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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGLET
MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA
A alma russa de um nordestino: Graciliano Ramos leitor de Dostoiévski
Dissertação apresentada junto ao Programa de pós-graduação
em Letras da UFRGS como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Literatura Comparada.
Cristiane Guimarães Arteaga
Orientadora: Profa. Dra. Gilda Neves da S. Bittencourt
Porto Alegre, outubro de 2005.
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AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas colaboraram para a realização desta dissertação, sendo-me
indispensável agradecê-las. Esse é o caso de minha orientadora, a professora Dra. Gilda
Neves da Silva Bittencourt, a quem devo este trabalho, pelo seu generoso aceite em me
orientar, pelos imensos conhecimentos que me transmitiu (e que levarei para a vida) e
pela paciência e atenção que me dedicou ao longo dos meses em que fui sua orientanda.
Agradeço também aos demais professores do PPGLET-UFRGS pelos
conhecimentos transmitidos, dentro e fora de sala de aula em especial à professora
Dra. Lúcia Rebello, a quem devo, entre outras gentilezas, a parceria na criação do
título deste trabalho e aos meus colegas de pós-graduação, que também me ensinaram
muito.
Agradeço aos meus pais, irmãos, sobrinha e amigos pelo incentivo que me
deram e ao meu namorado, que contribuiu de todas as formas possíveis para que eu
concluísse este trabalho.
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RESUMO
A aproximação entre Graciliano Ramos e Dostoiévski se quase
instantaneamente para quem os lê. No caso de Angústia e Crime e castigo, a semelhança
se acentua. Por isso, ao longo desta dissertação, apoiados pelo conceito de influência,
traçamos um caminho de leitura em que os pontos de contato entre esses dois escritores
pudessem ser percebidos sem, no entanto, privilegiar um ou outro. Para tal, recorremos
à História, que demonstrou semelhanças no contexto social na época da publicação das
obras escolhidas para análise, e à Psicologia, que, através do conceito de angústia,
possibilitou a análise dos protagonistas de Angústia e Crime e Castigo. Nesse trajeto,
abordamos também, embora de forma resumida, questões como a tradução, a narrativa
autobiográfica e a intertextualidade.
Todos esses caminhos, no entanto, convergiram para um único ponto: o ser
humano. É, essencialmente, o ser humano que une esses dois escritores. Esse fato,
bastante óbvio pelo perfil dos escritores em questão, propicia uma análise da sociedade
moderna, apesar da distância temporal, pois a questão humana o se alterou. O
Homem continua “angustiado” em sua condição social, especialmente se tem
consciência de sua nulidade enquanto indivíduo. Sua liberdade é cerceada por
mecanismos sociais que independem de sua vontade. Seu “eu” desaparece em meio a
uma multidão de objetos de consumo (des)necessários, que o tornam um “eu-social”.
Sem esses objetos, sendo o dinheiro o mais almejado, somos desprovidos de valor,
somos “nada”.
Sendo o Homem a matéria-prima de Dostoiévski e de Graciliano Ramos, é
natural que se encontrem pontos de contato entre eles. Do mesmo modo, é igualmente
natural que os dois sejam considerados universais e atuais.
4
ABSTRACT
The approximation between Gracialiano Ramos and Dostoievski takes place
almost immediately for he who reads them. In the case of Angústia e Crime e Castigo,
the similarity is intensified. Therefore, throughout this essay, supported by the concept
of influence, we set a reading path in which the contact points between these two
writers could be noticed without favoring one or the other. For that, we make use of
History, which demonstrated similarities in the social context at the time of the
publication of the literary compositions chosen for analysis, and of Psychology, that, via
the concept of anguish, made possible the analysis of the protagonists of Angústia and
Crime e Castigo. Issues of translation, autobiographic narration and intertextuality are
also approached, even though in a summarized way.
All these study paths, by some means, have converged to one meeting point: the
human being. This fact, quite obvious according to the writer’s profile in issue,
propitiates an analysis of modern society, despite the temporal distance, as the human
matter has not changed. Man continues “anguished” in his social condition, specially
when having conscience of his nullity as an individual. His freedom is restricted by
social mechanisms that are independent of his will. His self disappears when surrounded
by a multitude of (un)necessary consumer goods, that make him a “social-self”. Without
these goods, being money the most longed for, we are deprived of value, we are
“nothing”.
Being Man Dostoievski and Graciliano Ramos’ raw material, it is natural to find
contact points between them. It is equally innate that both are considered universal and
contemporary.
5
SUMÁRIO
Introdução 06
1. Da Influência à Intertextualidade 11
1.1. Influência: um conceito ultrapassado? 12
1.2. Bakhtin: a fonte da intertextualidade 18
1.3. A intertextualidade e suas conseqüências para os estudos comparatistas 22
2. Uma Coincidência Histórica 29
2.1. Um breve olhar sobre a Rússia 30
2.2. Um olhar sobre o Brasil 36
3. Uma Coincidência Psíquica 41
3.1. Luís da Silva 46
3.2. Raskólnikof 52
4. Graciliano Ramos vs. Dostoiévski: uma luta entre “fortes" 58
4.1. O crime e o castigo 59
4.2. A angústia de Angústia 73
Considerações Finais 80
Bibliografia 87
6
INTRODUÇÃO
A idéia desta dissertação surgiu, quando iniciei, pela primeira vez, quase dez
anos, a leitura de Crime e Castigo
1
e o relacionei à Angústia, de Graciliano Ramos, lida
muitos anos antes. A associação, como veremos mais adiante, não causa surpresa e pode
ser percebida ao longo das obras e também da vida desses dois escritores, sendo
bastante evidente. A realização deste trabalho, portanto, deveria ser tranqüila; os
problemas, no entanto, o tardaram a aparecer. O primeiro empecilho foi o saber
russo e trabalhar com uma obra sem poder cotejá-la com o “original”, uma exigência de
qualquer estudo comparatista, embora a Literatura Comparada não “aceite” mais a
tradução como um texto menor ou “cópia”.
O problema de o se poder cotejar o “original” com a “tradução” é que não
podemos perceber as alterações que, com certeza, aconteceram com a passagem de uma
língua para a outra. Coisas banais, como o nome do autor e das personagens, para
citar um exemplo, tornam-se confusas: Dostoiévski é Fiodor ou Feódor (sem contar o
acento no “e” de Dostoiévski, que às vezes aparece; outras não)? E o protagonista de
Crime e Castigo, é Raskólnikof ou Raskolnikov?
2
Impossível saber sem o cotejo com o
original. Se assim é com as banalidades, imagina-se o que ocorre com o resto.
Então, sem poder cotejar a “cópia” com o “original”, muitas dúvidas surgiram.
Como saber em que medida a obra traduzida corresponde ao “original” e suas
conseqüentes alterações? A linguagem, certamente, modifica-se. O próprio Graciliano
Ramos, ao realizar algumas traduções, imprimiu-lhes a mesma concisão de seus
1
Segundo a edição da José Olympio, o título original é Prestuplenie I Nakazanie.
2
As dificuldades aparecem porque a língua russa se baseia em fonemas. A letra E (iê), por exemplo,
corresponde tanto ao nosso “i” quanto ao nosso “e” e pode ser também a representação do ditongo “ie”,
como em “quieto”, o que justificaria a alternância de Fiodor ou Feódor. Sobre os acentos, a língua russa, a
exemplo da inglesa, não os adota, assim como tem por terminação de sobrenomes a consoante “v” e não
“f”. Apesar disso, adotaremos, ao longo do trabalho, as formas Dostoiévski e Raskólnikof, conforme a
edição da Ediouro, que se diz tradução direta, mas respeitaremos as citações, mantendo-as na íntegra.
7
romances, que diremos, então, da interpretação, certamente presente na tradução? No
caso de Dostoiévski, a questão é dupla: muitas das traduções em português derivam de
traduções indiretas do francês e do espanhol além dos problemas de interpretação
fonética decorrentes da estrutura da língua russa. Mesmo assim, as obras de Dostoiévski
resistem, pois, conforme Gentil de Faria (1996, p.124), “a língua é apenas um dos
elementos utilizados na criação literária.” Além disso, Graciliano Ramos ignorava o
russo, como pode-se perceber em suas Cartas e suas Memórias do Cárcere, e teve seu
contato com Dostoiévski, assim como eu, através de traduções.
Para tentar contornar o problema da tradução, não me detive no texto de
Dostoiévski e utilizei duas edições de Crime e Castigo. Uma é a primeira edição da
Editora José Olympio, de 1951. Lá, inclusive, pode-se ler que:
A primeira tradução portuguesa de Crime e Castigo apareceu no Brasil por
volta de 1920, assinada por Fernão Neves, em estilo meio precioso, editada
pela Livraria Castilho. Tudo nos leva a supor que o tradutor se tivesse valido
de uma das versões francesas, que, segundo o conselho do próprio Vogüé,
procuravam adaptar Dostoievski ao gosto do público gaulês. Em todo o caso
esse já foi um esforço louvável para vulgarizar o grande romancista russo
entre nós.
Depois de 1930 surgiu uma verdadeira febre de eslavismo no Brasil; passou-
se a traduzir tudo quanto era russo, e Dostoievski foi um dos mais
sacrificados nessa preamar de traduções mutiladas, numa língua tão que
tornava até incompreensíveis certos trechos das obras. Lembramo-nos de ter
visto uma edição brasileira de Crime e Castigo nessas condições. (Broca,
1951, p.15)
Apesar disso, a edição publicada pela José Olympio também é uma tradução
indireta “baseada nas melhores versões francesas e espanholas, de acordo com o texto
legítimo estabelecido oficialmente pela União Soviética antes de 1930”, segundo Brito
Broca, o responsável pela introdução dessa edição.
A outra edição utilizada diz-se tradução direta do russo, revista e cotejada do
original por Luiz Cláudio de Castro. É uma edição dos Clássicos de Bolso da Ediouro,
de 1996, com a qual fui apresentada a Crime e Castigo e que usei para fazer as citações
deste trabalho. Não notei grandes diferenças entre as duas edições, mas a opção baseia-
se na minha crença sobre a “origem” da tradução.
Quanto a Graciliano Ramos, o problema da ngua, felizmente, não existe e
posso lê-lo no original. No entanto, encontrei uma dificuldade, constatada também por
Wander Melo Miranda
3
, relacionada à fortuna crítica do autor, “ainda à espera de quem
se proponha a sistematizá-la com o rigor necessário”. Essa falta de sistematização
prejudica bastante o trabalho de quem deseja estudar a obra de Graciliano. Portanto,
3
Ver MIRANDA, 1995, p.79.
8
organizar esse material, ainda que seja uma tarefa difícil, por sua vastidão, é uma
necessidade e merece a atenção de todos.
Além dessas dificuldades, esbarrei em outra ainda mais problemática: o suporte
teórico. A idéia original, quando imaginei este trabalho, foi mostrar a influência de
Dostoiévski em Graciliano Ramos, não a influência em seu sentido “vulgar” de dívida,
mas no sentido dado por Cianorescu (apud Nitrini, 1997, p.127) de “resultado artístico
autônomo de uma relação de contato”, em que a obra segunda (influência) é
produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos
difíceis de analisar, mas fáceis de reconhecer intuitivamente, da obra literária
em geral, ostentando personalidade própria, representando a arte literária e as
demais características de seu autor, mas na qual se reconhecem, ao mesmo
tempo, num grau que pode variar consideravelmente, indícios de contato
entre seu autor e um outro, ou vários outros. (Nitrini, 1997, p.127)
No entanto, não é muito fácil usar o conceito de influência num momento em
que esses estudos caíram em desuso e se passou a adotar, quase de forma sistemática, o
conceito de intertextualidade. Por isso, o confronto entre esses dois conceitos foi
mantido ao longo da dissertação.
Na verdade, a questão da influência é muito complexa. Por exemplo, se
retomarmos o conceito de influência, em seu sentido mais difundido, como “a soma de
relações de contato de qualquer espécie, que se pode estabelecer entre um emissor e um
receptor”
4
, e o conceito de intertextualidade, segundo Laurent Jenny, “como o trabalho
de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que
mantém o comando de sentido”
5
, não poderemos afirmar que a intertextualidade é o
produto (resultado) da influência? Provavelmente não. Para Jenny, “a intertextualidade
não é uma adição confusa e misteriosa de influências”
6
e, além disso, muitas
coincidências ocorrem sem que se consiga provar que houve algum contato entre os
autores e/ou suas obras. Essas coincidências podem ocorrer por inúmeros motivos
7
-
momento histórico, por exemplo mas, quando elas ocorrem em larga escala, como no
caso de Graciliano Ramos e Dostoiévski, o que é possível dizer? Duas obras tão
diferentes e o parecidas, Crime e Castigo e Angústia, publicadas com setenta anos de
distância, além dos milhares de quilômetros que separam o Brasil da Rússia, fazem-nos
refletir a respeito. Se as diferenças se explicam por temperamento, diferença temporal e
geográfica ou qualquer outro fator que nos escape aos olhos, um ponto de contato, por
4
Ver NITRINI, 1997, p. 127
5
Ver JENNY apud NITRINI, 1997, p. 163.
6
Ibdi.
7
Ver ECO, 2003.
9
outro lado, se sobressai: o indivíduo. É o ser humano, em suas entranhas, o material de
trabalho desses dois escritores, e talvez o motivo de meu crescente interesse por eles.
A complexidade da matéria humana, no entanto, tornou ainda mais difícil a
minha tarefa: um passeio pela História da Rússia e do Brasil no período da publicação
das obras tarefa árdua devido à complexidade própria da área e um outro passeio
pelo campo da Psicologia, tendo em vista o caráter perturbado dos protagonistas, ambos
assassinos, tornaram-se meus objetos de estudo de modo a fornecer uma visão mais
ampla das obras escolhidas para análise. Por isso, esta dissertação compõe-se de quatro
capítulos assim organizados:
1. Da Influência ao Intertexto
Capítulo em que apresento, brevemente, a trajetória da Literatura Comparada e
seus conflitos metodológicos, bem como a mudança de conceitos e sua negação” ao
passado, no caso, aos estudos de fontes e influências.
2. Uma Coincidência Histórica
Neste capítulo, apresento um breve panorama da história russa e brasileira desde
a sua “origem” até a publicação das obras escolhidas. A importância deste capítulo,
além de fornecer um panorama que facilita a compreensão das obras, é mostrar-nos
também as semelhanças entre a Rússia de Dostoiévski e o Brasil de Graciliano, em mais
uma “coincidência”.
3. Uma Coincidência Psíquica
Neste capítulo, traço o perfil” dos protagonistas Raskólnikof, de Crime e
Castigo, e Luís da Silva, de Angústia, de acordo com o conceito freudiano de angústia.
Novamente, apesar das visíveis diferenças entre eles, novas “coincidências” podem ser
percebidas.
4. Graciliano Ramos vs. Dostoiévski: uma luta entre fortes
Este capítulo é a fusão dos três primeiros, acrescido da análise textual. Procurei
abordar de que modo a aproximação dos dois se dá, avaliando, principalmente, as
10
diferenças que constatei entre eles. Na verdade, seria impossível encontrar
semelhanças ou diferenças, mas o curioso é que, mesmo com as diferenças, é
possível aproximá-los. Isso porque ambos, como foi dito, trabalham com o ser
humano e buscam compreendê-lo em sua essência. Então, é natural perceber que,
indiferente do momento histórico, do país ou do tipo de tormento de cada indivíduo, o
ser humano vive a angústia da escolha entre o bem e o mal, sem ao menos saber o que é
o bem e o mal. São os conflitos humanos, que parecem permanecer sempre os mesmos,
que, de fato, aproximam e universalizam esses dois escritores tão diferentes e, ao
mesmo tempo, tão semelhantes, como procuramos mostrar com este trabalho.
11
1. Da Influência à Intertextualidade
Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
Lavoisier
Nada menos “original” do que iniciar um texto com uma citação. Se assim o
fazemos é pela pertinência das palavras de Tania Carvalhal (2003, p.7):
A literatura comparada, como se sabe, tem assumido no Brasil cada vez mais
uma posição relevante no campo das Letras. Desde a criação da Associação
Brasileira de Literatura Comparada, em 1986, os congressos da entidade
congregaram expressivo número de estudiosos de diferentes literaturas e
mesmo áreas afins. Além disso, a pesquisa comparatista, articulando-se com
várias teorias, tem fornecido instrumental teórico e metodológico para análise
de questões interliterárias, interdiscursivas e interdisciplinares em diversos
campos de investigação literária e cultural.
Vista por esse ângulo, a literatura comparada como um rio aparenta
tranqüilidade, mas basta “mergulharmos” em suas “águas” para percebermos o quão
profundas e perigosas elas são.
Disciplina para uns; método para outros, a literatura comparada enfrenta diversas
crises ao longo de sua história. A simples definição: “o que é literatura comparada?” já
gerou inúmeros artigos e parece não ter-lhe garantido a estabilidade de uma disciplina.
Muitas vezes dividida em escolas francesa e americana pode, numa perspectiva
americana apresentada por Remak (1994, p.175), ser assim “resumida”: é a comparação
da literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da
expressão humana.
Numa perspectiva francesa, no entanto, os estudos de literatura comparada
basear-se-iam, principalmente, nos estudos de fontes e influências. Esse era, aliás, o
principal meio de crítica utilizado no Brasil até o surgimento oficial da literatura
comparada como disciplina, em 1931, com o nome de História Comparada das
Literaturas Novo-Latinas, na Faculdade Paulista de Letras e Filosofia.
Somam-se a isso: o preconceito a literatura comparada “compara tudo com
nada”; os “modismos” uma teoria “derruba” a outra; e a simplificação é um método
para as outras disciplinas. Eis o quadro em que está inserida a literatura comparada.
12
A principal questão, atualmente, é a revolução nos estudos literários,
proporcionada por Kristeva, com o conceito de intertextualidade. As dimensões dessa
“revolução” ainda podem ser observadas com espanto para uns e felicidade para
outros pois modificaram o cenário literário, principalmente às literaturas tidas como
“marginais”, que passaram a receber igual valor ao das consideradas “canônicas”.
A intertextualidade nada mais é que a expansão do conceito de Bakhtin: um
“dialogismo” entre textos, mas outros fatores favoreceram essa re-visão do texto, como
o conceito de différance de Derrida. Antes, no entanto, de nos aprofundarmos na
questão intertextual, voltaremos às “origens” da literatura comparada, isto é, ao estudo
de fontes e influências.
1.1. Influência: um conceito ultrapassado?
Como vimos, o que a princípio parece fácil esconde um complexo problema: o
que é literatura comparada afinal?
Para Guyard (1994, p.97), a literatura comparada “é a história das relações
literárias internacionais.” Para Perrone-Moisés (1990, p.91), o conceito se espande para
“qualquer estudo que incida sobre as relações entre duas ou mais literaturas nacionais”.
Van Tieghem (1994, p.96), por sua vez, a caracteriza, romanticamente, como “uma
disciplina especial”, capaz de completar as outras disciplinas.
A lista de definições poderia continuar de modo que Wellek, com seu artigo A
Crise da Literatura Comparada (1994, p.117), nos diz que “os estudos de literatura
comparada hoje necessitam definir seu foco e objeto de estudo”. No entanto, ao invés de
se enfrentar a questão proposta por Wellek, determinou-se o “fim” da literariedade, do
cânone e das influências. Não que os casos de influência tenham deixado de existir; o
seu estudo é que se extinguiu por ser considerado “ultrapassado”, sem valor. Leyla
Perrone-Moisés (1991, p.473) coloca bem a questão:
Tenho observado que a aceitação progressiva da teoria da intertextualidade
acabou provocando, nos estudiosos, uma espécie de pejo de falar de
influência, como se se tratasse de um termo velho e superado. E que, ao
mesmo tempo, qualquer traço de uma obra em outra, é agora imediatamente
considerado como intertexto, e o segundo autor de antropofágico. Ora, é
preciso voltar às definições, e sobretudo aos próprios textos literários onde os
fatos ocorrem, para verificar que a influência existe (e como!) e que nem tudo
é intertexto, no sentido forte do termo.
Acontece, porém, que as exigências para um estudo de fontes e influências o
tornaram irrealizável em relação aos estudos intertextuais. Deve-se, segundo Guyard
13
(1994, p.97-98), ter uma “erudição” que permita conhecer diversas ciências
(antropologia, filosofia, sociologia, psicologia etc.), diversas línguas (para que
possamos ler os originais e cotejá-los com as traduções) e diferentes literaturas, de
modo que se possa reconhecer as “influências” e suas conseqüências para a “nova
obra”, isto é, para a cópia.
A missão do comparatista que se dispõe ao estudo de fontes e influências, no
entanto, não termina por aí: é preciso saber os conhecimentos que o escritor estudado
possui de línguas estrangeiras, sua capacidade de tradução etc.: “O comparatista deve
então procurar saber se existem deste escritor obras escritas em uma destas línguas. (...)
As traduções são uma prova ainda mais reveladora.” (Guyard, 1994, p.99) Através das
traduções, pode-se verificar seu conhecimento da língua estrangeira, o modo como ele
assimilou as obras que traduziu, bem como suas possíveis “coincidências” com escritos
posteriores.
Depois desse exercício de “erudição”, que é mais bibliográfico do que literário,
corremos outros tantos riscos:
1. confundir “coincidência” com “influência”, estabelecendo falsas relações;
2. reduzir o estudo a um roteiro de leituras;
3. depreciar o “influenciado” em relação ao “influenciador”, caracterizando vida de
um com o outro.
Este último, talvez, seja o responsável pelo “fim” dos estudos de fontes e
influências: quem irá, atualmente, desprestigiar um texto (autor) podendo “salvá-lo”
com a intertextualidade?
Tomaremos como exemplo Antonio Candido, pela peculiaridade de sua
situação: estuda as “influências” da literatura brasileira e exerce também influência na
nossa produção crítica. Segundo Candido (1993, p.211): “estudar literatura brasileira é
estudar literatura comparada” e a crítica equilibrada é um casamento “entre história e
estética, forma e conteúdo, erudição e gosto, objetividade e apreciação.” (Candido,
1997, p.29) Enfim, a crítica pode acontecer com a soma desses fatores, que nos
permitem analisar a obra como um todo e não como fragmentos isolados.
Embora também faça ressalvas à influência
8
, sabe-se que o autor de Formação
da Literatura Brasileira e os teóricos a ele associados considera nossa literatura
“ramo da portuguesa”, iniciando-se como sistema literário somente a partir do
Romantismo (o que será questionado por Haroldo de Campos, em O Seqüestro do
8
Ver CANDIDO, 1997, 36-37.
14
Barroco). Em outras palavras, Candido utiliza a influência como suporte teórico, pois
acredita que a literatura brasileira “deriva” da européia.
Roberto Schwarz também defende a idéia de continuidade (influência). Para
Schwarz, nossa intelectualidade tem “sede” pelo “novo”, desprezando o “velho”, isto é,
a tradição. Por isso, a crítica no Brasil não conseguiria “deslanchar” e aceitaria com
mais facilidade as teorias de Foucault e Derrida, que propõem a inversão de valores,
pois: “De atrasados passaríamos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a
superiores (...), isto porque os países que vivem na humilhação da cópia explícita e
inevitável estão mais preparados que a metrópole para abrir mão das ilusões da origem
primeira (ainda que a lebre tenha sido levantada lá e não aqui).” (Schwarz, 1989, p.35)
Eis por que é cada vez menor ou nulo o número de trabalhos sobre fontes e
influências, que se tornaram, automaticamente, promovidos a intertextos, mesmo em
casos explícitos de influência. Esse é o caso, por exemplo, de O seqüestro do Barroco
na formação da literatura brasileira, de Haroldo de Campos, cuja fonte está explicitada
no título de sua obra. Toda a construção teórica de Campos está formulada com base na
de Candido, ainda que para a refutar, pois é: “A Formação da Literatura Brasileira
(Momentos decisivos), 1959, de Antonio Candido, obra capital (e, por isso mesmo
merecedora não de culto referencial, obnubilante, mas de discussão crítica que lhe
responda às instigações mais provocativas).” (Campos, 1989, p.12) (grifo meu)
Embora Campos fosse radicalmente contrário ao conceito de influência, devido à
dívida que esta gera, é impossível negar que a Formação influenciou sua obra, isto é, é
sua fonte. Não se trata apenas de diálogo, mas de refutação. É o que Bloom chamou de
kenosis: “Onde estava o precursor, estará o efebo, mas pelo modo descontínuo de
esvaziar o precursor da divindade dele, parecendo ao mesmo tempo esvaziar-se da sua.
Por mais plangente ou mesmo desesperado que seja o poema da kenosis, o efebo cuida
de ter uma queda suave, enquanto o precursor sofre uma queda violenta.” (Bloom, 2002,
p.138)
Ainda que destinada a poemas, a angustiante teoria de Bloom pode ser aplicada
aos demais tipos de produção artística e intelectual. A inclusão de elementos freudianos
à crítica literária garantiu-lhe represálias, como as de Jenny, que o considerou
“ingênuo”, mas é um ponto de partida interessante para quem se interessa pelos estudos
de influência, porque propõe uma influência “renovadora”. Quanto a Haroldo de
Campos, haverá quem discorde do termo influência pelo fato de Campos ser tão “forte”
15
quanto Candido e pelo fato de não ser uma assimilação passiva, pois, segundo a
definição de influência de Perrone-Moisés (1991, pp.473-474):
influência quando transferência e enxerto de um ou mais dos
elementos (imagem, lêxico, estrutura sintática, etc.) sem que o texto receptor
a esse(s) elemento(s) uma nova função, produzindo uma nova
significação. Inversamente, há intertexto, no sentido forte do termo, quando o
primeiro texto (o texto tutor) é absorvido, desviado ou mesmo subvertido).
Então, O Seqüestro do Barroco é um intertexto? Segundo Perrone-Moisés
9
, todo
texto crítico é intertextual, porque se constrói a partir de outros textos. A diferença é que
na obra literária ao contrário da teórica não é preciso indicar “fontes”, embora elas
existam e devam em ambas ser devidamente assimiladas para caracterizar uma
“nova obra”. O caso d’O Seqüestro, no entanto, é um pouco diferente dos demais textos
teóricos, pois, embora indique suas fontes como qualquer texto desse gênero ele se
constrói para responder “às instigações mais provocativas” da Formação, de Antonio
Candido. Isso significa que, provavelmente, O Seqüestro do Barroco não existiria, pelo
menos tal como o conhecemos, se não existisse a obra de Candido, pois não haveria
obra a ser “respondida”. Por isso, O seqüestro do Barroco deve, em certa medida, a sua
existência à obra de Candido, sendo um caso concreto de influência em que uma obra
só existe devido à existência de outra a ela anterior.
