Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ROSELAINE SOARES DA CUNHA
A CRUZ E OS LEÕES: UMA LEITURA DA CARTA DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA A
PARTIR DO CONCEITO DE ANIMALIDADE NA OBRA DE GEORGES BATAILLE
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ROSELAINE SOARES DA CUNHA
A CRUZ E OS LEÕES: UMA LEITURA DA CARTA DE SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA A
PARTIR DO CONCEITO DE ANIMALIDADE NA OBRA DE GEORGES BATAILLE
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada á Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Ciências da Religião sob a orientação
do Prof. Doutor Luis Felipe Pondé.
São Paulo
2009
ads:
Banca Examinadora
Agradecimentos
____________________________________________________________________
Agradeço ao meu orientador Luiz Felipe Pondé, pela generosidade e
paciência nestes anos, sua inteligência foi meu guia, obrigada Mestre.
Erotilde Soares da Cunha, minha mãe, que confiou em mim, mais que
eu mesma. Te amo.
Roseane Soares da Cunha, minha irmã, um abraço apertado e sempre
sincero a minha incentivadora e patrocinadora dos meus estudos -
um beijo como amor, minha querida amiga.
Gabriel Ferreira da Silva, meu co-orientador e amigo precioso,
obrigada pelas conversas, pelos aconselhamentos e por criar um corpo
coerente no caos dos meus escritos, obrigada.
Mariana Battistini, por surgiu no momento derradeiro, me auxiliando
prontamente, com a mesma inteligência, gentileza e delicadeza que a
transformam em uma mulher especial, obrigada amiga.
Fabiano Sampaio, amigo de longa jornada, que sempre me ofertou sua
atenção e me direcionou quando estava perdida, obrigada amigo.
Sérgio Ricardo Nogueira Tobias, o homem que chegou de longe, me
trazendo um sabor novo, uma alegria singular, que aparentemente
estavam perdidas no meu cansativo cotidiano. Obrigada por
reorganizar os objetos dispersos em mim. Agradeço pelas conversas e
pela ajuda valiosa. Te amo.
Aos meus amigos que suportaram minhas alegrias e tropeços nesta
jornada: Andréa Souza (sua eficiência e sensibilidade são únicas,
obrigado), ao casal de amigos Elpídio Luiz de Paiva Azevedo (que me
incentivou mesmo a distância) e a sua esposa e Martha Perez
(obrigada pelo auxílio nas traduções) e a Thiago Fiorante (meu
querido amigo-irmão).
A CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior -,
pela bolsa de estudos concedida para a realização dessa dissertação.
Com carinho para meu pai, Pedro Josué da Cunha (1931-2007†), em
memória.
Meus olhos se abriram, é verdade, mas seria melhor não ter dito nada, permanecer
empacado como um animal.
Georges Bataille, A Experiência Interior
Para qual vazio criastes os filhos de Adão.
(SL 89,48)
Mas de onde vem então esse gosto monstruoso?
- Da natureza, minha filha.
Sade, História de Juliette.
RESUMO__________________________________________________________________________
O objetivo deste trabalho é interpretar a carta de Santo Inácio de Antioquia
(mártir cristão do século I) a partir do conceito de Animalidade formulado pelo filósofo
francês Georges Bataille. Estudioso do pensamento cristão, Bataille dedicou-se ao longo
de suas obras (no campo da filosofia, literatura, poesia e estética) a investigar as
relações existentes entre o Erotismo e a religião. No pequeno livro intitulado “Teoria da
Religião”, o pensador francês desenvolve suas teorias sobre a Animalidade,
averiguando as bases deste instinto primitivo (ligado à morte e ao cio) e o processo de
afastamento que o mesmo enfrentou com a ascensão do cristianismo. Religião esta, que
tem entre seus pilares a crença da emancipação dos impulsos sexuais como meio de
afastamento desta essência animal, que perigosamente poderia nos introduzir em um
mundo de desordem. A carta de Santo Inácio de Antioquia, que ansiava pelo martírio
em sua correspondência direcionada as comunidades cristãs de Roma, vem apontar esta
necessidade de um distanciamento definitivo da Animalidade que na figura do Cristo
(Homem-Deus) seria exterminada, conduzindo o homem a uma instância sublime,
apartada de todas as impurezas próprias do reino natural. A leitura da Carta de Santo
Inácio, sob a ótica filosófica de Bataille, terá por objetivo aproximar o pensamento
cristão da força que tão intensamente negou a da Animalidade.
