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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE
KELVIA DE ASSUNÇÃO FERREIRA BARROS
A DIMENSÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E O
ENFRENTAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Fortaleza – Ceará
Dezembro de 2008
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KELVIA DE ASSUNÇÃO FERREIRA BARROS
A DIMENSÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E O
ENFRENTAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado
Acadêmico em Políticas blicas e Sociedade
da Universidade Estadual do Ceará como
requisito parcial para a obtenção do tulo de
Mestra.
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro
Ferreira Osterne
Fortaleza – Ceará
2008
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FOLHA DE AVALIAÇÃO
Título da dissertação: A DIMENSÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E O
ENFRENTAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES”
Nome da mestranda: Kelvia de Assunção Ferreira Barros
Nome da orientadora: Maria do Socorro Ferreira Osterne
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne
Universidade Estadual do Ceará
Orientadora
Profa. Dra. Maria Glaucíria Mota Brasil
Universidade Estadual do Ceará
1ª Examinadora
Profa. Dra. Maria Dolores de Brito Mota
Universidade Federal do Ceará
2ª Examinadora
Data da defesa: 19/12/2008 Conceito obtido:________________
4
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
5
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
(Geni e o zepelim, Chico Buarque)
6
Dedico estas páginas a todas as Genis.
7
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, pela força de sempre.
Ao meu pai, Francisco, pelo apoio incondicional.
A minha mãe, Assunção, pelas palavras, nem sempre bem interpretadas.
Ao meu irmão, Cleiton, agora distante, mas continuamente presente.
A minha irmã, Kelviane, pelo exemplo de persistência e determinação.
Ao Joacy, pelas discussões compartilhadas, pelo amor.
À Tina, pela amizade.
Às amigas Jane Meyre, Mariana e Vívian, que de diferentes maneiras sempre
contribuem na minha trajetória.
Aos o queridos amigos e amigas que me deram o enorme prazer da companhia
nesse período do Mestrado: Alexandre, Assis, Bruno, Herliene, Jane, Kelma, Keyla,
Marcelo, Marcílio, Marcus, Paulo Lira, Roberto, Rochelly e Sônia.
À Fátima, secretária do Mestrado, pela presteza nos momentos necessários.
À professora Socorro Osterne, pela aceitação do convite e pelo apoio como
orientadora.
Às professoras Maria Glaucíria Mota Brasil e Maria Dolores de Brito Mota, pela
valiosa participação no momento final desse percurso.
Às assistentes sociais e aos (as) psicólogos (as) entrevistados (as), pela imensa
contribuição na realização desse trabalho. Igualmente, pela resignação que
demonstraram no exercício de suas profissões.
À professora Teresa Cristina Esmeraldo Bezerra, por ter despertado em mim o
desejo de continuação da vida acadêmica e a paixão pelos estudos de Gênero.
A todas as pessoas que, mesmo não citadas aqui, cruzaram e cruzam o meu
caminho, contribuindo para a minha formação pessoal e profissional.
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
FUNCAP, pelo apoio financeiro.
8
RESUMO
Ao delimitar como participantes assistentes sociais e psicólogos (as) que atuam
diretamente no atendimento a crianças e adolescentes inseridos (as) na exploração
sexual comercial, a investigação da presente pesquisa insere-se no contexto da
Política de Assistência Social, precisamente naquele voltado às ações ao
enfrentamento desta manifestação da violência contra o público infanto-juvenil. O
objetivo geral consiste em compreender o discurso desses (as) profissionais sobre as
relações mantidas entre homens e mulheres, tendo em vista a maneira como
investigações preexistentes demonstram se configurar a exploração sexual comercial.
Nesse sentido, pesquisas e discussões geralmente conferem a este tipo de
exploração o caráter de violência que aflige crianças e adolescentes, em especial as
meninas. Em regra, são elas as principais “vítimas”, enquanto os homens são
apontados como os principais “exploradores”. Para a compreensão almejada, o
conceito gênero é definido como a categoria principal, em razão da ênfase que
oferece aos aspectos relacional e social na apreensão das experiências de homens e
mulheres. Em relação à metodologia empregada para alcançar os objetivos
propostos, evidencia-se neste trabalho uma pesquisa de natureza eminentemente
qualitativa. Além das pesquisas bibliográfica e documental foi realizada também a de
campo, na qual participaram nove profissionais que atuam em Fortaleza e em sete
municípios de sua Região Metropolitana (Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Horizonte,
Itaitinga, Maracanaú e São Gonçalo do Amarante). Sobre os resultados auferidos, em
linhas gerais, a pesquisa verificou na fala dos sujeitos discursos limitados e restritos a
propósito das dimensões culturais e simbólicas, necessárias ao entendimento da
exploração sexual comercial. Foi, igualmente, confirmada a hipótese seguinte: o
discurso desses (as) profissionais sobre as relações entre homens e mulheres
encontra-se permeado de estereótipos acerca do masculino e do feminino
construídos historicamente, uma vez que estão inseridos (as) em uma sociedade que
naturaliza maneiras diferenciadas de tratamento entre os sexos.
Palavras-chave: Gênero, exploração sexual comercial e crianças e adolescentes.
9
ABSTRACT
The Present research is inserted in the context of the policy of Social Welfare, mainly
in the context of actions facing the commercial sexual exploitation of children and
adolescents. It demarcates the performance of social workers and psychologists who
work directly with the counselling of children and adolescents inserted in commercial
sexual exploitation. Its general objective is the one of understanding the discourse of
such professionals concerning the relations between men and women based on how
previous research show the setup of commercial sexual exploitation. Research and
debate usually classify the sexual exploitation of children and adolescents – especially
the exploitation of girls – as violence, and, in general, it is said that girls are usually the
“victims” of sexual exploitation whereas men are pointed out as the main “exploiters”.
Aiming an effective understanding of the present research, the concept of gender is
defined as the main category of this work due to the focus it has on the relational and
social aspects of the perception of relations between men and women. The
methodology implied to achieve the proposed objectives is eminently qualitative. In
addition to the bibliographic research, documental and field research were also
carried. Nine professionals took part in the field research out of which some work in
Fortaleza as well as in 7 towns of its metropolitan area (Aquiraz, Caucaia, Eusébio,
Horizonte, Itaitinga, Maracanaú, and São Gonçalo do Amarante). Concerning the
results obtained, the research revealed a limited and restricted discourse in the
cultural and symbolic dimensions which are necessary to understand sexual
commercial exploitation thoroughly. The results also confirm the hypothesis that the
discourse of such professionals about the relations between men and women is based
on stereotypes about male and female which have been historically built and
reinforced in a society which treats such stereotyped differences as natural.
Key words: Gender, sexual commercial exploitation and children and adolescents.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 11
CAPÍTULO 1 A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E AS
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O GRUPO INFANTO-JUVENIL................................. 17
1.1 Uma breve abordagem sobre a violência contra crianças e adolescentes......... 17
1.2 A história social da criança e da família.............................................................. 23
1.3 Infância e adolescência na realidade brasileira.................................................. 30
1.3.1 A família nuclear burguesa e o novo lugar ocupado pela infância............. 37
1.4 Políticas públicas para crianças e adolescentes no Brasil................................. 41
CAPÍTULO 2 ASPETOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA EXPLORAÇÃO
SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.................................... 55
2.1 As manifestações da violência sexual contra crianças e adolescentes............. 55
2.2 Dimensões econômicas e culturais da exploração sexual comercial................. 61
2.2.1 Fatores culturais e simbólicos..................................................................... 66
2.2.2 A dimensão social da sexualidade.............................................................. 73
CAPÍTULO 3 O CONTEXTO, A ATUAL CONFIGURAÇÃO E AS PRIMEIRAS
PERCEPÇÕES SOBRE O CAMPO: OS SERVIÇOS DE ENFRENTAMENTO À
VIOLÊNCIA, AO ABUSO E À EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES........................................................................................................ 87
3.1 Circunstâncias do enfrentamento: avanços e desafios....................................... 87
3.2 Das escolhas ao percurso teórico e metodológico da investigação.................. 102
3.3 Os serviços de enfrentamento à violência, ao abuso e à exploração sexual no
contexto da Política de Assistência Social............................................................... 109
CAPÍTULO 4 A DIMENSÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E O
ENFRENATAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL.......................... 118
4.1 A construção social da masculinidade e da feminilidade................................. 118
4.2 Sobre a categoria gênero................................................................................. 127
4.2.1 Os aspectos social e relacional do gênero................................................ 130
4.2.2 Gênero e patriarcado................................................................................. 137
4.3 As dimensões históricas e culturais da exploração sexual comercial para os
sujeitos investigados................................................................................................ 141
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 158
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 163
ANEXO....................................................................................................................... 169
11
INTRODUÇÃO
Perguntas como aquelas que se referem ao sexo dos bebês antes até do
nascimento, embora freqüentes em todos os cantos do mundo, estão repletas de
significados que acompanham todas as pessoas ao longo da vida.
Começa-se por essa assertiva, com a intenção de logo dizer que, mesmo
antes de nascer, e mais intensamente a partir do momento do nascimento, todos
(as) encontram-se a mercê de influências sociais que condicionarão sua maneira de
ver e de estar no mundo.
Quem foi que disse que a cor das meninas é o rosa e a dos meninos a cor
azul? Quem disse que os meninos devem brincar com carros e as meninas com
bonecas? De onde veio a idéia de que meninos não podem chorar ou que as
meninas são mais sensíveis?
Talvez não seja possível precisar o tempo exato em que idéias similares a
essas surgiram, instituindo-se como verdades. Contudo, ao tomar por pressuposto a
famosa frase de Simone de Beauvoir: ninguém nasce mulher, mas se torna mulher,
percebe-se que essas idéias são resultado de construções sociais produzidas e
reproduzidas ao longo da história.
Desde criança, homens e mulheres são, portanto, “naturalmente”
diferenciados, sendo a ambos atribuídos lugares, formas de pensar e
comportamentos diferentes, assim como, cores, brinquedos e até mesmo
sentimentos.
Para Louro (1997), relacionada, a princípio, às distinções biológicas, tal
diferença entre os gêneros serviu para explicar e justificar as mais variadas
distinções entre homens e mulheres. Estas distinções são nomeadas a partir de um
determinado lugar de referência e não raramente transformadas em desigualdades.
Nessa delimitação dos espaços próprios a homens e mulheres, observa-se
uma prevalência do masculino que, inegavelmente, refletiu-se em diversas
instâncias da sociedade: na família, no mundo público, na ciência, na história, onde,
segundo Perrot (2007), as mulheres foram invisibilizadas e negligenciadas nos
relatos.
De acordo com Barbieri (1993), grandes teorias e autores que conformaram o
pensamento ocidental levaram em conta a diferença sexual e pensaram o humano
12
como masculino, conferindo naturezas e comportamentos diferenciados para os
sexos. Dentre tantos, cite-se J-J Rousseau (2004), filósofo que, em razão de
supostas diferenças entre as “naturezas” feminina e masculina, defendeu uma
educação diferenciada, tendo em vista que as mulheres precisariam ser educadas
para a domesticação, subjugadas ao sexo masculino.
Não obstante, ou mesmo por encontrarem-se posicionadas em um lugar
diferenciado de exercício de poder, estando frente a uma sociedade histórica e
predominantemente machista, as mulheres obtiveram através de movimentos de
idas e vindas conquistas até certo tempo impensáveis. Elas reivindicaram igualdade,
começaram a assumir atividades fora do ambiente doméstico, aumentaram
significativamente os seus anos de escolaridade, configuraram-se como “chefes de
família”, desempenharam papéis, até então, considerados impossíveis ou
inatingíveis por elas.
Porém, se para muitos as mulheres conquistaram tudo o que havia para
conquistar, alguns estudiosos como Bourdieu (2005) proclamam que as mudanças
visíveis que afetaram a condição feminina mascaram a permanência de estruturas
invisíveis, somente passíveis de elucidação por um pensamento relacional.
Tendo em vista essas estruturas invisíveis, lembram-se as inúmeras
manifestações de violência as quais estão mulheres e meninas submetidas, ao que
parece em decorrência da própria condição que a sociedade atribui a elas. Em meio
a outras tantas, destaca-se nesta pesquisa a exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes.
Como se de notar em processo investigativo anterior à delimitação deste
trabalho, todas as pesquisas e discussões preexistentes conferem à exploração
sexual comercial o caráter de violência que acomete crianças e adolescentes, em
especial as meninas. Os homens são, em regra e nessa conjuntura, apontados
como os principais “exploradores”.
Em estudo consolidado na realidade do estado do Ceará, Ellery (2003), por
exemplo, demonstra a prevalência das meninas no perfil do público entrevistado.
Crianças e adolescentes do sexo feminino representaram, nesse contexto, o
percentual de 89,4% do total de investigados (as), fazendo Ellery (2003) considerar
como um fator preponderante para essa situação a manutenção de valores
pertencentes a uma cultura machista e patriarcal.
13
Em pesquisa mais recente realizada no município de Fortaleza, Diógenes
(2008), igualmente, verificou a prevalência das meninas entre o público identificado
na situação de exploração sexual comercial. Ainda que não tão expressivo quanto o
anterior, o dado em relação ao sexo, nessa investigação, evidenciou um público
feminino no percentual de 68,3% do total dos (as) investigados (as).
Em conformidade com Anais do Seminário sobre Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes nas Américas, ocorrido em 1996, Leal (1999) destaca
alguns elementos que configuram essa manifestação de violência contra o público
infanto-juvenil. Anuncia, nesse sentido, que a idade das crianças e adolescentes
submetidos à exploração sexual oscila entre 10 e 19 anos e tanto podem ser do
sexo feminino quanto do masculino, de todas as classes sociais e etnias, embora
ressalte: a grande incidência ocorre entre adolescentes mulheres, provenientes das
classes populares de baixa renda que vivem na periferia dos centros urbanos, nos
garimpos e outros locais similares (p.7).
Nas linhas anteriores, se observa a existência de elementos culturais
importantes para a compreensão da exploração sexual comercial, tendo em vista a
percepção da prevalência das meninas, bem como o caráter geracional inerente a
esta situação. Nessas circunstâncias, Leal & Leal (2005) salientam mais um aspecto
significante ao dizerem que o racismo é outra forma da violência se materializar na
relação de exploração sexual (p.33). Afirmação atrelada, provavelmente, às
estatísticas de pesquisas que demonstram a grande inserção de crianças e
adolescentes mulatas ou designadas “pardas” no fenômeno em alusão, e ao
seguinte comentário:
O corpo infanto-juvenil é mais um produto colocado no mercado globalizado
do sexo, onde o marketing e a publicidade de um modo geral encarregam-
se de fabricar, no caso brasileiro, a imagem da mulher jovem e mulata
direcionada, por exemplo, para o turismo sexual e indústria do consumo
(p.33).
Como se demonstrará mais detidamente no início do capítulo 3, observaram-
se nos últimos anos avanços significativos quanto ao enfrentamento da exploração
sexual comercial pelo poder público e, também, quanto à percepção da sua
complexidade. Reconheceu-se unanimemente a importância da apreensão de
variáveis e dimensões econômicas e culturais transversais a este fenômeno,
notadamente algumas mencionadas por Ellery (2003): a cultura patriarcal e
14
machista, a negação da condição de sujeito de direito de crianças e adolescentes
(adultocentrismo), a desigualdade social e econômica, o padrão de sexualidade
vigente, baseado na instrumentalização do corpo feminino.
Logo, atentando-se para todas essas indicações, o objetivo maior deste
trabalho configura-se na intenção de dar ênfase às dimensões culturais e simbólicas
que atravessam as manifestações da exploração sexual comercial e são expressas
no perfil das crianças e dos (as) adolescentes envolvidos (as). Destaque especial é
dado para a dimensão relacional entre homens e mulheres, discutida nesta pesquisa
a partir da categoria gênero.
Para a manutenção de um diálogo sobre essas dimensões, foram escolhidos
como sujeitos participantes os (as) profissionais que se encontram inseridos (as) em
serviços de atendimento às denominadas vítimas da exploração sexual comercial.
Trata-se de assistentes sociais e psicólogos (as) que realizam o atendimento no
contexto dos Serviços de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração
Sexual, antigos Programas Sentinela, concebidos a nível federal e executados por
inúmeros municípios brasileiros.
Com o objetivo de compreender a maneira como percebem essas dimensões
culturais e simbólicas, formulou-se a pergunta central desse trabalho da seguinte
maneira: O que pensam os (as) profissionais que realizam os atendimentos
psicológico e social a crianças e adolescentes vitimizados pela exploração sexual
comercial, sobre as relações entre homens e mulheres construídas
sociohistoricamente?
Outras questões igualmente permeiam este trabalho, são elas: Como esses
(as) profissionais se relacionam com os demais atores da rede de enfrentamento ao
fenômeno? Quais são os parâmetros utilizados para a realização desses
atendimentos? Como esses (as) profissionais compreendem as dimensões
socioeconômicas e simbólicas transversais ao fenômeno? De que maneira essa
compreensão interfere em suas práticas cotidianas?
Delimitaram-se como áreas geográficas de análise os Centros de Referência
Especializados de Assistência Social CREAS dos municípios de Aquiraz,
Caucaia, Eusébio, Horizonte, Itaitinga, Maracanaú e São Gonçalo do Amarante; o
Espaço Aquarela da Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI – da
Prefeitura Municipal de Fortaleza; e o Núcleo de Enfrentamento à Violência contra
15
Crianças e Adolescentes, localizado em Fortaleza e coordenado pela Secretaria do
Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Ceará.
Vale ressaltar, ainda, dois pontos importantes deste processo investigativo.
Primeiro, a escolha do gênero como principal ferramenta analítica, tendo em vista o
caráter fundamentalmente social e relacional atribuído a esta categoria. Segundo, a
inscrição da hipótese que assevera estar a percepção dos sujeitos investigados
permeada de estereótipos acerca do masculino e do feminino construídos
sociohistoricamente, uma vez que se encontram inseridos (as) em uma sociedade
que naturaliza maneiras diferenciadas de tratamento entre os sexos.
Visando responder às questões sugeridas, assim como proporcionar ampla
discussão sobre a temática da exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes, estruturou-se este trabalho em quatro capítulos.
No primeiro capítulo A violência contra crianças e adolescentes e as
políticas públicas para o grupo infanto-juvenil –, constrói-se uma discussão sobre
manifestações da violência contra o público especificado, o movimento histórico que
introduz uma nova forma de tratamento à infância, assim como o caminho percorrido
pelas políticas públicas direcionadas ao grupo de crianças e adolescentes.
No segundo Aspectos históricos e conceituais da exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes , apresentam-se os posicionamentos que
interpõem a questão proposta como uma manifestação da violência sexual cometida
contra crianças e adolescentes. Além disso, são destacadas importantes dimensões
para a compreensão da exploração sexual comercial, indicadas, neste trabalho,
como condicionantes ou fatores de vulnerabilização.
No terceiro capítulo O contexto, a atual configuração e as primeiras
percepções sobre o campo: os serviços de enfrentamento à violência, ao abuso e à
exploração sexual de crianças e adolescentes –, inicialmente percorrem-se os
caminhos trilhados pelo poder público para o enfrentamento da exploração sexual
comercial e, logo em seguida, apresenta-se a trajetória teórica e metodológica desta
investigação. Do mesmo modo, apresentam-se os sujeitos investigados e os
serviços onde estes desenvolvem suas atividades, para uma melhor compreensão
dos discursos proferidos.
No quarto e último capítulo A dimensão das relações de gênero e o
enfrentamento da exploração sexual comercial , destaca-se a categoria gênero
16
para, então, inserir no debate principais aspectos das falas dos (as) interlocutores
(as) entrevistados.
Antes, contudo, de se trafegar pelas páginas subseqüentes, faz-se necessário
ressaltar a importância desta pesquisa, sobretudo pelo diálogo proporcionado com
aqueles (as) que, dentre outros (as), trabalham com a finalidade de garantir, através
de políticas públicas específicas, direitos a crianças e adolescentes em um país
onde esses direitos ainda não são plenamente consolidados.
17
1. A VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E AS
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O GRUPO INFANTO-JUVENIL
1.1 Uma breve abordagem sobre a violência contra crianças e
adolescentes
Nos últimos anos muito se discute sobre as diversas manifestações violentas
a que todos os indivíduos estão vulneráveis, seja no interior das universidades ou
nas ruas, a violência em suas inúmeras expressões tornou-se tema instigante,
presente e atual, especialmente na sociedade brasileira.
Tal constatação parece estar associada aos surpreendentes números e
informações que cotidianamente demonstram seu crescimento, e percepções como
as publicadas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2004) as quais
apontam a violência como um dos graves problemas que afligem a humanidade e
uma das principais causas de morte de pessoas com idade entre 15 e 44 anos.
Conquanto a habitual consideração desse fenômeno em seu aspecto
negativo, pois que costumeiramente associável à utilização da força por um lado e a
submissão e a própria vitimização por outro, o se deve reduzir a sua análise. Isto,
sobretudo, por entender a complexidade que o envolve, tendo em vista expressar-se
de diferentes maneiras e acometer diversos púbicos, estando mesmo inscrito, para
muitos, nas relações estabelecidas entre os indivíduos.
(...) A violência é uma forma de relação social; está inexoravelmente atada
ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições
sociais de existência. Sob essa óptica, a violência expressa padrões de
sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de comportamento
vigentes em uma sociedade em um momento determinado de seu processo
histórico (ADORNO apud GUERRA, 2001).
Estudos sobre as especificidades da violência demonstram a importância da
compreensão de seus condicionantes culturais e históricos, notadamente quando os
sujeitos acometidos por atitudes violentas são provenientes de categorias sociais
que histórica e socialmente estiveram marginalizadas, tais como os negros, os
índios, as mulheres e as crianças.
18
Atentos a possíveis condicionantes históricos do fenômeno abordado e a uma
reflexão sobre a história do Brasil, lembra-se a forma como o país foi colonizado
pelos portugueses, que, interessados nas riquezas que poderiam obter com as
novas terras a partir da exploração do trabalho alheio, não raramente lançaram mão
de manifestações violentas para conseguir o que almejavam. Processo também de
tentativa de implantação da cultura européia que, nas palavras de Holanda (1994),
constitui-se um fato dominante e rico em conseqüências para a sociedade brasileira,
fazendo-nos ser, ainda hoje, desterrados em nossa terra.
A essa colonização exploratória, somam-se, ao longo da constituição da
sociedade brasileira, demais relações desiguais de poder como a manutenção por
vários anos da escravidão, a inferioridade e a submissão histórica das mulheres, a
negligência social das crianças etc. E faz-se averiguar, juntamente com Faleiros
(2000), o quanto a formação econômica, social e cultural do país, assentada na
colonização e na escravidão, acabou por auxiliar na produção de tipos de violência
empreendidos contra específico público. inferiorizado pela raça/cor, gênero ou idade.
De fato, parece restrita a compreensão do fenômeno da violência somente do
ponto de vista pessoal de quem a comete, apesar da concordância com o que
Guerra (2001) cita de Adorno sobre a compreensão da fenomenologia da violência
não poder prescindir da referência aos sujeitos que a fomentam enquanto
experiência social. Contudo, entende-se que a compreensão também não deva
prescindir da referência às estruturas sociais, pois que, em muitos casos, observa-se
as desigualdades econômicas, por exemplo, como um grave condicionante a
determinadas manifestações violentas.
Para Cha (1985), sendo a violência uma realização determinada das
relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em termos
interpessoais, torna-se necessário considerá-la sob dois ângulos: como a conversão
de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade
com fins de dominação, exploração e opressão; e como a ação que trata um ser
humano não como sujeito, mas como uma coisa.
Assim sendo, expressões da violência aparecem estreitamente vinculadas
não apenas a relações econômicas díspares, mas também a relações desiguais de
poder construídas sociohistoricamente e reproduzidas como algo “natural”. Citem-se
aquelas sofridas por mulheres e crianças, condicionadas geralmente por uma cultura
19
machista, sexista e adultocêntrica, a qual converte diferentes em desiguais e a
desigualdade em uma relação entre superior e inferior.
Segundo Guerra (2001), as profundas desigualdades sociais que vivemos têm
um reflexo direto na condição de vida de nossa infância e adolescência, ao que nos
parece em razão da grande expressão desse público na sociedade brasileira. De
acordo com dados do IBGE (2000), as pessoas com idade entre 0 e 19 anos
representam mais de 68 milhões de habitantes e, principalmente, devido a condição
peculiar de sujeitos em desenvolvimento, particular a esse público.
Não obstante a vitimização pela “violência estrutural” - conceituada por
Guerra (2001) como característica de sociedades como a nossa, marcadas pela
dominação de classe e por profundas desigualdades na distribuição da riqueza
social - crianças e adolescentes brasileiros o, da mesma forma, atingidas por
demais tipificações violentas em diferentes contextos: na casa e na família, na
escola e nos estabelecimentos de ensino, nos quadros institucionais como orfanatos
ou espaços para “crianças delinqüentes”, no local de trabalho, na comunidade e na
rua
1
.
Para Faleiros (2006), a história da violência contra crianças e adolescentes
denota a persistência de diferentes tipos de agressões (físicas e psicológicas) e a
disseminação dessas práticas nas instituições sociais, muito embora observe
deficiências no que se refere a uma análise mais rigorosa, bem como à classificação
das manifestações violentas que acometem esse grupo. O que provavelmente seja
conseqüência da negligência social da infância e adolescência, que, apenas
recentemente, passaram a ser destaque na atuação da sociedade civil e dos
poderes públicos.
Usualmente costumou-se caracterizar a violência contra crianças e
adolescentes do seguinte modo: violência física, violência psicológica, violência
sexual e negligência. Tem, todavia, cada uma dessas expressões demais formas de
manifestação que se diferenciam de acordo com os aspectos apresentados, como
por exemplo: o local aonde acontece, a (s) pessoa (s) que a comete (m) etc.,
podendo, inclusive, manifestar-se concomitantemente em uma dada situação, como
1
Contextos apresentados no Estudo do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre a Violência contra as
Crianças. Estudo realizado por uma iniciativa mundial visando traçar um minucioso retrato da natureza,
amplitude e causas desse fenômeno, assim como propor recomendações claras para a prevenção da violência.
O estudo foi recentemente divulgado. Disponível em: http://www.violencestudy.org. Acesso: novembro de 2007.
20
nos casos de violência sexual onde, geralmente, as pessoas vitimizadas vivenciam
díspares agressões.
Ao se reconhecer as imprecisões e lacunas inerentes a essas classificações
da violência realizada contra crianças e adolescentes, o notável consiste na
freqüente relação desigual de poder que se verifica nesses casos, assim como uma
completa objetalização da criança e/ou adolescente. Poder aqui compreendido nos
moldes de Foucault, como algo que flui, que circula nas e pelas relações sociais e
não algo unitário e global que alguém possa apropriar-se definitivamente; formas
díspares e heterogêneas em constante transformação; uma prática constituída
historicamente. E objetalização no sentido de conversão de sujeitos em objetos, sua
coisificação, que Segundo Guerra (2001), reduz crianças e adolescentes à condição
de objeto de maus-tratos.
No exemplo de violência trabalhado por Guerra (2001), pode-se bem
visualizar os aspectos mencionados a partir da conceituação que a autora faz de
violência doméstica cometida contra crianças e adolescentes. Logo, defini-a como
uma violência interpessoal; um abuso de poder disciplinador e coercitivo dos pais ou
responsável; um processo de vitimização que às vezes se prolonga por anos; um
processo de imposição de maus-tratos à vítima, de sua completa objetalização e
sujeição; uma forma de violação dos direitos essenciais da criança e do (a)
adolescente como pessoa e, portanto, a negação de valores fundamentais como a
vida, a liberdade, a segurança. Enfim, uma manifestação da violência que tem na
família sua ecologia privilegiada, pois que a violência doméstica, pertencendo à
esfera do privado, acaba se revestindo da tradicional característica do sigilo.
Além das expressões violentas cometidas contra o público infanto-juvenil no
ambiente doméstico, percebem-se ao mesmo tempo aquelas vivenciadas fora desse
recinto, seja na rua, local de moradia e trabalho de muitos (as), ou em instituições
que usualmente têm a função de acolhê-las e protegê-las, como os
estabelecimentos de ensino e os abrigos.
De acordo com pesquisa recentemente divulgada pelas Nações Unidas,
(2007)
2
, as crianças estão sujeitas a circunstâncias violentas não na família, mas
também na escola e em estabelecimentos de ensino, através de violações
realizadas por outros alunos ou por profissionais. Tais maus tratos estão
2
Ver referência anterior.
21
freqüentemente ligados à discriminação de crianças pobres, grupos marginalizados
ou àquelas que apresentam características pessoais particulares, como alguma
deficiência.
No seio da comunidade, as crianças que vivem ou trabalham na rua estão
expostas à rivalidade de bandos antagonistas, à violência dos representantes da lei,
que recorrem facilmente a meios repressivos, e ao risco de obrigação em prestar
serviços sexuais. No quadro judiciário e institucional, sob a aparência de “disciplina”,
são agredidas por profissionais, negligenciadas e até mesmo aprisionadas junto a
adultos, o que de fato observou-se em várias manchetes de jornal em pleno século
XXI (mês de novembro de 2007), ocorrido no estado do Pará, onde uma adolescente
com quinze anos de idade foi encarcerada com mais de trinta homens, sofrendo
grande número de violações.
No Brasil, segundo dados e informações apresentados por pesquisa realizada
pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
3
, o número de
homicídios entre crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foi de 16% do total de
homicídios em todo o país entre os anos 1980 e 2002. Os dados o inquietantes
notavelmente quando se verifica que na faixa etária de 15 a 19 anos a proporção de
mortes por homicídio supera as por acidente de trânsito.
A pesquisa igualmente averigua a significante informação da distinção de
gênero concernente à violência no país, em razão de as pessoas do sexo masculino
representar 88,4% do total de óbitos por homicídios ocorridos no período.
Informação pertinente quando, tendo em vista o Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres (2004), percebe-se que, em razão das especificidades de gênero, homens
e mulheres são atingidos pela violência de forma diferenciada, pois enquanto a
maior parte da violência cometida contra homens ocorre nas ruas, nos espaços
públicos, e, em geral é praticada por outro homem, a mulher é mais agredida dentro
de casa, no espaço privado (PNPM, 2004: 73).
Importante salientar, no entanto, que a despeito de as mulheres serem mais
violentadas no espaço doméstico, onde o agressor é ou foi uma pessoa íntima:
marido, companheiro, pai, padrasto etc., inúmeras mulheres e meninas, submetidas
à cultura machista que desvaloriza seu ser como pessoa do sexo feminino, sofrem
manifestações violentas também fora do espaço privado da casa. Lembre-se a
3
Pesquisa publicada em 2007 e intitulada: Homicídios de crianças e jovens no Brasil, 1980 a 2002.
22
realidade da exploração sexual comercial que, de acordo com dados da
Organização Mundial do Trabalho, já na década de 1990, contava com um milhão de
crianças e adolescentes inseridas no comércio sexual e na pornografia no mundo
inteiro, sendo essas geralmente pessoas do sexo feminino.
Além dos elementos mencionados, observa-se que a realidade da violência
contra crianças e adolescentes é mais duramente experimentada por aquelas mais
jovens, quando se depara com informações propaladas pelo Fundo das Nações
Unidas para a Infância – UNICEF – em relatório sobre a situação da infância
brasileira
4
. Neste, se evidencia que acidentes e agressões foram as principais
causas de morte de pessoas entre 1 e 6 anos no Brasil na intermitência dos anos
1996 e 2003, fatos que respondem por quase um quarto dos óbitos da população
infantil.
Outras graves violações a direitos fundamentais desse público foram
mencionadas: o ainda alto índice de desnutrição, a falta de creche e pré-escola que
deixa mais da metade de meninos e meninas até os seis anos de idade fora dos
espaços educacionais e a negação do direito ao registro civil - requisito sico para
que a criança seja reconhecida como cidadã e tenha acesso a serviços públicos.
Guerra (2001) pressupõe que, no circuito das violências perpetradas contra
crianças e adolescentes, às pessoas vitimizadas são atribuídas o papel de
responsáveis por esses quadros, ou seja, uma noção de que as causas dos
problemas são individuais, devendo ser hipostasiadas como culpa e jamais
remetidas a questões mais amplas as quais se interliguem a problemas familiares,
sociais etc. Atribuição extensa à sociedade como um todo que tende a culpabilizar
esses sujeitos individualmente, esquecendo as construções sociohistóricas que
perpassam o fenômeno.
Apesar dos altos índices de crianças e adolescentes acometidos por atitudes
violentas, nos dias de hoje verifica-se, a despeito de lacunas e imprecisões, uma
preocupação com a infância e a adolescência por parte de diferentes profissionais e
estudiosos. Preocupação igualmente demonstrada pelo poder público e a sociedade
civil que, nas últimas décadas, nomeadamente após a aprovação da Declaração dos
Direitos da Criança no ano 1959 e, principalmente, com a realização da Convenção
4
Relatório: Situação da Infância Brasileira 2006. Crianças de até 6 anos: O Direito à Sobrevivência e ao
Desenvolvimento. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.unicef.org/brazil
23
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1989, destacam como
prioridade a proteção da infância e adolescência contra todas as formas de
discriminação e violência. Proteção expressa no Brasil especialmente no Estatuto da
Criança e do Adolescente criado em 1990, reflexo das definições da Convenção
mencionada.
Uma vez reverenciada tais constatações é preciso lembrar com Faleiros
(2006) o quanto o processo histórico permite visualizar como crianças e
adolescentes foram, ao longo do tempo, envolvidos (as) em relações de agressão e
maus tratos por diversas instituições sociais e como as gradativas transformações
socioculturais, incluindo-se a caracterização desse grupo como “sujeitos de direito”,
exigiram a mobilização de diferentes segmentos das sociedades pública e civil. O
que faz perceber a importância da indagação de Guerra (2001): será que a infância
com o seu lugar reservado no seio da família e os direitos garantidos pelas
legislações de diferentes países foi sempre vista dessa forma?
No sentido de iluminar essa questão, assim como destacar o panorama de
tratamento das crianças e adolescentes no decorrer da história, indicar-se-á no
próximo item a trajetória sugerida por alguns (as) autores como Philippe Ariès e
Jurandir Freire Costa, tendo em vista uma melhor compreensão do fenômeno
analisado neste trabalho.
1.2 A história social da criança e da família
Segundo Guerra (2001), embora existam obstáculos concretos para se
recuperar a trajetória da infância, devido
à falta de documentação específica, alguns autores propuseram-se a essa tarefa.
Um desses, pela importância de sua comentada obra História Social da Criança e da
Família, publicada inicialmente no ano 1975, aparecerá como destaque neste item: o
francês Philippe Ariès.
Defendendo duas teses
5
, de acordo com ele, inspiradas por um longo diálogo
com as coisas, salienta logo no início de seu livro que a sociedade medieval não
5
As duas teses mencionadas são referenciadas pelo autor logo no prefácio de sua obra. Resumindo-as, a
primeira diz respeito à visão negativa que a sociedade tradicional dispensava à criança e ao adolescente na
Idade Média, período em que a infância era curta, sendo a criança cedo afastada de seus pais; a segunda refere-
se ao novo lugar assumido pela criança e a família nas sociedades industriais, onde a família torna-se o lugar de
uma afeição necessária entre pais e filhos.
24
percebeu a infância, ou mesmo que essa sociedade via mal a criança e, pior ainda,
o adolescente.
Para o autor, na velha sociedade tradicional, que reverencia a Idade dia, a
duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, pois que cedo as
crianças misturavam-se aos adultos e partilhavam de seus trabalhos e jogos. Logo,
de criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem
passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade
Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje
(ARIÈS, 2006: IX).
Na sociedade medieval, a transmissão de conhecimentos e valores e,
conseqüentemente, a socialização das crianças geralmente não eram asseguradas
ou controladas pela família, tendo em vista cedo se afastarem de seus pais. E,
inexistindo estabelecimentos próprios à garantia da educação, como as escolas da
atualidade, durante séculos a educação foi garantida tão somente pela
aprendizagem, na convivência da criança ou jovem com os adultos. (ARIÈS, 2006)
Não tendo função afetiva por excelência, a família antiga apresentava como
missão, dentre outras, a conservação dos bens, a prática comum de um oficio, a
ajuda mútua quotidiana e a proteção da honra e das vidas, e mantinha sua
sociabilidade fora do ambiente doméstico. Ou seja, as trocas afetivas e as
comunicações sociais eram realizadas fora da família, o que não significa ausência
de sentimento entre seus membros, mas outra forma de relação entre si, em geral
desconhecida nos dias de hoje.
Ao analisar a história das crianças a partir da iconografia, Ariès (2006)
averigua que, até meados do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou
não tentava representá-la, argumentando a probabilidade de não haver lugar para o
grupo infantil nesse mundo. Dessa forma, ainda em fins do culo XIII, não existiam
crianças caracterizadas em sua expressão particular, e sim como homens de
tamanho reduzido, numa recusa a aceitação da morfologia infantil.
Como manifestações históricas que se diferenciam com o passar dos anos,
se até esse período eram as crianças, em suas particularidades físicas,
negligenciadas das imagens reproduzidas pelos homens, para Ariès (2006) por volta
do século XIII, começaram a surgir representações infantis mais próximas do que o
autor classifica por sentimento moderno, aparecendo, então, a imagem do anjo,
representado sob a aparência de um jovem adolescente; do Menino Jesus, modelo e
25
ancestral de todas as crianças pequenas da história da arte; e da criança
representada nua.
No decorrer desse momento, passaram a existir demais maneiras de
representação das crianças que evoluíram de uma iconografia religiosa, remota ao
século XIV, para uma iconografia leiga da infância nos séculos XV e XVI. Embora se
transformando em personagens freqüentes, eram elas, contudo, sempre mostradas
na companhia de adultos, o que, de acordo com Ariès (2006), sugere a idéia de que
na vida cotidiana as crianças estavam sempre misturadas a eles.
A indiferenciação das crianças em relação aos adultos foi igualmente
percebida nos trajes comumente caracterizados na iconografia considerada pelo
autor; isso porque na Idade Média vestiam-se todas as classes de idade igualmente,
havendo apenas a preocupação da diferenciação visível no que concerne a
hierarquia social.
Para Ariès (2006), o sentimento da infância, isto é, a consciência das
particularidades infantis hoje apreciadas, que distingue crianças de adultos, não
existia na Idade Média. Ausente consciência, muito mais relacionada à indiferença
do que a carência de afeição. Ausência refletida na indeterminação da idade
estendida a toda as atividades sociais. Situação influenciada, talvez, pelos altos
índices de mortalidade infantil da época, que se encarregavam de lembrar às
pessoas o quanto elas não poderiam se apegar muito a algo considerado uma perda
eventual.
O sentimento da infância, manifestando uma relação desigual de gênero e
classe, surge na medida em que as crianças passam a se distinguir dos adultos,
como se percebeu no processo de especialização de seus trajes. Dessa forma, a
diferenciação da indumentária que, primeiramente apenas aconteceu para os
meninos das famílias burguesas ou nobres, demonstra que o sentimento da infância
beneficiou primeiro meninos, enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo
de vida tradicional que as confundia com os adultos (Idem, 2006: 41).
O primeiro sentimento de infância, então demonstrado por si, foi caracterizado
pelo que denominou paparicação, surgido no meio familiar, com relação às crianças
pequenas as quais se tornaram, por sua ingenuidade, gentileza e graça, fonte de
distração e relaxamento para o adulto. Sentimento originariamente pertencente às
mulheres, mães ou amas, encarregadas de cuidar das crianças, e concomitante à
indiferença que ainda existia entre alguns.
26
O segundo, variavelmente, adveio de fonte exterior à família: dos
eclesiásticos ou chamados homens da lei e de um grande número de moralistas
que, sobretudo a partir do século XVII, preocuparam-se com a disciplina e a
racionalidade dos costumes daqueles que seriam os futuros adultos.
Interessante notar o que Ariès (2006) destaca sobre as idades da vida que, no
decorrer do tempo, tornou-se convincente acrescentar, juntamente com o nome e o
sobrenome, aos hábitos de identidade civil, como uma nova precisão de caráter
numérico. Assim sendo, quase simultaneamente ao surgimento do sentimento da
infância, passou-se a cultivar a idéia de uma vida dividida em etapas bem
delimitadas, correspondendo a modos de atividade, a tipos físicos, a funções, e a
modas no vestir.
Entretanto, embora estivessem as etapas da vida bem demarcadas, não
havia durante algum tempo distinção precisa entre infância e adolescência, tendo
em vista a indiferença que se sentia pelos fenômenos propriamente biológicos,
prevendo-se uma longa duração da primeira fase da vida. A idéia de infância era até
então associada à dependência, e somente se saía dela ao se sair dessa condição,
ou, ao menos, de seu grau mais baixo. Por conseguinte, inexistia a idéia do que
atualmente nomeia-se adolescência e as palavras ligadas à infância subsistiam para
designar familiarmente os homens de baixa condição, submetidos a outros.
A noção da adolescência, de acordo com o autor, passa a ser pressentida no
século XVIII, com personagens literária e social como Querubim e o conscrito,
quando surge, além dos temas literários e da preocupação dos moralistas e dos
políticos, como depositária de valores novos, capazes de reavivar uma sociedade
velha e esclerosada.
Se o autor, como visto, indica em sua primeira tese a ausência do sentimento
de infância na Idade Média, na segunda pretende mostrar o novo lugar assumido
pelas crianças, os (as) adolescentes e as famílias nas sociedades industriais,
contexto de uma maior diferenciação das classes no corpo social e de eclosão da
burguesia, suas peculiaridades e o modo de viver daqueles que a representava.
Ao antever o período relativo ao final do século XVII como um momento no
qual o estado de coisas se alterou consideravelmente no que diz respeito ao
sentimento da infância, o aponta a partir de dois distintos elementos, quais sejam: o
crescente processo de escolarização e, conseqüentemente, de enclausuramento
27
das crianças; e a transformação da família em um lugar de afeição necessária, algo
que ela não era anteriormente.
De fato, com o surgimento dos estabelecimentos de ensino houve
determinado distanciamento entre crianças e adultos, onde aquelas deixaram de
aprender a vida diretamente através do contato com estes. Separação, ou chamada
à razão, como salienta o autor, devida ao grande movimento de moralização dos
homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às
leis ou ao Estado.
Para Ariès (2006), aspectos da história da educação revelam o progresso do
sentimento da infância na mentalidade comum, aspectos intimamente relacionados
com o surgimento dos colégios como instituições de ensino, a origem das classes
escolares, a diferenciação das idades dos alunos e o progresso da disciplina.
As regras de disciplina implementadas conduziram a escola medieval ao
colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e
enquadramento da juventude. (IDEM, 2006:110). Local em que as crianças
passaram a ser diferenciadas em razão da idade, através da conscientização da
particularidade da infância ou da juventude, e do sentimento de que no interior dessa
infância ou dessa juventude existiam várias categorias. Numa necessidade de
análise e de divisão, como na ordem do trabalho, que caracterizou o nascimento da
consciência moderna em sua zona mais intelectual, ou seja, na formação
pedagógica.
Conquanto à diferenciação das crianças nesse primeiro período de ida ao
colégio, Guerra (1996) vem lembrar que outorgar à infância um estado separado,
coincide com a transição do feudalismo para o capitalismo e com o desejo da
burguesia nascente em educar de uma forma especial seus filhos, isto é, prepará-los
em termos das atividades que deveriam exercer quando adultos, bem como aquelas
necessárias para enfrentar adequadamente o poder da aristocracia.
