terá de ser sangrado todas as
manhãs, mas sangrado com escarificadores de queixada de lagarto teiú” (RIBEIRO, 2001, p.
343), este animal que, homônimo totêmico do oxim, se ilumina espiritualmente por ficar pre-
so ao chão, fixo à pedra e de ventre ligado à feminilidade telúrica, numa atitude preguiçosa e
de recusa à ação viril, mbolo do “êxtase contemplativo” de uma “alma que busca humilde-
mente a luz”, sem a qualidade do pássaro, que chega a Deus por via reta e direta, lançando-se
em vôo no ar (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1999, p. 533). É importante notar também
que nestas condições, sangrado e escarificado, é encontrado o corpo de Alma, no primeiro
capítulo de Maíra, anunciando o processo de aprendizagem do Outro que deve se iniciar com
a leitura babélica do romance.
Decepcionando a tribo, Isaías se tornará, sim, Micura, a sombra equívoca do herói fun-
dador, mas ele tem razão em afirmar que nem isso será com inteireza, pois, enquanto o deus
trickster relaciona-se freqüentemente com o riso, Isaías perde até este que é o traço maior da
cultura mairum: “Que nada, Isaías. Você é que está ruim e mal-humorado. Você sabe como é
que os meninos te chamam? Micura sarigüê. Quer dizer, pai dos gambás! Este é o seu nome,
Isaías” (RIBEIRO, 2001, p. 296).
Isaías é o centro para onde convergem todas as oposições. Seu pensamento, como vi-
mos, é sempre especular: “Outro dia sonhei comigo”, conta, e no sonho resolvia-se a bipolari-
dade. “Eu era um homem belo, um sacerdote, e tinha o cabelo comprido como o de Cristo e
dos hippies. Mas, como mairum, tinha também, nos dois lados da cara, o distintivo tribal. Es-
tava orgulhoso de mim, descansado”. Entretanto, a confluência dos opostos neutraliza a von-
tade de luta, pois os inimigos se fundem: “Mas não era para viver e lutar. Eu estava pronto era
para morrer por amor de Deus Pai” (RIBEIRO, 2001, p. 42). Seu grande dilema é evadir do
conflito criado pela oposição binária do Eu e do Outro, pois, para ele, cada “Eu” é um “Ou-
tro”, o sacerdote e o mairum, e o que ele tem de virtude pode, por um exercício de pensamen-
172
to, converter-se num erro: sua “virtude é negativa. Mais filha da fraqueza que da força”, pois,
o que pode parecer santidade ao cristão “controla seus instintos com a força da fé” é, na
verdade, de outro ângulo, um pecado, “o pecado de não aceitar a si mesmo, de não se consolar
por não caber em algum nós” (RIBEIRO, 2001, 2001, p. 43). Isaías quer transcender as dife-
renças, “ser igual”, chegar ao Não-Ser de todos os que não precisam questionar a si pela exis-
tência impostural do Eu e do Outro. Por isso a necessidade premente e paradoxal de afirmar
sua “singularidade” que aqui é o contrário da diferença: não pode ser “o Isaías da Ordem
Missionária” e “o Avá do Clã Jaguar”, pois são semas em conflito: “Longe de mim esta ambi-
güidade” (RIBEIRO, 2001, p. 45).
Isaías não é agente nem de sua própria desgraça, mas somente uma personagem passiva
diante de tudo: “Sou apenas a testemunha do meu fracasso” (RIBEIRO, 2001, p. 216, 1). Ha-
mlet amazônico, o Avá não age, por tanto pensar e hesitar entre dois modos de ser. Tanta re-
flexão e oração enlanguesceram o herói, como as que fazia para “amolecer” as ereções na cela
do seminário (RIBEIRO, 2001, p. 111). Ele se torna, então, um “eterno seminarista”, um ho-
mem não concluído (RIBEIRO, 2001, p. 127), sempre de passagem: Isaías é “um homem da
banda do nascente: dos que vêem, de madrugada, o nascer do sol” e “todas as tardes [...] o
pôr-do-sol” (RIBEIRO, 2001, p. 109), um homem dos limites, das fronteiras, das zonas de
transição. Daí dizerem dele, por exemplo, que “o Avá veio e não veio” (RIBEIRO, 2001, p.
257). Isaías ficou no espaço “entre”, na encruzilhada, ao contrário de Alma ou do caçador
Juca. “E você, Isaías? Isso que para mim é bom para você é difícil, não é? Vejo que você não
acha jeito, né?”, diz Alma, que “vive a vida que quer” (RIBEIRO, 2001, p. 294 e 296).
Entendemos a distinção entre as três personagens Alma, Juca e Isaías quando lem-
bramos da qualidade ambígua do caos como vazio pleno. Portanto, são dois os caos: o Nada e
o Tudo. O primeiro, niilista e destruidor, está ao lado de Juca e sua moral civilizadora; o ou-
tro, o da plenipotencialidade, parece estar com Alma e seu desejo de fundar mundos; final-
mente, Isaías recusa ao mesmo tempo a destruição e a fundação e paira num limbo: “Ando
com vergonha das minhas duas nudezes, a mairum e a caraíba”, lamenta o Avá, impedido de
decidir por qualquer coisa (RIBEIRO, 2001, p. 305).
Em Isaías, o alto une-se ao baixo, Deus penetra o íntimo do Demo. Por isso o Avá vai
associar-se ao oxim Teidju. Como parte sombria e passiva, o lado Micura, o oxim se opõe ao
guerreiro jaguar. Unindo-se a Teidju, Isaías torna-se o otxicom, de quem pode vir tanto o bem
como e o mal. Nonato denuncia, de outra perspectiva, esta situação limiar de Isaías: se enqua-
drado na isenção indígena, Isaías se converteria “num brasileiro privilegiado”, capaz de come-
ter qualquer crime sem ser punido (RIBEIRO, 2001, p. 98), uma espécie de mal permitido,
um agente aceito do caos, com a liberdade do Anticristo, que se revela no seu epíteto de “anti-
173
jaguar”. Por essa natureza imprópria, Isaías revela sua “parte lunar” e sua “herança micura”
(RIBEIRO, 2001, p. 342).
Como gêmeo trckster de Maíra, o deus Micura é o mau que é bom e sua virtude pode
vir justamente de sua atividade contemplativa em oposição à ação do herói solar:
Precisa também ser prudente, quando identificamos um dos gêmeos míticos
(mais comumente o gêmeo “solar”) àquele “que é concebido” por oposição ao
outro, aquele “que reflete muito tarde”. É muitas vezes esse último que é o
mais sensato, como é, por exemplo, o Pudleré Kraho, quando institui a morte.
Não precisa esquecer, aliás, que, nas sociedades arcaicas, refletir muito e pro-
fundamente é a atitude do sabido e implica em não pensar exclusivamente o
presente, o imediato (CARVALHO apud ZANNONI, 2000, p. 171).
O papel do trickster é o de equilibrar os excessos das ações culturais sobre a natureza,
revertendo o vetor que, no herói solar, sobe dos instintos para a sublimação espiritual. É o
poder modificador e dialético que a cultura guarda em seu interior e, por isso, exibe o poder
de transitar entre mundos: “Se o trickster aparece como agente desse (re)equilíbrio, não signi-
fica que ele esteja à mvvargem da sociedade ou da cultura, mas, justamente, que essa entidade
é capaz de passar de um mundo (o humano) para o outro (da natureza), a fim de avaliar e con-
sertar os desequilíbrios” (CARVALHO apud ZANNONI, 2000, p. 171). Isaías adquiriu esse
“poder” após viver na civilização caraíba, “como bicho entre bichos” (RIBEIRO, 2001, p.
76). Agora ele retorna na forma do embuçado, do encoberto que não se deixa ver” (RIBEI-
RO, 2001, p. 251, 3-5). Alma, contudo, acredita numa “ambigüidade essencial” do Avá:
“Provavelmente sua mãe, Moitá, sururucou demais com muitos homens, misturando diferen-
tes semens”, o que “o fez débil, fraco e confuso”. Com os semens “misturados dentro dele,
nasceu e cresceu contraditório”. Isaías é um “homem-onça e, como tal, devia ser forte, vigo-
roso, corajoso; mas também é um homem-micura, e, como tal, fraco, pálido, preocupado com
coisas espirituais” (RIBEIRO, 2001, p. 341, grifo meu). Assim, a serva da Grande Mãe na
aldeia mairum atribui o anti-heroísmo de Isaías a uma recaída na poliandria matrística.
Se Isaías é “feio e triste”, “franzino”, “um caquinho de gente, bem chinfrinzinho”, “tão
feiozinho e tão carente” (RIBEIRO, 2001, p. 137 e 139), seu sobrinho, Jaguar, possui todas as
qualidades esperadas do herói solar patriarcal: “famoso por sua ousadia, por sua força e por
sua coragem” (RIBEIRO, 2001, p. 69), “homem de guerra” (RIBEIRO, 2001, p. 269), “bolas
doloridas de tesão”, “pau pica caralho fodedor”, “um corpo mairum como deve ser”. Enquan-
to o olhar de Isaías funde todos os seres na indistinção, o de Jaguar separa e ordena: “O mun-
do para ele é esplêndido, maravilhoso. Assim ele o vê, magnífico, debaixo da minha luz: tec-
nicolor, cintilante, luminoso. Luz onde deve ser claro, sombras onde convém(RIBEIRO,
174
2001, p. 285, grifo meu). Ainda assim, Jaguar exibe qualidades pouco patriarcais. Depois de
vencido na luta do javari por Maxĩ, não se isola mais deste, que se torna então “novo amigo
inseparável” (RIBEIRO, 2001, p. 87). O rival, ao contrário do que ocorre no emocionar pura-
mente patriarcal, não representa um inimigo, mas um companheiro de vida.
Jaguar, que leva o nome do clã dos tuxauas, honra o sangue de homem-onça, e a onça
associa-se ao herói solar por ser a dona do fogo, “animal solar, como a representavam as cul-
turas andinas e em áreas sob sua influência... E é um animal solar pelo colorido de sua pele e
pela sua voz de trovão” (CARVALHO, 1979, p. 130-131). Por outro lado, ela tem, no roman-
ce de Darcy Ribeiro, também a função de duplicar o caráter desse herói, pois “na floresta e-
quatorial a caracterização do Sol e da Onça não combinam inteiramente, não são facilmente
intercambiáveis”. Existem traços na onça que a ligam também ao imaginário feminino e no-
turno. “A onça é um ser antropófago. [...] Mais comumente é encontrada como símbolo do
inimigo. Em algumas línguas os termos que designam ‘onça’ e ‘inimigo’ têm o mesmo radi-
cal”. Nesse caso, resolve-se a questão da solaridade e da virilidade duplicando o deus no par
de gêmeos e atribuindo a um deles o caráter benéfico do jaguar: “Em alguns mitos, o jaguar
revela o que Lévi-Strauss chamou de ‘uma vocação paternal’ em relação ao herói, o que nos
faz rever nele o ‘bom jaguar’ do mito dos gêmeos” (CARVALHO, 1979, p. 134).
O jaguar é um animal iniciador entre os mairuns, o que corresponde a um fato antropo-
lógico com relação às culturas indígenas brasileiras: “Embora a serpente pudesse ter tido esta
função em algumas áreas, acreditamos, a julgar mesmo pelos mitos, que no Brasil este papel
coube principalmente à onça” (CARVALHO, 1979, p. 137). Entretanto, em Maíra, o primeiro
iniciador é a sucuridju, como vimos atrás, e a onça aparece nesse ritual apenas como troféu de
caça. Novamente, os mairuns são relacionados antes à cultura matrilinear do que à patriarcal.
A onça aparecerá novamente apenas simbolizada pelo zunidor no ritual descrito no capítulo
“Jurupari”, pois, “na mitologia guarani, a onça mítica corresponde ao mesmo conceito de ‘ser
rosnador’ associado a fenômenos meteorológicos como os relâmpagos e trovões. É bem pos-
sível assim que originalmente existisse o zunidor entre os povos em que encontramos algum
mito de ‘onça com vocação paternal’ a rosnar (a favor do iniciando) contra a mulher” (CAR-
VALHO, 1979, p. 139). É o que ocorre nesse capítulo, no qual, porém, ao final, os homens
revelam a ilusão por trás da cerimônia e confessam sua intenção de assustar para governar.
Muitas vezes a onça é representada como uma mulher grávida entre os guarani, o que a
associaria a Alma, no romance: “Talvez se pudesse dizer, até certo ponto, que se trate da re-
presentação de um aspecto negativo do Sol, pois, entre os Tupinambá, a ‘onça celestial’ pare-
ce que era identificada como uma estrela, ‘Ianouâre’, que acompanha de perto a Lua, amea-
çando devorá-la”. Trata-se, portanto, de uma malignidade do masculino a perseguir o femini-
175
no e, por outro lado, de uma criatura noturna a ameaçar algum tipo de luz. “Na mitologia bra-
sileira, em geral, o Sol dificilmente aparece como maléfico”, como o “monstro devorador”, o
“velho canibal”, como se manifesta em alguns mitos norte-americanos. “Na mitologia do Alto
Rio Negro isto naturalmente se explica, em parte, pelo fato de que Sol e Lua são concebidos
como dois aspectos (diurno e noturno) da mesma entidade, funcionando o aspecto noturno
como catalisador dos caracteres maléficos” (CARVALHO, 1979, p. 143). O mesmo acontece
nos mitos Kaiapó, para os quais a Lua é aitchuêra (má) enquanto o Sol é meitira (bom)
(CARVALHO, 1979, p. 145).
Revelador é, portanto, o fato de Darcy Ribeiro ter conferido ao jaguar o papel principal
na hierarquia tribal dos mairuns, dada a simbólica ambígua desse animal: “Parece que muito
raras vezes a onça funciona como uma auto-representação tribal entre os indígenas do Brasil.
Como dissemos atrás, a identificação entre ‘onça’ e ‘inimigo’ parece muito mais freqüente.”
