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passagem, que tinha como um dos objetivos abrandar o efeito da morte e de seu contágio
aos que sobreviviam:
“Essas matérias moventes, fétidas e mornas, cujo aspecto é aterrador, nas quais a
vida fermenta, essas matérias nas quais fervilham os ovos, os germes e os vermes
estão na origem dessas reações decisivas que chamamos náusea, enjôo,
repugnância. Além do aniquilamento futuro, que pesará totalmente sobre o ser
que sou, que espero ainda ser, cujo próprio sentido é mais esperar ser do que ser
(como se eu não fosse a presença que sou, mas o futuro que espero, que contudo,
não sou), a morte anunciará meu retorno à purulência da vida.”
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Bataille quer ressaltar no trecho acima os sentimentos ambíguos despertados pela
morte, o horror ligado diretamente ao apego que possuímos pela vida e a fascinação
ímpar que a imagem do cadáver nos provoca; se em vida havia distinções visíveis entre
homens e animais mortos, a imobilidade, o silêncio e os vermes os equivalia. Assim,
para os homens a Carne do morto deveria ser reservada, não poderia tornar-se alimento,
pois, enquanto o animal comido por outro animal é simplesmente destruído, colocado
fora do tempo presente, o cadáver não era entendido como uma carcaça, e assim sua
individualidade deveria ser preservada apartada da violência animal; desse modo, os
corpos deveriam ser enterrados ou incinerados, antes que a ação degenerativa da
natureza afrontasse a todos com a ebulição dos vermes, da Animalidade que, mesmo
imóvel, brotava espontaneamente dos poros do cadáver.
O corpo humano transforma-se na questão crucial entre o reino do Interdito e da
Transgressão. Se a morte humana deveria ser ocultada dos próprios homens e dos
irracionais, a carne animal possuía duas funções sagradas: a de alimentar os homens e
muitas vezes a de agraciar os deuses. O sacrifício
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de animais foi um ato muito comum
nas religiões ditas primitivas e a Carne do animal, Transgressor em sua natureza,
transmutava-se em alimento sagrado, materializando em matéria Contínua: “Ao ser
individual, descontinuo, do animal, de sua morte, sucedera a Continuidade orgânica da
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BATAILLE, G. O Erotismo, p. 87.
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A história do Sacrifício pode ser compreendida por diversos ângulos, como todos os estudos
contidos na modernidade. Os dados aqui relacionados terão como intuito percorrer o pensamento
filosófico de Georges Bataille sem nos prendermos demasiadamente a um estudo no qual
vertentes podem se combater em nome de uma unificação no que concerne ao tema deste tópico.
Para tanto, nomes como de René Girard e Marcel Mauss nos ajudarão a compreender o
desencadeamento de formulações que Bataille nos ofertará para o encontro sobre a
especificidade da coalizão entre a Carne (enquanto duto de salvação na fé cristã) e a Carne
animal, representante da violência, sem nos atrever a adentrar na discussão calorosa sobre a
origem destes ritos dentro da história da humanidade.