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RAMIRO GIROLDO
A ditadura do prazer
Ficção científica e literatura utópica em Amorquia, de André Carneiro
Campo Grande
2008
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RAMIRO GIROLDO
A ditadura do prazer
Ficção científica e literatura utópica em Amorquia, de André Carneiro
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação – Mestrado em Estudos de
Linguagens (DLE / CCHS) da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul, como
requisito final para a obtenção do grau de
Mestre em Estudos de Linguagens.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosana Cristina
Zanelatto Santos.
Campo Grande
2008
2
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Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.
Goethe
3
Agradecimentos
Ao Departamento de Letras da UFMS e ao Programa de Pós-Graduação (DLE-
CCHS/UFMS) – Mestrado em Estudos de Linguagens. À CAPES, por financiar a
presente dissertação. À minha orientadora (e grande incentivadora), Rosana Cristina
Zanelatto Santos, por acreditar neste trabalho e por produzir a primeira centelha (com
uma aula sobre O Presidente Negro, de Monteiro Lobato). A Maria Adélia Menegazzo,
pela confiança em mim depositada e pelas aulas sempre muito instigantes. A meus pais
e a meus irmãos, Silvia e Danilo, pela amizade e pelo apoio sempre incondicional, sem
os quais esta dissertação não poderia existir. À Pri, namorada e amiga, por fazer parte de
tudo há anos que passaram como meses. A Daniela Gomes Loureiro (Secretária -
PPGEL), pela competência e pela gentileza ao lidar com todos. A Roberto de Sousa
Causo, pelo material que teve a bondade de compartilhar e por divulgar a pesquisa que
resultou nesta dissertação. Por fim, agradeço ao mestre André Carneiro, pela enorme
generosidade, pelas conversas via e-mail e por me hospedar abaixo de seus móbiles
durante a FantastiCon 2007.
4
RESUMO
Esta dissertação tem como objeto de estudo o romance Amorquia, de André Carneiro.
Tanto a ficção científica quanto a literatura utópica são categorizações genéricas levadas
em conta na discussão da obra. O objetivo desse olhar bipartido, voltado tanto para a
ficção científica quanto para a utopia, é, em última instância, explorar uma
particularidade temática em extremo relevo no romance Amorquia, manifesta por meio
do retrato de uma sociedade hedonista voltada exclusivamente para o prazer: o uso do
prazer sexual como forma de controle estatal sobre a população, ou seja, o controle de
poucos sobre muitos.
Palavras-chave: André Carneiro; ficção científica; utopia.
5
ABSTRACT
This thesis discusses the book Amorquia, by André Carneiro. Both science fiction and
utopia, taken as generic categorizations, supply the basis for the speculation about
Carneiro’s novel. The objective of that double view, which contemplates both science
fiction and utopia, is to explore a thematic particularity on extreme relief in the novel
Amorquia, displayed by the portrait of a hedonistic and pleasure-seeker society: the
sexual pleasure as a way to control the population – in other words, the control of few
under many.
Keywords: André Carneiro; science fiction; utopia.
6
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................................9
Capítulo 1 – Amorquia e ficção científica.......................................................................13
1.1 – Gernsback...............................................................................................................13
1.2 – Categorias de ficção científica?..............................................................................20
1.3 – Distanciamento cognitivo.......................................................................................26
1.4 – Unheimlich..............................................................................................................35
1.5 – As viagens no tempo e o distanciamento cognitivo...............................................45
1.6 – O “besouro metálico” de Philte..............................................................................51
Capítulo 2 – Amorquia e literatura utópica.....................................................................54
2.1 – Utopia como construção verbal..............................................................................54
2.2 – Utopia e (proto)ficção científica.............................................................................56
2.3 – Utopia e distopia.....................................................................................................61
2.4 – Amorquia e o autoritarismo empírico.....................................................................66
2.5 – A supressão do tempo – conteúdo e forma.............................................................75
2.6 – Amorquia: uma obra intercalar...............................................................................79
Capítulo 3 – A ditadura do prazer...................................................................................82
3.1 – A felicidade da quietude.........................................................................................82
3.2 – Procurando desprazer (i).........................................................................................86
3.3 – Procurando desprazer (ii)......................................................................................101
7
Considerações finais......................................................................................................105
Referências....................................................................................................................110
8
INTRODUÇÃO
A obra literária de André Carneiro, produzida no decorrer de aproximadamente
sete décadas, até o presente momento continua pouco estudada em âmbito acadêmico. O
único trabalho específico sobre a produção do autor que pudemos localizar foi uma
dissertação de mestrado sobre a lírica de Carneiro, escrita por Osvaldo Duarte
Copertino
1
. As razões para tamanha exigüidade são alheias ao que pretendemos
discutir, mas este trabalho pode ser lido como uma tentativa de mostrar que o romance
Amorquia (publicado em 1991) apresenta-se digno de atenção e fértil à especulação
ítica.
textos do ciclo, cautela será requerida
deste trabalho. Discutindo de que forma Amorquia dialoga com tais gêneros, será
cr
A necessidade de um recorte aqui é duplamente assinalada, já que o romance
tomado como objeto deste estudo integra um ciclo de narrativas de André Carneiro,
ambientadas num futuro de traços acentuadamente hedonistas. Entre elas, o conto O
Diário da Nave Perdida, Piscina livre e diversos contos da antologia A máquina de
Hyerónimus e outras histórias. Amorquia foi o texto escolhido por apresentar uma
espécie de síntese temática do ciclo, além de nos parecer mais ambicioso. Contudo, no
momento em que forem feitas referências a outros
para não estabelecer hierarquias e subordinações.
O olhar que voltaremos ao romance em discussão é bipartido, já que o
encaramos tanto como ficção científica quanto como literatura utópica. A perspectiva,
também aplicável às outras narrativas do ciclo, será defendida em vários momentos
1
A dissertação intitula-se O estilo de André Carneiro e foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação
da UNESP em 1996.
9
possível mensurar como sua temática central, que chamamos de “ditadura do prazer”, se
manifesta.
Amorquia é ambientado num futuro distante, um lugar onde o pico atingido pela
tecnologia pôde livrar o homem de todos os incômodos. Tamanha é a falta de
preocupação da população que o próprio tempo acabou socialmente abolido – num
mundo sem compromissos, registrar a passagem dos minutos mostra-se desnecessário.
Como o futuro configurado possui fortes traços hedonistas, orientado para uma
desenfreada busca pelo prazer sexual, a ausência do tempo também leva a uma espécie
de perpetualização desse prazer, já que nenhuma preocupação ou compromisso pode
interferir.
Tudo é controlado pelo chamado Computador Central
2
, máquina que
supostamente registra os anseios da população, a fim de, ao que parece, governar em
prol de todos. A apatia popular não permite um questionamento generalizado ao
julgamento da máquina. Quando uma personagem, Pércus, expressa seu
descontentamento, o esforço se mostra vão, já que os jogos retóricos do Computador
Central conseguem contornar quaisquer questionamentos.
Certas personagens começam a esboçar uma resistência ao mundo apático em
que vivem. As personagens de maior destaque, Pércus e Túnia, são pouco a pouco
tentadas a abandonar ou, ao menos, a questionar os preceitos do mundo em que vivem.
Uma das marcas da resistência é o apego aos relógios e a relíquias de um
passado esquecido. Subversivamente, começam a contar o tempo e existe até a sugestão
de que estejam a cometer assassinatos, já que com a presença da morte todos são
forçados a aceitar que o tempo existe. Além de obrigar a enxergar a passagem do tempo,
2
O romance A Cidade e as Estrelas, de Arthur C. Clarke, apresenta uma cidade futurística governada por
um sistema de computação também chamado Computador Central. Carneiro parece tomá-lo como um
locus literário prontamente identificável.
10
a morte também provoca as personagens, porque no futuro descrito o homem tornou-se
dócil e pacífico, incapaz do menor ato de violência.
O primeiro capítulo do presente trabalho trata de Amorquia e da ficção
científica, gênero em que enquadramos a obra. O título do capítulo é: Amorquia e
Ficção Científica. A intenção é não apenas justificar a categorização, mas,
principalmente, delimitar as particularidades do romance com relação ao gênero e, dessa
forma, descobrir mais a seu respeito. Para tanto, será preciso dar voz a algumas das
discussões teórico-críticas acerca da ficção científica e escolher uma noção do gênero
que seja coerente com Amorquia. Evidentemente, a noção também deve ser aplicável a
outros textos de ficção científica.
O segundo capítulo intitula-se Amorquia e Literatura Utópica. Sendo a utopia e
sua inversão paródica, a distopia, comumente consideradas um gênero literário, haveria
uma aparente contradição em chamar o romance em pauta de ficção científica e utopia.
Darko Suvin, contudo, sugere uma opção valorosa para trabalhos como este: propõe que
a ficção científica teria “englobado” a utopia. A proposição nasce da observância de que
a utopia literária manifesta-se em textos que podem ser discutidos com base nos
paradigmas do gênero ficção científica. Ou seja, a utopia acaba sendo encarada como
uma variedade temática da ficção científica. É inevitável, a esse respeito, observar que a
categorização genérica revela-se uma conveniência a ser manipulada de acordo com as
intenções de dada especulação crítica, desde que tal especulação se mostre coerente.
Um pouco devido a esse englobamento, a leitura feita aqui encara o romance
Amorquia tanto com base em discussões a respeito da ficção científica como gênero
quanto a respeito da literatura utópica. Buscamos explorar a relação travada entre a
ficção científica e a utopia, a fim de verificar como Amorquia as processa
simultaneamente.
11
Por fim, já munidos das considerações traçadas nos dois capítulos anteriores,
procuramos, no terceiro, chamado A Ditadura do Prazer, explorar mais a fundo o que
consideramos a tônica em maior relevo na obra discutida: o prazer sancionado e
exacerbado, bem como suas variadas implicações na constituição do quadro imaginário
de Amorquia. O motivo permeia todo o romance, bem como boa parte deste trabalho.
Assim, embora o terceiro capítulo seja voltado a uma análise extensiva do prazer
configurado no romance, o motivo é abordado, algo perifericamente, também nos
capítulos anteriores. Além do princípio de prazer e O mal-estar na civilização, de
Sigmund Freud, são dois valorosos aportes para a análise a ser empreendida no terceiro
capítulo.
12
CAPÍTULO 1 – AMORQUIA E FICÇÃO CIENTÍFICA
1.1 – Gernsback
Encontrar o lugar de Amorquia na ficção científica é um meio para compreender
como o romance alcança suas particularidades com relação ao gênero. Além de
categorizar genericamente, pretendemos verificar de que forma a conceituação da ficção
científica escolhida pode contribuir para uma maior compreensão do objeto.
Embora intuitivamente se tenha uma noção do que é ficção científica, alcançar
uma conceituação satisfatória é problemático, a julgar pela quantidade de divergências
encontradas no arcabouço teórico a ser manipulado. Como observa Adam Roberts, “[o]
termo ‘ficção científica’ resiste à fácil definição. Isso é estranho, porque a maioria das
pessoas possui uma noção do que é a ficção científica”
3
.
Tal noção intuitiva acaba por refletir lugares-comuns que não podem ser
estendidos à produção de ficção científica como um todo. Mercadologicamente, é
proveitoso fomentar a fácil identificação do gênero com os ícones do robô e da
espaçonave, por exemplo. Contudo, conceituar e até delimitar traços comuns a textos de
ficção científica não são tarefas tão ligeiras. Para Bráulio Tavares,
[e]nquanto categoria literária, a expressão “ficção científica” é difícil de manejar; mas
funciona perfeitamente como categoria de mercado. Todo mundo sabe intuitivamente
3
Tradução de “The term ‘science fiction’ resists easy definition. This is a strange thing, because most
people have a sense of what science fiction is” (ROBERTS, 2006, p. 1).
13
que Guerra nas estrelas é ficção científica, sem necessidade de uma definição
acadêmica a respeito. Essa nitidez é imprescindível para que se possa vender bem um
livro, um filme ou produto semelhante; mas isso faz com que a ficção científica fique
sendo apenas, aos olhos de muitos, aquele tipo de obra que constitui a face mais
reconhecível do gênero. Grande parte do público reconhece como ficção científica
apenas a space opera – essas histórias de aventuras espaciais localizadas num tempo
futuro ou nos confins do universo; uma fantasia tecnológica onde há muita ação e muita
descrição, e se trabalha com personagens fortemente estereotipados, e por isso mesmo
facilmente reconhecíveis (TAVARES, 1992, p. 8-9).
Essa ficção científica aventuresca, herdeira do capa-e-espada de Alexandre
Dumas e outros, pouca relação possui com Amorquia. Se o enredo rocambolesco de
aventura, bem exemplificado pela space opera Star Wars e pela série de livros alemã
Perry Rhodan, demanda reviravoltas e arroubos heróicos por parte das personagens, o
romance de Carneiro parece fugir desse modelo. Como esperar um enredo aventuresco
num universo ficcional letárgico onde o tempo não existe?
Infelizmente, a resenha de Amorquia escrita por Jorge Luiz Calife e publicada
em 15 de junho de 1991 no Jornal do Brasil peca em compreender justamente essa
marca do romance. Leiamos alguns trechos:
Amorquia gasta 200 páginas narrando os problemas existenciais de um grupo de
pessoas, habitantes de uma sociedade hedonista num futuro remoto e indeterminado.
(...) André Carneiro pegou um liquidificador e jogou nele um bocado de Aldous Huxley,
George Orwell e Philip K. Dick, triturando tudo junto com uma porção de romances
eróticos baratos. O resultado ficou parecendo o roteiro para um daqueles filmes de
Walter Hugo Khouri, onde os personagens transam e falam interminavelmente e nada
de realmente importante acontece (CALIFE, 1991, p. 3).
Diz Calife, com um arremedo de ironia, que “nada de realmente importante
acontece” em Amorquia. O que seria algo importante, algo que mereça ser narrado num
romance? Se antes já observara que a obra “gasta” suas 200 páginas com problemas
existenciais, é lógico inferir que a condição humana não é tomada como um tema digno
para o crítico.
Reclama ele uma ficção científica mais “reconhecível”, mais aprisionada a
modelos narrativos estanques? Cabe lembrar, a esse respeito, que a própria expressão
14
science fiction foi popularizada graças a uma contingência mercadológica, o que reforça
os estereótipos que cercam não o gênero, mas a concepção propagada a seu respeito.
O termo science fiction, cunhado originalmente por William Watson, foi
apropriado pelo editor (e escritor bissexto) Hugo Gernsback na revista Amazing Stories,
a primeira de língua inglesa dedicada exclusivamente ao gênero
4
. Brian Attebery
aponta:
Amazing, de Gernsback, (...)foi a primeira não apenas a limitar seu conteúdo ficcional a
histórias de extrapolação científica e aventura espacial, mas também a tentar definir o
gênero. (...) Um editorial na primeira edição pedia por histórias “como as de Jules
Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe – um encantador romance entremeado com fato
científico e visão profética
5
”.
6
Para Attebery, a republicação de obras dos autores citados por Gernsback os
“transformou” em escritores de ficção científica. Talvez o que o editor buscasse fosse o
respaldo de uma tradição literária pregressa. Para torná-la prontamente identificável ao
público leitor, o rótulo science fiction foi aplicado numa tentativa de homogeneização.
Isso não implica dizer, de forma nenhuma, que Gernsback falhou na observância de
traços comuns a Verne, Wells e Poe, embora suas palavras transpareçam ingenuidade.
Ou seja, embora até então não nomeada e englobada num gênero comum, a tradição
evocada pelo editor já estava lá.
Thomas D. Clareson, no ensaio The other side of realism, recorre a uma
consideração de Melvin Korshak para esclarecer o ponto: “No passado, havia vários
4
Inicialmente, Gernsback fez uso do termo scientifiction, em 1926, para apenas em 1929 adotar science
fiction.
5
Uma forma pobre, diga-se de passagem, de definir as obras desses autores.
6
Tradução de “Gernsback’s Amazing (...) was the first not only to limit its fictional contents to stories of
scientific extrapolation and outer-space adventure but also to attempt to define the genre. (…)An editorial
in the first issue called for more examples of ‘the Jules Verne, H. G. Wells and Edgar Allan Poe type of
story – a charming romance intermingled with scientific fact and prophetic vision” (ATTEBERY, 2003,
p. 33).
15
tipos de histórias que eram baseados em ciência imaginativa, embora eles não
estivessem unificados em um único corpo literário”
7
.
Em Poe, o elemento fantástico “justificado” por considerações que se poderiam
tomar como científicas são o bastante, neste momento, para apontar o parentesco de sua
ficção com aquela fomentada por Gernsback. Não é uma marca, frisemos, observável
em toda a produção de Poe, mas presente em contos como A Esfinge, onde uma
distorção ótica leva um homem a identificar um inseto com uma criatura monstruosa.
Quanto a H. G. Wells e Jules Verne, a identificação com a science fiction de
Gernsback é ainda mais imediata. Como ainda não discutimos a conceituação do
gênero, por ora basta observar que Wells e Verne nomeavam suas produções ficcionais
de, respectivamente, scientific romance e roman cientifique. Estava-se a um passo, é
possível depreender, da propagação do termo science fiction.
O caráter didático da ficção de Verne, manifesto pela inserção em suas
narrativas de longas digressões sobre a ciência de seu tempo, parece ter atraído
Gernsback. Attebery observa, novamente citando trechos do prefácio da primeira edição
de Amazing Stories:
Ele esperava que tais histórias [de ficção científica] pudessem ‘fornecer conhecimento
que talvez não pudéssemos obter de outra maneira – e (...) fornecê-lo numa forma muito
palatável’. Em outras palavras, a ficção científica, como ele a almejava, era
principalmente uma ferramenta de ensino, mas uma ferramenta que não tornava óbvio o
ensino
8
.
Ao chamar a ficção daqueles que o antecederam de science fiction, rótulo
estendido à revista Amazing Stories e à sua própria produção literária, Gernsback deu
um importante passo para a percepção de que Verne, Wells e tantos outros
7
Tradução de “In the past there were several types of stories that were based on imaginative science,
although they were not unified into any single body of literature” (CLARESON, 1971, p. 14).
8
Tradução de “He hoped that such stories would ‘supply knowledge that we might not otherwise obtain –
and (...) supply it in a very palatable form’. In other words, sf, as he envisioned it, was primarily a
teaching tool, but one that did not make its teaching obvious” (ATTEBERY, 2003, p. 33).
16
compartilham traços comuns o bastante para que os enquadremos dentro de um mesmo
gênero literário. Isso a despeito de sua procura por enredos algo formulaicos.
Porém, teria Hugo Gernsback sido igualmente feliz na formulação do termo que
popularizou, “science fiction”? Gilberto Schoereder observa:
Apesar de ter sido bem aceita pelo público, (...) a expressão [science fiction] não é tão
facilmente aceita por todos. Uma das razões por que isso ocorre refere-se à suposta
impropriedade semântica das palavras utilizadas. O escritor Lloyd Biggle Jr. escreveu
nesse sentido, dizendo que a expressão foi examinada semanticamente, e concluiu-se
que não era adequada, por associar duas palavras de significados opostos. Uma palavra
teria a ver com a objetividade, com o conhecimento sistematizado, com os fatos e, em
última análise, com a verdade, enquanto que a outra significa ‘algo que é forjado ou
imaginado’
(SCHROEREDER, 1986, p. 7).
No Brasil, science fiction foi a princípio traduzido como “ciencificção”, mas o
termo entrou em desuso e foi substituído por “ficção científica”. Em Introdução ao
estudo da science fiction
9
, André Carneiro aponta alguns equivalentes de science
fiction: ciencia ficción (Argentina); fantascienza (Itália); literatura de antecipation ou
fiction cientifique (França). O autor também oferece restrições ao termo:
Torna-se difícil conciliar os termos ciência e ficção. Ciência é a forma de pesquisa e
conhecimento que exige raciocínio preciso, dados exatos, onde a especulação sem base
é praticamente impossível. Ficção é criada pela imaginação, suas fontes reais são
elásticas, a coerência que dela se exige não é de ordem objetiva, diz mais respeito ao
estilo, à qualidade literária, ao poder de emocionar o leitor, transmitir-lhe alguma coisa
(CARNEIRO, [s.d. [2] ], p. 1).
No texto de Carneiro, é posta em cena uma questão crucial para a compreensão
do ponto de vista do autor. “Ficção científica”, a denominação, é tomada como
responsável por boa parte dos preconceitos que cercam ficção científica, o gênero.
Nessa recusa do termo, Carneiro, pode-se pensar, não traduz a expressão science fiction
9
Aparentemente o primeiro estudo sobre ficção científica em formato de livro, assinado por um único
autor, em todo o mundo. A primeira edição é de 1967. A edição aqui utilizada, acrescida de notas por
André Carneiro, foi elaborada por Roberto de Sousa Causo em 2004. Trata-se de uma edição amadora.
17
no título de seu ensaio para não propagar em língua portuguesa um erro que teria sido
cometido em língua inglesa. Alguns de seus argumentos são os que seguem:
O homem tem receio da máquina, do desenvolvimento técnico. Suas limitações, sua
incapacidade para conseguir eliminar os atritos, incompreensões, rivalidades, seu
instinto violento que, não obstante toda a cultura acumulada em séculos, faz explodir
guerras e retaliações, dá-lhe a consciência de que a máquina multiplica infinitamente o
seu poder, e o homem teme essa nova espada mágica, em suas mãos inábeis e na de seus
semelhantes. (...) [E]mbora a coletividade aproveite da ciência e da tecnologia e delas se
beneficie, tudo que diga respeito a robôs, naves espaciais, drogas miraculosas, é olhado
com suspeita e desencanto pela maioria dos intelectuais, que procura esquecer ou fugir
inutilmente das realidades extraordinárias que a ciência nos apresenta todos os dias.
(CARNEIRO, [s.d. [2] ], p. 8).
Roberto de Sousa Causo, no texto introdutório à coletânea de ensaios Depois do
Sputnik – o debate cultural sobre ficção científica no Brasil, observa que a tese de
Carneiro
[...] se aproxima muito da do romancista, crítico e físico inglês C. P. Snow (1905-1980),
que em 1959 lançou o debate das ‘duas culturas’, ainda hoje uma questão estertorante
no mundo de língua inglesa. Assim como Snow, Carneiro identifica no intelectual
literário um espírito associado à tradição, com grande dificuldade para assimilar o
espírito científico e a noção do futuro, que a ficção científica incorpora à literatura. (...)
Em fins de 2003, André Carneiro me escreveu, informando que ‘Infelizmente, nunca,
até hoje, tomei conhecimento do Snow’. É portanto notável que Carneiro tenha chegado
a conclusões semelhantes à do inglês, no âmbito da ficção científica. E sua idéia de que
o preconceito contra o gênero e sua baixa aceitação pelos intelectuais teria origem no
mesmo conflito entre as duas culturas permanece uma tese interessante (CAUSO, [s.d.
[2] ], p. 6-7).
Outra perspectiva sobre o termo science fiction é a oferecida pelo artigo Science-
Fiction
10
, de Otto Maria Carpeaux:
Science-fiction é um substantivo composto. Ensina a gramática que no caso da
combinação de dois substantivos, nenhum deles guarda inalterada a acepção: os dois
sentidos modificam-se reciprocamente. A ciência, em science-fiction, não é científica,
mas deliberadamente ficcionalizada. Por outro lado, Ficção, em science fiction, não quer
ser mera ficção, mas possibilidade científica. Em suma: trata-se de Ciência que não
exige deduções e provas, mas que exige ser aceita assim como o crente aceita artigos de
sua fé (CARPEAUX, [s.d.], p. 35).
10
Primeiramente publicado no Suplemento Literário do O Estado de S. Paulo, em 16/05/1959.
18
Carneiro, em seu supracitado texto teórico-crítico, discute longamente o artigo
de Carpeaux, não deixando de conceder um tratamento respeitoso ao crítico
11
. O intuito
de Carneiro é demonstrar, entre outras coisas, que
[a]nalisando superficialmente, seu artigo pareceria uma negação total do gênero. Há
frases assim: “literatura de cordel... infantil... loucura coletiva... faz questão (a SF) de
não tocar nunca em problemas psicológicos ou questões sociais...” (...) É inegável a
tendência de se atribuir à science fiction em geral os piores defeitos e limitações dos
livros menos importantes do gênero, feitos com intenção comercial (...).Dada a posição
do Sr. Otto Maria Carpeaux, a única explicação é que ele emprega o termo science
fiction apenas para classificar a space opera, além de colocar fora da SF algumas obras
importantes (CARNEIRO, [s.d. [2] ], p. 6).
Em outras palavras, a análise esboçada por Carpeaux e estendida ao gênero
como um todo não corresponde à ficção científica tomada como relevante por Carneiro.
Se Carpeaux desqualifica o gênero por nele enxergar apenas space opera, Carneiro faz
uma defesa da ficção científica ao postular que a space opera não passa de uma vertente
(artisticamente infeliz). A respeito do ensaio do primeiro, cabe lembrar que seu artigo é
amparado numa noção generalizante da ficção científica, que o autor não comprova com
exemplos literários.
Neste trabalho, não existe a intenção de fazer um julgamento negativo da space
opera, que deve ser discutida dentro de seus próprios parâmetros. Parâmetros estes,
esclareçamos, inaplicáveis a textos de ficção científica que possuem um enfoque mais
acentuadamente social e que colocam a condição humana como tema central. Boa parte
da ficção científica, portanto, põe em cena questões estranhas à chamada space opera.