Por outro lado, a onça “parece simbolizar a natureza, o mundo selvagem, opondo-se ao huma-
no, à cultura”, e aqui parece atender eficientemente ao seu papel, no enredo, de simbolizar
uma ordem selvagem contra a ordem branca e civilizada. O jaguar é o Outro para as tribos
americanas, mas no romance de Darcy Ribeiro ele está no centro da cultura representada. Por
outro lado, é um animal relacionado ao nomadismo patriarcal, mas cujos traços de virilidade
são equívocos, constituindo, no mais das vezes, antes um mal do que um bem:
Se as tribos da mata, particularmente as inimigas, as mais temidas, são identi-
ficadas com as onças, porque a onça é também o inimigo animal mais temido;
vice-versa, a onça será dona do fogo também por outra razão: porque os nô-
mades caçadores-coletores o, mais do que os povos sedentários, donos do
fogo. Estes últimos preservam com facilidade o fogo, não o deixando extinguir
(o que lhes possibilita o seu sedentarismo), e, embora geralmente dispondo de
instrumento para o obter, dificilmente dele se servem. Os nômades da floresta,
ao contrário, são obrigados a saber fazer fogo, e a qualquer momento (CAR-
VALHO, 1979, p. 150).
Por isso o estranho caráter da cerimônia em que Jaguar, eleito novo tuxaua ao posto va-
go pelo descaminho do tio Isaías, vai sagrar os novos adultos machos da tribo. A tradição
manda que o ritual de amarração dos uluris e sagração dos guerreiros masculinos da tribo o-
corra à luz do sol, mas a regra é quebrada: “A amarração se faz à luz do Sol, no meio das dan-
ças de Coraci-Iaci; por isso, aqui no baíto, agora, é de dia”, avisa o aroe, anunciando que a luz
interior e contida do baíto substitui o fogo solar:
O aroe fez de tudo com duas ou três ordens apenas. Ordens não, apelos, por-
que este é o estilo mairum de mandar.
176
Os jovens-homens voltam extenuados da mata. Banham-se longamente na La-
go Negra, debaixo da luz da lua. [...] Assim entram no círculo das casas, no
meio da noite, com a lua muito alta num céu sem nuvens. [...] Alguns deles, os
que são de clãs daquele lado, vão até as suas casas para saber o que sucede.
[...] Nas casas só estão os cachorros, uivando baixinho, queixosos.
Dirigem-se então para o baíto e aí vêem, com um susto ainda maior, o seu cla-
rão no meio da aldeia. É uma luz solar, de ocaso vermelho, que sai das palhas
do baíto, como se ele incandescesse. O velho baíto é uma enorme lâmpada a-
cesa no meio da noite (RIBEIRO, 2001, p. 181-182).
Aqui, o próprio baíto converteu-se num sol noturno, um sol de poente, crepuscular. Na
verdade, essa porção de luz em meio à noite escura revela antes uma natureza lunar e é outra
imagem característica dos devaneios da intimidade. “As pessoas reunidas sob a lâmpada têm
consciência de formar um grupo humano reunido em uma concavidade de terreno, em uma
ilha”, observa Bachelard (2003, p. 87-89). Essa casa iluminada é uma “consciência do anoite-
cer, consciência da noite dominada” e por isso “encontra-se então na fronteira de dois mun-
dos”, uma noite “humana contra a noite desumana”. Por esses “valores de proteção”, a casa
constitui “um contra-universo ou um universo do contra(grifo do autor) e “reclama natural-
mente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre mater-
no” (RIBEIRO, 2001, p. 94-95). É o lugar em que os traços agressivos da masculinidade são
abrandados; por isso o chefe aroe não manda, mas faz “apelos”, ao “estilo mairum de man-
dar”. Mesmo Jaguar, ao perceber que é eleito o novo tuxaua, recusa o posto em sua integrida-
de e exige ser amarrado por um membro do clã lunar dos carcará: “A mim um velho aroe
de amarrar. Serei seu miaçu!” (RIBEIRO, 2001, p. 368). O miaçu é um avesso do tuxaua, um
servidor em vez de um chefe (ANGULO, 1988, p. 76).
Os novos machos guerreiros banham-se da lua, e não da virilidade solar. A lua é o astro
de Micura, que é o irmão maternal dos gêmeos mairuns: “Maíra-ira representa o pai, nunca a
mulher a mãe dele –, a qual representa o povo Tenetehara guiado por ele. A partir da morte
da mãe, Mucura-ira passa a representar o povo, isto é, ele assume o papel da e. É ele que
precisa agora ser guiado.” Essa relação vem da associação do gambá com o colo materno:
“Como a mãe carrega os filhos na barriga (onde lugar para os dois) e, após o nascimento,
ela os carregaria na sua tipóia, também a mucura carrega seus filhotes na bolsa marsupial até
crescerem e poderem andar sozinhos.” Parindo os filhos uma primeira vez para depois criá-los
na bolsa marsupial e dá-los ao mundo uma segunda vez, o gambá torna-se, assim, importante
símbolo de renascimento e do poder metamorfoseante, o poder de “virar” em outro, o que
acaba associando Micura à lua e seu ciclo de vida-morte-vida, bem como ao poder de transitar
entre mundos: “Há, desse modo, [...] uma ligação entre mucura e a lua, passando pela mulher.
177
A lua representa a fertilidade, sendo que nasce, morre e renasce. Pode-se dizer que Mucura-ira
transita entre o mundo humano e o da natureza” (ZANNONI, 2000, p. 168).
Através da associação com a agricultura, a mulher relaciona-se também com a lua e sua
potência fertilizadora. Monteiro mostra que a função do homem no trabalho das comunidades
agrícolas era secundário, cabendo-lhe apenas a preparação da terra, como também nos infor-
mou Darcy Ribeiro em capítulo anterior. O macho matrístico não atribui a si o poder de fe-
cundar, pois na semente uma massa informe e inerte, que germina apenas a partir da influ-
ência de um poder fertilizante da lua. Como no nível biológico a mulher compartilha um rit-
mo com a lua, dispondo também de um ciclo de menstruação, fertilidade e gravidez, “somente
as mulheres podiam fazer prosperar as colheitas, pois estavam sob a proteção direta da Lua; as
mulheres incham e têm um ciclo menstrual semelhante ao dela. As palavras lua e menstruação
são aparentadas em diversas línguas” (MONTEIRO, 1998, p. 44).
Por isso, o capítulo do ritual de amarração encerra narrando que “no outro dia o Sol
nasce, sua volta no u e morre, como se fosse um dia comum. Mas todas as mulheres a-
manhecem menstruadas. Até as meninas sangram, flechadas por Micura” (RIBEIRO, 2001, p.
369). Esse capítulo precede o último do romance e anuncia o novo mundo que surgirá a partir
da caotização do universo mairum: um mundo confuso, mais de sombras que firmezas, o
mundo feminino de Micura, em oposição à ordem masculina e unidirecional de Maíra: o lugar
do Outro absoluto.
6.2 Recusa da moral do trabalho, da competição e do expansionismo
Ao status do herói ordenador corresponde uma moral da competição e do trabalho, que,
nas imagens terrestres, chocam-se com os devaneios da intimidade e do repouso presentes no
Maíra. Aqui, o Outro é reificado e aparece no seu caráter de obstáculo à vontade de poder: “É
em função da matéria, de sua resistência, de sua dureza que se forma na alma do trabalhador,
ao lado de uma consciência da destreza, uma consciência de poder”. A um “coeficiente de
adversidade” de cada matéria corresponde um coeficiente de domínio” de uma ferramenta.
“Através da imaginação material e dinâmica, vivemos uma experiência em que a forma exter-
na do suscita em nós uma força interna que deseja a vitória” (BACHELARD, 2001, p. 42-
43, grifo do autor).
Isaías, que deveria trazer ao mundo mairum sua força de resistência, tornou-se um “ho-
mem esquálido, vergado” pelas “pestes e asmas desses ásperos invernos romanos” (RIBEIRO,
2001, p. 108; 168). Ironicamente, foi a estada entre os brancos que tirou do mairum sua ener-
178
gia heróica. O caráter do Avá denuncia a moral antipatriarcal do Maíra: o herói agora é o ín-
dio e a cultura matrilinear; o estranho, o Outro aniquilador, é o branco. O heroísmo selvagem
é presente na descrição da cultura dos indomados xaeps:
Cada grupo que acampa à margem do Iparanã tem, ao regressar, histórias es-
pantosas a contar. [...] Uns poucos grupos heróicos voltaram trazendo, tam-
bém, as provas das suas façanhas: ferramentas pesadas em forma de cunha, ou
leves em forma de peixe, ou mordedoras em forma de mandíbula. [...] Ficaram
célebres os grupos que conseguiram trazer um ou outro desses troféus que
passam de aldeia a aldeia como supremos objetos de troca.
Muitas vezes os xaeps tentaram aproximar-se dos homens estranhos. Mas e-
les sabem que é quase impossível qualquer entendimento com gente tão furio-
sa (RIBEIRO, 2001, p. 198-199, grifo meu).
Os xaeps ainda v-1.22997( )ind
179
meninos das mães, “zunindo e zunindo o zunido solar”. No baíto, o mito é revelado: “Quando
o rapazinho chega bem junto, o anhangá que espera começa a gritar-lhe: abra os olhos: abra!
Enquanto isso vai tirando da cara o barro azulado e dizendo: veja bem, idiota. Sou eu, seu tio
Narú. Não há anhangá. Acabaram os juruparis. Quem existe agora, somos nós, os homens
verdadeiros: Avaetés” (RIBEIRO, 2001, p. 102). Ocorre então o desnudamento da ilusão pa-
triarcal, a consciência de que a lei é um jogo. No capítulo seguinte, “Retorno”, Isaías lamenta
seu “ser perdido”, o adulto em que ele não se tornou (RIBEIRO, 2001, p. 107). É que ele em-
bebeu-se da corrupta virilidade do civilizador. Alma também será testemunha dessa masculi-
nização espúria. Ela recusava o papel feminino que a civilização ocidental criou:
coisa mais enroscada do que uma mãe de família? Cuidar o dia inteiro de
filhos remelando, chorões? Esperando o marido de noite e fazer sempre o
mesmo chuque-chuque, sem desejo? Elas agüentam porque estão dopadas. [...]
Ninguém escapa da feminilidade servil. É uma domesticação como a dos ca-
chorros de caça ou a dos cavalos de corrida. que é tão corriqueira, tão sem
importância e vulgar que ninguém bola, nem escapa (RIBEIRO, 2001, p.
170-171).
Ela pensava ter escapado a esse destino: “Qual o quê! Apenas mergulhei mais fundo e
depois exagerei no novo papel: o de antimulher. Cheguei a ter êxitos. Aprendi, por exemplo, a
comer os homens como eles me comiam antes”. Para fugir da tirania patriarcal, Alma, como
tantas mulheres equivocadas, optou pelo masculino vitorioso, “tentando inverter os papéis”,
mas conseguiu tornar-se uma mulher “saciada e com fome”; mas obterá a liberdade de
seu sexo quando entregar-se inteiramente a ele, na recuperação das práticas ritualísticas da
Grande Mãe e da prostituta sagrada, numa opção pelo feminino supremo. Se a princípio ten-
tou salvar-se mudando de lado no interior da mesma ordem, Alma, no final, percebeu que
apenas recusando a ordem toda poderia ter esperanças de viver, “não como a mãe de família,
parideira, esposa ou o que seja, mas como gente” (RIBEIRO, 2001, p. 171, grifos meus).
A ordem patriarcal separou o mundo e entregou a criação a apenas um dos lados. É por
isso que Xisto inverte a hierarquia entre cultura e natureza: “Seu Cleto [...] é crente antigo,
mas o amor dele é pras vaquinhas. Elas comem o pasto o ano inteiro. Parem pra dar mais va-
quinhas a ele. Ele pensa que é criador que cria as vaquinhas. Qual nada, são elas que criam
ele” (RIBEIRO, 2001, p. 187, 4). Xisto desnuda a moral pastoril e, como Alma, busca inverter
os pólos de dominante e dominado e devolver ao lado subsumido seu status de sujeito. Assim,
por esta outra razão, socialmente revolucionária, a doutrina de Xisto, se é também escatológi-
ca e caotizante, é porque compartilha da visão primitivista e coletivista isto é, matrística
de Alma. O pastor cristão Bob vê como “extravagante” sua doutrina
180
de que, com a vinda do filho de Deus, não haveria, afinal, a paz sobre os
escombros da última guerra como haveria também, insistia, fartura para todos.
Tudo isso estava muito bem, mas não a insistência de que a fartura viria da re-
distribuição das terras, que seriam devolvidas a Deus, seu único dono. Tam-
bém o gado, dizia seu Xisto, seria dividido entre todos (RIBEIRO, 2001, p.
335).
Ao associar Cristo, Anticristo e Dom Sebastião, o pregador reúne, sob a mesma forma
emblemática, a salvação espiritual, a perdição do mundo estabelecido e a redenção social,
pois cabe, para destruir a ordem maligna estabelecida pelo patriarcado capitalista e devolver o
homem ao estado edênico original, quebrar as regras hierárquicas e promover uma distribui-
ção igualitária e coletiva dos bens apropriados. É importante o fato de Xisto pregar na cidade
de Corrutela, um “pequeno arraial formado por garimpeiros na entrada das terras virgens aon-
de vão à procura de diamantes”, isto é, uma porta de exploração. Corrutela possui o sentido de
uma ação corrupta, mas também pode significar um modo “corrompido” de se escrever ou
falar um termo da língua. Xisto é, por seu lado, um beato que inverte o discurso tradicional e
caotiza a lógica normativa do cristianismo ocidental: ele é um negro, em oposição a Bob, o
pastor “gringo” de língua “arrevesada”.
Xisto leva no nome o epíteto do salvador cristão, mas é evidente que seu papel é antes o
de um Anticristo. Aliás, Maíra é um enredo de parúsias: Cristo retorna na pregação bizarra de
Xisto; Maíra e Micura retornam para expor o avesso do mito; Isaías volta de sua estada entre
os brancos para representar o fim dos mairuns. Na entrada da floresta, quando encontram a
Casa dos Espelhos, Alma e Isaías ouvem do pastor Bo
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Tanto trabalho perdido, dias e dias. E como trabalharam todos. Eu ali man-
dando brasa, exigindo mais trabalho, achando que alguns eram preguiçosos.
Por que é que eles me ajudavam, sabendo que era besteira, Teró, por quê?
– Porque quiseram, ora. Gostam de você, Avá (RIBEIRO, 2001, p. 276).