Assim como a preocupação dos reformadores com a moralização da
sociedade, esse novo sentimento da infância que a prolonga a quase toda a duração
do ciclo escolar aparece carregado de apreensões quanto à disciplinarização dos
futuros adultos e não com a hodierna condição de sujeitos em desenvolvimento
peculiar à infância e à adolescência.
De acordo com Ariès (2006), a nova disciplina se introduziria por meio da
organização já moderna dos colégios e pedagogias com a série completa de classes
28
em que o diretor e os mestres tornar-se-iam depositários de uma autoridade
superior. Sistema disciplinar cada vez mais rigoroso, inexistente na Idade Média e,
para o autor, distinto em três características principais: a vigilância constante, a
delação erigida em princípio de governo e em instituição e a aplicação ampla de
castigos corporais.
Ao lançar mão de idéias proferidas por Foucault (2006), pode-se bem
compreender o que de fato nos escreve Ariès (2006) a propósito da disciplina
acoplada aos estabelecimentos de ensino modernos, tendo em vista a sua
contribuição à discussão dos processos disciplinares existentes ao longo da história.
Segundo Foucault (2006), foi no decorrer dos séculos XVII e XVIII que as
disciplinas tornaram-se fórmulas gerais de dominação, afirmando, no entanto, a
longa existência de inúmeros processos disciplinares em instituições como
conventos, exército etc.
Ao apontar os colégios como exemplo de local privilegiado da disciplina e ao
definir disciplinas como métodos que permitem o controle minucioso das operações
do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma
relação de docilidade-utilidade (p.118), Foucault revela em suas pesquisas a
situação das crianças e adolescentes que, no início da escolarização, passam a
estar submetidos (as) à fabricação de um modo de ser coerente com a ordem e os
interesses em vigência dos adultos.
Se para Ariès, até o século XIX dentro do mundo escolar, o adolescente era
afastado do adulto e confundido com a criança, com a qual partilhava de um rígido
sistema disciplinar apoiado nas humilhações do castigo corporal, d para frente
observou o relaxamento da antiga disciplina escolar, que uma nova orientação do
sentimento da infância não mais se ligava a sua aparente fraqueza e não mais
reconhecia a necessidade de sua humilhação. Tratava-se agora de despertar na
criança a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade. (p. 119).
Sentimento ainda vinculado à fase posterior das vidas de crianças e adolescentes e
não à condição de sujeito em desenvolvimento que representam.
Todavia esse processo de escolarização que proporcionou a emersão de um
novo sentimento e tratamento da infância, não teria sido realmente possível, de
acordo com o autor, sem a cumplicidade sentimental da família, segundo elemento
também citado para a compreensão do novo passadio dispensado às crianças
notavelmente a partir do final do século XVII.
29
A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges, e
entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Essa afeição se exprimiu
sobretudo através da importância que se passou a atribuir à educação. (...)
A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar tal
importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato, que se tornou
impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que ela não pôde
mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou necessário limitar seu
número para melhor cuidar dela (ARIÈS, 2006: XI).
No contexto dos séculos XVI-XVII, passa-se a atribuir à família, agora
majoritariamente representada por pais e filhos, um valor outrora desconhecido.
Surge o nomeado sentimento que lhe expressa e sua exaltação por todas as forças
da emoção. Movimento seguido do progresso da vida privada, da intimidade
doméstica e igualmente inseparável do sentimento da infância, entendido como uma
expressão particular desse sentimento mais geral.
As trocas afetivas e as comunicações inerentes à sociabilidade dos indivíduos
processualmente vão adentrando no ambiente privado da casa, agora não muito
aberta para o exterior e diferente daquelas observadas nas sociedades medievais. A
consciência da infância e da família postulou espaços de intimidade física e moral
inexistentes anteriormente. E, no século XVIII, a família começou a manter a
sociedade à distância, a confiná-la a um espaço limitado (...). A organização da casa
passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. (Idem,
p.184-5)
Como uma construção social afeita a transformações no curso da história, a
família, a partir do século XVII, afasta-se cada vez mais das preocupações com a
honra da linhagem, a integridade do patrimônio e a antiguidade ou permanência do
nome, brotando a importância da reunião incomparável dos pais e dos filhos, agora
percebidos e escolarizados. À linhagem, que estendia sua solidariedade a todos os
descendentes de um mesmo ancestral, superpõe-se a família conjugal moderna, que
se tornaria o modelo ideal a ser seguido por todos (as).
Para Ariès (2006), havendo uma relação entre o sentimento da família e o
sentimento de classe, compreende-se que tal ascendência moral do grupo familiar
tenha sido originariamente um fenômeno burguês, pois que a alta nobreza e o povo,
situados nas duas extremidades da escala social, conservaram por mais tempo as
30
boas maneiras tradicionais e permaneceram indiferentes à pressão exterior, como
salienta: as classes populares mantiveram até quase nossos dias esse gosto pela
multidão (p. 195). Nesse sentido, paralela à ascensão da burguesia
6
, instituições e
modos de viver ingressaram num sistema de classes, no qual o corpo social, antes
polimorfo e rígido, foi desfeito e substituído por uma infinidade de pequenas
sociedades representadas pelas famílias e por alguns grupos maciços - as classes.
As pessoas, então, que passaram a viver num estado de contraste ainda
maior, tiveram que se adaptar, cada vez mais, aos modos de viver daqueles que
passariam a representar a classe dominante. De tal forma, com o contexto de
promoção da burguesia na sociedade, ascendia também um modelo de família
preocupado com as crianças e necessitados de sua presença. Preocupação e
supervalorização ainda evidenciada em seu caráter de adultos em gestação e não
na condição de sujeitos em desenvolvimento que lhes é particular.
Associada à importância dessa trajetória de tratamento da infância e
adolescência presente na historiografia internacional, aqui representada por Ariès
(2006), salienta-se a necessidade de se perceber o percurso traçado na realidade
brasileira, notadamente devido a especificidades históricas e sociais destacadas por
Del Priore (2007) como um tardio desenvolvimento da escolarização e emergência
da vida privada entre nós.
Nesse percurso encontrar-se-ão, é certo, informações que apresentarão
evidências com as prontamente salientadas, contudo, ao se fundamentar em autores
(as) que versam sobre a história de nossas crianças e adolescentes, no próximo
tópico apontar-se-ão feições peculiares que influenciaram e estabeleceram formas
de tratamento à infância e adolescência brasileira.
1.3 Infância e adolescência na realidade brasileira
Embora ciente do que adverte Del Priore (2007) para quem a história das
crianças e adolescentes no Brasil não seria apenas um catálogo de barbáries, maus-
6
A ascensão da burguesia, contextualizada nos séculos XVII e XVIII, ocorreu notoriamente a partir da expansão
do comércio e da economia e consolidou-se com a Revolução Industrial. Disseminando modos de viver próprios
as pessoas que a representava, quando classe passa a ocupar o topo da hierarquia social e propaga modernos
conceitos de livre comércio, liberdade pessoal, direitos religiosos e civis. Momento de declínio do sistema feudal,
bem como da classe que o representava e da substituição desse pelo sistema capitalista.
31
tratos e horrores, passagens de terrível sofrimento e violência, sabe-se que tais
situações acompanham a vida desse grupo desde o período da colonização
brasileira, mesmo aqueles que estiveram presentes à epopéia marítima. Crianças e
adolescentes que embarcavam em Lisboa rumo à colônia brasileira e as quais,
segundo Ramos (2007), no decorrer de sua primeira viagem, antes de chegar ao
Brasil, tornavam-se adultos, calejados pela dor e pelo sofrimento.
Ao classificar a história das crianças nas naus do século XVI como uma
história trágico-marítima, Ramos (2007) explicita exemplos daquelas que subiam a
bordo: crianças na condição de grumetes ou pagens, “órfãs do Rei” enviadas ao
Brasil para se casarem com os súditos da coroa, passageiros (as) embarcados (as)
na companhia dos pais ou de algum parente. Tais representavam as pessoas mais
sofridas com o difícil dia-a-dia em alto mar, independente da condição de vida.
Assim, situações de violações eram propiciadas e toleradas nesses ambientes
contra essas pessoas em formação, devido, sobretudo, à sua aparente fragilidade,
pois que grumetes e pagens eram obrigados a aceitar abusos sexuais de marujos
rudes e violentos. Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por
pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim de
manterem-se virgens, pelo menos, até que chegassem à colônia (p. 19).
Nesse contexto, crianças e adolescentes eram recrutadas especialmente
entre órfãos desabrigados e advindos de famílias humildes em virtude da falta de
mão-de-obra de adultos. E os pais, utilizando os filhos como meio eficaz de
aumentar a renda, os alistavam entre a tripulação dos navios, o que lhes parecia um
bom negócio.
De acordo com Ramos (2007), os meninos selecionados para servir como
grumetes eram geralmente filhos de famílias humildes, órfãos, ou crianças judias
arrancadas à força de seus pais, para quem significavam uma grande perda afetiva.
Eles tinham comumente idade entre nove e dezesseis anos e o número de seus
representantes nos navios lusitanos chegou a ser o mesmo que o número de
marinheiros e algumas vezes superior, em virtude da carência de profissionais
adultos. Realizavam a bordo todas as tarefas que normalmente seriam
desempenhadas por um homem, arriscavam-se a toda sorte de acidentes, que
não havia hesitação pela sua peculiaridade geracional em colocar-lhes nos trabalhos
mais arriscados, e ocupavam, como observam Lopes e Frutuoso (2003), o último
degrau na hierarquia social das naus.
32
(...) Estes grumetes são a gente mais rasteira do navio (...) e servem
para lançar os cabos acima, mas não sobem aos mastros, nem passam do
convés. Fazem todo o serviço pesado do navio, ajudam como criados aos
marinheiros, que lhes batem e os repreendem muito; não podem tampouco
menear o leme e não trabalho algum, quer fora, quer dentro do navio,
que êles não sejam obrigados a fazer, como baldear o navio e dar à bomba;
e este ultimo serviço a eles pertence, salvo se por algum caso fortuito o
navio fizer mais água do que é costume (LOPES & FRUTUOSO apud
LAVAL, 2003: s/p).
Embora fossem os grumetes a categoria de crianças e adolescentes
embarcados que tinham as piores condições de vida, com direitos fundamentais,
como a alimentação, muitas vezes negados, os demais como os pagens e, inclusive
aqueles que viajavam em companhia de adultos, pais ou outros parentes, estavam
também submetidos a péssimas condições e sujeitos a violações como os estupros
coletivos praticados pelos marinheiros ou soldados. Sem contar os problemas de
saúde que os enfraqueciam pela inanição e a insalubridade, transformando-os em
vítimas de tantas mazelas.
Situação igualmente difícil era vivenciada pelas meninas que, comumente
retiradas de suas famílias, viajavam sob a categoria de “órfãs do Rei”, debeladas a
uma condição de inferioridade não apenas geracional como os meninos, mas
também de gênero, em razão da subordinação atribuída historicamente às pessoas
do sexo feminino.
Para Ramos (2007), dada a falta de mulheres brancas nas possessões
portuguesas, a Coroa procurou reunir meninas pobres, a fim de enviá-las a suas
colônias com o objetivo de sanar o problema da constituição de família, o que se deu
mormente na Índia, tendo em vista a suavização desse problema no Brasil, onde
tinha-se a prática de amancebar-se com as nativas. Porém, algumas teriam sido
mandadas para cá, sendo preferidas as meninas com idade inferior aos dezessete
anos, que, não obstante constituírem um baixo número, causavam grande alvoroço
entre a tripulação masculina, que não raras vezes as violentavam sexualmente.
No contexto de povoamento da colônia brasileira, em uma época em que
meninas de quinze anos eram consideradas aptas para casar e meninos de nove
anos plenamente capacitados para o trabalho pesado, a sucessão dos dias de
crianças e adolescentes nas embarcações portuguesas era extremamente penoso e
33
repleto de situações calamitosas. Criticamente para o grupo pertencente às classes
subalternas, onde em casos de naufrágios um barril de água ou biscoito, segundo a
ótica quinhentista, tinha prioridade de embarque no batel (p. 42) e onde o menor mal
que poderia sofrer após viver alguns meses no mar, quando tinha sorte, era o de
sofrer um grande trauma e deixar de ser criança: ver seu universo de sonhos,
esperanças e fantasias desmoronar diante da cruel realidade do cotidiano das naus
do século XVI (Ibdem, p.42).
Semelhante circunstância de utilização das crianças por adultos em prol da
satisfação desses e da manutenção da ordem baseada nos interesses dominantes
percebeu-se no Brasil ainda no decorrer do processo de povoamento, quando os
padres da Companhia de Jesus, instalados em terras brasileiras, interessaram-se
pela instrução e evangelização das crianças indígenas, tidas como o “papel branco”
e a “cera virgem” na qual se poderia escrever o desejado. Interesse despertado com
o claro objetivo de viabilizar uma difícil conversão dos verdadeiros possuidores da
terra, tendo em vista que se poderia esperar muitos frutos com as crianças, seres
em formação que pouco contradiziam a lei cristã.
De acordo com Chambouleyron (2007), os padres da Companhia de Jesus no
Brasil, em razão de suas vivências apostólica e da própria descoberta da infância na
conjuntura do século XVI, entenderam que era sobre as crianças que deviam
imprimir-se os caracteres da fé e virtudes cristãs. Para isso elaboraram estratégias e
projetos, que se transformavam à medida que se consolidava a própria conquista
portuguesa na América, e que seguiam os ventos que traziam e enviavam suas
cartas ao Velho Mundo (p. 79).
Para o autor, os missionários não estavam obrigados à docência, como
esclarece: a união da catequese e ensino dos meninos fora, sem dúvida, uma opção
da evangelização no Brasil, a instrução se constituindo como meio e não a intenção
final. O que, em verdade, ensejou a organização de uma estrutura de viabilização do
aprendizado, da catequese e, especialmente da preservação dos bons costumes
com vistas à transformação radical da vida das crianças indígenas.
A importância desde cedo atribuída ao ensino dos meninos, indígenas e
também europeus recém-chegados, ensejou mais que a mera transferência de
conhecimentos e doutrinas, pois a vigilância e o enquadramento da juventude
estiveram sempre presentes. Numa perspectiva de estruturação de um rígido
sistema disciplinar, análogo aquele apontado por Ariès no princípio da escolarização
34
européia, não se abria mão dos castigos físicos, comuns no contexto de ensino e
catequese. Ensinava-se, desse modo, diferente relação com o corpo, agora
macerado e domado, convertido pela sujeição e o temor (CHAMBOULEYRON,
2007).
Transformadas em massa de modelar, progressivamente afastadas do modo
de viver de sua gente e imbuídas de costumes que não eram os seus, algumas
crianças indígenas davam-se a ofícios enquanto outras auxiliavam os padres nesse
processo de formação cristã e educação de demais crianças, fatores de
contentamento dos clérigos.
Contudo, ainda que os padres jesuítas tenham atingido seu propósito de
conversão de determinado número de nativos, muitos resistiram não somente à
evangelização proposta, mas igualmente à tentativa de utilização de seu trabalho na
produção canavieira. Como elucida Holanda (1994), apesar de esses antigos
moradores da terra prestimosamente terem colaborado na indústria extrativa, na
caça, na pesca, em certos ofícios mecânicos e na criação do gado, dificilmente se
acomodavam ao trabalho acurado e metódico que lhes exigia a exploração dos
canaviais. Isso resultou em incompreensões da parte dos indígenas, que assumiam
quase sempre a forma de uma resistência obstinada, ainda quando silenciosa e
passiva, às imposições da raça dominante. (p. 17-8)
Segundo Holanda (1994), a abundância de terras férteis e ainda mal
desbravadas fez com que a grande propriedade rural se tornasse aqui a verdadeira
unidade de produção, e a presença dos negros escravos tornaram-se fator
obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais. Esses acontecimentos
implicaram peculiaridades observadas na constituição da família colonial brasileira,
tais como a sua duradoura concentração no meio rural e os diferentes graus de
posição dos seus membros, em seu interior e na sociedade.
Na obra em que destaca a influência da ordem médica na normalização da
família brasileira, Costa (2004) adverte ter a criança permanecido até o século XIX
prisioneira do papel social do filho e sua situação sentimental refletida na posição
que este desfrutava na casa. Costa adverte ainda que no sistema colonial o filho
ocupava uma posição puramente instrumental dentro da família. Não que fosse
tratado como ‘utensílio’ ou ‘coisa’, ao mesmo título do escravo. Sua posição era
instrumental no sentido de secundária. (p. 153)
35
Quando o autor escreve sobre o papel secundário dos filhos e,
conseqüentemente, das crianças no sistema colonial, enfatizando ser recente a
imagem da criança frágil e portadora de uma vida delicada e merecedora do desvelo
absoluto dos pais, pactua com idéias explanadas por outros autores como Ariès
(2006), demonstrando o quanto o tratamento dispensado às crianças e adolescentes
modifica-se ao longo do tempo, constituindo-se, portanto, como produto de
construções histórico-sociais.
Para Costa (2006), faz-se necessário entender a importância de itens
culturais da sociedade colonial que afetaram a situação dos integrantes da família e,
por conseguinte, do filho-criança, como, por exemplo, o poder patriarcal presumido
no real direito do pai em monopolizar os interesses da prole e da mulher. Direito
então resguardado pelo valor da propriedade, do saber tradicional e da ética
religiosa nessa conjuntura; e legitimado por vários elementos emprestados à ordem
jurídica vigente, os quais favoreciam o poderio paterno através do morgadio
7
e da
concessão ao pai do direito de castigar escravos, filhos e mulheres.
Ao enfatizar a posição dos membros da família, observa ter havido uma nítida
diferença entre o ‘estar’ dos homens e o das mulheres em qualquer classe social.
Enquanto aos homens era permitido um maior contato com o mundo, com a
sociabilidade, as mulheres desfrutavam grande parte de seu tempo no interior da
habitação, onde eram as maiores responsáveis pela criação dos filhos e pelo dia-a-
dia na zona de serviços.
Atento às relações desiguais de gênero assimiladas e construídas nesse
momento histórico, demonstra a moldura do confinamento das mulheres à “casa
grande”, observável em aspectos como o casamento de ‘razão’ ou interesse, a
inexistência de sentimento de amor entre os cônjuges, a inferioridade de ‘raça’ ou
‘espécie’ que lhe foi atribuída, a dependência econômica para com os homens (pai,
irmã, tio, tutor) e a rígida divisão do trabalho social. Porém, conquanto estivessem
em situação de dependência jurídica, moral, afetiva e religiosa dos maridos, como
ressalta, as mulheres detinham grande importância social notoriamente no espaço
7
Legitimando a reprodução de desigualdades geracional e, sobretudo, desigualdades entre homens e mulheres,
a instituição do morgadio, que por muito perdurou fundamentada judicialmente, determinava que o primogênito
homem, o morgado, fosse o único herdeiro da propriedade. Por meio dessa lei, a riqueza favorecia a
continuidade do poder paterno, ao mesmo tempo em que excluía as mulheres do quadro de poder e das
decisões familiares.
36
que ocupavam, devido à função econômica que desempenhavam, muito embora
cooperassem para o despotismo senhorial sobre as cidades.
Note-se que, estando às mães ocupadas com a organização econômica da
casa e a atenção dispersa no grupo de escravos e agregados, pouco percebiam as
crianças, geralmente deixadas aos cuidados de amas negras. Conduta de certa
negligência dos pais em relação aos filhos a qual, para Costa (2004), não poderia
ser justificada pelo grande número deles comum às famílias nessa época, mesmo
porque naquelas com pequena prole igualmente inexistia a preocupação e/ou
afeição de hoje. Além disso, era a criança percebida negativamente, por oposição ao
adulto, e seu alto índice de mortalidade arrogado à imprudência dos mais velhos em
relação a ela.
Nessas circunstâncias, as crianças, assim como as mulheres, no Brasil
colonial eram habitantes por excelência da casa, onde, de acordo com Del Priore
(2007), filhos de senhores e de escravos compartilhavam os mesmos espaços
privados: a sala e as camarinhas. Fato, entretanto, apenas comum às primeiras
idades, pois, na ocasião dos sete anos, os primeiros iam estudar e os segundos
trabalhar.
Se para Costa (2004), o contexto do período colonial foi marcado por
determinada negligência às crianças, para Del Priore (2007), eram elas, desde cedo,
valorizadas por meio da aquisição dos rudimentos da leitura e da escrita, e por uma
preocupação pedagógica que tinha por objetivo transformá-las em indivíduos
responsáveis. Informações essas não contrastantes entre si caso se observe, por
um lado, a negligência do ponto de vista da peculiaridade da infância, na condição
de seres em formação necessitados de cuidados e atenção particular, e a
preocupação, por outro lado, salientada tão somente quanto aos adultos em que se
transformariam.
Com efeito, o tratamento dispensado às crianças, assim como o valor lhes
atribuído, estando sujeitos a determinações sociais, sofrem modificações tanto
quanto aquelas observadas na sociedade historicamente. O que de fato se avista na
conjuntura de ascenção do Estado moderno e de sua característica ideologia liberal,
que, com a finalidade de exercer controle sobre as famílias, passa a buscar a
disciplinarização da prática anárquica da concepção e dos cuidados físicos dos
filhos.
37
No Brasil, nota-se estarem às transformações das relações familiares
associadas a mudanças mais gerais, como a crescente urbanização do país num
período de implantação dos representantes da burguesia industrial européia. De
acordo com Costa (2004), fatos responsáveis por sacudir o poder latifundiário até
então dominante entre nós.
Com a chegada da família Real em meados do século XIX, a urbanização
conduzida pelo Estado luso abateu-se sobre a família colonial senhorial por muito
detentora de grande poder e fez com que elementos inibidores do convívio íntimo,
peculiares ao modo de viver das famílias antigas, fossem ultrapassados. Dentre
esses elementos destacam-se a dependência para com os escravos, que facilitava a
dispersão do sentimento de intimidade, a dependência e o submetimento irrestrito da
família para com o pai.
Para Costa (2004), essas transformações ocasionadas no espaço urbano
procuravam atender exclusivamente ao bem-estar e enriquecimento da aristocracia
portuguesa e do capitalismo europeu que, instalados no Brasil, provocavam
modificações nos padrões de sociabilidade, refletidos numa sensível fragmentação
da solidariedade familiar. O autor ressalta: a nova sociabilidade, dando maior
autonomia aos desejos individuais, quebrou, pouco a pouco, os fios e suportes da
antiga trama de relações familiares. A família passou a viver um impasse criado pela
urbanização (p. 109).
Portanto, se a essa época as crianças pouco significavam para os pais,
devido a indiferença destes para com elas, a partir desse momento tal situação se
altera, uma vez que passou-se a atribuir-lhes importância e cuidados antes
inimagináveis, como se verá a seguir.
1.3.1 A família nuclear burguesa e o novo lugar ocupado pela infância
Equivalente ao sentimento da família comentado por Ariès (2006)
anteriormente, o qual manteve estreita relação com a sobreposição da vida privada
na sociedade, o sentimento da casa e o sentimento da infância, Costa (2004)
destaca entre nós a emersão do sentimento de intimidade ou privacidade familiar,
demonstrando o papel fundamental da medicina nesse contexto.
38
Segundo o autor, notavelmente em meados do século XIX, novas condutas e
reações levaram a família a concentrar nos membros do parentesco estrito (pai, mãe
e filhos) a atenção antes dispersa no grupo de escravos e agregados próprio à
família colonial. Igualmente se designando um novo sentimento e novas formas de
tratamento à infância, onde o convívio íntimo e exclusivo entre pais e filhos
proporcionou um maior interesse quanto ao desenvolvimento físico-sentimental das
crianças e fez o amor entre eles tornar-se a energia moral responsável pela coesão
familiar.
A esse período favorável a ingerência de novos valores na sociedade
brasileira, a aceitação da medicina como padrão regulador dos comportamentos,
associada à higiene, ajudou a família a adaptar-se à urbanização e criou,
simultaneamente, normas coerentes de organização interna. O objetivo higiênico de
recondução dos indivíduos à tutela do Estado, fundamentado na nova ordem
dominante, encarregou-se de redefinir as formas de convivência íntima, assinalando
novos papéis e funções a cada um dos membros da família.
De acordo com Costa (2004), a medicina higiênica constituindo-se como um
trunfo político na luta contra o arquétipo da família clássica, propagou a importância
da convivência em um novo ambiente privado que deveria ser bem cuidado
principalmente para a proteção das mulheres e das crianças.
Vagarosa e seguramente, a família, conduzida pela atenção benevolente do
médico, fazia de seus laços e de sua casa aquele ambiente ‘doce e
encantador tão solicitado pela higiene. Seu grande corpo latifundiário,
patriarcal, teológico foi esfacelado. Inicialmente expulso da casa antiga para
a cidade moderna; em seguida recalcado e reintroduzido no novo lar íntimo,
higienicamente reorganizado. No convívio interno, reduziu seus
prolongamentos e aproximou seus membros, constituindo a ‘família nuclear
(...). Converteu-se, de grande corpo sócio-econômico, em ‘célula da
sociedade’ (COSTA, 2004: 140).
Ao fracionar as velhas relações de casta, religião e propriedade, a ingerência
médica higienista na família preparou-a para acomodar-se e participar na criação
dos valores de classe, raça e individualismo, característicos do Estado burguês em
formação. Os papéis dos membros da família foram remodelados e bem delimitados,
sendo a cada indivíduo atribuído responsabilidades baseadas no sexo e na idade. O
ideal de família passou, então, a apresentar a centralidade da criança, e os demais
39
integrantes voltados para a satisfação de suas necessidades: o pai como o
responsável pela proteção material do filho, não se aceitando quaisquer fontes de
renda prejudicáveis ao bem-estar das crianças, e a mulher com um papel autônomo
no interior da casa: o de iniciadora da educação infantil.
Mesmo tendo as crianças assumido valor desconhecido anteriormente na
família e na sociedade, percebe-se, com a leitura de Costa (2004), o quanto esse
valor prosperou vinculado à mera preocupação do adulto em gestação que meninos
e meninas representavam, tendo em vista a crença de que a maneira como o
indivíduo tinha sido tratado na sua infância era determinante de suas qualidades
corporais e morais quando adulto (p. 144). Confiança no valor individual e na história
físico-emocional de cada um, fundamentada no individualismo burguês.
Os cuidados especiais para com a infância eram acompanhados de técnicas
desenvolvidas para a inculcação de bons hábitos e o interesse pelas crianças era
um passo na criação do adulto adequado à ordem médica, mais uma vez tratadas
como instrumento do poder, agora em favor do Estado.
Considerando esse período de propagação do sistema capitalista e de difusão
dos valores burgueses no Brasil, Guerra (2001) adverte:
Se até aquele momento a autoridade paterna irrestrita havia sido importante
para a formação de sujeitos dóceis que servissem às finalidades das
monarquias, agora se tornava necessário ‘produzir’ sujeitos que se
convertessem em riqueza para o Estado (p. 137).
Segundo Guerra (2001), novamente crianças e adolescentes eram utilizados
como necessários objetos de recepção dos valores dominantes, comparáveis a um
animal, cabendo aos adultos a disciplinarização de sua natureza selvagem. Daí a
precisão de a família ensinar às crianças a relação burguesa de autoridade,
preparando-as para a adaptação social, formando-as tal como tivessem que cumprir
as tarefas impostas pelo sistema social quando adultas.
A família assegurava conforto e proteção aos seus membros, a herança era
uma razão fundamental de obediência à autoridade familiar. As primeiras
relações de autoridade com o adulto, a criança estabeleceria por meio da
família. Esta lhe transmitia os modelos sociais, as normas sociais de
comportamento, explicando-lhe de forma direta ou indireta o que é a
sociedade, como funciona, quais os deveres dos cidadãos. A família
40
representaria a matriz dos mecanismos de internalização, de submissão,
funcionando como ‘agência psicológica’ da sociedade (GUERRA, 2001: 90).
Nota-se, sobretudo, ser a partir dessa época constituído um protótipo de
família, o qual foi alojado o importante papel de defesa e proteção das crianças e
adolescentes. Família como o lugar próprio à infância, onde toda a energia do grupo
deveria ser consumida em sua promoção. Lugar de grande convívio, afeto,
educação e exemplos a serem dados pelos pais.
Esse construído modelo ideal de família, entretanto, aos poucos começa a
enfrentar crises agravadas por mudanças sociais em curso ocasionadas pelo
sistema desigual no qual estava inserido. A família passa, em muitos casos, a não
garantir de forma segura a vida material de seus membros, não consegue protegê-
los do mundo exterior, para o qual ela mesma tentou moldá-los. Os pais que não
dispunham de capital começaram a ganhar a vida vendendo seu trabalho e
obedecendo às leis do mercado, afastando-se do convívio maior com os filhos, em
razão da função quase exclusivamente econômica que lhes foi atribuída. As mães
processualmente inserindo-se em atividades remuneradas fora do ambiente privado,
acharam-se em permanente conflito entre seu trabalho e as atividades domésticas,
enfrentando sempre, além disso, a insuficiência dos serviços sociais básicos. Os
filhos, de acordo com Guerra (2001), encontravam seus modelos de identificação
não tanto mais nos pais, mas sim em “personagens dos meios de comunicação”, nos
cinemas, na televisão.
Para a autora, se a família já não poderia ser considerada o centro de
proteção para os indivíduos como antes, seu anterior aspecto autoritário e repressivo
continuou presente, não obstante tenha se transfigurado. De tal modo, embora
estivessem às crianças e também os (as) adolescentes sujeitos a determinações e
variações sociais, permaneceram submetidos aos adultos, seja devido a sua
inferioridade física, à condição superior naturalmente conferida aos que
ultrapassaram esse período peculiar de formação, ou mesmo à necessidade de viver
num mundo inteiramente concebido pelo adulto.
Destarte, o autoritarismo dispensado a crianças e adolescentes
historicamente fez com que eles fossem vitimizados por violações que passam pela
negligência até àquelas que violentam seus corpos e também suas almas,
prejudicando um saudável desenvolvimento físico e emocional. Violações algumas
41
vezes vivenciadas no próprio ambiente familiar, local onde deveriam estar
protegidas, e igualmente nas instituições públicas onde muitos foram confinados.
Reconhece-se, nesse sentido, estarem os direitos de crianças e adolescentes
implicados a modificações no seio da família e da sociedade, compreensão
fundamentada na consideração do pertencimento desses sujeitos a um núcleo
familiar que sofre múltiplas determinações socioeconômicas, impostas por sua vez
pelos modos de produção vigentes em cada sociedade (GUERRA, 2001).
A trajetória de tratamento familiar e social da infância e adolescência assim
sendo produto de determinações sociohistóricas mais amplas, reflete o processo de
dominação e sobreposição dos valores e ideais de uns sobre outros, o qual, apoiado
em políticas e práticas excludentes, repressivas e assistencialistas, igualmente
influencia o percurso das políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes.
A partir do caminho apresentado, bem como do entendimento de políticas
públicas como medidas de atuação coletiva que comprometem, do mesmo modo,
Estado e sociedade, a seguir explanar-se-á o caminho percorrido pelas políticas
públicas para a infância e adolescência no Brasil.
1.4. Políticas públicas para crianças e adolescentes no Brasil
De acordo com Koshima (2006), o primeiro episódio de ação do Estado
voltado para crianças no Brasil data de meados do século XVII, quando uma
autoridade pública, movida pela preocupação com crianças abandonadas nas ruas
sujeitas ao ataque de cães e porcos, escreve uma carta a Portugal descrevendo a
situação. Tal apreensão levou o vice-rei a propor duas medidas para a situação:
coleta de esmolas na comunidade e internação de crianças. Contexto em que
era grande o número de filhos ilegítimos, muitos eram filhos de senhores e
escravas. Segundo a moral dominante, a família normal era somente a
família legítima. Os filhos nascidos fora do casamento, com raras exceções,
eram fadados ao abandono. A pobreza também era causa de abandono. As
crianças eram deixadas nas portas das casas e, muitas vezes, eram
comidas por ratos e porcos. (FALEIROS, 2006: 46-47)
42
Com o objetivo caritativo-assistencial de recolher as crianças abandonadas e,
principalmente para atender à internação das ilegítimas, foi instituída a Casa dos
Enjeitados, Casa da Roda ou simplesmente Roda, como costumou ser designada
devido à assimilação da instituição ao dispositivo onde eram depositadas as
crianças.
Um cilindro de madeira que girava em torno de um eixo, com uma parte da
superfície lateral aberta, por onde eram introduzidos os ‘expostos’ e permitia
que as crianças fossem entregues a Casa sem que o depositário e o
recebedor pudessem ver-se reciprocamente (COSTA, 2004: 164).
A finalidade desse instrumento, segundo Faleiros (2006), seria então
esconder a origem legítima das crianças e salvar a honra das famílias, assim como,
de acordo com Costa (2004), proteger a vida da infância, para o que, em verdade,
não auxiliou muito. A “Casa dos Enjeitados” foi convertida num real foco autóctone
de mortalidade infantil devido à pobreza de instalações e meios de manutenção.
Fato que demonstra a precária atenção dada neste local às crianças.
Para Costa (2004), além de não proteger a infância abandonada como
estabelecia, essa instituição incitava a irresponsabilidade e negligência dos pais,
permitindo-lhes ocultar da sociedade que os filhos morriam por falta de cuidados,
como no caso das crianças lá deixadas mortas, como perceberam os higienistas.
As crianças enjeitadas depositadas na roda sofriam privações e violações
antes, durante e depois da saída da instituição onde poderiam permanecer até um
ano e meio. Como esclarece Faleiros (2006), em geral, quando de suas saídas,
eram entregues a amas-de-leite alugadas ou a famílias que recebiam pequenas
pensões e utilizavam as crianças para o trabalho doméstico. Razão, dentre outras,
demonstrativa do quanto o verdadeiro motor dessa ação puramente filantrópica,
consistia na preocupação com a reputação das famílias abastadas.
Não obstante a omissão ou mesmo o desinteresse da corte em relação à
proteção da infância e adolescência nessa conjuntura, cabia às Santas Casas e às
Câmaras Municipais cuidar dos abandonados. Algumas Câmaras prestavam
assistência aos órfãos e desamparados por meio da colocação familiar, ou seja,
entrega de crianças a algumas famílias em troca de pagamento (FALEIROS, 2006).
Note-se, juntamente com Koshima (2006), terem sido as crianças abandonadas o
43
foco específico da história de origem do atendimento e da legislação para o público
infanto-juvenil no Brasil.
Segundo Faleiros (2006), em meados do século XIX, um decreto imperial
havia estabelecido o recolhimento dos meninos que vagavam pelas ruas, criando-se,
nesse contexto, o asilo de “meninos desvalidos”. Asilos que se expandiram no limiar
da Abolição da Escravidão em 1888 e da Proclamação da República em 1889,
sobretudo em razão das instituições privadas e semi-oficiais que, ao disseminar a
intenção de cuidar dos pobres, favoreciam os ricos encaminhando as crianças ao
trabalho precoce, transformando-as em futuros subalternos.
Importante ressaltar o início da atuação dos médicos higienistas nesse
período. Aliados ao Estado Nacional em formação preocupavam-se com a saúde da
espécie e com a preservação da raça a partir de aspectos como a mortalidade
infantil, a amamentação, a inspeção escolar e a creche como forma de substituir a
roda. Inquietação ocasionada, entretanto, mais pelo interesse em propiciar
condições para que os pais trabalhadores na vigência do sistema capitalista
pudessem exercer suas funções do que pelo necessário bem-estar das crianças.
Apesar da atuação dos higienistas com o objetivo de normalização dos
valores sociais, como visto no item anterior, nesse momento igualmente de
rompimento entre Igreja e Estado observou-se a iniciativa privada como a principal
responsável pela expansão das instituições de assistência a crianças e
adolescentes. Afirma Faleiros: predominou a política da omissão do Estado, apesar
dos discursos de preocupação com a infância abandonada (2006: 48).
De acordo com Passetti (2007), após a proclamação da República surge uma
nova ordem de prioridades no atendimento social a crianças e adolescentes que
ultrapassa o nível da filantropia privada e seus orfanatos para elevar-se às
dimensões de problema de Estado com políticas sociais e legislação específica. Isso
porque, embora se esperasse um regime político democrático orientado para dar
garantias aos indivíduos numa sociedade de território amplo e de natureza
abundante e generosa, a crescente dureza da vida levava os pais a abandonarem
cada vez mais os seus filhos. Por conseguinte, as pessoas que moravam no
subúrbio, depois conhecido como periferia, em casa de aluguel, quartos de cortiços,
barracos em favelas ou construções clandestinas passaram a compor a prioridade
do atendimento social.
44
Nessa ocasião, o modelo de família era representado pelo trinômio: pai, mãe
e filho. Estigmatizavam-se as crianças e adolescentes que não integravam famílias
do tipo ideal pela falta de um de seus membros, ou aqueles que viviam carências
culturais, sociais e econômicas, sendo a eles atribuída a propensão à criminalidade
e a delinqüência. Difundia-se, igualmente, a idéia de que a falta de “família
estruturada” gestava criminosos comuns e ativistas políticos, também considerados
criminosos, o que fez com que o Estado passase a chamar para si as tarefas de
educação, saúde e punição para a infância e a adolescência.
Desta forma, a integração dos indivíduos na sociedade, desde a infância,
passou a ser tarefa do Estado por meio de políticas sociais especiais
destinadas às crianças e adolescentes provenientes de famílias
desestruturadas, com o intuito de reduzir a delinqüência e a criminalidade
(PASSETTI, 2007: 348).
Faleiros (2006) assevera que, desde o início do século XX, os juristas, em
congressos internacionais da Europa e América Latina, preocupavam-se com o
combate à “criminalidade de menores” de forma distinta da dos adultos numa
perspectiva de “salvar o menor” do ambiente perigoso, propondo uma nova justiça
para a infância, para corrigir os desvios do bom comportamento. Aspecto
desencadeador de uma série de ações e medidas para esse intuito, tais como a
discussão sobre a implantação de uma política chamada de “assistência e proteção
aos menores abandonados e delinqüentes” em 1902, a criação da Escola
Correcional 15 de novembro em 1903, a autorização da criação do Juizado de
Menores em 1923, a concepção do Conselho de Assistência e Proteção aos
Menores e o Abrigo de Menores em 1924, e a consolidação da legislação peculiar a
esse grupo no primeiro Código de Menores de 1927.
Percebe-se uma nova dimensão da caridade se concretizar combinando, com
especial equilíbrio, ações privadas e governamentais para a integração de crianças
e adolescentes à vida normalizada, de acordo com o novo lema republicano de
ordem e progresso. Integração, segundo Passetti (2007), prevista em uma história
de internações daqueles representantes das classes mais baixas, caracterizados
como abandonados e delinqüentes pelo saber filantrópico privado e governamental.
45
Para Passetti (2007), foi com o Código de Menores de 1927
8
que o Estado
respondeu pela primeira vez com internação, responsabilizando-se pela situação de
abandono e propondo-se a aplicar os corretivos necessários para suprimir o
comportamento delinqüencial. Correspondem igualmente a esse contexto os
maiores investimentos dos governos em educação, com a finalidade de domesticar
as individualidades e garantir com isso os preceitos de uma prevenção geral. Assim,
sob o controle do Estado, escola e internato passam a ser fundamentais.
A partir de então e durante muito tempo, a essência das políticas de
assistência voltadas a crianças e adolescentes corresponderam a políticas de
internação, apoiadas na educação pelo medo. O que de fato, pode-se ainda
observar na atualidade das pessoas dessa faixa etária as quais, cometendo algum
ato infracional, são julgadas nos juizados e igualmente pela sociedade que,
motivada por uma visão restrita dos problemas sociais hoje vivenciados, bradam por
uma cruel punição daqueles que, pela peculiaridade geracional, deveriam estar
assistidos e protegidos. De tal modo, a falência dos internatos em vez de gerar
investimentos em outras formas de educação ao infrator, se transformou em
estandarte dos amedrontados que clamam por mais segurança, muitas vezes
exigindo prisões de segurança máxima e até pena de morte (PASSETTI, 2007: 356).
Se os internatos o corresponderam à intenção normalizadora,
proporcionando a deformação em vez da correção de crianças e adolescentes, a
promessa republicana de escola para todos foi também um fracasso. Nota-se, em
consonância com Faleiros (2006), a inacessibilidade da maioria da população ao
ensino público ou privado, principalmente meninos e meninas da zona rural.
Devido à deficiência ou falta da educação e à necessidade de auxiliar na
renda da família, muitas crianças e adolescentes no início do século XX precisaram
trabalhar, tendo sua mão-de-obra explorada por patrões que a justificavam em nome
da proteção, com o argumento de evitar que ficassem nas ruas expostos aos males
inerentes a esse lugar. Contudo, devido à denúncia da exploração do trabalho
infantil, especialmente por aquelas pessoas que reivindicavam os direitos
trabalhistas nos centros urbanos, eclodiram determinações regulamentando o
trabalho infantil, como no primeiro Código de Menores, que autorizava o trabalho a
8
O primeiro Código de Menores foi aprovado em 12 de outubro de 1927 pelo decreto nº. 17.343/A e foi elaborado
pelo jurista Mello Matos.
46
partir dos 12 anos se o menino estivesse freqüentando o ensino primário, ou, se
não, a partir dos 14 anos. Faz-se importante ressaltar duas informações nesse
sentido: a percepção de que talvez as denúncias feitas à exploração do trabalho
infantil nos jornais pelos denominados anarquistas tenham sido pioneiras em relação
à denúncia de desrespeito às crianças e adolescentes em nossa história; e a
informação de que, com a Constituição de 1934 determinou-se a proibição ao
trabalho infantil dos menores de 14 anos sem permissão judicial.
Segundo Passetti (2007), desde o Código de Menores de 1927 até a vigência
da Política Nacional do Bem-Estar do Menor que ficou consagrada no Código de
Menores de 1979, foram dezenas de anos usando-se da prática de internação para
crianças e jovens, independente de tratar-se de regime político democrático ou
autoritário. Modificou-se, porém, a atuação sobre a problemática, isso porque, se
durante certo período enfatizou-se a correção de comportamentos e o atendimento
especializado, noutros preocupou-se com a educação para a integração social,
tecendo-se loas ao trabalho interdisciplinar.
Dada a criação do Serviço Nacional de Assistência aos Menores o SAM
em 1941, órgão vinculado ao então Ministério da Justiça e Negócios Interiores que
veio a substituir a Escola Correcional 15 de novembro, o trabalho com crianças e
adolescentes era realizado com o objetivo de extirpar a ameaça dos meninos tidos
como perigosos e suspeitos. Além do que, contava-se com internatos, onde
predominava a ação repressiva e o desleixo contra os internos ao invés da ação
educativa. Igual situação do Recolhimento Provisório de Menores que, subordinado
ao Juizado de Menores e tendo como modelo o SAM, destinava-se a abrigar
também os acusados da prática de atos considerados infracionais (FALEIROS,
2006; PASSETTI, 2007).
No Ceará, instituído à semelhança do Serviço Nacional de Assistência aos
Menores – SAM, Osterne (1986) lembra o Instituto Carneiro de Mendonça situado na
localidade de Santo Antônio do Pitaguari, também denominado “Santo Antônio do
Buraco”. Instituição, na época, sinônimo de penalização, tendo em vista ter sido
utilizada pelos pais como ameaça aos filhos que não se enquadravam nos padrões
de comportamento socialmente aceitos.