Dado o posicionamento e as preferências pessoais manifestas por Carneiro, não
é de estranhar que o romance Amorquia escape por completo dessa espécie de ficção
científica, principalmente no que concerne à fuga de um enredo aventuresco e de
personagens larger than life. Efetuando um prolongamento lógico e evidente das
11
Carpeaux, lembremos, foi um dos colaboradores da revista literária editada por André Carneiro entre
1949 e 1951, chamada Tentativa.
19
assertivas de Otto Maria Carpeaux, percebe-se que Amorquia dificilmente seria por ele
chamado de “ficção científica”, como não o foram, por exemplo, Brave new world, de
Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell. Lembremos que a distopia de Huxley é um
dos temas com os quais Amorquia trava intenso diálogo, questão a ser discutida no
próximo capítulo deste trabalho.
A delimitação equivocada do gênero, contudo, não é o único perigo a rondar as
considerações de Carpeaux. A análise que ele oferece do termo science fiction, acima
reproduzida, conduz excessivamente sua discussão do gênero science fiction. A despeito
da lucidez e da importância de outros de seus trabalhos, Carpeaux, para definir a ficção
científica, toma como ponto de partida o rótulo que nela se colocou, como se discutir a
denominação equivalesse a conceituar. O resultado da abordagem escolhida não é outro
senão a reprodução de lugares-comuns que, aqui, devem ser evitados.
1.2 – Categorias de ficção científica?
A consciência de que a ficção científica não se manifesta de forma unívoca é
levada em consideração por outros textos teórico-críticos a serem aqui abordados. Para
que possamos nos beneficiar dessa noção, observemos a tentativa empreendida por L.
David Allen de delimitar categorias de ficção científica. Antes, contudo, observemos
sua conceituação do gênero.
Sua obra No Mundo da Ficção Científica, a despeito de algumas imprecisões e
de uma escrita por vezes canhestra, apresenta formulações que alcançaram certa
20
projeção no Brasil, país ainda relativamente pobre em publicações a respeito da ficção
científica
12
. Exemplos disso são o eficiente Ficção científica: Ficção, ciência ou uma
épica da época?, de Raul Fiker, e Ficção Científica, de Gilberto Schoereder, que em
diversos momentos retomam várias das proposições do livro de Allen.
Para Allen, a ficção científica
[...] é distinguida de outros tipos de ficção pela presença de uma extrapolação dos
efeitos humanos de uma ciência extrapolada, definida em termos gerais, assim como
pela presença de “engenhos” produzidos pela tecnologia resultante de ciências
extrapoladas (ALLEN, [s.d.], p. 235).
Evitando a duvidosa tendência de considerar a ficção científica uma “literatura
de antecipação”, Allen não deixa de frisar que a extrapolação não deve ser relacionada
apenas ao futuro, pois “embora a maioria das estórias de ficção científica sejam
ambientadas no futuro, o passado e o presente também são ambientes possíveis,
especialmente quando elas apresentam alternativas para o passado e o presente histórico
(ALLEN, [s.d.], p. 235)
13
.
Há uma notação de Allen particularmente esclarecedora: “Dizer que a ficção
científica é distinguida de outras formas de ficção pela presença de algum tipo de
ciência ou por extrair seu estímulo das ciências não esclarece que uso ficcional é feito
destes materiais” (ALLEN, [s.d.], p. 227). Allen, contudo, não parece seguir o próprio
alerta, conforme adiante será demonstrado.
O autor explicita teoricamente certas categorias de ficção científica previamente
apontadas por uma crítica mais informal, geralmente vinculada ao fandom do gênero.
Allen faz uma ressalva:
12
Embora o volume não possua data, fontes indicam que foi publicado em 1977, quando a especulação
teórica sobre a ficção científica era ainda menos presente no Brasil do que hoje.
13
Notação, ao que parece, parafraseada por Raul Fiker em seu já referido texto.
21
[...] qualquer rótulo enfatiza um único aspecto de uma obra e negligencia todo o resto do
trabalho; consequentemente, se tal rotulação torna-se mais um fim em si própria do que
uma conveniência momentânea, a qualidade e o mérito da obra literária são
virtualmente destruídos. Além disso, muitas classificações não tomam conhecimento de
gradações em importância, deixando pouco espaço para uma obra que não é puramente
nem uma coisa nem outra – e a maioria das obras literárias, ou qualquer outra coisa
deste gênero, não são de modo algum puras. Finalmente, qualquer classificação pode ser
discutida e rejeitada por qualquer pessoa com um diferente ponto de vista (ALLEN,
[s.d.], p. 21).
O gênero, segundo Allen, se apresenta em quatro grandes categorias que podem
apresentar subdivisões: ficção científica hard, ficção científica soft, fantasia científica e
fantasia. A categoria hard
[...] seria a ficção científica cujo principal impulso para a exploração que ocorre é uma
das ciências denominadas exatas ou físicas, como: química, física, biologia, astronomia,
geologia, e possivelmente matemática, assim como a tecnologia a elas associada, ou
delas resultante. Tais ciências, e consequentemente qualquer ficção científica baseada
nelas, pressupõe a existência de um universo ordenado, cujas leis são constantes e
passíveis de descoberta (ALLEN, [s.d.], p; 21).
Para Allen, exemplo ideal da categoria é 20.000 léguas submarinas, de Jules
Verne. Um dos fatores eleitos como decisivos para a categorização é o fato de Verne ter
incluído no romance apenas elementos tidos como possíveis pela ciência de sua época.
Assim, o vínculo com o fato científico é posto em evidência.
A ficção científica soft, por outro lado,
[...] encerra a ficção científica cujo principal impulso para a exploração é uma das
ciências denominadas humanas; isto é, ciências que focalizam atividades humanas, a
maior parte das quais não têm sido aceitas totalmente como sendo tão rigorosas ou tão
capazes de predição quanto as ciências físicas. Ficção científica soft incluiria quaisquer
estórias baseadas em abordagens ao conhecimento tais como: sociologia, psicologia,
antropologia, ciência política, historiografia, teologia lingüística e algumas abordagens
do mito (ALLEN, [s.d.], p. 22).
Segundo Allen, exemplar claro da categoria é A máquina do tempo, de H. G.
Wells. O romance se utiliza, afinal, de uma ciência imaginária e especulativa para
22
instaurar uma situação onde mudanças e desenvolvimentos sociais e psicológicos
podem ser observados.
Quanto à fantasia científica,
(...) [s]ob este título estariam aquelas estórias que, pressupondo um universo ordenado
com leis naturais constantes e passíveis de descoberta, propõe que as leis naturais são
diferentes das que derivamos de nossas ciências atuais. O que é às vezes denominado
Parapsicologia, mas especialmente aqueles ramos que tratam da telepatia e das leis da
magia, muito frequentemente fornecem estas leis alternativas. Para ser classificada
como Fantasia Científica, é necessário que estas leis alternativas recebam um mínimo
de exploração direta (ALLEN, [s.d.], p. 23).
Allen anuncia que a relação entre a fantasia e a ficção científica não é imediata,
já que a primeira possui mínima relação com quaisquer das ciências. Demonstra
indecisão quanto à identificação de um gênero ao outro, mas acaba supervalorizando os
pontos comuns e engloba a fantasia à ficção científica.
Allen parece se preocupar mais em categorizar o uso da ciência em textos de
ficção do que a própria constituição destes. Acreditar que uma coisa se equipara à outra
é um reducionismo brutal que traz consigo a idéia de que a ficção científica dialoga
mais com o fato científico do que com outros textos ficcionais. Estamos diante de uma
incontornável contradição nos postulados de Allen: conforme já foi referido, ele próprio
afirma que a presença da ciência na ficção não explica o uso ficcional que é feito da
ciência.
A divisão entre ciências hard e soft, incontestável na forma com que
contemporaneamente enxergamos a realidade e a ciência empíricas, não encontra plena
analogia no plano ficcional. Exemplifiquemos com um dos temas caros à ficção de
André Carneiro: a chamada “parapsicologia”. São diversos os exemplos: deslocamento
espaço-temporal da consciência (romance Amorquia); previsão de eventos futuros (O
23
Homem que Adivinhava); predomínio da mente sobre a matéria (Um Caso de Feitiçaria
e A Máquina de Hyerónimus).
Na ficção científica de Carneiro não há, ficcionalmente, distinção digna de nota
entre a extrapolação “parapsicológica” e a extrapolação da ciência instituída como tal.
Ou seja: a “parapsicologia” não é ficcionalmente tratada como algo mágico. Englobar
sob a alcunha de fantasia científica as narrativas de Carneiro que abordam o tema não
parece, portanto, uma alternativa lógica.
Tentemos, ainda assim, extrair algum proveito das proposições de Allen, não de
todo equivocadas. A escolha de Wells e Verne como exemplos antitéticos, por exemplo,
não poderia ser mais feliz. Cabe uma menção à polêmica entre os dois autores, que
também ilustra um ponto já mencionado aqui: o cuidado para que não encaremos a
ficção científica como antecipação científica, somente. Carneiro comenta a polêmica:
O que (...) separava [Wells] principalmente de Júlio Verne era que este fazia questão de
uma completa e ilusória verossimilhança científica. Neste trecho, ele se refere a Wells,
depois de ter lido Os primeiros homens na Lua: “Eu faço uso da física. Ele, a inventa.
Eu cheguei à Lua com uma bala de canhão. Não existe nenhuma fraude nisso. Ele, viaja
até Marte numa astronave que construiu com um metal que anula a lei da gravidade.
Tudo isso é muito bonito, mas esse metal, eu espero que ele me apresente.”
Esse ingênuo ataque de Verne a Wells define bem uma posição dentro da problemática
da SF que, atualmente, já não é mais objeto de maiores controvérsias (CARNEIRO,
[s.d. [2] ], p. 15-16).
Como para Carneiro não há vínculo completo entre ficção e ciência, conforme
pode ser depreendido de sua discussão acerca do termo “ficção científica”, a
factualidade alardeada por Jules Verne lhe parece ilusória. Ou seja, o fato científico,
uma vez transposto para um contexto ficcional, inevitavelmente perde o que é próprio
da ciência. Nesse sentido, H. G. Wells é apresentado como mais consciente a respeito de
seu fazer literário do que Verne.
24
O ensaio O Primeiro Wells, de Jorge Luis Borges, também contrapõe Wells e
Verne:
Wells (antes de resignar-se a especulador sociológico) foi um admirável narrador, um
herdeiro das concisões de Swift e Edgar Allan Poe; Verne, um jornalista laborioso e
risonho. Verne escreveu para adolescentes; Wells, para todas as idades do homem. Há
outra diferença, já denunciada certa vez pelo próprio Wells: as ficções de Verne tratam
de coisas prováveis (um barco submarino, um navio mais comprido que os de 1872, o
descobrimento do Pólo Sul, a fotografia falante, a travessia da África num balão, as
crateras de um vulcão extinto que vão dar ao centro da terra); as de Wells são meras
possibilidades (um homem invisível, uma flor que devora um homem, um ovo de cristal
que reflete os acontecimentos de Marte), quando não coisas impossíveis; um homem
que regressa do porvir com uma flor futura, um homem que regressa da outra vida com
o coração à direita, porque ele foi inteiramente invertido, como num espelho (BORGES,
1981, p. 1-2).
Tanto o pensamento crítico quanto a produção literária de André Carneiro
simpatizam com Wells, no que concerne aos pontos acima. Em Amorquia, por exemplo,
poucas são as preocupações com a ciência exata e factual. Sendo o foco deslocado para
o “humano”, o romance se aproxima do que Allen chama de ficção científica soft.
O benefício que as propostas de L. David Allen trazem para nossa discussão
acerca de Amorquia, portanto, é assinalar o enfoque humanista na forma com que a
extrapolação científica é apresentada no romance. Não escapa de nossa compreensão
que toda e qualquer produção literária é, em última instância, sobre temas humanos. O
que se pretende afirmar é que, em Amorquia, como em A máquina do tempo e
diferentemente do que acontece em 20.000 léguas submarinas, não é verificável a
tentativa de conceder à ficção o aspecto de explanação científica
14
.
14
A assertiva de forma nenhuma deve ser entendida como uma tentativa de estabelecer hierarquias de
valor dentro da ficção científica. Exemplos como Tau zero, de Poul Anderson, e A onda negra, de Fred
Hoyle, bastam para demonstrar quão sugestivo e instigante pode ser o empréstimo ficcional do discurso
científico. Nesses romances, como em outros da categoria que Allen chamaria de hard, o empréstimo
chega ao ponto de incluir fórmulas matemáticas.
25
1.3 – Distanciamento cognitivo
Em 1977, o iugoslavo Darko Suvin publicou, no Canadá, uma coletânea de
ensaios que merece ser observada de perto, Pour une poétique de la science-fiction, dois
anos mais tarde traduzida para o inglês com o título Metamorphosis of science-fiction.
Suvin foi o editor da revista Science-fiction Studies e é considerado um dos pioneiros no
estudo do gênero em âmbito acadêmico. Se o texto de Allen alcançou grande projeção
no Brasil, graças à quantitativamente pobre produção teórico-crítica nacional, o de
Suvin é responsável por cunhar alguns conceitos basilares para o estudo da ficção
científica como gênero literário.
Para Suvin, o ponto de partida da ficção científica é uma hipótese fictícia
(literária) desenvolvida com rigor totalizante (científico). Preocupado em delimitar o
efeito produzido por um texto do gênero, Suvin recorre ao “distanciamento”:
O conceito de distanciamento, elaborado originalmente pelos formalistas russos
(ostranenie, Viktor Chklovski, 1917) a propósito de textos não miméticos, foi,
posteriormente, estabelecido por Bertolt Brecht sob um ponto de vista antropológico e
histórico. Brecht desejava escrever “peças para uma era científica”. Ao trabalhar numa
peça sobre Galileu, o protótipo do sábio, ele definiu tal atitude [Verfremdungseffekt],
em seu Petit Organon pour le théâtre (1948), como “uma reprodução que permite,
certamente, reconhecer o objeto reproduzido, mas que, ao mesmo tempo, o torna
insólito”
15
.
Darko Suvin postula que as convenções da ficção científica, quando
manipuladas satisfatoriamente, produzem um efeito próximo ao distanciamento
15
Tradução de “Le concept de distanciation élaboré à l’origine à propôs de textes non mimétiques par les
Formalistes russes (ostranenie, Viktor Chklovski, 1917), fut, plus tard, établi par Bertolt Brecht sur un
point de vue anthropologique et historique. Brecht voulait écrire des ‘pièces pour une ère scientifique’;
alors qu’il travaillait à une pièce sur Galilée, le prototype du savant, il a defini cette attitude
(Verfremdungseffekt) dans son Petit Organon pour le théâtre (1948) comme ‘une reproduction qui
permet, certes, de reconnaître l’objet reproduit, mais em même temps le rend insolite’” (SUVIN, 1977. p.
14).
26
proposto por Brecht
16
. São, pois, passíveis de instaurar um estímulo ao senso crítico – a
ambientação futurista, por exemplo, é para Suvin um estímulo à percepção crítica do
leitor. Certos textos de ficção científica, nesse sentido, abordam questões que lhes são
contemporâneas, por meio da extrapolação simulada
17
e da projeção num futuro
longínquo, assim tornando tais questões mais evidentes e contundentes. É o caso de
Amorquia, em que o futuro narrado deve ser entendido como uma projeção tanto da
ditadura militar quanto da democracia brasileiras, questões a serem discutidas adiante.
Dessa forma, a percepção de que a ficção científica não pode ser entendida como
uma “literatura de antecipação” é traduzida teoricamente por Suvin. Ainda que se fale
do futuro, pois, o tema é o presente.
Seria a proposição verificável, posto que os autores empíricos de alguns textos
do gênero de fato almejam antecipar o futuro? Aldous Huxley, por exemplo, observou:
Brave new world é um livro sobre o futuro e, quaisquer que sejam suas qualidades
artísticas ou filosóficas, um livro sobre o futuro apenas pode nos interessar se suas
profecias parecerem concebivelmente verdadeiras
18
.” Contudo, lembremos que Suvin se
refere ao efeito da ficção científica, algo, neste caso, não relacionado diretamente ao
tipo de intenção referida por Huxley. Ou seja, mesmo que a intenção consciente do
autor empírico seja alertar para um possível pesadelo futuro, o texto acaba por provocar
um questionamento crítico das questões que supostamente lhe são contemporâneas,
questões estas postas em evidência por meio do exagero e da extrapolação simulada.
Em interação com o distanciamento, a “cognição” constitui, segundo Suvin, o
efeito próprio de um texto de ficção científica:
16
Ainda que o conceito brechtiano seja assumidamente deslocado para outro contexto: tendência
“realista” em Brecht, ficção científica em Suvin.
17
Para Suvin, uma obra ficcional jamais pode extrapolar cientificamente, mas apresentar uma
“extrapolação simulada”.
18
Tradução de “(...) Brave new world is a book about the future and, whatever its artistic or
philosophical qualities, a book about the future can interests us only if its prophecies look as though they
might conceivably true” (HUXLEY, 1988, p. x).
27
A utilização do distanciamento (...) é encontrada, também, no mito, essa maneira
“eterna” e religiosa de enxergar abaixo da superfície empírica das coisas. Todavia, a
ficção científica trata das normas de cada época (...) como singulares, transformáveis e,
consequentemente, sujeitas a um olhar cognitivo. (...) Enquanto o mito se propõe como
explicação definitiva da essência dos fenômenos, a ficção científica coloca os
fenômenos como problemas a serem examinados; ela denuncia a identidade estática do
mito como ilusória, frequentemente como fraudulenta e, no melhor dos casos, como
uma cristalização temporária de contingências em perpétua evolução
19
.
A ficção científica é, portanto, “um gênero no qual as condições necessárias e
suficientes são a presença e a interação de distanciamento e conhecimento, e no qual a
principal convenção formal é um quadro imaginário, diferente do mundo empírico do
autor
20
”. Quadro imaginário, portanto, capaz de evocar o efeito que, para Darko Suvin,
é exclusivo de textos de ficção científica, o “distanciamento cognitivo”. Os responsáveis
pela diferença entre o quadro imaginário e o mundo empírico do autor, por sua vez, são
o que Suvin chama de nova, as “novidades” estranhas ao nosso mundo.
O conceito de distanciamento cognitivo proposto por Suvin pode ser
representado pela ilustração de capa de Pour une poétique de la science-fiction. A
concepção gráfica da capa é de Serge April, sobre uma ilustração de Agnes Denes
chamada The Doughnut:
19
Tradução de “L’utilisation de la distanciation (...) se retrouve aussi dans le mythe, cette manière
‘eternelle’ et religeuse de regarder au-dessous de la surface empirique des choses. Toutefois, la science-
fiction traite les normes de chaque époque (...) comme singulières, transformables, et par conséquent,
sujettes à um regard cognitif. (...) Alors que le mythe se propose comme l’explication définitive de
l’essence des phénomènes, la science-fiction les pose comme problèmes à examiner; elle dénonce
l’identité statique du mythe comme illusoire, très souvent comme frauduleuse et, dans le meilleur des cas,
comme une cristallisation temporaire de contingences en perpétuelle évolution” (SUVIN, 1977, p. 14-
15).
20
Tradução de “un genre littéraire dont les conditions nécessaires et suffisantes sont la présence et la
interaction de la distanciation et de la connaissance, et dont le principal procédé formel est un cadre
imaginaire, different du monde empirique de l’auteur” (SUVIN, 1977, p. 15) (grifo nosso).
28
APRIL, Serge. Capa do livro Pour une poétique de la science fiction, concebida a partir de
copyright de Agnes Denes, Study of distortions series: Map projections. The doughnut.
[Tangent Tours]; 24x30, on ink & charcoal on mylar & graph paper, 1974, na versão original.
A figura, como podemos observar, apresenta uma distorção gráfica do globo
terrestre; o esférico toma o formato de um doughnut (“rosquinha”). Tal distorção pode
ser associada ao “distanciamento”, já que, embora a representação seja insólita, ainda
nos é reconhecível, não sendo perdida a associação com o planeta Terra; os continentes
como os conhecemos podem ser encontrados na figura, embora alterados. Como tal
distanciamento é calcado em uma projeção cartográfica, e evidentemente construído
com base em cálculos matemáticos, o “olhar cognitivo” sobre nossa compreensão da
realidade também se faz presente. Essa é a leitura de The Doughnut que as proposições
29
de Darko Suvin sugerem, um distanciamento efetuado com lógica cognitiva: o
distanciamento cognitivo.
Lendo Suvin, Adam Roberts evita a identificação imediata entre cognição e
ciência:
Nós podemos, de fato, enxergar a ficção científica como uma forma de experimento
intelectual (thought experiment), um elaborado jogo de “e se?”, no decorrer do qual as
conseqüências de um ou outro novum são trabalhadas. Em outras palavras, não é a
“verdade” científica que é importante para a ficção científica; é o método científico, o
trabalho lógico sobre uma premissa particular. Isso é precisamente o que Suvin afirma:
“a ficção científica é distinguida pela dominância ou hegemonia narrativa de um
‘novum’ ficcional validado por lógica cognitiva”
21
.
É importante frisar, também, que o novum, elemento próprio da ficção científica,
é a “novidade estranha” que se coloca a serviço do distanciamento cognitivo, não
qualquer dado ficcional diferente do mundo do autor. Para melhor observar como o
novum se entrelaça ao efeito de distanciamento cognitivo, cabe um exemplo literário.
A máquina do tempo, de H. G. Wells, obra discutida por Suvin no volume aqui
em questão, pode ser de auxílio para esclarecer o tópico. O artefato que dá nome ao
romance é de pronto aplicável ao conceito de Suvin. Embora em desacordo com a
ciência empírica, a máquina do tempo é apresentada com “lógica cognitiva”; todo o
primeiro capítulo do romance é dedicado à explanação pseudocientífica do Viajante do
Tempo.
Esse primeiro novum é um veículo, tanto pela função desempenhada
ficcionalmente (“transportar” o protagonista através das eras) quanto por conduzir a
obra a um outro novum, este de maiores proporções e implicações: a extrapolação
sociológica simulada. Graças ao artefato, o Viajante se defronta com uma sociedade
21
Tradução de “We might indeed see SF as a form of thought experiment, an elaborate ‘what if?’ game,
where the consequences of some or other novum are worked through of a particular premise. This is
precisely what Suvin asserts: ‘SF is distinguished by the narrative dominance or hegemony of a fictional
novum validated by cognitive logic’” (ROBERTS, 2006, p. 9).
30
futura que alegoriza os conflitos entre classes. Dessa forma, a máquina do tempo possui
um papel acessório, já que não se constitui como o thought experiment central do
romance. Observemos que o efeito do distanciamento cognitivo e sua conseqüente
demanda por uma articulação crítica entre o mundo ficcional e o empírico se
concretizam plenamente no segundo novum.
Delimitado o efeito de distanciamento cognitivo, Darko Suvin apresenta sua
categorização genérica:
A ficção se diferencia das outras estruturas discursivas pela presença de um fábula ou
narração, por meio da qual o escritor tenta focalizar as relações dos humanos com si
próprios e com o universo. (...) A ficção pode, portanto, ser dividida de acordo com a
maneira de focalizar as relações entre os homens e entre eles e seu ambiente. Se essa
maneira busca reproduzir fielmente as estruturas e as superfícies empíricas reconhecidas
pelos sentidos e pelo senso comum, eu proponho chamá-la de ficção “realista”. Se,
pelo contrário, procura focalizar essas relações por meio da criação de um quadro
formal radical ou claramente diferente (...), eu proponho o termo ficção distanciada.
22
.
À proposição segue uma marca hierarquizante. Segundo Suvin, a ficção
“realista” se torna sentimentalista e, até, sub-literária quando subjuga as leis físicas às
leis morais – o exemplo citado é o modelo do happy end hollywoodiano.
Baseado nessas oposições binárias (realista/distanciado, cognitivo/não-
cognitivo), Suvin resume seu sistema genealógico no seguinte quadro:
22
Tradução de “La fiction se différencie des autres structures discursives par la présence d’une fable ou
narration par laquelle l’écrivain tente de mettre en lumière les rapports des humains entre eux ou avec
l’univers. (...) La fiction peut donc se diviser selon la manière de mettre en lumière les rapports des
hommes entre eux, et avec leur environnement. Si cette manière cherche à reproduire fidèlement les
structures et les surfaces empiriques reconnues par les sens et par le sens commun, je propose de
l’appeler fiction ‘réaliste’. Si, au contraire, on cherche à mettre ces rapports en lumière par la création
d’un cadre formel radicalement ou nettement différent (...) je propose le terme de fiction distanciée..
(SUVIN, 1977, p. 25).
31
REALISTA DISTANCIADO
COGNITIVO Literatura “realista” Ficção científica (e
pastoral
23
)
NÃO COGNITIVO Sub-literatura do
“realismo”
Literatura metafísica: mito,
conto maravilhoso,
fantástico
Um ponto talvez questionável do quadro acima é a proposição de fronteiras
estanques, não fluidas, entre os gêneros. Um texto de ficção científica, para Darko
Suvin, só pode transparecer outra espécie de efeito que não o distanciamento cognitivo
se houver uma indesejável “contaminação”: “Quando [a ficção científica] favorece o
parasitismo e o vampirismo do fantástico, ela se torna (...) alienante e alienada
24
”.