Inicialmente ainda amparado na cultura branca em que amadureceu, Isaías chegou a as-
sociar à alegria e à vida natural dos mairuns um vício de caráter, como fazem Nonato e Elias,
representantes da cosmovisão patriarcal no interior da floresta, para quem os índios ainda es-
tão numa “idade da caça”, inaptos para o “trabalho regular” (RIBEIRO, 2001, p. 97). De fato,
enquanto os devaneios do repouso e da intimidade primam por imagens de enlanguescimento
e abandono do ser, os devaneios da vontade recebem a marca da energia ordenadora. O homo
faber quer impor planos retangulares”, “organiza o tempo do trabalho, que faz dele uma du-
ração voluntária e regulada”. As ferramentas nos fazem viver “tempos instantâneos”, “prolon-
gados”, “ritmados”, “mordazes”, “pacientes” (BACHELARD, 2001, p. 41-42, grifo do autor),
por isso, “o duelo entre o operário e a matéria dura não conhece as sonolências do hábito”.
Existe uma vontade de destruição e um ímpeto raivoso no sujeito que trabalha. “A matéria
dura é dominada pela dureza colérica do trabalhador. A cólera aqui é aceleradora. Aliás, na
ordem do trabalhado, toda aceleração reclama uma certa cólera. [...] A cólera é uma revelação
do ser. Na cólera, sentimo-nos novos, renovados, chamados a uma vida nova” (BACHE-
LARD, 2001, p. 47). Em nota de rodapé, Bachelard recorda, aliás, citando Vico, que “o pri-
meiro sentido da palavra cólera foi cultivar a terra” (VICO apud BACHELARD, 2001, p. 47).
A primeira reação à presença do Outro é, pois, uma vontade de destruição: “A provoca-
ção da matéria é direta e acarreta uma cólera, uma cólera imediata contra o objeto. [...] É por
ser vontade que a matéria é vontade” (BACHELARD, 2001, p. 48, grifos do autor). Pela
ação e pelo trabalho, o sujeito afirma seu poder contra o universo: “É a natureza inteira que é
182
de lontra, animal que, como a ariranha, é considerada uma “onça d´água”. Ele é, pois, um dos
“anti-onças” que agem, no enredo, para destruir69( )-974(e)3.74( )-20.15980439(69( )-96585(o)-e)3.74(s)-1.2312(t)3.74( )-85()3.74(l)-2.16558( )2.80439(69( )-974(e)m)-2.45995(a)-6.2659( ).pJ250]TJ-24mac(s)-11.2359(”)3.74( )-30.1643(c)3..295585(m)-2.45995(a)-6.2659( ) tru69ç95585(n)-0.298027( )-20.1584(p)-0.295585()2.80439(u).2359(244 )-20.1584(db)-11.2371( é2359(244 )-20.1584(d7.226 -20.6460.2976h)-0.295585(.2359(”b)-0.295585()2.80439(a))-2.1653(-)294974(t)-2.16558(i)-2.1653(-).1596(a)-60.15837-e)3.74(s)-1.230.1584(“)3.0.15837-f.74122(d)3.74122(d)nça-aa 029.147792( )-30.1655(a)3.0.15837-585(-2.1642997a)3.0.15837-ue agtr295585(n)-0.295585()3.74( )-20hs“ac(s)-11.2359(”-2.16436(r)2.80439(u))2..3217032.80561(i)-2.1654(e)3.70.1582(a )-20.1596(e)31 882-2.16436(r2312(t024()3.74( )-20v)3.74(r)-7..2359(”e)3.74(m)-2.45995(,)-0.147792( )-20.1584(p)-00.1582(a295585(n)-80439(á))-00.1582(a)3.74(l)-2.16558( )-6.2659( )2312(t))3.74( )-20mac(s)-11n ác(s)-11ma ee69ça, a-2.16436(rm)-2.46239( .2359(244 )-00.1582(a-2.16436(r)2.80439(69ç)-6.26239( .280561346d7.226 -20.641 882“)3.74(a)3.7e)3.74( )-20.1596(l)-20.15837-c(s)-11.2359(”-2.1642997a)-2.1653(-)2.8.3217(á)-0.295585(2.359(”o)-0.295585(,)-80439(á)3.74122(d))-60.15837-e)3.74(s)-1. en295585(r)2.80561(e)-onen2.359(”)-2.1653(-).1596(a3.74122(d)o)-0.295585( )-20.1596(e.1596(q)-0.295608((.74124(e)R-603.49(á)I).328558(B)6.65585l)--19.-28á pa2e0 áe1 588papea157).74124(e).paNa1596(l)-20.15825r295585(n)-0.295585(-2.16436(r)-6.2659( )n)-0.295585(v)-0.295585()-1.2312(,)-0.1]TJ-24ã95585(n)-0.295585()-20.15825rest
183
será o maior criatório de gado do Brasil” (RIBEIRO, 2001, p. 281, 3). Então, o “Campo dos
Epexãs” será “incorporado” e “dos epexãs vai guardar o nome: Fazenda Epexã” (RIBEI-
RO, 2001, p. 376). O “justo” é o repartido entre indivíduos que se tornam proprietários. O
Estado, instituição que representa a coletividade, nesse sistema é a mão do indivíduo, do eu
apropriador: “O governo financia tudo o que os grandes querem” (RIBEIRO, 2001, p. 282).
Juca não é mais um homem: é um conceito. Daí a perversão de sua virilidade. Ele é o
capital, que vem, nas palavras de Nonato, em “primeiríssimo lugar”, enquanto Elias, funcio-
nário do Estado, ocupa um “segundo lugar muito medíocre”, e a missão, a religião, ocupa
apenas uma “posição de honra” (RIBEIRO, 2001, p. 175, 4). A inferioridade das instituições
frente ao capital trai-se ainda pelos pronomes de tratamento: enquanto Juca é o “Senhor Oli-
veira”, o funcionário da Funai é apenas o “Seu” Elias. Com intenções de proprietário, o dis-
curso de Juca é possessivo:
Afinal, teriam seus donos legítimos estas terras abandonadas desde sempre,
por onde passaram, na ida, olhando, e por onde agora passam, de volta, me-
dindo distâncias, tomando rumos, anotando nomes. Todo este mundão de ter-
ras virgens será o chão dos fazendões pai-d’égua dos paulistas e dos gringos,
sócios do senador.
E minhas acrescenta Juca –, minhas! Ó sim, minhas mesmo (RIBEIRO,
2001, p. 281).
Vejamos como o mesmo possessivo assume conotação diversa na fala de um mairum:
Minha, mais ainda, aquela onça foi... minha, como minha irmã Mbiá, antes de
menstruar, minha, mais minha, toda minha, aquela onça foi, quando eu por
dois dias e duas noites andei debaixo do peso do seu couro, do peso de suas
garras, do peso de 048(a)-.esms,sui a T
184
terrível associada à imagem feminina, em oposição à morte revivificadora de Anacã e dos
mairuns: forma, cara e jeito de mulher, os ossos soltos, anda no ar e sobre a água, aparece
pedindo ossos aos homens. Juca fala ao colega Boca que ele é uma caveira, que surgirá,
quando ele morrer e apodrecer, mais lustrosa e bonita do que o corpo de agora; uma “caveira
andando por aí, brancona, na escuridão da noite” (RIBEIRO, 2001, p. 52).
Essa morte feminina guarda, por outro lado, também traços da morte benfazeja, se com-
parada à imagem da “vida” pregada por Juca, pois, enquanto a Saco-de-Caveira tem os ossos
soltos, fluidos, Juca tem uma perna dura, o que denuncia o enrijecimento do masculino que
ele representa: em Juca, a fertilidade fálica converteu-se numa esterilidade afetiva e a energia
vital tornou-se um obstáculo à vida. O apelido que os mairuns lhe conferiram traduz a inutili-
dade de sua virilidade: Panema significa improdutivo, estéril (RIBEIRO, 2001, p. 143). Por
isso, ainda que consiga abrir caminho para a destruição civilizadora, ele morrerá antes de co-
lher os resultados do “Brasil que vem vindo”. É que, em Juca e por ele, a agressividade bené-
fica do vigor masculino converteu-se em violência: “Deus tenha a seu Juca debaixo do am-
paro dele, mas aquilo era homem violento demais”, diz um de seus colaboradores no capítulo
final (RIBEIRO, 2001, p. 372).
É evidente, aliás, nos valores de Juca, que a alteridade é um atributo do feminino. Seu
pai foi o primeiro civilizador dos mairuns e uniu-se a uma índia da tribo. Num relatório aos
superiores, Nonato reconhece a herança do pai em Juca:
É triste pensar que esta bela região foi, no passado, muito mais possuída do
que hoje pelo Brasil 1.91977( )p)(g)10.576(t)-2.16 Rdma
7 O MUNDO ESPIRAL E A NARRATIVA CURVILÍNEA DA MÃE
Não fosse falarem as mulheres umas com as outras, os
homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta.
(José Saramago)
7.1 A voz multidirecional e a crise do enredo linear
Darcy Ribeiro é um antropólogo que escolheu a ficção como modelo para representar o
mundo novo e o Outro americano que ele descobriu entre os indígenas brasileiros. isso
constituiria um indício de uma opção pelo discurso não linear como meio de expressão. Entre-
tanto, mesmo no gênero ficcional, ele preferiu formas discursivas inovadoras, procurou utili-
zar recursos narrativos que, rompendo com a tradição ocidental, pudessem constituir cami-
nhos para uma fala sobre o Outro. O racionalismo espiritualista, característico do Regime Di-
urno do imaginário e relacionado às formas patriarcais do pensamento, não podia dar repre-
sentação ao Outro, que desaparece sob o logos reducionista. A antropologia buscava se
livrar dos embaraços do discurso racionalista, quando Darcy Ribeiro publicou o Maíra, cuja
multiplicidade de vozes narrativas constitui uma alternativa ao discurso científico antropoló-
gico:
A “crise da autoridade etnográfica” era descrita como sintoma da crise geral
da cultura ocidental (James Clifford). Outra polêmica levada à frente no final
dos anos 80 sobre o status da antropologia ocidental, o discurso sobre o “Ou-
tro”, está ligada a isto. Neste contexto podemos citar a participação de Clifford
Geertz no debate com o seu livro Works and Lives The Anthropologist as
Author (1988). Só uma década após o lançamento de Maíra vemos o etnotexto
de Darcy sendo descoberto e formulado teoricamente por cientistas norte-
americanos bem-sucedidos. E, no entanto, gostaria de argumentar que a narra-
tiva de Darcy se diferencia de forma decisiva da narrativa autoritária de um
Malinowski, de Evans-Pritchard, de Lévy-Strauss, citados por Clifford Geertz.
Pois em todos estes casos, as várias vozes são transformadas numa só, e suas
múltiplas significações reduzidas a uma única afirmação homogênea. Em con-
186
traste com o narrador na primeira pessoa do singular, que centraliza corpos e
vozes, encontramos em Darcy o narrador “nós”, mesmo quando é um “eu”
quem conduz a narrativa (SPIELMANN, 2001, p. 424).
Todo o romance é elaborado com uma variedade de vozes e focalizações que impede, a
todo momento, que o discurso se fixe. Em função disso, como percebe Antonio Candido, o
narrador “é capaz de ver tanto como índio quanto como branco”. Na verdade, “a multiplicida-
de dos pontos de vista permite a Darcy Ribeiro desdobrar o universo do seu livro em três seto-
res que se interpenetram: o do índio, o do branco, o dos seres sobrenaturais, que parecem par-
ticipar efetivamente das ações e do destino de cada um” (CANDIDO, 2001, p. 383).
Logo no capítulo inicial, “A morta”, notamos essa diversidade. A conversa entre o dele-
gado Ramiro e seu auxiliar, Noronha, começa com dois discursos unívocos, cada qual profe-
rido por uma das personagens, em que a interlocução é apontada no interior do texto, em fra-
ses isoladas por parênteses. Assim, cada fala, que parece constituir-se como voz absoluta e
linear, revela-se, em verdade, pautada pelo discurso de um outro subjacente. Ramiro é o pri-
meiro a falar: “Mandei chamar você, Noronha, porque sei que fala francês. (Não senhor,
inglês.) Ou isso, quero é ver se você descobre o que este gringo quer. Desconfio da história
dele. (O gringo não terá matado a tal mulher?) Sei lá!” (RIBEIRO, 2001, p. 33). Quando o
narrador passa a voz a Noronha, invertem-se as posições discursivas: então é Noronha o de-
tentor da palavra, e a fala de Ramiro reduz-se a notações entre parênteses no interior dessa
fala. O mesmo ocorre ainda no capítulo “Alma”, que tem três parágrafos: o primeiro e o últi-
mo têm apenas duas ou três linhas e são narrados por voz heterodiegética; o segundo é um
“monólogo” de Alma pontuado pelas respostas da irmã Petrina entre parênteses permeando o
discurso.
O monólogo de Alma e a mudança de posições dos sujeitos discursivos na conversa dos
delegados mostram como a fala de um sujeito absorve a de outro, mas trai também a qualida-
de monologizante de toda alocução. Essa monologia é reduzida no capítulo inicial, quando,
após os discursos isolados e isoladores de Ramiro e Noronha, as falas dos interlocutores de
autonomizam e abrem um diálogo em discurso direto, aparentemente livres uma da outra, mas
ainda se pautando mutuamente. Finalmente tudo se converte em um texto uniforme e linear,
num relatório que descreve, em linguagem oficiosa e documental, os eventos do encontro do
cadáver de Alma, para voltar, na última página, ao discurso direto e ao diálogo.