De acordo com Faleiros (2006), vários esforços provenientes da Igreja
Católica e de outros setores da sociedade foram feitos para acabar com o SAM, em
razão da política repressiva que assegurava. Contudo, devido à oposição dos
47
burocratas e dos chefes autoritários do Ministério da Justiça à perda de poder sobre
essa parcela da população, essa política somente foi extinta em 1964, conjuntura do
golpe de Estado.
Com a extinção do SAM, paradoxalmente ao contexto da ditadura militar, foi
implantada no início de 1964 a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM) e,
em virtude dela, a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM
9
). Política
e instituição diretamente dependentes da esfera federal e idealizadas para se
constituir em um novo tratamento e exemplo na educação a criança e ao
adolescente infrator, o que de fato não aconteceu como demonstra Passetti:
A Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBM), sintonizada com a Lei
de Segurança Nacional, orientou o novo tratamento. Afirmava que o
tratamento ‘biopsicossocial’ reverteria a ‘cultura da violência’ que se
propagava pelos subúrbios com os conflitos entre gangues e com isso
contribuiria para acabar com a marginalidade formando jovens responsáveis
para a vida em sociedade. Não conseguiu nem uma coisa nem outra, a o
ser estigmatizar crianças e jovens da periferia como menores perigosos. Os
reformadores falharam novamente. O paradoxo esvaeceu. As unidades da
FEBEM em cada estado se mostraram lúgubres lugares de tortura e
espancamentos como foram os esconderijos militares para os subversivos
(2006: 358).
Unidades da Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor FEBEM
estavam, portanto, espalhadas em todo o país. No estado do Ceará, a conhecida
FEBEMCE, segundo informações prestadas por profissionais da extinta instituição a
um jornal do estado
10
, apesar de ter o nome associado a adolescentes infratores,
era responsável por toda a assistência à infância e adolescência pobre do estado.
Nesse sentido, recebia desde meninos perdidos, crianças que haviam sido retiradas
de casa porque os pais iam trabalhar e não tinham com quem deixá-las,
adolescentes presos sem motivos ou acusados de vadiagem etc. Circunstâncias de
dificuldades e exclusão representantes, a partir do novo Código de Menores de
9
Órgão criado pela Lei nº. 4.513 de de dezembro de 1964, com personalidade jurídica de direito privado,
integrante do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS), vinculada ao Ministério de
Previdência e Assistência Social (MPAS). Atuação dependente da esfera federal.
10
Informações destacadas do Jornal O Povo, a partir das matérias: 15 anos depois do Código de Menores de 09 de
julho de 2005 e Febemce: deficiências e fragilidade da lei de 14 de julho de 2005; oportunidade comemorativa aos 15 anos do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Disponíveis respectivamente em:
http://www.opovo.com.br/opovo/fortaleza/492040.html
e http://www.opovo.com.br/opovo/fortaleza/493396.html. Acesso em 13
de dezembro de 2007.
48
1979, da situação irregular
11
, que, no entendimento de Faleiros (2006), significava
patologia social, uma doença, um estado de enfermidade e, também, o estar fora
das normas.
A legislação específica para crianças e adolescentes com o Código de
Menores de 1979 passa a se basear na Doutrina da Situação Irregular, voltada
apenas para uma parte da infância e para as problemáticas instaladas. Além do
que, ao atualizar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, formaliza a concepção
‘biopsicossocial’ do abandono e da infração, estigmatizando, por fim, as crianças
pobres como menores e delinqüentes em potencial (PASSETTI, 2007).
Desde a instituição do primeiro Código de menores em 1927 e, notoriamente,
com o Código de 1979, os menores de 18 anos que cometessem atos infracionais
ou estivessem em situação de pobreza, ameaça moral ou risco eram considerados,
respectivamente, “marginais ou marginalizados”, diferentemente das crianças bem
integradas na família, as quais eram consideradas em “situação regular”. Distinção
entre crianças e menores percebida, inclusive, na ocasião da criação de uma
comissão parlamentar de inquérito sobre o assunto, em 1976, na Câmara dos
Deputados, ao se denominar seu relatório de: Relatório da Comissão Parlamentar de
Inquérito destinada a investigar o problema da criança e do menor carentes no Brasil
(FALEIROS, 2006: 52).
Ademais, em nome da suposta integração social, da ordem, da educação, da
disciplina, da saúde, da justiça, da assistência social, do combate ao abandono e à
criminalidade, percebe-se nesse transcorrer, a intenção de proteção mais à
sociedade do que as crianças e adolescentes, pois que eram constantemente
submetidos à vigilância policialesca e à dicotomia de serem tratados como pessoas
irregulares perante o Estado e a sociedade, em função destes não lhes oferecer as
condições necessárias ao exercício de seus direitos fundamentais.
Conquanto as políticas voltadas para o público infanto-juvenil tenham no
Brasil se estabelecido indissociavelmente dos caracteres assistencialista e
11
De acordo com o artigo desse código, considera-se em situação irregular o menor: I. privado de condições
essenciais à subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou
omissão, dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II.
Vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsáveis; III. Em perigo moral, devido:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade
contrária aos bons costumes; IV. Privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou
responsável; V. com desvio de conduta em virtude de uma grave inadaptação familiar ou comunitária; VI. Autor
de infração penal. (CÓDIGO DE MENORES DE 1979 apud PASSETTI, 2007: 364)
49
repressivo, observa-se sua paulatina transformação com a promulgação da
Constituição Federal em 1988 e, especialmente, com a Lei nº. 8.069 de 1990 que
cria o Estatuto da Criança e do Adolescente, substituindo o anterior Código de
menores. Com efeito, resultante de uma intensa mobilização de diferentes setores
organizados da sociedade em defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Embora internacionalmente já se estivesse formando nova concepção e forma
de tratamento à infância e à adolescência, notoriamente desde o momento em que
se aprova a Declaração dos Direitos da Criança em 1959, no Brasil, as modificações
surgem no contexto de exigência da sociedade brasileira à redemocratização do
país. O que culmina na promulgação da nova Constituição em 1988 que, ao acoplar
como principais características a forte ênfase nos direitos humanos, a
descentralização administrativa e política e a participação e organização social como
elementos fundamentais para o controle e a consolidação da democracia brasileira,
conclama o Estado, a família e a sociedade a proverem condições adequadas ao
desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes, colocando-os salvos de
qualquer tipo de distinção ou discriminação
12
.
Se com a promulgação da Constituição têm-se indícios de uma nova
concepção da infância e adolescência, é com a substituição da legislação específica
a esse público, até então representada pelo Código de Menores, que a doutrina da
proteção integral sobrepõe-se àquela remetente à situação irregular. Dessa forma,
com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA, visualiza-se uma
mudança de paradigma no que se refere às políticas públicas e ações direcionadas
a crianças e adolescentes. Passa-se a repudiar as práticas caritativas e
assistencialistas que estigmatizavam e segregavam esse público em crianças e
menores, bem como são estipulados preceitos que visam à proteção integral com
vistas a um saudável desenvolvimento.
Tomando como base os princípios de garantia de direitos preconizados pela
Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989
13
, o Estatuto da Criança e
do Adolescente dispõe sobre os direitos e igualmente os deveres do grupo o qual o
12
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 2001: 133)
13
A Convenção Internacional dos Direitos da Criança - Carta Magna para as crianças de todo o mundo foi
adotada em 1989 pela Assembléia Geral das Nações Unidas e ratificada por diversos países, inclusive, o Brasil.
50
nomeia. E numa tentativa de ultrapassar a coisificação a qual foram submetidos,
conquanto a histórica condição de negligência e violações, funda entre nós a
consideração de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em situação
peculiar de desenvolvimento, gozantes de absoluta prioridade quanto à elaboração e
efetivação de políticas públicas, além de destinação privilegiada de recursos das
diversas instâncias político-administrativas do país.
Portanto, a década de 90 representou um período de conquistas para as
políticas voltadas a crianças e adolescentes. Exemplos disso foram: a criação dos
Conselhos Tutelares presumidos no Estatuto, funcionando em cada município como
órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade para
zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (artigo 131, ECA) e
a concepção do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA)
14
em 1991, responsável por atribuições como a elaboração de normas
gerais da política nacional de atendimento dos direitos do grupo infanto-juvenil e a
avaliação das políticas estaduais e municipais lhes direcionadas.
No limiar das verificadas conquistas, contudo, faz-se necessário resgatar a
realidade a qual a sociedade brasileira estava inserida nesse processo histórico.
Desse modo, ao mesmo tempo em que se averiguava a definição da prioridade da
destinação de recursos públicos para crianças e adolescentes, incidia o paradoxo do
avanço de um novo viés do sistema capitalista vigente entre nós, ou seja, o
neoliberalismo e algumas de suas características fundantes como a redução dos
custos governamentais nas áreas de atendimento social.
O corte nos gastos públicos, como uma exigência advinda das novas
dimensões assumidas pela globalização, refletiu-se, como ainda se reflete, em dois
aspectos principais: a redução do Estado com a conseqüente proliferação de
organizações da sociedade civil e a atual penosa situação experimentada por
inúmeras crianças e adolescentes brasileiros frente à gigantesca desigualdade
social.
Para Passetti, (2007), embora ao Estado tenha sido deliberada a prioridade
quanto às políticas e ao atendimento de crianças e adolescentes, nessa conjuntura
uma nova forma de atendimento se realiza exigindo uma acomodação entre os
14
O Conselho é integrado por organizações governamentais e não-governamentais e a ele seguem os conselhos
estaduais e municipais. No Ceará, correspondem ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CEDCA/CE) a nível estadual e ao Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente de Fortaleza (COMDICA) e demais municípios a nível municipal.
51
princípios da filantropia privada, observados nos primeiros anos do século XX, e a
intervenção do poder público. Aspecto esse previsto na própria legislação, como, por
exemplo, no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente
15
.
De acordo com o autor, as organizações não-governamentais, no que
denomina nova filantropia, vão tomando a cena política na medida em que o ideário
neoliberal ou liberal social, em linhas gerais, alinha-se ao Estado que reduziu seus
investimentos sociais em nome de uma maior liberdade de mercado.
Desta maneira, a nova filantropia funciona no campo do atendimento, como
meio para a contenção de custos do Estado e, simultaneamente, como
geradora de empregos no âmbito privado. Ela responde socialmente pela
superação do desemprego de funcionários na esfera governamental, ao
mesmo tempo em que libera os empresários para fazer filantropia,
reduzindo o pagamento de seus impostos (2007: 368).
Observa-se, através de convênios firmados com o governo, o quanto
entidades da sociedade civil organizada recebem investimentos públicos para a
realização de suas atividades e, muito embora as propostas de algumas delas
atinjam os objetivos indicados, não como deixar de constatar a marca da
corrupção presente em inúmeras, além do fato de alcançarem somente uma parte
ínfima dos necessitados, sendo os resultados praticamente insignificantes ante o
contexto geral. Nesse quadro, a atuação sobre as crianças e os adolescentes
carentes e abandonados permanece equivalendo à meta a ser atingida, como alvo
de investimento para conter a sua provável transformação em infrator. Persiste a
estigmatização.
Conquanto essa realidade, ao longo dos anos 90 e início dos anos 2000,
verificou-se diversos planos e ações desenvolvidos pelo poder blico para a
promoção dos direitos de crianças e adolescentes, muitas vezes acompanhados dos
respectivos nos âmbitos estaduais e municipais. Exemplos vários podem ser
destacados, alguns acompanhados a nível federal pela atual Subsecretaria de
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, criada em 2003 e vinculada à
Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Lembre-se: o Sistema de Informação
para Infância e Adolescência (SIPIA), o Sistema Nacional de Atendimento
15
Segundo o artigo: A política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um
conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos municípios (ECA, artigo 86).
52
Sócioeducativo (SINASE), o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual
Infanto-Juvenil etc.
No Ceará, seja a nível estadual ou municipal, também se averigua crescente
número de ações direcionadas ao público infanto-juvenil como aquelas vinculadas à
política de assistência social, por exemplo: o desenvolvimento, na esfera estadual,
do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes localizado
na capital, que tem sua atuação vinculada à Secretaria do Trabalho e
Desenvolvimento Social do Ceará, e a Fundação da Criança e da Família Cidadã
FUNCI no município de Fortaleza, a qual, em âmbito municipal, acopla programas
e projetos voltados aos grupos que a nomeia.
Percebe-se, porém, ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente,
demais legislações, programas e projetos pretendam inaugurar uma nova prática de
atenção e assistência mudando os rumos da história, grande número de crianças e
adolescentes que continuam vitimizados por um incontável número de violações.
São eles, em virtude da sua condição peculiar de desenvolvimento, vulneráveis as
desigualdades estruturais constituídas pela dominação de classe, gênero e raça, e
também a atitudes violentas condicionadas por essas.
De acordo com dados e informações do relatório produzido pelo Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e intitulado Situação Mundial da Infância
2008, as prioridades relacionadas às crianças e adolescentes não são muito claras.
Isso acontece porque, apesar dos progressos impressionantes na melhoria das
taxas de sobrevivência e nas condições de saúde das crianças desde 1990,
especialmente nos países mais pobres, são necessários muitos esforços para conter
não somente os ainda significativos índices de mortalidade infantil, mas igualmente
para que se proporcione um melhor desenvolvimento desses seres.
Segundo as informações
16
, o Brasil, que possui a maior população infantil de
até 6 anos das Américas, apresentou grandes avanços com relação à taxa de
mortalidade infantil em relação às crianças com menos de 1 ano. Esta caiu de 46,9
mortes por cada mil crianças nascidas, em 1990, para 24,9/1000, em 2006.
Destacando-se o estado do Ceará como o que teve o maior decréscimo (56%) dessa
16
Informações presentes no relatório acerca da situação da infância no Brasil. Referência: Situação Mundial da
Infância 2008. Caderno Brasil. Brasília: janeiro de 2008. Disponível em
http://www.unicef.org/brazil/pt/cadernobrasil2008.pdf
53
taxa. Entretanto, a realidade continua a ser muito dura para a população infantil,
notoriamente com relação aos reflexos de desigualdades estruturais.
Os dados socioeconômicos citados nesse sentido apontam que a grande
maioria das crianças na primeira infância no Brasil se encontra em situação de
pobreza, indicando-a como bastante vulnerável às violações de direitos, à pobreza e
a iniqüidade no país. Reafirmam, além disso, a vulnerabilidade infanto-juvenil a
construídos processos sociohistóricos de dominação que se revestem em
expressões violentas, como o que se refere às diferenças étnicas e raciais. Portanto,
as crianças negras têm quase 70% mais chance de viver na pobreza do que as
brancas e do total de crianças e adolescentes indígenas, 63% o crianças de a6
anos de idade que vivem em situação de pobreza (UNICEF, 2008: 9).
Sem esquecer, igualmente e junto à Guerra (2001), o papel secundário que
crianças e adolescentes, de um modo geral, ainda têm nas relações sociais, uma
vez que sua participação nas decisões familiares, escolares e socais é restrita. Não
obstante, compreende-se, como Osterne (1986), que qualquer perspectiva de
solução permanente para a situação de nossa infância e adolescência implicará a
transformação das estruturas econômicas e sociais consolidadas.
Se não resta dúvida da existência de conquistas sociais e políticas para o
segmento infanto-juvenil, como a criação do Estatuto, a mais avançada legislação
para crianças e adolescentes que se instituiu em países da América Latina, nota-se
obstáculos a uma completa priorização e proteção a esse grupo, o que se pode
perceber, inclusive, numa parcial legitimação desse conjunto de leis pela sociedade,
posto que ainda se questione seus preceitos, como o que faz referência à prática do
ato infracional. Com isso, a educação para a cidadania defendida pelo ECA continua
subordinada à perspectiva criminalizadora dos antigos códigos de menores, pois a
mentalidade jurídica no Brasil continua predominantemente encarceradora
(PASSETTI, 2007: 371).
Pelo que se contou, abandonados, infratores e vitimizados são apenas três
designações jurídicas que expressam a condição de crianças e adolescentes
violentados no Brasil (PASSETTI, 2007: 374). País onde a formação social da
criança passa mais pela violência explícita ou implícita do que pelo livro, pelo
aprendizado e pela educação (DEL PRIORE, 2007: 105).
Após a apresentação desta trajetória, a seguir destacar-se-á uma das
manifestações de violência cometida contra crianças e adolescentes: a exploração
54
sexual comercial. Numa análise dessa expressão da violência sexual, abordar-se-ão
aspectos econômicos e simbólicos relacionados à inserção do público infanto-juvenil
nessa realidade.
55
2. ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA EXPLORAÇÃO
SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
2.1. As manifestações da violência sexual contra crianças e
adolescentes
Entre os diversos autores (as) que discutem a exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes, seja nas limitadas produções teóricas ou nas
enumeráveis pesquisas sobre a temática, parece consenso o entendimento da
complexidade que o perpassa, sobretudo, em razão das múltiplas dimensões e
configurações as quais se transverte essa expressão de violência vivenciada pelo
público infanto-juvenil.
Ao abordar determinada dificuldade quanto à conceituação da questão, pode-
se justificá-la sob três aspectos: a existência de diferentes fatores que vulnerabilizam
pessoas em fase peculiar de desenvolvimento proporcionando possível inserção no
“mercado do sexo”; as diversas caracterizações em que se concretiza, assim como a
dificuldade em quantificá-la, segundo Eva Faleiros (2000), em virtude de o mercado
do sexo ser extremamente poderoso economicamente, florescente, ilegal, criminoso
e dominado por máfias, o que faz com que o conhecimento e as pesquisas sejam
extremamente difíceis e até perigosas (p.18).
Sem desconsiderar esses aspectos mencionados nas leituras realizadas,
entende-se tal dificuldade essencialmente do ponto de vista da problemática em
categorizar uma situação em que comportamentos e relações encontram-se
permeados de especificidades históricas e culturais, passíveis de transformações
e/ou reproduções pela sociedade ou alguns de seus segmentos. Entendimento que
igualmente motiva Eva Faleiros (2000) a mencionar a importância de a exploração
sexual de crianças e adolescentes ser compreendida em suas “determinações
históricas”, tendo em vista a origem de uma sexualidade machista, sexista e
adultocêntrica ainda vigente e fundamentada numa sociedade escravagista, com
elites oligárquicas dominantes e dominadoras de grupos sociais inferiorizados pela
raça, cor, gênero e idade.
Libório (2004), em investigação realizada com adolescentes em situação de
exploração sexual, apresenta categorias explicativas que nortearam a
56
fundamentação teórica de seu trabalho, atenta à complexidade que envolve o
fenômeno. Leia-se:
(...) A violência estrutural (em cujo interior encontramos a exclusão social, a
influência da globalização e da imposição das leis do mercado), a violência
social (expressa nas dimensões de gênero, raça/etnia e geracional) a
violência interpessoal (presente nas relações interpessoais, tanto intra como
extrafamiliares), aspectos psicológicos (a construção da identidade e o
processo de vulnerabilização), entendidos dentro do contexto da
adolescência/sexualidade/violência e violação de direito. (p.26).
Na direção de algumas categorias explicativas de Libório (2004) e consciente
do caráter econômico e simbólico dessa tipificação violenta, Ellery (2003), em texto
do relatório final da Pesquisa sobre Exploração Sexual Comercial de Crianças e
Adolescentes no Estado do Ceará
17
, afirma ser essa uma forma de violência que
tem atingido crianças e adolescentes do mundo inteiro, principalmente nos países
onde a pobreza e as desigualdades de gênero, raça/etnia e geração são mais
expressivas e contundentes.
Essa compreensão parece derivar da observação dos dados e das
informações sobre o perfil de crianças e adolescentes em pesquisas realizadas
sobre a temática, as quais apontam uma grande incidência entre adolescentes
mulheres, provenientes das classes populares de baixa renda que vivem na periferia
dos centros urbanos, nos garimpos e outros locais similares (LEAL, 1999: 7).
Estudiosos (as) concordam em definir a exploração sexual comercial como
uma expressão da violência sexual contra crianças e adolescentes que também
abrange o denominado abuso sexual. Duas expressões diferenciadas em razão do
caráter comercial da primeira que, para ocorrer, pressupõe a “troca” da interação
sexual, geralmente por dinheiro.
Divergente da exploração sexual pelo caráter acima informado, o abuso
sexual é, portanto, comumente designado como o ato ou jogo em que o adulto
submete a criança ou o adolescente (relação de poder desigual) para se estimular
ou satisfazer sexualmente, impondo-se pela força física, pela ameaça ou pela
sedução, com palavras ou com oferta de presentes (ANDI apud ELLERY, 2004: 19).
17
Pesquisa realizada em 18 municípios cearenses no ano 2003 pelo Laboratório de Estudos e Pesquisa sobre
Direitos Humanos, Ética e Cidadania LABVIDA da Universidade Estadual do Ceará com o apoio do Fundo das
Nações Unidas para a Infância – UNICEF / CE-RN, suporte técnico da organização POMMAR/ USAID – Partners
e acompanhamento do Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
57
Algumas de suas características podem ser visualizadas nos dados da
Pesquisa sobre Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes no Estado do Ceará
18
(2004), os quais demonstram que a maioria dos abusadores pertence à própria
família das vítimas, representando 39% entre pai/mães, padrastos/madrastas,
irmão/irmãs, companheiros/as. Informação que, segundo Ellery (2004), evidencia
nesses casos a expressividade da existência de violência intra-familiar e de um
conseqüente pacto de silêncio em face da consangüinidade das relações e
preservação da harmonia e honra da família, mesmo que sob pressão do próprio
abusador e cumplicidade dos demais componentes, especialmente da figura
materna.
Observa-se, contudo, uma manifestação extra-familiar do abuso sexual, na
qual os violentadores não são pessoas consanguinamente vinculadas às crianças e
aos adolescentes abusados, embora sejam pessoas de sua confiança ou da
confiança de sua família. Sobre esse e outros aspectos escreve Eva Faleiros:
Os violentadores conhecidos da vítima e/ou de sua família aproveitam-se da
confiança que gozam, do status, do papel e do poder que possuem, do
lugar de privilégio que os põe em contato direto e continuado com a vítima,
da cobertura legal e pouco sujeita a suspeitas que possuem. Ocorre em
lugares fechados, no domicílio ou local de trabalho do abusador
(consultórios, igrejas, internatos, hospitais, escolas), esta situação presta-se
a manipulação do vitimizador, gerando grande confusão psicológica à vítima
e/ou sua família, ao aproveitar-se da confiança e prestigio que goza e ao
distorcer, perversamente, as relações (2000, p.15).
A título de exemplo, lembre-se casos emblemáticos como o de dezenove
garotas com idades entre nove e quinze anos abusadas sexualmente pelo frade
Sebastião Luiz Tomaz no município de Santana do Acaraú, localizado na região
norte do estado do Ceará, a 228 km da capital Fortaleza. Fato denunciado em
janeiro de 2002 e paradoxalmente desencadeador de manifestações contra as
crianças e as adolescentes envolvidas, não julgado até o presente momento.
Assim como a citada investigação realizada no Ceará, pesquisas comprovam
uma expressividade de crianças e adolescentes do sexo feminino na condição de
18
Esse estudo teve como objetivo geral levantar dados sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes de
ambos os sexos em 22 municípios do estado do Ceará. Foi realizado logo após a pesquisa sobre exploração
sexual comercial, igualmente, pelo Laboratório de Estudos e Pesquisa sobre Direitos Humanos, Ética e
Cidadania LABVIDA da Universidade Estadual do Ceará com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a
Infância UNICEF / CE-RN, suporte técnico da organização POMMAR/ USAID Partners e acompanhamento
do Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
58
vítimas dessa violência sexual (82,8% do total pesquisado no Ceará), evidenciando
um recorrente traço cultural de supremacia e subjugação ao poder masculino.
Todavia, faz-se importante a consideração dos garotos que sofrem em situações de
abuso sexual, como adverte Saffioti:
É preciso pensar que pais vitimizam não apenas suas próprias filhas, como
também seus filhos. (...) Num país o machista quanto o Brasil, este é um
segredo muito bem guardado. Se a vizinha souber, dirá que o destino
daquele garoto está selado: será homossexual (2004, p. 19-20).
Nessa conjuntura, observam-se algumas pré-noções arraigadas à percepção
dessa manifestação da violência sexual contra o público infanto-juvenil. Uma delas
seria a crença de que somente ocorre entre pessoas das classes sociais mais
vulnerabilizadas economicamente. Noção possivelmente produzida nas relações
desiguais perpetuadas pelo sistema capitalista desigual que rege nossa sociedade,
bem como, vinculada a majoritária presença desse segmento da população nos
serviços oferecidos às vitimas e suas famílias pelo setor público. Último aspecto
supostamente ancorado no desejo latente das classes mais abastadas em camuflar
as relações desviantes do padrão aceito socialmente vivenciado entre seus pares, e
na interiorização de elementos centrais do modelo capitalista neoliberal, como um
dos mencionados por Silva (2002), qual seja: a celebração da ineficiência dos
serviços públicos em contraposição aos privados.
Ao reverenciar o caráter eminentemente social do tabu do incesto, Saffioti
(2004) considera a ocorrência do abuso sexual nas diferentes classes sociais e
diferencia o processo em que ocorre o abuso incestuoso entre pobres e ricos.
Com uma descrição por nós considerada no mínimo determinista e
preconceituosa sobre a ação de pais incestuosos devido à distinção que propõe de
acordo com a classe social em que ocorre, Saffioti (2004) informa ser o abuso sexual
realizado a partir de uma receita da sedução nas camadas mais bem aquinhoadas
social e economicamente. Assinala nesses casos:
As técnicas são bastante sofisticadas, avançando lentamente nas carícias
que passam da ternura à lascívia. Muitas vezes e dependendo da idade da
criança, esta nem sabe discernir entre um e outro tipo de carícia, sendo
incapaz de localizar o momento da mudança. Como a sexualidade da
mulher é difusa por todo o corpo e a sexualidade infantil não é genitalizada,
as carícias percorrem toda a superfície de seu corpo, proporcionando prazer
a vitima. Posteriormente, recorrendo o adulto a pomadas especiais, dilata o
ânus e o reto da filha (ou filho), a fim de preparar o caminho da penetração
59
anal, pois a oral ocorre. (...) Depois de todos esses passos, que integram
a iniciação da criança na sexualidade do adulto, vem a penetração vaginal
(p.21).
Em relação a esse processo configurado em um jogo de sedução e descrito
como inerente às pessoas das classes mais favorecidas, Saffioti (2004)
contrariamente afirma ser o processo “rápido e brutal” nas camadas
economicamente desfavorecidas, pois o pai coloca um revólver, na mais fina das
hipóteses, ou uma faca de cozinha junto à cama ou sobre ela, joga a menina sobre o
leito, rasga-lhe as roupas e a estupra, ameaçando-a de morte, se gritar, ou
ameaçando matar toda sua família, se abrir a boca para contar o sucedido (p.21).
Para a autora, portanto, não se pode negar que o “pai instruídoprocede à
iniciação sexual de sua filha de forma delicada, sem violência física ou ameaças
nesse sentido, enquanto que no caso do pai pobre e de baixa escolaridade vai-se
diretamente ao ato sexual, sem prolegômenos de nenhuma espécie, sem carícias,
sem avançar paulatinamente.
Saffioti (2004) demonstra, na melhor das hipóteses, uma visão equivocada e
mesmo determinista, na medida em que expõe que um maior nível de escolaridade,
por exemplo, contribua para a produção de uma relação abusiva menos violenta.
Negligencia, dentre outros aspectos, os inúmeros fatores intrincados a essa
expressão da violência sexual, principalmente quando ainda em seu texto aborda as
possíveis conseqüências para as vítimas do abuso incestuoso, isto porque conclama
que “esta brutalidade”, referindo-se a ação que envolve pessoas pobres, o produz
traumas a ela proporcionais. Assim, confirma, embora consciente de que as pessoas
do sexo feminino são historicamente treinadas para sentir culpa nos casos em que
são vitimizadas, que, ainda não tendo introjetado a necessidade cristã de se
culpabilizar, os prováveis traumas desenvolvidos por meninas das classes menos
favorecidas não as faria ver-se como culpadas. Desse modo, em termos de danos
psíquicos e distúrbios sexuais, as pessoas em melhor situação econômica,
abusadas sexualmente via sedução, estariam mais prejudicadas segundo a autora.
Em contrapartida ao ponto de vista aludido, Eva Faleiros (2000) esclarece
uma caracterização comum aos casos de abuso sexual, independente da classe
social em que aconteça. Para ela, esse tipo de violência sexual só pode ser como é:
repetitiva, de longa duração, oculta, baixo o silêncio e a dominação da tima (p.14).
Caracterização que, somada a lembranças como as relações desiguais de poder
60
que a envolve e o fato de se estar falando em vítimas que se encontram em fase
peculiar de desenvolvimento biológico, psicológico e social (como apregoa o
Estatuto da Criança e do Adolescente), deixa evidente a imprevisibilidade de suas
conseqüências, que não podem ser medidas, nem temporalizadas, tendo em vista a
possibilidade de acompanhar a criança e o adolescente para toda a vida.
Ainda inserida nessa discussão, Saffioti (2004) compartilha da opinião de
estudiosos (as) da violência sexual contra crianças e adolescentes quando anuncia
que a vítima de abusos físicos, psicológicos, morais e/ou sexuais é vista por
cientistas como indivíduo com maior probabilidade de maltratar, sodomizar outros,
enfim, de reproduzir, contra outros, as violência sofridas, do mesmo modo em que se
mostra mais vulnerável às investidas sexuais ou violência de outrem.
Com efeito, desperta dois pontos importantes nessa discussão. O primeiro é a
defesa da existência de atendimento psicológico e social aos agressores sexuais,
muitos desses, segundo pesquisas, também vítimas de alguma violência sexual ao
longo de seu desenvolvimento; idéia, inclusive, defendida por militantes,
pesquisadores e profissionais do âmbito da violência sexual. E um segundo que
evidencia a experiência de diferentes violências ao longo da infância como um fator
de vulnerabilidade à inserção de crianças e adolescentes na exploração sexual
comercial, fazendo-se necessário compreender que esse fenômeno recebe
influência da violência intra-familiar, dentre as quais a violência sexual tem um papel
de destaque (LIBÓRIO, 2004:31).
A par da alusão acima, destacar-se-á a seguir mais detidamente o segundo
ponto, na medida em que prosseguirá à reflexão para uma mais prolongada
exposição conceitual da exploração sexual comercial. Enfatizar-se-á, dessa forma,
prováveis situações condicionantes
19
à inserção de crianças e adolescentes nessa
multidimensional expressão da violência sexual.
19
Em lugar do termo determinante, muito utilizado por autores a autoras que escrevem sobre a temática, neste
trabalho prefere-se a utilização do termo condicionante, tendo em vista acreditar-se que o primeiro invoca uma
relação causa-efeito, como se o fato de pertencer a um segmento social pauperizado ou mesmo a condição de
pertença ao sexo feminino determinasse à inserção na exploração sexual comercial. A palavra condicionante é,
portanto, aqui utilizada como fator de vulnerabilização, entendendo-se, de tal modo, que crianças e adolescentes
pauperizados estariam vulneráveis à uma possível admissão nessa expressão da violência sexual, por exemplo.
61
2.2 Dimensões econômicas e culturais da exploração sexual comercial
Inserida no circuito de tipificações violentas, especificamente caracterizada
como uma expressão da violência sexual contra crianças e adolescentes, a
exploração sexual comercial costuma ser designada levando-se em consideração
aspectos econômicos e culturais. Observem-se as conceituações abaixo:
A exploração sexual comercial é uma violação fundamental dos direitos da
criança. Esta compreende o abuso sexual por adultos e a remuneração em
espécie ao menino ou menina e a uma terceira pessoa ou várias. A criança
é tratada como objeto sexual e uma mercadoria. A exploração sexual
comercial de crianças constitui uma forma de coerção e violência, que pode
implicar o trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão
(ECPAT apud ELLERY, 2003: 16).
Nossa questão básica é a do relacionamento entre a exploração sexual e a
exploração econômica, tomando como pressuposto de que a exploração
sexual e a exploração econômica se combinam. (...) A exploração sexual se
articula à exploração econômica não só pelo lucro auferido, mas como
trabalho degradante para uma rede organizada, não raro com vínculos
internacionais (FALEIROS, V. 2004: 51,68).
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é definida como
uma relação de mercantilização (exploração/dominação) e abuso (poder) do
corpo de crianças e adolescentes (oferta) por exploradores sexuais
(mercadores), organizados em redes de comercialização local e global
(mercado) ou por pais, ou responsáveis, e por consumidores de serviços
sexuais pagos (demanda) (LEAL & LEAL, 2005:21-22).
Nessas circunstâncias, percebe-se estar sua caracterização como violência
diretamente imbricada não somente a comportamentos transgressores a regras ou
leis estabelecidas em determinada sociedade, mas, principalmente, a aspectos
derivados da produção e reprodução de relações desiguais construídas
sociohistoricamente.
Para Eva Faleiros (2000), é importante reter que a categoria violência é um
elemento constitutivo/conceitual e, portanto, explicativo de todas as situações em
que crianças e adolescentes são vitimizados sexualmente. Violência, todavia,
compreendida nos moldes delineados por Vicente Faleiros (2007), ou seja, não
como um ato psicologizado pelo descontrole, pela doença, pela patologia, mas como
um desencadear de relações que envolvem a cultura, o imaginário, as normas, o
processo civilizatório de um povo.
Consciente da dimensão cultural transversal a manifestações violentas como
a que se analisa, lembra-se, por exemplo, o tratamento social dispensado à infância
62
abordado no capítulo anterior e revelador da não consideração por séculos de
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Situação ainda visualizada,
apesar dos dezoito anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente
no Brasil, e baseada, fundamentalmente, na reprodução de uma relação desigual
entre adultos e crianças. De acordo com Eva Faleiros,
(...) seja por uma compreensão autoritária do pátrio poder, por concepções
socializadoras e educativas baseadas em castigos físicos, seja pelo
descaso e tolerância da sociedade com a extrema miséria e com as mais
diversas formas de violência a que são submetidos milhões de crianças,
pela impunidade dos vitimizadores de crianças, por cortes orçamentários em
políticas públicas e programas sociais (2000, p.8).
Segundo Eva Faleiros (2004), existe um consenso em considerar a
exploração sexual de crianças e adolescentes como uma relação adultocêntrica,
devido tratar-se de violência praticada por adultos contra indivíduos menores de
idade e tendo em vista a transformação de potenciais protetores em adultos
violentadores dos sujeitos considerados em fase peculiar de desenvolvimento.
Além desse viés o qual se transverte a exploração sexual comercial, contudo
não totalmente dissociado dele, Leal & Leal (2005), demonstrando o aspecto
econômico condicionante a essa realidade a partir do impacto da globalização nesse
contexto, evidenciam a colocação do corpo infanto-juvenil no mercado globalizado
do sexo como mais um produto de consumo.
Ao esboçarem prováveis conseqüências sociais do modelo de globalização
neoliberal que acirra a tensão entre capital e trabalho, verificam o quanto atingem
crianças e adolescentes proporcionando uma possível inserção no que se denomina
exploração sexual comercial. Conseqüências evidenciadas nas transformações que
esse modelo opera no âmbito da família, determinando novas relações entre seus
membros, e nas próprias condições perversas de trabalho as quais se submetem
crianças e adolescentes nessa realidade.
Para as autoras, esse novo cenário de crise no mundo do trabalho atua na
esfera da família determinando novas relações difíceis de serem suportadas pelos
seus componentes, especialmente por parte das crianças e dos adolescentes.
Dentre algumas, mencionam: alcoolismo, drogadição, experiências sexuais precoces
e insalubres, violência sexual, prostituição e tantas outras relações que
vulnerabilizam sociopedagogicamente esse segmento (LEAL &LEAL, 2005:23).
63
É nesse sentido, no contexto de acirramento da situação social e interpessoal
da família, muitas vezes agregado a conflitos gerados nas relações externas
construídas por crianças e adolescentes em outros meios sociais, que, a mercê do
processo de vulnerabilização social, tornam-se presas fáceis para o mercado do
crime e das redes de exploração sexual, deixando-se enganar por falsas promessas
e artigos de consumo dirigidos aos desejos da infância e adolescência (LEAL &
LEAL, 2005).
Outro viés alocado à globalização econômica no que se refere ao fenômeno
analisado diz respeito ao processo de flexibilidade e precarização que tem atingido
não as relações de trabalho masculino, mas sobretudo o feminino e o infantil. O
que ocorre por meio da inclusão da mão-de-obra dessa população em trabalhos
infomais, precários, clandestinos e, até mesmo, atrelados ao crime organizado.
Circunstância que leva não somente à submissão do trabalhador a situações de
vulnerabilidade e riscos sociais, como também ao trabalho forçado, explorado,
escravo e ao extermínio (Ibidem, p. 22-3).
Ao considerar o aspecto econômico como um dentre demais condicionantes e
fatores de vulnerabilidade da exploração sexual comercial e, tomando esta como
uma forma de trabalho infanto-juvenil, verifica-se que muitas crianças e adolescentes
submetem-se a uma ordem de trabalho como essa pela necessidade material de
subsistência. Contudo, igualmente influenciadas pelos desejos de consumo
imputados pelos meios de comunicação e pela lógica consumista da sociedade
capitalista, devendo-se ressaltar a cultura do consumo/a, cultura de massa frente à
indústria cultural que impõem valores e estilos de comportamento massificado,
podendo gerar nos sujeitos e grupos sociais desejos de inclusão social, por meio do
consumo (LIBÓRIO, 2004: 28).
Dentre os novos referenciais que vêm pautando a sociedade contemporânea
globalizada, neoliberal - observa-se, além da acentuação da pobreza e das
desigualdades sociais, a supervalorização do consumo. Lógica que, nesse caso,
dimensiona um duplo aspecto, pois ao mesmo tempo em que desperta
necessidades consumistas na população infanto-juvenil, condicionando-a a inserção
em situação de exploração sexual, transforma corpos de crianças e adolescentes em
objetos de consumo altamente valorizados no “mercado do sexo”.
Com a exposição do que aqui repetidamente se designa condicionantes ou
fatores de vulnerabilização, por exemplo, o aspecto econômico mencionado, o leitor
64
poderia questionar sobre uma possibilidade de sujeição a análises simplistas e
reducionistas que buscam explicações lineares ou relações causa-efeito do que se
pretenda analisar. Entretanto, é justamente a presente averiguação que nos faz
lembrar ao longo do trabalho a complexidade inerente à exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes, tendo em vista a consciência de uma ampliada e nem
sempre perceptível rede imaginária de fatores que torna o corpo cada vez mais um
meio e mercadoria para a sobrevivência. Daí, inclusive, a preferência da utilização
do termo “condicionante” em detrimento da palavra “determinante”, esta última muito
utilizada por autores (as) que pesquisam e analisam o fenômeno.
No curso dessa discussão, Diógenes (1998) ainda utilizando a ultrapassada
expressão prostituição infanto-juvenil ao se remeter à exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes, acredita que a condição dessa realidade é parte de uma
engrenagem social que produz, muitas vezes por antecipação, um exército de
indivíduos ‘reprovados de imediato que, sendo ‘marginais por sua condição, as
opções de vida parecem se colocar previamente definidas (p.07). Observe-se,
com essa afirmação, a consideração da existência de um grupo de fatores que
precisam ser pensados e trabalhados em seu conjunto para qualquer análise que se
venha a fazer dessa manifestação da violência sexual, e, igualmente, uma
naturalização de condições desfavoráveis, seja econômica seja cultural, que
marginalizam e condicionam meninos e meninas ao “mercado do sexo”.
Sob esses aspectos e baseada em dados de uma importante pesquisa sobre
a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes de ambos os sexos em
Fortaleza
20
, Diógenes explicita ser o cenário ampliado da situação de prostituição
infanto-juvenil marcado pelas experiências cotidianas de violência. Violência que tem
o corpo como seu território de ação.
Dessa forma, para Diógenes (1998), o que ocupava todo o espaço da
discussão, quando se abordava a dimensão da violência em relação aos segmentos
prostituídos, eram práticas em que o corpo aparecia como foco, havendo, segundo
sua fundamentação em Foucault, uma complexa ‘tecnologia de poder’ cujo destino
final da violência teria o corpo como ‘alvo’. Ou seja, ao observar que as pesquisas
acerca da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes até então
20
Pesquisa realizada em 1995 e intitulada: Criança Infeliz. Exploração Sexual Comercial de Crianças e
Adolescentes de Ambos os Sexos em Fortaleza, com o apoio de organizações internacionais e segmentos
governamentais – Prefeitura Municipal de Fortaleza e Governo do Estado do Ceará.
65
pareciam focar apenas o destino-corpo, percebe a conservação da invisibilidade de
uma rede de produção da exploração sexual e, concomitantemente, de inscrição da
violência. Daí a armadilha que, segundo concebe, parece mobilizar olhares e
intervenções para um território específico, remetendo para longe do foco de
observação as estratégias de produção da situação e dos investimentos de
disciplinamento e preparação dos corpos.
Diógenes (1998) adverte representar a violência sobre os corpos apenas o
registro visível da produção de uma tecnologia da violência que se inicia nas
inaugurais ocasiões de discriminação, de medo, de preconceito e estigma. Lembra,
além disso, que o se pode pensar a violência, nesses casos, tão somente como o
ato do abuso sexual, do estupro, da agressão física propriamente dita, tendo em
vista que esses são apenas momentos de visibilidade da violência, marcas da
violência nos corpos e nas almas, cuja engrenagem de produção do ato desenvolve-
se através de uma complexa rede de ações e atores específicos (p.14).
Não obstante as percepções salientadas, nota-se por meio de leituras sobre a
temática (pesquisas e produções teóricas) um atual entendimento da complexa rede
de fatores transversais à exploração sexual. Contudo, nem sempre visível a todos os
segmentos da sociedade, que comumente ainda buscam sinais comprovadores da
violência sexual fincados nos corpos, negligenciando as relações de poder e
violência que muitas vezes se exercem sem deixar vestígios físicos. Cite-se os
procedimentos realizados nas delegacias em casos de violência sexual, como o
exame de corpo de delito, para a comprovação física da violência.
Essa observação do presente entendimento da complexa rede de fatores
transversais à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes pode ser
reverenciada nas conceituações mencionadas no início desse tópico, isso porque
pesquisadores (as) e autores (as) apresentam dimensões de vulnerabilização a esse
episódio de violência, embora através de análises costumeiramente limitadas.
Assim, por exemplo, quando Vicente Faleiros (2004) pretende mostrar que a
exploração sexual e econômica e a discriminação social se articulam num processo
de mercadorização e de fetichização implicados num mercado e em relações
econômico/social/sexual, compreende-se que o referido considera uma diversidade
de fatores econômicos e culturais para a análise, observáveis segundo o que ele
traz em seu texto, na produção do corpo como objeto, na violência de gênero, na
66
discriminação, na circulação de dinheiro, na aquisição de lucro e na atuação criminal
que envolve essa manifestação da violência sexual.
Com efeito, a consensual designação da exploração sexual comercial como
uma manifestação de violência, bem como a apreensão de fatores culturais
intrínsecos a ele, sugere-nos a exposição do conceito de violência trazido por
Marilena Chauí (1985), numa tentativa de melhor compreensão da problemática
escolhida para a investigação. O que, de fato, procurar-se-á nas próximas linhas.