Esse traço da teoria proposta por Suvin é avaliado negativamente por Roberto de
Sousa Causo:
A ficção especulativa é um objeto escorregadio. Para o observador iniciante parece ser
um gênero “fechado” em suas possibilidades e estruturas, como é para alguns a ficção
de detetives (detetive fiction). Mas logo o desenvolvimento do gênero começa a
importar variações que não se encaixam nos modelos teóricos. (...) Parte do problema
parece estar no fato de a literatura especulativa ser um objeto que resiste à dissecação.
Tome o caso de Darko Suvin e sua teoria da ficção científica como a literatura do
“estranhamento cognitivo
25
”, uma teoria que nega o interesse da fantasia, quanto mais
uma articulação dela com a ficção científica. Mas quando a fantasia começa a misturar-
se com a ficção científica (uma das tendências mais em voga atualmente), o “animal”
descrito por Suvin começa a contorcer-se, libertando-se da rede conceitual (CAUSO,
2003 [1], p. 44).
23
A pastoral é colocada ao lado da ficção científica porque, segundo Suvin, ambos são gêneros literários
distanciados, meta-empíricos e possuem horizontes que, como em certa ficção “realista”, conduzem às
ciências naturais e à filosofia materialista, numa marca cognitiva e dialética.
24
Tradução de “quand elle favorise le parasitisme et le vampirisme du fantastique, elle devient (...)
aliénante et aliénée” (SUVIN, 1977, p. 31).
25
No Brasil, a tradução do termo cunhado por Suvin tem sido “estranhamento cognitivo”. Neste trabalho,
foi feita a opção por “distanciamento cognitivo”.
32
Contudo, é possível observar que tal negação da fantasia se faz presente mais no
uso feito por Suvin de seu próprio conceito do que na formulação deste. A questão pode
ser exemplificada com um texto de H. P. Lovecraft, que pode ser tomado como modelar
na articulação entre esses dois efeitos. A escolha por esse autor não é aleatória, já que
Suvin, em diversas passagens de sua obra, cita os textos lovecraftianos como exemplos
de ficção incapaz de qualquer marca cognitiva. Articulando o distanciamento cognitivo
a um conto do autor, pretendemos demonstrar a distinção acima apontada entre o uso e a
formulação do conceito, bem como demonstrar que o distanciamento cognitivo dispensa
a malfadada tentativa de desprezar o fantástico e sua presença na ficção científica.
O protagonista do conto Os Sonhos na Casa Assombrada (The Dreams in the
Witch-house), Walter Gilman, é um estudante que, voluntariamente, se hospeda numa
casa tida como mal-assombrada. Seu interesse é “científico”:
Talvez Gilman não devesse ter estudado tanto. O cálculo não-euclidiano e a física
quântica bastam para esgotar qualquer cérebro, e quando alguém os mistura com
folclore e tenta identificar um fundo estranho de realidade multidimensional por trás das
sugestões demoníacas das narrativas góticas e das desvairadas histórias sussurradas ao
pé do fogo, dificilmente poderia evitar uma tensão mental. Gilman viera de Haverhill,
mas só depois de ter entrado na universidade de Arkham foi que ele começou a
relacionar suas pesquisas matemáticas com as lendas fantásticas de magia ancestral
(LOVECRAFT, 1999, p. 168).
O empreendimento de Gilman, a articulação entre superstição e ciência “dura”, é
análogo ao de Lovecraft. No conto, dados não-cognitivos são entremeados a uma
ciência que não se pretende empírica, mas que é ficcionalmente apresentada com uso de
“lógica cognitiva”.
Alojado no quarto que antes fora da bruxa chamada Keziah, o protagonista
relaciona os estranhos ângulos formados pelas paredes às práticas de ocultismo:
Com o passar do tempo, sua absorção na parede e no teto irregulares de seu quarto
cresceu, pois começara a identificar nos curiosos ângulos um significado matemático
33
que parecia oferecer vagas pistas relacionadas com o seu propósito. A velha Keziah,
pensava ele, devia ter tido excelentes motivos para viver num quarto com ângulos
peculiares, pois não havia sido mediante certos ângulos que ela alegava ter saído dos
limites do mundo espacial que conhecemos? (LOVECRAFT, 1999, p. 170-171).
Observemos que a passagem da realidade mundana para a sobrenatural é
ficcionalmente justificada pelas referências aos estudos matemáticos de Gilman. Assim,
o artifício que possibilita a “transição dimensional” do protagonista pode ser de pronto
identificado com a ficção científica: trata-se de um novum suviniano. Apresenta-se,
então, a articulação entre cognitivo e não-cognitivo do conto, pois o que espera e chama
por Gilman nos outros planos dimensionais são figuras ligadas a um conhecimento
supersticioso, animista, e típicas da ficção de horror, como a bruxa e o animal
bizarramente dotado de traços humanos.
O conto, acreditamos, é um exemplo de texto intercalar. Se as fronteiras
apontadas por Suvin forem tomadas como fluidas, Os Sonhos na Casa Assombrada
pode se alocar entre o “distanciado cognitivo” e o “distanciado não cognitivo”; ainda
que fantástico, ilustra, em certa medida, o distanciamento cognitivo.
Evidencia-se, assim, que a poética da ficção científica proposta por Darko Suvin
é amparada principalmente na oposição entre duas formas de apreensão do mundo: a
chamada de “cognitiva”, ligada ao conhecimento sistematizado, e a “não-cognitiva”,
expressa por uma concepção animista. Para aprofundar o ponto e, por fim, definir a
concepção de ficção científica mais adequada a esta análise de Amorquia, é pertinente
uma articulação com o conceito freudiano de unheimlich, que manifesta percepções,
como veremos, em certa assonância com as de Suvin.
34
1.4 – Unheimlich
O conceito de unheimlich
26
é por Sigmund Freud abstraído de uma discussão a
respeito da própria etimologia da palavra. O procedimento evidencia a acuidade do
termo na descrição de um efeito literário específico e acaba por tornar imprecisas as
tentativas de tradução. A palavra alemã, pois, apresenta nuances ausentes em termos
análogos de línguas como o latim, o grego, o árabe, o hebreu, o inglês, o francês, o
espanhol, o italiano e o português, questão demonstrada por Freud.
Em um primeiro sentido, unheimlich é apenas o oposto de heimlich:
A palavra alemã “unheimlich” é obviamente o oposto de “heimlich” [“doméstica”],
heimisch” [“nativo”] – o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que
aquilo que é “estranho” é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar.
Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador; a relação
não pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se
facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo
algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-
lo estranho (FREUD, 1996, p. 239).
Dando continuidade à especulação etimológica, por meio de comentários a
excertos de dicionários, Freud enfatiza um sentido peculiar que a palavra heimlich pode
expressar: “escondido”, “oculto da vista alheia”. Nesse sentido, heimlich se iguala ao
seu oposto, unheimlich. É possível, com base no dado, definir porque nem tudo o que é
novo e não familiar é unheimlich: “[...] heimlich é uma palavra cujo significado se
desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto,
unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich
(FREUD, 1996, p. 244).
26
O “estranho”, de acordo com a tradução aqui utilizada.
35
Assim, enquanto palavras como “estranho” ou “sinistro” são unilaterais,
unheimlich, de acordo com a percepção freudiana, expressa uma simultaneidade: é, a
um só tempo, o assustador e o outrora familiar ou conhecido. Trata-se do retorno do
reprimido; o efeito se constitui quando um texto evoca algo “secretamente familiar
[heimlich-heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou” (FREUD, 1996, p.
262). Em outras palavras, o unheimlich traria à tona desejos reprimidos e modos
superados de pensamento, estes últimos vinculados a uma concepção animista e
supersticiosa do mundo.
Um conto tomado como modelar para o estudo do efeito é O Homem de Areia,
de E. T. A. Hoffmann. O tema principal do conto, responsável pela expressão do
unheimlich é, para Freud, justamente o “Homem de Areia”, figura que arrancaria os
olhos das crianças que não vão para a cama à noite. Em referência ao trabalho de Rank,
Freud assinala a etimologia do nome da personagem: coppo=cavidade orbital. À luz da
relação substitutiva entre o olho e órgão masculino, “que se verifica nos sonhos, mitos e
fantasias” (FREUD, 1996, p. 249), o temor de ferir ou perder os olhos é, na concepção
freudiana, vinculado ao “complexo de castração”. Como a substituição do medo de ser
castrado pela ansiedade em relação aos olhos tem suas raízes na infância, o conto é
unheimlich – promove, pois, o retorno do reprimido, do esquecido.
Outro elemento não familiar (mas não precisa e plenamente unheimlich) do
conto é a “boneca” Olímpia, um autômato cujo mecanismo foi criado pelo mecânico
Spalanzani e cujos olhos foram colocados por Coppola, o próprio Homem de Areia. O
complexo de castração, dessa forma, é incorporado também por Olímpia,
especificamente por ser ela uma criatura de olhos, por assim dizer, “destacáveis”.
Um trabalho sobre o unheimlich anterior ao de Freud, de autoria de Jentsch, é
reavaliado pelo primeiro. Para Jentsch, Olímpia e sua condição de criatura autômata são
36
a principal expressão de unheimlich do conto. A razão para tanto seria a “incerteza
intelectual” advinda de um ser que não se consegue definir se é humano ou máquina.
Freud discorda: de acordo com sua percepção, a “incerteza intelectual” proposta por
Jentsch não serve para justificar outros exemplos de unheimlich, como o próprio
Homem de Areia e o decorrente complexo de castração. O “retorno do reprimido”
inerente ao conceito freudiano não possui, de fato, vínculos com a “incerteza
intelectual” de Jentsch.
Curioso que, embora o unheimlich seja bastante distinto do efeito próprio da
ficção científica, o conto de Hoffmann já tenha sido incluído numa antologia chamada
O melhor da ficção científica do século XIX, organizada por Isaac Asimov. O
organizador, lembremos, foi o criador das chamadas “Leis da Robótica”
27
,
desenvolvidas em inúmeros contos de sua autoria e que se tornaram uma convenção da
ficção científica, dado que traz à mente o autômato criado por Hoffmann, Olímpia.
A mais recente tradução em língua portuguesa de O Homem de Areia, publicada
na antologia Freud e o estranho – Contos fantásticos do inconsciente, sob a organização
de Braulio Tavares, pode ser proveitosamente confrontada com a de Bárbara Theoto
Lambert, encontrada em O melhor da ficção científica do século XIX. Nesta, em dado
momento, lê-se: “Spalanzani, como já foi dito, foi obrigado a deixar a cidade para
escapar a um processo criminal por ter, fraudulentamente, imposto um autômato à
sociedade humana” (HOFFMANN, 1990, p. 47, grifo nosso). Já em Freud e o estranho
– Contos fantásticos do inconsciente, temos, na tradução de Carolina Caires Coelho:
“Spallanzani, como já foi dito, foi obrigado a deixar a faculdade, para escapar de um
27
Três são as leis: “1ª) Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser
humano sofra mal algum; 2ª) Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos,
exceto nos casos em que tais ordens contrariem a 1ª Lei; 3ª) Um robô deve proteger sua própria
existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a 1ª e a 2ª Leis” (ASIMOV, 1964, p. 61).
37
processo criminoso por ilicitamente levar um robô para viver em sociedade”
(HOFFMANN, 2007, p. 263, grifo nosso).
Como aponta Gilberto Schoereder, a respeito do termo “robô” e do texto que lhe
deu origem:
Sua origem é tcheca e significa “trabalhador”. Em 1921 foi utilizada pela primeira vez
para designar um ser artificialmente construído, na peça de Karel Capek, R.U.R (Robôs
Universais Rossum). O proprietário da empresa em questão, Rossum, havia descoberto
como fabricar esses seres, e pretendia que fossem operários. Mas as coisas não
aconteceram como o planejado. Os seres humanos deixaram de reproduzir-se,
desmotivados pela falta de atividade, e os robôs começaram a ser utilizados pelos
estadistas, na guerra. Até o momento em que se revoltaram e destruíram a humanidade,
transformando-se em senhores do mundo (SCHOEREDER, 1986, p. 75).
O enredo da peça de Capek, especialmente no que concerne ao exagero das
conseqüências que a mecanização já em 1921 trazia ao homem, bem ilustra o efeito de
distanciamento cognitivo. Tendo sido cunhada num texto de ficção científica, e
amplamente utilizada por autores como Isaac Asimov, a palavra “robô” adquiriu uma
pronta identificação com o gênero.
O uso do termo por Coelho, em sua tradução de O Homem de Areia, embora
anacrônico
28
, não traz prejuízos ao sentido do conto. É preciso lembrar que, em nossa
língua, o vínculo com o significado original de “robô” (“trabalhador”), inaplicável a
Olímpia, se encontra um tanto desvanecido.
A tradutora, intencionalmente ou não, escancara a relação entre a personagem de
Hoffmann e a ficção científica. Olímpia é, pois, criada pelo mecânico Spallanzani e
possui um mecanismo análogo ao dos relógios. Enquanto no mito, no conto
maravilhoso e no fantástico o inanimado se torna animado graças à intervenção da
magia, em O Homem de Areia são referências a uma espécie de conhecimento
28
O conto de Hoffmann foi publicado pela primeira vez em 1816; a peça de Capek, em 1921.
38
sistematizado (a mecânica, a analogia com o funcionamento dos relógios) que
possibilitam o feito.
Justifica-se, dessa forma, a inclusão do conto em uma antologia sobre ficção
científica do século XIX. Não se trata, contudo, de uma leitura antagônica ao
unheimlich freudiano. Para Freud, afinal, o principal “agente” do unheimlich em O
Homem de Areia é Coppola, não Olímpia; embora a órbita ocular vazia da boneca
expresse o efeito, o responsável pela criação dos olhos “destacáveis” de Olímpia é
Coppola. Ao incluir O Homem de Areia em sua antologia, Asimov chama atenção não
para a personagem que dá nome ao conto, mas para Olímpia, o robô.
Podemos, a partir daí, articular o unheimlich freudiano às proposições de Darko
Suvin. Ora, o que Suvin chama de “gêneros não-cognitivos” nada mais são do que os
gêneros que se apegam a uma concepção animista do mundo, que remontam
ficcionalmente uma forma de enxergar a realidade calcada na superstição e na magia.
Textos unheimlich, de forma análoga, são aqueles que promovem o resgate da
concepção animista, concepção esta, para Freud, equivalente a medos e desejos
reprimidos pelo indivíduo no processo de amadurecimento.
Enquanto Coppola é o principal responsável pelo unheimlich em O Homem de
Areia, o vínculo entre o animismo e Olímpia se apresenta frouxo graças às referências
ao funcionamento desse ser artificial, o mecanismo similar ao dos relógios. Assim,
Olímpia, justificada ficcionalmente por meio do que Suvin chamaria de lógica
cognitiva, remete a uma espécie de conhecimento sistematizado, radicalmente distinto
do “supersticioso”. Como já observamos, as órbitas oculares por vezes vazias da
personagem não deixam de ilustrar o unheimlich, mas nem para Freud Olímpia se
apresenta como um exemplo pleno do efeito.
39
O que se sugere neste trabalho, dessa forma, é que Olímpia não se mostra
plenamente unheimlich devido ao seu funcionamento mecânico – referência a uma
percepção científica, não animista. Também não é plenamente unheimlich porque, de
acordo com a percepção freudiana, para tanto seria necessário encontrar, no texto, outras
relações entre Olímpia e o “retorno do reprimido”. Essas outras relações, observemos,
são verificáveis na figura do Homem de Areia: quando criança, o protagonista passava
noites em claro, acordado, temendo a visita dessa entidade, um medo superado que
acaba por retornar em sua juventude.
Se vincularmos o unheimlich ao “não-cognitivo” ou animista, é possível, com
base nas considerações acerca de Olímpia, reforçar o vínculo que Darko Suvin traça
entre a ficção científica e o “cognitivo”. Afinal, à luz da discussão de Freud acerca de O
Homem de Areia, bem como da relação por nós traçada entre Olímpia e o “robô”, a
proposição suviniana de que a ficção científica seria um gênero cognitivo se mostra
bastante pertinente.
O Homem de Areia coloca em evidência, também, um ponto da teoria de Suvin
já questionado neste trabalho: a negação de textos híbridos e/ou intercalares. Esse é
justamente o caso do conto de Hoffmann, na leitura aqui proposta: Olímpia, embora
ficcionalmente apresentada com “lógica cognitiva”, não deixa de perifericamente
expressar o “não cognitivo” inerente ao unheimlich freudiano.
A fim de concluir, por ora, nossa articulação entre o unheimlich e a ficção
científica, tomemos um conto de André Carneiro, Um Caso de Feitiçaria, para
exemplificar a passagem do unheimlich ao distanciamento cognitivo. A breve discussão
a respeito do conto bastará para reafirmar a pertinência do efeito proposto por Suvin,
além de assinalar, novamente, a ligação entre o unheimlich e o “não-cognitivo”. No
40
tópico seguinte, passaremos a mensurar como as proposições de Suvin podem colaborar
com nossa leitura de Amorquia.
David Lincoln Dunbar, em sua tese de doutorado Unique motifs in brazilian
science fiction
29
, oferece uma leitura inadequada tanto do distanciamento cognitivo de
Suvin quanto do conto Um Caso de Feitiçaria:
Essa definição [de Suvin] pode ser restritiva demais. Quando olhamos para a grande
variedade de temas que são atualmente considerados como parte do gênero FC, parece
mais prudente e realista aceitar um nome como “literatura especulativa”. (...) Se
fôssemos excluir do gênero FC todas aquelas obras que não contém “ciência”,
estaríamos restritos a um número bem reduzido de trabalhos. (...) Creio que qualquer
definição estreita seria restritiva demais e iria excluir a grande maioria da FC brasileira,
por isso selecionei a definição geral e quase totalmente inclusiva dada por Robert
Heinlein: “literatura especulativa”. Esta definição permite a inclusão de assuntos tão
variados quanto o vodu (“Caso de Feitiçaria”, de Carneiro), espiritismo (“Comba
Malina”, de Dinah Silveira de Queiroz), hipnotismo (“O Homem que Hipnotizava”, de
Carneiro), utopias sexuais (Piscina Livre, de Carneiro), e mitologia (“O Rapto de
Marilda, de Levy Menezes, e “O Cinturão de Hipólita”, de Guido Wilmar Sassi)
(DUNBAR, [s.d. [2] ], p. 150 – 151).
Dentre os assuntos erroneamente apontados por Dunbar como inaplicáveis ao
distanciamento cognitivo, chama atenção o que ele nomeia de “utopias sexuais”. Ora, a
utopia e sua variedade subversiva, a distopia, são dos mais claros exemplos do efeito
proposto por Suvin, como este menciona em numerosas passagens de Pour une poétique
de la science-fiction – questão a ser retomada e aprofundada no próximo capítulo deste
trabalho.
Além disso, conforme já observamos, o que categoriza a parcela cognitiva do
distanciamento cognitivo não é, pura e simplesmente, a presença de ciência, como diz
Dunbar, mas o reflexo de uma forma de observar e conceber o mundo. Portanto, a
29
O trabalho do norte-americano Dunbar merece crédito pelo pioneirismo em abordar a ficção científica
brasileira. Sua tese foi defendida em 1976, junto à Universidade do Arizona. A tradução utilizada é de
autoria de Roberto de Sousa Causo.
41
exploração de cada um dos temas apontados por Dunbar (vodu, espiritismo,
hipnotismo
30
e mitologia) pode, ficcionalmente, se revestir de lógica cognitiva.
Exemplifiquemos o ponto com Um Caso de Feitiçaria. No conto, é apresentado
um triângulo amoroso entre o protagonista, Roberto, o cientista Escobar e a esposa
deste, Marina. A história é contada por um homem em uma roda de amigos. Hospedado
na casa à beira-mar de Escobar, Roberto acaba por se envolver com a esposa de seu
amigo. A despeito da inquietação que sente em trair o amigo, Roberto leva o caso
adiante. Com o passar do tempo, uma forte dor na perna passa a acometê-lo, e ele
desconfia estar sendo vítima de uma maldição vodu. Escobar, pois, é um cientista com
interesses e pesquisas peculiares:
Grande parte das suas investigações baseava-se no seguinte: Antigamente a ciência não
se ocupava com ritos e milagres pretensamente realizados por feiticeiros, curandeiros.
Eram considerados superstição grosseira ou mistificação. Depois desenvolveu-se a
psicologia, apareceu a psicanálise, Pavlov etc. Já se admitia que um “mau olhado”
atuasse, que u’a maldição voodoo pudesse até matar alguém. Aceitava-se que uma
poderosa “sugestão”, desenvolvida pela vítima, acabaria interferindo no sistema nervoso
central, provocando uma espécie de auto-hipnose destruidora. Ou, segundo os
psicanalistas, um complexo de culpa agia no subconsciente e o indivíduo definhava
porque se “punia” com a maldição. (...) Os senhores sabem que a transmissão de
pensamento, a adivinhação, a telequinésia, já não são mais propriedade exclusiva dos
testemunhos discutíveis de cartomantes e seitas religiosas. Reconstitui-se e provoca-se o
fenômeno no ambiente imparcial de laboratório, onde máquinas fotográficas,
gravadores e computadores eletrônicos é que darão as respostas sobre os resultados, já
que nossos sentidos são frágeis e ilusórios (CARNEIRO, 1966, p. 27-28).
Uma segunda explicação acerca do ritual vodu é apresentada pelo próprio
Escobar, dado que apenas aumenta, posteriormente, os temores de Roberto: “‘De uma
coisa estou certo’, explicava o professor, ‘este boneco só atua se a pessoa que o
manipula estiver com um sentimento forte de ódio ou destruição e acreditar na sua
eficiência. Quanto à vítima, não importa se crê ou não’” (CARNEIRO, 1966, p. 31).
Roberto, contudo, tem dificuldades em aceitar que o amigo, um homem culto e
aparentemente avesso a quaisquer práticas de povos ditos selvagens, fizesse uso de
30
A inclusão do hipnotismo como tema “não científico” é enigmática.
42
rituais vodu para atingi-lo. Marina, por outro lado, diz que as dores na perna de Roberto
são, sim, causadas pela manipulação de um boneco vodu por Escobar. Antes que o
impasse possa ser resolvido, Escobar sofre um derrame cerebral e logo vem a falecer.
A casa praiana é, então, abandonada, e Marina se muda para a capital com
Roberto. Certa tarde, ainda acometido pelas dores na perna, Roberto retorna à casa e
vasculha as gavetas de Escobar, motivado pela “imagem do boneco voodoo, a perna
atravessada por alfinetes” (CARNEIRO, 1966, p. 43). Depois de arrombar uma gaveta
cujas chaves não conseguira encontrar, Roberto encontra um objeto enrolado em um
lenço de seda. “Antes de vê-lo, sabia pelo tato que o encontrara. O boneco voodoo
estava em sua mão, intacto. Duas agulhas atravessavam, de lado a lado, sua cabeça”
(CARNEIRO, 1966, p. 44).
No dia seguinte, Roberto mostra o boneco a Marina:
Marina olhou o boneco, tocou nas agulhas, levantou os olhos: Roberto, você não está
pensando que ele morreu por causa disto, não? Roberto não respondeu. Ela pegou o
amante pelo braço, argumentou como qualquer pessoa o faria: Era impossível uma
pessoa civilizada atingir uma outra usando bonecos voodoos. Sim, era verdade, ela
inventara aquilo da perna, acusara o professor, mas porque amava Roberto, estava
desesperada por ele (e começou a chorar), usaria qualquer recurso para fugirem, para
incompatibilizá-lo com o professor, qualquer recurso, qualquer recurso... (CARNEIRO,
1966, p. 44-45).
Encerrada a história, a roda de amigos se dispersa. “Ficamos, eu e o narrador,
recostados, sem uma palavra. Daí a pouco disse ‘boa-noite’ e saiu para o corredor. Só
então percebi que ele claudicava levemente” (CARNEIRO, 1966, p. 45).
No quadro imaginário de Um Caso de Feitiçaria, duas explicações, ambas
calcadas na cognição (adotando o jargão de Suvin), são oferecidas para o ritual vodu. A
primeira é referida como derivada da psicanálise: a vítima entra em um estado de auto-
hipnose e pune a si própria, graças à “sugestão” externa. A segunda, ao que parece, é
ligada à chamada “parapsicologia”: o poder mental de quem maltrata o boneco,
43
amparado numa forte crença no ritual vodu, age sobre a vontade da vítima
31
. Ambas
devem ser levadas em consideração em nossa discussão do conto.
Roberto, lembremos, nunca encontrou qualquer boneco vodu que justificasse a
dor em sua perna, mas fora sugestionado a acreditar que era essa a razão para o mal.
Dadas as menções ao mecanismo mental de autopunição, parece ser o caso do
protagonista: atormentado pela própria traição ao amigo, inconscientemente Roberto
teria encontrado nas pesquisas de Escobar os meios para se punir.
Quanto ao derrame cerebral, melhor cabe a outra explicação para o ritual vodu,
oferecida no conto pelo próprio Escobar. Se atentarmos para o boneco encontrado na
gaveta arrombada, com alfinetes enfiados na cabeça, parece verossímil que Marina
tenha, por meio do ritual, canalizado seu “sentimento de destruição” e seu desejo de
ficar com o amante.
Nesse intercalar de justificativas psicanalíticas e “parapsicológicas” para o ritual
vodu, o conto toma uma temática típica de gêneros distanciados não cognitivos e a
reveste de lógica cognitiva, transformando-a em um novum, um thought experiment
característico da ficção científica
32
. A feitiçaria, prática supersticiosa que implica uma
concepção animista da natureza, seria passível de expressar o efeito de unheimlich, mas
no conto de Carneiro as referências a um conhecimento sistematizado (“científico”)
impõem um olhar e um efeito distintos
33
.