A mesma diversidade de focalizações parece reproduzir-se, ainda, na estrutura dos capí-
tulos e na mudança de vozes de um a outro ou, às vezes, até no interior de um mesmo capítu-
lo. Assim, após a fala de um narrador, dá-se voz a outro ou a uma diferente focalização, em
geral a uma personagem que foi reificada pela voz ou focalização anterior. Falam, como nar-
187
radores diretos ou, na maioria das vezes, pelo discurso indireto livre, Isaías, Alma, o investi-
gador Nonato, Juca, Teidju, Jaguar. Surgem como contadores de suas próprias histórias ou da
história dos outros, reificados ou reificando, reproduzindo, na macroestrutura discursiva o que
vimos ocorrer na microestrutura por meio da linguagem especular. Um capítulo também se
espelha em outro, que parece, à primeira vista, realmente “outro”, diverso, mas guarda, num
centro, um verme sobrado da decomposição do anterior, ou, ao contrário, o germe de algo que
vai crescer e desenvolver-se no seguinte, como a centelha do yin oculta no yang e vice-versa;
como a mundivisão de Xisto, da noite “embolada com o dia”, um querendo nascer de dentro
do outro. Dessa forma, na sucessão dos capítulos “A morta”, “Anacã”, “Isaías”, “Juca”,
“Ñandeiara”, “Alma”, por exemplo, o segundo capítulo desenvolve o tema da morte aos olhos
do tuxaua mairum depois da morte de Alma ser friamente anunciada pelos delegados de poli-
cia; Isaías revela-se, pelo discurso autodiegético, o oposto do esperado Avá que Anacã anun-
ciou no segundo capítulo; “Juca”, dentre outras coisas, fala como o mestiço “viril” que Isaías
não consegue ser; no capítulo seguinte, a morte de Anacã, que no anterior deu a Juca o ensejo
de voltar, afirma-se, na verdade, como onipresença na tribo; no último, Alma recusa seu meio,
em oposição à sagração dos novos mairuns e a alegria das festas tribais do capítulo anterior,
que, aliás, encerra com a aparição da mirixorã Tuim. E assim por diante, os capítulos vão sur-
gindo, um do outro, refletindo-se ou opondo-se, para permitir a multiplicidade de ângulos de
visão sobre os fatos.
As variações discursivas anunciam, assim, logo de início, as dificuldades de captar o
Outro pela linguagem, mas também apontam para uma possível saída: a da multiplicidade de
vozes e focalizações. Uma das formas de multiplicar essas vozes presentes no Maíra é a pas-
sagem corrente de uma voz a outra no interior de um mesmo texto. Com freqüência o discurso
na terceira pessoa passa para a primeira ou a narração na primeira pessoa do singular passa
para o plural, sem mudança de capítulo ou qualquer outro anúncio explícito para a troca de
voz. O capítulo “A goela” começa com o discurso heterodiegético: “Isaías tira a camisa, ofe-
rece o torso nu ao sol e ao vento”; em seguida inicia-se um diálogo entre ele e Alma. Duas
páginas adiante, encontramos essa passagem do diálogo ao discurso autodiegético:
– Brinca não, Alma. Estou falando sério. Falo do que sinto.
– Tadinho dele, eu sei. Você nem foi parido, foi fundado. Você é a mairunid12.16436(u)--1010.5787(i)-4.779522297393(n)10.576(o)-0.30004]TJ-228.135-4.77687(n)-(c)-1.91977(ê)8.95629( 8(i)6.0992( )-21.9008(p)5818(u)-0.297393(n)10.56(u)-)-0.146571(-1010.0z[(o)-0.30004(12.164322943(l)-4.776u)-0.300048)-0.148696(t.2973]TJl)6.0992(e)-1-0.30004887(m)16.6752(a.164322996(A)4.179)-4.15818(i)-4.77687(d)10.576(o)(l)-4.77687drido.rido é95(163-0.297393(v8(c)-1.911.0261(T)-8.93638(a)-1h977(ê)8.95629-4.15818(a)-1.91977(l)6.0.576(o)o)-0.30004(12.164308(v8(c)-1.9eo)-0.300048(2297393(nd977(ê)8.95629-4.15818(d))8.95629(r)-4.15818(id)10.576(o)(n)10.5787(i)-4.77952(o)-0.300048(.))8.95629(r)-4.15818(id)177 0 Td[( )10.57735594165)]TJ-229.( )-21.9c)8.95629(ê)-1.91977( )f.297393(u.300048(o)-0.278.74243(s))10.577352299492(“)-6.2659(.148696( )-11.0248(V(c)-1.948(.)-0.148696( )-0.148629-4.15818(d))8.95629(ro)8.95629(ê)-1.91977( ))-4.77687(e1.91977(ê)(l)-4.77687)-4.77687(77( )-11.0248(a)-1.91977( )91977( ).919738.742448.135-4.29( )-8 0 Td[( )-292(a)4-212( )-21.9008t-0.148696(0.297393(n))-4.77687(d)1n)-.415u-1013(n)(l)-4.77687di 29-4.15818(z.( )-21.9ã9-4.15818(o)8.95629(ê)-1.n4(i)38i)-4.77687(n)-0.300048(t)n4(i)38io.rid o .la ir48(.)-0.1486(i)6.0992(a-4.15818(id)177 0 Td[( )10.5773174.823015(e)3.74297393(11.0261(T)-v-4.15818(i(g)9.71276(o)-)10.577315.845(ú)-0.295( )-4(i)38iv8(c)-1.911.0261(T)-96( )-0.148629-4.15818(( )-4(i)38ic9-4.15818(o)8.95629(ê))-)-0.1465u)8.95629(ê) iR.74(3o)-e7.000(R.0.3607-0O)-0.30004ndi di a [( )-2919 11-0.30004881-0.30004831-0.300048,(a)-1.919772(a)-1.91977g6(A)4.179(,)-0.148696( )-0.14868.95629(d)-0.(A)4.179(l)-4.77687de1.9197048(c)8.95629(ê)(l)-4.77687).95629(d)-10.56(u)-7
188
O diálogo continua até terminar com o retorno da narração indireta em terceira pessoa:
“Afinal, embicam a canoa numa praia porque Isaías quer aproveitar a última luz da tarde para
vedar uma abertura que se insinua entre as tábuas” (RIBEIRO, 2001, p. 184).
Outras vezes, as diferentes vozes narrativas são separadas apenas por um trecho digres-
sivo, como no capítulo “O bucho”, em que uma oração introduz a passagem da narração hete-
rodiegética e da focalização externa para a autodiegética e de focalização interna, servindo de
condutora, assim, para a exposição direta da vida interior de Isaías:
[Isaías] Deseja e espera que neste quarto novo da velha Missão, mesmo vazia,
Deus esteja mais presente do que ao pé do catre, na cela do convento romano.
Tremen factus sum ego et timeo
Exsintabunt Domino ossa humiliata [...]
Meu Pai, nada aqui me fala de ti. as árvores e os bichos como criaturas,
porque criadas. Eu também estou vazio, (RIBEIRO, 2001, p. 215-216, gri-
fos meus).
Em outros momentos, as vozes se confundem até no mesmo parágrafo: “Bob escolhe
cuidadosamente a coleção de anzóis, experimenta um a um na unha até encontrar os melhores.
Lança e relança, então, atrás da lancha, os feixes de anzóis-de-colher. Nunca atravessei este
estirão sem cobrar um pacu ou um tucunaré, ou os dois. Hoje também quero meus peixes”
(RIBEIRO, 2001, p. 333-334, grifos meus).
Esses recursos vão se combinando para, durante a narração, a perspectiva ir-se movi-
mentando pelas posições possíveis diante do episódio, de forma a tentar expor os diferentes
pontos de vista dos diversos envolvidos, mas também para unificá-los, fundi-los numa visão
que pode ser totalizante se for distribuída. É o que ocorre, por exemplo, no capítulo “O
goto”, em que um processo de focalização múltipla combinado com a mudança de vozes faz
do encontro do casal com os xaeps um momento modelar para mostrar as tensões envolvidas
num evento de choque cultural: o capítulo começa com uma focalização interna em Alma e
Isaías, muda a voz heterodiegética para a narração do próprio Isaías, dessa vez através de uma
gradação:
Quando vão pelo canal lateral, o mais maneiro do Estirão Pequeno, Isaías vê,
na margem, uma fumaça esgarçada que sai de cima das árvores. Olha bem.
Não há praia. Ali é um desses pontos onde a mata chega diretamente ao rio. Só
pode ser xaep, pensa. Este é o limite do território deles. Melhor é não dizer
nada a Alma, nada.
Mas é preciso andar mais rápido. Nem pensar em encostar na margem [...]
Ainda bem que tenho metade do dia pela frente. Direi a Alma que hoje não
podemos parar para buscar comida (RIBEIRO, 2001, p. 197-198, grifos meus).
189
Da voz heterodiegética passa-se, pois, à autodiegética cumprindo-se etapas: uma forma
de discurso direto desprovido de pontuação diferenciadora anuncia o pensamento de Isaías,
que passa então a discurso indireto livre nos trechos seguintes, para finalmente assumir a for-
ma da primeira pessoa. Adiante, a voz do narrador se volta para a paisagem e o grupo xaep
acampado. Segue uma digressão narrativa para descrever costumes xaeps e a focalização
muda para a perspectiva dos xaeps observando a canoa singrando o Iparanã., aproveitando
novamente os recursos do discurso indireto livre: “Já na orla da praiazinha, para onde vieram
correndo por dentro do mato, os xaeps olham pedindo, pedindo que sim, que venham, que
venham” (RIBEIRO, 2001, p. 201).
Processo semelhante é usado para narrar a cerimônia iniciática com a sucuridju, em que
a focalização varia dos olhos dos caçadores aos da sucuri. O narrador começa focalizando a
caça pela perspectiva dos mairuns, até o momento em que eles encontram a sucuri, que assu-
me, então, o foco da narrativa: “Já no meio da tarde dão com a sucuridju deles, quase confun-
dida com os troncos e a vegetação. [...] Vendo os três bichos homens-ubás que vêm subindo o
igarapé a cobra apóia-se ao redor do tronco e levanta a cabeça sobre o corpo esguio, assuntan-
do. [...] Ela olha desconfiada [...] e se perguntando que animaizinhos são esses” (RIBEIRO,
2001, p. 84). A caça ganha voz e podemos contemplar o herói caçador com um olhar menos
magnânimo e venerador.
Alfredo Bosi (2001, p. 389) já comentou que “nos diálogos de Alma e Isaías não há cer-
tezas nem um eixo que parta da vontade para um projeto”. A diversidade de focalizações e
vozes colabora muito para essa falta de direção nas falas dos protagonistas. O capítulo “A
comida” narra um desses diálogos. Ele começa com uma linguagem telegráfica, documental:
“A moça clara, esguia, enche a ficha do Hotel Continental: Alma Freitas, solteira, missionária,
natural do Rio de Janeiro, procedente do Rio. [...] O homem magro e moreno se registra no
mesmo hotel: Isaías Mairum, solteiro, seminarista, natural de Iparanã, Mato Grosso, proce-
dente de Roma” (RIBEIRO, 2001, p. 127). Segue com um discurso em foco dramático, com
indicação das personagens antes de cada fala: “Ela: O senhor é protestante? Ele: Não se-
nhora, católico. Ela: É padre, então? Ele Não senhora, seminarista”. A formalidade da
linguagem diminuiu, mas ainda persiste no automatismo do diálogo e no laconismo das per-
guntas e respostas. No parágrafo seguinte, as falas perderão a indicação dos interlocutores e
parecem fluir para uma intimidade maior, até, enfim, fundirem-se em discurso direto sem no-
tação ou distinção de interlocutores: “Retomam a conversa. O senhor é quase sacerdote? Um
eterno seminarista, apenas isto. E se pode saber por quê? Não. Eu também não sei, não senho-
ra. Senhorita. Quero dizer, senhorita, que esse é assunto meu”. Depois o discurso volta para o
foco dramático, com identificação do sujeito da fala, que agora recebe seu nome próprio:
190
“Alma: [...]. Isaías: [...]” (RIBEIRO, 2001, p. 127). O capítulo termina com a combinação
consagrada de discurso direto e indireto. Mais uma vez as falas que começam isoladas e indi-
viduais fundem-se num discurso único que as lineariza, mas também as reúne num mesmo
lugar.
O coletivo se anuncia também nas descidas dos deuses Maíra e Micura sobre as perso-
nagens humanas para contemplar o mundo criado pelos olhos da criatura. Ali, o coletivo se vê
nos indivíduos. Os capítulos principiam por uma fala do deus informando sua vontade de pe-
netrar uma criatura, que é então instada a falar, após o que a voz intradiegética passa da per-
sonagem divina para a personagem humana, que discorre suas impressões num monólogo.
Finalmente, todas as vozes se confundem no último capítulo, “Indez”, em que, num úni-
co parágrafo, falam todas as personagens da trama. Candido comenta que, nesse capítulo,
as vozes se misturam sem identificação ostensiva, mas perceptível, como se
estivéssemos dentro da corrente de consciência, não de um indivíduo, mas de
uma coletividade díspar, onde se misturam brancos e índios na sua humanida-
de comum. É como se o monólogo autoral do capítulo “Egosum” e a polifonia
do capítulo final, “Indez”, representassem os dois pólos deste belo livro: a sin-
gularidade de cada personagem e o destino cruzado de todos, no vagalhão dos
mundos que se cruzam (2001, p. 385).
A voz coletiva é também entrevista nas passagens em que um narrador aparentemente
extradiegético, com focalização externa, repentinamente inclui-se no mundo mairum que está
descrevendo através de um pronome “nós”, como nos capítulos “Ñandeiara”, “Jurupari” e
“Javari”. No final deste último, esse narrador coletivo afirma que a compreensão verdadeira
de uma cultura pode existir para um sujeito. Por outro lado, alerta para o fato de que mes-
mo um sujeito pode enganar-se acreditando que se conhece por inteiro, uma vez que vive na
superfície de suas máscaras, seus valores e seus costumes inconscientes: “Quem olhar de fora,
como há de entender? Só nós, os de dentro, nos sabemos. Assim mesmo, mais ou menos. Mai-
rum é gente disfarçada” (RIBEIRO, 2001, p. 70, grifo meu). Contrariando, portanto, a lógica
científica que separa sujeito de objeto para a elaboração do conhecimento, aqui sujeito e obje-
to confundem-se pela forma reflexiva: “nós... nos sabemos”.
Nesses momentos, sente-se que pode ser o próprio Isaías a narrar a história, mas ne-
nhum indicativo explícito permite a certeza da identidade desse narrador. É, antes, uma voz
coletiva, a voz de todos, que sente como seu o mundo que descreve. Mesmo porque, no capi-
tulo “Avá”, que segue a “Javari”, o narrador autodiegético separa-se do objeto, como o Avá
que se isolou de seu povo. Aliás, quando esse herói coletivo distancia-se, afirmando-se uma
identidade, ela é masculina, como a lembrar que separar não é uma ação feminina. Como este
191
narrador que, subitamente, revela, por trás de um “nós”, um grupo masculino: “Aí os homens,
que estavam avisados, saltaram nas jacuís que elas [as mulheres] tinham largado no pátio e
se apoderaram delas e do baíto, que passou a ser a casa dos homens. [...] Hoje nós mandamos,
temos os melhores enfeites e nos pintamos mais que elas com urucum e jenipapo” (RIBEIRO,
2001, p. 210). Parece novamente o discurso a trair-se e mostrar que mesmo a coletividade
expressa por um “nós” não deixa de ter um sujeito discursivo e, por isso, veicular uma visão
isolada da realidade.