Não se pretende, contudo, dizer que Candido é “maior” que Campos, mas, ao
contrário, que a existência de uma “obra primeira” (fonte) propicia a criação de outra(s)
(influências), permitindo a renovação da “obra primeira” e a continuidade de nossa
tradição e esse trabalho de continuidade não é menor nem devedor, mas igualmente
válido por acrescentar novos elementos aos anteriormente expressos. Portanto, nossa
problemática, ao que tudo indica, não está na “origem”, mas no conceito que se à
“origem”, ao status que ela recebe etc.
Segundo Brunel et alii (1990, p.47), “o fenômeno da imitação deve ser
distinguido do da influência. A influência é sofrida de maneira mais ou menos
consciente: penetração lenta, osmose, ou então visitação, iluminação: não apresenta
nenhum caráter sistemático, ao contrário da imitação.” A influência o é imitação ou
cópia, mas uma forma de transformação do que existe. Se o fato de uma obra existir
primeiro lhe confere alguma superioridadeo que é bastante questionávelnão a torna
indestrutível, inabalável, pois o conceito de influência é anterior ao da intertextualidade
e nem por isso é mais aceito atualmente, não é superior ou melhor. A própria
intertextualidade se originou (influenciou) da teoria de Bakhtin e nem por isso seu valor
9
Ver PERRONE-MOISÉS, 1978, pp.58-76
16
é menor. Além disso, conhecer as fontes (origens) de um texto pode ser bastante
proveitoso, pois possibilita perceber o caminho percorrido pelo autor no seu processo de
criação.
A intertextualidade é mais aceita por, supostamente, propiciar “igualdade” entre
os textos, estabelecendo relações de semelhança e, principalmente, de diferença, no
entanto, a influência também pode estabelecer essas relações. Em Crítica Literária,
História Literária, Literatura Comparada (1994), Van Tieghem afirma que, “de
qualquer modo, o jogo de influências sofridas ou exercidas é um elemento essencial da
história literária” (p.92), pois “tem de tratar com freqüência de influências, imitações e
empréstimos.” (p.93) No entanto, é preciso “estudar de perto semelhanças e diferenças”
(p.94) para que se possa avaliar a obra em sua totalidade.
T. S. Eliot (s/d., p.22) também acredita na “influência” como forma de tradição:
Detemo-nos, com satisfação, nas diferenças existentes entre o poeta e os seus
predecessores, especialmente os seus predecessores imediatos, tentamos
encontrar algo que possa ser isolado a fim de ser apreciado. Mas se
abordarmos um poeta sem este preconceito, acharemos freqüentemente que
não os melhores, mas os passos mais significativos da sua obra, poderão
ser aqueles onde os poetas mortos, seus antepassados, mais vigorosamente
afirmaram a sua imortalidade. E não me refiro ao impressionável período da
adolescência, mas ao da plena maturidade.
Isso ocorre, pois, conforme Eliot (s/d., pp.23-4): “nenhum poeta, nenhum artista
de qualquer arte, detém, sozinho, o seu completo significado. O seu significado, a sua
avaliação, é a avaliação da sua relação com os poetas e artistas mortos.” É inconcebível,
portanto, crer na assimilação passiva, na “cópia” ou que os estudos de influência
tenham valor, segundo Perrone-Moisés (1991, p.474): “em autores menores, ou nas
primeiras fases dos maiores.”
Embora se diga que a procura das influências não é às vezes menos inútil do
que um relato dos viajantes”, pois “esses estudos de influência se limitam, muito
freqüentemente, a listas de escritores secundários, mais maleáveis”, sabe-se que
“nenhuma literatura seria o que é, se não contasse com causas situadas quase tão
freqüentemente no estrangeiro quanto no próprio país.” (Brunel et alii, 1990, pp.44-45)
Em suma, sem o contato de uma literatura com outra(s), não haveria literatura, pois não
faz sentido a existência de uma arte que se mantém intacta, isto é, que não modifica o
presente nem atualiza o passado.
A influência, na verdade, é um processo mais comum e praticado do que se
imagina. Todos nós nos influenciamos por algo ou alguém e nem por isso deixamos de
ser nós mesmos, sendo a soma dos outros, nem acreditamos que nossos “modelos” são
17
“melhores” do que nós. Nossas influências ocorrem porque, de algum modo, fomos
afetados por elas. Modificamos nosso pensamento após termos absorvido o que nos
tocou. Saber ao certo o que nos influencia é difícil, pois somos uma soma de
influências, no entanto, podemos verificar, facilmente, as mais significativas, como, por
exemplo, nossos escritores favoritos. Outras leituras são realizadas ao longo de nossa
vida e estarão prontas para desabrochar em nossos escritos posteriores, mas elas não
deixaram de existir pelo fato de ainda não terem emergido.
Observar esse processo é bastante simples em duas ocasiões: em influências
recentes leio um texto hoje e meu próximo escrito estará impregnado por ele a ponto
de ser “visível”, mas acrescido por outros, o que descaracteriza a “cópia e em
escritores jovens, que estão “procurando” seu próprio estilo. No entanto, à medida que o
tempo passa e as influências se misturam, fica mais complexo estabelecer o que
realmente nos influenciou, dificultando a descoberta de fontes”, independente da
“grandiosidade” ou não do “influenciado”.
O mais grave, contudo, não é encontrar fontes e influências, pois, em muitos
casos, a verificação desses elementos é explícita, como O Seqüestro do Barroco ou
ainda em estudos da influência européia sofrida por Machado de Assis, como o artigo
de Candido, À Roda do Quarto e da Vida. O problema é quando o estudo se limita ao
“balanço”, conforme Wellek: “do ponto de vista passivo” (influenciado) ao “ponto de
vista ativo” (fonte), pois obras de arte “não são o simples somatório de fontes e
influências, são conjuntos em que a matéria-prima vinda de outro lugar deixa de ser
matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura.” (Wellek, 1994, p.111) Em
outras palavras, a problemática da influência é a questão de “originalidade”, que, de
acordo com Brunel et alii. (1990, p.47), “não reside na escolha do assunto, do tema, da
intriga, mas na disposição segundo a qual são ordenados e na maneira como são
revestidos”, ou seja, no modo como o escritor assimila essa “influência”.
Ninguém quer ser “cópia”, todos querem ser “originais”. É por isso que países
“emergentes”, cuja literatura, por questões culturais, carece de prestígio”, preferem
estudos intertextuais. No entanto, “não basta renunciar ao empréstimo para pensar e
viver de modo mais autêntico.” (Schwarz, 1989, p.39). É preciso abandonar o orgulho
nacional e o preconceito contra a influência para que possamos melhor entender o
processo de criação literária, que se constitui essencialmente de influências.
Segundo Eliot (s/d, p.27), “o processo de um artista reside num contínuo auto-
sacrifício, numa extinção contínua de sua personalidade”, uma vez que o poeta (artista)
18
sabe que o passado é “alterado pelo presente, tanto quanto o presente é dirigido pelo
passado” e, com essa consciência, ele se apercebe de grandes dificuldades e
responsabilidades.” (Eliot, s/d, p.24) Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o
influenciado renova o influenciador e mantém a “tradição”, portanto exerce papel
fundamental na literatura tanto quanto seu precursor
10
.
A dificuldade a que T. S. Eliot se refere é, por assim dizer, a capacidade de
continuar a “tradição”, impregnando-a de algo “novo”, pessoal. O artista deve ser capaz
de ampliar o passado com sua re-leitura do mundo, mas será incapaz de livrar-se desse
passado. Mesmo as obras mais “originais” não podem assim ser consideradas, pois
“surgiram” da “soma de outras e a questão da “origem” não deve ser o foco principal
de um estudo comparatista. Tynianov (1973, p.117) previa que “a questão
cronológica: ‘Quem disse primeiro? não é essencial.” Essencial é o modo como esses
textos se relacionam, o que permanece e o que se altera de um para o outro questões
que o estudo de fontes e influências pode dar conta, pois “... a literatura é uma longa
continuidade e uma grande contigüidade, é a soma da tradição e do talento individual,
como disse T. S. Eliot, o hoje é resultado de ontem, e se o talento individual inova é a
partir do que a tradição acumulou, isto é, da herança do passado útil.” (Coutinho, 1983,
p.157)
Como nossa ambição é desprezar o “passado útil”, desprezamos também o
conceito de influência e rotulamos seus estudos, destituindo-lhes de qualquer valor. Para
que se entenda o processo que gerou esse “novo” paradigma comparatista, a
intertextualidade, é preciso ir à sua fonte: Bakhtin.
1.2. Bakhtin: a fonte da intertextualidade
Oriunda da teoria de Bakhtin, a intertextualidade propõe, basicamente, um
“dialogismo” entre textos. O termo cunhado por Kristeva, em 1969, ampliou
significativamente os estudos literários e possibilitou condições deigualdade” entre os
textos analisados. Ampliou também é importante que se diga o conceito de texto,
propiciando o cotejo de textos literários com diferentes manifestações artísticas
aumentando ainda mais o “saco de gatos” dos estudos comparatistas.
A sensação” dos estudos literários, por pôr fim aos “opressores” estudos de
fontes e influências, ironicamente, tem uma fonte: Bakhtin; é, portanto, uma influência.
10
Ver BORGES, Kafka y sus precursores. 1968
19
Não é uma influência passiva, como se espera de uma “cópia”, mas uma transformação
do que havia antes. Vamos, então, à fonte:
Mikhail Bakhtin (2002, p.4), ao analisar a poética de Dostoiévski, defende a tese
do romance polifônico, em que “a multiplicidade de vozes e consciências independentes
e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski.”
Aparentando uma “falsa” facilidade esquemática, que o próprio Bakhtin
reconhece como “abstrata”, temos:
A palavra concreta pode pertencer simultaneamente a diversas variedades e
inclusive tipos. Além disso, as relações de reciprocidade com a palavra do
outro no contexto vivo e concreto não têm caráter estático mas dinâmico: a
inter-relação das vozes no discurso pode variar acentuadamente, o discurso
orientado para um único fim pode converter-se em discurso orientado para
diversos fins, a dialogação pode intensificar-se ou atenuar-se, o tipo passivo
pode tornar-se ativo, etc... (Bakhtin, 2002, p.199)
Em suma: cada caso é único e merecedor de atenção única.
Dostoiévski, cuja “grandiosidade” pode ser largamente atestada, como, por
exemplo, por Otto Maria Carpeaux (s/d, p.167): “Dostoievski é, se não o maior, decerto
o mais poderoso escritor do século XIX; ou do século XX, pois a sua obra constitui o
marco entre dois séculos de literatura” também sofreu influências. Em Gente Pobre e O
Sósia, Dostoiévski “resgata”, conforme o próprio Bakhtin, O Capote de Gógol
11
. Isso
significa que Dostoiévski é “menor” que Gógol? Esperamos que o, embora,
especialmente nessas obras, a principal influência do autor seja O Capote. Pode-se
argumentar que isso é “explicável” pelo fato de serem obras “experimentais” de
Dostoiévski, suas duas primeiras publicações, no entanto a preocupação dostoievskiana
com o julgamento alheio o que o outro pensa de mim permanecerá em suas outras
obras, demonstrando que O Capote não desapareceu; foi modificado.
Bakhtin consegue captar essa “evolução” em Dostoiévski através da análise
discursiva de suas obras: “Quanto à orientação dialógica da narração voltada para o
herói, esta particularidade permaneceu na obra posterior de Dostoiévski, evidentemente,
porém foi modificada, complexificada e aprofundada.” (Bakhtin, 2002, pp.229-230)
Sinais da maturidade do escritor, que soube aproveitar sua influência” para construir
seu próprio “eu”. Ignorar a influência de Gógol nas obras de Dostoiévski, por exemplo,
reduz a nossa compreensão sobre elas, que não são “cópias”, evidentemente, mas têm
uma “origem” explícita (e, normalmente, Dostoiévski cita suas fontes).
11
Ver BAKHTIN, 2002, p.229
20
Acontece que, ao perceber o “desdobramento” de vozes nos romances de
Dostoiévski, Bakhtin desenvolveu o chamado “dialogismo” de vozes: “Compreende-se
perfeitamente que no centro do mundo artístico de Dostoiévski deve estar situado o
diálogo, e o diálogo não como meio mas como fim.” (Bakhtin, 2002, p.256)
Para Bakhtin (2002, p.257), “nos romances de Dostoiévski tudo se reduz ao
diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim.
Uma voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o nimo de vida, o nimo
de existência”. Isso ocorre porque
nos diálogos de Dostoiévski não se chocam e discutem duas vozes
monológicas integrais, mas duas vozes fracionadas (em todo caso, pelo
menos uma fracionada). As réplicas abertas de um respondem às replicas
veladas do outro. A contraposição, a um herói, de dois heróis entre os quais
cada um está ligado às replicas opostas do diálogo interior do outro é o
conjunto mais típico em Dostoiévski. (Bakhtin, 2002, p.257)
Anos mais tarde, porém, Kristeva decide ampliar esse “dialogismo de vozes”
para um “dialogismo de textos”, seguindo os mesmos padrões: um texto é a replica de
outro(s), sem o(s) qual(is) ele não pode sobreviver nem, ao menos, existir. A esse
“dialogismo de textos” Kristeva designou intertextualidade, que proporcionou a re-visão
de obras tidas como “cópias”, inferiores portanto, dando-lhes “igualdade” de condições
para análise.
A intertextualidade, no entanto, não surgiu do nada. Deriva de Bakhtin e apoia-
se no momento das “inversões”, já que, no final dos 60, início dos 70, há uma “invasão”
de teorias que privilegiam os “oprimidos”. Essas teorias tentam acabar com “conceitos
fechados”, com “verdades absolutas”, instaurando a relatividade no cenário literário.
Passa-se, então, a questionar a “autoridade” que designa “boa literatura”, a chamada
literatura canônica, da “baixa literatura”, que, como diz Even-Zohar (1973, pp.1-2),
“incluiria todos aqueles tipos normalmente excluídos dos domínios da ‘literatura’, e
muitas vezes chamados de ‘sub-literatura’, ‘literatura pobre’, ‘diversão’, ‘barata’,
‘vulgar’, etc...; incluindo ‘thrillers’, histórias de detetive, romances sentimentais,
literatura pornográfica e outros.”
Por propiciar o “grito dos excluídos”, essas teorias foram prontamente aceitas
em países cuja autenticidade” literária era negada, como o Brasil, por exemplo, e
vorazmente difundidas. Tornou-se “moda” a literatura “marginal” (negros, mulheres e
latinos) e suas relações intertextuais. A literariedade, que precisava ser enfrentada, nas
palavras de Wellek (1994, p.117), deixou de existir, sendo relativizada: o que é
literatura para uns pode não o ser para outros.
21
Um dos “responsáveis” por essa “boa nova” é o conceito de Derrida: différance,
que põe fim à oposição binária existente. Tudo passa automaticamente ao status de
diferente, podendo ser bom ou não de acordo com os “olhos” de quem o vê. Segundo
Culler (1999, p.122):
a desconstrução é mais simplesmente definida como uma crítica das
oposições hierárquicas e que estruturam o pensamento ocidental: dentro/fora;
corpo/mente; literal/metafórico; fala/escrita; presença/ausência;
natureza/cultura; forma/sentido. Desconstruir uma oposição é mostrar que ela
não é natural nem inevitável mas uma construção, produzida por discursos
que se apóiam nela, e mostrar que ela é uma construção num trabalho de
desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la isto é, não destruí-la
mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes.
Nesse “fértil” contexto, a intertextualidade é bem-vinda, pois propiciará que
essas diferenças sejam o “destaque” de uma análise comparatista. Isso significa dar
“voz” a todos os “mudos” literários. Se por um lado isso é positivo, porque propicia a
re-leitura do literário bem mais generosa e inclusiva o lado ruim: amplia-o tanto
que corremos o risco de perder o “rumo” e nos determos em temas que nada
acrescentam à literatura.
Embora não se admita mais o termo cânone, em seu sentido tradicionalmente
utilizado (abolido quase com tanto desprezo quanto o conceito de influência), é inegável
que a ausência de um referencial pode levar-nos a lugar algum, isto é, à comparação de
qualquer coisa com tudo. Essa ampliação, longe de ser proveitosa, pode ser uma rua de
mão única e determinar o rompimento dos estudos de literatura enquanto ciência. Além
disso, a suposta igualdade entre os textos, proposta pela intertextualidade, é quase tão
frágil como vidro, pois depende das relações estabelecidas pelo leitor. Isso significa que
o “julgamento” não incidirá mais sobre a obra, mas estará a cargo do leitor, sobre as
relações que ele estabelece, sobre sua erudição etc. A “vítima” continua, ainda, a existir,
embora não seja mais a mesma, pois como avaliar o conhecimento de uma pessoa?
A difusão da intertextualidade, assim como o construtivismo para a educação, de
certo modo, gera uma sensação de liberdade e autonomia falsas e repletas de
desencontros. Não existe verdade absoluta, como nos diz Derrida, no entanto umas
verdades são melhores aceitas que outras e por quê? Unicamente porque isso depende
de quem as diz, isto é, é uma “democracia” ilusória.
Para que possamos discutir com maior clareza os pontos “falhos” desta que se
proclama como a “redenção dos excluídos”, mas que, por assim dizer, exclui os
anteriormente “incluídos”, passemos, então, à polêmica intertextualidade.
22
1.3. A intertextualidade e suas conseqüências para os estudos comparatistas
O fim da oposição binária, de certo modo, deu cabo do cânone, ou pelo menos
de seu conceito tradicional, ao decretar que não existe mais uma obra “boa” em
oposição a uma obra “ruim” - tudo dependerá, agora, do que se considera bom ou ruim
e de quem o considera assim. Do mesmo modo, a intertextualidade decretou o fim da
influência, pois permite uma re-leitura positiva de obras que, com o estudo de
influências, seriam consideradas “inferiores”.
Jenny (s/d., p.5), por exemplo, acredita que: “Fora da intertextualidade, a obra
literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a palavra duma língua
ainda desconhecida.” Se isso se constitui como verdadeiro, passamos anos em plena
ignorância, gastando tempo e papel à toa, que, até o surgimento da intertextualidade,
todos os estudos literários eram baseados em estudos de fontes e influências.
É interessante, no entanto, notar a relação que Jenny (s/d, p.13) estabelece entre
Tynianov e Kristeva:
Tynianov ultrapassa de longe as primeiras instituições dos poetas sobre um
murmúrio segundo, secreto, do texto. Sugere a hipótese de que toda a obra
literária se constrói como uma rede dupla de relações diferenciais: 1.º com
textos literários pré-existentes; 2.º com sistemas de significação não
literários, como as linguagens orais. Se se estender esta idéia de série extra-
literária aos sistemas simbólicos não verbais, chega-se à noção de
intertextualidade, tal como a define Julia Kristeva, a quem se deve a invenção
do termo. Se, com efeito, para Julia Kristeva, “qualquer texto se constrói
como um mosaico de citações e é absorção e transformação dum outro
texto”, a noção de texto é seriamente alargada pela autora. É sinônimo de
“sistema de signos”, quer se trate de obras literárias, de linguagens orais, de
sistemas simbólicos sociais ou inconscientes.
A ampliação do conceito de texto, bem como sua conseqüente aplicação aos
estudos comparatistas, é, na verdade, o principal foco de críticas para a literatura
comparada. A idéia de que tudo é texto, de que todo texto provém de outro(s) (e,
portanto, está em condições de “igualdade” com os demais) proporciona, de um lado,
alívio; de outro, generalizações perigosas que desfavorecem o estudo literário, pois
perde-se a noção desse literário (a famosa questão da literariedade).
Além disso, a mudança de paradigma não pode solucionar o problema principal:
o desejo de “originalidade” - no sentido de “criatividade”, embora o “destrua” em parte,
pois o que caracteriza a originalidade de um autor (ou de suas obras) será o modo como
ele absorveu as informações adquiridas ao longo da vida e não o método que
utilizamos para analisar a sua obra. Por isso, a “colcha de retalhos” (ou o “mosaico de
citações”) a que o texto literário foi reduzido é uma tentativa de mudar o foco da
23
discussão, focalizando no leitor (e não mais no autor) a análise literária, numa tentativa
de libertar o autor do sentimento de vida com seus antecessores. Decorrente disso,
tivemos a “morte do autor”, decretada por Roland Barthes, uma vez que o texto passa a
ter autonomia e ser independente de quem o “criou”; e a “liberdade” interpretativa, que
ao leitor o “poder” de decifrar a obra conforme sua capacidade de estabelecer
relações com outra(s) realidade(s). Então, com essa mudança, um texto pode ser o que
apreendemos dele.
Parece-nos reconfortante saber que o texto está aberto a múltiplas interpretações
e mais, que texto é o que julgamos sê-lo. A problemática, no entanto, longe de
desaparecer, só faz crescer e multiplicar-se.
Com a intertextualidade, a “originalidade” no sentido de origem a priori não
tem mais valor. Será vista sob outro ângulo, como nos diz Valery, “o leão é feito de
carneiro assimilado”; há apenas que saber digeri-lo. Será, pois, a digestão – ou a famosa
expressão uma questão de estômago” que caracterizará a tão almejada
“originalidade”. Essa visão “alimentar”, defendida pelo conceito de antropofagia de
Oswald de Andrade, infelizmente, também não pode resolver a questão da “autoria” -
principal motivo de discussão dos estudos literários pois, se o autor se “alimentou” de
uma obra anterior (fonte), mesmo selecionando os “pedaços”, não deixará de “dever” o
seu alimento (influência) a seu antecessor. O problema, como já vimos, não é o conceito
utilizado, mas a visão de autoria que esse conceito permite ao autor “segundo”, a
legitimidade que ele proporciona às literaturas “periféricas”, como a brasileira, que
buscam “um lugar ao sol” no vasto universo literário.
Por outro lado, como, na intertextualidade, as relações são estabelecidas por nós
leitores os responsáveis por enxergar no texto algo de “louvável”, de “original”
esbarraremos numa questão detectada com maestria por Umberto Eco (2003, p.119-
219): a “ironia intertextual”. Como a ironia, a intertextualidade depende das relações
estabelecidas pelo leitor, pois ambas existem se forem percebidas. Imagem
interessante utilizada por Eco para se referir aos diferentes níveis de leitura é a de um
banquete. O jantar seria para todos, mas alguns (os eruditos) teriam acesso ao
“banquete do andar superior”; os demais comeriam os restos (da panela, segundo o
autor) com a mesma satisfação e saciedade de quem come o banquete, isto é, os restos
seriam o banquete da maioria (ignorante) porque não há a consciência de que exista algo
“superior” àquilo que consomem.
24
Desse modo, pode-se perceber que a mudança de foco e o desejo de “inclusão”
são tão ou mais autoritários e conservadores que a famosa e “desprezada” oposição
binária. Mudam-se os termos, mas o efeito é o mesmo: a valoração do conhecimento e a
conseqüente exclusão dos “ignorantes”. O texto está aberto a todos, mas só os
“eruditos” são capazes de verificar todas as potencialidades inerentes a ele. Nisso, há de
se concordar com Eliot quando se refere à erudição como pedantismo, pois, no que diz
respeito à intertextualidade, ninguém jamais chegará ao banquete do andar superior.
Imaginará estar lá, mas não estará, pois um texto nunca esgota suas possibilidades de
relação e interpretação. que se observar, no entanto, que determinados pontos de
vista enfrentam maior ou menor grau de aceitabilidade de acordo com o grau de
“erudição”, ou de títulos, ou de sabe-se que instrumento “capaz” de medir o
conhecimento humano.
Além desses problemas alimentares, outro espinho na questão intertextual: a
absurda idéia de que não existem mais casos de influência. O “pretexto” para a
preferência pelos estudos intertextuais decorre, em grande parte, do caráter negativo
atribuído aos estudos de influência, nos quais, segundo Perrone-Moisés (1991, p.473),
“o que predomina é a observação da similitude, da analogia, do parentesco”, enquanto a
intertextualidade “privilegia a diferença, a absorção e a transformação” (idem) No
entanto, sabe-se que um estudo de influência pode privilegiar a diferença. O real
problema da influência é a questão da legitimidade que se quer garantir ao autor
segundo, isto é, ao sucessor, que supostamente lhe seria negada. Por isso, a
intertextualidade está na “moda”, por garantir ao texto a independência de que necessita
e que, de outro modo, talvez não alcançasse.
Ao mesmo tempo, a intertextualidade permite uma “liberdade vigiada” uma
democracia grega ao libertar o texto e “aprisionar” o leitor. É, no entanto, menos
perigosa que a influência, que pode ser falsa, pois, por estar focada no texto, a
intertextualidade não exige contato entre os autores. Para a intertextualidade, “quem leu
quem” não é importante, proporcionando estudos mais concretos.
Umberto Eco (2003, p.115), que sofreu influência de Borges, por exemplo,
comentou:
Lembro-me que aos dezesseis anos (portanto, por volta de 1948) eu escrevi
história de planetas: narrativas que tinham como protagonistas a Terra, a Lua,
Vênus que se enamorava do Sol etc. Eram, a seu modo, Cosmicômicas.
Divirto-me às vezes imaginando como é que Calvino conseguiu encontrar,
anos depois, assaltando a minha casa, estes meus escritos juvenis em cópia
única. Estou brincando, naturalmente, mas é para dizer que certas vezes
25
acontece-nos acreditar no Zeitgeist
12
. Em todo caso quem diria! as
histórias côsmicas de Calvino são melhores do que as minhas.
Por isso, Eco desenvolveu um esquema em que traça possíveis relações entre os
autores e suas obras:
X
A ____________________ B
Segundo Eco (2003, p.114), “a relação A/B pode colocar-se de várias maneiras:
(1) B encontra alguma coisa na obra de A e não sabe que por trás existe X; (2) B
encontra alguma coisa na obra de A e através da obra de A remonta a X; (3) B refere-se
a X e somente depois percebe que X está na obra de A.” Neste último caso, podemos
perceber “coincidências” que não deverão ser confundidas com influências, como
ocorreu com Maria Alice Faria (apud Nitrini, 1997, p.232), ao estudar Álvares de
Azevedo e Musset.
no prefácio, pode-se ler que M.A. Faria (apud Nitrini, 1997, p.232) encontrou
“uma ria dificuldade: ao invés de encontrar facilmente a decantada influência
começaram a se evidenciar as diferenças no terreno da expressão literária, dificultando-
se sempre mais a comparação enquanto que no estudo de temperamentos, esboçaram-se
aproximações que dependeriam da própria constituição individual do poeta.” Nesse
caso, a influência inexiste, conforme a “teoria” vigente, o que existe é uma afinidade
entre os escritores.