Palavras-chave: Bataille – Erotismo – Animalidade – Martírio – Cristianismo.
ABSTRACT__________________________________________________________________________
The objective of this work is to interpret the letters of Saint Ignacio of Antioquia (a
christian martyr from the 1st century)
in sight of the concept of
Animality formulated by the
french philosopher Georges Bataille. A scholar of the christian thought, Bataille
dedicated himself at the lenght of his works (in the fields of philosophy, literature,
petry and aesthetics) to investigate the existing relations between Erotism and religion.
In the book
entitled
"Theory of religion"
,
the french thinker develops the notion of
Animality, investigating the basis of this primitive instinct (associated to death and
sexual heat) and the straying process that
it
faced with the ascension of the christianism.
He has among his pillars the belief on the ditachment of the sexual impulses as a mean
to stray from that animal essence, that could dangerously insert us into a world of
disorder. In the letter of Saint Ignacio of Antioquia, whose eagerness for the martydom
was shown in his correspondence addressed to the christian communities of Rome,
it
is
pointed out
the
need of a definitive separation from the Anomality that in the figure of
Christ (Man-God) would be exterminated, conducting the Man to a sublime scope, apart
from all impurity
from
the natural world. The reading of the letter of Saint Ignacio, under
the philosophical vision of Bataille, will have
the
objective to aproximate the christian
thought of the force that it so intensely denied; the Animality.
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................................... 09
Capítulo I - O Cristianismo Primitivo.......................................................................... 14
1. Martírio como Redenção............................................................................................ 15
1.1. As cartas inacianas............................................................................................ 25
1.2. Carta aos Romanos: A noção de Carne como Corpo........................................ 31
1.3. A Carne Humana como Carne Animal............................................................. 37
1.4. O cristão em busca da Perfeição celeste........................................................... 42
1.5. O Último Sacrifício........................................................................................... 48
Capítulo II – A Continuidade do Ser na obra de Bataille................................................52
2. As Faces do Erotismo................................................................................................. 53
2.1. O Erotismo Sagrado e a Animalidade............................................................... 60
2.2. A relação entre Morte e Sacrifício.................................................................... 62
Capítulo III – Bataille lê Inácio ..................................................................................... 72
3. Martírio: o Trágico como Espetáculo......................................................................... 73
3.1. Carta aos Romanos: O Projeto Cristão da Solidão ........................................... 80
3.2.Inácio e a Imitação do Cristo............................................................................. 84
3.3. A Carne Animal como Corpo Santo................................................................. 87
Conclusão ...... ................................................................................................................90
Referências Bibliográficas............................................................................................. 92
________________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
10
Quando Sartre, lendo o livro A Experiência Interior de Georges Bataille (1897-
1962), afirma que ali se apresentavam os escritos de um “novo místico”, podemos
compreender o quanto a obra batailliana é contundente, não se encaixando nas
tendências investigativas dos filósofos do seu tempo. O montante dos escritos de
Bataille se divide em inúmeras vertentes (romances, ensaios filosóficos, crítica literária,
estética e poesia), o que explica a definição ofertada por Sartre, que tenta ofertar um
rosto coeso à singularidade da obra batailliana que, no entanto, se estende para além das
tentativas de uma nomenclatura exata.
A “mística”, à qual Sartre se refere, está diretamente ligada ao perfil das
pesquisas e investigações às quais Bataille se dedicou ao longo de sua obra, na tentativa
de decifrar o Homem por intermédio do Erotismo. Este não deve ser entendido
simplesmente como contato físico entre os corpos, que o conceito intenta abranger a
complexibilidade do movimento assolador intrínseco à natureza humana, ligada ao sexo
e a violência, à preservação da vida e inversamente à atração irresistível pela morte. É
este movimento oscilante, que arremessa o Homem para a necessidade de supressão e
superação dos limites, que moldará a obscura e singular espécie humana.