O conflito entre discursos aparece mais nitidamente marcado nos capítulos em que sur-
ge a personagem Juca, representante da moral patriarcal. Em “Regatão” e outros, a persona-
gem e o narrador se separam nitidamente, marcando o espaço de confronto, a divisão Eu X
Outro, até, como no capítulo citado, às vezes assumir a forma da narração dramática, com a
indicação formal dos interlocutores antes das falas.
o desvelamento do sujeito narrativo ocorre também num capítulo especial localizado
exatamente no centro do livro e intitulado “Egosum”, que, do latim, poderia ser traduzido
como “sou eu”. Antonio Candido (2001, p. 384) nesse capítulo um recurso do autor para
desmascarar a intenção totalizadora de todo relato:
Em Maíra a voz narrativa central não é a do homem Darcy Ribeiro, como num
livro de antropologia, mas a do narrador que ele criou e vem de dentro da fa-
bulação. Ele próprio parece ter querido ressaltar esta distinção fundamental,
pois um momento importante, situado exatamente no meio do livro, onde
quem fala não é o narrador, é claramente ele. Refiro-me ao capítulo “Ego-
sum”, cujo título indica que quem fala agora é o inventor da voz narrativa.
Anunciando-se por meio do discurso em primeira pessoa, esse narrador fala de recorda-
ções, de uma memória de onde surge a história que o romance está narrando. Confessa que o
Avá Isaías “era bororo e se chamava Tiago” e Anacã era caapor e um “companheirão muito
querido”, faz referências à prisão, onde, sabemos, ele escreveu a segunda versão do Maíra, à
Minas natal, para ao final reconhecer que a única sobrevivência do indivíduo se na memó-
ria do Outro: “Só persistimos, se tanto, na usura da memória alheia, à véspera do longo esque-
192
sujeito tenta ocultar-se”. Ele faz o papel de uma espécie de censor dos outros narradores e da
própria narração, “como quem diz: não levem isso a sério, é tudo história inventada”.
Oposto ao metanarrador, que desmascara a impossibilidade da narrativa neutra e absolu-
ta, está a narração de Nonato, a maior expressão do eu cartesiano dentre os vários discursos
do romance, que procura, a todo custo, estabelecer uma direção linear para os fatos narrados
de maneira aparentemente casual e caótica nos demais capítulos do romance. O capítulo “No-
nato”, onde a personagem surge, é uma página reproduzindo um ofício que designa o major
Nonato dos Anjos, da Polícia Federal, para investigar a morte da mulher encontrada por Bec-
ker. A linguagem é formal e documental, artífice e burocrática. O capítulo introduz no roman-
ce, portanto, uma tentativa de ordenar os fatos sob um discurso autoritário e linear. Essa tenta-
tiva manifesta-se, nos capítulos seguintes em que o narrador é Nonato, pela atividade do in-
vestigador que procura conferir uma ordem lógica à caoticidade dos fatos. Seu modo de narrar
é o científico, procurando manter a distância do objeto e evitar intimidade com as testemu-
nhas. Seu papel é o de questionar, recolher e sintetizar numa explicação razoável. No capítulo
“Inquérito”, ele busca “resumir” os “fatos estabelecidos” e sugere a exumação do cadáver e
“exame do corpo-de-delito” para descobrir a causa mortis”. Pela fala de Nonato, as persona-
gens perdem, pois, sua pessoalidade para se reduzirem a dados, é nela que mais se denuncia a
reificação do Outro pelo discurso.
A filiação do discurso de Nonato à moral patriarcal é entrevista no capítulo “Encontro”,
em que o investigador narra o almoço que o apresenta ao colonizador Juca. Nonato elogia-o,
chama-o “negociante [...] dotado de evidente senso de objetividade e notável capacidade de
ação” (RIBEIRO, 2001, p. 175), onde se nota a valorização dos atributos viris no desempenho
de Juca, em oposição a sua descrição de Isaías, um tipinho raquítico, caquético” (RIBEIRO,
2001, p. 176).
Em “Exumação”, o narrador se torna então ontensivamente animoso e escancara o con-
flito do sujeito discursivo com a presença do Outro. Na visita à aldeia mairum, ele não contro-
la sua aversão pelo indígena e pela cultura estranha. Chama os índios “pidões” e os responsa-
biliza por uma falha moral no caráter brasileiro; incomoda-se com sua nudez e seus hábitos
“indecentes”; de bom, as virtudes que se observam em cavalos: têm “bons dentes, [...] boa
pele, [...] são altos e espadaúdos” (RIBEIRO, 2001, p. 221-223). Também em Incúria” se-
guem as adjetivações que contrastam com a complexidade das vidas anteriormente narradas:
A moça se chamava Alma das Neves Freire. Entrou na região em companhia
do tal Isaías, pelo avião do Correio Aéreo Nacional, no dia 1
o
de maio de
1972, pousando no campo de Naruai. Chegou à Missão no dia 19 do mês, aqui
ficando três dias apenas. Não era apenas missionária, nem tinha vínculo com a
193
Missão, com esta ou com qualquer outra. Era por assim dizer (digo eu, não os
padres) uma aventureira em busca de novas experiências. Seria religiosa, di-
zem eles, mas principalmente confusa. Quisera abraçar a carreira religiosa do
mesmo modo que, antes, fizera psicanálise como remédio e saída para uma e-
xistência desregrada (o comentário é meu). No dizer dos padres, era uma po-
bre moça, como tantas hoje em dia, confusa e carente de caridade e compre-
ensão (RIBEIRO, 2001, p. 308, grifos meus).
Aqui desnudam-se os principais disfarces do discurso racionalista e pretensamente cien-
tífico, através de marcas que o sujeito discursivo espalha no texto. Denuncia-se, por exemplo,
mais uma vez, o desprezo de Nonato pelo “talIsaías, o mairum, em comparação com o tra-
tamento que a Alma, que tantas vezes ele fez questão de separar dos indígenas por se tratar
de uma “mulher branca” (RIBEIRO, 2001, p. 222). Por outro lado, iniciando-se com dados
factuais, o excerto termina por adjetivações que assumem a aura da objetividade por habita-
rem, todos, o mesmo lugar, fatos e juízos. Confere mais confiabilidade ao discurso as nota-
ções das fontes dos comentários “digo eu”, “dizem eles”. Assemelha-se, a fala de Nonato,
ao discurso jornalista, que acredita ser objetivo por escolher alguns testemunhos e reuni-los
num texto linear pontuado por verbos dicendi. Introduzido, porém, no fluxo da narrativa de
tantos narradores e focalizações, o leitor percebe os limites da palavra, redutora da realidade,
que lhe parecerá então chegar apenas na pluralidade das vozes. Pelo texto de Nonato, nota-se
como a palavra enfeixa e engaiola a vida: como às galinhas de seu Elias, o relato de Nonato
também quer engaiolar o Outro num rótulo. Nonato explica; é o narrador racionalista, classifi-
cando e aprisionando tudo, canalizando os fatos para uma direção. Ele organiza o que, na nar-
rativa até o momento, apareceu como se fosse por manifestação “espontânea” diante dos o-
lhos do leitor. Por isso, o investigador é a própria consciência de um leitor ávido pela elucida-
ção do enredo caótico e do mistério das coisas narradas: “A moça é que constitui o do ca-
so”, revela (RIBEIRO, 2001, p. 309, 1), e lembramos que é “A morta” que abre as vias para a
narração intrigante do Maíra. Entretanto, a de Nonato é uma voz infensa, pois surge apenas
quando tudoestá dito de muitos modos. Com ela denuncia-se, pois, a falsidade de toda nar-
rativa concêntrica.
Pela investigação frustrada de Nonato, Maíra se agrupa ao lado daquela narrativa poli-
cial moderna, cujo enredo insolúvel destrói a ilusão da possibilidade de explicações raciona-
listas para os fatos. Defende uma pesquisadora do gênero:
A melhor ficção policial contemporânea recorre [...] à convenção do gênero
com uma dupla finalidade. De um lado aproveita o que, já na narrativa de e-
nigma do século 19, apontava para a verdade como construção realizada a par-
tir de uma combinatória de dados. De outro, corrói a confiança nas estruturas
seqüenciais que, identificadas com a própria linha do raciocínio, com a forma
194
da própria razão, acabavam por ordenar a busca da verdade num discurso fe-
chado, que eliminava as probabilidades e abolia o acaso.
Assim, através da investigação policial, o que se questiona é a possibilidade
do conhecimento objetivo do real, a existência mesma de uma realidade fora
da linguagem, deixando-se aflorar o ceticismo difuso na cultura da moderni-
dade tardia: o grande crime a que esta literatura se refere é o ‘assassinatoda
realidade daí que o outro, o crime em torno do qual gira o enredo, torna-se
apenas um jogo (FIGUEIREDO, 2003, p. 15).
Por suas estratégias discursivas, Darcy Ribeiro revela que a narrativa é o lugar do Outro,
verdade tão clara para os mairuns, quando, ao ouvirem os relatos de Isaías sobre os mundos
que conheceu, “viajam com gosto em suas palavras, terra afora, pelo grande mundo dos ou-
tros” (RIBEIRO, 2001, p. 249); quando, em vez da palavra masculina, as mulheres buscam
apreender o Outro pelo toque dos corpos (RIBEIRO, 2001, p. 248 ss.); quando se demoram
nas narrativas orais, sem pressa para chegar ao final conclusivo, pois “história serve para con-
tar, para não esquecer, para não acabar. Eu mesmo ainda tenho muitas que contar, para não
esquecer, para não acabar. Coisa bonita se faz sem pressa, devagar” (RIBEIRO, 2001, p. 245,
grifo meu). Contar-se não é, pois, isolar-se, mas inserir-se no fluxo do eterno, do coletivo.
Nonato tenta desvendar o labirinto, onde “o ser é ao mesmo tempo sujeito e objeto con-
glomerados em estar perdido(BACHELARD, 2003, p. 162-163, grifo do autor). Para se
caminhar em labirintos, como são os fatos e os discursos, é necessária a arte da “lentidão”, a
“paciência e calma empregada pelo explorador de cavernas para se insinuar em frestas muito
estreitas”. O labirinto, uma das principais imagens do caos e dos devaneios da intimidade, “é
um fenômeno psíquico da viscosidade. É a consciência de uma massa dolorosa que se estica
suspirando”, por isso “todo movimento subterrâneo é curvo e difícil” (RIBEIRO, 2001, p.
166). Para mover-se nos caminhos ínvios de um labirinto, é preciso um fio, essa é a ânsia de
Nonato: “O fio de Ariadne é o fio do discurso.” É um “sonho narrado”, um “fio de volta”. O
fio desenrolado ao viajante uma confiança na recuperação do passado: “Minas, aquela,
ainda ó Carlos e haverá, enquanto eu houver. É um território da memória que vou recuperar,
se o tempo der”, protesta o metarranador de “Egosum” (RIBEIRO, 2001, p. 207). Também o
protagonista do Maíra tenta resgatar uma memória mairum, cuja inacessibilidade aponta para
um futuro desesperado, pois “o sonho labiríntico acumula [...] a angústia de um passado de
sofrimento e a ansiedade de um porvir de infortúnios”. Nele, “volta-se às vezes ao mesmo
ponto, mas jamais se volta para trás” (BACHELARD, 2003, p. 164). Drummond estava certo:
Minas não existe mais.
Por isso, ainda que, como toda narrativa, o enredo de Maíra constitua um avanço, um ir
para a frente, a geografia do espaço narrado no romance é uma geografia do retorno, o mapa
de uma volta.
195
7.2 O espaço curvo e a geografia do retorno
O enredo de Maíra é o dos regressos: de Isaías à selva mairum, de Alma ao primitivis-
mo matrístico, dos deuses ao universo humano, da criação ao princípio caótico, do metanarra-
dor à memória ficcionalizada. A emoção mais presente no tom do romance é a saudade de um
mundo perdido, e os deslocamentos em espiral são peculiares aos devaneios labirínticos. “O
labirinto é um sofrimento primário, um sofrimento de infância”, diz Bachelard (2003, p. 167).
“Essas imagens das infelicidades da infância, nós as evocamos depois com tanta saudade que
elas se tornam ambivalentes”.
É com este sentimento nostálgico, de um lugar que não será mais aquele abandonado na
infância, que Isaías percorre o mundo mairum. É também o seu lamento e o que colabora para
a ambigüidade das emoções da personagem: “Somos os que sorriem, com os dentes brancos,
grandes e bons para rir, dos mairuns de verdade. Não os meus, coitado de mim” (RIBEIRO,
2001, p. 72). Ao mesmo tempo que se afirma mairum, Isaías recusa sua ascendência, pois não
consegue adaptar-se a esse mundo esquecido. Traído pelo pensamento racionalista do civili-
zador, no lugar da aldeia real ele um conceito, onde seu espírito binário agora consegue
geometrizar a aldeia:
Eu a vejo e revejo em cada detalhe, vejo até em ângulos que não se pode ver,
como a arrumação antiqüíssima das bandas clânicas. Uma linha invisível parte
a aldeia em duas metades, a do Nascente e a do Poente. Cada uma delas com
seus clãs que têm de ir buscar mulher ou marido na banda oposta. Esta parti-
ção da aldeia em metades retrata no chão a partição do mundo, tal como o
concebemos, sempre dividido em dois; o dia e a noite, o claro e o escuro, o sol
e a lua, o fogo e a água, o vermelho e o azul, e também o macho e a fêmea, o
bom e o ruim, o feio e o bonito. Uma banda da aldeia é do dia, da luz do sol,
do fogo, do amarelo. É onde está minha família Jaguar, entre muitas outras. A
outra banda é noturna, crepuscular, lunar, aquática, azulona. [...] Uma banda
diz da outra que ela é fêmea, ruim e feia. Não se decidiu ainda de quem são
esses defeitos (RIBEIRO, 2001, p. 73, grifos meus).