31
O conto serve de exemplo para uma questão já mencionada neste trabalho: ficcionalmente não há
distinção, nos textos de André Carneiro, entre os temas ligados à parapsicologia e os ligados à ciência
instituída como tal. Como pode ser observado, a justificação psicanalítica é posta lado a lado com a
parapsicológica, ambas apresentadas com similar lógica cognitiva.
32
Em Crônicas do André, há uma notação do autor que acaba por corroborar nossas proposições acerca
do conto: “Meu conto Um Caso de Feitiçaria trata de fenômenos parapsicológicos, com uma característica
que imagino muito rara. É um tema de feitiço e feitiçarias, não praticadas por pessoas incultas, mas por
cientistas em ambientes os mais civilizados” (CARNEIRO, [s.d. [1] ], p. 59).
33
Trata-se de um caso distinto do que nos coloca o conto Os Sonhos na Casa Assombrada, de H. P.
Lovecraft. Enquanto o conto do norte-americano ficcionalmente concilia o animismo e o “científico”, o
de Carneiro privilegia o “científico”.
44
Um Caso de Feitiçaria, assim, transforma em matéria para ficção científica uma
temática mais comumente relacionada ao unheimlich. Para tanto, porém, a feitiçaria
perde o que lhe é característico, sendo privilegiada a cognição. Assim, ao invés de
expressar o unheimlich freudiano, o conto expressa o distanciamento cognitivo de
Suvin: por meio de um novum, propõe uma reflexão acerca da própria natureza do
homem que, selvagem ou civilizado, culto ou não, comete traições e não hesita em
atacar pelas costas para conseguir o que deseja.
Dessa forma, amparados nos elementos que, em Um Caso de Feitiçaria,
deslocam o efeito do não-cognitivo para o cognitivo, podemos mais uma vez nos
certificar da eficácia das proposições de Suvin para o estudo de textos de ficção
científica. Sua teoria, pois, bem elucida porque Um Caso de Feitiçaria pode ser lido
como ficção científica, ainda que abordando rituais vodu.
1.5 – As viagens no tempo e o distanciamento cognitivo
As proposições de Suvin podem nos ajudar a discutir um importante traço do
enredo de Amorquia: as viagens pelo tempo realizadas por algumas das personagens.
Como os viajantes do tempo vêm de um lugar sem tempo, as viagens pouco têm em
comum com aquelas narradas, por exemplo, em A Máquina do Tempo, de H. G. Wells,
e em Um Som de Trovão, de Ray Bradbury.
No texto O autor e sua obra, publicado em Amorquia, Luiz Marcos da Fonseca e
Silvio Alexandre Ferreira Neto observam:
45
Com um fino senso crítico, Carneiro, em rápidos flash-backs, nos mostra
pedaços do dia a dia do nosso contexto atual. Seria uma viagem no tempo dos
protagonistas? Uma visão onírica do passado? O passado trazido até o presente
sensorialmente por uma tecnologia avançada? A resposta André Carneiro deixa
para o leitor (NETO; FONSECA, 1991, p. 192).
Essas supostas viagens temporais parecem ter se tornado um lugar-comum no
universo ficcional do romance, já que a mecânica que permite o feito não provoca
nenhum estranhamento nas personagens. Observemos, a seguir, quatro exemplos
extraídos de Amorquia. Embora apresentem circunstâncias e conseqüências distintas,
sua análise conjunta colabora para discutir como se processa, ficcionalmente, a viagem
temporal no romance.
A personagem Philte principia seu passeio por diferentes tempos históricos no
trecho a seguir:
Philte fazia sua peregrinação anual. A estrada só para pedestres subia e descia
os morros, toda ladeada de árvores floridas. Quando a brisa era mais forte, as pétalas
caíam como neve seca.
Ela caminhava devagar, ajustando o medidor na nuca. Desta vez, conseguira
uma comunhão com as coisas tão perfeita como a do ano anterior.
Em alguns momentos, um pensamento mórbido fazia-lhe arrepiar os braços.
Ela diminuía o andar, olhando as montanhas no horizonte, os olhos parados. Havia
nichos plásticos para descanso e Philte preferia usá-los quando as pernas doíam; assim,
dormia sem pensar em nada.
A zona das emoções estava perto. Philte saiu da estrada, atravessou um campo
limpo e penetrou na floresta de árvores seculares. Seguindo uma trilha, às vezes
enredada de cipós, parava para olhar para cima, na descoberta de pássaros ou macacos.
Na frente havia uma clareira. Philte andou devagar e saiu da trilha,
aproximando-se sem ser vista. Havia alguns abrigos feitos de folhas secas de palmeiras.
Philte sentiu odor de matéria em decomposição. Três mulheres e dois homens estavam
ao lado do abrigo (CARNEIRO, 1991, p. 33).
Assim, com nada além do “medidor na nuca” para justificar a suposta viagem no
tempo, Philte se depara com habitantes de outras épocas. Quando ela enxerga algo que
mexe com suas concepções, retorna à estrada, que pode ser entendida como um porto
seguro para os peregrinos como Philte. As bifurcações levariam, assim, a outros
períodos históricos. Em todos eles, a personagem se depara com violência e barbarismo
46
que é incapaz de compreender e que lhe perturbam os (pré)conceitos. Seria esse o
motivo de se chamar “peregrinação” o longo passeio de Philte? Parece-se, pois, com
uma jornada à procura de conhecimento e, também, de auto-avaliação.
Outro significativo exemplo extraído do romance é a viagem feita pelas
personagens Karlow e Játera. Um dos poucos indicativos de que a ação não se passa
mais no futuro é o ambiente em que se encontram. Embora parecido com o nosso tempo
histórico, suas características parecem apocalípticas à personagem Játera:
Milhares de arranha-céus, um ao lado do outro. O sol não chegava às ruas
estreitas espremidas lá em baixo. Na avenida mais larga, asfaltada, havia uma fila de
árvores raquíticas no centro, com as folhas escuras de pé negro. Oito filas de
automóveis andavam lentas, de cada lado, junto com ônibus, caminhões e pequenos
carros elétricos. Uma multidão circulava pelas calçadas, algumas pessoas acotovelando-
se, apressadas. Muitas parando para olhar as vitrines iluminadas em pleno dia.
Karlow e a jovem policial estavam parados, ao lado de um poste. Ela olhava
para cima, onde centenas de fios se cruzavam, e depois continuavam ao longo da
calçada por cima das cabeças dos transeuntes.
- São perigosos esses fios, não são?
- Sim, é claro, por eles passa eletricidade – falou Karlow, sorrindo.
- Não caem por cima das cabeças da gente?
- Não, eles não caem, perigosos mesmo são esses veículos.
- Por que eles buzinam tanto? (CARNEIRO, 1991, p. 46).
Se no exemplo anterior havia a menção ao “medidor”, desta vez o novum que
tornaria possível uma viagem pelo tempo está ausente. A personagem Játera, um pouco
como Philte no exemplo anterior, se acha desamparada frente à mera possibilidade de
perigo físico. Conforme já foi referido, no futuro configurado em Amorquia a
humanidade é dócil e incapaz de qualquer gesto de agressividade. Assim, as
personagens do futuro são retratadas de forma algo ingênua e inocente, talvez em razão
do jugo paternalista do Computador Central e do conforto e da segurança de que gozam
no mundo de onde vieram.
O próximo caso é talvez o mais atípico em todo o romance, e formalmente o
mais ousado contraponto da obra. Mais uma vez, é nebuloso o novum que viabiliza o
fenômeno:
47
Levantaram-se. Karlow vestiu o capacete e ajudou Philomene:
- Está mesmo disposta? – Philomene sorriu.
Entraram no palco.
A igreja estava cheia. Todos se agrupavam no corredor central, que separava os
bancos, onde cordas deixavam livre a passagem. Todas as lâmpadas acesas. Nos altares
os santos estáticos olhavam com olhos parados, os ombros escuros de poeira. Tudo
brilhava em dourado e a multidão estremeceu quando a porta principal se abriu. A moça
descera do carro bem em frente à porta, muitos a ajudaram, o vestido branco foi ajeitado
e composto, ela riu com os músculos presos, olhava para os lados com esforço para se
fingir à vontade. Lá em cima alguém debruçado no balcão deu um sinal. A música
encheu a igreja, todos ficaram excitados, juntando-se nos dois lados da passagem
central, olhando o cortejo que vinha lentamente da porta. Na frente, ela e um senhor de
cabelos brancos, passo a passo, ambos perturbados, mas sentindo-se muito importantes
(CARNEIRO, 1991, p. 85).
O que se segue à cena do casamento é um mergulho na vida do casal; Karlow e
Philomene, ao que parece, apenas observam o passado. Por várias páginas, o romance se
volta para as núpcias do casal, repletas de complicações derivadas da inépcia em lidar
não apenas com o ato sexual em si, mas também com o próprio relacionamento afetivo.
Parece-nos que o narrador volta sua crítica, no segmento em questão, a imposições
sociais arcaicas que levam, nas núpcias, à não-compreensão do outro e, até, à hipocrisia
na forma de lidar com o desejo e a afeição – o trecho que encerra o segmento aponta
para esse sentido. O narrador se dirige à recém-casada, numa técnica narrativa que
perpassa toda a lua-de-mel:
Você pensa consigo própria que está casada, tem um marido e não é mais
virgem. Hoje vocês vão passear de barco. Você olha os rapazes lá embaixo, eles correm,
gritam e dão gargalhadas.
Alguma coisa está faltando para você. O remédio não é, você já tomou. Você
se olha no espelho, talvez um pouco de pintura, mas isso não é, também. Você volta a
espiar no vitrô, o rapaz loiro olha para cima, você desvia os olhos, torna a olhar, seria
impossível que ele a tivesse notado. Você repara no calção dele, é fácil imaginá-lo nu.
Você sente uma vontade meio inexplicável e você resolve admitir que deveria ser muito
bom se você pudesse arranjar um amante (CARNEIRO, 1991, p. 94).
O último exemplo em que nos deteremos é um daqueles que sugerem que as
viagens temporais nada mais são do que uma reprodução sensorial do passado, como
aludem Silvio Alexandre e Fonseca. Observemo-lo do princípio ao fim:
48
Do lado de fora, deveria fazer mais de quarenta graus centígrados.
Todos os veículos tinham ar condicionado. Avançavam em boa velocidade,
centenas e centenas, a poucos metros um do outro. A estrada que atravessava o deserto
era só deles. Dia e noite eles iam e vinham, na tarefa de enterrar os corpos.
As escavadeiras faziam valas largas, algumas com quilômetros de
comprimento. No início, os tratores empurravam os corpos para dentro e os outros
cobriam de terra. Agora, as pilhas de corpos enrijecidos vinham amarradas. Um
pequeno guindaste transportava toda a carga em duas ou três operações, para dentro da
cova, aproveitando melhor o espaço e sem fazer desabar as bordas do buraco.
- Vinham em trens fechados, você sabe; trens, correndo em trilhos, com vagões
cheios de gente.
- E não morriam nesses trens?
- Mais de 25%. Quando chegavam ao destino, separavam os homens das
mulheres em duas grandes filas.
- Por quê?
- Naquele tempo homens e mulheres eram considerados coisas que não se
podiam misturar, a não ser na cama, naturalmente.
- E depois?
Diziam-lhes que tinham de tirar a roupa. Que tomariam um banho, que seriam
encaminhados para seus destinos. Todos ficavam nus e entravam nos banheiros
coletivos. Fechavam hermeticamente a porta e dos chuveiros vinha um gás mortífero.
Depois iam para os fornos e eram cremados. Mataram seis milhões, assim e de outras
maneiras.
-Que espécie de seleção?
-Nenhuma. Sendo judeus, morriam.
-Mas, os inteligentes, os aproveitáveis?
-Esses morriam mais depressa ainda. Não era seleção científica,
aproveitamento genético. Apenas ódio coletivo, alimentado por um psicótico.
-E depois?
-Vocês terão de estudar. Milhões de drosófilas são liquidadas rapidamente para
se aprender as heranças genéticas, a seleção na agricultura, a seleção humana.
-Seis milhões de mortos sem seleção?
-Verdadeiro crime. Pelo menos três ou quatro milhões eram constituídos de
exemplares muito bons. Foram totalmente desperdiçados (CARNEIRO, 1991, p. 116).
Aparentemente, nesse caso, presenciamos uma atípica aula; há alguém que
detém um saber e há aqueles que inquirem quando dúvidas surgem. O que chama a
atenção para o fato de que o passado está sendo reproduzido sensorialmente, ao invés de
factualmente observado, são pequenas distorções com relação ao que é histórica e
empiricamente aceito. Veículos com ar condicionado em pleno holocausto nazista?
Curioso que, embora as personagens do futuro julguem o massacre dos judeus
uma abominação, o que os leva a pensar assim é alheio ao que hoje se toma por
humanamente aceitável. Como no futuro configurado o homem alcançou um apogeu
físico e, talvez, intelectual, práticas eugênicas não são mais vistas como desumanas.
49
São, antes disso, um meio para alcançar uma hipotética e fugidia perfeição. Um
exemplo no romance que ressalta esse traço é o momento em que Pércus é convidado a
conceber uma criança com a personagem chamada de Marta. Considera o fato de ter
sido escolhido uma honra, já que apenas “exemplares perfeitos” são convocados.
O principal ponto em comum dos exemplos apresentados é a função
contrapontual dos vislumbres do passado. Em contraposição estão mundos que não se
entendem, sendo ressaltada a dificuldade humana em compreender contextos
socioculturais distintos. No abismo cultural que separa as sociedades contrapostas, o
etnocentrismo é uma questão que vem à tona: uma cultura que se põe como superior não
consegue “se pôr no lugar” de outras, julgando-as “erradas”.
Como é habitual na ficção científica de Carneiro, em Amorquia não há ênfase na
extrapolação tecnológica, ênfase presente no que Allen chamaria de ficção científica
hard. Discutindo o conto A Escuridão, de Carneiro, Mary Elizabeth Ginway acaba por
expandir suas observações para boa parte da ficção científica brasileira:
A história certamente sofre de um alto grau de implausibilidade científica. Além do
inexplicável desaparecimento e reaparecimento do sol, há o fato intrigante de que a
Terra permanece quente durante o hiato de dezoito dias do sol. A tolerância desse alto
grau de implausibilidade na ficção científica brasileira sublinha a de-ênfase na ciência, e
o correspondente destaque dado aos temas humanistas (GINWAY, 2005, p. 243).
Mais do que implausibilidade científica, em Amorquia se observa uma
voluntária indefinição na extrapolação tecnológica. Como foi observado nos exemplos
do romance, há pouca ou nenhuma menção a artefatos que possibilitariam a viagem pelo
tempo. Assim, enquanto Wells usa a máquina do tempo como “veículo” para a
extrapolação sociológica, uma vez que o foco em seu romance são também os temas
humanistas de que fala Ginway, em Amorquia tal “veículo” é enevoado ou apagado. Em
outras palavras: enquanto em A Máquina do Tempo o artefato tecnológico é o novum
50
que abre caminho para outro, a extrapolação sociológica, em Amorquia o novum, no que
concerne às viagens temporais, não é outro senão o próprio vislumbre do passado, o
próprio contraponto.
1.6 - O “besouro metálico” de Philte
Em Amorquia, há um exemplo de distanciamento cognitivo tão efetivo quanto os
anteriores. Aproveitemos para traçar, também, considerações de outra categoria sobre o
quadro imaginário do romance. Observemos o trecho que segue:
Ele entrou sem bater. A sala ampla tinha uma bela escultura no centro. Parecia
um ovo cortado ao meio com uma saliência na frente. Era oca por dentro. Tinha visores
transparentes na frente, nos lados e atrás. rcus aproximou-se. Era uma belíssima peça
antiga, bem-conservada e brilhante, sustentada por quatro rodas cheias de ar.
Uma jovem desceu pelo escorregador e sorriu para Pércus:
- Que tal? É um exemplar bem-conservado.
- Belíssimo, todos esses suportes prateados parecem novos.
(...)
Pércus voltou a examinar a escultura no meio da sala. Balançou-a um pouco; as
molas rangeram.
- Ele deveria balançar muito quando andava.
Philte mostrou para Pércus os bancos acolchoados e a direção redonda à
esquerda, que servia para comandar as rodas.
Pércus abriu a porta, fechou-a novamente e ouviu um ruído seco, mas não disse
nada (CARNEIRO, 1991, p. 17-18).
Além de servir como um exemplo de distanciamento cognitivo, o automóvel
tomado como escultura ilustra algumas das questões que Amorquia põe em cena. Temos
um artefato que é para nós corriqueiro, descrito de forma distanciada, sob o ponto de
vista de alguém não familiarizado com automóveis.
51
Conforme já foi dito, o futuro configurado é estático. Por diversas vezes, as
personagens manifestam a sensação de que não restou nada para se fazer no mundo,
como numa das falas da personagem Karlow: “Quando poderemos invadir o futuro
como invadimos o passado?” (CARNEIRO, 1991, p. 101). Ou seja: invadem o passado
com suas viagens pelo tempo, mas do futuro nada podem esperar, já que nada mais há
para ser construído. Outra passagem que bem exemplifica a questão é a que segue:
- Antigamente podia-se fazer muitas outras coisas.
- Fazer o quê? – perguntou a moça.
- Sei lá; caçar feras nos continentes inexplorados, trabalhar com as mãos de manhã até a
noite, entrar em alguma guerra, ajuntar dinheiro(CARNEIRO, 1991, p. 142).
Assim, a forma com que as personagens encaram o passado pode ser ilustrada
pelo automóvel que Philte possui em sua sala e pela reação de Pércus a ele. A cena
ilustra o beco-sem-saída em que se encontram as personagens. Se não há mais futuro, de
que forma a problemática compreensão do passado, nunca plena, pode apresentar
soluções? Que benefícios pode trazer a contemplação de um automóvel num mundo
onde todos se locomovem pelos chamados rolantes, esteiras que cruzam as vias e levam
para onde quer que se deseje?
Há uma resposta para Philte e para as outras personagens que integram o esboço
de revolução narrado no romance. A própria contemplação do passado, bem como o uso
de quaisquer relíquias, é tomada como gesto subversivo no futuro de Amorquia. São
lembretes, afinal, de que o tempo existe e de que as coisas não foram sempre tão
estagnadas.
Assim, tanto as viagens no tempo quanto a escultura de Philte, um objeto criado
para fins práticos que acaba por servir apenas para contemplação, são, para as
personagens, exercícios de distanciamento análogos ao efeito provocado pelo romance.
52
Enquanto Amorquia coloca em cena questões contemporâneas à sua escrita, por meio do
exagero e da projeção em um futuro longínquo, as personagens do romance buscam
justamente reavaliar o mundo em que vivem através da comparação com as sociedades
do passado.
As considerações acerca da ficção científica e de Amorquia traçadas neste
capítulo, acreditamos, bastam para justificar a inclusão do romance no gênero, bem
como apontar algumas de suas particularidades. Embora o parentesco temático com
outros textos do gênero seja evidente, já que o romance configura um futuro longínquo
repleto de tecnologia avançada, propomos neste trabalho que Amorquia pode ser lido
como ficção científica principalmente por provocar o distanciamento cognitivo. Afinal,
de acordo com Suvin, o efeito pode ser tomado como “suficiente e necessário” para que
um texto seja chamado de “ficção científica”.
Para que aprofundemos nossa discussão acerca do quadro imaginário de
Amorquia, cuidaremos, no próximo capítulo, das relações entre o romance e aquela que,
para Darko Suvin, constitui o subgênero sociopolítico da ficção científica, a utopia.
Dessa forma, poderemos melhor embasar nossa discussão acerca do prazer sexual
sancionado no quadro imaginário de Amorquia, temática em grande relevo na obra.
53
CAPÍTULO 2 – AMORQUIA E LITERATURA UTÓPICA
2.1 – Utopia como construção verbal
A Utopia, de Thomas More, é tomado como texto matriz do que aqui chamamos
de “literatura utópica”. Ponto pacífico entre os textos teórico-críticos a respeito da
utopia de que tratamos neste capítulo, como Narrating Utopia, de Chris Ferns, e
Modern Utopia: a reading of Brave New World, Nineteen Eighty-Four, and Woman on
the Edge of Time in the light of More’s Utopia, de Daniel Derrel Santee, é o caráter
fundacional do texto de More.
O termo utopia, cunhado por More para nomear a ilha imaginária de que sua
obra trata, já é, por si só, bastante significativo. Chris Ferns, em Narrating Utopia,
busca na etimologia da palavra uma definição operacional que lhe sirva de ponto de
partida:
O termo “utopia” (...) incorpora um jogo de palavras; a formulação de Sir Thomas More
é deliberadamente ambígua em sua derivação. Sua raiz pode ser ou-topos – “lugar
nenhum”, ou eu-topos – “lugar bom”. Pode-se definir utopia como um lugar bom, uma
sociedade ideal (ou, ao menos, mais perfeita), mas, ao mesmo tempo, um lugar que não
existe – desejável, talvez, mas ao mesmo tempo inalcançável. Nas ficções utópicas, isso
é refletido na localização da sociedade, quase invariavelmente remota ou bem isolada
do mundo real para o qual propõe uma alternativa. More e Francis Bacon são apenas
dois dos muitos autores que situam suas utopias em ilhas.
34
34
Tradução de “The term ‘utopia’ (...) embodies a pun; Sir Thomas More’s coinage is deliberately
ambiguous in its derivation. Its root may be taken as either ou-topos – ‘no place’, or eu-topos – ‘good
place’. Utopia then, may be defined as both a good place, an ideal (or at any rate , more perfect) society,
yet at the same time one that does not exist – desirable, perhaps, but at the same time unattainable. In
utopian fictions this is reflected in the society’s location, almost invariably remote or well insulated from
the actual world to which it proposes an alternative: More and Francis Bacon are only two of the many
writers who place their utopias on islands” (FERNS, 1999, p. 2).
54
Ferns também observa que, especialmente a partir do século XIX, diversos
textos utópicos são ambientados em um futuro distante ou, até, em outros planetas –
dado que já põe em cena a relação entre a utopia e a ficção científica, questão a ser
aprofundada nos tópicos seguintes.
Uma definição de utopia análoga à de Ferns é aquela que nos oferece Darko
Suvin, no já citado volume Pour une poétique de la science-fiction. O teórico, como
Ferns, toma a palavra cunhada por More como ponto de partida para sua discussão
acerca da utopia literária. Sua definição é sucinta mas abrangente:
A utopia é a construção verbal de uma comunidade humana particular, onde as
instituições sócio-políticas, as normas e as relações individuais são organizadas segundo
um princípio mais perfeito que aquele encontrado na sociedade do autor. Tal construção
alternativa é fundada no distanciamento nascido da hipótese de uma possibilidade
histórica diferente.
35
Importante observar que a utopia discutida por Suvin é aquela constituída
verbalmente, uma manifestação literária. Para o teórico, “o ponto central, senão
primeiro e último, no atual debate sobre as utopias, é o fato que elas são, acima de tudo,
construções verbais, e que a fonte dessa noção se encontra dentro de um gênero literário
e seus parâmetros”.
36
A delimitação de Suvin nasce da preocupação com os rumos da crítica a respeito
das utopias literárias. Observa Suvin que muitos de seus contemporâneos e
predecessores cuidaram apenas da exeqüibilidade empírica e do valor moral da utopia
narrada.
35
Tradução de “L’utopie est la construction verbale d’une communauté humaine particulière, où les
institutions socio-politiques, les normes et les relations individuelles sont organisées selon un principle
plus parfait que dans la société de l’auteur, cette construction alternative étant fondée sur la
distanciation née de l’hypothèse d’une possibilité historique autre” (SUVIN, 1977, p. 57).
36
Tradução de “(...) le point central, sinon le premier ou le dernier, dans le debát actuel sur les utopies,
c’est le fait qu’elles sont avant tout des constructions verbales, et que la source de cette notion se trouve
dans um genre littéraire e ses paramètres” (SUVIN, 1977, p. 49).
55
Se a especulação crítica acerca da literatura utópica apresentava tal controvérsia
ainda em 1977, ano da publicação do referido volume de Suvin, hoje o tratamento é
mais homogêneo e parece tomar já como pré-requisito o caráter estritamente verbal da
formulação utópica literária. Narrating Utopia (1999), de Chris Ferns, é dos poucos
textos teórico-críticos aqui manipulados que se dão ao trabalho de repetir explicitamente
a delimitação, não sem referenciar o trabalho de Darko Suvin no que concerne aos
“perigos de olhar para a narrativa utópica como mero ‘molde literário’ dentro do qual a
teoria política utópica é jogada”.
37
2.2 – Utopia e (proto)ficção científica
Lidar com um texto de ficção científica como Amorquia por meio dos
paradigmas da literatura utópica se mostra uma escolha bastante natural. A esse
respeito, Darko Suvin observou:
Estritamente falando, a utopia não é um gênero, mas o sub-gênero sócio-político da
ficção científica. Paradoxalmente, isso é verificável devido ao desenvolvimento
moderno da ficção científica, que redefiniu retrospectivamente a utopia e a englobou na
ficção científica. Além disso, esse desenvolvimento é uma continuação por vezes
indireta da literatura utópica clássica e daquela do século XIX.
38
37
Tradução de “(...) dangers of regarding utopian narrative as merely ‘the literary mould’ into which
utopian political theory is poured” (FERNS, 1999’, p.237).