Também é preciso atentar para a questão proposta por Aldridge em relação à
influência, quando “algo que existe na obra de um autor (...) não poderia ter existido se
ele não tivesse lido a obra de um autor que o precedeu.” (Aldridge apud Nitrini, 1997,
p.130) Além disso, se encararmos a influência como uma “assimilação criativa”,
conforme as palavras de Candido, o principal problema da influência a autoria
desaparece. E mais: segundo Bittencourt (1996, p.60), “para o autor [Candido], em
certos casos a influência pode representar, em relação à obra do colonizado, uma
espécie de influxo positivo, de modo que a absorção do empréstimo adquire um novo
significado.” Em suma, em muitos casos, a influência pode ser positiva, transformadora
e, além disso, capaz de dar continuidade ao escritor “primeiro”, cuja obra morreria se
não fosse “revisitada”.
12
Zeitgeist, segundo Eco, é “uma cadeia de influências recíprocas.” Ver Borges e minha angústia da
influência. In.: ___. Sobre a literatura. p 115.
26
No entanto, devido ao perigo das falsas influências e por isso a necessidade de
um trabalho de influência possuir um caráter bibliográfico a intertextualidade se
apresenta mais “segura”, pois conta inclusive das “coincidências” possíveis entre
autores, sem que se precise comprovar a influência de um sobre o outro. Sendo assim, a
intertextualidade permite a maleabilidade necessária ao estudo comparatista,
“garantido” sua “autenticidade” de acordo com o grau de “erudição” de quem o produz.
Além de um trabalho supostamente mais “seguro” e da re-visitação de textos,
renegados à segunda ordem, a intertextualidade também é, em parte, responsável pela
ascensão da(s) cópia(s) e, conseqüentemente, da(s) tradução(ões). Foi nesse contexto,
em que a originalidade não tem mais valor enquanto “origem” e que os textos estão em
igualdade, que a tradução “conseguiu” o status que sempre lhe negaram privilegiando o
“original”.
A tradução passou, então, a ser uma rica fonte de estudos comparatistas. Seu
crescimento foi tanto que Susan Basnett (1993, p.24) chegou a exigir que a Literatura
Comparada, que sempre tratou a tradução como uma “prima pobre”, se rendesse à
soberania da Tradução e se tornasse uma disciplina auxiliar:
A Literatura Comparada, enquanto disciplina, teve seu momento. A pesquisa
transcultural nos estudos feministas, na teoria pós-colonial e nos estudos
culturais mudaram a face dos estudos literários em geral. Deveríamos encarar
os Estudos de Tradução como a disciplina fundamental a partir de agora,
tendo a Literatura Comparada como valiosa, porém subsidiária, área de
estudo.
Sem concordarmos integralmente com Basnett, pois a inversão de papéis não
resolveria o caso de nenhuma das disciplinas, que se admitir que, apesar do
“sucesso” dos estudos de tradução, ainda existe um preconceito velado sobre os textos
traduzidos, pois não se admite que a leitura da tradução substitua a do original” sob o
risco de não apreciarmos a obra em sua “totalidade”. Isso significa que ainda não se
considera a tradução como um texto em igualdade de condições com o “original”, pois
o “original” conteria o “conteúdo integral” da obra. A tradução seria a interpretação
(ou a leitura) do “original” e, como tal, teria alterações significativas, que geram
trabalhos interessantes de “perdas e ganhos” (pois muitas vezes as traduções melhoram
o original”) do processo tradutório. O texto Gênero e a Metafórica da Tradução, de
Lori Chamberlain
13
, por exemplo, nos mostra, numa perspectiva feminista, o papel
destinado às traduções: les belles infidèles”, que ou são belas ou são fiéis (a exemplo
do que vulgarmente se atribuí às mulheres).
13
Ver CAMBERLAIN, 1998, pp.33-53.
27
Na verdade, a tradução, como nos diz Tania Carvalhal, é o mesmo texto sem o
ser, e, evidentemente, não pode ser encarado com igualdade no sentido lato do termo,
pois, entre outros fatores, a tradução conta também com as questões temporais (quando
o texto foi traduzido?), autorais (por quem o texto foi traduzido?), metodológicas (com
que objetivos o texto foi traduzido?) e de origem (tradução direta ou indireta do
“original”?).
A questão da tradução interessa-nos por dois motivos especiais: é uma
“ferramenta” importante para os estudos comparatistas e, principalmente, porque
trabalharemos com texto traduzido supostamente, direto do russo. A tradução bastará
aos nossos objetivos, pois não iremos nos deter em questões estilísticas. No entanto, a
resistência ao estudo do texto de Dostoiévski, sem o conhecimento da língua russa, foi
grande, comprovando que, de certo modo, as “coisas” permanecem as mesmas na
literatura comparada, apesar da intertextualidade.
Como se sabe, a intertextualidade é uma questão de ponto de vista; é, portanto,
subjetiva (que passa pelo sujeito). Essa subjetividade, como vimos, não é tão subjetiva
assim, ela depende dos olhos” de quem a vê. Mesmo assim, é capaz de operar
verdadeiros “milagres” no que se refere à legitimidade de um autor. Basta ver o que
Silviano Santiago
14
, por exemplo, fez com Eça de Queirós, em seu artigo Eça, autor de
Madame Bovary.
Apoiado pela intertextualidade, Silviano identifica em Eça um reescritor de
Flaubert, cuja “originalidade” estaria nos conceitos de visível e invisível das duas obras.
Eça, que, segundo Santiago (1978, p.54), foi acusado de “copiar” o seu O Crime do
Padre Amaro de Zola, pôde ser “salvo” pela intertextualidade, porque, por pertencer a
um sistema literário (usado aqui sem a intenção estrutural de Even-Zohar) sem o
prestígio do francês, mesmo sendo contemporâneo, estaria fadado ao rótulo de
“influenciado”. O rótulo, em si, nada corresponde verdadeiramente, mas carrega uma
carga pesada de “dívida”. Essa dívida ocorre pelo suposto status do influenciador em
relação ao influenciado, como se este nada acrescentasse de novo àquele fosse assim
não seria outra obra, mas a mesma. Aliás, até isso pode ser questionado se pensarmos
nos contos Pierre Menard, autor del Quixote cuja semelhança com o título de
Silviano não é gratuita – e Kafka y sus precursores, de Jorge Luis Borges.
Em Pierre Menard, Borges questiona conceitos como originalidade e plágio, ao
determinar que o contexto em que o texto está inserido o modifica definitivamente. Por
14
Ver SANTIAGO, 1978, pp.49-65.
28
isso, um texto (re)escrito teria um sentido totalmente novo. Borges também afirma, em
Kafka y sus precursores, que “cada escritor cria seus precursores”, alterando a ordem
cronológica dos textos. No entanto, se a leitura de Kafka modifica as leituras anteriores
a ele é porque estamos “influenciados” por sua leitura.
No entanto, o caráter negativo que, normalmente, se atribui ao conceito de
influência gera um certo receio de utilizá-lo, fazendo com que optemos por outros
termos, como a intertextualidade. Um exemplo dessa visão tradicional do conceito de
influência pode ser observado com o exemplo dos escritores Dostoiévski e Graciliano
Ramos. Por uma questão “cultural”, se nos detivermos em um estudo de fontes e
influências, no seu sentido mais usado de dívida, mesmo que não se queira, estaremos
dizendo que “Dostoiévski é superior a Graciliano” o que não podemos admitir por
convicções literárias e, no caso, até estéticas pois o primeiro “alimentou” o segundo.
Na verdade, Graciliano Ramos leu, entre outros autores, Dostoiévski e essa leitura,
como as outras, marcou-o como escritor. Semelhanças no contexto histórico, por
exemplo, a tendência socialista-comunista, poderiam explicar a analogia entre eles, mas
não se pode atribuir somente a isso os inúmeros casos em que esses dois autores se
ligam e qualquer pessoa medianamente inteligente que tenha lido os dois é capaz de
relacioná-los.
A ligação existe, mas por oposições. Um estudo de influência é perfeitamente
possível, pois, além da viagem que realizou e documentou para a União Soviética
(Viagem), Graciliano era leitor confesso de Dostoiévski. de se reforçar, no entanto,
que o conceito de influência aqui adotado corresponde à visão de transformação ou, nas
palavras de Nitrini (1997, p.131), a “uma espécie de intrusão no ser do escritor ou uma
modificação”. Nesse caso, a influência está enraizada na construção da personalidade do
autor, descaracterizando o “plágio”, embora se percebam os pontos de contato entre os
dois escritores, como é o caso de Dostoiévski e Graciliano. É a esse enraizamento que
chamamos de “alma russa”, o que demonstra, por um lado, a permanente presença de
Dostoiévski nas obras de Graciliano e, de outro, a assimilação criativa dessa influência
por parte de Graciliano. É com essa perspectiva que trabalharemos o conceito de
influência neste trabalho.
29
2. Uma Coincidência Histórica
A Rússia é sublime – um caos universal, bem ordenado.
Dostoiévski (apud Guntner)
O Brasil é um país fundamentalmente carnavalesco.
Graciliano Ramos (Linhas Tortas)
O queem comum entre a gélida Rússia e o nosso Brasil tropical? A diferença
climática esconde (des)igualdades que um olhar atento ao passado destas terras pode
perceber. Por motivos diversos, faremos apenas uma breve incursão por esse
escorregadio terreno, que é a História, a fim de nos localizarmos no fértil período de
produção intelectual desses países, que correspondem, respectivamente, à metade final
do século XIX e ao início do século XX. Essa produção floresceu nesse período e
correlaciona-se intimamente com os movimentos políticos da época. Por isso, é de suma
importância que se trace, ainda que de forma resumida, um quadro externo das
motivações desse florescer.
Mas, afinal, o que entre a Rússia e o Brasil que justifique tal aproximação?
Resumidamente, pode-se citar a desigualdade social, agravada pelas dificuldades
climáticas, no caso do Nordeste, a opressão e a resistência, alimentada pela esperança
comum no socialismo, e o crescimento intelectual, ainda que o conhecimento fosse,
como hoje, para poucos. Em ambos os países, perceberemos o massacre do povo em
benefício de uma minoria, a “elite”, e, como conseqüência, uma série de movimentos,
prisões e mortes na luta pela utópica igualdade. É nesse contexto que tanto Graciliano
Ramos quanto Dostoiévski produziram as obras que analisaremos mais adiante. Em
decorrência disso, nossa preocupação será com o período que corresponde à publicação
de Crime e Castigo (1866) e Angústia (1936). Cabe ressaltar que tanto um quanto outro
foram presos políticos Dostoiévski chegou a ser condenado à morte, tendo sua pena
“suavizada”, minutos antes da execução, para serviços forçados na Sibéria. Isso reforça
o engajamento de ambos nas questões sociais e corrobora à existência deste capítulo.
30
2.1. Um breve olhar sobre a Rússia
Uma questão que perpassa a história da Rússia, embora seja, por assim dizer,
geográfica, é a sua inclusão na Europa ocidental. Kochan (1962, p.11) coloca bem a
questão:
Os acontecimentos da história russa têm sua origem numa vasta planície que
se estende desde a Europa oriental à Sibéria Central. As suas fronteiras, a
norte e nordeste, foram o mar Branco e o Oceano Glacial Ártico. Quanto aos
Urais, estes nunca constituíram de forma alguma uma barreira climatéria ou
física. Aqui e ali a cadeia de montanhas atinge dois mil metros. A altitude
média anda à volta dos 500 metros. Inúmeras passagens e vales tornam fácil
o trânsito quer para leste quer para oeste. Mas onde acaba a Europa? E onde
começa a Ásia? Impossível determinar. É esta incerteza geográfica que
obriga à eterna pergunta: pertencerá a Rússia à Europa, à Ásia ou formará
antes, por si só, um mundo à parte?
Mais tarde, veremos que o desejo russo de “ocidentalização”, que oscilou tanto
quanto seus czares, motivou a revolução que tanto se temia, mas não nos adiantemos.
A quantidade de denominações, de governantes e de guerras que assolou essa
região é tão impressionante quanto a lenda da origem do regime autocrático que se
instalou. Segundo Keller (s/d., p.22), os eslavos viviam em regime democrático”, pois
não tinham quem os governasse. As decisões eram tomadas pelas famílias,
desconheciam templos e sacerdotes, não sabiam ler nem escrever. Então,
“desorientados”, clamaram que os dominassem: “— Queremos um rei disseram uns
aos outros um rei que nos governe e oriente segundo a lei.” Ou ainda: “O nosso país é
grande e rico; mas carece de organização. Vinde a nos, reinai e governai-vos.” (Keller,
s/d, p.22)
Verdadeira ou não, o fato é que o “generoso” Runik atendeu ao pedido do povo
e, em 862 d. C., fundou a primeira dinastia russa. Ainda sob o nome de Rus
15
e o
domínio de Oleg, sucessor de Runik, foi ampliada com a aquisição de Kiev, cidade ex-
ucraniana que se tornou o núcleo do novo império. Segundo Guntner (1959, p.160), “a
Rússia de Kiev durou 400 anos, aproximadamente de 860 a 1240” e também foi
responsável pelo cristianismo russo.
No final do século XIV, no entanto, começaram os ataques mongóis, que,
segundo Kochan (1962, p.26): “extinguiram o mundo russo que tinha Kiev por centro e
fizeram profundas incursões para o norte; seu domínio impiedoso durou 250 anos, até
15
Segundo Guntner (1959, p.159), ‘Rússia’ provém de ‘rus’ ou ‘ros’. Os filandeses chamavam aos
varegues ‘rus’, ao parecer porque os primeiros invasores viquingues procediam duma região da Suécia
conhecida por Roslagen. Durante séculos, a Rússia foi chamada ‘Rus’, até que o nome se ampliasse para
Rossya, ou Rússia. De acordo com outra teoria, ‘Rússia’ provém de ruotsi, nome que os filandeses davam
aos suecos que, por sua vez, foi sugerido pela palavra sueca rothsmenn, ou navegantes”.
31
480.” Foi um período obscuro, cheio de retrocessos, pois os mongóis foram
“responsáveis” pela inclusão do sistema autocrático e pelo atraso da Rússia em relação
aos países europeus, além de instituir a arrecadação de impostos
16
o que, obviamente,
tornou o povo mais pobre, mas garantiu uma certa estabilidade financeira ao governo.
Um século e meio depois, os eslavos rebelaram-se e ocorreu a derrota dos
mongóis, cuja ameaça permaneceu por longos anos. Foi nesse contexto que Ivan III
assumiu o poder de Moscóvia, de 1462 a 1505:
Ivan III o Grande, que pretendia ser descendente de Runik, foi o primeiro “rei
nacional”; foi também “internacional” e praticou o heróico feito de desposar
o Império Romano do Oriente. Isto é, casou-se em 1472 com Sofia
Paleólogo, sobrinha de Constantino XIII, último imperador grego de
Constantinopla. Assim, pelo menos em teoria, uniram-se a Rússia em
Bizâncio. Ivan assumiu o título de Czar (César), embora não fosse coroado
para tal, e adotou a águia dupla de Bizâncio como símbolo do novo império.
(Guntner, 1959, p.161)
Assim surgiu o período czarista na Rússia, que contou com personalidades
famosas como Ivan IV o Terrível, Pedro o Grande e Catarina II a Grande. Foi, no
entanto, com Ivan III que a Rússia se constituiu como nação. Comparado a Luís XI da
França, por ter criado um país centralizado, era pacífico e “preferia atingir seus
objetivos por meio de calculados e ardilosos golpes diplomáticos. em último recurso
usava a força e a violência.” (Kochan, 1962, p.31) Além disso, por intermédio de sua
esposa Sofia, resolveu remodelar a Rússia, “pondo a cidade de acordo com a sua nova
dignidade de sucessor de Constantinopla.” (Kochan, 1962, p.39) No entanto, seu
“sucesso” interno não foi tão positivo quanto o externo, o que resultou em graves
problemas aos seus sucessores: Vassali III, seu filho, e Ivan IV, seu neto.
Segundo Keller (s/d., p.33), Ivan IV “imprimiu deliberadamente ao seu regime a
forma política de monarquia absoluta.” Assumiu o trono aos 17 anos, em 1547, embora
o tenha herdado aos 3, e casou-se, no mesmo ano, com Anastácia. Era cruel e
impiedoso, mas dizem que teve um casamento feliz, embora curto, pois Anastácia
morreu em 1560, ainda muito jovem.
Nem Ivan IV nem seu avô, Ivan III, chegaram a ver consumada a escravidão,
mas, “depois de Ivan, as leis se foram fazendo cada vez mais rigorosas e os servos
tornaram-se virtualmente escravos
17
. Estava-lhes proibido mudar-se, emigrar ou
trabalhar para outros senhores que não o seu.” (Guntner, 1959, p.163)
16
Ver KOCHAN, 1962, p.29.
17
A distinção entre servos e escravos é bastante sutil, sendo estes últimos vistos como objeto de seus
donos. O servo, ao contrário, é uma “propriedade” com direitos, como ao uso da terra, por exemplo.
32
Então, “reino após reino, se foram fixando as principais características do
cenário russo tal como viemos conhecê-lo depois. Para citarmos um exemplo, alargou-
se constantemente o abismo que separava os governantes do povo, os privilegiados dos
desprivilegiados, as classes fantasticamente rica e aparatosa da classe camponesa
oprimida, desgraçada duma miséria indescritível.” (Guntner, 1959, p.162) Salvando as
devidas proporções, é essa situação que, infelizmente, tem sido o destino do povo russo
até os nosso dias, indiferente da forma de governo ou governante.
De 1689 a 1725, quem assumiu o poder foi Pedro o Grande, responsável pela
“modernização” da Rússia. Tão cruel quanto Ivan IV, transferiu a capital russa para São
Petersburgo (anteriormente a capital era Moscou, ou Moscovo), viajou para o exterior,
reformulou o alfabeto e intensificou a servidão. Como desejava incluir a Rússia na
Europa ocidental, investiu na educação. Segundo Kochan (1962, p.127), Pedro “obrigou
a Rússia a estudar ou antes alguns russos a estudarem certos assuntos.” Essa política
tambémo obteve muito êxito, pois, entre outros fatores, muitos russos que saíram do
país para trazer conhecimentos europeus não retornaram à Rússia.
Após sua morte, foi a vez de a Rússia ser comandada por mãos femininas, o que
também não deu bons frutos. Primeiro foi Catarina I, esposa de Pedro (1725-27), depois
Ana de Curlândia (1730-40), filha de Ivan V, Isabel (1741-62), filha mais moça de
Pedro e, finalmente, Catarina II a Grande. Esta última governou por trinta anos, até
1796.
Catarina II dizia-se “liberal”, admirava Voltaire e instituiu o francês como língua
oficial da corte. Com o francês, vieram o Iluminismo e as idéias revolucionárias e
Catarina percebeu o quanto isso era perigoso. Cortou relações com a França, recolheu
Voltaire das prateleiras russas e “odiou” a Revolução Francesa. Foi em seu governo que
ocorreu a segunda revolução dos servos a primeira ocorreu em 1671 cujo desfecho
foi a execução pública do líder da rebelião. Com sua morte, seu filho Paulo que
diziam não ser herdeiro de Pedro III assumiu o poder. Governou por pouco tempo,
pois “em 1801 um grupo de conspiradores introduziu-se na câmara de Paulo e com a
cumplicidade do grão-duque Alexandre, filho e herdeiro do czar, matou o imperador.”
(Kochan, 1962, p.156)
Alexandre assumiu, então, o poder da Rússia até 1825 foi em seu governo,
portanto, que nasceu Fiodor Dostoiévski
18
, em 1821. Para resumirmos sua
18
A data de nascimento de Dostoiévski é incerta: uns afirmam ser 30 de outubro; outros, 30 de novembro
de 1821, devido à mudança no calendário russo.
33
personalidade, tomamos emprestadas as palavras de Guntner (1959, p.166): “Alexandre
I (1801-25), o arquiteto da Santa Aliança, era uma personalidade tortuosa. Gostava de
considerar-se uma espécie de representante de Cristo na terra”, embora não dispensasse
o uso da força, pois “durante seu governo um oficial rebelde, para ser poupado a
humilhação do cnute, teve sua pena comutada em seis mil bastonadas.” (Gunter, 1959,
p.166) É de Guntner também a seguinte afirmação sobre o século XIX na Rússia: “Os
intelectuais inflamaram-se. Nobres como Alexandre Herzen tornaram-se
revolucionários e, como o sabem todos os leitores de Dostoievsky, um sentimento de
culpa, neurótico, cumulativo, explosivo, um tumulto gerado pelas angústias e pelas
aspirações abalava o país.” Foi nesse contexto que Nicolau I (1825-55), o czar que
condenou Dostoiévski à morte, assumiu o trono russo.
Como era de se esperar, uma série de revoltas instauraram-se no país. Segundo
Kochan (1962, p.161):
Em 1801, um decreto tornou ilegal a venda de servos. Dois anos mais tarde
tentou-se, com algum interesse, criar uma classe de agricultores livres, o que
obrigava o proprietário da terra a emancipar os seus servos e fornecer
determinadas áreas de terra, nos termos acordados, aos servos libertos.
Porém, em 1855, apenas um e meio por cento da população tinha obtido a
liberdade por este meio.
A situação dos nobres, por sua vez, também não andava nada bem. “Em 1843,
por exemplo, mais de 54% das terras dos nobres foram hipotecadas por diversas
instituições do Estado.” (Kochan, 1962, p.160). Além disso, a revolta dos servos
provocava o assassinato dos nobres, como ocorreu, em junho de 1839, com o pai de
Dostoiévski, morto pelos seus servos na estrada entre Darovoe e Tchermachnia. (Arban,
1898, p.182).
É no período de Alexandre, no entanto, que encontramos os motivos de tamanha
rebeldia. A oposição a Napoleão proporcionou o que a Rússia sempre almejou: um
contato direto com a Europa ocidental. Esse contato gerou um conflito na classe nobre –
única que tinha acesso ao saber e a crescente insatisfação dos servos. Por isso, o
século XIX representou, para a Rússia, o apogeu de sua produção intelectual, sendo-nos
possível concordar, em parte, com as palavras de Herzen
19
(apud Kochan, 1962, p. 162):
“só em 1812 começou a verdadeira história da Rússia.”
Nicolau I assumiu o poder aos 29 anos. Era irmão mais moço de Alexandre e seu
reinado foi marcado por repressões, prisões e mortes. O aumento do número de
indústrias e de operários propiciou uma série de revoltas camponesas, um total de 712
19
“Herzen é o primeiro grande representante da Intelligentzia russa”, segundo Carpeaux, 1963, p.2213.
34
de 1826 a 1854. Já no período anterior a Catarina II havia-se iniciado esse processo, que
em 1825, culminou com a Revolução Dezembrista. Foi por temer uma revolução, cada
vez mais iminente, que Nicolau se tornou tão “controlador”. “De qualquer forma, uma
geração completa de pensadores e escritores russos sofreu com este opressivo regime:
Puskine, Lermontov, Herzen, Belinsk, Turgenev, Bakunine e Dostoievski, foram alguns
dos mais proeminentes.” (Kochan, 1962, p.167) Foi nesse período, portanto, que a
Rússia “acordou”.
Foi neste conturbado período histórico que Dostoiévski cresceu. Filho de uma
Rússia aos pedaços, não se admira que sua primeira obra Gente Pobre, publicada em
1846, quando tinha apenas 25 anos, relate a história de um homem que mora em um
quarto dentro de uma cozinha, cuja separação se por um biombo. Também o título
nos remete ao estado de calamidade do país naquela época.
Em 1845, Petrashevski organizava reuniões em sua casa. Segundo Kochan
(1962, p.174): “o círculo Petrashevski era composto por ‘homens de diferentes esferas’:
oficiais do exército, estudantes, artistas e littérateurs jovens, como Dostoievski,
Danilevski (o precursor de Spengler), e Pleschchyev, o poeta. Aqui as idéias socialistas
pré-marxistas, tais como Louis Blanc, Fourier, Cabet e Considérant eram lidas e
discutidas apaixonadamente.” O grupo acreditava que uma verdadeira revolução deveria
incluir o povo, por isso Petrashevski estudava cuidadosamente todos os fenômenos das
rebeliões camponesas da Europa ocidental, numa tentativa de inserir o povo russo nesse
processo.
Esse período foi marcado também pela Intelligentzia russa, cujos membros,
segundo Hauser
20
(1698, p.168), “expressavam de maneira mais violenta o pensamento
anti-religioso e antitradicional da intelectualidade.” Nos anos 60, no entanto, “cresce
não só o número de progressistas e de ocidentalistas, mas também de eslavófilos”
(Hauser, 1968, p.169) - o que permitiu o equilíbrio entre os dois grupos. Segundo
Hauser (1968, p.170), “deve-se distinguir duas fases no movimento eslavófilo do
mesmo modo que se deve falar das diferentes gerações de ocidentalistas”, que “o
reformismo e o racionalismo dos anos 40 se transforma em socialismo e materialismo
nos anos 60 e 70”, fundamentados no “pan-eslavismo e populismo de Panilevski,
Grigoriev e Dostoiévski” (Hauser, 1968, p.170).
20
Todas as citações de Hauser são livre tradução.
35
O engajamento “político” de Dostoiévski rendeu-lhe, além da prisão referida,
inspiração para alguns personagens
21
. Sua condenação ocorreu em 16 de novembro de
1849, mas, obteve “perdão”, em 24 de dezembro do mesmo ano, e foi encaminhado aos
serviços forçados na Penitenciária Omsk, onde chegou aos vinte e três dias de janeiro de
1850, segundo Arban (1989, p.183). Sua prisão – depois da qual se tornou mais cristão e
“conservador” durou até meados de fevereiro de 1854. Um ano depois, em março de
1855, Nicolau I morreu e Alexandre II, filho de Nicolau, ascendeu ao trono.
Alexandre II governou de 1855 a 1881, ano em que tanto ele quanto Dostoiévski
morrem. Foi em seu governo que Dostoiévski produziu e publicou sua obra-prima
Crime e Castigo. Mas como foi o governo de Alexandre II? Por diversos motivos,
Alexandre queria acabar com a servidão. A crescente industrialização e contratação de
operários demonstrava que o trabalho assalariado era mais produtivo que o dos servos.
Além disso, a “ocidentalização”, para a qual a Rússia se encaminhava, não “combinava”
com o regime escravista. Então, e não por bondade, Alexandre II libertou os servos,
diminui o tempo de serviço militar (de 25 para 15 anos) e “democratizou” a educação,
antes destinada só aos nobres.