2.2.1 Fatores culturais e simbólicos
Ao demarcar esquematicamente diferenças entre os conceitos de poder, força
e violência, Chauí (1985) considera a última sob dois ângulos: primeiro como a
conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em uma relação
hierárquica entre superior e inferior com finalidade de dominação, exploração e
opressão; em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como
sujeito, mas como uma coisa.
Nesse sentido, ao entender poder como a capacidade coletiva para tomar
decisões consensuais sobre a existência da coletividade, o explica detalhadamente
como capacidade coletiva para tomar decisões concernentes à existência pública de
uma coletividade, de tal maneira que seja expressão de justiça, espaço de criação
de direitos e garantia do justo pelas leis, sem coação (CHAUÍ, 1985:34). Define, ao
mesmo tempo, força como a ausência do poder e presença do desejo de mando e
de opressão de uma classe sobre a outra de um grupo social sobre outro, o que se
expressa nas relações de exploração econômica, de dominação política, de
exclusão cultural, de sujeição ideológica e de coação física e psíquica.
Para a autora, a diferença fundamental entre a relação de força e a de
violência, ainda que sob a ressalva de que esta seja uma realização particular
daquela, explica-se no entendimento de que a pura relação de força visa, em última
instância, a aniquilar-se como relação através da destruição de uma das partes,
contrariamente a violência, que visa a manter a relação, mantendo as partes
presentes uma para a outra, porém uma delas anuladas em sua diferença e
submetida à vontade e à ação da outra. (p.35)
67
no que se refere à diferença entre poder e violência, a menciona apenas
em razão da afirmação de que: o poder não exclui a luta. A violência, sim (p.35)
Ora, conquanto a autora ressalte os dois ângulos sob os quais dimensiona a
violência - a transformação de diferentes em desiguais e a coisificação dos sujeitos –
, subverte a mera percepção do seu caráter mais visível, em virtude principalmente
de dar margem a implicação de elementos culturais que, não obstante ocultos,
emprestam profundo significado ao fenômeno em sua real abrangência.
De tal modo, torna-se importante por nos remeter a aspectos essenciais à
compreensão da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, dentre os
quais: a posição diferenciada, convertida em desigual, das crianças e adolescentes
frente às pessoas adultas, expressão da chamada relação adultocêntrica; o padrão
que atribui à sexualidade formas corretas e “normais” de manifestação e,
conseqüentemente, a marginalização do que não esteja conforme esse padrão
normalizador; e as relações de gênero, que tem sua importância revelada,
especialmente, nos dados de pesquisas que constatam serem as meninas a maioria
das vítimas dessa violência e serem os homens os principais agressores sexuais
21
.
Posto isso, algumas indagações poderiam ser feitas e, ao mesmo tempo,
previamente respondidas pelas linhas anteriores, quais sejam: Por que crianças e
adolescentes, apesar da promulgação de uma lei específica para a sua proteção,
são ainda submetidos a uma diversidade de situações violentas? Por que mesmo
face à consideração desumana da violência sexual tantas crianças e adolescentes
ainda estão submetidos a essa realidade? Por que são as meninas as principais
vítimas dessa manifestação violenta? O que faz com que as pessoas em fase de
desenvolvimento peculiar não se considerem exploradas frente à ação de adultos
que utilizam seus “serviços sexuais” em troca de dinheiro, favores, presentes etc.?
Por que mesmo considerada crime convive-se “naturalmente” com a exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes?
21
Esses dados podem ser visualizados em pesquisas como aquelas realizadas a nível local. Na Pesquisa:
Criança Infeliz – Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes de Ambos os Sexos em Fortaleza, as
meninas representam o percentual de 72,9% dos entrevistados; e a Pesquisa sobre Exploração Sexual
Comercial de Crianças e Adolescentes no Estado do Ceará, indica que 89,4% da população entrevistada
pertence ao sexo feminino, enquanto que as pessoas do sexo masculino representam 90,9% dos clientes
habituais. A presença majoritária de crianças e adolescentes do sexo feminino na condição de vítimas da
exploração sexual comercial pode, inclusive, ser verificada nos dados divulgados pelo Disque Denúncia Nacional
de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, posto que das 49.624 vítimas registradas via
denúncia no período entre 2003 e junho de 2007, 61% são do sexo feminino. (Ver bibliografia.).
68
De fato, possui essa manifestação da violência sexual um caráter cultural e
simbólico que se desvela nos elementos acima mencionados, conforme os dados e
as informações sobre o fenômeno. Caráter esse, contudo, camuflado em
construções históricas e sociais que naturalizam hierarquias e reproduzem
desigualdades.
A observação, portanto, de que a idade das crianças e dos (as) adolescentes
submetidos à exploração sexual oscila entre 10 a 19 anos, tendo grande incidência
entre adolescentes mulheres, provenientes das classes populares de baixa renda,
negras e mulatas (LEAL, 1999) ou designadas “pardas”
22
não assinala uma mera
coincidência. Demonstra, em vez disso, a necessidade de se admitir, para a
compreensão e enfrentamento dessa violência, as dimensões culturais inscritas nas
desigualdades geracionais, raciais e étnicas, de gênero e igualmente naquelas
produzidas em razão de um padrão alocado à sexualidade humana.
Em conformidade com a trajetória de tratamento à infância e à adolescência
traçada no capítulo anterior, percebe-se uma histórica superposição dos adultos
sobre as crianças, numa analogia a uma relação desigual entre mais fortes e mais
fracos. Diferença geracional transformada em desigualdade social, proporcionadora
de incontáveis situações de violência que adotam crianças e adolescentes como
alvos principais, mesmo após a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente. O que faz lembrar a advertência de Passetti (2007: 371): uma lei
promulgada será ineficaz se não estiver legitimada socialmente.
Em relação às desigualdades geracionais e também raciais contextualizadas
nas relações de exploração sexual, Leal & Leal comentam:
O corpo infanto-juvenil é mais um produto colocado no mercado globalizado
do sexo, onde o marketing e a publicidade de um modo geral encarregam-
se de fabricar, no caso brasileiro, a imagem da mulher jovem e mulata
direcionada, por exemplo, para o turismo sexual e a indústria do consumo.
(...) O racismo é outra forma da violência materializar-se na relação de
exploração sexual (2005:33).
Esta última questão, isto é, a visualização de uma relação desigual em
virtude, sobretudo, da cor da pele, refletida na grande incidência de crianças e
adolescentes negras e “pardas” em situação de exploração sexual comercial, lembra
22
Na pesquisa sobre exploração sexual comercial de crianças e adolescentes realizada no Ceará, a tulo de
exemplo, a categoria parda faz parte do quadro sobre etnia/raça e representa o percentual de 61,6% dos (as)
entrevistados (as).
69
a diferenciação de mulheres ainda no período colonial brasileiro, numa visível
manifestação de discriminação das mulheres negras em contraposição às brancas,
ambas, entretanto, dominadas e inferiorizadas pelos homens europeus, os
colonizadores. Verificação observável nas linhas escritas por Freyre (1992), que diz:
Pode-se afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses
para o amor, pelo menos o amor físico. (...) Com relação ao Brasil, que o
diga o ditado: ‘Branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar’,
ditado em que se sente, ao lado do convencialismo social da superioridade
da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela
mulata (p.10).
No limiar dessa discussão, Saffioti (2004), ao alegar o caráter não natural da
desigualdade, logo que imposta pela tradição cultural, afirma que nas relações entre
homens e mulheres a desigualdade de gênero não é dada, mas freqüentemente
construída. Faz-nos entender a necessidade de lançar mão a uma discussão sobre o
que se destaca no presente trabalho: as relações de gênero, compreendendo, com
isso, o caráter fundamentalmente social, assim como o aspecto relacional das
definições normativas da feminilidade que o termo gênero sobrepõe (SCOTT, 1990).
Com efeito, quando se remete ao caráter social das relações de gênero,
recusa-se a apreensão do determinismo biológico que, por vezes, justifica a histórica
desigualdade do sexo feminino em relação ao masculino, assim como a conferência
de papéis e comportamentos diferenciados para ambos em razão da não
similaridade entre seus corpos.
Nesse sentido, a diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo
masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os
órgãos sexuais, pode ser vista como justificativa natural da diferença socialmente
construída entre os gêneros (BOURDIEU, 2005). O que proporciona a elaboração de
idéias sobre uma suposta “natureza feminina”, de tal sorte que os membros de uma
sociedade, por respeitarem essa “natureza”, não se consideram autores de violência,
nem sofredores dela (CHAUÍ, 1985). Aspecto percebido na exploração sexual
comercial.
Não obstante esse substrato da naturalização fazer com que mulheres e
meninas permaneçam essencialmente ligadas ao plano biológico (da procriação), ao
plano da sensibilidade e ao plano da sujeição, faz igualmente com que homens
tenham sempre que assumir características consideradas masculinas, como
70
necessidade de constante afirmação do caráter a eles atribuído historicamente -
forte, racional, viril, dominador. Feição relacional a ser considerada nos estudos de
gênero, tendo em vista o trabalho histórico de reprodução e eternização de uma
visão e vivência sexista do mundo por homens e mulheres. Conseqüentemente
delineador do perfil das vítimas e também dos agressores nos episódios de
exploração sexual.
De tal modo, ao apreciar essa dimensão relacional justaposta nas relações
construídas entre homens e mulheres, pactua-se da idéia de que ambos são
definidos em termos recíprocos e de que a compreensão de nenhum deles pode ser
alcançada por um estudo separado. Daí a averiguação: na medida em que se
compreenda o porquê das meninas representarem a maioria das pessoas
vitimizadas pela exploração sexual comercial, entender-se-á por que são
majoritariamente os homens seus agressores.
Nas pesquisas realizadas com crianças e adolescentes que vivenciam essa
manifestação da violência sexual geralmente verifica-se o fato de inúmeras delas
não se sentirem exploradas sexualmente, por não acreditarem estar inseridas em
uma relação de caráter violento. Na Pesquisa coordenada por Ellery (2003), por
exemplo, menciona-se que a maioria das entrevistadas não se reconhece explorada
(68,8%), devido compreender que essa situação faz parte da sua vida e devido à
crença de que a violência somente se expressa através da agressão física e sexual.
Informação observável em depoimentos como o de uma adolescente de 17 anos:
não me acho explorada, porque sou bem tratada. Os clientes tratam a gente normal,
não batem, pagam o que a gente pede (ELLERY, 2003: 55).
Em relação ao exposto e de acordo com o conceito de violência defendido por
Chauí (1985), acredita-se que circunstâncias como essa acontecem devido à
interiorização de uma naturalidade essencial para a aceitação da violência como
não-violência. Isso porque nada impediu a elaboração de uma “natureza feminina”
definidora do ser, das ações, dos sentimentos e dos pensamentos das mulheres,
produto da naturalização de determinações sociais e históricas, as quais sempre
colocaram como condição a meninas e mulheres uma existência pelo e para o olhar
dos outros, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis (BOURDIEU, 2005).
Quando assevera que a violência deseja a sujeição consentida ou a
supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em ser suprimido na sua
diferença, Chauí (1985:35) faz lembrar o conceito de violência simbólica designado
71
por Bourdieu (2005), face à dominação masculina. Violência que, para o autor, se
institui por intermédio da adesão que o dominado, nesse caso as pessoas do sexo
feminino, não pode deixar de conceder ao dominante, conquanto não disponha de
outra forma de pensar, senão aquela que não é mais do que a forma incorporada da
relação de dominação.
Dessa forma, tendo em vista as relações desiguais de gênero e na medida
em que não se considere a vivência da exploração sexual comercial uma
manifestação da violência, estar-se-ia frente à violência perfeita, explicada por Chauí
(1985) como aquela que obtém a interiorização da vontade e da ação alheias pela
vontade e pela ação da parte dominada, de modo que a perda da autonomia não é
percebida nem reconhecida, mas submersa numa heteronímia que o se percebe
como tal.
Logo, construções sociais naturalizadas, não apenas camuflam o caráter
violento da exploração sexual comercial para aquelas que a sofrem e também para
os que a cometem, do mesmo modo, dimensionam dois aspectos interessantes: sua
aceitação social, em virtude de todos saberem da existência e conviverem
explicitamente com a situação, embora considerada crime
23
para aqueles que
exploram ou beneficiam-se com a exploração, e igualmente a condenação social, a
culpabilização das crianças e adolescentes explorados sexualmente.
Sendo esses dois aspectos duas faces de uma mesma moeda, pode-se
entrelaçá-los sob a perspectiva das relações de gênero, tomando-os como produtos
de concepções historicamente estabelecidas sobre homens e mulheres. Assim, se
por um lado deve a educação das mulheres, segundo autores como Rousseau
(2004), ser direcionada para a domesticação e subjugação aos homens desde a
mais tenra idade, que lhes agradar, ser-lhes útil, tornar suas vidas agradáveis e
doces, constituem-se deveres das mulheres desde a infância (e por que não
considerar nesse conjunto a prestação de serviços sexuais?!), por outro, devem ter
seu sexo protegido, fechado e possuído (PERROT, 2007) e sua sexualidade
vinculada à procriação, tendo a maternidade como instinto e destino.
A despeito de se enfatizar nesta pesquisa, sobretudo, os elementos culturais
emaranhados e por nós denominados condicionantes ou fatores de vulnerabilização,
23
Explorar sexualmente crianças e adolescentes em quaisquer de suas manifestações (prostituição, pornografia,
turismo sexual e tráfico para fins sexuais), bem como beneficiar-se dessa situação é considerado crime, estando
previsto no Código Penal Brasileiro e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
72
destacando-se como dito as relações de gênero, entende-se que, em qualquer
investigação que se proponha uma análise da exploração sexual comercial, não se
deve deslegitimar a condição de sujeitos de crianças e adolescentes, mesmo que
em situações como essa não sejam tratados como tal.
Nesse sentido, Libório (2004) argumenta que esse público não deve ser visto
como totalmente sem autonomia quanto à expressão de sua sexualidade, devendo-
se, além disso, levar em consideração que, algumas vezes e em determinadas
circunstâncias, são capazes de experimentar desejos sexuais e daí darem
consentimento ao ato sexual de forma significativa.
Contudo, para a autora, não se deve entender que o fato de ter ‘consentido’,
‘instigado’ ou ‘obtido gratificação sexual’, no relacionamento sexual com outro
indivíduo, descaracterize necessariamente essa interação como sendo exploração
sexual (p.39-40), enfatizando, desse modo, a expressão consentimento induzido.
Para uma melhor explicação:
‘Consentimento induzido’ está abarcando a situação de cooptação, expressa
em situações nas quais um determinado grupo (por exemplo, os
exploradores sexuais) domina um tipo de situação (coordena a rede de
exploração sexual) em relação a outro grupo, levando-o a uma escolha ou
consentimento aparente. A utilização de argumentos sedutores, tais como
apresentação de vantagens materiais e possibilidades de alterar seu
cotidiano (geralmente marcado por privações, fragilidade e inexistência de
opções), motiva as pessoas desse grupo mais vulnerável a aprovarem as
suas propostas e assim fazerem sua ‘escolha’, aparentemente de forma
voluntária (Ibidem, p. 40-1).
Sob esses aspectos, ao apreciar a condição de sujeito de crianças e
adolescentes explorados sexualmente, pretende-se recusar quaisquer preconceitos
que, fundamentados num suposto prazer que sintam no contexto das relações
sexuais comercializadas, os culpabilizem, ao reproduzir padrões e normas de
comportamentos socialmente construídas em relação à sexualidade ou qualquer
outra similar. Deseja-se, sobremaneira, ressaltar a violação de direitos nessas
situações como, por exemplo, aqueles relativos ao desenvolvimento de uma
sexualidade saudável, bem como desvelar os elementos culturais intrínsecos a essa
violência, não obstante encobertos por naturalizações (re)produzidas
cotidianamente.
73
Ao considerar a possibilidade de as crianças ou adolescentes terem
consentido ou mesmo “cedido”, para usar o termo aludido por Saffioti (2004)
24
, não
se pode restringir a percepção, excluindo questionamentos que façam pensar quais
são os fatores intervenientes e o contexto no qual se a inserção na exploração
sexual. São mais importantes e legítimas ponderações relacionadas à precocidade
da inserção, à relação comercial que a caracteriza e igualmente aos estereótipos
relacionados aos sujeitos envolvidos.
Nessa circunstância de referência a alguns elementos para a compreensão
do que se propõe com esta pesquisa, logo se torna necessária uma discussão sobre
a sexualidade humana, discernida em sua dimensão social. Porém, não apenas em
virtude do termo sexual que adjetiva a manifestação da violência analisada, mas,
sobretudo, devido ao histórico processo de normalização a que foram submetidas às
pessoas, seus corpos e suas mentes, em razão da sexualidade, assim como os
efeitos desse processo no público infanto-juvenil em situação de exploração sexual
comercial.
2.2.2 A dimensão social da sexualidade
Em relatório final sobre um estudo analítico do enfrentamento da exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes no Brasil, Leal & Leal (2005) apontam
uma questão a ser repensada por todos aqueles que de alguma forma lidam com a
problemática: como proteger crianças e adolescentes desse tipo de violência sem
desconstruir o projeto de sexualidade que a sociedade propõe e que mesmo
fortalece a violência?
Nas entrelinhas de tal questão, parece estar uma percepção da atual
existência de um projeto de sexualidade que, vulgarizando os corpos de mulheres,
crianças e adolescentes, propõe, ou mesmo induz, certa banalização da violência e,
igualmente, a não concepção da sexualidade como direito. Sem dúvidas,
importantes motes para a discussão, especialmente tendo em vista as relações de
24
Saffioti ao discutir acerca de violências que vitimizam pessoas do sexo feminino, argumenta não poderem ser
elas cúmplices ou mesmo dar seu consentimento às agressões masculinas. Logo, sendo detentoras de parcelas
infinitamente menores de poder que os homens, elas somente poderiam ceder e não consentir (2004:80).
74
gênero transversais à exploração sexual comercial e o seu entendimento no âmbito
da violação de direitos.
No entanto, no limiar deste estudo, pretende-se especialmente chamar
atenção para o processo histórico de normalização a que foram submetidos os
indivíduos, através do discernimento do que seria correto e aceitável em relação à
sexualidade. Processo naturalizado e possivelmente desvelador de uma negligência,
ou mesmo discriminação e culpabilização das crianças e adolescentes em
exploração sexual comercial por grande parte da sociedade, bem como pelos
próprios sujeitos envolvidos, que, em muitos casos, percebem-se como pessoas
inferiores ao realizar um “trabalho” degradante.
É nesse sentido, então, que se iniciará, a partir desse momento, uma
exposição das idéias de Michel Foucault (1988) em A vontade de saber, primeiro
volume dos três que encerram a sua História da Sexualidade.
Segundo Foucault (1988), existiria um discurso sobre a repressão moderna
do sexo protegido por uma grave caução histórica e política que determinou a
origem da Idade da Repressão no século XVII, contexto do desenvolvimento do
capitalismo, após centenas de anos de arejamento e de expressão livre da
sexualidade.
Para o autor, como parte da ordem burguesa, o discurso da repressão
encontraria um princípio de explicação na incompatibilidade do sexo com uma
colocação geral e intensa no trabalho, reverenciada naquele momento. Sendo, do
mesmo modo, formulado em virtude do que designa o “benefício do locutor”, posto
que para os produtores do discurso sobre a repressão do sexo, o simples fato de
falar dele e de sua repressão possuíra como que um ar de transgressão deliberada.
Apesar de saber que contrariar a tese bem aceita da repressão seria ir de
encontro a interesses que a sustentava, põe em dúvida o que denomina hipótese
repressiva e diz ter como objetivo muito menos mostrar que é falsa do que recolocá-
la numa economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das sociedades
modernas.
O autor argumenta, então, que essa hipótese de um poder de repressão
exercido socialmente sobre o sexo através de proibições e interdições e por motivos
econômicos, negligenciaria os mecanismos positivos produtores de saber e
multiplicadores de discursos. Ressaltando, além disso, uma enorme incitação a se
falar sobre o sexo, observada, especialmente, a partir do século XVII.
75
Uma primeira abordagem feita deste ponto de vista parece indicar que, a
partir do fim do século XVI, a ‘colocação do sexo em discurso’, em vez de
sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetida a um
mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas
sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa, mas de
disseminação e implantação das sexualidades polimorfas e que a vontade
de saber não se detém diante de um tabu irrevogável, mas se obstinou
sem dúvidas através de muitos erros em constituir uma ciência da
sexualidade (FOUCAULT, 1988:19).
Entretanto, apesar da consideração de uma explosão discursiva em torno e a
propósito do sexo, Foucault (1988) menciona novas regras de decência que, a partir
dali, encarregavam-se de filtrar palavras, numa intenção de controlar os enunciados
de que se falava. Controle igualmente evidenciado em definições que demonstravam
onde e quando não era possível falar do sexo, assim como em que situações, entre
quais locutores, e em que relações sociais, estabelecendo-se, de tal modo, regiões,
senão de silêncio, pelo menos de tato e discrição, como, por exemplo, entre pais e
filhos, educadores e alunos, patrões e serviçais.
Note-se que, de acordo com o autor, existiriam espaços próprios à
multiplicação dos discursos sobre o sexo, obstinados a falar, ouvir falar e fazer-se
falar dele cada vez mais.
Para Foucault (1988) dever-se-ia buscar o ponto de formação da incitação a
falar e ouvir falar do sexo nas práticas de penitência do cristianismo medieval.
Sendo, portanto, no seio da pastoral cristã onde pela primeira vez se impôs essa
injunção tão peculiar ao Ocidente moderno, logo que se colocava o imperativo: não
somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu desejo, de
todo o seu desejo, um discurso (p.27). Buscava-se, nesse lugar, finalidades como a
produção de efeitos de domínio e desinteresse, mas também de reconversão
espiritual, de retorno a Deus, efeito físico de dores bem-aventuradas por sentir no
seu corpo as ferroadas da tentação e o amor que lhe resiste (p.29).
É no final do século XVIII que o autor contextualiza o surgimento de uma
tecnologia do sexo inteiramente nova, independente à instituição eclesiástica.
Nascia uma incitação política, econômica e técnica a falar do sexo, e não tanto sob a
forma de uma teoria geral da sexualidade, mas sob forma de análise, de
contabilidade, de classificação e de especificação. Fundamentada não mais na
76
moral, mas na racionalidade, através de saberes como a pedagogia, a medicina e a
economia. Falar do sexo, nessas circunstâncias, tornou-se negócio de Estado,
cumprindo-se falar não mais para condená-lo ou tolerá-lo, mas para geri-lo, regulá-lo
para o bem de todos, fazê-lo funcionar segundo um padrão de otimização.
Assim, sobrelevando-se ao poder público, torna-se o sexo questão de polícia,
polícia do sexo ou necessidade de regulação por meio de discursos úteis e públicos
e não pelo rigor das proibições. Questão igualmente de vigilância, a ser realizada
por todo o corpo social e por cada um de seus indivíduos.
Como exemplo dessa constatação, Foucault (1988), remetendo-se ao sexo
das crianças, confirma o desaparecimento da antiga liberdade de linguagem entre
crianças e adultos ou alunos e professores, como se verificou com Áries (2006),
muito embora saliente este não ter isso significado um puro e simples silenciar. Não
se falaria menos do sexo então, pelo contrário, passou-se a falar dele de outra
maneira, falas proferidas por outras pessoas, a partir de outros pontos de vista, para
obter outros efeitos. Deste modo, nos colégios do culo XVIII, poder-se-ia ter a
impressão de que praticamente não se falava em sexo, sendo que se bastava
atentar para dispositivos arquitetônicos, regulamentos de disciplina e toda a
organização interior para perceber que se tratava lá continuamente do sexo.
O espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a
distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina),
os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono,
tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças (FOUCAULT,
1988: 34).
Sob o camuflado discurso interno da instituição, era, para Foucault (1987), a
sexualidade da criança e do adolescente verificada: precoce, ativa, permanente. E,
assim, vigiada e tratada como problema público por médicos, que se dirigiam aos
diretores dos estabelecimentos e aos professores, também disponibilizando
conselhos às famílias; por pedagogos, elaboradores de projetos submetidos às
autoridades; e por professores, que, voltando-se aos alunos, faziam-lhes
recomendações e para eles redigiam livros de exortação, cheios de conselhos
médicos e modelos edificantes.
O caráter dos colégios definido acima foi do mesmo modo averiguado nas
instituições de ensino brasileiras no século XIX por Costa (2004), para quem a
preocupação com o controle da sexualidade das crianças e adolescentes foi
77
longamente explorada pela medicina, em particular a masturbação, que
representava um perigo avassalador para a saúde física, moral e intelectual dos
jovens. Ou, ainda mesmo, em muitas escolas atualmente, que ao separar meninas e
meninos, reforçam estereótipos e comportamentos peculiares a uma e ao outro,
numa transposição de valores e formas de tratamento construídas
sociohistoricamente
25
.
De uma maneira geral e, portanto, além dos prédios escolares, a partir do
século XVIII, o sexo das crianças e dos adolescentes passou a ser importante foco
em torno do qual se dispuseram inúmeros dispositivos institucionais e estratégias
discursivas (FOUCAULT, 1988:36). E o somente o das crianças e dos (as)
adolescentes, mas igualmente o sexo das mulheres, como bem lembra Bozon
(2004), numa tentativa de medicalização geral dos comportamentos.
É nessa perspectiva que Foucault (1988), a despeito da crescente
preocupação com o sexo ao longo de todo o século XIX, delineia quatro figuras que,
para ele, se esboçam como objetos privilegiados de saber: a mulher histérica, a
criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto perverso, sendo-lhes
correspondentes estratégias produtoras de dispositivos específicos de saber e poder
a respeito do sexo: histerização do corpo da mulher, pedagogização do sexo da
criança, socialização das condutas de procriação e psiquiatrização do prazer
perverso.
Ao tracejar idéias de Michel Foucault sobre a sexualidade, Chauí (1984)
destaca e explica essas quatro estratégias, respectivamente, da seguinte forma: 1)
histerização do corpo feminino hirpersexualizada e fecunda, a mulher se distribui
em dois papéis: a mãe e a histérica; 2) pedagogização do sexo infantil a criança é
um ser sexuado polimorfo, desconhecendo a sexualidade saudável, de modo que
suas práticas sexuais colocam em risco sua vida, sua sanidade mental e a da futura
prole; o risco principal é a masturbação; 3) socialização das condutas de procriação
ou regulação demográfica interdição das práticas anticoncepcionais pelo Estado e
pela medicina; 4) psiquiatrização do prazer perverso que, de pecado e vício, se
torna doença; busca de uma tecnologia corretiva para anomalias.
25
Para um maior aprofundamento nessa discussão ver: AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de
gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006; e MORENO, Montserrat. Como se ensina a ser menina: o sexismo
na escola. Tradução de Ana Venitte Fuzatto. São Paulo: Moderna; Campinas, SP: Editora da Universidade
Estadual de Campinas, 1999.
78
Com efeito, no pensamento de Foucault (1988), as citadas estratégicas e todo
o aparato técnico em virtude delas tratam-se antes da produção da sexualidade do
que da repressão do sexo. Não se devendo, por conseguinte, concebê-la como uma
espécie de dado da natureza que o poder é tentado a r em xeque, ou como um
domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar.
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à
realidade subterrânea, mas à grande rede da superfície em que a
estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao
discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das
resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber e de poder (p.116-117).
Se para o autor é bem verdade que, desde o culo XVIII, o sexo não cessou
de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado produção discursiva
sem fundamentalmente o objetivo de reduzir e/ou proibir a prática sexual, a própria
sexualidade é produzida, através de uma série de dispositivos característicos das
sociedades modernas. No entanto, não apenas a sexualidade “normal”,
heterossexual, familiar, mas também a figura do desviante sexual, seja ele
masturbador, homossexual, pervertido.
Desse modo, observa-se, juntamente à colocação do sexo em discurso, a
disseminação e o reforço do despropósito sexual que, de acordo com Foucault
(1988), seriam duas peças de um mesmo dispositivo: o dispositivo de sexualidade,
articulando-se nele graças ao elemento central de uma confissão que obrigaria à
enunciação verídica da singularidade sexual, por mais extrema que fosse.
Para Foucault, tornou-se então a confissão uma das técnicas mais
valorizadas para produzir a verdade no Ocidente. Confissão que, processualmente,
difundiu seus efeitos na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares,
nas relações amorosas e na esfera mais cotidiana; que, desde a penitência cristã até
nossos dias, tem o sexo como matéria privilegiada, constituindo-se num ritual que se
desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos
virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que
requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar,
consolar, reconciliar (FOUCAULT, 1988: 70-1).
Nesse sentido, assevera ter-se tentado, não sem dificuldade, ajustar o antigo
procedimento da confissão às regras do discurso científico, tendo em vista ter sido
79
esse rito, desde o século XVI, paulatinamente desvinculado do sacramento da
penitência e emigrado para a pedagogia, para a relação entre adultos e crianças,
para as relações familiares, a medicina e a psiquiatria.
Sob essa perspectiva, Foucault (1988) dissemina a idéia da produção de uma
scientia sexualis desenvolvida a partir do século XIX. Uma ciência, em sua opinião,
feita de esquivas, que, na incapacidade ou recusa em falar do próprio sexo,
referia-se sobretudo às suas aberrações, perversões, extravagâncias excepcionais,
anulações patológicas, exasperações mórbidas. (p.61). Considerada, do mesmo
modo, uma ciência essencialmente subordinada aos imperativos de uma moral,
cujas classificações foram reiteradas sob a forma de normas dicas, a pretexto de
dizer a verdade, em todo lado provocava medos e atribuía às menores oscilações da
sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a se repercutirem sobre as
gerações.
Foi, portanto, a sexualidade definida como sendo, “por natureza”, um domínio
penetrável por processos patológicos demandantes de intervenções terapêuticas
e/ou de normalização. E, mesmo em face de um incontável número de especialistas,
detentores de saber, atuarem como agentes de um dispositivo de sexualidade,
representava a família o seu principal agente. A família que, não obstante presa na
cilada desse dispositivo que sobre ela investira de fora e que contribuíra para
solidificá-la em sua forma moderna, submersa num circulo vicioso de produção e
reprodução das normalizações a respeito do sexo, lançava-se aos médicos,
pedagogos, psiquiatras, padres, pastores, a todos os especialistas possíveis,
solicitando ajuda para resolver interferências infelizes e o longo lamento de seu
sofrimento sexual.
Posto que Focault (1988) ressalte a proliferação dos discursos em torno da
sexualidade e as anomalias caracterizadas a respeito dela, analisa a formação de
um tipo de saber sobre o sexo, não em termos de repressão ou de lei, mas em
termos de poder. Poder, entretanto, como ele mesmo adverte, não percebido como
conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição ou como um sistema
geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outros. Em vez disso,
compreendido como
A multiplicidade de correlação de força imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e
afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que
80
tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou
sistemas ou ao contrário, as defasagens e as contradições que as isolam
entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação
da lei, nas hegemonias sociais (p.102).
Explica que em qualquer sociedade existem relações de poder múltiplas que
atravessam, caracterizam e constituem o corpo social, e que estas relações de
poder não podem se dissociar, se estabelecer, nem funcionar sem uma produção,
uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso (FOUCAULT,
1979). Explicação que sobre a sexualidade o faz ressaltar: tais discursos sobre o
sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém onde ele se exercia
e como meio para seu exercício (FOUCAULT, 1988: 39).
Ainda que explicite uma análise do poder e das relações pelas quais ele se
exerce, para Machado (1979) não existe em Foucault uma teoria geral do poder, o
que significa dizer que suas análises não o consideram como uma realidade que
possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas
características universais. Assim, não existe algo unitário e global chamado poder,
mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O
poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal,
constituída historicamente (MACHADO, 1979: X).
Segundo Foucault (1979; 1988) o poder não se detém, se exerce. Está em
toda parte e não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível
unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, em todas as
relações, necessitando-se, por isso, captá-lo em suas extremidades, em suas
últimas ramificações, onde ele torna-se capilar. Captá-lo nas suas formas e
instituições mais regionais e locais.
Quando, portanto, menciona que o Estado não detém o poder ou mesmo que
este não se localiza somente em seu seio, o autor proporciona a compreensão de
Machado (1979), para quem é evidente a existência de formas de exercício do poder
diferentes das formas do Estado, contudo, a ele articuladas de maneiras variadas e
que são indispensáveis, inclusive, a sua sustentação e atuação eficaz.
Para Foucault (1979) não é a dominação global que se pluraliza e repercute
até embaixo, tornando-se, em virtude disso, necessária a análise da maneira como
os fenômenos, as técnicas e os procedimentos de poder, razão e efeito da produção
81
de discursos, atuam nos níveis mais locais e, principalmente, como são investidos e
anexados por fenômenos mais globais.
Assim, na medida em que examina historicamente a maneira como os
mecanismos de controle puderam funcionar quanto à repressão e proibição da
sexualidade, por exemplo, remete-se à importância em ver como, aos níveis mais
elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão ou exclusão dotaram-se
de instrumentos próprios, de uma lógica própria, para responder a determinadas
necessidades. Menciona, ainda, a necessidade de perceber quais foram seus
agentes, sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais, que
podem ser a família, a vizinhança, os pais, os médicos etc. Igualmente adverte sobre
a importância de notar como estes mecanismos de poder, em dado momento, em
uma conjuntura precisa e por meio de um determinado número de transformações,
começaram a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis.
A partir desse entendimento, Foucault (1979) acredita ser possível
demonstrar facilmente que, no fundo, a burguesia o precisou da exclusão dos
loucos ou da vigilância e proibição da masturbação infantil, e nem foi por isso que o
sistema demonstrou interesse, logo seu interesse residindo principalmente no
próprio procedimento de exclusão, como indica: são os mecanismos de exclusão, os
aparelhos de vigilância, a medicalização da sexualidade, da loucura, da
delinqüência, é toda essa micro-mecânica do poder que representou um interesse
para a burguesia a partir de determinado momento (p.185)
Sob esse ponto de vista então, Foucault (1988) parece explicar a história das
técnicas rigorosas aplicadas à sexualidade humana, tendo em vista terem sido
formadas e, sobretudo, aplicadas em primeiro lugar com mais intensidade nas
classes economicamente privilegiadas e politicamente dirigentes.
Avalia ter sido na família burguesa que se problematizou inicialmente a
sexualidade das crianças ou dos adolescentes e se medicalizou a sexualidade
feminina, sendo seus membros alertados em primeiro lugar para a patologia possível
do sexo, a urgência em vigiá-lo e a necessidade de inventar uma tecnologia racional
de correção. Foi, dessa forma, a família burguesa quem entrou, antes de todas, em
eretismos sexual, dando-se a medos, inventando receitas, pedindo o socorro das
técnicas científicas, suscitando, para repeti-los para si mesma, discursos
inumeráveis.
82
Segundo Foucault (1988), duas personagens foram investidas em primeiro
lugar pelo dispositivo de sexualidade. Na verdade três, uma vez que cita a mulher, a
criança e o adolescente. A mulher foi para ele a primeira a ser “sexualizada”, num
contexto que lhe atribuiu novo rol de obrigações conjugais e parentais, onde
apareceu a figura da “mulher nervosa”, sofrendo de “vapores”, que dava margem a
estratégia de histerização, para uma posterior intervenção e medicalização.
Quanto ao adolescente desperdiçado em prazeres secretos e a criança
onanista que tanto preocupou médicos e educadores, desde o fim do século XVIII
até o fim do século XIX, não era o filho do povo, o futuro operário a quem se deveria
ensinar as disciplinas do corpo; era o colegial, a criança cercada de serviçais, de
preceptores e de governantas, aquela que corria o risco de comprometer
capacidades intelectuais e que tinha o dever moral e a obrigação de conservar para
sua família e sua classe uma descendência sadia.
Ao alocar novamente dúvidas sobre a idéia de um ciclo repressivo, Foucault
(1988) vem asseverar que não foi, ao que parece, como princípio de limitação do
prazer dos outros que o dispositivo de sexualidade instaurou-se pelo que,
tradicionalmente, se chamava classes dirigentes, logo que não se tratasse de uma
renúncia ao prazer ou uma desqualificação da carne. Tratava-se, ao contrário, de
uma intensificação do corpo, uma problematização da saúde e de suas condições de
funcionamento, bem como de novas técnicas para maximizar a vida.
Longe de acreditar ser de seu dever amputar o corpo de um sexo inútil,
desgastante e perigoso, que não estava voltado exclusivamente para a
reprodução, pode-se dizer, ao contrário, que a classe que se tornava
hegemônica no século XVIIII se atribuiu um corpo para ser cuidado,
protegido, cultivado, preservado de todos os perigos e de todos os contatos,
isolado dos outros para que mantivesse seu valor diferencial; e isso
outorgando-se, entre outros meios, uma tecnologia do sexo (p.135).
Nessa perspectiva, se para Áries (2006) o sentimento da casa e da família,
com aspectos a ele inerentes como sua organização em habitações previstas para a
intimidade e um novo tratamento à infância, surgiu primeiro na burguesia para sua
diferenciação ou mesmo proteção contra toda contaminação popular; para Costa
(2004) a higiene, ao mesmo tempo que plantava mais um enclave na família
promíscua, oferecia-se como emblema de diferenciação social (p.130); e para
Foucault (1988) a burguesia, preocupada em assumir um corpo e uma sexualidade,
em garantir para si a força, a perenidade e a proliferação desse corpo através de um
83
dispositivo de sexualidade, traçava caminho para a produção de um corpo “de
classe” na intenção de afirmar sua diferença e sua hegemonia. Ela converteu o
sangue azul dos nobres em um organismo são e uma sexualidade sadia (p.138).
Em face disso, as camadas populares escaparam, por muito tempo, ao
dispositivo de sexualidade, isto porque certamente estavam submetidas a outro
dispositivo desvelado, dentre outras dimensões, na valorização do casamento
legítimo e da fecundidade, na exclusão das uniões consangüíneas e na prescrição
de endogamia social e local (FOUCAULT, 1988).
Poder-se-ia, entretanto, em consonância com o autor, dizer que o dispositivo
de sexualidade, elaborado de acordo com suas formas mais complexas e mais
intensas para e pelas classes privilegiadas, difundiu-se no corpo social como um
todo (p.133). Extensão como meio de controle econômico e de sujeição política das
classes menos favorecidas, porém não ancorada na sua completa submissão, mas
na auto-afirmação daquela dominante, tendo em vista não ter recebido em todo
lugar as mesmas formas, nem a utilização dos mesmos instrumentos.
Assim, conquanto as condições de vida impostas ao proletariado,
especialmente na primeira metade do século XIX, mostrassem que se estava longe
de tomar em consideração o seu corpo e o seu sexo, para que fossem dotados de
um corpo e uma sexualidade e para que sua saúde, seu sexo e sua reprodução
constituíssem problema, fizeram-se necessários, segundo o autor, conflitos,
urgências de natureza econômica e a instauração de toda uma tecnologia de
controle que permite manter em vigilância esse corpo e essa sexualidade que
finalmente se reconhecia neles. Destarte, a escola, a política habitacional, a higiene
pública, as instituições de assistência e previdência, a medicalização geral das
populações, em suma, todo um aparelho administrativo e técnico permitiu, sem
perigo, importar o dispositivo para a classe explorada. (p.138)
Observou-se com essa delineação do pensamento de Michel Foucault um
percurso e pontos de vistas, em determinados aspectos, não compartilhados por
alguns autores como Giddens (1993), que mesmo ao aceitar a sexualidade como
uma elaboração social, recusa a tese de Foucault, que traçaria um caminho de
desenvolvimento direto, desde um fascínio vitoriano pela sexualidade até os tempos
mais recentes. Com isso, afirma: contrastes importantes entre a sexualidade
revelada pela literatura médica vitoriana, e ali efetivamente marginalizada, e a
sexualidade como um fenômeno cotidiano em milhares de livros, artigos e outras
84
fontes descritivas atuais. Concluindo, além disso: as repressões da era vitoriana e as
posteriores foram em alguns aspectos muito reais, como podem plenamente atestar
várias gerações de mulheres (p.33).
Para Giddens (1993), sua recusa não se tratava da o aceitação dos
argumentos elaborados sobre as origens da sexualidade, dado que sua pretensão
era situá-los em uma estrutura interpretativa diferente. Nesse sentido, para esse
autor, contrapontos existiam, tendo em vista que Foucault colocou demasiada
ênfase na sexualidade em detrimento do gênero sexual; silenciou quanto às
conexões da sexualidade com o amor romântico, fenômeno intimamente vinculado
às mudanças na família; permaneceu em sua discussão da natureza da sexualidade
em grande parte no nível do discurso e, nesse nível, nas formas mais específicas de
discurso. Logo, de acordo com Giddens, devia-se colocar em questão a sua
concepção do eu em relação à modernidade.
Ao salientar que nos escritos de Foucault o poder se movimenta de maneiras
misteriosas, praticamente inexistindo a história como a realização ativamente
elaborada das questões humanas, Giddens (1993) parece considerar determinada
negligência da condição de autonomia e sujeito das pessoas envolvidas em sua
análise. Percepção talvez reverenciada quando Giddens fala sobre o corpo:
Certamente o corpo torna-se um foco do poder disciplinar. Mas, mais que isso,
torna-se um portador visível da auto-identidade, estando cada vez mais integrado
nas decisões individuais do estilo de vida (p.42). Ou mesmo, quando ao evidenciar
que a reflexividade do corpo se acelera de um modo fundamental com a invenção da
dieta em seu significado moderno, assevera: A dieta está ligada à introdução de uma
“ciência” da nutrição e, portanto, ao poder disciplinar no sentido de Foucault; mas
também situa a responsabilidade pelo desenvolvimento e pela aparência do corpo
diretamente nas mãos do seu proprietário (Ibidem).
Em relação a esses dois autores, enquanto verificou-se em Giddens (1993)
uma “libertação” para a sexualidade e a “revolução sexual”, devido à criação da
sexualidade plástica
26
, assim como em razão de a reprodução ter podido ocorrer na
ausência da atividade sexual; em Foucault (1988), a negação da hipótese
26
Termo utilizado pelo autor ao se remeter à sexualidade liberta das necessidades de reprodução, que para ele
tem as suas origens na tendência, iniciada no final do século XVIII, à limitação rigorosa da dimensão da família;
mas torna-se mais tarde mais desenvolvida como resultado da difusão da contracepção moderna e das novas
tecnologias reprodutivas (GIDDENS, 1993: 10).
85
repressiva, não significou a afirmação de que o capitalismo teria inaugurado um
período de libertação sexual, porém, uma vontade de saber sobre a sexualidade
como peça essencial de uma estratégia de controle do indivíduo e da população,
grande novidade na sociedade moderna.
Com base em Foucault (1979), portanto, entende-se que, sendo os indivíduos
historicamente investidos por um novo tipo de poder, baseado em mecanismos de
disciplina criadores de aparelhos de saber e de múltiplos domínios de conhecimento,
foram submetidos a regras “naturais” que explicitou como normas. Referentes a um
horizonte teórico que, não podendo ser de maneira alguma o edifício do direito, são
domínio das ciências humanas e igualmente de um saber clínico.
Criou-se, como percebido, um discurso normalizador que, quem não o
cumprisse, estaria à mercê da condenação e culpabilização pela sociedade, bem
como por si mesmo. Um discurso disseminado por profissionais que detêm um saber
e que não são mais do que pessoas que vieram a se ocupar da vida dos outros, em
lugar daqueles que anteriormente o faziam com a filantropia no início do culo XIX.
Profissionais, dentre outros trabalhadores sociais, aqueles mesmos escolhidos para
essa investigação.