O que Isaías descreve é a oposição entre o espaço sagrado e o profano, este definido
sempre como o do Outro, isto é, feminino e mal. Entretanto, ele percebe a artificialidade dessa
divisão e a relatividade do “bem” e dos “defeitos” não podemos esquecer que é uma perso-
nagem dos limiares. Sua ambigüidade está justamente em transitar entre duas cosmovisões: a
mairuna e a branca. Isaías partiu sobre a água; retorna pelo ar, o elemento masculino e racio-
nalista: “Volto homem, volto só”, “duas mãos inábeis”, a “cabeça cheia de ladainhas” e um
coração aflito que sai pela boca” (RIBEIRO, 2001, p. 76), um produto da civilização patriar-
196
cal: um depositório de pensamentos inúteis e emoções represadas. “De cima, de fora e de lon-
ge” (RIBEIRO, 2001, p. 73), o olho de Isaías transforma a terra natal numa paisagem civiliza-
da pela cristianização, amalgamando os dois locais milenarmente opostos da selva e da civili-
zação por meio de metáforas cristãs e eclesiais:
A minha mata é um mundo de troncos altos, esguios, brotando do chão limpo,
subindo e subindo para só se esfolharem lá em cima, no alto. A luz só entra ali
em jorros, onde um raio derrubou uma árvore, mas a mata fecha logo essas fé-
ridas. O natural dela é uma penumbra verde, sombria, como uma catedral ro-
mana. Também ali duas vezes ao dia bulício: ao amanhecer e ao anoite-
cer. Então as capelas de macacos guaribas saltam nos galhos e urram desen-
freados, e todo bicho de pena canta ou arrulha esvoaçante com medo da noite
que evém ou com a alegria da manhã. Estas são as duas missas cantadas da
flores virgem: a da manhã e a da tarde (RIBEIRO, 2001, p. 73).
Por outro lado, a descrição confere à selva um status de monumentalidade e sacralidade
que a civilização lhe tinha retirado, pois Maíra valoriza a natureza feminina em oposição à
cultura masculina: a selva é agora o espaço sagrado, o “topos” do herói, nesse caso o povo
mairum. Toda a positividade antes atribuída ao masculino e civilizado passa ao indígena e à
Terra-Mãe. Também na aldeia, o espaço masculino é o artificial, o que geometriza e divide os
seres e as coisas: da casa dos jaguares não se pode ver a dos carcarás, seus opositores, pois
entre as duas está o baíto (RIBEIRO, 2001, p. 109), que, apesar de “centro do mundo”, impe-
de a visão do Outro, pois é um centro artificial, isto é, cultural, criado pelos homens para e-
xercício de seu poder. No espaço social “natural” quem governa é a mulher e o marido vive
como agregado, com direito à comida e à morada em troca do trabalho. A casa, espaço da
convivência espontânea, é antropologicamente o lugar feminino por excelência, o domicílio
da mãe:
A velha Moitá, lá do canto dela, me olha misteriosa como sempre. Ela é a ver-
dadeira chefona desta casa. Os homens aqui não mandam nada. Pode ser que
mandem no baíto deles. Mas dentro de casa, aqui, quem manda, quem deci-
de, quem põe e dispõe são as mulheres. [...] Marido aqui o manda nada
mesmo. É um mundo de mulheres (RIBEIRO, 2001, p. 325).
Igualmente, o mundo se divide em um bom e um mau, hierarquia que, contudo, não cor-
responde à do imaginário tradicional no patriarcado: agora, no crepúsculo, na parte ocidental
do mundo (na América?), estão os valores desejados, enquanto no lado solar, do nascente,
encontra-se o mal:
197
Aqueles fundos do poente são para nós o lado dos selvagens verdadeiros que
conhecemos, os xaeps. Mais adiante, nas terras ignotas, daquele mesmo lado,
estarão os selvagens míticos que já se confundem com fantasmas.
Do lado oposto, no nascente, está o mundo devassado de onde nos vêm a inva-
são, a doença, a brancura. É o lado onde estou agora, é o lado de onde vou in-
do para lá, voltando (RIBEIRO, 2001, p. 73).
O poente, lugar do ocaso e da noturnidade, é também o lugar dos “selvagens verdadei-
ros” para onde Isaías caminha, “voltando”. É um regresso ao espaço da liberdade, da saúde e
da alegria mairum que ele um dia deixou, em oposição a este, do leste, da alvorada, cuja bran-
cura agora é associada à pele do invasor. O Avá volta, portanto, “para ver o dia morrer” (RI-
BEIRO, 2001, p. 75).
A leste da região mato-grossense do Iparanã, está Brasília, a capital da exploração bran-
ca, a “cidade nova”, cuja “gente moderna parece romana”, mas “enormíssima e deserta”, a
“civilização brotando no descampado”, cujo “clima tropical não é propício a obras duradou-
ras”; é a Roma em território brasileiro, a “nova cidade eterna”, onde os mairuns situam “o que
há de mais sinistro”:
Brasília é o mundo mairum que se transfigura. O pior do nosso mundo aqui se
converte. Floresce? Esta região das nascentes do Iparanã para nós é uma espé-
cie de inferno, é a boca do mundo subterrâneo: a morada de Mairahú. Aqui só
viveriam enormes cachorros negros de bocarras gigantescas: os guardiães da
morada de Maíra-Monan, meu Deus-Pai, ingênuo, feroz, caprichoso. Assusta
pensar que justamente a morada de Maíra-Monan é, agora, o umbigo do Brasil
(RIBEIRO, 2001, p. 131).
Dessa forma, o centro do espaço sagrado civilizador é transformado pela cultura mai-
rum no profano, no espaço de fora, terra dos demônios, invertendo o olhar da cultura tradicio-
nal, que localiza na terra selvagem o seu inferno. Em Maíra, o paraíso está no interior da flo-
resta: “Para nós, tudo de bom deve existir lá para a foz do Iparanã, [...] nosso paraíso perdido:
o reino prometido dos desesperados sem remédio. Vamos voltar, dona Alma, é tarde. Muito
temos de andar” (RIBEIRO, 2001, p. 131). O enredo está, pois, contando o mito do paraíso
perdido às avessas: Alma e Isaías voltam à selva e à solidão do homem e da mulher primevos.
Todo retorno a um paraíso é uma volta à mãe, à casa da mãe, a casa natal, “casa de in-
timidade absoluta”, onde se adquire “o sentido da intimidade”. Distante e perdida, ela “é uma
casa de sonhos, a nossa casa onírica” (BACHELARD,2003, p. 75). Faz parte do percurso de
retorno uma recuperação do isolamento que o mundo nos roubou: “Nosso devaneio deseja sua
casa de retiro e a deseja pobre e tranqüila, isolada no pequeno vale. Esse devaneio habitante
adota tudo o que o real lhe oferece, mas logo adapta a pequena morada real a um sonho arcai-
co” (BACHELARD, 2003, p. 78). Por isso a floresta, bem como as ocas dos mairuns, para
198
Alma e Isaías, pareçam tão acolhedores. Aqui elas aparecem congregando as qualidades da
floresta com a concavidade do ventre: “As casas são enormes cestos trançados com troncos
ainda verdes, flexíveis, cobertos de sapé” (RIBEIRO, 2001, p. 71). Sua arquitetura não precisa
de mais do que esse berço vegetal invertido para o conforto das personagens do romance, pois
“o pobre abrigo mostra-se então claramente como o primeiro abrigo, como o abrigo que
cumpre imediatamente sua função de abrigar”, enquanto “a casa das grandes cidades” guarda
apenas “símbolos sociais” (BACHELARD, 2003, p. 80, grifos do autor).
Por isso, nesse lugar da intimidade se vive sobretudo (BACHELARD,2003, p. 81),
como se vivia no útero da mãe, talvez o único lugar em que, solitários, não sofremos a soli-
dão: “Todos os lugares de repouso são maternais” (BACHELARD, 2003, p. 95); por isso
também o espaço privilegiado no Maíra não é o exterior, mas o interior às personagens: “Da-
qui de cima, olhando não lá pra fora, mas pra dentro, para o fundo de mim, eu vejo o meu
mundo. É aqui agora que a minha aldeia mairum respira tal como foi e eu vi, tantos anos”
(RIBEIRO, 2001, p. 73).
Esses espaços fechados, expressivos do ventre materno e relacionados à morte para re-
nascer, são peculiares aos ritos iniciáticos. A caverna, o fosso, a mata cerrada são amiúde lu-
gares privilegiados nesses rituais. É que, como nota Bachelard, “toda iniciação é uma prova
de solidão”, por isso o caminho dos iniciados deve ser um labirinto: “Não há maior solidão do
que a solidão do sonho labiríntico” (BACHELARD, 2003, p. 172). Por outro lado, as imagens
da caminhada no labirinto relacionam-se às torturas íntimas: “Ao que parece, é o movimento
difícil que cria a prisão estreita, que prolonga a tortura. Nesse devaneio de labirinto ativo,
encontra-se a sinonímia da torção e da tortura” (RIBEIRO, 2001, p. 183). Daí novamente as
figuras circulares, tão presentes no enredo de Maíra, especialmente nas falas de Isaías, como
esta, em que a aldeia mairum descansa no bojo materno do rio: Qualquer dia verei este sol,
meu velho Sol-Maíra, incandescendo, como uma lâmina de metal, brilhantíssima, as águas do
Iparanã. Verei a meia-roda preguiçosa, longuíssima que ele desenha ao redor da aldeia, dos
roçados novos e velhos e das imensas matas da Lagoa Negra” (RIBEIRO, 2001, p. 72). Ba-
chelard (2003, p. 114-115) afirma: “Quem desenha um rculo atribuindo-lhe valores de sím-
bolo, sonha mais ou menos vagamente com um ventre” (grifo do autor). Por isso, imaginando
do alto a circularidade do rio e da aldeia, Isaías já se sente num ventre: “Fonte minha, raiz
minha, me espera, lá vou! Vou voltando com pressa no bojo deste avião que corta o ar por
cima do mar oceano” (RIBEIRO, 2001, p. 75, grifo meu).
Aqui, a aldeia é também descrita como “raiz”, o que não surpreende, uma vez que é
mesmo às raízes que Isaías retorna. Nesse sentido, a raiz aparece em outro momento, nova-
199
mente associada à natureza mairum de Isaías e dessa vez veiculando mais visivelmente as
imagens da intimidade e da introversão:
As coisas todas que aprendi formam uma espécie de roupa do meu espírito. É
uma camada superficial, solta, frouxa. No fundo, como um caroço, está meu
sentimento do mundo de mairum. Esta é a minha raiz mais funda. É a semente.
É aquilo que, fazendo de mim um homem, me faz, ao mesmo tempo, membro
de minha tribo, gente Mairum. Este sentimento é a minha essência, meu ser
(RIBEIRO, 2001, p. 183).
Entretanto, antes dessas duas ocorrências, o motivo da raiz aparecia numa imagem
mais insólita: “A maior delas [das casas], o baíto, foi por muitos anos o ponto de referência de
padre Vecchio, que não descansou até construir uma capela ainda maior. Mas a cruz nunca
pôde competir em grandeza com o adorno do baíto: dois troncos secos de árvores inteiras com
as raízes para fora, atados nas pontas da cumeeira” (RIBEIRO, 2001, p. 71). A cruz é uma
estilização da Árvore da Vida, e se ergue no alto do Calvário como esta no centro do Paraíso e
Jesus e a Virgem são projeções especulares de Adão e Eva que recuperam, por sua santidade,
o que o primeiro casal perdeu (BARROS, 2004, p. 151). Substituir novamente a cruz pela
árvore como símbolo religioso é recusar o cristianismo pelo paganismo e a esquematização
conceitual pela concretude natural, trocar as traves de madeira por “árvores inteiras”. Por ou-
tro lado, as copas dessas árvores são as raízes à mostra, um símbolo ctônico e não urânico.
Bachelard (2003, p. 242) associa a raiz ao arquétipo da serpente e aos símbolos do labi-
rinto e da espiral, todos relacionados aos devaneios da intimidade: “A verdadeira comedora de
terra, a serpente mais terrestre de todas, é a raiz”. Por isso, essa árvore colmada de raízes é
outra imagem da noturnidade: “A raiz é a árvore misteriosa, é a árvore subterrânea, a árvore
invertida” (BACHELARD, 2003, p. 225). A raiz é, então “o morto vivo”, que faz sentir “in-
timamente” a vida subterrânea, pela qual “a alma sonhante sabe que essa vida é um longo
sono, uma morte enlanguescida, lenta” (BACHELARD, 2003, p. 223). A raiz é, portanto,
símbolo dos mistérios que envolvem vida e morte, como já vimos ser um dos temas de Maíra,
e, por suas ligações com o mundo subterrâneo, concede à floresta uma virtude sepulcral:
O sonho das profundezas que acompanha a imagem da raiz prolonga sua mis-
teriosa estada até as regiões infernais. [...] Assim, uma espécie de síntese ativa
da vida e da morte aparece muitas vezes na imaginação da raiz. A raiz não é
enterrada passivamente, ela é o seu próprio coveiro, ela se enterra, não cessa
de se enterrar. A floresta é o mais romântico dos cemitérios (BACHELARD,
2003, p. 239).
200
Além disso, como “raiz animalizada”, a serpente é, “na ordem das imagens, o traço de
união entre o reino vegetal e o reino animal” (BACHELARD, 2003, p. 202). Ambas, serpente
e raiz, constituem, portanto, figuras de fronteiras. Como a serpente, a espiral e o labirinto, ela
une pontas e torna-se símbolo da eternidade e do tempo cíclico. É que retornar é desfazer o
tempo e, quando voltamos aos lugares, o tempo não avança: na casa da infância nunca en-
velhecemos; por isso, voltar é querer ser eterno.
7.3 O tempo urobórico de “Maíra”
Na “boca da mata”, Isaías diz a Alma:
Eu sdaqui há tempos, mas conheço cada curva desse Iparanã dos meus mai-
runs. Tenho todo ele impresso como um mapa, dentro de mim. Este rancho
pobre é o mesmo que eu via lá de Roma, pensando no regresso. A única novi-
dade é o avião. Antes íamos a cavalo viajando semanas, daqui até Goiás Ve-
lho. Eu sabia que o tempo aqui estava parado, como que esperando por mim
(RIBEIRO, 2001, p. 158).