No entanto, a vida dos camponeses piorou, pois, sem terra nem trabalho,
“nada mais podiam fazer senão ir para as cidades.” (Kochan, 1962, p.195) O problema é
que a sua liberdade foi comprada e não conquistada, mas os camponeses não tinham
com que a pagar. A situação era de tal modo terrível que
para pagar suas dívidas o camponês via-se obrigado a vender os cereais para
exportação para a Europa ocidental. Mas ‘o celeiro da Europa’ conseguiu
alcançar esta posição à custa do empobrecimento da sua própria população.
A pressão econômica era tal que o camponês tinha que vender os cereais [de]
que ele necessitava para o seu próprio consumo. (Kochan, 1962, p.195)
A fome assolava o povo russo, cuja mortandade chegou a níveis inacreditáveis,
mas, ainda assim, a “emancipação deu algum impulso ao desenvolvimento capitalista e
à urbanização da Rússia.”(Kochan, 1962, p.195)
Apesar das inúmeras reformas realizadas, como a abolição da escravidão em
1861, “Alexandre II guiou-se pelo princípio de ceder o mínimo possível; o estritamente
necessário para evitar uma catástrofe que se anunciava iminente. As insuficiências
dessas reformas começaram a se fazer sentir por volta de 1870” (Eichenbaum, 1980,
p.39) - período que não nos cabe avaliar, pois Crime e castigo já estava publicado.
Eis o panorama em que surgiram as primeiras sementes do socialismo por toda
Europa ocidental, especialmente na Rússia, que culminou com a Revolução de 1917.
21
Ver KOCHAN, 1962, pp. 175 e 179.
36
Não nos caberá, no entanto, verificar esse processo, pois já cumprimos o nosso objetivo,
isto é, traçamos um panorama da Rússia de Dostoiévski até o momento da publicação
de Crime e castigo. Passemos, então, ao Brasil de Graciliano Ramos.
2.2. Um olhar sobre o Brasil
A história do Brasil teve seu marco inicial com a sua “descoberta” por Pedro
Álvares Cabral, em 1500. Foi assim que, anos mais tarde, os portugueses aqui chegaram
e encontraram um “paraíso”: terra vasta e povo “dócil”, que “implorava” por ser
dominado e catequizado. Afinal, nada é mais reconfortante do que saber que fomos
explorados por um bem maior mesmo que o bem em questão não seja o nosso, mas o
de outros. No entanto, não foi com docilidade que nossa história se construiu. Nelson
Werneck Sodré, num pequeno, mas interessante livro A República (uma revisão
histórica) – conta-nos o que a “história vulgar”, segundo o autor, nos omitiu. Para Sodré
(1989, p.9):
O Império foi, aqui, a continuação da Colônia, quanto ao fluxo da renda para
o exterior, até pouco mais ou menos a metade do século XIX, passando a
acumulação capitalista, de forma dependente, a partir de então. Esse processo
de mudança é que vai abalar a estrutura institucional obsoleta da Monarquia,
impondo alterações que terão episódio final na liquidação dela. A República
é a forma que assume, no Brasil, o processo de avanço das relações
capitalistas, pois, quando ra o avanço, vai eliminando a geração colonial
que o impedia. Para isso é que ocorrem as reformas, entre as quais a de
mercado de trabalho se destaca. Daí por diante, nas áreas em que as relações
capitalistas se desenvolvem, cresce o mercado de trabalho, isto é, o trabalho
assalariado amplia o seu espaço.
Nesse contexto, Sodré desmistifica as transformações de Império para
República, bem como a abolição da escravidão no Brasil algo bastante semelhante ao
processo que ocorreu com os servos russos. Para o autor, a Monarquia foi um
“acidente” que culminou com a Independência, em 1822.
Como as classes dominantes queriam manter seus privilégios, não houve uma
revolução explícita, mas “o processo foi difícil e demorado, com lutas e vítimas”.
(Sodré, 1989, p.13). São de Sodré (1989, p.14) também as seguintes afirmações:Pela
Constituição de 1824, os escravos o eram considerados brasileiros nem cidadãos;
adiante, passaram a ser considerados brasileiros, quando aqui nascidos, mas nunca
cidadãos”.
A Proclamação da República e a Abolição da Escravatura são marcos
importantes da história do Brasil e possuem, em certa medida, aproximações com as
transformações da história russa, como a abolição dos servos, no que diz respeito às
37
motivações dessas mudanças. Sem nos alongarmos muito em detalhes importantes e
necessários para a compreensão dos fatos – resumiremos que foi por interesse das elites,
e não do povo obviamente, que tais dádivas nos foram dadas. O fim da escravidão, por
exemplo, justifica-se pela ascensão do capitalismo, pela mão-de-obra estrangeira mais
qualificada, especialmente a italiana, e pelo medo da revolta que se intensificava nos
quilombos. A prova está que, livres, os negros, assim como os servos russos, não tinham
para onde ir ou o que fazer. Nas palavras de Sodré (1989, pp.41-42):
Em 1888, um século, os escravos foram atirados à estrada. Não tinham
condições para outra forma de trabalho senão o da terra. Foi como se, hoje,
consideradas as proporções, fossem despedidos 700 mil empregados
operários sem qualificação, que tantos eram ainda os escravos naquele ano.
Colocar como desempregados 700 mil trabalhadores inaptos para qualquer
outro trabalho que não o da lavoura foi, realmente, um traço definidor do que
era a classe dominante brasileira daquela época.
Outro mito da história brasileira foi a sua trans-formação em República. Não foi
sem ônus que tal fato nos ocorreu. Pagamos caro por nossa “independência” que, na
verdade, nunca ocorreu porque a dívida ainda existe. Os interesses da elite, como
sempre, foram os motivadores dessa mudança, cujas conseqüências ainda podem ser
vistas em qualquer esquina. A educação e o direito ao voto eram de uma minoria,
geralmente ociosa, pois, sabe-se por que, o trabalho, em especial o manual, era visto
como indigno.
Foi assim que, resumidamente, surgiu a República brasileira: um país jovem,
endividado e com um grande contingente de desempregados e analfabetos. No entanto,
segundo Sodré (1989, p.73), a passagem à República foi positiva porque “gerou
condições que, no processo histórico, levaram a alterações muito mais importantes. O
movimento histórico de 1889, realmente, trazia em germe o movimento de 1930
quando a República ganhou nova dimensão.” É, pois, exatamente, este momento que
nos interessa.
Para Vizentini (1983, p.11): “a República, implantada pelo golpe militar de 15
de novembro de 1889, inaugurou um sistema federativo de ampla autonomia estadual e
de inspiração e formas liberais.” No entanto, como privilegiava os Estados mais
“fortes”, São Paulo e Minas Gerais, devido ao cultivo do café, descontentava os demais
estados, cujo poder era simbólico. A situação agravou-se com a Primeira Guerra
Mundial, cujos “efeitos externos (...) prenunciavam o desgaste de um sistema sócio-
político-econômico e o advento de profundas transformações, uma nova etapa no
processo histórico brasileiro.” (Vizentini, 1983, p.14)
38
Por isso, a crise de 1920 eclodiu. A política do “Café-com-leite” tornou-se
insustentável aos cofres do governo, causando o descontentamento de estados como o
Rio Grande do Sul, que não era beneficiado por essa política, mas sofria as
conseqüências da superprodução do café, especialmente agora que os Estados Unidos
investiam seu dinheiro em armamentos. O papel do Rio Grande foi importantíssimo na
Revolução de 30, pois foi com ela que Getúlio Vargas tomou o poder, ainda que em
caráter provisório.
Uma série de greves explodiu em 17, o que demonstrava, por um lado, a
insatisfação do povo e, por outro, o início de uma mobilização organizada em
sindicatos, partidos etc. Em 22, ocorreu o famoso episódio do Forte de Copacabana, que
marcou o início de uma série de revoltas. Também a “Semana de Arte Moderna, em
fevereiro, desencadeou um movimento artístico-cultural, cujo significado superava o
sentido estético, na medida em que refletia o descontentamento, no pós-guerra, em
relação aos padrões culturais e ideológicos dominantes.” (Vizentini, 1983, p.23)
A Primeira República, então com os dias contados, começou a ser ameaçada por
manifestações operárias e intelectuais, especialmente representadas pelo PCB, que teve
sua fundação em 22. O Rio Grande do Sul também se opôs à Primeira República e
formou a Coluna Prestes, que objetivava alertar os operários sobre o governo federal.
Mais tarde, Prestes abandonou os liberais, cujo objetivo era “trocar seis por meia dúzia’,
ou nas palavras de Prestes (apud Vizentini, 1983, p.62), expressas em carta de 22 de
novembro de 1929:
Dia a dia aumenta em mim a convicção de que os liberais desejam tudo
menos a revolução (...). Nestas condições, esgotada a última esperança dos
que ainda acreditavam que os bernardes, antônios carlos, borges e getúlios
quisessem de fato regenerar a República, e que fossem bastante ingênuos
para auxiliar uma revolução que necessariamente teria que começar
eliminando-os, resta-nos um único caminho, caminho pelo qual venho
muito me batendo, e que consiste em levantarmos com toda a coragem uma
bandeira de reivindicações populares das mais vastas massas de nossa
paupérrima população das cidades e do sertão.
O tom profético de Prestes, no entanto, não impediu a ascensão da Aliança
Liberal, em 30, após a Revolução de 3 de outubro do mesmo ano. Foi essa revolução
que marcou o início da Segunda República, ou República Nova (1930-37), cujo
governante foi Getúlio Vargas.
Com a tomada do poder, Vargas pretendia restaurar a República, que, de fato,
nunca existiu. Restaurá-la, portanto, significava manter os mesmos privilégios de
outrora. Embora o discurso getuliano fosse populista, notou-se, com o tempo, que suas
39
ações eram ditatoriais. Em outras palavras, Getúlio prometeu modificar o país e o fez,
só que sob moldes tão ou mais cruéis que os anteriores.
Se analisarmos o texto do próprio Getúlio (apud Carone, 1978, p.13-7),
verificaremos um discurso que, infelizmente, nunca se tornou prática. O desejo de
“construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberto
à colaboração de todos os seus filhos”, cuja democracia fosse “de realidade e
confiança”, construída “sem violências desnecessárias”, chocou-se com a realidade, mas
não foi só isso. Getúlio ainda pretendia o que hoje nos parece piada conceder
anistias e “manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas
improdutivas e suntuárias único meio eficiente de restaurar as nossas finanças e
conseguir saldos orçamentários reais”, entre outros compromissos que nunca saíram do
papel.
A conseqüência direta do governo getulista foi a criação de diversos partidos,
pela primeira vez opositores no sentido lato. A reação do governo para essa oposição foi
a Lei de Segurança Nacional, de 1935. Esta lei previa punições para crimes:
1. políticos: qualquer manifestação contrária ao governo, incluindo a censura de
qualquer meio de comunicação (impressos, reuniões, comunicados por rádio etc.);
2. de ordem social: todo ato capaz de subverter a ordem do país, incluindo as
organizações partidárias.
Enfim, qualquer ato que o governo julgasse conspirar contra a “ordem social”
estava previsto em lei e seria punido com a reclusão, cujo período variava de acordo
com o grau da infração. Eis a liberdade de pensamento oferecida aos “filhos” da
República, que o ajudaram, através de manifestações políticas, a tomar o poder em
1933. Foi por isso que o ano de 35 foi marcado por revoluções e prisões.
Decretado o Estado de Sítio, posteriormente, em março de 36, equiparado ao
Estado de Guerra, o governo usou a força para conter as manifestações “subversivas”,
como as que ocorreram em 35 em Natal e Recife e especialmente a revolta no 3º RI e na
Escola de Aviação Militar. Então, todo suspeito de conspirar contra o Estado era
punido, indiferente de ser culpado ou inocente. Eis o contexto em que Graciliano foi
aprisionado.
40
Nascido em Quebrangulo, Alagoas, aos vinte e sete dias de outubro de 1892, às
16h, Graciliano
22
foi uma das vítimas do regime getulista. Preso em 3 de março de 1936,
ano de publicação de Angústia, registrou sua reclusão (que durou até 13 de janeiro de
1937) em Memórias do Cárcere, obra póstuma, publicada em 53. Ainda que o caráter
memorialístico atenue os fatos, sua leitura é válida; se não como suporte histórico, pelo
menos como registro de um fato que marcou a vida literária e a saúde deste excelente
escritor. Nas Memórias, Graciliano relata o tratamento na prisão, a ignorância de seu
crime, seus colegas de clausura (Prestes e Olga, por exemplo), além de “justificar” a
publicação de “obra tão ordinária” em sua opinião (Angústia). Para finalizarmos o nosso
sintético panorama histórico, cabe ressaltar que o início de Angústia se dá em 33, isto é,
em pleno movimento revolucionário.
22
A data de nascimento de Graciliano Ramos é amplamente difundida. Mesmo assim encontramos
desencontros, como o de Osman Lins, que a cita como 21 de outubro, mesma data em que escreve o
artigo Homenagem a Graciliano Ramos (LINS, 1978, p.188) Utilizamos aqui a carta que Graciliano
manda a sua esposa por ocasião de seu aniversário, em que menciona também o horário de seu
nascimento. (Cartas, 1980, p.130).
41
3. Uma Coincidência Psíquica
Um crime, uma ação boa, dá tudo no mesmo.
Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos.
Graciliano Ramos (Angústia)
O homem é pusilânime, conforma-se com tudo.
Dostoiévski (Crime e Castigo)
Mesmo que não se queira, é quase inevitável recorrer à Psicologia,
especialmente se os autores escolhidos são considerados bons “psicólogos”. Nietzsche
(apud Lavrin, 1974, p.121), referindo-se a Dostoiévski, disse: “Ninguém, a não ser
Stendhal, satisfez-me e encantou-me tão intensamente quanto ele. Tu tens um
psicólogo com quem estou de acordo.” Graciliano Ramos é apontado, ao lado de
Machado de Assis, como um escritor com “o dom da análise psicológica, de uma
análise sutil e profunda.” (Pimentel, 1978, p.239) Essa necessidade se impõe de forma
mais intensa quando se pretende analisar Angústia e Crime e Castigo. Segundo Brasil
(1969, p.73), Angústia é o romance de Graciliano Ramos mais subjetivo, em que o
monólogo direto se faz mais freqüente, por vezes assumindo a forma do monólogo
interior. Alguém falou que o personagem descreve a sua própria consciência. E é
verdade.” Crime e Castigo, por sua vez, ilustra a “tragédia de Raskólnikof”, que “já foi
várias vezes apreciada à luz de teorias psicanalíticas. Nela se ilustra, com todo o rigor, o
processo psíquico do sentimento de culpa.”(Broca, 1951, p.9)
Em ambas as obras, os protagonistas cometem crimes. Os motivos divergem,
mas a angústia é semelhante. Será, pois, a angústia que tomaremos como ponto de
contato entre o pretensioso estudante de Direito Raskólnikof e o medíocre funcionário
público Luís da Silva.
Falar em “análise psicológica”, ainda que sem a pretensão de cumprir o papel
destinado aos especialistas desta ciência, é falar em Freud
23
, o pai da psicanálise.
23
Usaremos a teoria de Freud para analisar os personagens de Crime e Castigo e Angústia conscientes de
que, temporalmente falando, Dostoiévski é anterior a ela, portanto nada sabia sobre Freud e suas teorias.
42
Segundo sua teoria, a psique humana está subdividida em três elementos: id, ego e
superego. O id é a representação dos desejos; o ego, de origem latina, significa o
próprio indivíduo, o eu; e o superego é o responsável por reprimir o id, tornando o ego
adaptado às regras de convívio humano. A normalidade” estaria, então, no equilíbrio
desses três elementos. A tarefa, no entanto, não é tão fácil como pode parecer e, “para
arcar com as exigências conflitantes do id, do superego, e da realidade externa, e com a
ansiedade que estes conflitos produzem” (Costin, s/d, p.42), o ego cria mecanismos de
defesa. Esses mecanismos existem para distorcer ou negar a realidade de modo que
possamos suportá-la e são indispensáveis a qualquer indivíduo. “Embora eles [os
mecanismos de defesa] freqüentemente ocorram nas reações normais aos conflitos,
ansiedade e frustração, o seu uso persistente de uma maneira exagerada e irreal é típico
da psicopatologia.” (Costin, s/d., p.42)
Nesse contexto, a angústia pode ser vista como um mecanismo de defesa, pois
“atende ao propósito de autopreservação, constituindo-se como um sinal da presença de
um novo perigo; surge da libido que se tornou inutilizável por uma ou outra razão,
inclusive pelo processo de repressão; é substituída pela formação de sintoma e é, por
assim dizer, ligada fisicamente.” (Cunha, 1958, p.12)
A angústia é um “sentimento de forte apreensão a uma ameaça vaga e tida como
inevitável de uma força interior (opondo-se portanto ao medo e à ansiedade, que
aparecem diante de um objeto concreto e exterior). A causa da angústia pode referir-se a
perigos futuros, e em geral não é percebida claramente.” (Lima, 1972, p.30) Como “a
consciência do indivíduo percebe a ameaça de um castigo perante a força de um
instinto, e como o ego é muito fraco e fica atemorizado frente a um perigo mostrado por
uma censura interior (o superego), nasce a angústia. Daí, a angústia provém mais da
ameaça de castigo que dá força do instinto.” (Costin, s/d., p.35)
Como se sabe, toda a teoria freudiana é baseada na vida sexual do indivíduo, que
começaria ainda no ventre materno. Quanto melhor resolvidas as etapas de
desenvolvimento sexual mais saudável será o indivíduo e vice-versa. Por isso, temos a
distinção entre a angústia real, que ocorre diante de um perigo real, e a angústia
neurótica, que ocorre diante de um perigo que não conhecemos e cuja origem está “na
vida sexual e corresponde a uma libido, que foi afastada do seu objeto e não encontrou
utilização”. (Cunha, 1958, p.14)
43
Segundo Freud
24
(s/d., p.91), se se enfrentar o problema da relação entre a
angústia neurótica e angústia real, talvez se consiga penetrar um pouco mais na
compreensão da angústia. Para isso, é preciso que se tenha consciência do perigo
desconhecido pelo eu, a fim de podermos diferenciar a angústia real da angústia
neurótica e podermos tratar tanto de uma quanto de outra.
25
Então, a verdadeira questão
da angústia, para Freud (s/d., p.96), é “a diferenciação por nós estabelecida entre a
situação traumática e a situação perigosa”, pois “a situação perigosa é uma situação de
impotência, reconhecida, recordada e esperada. A angústia é uma reação primitiva a
uma impotência diante de um trauma, reação que é logo reproduzida como um sinal de
alerta em uma situação de perigo”. (Freud, s/d., 96)
Por outro lado, a angústia neurótica, exigência de um instinto, pode ter um
fundamento real, “quando a exigência instintiva é algo real” (Freud, s/d., p.97), o que
dependerá de como o “eu” percebe (e reage diante de) um perigo instintivo e um perigo
real.
A angústia neurótica pode também ser designada pelo termo “histeria da
angústia”, pois,
em psicanálise, a fobia é um sintoma, e não uma neurose, donde a utilização
da expressão histeria da angústia em lugar da palavra fobia. Introduzida por
Wilhelm Stekel em 1908 e retomada por Sigmund Freud, a histeria da
angústia é uma neurose de tipo histérico, que converte uma angústia em terror
imotivado, frente a um objeto, um ser vivo ou uma situação que não
apresentam em si nenhum perigo real. (Roudinesco & Plon, s/d., p.243)
Para Roudinesco & Plon (s/d., p.243), Freud teria preferido o termo histeria da
angústia pela possibilidade de situar a sexualidade no centro do sistema fóbico. Entre
1894-1895, Freud constatou esse problema (a histeria da angústia) em “pacientes que
praticavam a continência e se mostravam fanáticos com a limpeza, porque tinham
horror às coisas da sexualidade.” Por isso, o termo histeria da angústia seria mais
apropriado para Freud desenvolver sua teoria de que, “nesses casos, a libido não é
convertida, mas liberada sob a forma de angústia.” (Roudinesco & Plon, s/d., p.244)
Para Erich Fromm (s/d., p.59), um “erro de Freud em ver no amor
exclusivamente a expressão ou uma sublimação do instinto sexual(...)”, o que pode
ser ampliado também para a questão da angústia. Segundo Fromm (s/d., p.60), se a
teoria de Freud sobre o desejo sexual fosse verdadeira, “a masturbação seria a satisfação
sexual ideal”. Para Fromm, é a “polaridade masculino-feminino” e o desejo de uni-las
24
As citações de Freud são livres traduções.
25
Ver FREUD, s/d., p.95.
44
que garante a satisfação sexual, uma vez que , para Fromm (s/d., p.60), “a mulher não é
um homem castrado”, como Freud defende.
Jacques Lacan, (apud Kaufmann, s/d.,37), por outro lado, desenvolveu um
esquema para a fobia em geral, que consiste em:
OBJETO SIGNIFICANTE OBJETO FETICHE
(significante* fóbico)
SINTOMALOGIA NEURÓTICA CLÍNICA DA PERVERSÃO
(histeria, neurose obsessiva)
Protege contra o CONDIÇÃO ABSOLUTA
DESAPARECIMENTO DO GOZO
DO DESEJO
*Significante: elemento significativo do sujeito, que viria mascarar sua angústia fundamental.
No primeiro caso, o sujeito é incapaz de saciar seu desejo, mantendo essa
necessidade de modo contínuo.
Há também, segundo Kaufmann (s/d., p.37):
o fato de que observamos na experiência clínica estados de angústia
insuportáveis e que, ao invés de incitar o indivíduo a se mobilizar contra o
perigo iminente, fazem-no, ao contrário, naufragar numa inibição total,
expressada a maior parte do tempo por um intenso sentimento de pânico. (...)
Sem outra possibilidade de fuga ou de elaboração psíquica, o sujeito luta
contra uma irrupção excessiva de angústia, aquela mesma que faltava por
ocasião da situação traumática caracterizada pelo efeito de surpresa e de
sideração.
Por isso mesmo, não é surpresa perceber que “a angústia participaria então da
definição geral dos afetos que atestariam a revivescência de certos acontecimentos
significativos vividos pelo sujeito e depositados como sedimentos geológicos mais ou
menos reconhecíveis e acessíveis.” (Kaufmann, s/d., p.37)
Nas palavras de Freud (apud Kaufmann, s/d, p.37), a angústia é um estado
afetivo, isto é, “uma combinação de certos sentimentos da série prazer-desprazer com
descargas que lhes correspondem. A percepção delas representa no entanto, certamente
por transmissão hereditária, o resíduo (niederschlatg) de algum acontecimento
importante. Esse estado é comparável, portanto, ao acesso de histeria individualmente
45
adquirido.” Apesar disso, nem todo o sintoma de desprazer está associado à histeria da
angústia ou pode ser assim designado, uma vez que “um indivíduo se tornaria normal ou
neurótico em função da intensidade do traumatismo, em outras palavras, em função da
quantidade de ansiedade desenvolvida nessa circunstância originária.” (Kaufmann, s/d.,
p.38)
Levando-se em consideração que nosso processo psíquico se inicia no ventre,
iniciamos nossa angústia com a separação materna
26
o suposto maior trauma do ser
humano e, conseqüentemente, temeremos a perda daquilo que estimamos. O medo da
perda de nosso objeto de desejo é, portanto, a nossa maior fonte de angústia. Por isso,
segundo Kaufmann (s/d., p.38):
se identificarmos esse resto ao ‘objeto A causa do desejo’ em outras
palavras, ao que, por trás do desejo, impele o sujeito a se voltar para uma
necessidade de eleição – a angústia indicará a proximidade desse ‘objeto A’ a
partir do momento em que ele ameaça reaparecer no real, e repousará a partir
de então sobre o paradoxo de uma ausência da falta, ou ainda, para
retomarmos a expressão de Lacan, “da falta da falta”.
Esse processo angustioso, no entanto, pode ser sentido pelo ego, “lugar de
eleição da angústia, onde a libido do eu (pulsão sexual) e o instinto de conservação
(pulsão do eu) encontram meios de se manifestar.” (Kaufmann, s/d., 38) Além disso, é
interessante notar que “não é o recalcamento que provoca a angústia, mas sim a
angústia, que aparece primeiro, que provoca o recalcamento!” (Kaufmann, s/d., p.39)
É por isso que, para Lacan (apud Kaufmann, s/d., p. 41), o neurótico:
recua ante o fazer da castração, a sua, aquilo que falta ao Outro; ante fazer de
sua castração algo de positivo que é a garantia dessa função do Outro. (...)
Isto é algo que ele não pode assegurar senão por meio de um significante, e
esse significante falta inelutavelmente. É para inteirar esse faltoso, por um
sinal que chamamos de sua própria castração, que o sujeito é convocado.
A angústia, então, está associada “à cólera, à punição do supereu, à perda de seu
amor que o eu atribui valor de perigo” (Kaufmann, s/d., p.42), acarretando o famoso
sentimento de culpa. Para saciar a “culpa”, o sujeito se sente obrigado a sofrer, a ser
punido. O superego, então, torna-se extremamente cruel, fazendo o indivíduo autopunir-
se pelo ato praticado, ainda que sob a hipótese de pensamento.
Enfim, a angústia é o resultado do desequilíbrio entre o desejo e a falta. Sua
função primordial é, conforme Kaufmann (s/d., p.43), preparar os sistemas psíquicos
para uma organização defensiva”. O problema é quando o sujeito, ao utilizar a angústia
não mais como um meio de proteger-se, vive em estado de angústia, caracterizando a
psicopatologia.
26
Ver FREUD, s/d., p.90.
46
3.1. Luís da Silva
O protagonista de Angústia
27
é um pobre-diabo. Funcionário público medíocre,
tem 35 anos, é solitário e sofre de complexo de inferioridade. Pobre e nordestino, é
desajeitado para a vida. Seus problemas começam quando conhece e se apaixona por
sua vizinha Marina. (Embora o romance de Graciliano Ramos não siga a ordem
cronológica, iniciaremos nossa análise a partir desse fato.)
Em janeiro do ano passado estava eu uma tarde no quintal, deitado numa
espreguiçadeira, fumando e lendo um romance. O romance não prestava, mas
os meus negócios iam equilibrados, os chefes me toleravam, as dívidas eram
pequenas – e eu rosnava um bocejo tranqüilo.
(...)
Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se
animaria a começar.
Esse que eu lia debaixo da mangueira, saltando páginas, era bem safado. Por
isso interrompia a leitura, acendia um cigarro.
