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Ao ouvir sobre o assassinato da velha, no entanto, desmaia e levanta suspeitas da
polícia. Começa aí o suplício do “cão e gato” que compõe o restante do livro.
Então, Raskólnikof luta contra si mesmo. Do crime à expiação, ele enfrenta sua
consciência, a polícia e o Cristianismo, mas é Sônia que o “salva”. Sônia, que
Raskólnikof aproxima da imagem de Dúnia (p.34), é, para ele, o único elo humano que
resta por estarem ambos na “mesma situação” e confessa-lhe o assassinato.
— Então, Sônia, convenci-me, continuou cada vez mais excitado, [de] que o
poder não é concedido senão ao que ousa baixar-se para o tomar; é necessário
ousar. Desde o dia em que vi esta verdade, clara como a luz, quis ousar, e
matei... quis apenas praticar um ato de audácia; foi esse, Sônia, o móvel da
minha ação. (p.253)
Acontece que nosso pretensioso amigo sustentava a teoria de que existem
homens “ordinários” e “extraordinários”, e evidentemente queria estar nesta última
categoria:
Quanto à minha divisão dos seres em ordinários e extraordinários, convenho
que é um pouco arbitrária, mas ponho de parte a questão do egoísmo, que não
faz nada ao caso. Quero estabelecer o princípio de que a natureza divide os
homens em duas classes: uma inferior, a dos ordinários, espécie de matéria,
tendo por única missão reproduzir-se; a outra superior, compreendendo os
homens que têm o dever de lançar no seu meio uma palavra nova. As
subdivisões apresentam traços distintos bem característicos. (p.165)
Embora ele próprio reconheça a confusão que essa divisão pode trazer:
...lembre-se de que o erro é só possível na primeira categoria, isto é, naqueles
que eu chamei, talvez despropositadamente, homens ordinários. Apesar de
sua tendência inata para a obediência, muitos dentre eles, por um capricho da
natureza, querem passar por homens de vanguarda, por destruidores, crêem-
se chamados a fazer ouvir uma palavra nova, e essa ilusão é sincera, neles.
Ao mesmo tempo quase nunca reparam nos verdadeiros inovadores,
desprezam-nos até como gente atrasada e sem elevação mental. Mas, quanto
a mim, não pode haver nisso grande perigo e o senhor [Porfírio] não tem por
que se inquietar, porque eles nunca vão muito longe. Sem dúvida, poder-se-
iam açoitar uma vez ou outra para os punir da loucura e colocá-los no seu
lugar; seria o bastante e mesmo assim não seria preciso incomodar o
executor, eles próprios se açoitam, porque são pessoas muito virtuosas; ora
fazem esse serviço uns aos outros, ora se batem com as próprias mãos...
Vêem-se publicamente inflingindo-se diversas penitências, o que não deixa
de ser edificante, numa palavra, o senhor não tem que se preocupar com eles.
(p.167)
Julgando-se, então, uma pessoa “extraordinária”, com “o direito moral de
derramar sangue” (p.167), um Napoleão, Ródia decide matar, mas percebe seu erro:
— Eh! Sônia! disse ele irritado; e veio-lhe aos lábios uma resposta, mas
absteve-se desdenhosamente de dizê-la. Não me interrompas! Eu queria
somente provar-te uma coisa: o diabo levou-me à casa da velha e depois fez-
me compreender que eu não tinha o direito de ir lá, visto que sou um verme
como os demais! O diabo troçou comigo! E agora venho à tua casa! Pois se
não fosse um verme viria fazer-te esta visita? Escuta: quando fui à casa da
velha, queria só fazer uma experiência... Fica sabendo!... (p.254)
Sua angústia provém, portanto, do fato de ele se perceber uma pessoa
“ordinária”, que matou e não soube matar. Pensa em denunciar-se várias vezes (a