38
Tradução de “Strictement parlant, l’utopie n’est pás um genre,. Mais sous-genre sócio-politique de
la science-fiction. Paradoxalement, cela n’aparaît qu’à la faveur du développement moderne de la
science-fiction, qui redéfinit rétrospectivement l’utopie em l’englobant dans ce genre. En outre, ce
développement est une continuation parfois indirecte de la literature utopique classique et de celle du 19°
siècle” (SUVIN, 1977. p. 69).
56
A relação entre ficção científica e utopia já fora anunciada por Suvin em sua
definição da utopia, na qual o distanciamento e a “hipótese de uma possibilidade
histórica diferente” encontram lugar de destaque. Ora, se o distanciamento nasce da
análise da História e da formulação de caminhos históricos alternativos, ele pode ser
tomado como cognitivo. Nesse sentido, a utopia deve, para Suvin, ser encarada como
uma espécie de ficção científica: ambas expressam o mesmo efeito, o distanciamento
cognitivo.
Essa redefinição retrospectiva aludida por Suvin nos traz à memória a acrítica
mas intuitivamente feliz reavaliação de autores como Poe, Wells e Verne operada por
Hugo Gernsback
39
, já que em ambos os casos determinada concepção de ficção
científica leva a um novo olhar sobre textos pregressos.
Observemos, também, que o englobamento da utopia pela ficção científica pode
ser estendido à crítica, tornando possível o uso da rubrica ficção científica utópica e,
também, que se encare como protoficção científica a Utopia, de Thomas More, e
Gulliver’s Travels, de Jonathan Swift, por exemplo.
Uma opção apresentada para lidar com as utopias recuadas no tempo é a rubrica
“protoficção científica”. Raul Fiker aponta que o prefixo
‘[p]roto’ é um elemento de composição vindo do grego ‘prôtos’, que significa
‘primeiro’ ou ‘primitivo’. A expressão é muito usada pelos genealogistas – maníacos ou
não – da ficção científica e se refere a manifestações, anteriores ao surgimento do
gênero, de formas e tradições cujos temas e métodos foram posteriormente adotados
pela ficção científica (FIKER, 1985, P. 25)
Já foi mencionada a categorização scientific romance como a forma com que era
identificada pelos leitores a ficção de Jules Verne. Cabe lembrar, assim, que “[é] justo
39
A reavaliação de Gernsback é aqui chamada de acrítica pelo simples motivo de que ele jamais se
propôs a ser um crítico literário. Era, antes de mais nada, um editor atento ao seu público alvo.
57
afirmar (...) que a ficção científica já existia como scientific romance desde a primeira
metade do século XIX. E a continuidade entre uma e outra é direta e sem interrupção”
(CAUSO, 2003 [1], p. 52). Ou seja, muda a nomenclatura, continua a tradição.
Para Roberto de Sousa Causo, a concepção do termo protoficção científica é
[...] problemática por inúmeras razões. Não obstante, alguns observadores propõem que
tudo o que se assemelhava à ficção científica, mas produzida antes da denominação do
gênero, seria definido como ‘protoficção científica’” (CAUSO, 2003 [1], p. 51).
Problemática porque, como o próprio Causo aponta, a ficção especulativa
(classificação que abrange a ficção científica, a fantasia e o horror, gêneros que
especulam sobre as fronteiras da realidade) sempre existiu. Encaremos a rubrica
protoficção científica como conveniente àquele que pretende assinalar peculiaridades da
“ficção científica” produzida em diferentes épocas.
Quanto a parentescos recuados, André Carneiro aponta, em Introdução ao
estudo da science-fiction, variados “precursores” da ficção científica. Entre outros
exemplos, Carneiro aponta os escritos de Neferkphta, escriba de Ptolomeu, Plutarco (46
a 120 d.C.), Johannes Kepler (1571-1630), Francis Godwin (1562-1633), John Wilkins
(1614-1672) e Cyrano de Bergerac (1620-1655).
Sobre Bergerac, vinda de Italo Calvino, é a observação: “[Cyrano] merecia ser
mais lembrado, não só como o primeiro e verdadeiro precursor da ficção científica, mas
por suas qualidades intelectuais e poéticas” (CALVINO, 2005, p. 33. Grifo nosso).
Embora sejam inúmeros os autores que, pelas mesmas razões de Bergerac, podem ser
chamados de precursores, Calvino não explicita que critérios adota para fazer tal
julgamento do francês, deixando que sua observação soe como mera frase de efeito.
Talvez Calvino se referisse ao fato de Cyrano
58
[...] ter tido o que Asimov chamou de “um notável lampejo de intuição”, ao explicar que
se poderia ligar foguetes a uma nave para chegar à Lua, visto que o princípio do foguete
depende da Terceira Lei do Movimento, enunciada por Isaac Newton em 1687, após a
morte de Cyrano, portanto. Asimov refere-se a esse fato como “a mais notável visão
individual da história da ficção científica”. H. G. Wells também citou Cyrano de
Bergerac , juntamente com Luciano de Samosata, como precursores de seus métodos
(SCHOEREDER, 1986, P. 17-18).
Se assim pode ser explicada a intenção de Calvino, ainda mais problemática é
sua observação, pois a ficção científica não deve ser encarada como antecipação
científica, apenas. Se a ficção científica for tomada meramente como antecipação e
estiver vinculada necessariamente à realidade científica, existe o perigo de repetir os
hoje superados ataques feitos por Jules Verne a H. G. Wells, já refutados no capítulo
anterior deste trabalho. Frisemos o ponto, a fim de não retomar visões estereotipadas :
os elementos proto aqui levados em consideração não se referem, necessariamente, à
antecipação científica.
A respeito da antiguidade da ficção científica, Gilberto Schoereder recorre ao
escritor de ficção científica Lloyd Biggle:
O homem primitivo habitava um mundo onde até uma simples brisa despertava uma
interrogação, e o faiscar de um relâmpago constituía uma ameaça de condenação. Ele
não reconhecia as suas fantasias como se fossem ficção científica, mas elas eram-no. O
homem especula inevitavelmente sobre o desconhecido com base do que dele é
conhecido, e a palavra ‘ciência’ significava originalmente ‘conhecimento’. Ao longo de
toda a história da humanidade, cada idade produziu uma ‘ficção científica’ que refletia a
tecnologia e o pensamento dessa mesma idade. Assim, aqueles que hoje são chamados
de escritores de ficção científica são considerados como sendo os mesmos homens que,
durante toda a história da humanidade, especializaram-se no sonho e na imaginação,
tentando dessa forma responder às perguntas referentes ao que lhes estará reservado no
futuro, o que há além das estrelas, ou para além da vida. (SCHOEREDER, 1986, p. 15)
Assim, segundo tal ponto de vista, o que chamamos de ficção científica não seria
nada mais do que a ficção científica de nossa idade, e é feito uso do termo protoficção
59
científica como conveniência crítica, a fim de diferenciar cronologicamente a ficção
científica atual das anteriores. O ponto de vista antagônico vem dos críticos que “dizem
que essa tentativa de envelhecer a ficção científica serviria apenas para justificar
literariamente o gênero, conquistando alguns ancestrais que, no entanto, são totalmente
estranhos à ficção científica” (SCHOEREDER, 1986, p. 16).
Para Adam Roberts, textos anteriores ao século XV que apresentam o espaço
sideral como ambientação não devem ser chamados de ficção científica:
Chamar esses trabalhos de ficção científica (embora alguns críticos o tenham feito) é
equivocado não porque a ciência subseqüente provou que suas visões do cosmo eram
erradas. A ciência está sempre provando que as visões dos autores de ficção científica
são erradas; era, por exemplo, uma convenção de boa parte da ficção científica do
começo do século XX que além das nuvens de Vênus havia um vasto oceano, mas a
descoberta subseqüente de que Vênus é, na verdade, um árido, ácido e superaquecido
planeta não exclui esses trabalhos do clube da ficção científica. O problema com a
versão do espaço sideral anterior a 1600 é que ele era concebido como um reino puro e
religioso, uma série geocêntrica de esferas da qual apenas a mais baixa (a nossa) era
sujeita à mudança, e tudo acima do nível da Lua era incorruptível, eterno e divino.
40
Essas proposições de Roberts são de particular importância para o presente
trabalho, já que podem ser satisfatoriamente articuladas à idéia de que a ficção científica
é a literatura do distanciamento cognitivo. O retrato do espaço sideral como reino da
perfeição, além de não ser construído com base no que Suvin chama de lógica cognitiva,
não traz consigo referências a um conhecimento sistematizado, científico. Dessa forma,
esses textos pré-1600 aludidos por Roberts estariam mais ligados aos gêneros
distanciados não cognitivos que à ficção científica, graças à concepção animista de
universo que neles encontra ressonância.
40
Tradução de “The reason why it is distorting to call these works science fiction (although some critics
have done so) is not that subsequent science has proven their visions of cosmos wrong. Science is always
proving the visions of SF authors wrong; it was, for instance, a convention of much early twentieth-
century SF that beneath the clouds of Venus lay a vast ocean, but the subsequent discovery that in fact
Venus is an arid, acidic and superheated planet does not eject those earlier works from the club of SF.
The problem with the pre-1600 version of outer space was that it was conceived as a pure and religious
realm, a geocentric series of spheres of which only the lowest (ours) was subject to change, and
everything above the level of the Moon was incorruptible, eternal and godly” (ROBERTS, 2006, p. 39).
60
De acordo com a perspectiva privilegiada neste trabalho, textos recuados no
tempo podem, sim, ser chamados de ficção científica, mas desde que lidem
ficcionalmente com uma compreensão sistematizada do mundo, caso da literatura
utópica. Lembremos, pois, que a utopia é definida por Suvin com base em seu conceito
de distanciamento cognitivo. Ou seja, a utopia faz uso de um novum (um “experimento
intelectual” calcado primariamente na História) para estabelecer um posicionamento
crítico sobre o mundo do autor.
2.3 – Utopia e distopia
Na literatura utópica, os exemplos de protoficção científica são abundantes.
Causo aponta que “a maioria das obras [de protoficção científica] anteriores ao século
XIX tinham como tônica a descrição de utopias ou a satirização das sociedades da
época” (CAUSO, 2003 [1], p. 57). Mostra-se mais fácil a identificação das utopias e de
dada espécie de sátiras sociais como categorias de protoficção científica, devido às
flagrantes semelhanças conceituais com a ficção científica utópica atual.
Sobre a sátira e sua relação com a ficção científica, recorramos mais uma vez a
Raul Fiker:
Desde as mais remotas manifestações da protoficção científica, a sátira sempre foi sua
modalidade predominante, e esta herança é evidente na ficção científica moderna. A
estratégia de imaginar sociedades de outros mundos ou dos tempos futuros que são
geralmente travestis da sociedade do escritor é tão comum à protoficção científica
quanto à ficção científica moderna. (...) [A]o lado das Viagens de Gulliver, o outro texto
básico da protoficção científica é a Utopia, de Thomas More, texto de 1516 que
61
descreve um país remoto cujas instituições político-sociais são perfeitas e cujo título
passou a designar esse tipo de fantasia especulativa (FIKER, 1985, p. 27-28).
Ressaltando a intenção crítica, evidenciam-se as raízes satíricas da ficção
científica utópica de nossos dias. “[O] aspecto didático e o fato de veicular uma
mensagem, de lidar com idéias, que são próprios à sátira, determinam igualmente
aspectos narrativos básicos da ficção científica” (FIKER, 1985, p. 31). Quanto a lidar
com idéias, lembremos do já discutido conceito de novum, o ingrediente de thought
experiment da ficção científica.
Umberto Eco, no ensaio Os Mundos da Ficção Científica, discute brevemente
quatro tipos de “mundos estruturalmente possíveis” de que se apropria a ficção
científica: a alotopia, a utopia, a ucronia e a metalopia ou metacronia. A utopia, segundo
ele,
[p]ode imaginar que o mundo possível narrado seja paralelo ao nosso, exista em algum
lugar, embora normalmente nos seja inacessível. É essa forma que o conto utópico
normalmente assume, tanto se a utopia é entendida no seu sentido de projeção, de
representação de uma sociedade ideal, como acontece em Thomas More, como se é
entendida em sentido caricatural, como deformação irônica da nossa realidade, como
acontece em Swift
41
. Este mundo pode ter existido antes, ou pode existir num lugar
remoto do espaço. Geralmente constitui o modelo de como deveria ser o mundo real
(ECO, 1989, p. 167).
Embora algo esclarecedora, a assertiva pede um adendo. Tanto a “representação
de uma sociedade perfeita” quanto a “deformação irônica da nossa realidade”, ainda que
constituídas em feitios distintos, são projeções. A própria formulação de Eco parece
apontar nesse sentido, embora a terminologia escolhida não esteja em completo acordo.
Lembremos que Daniel Derrel Santee, na dissertação de mestrado Modern
Utopia: a reading of Brave New World, Nineteen Eighty-Four, and Woman on the Edge
of Time in the light of More’s Utopia, apontou, tanto na utopia (“sentido de projeção” de
41
Eco talvez esteja especificamente se referindo aos livros III e IV de Gulliver’s travels.
62
Eco) quanto na distopia (“sentido caricatural”), a intenção crítica manifesta por meio da
projeção:
Obviamente, a intenção primária de Thomas More ao escrever Utopia era produzir uma
comunidade ideal. Todavia, assim que nos detemos sobre o assunto, somos capazes de
perceber que o que More realmente tinha em mente era o desejo de criticar a sociedade
de sua época, ou seja, a organização social inglesa do século dezesseis. (...) O trabalho
de More pretende denunciar e criticar os abusos sociais ingleses. Levando tal fato em
consideração, eu proponho que a insatisfação do autor com a sociedade de seu próprio
tempo, ou quaisquer de seus aspectos, conforme evidenciado por meio de sua crítica
social, em qualquer forma que ela possa aparecer, como sátira, ironia, zombaria,
comparação, contraste ou ataque direto, deve ser considerada a premissa básica a marcar
a literatura utópica e distópica.
42
Santee, mais adiante, discerne com clareza a utopia da distopia, ponto que
interessa especialmente a este trabalho. Ele observa que a distopia “critica e mostra os
prováveis resultados que os aspectos negativos [da sociedade empírica] devem fazer
surgir”
43
. A forma que a crítica social toma na distopia é posta em oposição à do gênero
utópico, que “além de criticar, apresenta soluções para as questões percebidas”
44
.
Mostra-se tênue a separação entre utopia e distopia, como se vê. Ciente disso,
Santee propõe:
[U]ma das principais diferenças entre a literatura utópica e a distópica se encontra na
impressão do autor: se ele acredita que está descrevendo uma sociedade melhor, ele está
criando utopia. Neste caso, as qualidades distópicas que aparecerem são involuntárias;
contudo, se ele acredita que está descrevendo uma sociedade repulsiva, o que ele está
criando é uma sociedade distópica. Neste caso, ele força as situações e os aspectos a
serem repulsivos, então eles não são de forma alguma acidentais. Em ambos os casos, a
crítica da sociedade é um elemento central.
45
42
Tradução de “Of course [Thomas More] primary intention in writing Utopia was to produce an ideal
commonwealth. Nevertheless, once we begin to dwell upon the matter we are able to perceive that what
More really had in mind was the desire to criticize the society of his time, that is, the sixteenth-century
English social organization. (...) More’s work intends to denounce and criticize the English social abuses.
Taking this fact into consideration I propose that the author’s dissatisfaction with the society of his own
time, or any of its aspects, as evinced through his social criticism, in whichever form it might appear, i.e.:
satire, irony, mockery, comparison, contrast, or direct attack, be considered the basic premise to mark
utopian and dystopian literature” (SANTEE, 1988, acessado em 14/12/2005).
43
Tradução de “criticizes and shows the probable results the negative aspects might arise” (SANTEE,
1988, acessado em 14/12/2005)
44
Tradução de “besides criticizing, presents solutions to the issues perceived” (SANTEE, 1988, acessado
em 14/12/2005).
45
Tradução de “one of the main differences between utopian and dystopian literature lies in the author’s
impression: if he himself believes he is describing a better society, he is creating utopia. In this case the
dystopian qualities which might appear are involuntary; however, if he believes he is describing a
63
Exemplo de qualidade distópica involuntária que Santee oferece ao leitor é a
ausência de liberdade em A Utopia, de Thomas More. A citação acima é de proveito
para este trabalho, já que demonstra que a distopia não deixa de ser uma espécie de
utopia. De fato, ambas, além de estanques, não apresentam conflito social, embora na
distopia os traços negativos dessa estaticidade sejam postos em relevo.
Chris Ferns, em Narrating Utopia, define a distopia como a “inversão paródica”
da utopia. Ou seja: em consonância com o pensamento de Santee, a distopia é uma
utopia, mas uma utopia, por assim dizer, “negativa”. Conceituação valorosa por excluir
da distopia quaisquer textos que efetuem uma inversão pura, não paródica, da utopia. A
distopia, assim, não pode, de forma nenhuma, ser identificada apenas a partir dos traços
negativos do quadro imaginário de determinado texto. Traços negativos, frisemos, não
são o mesmo que traços distópicos. Traços distópicos seriam aqueles elementos que
transparecem uma sugestiva ambigüidade entre o perfeito e o hediondo, ambigüidade
manifesta parodicamente.
Nesse sentido, nos parece equivocado chamar de distópicos os textos de ficção
científica que lidam, por exemplo, com o ícone da terra devastada (as narrativas “pós-
apocalípticas”)
46
, inversões puras que jamais manifestam paródia da utopia e nem a
referida ambigüidade.
Duas das marcas das distopias do século XX, em seus retratos alegóricos de
governos autoritários, são o temor da automatização humana e, conseqüentemente, o
elogio à liberdade. Nesse sentido, Aldous Huxley, em Brave new world revisited,
repulsive society, what he is creating is a dystopian society. In this case he forces situations and aspects
to be repulsive, so they are by no means accidental. In both cases criticism of society is a central feature”
(SANTEE, 1988, acessado em 14/12/2005).
46
Exemplos são a série cinematográfica Mad Max e o romance Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva.
64
aponta os perigos que o “excesso de ordem” pode trazer, preocupação apresentada como
um dos impulsos para a escrita de seu romance Brave new world:
Organização é indispensável, pois a liberdade surge e tem significado apenas dentro de
uma comunidade auto-reguladora de indivíduos livremente cooperativos. Mas, embora
indispensável, organização pode também ser fatal. Muita organização transforma
homens e mulheres em autômatos, sufoca o espírito criativo e abole a mera
possibilidade de liberdade. Como usualmente, a única opção segura é no meio, entre os
extremos do laissez-faire por um lado e do controle total por outro
47
.
É como paródia às utopias tradicionais, lugares de infalível organização, que a
ordem é mostrada como capaz de subtrair a liberdade. O governo autoritário nas
distopias é a completa encarnação da ordem exagerada e imposta, bem como da morte
da individualidade. Assim, se a distopia manipula o conceito de “ordem” para promover
a inversão paródica, não parece adequado chamar de distópicas, por exemplo, as
narrativas de terra devastada, em seus retratos de lugares apocalípticos onde as
constantes são o caos e o conflito.
O “excesso de ordem” e o assassinato do indivíduo são particularidades
distópicas que Amorquia expressa de forma algo particular, embora o romance não seja
uma distopia plena – dado a ser discutido adiante. Em Amorquia, o papel dos gêneros
sexuais na estrutura social é posto em relevo de tal forma que o indivíduo se vê apagado
em prol de uma generalização: restam apenas o masculino e o feminino, ambos
enfeixados em papéis estanques. A própria estrutura narrativa reflete esse traço, posto
que por diversas vezes são apresentados diálogos entre um homem e uma mulher de
identidade indefinida, e não há margem para que o leitor os identifique nominalmente –
trata-se de uma dialética entre gêneros, não pessoas.
47
Tradução de “Organization is indispensable, for liberty arises and hás meaning only within a self-
regulating community of freely co-operating individuals. But, though indispensable, organization
transforms men and women into automata, suffocates the creative spirit and abolishes the very possibility
of freedom. As usual, the only safe course is in the middle, between the extremes of laissez-faire at one
end of the scale and of total control at the other” (HUXLEY, 2000, p. 22).
65
Na distopia, o assassinato do indivíduo é um instrumento de controle
governamental. Embora os meios encontrados para tratar disso em Amorquia sejam
peculiares e possuam outras implicações na alegoria crítica proposta, têm algo em
comum com características distópicas tradicionais. Chris Ferns observa que
[...] suprimindo a emergência da identidade individual por interesse em estabilidade,
segurança, conformismo, o Estado distópico claramente busca desencorajar o
desenvolvimento de qualquer tipo de percepção madura, adulta – de qualquer forma de
consciência sofisticada o bastante para perceber e articular as limitações da sociedade.
48
A letargia que permeia o mundo de Amorquia parece ter esse resultado. Em seu
mal-estar, porém, as personagens por vezes conseguem entrever e, com esforço,
articular as fraquezas (e as atrocidades) da sociedade.
2.4 Amorquia e o autoritarismo empírico
É importante lembrar que duas das mais célebres distopias britânicas, 1984 e
Brave new world, tematicamente seguem os passos de A muralha verde (1920), de
Evgeni Ivanovitch Zamiátin
49
:
48
Tradução de “in supressing the emergence of individual identity in the interests of stability, security,
conformity, the dystopian state clearly seeks to discourage the development of any kind of mature, adult
awareness – of any form of consciousness sophisticated enough to perceive and articulate the society’s
limitations” (FERNS, 1999, p. 114).
49
O primeiro nome do autor é por vezes grafado como “Ievguêni”. Como o volume utilizado neste
trabalho apresenta a grafia “Evgeni”, esta foi a forma aqui adotada.
66
[...] Zamiátin pode ser visto como pai da distopia moderna, além de antecipar no
romance o clima de stalinismo que se abateria cobre a União Soviética em 1924. Ele,
porém, já tivera contato com a FC na tradição do “romance científico”, pois havia
produzido prefácios para edições russas de obras de Wells (CAUSO, 2003 [2], p. 49).
As semelhanças entre 1984 e A muralha verde são marcantes e, até, excessivas.
Causo abordou o ponto:
Em A muralha verde, o grande líder é chamado de “Benfeitor”; em 1984, de “Grande
Irmão”. No primeiro livro, há selvagens vivendo por trás da muralha verde do título,
fora do alcance do regime; no outro, o proletariado urbano, descrito com carinho por
Orwell, cumpre esse papel de reserva de humanidade. Em um, a falta de privacidade é
simbolizada por residências transparentes; no outro, pelo televisor que tudo registra. Em
ambos, o protagonista apaixona-se por uma mulher escultural e rebelde, que é traída por
ele. O primeiro é desenvolvido como o diário de D-503 (no futuro, não teremos nomes,
mas números), enquanto o drama de Winston Smith começa quando ele abre o seu
diário, embora o romance se desenvolva na terceira pessoa. As coincidências são tantas
que se torna difícil não pensar em plágio. Uma alternativa é enxergar A muralha verde
como um laço passado pela primeira vez em torno do horror do totalitarismo e 1984
como a obra que apertou esse laço de modo ainda mais sufocante. Tanto que o estilo
poético de Zamiátin dá lugar às descrições naturalistas de Orwell, que enfatizam a
situação materialmente difícil sob o regime, a dor e a tortura às quais Smith é submetido
(CAUSO, 2003 [2], p. 52-53).
Assim, podemos dizer que, embora a construção do quadro imaginário de 1984
pouco vá além da mera imitação servil de Zamiátin, o romance de Orwell consegue
alcançar autonomia principalmente graças à sua linguagem. Zamiátin estilisticamente se
volta para uma espécie de prosa poética; Orwell, para uma descrição naturalista.
Alguns dados encontrados na não-creditada orelha da edição nacional de A
muralha verde nos interessam:
[E]scrito, o original não foi aceito pelos censores do Estado, que o consideraram
desrespeitoso, pois os principais personagens do livro, o ambiente, as circunstâncias, as
críticas, tudo o que estava nas páginas de Zamiátin como que retratava uma realidade
por demais contundente. Na mesma época, Pilniak, que já teve livro traduzido no Brasil,
também foi chamado a “rever” uma de suas obras, considerada por demais “burguesa”.
Curvou-se Pilniak, abdicando de sua honorabilidade de criador. Reviu o livro e adaptou-
o às exigências policiais da ditadura. Zamiátin agiu de modo diferente: empacotou os
seus originais e os remeteu para além das fronteiras russas. Foi perseguido, cerceado na
sua profissão de engenheiro. Doente, conseguiu autorização para sair da Rússia,
terminando seus dias em Paris, onde lançou, pela Gallimard, o seu livro, que agora á
publicado no Brasil (1963, orelha).
67
Abordar a marca que o governo autoritário deixou em determinado texto em
nada se parece com buscar a “causa” para este. Trata-se da leitura de uma alegoria, não
da infrutífera procura por uma sempre fugidia origem.
No Brasil, embora pouca atenção a crítica literária tenha dado ao fato, há uma
relativamente extensa produção literária distópica. Alguns textos distópicos produzidos
entre nós são: 3 meses no século 81, de Jeronymo Monteiro, A adaptação do
funcionário Ruam, de Mauro Chaves, Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola
Brandão, O outro lado do protocolo, de Paulo de Sousa Ramos, Asilo nas torres, de
Ruth Bueno, Fazenda Modelo, de Chico Buarque, O fruto do vosso ventre, de Herberto
Sales, Um dia vamos rir disso tudo, de Maria Alice Barroso, Umbra, de Plínio Cabral, e
Piscina livre, de André Carneiro.