Foi numa dessas suspensões que percebi um vulto mexendo-se no quintal da
casa vizinha. (pp.32-32)
O vulto é Marina, como depois nos informa Luís da Silva. Sua primeira
impressão sobre a moça é que ela é uma “lambisgóia”, cujos “cabelos pegavam fogo” e
tinha as unhas, bem como o rosto, pintadas.
No dia seguinte (era sábado e o havia expediente à tarde) sentei-me de
novo à sombra da mangueira, com o romance. A coisinha loura tornou a
aparecer, em companhia de uma mulherona sardenta, e começaram ambas a
cortar os ramos secos das roseiras. A pequena estouvada não me prestava
atenção: desencantara-a provavelmente o exame da véspera. Um sujeito feio:
os olhos baços, o nariz grosso, um sorriso meio besta e a atrapalhação, o
encolhimento que é mesmo uma desgraça.
Apesar destas desvantagens, os negócios não iam mal. E foi exatamente por
me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou interesse
novidade, pois sempre fui alheio as coisas de sentimento. (...)
Nestes últimos tempos nem por isso. Antigamente era uma existência de
cachorro. As mulheres tinham cheiros excessivos, e eu me sentia impelido
violentamente para elas. (p.35)
Por isso, surge-lhe a idéia de “amarrar-se” a Marina, que, sendo jovem e
interesseira, visualiza em Luís da Silva um homem bem-sucedido coisa que ele o
era e por conta desse desencontro de realidades o romance não vinga. Marina, ao
perceber as limitações financeiras de seu noivo, desilude-se com a relação.
Na mesma época, no entanto, Julião Tavares começa a visitar Luís da Silva.
Julião Tavares é “um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor”.
(p.43) Seus modos incomodam Luís e sua linguagem é “arrevesada, muitos adjetivos;
pensamento nenhum.” (p.43) Isso, porém, não impede que Julião Tavares desfrute de
algum prestígio, sendo elogiado, com “mentiras”, nos jornais. Sua família é rica:
27
RAMOS, Graciliano. Angústia. 49 ed. RJ/SP: Record, 1998.Todas as citações da obra serão feitas com
base nessa referência, permanecendo expressa somente a página de que foi extraída.
47
“Tavares & Cia., negociantes de secos e molhados, donos de prédios, membros
influentes da Associação Comercial, eram uns ratos.” (p.44)
Não seria necessário terminar o romance de Graciliano Ramos para saber que a
“lambisgóia” da Marina trocaria Luís por Julião Tavares. Antes, porém, Marina arruina
a vida financeira de Luís, cujo ordenado era de quinhentos mil-réis (p.11) e possuía
“uns três contos de economias depositados no banco” (p.42). Além das dívidas
adquiridas para o enxoval do casamento que não se realiza, Marina proporciona a Luís
da Silva uma imensa decepção e o aumento de seu sentimento de inferioridade: “Pouco
a pouco fomos nos distanciando, um mês depois éramos inimigos. A princípio houve
brigas, reconciliações desajeitadas, conversas azedas com D. Adélia. Tempo perdido.
Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. Comecei a passar
pela calçada, remoendo a decepção, que procurei recalcar.” (p.90)
Humilhado, Luís da Silva começa a viver a vida de Marina com Julião Tavares.
Observa tudo, ouve tudo. Começa a visualizar armas em objetos banais, como o cano de
parede (p.92), que para ele se assemelhava a uma corda presente que ganhará de seu
Ivo e com o qual matará Julião. Um encontro com uma moça que ele julga ser
datilógrafa também começa a fazer parte de sua obsessão:
Onde andaria a datilógrafa dos olhos agateados? O que é certo é que eu
precisava de mulher. Devia acabar com aquela maluqueira e meter-me na
farra. Se achasse uma criatura como Berta... o diabo da alemã voltava-me
sempre à lembrança, provavelmente por ter sido a primeira mulher bonita e
limpa a que me encostei — “Senhor não quer entrar?” Tipo admirável, ariano
puro. Madame, um sujeito como eu agarrar-me a uma pessoa de sua
marca?” A ariana pura tinha respondido numa língua embrulhada. (p.97)
Somado ao seu sentimento de desarranjo com o mundo, especialmente o
feminino, temos em Luís da Silva um indivíduo atormentado pela sua infância que é,
na verdade, a infância de Graciliano Ramos relatada em seus contos de memória:
Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda iam
mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros
manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de
milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do
partido que padre Inácio chefiava. (p.11)
Tenho-me esforçado por tornar-me criança e em conseqüência misturo
coisas atuais e coisas antigas. (p.17)
O homem-menino que desejava ser como seu avô também procurava justificar as
atitudes de Marina: “Que me importava que Marina fosse de outro? As mulheres não
são de ninguém, não têm dono. Sinha Germana fora de Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, só dele, mas há que tempo!” (p.101)
48
E carente, endividado e completamente atormentado, Luís deseja ardentemente a
volta de Marina: “Se Marina voltasse... Porque não? Se voltasse esquecida inteiramente
de Julião Tavares, seríamos felizes. Absurdo pretender que uma pessoa passe a vida
com os olhos fechados e abri-los exatamente na hora em que aparecemos diante
dela”. (p.102).
Então, Marina descobre-se grávida de Julião Tavares, que já se havia
desencantado dela:
As visitas de Julião Tavares foram escasseando e a alegria ruidosa de Marina
pouco a pouco desapareceu. Havia um grande silêncio na casa vizinha.
(p.128)
Agora havia duas imagens distintas: uma barriga que se alargava pela cidade
e a mulher que mostrava apenas um pedaço de cara. Nessa parte visível,
endurecida pelo sofrimento, pouco a pouco se esboçavam as feições de
Marina. Os cabelos, que a mulher tinha grisalhos, tornavam-se louros. A
bochecha era pintada, a metade da boca excessivamente vermelha, o único
olho muito azul.
Eu fervia de raiva. Se tivesse encontrado Julião Tavares naquele dia, um de
nós teria ficado estirado na rua. (p.132)
(...) Fazia algum tempo que os rumores familiares se vinham atenuando, mas
naquele dia tudo se tornou claro, a suspeita que tive outro dia se confirmou
(...)
(...)
Queria que ela me iludisse, jurasse que não havia acontecido nada. Mordi as
mãos para não gritar. (p.135)
Marina continuava a chorar. D. Adélia queixava-se baixinho. Eu tinha
vontade de chorar também, condoía-me da sorte das duas mulheres e da
minha própria sorte. (p.139)
Condoído em seu orgulho, Luís da Silva deseja castigar Julião Tavares, cuja
responsabilidade pelo fato parecia ser ignorada por todos, exceto por ele: “É estranho
que elas não houvessem aludido uma única vez a Julião Tavares.” (p.139) Então,
aparece seu Ivo com o presente: “— Está aqui, seu Luisinho, que eu lhe trouxe. E pôs
em cima da mesa uma peça de corda.” (p.143)
Desenrola-se entre eles uma conversa sobre matar (p.147), sua lembrança de
Cabo José da Luz, homem capaz de matar (p.148) e, em seguida, seu “projeto” de matar
Julião Tavares:
Que é que poderia me acontecer? Ir para a cadeia, ser processado e
condenado, perder o emprego, cumprir sentença. A vida na prisão não seria
pior que a que eu tinha. (...) Viver por detrás daquelas grades, pisar no chão
úmido, coberto de escarros, sangue, pus e lama, é terrível. Mas a vida que
levo talvez seja pior. Não tinha medo da cadeia. Se me dessem água para
lavar as mãos, acomodar-me-ia . Podia o resto do corpo ficar sujo, podiam
os piolhos tomar conta da cabeça e as roupas esfrangalhadas cobrir mal a
carne friorenta. Se me dessem água para lavar as mãos, estaria tudo bem.
Dar-me-iam água para lavar as mãos? A cara do doutor chefe de polícia era
triste. Provavelmente ele vivia cheio de aborrecimentos, tinha uma
necessidade qualquer e compreenderia a minha necessidade de lavar as mãos.
Decididamente a polícia não me inspirava receio. (p.156)
49
É interessante notar que a obsessão de Luís da Silva pelos hábitos de higiene se
manifesta constantemente ao longo da obra, sendo sua única preocupação caso matasse
Julião Tavares e fosse preso. Em outra circunstância, essa obsessão se manifesta pela
importância dada ao banheiro, separado por uma parede estreita do de seu Ramalho, pai
de Marina (p.133). ficava horas a fio “espiando” Marina se lavar: “De ordinário fico
no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas umas das
outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luís da Silva.” (p.133)
Assim, Luís consegue ouvir Marina se lavar: “A espuma entrando nos sovacos e
nas virilhas fazia um gluglu que me excitava extraordinariamente.” (p.134)
Mas Luís só quer ouvi-la na intimidade:
Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No alto da parede um tijolo
deslocado que se pode retirar facilmente. Pondo um caixão na beira do
tanque, ser-me-ia possível afastar o tijolo e distinguir o corpo de Marina. A
experiência não me tentou. O esforço necessário para manter-me em
equilíbrio reduzir-me-ia a atenção. E eu não queria -la despida sem o
consentimento dela. (...) O que me encantava eram aqueles modos de garota
estabanada, as palavras soltas à toa, pedaços de cantigas, o gluglu da espuma
e a mijada sonora. (p.134)
Então, além de deleitar-se com o “gluglu” de Marina, sintoma óbvio de desvio
comportamental, especialmente ao que se refere à sexualidade, comprovada pela
ausência desesperadora de mulher, sua vida afetiva nula, repleta de fantasias, temos o
caráter contraditório da personagem. Luís parece desconhecer a si próprio: ao mesmo
tempo que afirma não temer Julião Tavares, a opinião pública, que “não existe”, pois “o
leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera
aquilo atrapalha-se e não sabe para que banda vai” (p.156), afirma temê-los: “Eu não
podia temer a opinião pública. E talvez temesse. Com certeza temia tudo isso.” (p.157)
A idéia do crime vem associada à piedade de Marina, mas por que “Marina era
instrumento e merecia compaixão” (p.140) enquanto Julião Tavares merecia morrer?
“Julião Tavares era instrumento, mas não tive pena dele. Senti foi o ódio que sempre me
inspirou, agora aumentado.” (p.140) De certo modo, a visão do crime, que ocorrerá
cercado de fatalidades, parece uma premonição: “Necessário que ele morresse. Julião
Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava.
Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares
morreria violentamente e sem derramar sangue. E em sonho ou acordado, vi-o roxo, os
olhos esbugalhados, a língua fora da boca.” (p.140)
O receio de matar Julião Tavares provém do status dele, afinal “Julião Tavares é
importante. Fazia receio matar um sujeito importante como Julião Tavares.” (p.159)
50
Então, Luís da Silva começa a recear inimigos imaginários (p.161 e p.198), Marina
pratica aborto (p.165), os dois se encontram (p.173-4) e Luís a atormenta. Como
persegue Marina e Julião Tavares, Luís descobre que Julião Tavares tem um novo amor
(p.179) e indigna-se com o seu rival, que “julgava-se superior aos outros porque tinha
deflorado várias meninas pobres. Pelos modos, imaginava-se dono delas...” (p.182)
Luís sente-se governado por alguém: “Como se uma vontade me dirigisse”
(p.184) e marcha “um, dois, um, dois” em direção ao seu destino. De repente, a vontade
de fumar: “Procurei um cigarro para acalmar-me. Não encontrei cigarros. O que achei
foi a corda que seu Ivo me havia oferecido. Desleixado. Conservar no bolso aquele
traste e esquecer os cigarros!” (p.185)
Mas Julião Tavares tem tudo: “Para que seguir o homem que tinha tudo,
mulheres, cigarros?” Era uma afronta a ele, mas: De repente senti uma piedade
inexplicável, e qualquer coisa me esfriou as mãos. Julião Tavares era fraco e andava
desprevenido, como uma criança, naquele ermo, sob ramos de árvores dos quintais
mudos.” (p.187)
Luís desespera-se. Deseja a fuga de sua vítima-carrasco: “Desejei que Julião
Tavares fugisse e me livrasse daquele tormento. Se ele corresse pela estrada deserta,
estaria tudo acabado. Eu tentaria alcançá-lo. Inutilmente. Pensei em gritar, mas o grito
morreu-me na garganta.” (p.190)
Sem conseguir salvar-se, Luís da Silva irrita-se por Julião Tavares não o temer:
“Mas ali, na estrada deserta, voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não.
Donde vinha aquela grandeza? Porque aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu era
um homem.” (p.190)
Dividido, Luís “avisa” Julião Tavares de suas intenções: “— Corre, peste.
Porque era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos ruins?” (p.190)
Mas Julião Tavares não foge, ao contrário, “parou e acendeu um cigarro. Porque
parou naquele momento? Eu queria que ele se afastasse de mim. Pelo menos que
seguisse seu caminho sem ofender-me. Mas assim... Faltavam-me os cigarros, e aquela
parada repentina, a luz do fósforo, a brasa esmorecendo e avivando-se na escuridão,
endoidecia-me.” (p.190)
Por tudo isso, por tudo que Julião Tavares possuía, por tudo que ele representava
em oposição ao nada que era Luís da Silva é que Julião Tavares merecia morrer. A
morte, por estrangulamento (p.190), não soluciona a sensação de inferioridade de Luís,
51
mas suaviza-a na medida em que Julião Tavares não mais o pode afrontar e duvidar que
ele seja um homem. Um homem sim.
Depois do crime, vem a alucinação, o delírio e o desejo de escrever um romance
(p.211). “Sem memória, um idiota. Chorava, batia com a cabeça no ferro da cama,
puxava os cabelos. Olhava as mãos. As unhas crescidas e sujas, a escoriação da palma
secando e cicatrizando, os dedos compridos, escuros, com uns nós muito grossos. Sem
memória. Que teria acontecido antes?” (p.220)
Não sabia. Os dois mundos de Luís da Silva o interior e o exterior se
dissociam definitivamente. não sabe o que é realidade e o que é ilusão, pois perdeu a
referência do tempo, que não existe em Angústia. Por isso, Luís da Silva inicia sua
narrativa do mesmo modo que a termina, isto é, sem referência do passado e do
presente: “Levantei-me cerca de trinta dias, mas julgo que não me restabeleci
completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas
sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.”
(p.7) A narrativa é cíclica, vai do passado ao presente do presente para o futuro, deste
volta para o passado e assim por diante.
A sua perturbação inicia-se antes mesmo de cometer o crime, mas acentua-se de
tal maneira após cometê-lo que não compreende mais a realidade que o cerca. Ouve
“um rebuliço na casa de seu Ramalho”, mas suas idéias divagam, desencontram-se.
Desconhece o que aconteceu e o que acontecerá com ele.
Eis como fica nosso herói após o crime, que, sob o pretexto da passionalidade,
esconde o seu verdadeiro motivo. Luís da Silva não mata por Marina. Luís da Silva
mata Julião Tavares pela sua superioridade. Mata-o por ele ter tudo e Luís, nada. Mata-o
para ser menos inferior, para sentir-se superior, mas, após o crime, percebe a
impossibilidade de mudança. Então, resta-lhe a resignação: “Habituar-me-ia. A gente se
habitua em toda a parte. Dorme à beira das estradas, nos bancos dos jardins.” (p.213)
3.2. Raskólnikof
O herói de Crime e Castigo
28
é descrito no início do livro, sem, contudo, ter seu
nome revelado:
28
DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e Castigo. 8 ed. RJ: Ediouro, 1996. Trad.: Luiz Cláudio de Castro. Todas
as citações da obra serão feitas com base nessa referência, permanecendo expressa somente a página de
que foi extraída
52
As feições finas do moço acusavam, por instantes, uma impressão de intensa
náusea. A propósito cumpre dizer que ele o era mal dotado fisicamente: de
estatura um pouco acima da mediana, esbelto, elegante, possuía bonitos olhos
escuros e cabelos castanhos. Mas, a breve trecho, mergulhou numa
melancolia profunda, numa espécie de torpor intelectual. Seguia alheio a
tudo, ou melhor sem querer atender a coisa alguma. De quando em quando,
murmurava para seus botões algumas palavras, porque, como ele reconhecia,
havia algum tempo que andava com a mania de solilóquios. (p.9)
O jovem estudante de Direito também é pobre e está endividado. Aos vinte e três
anos, vive num cubículo, sustentado por sua mãe e irmã, que vivem distante com uma
pensão de apenas cento e vinte rublos por ano. A sua situação agrava-se devido a um
estado de apatia que o impede de mover-se. Abandona a faculdade, desiste das aulas que
dava, mal se alimenta e o conversa com vivalma. Seu único amigo, Razumikine,
ignora seu endereço e Raskólnikof não tenciona visitá-lo, embora às vezes se pegue
fazendo o trajeto que leva à casa de seu amigo.
Acontece que esse jovem recluso sente uma estranha transformação em seu
espírito: “Raskólnikof não estava habituado à multidão e, como dissemos, havia
algum tempo evitava encontrar-se com seus semelhantes. Mas agora, sentia subitamente
necessidade de convivência. Parecia operar-se nele uma transformação; o instinto de
sociabilidade readquiria os seus direitos”. (p.13)
Essa mudança de ânimo produz o encontro de Raskónikof com Marmêladof, pai
de Sônia, e não será a primeira nem a última vez que terá essa alteração de estado de
espírito, ao contrário, suas oscilações de humor serão cada vez mais constantes. Os dois
entabulam uma conversação, não sem o espanto do próprio jovem:
Não, senhor; estudante, respondeu Raskólnikof, surpreendido com aquela
polidez de linguagem, e um pouco perturbado, ao ver um desconhecido
dirigir-lhe a palavra sem mais nem menos. Conquanto nesse momento se
sentisse bem disposto à convivência sentia que se apossava dele o mau humor
que experimentava sempre que um desconhecido tentava entabular relações
com ele. (p14)
O mau humor, no entanto, não impede que Raskólnikof ouça a história de
Marmêladof, homem que desgraçou sua família, Catarina e seus três filhos, e Sônia, sua
única filha, que tem de se prostituir para garantir o sustento da família. O mal de
Marmêladof é a bebida; é alcoólatra, e mesmo consciente do mal que seu vício causa a
sua família é incapaz de privar-se dele, às vezes recorrendo ao dinheiro de Sônia para
isso.
A narração de Marmêladof de sua situação (pp.14-20) é, por um lado, cômica,
mas não deixa de trazer dados interessantes. Um deles é a remuneração: quando
empregado, Marmêladof recebia vinte e três rublos e quarenta copeques (p.20),
enquanto Sônia, em sua primeira experiência com a “carteira amarela”, ganha trinta
53
rublos (p.18). Outro ponto interessante, no entanto, é a estranha ligação que se no
espírito de Raskólnikof com a menção da história de Sônia, a boa vaca leiteira” dos
Marmêladof, como se “pressentisse” que o destino o ligaria àquela moça.
Após o encontro, Raskólnikof recebe a carta de sua mãe (p.31) com a notícia do
casamento de sua irmã Dúnia com Lujine. Desgostoso com a idéia, que tornava Dúnia
semelhante à Sônia, e disposto a impedir a realização desse casamento, Raskólnikof
continua seus planos, sempre de forma enigmática, de matar a velha agiota. “Meu
Deus!” monologou, “será possível que eu abrir com um machado o crânio dessa
mulher!... Será possível que eu atravesse o sangue e arrombar a fechadura, roubar e
depois esconder-me, a tremer, ensangüentado... Senhor, isto será possível?” (p.43)
Como “nem ele mesmo se entendia (p.38), o destino (de novo ele) parece
conspirar para o crime: “Mas havia algum tempo que Raskónikof se tornara
supersticioso, e mais tarde, quando pensava no caso, estava sempre disposto a ver nele a
ação de causas estranhas, misteriosas.” (p.45)
Assim soube ele da existência da velha, por intermédio de um jovem estudante
conhecido seu (p.45). Vai à casa da agiota empenhar um anel e odeia-a no mesmo
instante em que a (p.45). Em seguida, ouve a conversa de dois homens, um oficial e
um estudante, sobre Alena e o desejo de matá-la (p.45). Mais tarde, um dia antes do
crime, desvia-se de seu caminho e descobre que a velha estará sozinha em determinado
dia e horário (p.45), ocasião ideal para atingir seu intento. A arma do crime, um
machado, também aparece de forma mágica diante de nosso herói:
Repentinamente estremeceu. Na treva do compartimento, a dois passos dele,
brilhava qualquer coisa debaixo do banco, à esquerda... Raskólnikof olhou
em redor. Ninguém. Aproximou-se cautelosamente do cubículo, desceu os
dois degraus, e chamou em voz baixa o dvornik. Bem, não está aqui, mas
não deve ter ido longe, porque deixou a porta aberta.” Com a rapidez de um
relâmpago correu para o machado (era realmente um machado) e tirou-o de
debaixo do banco onde estava entre duas achas. Colocou-o no corredio,
meteu as mãos no bolso e saiu. Ninguém o vira! “Não foi a inteligência que
me ajudou nesse lance, foi o diabo!”, pensou com um sorriso. O feliz acaso
que acabava de o auxiliar contribuiu extraordinariamente para o animar.
(p.51)
Assim nosso herói se prepara para executar seu plano e assassinar a avarenta. O
crime ocorre ainda no primeiro capítulo (pp.53-4) são seis no total mais o epílogo e
teria obtido “êxito” não fosse outra fatalidade: a chegada de Isabel e sua conseqüente
morte (p.55). Matar Isabel não estava nos seus planos e isso o perturba.
Na mesma ocasião, é intimado a depor por causa da dívida do aluguel de seu
“cubículo de seis passos”, cujo teto era o baixo, que um homem de estatura alta não
estaria à vontade naquela toca, com o permanente receio de bater nele a cabeça.” (p.24)
54
Ao ouvir sobre o assassinato da velha, no entanto, desmaia e levanta suspeitas da
polícia. Começa aí o suplício do “cão e gato” que compõe o restante do livro.
Então, Raskólnikof luta contra si mesmo. Do crime à expiação, ele enfrenta sua
consciência, a polícia e o Cristianismo, mas é Sônia que o “salva”. Sônia, que
Raskólnikof aproxima da imagem de Dúnia (p.34), é, para ele, o único elo humano que
resta por estarem ambos na “mesma situação” e confessa-lhe o assassinato.
Então, Sônia, convenci-me, continuou cada vez mais excitado, [de] que o
poder não é concedido senão ao que ousa baixar-se para o tomar; é necessário
ousar. Desde o dia em que vi esta verdade, clara como a luz, quis ousar, e
matei... quis apenas praticar um ato de audácia; foi esse, Sônia, o móvel da
minha ação. (p.253)
Acontece que nosso pretensioso amigo sustentava a teoria de que existem
homens “ordinários” e “extraordinários”, e evidentemente queria estar nesta última
categoria:
Quanto à minha divisão dos seres em ordinários e extraordinários, convenho
que é um pouco arbitrária, mas ponho de parte a questão do egoísmo, que não
faz nada ao caso. Quero estabelecer o princípio de que a natureza divide os
homens em duas classes: uma inferior, a dos ordinários, espécie de matéria,
tendo por única missão reproduzir-se; a outra superior, compreendendo os
homens que têm o dever de lançar no seu meio uma palavra nova. As
subdivisões apresentam traços distintos bem característicos. (p.165)
Embora ele próprio reconheça a confusão que essa divisão pode trazer:
...lembre-se de que o erro é só possível na primeira categoria, isto é, naqueles
que eu chamei, talvez despropositadamente, homens ordinários. Apesar de
sua tendência inata para a obediência, muitos dentre eles, por um capricho da
natureza, querem passar por homens de vanguarda, por destruidores, crêem-
se chamados a fazer ouvir uma palavra nova, e essa ilusão é sincera, neles.
Ao mesmo tempo quase nunca reparam nos verdadeiros inovadores,
desprezam-nos até como gente atrasada e sem elevação mental. Mas, quanto
a mim, não pode haver nisso grande perigo e o senhor [Porfírio] não tem por
que se inquietar, porque eles nunca vão muito longe. Sem dúvida, poder-se-
iam açoitar uma vez ou outra para os punir da loucura e colocá-los no seu
lugar; seria o bastante e mesmo assim não seria preciso incomodar o
executor, eles próprios se oitam, porque são pessoas muito virtuosas; ora
fazem esse serviço uns aos outros, ora se batem com as próprias mãos...
Vêem-se publicamente inflingindo-se diversas penitências, o que não deixa
de ser edificante, numa palavra, o senhor não tem que se preocupar com eles.
(p.167)
Julgando-se, então, uma pessoa “extraordinária”, com “o direito moral de
derramar sangue” (p.167), um Napoleão, Ródia decide matar, mas percebe seu erro:
Eh! Sônia! disse ele irritado; e veio-lhe aos lábios uma resposta, mas
absteve-se desdenhosamente de dizê-la. Não me interrompas! Eu queria
somente provar-te uma coisa: o diabo levou-me à casa da velha e depois fez-
me compreender que eu não tinha o direito de ir lá, visto que sou um verme
como os demais! O diabo troçou comigo! E agora venho à tua casa! Pois se
não fosse um verme viria fazer-te esta visita? Escuta: quando fui à casa da
velha, queria só fazer uma experiência... Fica sabendo!... (p.254)
Sua angústia provém, portanto, do fato de ele se perceber uma pessoa
“ordinária”, que matou e não soube matar. Pensa em denunciar-se várias vezes (a
55
primeira ocorre ainda no primeiro capítulo, p.71), mas o fa depois de muito se
torturar. O motivo: orgulho.
Pensa bem, Sônia, disse Raskólnikof, ternamente. Para que hei de
apresentar-me à polícia? Que diria eu a essa gente? Eles próprios matam
milhões de homens e fazem disso alarde. São canalhas e covardes, Sônia!...
Não vou! Que lhes diria eu? Que cometi um crime e que, não ousando
aproveitar-me do dinheiro roubado, o escondi sob uma pedra? acrescentou
com um sorriso amargo. Mas eles zombariam de mim; diriam que sou um
imbecil e um pulha! Eles, Sônia, o compreenderiam nada; são incapazes
disso. Para que entregar-me? Não vou. Pensa bem, Sônia... (p.254)
Mas, apesar da pretensão que o fez matar, Ródia é bom, capaz de atos de
desprendimento que causam espanto a ele mesmo. Como na morte de Marmêladof,
quando doou o dinheiro enviado por sua mãe:
Catarina Ivanovna, disse ele, dias Marmêladof contou-me sua vida; sei
das suas dificuldades... Ele referia-se à senhora com uma estima que era
quase uma adoração. A partir desse dia, vendo quanto ele amava os seus,
quanto, especialmente, a honrava e apreciava, Catarina, a despeito do seu
desgraçado vício, dei-lhe minha amizade... Consinta, que neste doloroso
momento... a auxilie no cumprimento dos últimos deveres para com o meu
falecido amigo. Aqui ficam... vinte rublos, e se eu lhe for necessário para
alguma coisa, enfim... virei certamente vê-los amanhã... (p.119)
A verdade é que o crime que Raskólnikof praticou não é, para ele, um crime, por
isso não haveria motivo para arrependimentos: “— O meu crime? Que crime? replicou
ele num surto de cólera, o de ter matado um verme imundo, uma velha usuária nociva a
todo o mundo, um vampiro que chupava o sangue dos pobres? Mas esta morte devia
antes obter indulgência para os pecados! Eu nem penso nisso...” (p.311)
Pecado: eis o que difere Raskólnikof de Luís da Silva. Raskólnikof é
impregnado pelo cristianismo russo, crê em Deus:
— Então o senhor crê numa Nova Jerusalém?