Dessa forma, se as idéias de Foucault (1988) são consideradas e destacadas,
inclusive nesta pesquisa, é devido ao importante trabalho de desnaturalização das
concepções arregimentadas sobre a sexualidade humana ao longo dos séculos. E,
assim, a crença de que, a partir de seus postulados, poder-se-ia melhor
compreender aspectos culturais e simbólicos transversais ao fenômeno que se
pretende esta análise.
Surgem, nesse sentido, questões que se entrelaçam a algumas delimitadas
inicialmente no projeto de pesquisa, a exemplo da que se propõe compreender
como o atendimento psicológico e social às crianças e aos adolescentes em
situação de exploração sexual comercial é realizado, tendo em vista a naturalização
de concepções construídas sociohistoricamente, dentre as quais, as referentes a
relações mantidas entre homens e mulheres e, também, sobre a sexualidade de
crianças e adolescentes, por muito tempo, negligenciada e/ou condenada
socialmente.
Estariam, então, os (as) profissionais que realizam esse atendimento
reproduzindo concepções naturalizadas e discriminatórias, logo que, como pensado
86
por Foucault (1979; 1988), encontrar-se-iam historicamente inseridos num processo
de normalização social?
Essa é uma importante indagação prevista neste trabalho, dado o objetivo
geral de analisar a percepção dos (as) profissionais que realizam atendimento
psicológico e social às crianças e aos adolescentes vitimizados pela exploração
sexual comercial acerca das relações mantidas entre homens e mulheres na
perspectiva da categoria gênero.
Ao prosseguir com a discussão, no próximo capítulo explicitar-se-á
primeiramente uma narrativa da história do enfrentamento da problemática
considerada no Brasil e no contexto local para, logo em seguida, adentrar-se na
trajetória teórico-metodológica percorrida.
Será, do mesmo modo, apresentada uma inicial contextualização e análise
dos serviços de proteção social às crianças e aos adolescentes vítimas de violência,
abuso e exploração sexual inerentes à Política de Assistência Social, âmbito de
atuação dos interlocutores escolhidos para a investigação.
87
3.
O CONTEXTO, A ATUAL CONFIGURAÇÃO E AS PRIMEIRAS
PERCEPÇÕES SOBRE O CAMPO: OS SERVIÇOS DE
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA, AO ABUSO E À EXPLORAÇÃO
SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
3.1
Circunstâncias do enfrentamento: avanços e desafios
Como visto no capítulo primeiro, foi, sobretudo, a partir do início da década de
1990 que se evidenciou no Brasil a necessidade urgente de reconhecer crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos. Considerados em sua condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento, são indivíduos a quem se deve prioridade absoluta,
seja na formulação de políticas públicas, na destinação privilegiada de recursos das
diversas instâncias político-administrativas do país, ou em ações de enfrentamento a
diferentes modalidades de violação de seus direitos.
No contexto de redemocratização do país e de deliberação de uma legislação
específica para crianças e adolescentes, observa-se a emersão de preconizações
como a que adverte que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. E,
igualmente, a que indica a necessidade da existência dos serviços especiais de
prevenção e atendimento médico, psicológico e social, nos casos em que violações
desse porte vierem a acontecer
27
.
O combate às manifestações da violência sexual contra crianças e
adolescentes no Brasil
teve sua expressão política na década de 90, quando o
enfrentamento a esse fenômeno, fruto das desigualdades sociais, de gênero, de
raça e etnia, foi incluído na agenda da sociedade civil como questão relacionada à
luta nacional e internacional pelos direitos humanos de crianças e adolescentes,
preconizados na Constituição Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do
Adolescente Lei n.º 8.069/90 e na Convenção Internacional dos Direitos da
Criança
(PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
INFANTO-JUVENIL, 2002).
27
Preconizações destacadas no Estatuto da Criança e do Adolescente Lei Nº. 8.069 de 13 de Julho de 1990.
Contempladas, respectivamente, nos artigos 5º e 87.
88
Segundo informações do Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência
Sexual contra Crianças e Adolescentes, existiam mobilizações para o
enfrentamento no ano 1987 no estado do Ceará, especialmente no município de
Fortaleza. Contudo, somente no princípio dos anos 90 evidenciou-se uma maior
mobilização da sociedade civil, através, principalmente, das organizações não-
governamentais, dos Fóruns e dos movimentos sociais. O que, de fato, possibilitou o
desenvolvimento de uma ampla discussão sobre a temática a nível nacional.
De acordo com Libório & Sousa (2004), denúncias sobre o envolvimento de
crianças e adolescentes na prostituição e no turismo sexual no Brasil, especialmente
nas cidades litorâneas do Nordeste, vinham sendo feitas desde os primeiros anos
dessa década, principalmente após o lançamento do livro Meninas da Noite do
jornalista Gilberto Dimenstein em 1992
28
. Fatores essenciais para a visualização da
amplitude do problema, que culminou com a primeira Comissão Parlamentar de
Inquérito CPI da prostituição infanto-juvenil, iniciada no ano 1993 e concluída em
1994 na Câmara dos Deputados.
Essa CPI surge, então, num contexto pautado pela implementação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, pelas denúncias veiculadas na imprensa e
pela mobilização da sociedade civil organizada, no embalo de CPIs anteriores como
a do extermínio de meninos e meninas de rua em 1991 e da violência contra a
mulher em 1992. Segundo Leal (1999), com ela obtém-se um avanço na concepção
da temática, tendo em vista que a prostituição infantil passa a ser compreendida
como exploração sexual infanto-juvenil, de acordo com as diretrizes do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Se para Leal (1999), as organizações não-governamentais, o governo e as
agências internacionais optaram pelo termo exploração sexual contra crianças e
adolescentes e não mais prostituição infanto-juvenil, devido ao entendimento da
prostituição como um modo de vida que abrange determinado segmento social, uma
vez que somente o adulto pode optar por este modo de vida; para Libório (2004),
houve, além disso, a percepção de que era a prostituição infanto-juvenil somente
uma dimensão de um problema muito maior que envolvia outras manifestações,
28
O livro Meninas da Noite A prostituição de Meninas-Escravas no Brasil de autoria do jornalista Gilberto
Dimenstein foi publicado pela Editora Ática após a condensação de reportagens divulgadas inicialmente no
Jornal Folha de São Paulo. O seu conteúdo diz respeito à “investigação” sobre o tráfico e aprisionamento de
meninas forçadas à prostituição na Região Norte do país em 1992.
89
salientando, todavia, a preferência pelo uso do termo criança ou adolescente
prostituído (a).
Considera-se, nessas circunstâncias, tanto em nível nacional como
internacional, que a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes
engloba, além da prostituição infanto-juvenil, três outras modalidades previstas
primeiramente pelo Instituto Interamericano Del Niño em 1998: o turismo sexual, a
pornografia infantil e o tráfico (interno e internacional) para fins sexuais.
Modalidades que, como lembra Libório (2004), encontram-se inter-relacionadas e
influenciam-se mutuamente, formando, muitas vezes, um círculo vicioso difícil de ser
quebrado.
Na perspectiva do enfrentamento da problemática analisada, o I Congresso
Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes,
realizado em Estocolmo no ano 1996, representou um importante marco global na
luta contra essa manifestação violenta. Citado congresso reuniu 122 países, dentre
os quais o Brasil, que realizou como preparação ao Congresso Mundial o Seminário
contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, onde se
produziu o documento intitulado Carta de Brasília. Instrumento legítimo de
participação das Américas no encontro mundial que marcou o primeiro compromisso
político de governo e sociedade civil para ões e programas nessa área
(KOSHIMA, 2006).
O referido evento mundial, bem como outros que lhe seguiram
29
,
proporcionou a inclusão da exploração sexual comercial no debate público, em nível
nacional e internacional, tendo do mesmo modo possibilitado uma articulação
política entre as organizações participantes, o que proporcionou a compreensão do
fenômeno numa perspectiva transnacional. No Brasil, juntamente com os resultados
da CPI da prostituição infanto-juvenil de 1993, foi desencadeador de campanhas,
pesquisas e ações, inclusive de atendimento às pessoas vitimizadas. Embora, ainda
pontuais e não muito expressivas.
O incremento da visibilidade social da violência sexual contra crianças e
adolescentes na conjuntura da década de 90 é verificado sob algumas dimensões,
das quais se menciona o grande índice de telefonemas referentes a casos de abuso
29
Cite-se alguns: a Convenção Internacional contra o Crime Organizado Transnacional, ocorrida em Palermo
Itália (2000); e o II Congresso Mundial contra Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em Yokohama
(2001).
90
e exploração sexual no então serviço Disque Denúncia, criado em 1997 para
receber e encaminhar quaisquer reclamações e denúncias às autoridades
responsáveis. Serviço posteriormente assumido pela atual Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República e transformado no Disque-Denúncia
Nacional de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, atualmente
representado pelo número 100.
Esses anos, assim marcados por mobilizações de setores da sociedade em
prol dos direitos das crianças e dos adolescentes, pressionaram o poder público a
atuar no sentido de garantir a não violação destes direitos, o que repercutiu em
ações como a formação da Frente Parlamentar pelo fim da Violência, da Exploração
e do Turismo Sexual contra Crianças e Adolescentes em 1995. Sua intenção seria
atuar sobre os projetos de leis relativos ao problema, sobre a reformulação de
passagens do Código Penal e no acompanhamento da atuação das três esferas do
governo nessa área.
no ano 2000, teve-se a instituição do marco da luta contra as
manifestações da violência sexual simbolizado pelo dia 18 de maio, estabelecido
pela Lei Federal n.º 9970/00 como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Data escolhida em virtude de uma
menina de apenas oito anos de idade ter sido brutalmente violentada na cidade de
Vitória – ES em 1973.
Sem desconsiderar as demais ações desenvolvidas ao longo dos anos 90,
para Leal & Leal (2005), todo o processo de mobilização e articulação da sociedade
civil e do governo nesse sentido culminou na mais importante delas: a construção
coletiva e participativa do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual
Infanto-Juvenil
30
. O mesmo previsto no I Congresso Mundial contra a Exploração
Sexual Comercial de Crianças em Estolcomo, discutido e aprovado em um seminário
realizado na cidade de Natal RN em junho do ano 2000, no qual participaram 130
instituições de todas as regiões do país.
30
O Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil é um instrumento de garantia e defesa
de direitos de crianças e adolescentes e surge com a pretensão de criar, fortalecer e implementar um conjunto
articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção integral ao público infanto-juvenil em
situação ou risco de violência sexual. O Plano prevê a articulação de forças e atores governamentais, o-
governamentais e organismos internacionais e apresenta como objetivo geral estabelecer um conjunto de ações
articuladas que permita a intervenção técnico - política e financeira para o enfrentamento da violência sexual
contra crianças e adolescentes. (2002: 14)
91
O referido Plano, apresentado e deliberado pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente CONANDA em assembléia extraordinária,
constituiu-se em diretriz nacional no âmbito das políticas de enfrentamento da
violência sexual infanto-juvenil e logo se tratava de um documento legitimado e de
referência para as políticas públicas nos níveis federal, estadual e municipal.
Importante, principalmente, por resultar de uma mobilização com a participação de
segmentos do governo e por estabelecer metas e ações objetivamente delineadas
em seis eixos estratégicos: análise da situação, mobilização e articulação, defesa e
responsabilização, atendimento, prevenção e protagonismo juvenil.
Além da construção de documentos para o enfrentamento da violência sexual
em muitos estados e municípios brasileiros, após a deliberação do Plano Nacional,
verificou-se a implementação de importantes ações como, por exemplo, a criação do
Programa Sentinela em 2001, vinculado ao eixo estratégico de atendimento. Um
programa concebido pela ex-Secretaria de Estado da Assistência Social, hoje
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), com o objetivo de
promover o atendimento psicológico, social e jurídico para crianças e adolescentes
vítimas de abuso e exploração sexual comercial, bem como para suas famílias.
A partir de então, várias outras ações relacionadas aos demais eixos
definidos no Plano Nacional foram igualmente promovidas: a criação de delegacias
especializadas para o combate à violência contra crianças e adolescentes, a
fomentação de campanhas preventivas, a produção de pesquisas específicas sobre
o tema etc. Ações que foram ao encontro da decisão do presidente Lula em priorizar
o combate à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes em seu
governo desde o ano 2003, proporcionando, segundo Leal & Leal (2005), o início da
construção de um novo cenário político, do ponto de vista governamental, para o
enfrentamento dessa problemática no Brasil.
Em 2002, segundo informações contidas no site da Secretaria Especial de
Direitos Humanos (SEDH)
31
, foi concebido, como resposta às demandas do Plano
Nacional, o Programa de Combate ao Abuso e à Exploração de Crianças e
Adolescente sob a coordenação da então Secretaria de Estado da Assistência
Social do Ministério da Previdência e Assistência Social. Nessa conjuntura, o
31
Disponível em: http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/spdca/exploracaosexual/. Acesso em
02 de abril de 2008.
92
programa contava com atuações alocadas na extinta Secretaria Nacional de Direitos
humanos do Ministério da Justiça e no Ministério do Turismo.
Em 2003, contexto em que o presidente, no primeiro encontro com seus
ministros, prioriza o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, criou-
se a Comissão Intersetorial para o Enfrentamento da Violência Sexual sofrida por
esse público. Tendo esta como finalidade, de acordo com Leal & Leal (2005),
articular e integrar as políticas setoriais e acompanhar a implementação dos
programas voltados às crianças e adolescentes vitimizados e suas famílias,
desenvolvidos pelo Governo Federal, por organismos internacionais e por
organizações da sociedade civil (p.68).
No ano 2004, levando-se em consideração a necessidade de ações
integradas para o enfrentamento dessa violação dos direitos sexuais e reprodutivos,
o Programa de Combate ao Abuso e à Exploração de Crianças e Adolescentes
passa a ser coordenado pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e
do Adolescente, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), que,
na mesma época, assume também a coordenação da Comissão Intersetorial
concebida no ano anterior.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos, através da Subsecretaria de
Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, admite desde 2004, a nível
governamental, a coordenação nacional do enfrentamento à exploração sexual
comercial, o que especificamente significa: ser responsável pela sistematização de
informações; pela promoção de campanhas de sensibilização e mobilização; pela
gestão do Disque-Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes; e pela coordenação de alguns programas como, por exemplo, o
Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual
Infanto-juvenil – PAIR (LEAL & LEAL, 2005). Responsabilizando-se, em termos
gerais, pela articulação de redes com vistas ao desenvolvimento de ações
integradas, de forma que se desenvolvam metodologias de intervenção local
capazes de desencadear respostas mais efetivas para a superação dessa perversa
manifestação da violência
32
.
Em virtude desse período de tratamento público e governamental, foi a
exploração sexual comercial de crianças e adolescentes cada vez mais desvelada
32
Informações disponíveis no site acima destacado.
93
em território nacional. Passou-se a melhor conhecer suas modalidades de expressão
e características, por meio de pesquisas e estudos. Averiguou-se, por exemplo, que,
embora se apresente de forma diversificada e particularizada dentro de uma mesma
região, no Nordeste brasileiro configura-se, sobretudo, no turismo sexual, na
exploração sexual comercial em prostíbulos, no pornoturismo, na prostituição de
meninas e meninos de rua e na prostituição nas estradas
33
. Constatou-se a
existência de 110 rotas de tráfico interno e 241 rotas de tráfico internacional de
mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual
34
. E mais, apurou-
se, através de uma Matriz Intersetorial
35
, que, até o ano 2004, existiam 932
municípios com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual
comercial no Brasil 292 (31,8%) municípios no Nordeste; 241 (25,7%) no Sudeste;
161 (17,3%) no Sul; 127 (13,6%) no Centro-Oeste; e 109 (11,6%) municípios no
Norte.
Dentre as ações desempenhadas com a parceria do governo e de
organizações internacionais, vale ressaltar a elaboração da mencionada Matriz
Intersetorial de Enfrentamento à Exploração Sexual Comercial de Crianças e
Adolescentes, nesse caso propiciada pela Comissão Intersetorial, sob a
coordenação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, com aporte técnico e
financeiro do UNICEF.
Essa matriz que, igualmente, contou com a parceria do VIOLES Grupo de
Pesquisa sobre Violência e Exploração Sexual de Mulheres, Crianças e
Adolescentes do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília,
configurou-se numa significante ferramenta de trabalho, em virtude de apresentar as
características do fenômeno para análise, orientação, articulação e formulação de
políticas em âmbito federal, estadual e municipal. Demonstra, além disso, dados e
informações relativos a programas e projetos, como, por exemplo, o conhecimento
de que, dos 29 ministérios brasileiros na “área de direitos”, 11 têm programas que,
33
Informações retiradas do relatório final de pesquisa sobre exploração sexual comercial na América Latina e
Caribe. Ver: LEAL, Maria Lúcia Pinto. A Exploração Sexual Comercial de Meninos, Meninas e Adolescentes na
América Latina e Caribe (Relatório Final Brasil). Brasília: CECRIA, IIN, Ministério da Justiça, UNICEF, CESE,
1999.
34
Ver: LEAL, Maria Lúcia Pinto & LEAL, Maria de Fátima Pinto. Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial – PESTRAF: Relatório Nacional - Brasil. Brasília:
CECRIA, 2002.
35
Os dados e as informações da Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de
Crianças e Adolescentes pode ser visualizado em www.caminhos.ufms.br, ou em: LEAL, Maria Lúcia Pinto &
LEAL, Maria de Fátima Pinto. Estudo Analítico do Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e
Adolescentes no Brasil – ESCCA (Período 1996-2004). Rio de Janeiro: VIOLES/SER/UnB, 2005.
94
direta ou indiretamente, relacionam-se com o enfrentamento da exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes (LEAL & LEAL, 2005).
Todas as informações mencionadas demonstram o grande avanço em
relação ao enfrentamento da exploração sexual comercial nos últimos anos,
principalmente quanto ao conhecimento de suas formas de expressão no território
brasileiro e ao seu tratamento nos últimos anos pelo poder público.
Sabe-se, cada vez mais ser esta uma realidade presente na vida de inúmeras
meninas e, embora em menor número, meninos, podendo-se, inclusive, visualizá-la
facilmente nas ruas de muitas cidades do país. Dimensiona-se suas possíveis
causas e muito se discute sobre maneiras para um enfrentamento efetivo, antes
impensável. Como percebido, ações foram e são realizadas a nível nacional,
regional e local.
Uma importante ação a ser considerada nessa investigação diz respeito
notadamente à existência de um serviço concebido nacionalmente, porém
executado a nível municipal, com a finalidade de oferecer um conjunto de
procedimentos técnicos especializados no atendimento e na proteção imediata de
crianças e adolescentes timas de abuso ou exploração sexual, bem como seus
familiares. Serviço esse previsto na Política Nacional de Assistência Social,
coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e
substituto do antigo Programa Sentinela. Desenvolvido no âmbito do Centro de
Referência Especializado de Assistência Social CREAS, de abrangência local ou
regional, e preconizado no Sistema Único da Assistência Social– SUAS
36
.
Além da continuidade deste serviço de atendimento psicológico, social e
jurídico estendido a muitos municípios brasileiros, no limiar dos últimos anos
verificou-se um maior tratamento da questão da exploração sexual comercial pelo
poder público. O que se pode observar em iniciativas como a instauração de uma
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito CPMI para a investigação da violência
sexual e das redes de exploração sexual contra crianças e adolescentes no ano
2003. O que proporcionou, dentre outras coisas: o aumento da visibilidade por meio
do mapeamento de novas rotas das redes de exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes; o indiciamento de 250 pessoas envolvidas nesse crime,
36
Para maiores informações sobre o Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e a Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes (antigo Programa Sentinela), ver: Política Nacional de Assistência Social – Guia
CREAS ou acessar: http://www.mds.gov.br/suas/ , link: Proteção Social Especial – Média Complexidade.
95
dos quais alguns políticos, empresários, juízes e líderes religiosos; mudanças na
legislação como a promulgação da Lei 11.106 que complementa artigos do Código
Penal brasileiro para uma maior penalização dos agressores sexuais de crianças e
adolescentes
37
; a apresentação de propostas de implementação de políticas
públicas para o enfrentamento do fenômeno; e a instalação de dez CPIs em vários
estados brasileiros, entre elas a CPI sobre a exploração sexual de crianças e
adolescentes no estado do Ceará em 2005.
Portanto, junto às grandes mobilizações realizadas a nível nacional para o
enfrentamento da questão, nos âmbitos estadual e municipal igualmente deu-se
visibilidade e definiram-se ações, sobretudo nos locais onde a exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes tornou-se mais aparente: região de garimpos,
fronteiras internacionais, faixas litorâneas etc.
De acordo com Ellery (2003), o estado do Ceará insere-se no contexto de
implementação de ações nessa área por ter sido pioneiro na deflagração de um
amplo processo de mobilização social, notoriamente na capital Fortaleza. Um
processo que provocou no ano 1993 a CPI da prostituição infantil na Câmara
Municipal, contexto da primeira CPI em nível federal, e a criação do Pacto da Cidade
de Fortaleza em 1995, consideradas duas ações exemplares para o enfrentamento
desse fenômeno, tão freqüente e vivível no Ceará, principalmente onde o turismo
(com foco nas praias e na vida noturna) se constitui um fator preponderante para o
acirramento dessa problemática (p.17).
Segundo Diógenes (1995), já em 1991, foi criado em Fortaleza o Fórum
Permanente de Combate à Prostituição Infanto-Juvenil que, durante dois anos
consecutivos, efetivou ações de natureza diversas, tais como: inquéritos policiais,
encontros, discussões e mobilizações dos meios de comunicação de massa. No
curso das discussões acerca da prostituição infantil, foi, em seguida, concebido o
pacto mencionado acima por Ellery (2003), designado inicialmente: Pacto em Defesa
da Criança e do Adolescente em Situação de Risco. Posteriormente nomeado Pacto
de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e
transvertido na tentativa de articulação de ações concretas e de apoios mútuos entre
esferas governamentais e não governamentais, para a formação de uma rede de
37
A promulgação da Lei 11.106 acrescentou agravantes à sanção dos crimes contidos nos seguintes artigos do
Código Penal Brasileiro: 148, 215, 216, 226, 227 e 231.
96
encaminhamento sistemático da situação da prostituição infanto-juvenil em
Fortaleza.
Para Diógenes (1995), todavia, mesmo nascendo esse pacto para discutir a
prostituição infanto-juvenil assumindo-se como ‘defesa da criança e do adolescente
em situação de risco’ qualificação genérica e o marcadora de uma preferência,
de uma diferença, encerrava-se a idéia de que a denominação específica da
problemática prejudicava algumas meninas e alguns trabalhos dirigidos a esses (as)
adolescentes por ser discriminatório. O que a faz concluir, com uma pesquisa
naquele contexto, a não existência de nenhuma ação governamental ou não-
governamental voltada para a temática restrita da prostituição, tendo em vista que as
ações direcionadas para essa esfera diluíam-se no âmbito de uma rede de outras
ações desenvolvidas pelas entidades no campo relativo a crianças e adolescentes.
Não havia, portanto, como avaliar a atuação das instituições nessa área, na medida
em que não se poderia diferenciar a metodologia utilizada em relação a esse
segmento específico dos demais. Logo, tentava-se suprimir o caráter diferenciador
que opera a dimensão estigmatizante, esquecendo-se que o estigma construído
acerca da situação de prostituição é uma produção social e não uma marca fincada
e cravada na identidade do sujeito em situação de prostituição (p.71).
Tais considerações de Diógenes (1995) encontram-se mesmo inseridas nos
relevantes empreendimentos sobre o tratamento da exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes no contexto dos anos 90, posto que se localizam no
relatório final da pesquisa intitulada: Criança Infeliz Exploração Sexual Comercial
de Crianças e Adolescentes de Ambos os Sexos em Fortaleza. Resultado da
parceria entre organizações internacionais e organizações governamentais
(estaduais e municipais).
Ellery (2003) destaca outras iniciativas importantes nesse período no estado
do Ceará: A realização da Pesquisa sobre Prostituição Infanto-Juvenil em Fortaleza,
realizada em 1993 pelo Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança
NUCEPEC da Universidade Federal do Ceará; o Estudo de Viabilidade Sócio-
econômica para Identificação de Demandas por Capacitação para Meninas em
Situação de Violência Sexual, financiado em 1995 por uma organização
internacional; a produção de três documentos básicos contendo histórico da CPI da
Prostituição Infantil, propostas de uma política de atendimento às meninas
prostituídas e resultados das ações do Pacto; a Campanha Criança Infeliz em 1995;
97
a criação da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente
DCECA, também em 1995; e a implantação da 12º Vara Criminal vara privativa de
crimes contra a infância e a juventude, em 1998.
No estado do Ceará, onde o fenômeno da exploração sexual teve visibilidade
nacional e internacional a partir de várias denúncias veiculadas na mídia, as
iniciativas de enfrentamento continuaram a acontecer no início e em todo o decorrer
dos anos 2000. Dessa forma, verificou-se: a concepção e a implantação do Fórum
Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes
38
;
a elaboração dos planos estadual e municipal (Fortaleza) de enfrentamento ao
fenômeno, fundamentados no Plano Nacional; a implantação do Programa Sentinela
(dois na capital e em alguns municípios cearenses); a instalação de uma CPI sobra a
prática do turismo sexual em Fortaleza (2002); a Pesquisa sobre Exploração Sexual
Comercial de Crianças e Adolescentes no Estado do Ceará, realizada em 2003 pela
Universidade Estadual do Ceará com apoio técnico e financeiro do UNICEF e
POMMAR/USAID; a instalação de uma CPI na Assembléia Legislativa sobre a
exploração sexual de crianças e adolescentes no estado do Ceará (2005); a
implantação do Escritório de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência
à Vítima do Ceará; a criação da Coordenadoria de Enfrentamento à Violência Sexual
contra Crianças e Adolescentes CEVSCA, parte integrante da Fundação da
Criança e da Família Cidadã FUNCI da Prefeitura Municipal de Fortaleza; e, mais
recentemente, a inauguração de um abrigo específico para crianças e adolescentes
vítimas de tráfico para fins sexuais, uma parceria entre a Prefeitura Municipal de
Fortaleza e a organização internacional americana Partners of the Americas.
Posto que se perceba a grande mobilização para o enfrentamento da
exploração sexual comercial de crianças e adolescentes no estado do Ceará,
especialmente em sua capital Fortaleza, aqui a entendemos como uma volumosa
tentativa de resposta à grande incidência dessa problemática ao longo dos anos.
Nessas circunstâncias, além de poder visualizar cotidianamente a procura de
meninas por adultos que pagam em troca de relações sexuais, sobretudo nos bairros
38
O rum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes foi criado no ano
2001 tendo por objetivo desenvolver ações mobilizadoras e conscientes sobre as políticas publicas de
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Estado do Ceará. Insere-se no Sistema de
Garantia de Direitos através do Eixo de Controle Social.
98
periféricos e na faixa litorânea, reportagens, pesquisas nacionais e até internacionais
verificam a grave presença dessa realidade no contexto destacado.
De acordo com um estudo desenvolvido em 2004 por Silvia Capucci nas
cidades de Salvador, Recife e Fortaleza, averiguou-se ser o turismo sexual mais
visível na última, logo que as meninas são sexualmente exploradas nas ruas, nos
bares, na beira-mar, enfim, em todos os lugares. O que ela denominou mercado da
carne (LEAL & LEAL, 2005).
A cidade de Fortaleza, que é também destacada no livro Sociologia da
Sexualidade, quando Bozon (2004) exemplifica o turismo sexual envolvendo
estrangeiros de diversas nacionalidades em busca de contatos amorosos e sexuais
com brasileiras de classe popular e média, parece cenário propício para o que o
autor chama paraíso sexual. Local de imensa beleza natural e onde se procura uma
sexualidade mais livre: os amores exóticos. O que se configura numa relação
mantida através de jogos de valorização mútua, tendo em vista que, por um lado, os
estrangeiros, geralmente do hemisfério Norte, vêem as mulheres e meninas locais a
partir de suas qualidades corporais (sensuais, quentes, carinhosas etc.) e, por outro,
elas tem uma visão romantizada e deturpada daqueles que podem vir a funcionar
como o “príncipe encantado”, aquele que poderá tirá-la daquela condição. Situação
transvertida numa relação de dominação e, igualmente, sustentada nos pilares da
impunidade nacional, uma vez que não é possível promover aproximações, desejos
e, sobretudo, relacionamentos, mesmo temporários, se não existirem cenários
aceitáveis para relações amorosas/sexuais entre os atores. (BOZON, 2004: 112)
Ao contrário do que se possa pensar sobre as características do fenômeno
devido a uma fácil visualização da exploração sexual de meninas e meninos por
estrangeiros na cidade, não representam esses os clientes com maior freqüência,
tendo em vista que índices sempre demonstram serem as pessoas da cidade quem
mais exploram crianças e adolescentes
39
.
A partir, então, das mobilizações e da visibilidade que atores e atrizes
envolvidos no enfrentamento tem dado à exploração sexual comercial nos últimos
anos, a cidade de Fortaleza, embora seja um lugar de grande incidência, pode ser
considerada um dos locais onde o enfrentamento dessa violação dos direitos
39
Ver: DIÓGENES, Glória. Criança Infeliz. Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes de Ambos os Sexos
em Fortaleza. Fortaleza: Pacto de Combate ao Abuso e Exploração Sexual, 1998. ELLERY, Celina Magalhães.
Pesquisa sobre Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes no Estado do Ceará (Relatório Final).
Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2003.
99
humanos da criança e do adolescente tem evoluído e se destacado no âmbito
nacional. Foi, inclusive, a cidade escolhida para o lançamento da campanha
nacional de prevenção à exploração sexual comercial realizada no período pré-
carnavalesco em 2008 e, por dois anos consecutivos, a que mais denunciou essas
situações ao Disque-Denúncia Nacional nesse período
40
.
Viu-se, portanto, nas linhas anteriores o quanto se obteve avanços no
tratamento da problemática, sobretudo quando seu enfrentamento passa a ser
reverenciado pelo poder público. No entanto, a despeito dessa consideração, faz-se
necessária a exposição de alguns desafios a serem ultrapassados para uma real e
efetiva transformação da situação de crianças e adolescentes inseridas na
exploração sexual comercial.
Leal & Leal (2005) ressaltam, a título de exemplo, a marcante dificuldade por
parte do conjunto de operadores do sistema de garantia de direitos em identificar e
oferecer tratamento adequado às situações que envolvem a exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes em suas diferentes modalidades. Dificuldade
relacionada a numeráveis fatores dentre os quais se poderão citar alguns logo em
seguida.
Um dos fatores relacionados à dificuldade para o enfrentamento da questão
diz respeito à ainda baixa capacidade de os governos desenvolverem políticas
públicas intersetorializadas e descentralizadas, embora tenham sido, sob
determinados aspectos, compartilhadas responsabilidades entre governo, sociedade
civil, poder legislativo e mídia para enfrentar a exploração sexual comercial nos
últimos anos. Fator que, para Leal & Leal (2005) ainda não proporcionou a
implementação de uma política de enfrentamento à exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes.
Nessas circunstâncias, embora se tenha observado a emersão de programas,
projetos, serviços e ações visando ao enfrentamento dessa expressão da violência
sexual, essas formas de combate ao problema, além de não serem universais, não
são proporcionadas a todos aqueles a quem deveriam e encontram dificuldade em
existir de forma articulada entre si e com demais políticas de enfrentamento. Isto
40
De acordo com reportagem publicada no Jornal Diário do Nordeste de 19 de fevereiro de 2008, Fortaleza teve
aumento de 480% nas denúncias ao Disque 100 no ano 2007 em relação ao ano anterior. E, entre os estados
brasileiros, o Ceará está em 6º lugar em número de denúncias.
100
sobremaneira dificulta a realização do trabalho em rede
41
e, concomitantemente, o
início e a continuidade do atendimento às crianças e aos adolescentes explorados
sexualmente, este dificultado em razão das dimensões culturais e simbólicas as
quais a problemática se transverte.
Outro aspecto estagnante à evolução do enfrentamento da exploração sexual
comercial refere-se à falta de recursos financeiros específicos, principalmente nos
âmbitos estadual e municipal. Lembre-se, inclusive, a ressalva de Leal & Leal (2005)
que salientam ter o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-
Juvenil nascido sem recursos orçamentários, mesmo sendo elaborado e aprovado
pelo governo, sociedade civil e agências de cooperação internacional.
De acordo com o relatório final da CPI sobre a exploração sexual de crianças
e adolescentes no estado do Ceará (2005)
42
, um fator que tem promovido o
crescimento de casos dessa circunstância tem sido a impunidade dos crimes
sexuais praticados contra o público infanto-juvenil. Urge, para tanto, que se dê
atenção especial a esse fator, em virtude da proposição de que não se quebrando
esse ciclo perverso da impunidade, não como se falar em eficiência, eficácia e
efetividade das ações públicas de enfrentamento desse maléfico fenômeno (p.81).
Nota-se, igualmente, que as políticas sociais precisam compreender a
importância do papel que tem a desempenhar no atendimento ao público acometido
por essa violência sexual, logo que em diversas áreas, como na educação, esses
sujeitos em condição de vulnerabilidade social não têm sido tratados como
prioridade. A escola, por exemplo, tem sido um espaço de exclusão para esse
segmento vulnerabilizado, que não consegue ter sua situação entendida, respeitada
e considerada em termos de proposta político-pedagógica. (CPI SOBRE A ESCCA
NO ESTADO DO CEARÁ- Relatório Final, 2005: 81)
Segundo Leal & Leal (2005), outra dificuldade em termos de enfrentamento
da exploração sexual comercial corresponderia às fracas alianças políticas do
movimento da infância com os movimentos de mulheres, racial, homossexual, dos
direito humanos, dentre outros, o que de alguma forma demonstra a dificuldade de
41
Segundo Leal & Leal (2005), a estratégia de enfrentar a Exploração Sexual Comercial por meio de redes
socais é uma orientação do Plano Nacional que reafirma a necessidade de articulação das políticas públicas
como estratégia fundamental para desmobilizar as redes criminosas de exploração sexual. Para Faleiros (1998)
o trabalho em rede significa a articulação de atores/organizações-forças existentes no território para uma ação
conjunta multidimensional com responsabilidade compartilhada (parcerias) e negociada. (p.1)
42
Disponível em: http://www.al.ce.gov.br/
101
compreender o fenômeno nas suas múltiplas dimensões e a importância de uma
maior correlação de forças para o combate da ESCCA (p.36).
Assim sendo, apesar da observação do fomento de produções teóricas que
desvelaram a multidimensionalidade da temática, ou seja, a verificação da
correlação de aspectos econômicos e culturais relacionados à inserção de crianças
e adolescentes nessa situação, percebe-se a evolução do tratamento governamental
e público muito mais relacionada ao caráter técnico das ações para o seu
enfrentamento. Desconhece-se, todavia, a devida promoção de discussões sobre as
dimensões econômicas e culturais que perpassam o fenômeno, especialmente,
aqueles (as) que cotidianamente lidam com os sujeitos vitimizados durante os
atendimentos, seja em organizações governamentais ou não-governamentais.
Respaldando-se nessas preliminares considerações e com o intuito de
conhecer os atendimentos no âmbito da Assistência Social, assim como
compreender o entendimento das denominadas dimensões culturais e simbólicas da
exploração sexual comercial do ponto de vista dos (as) profissionais que realizam
esses atendimentos, salienta-se o empenho em responder às seguintes questões
norteadoras presentes na investigação:
- O que pensam os profissionais que realizam os atendimentos psicológico e
social a crianças e adolescentes vitimizados pela exploração sexual comercial sobre
as relações entre homens e mulheres construídas sociohistoricamente?
- Como esses (as) profissionais se relacionam com os demais atores da rede
de enfrentamento ao fenômeno em seu município, nas esferas estadual e federal?
- Quais são os parâmetros utilizados para a realização desses atendimentos?
- Como esses (as) profissionais compreendem as dimensões
socioeconômicas e simbólicas transversais ao fenômeno? De que maneira essa
compreensão interfere em suas práticas cotidianas?
Logo, o objetivo central a ser alcançado trata-se de compreender o discurso
dos profissionais que realizam atendimento às crianças e aos (as)
adolescentes em situação de exploração sexual comercial sobre as relações
mantidas entre homens e mulheres na perspectiva da categoria gênero, no
sentido de verificar como suas percepções interferem nas práticas cotidianas.
Apresentam-se como objetivos específicos:
102
- Conhecer os espaços e os (as) profissionais que realizam os atendimentos
psicológico e social às crianças e adolescentes que vivenciam a exploração sexual
comercial em Fortaleza e em alguns municípios de sua Região Metropolitana.
- Averiguar como os (as) profissionais se relacionam com os demais
personagens que compõem a rede de enfrentamento à exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes em seus municípios, bem como nas esferas estadual e
federal.
- Compreender como os atendimentos psicológico e social se desenvolvem e
quais são os parâmetros utilizados para a sua realização.
- Apreender o entendimento desses (as) profissionais sobre dimensões
transversais a esse fenômeno, tais como as dimensões socioeconômicas e
simbólicas.
3.2 Das escolhas ao percurso teórico e metodológico da investigação
Assim como supõe Bourdieu (2006), pode-se dizer que a construção do
objeto que aqui se apresenta não foi algo produzido de uma assentada, por uma
espécie de acto teórico inaugural. Foi, entretanto, um trabalho que se realizou pouco
a pouco, por retoques sucessivos, no qual as escolhas teórico-metodológicas foram
desenhadas processualmente, num movimento de avanços e retrocessos
constantes, até que se fossem evidenciadas as questões a que se queria responder
e, igualmente, os objetivos que se visava atingir.
Nessas circunstâncias, com o intuito de melhor compreender a temática
proposta, bem como de trabalhar com percepções de sujeitos cotidianamente
envolvidos com o objeto da investigação, evidenciou-se neste trabalho uma
pesquisa de natureza eminentemente qualitativa, respaldando-se na constatação de
Goldenberg (2003), posto que, para ela, métodos qualitativos enfatizam as
particularidades de um fenômeno em termos de seu significado para o grupo
pesquisado.
As primeiras definições quanto ao tema e à categoria central evocadas na
presente investigação exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e
categoria gênero, respectivamente foram pensadas em decorrência de vivências
103
anteriores. Compreender a construção histórica e social das relações mantidas entre
homens e mulheres na perspectiva do conceito gênero vem sendo buscado desde o
trabalho de conclusão do curso Serviço Social, ao passo que, trabalhar no
atendimento às chamadas vítimas da exploração sexual comercial, constituiu-se em
uma experiência de trabalho desenvolvido durante nove meses em um dos locais
visitados para esta pesquisa.
Havia, portanto, um prévio conhecimento do objeto de estudo, o que auxiliou
o processo da sua delimitação, do seu caráter, e, especialmente, da elaboração da
hipótese principal, qual seja: a percepção dos (as) profissionais que realizam
atendimento psicológico e social às vitimas de exploração sexual comercial sobre as
relações mantidas entre homens e mulheres está permeada de estereótipos acerca
do masculino e do feminino construídos historicamente, uma vez que se encontram
inseridos (as) em uma sociedade que naturaliza maneiras diferenciadas de
tratamento entre os sexos.
Além da sua natureza qualitativa, a investigação configurou-se como de tipo
bibliográfica, documental e de campo, tendo por base os procedimentos adotados e
os instrumentais utilizados.
Num primeiro momento, contudo não limitado a ele, realizou-se o
levantamento e a revisão de literatura sobre a temática, objetivando conhecer o
pensamento de autores (as) que abordam o fenômeno da exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes, assim como estudos sobre a categoria
gênero, em virtude da sua definição como categoria central para a análise do que
especialmente se buscou compreender.
Igualmente, foram acessadas fontes documentais representadas por
legislação brasileira e internacional que abordam o público infanto-juvenil, a
problemática proposta e a política de enfrentamento a violação dos direitos de
crianças e adolescentes, tais como: a Constituição da República Federativa do
Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Penal brasileiro, os Planos
Nacional, Estadual e Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil
etc. Estudo histórico institucional dos locais angariados para a pesquisa foi da
mesma forma realizado.
Apreendendo campo como o recorte espacial correspondente à abrangência
das manifestações empíricas do objeto de investigação (OSTERNE, 2007), realizou-
se pesquisa de campo, delimitando-se como áreas geográficas de análise os
104
Centros de Referência Especializados de Assistência Social CREAS dos
municípios de Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Horizonte, Itaitinga, Maracanaú e São
Gonçalo do Amarante; o Espaço Aquarela da Fundação da Criança e da família
Cidadã FUNCI da Prefeitura Municipal de Fortaleza; e o Núcleo de Enfrentamento
à Violência contra Crianças e Adolescentes, localizado em Fortaleza e coordenado
pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do
Ceará. Áreas geográficas onde se executa o nacionalmente concebido Serviço de
Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes e estabelecidas como os espaços de atuação dos sujeitos
interlocutores delimitados.
Como conseqüência da decisão de uma amostra qualitativa, a delimitação
das referidas áreas geográficas foi realizada na intenção de definir com clareza
sujeitos significativos e relevantes para a participação no processo de entrevista,
como também para uma maior abrangência dos dados e informações coletados.
De tal modo, o principal critério para a definição dos locais onde se buscou
os (as) nove profissionais entrevistados (as) foi a participação no Fórum Cearense
de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, entidade que
envolve organizações governamentais e não-governamentais e tem
como objetivo o
desenvolvimento de ações mobilizadoras e conscientes sobre as políticas públicas
de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no estado do
Ceará.
Com a finalidade de reverenciar os objetivos propostos, manteve-se um
diálogo com 9 (nove) profissionais responsáveis pelo atendimento à crianças e
adolescentes em situação de exploração sexual comercial no âmbito do poder
público, dentre os quais 5 (cinco) psicólogos (as) e 4 (quatro) assistentes sociais.
Foi, portanto, aleatoriamente escolhido um (a) profissional de cada espaço
delimitado.
Ao debater sobre o trabalho do antropólogo, o que não considera em nada
incompatível com o trabalho conduzido por colegas de outras disciplinas sociais
quando articulam a pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados,
Oliveira (2000) remete-se ao que chama “faculdades do entendimento” cio-
cultural, inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais. Para o autor, tais
faculdades do entendimento tratam-se mesmo de três etapas de apreensão dos
105
fenômenos sociais: o olhar, o ouvir e o escrever. Etapas igualmente vivenciadas ao
longo dessa investigação.
Nessas circunstâncias, o olhar de que fala Oliveira (2000) foi exercitado,
sobretudo porque os encontros com os sujeitos interlocutores em todas as ocasiões
aconteceram nos seus locais de trabalho, o que havia sido previamente
determinado na trajetória teórico-metodológica. Olhar devidamente sensibilizado
pela teoria disponível sobre o que se buscava naquele momento conhecer.
Se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir
também goza dessa propriedade (OLIVEIRA, 2000: 21). Nesse sentido, exercitou-se
o ouvir principalmente nos momentos da realização das entrevistas, uma vez que a
captação das percepções almejadas na investigação poderia ser mais bem obtida de
tal maneira. Utilizou-se como instrumento para a coleta de informações um roteiro
com perguntas
43
abertas e padronizadas para todos (as) os sujeitos interlocutores.
Roteiro que, ao apresentar tópicos de interesse explorados ao longo da abordagem,
se compõe de informações sobre o (a) entrevistado (a) e seu local de trabalho, sobre
o atendimento, sobre a exploração sexual comercial e sobre fatores culturais e
simbólicos referentes à temática.