Alguns desses textos foram discutidos em Ficção científica brasileira – Mitos
culturais e nacionalidade no país do futuro, de autoria da norte-americana Mary
Elizabeth Ginway, pesquisadora que tem se dedicado extensivamente à ficção científica
brasileira. Uma das conclusões a que chega é:
A veemência da ficção distópica no Brasil demonstra uma resposta literária a um mundo
crescentemente tecnológico. A tendência distópica de exagerar os aspectos assustadores
do futuro permite um delineamento claro do conflito entre experiência privada e a
autoridade estatal, simplificando um conflito complexo na oposição entre forças do bem
e do mal. Por essa razão, as distopias brasileiras provavelmente permanecerão entre as
acusações literárias mais claras contra as políticas dos militares e do seu uso da
tecnologia (GINWAY, 2005, p. 138).
Assertiva, observemos, em assonância com a consideração de Santee acerca da
insatisfação dos autores de utopias e distopias com a época em que vivem. A intenção
crítica, assim, se revela particularmente aplicável a esses textos nacionais, dada o ataque
ficcional ao regime ditatorial brasileiro.
68
Os textos resenhados por Ginway, entre os quais não se inclui Amorquia, de fato
ilustram a simplificação de um conflito complexo por meio da oposição entre bem e
mal. No romance de Carneiro, contudo, o maniqueísmo de Não verás país nenhum e
Adaptação do funcionário Ruam, entre outros, não é verificável. As causas e as
conseqüências disso serão logo discutidas, mas podemos adiantar que nos levarão a
enquadrar intercalarmente o romance entre a utopia e a distopia. Ainda que não se
configure como uma obra plenamente distópica, Amorquia não deixa de manifestar,
embora dissimuladamente e sem maniqueísmos, a clara acusação que, segundo Ginway,
a distopia brasileira volta ao regime militar.
Sobre a problemática da representação social no quadro imaginário de
Amorquia, Causo nos oferece um ponto de vista que merece menção. O artigo A
Brazillian metafiction: Paulo de Sousa Ramos’s dystopian novella, O outro lado do
protocolo” sugere, em dado momento, uma nomenclatura para o ciclo de narrativas em
que incluímos Amorquia:
Podemos chamar essa seqüência [de narrativas] de “Anarquia Sexual”, já que uma de
suas constantes é a própria ausência de uma hierarquia de poder, classes e identidade
nacional. Por outro lado, como em O outro lado do protocolo, há um computador que
providencia tudo, pessoas vivem em hedonismo sexual e a doença e a degradação física
são distantes (em Amorquia, são totalmente desconhecidas) da experiência imediata das
pessoas
50
Tomemos as constantes apontadas por Causo, mas atenhamo-nos ao texto do
ciclo aqui em discussão, Amorquia. Lembremos que o ciclo é composto por narrativas
algo autônomas, e a eventual discordância com aspectos apontados acima não implica
em inferir que eles não são cabíveis a narrativas outras que Amorquia.
50
Tradução de “We might call this sequence the “Sexual Anarchy” series, for one of its constants is the
very lack of a hierarchy of power, classes and national identities. On the other hand and as in O Outro
Lado do Protocolo, there is a computer that provides everything, people live in sexual hedonism, and
disease and physical degradation are distant (in Amorquia, they are totally unknown) from people’s
immediate experience.” (CAUSO, [s.d. [1] ], p. 5).
69
A “ausência de uma hierarquia de poder” não nos parece aplicável ao romance.
Há, subjacente, uma hierarquia: o Computador Central acima do povo, mas o jugo da
máquina é sutil o bastante para geralmente passar despercebido às personagens. A
presença implícita de uma hierarquia de poder, acreditamos, implica também em
classes. É pertinente, pois, tomar o Computador Central como uma representação
alegórica da classe dominante.
Já a “ausência de identidade nacional” cabe em Amorquia, já que, em última
instância, o futuro configurado no romance se apresenta homogêneo, sem grandes
fronteiras geográficas ou culturais. Abolida a diferença entre povos, parece não haver
razão para pensar em nacionalidade; esta, afinal, seria estruturada com base na
observação das próprias particularidades e na distinção contrastiva com o outro. A
instância também está vinculada, no romance, ao enevoamento do ambiente que cerca
as personagens; frágeis são as marcações espaciais, e inexistentes as menções a cidades
ou países.
Mencionados os traços autoritários do futuro imaginado em Amorquia, é forçoso
observar que, conhecendo a experiência ditatorial pela qual o País passou, existe um
forte impulso para traçar paralelos e relações entre o autoritarismo ficcional e o
empírico. Por exemplo: é de forma bastante natural que se levanta a relação entre a
Fazenda Modelo (do romance homônimo de Chico Buarque) e o regime ditatorial.
Como Fazenda Modelo ilustra algumas das questões aqui postas em cena, podemos nos
deter um pouco na obra.
O romance de Buarque dialoga com A revolução dos bichos, de George Orwell.
Este, ambientado em uma granja, mostra a revolta dos animais contra o proprietário do
estabelecimento, que é expulso, a fim de que uma sociedade pretensamente ideal seja
instaurada. A opressão, contudo, ressurge nas mãos dos novos dirigentes, animais – em
70
suma, o poder corrompe a quem quer que seja. Assim, numa marca fabular, os animais
representam alegoricamente as fraquezas humanas.
Em Fazenda Modelo, o caráter alegórico é introduzido logo no Prefácio, que
dissimuladamente apresenta o livro como “recomendável a todos os pecuaristas do
mundo” (BUARQUE, [s.d.], p. 12). A atividade do pecuarista Juvenal, conforme é
sugerido, remete aos mandos e desmandos governamentais, enquanto ao povo, o gado,
não é dada alternativa além da submissão. Como observa Ginway,
[o] recurso de Buarque ao mito, característico de suas composições musicais, também
está presente em Fazenda Modelo, na forma de uma paisagem idealizada , luxuriante e
tropical habitada por um “gado” natural, sexualmente não-reprimido. Antes do advento
do regime de Juvenal, vacas e touros associavam-se livremente e desfrutavam de sua
liberdade para vagar, e a espontaneidade e a sensualidade estavam na ordem do dia
(GINWAY, 2005, p. 100)
Assim, o regime de Juvenal, responsável por roubar a liberdade dos touros e das
vacas, pode ser satisfatoriamente associado ao regime ditatorial e sua política de
cerceamento do indivíduo.
Como em A revolução dos bichos, a fábula se faz presente também na
humanização dos animais; mas no romance de Buarque a condição dos animais apenas
desperta piedade, dada a manipulação dos humanos da história, estes que parecem se
portar de forma mais inumana do que o gado.
Embora a identificação de ambos os romances, o de Orwell e o de Buarque, com
a ficção científica distópica não pareça imediata, uma observação de Causo a respeito de
A revolução dos bichos justifica tal enquadramento:
O livro foi imediatamente visto como crítica áspera ao stalinismo e, apesar do formato,
costuma ser citado em listas dos melhores da FC. É visto como uma FC recursiva – que
retorna a algumas das raízes do gênero (fábulas, lendas, contos de fadas) (CAUSO,
2003 [2], p. 50).
71
No caso de Amorquia, é verificável o elogio de uma liberdade que já foi perdida
pelo próprio André Carneiro, se levarmos em conta sua participação na resistência ao
regime militar. Conforme contado pelo autor em entrevista pessoal, quando perguntado
acerca da relação entre seus textos e sua experiência com o regime ditatorial,
Bom, a ligação é evidente, clara, indisfarçável. Eu sempre fui uma pessoa pobre, mas
não paupérrima, era filho de um negociante bastante incompetente que não conseguia
ganhar muito dinheiro. Mas comecei a escrever e consegui um certo prestígio lá em
Atibaia, uma pequena cidade. Senti uma certa segurança, aquela segurança relativa
dessa “democracia” brasileira, entre aspas.
O golpe militar me jogou num abismo, repentinamente. De um dia para o outro eu me vi
fugindo da polícia, arriscado a ser morto, em casa de subversivos da maior importância
e maior coragem. E daí por diante. E percebi que eu não tinha a menor importância do
ponto de vista legal.
Minha primeira mulher foi ter com o capitão, do qual éramos conhecidos superficiais, e
falou: “O meu marido é inocente.” Ele deu uma resposta maravilhosa: “Nós não
estamos interessados na inocência dele, estamos só interessados na culpabilidade.” Eu
achei essa resposta extraordinária. Todo mundo é condenado, desse jeito. E essa ânsia
de poder me defender, de lutar por uma liberdade, tornou-se uma coisa imanente dentro
de mim. E, certamente, acaba vazando para minha obra (CARNEIRO, entrevista pessoal
concedida em 08 de julho de 2007).
É importante ressaltar que David Lincoln Dunbar, o pesquisador norte-
americano responsável pela primeira pesquisa acadêmica sobre a ficção científica
brasileira (sua tese de doutorado foi defendida em 1976), faz menções ao romance
Piscina livre, de André Carneiro, que só seria publicado em 1980. Esse romance,
lembremos, possui semelhanças conceituais com Amorquia, já que ambos fazem parte
do já mencionado ciclo de narrativas interligadas. Interessante notar que Piscina livre,
Amorquia e diversos outros textos de André Carneiro que veladamente atacam a
ditadura militar só puderam ver a luz após a abertura política.
O governo do mundo de Amorquia dissimula seu caráter autoritário, travestindo-
se de democrático
51
. As normas são ditadas pelo chamado Computador Central ou
Onipotente, máquina (ou não?) que diz procurar o bem comum. Jogos retóricos típicos
de um discurso que acaba por se apresentar, abaixo da superfície, como populista. A
51
A menção de Carneiro, na entrevista pessoal, a uma “‘democracia’, entre aspas”, é significativa.
72
personagem Pércus tem um encontro com o Computador Central, que principia o
diálogo a seguir:
- Pode me chamar de você. Afinal, eu sou você. Nasci de você. Só existo para
você.
- Fosse para mim sozinho, eu compreenderia. Mas você computa todos para
servir a todos. Fico na dúvida se o interesse de todos ou essa média geral serve mesmo
para cada um.
- Nesse estágio de sua evolução, é a única medida.
- É curioso que você fale sua evolução. Você parece se colocar acima e à parte
de nossos interesses.
- Esse ‘sua’ é apenas uma gentileza. Posso falar ‘nossa’. Talvez você ache
estranho, pois não posso sentir como você.
- Talvez você pudesse, mas não quer.
A voz vinha de trás de uma cortina. Assim era possível imaginar que o
Onipotente estava ali, com fisionomia humana, embora todos soubessem que ele não
existia sob essa forma. A voz possuía um timbre simpático, acolhedor, nunca irônico. É
preciso ter raiva para ser irônico e o Onipotente nunca sentia raiva. Por isso era terrível.
- Não me interessa reproduzir o mecanismo do sentimento dos homens. Tenho
de ser diferente deles, para ajudá-los. (...) Existo para servi-los, para conduzi-los a um
futuro melhor.
- Mas os homens, alguns homens, eu por exemplo, poderiam influenciar ou
manobrar suas decisões?
A cortina vibrou.
- Todos os homens, um homem, são o motivo básico das minhas decisões.
Você pode me dar ordens e eu as cumprirei, desde que elas beneficiem a maioria
(CARNEIRO, 1991, p. 94-95).
Se “todos os homens” e “um homem” são tidos como sinônimos, não há espaço
para a diferença. Além disso, autoritarismo e paternalismo estão lado a lado nas falas do
Onipotente. Paradoxalmente, contudo, por pouco seu discurso não pode ser tomado
como democrático. Age para o bem comum e governa para o povo, mas, colocando-se
acima dos homens, dele é a decisão sobre o que é adequado. Pelo que se pode deduzir
do trecho citado, ainda que houvesse a tentativa de manipular o Computador Central
com a inserção de dados tendenciosos, dele seria a palavra final.
73
Assim, “democraticamente”, não há espaços para desvios no padrão instituído.
Se a norma é ditada pela maioria, que espaço existe para a minoria? No mundo ficcional
de Amorquia, a minoria é representada por aqueles que não se conformam com a
letargia, com a ausência de movimento de sua sociedade. Em termos práticos, o
romance parece apontar que um governo “do povo” só é realizável em discursos
populistas como o do Computador Central.
Se ainda não ficou claro, é importante frisar que o apontamento sobre a
fragilidade da democracia de forma nenhuma deve ser entendido como elogio ao
autoritarismo, tanto neste trabalho quanto no romance Amorquia. Aprofundemo-nos, a
seguir, nesse ponto.
Sobre a literatura brasileira pós-64, o ensaio Poder e alegria, de Silviano
Santiago, pode ajudar a compreender o aspecto de Amorquia neste momento em pauta.
O trecho a seguir sintetiza as proposições do ensaio:
A autocrítica no plano ideológico efetuada após 64 por si só comenta a mudança
temática significativa a que estamos nos referindo no plano artístico. Ambas são formas
de uma mudança geral que vai afetar o todo das forças que compõem o cenário político
do país, deixando primeiro que o desejo de democracia explodisse para que em seguida
o conceito pecasse – e ainda peque – pela sua imprecisão semântica. O conceito de
democracia freqüenta hoje discursos que vão da direita ofendida por uma manifestação
de povo na rua à esquerda que volta a tomar assento no Parlamento nacional. Essa
indiscriminação, essa imprecisão política do conceito é grave, mas simboliza uma vez
mais a inércia da história social brasileira, ou seja, simboliza as ambigüidades,
covardias, estratégias, retóricas, espertezas, etc., de períodos que se convencionou
chamar de transição e que fundamentalmente acabam por não o ser (SANTIAGO, 1989,
p. 13).
A impropriedade semântica pela qual o conceito de democracia peca, referida
por Santiago, é análoga à sugerida pelas palavras do Computador Central, que se vale de
artifícios retóricos tristemente familiares aos brasileiros. Dizendo servir, ele apenas
controla e regula para deixar as coisas como estão.
74
2.5 – A supressão do tempo – conteúdo e forma
Além da automatização do homem, o excesso de organização a que Huxley se
refere em Brave new world revisited também mantém estática a sociedade. O cidadão,
desprovido de individualidade e fiscalizado até nas menores de suas ações, não tem
chances de questionar a estrutura social em que se insere. Se porventura consegue fazê-
lo, o Estado possui eficientes meios para punir e silenciar. Dado que, se levado em
consideração, levanta mais uma vez a noção da distopia como inversão paródica da
utopia.
Para Angelika Bammer, citada por Ferns,
Ao invés de descrever um impulso vital rumo à mudança, a utopia, como tem sido
tradicionalmente definida, representa uma instância estática e, no sentido mais literal,
reacionária: um lugar que, perfeito, não precisa – e não irá – mudar.
52
Já o governo distópico, odioso ao que é veladamente defendido como natureza
humana, suscita revolta. Os protagonistas, recorrentemente, se apegam de uma forma ou
de outra à revolucionária idéia de mudança. É o marginal, aquele que não se enquadra e
que busca alternativas ao que lhe é imposto, desconfortável com sua posição e com o
52
Tradução de “Rather than describe a vital impulse toward change, utopia as it has traditionally been
defined represents a static and, in the most literal sense, reactionary stance: a place wich, being
‘perfect’, does not need to – and will not – change” (FERNS, 1999, p. 8).
75
mundo – em desassossego como o típico herói romântico. A revolta, porém,
dificilmente possui chances de vigorar, tamanha a fixidez do mundo distópico.
Os exemplos de distopias com esse tipo de protagonista são variados. Alguns
deles: A muralha verde, de Evgeni Ivanovitch Zamiátin; 1984, de George Orwell; Brave
new world, de Aldous Huxley; A adaptação do funcionário Ruam, de Mauro Chaves;
Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.
Em outras palavras, tanto a utopia quanto a distopia são retratos de mundos em
que o tempo parece ter parado. Amorquia toma isso literalmente: o tempo é suprimido
tanto no enredo quanto na estrutura narrativa. Aspecto formal que demanda especial
atenção àquele que se preocupar com a constituição do quadro imaginário de Amorquia.
O narrador nos passa a impressão de que o tempo não existe, dada a forma com
que os eventos são dispostos. Além de geralmente ser difícil definir os elos temporais
entre um acontecimento e outro, o narrador encadeia cenas supostamente ambientadas
nas mais diversas épocas, conforme referido no primeiro capítulo deste trabalho.
Temos, dessa forma, na constituição da narrativa, uma série de seqüências
embaralhadas, isoladas uma da outra. O leitor, ao invés de se comportar como quem
monta um quebra-cabeças e de tentar ordenar cronologicamente os eventos, deve aceitar
a “desordem” necessária à compreensão da obra.
A dificuldade de ordenar coerentemente o entendimento do mundo é expressa
pelas personagens em alguns momentos. Um exemplo é o que segue:
- Este é um mundo bem estranho e misterioso.
- Por quê?
- Porque é. Você não percebe? Não há continuidade, nem lógica. Vive-se sem saber por
quê. No fim, todo o mundo procura divertir-se ao máximo, sem ligar para mais nada
(CARNEIRO, 1991, p. 163).
76
Como o leitor, algumas personagens se dão conta, por vezes, de que o
transcorrido não pode ser compreendido coerente e linearmente. Em Amorquia, não há a
intenção de reproduzir a passagem do tempo como nós o conhecemos empiricamente.
Há, sim, a vontade de reproduzir uma particularidade que diferencia o mundo
ficcionalmente retratado do nosso.
A intuição do instante
53
, de Gaston Bachelard, pode ser de ajuda, especialmente
no ponto em que são confrontadas as proposições de Roupnel e de Bergson, antagônicas
em alguns pontos. Será pertinente compará-las com a idéia de tempo que Amorquia
apresenta. Trata-se de uma articulação, ressaltemos, tipicamente suviniana, já que toma
considerações de ordem cognitiva sobre um aspecto empírico e pretende demonstrar de
que forma um texto de ficção científica efetua, a partir delas, um distanciamento que se
apresenta cognitivo.
Um dos pontos antagônicos: para Roupnel, “[é] preciso a memória de muitos
instantes para alcançar uma recordação completa”
54
, enquanto para Bergson, “a
verdadeira realidade do tempo é sua duração; o instante não é mais que uma abstração,
sem nenhuma realidade”
55
. A representação do tempo para cada um seria,
respectivamente: “uma linha reta branca, transbordante de potência, de possibilidade, na
qual (...) se inscreveria um ponto negro [o instante], símbolo de uma opaca realidade”
56
e “uma linha reta negra, na qual teríamos, para simbolizar o instante como um nada,
como um vácuo fictício, um ponto branco”
57
.
53
A edição aqui utilizada é argentina.
54
Tradução de “Es preciso la memoria de muchos instantes para lograr un recuerdo completo”
(BACHELARD, 1973, p. 17).
55
Tradução de “la verdadera realidad del tiempo es su duración; el instante no es más que una
abstracción, sin ninguna realidad” (BACHELARD, 1973, p. 28).
56
Tradução de “una línea recta blanca, rebosante de potencia, de posibilidad, en la cual (...) se
inscribiria un punto negro [el instante], símbolo de una opaca realidad” (BACHELARD, 1973, p. 28-
29).
57
Tradução de“una línea recta negra, em la que habríamos puesto, para simbolizar el instante como uma
nada, como um vácuo fictício, um puento blanco” (BACHELARD, 1973, p. 28).
77
Cada um dos segmentos de Amorquia, dotados de frouxa ou nenhuma
articulação cronológica, são análogos ao chamado instante. São, como quer Roupnel,
instantes solitários, como que ilhados na narrativa. Possuem, cada um, seu próprio
significado; a articulação entre eles enriquece a compreensão da obra como um todo,
mas não deve ser feita no sentido de um arranjo temporal.
Em um ponto Roupnel e Bergson estão de acordo: a disposição linear dos
instantes é um artifício da imaginação. O que a abolição do tempo em Amorquia
provoca é uma desarticulação. Desprovidas da percepção temporal, as personagens são
incapazes de dispor linearmente os acontecimentos. Percebem cada um dos instantes
isoladamente e, como o leitor, raramente conseguem articular um ao outro.
O papel de encontrar linearidade nos instantes é da consciência. Como em
Amorquia a linearidade é inexistente ou, ao menos, truncada, a estrutura narrativa é
apresentada pelo inconsciente e nele ambientada. É assim que o narrador subverte o
tempo e busca a impressão de que ele não existe.
A representação escolhida por Bachelard para as proposições de Roupnel e de
Bergson é, apesar das diferenças, a linha, que é organizada pela consciência. Na
narrativa de Amorquia, pelo contrário, a organização consciente não aparece, e a linha
não se constitui. Temos apenas os instantes isolados uns dos outros:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um dado importante é que a disposição temporal em ordem cronológica, no
romance, se faz presente quando as personagens são forçadas a ignorar as convenções
sociais e a perceber a passagem do tempo. Afinal, conforme já mencionado, e de acordo
78
com a distopia tradicional, em Amorquia a subversão possibilita a fuga dos padrões
impostos.
2.6 – Amorquia: uma obra intercalar
As viagens temporais discutidas no primeiro capítulo aqui são retomadas. É por
meio delas, afinal, que Amorquia alcança a maior de suas ambigüidades, e é nelas que
se mostra mais produtivo o diálogo travado entre o romance e a literatura
utópica/distópica. Embora já tenham sido apontadas, neste capítulo, algumas das
relações entre Amorquia e a distopia, foi tomado o cuidado de não enquadrar
plenamente o romance na categoria. Entre a distopia e a utopia, afinal, é onde se situa a
obra. Explicitemos a questão com um exemplo do romance.
Caminhando por uma rua de um passado autoritário, as personagens Karlow e
Játera são abordadas por policiais e confundidas com espiões ou coisa que o valha.
Aprisionados, enfrentam uma malsucedida seção de tortura. Um dos interrogadores
tenta, em vão, violentar Játera.
O interrogador apontou o próprio pênis, desesperado:
- Malditos! Nunca me aconteceu isto na vida, nunca!
Játera chamou-o, delicada:
-Mas não fique nervoso assim. Isso é normal, não tem importância. Venha aqui
que eu ajudo você. Vocês, homens, são tão frágeis.
Karlow sorriu com simpatia e acrescentou:
79
- O senhor quer ficar excitado através da raiva. Isso é impossível. Deixe que
Játera o ajude. Ela é da Polícia de Costumes, sabe tudo sobre isso.
O interrogador ficou parado, olhando para ambos, depois sentou-se na beira da
cama e começou a chorar alto. Játera pôs o braço ao redor do seu ombro, depois foi
buscar sua cueca na cadeira, para enxugar-lhe os olhos. Tratava-o como se fosse
criança.
- Não chore, meu bem, não chore. Já vai passar, daqui a pouco ele vai ficar
duro. Você vai me amar gostoso. Não chore mais, eu cuido de você.
Quanto mais ela falava, mais desesperadamente o interrogador chorava,
esfregando a mão nos olhos, limpando o nariz, as lágrimas pingavam nas pernas,
molhando o pênis tranqüilo entre os pêlos negros (CARNEIRO, 1991, p. 61).
Em sua inocência, Karlow e Játera se mostram incapazes de entender o estupro,
o ato sexual forçado feito com intenção de ferir. Já foi mencionado que o futuro
imaginário esqueceu a violência física. Desprovidos de malícia, como que vindos do
Jardim do Éden, lidam com a situação da única forma que conhecem. O investigador
lhes parece tão arcaico que mal podem compreender sua imaturidade e violência.
Para Ferns, na distopia o contraponto entre o mundo ficcional e o empírico é
mais explícito do que na utopia convencional:
[a]o inverter parodicamente o modelo utópico, o texto distópico consegue estabelecer uma
dialética entre a sociedade existente e a alternativa projetada. Dialética que, embora presente em
certa medida na Utopia de More, geralmente não é verificável em seus sucessores mais literais.
(...) A ficção distópica positivamente demanda que os leitores julguem a sociedade projetada
pelos parâmetros de sua própria. (...) [É] quase impossível não concluir que a projeção distópica
é menos desejável do que o mundo como nós o conhecemos
58
.
58
Tradução de “In parodically inverting the utopian model, the dystopian text succeeds in estabilishing a
dialecic between existing society and the projected alternative wich, while to some extent present in
More’s Utopia, is generaly lacking in the work of his more literal-minded successors. (...) [D]ystopian
fiction positively demands that readers judge the projected society by the standards of their own.(...)
[I]t’s almost impossible not to conclude that the dystopian projection is less desirable than the world as it
stands” (FERNS, 1999, p. 109).
80
Curiosamente, é no contraponto entre o mundo projetado e a nossa realidade que
Amorquia contorna esse apontamento sobre o texto distópico. Afinal, é justamente por
meio da dialética que o romance alcança sua ambigüidade e certa indefinição entre a
expressão utópica e a distópica.
Conforme exemplificado pelo trecho acima, o passado não é sempre mostrado
como melhor, ou seja, os traços utópicos do futuro imaginado são destacados no
contraponto. O mundo projetado é, na comparação, retratado como livre de
preconceitos, por vezes maduro, em outras, simpaticamente ingênuo. Os traços
distópicos, por sua vez, são mais freqüentes quando não há contraponto explícito, nos
momentos ambientados na projeção e desprovidos do dificultoso “intercâmbio cultural”
entre passado e futuro.