Creio, respondeu convicto Raskólnikof, que, durante o seu longo discurso
tinha conservado os olhos baixos, olhando obstinadamente para o tapete.
— E crê em Deus? Desculpe-me esta curiosidade.
— Creio, repetiu o rapaz, erguendo os olhos para Porfírio.
— E na Ressurreição de Lázaro?
— Também. Por que me pergunta tudo isso?
— Acredita nela realmente?
— Perfeitamente. (p.166)
Luís da Silva não tem fé, por isso Deus não pode salvá-lo como a Ródia, que se
entrega para purgar seus pecados e viver em paz:
“Estou fraco, bem vejo”, pensou consigo mesmo, sentindo vergonha de sua
recente atitude amistosa para com Dúnia. “Mas por que gostam tanto de mim
se eu não o mereço? Oh, se eu fosse só, se ninguém me amasse e eu não
amasse quem quer que fosse! Nada disto teria acontecido! Será que, nestes
quinze ou vinte anos, tornar-me-ei tão dócil a ponto de humilhar-me diante
de todos e choramingar cada vez que me disserem ser um criminoso? Sim,
assim será! É para isto que me deportarão. É isto que eles querem! Vejam-
nos caminhando pelas ruas de um lado para outro. Cada um deles é um
canalha e um criminoso intimamente. Pior, ainda, um idiota! Deixem-me
56
livre e eles ficarão cegos de justa indignação. Oh, como odeio a todos.
(p.312)
Mesmo assim, Ródia confessa seu crime:
— Fui eu... começou Raskólnikof.
— Beba.
Ele repeliu com um gesto o copo e, em voz baixa, mas distinta, fez,
interrompendo-se por vezes, a seguinte declaração:
Fui eu que assassinei a golpes de machado, para roubar, a velha
penhorista e sua irmã Isabel. (p.318)
E por que Ródia se entrega? Para acabar com sua angústia, a solução é punir-se e
aceitar o seu destino de “ordinário”. Além disso, Ródia descobre o significado da vida,
pois não foi a velha que ele matou, mas a si mesmo, e ele que não sabia amar: “— Ele
não ama ninguém; talvez nunca venha a amar (p.138)”, afinal era, segundo seu amigo
Razumikine:
taciturno, reservado e orgulhoso. Nestes últimos tempos (mas talvez esta
disposição existisse nele muito) tornou-se desconfiado e hipocondríaco.
Tem bom coração, é generoso. Não gosta de revelar seus sentimentos e é
mais fácil ferir as pessoas do que mostrar-se expansivo. Às vezes, nada tem
de hipocondríaco, mostra-se porém, frio e insensível até à desumanidade.
Dir-se-ia que nele dois caracteres opostos, que alternadamente se
manifestam. Em certas ocasiões é extremamente taciturno, tudo lhe pesa,
todos o incomodam e fica dias inteiros deitado, sem fazer coisa alguma.o
gosta de escarnecer dos outros, não porque ao seu espírito falte causticidade,
mas porque despreza a zombaria como um passatempo demasiado frívolo.
Não escuta até o fim o que se lhe diz: nunca se interessa pelas coisas que
interessam a toda a gente. Tem-se em alto conceito, e nesse ponto quer-me
parecer que tem alguma razão.” (p.137)
Pois esse rapaz complexo e contraditório, avesso a tudo e a todos, tão bem
descrito por Razumikine, aprendeu a amar. Ródia percebe que é um felizardo porque
tem o amor de sua família, que o estima, um amigo verdadeiro, uma aparência
agradável e o amor sincero de Sônia. Apesar disso, angustia-se muito, uma angústia
asfixiante que termina com a expiação e o amor. Luís, por seu lado, não possuía
nada: beleza, amor, família, . Seu tormento é muito mais intenso, pois não cura
para seu mal. Raskólnikof, cuja pena era de “sete anos, somente, sete anos!”, ignorava
que a nova vida não seria dada de graça e que tinha de a adquirir à força de longos e
dolorosos sacrifícios.” (p.329) Mas essa é a diferença primordial entre eles: há, ainda
que com longos e doloroso sacrifícios, uma nova vida para Raskólnikof, enquanto que
para Luís não. A mediocridade de Luís, que mata para ser alguém, permanece, pois ele
não tem uma segunda chance. Raskólnikof, que mata para ser superior aos outros,
percebe sua “normalidade”, mas ganha em troca a esperança de uma nova vida.
A angústia de um se inicia com o crime; é o seu castigo. Para outro, a angústia é
o fator gerador do crime. Luís da Silva não tem nada, nem culpa nem salvação;
Raskólnikof tem sua fé, o amor e a possibilidade de recomeço, donde se conclui que a
57
angústia do herói brasileiro é muito mais dura que a do russo, uma vez que não
perspectiva de recomeço para Luís da Silva.
58
4. Graciliano Ramos vs. Dostoiévski: uma luta entre “fortes”
Cada um tem o seu jeito de matar pulgas.
Graciliano (apud Ricardo Ramos)
Um ano antes da publicação de Angústia, isto é, setenta anos, Graciliano
era comparado a Dostoiévski, como ele mesmo comenta, (Ramos, G. 1980, p.141) em
carta de 30 de março de 1935, com sua esposa Heloísa:
Acabo de receber uma carta do Gastão com várias notícias e dois artigos: um
do Pará outro de Minas. A crítica do mineiro está bem feita. O paraense ataca
minha linguagem, que acha obscena, mas diz que serei o Dostoiévski dos
Trópicos. Levante-se e cumprimente. Uma espécie de Dostoiévski
cambembe, está ouvindo? O pior é que o homem me chama de Gratuliano.
Também em seu “retrato fragmentado”, traçado por seu filho Ricardo Ramos
(1992, p.115), podemos ler que:
Às vésperas de morrer, [Graciliano] disse publicamente quais julgava as suas
influências: Dostoievski, Tolstoi, Balzac, Zola. E também o seu permanente
entusiasmo pela literatura russa, que sabíamos ir além de Tolstoi e
Dostoiévski, demorar-se em Gogol, Tchecov, Andreiev e Gorki. A uma
pergunta sobre qual dos dois preferia, Tolstoi ou Dostoievski (o repórter sem
dúvida imaginava que fosse o segundo), respondeu: “Tolstoi. Mas Tolstoi eu
não considero apenas o maior dos russos: é o maior da humanidade”.
No entanto, seu fascínio pelo escritor russo ficou registrado nas páginas de
Ricardo Ramos (1992, p.75): “Passava então a Dostoievski, enormidade. Sem
afirmações nem comparativos, mas com o maior fascínio, um encantamento onde as
reticências poderiam ser realmente falta de palavras. Aqui não existia lucidez possível.
””
E em suas próprias páginas também, quando Graciliano (1983, p.257)
“questiona” a morte de Svidrigailoff em Crime e Castigo:
Foi o que sucedeu a Dostoievski na parte relativa à situação financeira das
personagens de Crime e Castigo. Raskolnikoff e a irmã, Sônia e o resto da
família do bêbado estão arrasados, dificilmente poderiam continuar a figurar
na história. Nesse ponto surge Svidrigailoff e suicida-se, deixando aos
necessitados o dinheiro preciso para o romance acabar. Certamente
Svidrigailoff morreu direito e teve antes o cuidado de passar a noite num
pesadelo que é uma verdadeira maravilha, mas isto não impede que ele haja
dado cabo da vida expressamente com o fim de deixar alguns milhares de
rublos àquela gente sem recursos.
Apesar da crítica a “esse nobre exemplo”, o certo é que Dostoiévski e Graciliano
compactuam da mesma visão humanitária fator que, talvez, contribua
fundamentalmente para a aproximação de ambos. E embora, como nos coloca A.
59
Fonseca Pimentel (1978, p.238), Graciliano abominasse o “paralelo”, isto é,
comparações, fossem elas com quem quer que fosse, e se “um paralelo entre Machado
de Assis e Graciliano Ramos, justifica-se menos para apontar semelhanças do que
assinalar diferenças” (Pimentel, 1978, p.238) o mesmo se pode esperar deste trabalho.
Até porque, mesmo que se quisesse, é impossível não notar que, apesar dos pontos de
contato em comum, as diferenças entre Graciliano Ramos e Dostoiévski são imensas.
No mesmo artigo, no entanto, Pimentel (1978, p.239) coloca uma questão
interessante:
O autor de São Bernardo o era, em verdade, um pessimista e, sim, um
revoltado, um revoltado contra a ordem estabelecida, que lhe parecia iníqua e
inumana. Como bom marxista que era o Maritain demonstrou à saciedade,
em várias obras, que o marxismo, com todas as mutilações, ainda é uma
forma de humanismo Graciliano acreditava, no entanto, até demais, no
homem, bem como, alhures no espaço ou no tempo, numa sociedade em que
a humanidade fosse mais feliz.
E, se “Machado descria do homem em si”(Pimentel, 1978, p.239), o mesmo não
se pode dizer de Dostoiévski, que nunca perdeu a esperança no ser humano, apesar de
seu eterno conflito entre a religiosidade e o ceticismo. Então não se pode esperar outra
coisa: cada um, a seu tempo e a seu modo, soube perscrutar a alma humana,
presenteando-nos com obras como Angústia e Crime e Castigo, obras em que o
indivíduo é posto em uma situação limite no caso, um crime na tentativa de
“resolver” o eterno conflito entre o bem e o mal.
O crime e o castigo
Diferentes, mas semelhantes: assim são Dostoiévski e Graciliano Ramos. E as
semelhanças, curiosamente, não se limitam às questões literárias. Podemos percebê-las
em outros setores da vida desses escritores, inclusive na vida pessoal. O exame dessas
aproximações demonstra as “coincidências” que os cercam, mas acentua as diferenças
que lhes são peculiares.
Nascido em 1821, Dostoiévski é filho da decadente nobreza russa. Tem uma
vida tumultuada, na infância, pela aversão ao pai homem extremamente bruto e, na
fase adulta, pelas dívidas do jogo. Na juventude, descobre, como muitos outros russos, o
socialismo e a esperança de um mundo mais justo e igualitário. Não pôde, no entanto,
conhecer a Rússia socialista e o seu consecutivo fracasso igualitário. O desejo de
igualdade manifestado por Dostoiévski traz-lhe como conseqüência imediata a prisão,
cujas marcas estão registradas em seu romance Recordações da Casa dos Mortos,
60
publicado em 1862. É depois dessa experiência que Dostoiévski produz Crime e
Castigo. Sua vida como um todo sofre grandes transformações após o exílio na Sibéria:
renova seu cio pelo jogo, casa-se com Maria Dmitrievna, num casamento bastante
infeliz, e acentuam-se as crises de epilepsia, manifestada pela primeira vez quando seu
pai é assassinado. Dívidas, morte da esposa e de seu irmão e a crescente necessidade de
escrever para sobreviver: eis a vida de Dostoiévski no momento em que produz Crime e
Castigo. Sua vida melhora com a necessidade de concluir, em um mês, o livro O
Jogador e a necessidade de contratar uma estenógrafa, sua segunda esposa. É com Ana,
sua companheira até o fim da vida e vinte e cinco anos mais jovem, que Dostoiévski
encontra a paz de que necessita para escrever suas melhores obras. Morre em 1881,
onze anos antes do nascimento de Graciliano Ramos, aos sessenta anos, consagrado
com um dos maiores escritores russos de todos os tempos.
Graciliano Ramos, nascido em 1892, é neto de fazendeiro e filho de
comerciante. Também deposita a esperança de um mundo igualitário no socialismo.
Casa-se, pela primeira vez, aos vinte e cinco anos, ficando viúvo logo em seguida. Seu
segundo casamento acontece com uma mulher dezoito anos mais jovem e é com ela que
termina sua existência aos sessenta anos. Antes, porém, é preso pelo governo Getúlio
por “conspirar” contra o Estado. Sem provas nem processo, a experiência na cadeia
também lhe marca a vida, ficando registrada em Memórias do Cárcere, obra póstuma,
publicada em 1953, como ele previra e desejara. Angústia, no entanto, é publicada
durante a prisão de Graciliano, é anterior a ela, e é também o livro mais “castigado” por
seu autor, isto é, o livro que recebeu dele críticas mais severas
29
.
No entanto, apesar da origem abastada, mas em declínio de ambos, dos dois
casamentos, sendo o segundo com mulheres bem mais jovens, da experiência carcerária
e seu registro literário e da morte aos sessenta anos, encontramos uma fatalidade que os
aproxima ainda mais. Dostoiévski escrevia compulsivamente, ainda que para saldar
dívidas, tendo uma volumosa produção literária ao longo de seus sessenta anos de
existência. Sua necessidade por dinheiro torna-o produtivo, mas menos minucioso que
Graciliano, que “salvou” muito pouco de sua produção literária devido à sua
necessidade de síntese. Conhecido por sua concisão, Graciliano era extremamente
insatisfeito com sua produção literária. Angústia, como dissemos, é a obra que mais
sofreu críticas, pois, como foi publicada enquanto Graciliano estava na cadeia, não pôde
sofrer os cortes por ele desejados. O resultado é uma obra totalmente atípica, em que o
29
Ver CANDIDO, 1992.
61
“eu” do escritor se torna mais “visível”, isto é, Angústia transborda angústia. Devido a
essa fatalidade, as obras que aqui selecionamos apresentam mais esta peculiaridade:
foram publicadas pela necessidade de dinheiro.
Escrito sob circunstâncias penosas, como quase todas as obras de Dostoiévski,
Crime e Castigo foi publicado em 1866. A inspiração do romance também é decorrente
da falta de dinheiro, pois as dívidas são tantas que “não tem nem mesmo com o que
pagar a conta do hotel. E é nessa situação que fala em escrever, que promete escrever
para solver compromissos. Não possui outra coisa a empenhar senão o seu talento
criador e é preciso que essa máquina funcione de qualquer maneira. Vem-lhe a idéia de
um romance, idéia magnífica, esboço do que seria mais tarde o Crime e Castigo.”
(Broca, 1951, p.5)
Crime e Castigo, que é o primeiro romance da fase madura do escritor, apresenta
a história de Raskólnikof e sua teoria sobre “ordinários” e “extraordinários”.
Inicialmente, o romance é imaginado sob forma de um diário, cujo desfecho seria o
suicídio do protagonista, como se pode verificar nas notas e rascunhos e no diário de
Raskólnikof ambos presentes na edição da José Olympio (1951, p.555): “Fim do
romance. Raskolnikov vai suicidar-se.” Talvez a indecisão de Dostoiévski
30
sobre o tipo
de narrador a ser utilizado seja a razão para as constantes alterações de foco narrativo.
Muitas vezes percebemos o narrador onisciente confundir-se com os fatos, como a idade
dos irmãos Ródia e Dúnia. Ródia tem vinte e três anos, como se na página 307:
“Raskólnikof pegou na revista e lançou uma rápida vista ao artigo. Um autor
experimenta sempre vivo prazer ao ver-se impresso pela primeira vez, sobretudo
quando tem só vinte e três anos.”
Sem serem gêmeos, Dúnia também tem vinte e três anos, como vemos na página
131: “Embora tivesse quarenta e três anos, a mãe de Raskólnikof conservava vestígios
da sua formosura (...). Era o retrato de Dunetchka, com vinte anos a mais e sem a
saliência do lábio inferior, que caracterizava a fisionomia da filha.”
Apesar desse e de outros “equívocos” ocasionados, talvez, pela pressa de
compor a obra, as traduções “desleixadas” ou a própria impressão do original a
mudança de foco narrativo ainda em estado experimental em Crime e Castigo será a
marca de Dostoiévski, que a irá aprimorar em seus próximos romances, criando o que
Bakhtin chamou de romance polifônico, o qual, como sabemos, deu origem à
Intertextualidade – termo cunhado por Kristeva e que serve de apoio à nossa análise.
30
Ver DOSTOIÉVSKI, 1951, pp.549-555
62
Segundo Bakhtin (2002, p.272), “as obras de Dostoiévski são o discurso sobre o
discurso, voltado para o discurso”, pois no mundo de Dostoiévski o há, de modo
geral, nada de concreto o objetos, referentes, apenas sujeitos”. (Bakhtin, 2002,
p.240) O resultado disso é que “o homem é apresentado pleno em cada uma de suas
manifestações. A própria orientação do homem em relação ao discurso do outro e à
construção do outro é essencialmente o tema fundamental de todas as obras de
Dostoiévski.” (Bakhtin., 2002, p.208)
Graciliano, por motivos semelhantes: está preso e precisa de dinheiro para si e
sua família, permite a publicação de Angústia, em 1936, sem passar pela sua revisão. O
resultado é uma obra inteiramente diferente das demais embora todas sejam
essencialmente diferentes. Em Angústia, o narrador protagonista vazão aos seus
sentimentos numa espécie de “dialogismo”, obtendo como resultado um discurso
voltado para o discurso do outro. No mundo de Angústia, o que mais interessa é o
discurso, que dialoga com outros discursos. Não ação em Angústia, nem relações de
tempo ou qualquer outro traço característico do romance “convencional”, o que é o
relato de Luís da Silva, repleto de devaneios e inconsistências.
Maria Celina Novaes Marinho (1997, p.259), ao analisar Vidas Secas sob a
teoria de Bakhtin, nos diz que, em Graciliano Ramos, “os discursos dessas classes se
avizinham, se entretocam, se olham e se respondem.” Angústia, devido ao monólogo
interior, pode ser considerado o texto mais “dialogado” de Graciliano, sem que o
diálogo seja “o principal instrumento na arquitetura das cenas.” (Candido, 1992, p.40) É
que o discurso de Luís da Silva está impregnado do discurso do outro numa constante
réplica. Isso está presente em toda a narrativa, como neste trecho: “O riso de uma das
mulheres que tinham passado sob a árvore estalou a alguns metros de distância. Estaria
mangando de mim? mangando dos esforços que eu fazia para recuperar os dez
centímetros de corda?” (Ramos, 1998, p.196)
Da mesma forma, Ana Mello (1993, p.113) nos confirma, confirmação essa que
se obtém facilmente com a leitura da fortuna crítica de Graciliano, a aproximação dele
com Dostoiévski, só que dessa vez sob o ponto de vista do discurso:
As reflexões sobre a morte de Julião Tavares lembram as reflexões de
Raskolnikov a respeito do assassinato da velha usuária. Como ela, Julião
Tavares representa não tanto um indivíduo, mas um “princípio”
(Raskolnikov considera que matou um princípio” e não um ser humano),
que é o da prepotência e/ou insensibilidade de uma elite econômica.
Então, se o discurso é o essencial em ambas as obras, é natural que as
personagens sejam o foco da narrativa. Raskólnikof é um jovem de 23 anos, estudante
63
de Direito, que, como todo jovem, deseja mais de seu futuropromissor”. A escolha de
Dostoiévski por um jovem como protagonista, aliás, é bastante justa, pois é na
juventude que nossa ambição se manifesta mais facilmente. Todo jovem possui a ânsia
de vencer e achar-se “superior”, pois é apenas na maturidade que a maioria de nós se
defronta com nossas reais limitações. Infelizmente, Luís da Silva não é mais jovem, não
possui mais a “esperança no futuro”. Aos trinta e cinco anos, sabe que o mundo não lhe
pertence e o tamanho de sua insignificância. A mesquinhez que percebe nos outros,
como em Julião Tavares, é acentuada nele pela ausência de qualquer fator que contribua
para inseri-lo no universo dos “aceitos”. É nordestino, feio, exerce profissão medíocre
com baixa remuneração, não possui afetos, é um desgraçado.
Ródia, não. O protagonista de Dostoiévski, como vimos, é um jovem cujo
futuro ainda está por vir. Além disso, possui família, o amor de Sônia e a perspectiva de
um recomeço. Não se encontra em Raskólnikof indícios de baixa auto-estima, como
em Luís da Silva, pelo contrário. Sua vontade de fazer-se superior é que motiva o crime
contra a agiota Alena e sua irmã. No entanto, o crime que o desgraça é também o
responsável por sua “salvação”. mencionamos o fato de que a religiosidade presente
em Dostoiévski (e ausente em Graciliano Ramos
31
) pode ser a chave dessa salvação”,
mas também é possível creditá-la a outras questões, como a juventude e o apoio
familiar. Luís não possui nada, como Candido (1992, p.34) nos coloca, “falta-lhe, na
verdade, o mínimo de confiança necessária para viver”, por isso não teria nem por que
se salvar.
Os crimes, cujos motivos aparentes são roubo e passionalidade, escondem outros
segredos. Raskólnikof mata para ser mais; Luís, apenas para ser. As vítimas, no entanto,
apresentam uma semelhança essencial: possuem dinheiro. Tanto a agiota Alena quanto
Julião Tavares podem ser interpretados como mbolos de poder financeiro, e ainda
mais, como “injustamente” ricos. Um explora os necessitados com juros abusivos sobre
os penhores; o outro vive de “rendas” da fortuna do pai, comerciante de secos e
molhados. Nenhum deles produz nada para obter dinheiro, são parasitas”, ao contrário
dos protagonistas que, mesmo sem dinheiro, são capazes de “pensar”.
A inteligência, no entanto, não lhes garante lucros e é preciso “aturar” pessoas
inúteis com dinheiro e poder, ainda que limitados, enquanto eles são úteis (pensam),
mas não têm dinheiro (e a ausência de dinheiro impede-os de serem alguém”). O
espírito do mundo capitalista, ainda que na Rússia não tenha existido capitalismo,
31
Ver carta n.º 24 de Graciliano Ramos a seu pai, Sebastião, 1980, p.52
64
impera nas duas obras. O Ter é mais importante que o Ser e é por isso que os crimes
acontecem.
Raskólnikof liquida Alena a machadadas; Luís enforca Julião com uma corda.
As mortes nada convencionais também merecem atenção. Não pelas mortes, mas pelas
fatalidades que as permitem. Os instrumentos utilizados para assassinar Alena e Julião,
machado e corda, parecem “colaborar” para a execução dos crimes. O machado é
achado por Raskólnikof por um golpe de sorte” e a corda, presente de seu Ivo, ficou
por esquecimento no bolso de Luís. Também a oportunidade para o crime se por
acidente: Raskólnikof ouve sem querer que Alena ficaria sozinha em casa em
determinada data e horário e Luís persegue Julião sem intenção de matá-lo (pelo menos
naquele momento), mas, diante de nova afronta, o cigarro, comete o crime que
premeditara sem convicção. Para Massaud Moisés (1978, p.223) o crime de Luís da
Silva está repleto de automatismo a ponto de Luís parecer “mais um ébrio de êxtase
místico que um simples criminoso”, que cumpre sua missão”. Então, é como se o
destino conspirasse para os crimes, cujas conseqüências novamente convergem.
Para todo crime um castigo e, para o crime de Raskólnikof, o castigo é a
angústia, como nos coloca o narrador de Crime e Castigo (Dostoiévski,1996 p.63):
“Sofria de uma maneira horrível ao convencer-se de que tudo o abandonava, a própria
memória, a mais elementar prudência./ ‘Será isto o princípio do castigo! É isso, é!’” É a
angústia de Raskólnikof que o perde e o faz denunciar-se, mas, para Luís da Silva, é a
angústia que o faz cometer seu crime, ou seja, se, para Raskólnikof, a angústia é
conseqüência do crime; para Luís, ela é a causa.
Mesmo com motivações divergentes, as conseqüências o semelhantes: uma
perturbação mental, que afeta a consciência, deixando-os sem memória, sem raciocínio,
especialmente após cometerem seus crimes. É como se, ao cometê-los, perdessem a
própria identidade. Identidade que buscavam através desse ato que, ironicamente, a
rouba. Não há como ser o mesmo após cometer um assassinato, indiferente de se crer ou
não num inferno. A mente fica confusa e não possibilidade de remediar o fato,
impossível ressuscitar alguém. Por isso, o delírio de Luís da Silva, após o crime:
A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo e era
por que se via que o tempo passava. Mas no tempo não havia horas. O
relógio da sala de jantar tinha parado. Certamente fazia semanas que eu me
estirava no colchão, longe de tudo. Nos rumores que vinham de fora as
pancadas dos relógios da vizinhança morriam durante o dia. E o dia estava
dividido em quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns
metros de tijolo, outra parede. (Ramos, 1998, p.218)
65
O desenrolar do romance de Dostoiévski se exatamente no jogo de Porfírio
com Raskólnikof, que constitui Crime e Castigo. A disputa entre os dois demonstra o
interior de Raskólnikof, seus tormentos e desconfianças, seu perfil. Longe de traçar um
perfil psicótico, no entanto, Dostoiévski traça o perfil de uma pessoa que comete um
erro, um “deslize”. É um ato “impensado” (apesar de premeditado) de Raskólnikof que
o coloca na situação de assassino. Não mata por prazer, como seria pico de um
psicopata, mas por crença em seu potencial “superior”. Sua desgraça é perceber-se
humano e perder-se pela morte de um ser inferior” como Alena. Num primeiro
momento, inclusive, é frustrante saber o real motivo do assassinato, que não ocorre por
dinheiro, como se pode imaginar e que, de certo modo, seria mais lógico. O crime,
como rito de comprovação de seu caráter extraordinário, deixa-nos a sensação de
“absurdo”, como se Dostoiévski quisesse apenas nos surpreender no final da narrativa.
No entanto, se atentarmos para a experiência carcerária de Dostoiévski, poderemos
perceber a sutileza de seu pensamento inovador. Nenhum criminoso assim se considera,
pois, na maioria dos casos, o crime era para ele uma necessidade. Mesmo que não haja
intenção de inocentar nenhum criminoso, devemos reparar que, assim como
Raskólnikof, muitos cometeram seus crimes sem considerá-los como tal. É como se, ao
matarem alguém que consideravam um “obstáculo”, como a agiota Alena era para
Raskólnikof, não estivessem fazendo nada além de retirá-lo do caminho.