Ao rever o lugar da infância, o mundo da mãe, temos uma sensação de eternidade. Pelos
signos da profundidade, “descemos a um passado”, nota Bachelard. E, como “descer, devane-
ando, num mundo em profundidade, em uma casa que assinala a cada passo a sua profundida-
de, é também descer em nós mesmos” (BACHELARD, 2003, p. 96), para a personagem en-
simesmada, vítima da espiral das imagens da intimidade e da mãe, o tempo nunca é uma reta,
mas sempre uma circularidade.
Por isso, para Neumann e outros junguianos, como Campbell, Bachelard e Durand, se-
rão mbolos preferenciais do estágio urobórico da Grande Mãe, cíclico e holístico, as ima-
gens do círculo: “O pensamento simbólico retratado nessas imagens do redondo busca captar
conteúdos que mesmo a nossa consciência atual consegue entender como paradoxos”. O
redondo é o que contém, o que circula e engloba, como o útero materno primordial, que con-
juga em íntima união o suposto antagonismo entre masculino e feminino, através da assexua-
lidade embrionária e da reunião perfeita entre mãe e filho na vida intra-uterina, em que o ego
flutua “no lago dos não-nascidos” (NEUMANN, 2003, p. 29-31). O princípio masculino ainda
não se separou, tudo é androginia e feminilidade: “O domínio da uroboros maternal caracteri-
za-se pelo fato de que os elementos ‘masculinos’, mais tarde atribuídos ao pai, ainda são parte
integrante da natureza urobórica da Grande Mãe” (NEUMANN, 2003, p. 82). Inconsciência,
indiferenciação, instintividade são as qualidades, traduzíveis umas nas outras, desse estado
201
que precede até a dor da consciência da morte e da separação. A vida é um “agora e sempre”
202
Por outro lado, as referências temporais indefinidas e imprecisas do romance sugerem
ações estácionárias, pouco demarcadas cronologicamente. Não se conta o tempo depois que
Alma e Isaías estão entre os mairuns: “Correm os dias livres, sem se enroscar em semanas, e
as semanas soltas, sem somar meses” (RIBEIRO, 2001, p. 339). Como o espaço, o tempo
também se organiza “pela idéia do círculo, símbolo solar dos mairuns” (COELHO, 2001, p.
419), e o enredo se apresenta como uma justaposição de ciclos de histórias:
O primeiro círculo constrói-se com o capítulo “A morta” e se fecha com “In-
dez”. O segundo forma-se a partir do capítulo “Anacã” e se fecha em “Tuxau-
areté”. O primeiro círculo refere-se às histórias dos civilizados e o segundo
àquelas dos mairuns. Como o autor implícito tem o intuito de manter a ameaça
de morte dos mairuns e, ao mesmo tempo, afastá-la, na organização do espaço
textual, faz o mundo indígena ressurgir em cada parte do romance. Assim, em
“Antífona”, primeira parte de Maíra, os rituais de reintegração à vida e de in-
tegração à morte iniciam e terminam respectivamente em “Ñandeiara” e “Ma-
non”. Os mitos em “Homilia” começam em “Mairahú” e terminam em “Maíra
e Micura”. Também a travessia, encaixada em “Homilia”, começa em A co-
mida” e termina em “O vômito” (COELHO, 2001, p. 420).
Seguem ainda o ciclo das encarnações de Maíra e Micura e o ciclo do Corpus, última
parte do romance, em que, da “Mosaingar”, Alma é transformada na “Nossa Senhora Grávida
de Deus”. Como essas histórias se entrecruzam, “as prolepses e as analepses remetem ao futu-
ro e ao passado, mantendo, paradoxalmente, em Maíra, a idéia de presente” (COELHO, 2001,
p. 421).
O presente eterno é o tempo dos deuses, o tempo mítico e ritualístico: “Antigamente é o
tempo do Sem-Nome”, (RIBEIRO, 2001, p. 191, 1), diz o narrador dos mitos mairuns, confe-
rindo ao advérbio indicador do passado um verbo no presente. “Através da narração dos ritos
em Maíra, torna-se evidente como os mairuns guardam a memória do deus Maíra, reafirman-
do o tempo e o espaço da origem”, observa Haydée Ribeiro Coelho (2001, p. 417). “Na medi-
da em que isso ocorre, fica claro que têm uma concepção cíclica da História e do Tempo”.
Alma reconhece o tempo estacionário entre os mairuns quando diz: “Há pouco tempo, aqui,
quer dizer: há séculos” (RIBEIRO, 2001, p. 328).
Num dos últimos capítulos do romance, a onipresença do tempo mítico parece chegar à
missão e mergulhá-la num aborrecido presente eterno. A cena é descrita como uma cerimônia
religiosa, com suas simetrias e ritmações, e, a cada ação narrada no tempo presente, o narra-
dor acrescenta um “como todas as tardes”, que torna a ação iterativa. Sete vezes a expressão é
registrada no capítulo, que se encerra pela consciência dos velhos padres diante da fatalidade
de um eterno retorno:
203
Padre Aquino: – Fechamos o círculo outra vez, como todas as tardes. [...] Está
é na hora de morrer, meu padre. [...] Hoje, como todas as tardes, nos repe-
timos.
Padre Vecchio: Não poderíamos pensar em alternativas? Houve alguma al-
ternativa ao que fizemos que teria sido melhor? Haverá alguma alternativa pa-
ra os que começam agora? [...] Que conselhos nós, daqui do fim, podíamos dar
a eles que estão lá no começo? Recomeço (RIBEIRO, 2001, p. 365).
Esse tempo ritualístico, ou tempo litúrgico, das cerimônias religiosas, apresenta-se line-
ar na expressão ritual, mas, no conteúdo do que comemora remete ao tempo próprio dos mi-
tos, existindo “numa espécie de presente intemporal” (POMIAN apud NUNES, 1995, p. 21).
Pela ritualização dos atos cotidianos, o tempo da rotina diária alia-se ao tempo do mito, ambos
caracterizados pela repetição. Assim, na festa de Jurupari,
através da noite, do dia e da noite que vem, comemos, falamos e rimos; co-
memos, bebemos, andamos, cagamos; comemos, bebemos, arrotamos, cuspi-
mos, vomitamos, falamos e rimos; comemos, namoramos, dançamos, fode-
mos, dormimos; bebemos e vomitamos; comemos, cagamos, mijamos, peida-
mos, falamos e ouvimos; comemos, andamos, namoramos, cantamos, dança-
mos, fodemos, dormimos; coemos, bebemos, cagamos, mijamos, choramos e
rimos (RIBEIRO, 2001, p. 105).
Na repetição aleatória de atos que, aliás, gravitam em torno das três esferas do imaginá-
rio mítico de Durand a nutrição, o sexo e o pensamento –, a celebração religiosa revela ao
mesmo tempo sua natureza iterativa e sua aliança com as ações humanas triviais. É o tempo
litúrgico que enobrece, pois, a história marginal, aquela desprovida dos fatos monumentais
sobre os quais se pauta a história oficial. Esse é o tempo dos mairuns, que, segundo Alfredo
Bosi, é o maior bem da cultura indígena:
O branco traz à selva as técnicas e o dinheiro que, segundo o consenso univer-
sal, tornam a vida mais fácil; mas o tempo que se ganha com as máquinas da
civilização e as notas de papel é um tempo finito, é um tempo que não cruza a
barreira da morte, um tempo em que o prazer é fugaz e o mal não conhece re-
missão.
De todas as extorsões sofridas pelo índio (e Maíra nos conta que foram mui-
tas), talvez a mais atroz tenha sido precisamente esta: o civilizado roubou vio-
lentamente do índio o gozo daquele tempo-sem-tempo que é a vida alheia ao
trabalho forçado, a vida que se passa magicamente no rito e se prolonga no
convívio com os mortos (BOSI, 2001, p. 388).
O tempo litúrgico e o mítico dialogam, alimentando-se mutuamente. No ritual de inicia-
ção com a sucuridju, que recria uma imagem da uroboros matrística, os eventos da dominação
da sucuri e da caça ao jaguar ensejam, no final, os novos mitos da tribo, novas histórias e na
verdade sempre a mesma: “De tarde todos saem alegres atrás de Jaguar e Max
ĩ, que tomam o
204
rumo da praia. Maxĩ começa a contar ali naquela hora uma história que continua contando
todo dia e que nunca acabará de contar nos dias de sua vida inteira” (RIBEIRO, 2001, p. 89).
É a história da luta de Jaguar com a onça:
Só não pode contar sentado, quieto. [...] Contando, Maxĩ fala, grita, salta, dan-
ça, esturra, morde. Agora é o gatão de sobre as patas, assustador. Logo é
Jaguar armado de arco e flecha ou estendido em lança azagaia, puro nervo,
músculo e olho. Instantâneo, Maxĩ salta de tigre a homem e volta de gente a
onça. Às vezes consegue ser, no mesmo instante, gente e onça: Jaguar e jagua-
rum, enrolados um no outro (RIBEIRO, 2001, p. 89).
Assim, os fatos triviais e o dia-a-dia mairum alcançam a eternidade ao se codificarem
no mito e no relato, lugar, aliás, em que também se fundem todos os seres e não existem mais
sujeitos e objetos. A narrativa vai, então, perpetuando a vida dos mairuns, que sempre, no
entanto, voltam ao mundo pelo ritual, retornam à origem da vida e dos fatos para avançar.
Assim, o progresso, para a cosmovisão mairum, pode estar num tempo cíclico, na memória
da alma coletiva: a sucuri deve “continuar viva, testemunhando [...] a ousadia mairum” (RI-
BEIRO, 2001, p. 85). Pela representação do enunciado, no ritual como na dramatização do
relato oral de Maxĩ, narrador e narrativa se aproximam. É o evento maior narrando-se pelo
sujeito, seu veículo.
Por isso o mito é o ideal de todo escritor, o ideal talvez de Darcy Ribeiro, que fez dele o
condutor do tempo no seu romance. A narrativa absoluta é uma ação sem sujeito. Essa é a
sabedoria mairum: se no início está o Verbo, a palavra final é sempre a da Vida.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.
(João Cabral de Melo Neto)
O tema que desenvolvo nesta pesquisa de mestrado é a presença do princípio arquetípi-
co feminino no romance Maíra, do antropólogo e romancista mineiro Darcy Ribeiro.
Quando professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), tive oportuni-
dade de integrar um grupo de estudos sobre literatura indigenista, onde pude aprofundar leitu-
ras, impressões e análises de obras representativas do gênero, como Macunaíma, de Mário de
Andrade, e o romance supracitado de Darcy Ribeiro. As leituras e interpretações que empre-
endi na ocasião levaram-me a notar nas respectivas obras a presença recorrente de imagens
antropologicamente relacionadas a princípios arquetípicos femininos de representação da rea-
lidade, o que me estimulou a aprofundar as análises com o fim de verificar objetiva e cientifi-
camente a presença dessas imagens e buscar uma melhor compreensão de sua função na nar-
rativa do antropólogo, que elabora uma ficção representativa sobre a questão da alteridade.
A literatura produzida até o culo XIX, de acordo com o que propõem folcloristas e
mitólogos como Propp e Campbell, segue uma matriz estrutural que tematiza e formaliza os
valores masculinos da ação e da competição. Ao contrário, noto na literatura de Darcy Ribeiro
a opção antipatriarcal por aquelas imagens e formas que destituem o primado masculino do
herói individualista às voltas com uma luta contra opositores e integra à estrutura narrativa um
estado humano anterior à própria criação da literatura e da linguagem: a da experiência da
unidade do sujeito no Outro. A dominância do mal e das forças caóticas na fábula do roman-
ce, a experiência dos protagonistas com a alteridade, as imagens míticas e simbólicas da
Grande Mãe, o favorecimento ideológico de uma concepção social e cósmica matrilinear, a
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energia integracionista feminina movendo o enredo, a recorrência à visão mítica contra a lógi-
co-racional, a enunciação desprivilegiando o sujeito em favor da pluralidade coletiva são al-
guns dos elementos que pretendo expor nas páginas seguintes para avaliar em que medida
uma antropologia do feminino regra a tessitura da narrativa em Maíra.
Para desenvolver o método analítico, apoiei-me em autores consagrados da crítica míti-
ca e arquetípica, como E. M. Meletínski, Northrop Frye, Mircea Eliade, Erich Neumann e
Joseph Campbell. Entretanto, como minha pesquisa objetiva estabelecer distinções entre a
narrativa tradicional e uma nova literatura, que tematiza a alteridade a partir de diferenças de
gêneros presentes no imaginário e na estrutura textual, impunha-se como primeira medida
metodológica a identificação de dois sistemas de imagens em oposição, elaborados, cada um,
sobre uma diversa historicidade de ambos os sujeitos antropológicos: o masculino e o femini-
no. Para tanto, parti da teoria do biólogo chileno Humberto R. Maturana, que distingue a cul-
tura ocidental entre duas matrizes: a patriarcal, vinculada a um imaginário masculino; e a ma-
trística, pré-patriarcal, marcada por uma espiritualidade arquetipicamente feminina. Combi-
nando as teorias de Maturana a pesquisas similares sobre as diferenças de gênero no imaginá-
rio desenvolvidas por outros autores, em especial Simone de Beauvoir e Gilbert Durand, iden-
tifiquei traços de uma narrativa canônica para o mito e a literatura desenvolvidos sob a socie-
dade patriarcal aliás, a única literatura escrita e cultivada que nossa civilização conhece. A
partir dessa matriz, foi possível verificar como o romance de Darcy Ribeiro elabora-se como
uma negação dessas características.
Uma narrativa da alteridade, como pretendo demonstrar, privilegia aspectos simbólicos
e arquetípicos do imaginário feminino, ou do que Gilbert Durand chama de Regime Noturno
da imagem, em oposição ao Regime Diurno, este caracteristicamente ligado a uma cosmovi-
são masculina e patriarcal. O Regime Noturno distingue-se por um processo de eufemização
das imagens sombrias e negativas do imaginário patriarcal, atribuídas a uma essência femini-
na. Por meio dele, são positivadas as manifestações arquetípicas do caos e os motivos do cor-
po e da morte.
Para encaminhar a análise de Maíra, dividi esta dissertação em sete capítulos.