Essa indefinição entre retratar o mundo extrapolado como odioso ou perfeito,
como melhor ou pior, impede que o texto seja plenamente enquadrado na utopia e,
também, na distopia. Amorquia existe entre os dois gêneros. É expressa, assim, uma
fuga de concepções maniqueístas, embora o dualismo continue presente no contraponto.
81
CAPÍTULO 3 – A DITADURA DO PRAZER
3.1 – A felicidade da quietude
Em A Utopia, de Thomas More, a satisfação dos habitantes da ordenada ilha é
apresentada como necessária à manutenção do sistema “ideal”. Indivíduos insatisfeitos,
afinal, dificilmente poderiam cumprir de bom grado o papel destinado pelo Estado; nada
interessante se mostra a manutenção de uma estrutura social que não parece trazer
benefícios pessoais.
Um segmento da obra, intitulado Das Viagens dos Utopianos e Outros Assuntos
Diversos, Espirituosa e Habilmente Discorridos, apresenta o prazer como forma de
alcançar a satisfação pessoal. O trecho que segue ilustra particularmente o ponto que
importa a este trabalho:
Que homem, ao acordar, não sente que está de saúde, ou então que a não possui?
Haverá alguém tão insensível, igual a uma pedra, ou em tal estado de letargia, que não
sinta o deleite que a saúde lhe proporciona e não o aceite? E esse deleite que outra coisa
é senão o prazer?
Preferem principalmente os prazeres do esrito, que consideram como os principais e
mais essenciais de todos. Pensam que os mais importantes advêm do exercício da
virtude e da consciência de uma vida perfeita.
Dos prazeres ministrados pelo corpo dão preeminência à saúde. Consideram muito
desejáveis os prazeres de comer e beber e outros semelhantes, mas unicamente porque
se relacionam com a saúde, visto que essas coisas não são agradáveis por si próprias,
mas apenas porque se opõem à invasão secreta da doença. E, tal como o homem sensato
evita a doença de preferência a usar remédios e evitar a dor de preferência a recorrer ao
consolo, pensam ser melhor recorrer a estes prazeres do corpo do que, privando-se
deles, terem de recorrer a meios de cura da dor.
Quando alguém, no entanto, faz consistir a sua felicidade nessa espécie de prazeres,
então o auge da felicidade consistiria em ter fome e sede permanentes, que lhe
82
permitiriam estar continuamente a comer e a beber, tendo como resultado, e ninguém
disso duvida, uma vida miserável (MORE, 2005, p. 81).
Assim, os prazeres alcançados com o cultivo da mente, advindos “do exercício
da virtude e da consciência de uma vida perfeita”, são apresentados como superiores aos
prazeres “do corpo”. Estes, por sua vez, são valorizados quando também ilustram a
consciência da perfeição, no momento em que o homem percebe sua saúde rica – um
prazer “do corpo”, observemos, não propriamente “carnal”.
O trecho citado sugestivamente valoriza um refrear na satisfação imediata dos
desejos. O utopiano vicioso é o que encara os prazeres do corpo como agradáveis por si
próprios, enquanto o virtuoso cultiva tais prazeres pelos benefícios que deles pode
advir. Na Utopia, os prazeres como comer, beber “e outros semelhantes”, pois, devem
ser cultivados apenas pela saúde por eles trazida.
As normas que regem o relacionamento matrimonial também são elaboradas
para controlar o impulso e a satisfação imediata dos desejos. O divórcio é permitido,
“quando o marido e a mulher não se conseguem adaptar por incompatibilidade de
temperamento e ambos encontram outras pessoas com quem esperam viver em paz e
felicidade” (MORE, 2005, p. 87), mas isso só pode acontecer se houver a sanção do
Senado,
[...] que só dá seu acordo depois de os seus membros, juntamente com as suas esposas,
terem longamente examinado e ponderado o caso. Não o fazem, porém, freqüentemente,
pois sabem que a esperança de um novo casamento facilmente obtido é o caminho mais
rápido para a ruptura do amor entre esposos (MORE, 2005, p. 88).
83
A formulação do que seria o amor conjugal perfeito coloca em evidência a paz, a
virtude e, sintomaticamente, a obediência. Valores que são literalmente impostos aos
utopianos, já que existe punição legal para o cônjuge que os desobedecer:
As mulheres não podem casar antes dos 18 anos e os rapazes dos 22. O matrimônio só é
dissolvido pela morte, exceto em caso de adultério ou por um comportamento
intolerável de um deles. Quando um dos cônjuges se considera ofendido por algum
desses motivos, pode, autorizado pelo Senado, separar-se e escolher novo companheiro.
Mas o cônjuge culpado terá de viver, a partir daí, na infâmia e no celibato (MORE,
2005, p. 87).
Trata-se de um exemplo do que Daniel Derrel Santee chama de qualidade
distópica involuntária: as leis que regulam tão rigidamente a vida conjugal não são
mostradas como autoritárias e nem mesmo excessivas, já que More as apresenta como
um dos meios para assegurar a felicidade dos utopianos.
A satisfação da população de Utopia é alcançada, observemos, por meio de
ataques ao que Sigmund Freud considera as três fontes de sofrimento humano. Em O
mal-estar na civilização, Freud propõe:
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade
como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com
forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens (FREUD, 1997, p. 25).
O sofrimento vindo do próprio corpo é, na Utopia, combatido com o cultivo de
uma vida saudável, com o enaltecimento da saúde como virtude humana e, conforme
observamos acima, com o menosprezo a comportamentos tidos como viciosos. O
sofrimento vindo do mundo externo, que sintetiza as dificuldades do homem em domar
as forças da natureza, embora não possa ser erradicado por completo, é minimizado com
84
base numa maior compreensão dos ciclos naturais, vide a eficaz agricultura utopiana.
Por fim, o sofrimento vindo do relacionamento entre os homens é, a exemplo das
normas que regem o matrimônio, combatido por meio da obediência: “As mulheres
servem os maridos, as crianças, os pais e, em suma, os mais novos servem os mais
velhos” (MORE, 2005, p. 65).
Ainda a respeito do relacionamento entre os homens, a guerra com outros povos
é evitada:
Os Utopianos detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem, que contudo
espécie alguma de animais ferozes pratica tão freqüentemente como o homem.
Contrariamente ao costume de quase todas as nações, nada consideram mais vergonhoso
que a glória conseguida na guerra. E por isso, embora em dias determinados se
exercitem na ciência militar, não só os homens, como as mulheres, a fim de estarem
preparados para a defesa em caso de necessidade, não fazem nunca a guerra, exceto para
defender o seu próprio país ou para libertar os aliados dos inimigos que os invadiram ou
para os salvarem do jugo e servidão que os oprimem, fazendo-o por mera piedade e
compaixão (MORE, 2005, p. 93).
É preciso observar que a guerra dificilmente se mostra necessária também
porque a Utopia é uma ilha de difícil localização, o que reduz sobremaneira o contato
entre utopianos e outros povos
59
. A formulação de Freud que segue muito explica o
isolacionismo da Utopia e das sociedades utópicas em geral:
Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais
imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A
felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade
da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo
de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos (FREUD,
1997, p. 26).
59
Conforme observado no segundo capítulo, a partir de uma proposição de Ferns, o isolacionismo é uma
constante na ficção utópica.
85
Assim, a Utopia é isolada não apenas para justificar ficcionalmente o fato de
nenhuma notícia a seu respeito ter chegado ao Velho Continente, mas também para
expressar uma fuga dos horrores que, para More, se alastravam pelo mundo. De acordo
com a percepção freudiana, essa opção pelo isolamento é infantil, já que a maturidade
não pode ser alcançada sem o contato com o outro.
Subjacente à repressão, verificada na negação à satisfação imediata dos desejos,
bem como no isolacionismo, há o contraponto entre o “ideal” e o imperfeito, entre a
Utopia (regrada e isolada) e a Inglaterra do século XVI (desregrada e “promíscua”).
Esse contraponto é invertido pelos textos distópicos: o futuro de pesadelo é
regrado e pior do que o mundo do autor, enquanto a Utopia é regrada e melhor. A
distopia, assim, deixa implícita uma noção de mundo perfeito, por meio do contraste
proporcionado pelo retrato de um mundo odioso – novamente, portanto, a distopia se
apresenta como uma espécie de utopia.
Em Amorquia, o isolamento é, antes de mais nada, psicológico. As barreiras a
isolar o futuro configurado não são materiais, tanto que até mesmo a viagem a
diferentes períodos históricos é permitida. O isolamento está na dificuldade em
compreender contextos distintos, na incapacidade em articular concepções diferentes
das de sua própria sociedade
60
.
3.2 – Procurando desprazer (i)
60
Tal isolamento é combatido pelas personagens que adotam um comportamento subversivo, em uma
tentativa de apreender conceitos estranhos ao seu mundo.
86
A distopia oscila ambígua e ambivalentemente entre o perfeito e o repulsivo,
posto que, no quadro imaginário típico desse tipo de texto, a quietude é alcançada pela
privação da liberdade. Se a repressão dos instintos é, na utopia matriz, a forma
encontrada para tornar o cidadão consciente da vida perfeita que leva, na distopia isso
não passa de cerceamento da liberdade individual, revestido por um discurso
paternalista.
Conforme Aldous Huxley observou em Brave new world revisited, o Estado
distópico precisa de mecanismos compensatórios, a fim de que a população não consiga
articular criticamente as privações que lhe são impostas. O que para Huxley são
mecanismos compensatórios, para More são artifícios que deixam o cidadão “feliz” e,
conseqüentemente, produtivo e manso.
Huxley, no prefácio do romance Brave new world, delimita um desses
mecanismos compensatórios: “Com a restrição política e econômica tende a crescer, em
compensação, a liberdade sexual”.
61
Para tanto, é crucial a abolição de convenções
sociais passíveis de frear a satisfação sexual da população. Satisfação encarada com
certo imediatismo, já que a promiscuidade é, em Brave new world, seu veículo.
Dessa forma, na distopia de Huxley, o poder instituído não faz uso de coação ou
violência. Tudo, no chamado Novo Mundo, deve transcorrer na mais completa
quietude; o controle é sutil o bastante para que a população não perceba que é
controlada. Traço que aproxima o texto de Huxley do nosso objeto de estudo,
Amorquia. A muralha verde, de Evgeni Ivanovitch Zamiátin, e 1984, de George Orwell,
pelo contrário, configuram governos autoritários futuristas que não hesitam em fazer
61
Tradução de “” As political and economical freedom diminishes, sexual freedom tends compensantingly
to increase (HUXLEY, 1998, p. xvi).
87
uso do medo para coagir a população. Retratam, de acordo com o pensamento de
Huxley, ditaduras mais frágeis. No entanto, os textos de Zamiátin e de Orwell também
mostram a padronização do comportamento sexual como forma de controle.
Detenhamo-nos no ponto.
Um trecho de A muralha verde sintetiza a dinâmica sexual do quadro imaginário
do romance, e parece associar “pão” a “Fome” e “circo” a “Amor”. O narrador-
protagonista, ainda incapaz de articular plenamente as atrocidades do mundo em que
vive, crê nos caminhos que lhe são impostos:
Um dos sábios da antiguidade, sem dúvida por acaso, disse uma coisa
inteligente: “o Amor e a Fome dirigem o mundo”. Por conseqüência, para dirigir o
mundo o homem deve dominar esses soberanos.
(...)
Após haver vencido a Fome (o que, algebricamente, nos assegura a totalidade
dos bens físicos), o Estado Único iniciou uma campanha contra o outro soberano do
mundo, contra o Amor. Este elemento foi enfim vencido, o que quer dizer que ele foi
organizado, matematizado e, há cerca de 900 anos, nossa “Lex Sexualis” foi
proclamada: “Qualquer que seja o número, tem o direito de utilizar qualquer outro
número para fins sexuais”.
O resto não é mais uma questão de técnica. Cada um é cuidadosamente
examinado nos laboratórios do Serviço Sexual. Lá determinam com precisão o número
de hormônios do sangue de cada um e estabelecem um quadro de dias sexuais. Em
seguida, vocês fazem um requerimento no qual declaram desejar utilizar tal ou tais
números. Dão-lhes uma caderneta rosa cheia de talões e é tudo (ZAMIÁTIN, 1963, p.
25-26).
Assim, o pensamento subversivo cultivado pelo protagonista, D-503, logo
encontra sua expressão mais extrema em uma relação amorosa que demanda
exclusividade e, portanto, foge da normatização. Afinal, a escolha de uma parceira
exclusiva constitui um ato de rebeldia contra a promiscuidade imposta pelo chamado
Estado Único. Pode-se dizer que, para D-503, o motivo de inquietação não é o
comportamento promíscuo por si só, mas a padronização exigida pelas autoridades.
88
1984, de George Orwell, lida com a questão de forma bastante semelhante. O
protagonista Winston Smith, bem como sua parceira, são plenamente conscientes da
rebeldia implicada pela relação sexual não-sancionada. O trecho a seguir explicita a
instância:
Nos velhos tempos, ele pensou, um homem olhava para o corpo de uma garota e via que
ele era desejável, e esse era o final da história. Mas atualmente não era possível possuir
amor puro ou luxúria pura. Nenhuma emoção era pura, porque tudo estava misturado
com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax, uma vitória. Era um golpe
contra o Partido. Era um ato político.
62
Discutindo A Muralha Verde, de Zamiátin, e 1984, de George Orwell, Chris
Ferns aponta que, nos romances, “qualquer forma de atividade sexual diferente da
sancionada pelas autoridades é vista como inerentemente subversiva”
63
. A observação
pode ser estendida também à distopia de Huxley, em que a escolha de um parceiro
exclusivo é vista como indício de perturbação ou, melhor, inadequação mental.
Segundo Ferns, contudo, em Zamiátin e em Orwell a problemática é abordada de
forma algo acrítica, ao contrário do que acontece em Brave new world. De fato, tanto
em A muralha verde quanto em 1984, os protagonistas sentem-se atraídos por uma
noção estereotipada de feminilidade. A parceira de D-503 se torna atraente e
“verdadeiramente feminina” quando usa, na privacidade da alcova, um vestido
provocante; a de Winston, protagonista de 1984, desperta nele um “instinto animal”
quando, também na privacidade da alcova, aparece com uma pesada carga de
maquiagem sobre o rosto. Nesse sentido, Chris Ferns observa: “Como Zamiátin, Orwell
62
Tradução de “In the old days, he thought, a man looked at a girl’s body and saw that it was desirable,
and that was the end of the story. But you could not have pure love or pure lust nowadays. No emotion
was pure, because everything was mixed up with fear and hatred. Their embrace had been a battle, the
climax a victory. It was a blow struck against the Party. It was a political act” (ORWELL, [s.d.], p. 126).
63
Tradução de “any form of sexual activity other than that sanctioned by authority is seen as inherently
subversive” (FERNS, 1999, p. 122).
89
opõe à conformação sexual monstruosa do Estado distópico uma sexualidade
supostamente ‘natural’ que, na verdade, não é menos construída socialmente”
64
..
Brave new world, ao contrário, configura um mundo distópico onde o
comportamento promíscuo é uma convenção, mas as relações sexuais não são
burocraticamente reguladas: “Huxley retrata uma sociedade ainda mais permissiva que a
de Zamiátin, onde todos têm não apenas o direito, mas o dever de fazer sexo com
quantos parceiros for possível”
65
. Em um mundo assim, “a única forma possível de
atividade sexual subversiva é abster-se do sexo”
66
.
Analogamente, em Amorquia a promiscuidade é imposta pelas normas sociais, e
a erotização, conseqüentemente, marca até mesmo as ações mais corriqueiras. O futuro
configurado é ainda mais permissivo que o de Brave new world, já que nele todas as
ações possuem traços erotizados. Refrear o impulso sexual, assim, novamente se
apresenta como uma forma de subversão.
A inversão dos papéis dos gêneros sexuais, no romance de Carneiro, é um dado
que merece atenção. Como observou Finisia Fideli,
Em Amorquia, a mulher assume seu lado machista. Ela é o sexo forte, insensível às
necessidades de seus parceiros, dominadora e fria. Os personagens masculinos
reclamam o tempo todo da incapacidade da mulher em respeitar seus limites. Inversão
de papéis, mas no pior sentido (FIDELI, 1991, p. 30).
Assim, o contraste entre a conformação sexual do futuro retratado e a de nossa
época, no que concerne a tal inversão, não deve ser lida como a defesa de uma
64
Tradução de “Like Zamyatin, Orwell opposes to the monstrous sexual conformity of the dystopian state
a purportedly ‘natural sexuality which is in fact no less socially constructed” (FERNS, 1999, p. 124).
65
Tradução de: “Huxley portrays a society more permissive even than Zamyatin’s, where everyone has
not merely the right, but the duty to have sex with as many partners as possible” (FERNS, 1999, p. 124).
66
Tradução de “the only possible subversive form of sexual activity in to refrain from it” (FERNS, 1999,
p. 124).
90
sexualidade supostamente “natural”, mas também construída socialmente. Em outras
palavras, as reclamações das personagens masculinas acerca do comportamento
feminino não expressam nostalgia de uma época em que o homem era o sexo forte, mas
condenam a própria subjugação de um gênero sexual a outro.
Em um exemplo claro de distanciamento cognitivo, a colocação da mulher como
sexo socialmente dominante acaba por despertar um posicionamento crítico acerca de
nossa própria época. Na inversão de papéis, afinal, o homem é inferiorizado por motivos
arbitrários e, por assim dizer, injustos – uma condição semelhante àquela que o
“machismo” impõe às mulheres, como parece nos dizer Finisia Fideli.
Cabe uma breve menção ao romance Piscina livre, sob a luz de Amorquia. No
primeiro, um grupo de marginalizados consegue introduzir uma nova programação no
Computador Central, com o intuito de eliminar o preconceito e a estratificação social e,
é sugerido, institucionalizar definitivamente o sexo livre. A conclusão do romance, com
um vislumbre da nova sociedade que emerge, tem cunho otimista – talvez o surgimento
de uma utopia e o fim da distopia.
Seria a sociedade de Amorquia o resultado dessa boa intenção? Parece evidente
que não, ou então as coisas não saíram como queriam os revolucionários de Piscina
livre. Afinal, em Amorquia não há liberdade sexual; a promiscuidade é imposta pelas
normas sociais e incentivada pelo Estado.
O título do romance, jamais citado em seu interior, reflete a questão. A palavra
amorquia não é por acidente similar a anarquia; o jogo dissimulatório já é a partir dela
anunciado. Uma sociedade assim nomeada parece refletir antes a utopia imaginada
pelos revolucionários de Piscina livre que a quase distopia de Amorquia. Enquanto
aquela pretende ser libertária, esta apenas o é na aparência.
91
Em uma inversão da Anti-Sex League de 1984, temos a chamada Polícia de
Costumes, cuja função é verificar se os cidadãos estão sendo promíscuos como ditam as
leis. Como coerção e violência são, a princípio, desconhecidas no quadro imaginário de
Amorquia, a Polícia de Costumes toma como instrumento o prazer para cumprir sua
função.
No trecho a seguir, que exemplifica a questão, o Dr. Karlow, professor que
estuda a morte, recebe uma visita de Játera, membro da Polícia de Costumes:
- Meu nome é Játera – disse a jovem, tirando o estilete. – Quando foi a última vez que
fez amor com... uma mulher?
- Há dois dias... – falou Karlow.
- Ontem e hoje sem mulher?
- É. É isso mesmo...
(...)
Játera guardou o estilete.
- Professor, pode tirar a roupa.
Enquanto falava, Játera ficara de busto nu e estava se desembaraçando da roupa de
baixo. Ela deu uma espiada em Karlow, que continuava imóvel.
- Eu me recuso a essa prova idiota – disse ele.
- O senhor pode recusar, é claro; mas sua posição e a minha ficariam difíceis – retrucou
ela, quase nua, com delicadeza (CARNEIRO, 1991, p. 29).
Não apenas o comportamento sexual de Karlow (abstinente, segundo a
concepção do futuro configurado) levanta suspeitas. Ele usa relógios e estuda a morte,
comportamento que põe em evidência a relação entre a passagem do tempo e a
deterioração do corpo humano.
Játera, dizendo saber que nos aposentos de Karlow existem relógios, pede que o
professor os mostre. Ele, ao invés de obedecer ao pedido, liga um monitor com a
imagem de uma mulher morta e, ironicamente, diz: “Você nunca deve olhar para um
relógio” (CARNEIRO, 1991, p. 31). Ora, observar um cadáver ou um relógio são, para
92
as personagens, ações análogas – ambas despertam a consciência de que o tempo pode,
sim, passar. Játera expressa extremo desconforto diante da imagem, e a ligação entre
abstinência sexual, morte e tempo é levada adiante por Carneiro, no desenrolar da
passagem em questão:
- E o que lhe disseram do relógio?
- Que aqui existia o tempo – falou Játera, hesitante.
- E você?
- Treinei, fiz cálculos e usei meu relógio.
- Pobrezinha, tenho pena de você.
- Mas está acontecendo diferente do que esperava – confessou Játera.
- Por quê?
- Eu não sabia que ia... vê-la.
- E daí?
- Não sei, é a primeira vez... Naturalmente todos viram fotos, mas ali... Sei que está
perto; os pêlos pretos, tão primitivos; realmente ela está...
- Morta?
- O senhor fala tão facilmente.
- Também sou treinado para isso.
- E não tem medo?
- Sim, tenho. O medo é algo que se mede no cérebro humano. Temos de sentir uma
dosagem dele para apreciar a calma; temos de sentir medo para que a adrenalina acorde
nossos nervos (CARNEIRO, 1991, p. 31).
Como podemos observar, Játera sente-se incomodada por estar em um lugar
onde existe o tempo. Ou, segundo as proposições do segundo capítulo deste trabalho,
um lugar onde a consciência é capaz de organizar linearmente os instantes – para que o
tempo exista, basta uma consciência que o perceba como tal.
Karlow, por fim, apela à curiosidade da investigadora e consegue levá-la à sala
onde o cadáver da mulher é mantido:
Ela dormia plácida, as pernas levemente abertas.
93
- Mas ela não pode estar...
- Morta?
Játera olhou para o professor, que sorriu. Ele pegou a mão da jovem e aproximou-a do
cadáver. Foi levando-a devagar até o ventre da morta. Játera tinha os olhos abertos;
começou a puxar instintivamente o braço. Quando tocou a carne fria, puxou a mão
depressa.
- Por que você se assusta? – indagou o professor. – Veja, eu a toco. É agradável, a pele é
lisa, gostosa, quase excitante (CARNEIRO, 1991, p. 32).
A policial logo sai assustada da sala. De volta ao apartamento do professor,
Játera se veste e parte apressada, incapaz de conversar sobre o assunto.
O professor perturba a Polícia de Costumes por, além de estudar a morte, usar
relógios; tal comportamento, somado à abstinência sexual, é uma ameaça ao que aqui
chamamos de “ditadura do prazer”. Privando-se do sexo, contando a passagem do
tempo e estudando um assunto controverso, Karlow parece realizar uma busca pelo
sofrimento, por um desprazer que o tire da letargia de seu mundo.
Essa espécie de procura por desprazer, cujas implicações discutiremos logo
adiante, é verificável já no primeiro conto de André Carneiro do ciclo das “utopias
sexuais” (“Anarquia Sexual”, para Causo). Em Diário da Nave Perdida, incluído no
livro homônimo (o primeiro volume em prosa de Carneiro), apenas um casal sobrevive
a um acidente no espaço sideral. A nave em que viajam passa a vagar sem destino
definido, já que nenhuma das personagens possui os conhecimentos específicos
necessários para sanar as avarias mecânicas.
Distante de seu planeta natal, o casal a princípio se entrega desmesuradamente a
repetidas sessões no hipnocine
67
e ao consumo exagerado de mep-14
68
, uma droga
psicotrópica que aliena as personagens e extirpa as emoções. O estoque da droga,
67
Hypnos, na mitologia grega, é o deus que personifica o sono. A associação do nome ao cinema, bem
como a forma com que as personagens do conto usufruem do hipnocine, são sugestivas.
68
Tal droga imaginária é recorrente nas narrativas do ciclo, e é presente também em Amorquia. “Mep-14”
vem de “meprobamina”, composto do Valium. Este medicamento seria um antepassado menos eficiente
do mep-14.
94
contudo, acaba antes do esperado, deixando o casal à mercê de sua própria humanidade.
Ambos, então, se vêem forçados a lidar pela primeira vez com sentimentos como medo,
ciúme, desejo e amor. A narrativa, em forma de diário escrito pelo homem, acompanha
o estado de espírito do casal e as conseqüências da volta das emoções: sucinta e distante
a princípio, digressiva com o desenrolar.
Como é típico das narrativas utópicas e distópicas, o conto apresenta um
contraponto entre sociedades radicalmente divergentes:
Entre os maniqueus, o uso do mep é banido, aqueles que o usam de contrabando e são
apanhados, vão trabalhar presos, nas minas de ribsilitz. Sua civilização, tecnicamente
primitiva, evoluiu de maneira diferente da Terra. Eles não se preocupam com
facilidades mecânicas e as consideram inimigas do bem-estar. (...) As biblioimatec e os
enredos de hipnocine tratam-nos de maneira desprezível, como se fossem pouco mais
evoluídos do que os animais impregnados da colônia lunar. Revejo-os nas histórias
idiotas e acho inteligentes seus olhos profundos, já não rio das orelhas caídas, que
encerram a coragem de aceitar as próprias deficiências. Nós, terrenos, tivemos que nos
casar com máquinas e drogas. Os robots são também nosso filhos mecânicos, nos
suplantam, mas não somos capazes, como os maniqueus, de ficar toda uma noite a
contemplar as estrelas, ou de viajar a pé para ver as paisagens. Escrevo inutilmente
todas essas velhas e repetidas heresias, prescritas e condenadas. E o faço porque
pressinto que voltaremos (CARNEIRO, 1963, p. 194-195).