É nesse ponto que Dostoiévski demonstra ainda mais a sua genialidade, pois é
capaz de perceber que as atitudes humanas o obedecem à lógica convencional. Os
mistérios que motivam nossas ações não se encontram em nível consciente, mas
inconsciente e muitos de nós ignoram o porquê de nossas ações mais banais. O próprio
questionamento de Raskólnikof sobre o verdadeiro motivo do crime é a chave desse
enigma: quem pode garantir-nos a sua maior motivação para matar? Luís da Silva é
uma personagem bastante diferente de Raskólnikof, mas comete o mesmo “pecado”.
Para ele, no entanto, a angústia acontece muito antes do crime, é, por assim dizer, sua
motivadora. Após o crime, essa angústia aumenta, pois, para Luís, não existe
“salvação”.
Luís da Silva é um coitado. Quando imagina que conquistará alguma felicidade
ao lado da desmiolada Marina, aparece Julião Tavares para tomá-la. Ele, que nada
possuía, passa a ser nada também. Seu sentimento de deslocamento acentua-se e a
crescente angústia tira-lhe o pouco de “humanidade” que tinha, isto é, o convívio com
66
outros seres. Esconde-se de Moisés por causa das dívidas, não freqüenta mais o
trabalho, seu único universo é o mundo de Julião e Marina.
Muito se fala, inclusive, do motivo passional da morte de Julião Tavares, como
nos coloca Abel (1994, p.107): “Wolfgang Kaiser (p.58) nos assevera que o motivo
de uma ação deve ser entendido como o impulso para realizar sua ação. O motivo para o
assassinato de Julião Tavares é o ciúme paranóico de Luís da Silva, sendo o móvel,
Marina.” No entanto, é impossível atribuir somente a Marina o motivo da morte de
Julião Tavares. Luís o mata por outros motivos entre os quais Marina está incluída, mas
não é nem de longe o motivo central. Há toda uma referência sobre a gordura de Julião
Tavares, em oposição à magreza nordestina de Luís da Silva, que, apesar de mais
inteligente, não é elogiado como Julião Tavares. Além de gordo, Julião é rico e tem
mulheres enquanto Luís vive humildemente e não consegue relacionar-se com o sexo
oposto. Sua inaptidão para relacionamentos amorosos é explícita, mas o problema com
a figura feminina é bem mais profundo, abrangendo-a como um todo, inclusive com a
questão da mãe e da avó, referências que ele descreve sem o menor afeto, pelo
contrário.
Luís da Silva pratica seu crime, porque Julião Tavares possui tudo ou, nas
palavras de Sonia Brayer (1978, p.211), “Julião Tavares é a concretização de todas as
opressões sofridas pelo personagem Luís da Silva”. Então, apesar da pena que sente de
Julião antes de matá-lo (pena que Raskólnikof não sente de sua vítima), não consegue
evitar o crime quando Julião Tavares acende um cigarro. Sem apologia à nicotina, o fato
de Julião acender um cigarro quando Luís os havia esquecido em casa foi um novo
motivo de afronta. Foi como se mais uma vez Julião Tavares o estivesse humilhando
com sua superioridade de homem que tem tudo, inclusive cigarro, mulheres, dinheiro.
Longe de ser um crime passional, o assassinato de Julião Tavares é um crime de auto-
afirmação, que evidentemente não se concretiza. É impossível para Luís obter a sua
identidade de indivíduo, mesmo com a ausência de Julião Tavares, pois não é ele o
responsável pela sua nulidade individual. Nesse caso, entram dois elementos
importantes: a figura feminina e a questão social.
Como vimos, a figura feminina é inexistente na vida de Luís da Silva. Ao
contrário de Raskólnikof, que possui uma mãe e uma irmã amorosas, que fazem tudo
por ele, e o amor incondicional de Sônia, que não se importa de esperar por ele, Luís
não tem boas recordações da mãe ou de qualquer outra figura feminina. A que melhor o
tratou foi uma prostituta, cuja ligação, como sabemos, se dá por dinheiro e não por laços
67
afetivos. A ausência de afeto feminino, com certeza, é fator determinante para sua
condição de “humilhado e ofendido”. Sem essa referência de amor, Luís é sujeito a todo
tipo de rejeição. É como se fosse incapaz de agradar aos outros, exceto pelos favores
que poderia lhes prestar. Não é então sem motivo que pensa que Marina pode aceitá-lo
como marido, apesar de sua aparência desagradável, por possuir umas pequenas
economias.
Marina representa, para Luís da Silva, a possibilidade de sair da solidão.
32
É seu
desejo de integração que o faz imaginar, ou construir”, nas palavras de Luís da Silva,
uma Marina. No entanto, conforme L’abbate (1995, p.145), “a mulher que ele idealiza
em nada se parece com Marina. Para Luís da Silva, a mulher deve ser inocente,
indefesa, pura, para que possa chamá-la de filha e lhe dar até alguma independência.”
Traços que Marina, definitivamente, não possui.
Para L’abbate (1995, p.149), “as mulheres de Angústia não possuem totalidade.
Elas estão codificadas, por isso não confronto. Todas agem com meias palavras,
numa luta solitária, desigual e quase inconsciente. (...) [e] Em Marina estão contidas
todas as mulheres de Luís da Silva.” É por isso que Marina o pode corresponder ao
desejo de Luís, não pode, ao menos, garantir-lhe a inclusão de que o amor é capaz.
Segundo Erich Fromm (s./d., p.42), “o desejo de fusão interpessoal é o mais poderoso
anseio do homem. É a paixão mais fundamental, é a força que conserva juntos a raça
humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso em realizá-la significa loucura ou
destruição auto-destruição (sic) ou destruição de outro. Sem amor, a humanidade não
poderia existir um dia.” É por isso que Luís não tem “salvação”. Ele não possui
amor, nunca o possuiu. Desde menino, vivia isolado, rejeitado, não tinha forças para
superar seus limites e conquistar o amor por si próprio, muito menos fazer-se amar. O
próprio modo como se descreve revela sua impiedade consigo mesmo. Ele mesmo se
autodenomina um “pobre-diabo”, “feio”, “desajeitado” etc. Segundo Antônio
Sanseverino (1993, pp.29-30), Luís da Silva:
percebe a posição acanalhada (por dentro dela) em que se encontra. Ele é,
além de funcionário público, escrevinhador de artigos para serem usados por
outras pessoas. Ele vende sua habilidade técnica para assumir a voz de
prefeitos e políticos do interior de seu Estado, ele assume a voz do outro
como sua. Ao mesmo tempo, se incapaz de se assumir como empregado,
como um trabalhador qualquer, porque não mais linguagem comum. Seu
modo de pedir cigarros ou bebida o afasta de outros freqüentadores de um
boteco qualquer.
32
Ver COELHO, 1978, p.65
68
Ele se vendeu. Não é mais ele mesmo e não pertence a grupo algum. Está isolado no seu
universo, ou como nos coloca Sanseverino (1993, p.30), “ao mesmo tempo em que [o
narrador] cria o discurso catártico de um indivíduo, numa narrativa psicológica, também
revela o olhar de um grupo social frustrado”, a intelectualidade brasileira daquela época.
Raskólnikof, por sua vez, age e escreve por e para si. Sua exclusão é, por assim dizer,
voluntária, pois, ao contrário de Luís, possui amor e auto-estima. Aqui é possível, até,
fazer uma analogia à questão nacional dos dois países, Brasil e Rússia. A Rússia,
isolada entre a Europa e a Ásia, acha-se digna de louvores, pois possui uma história que
a “enriquece”, possui uma “dignidade” de nação. Já o Brasil estaria à margem, como um
pobre-diabo em relação aos países de longa tradição, pois o amor não lhe é oferecido
nem por si próprio, isto é, nem pelos próprios brasileiros.
Ainda na questão do amor, como pode-se perceber com a leitura de Crime e
Castigo, é o amor de Sônia que “salva” Raskólnikof. Sônia é, para ele, o único elo
humano que lhe resta, mas ela não o decepciona. Por outro lado, temos, em Dostoiévski,
uma visão romântica da figura feminina. Tanto a mãe e a irmã de Raskólnikof como
Sônia carregam uma aura de pureza, embora Sônia se prostitua e Dúnia, irmã de
Raskólnikof, também esteja disposta a fazê-lo, através de seu casamento com Lujine,
pelo bem-estar de sua família. A própria relação de Raskólnikof com o universo
feminino é bastante romântica. Nas duas referências de romances do protagonista, uma
com a filha da hospedeira e outra com Sônia, não parece haver desejo carnal por essas
mulheres. É como se o desejo sexual não existisse para Raskólnikof em oposição a Luís
da Silva, que se sente um bicho diante das mulheres tamanho é o seu desejo por elas. O
próprio desejo de Luís da Silva de ouvir, às escondidas, a “sonoridade da mijada” de
Marina, bem como o próprio vocabulário escolhido para descrevê-lo, revela-nos o
quanto problemática é a sua relação com as questões sexuais. Por isso, tanto um quanto
o outro apresentam, perante o desejo sexual, posturas patológicas: um é a ausência; o
outro, o excesso.
Em comum, a figura feminina como meio de interação social. E, se para Luís
nem a mulher pode “salvá-lo” é porque eleo crê em si mesmo. Está massacrado pelo
pessimismo, pela visão impiedosa que tem de si mesmo e pela consciência de seu
“destino” de ninguém. Como “o homem que se engaja e que se conta de que ele não
é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe
simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao
sentimento de sua total e profunda responsabilidade” (Sartre, 1987, p.7), Luís angustia-
69
se. Ele é “homem”, e, como tal, é produto de suas ações e das ações dos outros. Por
isso, para poder sobreviver, é preciso destruir” o que no(s) outro(s), que é,
simultaneamente, objeto de desejo e desprezo, como ocorre com Julião Tavares.
Como Luís acredita que não pode conquistar afetos espontâneos e sabe que não é
apenas a aparência o motivo de seu insucesso no universo feminino, mas a questão
financeira, descobre-se que o dinheiro é um fator decisivo em nossa sociedade. É por
isso que Julião Tavares levaria vantagem com as meninas pobres que desvirginava e é
por isso também que ele devia morrer. Então, esbarramos na questão social, que, apesar
das diferenças apresentadas em nosso esboço histórico, aproximam mais uma vez
esses dois escritores.
Conforme Coutinho (2000, p.181):
no realismo russo, notadamente em Tolstói e Dostoiévski, vemos surgir
um novo tipo de ‘herói problemático’ (ao lado de uma renovação do antigo
tipo): o indivíduo que busca realizar-se através da integração na comunidade
humana, superando o individualismo, mas que graças à inexistência
objetiva desta comunidade está também condenado ao fracasso (que se
pense na trágica derrota do Príncipe Mishkin e na importância de Aliocha
Karamazov e de Nekludhov). Esta modificação de estrutura romanesca
corresponde ao período de crise radical dos valores burgueses, notadamente
os do humanismo individualista.
Impedido de integrar-se, a “solução” de Luís da Silva é acabar com o “culpado”
de seu duplo malogro: “O assassinato lhe parece como a única maneira de afirmar uma
liberdade sempre desejada e jamais alcançada, a única forma autêntica possível de
romper com a alienação.” (Coutinho, 2000, pp.188-189) A alienação permanece, pois a
morte de Julião Tavares não lhe pode devolver a “vida”, ao contrário.
O móvel da ação de Luís é, portanto, a alienação do pequeno-burguês, que
não pode se libertar da miséria e limitação do ‘pequeno mundo’.
Historicamente solitário, ele está socialmente condenado à impotência e a
uma liberdade puramente abstrata. E Luís da Silva é um típico representante
de nossa classe média; típico, inclusive, na medida em que transcendendo
com sua ação a dia cotidiana de sua classe encarna uma possibilidade
máxima de manifestação contida na revolta individualista. (Coutinho, 2000,
p.191)
É por isso que a morte de Julião Tavares não consegue resgatar a vida que, na verdade,
ele nunca possuiu.
E se Luís da Silva é um solitário e um individualista, Raskólnikof também o é.
Ambos representam o conflito do homem moderno, que não consegue interagir com os
outros homens. Estão, pegando de empréstimo as palavras de Coelho, condenados à
solidão e à angústia, pois, conforme Coutinho (2000, p.187), “os solitários e os egoístas
não conhecem o amor; e Paulo Honório e Luís da Silva, bem como Marina, são
solitários e egoístas.” O amor, para eles, é uma prisão, construída pelo desejo de
70
integração e aceitação social. Longe de garantir-lhes isso, o “amor” os sufoca e humilha,
pois não consegue sobreviver às fantasias que os solitários e egoístas nele projetam.
Usando as palavras de Erich Fromm (s/d., p.44), “o amor é uma atividade, e não um
afeto passivo; é um 'erguimento' e não uma 'queda'. De modo mais geral, o caráter ativo
do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e
não em receber.” Mas, como egoístas, Luís e Marina não conseguem dar; querem
receber e por isso a infinita frustração da solidão.
Logo, é evidente a aproximação entre Graciliano e Dostoiévski. Para Coutinho
(2000, p.195), “Graciliano constrói um dos romances mais realistas da literatura
brasileira [Angústia], cuja estrutura muito se aproxima da dos romances dostoievskianos
de herói individualista (como Crime e Castigo, por exemplo).” Para Octavio de Faria
(1978, p.185), a aproximação dos dois se dá pelo “tumulto de vozes em torno de Luís da
Silva”, que o “obrigam” a executar o crime. Essas vozes “funcionam, até, como certas
‘idéias’ em relação aos heróis de Dostoiévski: tentam-nos, zumbem à volta deles, não
esmorecem diante das primeiras recusas, insistem, tornam a tentá-los, fixam-se,
instalam-se, acabam por dominá-los inteiramente, levando-os aos últimos limites de
suas possibilidades secretas.” (Faria, 1978, p.185) Torna-se impossível, então, não
associar Luís da Silva ao “homem do subsolo” de Dostoiévski. Segundo Candido (1992,
p.82):
Este conceito terrível
33
é anunciado pelo narrador das Memórias Escritas
num Subterrâneo, de Dostoievski, cuja invocação ajuda a conhecer o
protagonista de Angústia. Ambos são homens acuados, tímidos, vaidosos,
hipercríticos, fascinados pela vida e incapazes de vivê-la, desenvolvendo um
modo de ser animal perseguido. Como tudo lhes parece voltado contra eles (e
tudo neles parece insatisfatório, mesquinho), sentem um desejo profundo de
aniquilamento, abjeção, catástrofe; uma espécie de surda aspiração à
animalidade, à inconsciência dos brutos, que liberta do mal de pensar e, ao
mesmo tempo, levaria ao limite possível e o sentimento de auto-abjeção.
Cabe ressaltar, no entanto, que Memórias do Subsolo é anterior a Crime e
Castigo, foi iniciado em 1863 e publicado um ano depois, em 1864. É, por assim dizer,
um possível germe do perfil de Raskólnikof, pois, se nos lembrarmos do “homem do
subsolo”, notaremos que, assim como Raskólnikof, ele crê em sua autonomia e imagina
não precisar de ninguém. O tom de sua narrativa é irônico e cruel, e não desesperado e
perdido como o de Luís da Silva, que é infinitamente mais desgraçado que o “homem
do subsolo” e Raskólnikof somados.
33
“Tudo provém da circunstância de eu não ter estima por mim, mas quem se conhece pode estimar-se
ainda que seja um pouco?” (Dostoiévski apud Candido, 1992, p. 82)
71
Também não podemos admitir a hipótese de que Luís, o “homem do subsolo” ou
Raskólnikof estão “libertados do mal de pensar.” Pelo contrário, eles se preocupam com
o pensamento alheio, estão sempre pensando o que acaba se tornando um problema,
pois pensam demais e nada fazem ou conseguem fazer para “aliviar” sua situação. Outro
aspecto interessante acerca dessas personagens, que as aproxima e as difere, é o modo
como elas lidam com o julgamento alheio. As personagens de Dostoiévski, por
exemplo, o se consideram medíocres, como se considera Luís da Silva. Para elas, os
outros é que são medíocres e por isso não percebem a sua superioridade, considerando-
as medíocres. Elas são incompreendidas por serem “melhores” que a maioria. É só
lembrarmos o prazer do “homem do subsolo” em ser grosseiro e parecer mau. O mesmo
se nota em Raskólnikof, mas nunca em Luís da Silva, que é submisso, incapaz de
humilhar alguém. Tudo que Luís é capaz de almejar é um sucesso remoto por um livro
hipotético, que lhe renderia glória e inveja. E mais uma vez é possível recordar a
comparação que fizemos entre Brasil e Rússia: um, o Brasil, apenas sonha com um
futuro brilhante, que causaria inveja e espanto aos demais; outro, a Rússia, acredita em
seu passado, presente e futuro, apenas imagina que a mediocridade alheia não permite
que a sua “imensidão” seja percebida.
A semelhança entre a Rússia e o Brasil, como vimos em nosso percurso
histórico, baseia-se, principalmente, nas condições de miséria e opressão do povo.
Segundo Berman (1995, p.220),
encontramos um modernismo que emerge do atraso e do
subdesenvolvimento. Esse modernismo surgiu pela primeira vez na Rússia,
mais drasticamente em São Petesburgo, no século XIX; em nossa era, com o
avanço da modernização porém, geralmente, de uma forma truncada e
desvirtuada como na antiga Rússia –, expandiu-se por todo o Terceiro
Mundo. O modernismo do subdesenvolvimento é forçado a se construir de
fantasmas e sonhos de modernidade, a se nutrir de uma intimidade e luta
contra miragens e fantasmas.
Do mesmo modo, foi no Nordeste que , segundo Coutinho (2000, p.159), “a
crise brasileira apresentava-se (...) com cores mais vivas e intensas do que no resto do
Brasil”, pois “o Nordeste era a região mais típica do Brasil; a sua crise expressava, em
toda a sua crueza, a crise do conjunto do país.” (Coutinho, 2000, p.160) Essa crise gerou
o que costumamos chamar de Romance de 30, no qual está inserida a obra de Graciliano
Ramos. Por isso, a associação entre ele e Dostoiévski é tão evidente e -se em
diferentes níveis.
Então, como sabemos, Graciliano era leitor confesso de Dostoiévski. Podemos,
por exemplo, encontrar esse excelente comentário, escrito num bilhete, datado de 27 de
72
março de 1936, durante sua prisão, para sua esposa Heloísa: “Hoje comecei a estudar
russo. você que aqui temos professores. (...) se tiver a sorte de me demorar aqui
uns dois ou três meses, creio que aprenderei um pouco de russo para ler os romances de
Dostoiévski.” (Ramos, 1980, p.161) Apesar do teor irônico deste comentário acerca de
sua prisão, que durou bem mais de dois ou três meses, é inegável a força com que
Graciliano admirava o escritor russo. Evidentemente seu conhecimento ia muito além
de Crime e Castigo e Memórias do Subsolo, devia passar pela obra inteira ou boa parte
dela afinal, impossível conhecer um autor apenas com uma obra, que não a
dimensão total do gênio criador do escritor como julgar um livro pela capa). Para se
conhecer um escritor, é necessário avaliar o conjunto de sua obra, como cremos que
ocorreu com Graciliano em relação a Dostoiévski. Por isso, nos permitimos dizer que a
essência de Luís da Silva se encontra não em Raskólnikof, mas em todos os heróis
dostoievskianos.
Por outro lado, a aproximação entre eles é bastante nítida. São filhos da
“modernidade” usado aqui sem a retidão conceitual que convém a uma análise mas
no seu sentido de ausência (ou questionamento) de valores. Ou, como nos diz
Dostoiévski (apud Bezerra, 2001, p.13), eles são filhos da descrença e da dúvida: “Eu
sou filho do século, filho da descrença e da dúvida; assim tenho sido e o serei ao fim
dos meus dias. Que tormentos tem me custado essa sede de crer, que é tão mais forte em
minha alma quanto maiores são os argumentos contrários.” Apesar do caráter religioso
divergente e da distância espacial e temporal, Raskólnikof e Luís da Silva são sujeitos
perdidos dentro de uma sociedade “podre”, isto é, uma sociedade sem valores humanos.
É verdade que Raskólnikof é um pouco menos infeliz, porque possui uma perspectiva
de futuro, que Dostoiévski não escreve, mas que, se tomarmos seus outros heróis como
exemplo, não seria tão promissor assim. Talvez Dostoiévski, apoiado na crença cristã da
ressurreição, o seja tão pessimista quanto Graciliano Ramos, mas também não chega
a ser otimista e, em decorrência disso, não podemos encontrar um “final feliz” para seus
heróis.
Segundo Coutinho (2000, p.161), a explicação para esse “pessimismo” está na
engrenagem que move a socidade burguesa, pois:
Estes sonhos do humanismo burguês europeu revolucionário revelaram-se,
com o processo de desenvolvimento de economia capitalista, uma ilusão
utópica: o egoísmo individualista da luta pelo lucro, a cisão radical entre
bourgeois e o cytoye, a redução do homem a simples mecanismo de produção
capitalista, o conseqüente fracionamento da comunidade eis o que
73
substituiu, na realidade, os ideais grandiosos do homem total e da
comunidade democrática.
É por isso que Raskólnikof odeia instantaneamente a agiota Alena do mesmo
modo que Luís odeia, também instantaneamente, Julião Tavares. Ambos, Alena e
Julião, são exemplos de indivíduos que se beneficiam com o capital. É por isso que
surge a necessidade de liquidá-los. Após os liquidarem, no entanto, surge a consciência
da inutilidade de suas ações. “Inútil. Tudo inútil”, nos diz Luís da Silva. Raskólnikof,
por sua vez, também percebe a inutilidade de sua ação quando decide entregar-se à
polícia: “É uma maneira simbólica de exprimir que vou carregar uma cruz
34
! Como se
hoje começasse a sofrer!” Sofrimento esse gerado, essencialmente, porque a maioria
não entenderia o motivo de seu “crime”.
No entanto, como nos diz João Cabral de Mello Neto, entre o inútil do fazer e o
inútil do não fazer, mais vale o inútil do fazer, e é isso que fazem as personagens
Raskólnikof e Luís da Silva. Mas é a inutilidade de suas ações que os liquida,
colocando-os em sua condição de joguetes do destino. Não são senhores de suas vidas,
como gostariam e imaginaram. São, quando muito, parte de uma multidão de ninguéns
tentando ser alguém. O sucesso, evidentemente, não ocorre porque nossa sociedade
sufocou a essência humana eis o crime de nossa “modernidade” e como castigo,
vivemos angustiados à procura de nós mesmos. Procura vã, como a de Raskólnikof e
Luís da Silva, mas necessária para a nossa sobrevivência.
O final aberto de Crime e Castigo possibilita-nos visualizar uma hipotética
felicidade a Raskólnikof, mas o final de Angústia, embora aberto Luís da Silva não é
preso nem acusado por seu crime não nos permite imaginar um final feliz, ainda que
hipotético. É como se Luís, mesmo que pudesse escapar da cadeia, não pudesse escapar
de sua consciência e, conseqüentemente, estivesse condenado à eterna infelicidade.
A angústia de Angústia
uma outra questão que nos sentimos obrigados a averiguar: a relação dos
autores com suas obras. Evidentemente não pretendemos justificar a vida de um ou de
outro com suas respectivas produções literárias, mas achamos interessante mostrar
determinados elementos que colaboram para a compreensão das obras analisadas.
34
O simbolismo de que nos fala Raskólnikof é a cruz de cipreste de Sônia, que coloca ao redor do
pescoço para purgar seus “pecados”.
74
Num primeiro momento, cabe-nos retomar as questões teóricas que nos deram
suporte para este trabalho: o conceito de fontes e influências versus o conceito de
intertextualidade. mencionamos que nossa escolha se baseou, fundamentalmente, em
questões de nomenclatura e suas conseqüentes relações de “poder”. Não desejando
privilegiar um em detrimento de outro, optamos pela intertextualidade. No entanto,
mencionamos que havia a possibilidade de se “comprovar” a influência de Dostoiévski
sobre Graciliano Ramos (especialmente ao que se refere à constituição do caráter
psicológico das personagens, sua “alma”) e ainda que Graciliano considerava toda a sua
obra, e em especial, Angústia, medíocre e indigna de elogios. Modesto, não admitia
“semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes” (Candido, 1992, pp.8-9) e
julgava Angústia um mau livro. Uma das justificativas para isso está no fato de não ter
tido tempo para fazer os cortes “necessários” para que a obra perdesse os excessos que a
caracterizam como a mais subjetiva de suas obras. Outro motivo, no entanto, se
sobressai: a questão autobiográfica.
Angústia, a priori, não pode ser considerada uma obra autobiográfica. Para que
assim fosse, deveria, segundo Guimarães (1988, p.33), “apresentar-se como um discurso
que é assumido pelo narrador fictício que se identifica com a pessoa real,” incluindo a
questão do nome, que deve ser o mesmo. No entanto, podemos encontrar, como
veremos a seguir, elementos que comprovam um caráter autobiográfico” em sua
construção, como os elementos que Graciliano empresta a Luís da Silva.
Segundo a carta que Graciliano Ramos escreveu para Antonio Candido (1992,
pp.8-9), podemos ler que ele considerava Angústia um livro ruim, um livro mal escrito.
Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir reminiscências,
cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa
operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo
dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia
me houvesse abafado esse material perigoso. Isso não aconteceu e o
romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. o
se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas
metendo horrores na história. muito mais tarde os vi. Um assunto bom
sacrificado, foi o que me pareceu.
Sem querer contrariar a opinião de tão nobre representante da literatura
brasileira, Graciliano Ramos, e mesmo Antonio Candido (1992, pp.33-34), que também
o julga um mau livro:
Dos livros de Graciliano Ramos, Angústia é provavelmente o mais lido e
citado, pois a maioria da crítica e dos leitores o considera sua obra-prima.
Obra-prima não será, mas é sem dúvida o mais ambicioso e espetacular de
quantos escreveu. Romance excessivo, contrasta com a discrição, o
despojamento dos outros, e talvez por isso mesmo seja mais apreciado,
apesar de suas partes gordurosas e corruptíveis (ausentes de São Bernardo ou
75
Vidas Secas) que o tornam mais facilmente transitório. Não sendo o melhor,
engastam-se todavia em seu tecido nem sempre firme, entre defeitos de
conjunto, as páginas e trechos mais fortes.
buscaremos motivos para essa “rejeição”. Suposições que talvez auxiliem na
compreensão, não dos “defeitos” de Angústia, mas de sua punição pública e explícita
por parte de Graciliano.