Os tópicos e as questões do roteiro de entrevista foram elaborados de acordo
com os objetivos que se visava atingir, o que não acarretou a diminuição do número
de questões como pensado inicialmente. Desse modo, percebeu-se que o momento
da entrevista tornou-se um pouco cansativo, especialmente para as pessoas que
ofereceram muitas informações no decorrer das perguntas.
As visitas aos locais escolhidos, com a finalidade de perpetrar as observações
almejadas e realizar as entrevistas com os (as) profissionais, foram feitas em
diferentes dias da semana, de acordo com a disponibilidade de cada um (a), tendo
em vista serem esses (as) bastante atarefados (as). Aspecto observado, sobretudo
em razão da existência de poucos profissionais para a realização desse atendimento
em todos os espaços visitados.
As entrevistas foram realizadas entre o período da segunda quinzena do mês
de julho último e os primeiros dias do s de agosto. No decorrer desse processo
não se experimentou muitas dificuldades, apesar de ter havido a necessidade de
43
Ver anexo.
106
maior disponibilização de tempo para as pequenas viagens aos municípios
localizados na Região Metropolitana de Fortaleza.
Todos (as) os (as) interlocutores (as) contatados para a posterior participação
na pesquisa foram bastante solícitos, demonstrando, inclusive, interesse em
conhecer e fazer parte da investigação. Durante a entrevista foi utilizado um
gravador, com a permissão de todos os (as) participantes, sendo transcrita logo em
seguida, com suas mais necessárias informações condensadas para melhor
utilização.
O diário de campo foi também um dos instrumentos utilizados no contexto das
visitas, onde se registrou informações e percepções consideradas importantes na
ocasião, inclusive, as sensações ao chegar a cada município e espaço visitados.
Procurou-se, nessa perspectiva, lançar mão das anotações perpetradas para melhor
interpretação dos dados e das informações obtidas em campo no momento mesmo
do ato de escrever - terceira etapa de apreensão dos fenômenos sociais, concebida
por Oliveira (2000).
É certo que toda a trajetória acima descrita objetivamente não ocorreu de
maneira totalmente linear ou sem os contratempos vivenciados por (as) todos (as)
aqueles (as) que desafiam a si mesmos em busca de melhor compreender
fenômenos sociais.
Dessa forma, além de toda espécie de questionamento ter estado presente
nos diversos momentos, procurou-se estar com a percepção aguçada,
especialmente, para captar dimensões como as nuances presentes no momento de
diálogo com os sujeitos interlocutores, e para a construção de um texto sem grandes
interferências de juízos de valor. Importante lembrar, todavia, a observação de
Oliveira (2000), para quem nenhum “homem” pensa sozinho, pois que contido no
espaço de um horizonte socialmente construído o de sua própria sociedade e de
sua comunidade profissional.
Vale ainda ressaltar a escolha da análise de discurso para o tratamento das
informações coletadas, tendo em vista a intenção de capturar algo a mais do que os
elementos visualizados em uma leitura aparente dos depoimentos adquiridos, assim
como desvendar as relações existentes entre o exterior e o próprio discurso. Tal
escolha baseia-se, igualmente, em razão das palavras de Bardin (2002), para quem
essa técnica facilita a compreensão dos resultados a partir do momento em que
107
funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em
categorias segundo reagrupamentos analógicos. Entre as diferentes
possibilidades de categorização, a investigação de temas, ou análise
temática, é rápida e eficaz na condição de se aplicar a discursos diretos
(significações manifestas) e simples (p.153).
Nesse sentido, segue a esse detalhamento do percurso da investigação uma
contextualização dos Serviços de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (antigos Programas Sentinela),
previstos na Política Nacional de Assistência Social e âmbito de atuação dos sujeitos
interlocutores delimitados na hodierna pesquisa. Antes, contudo, apresentem-se
breves informações sobre os sujeitos participantes
44
:
Assistente social 1 Mulher; 32 anos. Três anos de formação profissional.
Tem contrato de trabalho informal e temporário. Exerce sua função no local visitado
oito meses e com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual
comercial um ano. Sempre gostou de trabalhar com o público infanto-juvenil,
contudo iniciou o trabalho no local em que hoje se encontra em virtude da
oportunidade que lhe apareceu.
Psicólogo 1 Homem; 31 anos. Mestre em Psicologia com cinco anos de
formação profissional. É também graduado em Filosofia. Tem contrato informal
renovável semestralmente. Exerce sua função no local visitado quatro meses,
igual período de trabalho com crianças e adolescentes em situação de exploração
sexual comercial. Relatou ter “caído de pára-quedas” nas funções que hoje exerce.
Não teve, inicialmente, o desejo de trabalhar com esse público, mas sim uma
oportunidade de trabalho.
Assistente social 2 Mulher; 27 anos. Tem quatro anos de formação
profissional e é concursada. Trabalha no local visitado um ano, igual período de
trabalho com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual comercial
Iniciou o trabalho no local referido após ter pedido transferência do anterior, disse
não ter sido uma escolha. Em razão da divisão de tarefas entre os profissionais do
local, atende com mais freqüência ao público de idosos.
Psicólogo 2 Homem; 30 anos. Concursado com quatro anos de formação
profissional. Exerce sua função no local visitado três meses, embora houvesse
44
Os (as) profissionais participantes foram, a partir desse momento, nomeados pela formação e um número
correspondente, em razão da necessária preservação de suas identidades. Pelo mesmo motivo, não foi possível
mencionar e atribuir a cada um (a) o município em que desenvolve suas atividades. As informações por ora
apresentadas têm por finalidade a introdução desses sujeitos no debate anteposto.
108
trabalhado com crianças e adolescentes em situação de rua na época de seu
estágio curricular, que geralmente incluía o público da exploração sexual comercial.
Escolheu esse local por acreditar que teria um foco mais bem definido no
atendimento.
Assistente social 3 Mulher; 28 anos. Tem cinco anos de formação
profissional e contrato informal de trabalho. Trabalha no local visitado mais de
dois anos e com crianças e adolescentes, inclusive em situação de exploração
sexual comercial, oito anos. Desde a época de estágio curricular, a partir da
primeira experiência com esse blico, se interessou pelo trabalho, chegando a
desenvolver pesquisa sobre violência sexual para a monografia de conclusão de
curso.
Psicóloga 3 Mulher; 29 anos. Tem contrato de trabalho informal por tempo
determinado e renovável. Exerce sua função no local visitado dois anos e quatro
meses, igual período com crianças e adolescentes em situação de exploração
sexual comercial. Embora não tenha escolhido trabalhar onde está, encontra-se nele
em razão de uma oportunidade, e hoje gosta das funções que executa.
Assistente social 4 – Mulher; 50 anos. Concursada com onze anos de
experiência profissional. Exerce sua função no local visitado seis meses, igual
período de trabalho com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual
comercial. Trabalhava anteriormente com o público infanto-juvenil em privação de
liberdade. Decidiu trabalhar onde atualmente está pela busca de novas instigações e
perspectivas.
Psicóloga 4 – Mulher; 34 anos. Com nove anos de formação profissional, tem
relação de trabalho de forma terceirizada e exerce sua função no local visitado
um ano e com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual comercial
cinco anos. Desde a época acadêmica gostava de desenvolver trabalhos com
crianças e adolescentes.
Psicóloga 5 Mulher; 28 anos. Concursada com quatro anos de formação
profissional. Exerce sua função no local visitado um mês e, devido ao curto
espaço de tempo, ainda não atendeu a casos de crianças e adolescentes em
situação de exploração sexual comercial. Foi lotada no local onde está em razão do
concurso. Não teve, por isso, possibilidade de escolha do local onde desenvolveria
suas funções
109
3.3 Os serviços de enfrentamento à violência, ao abuso e à exploração
sexual no contexto da Política de Assistência Social
Embora concebida como um direito no campo da seguridade social,
prevista na Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 e
regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social de 1993, a Política Nacional
de Assistência Social somente foi elaborada, aprovada e tornada pública com seus
princípios, diretrizes e objetivos no ano 2004. O que ratificou sua nova concepção no
campo dos direitos, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal.
Ao materializar o conteúdo da Lei Orgânica de Assistência Social LOAS, o
Sistema Único de Assistência Social – SUAS configura-se como o modelo de gestão
da Política Nacional que regula e organiza as ações socioassistencias em todo o
território nacional.
Nas circunstâncias do novo modelo de gestão descentralizado e participativo
do SUAS, a política de assistência social e, igualmente, os programas, projetos e
serviços a ele inerentes passam a ser organizados por tipo de proteção social,
especificada como básica ou especial conforme a natureza, bem como por níveis de
complexidade do atendimento.
Se a proteção social básica tem como objetivos prevenir situações de risco e
fortalecer os vínculos familiares e comunitários, a proteção social especial é a
modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se
encontram em situações de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono,
maus tratos físicos, abuso sexual, trabalho infantil, dentre outros (PNAS, 2005: 37).
Nessa conjuntura, são os Serviços de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e
à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes substitutos dos anteriores
Programas Sentinelas e previstos pela proteção social especial de média
complexidade, em razão de oferecerem atendimentos a famílias e indivíduos com
seus direitos violados, cujo vínculo familiar e comunitário não foi rompido. Situação
de um grande número de crianças e adolescentes vitimizados pela violência sexual,
seja por abuso ou por exploração sexual comercial.
A proteção social especial de média complexidade envolve os Centros de
Referência Especializados de Assistência Social, espaços de atuação de sete dos
110
(as) nove profissionais entrevistados (as) que, a partir desse momento, para não
provocar a dispersão das informações, serão designadas apenas pela sigla CREAS.
Segundo a conceituação evidenciada no guia produzido pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome para detalhar e divulgar aspectos
relacionados à sua caracterização, o CREAS constitui-se
Unidade pública estatal, de prestação de serviços especializados e
continuados a indivíduos e famílias com seus direitos violados, promovendo
a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a dispersão dos
serviços e potencializar a ação para os seus usuários, envolvendo um
conjunto de profissionais e processos de trabalhos que devem ofertar apoio
e acompanhamento individualizado especializado (Brasil, [2004?]: 4-5).
O CREAS pode ter abrangência local ou regional, de acordo com o porte, o
nível de gestão e a demanda dos municípios, além do grau de incidência e
complexidade das situações de risco e violação de direitos. A oferta de seus serviços
é vinculada ao nível de gestão dos municípios, que pode ser inicial, básica ou
plena
45
.
Apesar de o público-alvo do CREAS ser composto por crianças,
adolescentes, jovens, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, e suas
famílias
46
, a oferta de serviços deve ser prioritariamente para crianças e
adolescentes em situações de abuso ou exploração sexual nos municípios em
gestão inicial e básica. Entretanto, os municípios por meios próprios poderão ampliar
o atendimento para as demais situações de risco e violação de direitos de crianças e
adolescentes.
No que se refere aos municípios em gestão plena, ao atendimento voltado a
situações de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes deve-se somar
ações mais gerais de enfrentamento das situações de violação de direitos relativos
ao nível de proteção social especial de média complexidade, precisando
disponibilizar serviços outros direcionados a mulheres, idosos, pessoas com
deficiência e adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.
45
Para maiores informações sobre os níveis de gestão consultar: Norma Operacional Básica NOB/SUAS.
Brasília: 2005.
46
Segundo informações coletadas do endereço eletrônico do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, o público-alvo do CREAS é composto por: Crianças, adolescentes, jovens, mulheres, pessoas idosas,
pessoas com deficiência, e suas famílias, que vivenciam situações de ameaça e violações de direitos por
ocorrência de abandono, violência física, psicológica ou sexual, exploração sexual comercial, situação de rua,
vivência de trabalho infantil e outras formas de submissão a situações que provocam danos e agravos a sua
condição de vida e os impedem de usufruir de autonomia e bem-estar.
111
Note-se ser o Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes prioritário na perspectiva dos CREAS e definido
como
Serviço que deve desenvolver um conjunto de procedimentos técnicos
especializados para atendimento e proteção imediata às crianças e aos
adolescentes abusados ou explorados sexualmente, assim como seus
familiares, proporcionando-lhes condições para o fortalecimento da sua
auto-estima e o restabelecimento de seu direito à convivência familiar e
comunitária (Brasil, [2004?]: 11).
De acordo com informações divulgadas na página eletrônica do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, as atividades desenvolvidas em razão
do serviço mencionado dizem respeito àquelas que anteriormente eram realizadas
no Programa Sentinela, ou seja, atendimentos psicossocial e jurídico para crianças,
adolescentes, assim como suas famílias em situações específicas de violência
sexual.
Dos nove locais visitados para a realização da pesquisa, sete constituem-se
CREAS, todos esses localizados na Região Metropolitana de Fortaleza (Aquiraz,
Caucaia, Eusébio, Horizonte, Itaitinga, Maracanaú e São Gonçalo do Amarante),
onde se realizam atendimentos além daqueles previstos em conseqüência da
violência sexual contra crianças e adolescentes. Os outros dois locais visitados no
município de Fortaleza, Espaço Aquarela e Núcleo de Enfrentamento à Violência
contra Crianças e Adolescentes possuem um serviço especializado somente para
atendimentos a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, assim
como suas famílias, contando com equipe própria para a realização desse trabalho.
Apesar dessa aparente diferenciação entre os nove locais, existe a
semelhança de que todos acoplaram as atividades inerentes ao Programa Sentinela,
designado desde o início dos anos 2000 para o atendimento a ocorrências
específicas de violência sexual contra crianças e adolescentes. E, no caso dos
municípios da Região Metropolitana de Fortaleza, houve, igualmente, a inserção dos
atendimentos dos denominados SOS Criança ao trabalho dos (as) profissionais do
CREAS que, no geral, atendem a todas as manifestações de violência contra o
público infanto-juvenil.
112
Observou-se que os dois Serviços de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e
à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes mantidos pelo poder público no
município de Fortaleza não se constituem como CREAS, embora se tenha sabido da
existência de um projeto do Governo do Estado para a transformação do Núcleo de
Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes em um CREAS de
abrangência Regional, informação disponibilizada pela assistente social entrevistada
do referido local.
A partir das informações coletadas em campo, verificou-se que muitos dos
serviços visitados absorvem grande demanda sem, entretanto, existir estrutura física
adequada ou profissionais suficientes para a realização das atividades. Em muitos
locais averiguou-se a ausência de salas adequadas para o atendimento que requer
sigilo e preservação das crianças, adolescentes e famílias. Alguns, inclusive,
contavam com apenas uma sala para a realização de todas as atividades, exemplo
do CREAS do município Horizonte.
De acordo com as determinações do Governo Federal para o funcionamento
dos CREAS, nos municípios em gestão básica, a equipe deve ser composta,
minimamente, por um coordenador, um (a) assistente social, um (a) psicólogo (a),
dois educadores sociais, um (a) auxiliar administrativo e um (a) advogado (a), sendo
necessário o dobro do número de assistentes sociais, psicólogo (as), educadores
sociais e auxiliares administrativos naqueles em gestão plena e serviços regionais.
O que se constatou na maioria dos serviços, porém, foi a manutenção de um
número insuficiente de profissionais para os atendimentos, havendo uma sobrecarga
de trabalho e, conseqüentemente, a possibilidade da realização de atendimentos
sem qualidade, demorados e desestimulantes para os (as) usuários. Alguns locais,
por exemplo, no momento em que se realizou a visita, o contavam com
assistentes sociais, caso do CREAS de São Gonçalo do Amarante, ou psicólogos
(as), como no município de Itaitinga. Importante ainda ressaltar que, não obstante a
preconização do atendimento jurídico nos Serviços mencionados, todos aqueles
visitados não dispunham de profissionais para realizá-lo, exceção do CREAS do
município Maracanaú, onde a coordenadora, que é advogada, executa os trabalhos
jurídicos, embora de maneira insatisfatória.
Como se pode perceber, o comprometimento das atividades inerentes aos
Serviços apreciados é acarretado por fatores como a falta de estrutura física, a
insuficiência de recursos humanos e, por conseguinte, a sobrecarga de trabalho dos
113
(as) profissionais, gerado seja pela pretensão de atender a vários blicos sem as
condições e os recursos necessários, seja pela absorção de atribuições que não
competem ao CREAS, ou aos Serviços.
A averiguação de denúncias referentes à ocorrência de violência, o
acompanhamento dos adultos apenados em cumprimento de penas alternativas e a
elaboração de estudos sociais para o Poder Judiciário de casos não acompanhados
pelos Serviços são algumas das atividades executadas pelos (as) profissionais que
não são contratados (as) para exercê-las. Sobre isso, uma das entrevistadas falou o
seguinte:
para fazer o acompanhamento sócio-familiar que é o foco do nosso
trabalho, em alguns casos também psico-social, mas não da forma
desejável pela equipe, devido a gente ter que absorver outras atividades
que não são competências nossas, mas que, poro ter onde serem feitas,
a gente acaba por fazer e isso prejudica o trabalho do CREAS (Assistente
social 2).
Observou-se uma confusão no que se refere à organização e à concepção
dos CREAS, assim como dos Serviços de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Isto, segundo alguns interlocutores,
se deve ao descaso do Governo Federal com esse Serviço, que não proporciona
maiores discussões sobre suas competências, e, segundo outros, em razão da falta
de serviços necessários à execução de atividades que hoje o executadas
irregularmente pelos (as) profissionais entrevistados (as) nos municípios
correspondentes.
O Conselho Tutelar, um dos maiores responsáveis pela requisição de
serviços públicos para o grupo infanto-juvenil nas diversas áreas, é em todos os
Serviços investigados a entidade que mais encaminha para o atendimento os casos
de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.
Em cinco dos locais visitados, (Aquiraz, Caucaia, Eusébio, Itaitinga e
Horizonte), o Conselho funciona, inclusive, no mesmo prédio onde se executa os
Serviços mencionados. No entanto, o que se pode considerar ideal, ou seja, o
trabalho em conjunto dos (as) profissionais de duas entidades que atuam visando à
proteção social do público infanto-juvenil, igualmente provoca questionamentos e,
até mesmo, críticas por parte dos sujeitos interlocutores e da própria pesquisadora.
Isso acontece devido, sobremaneira, às precárias condições de
funcionamento das duas entidades que, em muitos casos, dividem linha telefônica,
114
carro para a realização de visitas domiciliares ou institucionais, computador etc., o
que transgride as normas impostas ao funcionamento dos Serviços de
Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração sexual. Normas que
presumem, independentemente do nível de gestão do município, o dever de
assegurar a sua estruturação, dotando-os de condições operacionais suficientes
47
.
A partir desta constatação, sobrepõe-se a pergunta: a manutenção desses
dois serviços em um mesmo prédio do município é proporcionada para facilitar o
atendimento e a sua articulação ou representa uma forma de diminuição de gastos?
Além disso, para um dos entrevistados, tal situação também acarreta uma confusão
de papéis entre os profissionais dos Conselhos Tutelares e aqueles que atuam nos
CREAS ou Serviços citados.
A confusão de papéis acima mencionada foi, do mesmo modo, evidenciada
por outros (as) entrevistados (as), o que relataram acontecer tanto entre os
profissionais que realizam os atendimentos no âmbito dos Serviços investigados,
como também entre eles (as) e profissionais de outras instituições que compõem a
chamada rede de atendimento.
Em relação a essa observação, a assistente social entrevistada no município
de Maracanaú falou sobre a dificuldade de esclarecer aos conselheiros tutelares, por
exemplo, que o atendimento o qual realiza é direcionado somente àqueles (as) que
tem seus direitos violados. Enquanto que a psicóloga do município de São Gonçalo
do Amarante, consciente da especificidade de seu atendimento, abordou a
necessidade da compreensão de que o atendimento psicológico no âmbito da
Assistência Social deve fundamentar-se no que denominou Psicologia Social e
Comunitária, que, em suas palavras, enxerga o homem como um ser histórico, um
ser em relação.
Acerca da articulação com outros serviços e profissionais que compõem a
rede de enfrentamento à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes,
averiguou-se, nos locais visitados, serem a maioria dos encaminhamentos
direcionada para os Conselhos Tutelares, as delegacias, dentre elas a Delegacia de
Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DECECA, os serviços no
campo da política de Saúde como os Centros de Apoio Psicossocial CAPS, os
47
De acordo com Guia de Orientação n.º 1 dos CREAS, as condições operacionais de que se fala dizem respeito
a instalações físicas suficientes e adequadas; veículo para a realização das visitas; linha telefônica; computador,
impressora e demais equipamentos e materiais de custeio.
115
hospitais, as escolas, os Centros de Referência da Assistência Social CRAS, os
projetos sociais dos respectivos municípios, bem como para benefícios federais e
municipais.
Através da falas dos (as) entrevistados (as) verificou-se que, embora os
encaminhamentos sejam realizados com freqüência, habitualmente não existe uma
comunicação oficial em relação a esses ou um efetivo acompanhamento após sua
realização, justificado, sob alguns aspectos, em razão da grande demanda de
trabalho a que estão submetidos diariamente. Muitos relataram ainda a deficiência
no que diz respeito à existência de serviços para encaminhar diferentes demandas,
realidade presente nos Serviços localizados na capital e nos municípios vizinhos.
Leituras e estudos sobre a temática, fundamentos teórico-metodológicos da
profissão e legislação específica para o público atendido, em especial o Estatuto da
Criança e do Adolescente foram ressaltados quando se perguntou sobre a
fundamentação dos atendimentos aos casos de exploração sexual comercial.
Destaque para o Plano Municipal de Enfrentamento à Violência elaborado e em fase
de publicação no município de Horizonte.
Trabalhar a auto-estima de crianças e adolescentes inseridos na exploração
sexual comercial durante os atendimentos foi um aspecto evidenciado por três dos
(as) nove entrevistados (as), respectivamente no sentido de: perceber como essas
crianças e adolescentes reagem diante da situação de se colocar como objeto do
outro; ressignificar a situação de exploração sexual buscando a resiliência em
relação a esta; e fortalecer a auto-estima para garimpar potencialidades.
Diversas dificuldades foram apontadas em razão do atendimento a crianças e
adolescentes explorados sexualmente. Uma das mais lembradas foi a dificuldade de
esse público chegar aos serviços de atendimento, seguidas de outras como a
omissão das pessoas que não realizam denúncias em relação a essa situação; a
falta de preparo em relação a acolhida de crianças e adolescentes por profissionais
das instituições parceiras como as delegacias; a incompleta estruturação dos
serviços e o desconhecimento dos papéis dos profissionais; a apatia e a resistência
de grande número de famílias que não comparecem aos atendimentos; a dificuldade
de abordagem do assunto considerado por muitos ainda um tabu; a insuficiência de
serviços componentes da rede de assistência para a realização dos
encaminhamentos; a permanência nos atendimentos e a dificuldade de crianças e
adolescentes reconhecerem-se como vítimas dessa situação.
116
Embora muitos (as) profissionais tenham alertado para a existência de um
número bem maior de ocorrências relacionadas à exploração sexual, foi comum no
decorrer das entrevistas ouvir que são poucos os casos atendidos, chegando alguns
(as) a informar nunca ter realizado atendimento a esse público.
O não comprometimento das famílias, a dificuldade do público chegar ao
atendimento, a invisibilidade da situação por ser considerada crime, a falta de
educadores sociais para a realização da designada busca ativa e a resistência das
pessoas vitimizadas em relação ao atendimento foram fatores associados aos
poucos casos de exploração sexual infanto-juvenil em atendimento nos Serviços
pesquisados.
A falta de um atendimento atrativo foi mencionada por alguns (as) dos (as)
profissionais que se sentiam limitados no ambiente de trabalho pela impossibilidade
de oferecer alternativas e possibilidades concretas para a “superação” dessa
situação de violência sexual.
Percebeu-se, nesse sentido, que, somado aos fatores pautados acima, é
possível a ocorrência evidenciada por Leal e Leal (2005), que ressaltam a
dificuldade por parte do conjunto de operadores em identificar e oferecer tratamento
adequado às situações que envolvem a exploração sexual comercial em suas
diferentes modalidades. Ou mesmo a situação de falha no registro estatístico dos
atendimentos realizados nas organizações de enfrentamento da violência sexual,
verificada por Ellery (2003) em pesquisa no estado do Ceará. Percepção justificada
em virtude da deficiência dos registros em alguns espaços investigados e,
igualmente, do desconhecimento conceitual caracterizador da exploração sexual
comercial em contraposição ao abuso sexual de crianças e adolescentes.
Não obstante a assertiva sobre a percepção de certa confusão conceitual
sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes, a maioria dos (as)
entrevistados (as) ressaltou seu caráter comercial ao explicar o fenômeno, como se
observa nos fragmentos abaixo:
É quando um outro vai obrigar um adolescente, ou uma criança, a
estabelecer um contato sexual forçado mediante o dinheiro. (...) há um
manejo, um jogo sexual de contrato, onde a criança ou adolescente acaba
sendo coibido a estabelecer esse ato sexual mediante dinheiro (Psicólogo
1).
É essa relação de um adulto com uma criança ou adolescente que tem fins
de ganho, ou dinheiro ou alguma coisa em troca. É essa relação de troca
117
onde tem a questão do dinheiro, por isso que é exploração sexual comercial
(Psicóloga 4).
É quando um adulto se utiliza de uma criança ou adolescente e paga por
essa mercadoria enquanto sexualidade, enquanto sexo, paga por esse sexo
(Psicóloga 3).
É quando terceiros se utilizam da criança com fins lucrativos e repassam
para a criança ou para o adolescente alguma coisa, ou não também, podem
explorar e ganhar em cima disso (Assistente social 3).
Está dentro da violência sexual, o que seria o abuso sexual infantil com fins
lucrativos. (...) É explorar, abusar sexualmente a criança com fins de ganhar
dinheiro ou, não necessariamente dinheiro, algum lucro em cima desse
abuso sexual (Psicóloga 5).
Eu acho que é, geralmente, alguém adulto pagando à criança e à
adolescente pelo prazer dele, para o prazer dele (Assistente social 4).
Dentre os vários elementos mencionados como possíveis condicionantes à
existência dessa manifestação da violência sexual, os mais recorrentes são os
seguintes: a precária situação econômica e financeira, a fragilização dos vínculos
familiares, o consumismo, a ociosidade, a banalização do sexo, a impunidade aos
agressores, a experiência de situações de violência anteriores e a falta de políticas
públicas eficientes para a prevenção da violência.
A questão cultural foi igualmente mencionada como um fator de
vulnerabilidade à inserção de crianças e adolescentes na exploração sexual
comercial. Por um lado sob uma dimensão mais geral, uma vez que um dos
interlocutores ressaltou o caráter histórico e cultural da violência no seu sentido mais
amplo, e por outro lado em relação ao principal aspecto destacado nesse trabalho,
uma vez que uma das entrevistadas evidenciou a dimensão da questão cultural
principalmente quando as crianças e adolescentes vitimizados são as meninas.
Em linhas gerais, destacou-se a trajetória percorrida e uma prévia exposição
das percepções e informações coletadas em campo no sentido de proporcionar
maior inserção na realidade investigada. No próximo e último momento, apresentar-
se-á um diálogo com os sujeitos interlocutores, em relação aos fatores culturais e
simbólicos essenciais a um melhor entendimento do fenômeno em análise.
Esclarece-se, desde já, a apresentação desse diálogo à luz da categoria gênero.
118
4. A DIMENSÃO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E O
ENFRENTAMENTO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL
4.1 A construção social da masculinidade e da feminilidade
Se atualmente homens e mulheres parecem estar e conviver em todos os
espaços sociais, dividindo atribuições e contribuindo para o relato de uma história
em comum, nem sempre isso se deu dessa forma. Para Perrot (2007), as mulheres
ficaram muito tempo fora desse relato, como se, destinadas à obscuridade de uma
inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou pelo menos, fora do
acontecimento (p.16).
De acordo com essa autora, o fato de as mulheres por um longo período
terem sido pouco vistas no espaço público, colaborou não para a sua
invisibilidade histórica, confinando-as não somente no espaço doméstico, mas
também no silêncio de um mar abissal.
De fato, apesar dessa ausência das mulheres nas narrações históricas que
nos são contadas desde a infância, muito se falou sobre elas, especialmente para
dizer o que eram ou o que deveriam fazer; atribuições e papéis até então
reproduzidos sociohistoricamente.
Em conformidade com Barbieri (1993), percebe-se que grandes teorias e
autores que conformaram o pensamento ocidental levando em conta a diferença
sexual, a sexualidade e a reprodução, pensaram o humano como masculino,
conferindo naturezas e comportamentos diferenciados para os sexos. O que
verdadeiramente se expressa em discursos de filósofos como Aristóteles e
Rousseau.
Fundamentada em estudos filosóficos acerca do tratamento das diferenças
entre os sexos, Perrot (2007) argumenta que, de todos os filósofos gregos,
Aristóteles é quem estabelece de maneira mais radical a superioridade masculina.
Para o filósofo, as mulheres, ameaça potencial para a vida harmoniosa da
coletividade, o eram somente diferentes, mas defeituosas, tendo em vista que
representavam um homem incompleto.
Em relação à Antiguidade grega, averiguam-se reflexos de tal pensamento
diferenciador de Aristóteles, pois que eram as mulheres excluídas da condição de
119
cidadãs, não podendo, assim como os escravos e os estrangeiros, tomar parte nas
decisões políticas da polis, local onde os homens realizavam-se na sua condição
humana por excelência, pela ação, pela palavra, pela revelação.
No contexto assinalado, o espaço público era onde os homens poderiam ser
vistos e ouvidos por outros, correspondente ao mundo comum da pluralidade e
espontaneidade humana. Em contraposição, o espaço privado era o local propício à
resolução das necessidades, às relações de intimidade e à proteção contra a
excessiva visibilidade do mundo público. Daí atribuir-lhe um caráter sagrado, em
especial pela profunda impossibilidade de dizer, ou seja, do silêncio (ARENDT,
2005).
Para J-J Rousseau (2004), clássico representante do século XVIII, em razão
das diferenças entre as “naturezas” feminina e masculina, para ele inerentes às
relações morais de uma e de outro, deveriam decorrer papéis divergentes a serem
desempenhados por ambos. Assim, defendia uma educação diferenciada, que as
mulheres precisariam ser educadas para a domesticação, subjugadas ao sexo
masculino.
A partir dessas proposições, observa-se desde muito tempo certo
determinismo biológico instaurador de naturezas próprias e divergentes a ambos os
sexos, presente em saberes, naturalizados e reproduzidos historicamente, e
desencadeador da construção de modelos e ideais de masculinidade e de
feminilidade.
Muitos autores e autoras concordam com Louro (2004) quando esta afirma
que, através de muitas instituições e práticas, concepções sobre homens e mulheres
foram e são apreendidas e interiorizadas, tornando-se quase naturais, ainda que
sejam fatos culturais. Sobre essa assertiva, Osterne (2001) comenta:
O cotidiano das meninas, primeiro na família, depois na escola e nas
relações sociais, é permeado por ofertas de modelos de comportamento
mais dóceis, mais delicados, com caminhos pouco definidos no mundo das
decisões, mas muito fortes no que se refere a papéis secundários e
submissos. dos meninos, são esperados as iniciativas, a agressividade
para enfrentar os fatos corriqueiros, o constante acerto nas investidas
sexuais, a escolha de caminhos característicos de pessoas fortes e
vencedoras – os provedores (p.121).
Sobre a disseminação do tratamento diferenciado para homens e mulheres
desde a infância, algumas autoras, tais como Montserrat (1999), Louro (2004) e
Auad (2006), revelam como a escola historicamente tem se constituído em um lugar
120
no qual se o discriminatório aprendizado da separação. Embora se tenha que
estar com os sentidos afiados para ser capaz de ver, ouvir e sentir as múltiplas
formas de constituição dos sujeitos implicadas no fazer cotidiano escolar.
Além desse exemplo das instituições escolares, Bourdieu (2005), ao lembrar
que, aquilo que na história aparece como eterno não é mais do que o produto de um
trabalho de eternização aponta igualmente a Família, o Estado e a Igreja, como os
grandes responsáveis pela elaboração e imposição de princípios que fundamentam
e reforçam a visão androcêntrica do mundo.
A família, segundo Bourdieu (2005), é a quem cabe o papel principal na
reprodução da dominação e da visão masculinas, em virtude de ser o lugar onde se
impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação
legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.
Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero pronto a
condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo em matéria de trajes, e a
reproduzir, do alto de sua sabedoria, uma visão pessimista das mulheres e da
feminilidade, segundo o autor, inculca explicitamente uma moral familiarista,
completamente dominada pelos valores patriarcais e, principalmente, pelo dogma da
inata inferioridade das mulheres (p.103). Agindo, do mesmo modo, de maneira mais
indireta sobre as estruturas históricas do inconsciente, por meio, especialmente, de
aspectos como: o simbolismo dos textos sagrados e a liturgia.
Em relação ao papel do Estado na disseminação dos princípios que
fundamentam concepções divergentes para homens e mulheres, Bourdieu (2005)
destaca, dentre outros aspectos, determinada ambigüidade. Esta consiste na
reprodução em sua estrutura da divisão arquetípica entre o masculino e o feminino,
notadamente quando ficam as mulheres com a parte ligada ao Estado social, não
somente como responsáveis por, como enquanto destinatárias privilegiadas de seus
cuidados e de seus serviços.
Sobre o aspecto acima assinalado por Bourdieu (2005), Silveira (2004), ao
discutir os impasses e desafios para fortalecer políticas na perspectiva da igualdade
de gênero, demonstra como algumas políticas do Estado reforçam o lugar
historicamente atribuído às mulheres, confinando-as ao papel de cuidadora. Um
exemplo dessa situação pode ser observado em programas como a extinta Bolsa
Alimentação e, atualmente, o Programa Bolsa Família, o qual prevê a preferência
das mulheres para o pagamento dos benefícios. Para a autora, políticas familistas
121
como essa, ancoradas quase sempre numa mulher, faz com que elas sejam vistas,
ou pior, faz com que elas estejam invisíveis na sobrecarga que lhes advém desse
lugar social considerado ‘natural’, encaradas ora como beneficiárias, ora como
carentes, instrumento das políticas, dificilmente sujeito delas (p.68).
Ainda sobre essa questão, alguns (as) dos (as) entrevistados (as) para essa
pesquisa, apontaram, igualmente, a situação de que as pessoas que chegam para o
atendimento aos casos de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes
são comumente meninas que vêm em geral acompanhadas por outra figura
feminina. Uma das assistentes sociais entrevistadas argumentou, inclusive, em
conformidade com a discussão de Iamamoto (2000), sobre a condição de o trabalho
na área da política de assistência social ser ainda e quase sempre executado por
mulheres, tendo como usuários em potencial também as mulheres. Segue trechos
das entrevistas.
O perfil que nos chega são meninas que geralmente vêm acompanhadas da
mãe ou de alguma figura feminina, dificilmente chega uma menina
acompanhada do pai, tio, padrasto. (Psicólogo 1).
Ainda somos um trabalho de mulheres e pa
ra mulheres, geralmente vem a
mãe com a filha, o pai raramente aparece aqui. Meninos também são raros
nesse atendimento e, quando eles vêm, é com a mãe (Assistente Social 4).
Como visto no capítulo primeiro, foi, sobretudo, a partir da eclosão da
sociedade moderna, com a emergente preocupação com a infância, que se
intensificaram algumas distinções em relação aos homens e às mulheres. Nessa
conjuntura, paralelamente ao desenvolvimento do Estado nacional moderno, o
modelo preponderante de família medieval foi substituído pelo ideal burguês, esse
caracterizado pela crescente diferenciação entre os sexos, pela glorificação da
relação mãe e filho e pelo despontar ainda maior do homem como provedor,
responsável pelo sustento da família. Lembrando que continuavam presentes traços
de um modelo patriarcal, no qual o representante do sexo masculino era ainda
considerado o chefe da família na sua condição superior.
Observe-se que, embora mais visível na sociedade moderna, vários
elementos muito reforçam uma diferenciação sexual, dentre os quais leis civis e
preceitos religiosos. Mill (2006), em obra considerada importante pela época de seu
lançamento (1869), assim como pelas idéias a favor da igualdade de direitos para as
mulheres, destacou as leis como legitimadoras das relações sociais que, de fato,
122
sublinhavam a subordinação da mulher em seu estado de escravidão em relação
aos homens, na medida em que convertiam aspectos físicos em direito. Sobre esse
aspecto, Scott (2002) proclama:
Os debates em torno de gênero procuravam explicar as diferenças entre os
sexos invocando a ‘natureza’, e sempre buscaram perpetuar tais diferenças
por meios legais. Por uma espécie de lógica circular, uma presumida
essência, seja do homem, seja da mulher, acabou por constituir-se como
justificativa para leis e atitudes políticas, quando, na verdade, essa
‘essênciahistórica e contextualmente variável não era senão um efeito
das leis e das ações políticas (p.17).
Ao definir a masculinidade como uma significação social, um ideal
culturalmente elaborado que aponta para uma ordem de comportamento
socialmente ratificado, Oliveira (2004) demonstra a construção social dessa
expressão. Derivada do termo latino masculinus, começou a ser utilizada apenas em
meados do século XVIII, no momento em que se realizava uma série de esforços
científicos para estabelecer critérios mais explícitos de diferenciação entre os sexos.
Segundo o autor, que procurou entender porque a masculinidade pode em
muitos momentos funcionar como uma lei que prescreve comportamentos, a
caracterização do modelo ideal masculino influencia-se por alguns fatores, dentre os
quais cita: a formação do Estado Nacional Moderno e a criação de instituições
específicas como os exércitos (resultando nos processos de disciplinarização e
brutalização dos envolvidos), assim como o surgimento dos ideais burgueses e dos
valores de classe média.
Como se escreveu logo acima sobre a emersão de um ideal burguês de
família que delimitou sobremaneira os estereótipos de gênero, nessa conjuntura, a
assimetria de poder existente era reforçada pela disposição da nova ordem em
promover uma separação total entre homens e mulheres. Pensava-se na época que
quanto mais feminina a mulher e mais masculino o homem, mais saudáveis a
sociedade e o Estado. Nessa separação, a autonomia do gênero masculino
contrastava com a submissão feminina (OLIVEIRA, 2004:49).
Ao contrário da visão simplista de filósofos como Aristóteles sobre a
diferenciação de naturezas entre homens e mulheres, para Bourdieu (1995), a
somatização progressiva das relações fundamentais que o constitutivas da ordem
social é que resulta na instituição de duas “naturezas” diferentes, isto é, de dois
123
sistemas de diferenças sociais naturalizadas. Naturezas que se encontrariam
inscritas, ao mesmo tempo, no corpo, sob a forma de duas espécies opostas e
complementares de posturas, maneiras de andar, de gestos etc., bem como nos
cérebros.
Para Bourdieu (2005), portanto, a divisão entre os sexos parecia estar na
“ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a
ponto de ser inevitável. Assim, estaria presente em estado objetivado nas coisas, em
todo o mundo social, e em estado incorporado, nos corpos e no que denomina os
habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de
pensamento e de ação.
Bourdieu (1995) ressalta a eficácia simbólica do preconceito desfavorável
socialmente instituído e resultante no que denominou dominação masculina. Para o
autor, esse princípio de divisão das coisas e das atividades segundo a oposição
entre o masculino e o feminino somente era possível pelo fato de ele mesmo
produzir sua própria confirmação, levando as vítimas a se dedicarem e se devotarem
ao destino ao qual estariam de qualquer modo socialmente destinadas.
Como exemplo dessa divisão, assim como da sua incorporação pelos
sujeitos, remete-se aos trabalhos realizados por homens e mulheres na sociedade
Cabília. Deste modo, são as mulheres que, inclinadas para o chão, recolhem as
azeitonas ou os gravetos, enquanto que os homens, armados da vara ou do
machado, cortam e fazem cair. Completa o autor:
(...) as mulheres cabilas realizam inevitavelmente, através de condutas que
os homens consideram com altivez ou com indulgência, a imagem de si
mesmas que a visão masculina lhes atribui, dando assim a aparência de um
fundamento natural a uma identidade que lhes foi socialmente imposta
(BOURDIEU, 1995:141).
Assim como o exemplo mencionado, percebe-se similar situação ainda hoje
em sociedades como a nossa, onde algumas ocupações e profissões são
diretamente relacionadas a homens ou mulheres. O próprio Bourdieu (2005) ao
escrever sobre o assunto menciona que, além do fato de o homem não poder, sem
derrogação, rebaixar-se a realizar certas tarefas socialmente designadas como
inferiores (entre outras razões porque está excluída a idéia de que ele possa realizá-
las), as mesmas tarefas podem ser nobres e difíceis quando são realizadas por
124
homens, ou insignificantes e imperceptíveis, fáceis e fúteis, quando são realizadas
por mulheres.
O que se pode notar, a partir dessas idéias, é que uma estrutura de
dominação ancorada em uma visão androcêntrica do mundo se estabelece para
ambos os sexos, se “naturaliza” e, assim, se eterniza, perdendo-se de vista ser parte
de um processo histórico e, como tal, passível de mudanças.
Ora, se historicamente as mulheres aderiram a uma visão de mundo que em
verdade as desvalorizam, as colocando em posição de inferioridade frente aos
homens, não se pode crer que isso aconteceu naturalmente.
Para explicar tal situação é que Bourdieu (1995) menciona o conceito de
violência simbólica que, para ele
impõe uma coerção que se institui por intermédio do reconhecimento
extorquido que o dominado o pode deixar de conceder ao dominante, na
medida em que não dispõe, para o pensar e para se pensar, senão de
instrumentos de conhecimento que tem em comum com ele e que não são
senão a forma incorporada da relação de dominação (p.142).
A partir da relação de dominação estabelecida e legitimada pela violência
simbólica, percebe-se que as mulheres aprenderam a se ver e se perceber pelo
olhar do outro, o que muitas vezes as levou a uma espécie de auto-depreciação e
menosprezo por tudo aquilo que advinha delas, uma desvalorização delas por si
mesmas.
Pode-se observar tal ressalva, por exemplo, nos escritos de Perrot (2007)
sobre a história das mulheres. Para essa autora, as mulheres por muito tempo foram
excluídas dos relatos históricos, sendo uma das razões da sua invisibilidade os
poucos vestígios diretos, escritos ou materiais deixados por elas. Isso porque, elas
próprias, convencidas de sua insignificância e estendendo à sua vida passada o
sentimento de pudor que lhes havia sido inculcado, destruíam e apagavam vestígios
de seus relatos, julgando-os sem interesse.
Perrot (2007) afirma, além disso, que os discursos e as imagens das
mulheres foram durante longo período produzidos pelos homens, sendo elas muito
mais representadas e imaginadas por eles, do que descritas ou contadas. Assim,
historicamente percebidas e representadas pelo olhar do outro, verifica-se estar às
mulheres, ainda em nosso universo atual, presas a modelos e ideais,
comportamentais e/ou físicos, impostos de fora, ou seja, pelo outro.
125
De acordo com Cha (1985), a cumplicidade das mulheres em receber e
praticar violências decorre do modo como foram postas pela sociedade moderna
como sujeitos, investidas de uma subjetividade muito peculiar e dramática. Destarte,
considera que pela própria definição de seu lugar social e cultural, a subjetividade
das mulheres tem a estranha peculiaridade de colocá-las como dependentes,
referindo-se não somente à dependência econômica, política, cultural, mas à
dependência originária que legitima as outras, dela decorrentes.
Dessa forma, definidas como esposa, mãe e filha, o as mulheres definidas
conseqüentemente como seres para os outros e não como seres com os outros.