O que resulta do contraponto e da valorização do natural sobre o artificial não é
meramente o temor do novo ou mesmo do tecnicismo. Em última instância, afinal, os
maniqueus são superiores ao humanos não por terem uma civilização “tecnicamente
primitiva”, mas pela “coragem de aceitar as próprias deficiências” e de resistir à
tentação de esquecê-las por meio de métodos artificiais. Assim, o que é posto como
diferente e superior à conformação distópica não são valores tradicionais socialmente
construídos (como em Orwell e Zamiátin, segundo Ferns), mas uma procura por
consciência e aceitação das limitações humanas – percepção inconcebível se as emoções
jamais afloram.
95
A dificuldade que o protagonista e sua companheira sentem em lidar com as
emoções, por exemplo, não seria combatida com mep-14 pelos maniqueus. Forçadas a
enfrentá-la sem o auxílio artificial, longe dos confortos tecnológicos e químicos, as
personagens se identificam cada vez mais com a civilização “primitiva”.
Quando a espaçonave onde o protagonista e sua amante
69
vagam perdidos
finalmente chega à Terra, depois de dezesseis anos no espaço, ele se recusa a voltar aos
hábitos de sua sociedade. Secretamente, toma menos drogas do que lhe é recomendado
pelas autoridades: “Parece que estou dizendo tolices outra vez. São as doses de
midbenzila que tenho diminuído sem ordens. Liz não compreende, mas eu tenho um
certo prazer em voltar ao antigo estado” (CARNEIRO, 1991, p. 207). Sua companheira
da nave perdida volta sem sobressaltos ao artificialismo massificado de seu mundo
distópico e acaba por denunciar o protagonista. Recusando um recondicionamento
mental que o poderia tornar novamente “adequado”, escolhe ir “para Marte, viver entre
os maniqueus” (CARNEIRO, 1991, p. 209).
Para Sigmund Freud, tanto o progresso técnico quanto a influência química
sobre o organismo são métodos de evitar o desprazer. Na distopia de Diário da Nave
Perdida, os dois métodos trabalham juntos nesse exato intuito, mostrando-se produtivo
relacionar ao conto as proposições de Freud que seguem. Quanto ao progresso técnico,
Freud propõe que seu avanço “não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que
[os homens] poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes” (FREUD, 1997, p.
39). O progresso técnico, assim, não traz senão um “prazer barato”:
Gostaríamos de perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento
inequívoco no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade,
69
Diz o protagonista, em seu diário: “Liz é minha amante. É arcaica a palavra, mas como não empregá-la
se retornamos ao que foram os homens há séculos?” (CARNEIRO, 1991, p. 180).
96
escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância,
ou saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu destino,
que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada que a medicina
tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade infantil e o perigo de
infecção para as mulheres no parto, como também, na verdade, prolongar
consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há uma longa lista que poderia
ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos
progressos científicos e técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e
nos adverte que a maioria dessas satisfações segue o modelo do “prazer barato” louvado
pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama
numa noite fria de inverno e recolhê-la novamente. Se não houvesse ferrovias para
abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não precisaria
de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não tivessem
sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu não
precisaria de um telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito (FREUD, 1997,
p. 40).
Quanto à influência química sobre o organismo, Freud a considera o método
mais grosseiro, e também o mais eficiente, de combate ao sofrimento. Há uma
contrapartida em sua perspectiva:
Devemos a tais veículos [os intoxicantes] não só a produção imediata de prazer, mas
também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se
que, com o auxílio desse “amortecedor de preocupações”, é possível, em qualquer
ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com
melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa
propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar
danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande
quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano
(FREUD, 1997, p. 27).
Freud se refere ao indivíduo que encontra refúgio nos intoxicantes que o alienam
do mundo ao redor, uma espécie de “felicidade da quietude” alcançada por meio da
influência química do próprio organismo. Trata-se de uma satisfação análoga àquela
reservada à população de governos distópicos, dado observável no uso encontrado para
as drogas no futuro de Diário da Nave Perdida – drogas que suprimem as emoções e
“aquietam” a todos.
97
O retorno ao primitivismo técnico dos maniqueus representa a fuga do prazer
barato proporcionado pelos “robots” e pelas drogas, ou, em outras palavras, a procura
por um desprazer
70
que ponha em evidência as deficiências e as limitações humanas.
Apenas quando estas são ressaltadas, o protagonista pode realmente se sentir vivo.
Assim, fecha-se um ciclo: a fuga do prazer barato e a equivalente procura pelo
desprazer se transformam em uma espécie superior de prazer – o prazer de se sentir
humano, no caso.
Em Amorquia, há apenas uma breve menção à exploração do espaço sideral pelo
homem, em uma aparente alusão ao enredo de Diário da Nave Perdida. As personagens
Philte e Marta conversam:
- Você nunca saiu da Terra?
- Não.
- Percebe-se.
- Por quê? Só de me olhar?
- A moça sorriu, não sabia explicar.
-Fora da Terra, o homem é um animal desamparado, nervoso, agressivo...
(CARNEIRO, 1991, p. 80-81).
Em Diário da Nave Perdida, um acidente obriga o casal de protagonistas a
aceitar e a tirar proveito do desprazer; de volta à Terra, o homem não consegue mais se
adaptar a uma vida que passou a considerar artificial e massificada. Já em Amorquia,
não há nenhuma circunstância excepcional que permita às personagens um
distanciamento crítico
71
.
70
A aplicação do termo “desprazer” não é excessiva, já que o próprio protagonista usa a palavra
“masoquismo” para definir sua nova atitude.
71
As viagens no tempo permitem, é claro, um esboço de articulação crítica, mas não são comparáveis aos
dezesseis anos que os protagonistas de Diário da Nave Perdida passaram no espaço sideral. Afinal, as
98
Por esse motivo são tão tateantes os questionamentos que tentam fazer as
personagens e tão difícil, para elas, apreender a própria idéia de individualidade. A
procura por desprazer, paradoxal (já que almeja uma espécie de prazer) e dificultosa,
encontra amparo, embasamento e, por fim, se concretiza nas pesquisas do Dr. Karlow,
na coleção de antiguidades de Philte e em peças de teatro subversivas, para citar os
exemplos mais significativos.
Freud, em Além do Princípio de Prazer, toma como ponto de partida
proposições de G. T. Fechner a respeito da relação entre prazer e estabilidade e entre
desprazer e instabilidade. A hipótese de Freud, então, é
[...] que o aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente
tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante. Esta última hipótese
constitui apenas outra maneira de enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho
do aparelho mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação,
então qualquer coisa que seja calculada para aumentar essa quantidade está destinada a
ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, desagradável. (...)
[U]m exame mais pormenorizado mostrará que a tendências que assim atribuímos ao
aparelho mental, subordina-se, como um caso especial, ao princípio de Fechner da
“tendência no sentido da estabilidade”, com a qual ele colocou em relação os
sentimentos de prazer e desprazer (FREUD, 2003, p. 11).
Tal tendência à estabilidade e sua relação com o prazer é aplicável à quietude da
utopia e da distopia. A concepção de uma sociedade onde não existe nenhuma espécie
de conflito, bem como a necessidade de manter a população “satisfeita”, representam
uma garantia de estabilidade e, conseqüentemente, de prazer.
Para Freud, a procura humana por estabilidade “[p]or um lado visa a uma
ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos
de prazer” (FREUD, 1997, p. 24). Tal procura pela felicidade, contudo, nunca se
personagens que viajam pelo tempo não estão perdidas e sempre podem retornar à segurança de sua
própria época.
99
completa e inexiste a concretização do princípio de prazer – trata-se de uma busca sem
fim:
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio
do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início.
Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em
desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo.
Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe
contrárias. (...) O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da
satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo,
por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica (FREUD, 1997, p.
24).
Na utopia, ficcionalmente somos apresentados a um lugar onde tal busca
fantasticamente chegou a um fim. Lembremos que a palavra “utopia” traduz o conceito:
o “lugar perfeito”, que é “lugar nenhum”, que não existe e, de acordo com a perspectiva
freudiana, não pode existir. Já na distopia, a própria impossibilidade de um lugar
perfeito, onde o homem tenha encontrado a felicidade plena, é posta em evidência
72
. A
inquietação do protagonista típico desse tipo de texto é um exemplo de que as coisas
não são perfeitas como o Estado distópico quer fazer crer.
Amorquia, embora não se apresente plenamente como um texto distópico,
conforme proposto no segundo capítulo deste trabalho, ilustra significativamente a
instância, além de propor uma nova questão: se o indivíduo vive para a satisfação
(sexual, no caso), é incondicionalmente suprido em todas as suas necessidades e habita
um mundo onde não existe nenhuma espécie de conflito com o outro, de onde nasce a
inquietação das personagens? Em outras palavras, o que primeiramente as leva à
procura do desprazer e a questionar o prazer imediatista de seu mundo?
Segundo Freud,
72
Uma assertiva de Ferns parece implicar um sentido análogo ao de nossa proposição: “A distopia
satiriza tanto a sociedade como ela é quanto a aspiração utópica de transformá-la”, tradução de “Dystopia
satirizes both society as it exists, and the utopian aspiration to transform it” (FERNS, 1999, p. 109).
100
Quando qualquer situação desejada pelo princípio de prazer se prolonga, ela produz tão-
somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só
podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado
estado de coisas (FREUD, 1997, p. 24).
A vida no futuro configurado em Amorquia, estruturada em torno do prazer
sexual e livre da violência, da dor e da morte, não permite que as personagens tenham
um parâmetro comparativo, não havendo possibilidade de contraste. Logo, a inquietação
que os leva à procura por desprazer pode ser ilustrada pela célebre frase de Goethe,
citada por Freud em O Mal-estar na Civilização: “Nada é mais difícil de suportar que
uma sucessão de dias belos” (FREUD, 1997, p. 24). Para Freud “isso pode ser um
exagero” (FREUD, 1997, p. 24). Amorquia, contudo, propõe uma circunstância
ficcional onde tal exagero é possível.
3.3 – Procurando desprazer (ii)
É pertinente, neste momento, retornar a uma temática cara à literatura utópica,
discutida no segundo capítulo deste trabalho: a ordem da utopia e o excesso de ordem
da distopia. A imersão no prazer é, conforme propomos anteriormente, a forma
encontrada em Amorquia para aquietar as massas. A instância, já apresentada em textos
utópicos e distópicos pregressos, é posta em particular evidência no romance de
101
Carneiro, já que todas as ações e convenções sociais no futuro configurado são
subjugadas ao prazer sexual, isso quando não o almejam diretamente.
Assim, a enganosamente excessiva permissividade sexual
73
é um método para
alcançar a ordem – uma ordem em excesso, por vezes mostrada como odiosa e
antinatural. Imersa no prazer imediatista, a população se encontra “satisfeita” o bastante
para não questionar o Computador Central e nem para antagonizar o próximo.
Conseqüentemente, não há conflito de nenhuma espécie e nem espaço para “desordem”.
O desprazer, forma encontrada para escapar dessa letargia, possui, segundo
Freud, um papel na maturação do indivíduo:
Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como
fonte de sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a
diversos estímulos. (...) Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um
“objeto”, sob a forma de algo que existe “exteriormente” e que só é forçado a surgir
através de uma ação especial. Um outro incentivo para o desengajamento do ego com
relação à massa geral de sensações – isto é, para o reconhecimento de um “exterior”, de
um mundo externo – é proporcionado pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis
sensações de sofrimento e desprazer, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo
princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio (FREUD, 1997, p. 13-14).
O ego originalmente incluiria tudo, antes de separar o que é “externo” e o que é
“eu”. O ego original, contudo, não seria extirpado com o passar dos anos: Freud fala
numa preservação do ego infantil, que coexiste com aquele cuja autoconsciência foi
auxiliada pela experiência do desprazer. Dessa forma,
[n]osso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo
de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente - , que
corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que
há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em
maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e
mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu.
Nesse caso, o conteúdo de uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo
73
“Enganosamente permissiva” porque, como já foi discutido, a promiscuidade é imposta.
102
ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com
o universo (FREUD, 1997, p. 14).
Freud assim explica o sentimento religioso: o vínculo com o universo – a
percepção de que há uma força maior que a tudo une e dá sentido – derivaria de uma
preservação em maior grau do ego infantil original, aquele que engloba tudo e não se
dissocia do mundo externo.
A articulação de tais proposições com nossa leitura de Amorquia parece
particularmente produtiva, se for levada em conta uma assertiva de Chris Ferns já
mencionada no segundo capítulo deste trabalho. Segundo o crítico, o Estado distópico
suprime a emergência da identidade individual por meio do interesse em estabilidade e
conforto, a fim de que não haja nenhuma percepção madura o bastante para notar as
limitações da sociedade.
Embora tradicionalmente a utopia e a distopia reflitam essa marca, em Amorquia
relevo maior é dado a ela. No futuro configurado no romance, o sofrimento foi
definitivamente banido da vida humana, e as personagens desconhecem por completo a
doença, a morte e até mesmo o conceito de agressão física. Tanto que, quando viajam
para épocas onde ainda existem tais mazelas, mal as podem compreender. Livres do
contato com qualquer espécie de desprazer e jamais confrontadas com problemas a
serem resolvidos, as personagens apenas desempenham acriticamente os papéis a elas
designados e seguem, como uma grande massa indistinta, convenções sociais estanques.
Dessa forma, o desprazer acaba por protagonizar a individualização; por meio
dele, as personagens são capazes de articular criticamente as próprias limitações e as do
mundo onde vivem, e conseguem, por fim, escolher uma forma de apreensão da
103
realidade que é distinta da sancionada. Assim, pode ser abandonada a noção de que
fazem parte de um todo homogêneo, dentro do qual não conseguem se particularizar.
A conclusão do romance, de acordo com essa lógica, se mostra otimista.
Aparentemente, os intentos revolucionários fracassam, pois três dos protagonistas,
Pércus, Túnia e Karlow, são aprisionados e torturados. Tornam-se vítimas de uma
violência que não imaginavam ser possível no mundo pacífico e letárgico onde vivem.
Pércus e Túnia parecem morrer, mas renascem num lugar que enxergam como
paradisíaco, onde os problemas não mais existem. Ou seja, como se tivessem passado
por uma lavagem cerebral, renascem livres da vontade de tornar sua sociedade cinética,
ao invés de estática.
Num dado momento, durante a tortura, temos um diálogo sintomático:
- Tortura, prisão. Há centenas de anos que tinham acabado.
- Não era isto o que vocês queriam? – gritou a voz.
- Não.
- Era isto sim – interrompeu-o a voz. – O homem usando métodos humanos. O homem
livre para ser homem. Não era isto que Philomene queria? O que vocês todos queriam?
- Não a tortura, a opressão. Queríamos...
- Queriam o homem com suas prerrogativas humanas; queriam o homem com seu ódio,
sua fraqueza, sua violência (CARNEIRO, 1991, p. 182).
Se o povo está mergulhado no prazer e na passividade, o fato de os repressores
fazerem uso da violência já basta para sugerir que alguma mudança aconteceu. Ou seja,
a ditadura do prazer torna suas fraquezas evidentes quando é preciso provocar desprazer
para mantê-la.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura utópica, para Darko Suvin, deve ser entendida como uma
construção verbal que expressa o efeito de distanciamento cognitivo, sendo este o traço
“suficiente e necessário” para que chamemos um texto de “ficção científica”. Assim,
Suvin encara a utopia como uma categoria da ficção científica, um subgênero.
Nossa discussão acerca de Amorquia, de André Carneiro, parece endossar tal
proposição. Embora o romance encontre particularidades em relação à ficção científica,
é em comparação com a literatura utópica que suas especificidades se mostram mais
significativas e numerosas.
A maior particularidade do romance em relação à ficção científica é, em nossa
perspectiva, a forma com que os nova são trabalhados. Conforme observou Finisia
Fideli,
O cenário é neutro, não cai nos artifícios comuns à FC. Apenas aqui e ali são definidas
algumas noções que fazem o vislumbre de uma sociedade futura. Carneiro não
menciona naves espaciais, artefatos ou objetos de qualquer espécie. Suas teorizações
sobre a viagem no tempo deixam em aberto se se trata de uma máquina capaz de tal
efeito, de algum tipo de teatro, ou uma droga alucinógena que muda a realidade dos
personagens. O leitor que decida. Também não recorre aos inevitáveis clichês do
gênero. (...) [T]raça, antes de tudo, um retrato contundente dos dias atuais, sob forma de
crítica aos nossos costumes, nossa incapacidade de relacionamento em geral, a
violência, a guerra e a poluição (FIDELI, 1991, p. 30).
A neutralidade do cenário, bem como a crítica social apresentada pelo
romance, aludidas por Fideli, podem ser articuladas aos conceitos de Suvin, a fim de
melhor embasar a particularidade de Amorquia a que nos referimos. O novum,
lembremos, é a forma com que um texto de ficção científica expressa o efeito de
distanciamento cognitivo; este, por sua vez, evoca um posicionamento crítico no
105
fruidor, por meio de observações de ordem cognitiva acerca da realidade empírica.
Apresentando nova enevoados ou à beira da ausência, a maneira com que Amorquia
expressa o distanciamento cognitivo se mostra econômica e eficaz.
As particularidades com relação à utopia são mais numerosas. A forma literal
com que a ausência de movimento da utopia se apresenta no romance é uma delas.
Configurando um mundo onde o tempo foi socialmente abolido para que o prazer da
população seja indefinidamente perpetuado, Carneiro põe em evidência a estaticidade
da utopia.
Outra marca que particulariza Amorquia entre os textos utópicos e distópicos
é o questionamento acerca da natureza da democracia. O retrato de um futuro autoritário
na distopia consiste, pelo contraste, em uma velada valorização de Estados onde o povo
tem lugar para opinar e, por assim dizer, pensar. Em Amorquia, pelo contrário, até
mesmo o conceito de democracia é visto com certa desconfiança, vide o suspeitoso
discurso do Computador Central, que diz governar para a maioria.
A representação simultânea do temor do autoritarismo e da suspeita para com
governos que se dizem democráticos é, conforme proposto no segundo capítulo deste
trabalho, esclarecida pelo contexto em que Amorquia foi escrito. Podemos dizer que, em
especial devido a essa marca, o romance de Carneiro efetivamente traz para a ficção
científica e para a literatura utópica questões nacionais.
É curioso que, na entrevista citada neste trabalho, André Carneiro articule
uma crítica tanto ao regime autoritário quanto à democracia brasileira. Disse o autor,
lembremos, que antes de ser pessoalmente perseguido pela ditadura, vivia na “segurança
relativa dessa ‘democracia’ brasileira, entre aspas”.
O contraponto não é, em Amorquia, operado como em outros textos da
literatura utópica. A utopia, lembremos, apresenta um mundo “ideal”, superior em todos
106
os sentidos ao do autor. A distopia, por sua vez, um mundo odioso, pior ao do autor mas
passível, pelo contraste, de apresentar o conceito do que seria uma sociedade desejável.
Em Amorquia, a representação é oscilante: os traços do futuro são ora
odiosos, ora desejáveis. Desse modo, o romance parece efetuar uma fuga de
julgamentos definitivos sobre qualquer dado cultural. Como observa uma personagem
em dada passagem, “[n]ós reagimos de acordo com o condicionamento de nossa época”
(CARNEIRO, 1991, p. 26). Um exemplo é o incesto, condenado em nossa época e
natural no futuro configurado
74
. Nesse sentido, o maniqueísmo da literatura utópica,
decorrente do contraponto entre o certo e o errado, o odioso e o ideal, é menos
observável em Amorquia.
A temática central do romance foi a posta em maior relevo neste trabalho: o
jogo entre os conceitos de prazer e desprazer. Conforme discutimos, a necessidade de
manter a população satisfeita por meio do prazer é um tópico presente na literatura
utópica desde o texto matriz, A Utopia, de Thomas More. A distopia atribui um valor
negativo à questão, no retrato de mundos onde a vontade de se opor ao Estado é
subtraída por meio do prazer que a todos “aquieta”.
Em Amorquia, o prazer, como forma de controle social, é posto em primeiro
plano e abordado com um destaque maior que em textos utópicos e distópicos
pregressos. A fim de melhor explorar a instância, se mostrou proveitosa uma articulação
com proposições de Freud acerca da natureza do prazer e do desprazer humanos. Para
Freud, a vida do homem é norteada pelo “princípio de prazer”, conceito que encerra
uma dicotomia; se refere tanto à busca por sentimentos de prazer quanto à fuga de
situações que possam causar desprazer.
74
O narrador, é preciso observar, não oferece nenhuma espécie de julgamento sobre a relação sexual entre
Pércus e sua mãe.
107
Na perspectiva freudiana, o prazer e o desprazer são, respectivamente,
relacionados à estabilidade e à instabilidade. Amorquia, como já frisamos, configura
uma sociedade exageradamente estável, onde sequer o tempo passa. Em última
instância, a incessante procura por prazer sexual é, no futuro configurado, a principal
responsável por tamanha imutabilidade. Assim, é natural que, para fugir da indolência e
colocar movimento em sua sociedade, as personagens procurem desprazer.
O desprazer se apresenta, também, como um mecanismo para alcançar a
identidade individual. A esse respeito, a especulação de Freud acerca da
individualização do ego se mostrou esclarecedora. O ego infantil original seria aquele
que não diferencia a si próprio do “exterior”; posteriormente, por meio principalmente
de experiências de desprazer, que evidenciam a possível hostilidade do mundo externo
ao ego, nasce a percepção de que o ego e o “exterior” não são equivalentes.
Em Amorquia, dada a ausência de desprazer no futuro configurado, o
indivíduo não se defronta com nenhuma espécie de sofrimento – a não ser que o procure
deliberadamente – e, em conseqüência, não encontra meios para amadurecer. O
desprazer protagoniza o processo de individualização para certas personagens do
romance, que se valem da contagem do tempo, do questionamento sobre a temível
morte e da abstinência sexual para se livrarem da letargia e se sentirem vivos.
Para Freud, a preservação do ego infantil em um grau elevado responde pela
religiosidade, uma “sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem
fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer” (FREUD, 1997, p. 9). Na circunstância
ficcional apresentada em Amorquia, a implicação de tal “vínculo com o universo” não é
o sentimento religioso, mas a irrestrita e singularmente acrítica identificação do
indivíduo com as normas sociais que o regem. Se a equivalência entre o ego e o exterior
108
resulta em religiosidade na circunstância empírica discutida por Freud, em Amorquia o
resultado não é outro senão a indissociabilidade entre o indivíduo e a sociedade.
Segundo Freud, um passo decisivo para civilização
75
é a “substituição do
poder do indivíduo pelo poder da comunidade” (FREUD, 1997, p. 49). Dada a
indissociabilidade entre o indivíduo e as normas que o condicionam, em Amorquia um
valor negativo é atribuído a tal substituição.
Por meio do desprazer, conforme proposto no presente trabalho, as
personagens podem vislumbrar uma forma de contornar essa circunstância. Um trecho
que liga explicitamente a perda da liberdade ao prazer sancionado e incentivado, como
fizemos no título deste texto, reafirma nossas proposições:
- Karlow, nós precisamos ter coragem – disse ela, trêmula.
- Para quê? – ele gritou.
- Para transformar as coisas, para abrir um caminho novo e para sair da escravidão do
prazer (CARNEIRO, 1991, p. 111).
75
Do original “kultur”. O conceito “descreve a soma integral das realizações e regulamentos que
distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de
proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (FREUD, 1997, p.
41-42).
109
REFERÊNCIAS
a) Obras de André Carneiro:
CARNEIRO, André. Amorquia. São Paulo: Aleph, 1991. (Coleção Zenith: v. 4).
________________. Um Caso de Feitiçaria. In: CARNEIRO. O homem que
adivinhava. São Paulo: EdArt, 1966. p. 23 – 46.
________________. Crônicas do André. [s.d. [1] ], [texto digitado].
________________. Diário da Nave Perdida. In: CARNEIRO. Diário da nave perdida.
São Paulo: EdArt, 1963. p. 161 – 209.
________________. A Escuridão. In: CARNEIRO. Diário da nave perdida. São Paulo:
EdArt, 1963. p. 113-160.
________________. O Homem que Adivinhava. In: CARNEIRO. O homem que
adivinhava. São Paulo: EdArt, 1966. p. 51 – 78.
________________. Introdução ao Estudo da Science-Fiction. [s.d. [2] ], [Texto
digitado].
________________. A Máquina de Hyerónimus e outras histórias. São Carlos: Editora
da UFSCar, 1997. (Coleção Visões; v. 1).
________________. Piscina Livre. São Paulo: Moderna, 1980.
110
b) Bibliografia Geral:
ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. Tradução de Antonio Alexandre
Faccioli e Gregório Pelegi Toloy. São Paulo: Summus Editorial, [s.d.].
ANDERSON, Poul. Tau Zero. Tradução de Mário Molina. Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves Editora, 1983.
ASIMOV, Isaac. Os novos robôs. Tradução de Áurea Weissenberg. Rio de Janeiro:
Editora Expressão e Cultura, 1972.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS - ABNT. NBR 6023:
informação e documentação: referências - elaboração. Rio de Janeiro, ago. 2002.
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