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O isolamento das Amigas das Casas era tal que o PCP criou um
jornal para difundir entre estas camaradas ou amigas (a diferença entre
amigas e camaradas resultava do facto de que a muitas delas não serem
reconhecidas sequer como militantes, apesar das duras funções
desempenhadas). Chamava-se A Voz das Camaradas das Casas do
Partido e foi durante esses anos tarefa minha receber os artigos e
contribuições e imprimi-lo numa pequena tipografia clandestina que
tinha em casa. A Voz das Camaradas era distribuído a estas mulheres
clandestinas e foi a certa altura suspensa a sua publicação por se
considerar que dava ‘pistas’ à polícia sobre a forma de organização das
casas. O seu esquema gráfico inicial era da autoria do pintor Dias
Coelho.
Habituada a uma vida movimentada dava-me particularmente
mal com o vazio da grande tarefa que tinha: estar em casa! Por isso,
procurei sempre e muitas outras o fizeram também, encontrar outros
trabalhos compatíveis com a vida isolada entre paredes. Tive sempre,
durante esses anos, uma pequena tipografia onde imprimia,
diariamente, muitos dos panfletos e outros documentos do sector
estudantil. Fui ainda encarregada de um outro trabalho que me dava
um particular prazer: passar à maquina muitas folhas escritas à mão, a
lápis, em papel mortalha de cigarro, vindas dos presos nas cadeias de
Caxias ou de Peniche. Eram papéis escritos sem o mínimo desperdício,
num minucioso trabalho de muitas horas e passados para o exterior nas
condições mais curiosas: nas bainhas das roupas, nas solas dos
sapatos, etc. Lembro-me bem do carinho e emoção com que recebia
essas minúsculas folhas de papel e as descodificava para letra de
máquina. Traziam notícias das cadeias, informavam de novos presos,
do comportamento dos presos recentes, de questões pessoais e
políticas das pessoas que viviam nas cadeias e particularmente das
celas que mandavam aquelas notícias. Respondiam também às questões
políticas que tinham recebido do exterior.
A minha última casa clandestina onde mantive funções de
Camarada da Casa do Partido, foi na praia da Madalena, junto ao
Porto. Desta casa guardo melhores recordações porque conseguia ir a
pé, através do pinhal até ao mar de que tinha imensas saudades. O mar
ainda hoje tem para mim a dimensão da liberdade.
As tarefas eram as mesmas, mas outras diferenças para melhor,
existiam. Esta casa era o local de reunião dos funcionários
clandestinos que controlavam o sector estudantil nas três Academias
entretanto existentes: Lisboa, Coimbra e Porto.
[...] Recordo-me bem que nesse tempo o responsável por
Lisboa chegava à Madalena passando por Castelo Branco! Nesta casa,
tinha como vizinha uma vidente, com clientes vindos de todo o país, o
que por um lado era tranquilizante uma vez que ninguém estranhava
nada do que acontecesse por ali e tudo o que de anormal sucedia era
em muito ultrapassado pela estranha vida e curiosos poderes da
vizinha.
Mas, por outro lado, a estadia dos seus clientes horas a fio de
pé, na rua, à espera de vez, facilmente disfarçaria qualquer polícia que
quisesse vigiar a nossa casa.
Esta vida de verdadeira clausura terminou porém para mim um
dia quando me comunicara que vindo de encontro aos meus desejos o
partido tinha decidido enviar-me para o trabalho de organização em
Lisboa. Ia controlar os estudantes de Lisboa. Ainda recordo a conversa
que tive na altura como se fosse hoje mesmo. Dizia-me o camarada
controleiro que ia mudar de tarefas, salientando sempre que o Partido
apreciava tanto a modéstia da tarefa de uma camarada da Casa do