Logo, se amor, abnegação, espírito de sacrifício, generosidade são construídos
como qualidades do ‘feminino’, e se a dependência econômica e social, assim como
a menoridade política e cultural, é posta como condição ‘feminina’, decorrem essas
determinações da posição originária das mulheres como sujeitos para outrem
(CHAUÍ, 1985:47-48).
No limiar dessa discussão, para Bourdieu (2005), a dominação masculina,
que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser é um ser-percebido, as
põe em permanente estado de insegurança corporal, ou, em suas palavras, de
dependência simbólica, pois que elas existem primeiro pelo e para o olhar dos
outros, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis.
Como resultado de pesquisa realizada sobre as imagens de outdoors que
possibilitava uma referência às questões de gênero, Lessa (2005) assinala o quanto
o discurso publicitário sobre as mulheres possibilita focalizar as relações de gênero
na sociedade de consumo. Nesse, a mulher assume um duplo significado, logo que,
por um lado, é vista como consumidora e, por outro, como produto de consumo.
Nesse contexto, dois pressupostos são defendidos pela autora. O primeiro é
de que a publicidade tem vendido a idéia das mulheres como objeto de consumo, via
produção e apropriação dos papéis sexuais e sociais destinados a elas. O segundo
pressuposto seria a observação de que a mulher padrão ou as mulheres como
sujeitos unificados, presas ao modelo, tornam-se consumidoras desse padrão. Ou
seja, ela é construída e constrói o modelo, num constante ir e vir (LESSA: 2005:5).
Como mencionado no segundo capítulo desse trabalho, encontram-se as
meninas em situação de exploração sexual comercial inseridas nessa conjuntura,
dentre outros fatores, em razão de um duplo aspecto do consumismo: em relação às
sociedades capitalistas, bem como às relações desiguais de gênero. Isso decorre,
126
sob determinado aspecto, do fato de que elas se inserem na exploração sexual
comercial também para a satisfação dos apelos da sociedade consumista em que
estão inseridas, no sentido de fazer parte da realidade. E, em outra dimensão, elas
transformam o próprio corpo em objeto de consumo de outros, reafirmando a
histórica condição do ser atraente e disponível para o outro, em geral para o ser
masculino.
Importante ressaltar que, embora não tenham relatado o duplo aspecto
mencionado, algumas das pessoas entrevistadas para a pesquisa mencionaram o
fator consumo como um dos principais condicionantes à inserção de crianças e
adolescentes na exploração sexual comercial, compreendendo, dessa forma, a
necessidade que esse público sente em querer se integrar ao mundo a partir desse
fator, cada vez mais reverenciado nas sociedades capitalistas.
Note-se, pois, que os (as) autores (as) mencionados (as) parecem concordar
com a histórica elaboração de uma “natureza feminina” que, no dizer de Chauí
(1985), circunscreve o ser, as ações, os sentimentos e os pensamentos a atribuições
e papéis restritos. Logo, salienta a autora, mesmo quando em sociedade como a
nossa a natureza desaparece como um dado imediato existente em si e por si, a
permanência da ideologia naturalizadora é nítida nas mulheres, cujo corpo é
invocado como uma determinação natural (CHAUÍ, 1985:38).
Ainda que compartilhe da opinião acima citada, Bourdieu (2005), bem como
Oliveira (2004), para quem um ideal construído de masculinidade orientou a
formatação de comportamentos assumidos como autenticamente masculinos,
igualmente recorre à afirmação de que, assim como as mulheres, são os homens
submetidos a um trabalho de socialização, estando mesmo prisioneiros e vítimas da
representação dominante, muito embora esta esteja de acordo com seus interesses.
Para ele, ser homem, assim como ser mulher, historicamente implica um dever-ser,
quão intimamente relacionado à necessidade constante de afirmação da virilidade,
enquanto virtude masculina, para a contemplação da afirmação social.
Essa delimitação de naturezas diferenciadas para os sexos parece ser
justificada historicamente em razão da não similaridade entre os corpos de ambos. É
como se a diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o
corpo feminino e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais,
pudesse então ser vista como uma justificativa natural da diferença socialmente
construída entre os gêneros.
127
Dessa forma, a partir desse momento, introduzir-se-á uma discussão da
categoria central delimitada para esse trabalho, na medida em que uma das razões
do recurso ao termo gênero em determinado período histórico foi, de acordo com
Saffioti (2004), a repulsa pela imutabilidade implícita em “a anatomia é o destino”.
Lançar-se-á mão, portanto, a um conceito que servirá como uma ferramenta
analítica, pretendendo-se colocar o debate no campo social, que é nele que se
constroem e se reproduzem as relações entre os sujeitos.
4.2 Sobre a categoria gênero
Ao indagar os (as) profissionais participantes dessa pesquisa sobre uma
possível explicação para o fato de estarem as meninas, crianças e adolescentes do
sexo feminino, muito mais inseridas na exploração sexual comercial do que os
meninos, alguns (as) deles (as) responderam o seguinte:
(...) Eu sempre achei isso muito interessante, até a questão mesmo da
pedofilia, porque mais pedófilos homens do que mulheres. É uma
questão de gênero, com certeza, eu nunca duvidei desse aspecto
(Psicólogo 1).
Eu acho que é na perspectiva da própria condição da mulher e das relações
de gênero. É isso que vai determinar que a mulher é a pessoa que mais se
submete a essas situações, em razão dessa herança cultural e sócio-
histórica (Assistente Social 2).
Tem muito aquela história da relação de gênero, do homem achar aquela
menininha nova; e é uma situação de poder, poder ter uma adolescente,
uma menina nova (Assistente Social 3).
Talvez tenha uma questão de gênero aí (Assistente Social 4).
O que se pode perceber a partir dessas respostas - além da compreensão,
por parte dos (as) entrevistados (as), de construções sociais que perpassam a
exploração sexual comercial é a disseminação do termo gênero, que, em
determinado momento, torna-se amplamente utilizado para significar situações
construídas sociohistoricamente, sobretudo, em relação aos sexos masculino e
feminino.
Nessa conjuntura, ao considerar a escolha da categoria gênero para a análise
do que se propôs nesse trabalho, proporcionar-se-á, a partir de então, uma breve
128
incursão sobre esse conceito, para logo em seguida relacioná-lo às informações
coletadas em campo.
Para Saffioti (2004), diferentemente do que, com freqüência, se pensa, não foi
uma mulher a formuladora do conceito de gênero, tendo em vista que o primeiro
estudioso a mencionar e a conceituar gênero foi Robert Stoller em 1968. Embora o
conceito não tenha prosperado com esse autor.
De acordo com a autora, apesar de já em Simone de Beauvoir, em sua
conhecida frase “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”, estarem os
fundamentos desse conceito, foi somente a partir de 1975, com o famoso artigo de
Gayle Rubin
48
, que houve uma intensificação dos estudos de gênero, dando origem
a uma ênfase pleonástica em seu caráter relacional e a uma nova postura adjetiva
(SAFFIOTI, 2004: 108).
No artigo referido, Rubin (1993), além de destacar que qualquer sociedade
dispõe de mecanismos sistemáticos para lidar com o sexo e o gênero, indica que tal
sistema pode ser sexualmente igualitário, pelo menos em teoria, ou estratificado de
acordo com o gênero, como parece acontecer com a maioria dos sistemas
conhecidos.
Ao inaugurar a noção de sistemas de sexo/gênero, Rubin (1993) defende ser
este um termo neutro que diz respeito a um domínio preciso, indicando
simultaneamente que a opressão não é inevitável nesse domínio, mas sim produto
das relações socais específicas que a organizam.
Destarte, sistema sexo/gênero seria:
Um conjunto de arranjos através dos quais a matéria-prima biológica do
sexo e da procriação humanas é moldada pela intervenção humana e social
e satisfeita de forma convencional, pouco importando o quão bizarra
algumas dessas convenções podem parecer (RUBIN, 1993:5).
Segundo Barbieri (1993), foi exigido dos movimentos feministas ressurgidos
nos anos 60 a compreensão e a explicação da condição de subordinação das
mulheres. Contexto em que aponta o diagnóstico das primeiras militantes sobre essa
questão, com a verificação de aspectos como: a inexistência nas disciplinas sociais
48
O artigo de Gayle Rubin mencionado trata-se do original Traffic in women: Notes on the “Political Economy” of
sex, Traduzido e publicado no Brasil pela SOS Corpo em 1993 sob o título: O tráfico de mulheres: notas sobre a
“Economia Política” do sexo. Ver bibliografia.
129
e humanas, até aquele momento, de informação suficiente que evidenciasse tal
subordinação; a constatação de que os trabalhos teóricos não discutiam ou não
justificavam a desigualdade entre homens e mulheres; e, igualmente, que não havia
uma história sobre o tema que mostrasse a gênese e o desenvolvimento da
dominação e predomínio dos homens sobre as mulheres.
Para Barbieri (1993), uma das primeiras propostas para a sua compreensão e
explicação, identificou a subordinação feminina como produto da ordem patriarcal.
Assim, os varões atuais teriam poucas diferenças com relação aos pais, que
dispunham da vida e da morte de seus filhos, escravos e rebanhos (p. 2).
Representaria o patriarcado, para a população feminina, o que o capitalismo
representa para a classe operária.
Contudo, a autora argumenta ter a categoria patriarcado resultado em um
conceito vazio de conteúdo do ponto de vista histórico, tornando-se sinônimo de
dominação masculina, sem, entretanto, um valor explicativo.
Paralelamente a essa proposta, percebe o movimento de um contingente
variado de mulheres acadêmicas de diferentes países que se propuseram gerar
conhecimentos sobre as condições das mulheres, resgatar do passado e do
presente suas contribuições para a sociedade e para a cultura e fazê-las visíveis na
história, na criação e na vida cotidiana. Nasciam, então, os “estudos sobre a mulher”
ou “sobre as mulheres”, numa postura que partia do reconhecimento das carências
de informação e reflexão existentes.
É a partir dessas propostas que Barbieri (1993) distingue duas posturas
diferentes que têm acompanhado a investigação sobre as mulheres. Uma que
centraliza nelas o objeto de estudo, ou seja, no gerar, acumular e revisar informação
e hipóteses sobre as condições de vida e de trabalho, a criação e a cultura
produzida pelas mulheres (p.3). E outra que privilegia a sociedade como geradora
da subordinação das pessoas do sexo feminino.
Enquanto a primeira perspectiva enfatizou a geração de conhecimentos sobre
as mulheres e os determinantes de suas condições sociais, com um predomínio
evidente do estudo das relações mulher-homem e mulher-mulher, a segunda
perspectiva se ancorou em premissas mais gerais defendendo, dentre outras coisas,
que não se avançaria estudando apenas as mulheres. Logo, o objeto, nessa
segunda perspectiva, seria mais amplo, em virtude de requerer uma análise das
130
relações mulher-homem, mulher-mulher e homem-homem em todos os níveis,
âmbitos e tempos.
De acordo com Barbieri (1993), é em relação a esta segunda perspectiva que
surge e se expande o conceito de gênero como categoria que no social,
corresponde ao sexo anatômico e fisiológico das ciências biológicas. É o gênero o
sexo socialmente construído (p.4).
Saffioti (2004) prescreve ter o conceito de gênero no Brasil se alastrado
rapidamente na década de 1990. Conjuntura em que circulava a cópia do artigo de
Joan Scott, historiadora americana que, segundo Osterne (2007), empresta
importante contribuição para o desenvolvimento do campo da história das mulheres,
em sua dimensão substantiva e teórica, posicionando-se a favor de uma análise do
gênero como forma mutável e historicamente variável de organização das relações
sociais.
Na continuidade da discussão, serão, portanto, apresentadas caracterizações
do conceito gênero tomando como referência as contribuições de Joan Scott.
4.2.1 Os aspectos social e relacional do gênero
Na sua utilização mais recente, Scott (1990) pressupõe ter o conceito gênero
aparecido entre as feministas americanas, tendo em vista que quisessem insistir
sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo.
Além da ênfase a esse caráter social, a palavra indicava uma rejeição ao
determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença
sexual”, sobressaltando, igualmente, o aspecto relacional das definições normativas
da feminilidade, ao rejeitar estudos centrados sobre as mulheres de maneira
demasiado estreita e separada.
Introduziu-se, portanto e a partir da utilização do termo “gênero”, uma noção
relacional em nosso vocabulário de análise, indicativa de que mulheres e homens
são definidos em termos recíprocos, não podendo nenhuma compreensão de um
deles ser alcançada por um estudo separado (SCOTT, 1990).
Em conformidade com Barbieri (1993), seria conveniente distinguir os
diversos empregos da categoria gênero e do conceito de gênero, que a literatura
131
existente nos anos 90 revela usos não unívocos da palavra. Desse modo, observa
que, muitos (as) autores (as) substituem simplesmente a palavra sexo por gênero,
ou utilizam o termo gênero para se referir a mulheres.
Para Scott (1990), este último é um aspecto verificado, na medida em que
“gênero” tanto é substituto para mulheres, como é igualmente utilizado para sugerir
que a informação sobre o assunto “mulheres” é necessariamente informação sobre
os homens, que um implica o estudo do outro.
De acordo com Louro (2004), um ponto importante na argumentação de Scott
(1990) seria a idéia de que é preciso desconstruir o caráter permanente da oposição
binária masculino-feminino, como apresentada no tópico anterior. O que se expressa
verdadeiramente no texto da historiadora como se pode perceber:
Devemos encontrar os meios (mesmo incompletos) para submeter sem
cessar nossas categorias à critica, nossas análises à auto-crítica. O que
significa analisar dentro de seu contexto a maneira pela qual opera toda
oposição binária, derrubando e deslocando sua construção hierárquica, em
lugar de aceitá-la como real, como evidente por si ou como sendo da
natureza das coisas (SCOTT, 1990:13).
Scott (1990) considera o uso do termo nero um aspecto que se poderia
chamar de busca de uma legitimidade institucional para os estudos feministas nos
anos 80. De fato, ao indicar a erudição e a seriedade de um trabalho, a utilização do
termo, com sua conotação mais objetiva e neutra do que “mulheres”, se integraria na
terminologia científica das Ciências Sociais, dissociando-se da política
pretensamente ruidosa do feminismo.
Se para Barbieri (1993) ainda restariam vazios substantivos e metodológicos
a preencher em relação à categoria gênero, para Scott (1990), mesmo emergindo
como categoria de análise somente no final do século XX, o termo gênero faz parte
de uma tentativa empreendida pelas feministas contemporâneas para reivindicar
certo terreno de definição e insistir sobre a inadequação das teorias existentes em
explicar as desigualdades persistentes entre homens e mulheres.
Dessa forma, a historiada acredita que as feministas, a partir de então não
somente começaram a encontrar uma voz teórica própria, mas também aliados
científicos e políticos.
Ao advertir sobre a percepção de que o espaço ocupado pelas mulheres na
vida social o é diretamente o produto do que ela faz, mas produto do sentido que
132
estas atividades assumem por meio da interação social concreta, Scott (1990)
acredita que para fazer o sentido emergir é preciso tratar o sujeito individual e a
organização social, articulando a natureza de sua inter-relação. Logo, admite a
importância de ambos (sujeito individual e organização social) para compreender
como funciona o gênero e como sobrevém a mudança.
Como indicado pela própria historiadora, sua definição de gênero conta com
duas partes e várias subpartes, ligadas entre si, mas necessariamente distinguidas
na análise. Vejamos a seguir.
O núcleo essencial dessa definição repousaria sobre a relação fundamental
entre duas proposições, quais sejam: o gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o
gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder (SCOTT,
1990:14).
Como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas, o gênero implicaria, para Scott (1990), em quatro elementos.
O primeiro elemento mencionado diz respeito aos símbolos culturalmente
disponíveis e que evocam representações simbólicas, freqüentemente contraditórias.
Alguns dos exemplos citados pela autora são as polarizações atribuídas à Eva
(símbolo do pecado) e Maria (exemplo de pureza) como símbolo de mulher, e
também aos mitos da luz e da escuridão, da purificação e da poluição, da inocência
e da corrupção.
Lembre-se, em relação a este elemento, o esquema sinóptico das oposições
pertinentes apresentado por Bourdieu (1995), no qual se observa a divisão das
coisas e das atividades segundo a oposição entre o masculino e o feminino.
O segundo elemento trata-se dos conceitos normativos que põem em
evidência as interpretações dos sentidos dos símbolos. Conceitos expressos nas
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e que tomam a
forma típica de uma oposição binária. Nesse caso, a posição que emerge como
posição dominante é, contudo, declarada a única possível (p.15).
O terceiro aspecto de Scott sobre as relações de gênero refere-se ao desafio
da nova pesquisa histórica de fazer explodir a noção de fixidez, isto é, descobrir a
natureza do debate ou da repressão que produzem a aparência de uma
permanência eterna na representação binária do gênero. Ter-se-ia, para tanto, a
necessidade de uma visão mais ampla para a compreensão dessas relações, que
133
viesse a incluir, não somente o parentesco, mas também o mercado de trabalho, a
educação e o sistema político.
Seria oportuno, nessas circunstâncias, lembrar que aquilo que, na história,
aparece como eterno não é mais do que o produto de um trabalho de eternização
que compete a instituições interligadas, tais como a família, a igreja, a escola
(BOURDIEU, 2005: 6).
O quarto e último elemento relacionado, constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas, é a identidade subjetiva. Destarte, para
Scott (1990), os historiadores deveriam, antes de tudo, examinar as maneiras pelas
quais as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar seus
achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações
sociais historicamente situadas.
A segunda parte da definição de gênero de Scott (1990) remete a um tópico,
sobremaneira importante na discussão que ora se faz. Quando afirma ser o gênero
um primeiro modo de dar significado às relações de poder, envereda a discussão
para um caminho que tem o foco do debate no “poder” e nos seus reflexos sobre as
relações sociais.
De acordo com Scott (1990), embora o gênero não seja o único campo,
parece ter construído um meio persistente e recorrente de dar eficácia à significação
do poder no Ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Seria o gênero,
portanto, um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual é o poder
articulado.
Scott, ao demonstrar como a oposição binária e o processo social tornam-se
parte do sentido do poder, pressupõe que
Estabelecidos como um conjunto objetivo de referências, os conceitos de
gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de
toda a vida social. Na medida em que estas referências estabelecem
distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial às fontes
materiais e simbólicas), o gênero torna-se envolvido na concepção e na
construção do poder em si mesmo (SCOTT, 1990:16).
Nessas circunstâncias, assume a perspectiva do poder em Foucault e
apresenta a necessidade de substituir a noção de um poder unificado, coerente e
centralizado por qualquer coisa que esteja próxima do conceito de poder entendido
134
como constelações dispersas de relações desiguais, constituídas pelos discursos
nos ‘campos de forças’ sociais (p.14).
Sobre o aspecto reverenciado, Louro (2004) menciona que os estudos
feministas sempre estiveram centralmente preocupados com as relações de poder,
apesar de inicialmente terem se posicionado de maneira simplória e restrita acerca
das relações entre os sexos. Posicionamentos estes, algumas vezes, cristalizadores
da vitimização feminina, em virtude da reprodução de uma concepção em que a
mulher dominada era a equivalência do homem dominante, como se essa fosse uma
fórmula única, fixa e permanente (LOURO, 2004).
Entretanto, aponta que, um tempo, alguns (as) estudiosos (as) vêm
problematizando essa concepção, tendo em vista a fomentação de discussões sobre
as formas e locais de resistência feminina, sobre as perdas ou os custos dos
homens no exercício de sua dita superioridade social e, também, sobre a
insuficiência do esquema polarizado linear para dar conta da complexidade social.
Para Louro (2004), a leitura de Michel Foucault por estudiosos das relações
de gênero nos últimos anos, resultou em novos debates como esses, logo que, no
contexto desse referencial teórico, seria extremamente problemático aceitar que um
pólo (no caso os homens) detém o poder estavelmente, e outro (as mulheres) não
49
.
A referência ao poder caracterizado por Foucault é para Louro (2004)
importante no contexto dessa discussão, em razão de homens e mulheres, através
das mais diferentes práticas sociais, constituírem relações em que ,
constantemente, negociações, avanços, recuos, consentimentos, revoltas, alianças.
Contudo, não obstante a percepção dessas relações múltiplas de poder e, em
alguns casos, da resistência inerente ao exercício do poder pelas mulheres, salienta
não desprezar o fato de que as mulheres (e também os homens que não
compartilham da masculinidade hegemônica) tenham, mais freqüentemente e
fortemente, sofrido manobras de poder que os constituem como outro, geralmente
subordinado (LOURO, 2004:40). Ainda que lembre que tais manobras, em verdade,
não os/as anulam como sujeitos.
No que se refere ao debate relações de poder versus resistência, Barbieri
(1993) posiciona-se e define os lugares de controle sobre as mulheres como
49
A título de explicação, lembre-se que a caracterização do poder concebida por Michel Foucault foi assunto
discutido no capítulo 2 deste trabalho.
135
espaços contraditórios, inseguros e sempre em tensão. As (os) dominadas (os), para
ela, teriam um campo de possibilidades de readequação, de obediência aparente,
mas desobediência real, resistência, manipulação da subordinação (p. 11). Daí que
esses locais que seriam de controle sobre as mulheres em nossas sociedades (o
desempenho dos papéis mãe-esposa-dona de casa), se constituíssem também em
espaços de poder das mulheres.
Contribuindo para o debate, Bourdieu (2006) menciona a necessidade de
saber descobrir o poder onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
completamente ignorado, portanto, reconhecido. Com efeito, determina o poder
simbólico como esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem
(p.7-8).
Sua afirmação, que atribui a todo poder uma dimensão simbólica, retrata-se
na explicação de que o poder deve obter dos dominados uma forma de adesão que
não repousa sobre a decisão deliberada de uma consciência esclarecida, mas sobre
a submissão imediata e pré-reflexiva de corpos socializados.
De acordo com a definição proposta por Bourdieu (1995; 2005), o que
designa como dominação masculina, intrinsecamente permeada de poder, somente
é possível por estar inscrita duradouramente no corpo dos dominados sob formas de
esquemas de percepção e de disposições. De tal modo, para se chegar a uma
ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com
os dominantes, faz-se necessário uma transformação radical das condições sociais
de produção das tendências que levam os dominados a adotar o próprio ponto de
vista dos dominantes.
Talvez se possa melhor compreender a explicação do poder simbólico
retratada por Bourdieu na seguinte colocação de Saffioti (2004), muito embora não
faça a referida autora nenhuma menção às idéias do sociólogo. Vejamos:
Entre as mulheres, socializadas todas na ordem patriarcal de gênero, que
atribui qualidades positivas aos homens e negativas, embora nem sempre,
às mulheres, é pequena a proporção destas que não portam ideologias
dominantes de gênero, ou seja, poucas mulheres questionam sua
inferioridade social. Desta sorte, também há um número incalculável de
mulheres machistas. E o sexismo não é somente uma ideologia, reflete,
também, uma estrutura de poder, cuja distribuição é muito desigual, em
detrimento das mulheres (p.34-35)
136
Haveria, pois, nas palavras de Bourdieu (1995), uma força simbólica que,
operando como por magia e fora de todo constrangimento físico, encontra suas
condições de possibilidade num imenso trabalho prévio de inculcação e de
transformação durável dos corpos. Produzido e reproduzido sociohistoricamente.
Na continuidade desse debate, o que fica patente para Saffioti (2004) é que o
poder tanto pode ser democraticamente partilhado, gerando liberdade, como
também exercido discricionariamente, criando desigualdades. Ressalta, além disso,
serem as mulheres “amputadas” no desenvolvimento do uso da razão e no exercício
do poder, socializadas para desenvolverem comportamentos dóceis, cordatos,
apaziguadores.
Saffioti (2004), contudo, mune-se de críticas às contribuições de Scott (1990),
embora admita a grande contribuição desta por haver colocado o fenômeno do
poder no centro da organização social de gênero. Dois são os pontos em que Saffioti
se distende. Primeiramente, detém-se na idéia de que Scott não teria ressaltado o
fato de que o poder, como explicou acima, pode ser constelado na direção da
igualdade ou da desigualdade entre as categorias de sexo. Argumenta: como o
gênero é visto ora como capaz de colorir toda a gama de relações sociais, ora como
um mero aspecto dessas relações, é difícil dimensionar sua importância, assim
como sua capacidade para articular relações de poder (SAFFIOTI, 2004:113).
Coube, igualmente, à Saffioti mencionar a crítica de que Scott não faz
nenhuma restrição aos argumentos de Foucault, aceitando e adotando seu conceito
de poder, em qualquer âmbito em que este ocorre, quaisquer que sejam a
profundidade e o alcance da análise. Tal exame de Saffioti baseia-se na observação
de que, para ela, quem lida com gênero em uma perspectiva feminista, contesta o
status quo da dominação-exploração masculina, estruturando uma estratégia de luta
para a construção de uma sociedade igualitária. O que sua percepção não alcança
na perspectiva de Foucault, que, em sua opinião, nunca elaborou um projeto de
transformação da sociedade.
137
4.2.2 Gênero e patriarcado
As críticas de Saffioti (2004), conquanto não estejam vinculadas apenas a um
aspecto da discussão da categoria gênero basicamente explicitada a aqui,
direcionam-se, além disso, para a sua defesa em torno da recusa do uso exclusivo
do conceito de gênero para a apreciação das relações historicamente mantidas
entre homens e mulheres.
Assim sendo, mesmo apresentando-se a favor da utilização do conceito
gênero, especialmente em razão da sua amplitude para a análise, defende o não
abandono do termo patriarcado. Sobre o exposto, infere ser o gênero muito mais
vasto que o patriarcado, na medida em que neste as relações são hierarquizadas
entre seres socialmente desiguais, enquanto o gênero compreende também
relações igualitárias. A autora conclui: o patriarcado é um caso específico das
relações de gênero (SAFFIOTI, 2004:119).
Sob o seu ponto de vista, a recusa da utilização do conceito de patriarcado,
em razão da categoria gênero, permitiria que o esquema de exploração-dominação
entre os sexos masculino e feminino se desenvolvesse, encontrando formas e meios
mais insidiosos de expressão. Em suas palavras, ganharia terreno tornando-se
invisível. Ou, mais do que isto, sendo veemente negado, levando a atenção de seus
participantes para outras direções, cumpriria um desserviço a ambas as categorias
de sexo, mais emblematicamente a das mulheres.
Antes de seguir na discussão, observem-se algumas características inerentes
ao patriarcado, esboçadas pela autora.
Para Saffioti (2004), seguramente é o patriarcado um regime que se ancora
em uma maneira de os homens assegurarem para si mesmos e para seus
dependentes os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida.
Haveria, com certeza, uma economia doméstica, ou domesticamente organizada,
para a sustentação do que chama ordem patriarcal. Neste regime, as mulheres
seriam objetos da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força
de trabalho e de novas reprodutoras. A base econômica do patriarcado, não
consistindo apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua
segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis
econômicos e político-deliberativos, consistiria, da mesma forma, no controle de sua
138
sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva. Em uma expressão,
parafraseando Hartmann (1979), seria o patriarcado um pacto masculino para
garantir a opressão de mulheres.
Ela própria, respondendo a sua pergunta por que se manter o nome
patriarcado, elenca os seguintes motivos: 1- o se trata de uma relação privada,
mas civil; 2- direitos sexuais aos homens sobre as mulheres; 3- configura um tipo
hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade; 4- tem uma base
material; 5- corporifica-se; 6- representa uma estrutura de poder baseada tanto na
ideologia quanto na violência.
Diferente do que se possa pensar, Saffioti (2004) não defende a utilização
exclusiva do conceito patriarcado, uma vez que acredita na importância do uso
simultâneo de gênero e de patriarcado, que um é genérico e o outro específico
dos últimos seis ou sete milênios. Contudo, a autora ressalta a impossibilidade de
aceitar, mantendo-se a coerência teórica, a redutora substituição de um conceito por
outro. O que diz ter acontecido nos últimos tempos.
Caracteriza gênero, nessa conjuntura, como um conceito por demais
palatável, porque excessivamente geral, a-histórico, apolítico e pretensamente
neutro. Pretensamente, pois, ao contrário da neutralidade afirmada pela maioria das
teóricas e dos teóricos, pressupõe uma intrínseca ideologia ao conceito de gênero.
Mas, qual seria esta ideologia? Para Saffioti (2004), trata-se exatamente da
ideologia patriarcal, forjada especialmente para dar cobertura a uma estrutura de
poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da
convivência humana (p.136).
Ao fazer uma comparação entre o uso dos dois termos ora mencionados,
arremata a sua discussão ratificando sua preferência, referindo-se primeiramente ao
conceito gênero:
Exatamente em função de sua generalidade excessiva, apresenta grande
grau de extensão, mas baixo nível de compreensão. O patriarcado ou
ordem patriarcal de gênero, ao contrário, como vem explicito em seu nome,
se aplica a uma fase histórica, não tendo a pretensão da generalidade
nem da neutralidade, e deixando propositadamente
explícito o vetor da
dominação-exploração. Perde-se em extensão, porém se ganha em
compreensão. Entra-se, assim, no reino da História. Trata-se, pois, da
falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por conseguinte,
um conceito de ordem política. E poderia ser de outra ordem se o objetivo
das (os) feministas consiste em transformar a sociedade, eliminando as
desigualdades, as injustiças, as iniqüidades, e instaurando a igualdade?
(SAFFIOTI, 2004:139).
139
Nas circunstâncias do debate em relação ao uso dos termos gênero e/ou
patriarcado, Barbieri (1993) e Gayle Rubin (1993), embora sem muita profundidade,
contribuem com seus pontos de vista.
De acordo com Barbieri (1993), houve um período da história que foi
patriarcal, mas nem sempre e nem em todas as sociedades o patriarcado se
expressou e se exerceu da mesma maneira. Acredita que uma primeira proposta
para compreender e explicar a subordinação feminina a tenha identificado como
produto da ordem patriarcal, que seria um ordenamento social a ser destruído para a
liberação das mulheres.
Argumenta que, mesmo que tenha a visão totalizadora do patriarcado se
estendido e se incorporado ao discurso político e à atividade acadêmica
rapidamente, esta categoria resultou em um conceito vazio de conteúdo, isso porque
nomeava algo sem, entretanto, transcender essa operação. Logo, tornou-se
sinônimo de dominação masculina, mas sem valor explicativo.
Barbieri (1993) supõe, baseada em uma revisão da bibliografia existente, ter a
categoria gênero substituído o conceito de patriarcado na análise e no discurso
político sobre a condição das mulheres.
Sob outra feição, quando em seu artigo conceitua a noção de sistema de
sexo/gênero, Rubin (1993) expõe determinado caráter estreito do patriarcado,
explicando que existem sistemas estratificados de acordo com o gênero que não
podem ser adequadamente descritos como patriarcais. Acrescenta, afirmando serem
muitas as sociedades malvadamente opressoras em relação às mulheres onde,
entretanto, o poder dos homens não se funda nos seus papéis enquanto pais ou
patriarcas, mas na sua qualidade coletiva de homem (machos), que se ancora em
procedimentos diversos.
Importante, para Rubin (1993), seria desenvolver conceitos para descrever
adequadamente a organização social da sexualidade e a reprodução das
convenções de sexo e de gênero, qualquer que seja o termo a se utilizar. Ainda
sobre o patriarcado afirma:
É uma forma específica de dominação masculina, e o uso do termo deveria
ser confinado aos grupos pastorais e nômades como os do Velho
Testamento, de onde o termo provém, ou a grupos similares. Abraão foi um
patriarca um homem velho, cujo poder absoluto sobre esposas, crianças,
140
rebanhos e dependentes era um dos aspectos da instituição da paternidade,
tal como definida pelo grupo no qual ele vivia (RUBIN, 1993:6).
Elizabeth Souza-Lobo (1991), incluída no debate em relação aos usos do
conceito gênero, afirma que sua construção como categoria analítica certamente tem
a ver com alguns elementos, dentre os quais os impasses da teoria do patriarcado.
Assevera, além disso, que a busca dos significados das representações do feminino
e do masculino e as construções culturais e históricas das relações de gênero passa
a ser o direcionamento do eixo das reflexões feministas.
Como observado nas linhas deste capítulo, a categoria gênero funda-se em
importantes aspectos que, sem dúvidas, proporcionaram a escolha de sua utilização
como ferramenta analítica nesta pesquisa. Dentre os mais importantes, pode-se
mencionar os seguintes: a rejeição ao determinismo biológico e a insistência no
caráter histórico e social das distinções construídas entre os sexos; o aspecto
relacional, não se podendo investir em um estudo sobre as mulheres sem considerar
os homens, logo que definidos em termos recíprocos; e a significância que possuem
as relações de poder nas circunstâncias de qualquer análise a ser feita sobre as
relações de gênero.
A consideração dos elementos citados surge nesse trabalho, sobretudo, em
razão da delimitação proposta, tendo em vista a escolha em analisar, através de
discursos de profissionais envolvidos com a temática, dimensões culturais que
envolvem a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.
A sugestão do objetivo principal a ser alcançado adveio da observação de se
estar tratando uma situação que envolve relações entre pessoas do sexo masculino
e feminino que, geralmente, se encontram em lugares visivelmente conflitantes,
porquanto se verifica nas pesquisas existentes estarem as meninas inseridas em
maior número na exploração sexual comercial, cujos principais “exploradores” são os
homens.
Nesse sentido, embora por um lado aqui se apresente certa situação em que
se colocam mulheres e homens em posições diferentes e, nesse caso, contrárias e
conflitantes, por outro lado, não se pretende reduzir a análise a uma lógica
dicotômica que implique um pólo que se contrapõe a outro. O cuidado referente a
uma possível redução existe, especialmente, pelo receio de negligenciar feições
141
necessárias ao entendimento das relações de gênero, e então reproduzir uma idéia
singular, assim como, lugares próprios a homens e mulheres.
A proposta inicial foi, portanto, averiguar dimensões culturais e simbólicas que
envolvem a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, no intuito de
compreender a maneira como os profissionais que trabalham no atendimento a esse
público percebem essas dimensões. A abordagem principal refere-se ao anseio em
alcançar a maneira como os (as) interlocutores (as) escolhidos percebem as
relações mantidas entre homens e mulheres na perspectiva da categoria gênero,
tendo em vista a situação acima exposta.
De que maneira esses (as) profissionais concebem homens e mulheres?
Como eles (as) percebem as relações mantidas entre os sexos? O que pensam
sobre a sexualidade humana? A que atribuem o fato de as meninas representarem
estatisticamente a maioria das crianças e adolescentes em situação de exploração
sexual comercial? As respostas dos (as) entrevistados (as) a essas indagações o
motes para a discussão que se apresentará no seguinte tópico. Vale salientar a
importância desse debate, na medida em que se trata da opinião de pessoas que
atuam diretamente numa política de enfrentamento a violações dos direitos de
crianças e adolescentes.
4.3 As dimensões históricas e culturais da exploração sexual comercial
para os sujeitos investigados
Ao trabalhar nesse momento com concepções verbalizadas em um único
encontro sobre assuntos inquestionavelmente complexos, de imediato faz-se
necessário ressaltar a presumível limitação de percepção e análise da pesquisadora
sobre o que se destacará. Não obstante essa advertência, salienta-se a busca de
uma fidedigna exposição das opiniões daqueles (as) que muito contribuíram para
esta investigação.
Recomece-se, pois, a discussão com as palavras de Damasceno (2008) ao
conceituar a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes como um
fenômeno que tem, seguramente, cara, endereço, etnia e gênero em seus mais
intricados e contraditórios graus de exclusão (p.54).
142
Destarte, logo de início, se pôde verificar um aspecto mostrado por pesquisas
e evidenciado neste trabalho, isso porque a fala dos (as) entrevistados (as) confirma
a prevalência das meninas como objeto da exploração sexual comercial, ou, pelo
menos demonstra serem elas as que mais chegam aos serviços de atendimento
realizados por esses (as) profissionais. Desse modo, caracterizou-se o perfil do
público atendido da seguinte maneira:
Economicamente é o pessoal de baixa renda (...). São meninas, crianças de
seis a treze anos (Psicólogo 1).
São mulheres, mulheres o, adolescentes de doze aos dezessete anos;
situação econômica de baixa renda, perfil de Bolsa Família (Psicólogo 2).
A grande maioria é menina. A idade fica entre 14 e 20 anos. A grande
maioria a família não tem uma renda fixa (...). Fisicamente é aquele tipo que
está explorado na mídia, o tipo que agrada aos turistas: traços latinos
bem misturados, tem que ser magrinha, de preferência moreninhas e
jovens. A grande incidência é de meninas com 14 a 16 anos (Assistente
social 4).
Todas são meninas, mulheres, a mais nova tem aproximadamente 13 anos.
São de classe baixa, embora a gente tenha um caso de uma menina de
classe média (Psicóloga 3).
Dos casos que eu atendo tem um adolescente, ele tem 15 ou 16 anos. As
outras são mulheres (Psicóloga 4).
O roteiro de entrevista utilizado para a coleta das informações é composto de
blocos de perguntas que, como se salientou anteriormente, contém questões que
dizem respeito aos sujeitos, aos locais de trabalho, ao atendimento e aos fatores
simbólicos e culturais que envolvem a exploração sexual comercial, estas deixadas
para o final da entrevista inicialmente pelo simples motivo de ordenação.
Interessante ressaltar, a surpresa dos (as) entrevistados (as) frente às
últimas questões, sobre as quais alguns (as), inclusive, admitiram não pensar ou
relacionar aos seus trabalhos. Muitos (as) mencionaram a dificuldade em respondê-
las, outros (as) chegaram a perguntar sobre os motivos de perguntas como estas
fazerem parte da entrevista. Porém, conseguiu-se obter respostas, sobre as quais se
deterá abaixo.
Embora se possa pensar que com as primeiras perguntas relacionadas aos
nomeados fatores culturais e simbólicos imediatamente se esteja reproduzindo
polaridade rígida entre os gêneros, com as perguntas “o que significa ser homem?” e
143
“o que significa ser mulher?”, intencionou-se tão somente observar a maneira como
nossos (as) interlocutores (as) constroem e atribuem significados a ambos os sexos.
Em linhas gerais, nessas perguntas percebeu-se que muitos (as) profissionais
retratavam-se para significar o ser homem ou o ser mulher, percebendo-se, além
disso, uma gama diversificada de respostas:
Isso é pessoal?! Bom, eu não me imaginaria sendo homem, não conseguiria,
acho que a única vantagem é fazer xixi em pé. Eu gosto muito de ser mulher.
(...) Ser dinâmica, para mim isso é uma vantagem que as mulheres saem
ganhando, geralmente as mulheres são assim.
(...) Homem, geralmente, a gente pensa que é o forte, o que conduz, o que
toma conta, e hoje isso não acontece mais. O que a gente é totalmente o
contrário (Assistente social 1).
Um relato das mulheres da minha vida: ser mulher é ser forte, é vencer
preconceitos, é saber aliar amor, obrigações de casa e trabalho, é você
trabalhar quatro turnos e não ser reconhecida por isso (...). mulher é isso:
superação, principalmente nessa sociedade machista que a gente vive.
Como tem que ser sincero na entrevista, ser homem é ser trabalhador, ser
provedor, ser atencioso também, isso no meu jeito de ser. Eu acho que o
homem ideal seria aquele que não perdesse a sua masculinidade e
soubesse olhar para o mundo, às vezes, como a mulher olha (Psicólogo 1).
Para mim é super interessante. Eu gosto de ser mulher, mas ser mulher
nesse país é uma conquista diária, de cada momento, de independência, de
escolhas e escolhas, claro, pressupõe independência.
Os homens de um modo geral são os conquistadores, os donos da bola, mas
eu acho que no momento eles também vivem um momento conflituoso, de
perda de espaço dos domínios dele para as mulheres (...). Hoje, ser homem,
para eles talvez não seja muito legal não (Assistente social 4).
Ser mulher? Eu nunca parei para pensar isso. Eu acho que é ser o que eu
sou. É gostar. Eu gosto de estar nessa condição que eu estou, de me
assumir do jeito que eu sou, com meus defeitos.
Ser homem? Tem essa questão da lei, da ordem, de ser o provedor, aquele
que está ali, de certa forma, para manter o sustento da família, apesar de, se
eu for pensar no meu lado pessoal, essas coisas na minha família nunca
foram desse jeito (Psicóloga 4).
Ser mulher não é somente carregar o seu sexo, o órgão genital feminino. É
ter habilidades, ter características e aspectos femininos. Essa é, realmente,
uma pergunta difícil.
Tem a cultura que diz como o homem deve seguir, tem a cultura que diz como
a mulher deve seguir em relação à razão e à emoção. Agora, quando fala em
ser homem e ser mulher, eu não penso nem no ser cultura, eu penso na
vivência do universo, de exercer o universo masculino e o feminino
(Psicóloga 3).
144
Ser mulher significa ter direitos. Significa ter desejo, mas também ter
deveres. Significa uma luta constante para se reafirmar nessa sociedade
tendo direitos e deveres e, não necessariamente porque eu tenho direitos, eu
vou deixar de ser frágil, também tem a fragilidade própria da mulher.
Ser homem também é ter direitos, é ter deveres, é também ter carinho, ter
amor, ter também a luta cotidiana. Aparentemente, parecem iguais, mas são
diferentes. Têm direitos e deveres, mas são direitos e deveres específicos
(Psicóloga 5).
Ser mulher eu acho que é um papel complicado, a condição de mulher é
complicada. Primeiro, porque existem historicamente, culturalmente, papéis
definidos para as mulheres e pelas cobranças da família e da sociedade. A
questão de dependência, submissão, subordinação com relação ao homem
vai influenciar muito na condição de mulher.
Eu acho que os homens também têm muitas cobranças da sociedade. (...) ao
homem é exigido que ele tenha que tomar a iniciativa, tenha que ser o chefe
da família, que precisa se destacar em relação a sua virilidade. Realmente,
deve ser muito difícil para o homem, imagino eu, essas exigências que são
impostas pela sociedade e essas exigências devem ter influências negativas
em relação ao comportamento dos homens (Assistente social 2).
Diante dessas colocações, vários aspectos podem ser destacados. Um deles
seria, por um lado, a maneira como alguns atribuem caracterizações próprias aos
sexos numa patente diferenciação entre homens e mulheres, enquanto para outros
seria a percepção de que determinada diferenciação entre homens e mulheres é
conferida a eles pela sociedade na qual estão inseridos.
Observa-se, nesse sentido, certa confusão em relação à significação
proposta, isto porque, ao mesmo tempo em que se atribui às mulheres, por exemplo,
feições positivas e de mudança em relação ao que foi em outros momentos, deixa-
se entender feições outras que as põem no lugar que lhe foi conferido
historicamente.
Tal verificação talvez possa ser compreendida com a exposição de Bourdieu
(2005): como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos
esforçamos por apreender, incorporamos sob a forma de esquemas inconscientes
de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina (p.13).
Estrutura desencadeadora de princípios de visão e de divisão sexualizantes.
Caracterizações e lugares próprios são atribuídos a homens e mulheres em
algumas falas: por exemplo, no discurso de uma psicóloga que defende a
permanência de direitos e deveres específicos para cada um (a), e no trecho em que
um psicólogo expõe a necessidade de apreensão pelo “homem ideal” do “olhar” da
145
mulher para o mundo, mantendo-se, contudo, em seu lugar intocável de
“trabalhador” e “provedor”.