Se a “origem” de Crime e Castigo está, segundo Arban (1989, p.128), na obra de
Max Stirner, pois nela estão “as idéias básicas de Crime e Castigo, e o pensamento
talvez mesmo a linguagem de Rodion Raskolnikov”; a “origem” de Angústia está no
próprio Graciliano Ramos, pois, conforme Candido (1992, p.41): “poder-se-ia dizer que
Luís é um personagem criado com premissas autobiográficas; e Angústia, autobiografia
potencial, a partir de seu eu recôndito.” Isso não exclui a questão de Dostoiévski ter-se
influenciado por Gógol, como foi mencionado por Bakhtin, ou de Graciliano ter-se
influenciado por Dostoiévski. Tampouco pretendemos chegar a extremos, como ocorre
com Nelly Coelho (1978, p.66), que “mistura” Graciliano Ramos a suas personagens ao
analisá-lo segundo Luís da Silva:
Damo-nos conta repentinamente que Graciliano não acreditava na única força
que pode ajudar o homem a romper a Solidão e integrá-lo na comunhão com
o próximo. Graciliano não devia acreditar na possibilidade de o Amor existir.
Daí a solidão, daí a luta egoística que mantêm todas as suas personagens para
afirmarem-se como pessoas humanas” e terminarem interiormente
fracassadas, pois não vitória para o Homem, se ela não vem ligada ao
Outro.
Nem queremos, em direção oposta, acreditar nas palavras de Silva (1959, p.23), que diz:
“Graciliano não vive a vida de seus personagens. Pensa somente. Elabora e traça seus
movimentos, arma e desarma situações, não sente o que acontece às 'vidas secas' do seu
mundo literário. Possui a faculdade de se isentar, de não confundir a criação com o
criador tanto quanto possível.” Cremos sim nas palavras de Graciliano (apud Senna,
1978, p.55), que se confessa autobiográfico na medida em que se identifica com suas
personagens: “...Nunca pude sair de mim mesmo. posso escrever o que sou. E se as
personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só. Em
determinadas condições, procederia como esta ou aquela das minhas personagens. Se
fosse analfabeto, por exemplo, seria tal qual Fabiano...” Então, se fosse um solitário e
um egoísta, certamente seria Luís da Silva, mas este não era o caso de Graciliano
Ramos.
Por isso, concordamos com Candido (1992, p.43), quando afirma que:
Assim parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos, tanto no
plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente
(tendências profundas, frustrações), representando a sua projeção pessoal até
mais completa no plano da arte. Ele não é Luís da Silva, está claro; mas
76
Luís da Silva é um pouco o resultado do muito que, nele, foi pisado e
reprimido.
Isso porque Graciliano empresta a Luís da Silva o seu olhar crítico, sua vocação literária
e até seu passado, pois “muitas das pessoas aparecidas na primeira parte de Infância
eram nossos conhecidos de Angústia”. (Candido, 1992, p.50) Talvez essa exposição,
que não sofreu os devidos cortes para eliminar tal parentesco, seja o verdadeiro motivo
de tamanha punição à Angústia. Por outro lado, nenhuma de suas obras mereceu tantos
comentários de Graciliano Ramos quanto Angústia, que figura em suas Memórias do
Cárcere; em suas Cartas e transborda em Infância. Como foi publicada durante sua
prisão, mereceu também umas páginas de Clara Ramos, filha do escritor, em seu
Cadeia, no qual há um capítulo dedicado à publicação de Angústia.
Em Memórias do Cárcere, por exemplo, em meio à narração de sua temporada
na cadeia, Graciliano faz inúmeras alusões ao romance “ordinário” que pretendiam
publicar:
Porque foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros?,
pergunta o crítico honesto. E alinha explicações inaceitáveis. Nada disso:
acho que é ruim porque está mal escrito. Está mal escrito porque não foi
emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele. (p.6, V.1)
Não me arriscaria a trazer para o cubículo, por intermédio de minha mulher,
o romance falho. Embora ele valesse pouco, era-me desagradável perdê-lo. O
original e a outra cópia recomendada existiriam? Afinal o romance valia
pouco. Ser-me-ia talvez possível, com dificuldade, fazer outro menos ruim.
Ali a personagem central estava parada, revolvendo casos bestas, inúteis: um
sujeito a aporrinhar-se porque uma fêmea safada lhe fugia das garras, outro a
encher dornas, uma criatura cansada a lavar garrafas. Onde me haviam
aparecido aquelas duas figuras, um homem triste a encher dornas, uma
mulher a sacolejar-se em ritmo de ganzá? (p.100, v.2)
A cópia da história nebulosa e medonha chegara do Nordeste, fora enviada à
tipografia. Os críticos iriam arrasar-me. Ou o arrasariam; o mais certo era
não dizerem nada. (p.124, v.2)
em Cartas (1981, p.137), podemos ler: “Em seguida retornarei o trabalho
interrompido cinco meses. Julgo que continuarei Angústia, que a Rachel acha
excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história
abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas 95. Vamos ver se é possível
concluir agora essa porcaria.”
Por outro lado, é curioso notar que a crítica severa não ocorre com Angústia,
embora com ela seja mais acentuada, mas com todas as obras do escritor:
Com um estremecimento de repugnância, vi Sérgio embrenhado na leitura do
meu primeiro romance.
— Pelo amor de Deus não leia isso. É uma porcaria.
Ingênuo, tentei explicar-me, em grande embaraço. A publicação daquilo fora
conseqüência de uma leviandade. Escrita dez anos antes, a miserável história
passara às mãos do editor Schmidt e emperrara. revistas as provas, tinham
surgido obstáculos, demora, cartas, desavenças e a entrega dos originais a
amigos meus do Rio. Em 1935 Jorge Amado me visitara em Alagoas, dissera
77
que Schmidt queria editar o livro; mas não me convinha o negócio: julgava-
me então capaz de fazer obra menos ruim, meses atrás concluíra uma novela
talvez aceitável. Jorge se conformara com a recusa. Deixando-me, apossara-
se dos malditos papéis e dera-os ao livreiro. Essa justificativa de nada valia e
era impossível oferecê-la a todos os leitores.
Por isso, podemos concluir: não é Angústia que desagrada seu autor, mas toda a
sua produção literária, que sempre pode ser melhor, ou, em suas palavras, menos ruim.
No entanto, a origem desse rigor e dessa autocrítica está em Infância, quando
Graciliano mostra, em forma de literatura, como o menino solitário compreendeu o
mundo em que vivia: repleto de injustiças (como o famoso caso de Um Cinturão),
repreensões e críticas – características que carregou consigo por toda a vida.
Segundo Guimarães (1988, pp.183-184): “É em Angústia também que se torna
mais perceptível a visão e a síntese dos elementos que compõem o espaço
autobiográfico de GR. se encontram os quatro pontos centralizadores e que
particularizam cada uma das facetas da personagem principal, ou completados por
personagens co-protagonistas (...).” É por isso, efetivamente, que Graciliano tem uma
visão tão pessimista dessa obra. É como se a exposição a que ela o sujeita fosse demais
para poder ser suportada e isso a tornasse merecedora de todas as críticas possíveis.
Então se Angústia pode ter, ao mesmo tempo, “parentesco” com Graciliano
Ramos e com os heróis dostoievskianos, podemos inferir que a leitura de Dostoiévski
foi incorporada ao “eu” de Graciliano de tal modo que é impossível dissociá-los, mesmo
que não se tenha uma influência “ao da letra”, isto é, que ela tenha sido bem
“digerida”. Acontece que entre Graciliano e Dostoiévski um contato que transcende
as obras aqui analisadas. Entre eles, em comum a visão do ser humano, que pode ser
observada em diferentes obras, sem que uma remeta a outra diretamente, pois são os
indivíduos que se assemelham em sua condição de desarranjo com o mundo interior e
exterior.
É esse mesmo desarranjo das personagens de Dostoiévski e Graciliano Ramos
que podemos notar neles próprios. Não se quer dizer com isso que o talento criador não
existe e que suas criações são como diários, cópias fiéis de suas vidas, pelo contrário. É
a preocupação com o ser humano que os move e os aproxima, mas, como Dostoiévski e
Graciliano são seres distintos, apresentam diferenças que os tornam únicos.
A experiência de vida de Dostoiévski possibilitou que ele percebesse, usando
mais uma vez as palavras de Mello Neto, “a teia tênue” que une os “gritos de galo” de
sua civilização, que vive em constante dicotomia entre o bem e o mal, o céu e o inferno.
Soube como poucos investigar o ser humano por dentro, percebendo suas fraquezas e
78
limitações. Dostoiévski, aparentemente, não empresta nada de seu para Raskólnikof,
mas, olhando mais de perto, encontramos em Raskólnikof, como em outras
personagens, a essência de seu criador: a salvação cristã, a possibilidade de ressuscitar
como Lázaro. Isso não significa que ele matou alguém ou casou-se com uma ex-
prostituta, como Raskólnikof. Significa que, como disse Graciliano Ramos, é
impossível sair completamente de si para escrever. Isso corrobora para invalidar a idéia
de “cópia” fiel que um autor influenciado apresentaria, afinal “ninguém é igual a
ninguém”.
Por outro lado, a exposição explícita desses fragmentos “autobiográficos” pode
gerar constrangimentos, que são resolvidos de diferentes maneiras: uns negam a sua
existência, creditando à literatura apenas o caráter ficcional; outros, como Graciliano,
condenam sua própria obra, julgando-a medíocre. Angústia, portanto, seria a angústia de
Graciliano Ramos por conter essa exposição explícita de sua vida, de seus sentimentos
em relação a si e aos outros. Afinal é impossível negar os traços em comum entre Luís
da Silva e seu criador, especialmente em relação ao caráter crítico e severo consigo
mesmo. Graciliano evidencia, em diferentes momentos, o descontentamento com sua
criação, pois, para ele, a crítica alheia sempre teve um peso muito grande e, em suas
palavras (Ramos, 1992, p.185): “Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance,
observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim
e cor de macaco”. Desse modo, compreende-se bem por que Angústia mereceu tamanha
punição e sua publicação gerou-lhe tanta angústia. No entanto, sabe-se que Graciliano
era severo não com Angústia, mas com toda a sua obra: “Não vale nada; a rigor, até,
desapareceu...” (Ramos apud Senna, 1978, p.59) Isso não é sintoma de falsa
modéstia, mas um indício da personalidade de Graciliano Ramos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sempre que abrimos uma obra literária e iniciamos sua leitura, estamos expostos
a transformações. A leitura é capaz de modificar o modo como pensamos, falamos,
escrevemos, agimos etc., em suma, ela nos influencia, seja negando ou afirmando o que
lemos, pois interagimos com a obra. Para Machado de Assis, ler era viajar com o
pensamento; para Steiner, comparar. A comparação, aliás, ocorre em todos os processos
humanos. Estabelecemos comparações sistemáticas para qualificar o que nos cerca,
atribuindo, intencionalmente ou não, juízos de valor. Com a leitura, evidentemente, não
é diferente. Ao lermos, estabelecemos conexões com outros textos, com outras
vivências. Sempre foi assim, mesmo antes de surgir oficialmente uma área de estudo
chamada Literatura Comparada, cuja juventude desperta divergências de conceito e
método e “algum” preconceito em relação às áreas tidas como “tradicionais”.
A Literatura Comparada “surgiu”, por assim dizer, para sistematizar estudos que
ocorriam na área literária, uma vez que é praticamente impossível estudar a literatura
isolada de um contexto. Essa “sistematização” diverge muito entre os teóricos, tornando
a Literatura Comparada uma disciplina ampla, que “abriga” diferentes correntes. Um
pouco tendenciosa, tem-se deixado influenciar por “modismos” e o uso do verbo
influenciar não é por acaso. O grande número de estudos recentes abrigados sob o título
de Literatura Comparada constituem estudos de relações intertextuais, estudos de
recepção ou ainda estudos de minorias (latinos, mulheres e negros). Nem sempre foi
assim, no entanto. A Literatura Comparada surgiu graças à teorização dos estudos de
fontes e influências, atualmente renegados e substituídos pelo conceito de
intertextualidade. Desde então, estudos de fontes e influências caíram em “desuso”, pois
pressupõem uma valorização do “modelo” (fonte) em detrimento da “cópia”
(influência).
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Os estudos de fontes e influências, no entanto, continuam tendo relevância para
os estudos comparatistas por diferentes razões:
1. Não se pode negar o passado. Tudo que lemos passa a fazer parte de nós e
refletir-se-á em nossos escritos posteriores. Isso não é fraqueza ou falta de talento, mas
uma tendência natural do ser humano, que precisa de exemplos, seja para os negar ou
afirmar.
2. O fato de sermos influenciados não significa, necessariamente, que somos
melhores ou piores, tampouco que o “modelo” é perfeito ou superior. Significa, no
máximo, que esse “modelo” nos afetou de algum modo, transformou-nos e a
transformação poderá ser para melhor ou não.
3. Mesmo influenciados, é impossível caracterizar a produção (segunda) como
“cópia”, especialmente se atentarmos para o sentido literal da palavra. Nenhuma
“cópia” será exatamente igual ao “original”, pois não estará inserida nas mesmas
condições de criação, portanto não pode ser classificada como tal.
4. A mudança de foco não soluciona o problema: a influência continua
existindo, apesar de a negarmos ou lhe atribuirmos outro nome. Cotejar textos sem o
“peso” da influência parece mais justo, pois não impõe juízo de valor (dívida de um
com o outro), parecendo muito “natural” ocruzamento” de textos, mesmo que ele não
seja casual nem implícito, mas isso não anula a influência.
Um bom exemplo da força da influência é a produção de jovens escritores,
teóricos e estudantes. Para isso, basta verificar os vestígios que as recentes leituras (ou
as mais marcantes) deixaram em seus textos. No entanto, não é somente em jovens (ou
fracos) que a influência se manifesta. Gógol influenciou Dostoiévski, que influenciou
Graciliano Ramos e assim por diante, numa interminável rede de influências, que T.S.
Eliot chamou de tradição. O grande “problema” é que, pelo menos por enquanto, não se
aceita que a influência pode ser transfomadora e que, ao invés de dívida, é o
influenciado quem garante a sobrevivência do influenciador, afinal sua obra morreria se
não fosse renovada por distintas leituras.
Crer que uma obra “devorou” a outra ou que é uma “soma de retalhos colhidos
ao vento” é uma interessante possibilidade de estudo, mas não se limitam a isso os
estudos literários. Em alguns casos, como O Seqüestro do Barroco, de Haroldo de
Campos, uma obra existe porque a outra (A Formação, de Antonio Candido) existe.
Existe para refutá-la, mas pôde existir devido à existência alheia: caso pico de
influência, embora a obra de Campos não se limite à “cópia”. Ela questiona e amplia a
81
obra de Candido (anterior, portanto fonte”), mantendo-a renovada e “viva”, mas isso
não descaracteriza a sua “origem”, não nega a sua fonte”. Por isso, nem sempre a
influência é negativa, vergonhosa ou devedora. Muitas vezes, como no caso de Haroldo,
Dostoiévski e Graciliano Ramos, que retomam, respectivamente, Candido, Gógol e
Dostoiévski, ela é a responsável pela manutenção das obras anteriores (fontes) e a
conseqüente permanência de nossa tradição cultural.
Por outro lado, muito se tem discutido sobre como identificar a “verdadeira
influência” de uma “coincidência”. Umberto Eco discute essa questão com um caso
bastante peculiar: o caso do romance sobre o sistema solar, publicado, anos mais tarde,
por Italo Calvino. Como? Coincidência, segundo Eco. A coincidência pode até existir,
mas, se realmente acreditamos que tudo que nos cerca tem sobre nós um efeito, é
impossível acreditar apenas na coincidência. O próprio Eco estabelece uma hipótese de
esquema para o jogo de influências, em que entrariam três elementos: o escritor
precursor (que ele chamou de A), o escritor sucessor (que ele chamou de B) e o
conhecimento de mundo (que ele chamou de X). Segundo esse esquema, um escritor
pode ser associado a outro sem que haja necessidade de contato entre eles, mas, para
isso, deve haver um contato com aquela realidade externa (X), que facom que eles se
aproximem. Por isso mesmo, esse esquema faz-nos crer que a coincidência não existe, o
que existe são relações que se somam, sejam elas do meio, de obras ou de escritores que
se lêem.
A influência também foi “estrela” da Literatura Comparada. É bem verdade
que as exigências para um estudo de fontes e influências o tornaram pouco viável e
pouco seguro também – pois é impossível saber, com precisão, até que ponto aquilo que
enxergamos como influência o é de fato, mesmo seguindo as “exigências” propostas.
Saber as leituras realizadas pelo escritor; o idioma em que as leu; se tradução, que
tradutor era esse, o que se perdeu e ganhou com a tradução etc. não nos garante quase
nada. É um trabalho extenuante e bem pouco produtivo se não estiver aliado à análise
das transformações ocorridas de um texto para o outro. Não basta enumerar referências
bibliográficas, temos que saber de que modo elas atuaram na construção de uma nova
obra. É nesse ponto que a influência perde espaço para a intertextualidade, que prevê
transformação de uma obra para a outra, enquanto a influência “não” teria condições de
fazê-lo.
É evidente que em qualquer um dos casos, sob o nome que queiramos dar,
encontraremos transformações, caracterizadas pelo temperamento do escritor, pelo
82
período em que ele produziu a obra, pelas obras que leu e/ou ouviu e as quais jamais
saberemos ao certo etc. Portanto, não é o fato de falarmos em influência,
intertextualidade ou antropofagia que estaremos “salvando” ou “condenando” um
escritor ou sua obra. O modo como ele “absorveu” esses elementos é que garantirá isso
por ele, como o caso de Graciliano Ramos e Dostoiévski.
Como nos demonstra Bakhtin, Dostoiévski sofreu influência de Gógol,
especialmente d'O Capote, mas o transcendeu e garantiu seu espaço no universo
literário. O mesmo ocorre com Graciliano Ramos, que, apesar das semelhanças com o
russo, possui suas peculiaridades. É impossível esperar que um seja cópia do outro
porque um leu o outro, mas a afirmação de que essa influência existe vem do próprio
Graciliano Ramos, então como negá-la? Isso em nada diminui sua obra ou seu gênio
criador, pelo contrário. A capacidade de um escritor de assimilar a influência recebida é
o que comprova sua genialidade e garante a continuidade da literatura enquanto sistema,
segundo as considerações de Antonio Candido.
35
Além disso, se se acredita que até as
traduções influenciam o processo criativo, por que a leitura não provocaria o mesmo
efeito?
Na verdade, o problema do conceito de influência é muito mais conceitual do
que metodológico, pois a influência, assim como a intertextualidade, também nos
permite verificar semelhanças e diferenças e associar diferentes áreas de conhecimento,
como no caso do presente trabalho, em que recorremos à História e à Psicologia, que
ampliam a visão da obra como um todo. Em seu conceito tradicionalmente utilizado, um
estudo de influências estaria restrito à análise das obras e de seus escritores, fazendo-se
um apanhado de seu percurso de leituras até a produção das obras em questão o que
não nos parece muito útil. Quando se adota uma visão da influência transformadora, em
que a obra segunda acrescenta novos elementos aos anteriores, criando uma nova obra,
não somente se proporciona ao autor segundo uma visão renovadora de sua obra mas
também se avalia a questão do processo criativo como um todo e pode-se perceber
como se constrói a tradição literária.
Por outro lado, a maleabilidade a que se atribui aos estudos intertextuais pode
representar uma fuga da realidade, ou seja, como não se acredita mais em dívida, países
cuja literatura era considerada “inferior”, “cópia da européia”, como o Brasil, podem se
beneficiar desfrutando de um certo status, mas isso não apaga o fato de autores
35
Ver CANDIDO, 1997.
83
brasileiros terem lido e traduzido, essencialmente, autores europeus, influenciando-se
por eles.
A mudança de paradigma é interessante pela possibilidade de revisitar as obras
sem o preconceito de que elas são “menores” que as européias por não possuírem a
mesma tradição, mas negar a influência de uma sobre as outras é negar a própria
tradição. Não se pode conceber isso como verdadeiro, quando se sabe que a construção
de um escritor se dá, principalmente, pelo conhecimento que ele tem de outros
escritores. Afinal, esse conhecimento é parte integrante do processo criador.
O caso de Graciliano Ramos ilustra bem a situação. Associamos Angústia a
Crime e Castigo para que sua obra pudesse ser “ampliada” pela obra do russo e não para
diminuí-la, o que, na verdade, seria impossível. Também constatamos que, apesar dos
pontos de contato, ocasionados, principalmente, pelo modo de se perceber o ser
humano, inúmeras diferenças entre os dois. Isso ocorre porque, apesar de Graciliano
ser leitor confesso de Dostoiévski, de tê-lo lido e de ter desejado -lo no original, ele é
um ser humano diferente. Nasceu e viveu em outro país, com outra história, em outro
tempo. Isso tudo colabora para que existam diferenças entre eles. Além disso, o fato de
Dostoiévski ser russo e anterior (cronologicamente falando) a Graciliano não significa
que ele seja melhor, embora desfrute de um status mais universal uma vez que
Graciliano é considerado por muitos críticos como regionalista (!) e do “rótulo” gênio
da literatura “rótulo” que o brasileiro não possui. Em síntese, acreditamos que tanto
um como o outro conseguem perscrutar a alma humana em sua essência. O fato de
Graciliano usar tipos nordestinos para seus romances mostra sua necessidade de usar a
realidade que lhe é familiar, do mesmo modo que Dostoiévski utiliza personagens
russos, e isso não é fator limitador para sua obra. Quando se pensa em essência humana,
tanto faz ser nordestino ou russo, isto é, independente da origem do indivíduo, os
conflitos existenciais são sempre os mesmos, pois fraquezas e virtudes são
características intrínsecas do ser humano.
Desse modo, o homem (russo ou nordestino) questionar-se-á sempre sobre o
“certo” e o “errado” ou a validade desse certo e desse errado, como Paulo Honório
(Ramos, 2001, p.39): “A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e
quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que
me deram lucro.” E, na impossibilidade de reconhecer o “bem” do “mal”, o homem se
atormenta.
84
Também verificamos que coincidências no momento histórico em que as
duas obras foram publicadas e que essas coincidências propiciaram novas semelhanças.
A opressão e a miséria do povo não pôde passar despercebida por quem se interessava
pelo ser humano, como é o caso de ambos. Evidentemente, diferenças entre a Rússia
do século XIX e o Brasil do século XX, mas as condições de vida do povo desses dois
países em muito se assemelhava, tendo como resultado a esperança no socialismo,
esperança partilhada pelos dois escritores. Outra coincidência verificada foi a questão
psicológica dos personagens, que, por caminhos diferentes, sofrem as conseqüências de
nossa sociedade desumana e cruel. A angústia é gerada por diferentes motivos, mas o
resultado é a mesma situação de desarranjo interior que torna tanto Raskólnikof quanto
Luís da Silva seres sem perspectivas de felicidade. São joguetes de um destino, são
“mais um na multidão”. Esse sentimento de ser apenas mais um entre tantos faz com
que Raskólnikof queira ser superior aos outros seres, enquanto Luís deseja apenas ser
um deles, tal é a ausência de identidade que esse sistema social lhe provoca. Nossa
sociedade nos como “iguais”, mas, ao mesmo tempo, nos rouba a identidade e nos
prova que uns são mais iguais que os outros. O motivo: o dinheiro. Raskólnikof e Luís
da Silva percebem, cada um a sua maneira, que o dinheiro é o que importa em nossa
sociedade e que a capacidade de pensar traz mais sofrimento. Isso ocorre porque,
num mundo capitalista, só os extremos se “beneficiam”: ou se é pobre e alienado ou se é
rico. Ser pobre e não ser alienado (ignorante) gera sofrimento pela impossibilidade de se
enquadrar em um destes opostos. Por isso, o sentimento de inadequação se acentua e a
solidão e o desespero tornam-se a conseqüência “natural” ao indivíduo que “tentou”
fugir de seu “destino”.
Por outro lado, percebe-se que salvação para quem c nos princípios
religiosos
36
, que não é o caso de Graciliano, assumidamente ateu. Embora pouco
tenhamos nos detido na questão religiosa, sabe-se o quanto é cômodo acreditar que a
felicidade virá no reino do céu. Por isso, torna-se mais fácil para Raskólnikof acreditar
num futuro, apesar de terminar a história preso. Luís da Silva, ao contrário, é um cético,
não dispõe da felicidade divina para compensar a tragédia da vida na terra. Também não
36
Sabe-se que, após sua experiência carcerária, Dostoiévski tornou-se mais religioso, chegando a
acreditar que o ser humano obteria a felicidade através do Cristianismo. Isso fica registrado em todas
as suas obras da maturidade, como Os Irmãos Karamazov, em que ele defende a idéia de que, sem o
Cristianismo, o egoísmo humano destruiria o próprio ser humano, uma vez que, como nos diz Ivan
Karamazov, “se Deus não existe, tudo é lícito”, inclusive matar e roubar. É por isso que alguns teóricos,
como Hauser, consideram que o socialismo de Dostoiévski é, na verdade, um “cristianismo-social”, e que
Dostoiévski se tornou conservador, esquecendo definitivamente o socialismo, após a prisão.
85
desfruta da juventude, da beleza ou do afeto familiar. É um infeliz e, como tal, pode
esperar infelicidades. Isso não se aplica aos nordestinos (eis o caráter universal de
Graciliano Ramos), mas a todos que vivem em situação semelhante a de Luís da Silva.
Esse contingente de Luíses da Silva é uma fatia bem expressiva de nossa sociedade,
pois são os “ninguéns” do nosso país e de tantos outros onde impera a desigualdade
social. Infelizmente, quase um século e meio depois da publicação de Crime e Castigo e
setenta anos após Angústia, ainda encontramos a mesma situação: somos o que temos e
não o que somos. A conseqüência é a opressão do “eu” e um profundo estado de
angústia.
Em vista disso, é impossível considerar que um ou outro seja melhor, mas que
ambos tiveram a sensibilidade necessária para observar o ser humano por trás de sua
máscara social e enxergaram o que somos capazes de fazer para resgatar nossa
individualidade perdida. Isso o nos caracteriza como assassinos em potencial, mas
como eternos angustiados. Angústia que se nota na demasiada importância que damos
às questões materiais, frustrando aqueles que não conseguem ter o essencial para sua
subsistência. Angústia que tende a crescer com a anulação de nossa individualidade, de
nossa identidade humana, transformando-nos em massa. É essa, pois, a universalidade
de Dostoiévski e Graciliano Ramos. É isso que os torna atuais e brilhantes. E é isso
também que nos torna, a nós, seres sociais, a mais rica matéria literária.
86
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