O primeiro apresenta o autor Darcy Ribeiro, seu percurso pelo tema da alteridade e pela
preocupação com o indigenismo e a gênese de Maíra, que ficcionaliza o problema do Outro.
No segundo capítulo concentrei as teorias metodológicas. Ali exponho principalmente a
tese de Maturana sobre uma sociedade matrística e pré-patriarcal e suas diferenças para com o
patriarcado que se estabeleceu cerca de cinco mil anos atrás. Apoiei-me, também, sobre os
estudos de Gilbert Durand, cuja divisão do imaginário em dois regimes adapta-se bastante
bem a uma análise da imagem com base na experiência dos gêneros, para estabelecer a passa-
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gem da cultura à literatura, mostrando como a narrativa no ocidente recebeu marcas de um
imaginário masculino, em seu conteúdo e em sua forma, graças à cultura patriarcal hegemôni-
ca. Numa perspectiva histórica, procurei mostrar como a questão da alteridade evolui para
tornar-se problema privilegiado na alta modernidade e, finalmente, constituir tema da literatu-
ra no século XX.
Nos capítulos seguintes, passo a analisar mais proximamente o romance de Darcy Ri-
beiro, tomando como ponto de partida aquilo que a visão patriarcal confinou como imagens
femininas no mito e na literatura, identificando-as como as manifestações da alteridade no
interior do patriarcado.
Assim, o terceiro capítulo busca identificar uma poética do corpo na condução do enre-
do de Maíra, especialmente através da personagem Alma, que recupera a figura da prostituta
sagrada e hábitos cotidianos e ritualísticos próprios das sociedades matrísticas descritas por
Maturana. Essa poética do corpo e da matéria estende-se a uma imaginação assentada no que
Gaston Bachelard definiu como devaneios da Terra e caracteriza o estilo de Darcy Ribeiro no
romance.
O quarto capítulo analisa as manifestações do arquétipo do caos no enredo, especial-
mente por meio de uma estratégia narrativa fundamentada na imagem do duplo e do andrógi-
no.
O quinto capítulo desdobra o imaginário do corpo e do caos num imaginário da morte,
um dos principais processos vitais negativados pela cultura patriarcal, mas que a cultura ma-
trística, bem como o imaginário presente em Maíra, tratam de maneira positiva e pacífica.
No capítulo sexto, exponho a trajetória do herói, do mito à literatura, buscando percorrer
sua evolução também no interior de uma história literária do ocidente, para contrapor essa
imagem à fábula de Maíra, em que o herói masculino e solar cede lugar a um herói “femini-
no” e lunar, que inverte também a moral patriarcal da conquista e da expansão.
Finalmente, no capítulo sete, mostro como a opção por uma ficcionalização do Outro
resulta ainda em peculiaridades na voz, no tempo e no espaço narrativo, quebrando a lineari-
dade do discurso e instituindo tempo e espaço curvilíneos, marcados por uma narrativa do
retorno e do ciclo.
Juntas, essas características apontam para uma predominância do imaginário antropoló-
gico feminino no romance de Darcy Ribeiro e mostram como uma opção pelo Outro, no patri-
arcado, não pode fugir a modos de ficcionalizar que restabelecem, por outro lado, uma espécie
de primado da mulher na narrativa.
Num mundo da luz paterna, Maíra nos mostra que falar da sombra é voltar à Mãe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dux femina facti. (Virgílio)
o Outro pode ser emissor de sua própria palavra. Ao abordar, em Maíra, o tema da
alteridade, Darcy Ribeiro não escamoteia o problema. Na impossibilidade de falar legitima-
mente no lugar de um terceiro, o antropólogo ficcionista cumpre seu projeto denunciando e
revertendo o discurso logocêntrico e unidirecional do ocidente. É que, se existe uma forma de
fazer-se representar o Outro no relato de um sujeito, isso pode ocorrer na abdicação da in-
tenção totalitária e hegemônica de toda palavra e no desmascaramento das qualidades redu-
cionistas de toda linguagem.
Dessa maneira, se, na narrativa tradicional, o leitor conhecia, a princípio, um mundo or-
ganizado, cuja ordem seria, em seguida, ameaçada, até a restituição final de uma nova harmo-
nia, em Maíra o leitor é atirado, logo ao início da trama, ao meio de uma crise da qual as per-
sonagens buscam elevar-se com um sentido.
As personagens de Maíra não possuem, como a personagem clássica, por assim dizer,
um projeto narrativo, mas seu projeto é justamente encontrar essa causa, esse motivo para
lançar-se ao mundo incriado. Seu projeto é reordenar o mundo todo, não mais vencê-lo ou
enfrentar os obstáculos que ele impõe a sua empresa. É uma recriação depois da crise escato-
lógica. Como tomadas de uma “síndrome de Macunaíma”, a personagem caminha entregue
aos motivos externos, que não são nem razões legítimas da ação, mas a própria ação insubor-
dinada à vontade e desviando-a de rumo a todo instante, evitando que nela se enforme uma
identidade individual ou um caráter. A uma força narrativa individual vem substituir a força
da narrativa, do mito, da voz coletiva, em que a não-linearidade constrói um relato onde o
próprio corpo mítico se protagoniza. A personagem é, pois, o Um, o caos, o grupo.
206
Maíra é uma narrativa que discorre sobre crises, encruzilhadas, escolhas, ambigüidades.
Os mairuns dividem o mundo em dois, mas não sabem mais a qual dos lados atribuir o bem.
Na falência do mundo do deus Maíra, é o patriarcado que também se arruína e não encontra
mais seus valores, seja no mundo natural, seja no cultural.
A saída é a visão matrística. Mau ou bom encontram sentido no olhar unilateral do
pensamento patriarcal. A perspectiva nativista ou do caos é integradora, como a daqueles po-
vos que mantêm traços da cosmovisão matrística. Na diferença, no Não-Ser, está a semente
para a nova vida; na negação (vale dizer, na morte do Eu) está a fonte da energia vital. A uni-
lateralidade não serve mais nesse mundo. O caos está acima de valores ou conceitos; nem mal
nem bem, morte mas, por isso mesmo, vida, como Core, senhora da morte para o renascimen-
to. É o lugar onde se redime a culpa original. Tudo é e não se pode fugir ao destino do Todo.
Por isso, ao recorrer a imagens e recursos ficcionais que permitam a manifestação do
Outro no discurso, Darcy Ribeiro inevitavelmente restitui à narrativa arquétipos da alteridade,
que, no sistema patriarcal em que nos criamos, remetem ao elemento feminino. A mulher é o
Outro que não pode ser suprimido, pois é ela quem a Vida. No patriarcado, que lutou por
negar a materialidade e a morte em benefício do espírito e de uma imortalidade espiritual e
elevou sua cultura fundamentando-a sobre uma ordem despótica e excludente e sobre um sis-
tema de pensamento unilateral e logocêntrico, tudo o que ameaçava esses valores recebeu a
marca do sombrio e do feminino. Destarte, ao desmascarar a narrativa ocidental do patriarca-
do, a tessitura de Maíra elabora-se sobre a eufemização do estigma negativo que o patriarcado
concedeu aos motivos do corpo e da morte e ao arquétipo do caos. Essa eufemização constitui
o traço característico do que Gilbert Durand denominou o Regime Noturno da imagem.
A concentração da trama no imaginário do corpo resultou no predomínio dos devaneios
da intimidade identificados por Gaston Bachelard nas suas investigações sobre a imaginação
da matéria terrestre, o elemento que, segundo o autor, mais se presta às imaginações que en-
volvem tensões entre sujeito e objeto, entre um Eu e um Outro. Esses devaneios, por sua vez,
conduzem a uma estrutura dialética, que vimos ser uma das qualidades estilísticas do Maíra.
A tematização da morte no romance, por sua vez, inverte a axiologia da narrativa patri-
arcal, que se caracterizava pelo conflito entre vida e morte, um herói solar e seus antagonistas
ctônicos e negativos. A morte, em Maíra, convertida no feminino benfazejo, não aparece co-
mo oposição à vontade humana, mas como o repouso no ventre da Mãe, um retorno à intimi-
dade da matéria e à vida inconsciente e restauradora da harmonia entre o sujeito e o mundo.
Finalmente, a opção pelo caos contra a ordem ocidental desestabiliza uma direção dis-
cursiva e reverte paradigmas de voz, tempo e espaço narrativos. A narração distribui-se por
um corpo coletivo de personagens, através da mudança de voz ou focalização e por meio de
207
recursos narrativos como o discurso indireto livre. A ordem temporal é circular e o enredo
caracteriza-se por uma vontade de retorno, com Isaías voltando aos mairuns, Maíra e Micura
voltando ao mundo, Nonato voltando aos fatos passados para investigar a morte de Alma, a
própria direção analéptica da narração voltando para relatar uma anterioridade de um presente
que, contudo, não se explica e, portanto, não termina. Finalmente, o espaço narrativo também
é marcado por uma dinâmica do regresso, com o espaço tradicionalmente hostil da selva ser-
vindo agora de abrigo e refúgio para a alma desordenada pelo lugar da cultura e da civiliza-
ção.
O Regime Noturno da imagem e as inversões na estrutura da narrativa clássica propõem
formas de representação ficcional que se aproximam de uma cosmovisão pré-patriarcal, que
Humberto Maturana denominou sistema matrístico. Com isso, nota-se que, do ponto de vista
arquetípico e antropológico, existe uma sexualidade que é textual, e não se confunde com o
sexo do autor. Uma narrativa da alteridade, como pretendi mostrar, exibe-se num texto mati-
zado por qualidades de um imaginário que não é mais o patriarcal clássico.
Certamente nada disso autoriza a afirmar que o mito e a literatura pudessem constituir-
se de outra forma se os papéis históricos dos neros fossem inversos. A jornada do herói é
expressão do combate criativo e, se fosse da mulher o domínio cultural nos últimos cinco mil
anos, é ainda bem possível e até provável que os valores exaltados fossem igualmente os
da ação e da coragem, da luz e do espírito, mas desta vez como atributos do feminino. Não se
pode, portanto, afirmar, com os dados que temos, o que seria a literatura tradicional se elabo-
rada a partir da experiência histórica feminina. Mas podemos declarar com certeza que trazer,
na literatura, os elementos do imaginário feminino ao primeiro plano é fazer uma literatura da
alteridade bem como, no sentido oposto, tematizar a alteridade implica urdir a narrativa a par-
tir daquele imaginário.
Também não se pode afirmar que essa narrativa, marcada pelo imaginário antropológico
feminino e constituinte, pois, de um discurso da alteridade arquetípica, afirme-se como uma
literatura “feminina”. Não sabemos o que isto seria, pois, até o século XX, a mulher ainda não
tinha se afirmado como sujeito da cultura, mesmo que Safos, Maries de France e outras bus-
cassem fazer valer uma presença feminina na tradição patriarcal.
O autor estudado por esta pesquisa é um representante do gênero masculino. Entretanto,
como espero ter demonstrado, seu texto é peculiarmente caracterizado por qualidades arquetí-
picas relacionadas a um modo “feminino” ou, antes, matrístico, de representar o mundo. Tal-
vez fosse interessante, nesse sentido, distinguir então uma literatura feminina de uma literatu-
ra ginecocêntrica, uma literatura escrita por mulheres e uma literatura de imaginário antropo-
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lógico feminino; então talvez notássemos que existe mais “feminino” em Darcy Ribeiro do
que em Madame de Lafayette.
Todavia, se a mulher se expressa na literatura como o Outro, quando ela traz para as re-
presentações literárias suas verdades, será que pode eximir-se de elaborá-los numa tradição
literária que é patriarcal? Talvez uma pragmática dos neros na literatura pudesse libertar
uma arte feminina de sua imanência na tradição patriarcal. Apenas quando soubermos em que
medida os meios de produção e representação literária conduziam e conduzem uma literatura
feminina, talvez possamos identificar o que é genuinamente signo da mulher na literatura.
Por outro lado, por que não acreditar que o sujeito feminino possa se expressar justa-
mente a partir daqueles papéis e valores que o constituíram historicamente como o Outro?
Não virá justamente daí sua força ontológica? O fato de terem sido relegados ao segundo pla-
no da alteridade não significa que esses papéis e valores não possam elevar-se ao primeiro
plano de uma afirmação autônoma de identidade. Basta, para isso, não defini-los com relação
a um anterior primeiro. É pela auto-afirmação que o objeto se torna sujeito, que o Outro
supera sua condição de alteridade. Negar o imaginário da alteridade é negar duplamente sua
possibilidade de ascender ao centro da cultura, é mais uma vez valorizar o discurso do Eu
hegemônico. Transcender a alteridade não é negá-la; isso a cultura hegemônica o faz. Pelo
contrário, é afirmá-la como bem e negar nela apenas o mal que a história lhe conferiu.
Se existe, pois, uma literatura hegemônica e ela é patriarcal, qualquer subversão de seus
signos não apenas renova seus padrões, mas pode revelar a matrilinearidade dos novos. O
Não-Ser é o Outro, e o Outro do patriarcado é a mulher. Portanto, talvez não seja absoluta-
mente coincidência uma desestabilização dos padrões narrativos ocorrer historicamente no
momento de ascensão das mulheres ao espaço social e cultural no ocidente. Sabemos que a
literatura acompanha os movimentos sociais e a renovação dos mitos. Como o mito androcên-
trico conferiu à mulher as esferas do caos e da morte, é inevitável que a emergência do femi-
nino na cultura patriarcal será qualificada por uma emergência da desordem e das forças caó-
ticas. A primeira manifestação do feminino numa ordem que o expulsou como indesejável
alienígena seum movimento de desestabilização do estratificado e de inversão da ordem
reinante. É o preço da marginalização para as culturas hegemônicas: o retorno do marginal é
sempre um encontro com a morte.
As mulheres estão modificando o mito, e a literatura, mesmo nas mãos de autores mas-
culinos, não escapa a este novo tempo. Os mitos futuros, que esse novo movimento e esta
nova ficção estão construindo, ainda são obscuros para a consciência, mas é certo que neles o
imaginário androcêntrico estará talvez para sempre comprometido.
A Mãe retorna e sua letra ensinará a homens e mulheres uma poesia talvez nunca vista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGULO, Regina Aparecida Cirelli. Roteiro de “Maíra”. 1988, 216 f. Dissertação
(Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(Unesp), São José do Rio Preto, 1988.
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