Verifica-se o princípio de divisão alocado aos sexos de maneira intrínseca aos
sujeitos a ponto de quase naturalizado. Na fala de uma das entrevistadas, ela
denota que, apesar de não ter vivenciado uma intensa divisão de papéis na
realidade de sua família, o significado do termo homem parece estar relacionado à
lei e à ordem e ao posicionando na condição de provedor e responsável pelo
sustento da família.
Importante ressaltar outro aspecto observado nessa conjuntura: as
afirmações generalizadas a respeito da “mulher” e do “homem”, tendo em vista que
nenhum dos (as) profissionais entrevistados chegou a considerar a diversidade de
sujeitos que envolvem o ser homem e/ou o ser mulher. Mesmo que alguns (as)
tenham mencionado o aspecto social e cultural que envolve essa significação, não
se destacou, em momento algum, a pluralidade inerente ao que se possa significar
como homens e mulheres. Isso aconteceu devido à ausência de uma
problematização nas falas dos (as) profissionais quanto à unidade de homens e
mulheres e à propagação de uma idéia singular para ambos. Não se atentou, dessa
forma, para o que bem lembra Louro (2004): afinal não existe a mulher, mas várias e
diferentes mulheres que não são idênticas entre si, que podem ou não ser solidárias,
cúmplices ou opositoras (p.32). O mesmo conceito serviria para a compreensão do
significante homens.
Sobre a discussão indicada acima, Barbieri (1993) faz, igualmente, a ressalva
de que não existe a mulher, como tantas vezes foi dito, como também não existe o
varão (ou o homem). Para a autora, existiriam sim mulheres e homens em diferentes
situações sociais e culturais cujo significado seria necessário explicitar.
Ao responder as questões que expomos linhas acima, assistentes sociais e
psicólogos (as) apontavam para mudanças a respeito das relações entre homens
e mulheres. Entretanto, essas mudanças puderam ser mais bem explicadas por
todos (as) em pergunta específica na continuidade da entrevista.
Quando indagados (as) sobre como observam as relações atualmente
mantidas entre homens e mulheres, averiguaram-se respostas que se agruparam de
acordo com a idéia passada por eles (as). Primeiramente, houve aqueles (as) que
perceberam mudanças significativas ao longo do tempo:
146
Antes, tinha muito isso de dizer que o homem é o provedor, aquele que
assume a casa. Hoje tem mudado e um dos fatores que tem contribuído
para isso é a nossa própria percepção de alguém que pode mais do que
aquilo que nos foi ou nos é imposto, nós mulheres (Psicóloga 4).
Antigamente não se falava, não existia a possibilidade do homem ajudar em
casa, algumas tarefas eram exclusivas masculinas e exclusivas femininas.
Isso um pouco que fundamentava essa suposta diferença que existe entre
homem e mulher e o mais evidenciado, para mim, hoje em dia das
conquistas feministas, é a questão do mercado de trabalho (Psicólogo 2).
Hoje está diferente sim. Hoje têm muitas coisas que a gente (mulheres) não
aceita mais e que nossas avós, nossas mães, aceitavam. (...) Hoje eu acho
que aconteceu, acho não, aconteceu, uma revolução muito grande e as
relações estão diferentes dos nossos pais, dos nossos avós (Assistente
social 1).
Percebe-se com essas colocações mudanças nas relações entre os sexos,
provocadas, sobretudo, por uma nova disposição das mulheres no mundo e mesmo
nas relações mais específicas, como aquelas estabelecidas com o sexo oposto.
Note-se serem as mulheres indicadas como as proporcionadoras das mudanças,
seja por suas lutas, refletidas na inserção no mercado de trabalho, seja pela
transgressão engatada por elas, a partir da rejeição aos papéis lhes alocados
historicamente.
Houve, porém, uma entrevistada que evidenciou situações de permanência
de relações desiguais entre homens e mulheres, especialmente no contexto da área
em que exerce suas funções:
Eu estou aqui no interior um mês e eu percebi que o patriarcalismo e o
machismo imperam, eu percebi nas conversas cotidianas, momentos
principais em que surge isso, que ainda existe essa questão do machismo,
que o homem é que tem o poder e a mulher tem que obedecer. As próprias
muheres da equipe pensam assim mesmo de que ao pai se tem que
obedecer, que é embaixo do cabresto, que ao marido idem (Psicóloga 5).
Outras entrevistadas, não obstante percebam modificações, apontaram
situações que ainda não permitem a total mudança em termo de relações entre
homens e mulheres.
Eu acho que a relação homem e mulher ainda se mantém nesse sentido de
que a mulher es indo adiante no emprego, na profissionalização, na
independência financeira, mas a questão afetiva e emocional ainda está
muito interligada e dependente da figura do homem, da relação com o
homem (Psicóloga 3).
(...) Houve muitos avanços, a mulher conseguiu muitos espaços na
sociedade, mas na família, talvez, ainda seja o local onde há essa maior
147
desigualdade entre homens e mulheres. (...) nessa relação homem e mulher
a desigualdade ainda está muito grande, os papéis ainda estão muito bem
definidos e divididos, e eu vejo que ainda existem questões como a do
mercado de trabalho onde, mesmo a mulher ocupando a mesma função do
homem, ganha pouco (Assistente social 2).
A gente vê que hoje em dia a mulher tem se colocado mais, tido sua
independência, tem alcançado outros patamares, mas a gente percebe que,
em alguns lugares, os homens não sabem lidar com isso, principalmente
aqui. A gente trabalha muito essa questão de gênero, porque a gente
percebe que os homens são muito machistas e eles parecem que tremem
nas bases quando vêem que as mulheres estão assumindo aquilo que o
mundo mesmo coloca para elas (Assistente social 3).
De acordo com Bourdieu (2005), as mudanças visíveis que afetaram a
condição feminina mascaram a permanência de estruturas invisíveis que
poderiam ser esclarecidas por um pensamento relacional, capaz de pôr em relação a
economia doméstica, e portanto a divisão de trabalho e de poderes que a
caracteriza, e os diferentes setores do mercado de trabalho em que estão situados
os homens e as mulheres (p.126). Explica, pois, que, como se percebe, apesar dos
muitos avanços obtidos nos vários anos de lutas das mulheres, algumas
estagnações fazem-se presentes nos seus cotidianos. Para Perrot (2007), isto
acontece em razão de que, com freqüência, as fronteiras se deslocam, mas os
terrenos de excelência masculina se reconstituem. Logo, adverte: as aquisições são
frágeis, reversíveis. Recuos são sempre possíveis (p.169).
A declaração da psicóloga 3, assemelha-se às palavras de Osterne (2001), ao
expressar que, mesmo em face a variações no comportamento, estas encontram-se
sempre em torno de uma figura de mulher dependente do homem. Assim: ser
desejada por ele não constitui apenas fonte de todo o seu valor, mas, também, de
sua própria sensação de existir (p.125-126).
Com o auxílio desses (as) autores (as), acredita-se compreender as
colocações das entrevistadas quando se remetem a existência de fatores que não
proporcionam mudanças mais profundas nas relações em análise. Fatores estes
que, como se verá adiante, refletem-se, inclusive, na limitação da percepção de
alguns (as) dos (as) profissionais investigados (as) sobre o principal ponto deste
trabalho, isto é, as dimensões culturais e simbólicas inerentes à exploração sexual
comercial.
Ainda no contexto do debate sobre as relações mantidas entre homens e
mulheres, obtiveram-se as seguintes opiniões:
148
O trem da história faz com que cada passageiro se acomode da forma que
puder. As mulheres estão se acomodando muito bem e os homens não. É
como se a gente (homens) estivesse vivendo um pouco de fantasma para
sustentar uma posição, porque a gente tem medo de ver a realidade e
um sofrimento por conta disso, há uma confusão do homem por conta disso,
porque as coisas se modificaram para ele e ele tem que se adaptar a essa
modificação, e é difícil ele se adaptar, prefere manter uma situação
tradicionalista. Isso independe de uma questão econômica ou cultural,
parece que é geneticamente entranhada no homem (Psicólogo 1).
Eu acho que nós estamos vivendo um momento em que os homens não
têm o domínio total das coisas. Eles estão tendo que aprender a dividir com
as mulheres. É um momento de aprendizado para os dois lados, não
para o ser homem, somos nós que temos que aprender também a conviver,
ganhar espaço e permanecer com esse espaço, e conviver com esse
homem que está meio em conflito com o espaço dele, com ele mesmo, com
os objetivos dele, com o sonho dele e dessa mulher (Assistente social 4).
Nesses depoimentos podem-se encontrar subsídios de uma abordagem de
Osterne (2001), que averigua, decididamente, não ser mais o “feminino” o que era
antes, fazendo-se necessário um profundo processo de desmontagem e
desorganização para sua possível compreensão.
De fato, constatou-se nos últimos anos intensa mudança na forma como as
mulheres passaram a se posicionar no mundo. Elas reivindicaram igualdade,
começaram a assumir atividades fora do ambiente doméstico, aumentaram
significativamente os seus anos de escolaridade, configuraram-se como “chefes de
família”, desempenharam papéis até então considerados impossíveis ou inatingíveis
para elas.
No entanto, não foi somente o “feminino” que ao longo de tantos anos mudou
de feição e expressão na sociedade com as lutas feministas e, também, com o
próprio movimento de mudanças que se fez presente nos últimos anos. De acordo
com Osterne (2001), a partir de determinado momento histórico, o próprio
“masculino” se expressa como dilema contemporâneo no pensamento de
vanguarda. E, embora saliente a impossibilidade de assegurar que a chamada crise
da masculinidade tenha atingido parte significativa da categoria de homens nas
diversas sociedades, anuncia que o papel socialmente desempenhado por eles
começou a ensejar inquietações e a expressar visíveis modificações. Logo
Igualmente, para o homem, as coisas também estão difíceis. Se no padrão
de desejo anterior o homem era a fonte de todo o valor da mulher, por outro
lado, esse homem extraía a prova exclusiva de sua existência, desse
estatuto que a mulher lhe atribuía. O que acontece agora? No corpo dessa
149
mulher autonomizado, o homem capta uma dupla mensagem: na aparência,
o que o corpo continua a lhe transmitir é que ele é o único ou principal
objeto de seu desejo; na essência, o que o corpo transmite é que se
diversificaram os investimentos de seu desejo e que o lugar do macho
não é o mesmo. Diante dessa mulher, que ainda gagueja uma nova
linguagem de fêmea, o homem não se sente mais sinceramente convocado
como macho. Não encontra mais, no olhar ambíguo dessa nova mulher, o
espelho de sua virilidade. Preso, ainda, da mesma forma que as mulheres,
ao padrão de erotismo de outrora, esse homem se estranha e fragiliza-se
(OSTERNE, 2001:126-127).
No contexto dessa discussão provocada pelos depoimentos, citem-se alguns
aspectos da sociedade contemporânea que, para Oliveira (2004), poderiam
favorecer a idéia segundo a qual o ideal moderno de masculinidade teria sofrido
reveses, tais como: a expansão da participação feminina no mercado de trabalho; a
(suposta) crise do Estado-nação; as mudanças na família, inclusive, a erosão
contínua do patriarcalismo; e as crises de instituições outras, como a ciência e a
igreja, que reafirmavam a predominância do masculino.
Com efeito, ao versar sobre as relações entre homens e mulheres e os
recentes papéis masculinos e femininos delineados nas últimas décadas, percebe-
se, em conformidade com Osterne (2001), estar abordando um dos temas mais
complexos e polêmicos que hoje povoa as discussões sobre o comportamento
humano. Complexo e polêmico, talvez, pela diversidade de idéias que surgem ao
longo do tempo e, mesmo, por referir-se a um processo que se encontra em pleno
movimento, com idas e vindas previstas pela sua própria configuração relacional.
Tal constatação parece expressar-se na própria maneira como nossos (as)
interlocutores (as) posicionaram-se frente às questões que lhes foram alocadas. Eles
e elas, portanto, transitaram entre certa (re) produção da divisão sociohistoricamente
concebida aos homens e às mulheres, apesar de muitos (as) demonstrarem
determinada percepção dessa divisão como algo que não seja mais do que um
produto culturalmente construído.
Ainda sobre essa constatação, se evidenciou um posicionamento diferenciado
entre estes (as) participantes na exata pergunta: “A que você atribui o fato de as
meninas representarem a maioria entre crianças e adolescentes em situação de
exploração sexual comercial?”
Ao responder essa indagação uma das entrevistadas argumentou:
As meninas, eu acho que por causa talvez do sico, o chamar mais
atenção, o despertar mais cedo. A menina com 12 anos, novinha, está
150
formada, tem muita menina que você o a idade que tem, está toda
formada, bonitinha, ajeitadinha e chama a atenção de um caminhoneiro que
passa pela estrada, de um companheiro que vive com a mãe dentro de
casa, porque a mãe já esacabada. Eu acho que o próprio físico da mulher
contribui, o desenvolvimento mental, a cabeça desperta, os hormônios. Ela
entrando na puberdade já começa até mesmo a se insinuar, até a ter
vontade, a querer provocar (Assistente social 1).
Nota-se nesse argumento uma limitada percepção da situação a que recorre
à pergunta, além de uma explícita culpabilização das meninas que sendo tomadas
como “as provocadoras” induziriam seus “exploradores” a uma situação de violação
de direitos pela qual se institui a exploração sexual comercial. Sob o ponto de vista
limitado e preconceituoso da entrevistada, estariam os corpos das meninas
funcionado como atrativos naturais e irresistíveis devido à sua própria natureza, logo
que tenha delimitado atributos físicos e biológicos para a sua explicação. Constrói o
corpo infantil feminino como uma realidade sexualizada e erotizada.
Os dois entrevistados do sexo masculino arrogaram à prevalência das
meninas na exploração sexual comercial à justificativa de que são os homens que se
encontram na posição de “procurar” por essa situação. Vejamos:
Eu atribuo isso, principalmente, pelo lado de quem procura, porque como a
busca é maior de homens do que de mulheres (...). É uma questão de
gênero, com certeza eu nunca duvidei desse aspecto. Então, eu acho que
tem mais meninas, que a estatística é maior das meninas, porque têm mais
machos que vão atrás dessas meninas. (...) Por isso mesmo: porque o
macharal acha que pode exercer a sua sexualidade da forma que ele quer,
como o garanhão, pode pagar por isso, sabe que não vai ser preso por
conta disso. Aspectos sociais fazem com que eles sejam impulsionados
para esse tipo de abuso e, se teve procura, irá ter oferta (Psicólogo 1).
O público que procura, o público explorador eu acho que é homem, até pelo
que eu falei do poder que o homem sente. (...) O público que procura por
isso é um público masculino (Psicólogo 2).
Com as explanações acima, implícita ou explicitamente apontando o exercício
do poder do homem nas circunstâncias que envolvem o fenômeno em alusão, os
entrevistados demonstram estarem atentos à realidade que ainda não evidencia
alterações nos papéis masculinos e femininos como unanimidade nas expressões
concretas das condições de gênero. O que, igualmente, se expressa na afirmação
de Osterne (2001), logo que, no terreno das experiências cotidianas e mesmo
independentemente da condição de classe, o poder masculino ainda é algo
visivelmente presente na relação entre as pessoas (p.127).
151
Se o poder masculino foi mencionado como um fator implicado ao modo como
a exploração sexual comercial se expressa em termos das relações entre os sujeitos
envolvidos, também foi ressaltada a configuração assumida pela “condição feminina”
socialmente disseminada.
Eu atribuo esse alto índice de prostituição à própria condição da mulher na
sociedade, às influências culturais, à influência da mídia, pois a mulher é
vista como objeto sexual, como inferior ao homem, muito pela questão da
estética, do corpo em si (Assistente social 2).
Eu acho que é muito mais a questão de vender a mulher como produto, por
isso se busca mais essas meninas, porque elas têm essa imagem, a mulher
tem essa imagem de sensualidade, e o homem não é colocado como
alguém que tem sensualidade e charme também (Psicóloga 3).
Eu acredito que se deva muito à questão cultural, desse papel da mulher
dentro da sociedade como aquela que é a subjugada, que tem que receber
ordem. Se a gente observar as situações de exclusão que acabam
agravando, se você observar se é menina, se é pobre, se é negra, são os
mais explorados. Então, eu acredito que seja mais uma questão cultural e
social também (Psicóloga 5).
Vale ressaltar a última declaração onde se demarca os quatro eixos
fundamentais pelos quais, segundo Leal (1999), pode-se explicar a exploração
sexual: classe social, gênero, etnia e relação adultocêntrica
50
.
Munidos de um discurso que sobressalta aspectos históricos e culturais
implícitos à maneira como se manifesta a exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes, muitos (as) desses (as) profissionais (as) compactuam da opinião de
Leal (1999) ao indicar o caráter substantivo de “dominação” na relação social e
invisível que se estabelece entre explorado e explorador. Frente a esta averiguação,
contudo, invoca-se a necessidade de perpassar caminhos ainda não bem traçados
neste trabalho. Um deles refere-se à condição de sujeitos inerente às crianças e aos
(as) adolescentes inseridos nessa realidade.
Conquanto estejam mal posicionados numa relação de dominação desigual
estabelecida com outras pessoas que com eles (as) mantêm um “contrato”, faz-se
importante desconstruir as imagens comumente direcionadas às crianças e aos (as)
adolescentes explorados (as) sexualmente. Imagens e representações que, com
freqüência, os retratam como meros transgressores sociais ou vítimas em potencial
de violências durante a vida.
50
No capítulo 2 procurou-se transcorrer sobre esses eixos, os quais foram denominados condicionantes ou
fatores de vulnerabilização à inserção na exploração sexual comercial.
152
Nesse sentido, o que se propõe condiz em resgatar a condição de sujeitos
dessas crianças e desses (as) adolescentes, isto significando não mais do que
percebê-los como indivíduos possuidores de vontades e desejos que, simplesmente,
encontram-se situados em uma posição diferenciada de poder.
Em geral, observa-se que pontos de vista sobre a relação “explorados” e
“exploradores” costumam reproduzir uma lógica dicotômica fixa, talvez em virtude da
própria dimensão das relações de gênero que ainda atravessa fortemente a
exploração sexual comercial. De um lado estariam os agressores sexuais, os
algozes, do outro as vítimas, isto é, as crianças e os (as) adolescentes prostituídos
(as). Esquece-se, quase sempre, toda a dinâmica que leva os fatos a se constituírem
tais como são. Negligenciam-se questionamentos, tais como: o que pensam essas
crianças e adolescentes sobre essa situação? O que leva verdadeiramente os
possíveis “algozes” a “procurar” pelos serviços sexuais desse público? Como, de
fato, configuram-se as relações mantidas entre “vítimas” e “exploradores”?
De acordo com Damasceno (2008), quando se ouve falar em exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes, de imediato vem a cabeça uma série
de imagens que circulam e produzem um senso comum acerca dessa questão.
Cenário fotografado por valores pessoais e legitimado por normas e práticas de
controle social.
Recorrendo à pesquisa de campo, uma das dificuldades relatadas pelos (as)
profissionais investigados (as) foi o não reconhecimento de crianças e adolescentes
como vítimas, já que não se sentem explorados (as). Ora, em verdade, parecem não
atentar para o que explicita Diógenes (2008), posto que evidencie a diferença entre
a percepção de quem vê “de fora” daquela de quem vivencia “por dentro”.
Logo, quem a percebe “de fora” habitua-se ao uso de uma identificação e/ou
estigma que confere rótulos, seja de prostituição, seja de exploração; enquanto que,
para quem vivencia “por dentro”, no geral, principalmente quando se trata de
meninas, inicia-se a abordagem sobre a situação através de uma negação. “Fazer
programa”, quando se trata do imaginário de adolescentes, é uma prática relativa a
um “outro” que apenas se espreita ou se antevê (DIÓGENES, 2008:31).
Porquanto, segundo Diógenes (2008), esse fenômeno assuma uma face
ambivalente e imprecisa para as crianças e os (as) adolescentes, o mesmo não
153
acontece com os (as) profissionais (as) investigados (as) que, em linhas gerais,
definiram precisa e tecnicamente a exploração sexual comercial
51
.
Interessante observar, como, ao definir o fenômeno e ao responder a
pergunta sobre quais fatores poderiam condicionar a existência da exploração
sexual comercial, foi comum o atrelamento dessa situação a faltas, necessidades e
carências previstas às crianças e aos (as) adolescentes.
Na realidade daqui, o que leva a isso é a ociosidade das pessoas. Aqui não
tem emprego (...), não tem renda (...), não tem uma diversão nessa cidade
(...). É a pobreza, a necessidade das pessoas em sobreviver mesmo. Na
realidade daqui, eu acho que é isso que leva a se vender, a se prostituir
(Assistente social 1).
A impunidade, a corrupção dos órgãos que devem fiscalizar, a condição de
extrema pobreza da família da adolescente, a falta de políticas públicas, a
falta de oportunidades, a educação precária, a inexistência de lazer e
ocupação para essas meninas (Assistente social 2).
Eu vejo que a melhor maneira de se combater a exploração sexual seria
ofertar mais oportunidades e, no caso, criar mais leis ou fazer com que as
leis atuais funcionem (Psicólogo 2).
Se eu falar dos atendimentos aqui, o fator é geralmente econômico (...). por
outro lado, tem quem saiba dessas necessidades e usufrui disso, da
carência deles (Assistente social 4).
(...) são fatores que não isolados, acabam um se interligando aos outros, às
vezes, um fator econômico se liga a questão familiar dos papéis, que vem
muito com a falta de esclarecimento, até a questão da educação também
entra (Psicóloga 5).
Averigua-se a real contribuição desses fatores para uma possível entrada na
exploração sexual, contudo, quando destacam tão somente questões relacionadas a
necessidades, carências e faltas, sobretudo econômica, percebe-se o o alcance
por esses (as) profissionais de dimensões outras que se acredita perpassar o
fenômeno. Por que não pensar que são essas crianças e adolescentes igualmente
impulsionados (as) por aspirações e desejos? Por que não considerar essa inserção
como uma forma de resistência a dimensões impostas a eles cotidianamente, além
da econômica, tais como, de gênero, de etnia, geracional, assim como, uma
resistência a outras formas de violência?
Para Diógenes (2008), por exemplo, a recusa às normas morais de
convenção, ao mesmo tempo em que institui e visibilidade à dimensão de desvio
51
Algumas definições foram transcritas no capítulo 3 desse trabalho. Ver pág. 109.
154
e de estigma, possibilita a projeção de crianças e adolescentes em espaços mais
amplos e diversificados de sociabilidade e, conseqüentemente, de liberdade.
Exibir-se em lugares públicos, ultrapassar as barreiras de uma família que
mais cobra e vitimiza do que protege, criar outros vínculos, tudo isso pode
ser formas possíveis e extremas encontradas por crianças e adolescentes
para produção de outras imagens de si (DIOGENES, 2008:205).
Sob determinados aspectos, parece mesmo que a inserção na exploração
sexual comercial se pelos mais diferenciados desejos. O mais visível talvez seja
aquele citado por alguns (as) dos (as) entrevistados (as): o desejo de consumo.
Porém, esteja-se atento a outros: desejo de ajudar a família; de comer todo dia; de
ascensão, pessoal e, também, social; desejo do prazer; de integração; de
autonomia; de liberdade; de subverter, de desconstruir tudo o que lhes seja imposto;
desejo de existir.
Retomando as questões propostas aos (as) psicólogos e assistentes sociais,
destaca-se aquela na qual se tentou captar suas percepções sobre a sexualidade.
Dentre outras, obteve-se as seguintes respostas:
Sexualidade como algo diverso e, uma coisa que eu me preocupei muito
quando na faculdade, já fiz pesquisa e hoje eu vejo muito, é a dificuldade de
aceitação dessa variedade de sexualidade, como se o heterossexual é o
correto (Psicóloga 3).
Sexualidade está presente em tudo e não vejo sexualidade como
genitalidade, sempre como essa questão do aspecto erótico, uma energia
que gera prazer no corpo. Eu vejo a sexualidade também como um conjunto
de fatores, fatores sociais, fatores pessoais (...). A sexualidade em um
atendimento no CREAS é um dos aspectos que é mais trabalhado
(Psicólogo 1).
(...) em relação à sexualidade infantil, a criança também tem desejo, tem
prazer e, muitas vezes, isso é ignorado e a gente se questiona no
atendimento (Psicóloga 4).
Sexualidade é uma condição do ser humano, é algo natural do ser humano,
faz parte da vida dele, diz respeito a tudo na vida dele: ao comportamento,
aos desejos, a visão dele de mundo, a sua orientação sexual, a visão em
relação à sexualidade de outras pessoas (Assistente social 2).
Eu sempre me reporto muito ao nosso trabalho, a gente fez uma oficina
sobre sexualidade com os pais e eles morrem de vergonha de falar, e a
gente tenta trabalhar para quebrar esse gelo com eles porque, se eles não
trabalham a sexualidade deles como irão conseguir falar com os filhos sobre
isso? (Assistente social 3).
A sexualidade é algo que deve ser debatido, o só institucionalmente, mas
dentro da família (.
..).
Deve ser discutido em vários aspectos, mas deve ser
155
discutido de forma adequada, de forma a possibilitar a conscientização das
pessoas (Psicóloga 5).
Como se vê, em linhas gerais, diferentes colocações foram feitas sobre a
sexualidade, algumas atribuindo a ela um caráter mais amplo, outras um caráter
mais restrito, como na ressalva que vincula sexualidade à diversidade sexual.
Entretanto, o que se sobressai para a análise diz respeito à colocação que
vincula sexualidade a “algo natural”, assim como, a importância atribuída à
discussão dessa questão no contexto dos atendimentos desses (as) profissionais.
Sobre o primeiro ponto, visualiza-se determinado perigo na análise,
especialmente em virtude de se compreender a sexualidade como algo construído
sociohistoricamente. Segundo Foucault (1988), o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico
52
.
Sobre o segundo, poder-se-ia fazer uma discussão bem mais aprofundada,
no entanto, caberá aqui um pouco além do que advertir sobre os cuidados
necessários ao tratar de tema tão complexo.
A advertência mencionada apresenta-se, nesse contexto, notadamente
quando se observa a última declaração. Nesta, uma das entrevistadas salienta a
necessidade de se discutir a sexualidade de uma maneira “adequada”. Mas qual
seria essa maneira? Talvez o que possa representar uma “forma adequada” para
um, não o seja para outro.
Diz-se isso, tendo em vista o modo como Foucault (1988), ao apresentar a
sua história da sexualidade, demonstra a construção de um discurso normalizador
que coloca à mercê da condenação e culpabilização todos (as) que não se
enquadram nos padrões deduzidos. Discurso que, ancorado em estratégias de
poder e saber, seria reproduzido, inclusive, pelo que denominou trabalhadores
sociais.
A essa altura, faz-se necessário novamente trazer as questões principais
dessa pesquisa e indagar: Afinal, o que pensam os profissionais que realizam os
atendimentos psicológico e social a crianças e adolescentes vitimizados pela
exploração sexual comercial sobre as relações entre homens e mulheres
construídas sociohistoricamente? Como esses (as) profissionais compreendem as
52
Para a melhor compreensão dessa abordagem da sexualidade, ver tópico 2.2.2 A dimensão social da
sexualidade.
156
dimensões socioeconômicas e simbólicas transversais ao fenômeno? De que
maneira essa compreensão interfere em suas práticas cotidianas?
Como um “resumo da ópera”, em relação à primeira pergunta pode-se dizer
que, de um modo geral, visualizou-se na fala daqueles (as) que fizeram parte dessa
pesquisa a compreensão de aspectos culturais e históricos entrelaçados à maneira
como se relacionam homens e mulheres. Contudo, em muitos momentos suas
declarações transitaram entre certa (re) produção da divisão sociohistoricamente
concebida aos sexos masculino e feminino. Muitos (as) deles (as), também,
atribuíram às relações de gênero a situação de estarem as meninas em maior
número na exploração sexual comercial.
Notou-se, da mesma maneira, que, devido às percepções de quem “por
fora”, parecem ainda não serem capazes de reconhecer e intermediar
diferenciações, negligenciando, assim, importantes dimensões que acompanham as
diversas manifestações da exploração sexual comercial.
Nesse ínterim, um dos aspectos que mais chamou a atenção ao final da
pesquisa de campo foi a quase unânime afirmação de que praticamente não
existiam crianças e adolescentes explorados (as) sexualmente em atendimento.
Alguns (as) chegaram, inclusive, a informar nunca ter atendido a um caso desses, e
quanto às dificuldades mencionadas, citaram, dentre outras, a dificuldade desse
público chegar ao atendimento e a desistência daqueles (as) que haviam ido, mas
não compareciam posteriormente.
Frente a todo o processo investigativo feito até aqui sobre essa temática,
poder-se-ia, é certo, aludir vários prováveis motivos desencadeadores da ausência,
assim como da desistência, dessas crianças e adolescentes nos atendimentos
psicológico e social de que tanto se falou.
Assim como Diógenes (2008), lembrar-se-ia que, mesmo frente a um amplo
leque de instituições, ainda não se conseguiu, de forma sistemática, constituir uma
rede de retaguarda que garanta efetivamente os direitos previstos na lei para as
crianças e adolescentes que estão nas redes de exploração sexual. O que seria um
dos possíveis motivos mencionados.
Poder-se-ia responsabilizar, nessa conjuntura, a ainda precária promoção de
políticas blicas para o grupo do qual se trata, ou mesmo se poderia ressaltar
fatores como: a carência de denúncias sobre essa manifestação de violência; a
insuficiência de educadores sociais para a realização da “busca ativa”; a falta de um
157
atendimento atrativo, frente a não possibilidade de oferecer alternativas concretas de
superação, tais como uma ocupação remunerada; dentre outras.
Porém, frente às percepções alcançadas no decorrer da pesquisa, acredita-se
na importância de ressaltar a aparente ausência de discussões e debates
aprofundados sobre as dimensões tão ressaltadas nesse trabalho. Tal crença deve-
se, sobretudo, à observação de que a evolução do tratamento governamental e
público da temática investigada se deu muito mais relacionada ao caráter técnico
das ações para o seu enfrentamento.
O que se pretende dizer é que são necessárias estratégias não somente para
apontar a existência e a forma como a exploração sexual comercial se manifesta
atualmente, mas faz-se urgente o trabalho de reflexão e discussão sobre as
dimensões culturais que a perpassam. Logo, não se trata apenas de ampliar ações,
programas e projetos para dar conta dessa realidade na qual se situam milhares de
crianças e adolescentes, mas, igualmente, proporcionar debates sobre as condições
que levam essa situação a se constituir tal como se apresenta. Fundamental,
especialmente, para aqueles (as) que diariamente mantêm contato com esse público
na “ponta” das políticas blicas para o seu enfrentamento, ou seja, profissionais
como os (as) que participaram deste trabalho.
158
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegado o momento final da discussão sugerida com a presente pesquisa,
aponta-se a importância da apresentação dos resultados alcançados e, igualmente,
de alguns questionamentos e sentimentos que se fizeram presentes ao longo do
processo investigativo.
De imediato, é necessário salientar a dificuldade da análise, assumida na
escolha da temática proposta, tendo em vista se tratar de assunto polêmico e
carente de discussões e debates, inclusive, no meio científico e acadêmico.
Observação fundamentada no recente interesse dispensado à temática, seja pelo
poder público, seja por autores (as) que vieram a se ocupar desse debate somente
nos últimos anos.
Não se obteve, nesse sentido, muitos subsídios teóricos sobre a exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes com a pesquisa bibliográfica realizada.
Porém, verificou-se, em todas as discussões preexistentes, a evidência de
dimensões culturais e econômicas essenciais para a sua compreensão. Estas,
também, destacadas nesta investigação.
Ao abordar dimensões como aquelas citadas ao logo do trabalho relação
criança/adulto, raça/etnia, sexualidade e gênero, inicialmente, um sentimento de
angústia fez-se presente, devido a certa ansiedade na tentativa de formular
respostas prontas e eficientes para os possíveis resultados que se obteriam ao longo
da investigação. Percebendo isto, houve o entendimento de que a pesquisadora
deparava-se com a elaboração de juízos de valor e do exercício de determinado
poder resultante da sua posição no momento, na qual pretendia dizer qual seria o
certo ou como deveria ser, antes a da conclusão da investigação. Situação
possivelmente resultante da experiência profissional como assistente social que
atuou no atendimento, tais como os sujeitos escolhidos para a pesquisa.
Frente à constatação do aspecto mencionado, trabalhou-se na tentativa de
buscar uma posição imparcial, embora consciente da afirmação de Oliveira (2000):
acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade
absoluta é apenas viver uma doce ilusão (p.24).
Houve ocasiões de dificuldade também porque, ao estudar as dimensões
culturais como as que se manifestam na exploração sexual comercial, observa-se
159
uma linha tênue entre discursos e ações que reproduzem a lógica hegemônica
historicamente construída e outros argumentos que operam com a finalidade de
subverter e ultrapassar modos de pensar e agir disseminados socialmente.
De fato, esta dificuldade sobressai na ocasião em que se averigua estarem
todos (as) inseridos (as) numa sociedade que ainda não concebe inteiramente
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, que discrimina e atribui lugares
próprios e diferentes a negros (as) e brancos (as), a homens e mulheres, e que
naturaliza modos corretos de expressão da sexualidade.
Pois bem, lembrando a ênfase conferida nesta pesquisa às relações entre
homens e mulheres que se procurou compreender e analisar através da categoria
gênero, confirmou-se a hipótese central deste trabalho. Assim, verificou-se que o
discurso dos (as) profissionais que realizam atendimento psicológico e social a
crianças e adolescentes inseridos (as) na exploração sexual comercial sobre as
relações entre homens e mulheres encontra-se permeado de estereótipos acerca do
masculino e do feminino construídos historicamente.
Contudo, pela própria complexidade do tema, outros elementos intrínsecos a
esta verificação foram observados. Um deles diz respeito à maneira como muitos
(as) dos (as) interlocutores (as) transitaram, no momento da entrevista, entre certa
(re) produção da divisão sociohistoricamente concebida aos homens e às mulheres,
apesar de evidenciarem essa divisão como algo que não seja mais do que um
produto culturalmente construído.
Como se registrou a partir das suas narrativas, em linhas gerais, os (as)
profissionais reproduziram uma lógica dicotômica fixa da “vítima” e do “agressor”,
especialmente na pergunta: “a que você atribui o fato de as meninas representarem
a maioria entre crianças e adolescentes em situação de exploração sexual
comercial?”
Evidenciaram, pois, duas disposições antagônicas: de um lado os agressores
sexuais, os algozes; do outro as vítimas, isto é, as crianças e os (as) adolescentes
prostituídos (as). Esqueceram, quase sempre, toda a dinâmica que leva os fatos a
se constituírem tais como são.
Na análise realizada, percebeu-se a utilização das relações desigualmente
mantidas entre homens e mulheres como a justificativa principal para essa
configuração da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. O que, em
verdade, parece ter auxiliado na dualização vítima” e “agressor”, expressada nas
160
entrelinhas do discurso, uma vez que, nas definições sobre o “ser homem” e o “ser
mulher”, restringiram ambos a expressões próprias de comportamento.
Partindo do pressuposto de que não seja possível generalizar personalidades,
comportamentos ou experiências de vida em virtude do sexo, idade, etnia, ou
qualquer outra circunstância, averiguou-se determinado risco nos discursos dos
sujeitos investigados. Trata-se da negligência apreendida em suas falas quanto às
diferenças e pluralidades de pensamentos, ações e reações dos homens e das
mulheres e, conseqüentemente, daqueles (as) que mantêm relações diversas no
contexto do que se designou exploração sexual comercial.
Com efeito, o discurso e, presumivelmente, as ações desses sujeitos
mostraram-se limitadas e ausentes de questionamentos sobre o fenômeno com o
qual trabalham cotidianamente, o que se anuncia na própria definição técnica que
elaboraram sobre o fenômeno e na compilação dos possíveis fatores condicionantes
da inserção de crianças e adolescentes, de acordo com os seus entendimentos.
Foi comum entre eles (as) o atrelamento da exploração sexual comercial a
situações de falta, necessidade e carência previstas às crianças e aos (às)
adolescentes. Lembraram, ao que parece, a condição de sujeitos de direitos desse
público, porém, demonstraram esquecer a condição de sujeitos de desejos que
também os envolvem.
No limiar desta discussão, bem parece adequada a citação de Leal & Leal
(2005), tendo em vista que se faz necessário desmistificar as noções de vítima e de
consentimento, porque são expressões tomadas de sentimentos moralistas e
repressivos, que fortalecem uma análise mecânica e particularista da violência
sexual contra crianças e adolescentes (p.26).
Com toda a pesquisa empreendida para este trabalho, foi possível iniciar a
compreensão da complexidade na qual se transverte a temática analisada. É certo,
pois, que se deva apreendê-la como uma violência que acomete milhares de
crianças e adolescentes, apesar do não reconhecimento desse caráter por muitos
(as) dos que estão envolvidos e mesmo por parte da sociedade.
A importância em compreendê-lo, contudo, não se restringe ao seu
entendimento como uma manifestação de violência, conquanto também seja
imprescindível um olhar destituído de preconceitos, costumeiramente resultantes de
percepções restritas e limitadas.
161
Faz-se necessário, nessas circunstâncias, a elaboração de constantes
questionamentos como, por exemplo, em relação à maneira como a exploração
sexual comercial configura-se, o porquê de sua existência, o porquê de o público
inserido tratar-se de crianças e adolescentes, e, igualmente, os possíveis motivos
que fazem com que esse público não chegue ou permaneça nos atendimentos,
como foi relatado.
Sem dúvidas, verificou-se um maior tratamento da temática pelo poder
público nos últimos anos. Os espaços onde atuam os (as) profissionais escolhidos
(as) para a participação na pesquisa são locais onde se executam políticas públicas
de enfrentamento de diversas violações contra os direitos de crianças e
adolescentes. Sobre esses espaços, no entanto, averiguou-se a maneira precária
como ainda funcionam. De um modo geral, não existem condições estruturais
adequadas ou um número suficiente de profissionais para a demanda de
atendimento a que se propõem.
Além da ausência de comunicação efetiva com demais personagens e
espaços que compõem uma possível rede de enfrentamento da exploração sexual
comercial de crianças e adolescentes, notaram-se outros problemas como a falta de
serviços adequados para o encaminhamento desse público e a dificuldade que os
(as) profissionais relataram ter, quando demais personagens e serviços não
compreendem a perspectiva do atendimento que fazem, em virtude de atenderem
somente a casos de direitos violados.
Com a profundidade possível para uma pesquisa temporária e
financeiramente limitada como esta, constatou-se na trajetória delineada sobre o
enfrentamento dessa violência sexual certa evolução no tratamento governamental e
público. Vale lembrar que esse enfrentamento foi, inclusive, priorizado pelo Governo
Federal com o presidente Lula a partir do ano 2003.
Várias discussões e ações foram realizadas em todos os âmbitos da
federação. Entretanto, o que igualmente se observou foi muito mais uma evolução
do caráter técnico dessas ações, uma vez que não se perceberam avanços efetivos
no tratamento das dimensões econômicas e culturais, imprescindíveis a quaisquer
sujeitos que venham a pensar ou trabalhar com a temática.
Nesse sentido, talvez seja possível afirmar que as políticas públicas
direcionadas a crianças e adolescentes explorados (as) sexualmente não
conseguem alcançar esse público. Afirmação fundamentada, especialmente, na fala
162
dos (as) entrevistados (as), os quais, quase unanimemente, ressaltaram não a
ausência, mas também a desistência desse grupo nos atendimentos.
Caberia, portanto, a indagação: tais políticas o estariam presas a
paradigmas limitados e restritos sobre o fenômeno e sobre o público envolvido?
O que se pode e deve ressaltar a partir dessa investigação diz respeito tão
somente àqueles (as) que foram investigados (as), e, sobre estes (as), é importante
mencionar que, em linhas gerais, demonstraram pontos de vista limitados e restritos
sobre o fenômeno e sobre as pessoas envolvidas. Esta verificação, contudo, não é
feita na intenção de culpabilizá-los (as), mesmo porque um trabalho científico,
quando pensado, designa muito mais a elaboração de pontos de reflexão sobre o
que se propôs analisar.
Quanto às políticas públicas, se deve lembrar que os sujeitos investigados
também as constroem no dia-a-dia profissional, em virtude de encontrarem-se em
um dos espaços onde as políticas de enfrentamento da exploração sexual comercial
são executadas. Seus papéis profissionais são importantes justamente por terem a
possibilidade de um contato direto com crianças e adolescentes que vivenciam
formas díspares de violência.
Portanto, é por este e vários outros motivos que se torna essencial uma
atuação capaz de construir com aqueles e aquelas designados vítimas, não somente
uma alternativa de vida à exploração sexual comercial, mas, especialmente práticas
sociais liberadas de noções pré-estabelecidas e permeadas de comportamentos
emancipatórios.
163
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169
ANEXO
170
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS
Pesquisa: A dimensão das relações de gênero e o enfrentamento da exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes
ROTEIRO DE ENTREVISTA
Local:____________________________________________
Data:____/___/____
1. Sobre o (a) entrevistado (a):
Nome:____________________________________________
Idade:______________
Formação:________________________
Relação trabalhista:_____________________
1.1 Qual o ano da sua formação profissional?
1.2 Há quanto tempo você trabalha nessa instituição?
1.3 quanto tempo trabalha com crianças e adolescentes em situação de
exploração sexual comercial?
1.4 O que levou você a trabalhar com esse público?
1.5 Quais são as suas atividades na instituição?
2. Sobre a instituição:
2.1 Há quanto tempo existe esse CREAS/ serviço?
2.2 Quantos profissionais aqui trabalham? Quantos assistentes sociais? Quantos
psicólogos (as)?
2.3 Qual o perfil do público atendido?
2.4. Quantos são os casos de exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes atendidos mensalmente/anualmente?
2.5 Qual o perfil das crianças e dos adolescentes nos casos de exploração sexual
comercial atendidos pela instituição?
2.6 Como esses casos chegam à instituição?
171
3. Sobre o atendimento:
3.1 O atendimento é sistemático?
3.2 Qual o período médio de manutenção do vínculo com a criança e/ou o (a)
adolescente em atendimento?
3.3 Como você realiza o seu atendimento nesses casos? Com outros (as)
profissionais (as)? Sozinho (a)? (realiza estudos de caso, elabora planos de
atendimento individual)
3.4 O que fundamenta o seu atendimento nesses casos?
3.5 Quais dificuldades você encontra no atendimento a esse público?
3.6 Há diferenças no atendimento a meninas e meninos? Se sim, por quê?
3.7 Outros serviços são acionados durante o atendimento a esses casos?
- Quais? Existe uma comunicação sistemática após o encaminhamento?
3.8 Algum (a) profissional da instituição participa das reuniões do Fórum Cearense de
Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes? Se não, por
quê?
4. Sobre a exploração sexual comercial:
4.1 O que você entende por exploração sexual comercial de crianças e adolescentes?
4.2 Que fatores em sua opinião podem condicionar a existência dessa manifestação
de violência contra o público infanto-juvenil? Por quê?
5. Sobre os fatores culturais e simbólicos:
5.1 Para você o que significa ser mulher?
5.2 O que significa ser homem?
5.3 Existem diferenças entre homens e mulheres? Quais?
5.4 Como você observa as relações atualmente mantidas entre homens e mulheres?
Achas que essas relações são diferentes do que eram em outros momentos? Por
quê?
5.5 Como você percebe a questão da sexualidade? (corpo, prazer etc.) E a
sexualidade infantil?
5.6 A que você atribui o fato de as meninas representarem a maioria entre crianças e
adolescentes em situação de exploração sexual comercial?