Quando o filósofo afirma: “Falamos de erotismo todas as vezes que um ser
humano se conduz de maneira que estabelece um contraste com as condutas e
julgamentos habituais”
1
, nos depararmos com a obra deste pensador, que se dispõe a
apontar, por intermédio de suas reflexões sobre o Erotismo, a falência do sistema
hegeliano, o fracasso da catalogação de todas as emoções humanas e a racionalidade
utilizada como uma máquina de extermínio de todas as possibilidades humanas de um
ultrapassamento dos limites impostos pelas meticulosas estruturas morais e sociais, que
tendem a transformar cada individuo num tacanho portador das promessas de
emancipação que o mundo racionalizado não conseguiu realizar. Dos órfãos de
Nietzsche e o seu Deus morto, Sartre afirma sobre Bataille:
“Há homens que se poderia chamar de sobreviventes. Eles perderam precocemente um
ente querido, um pai, um amigo, uma amante, e sua vida não é mais que o melancólico
amanhã dessa morte. Bataille sobreviveu à morte de Deus.”
2
1
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: Ed. ARX, 2004. p.
170.
2
SARTRE, Jean Paul. Situações I. Trad.ução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac&Naify, 2005. p. 160.
11
Sobreviveu, porém não sem seqüelas, que toda a obra de Bataille se apresenta
como uma expiação do cadáver de Deus. Existe um lamento nos escritos do autor, uma
angústia, uma procura que o transforma num místico sem Deus, um pensador que oscila
- tal como se reflete em sua obra - entre o obscuro funcionário público da Biblioteca
Nacional da França e uma vida intelectual e pessoal intensa, como descreve Eliane
Robert Moraes:
“Era um homem dividido: de um lado, a vida desregrada, dedicada ao jogo, à
bebida e aos bordéis; de outro, as profundas inquietações filosóficas, fomentadas
sobre tudo por suas leituras dos místicos, além de Nietzsche e Sade.”
3
Para este autor, que circulou entre os teóricos libertinos e os escritos de Santo
Agostinho, Santo Inácio de Loyola e Santa Tereza D´Ávila, a fé cristã transformou-se
no foco de grande parte de seus estudos, e Cristo, o corpo visível de Deus, em seu
objeto de investigação em inúmeros escritos. A estranheza deste Ser metade-Homem,
metade-Deus, seduziu a atenção de Bataille, que encontrava na imagem Dele a mais
audaciosa ambição humana, ou seja, a de se refugiar na idéia de divindade e assim se
afastar do movimento assolador da natureza, principalmente de sua face animal, como
representantes da violência e do cio, vivendo numa instância particular, num processo
contínuo de aniquilamento e renascimento.
O assombro da constatação da morte, segundo Bataille, foi o precursor de todas
as ações humanas que têm como fim a construção de um mundo definitivamente
apartado do reino animal, que em seu silêncio resguarda os segredos de quem fomos
ou de algo que dentro de nós se oculta. O conceito de Animalidade, formulado por
Bataille com maior veemência no livro Teoria da Religião, tem como intuito compilar
os dados no campo da antropologia que o auxiliaram a compor todas as suas
investigações posteriores sobre a relação conflitante entre Religião e Animalidade. Para
tanto, a fé cristã se tornou uma importante fonte de indagações, já que foi justamente ela
que impôs de maneira vigorosa um afastamento mais incisivo entre o homem e os
resquícios de seus instintos animais. O filósofo francês nos recorda que, antes da
ascensão do cristianismo, os processos de Interdição (processo que visa controlar os
3
BATAILLE, Georges. História do Olho. Tradução de Elliane Robert Moraes. São Paulo. Cosac &
Naify. 2003 , p. 08.
12
impulsos devastadores do coito entre os grupos humanos) e o de Transgressão (onde o
homem por comum acordo, quebra momentaneamente as alianças interditórias) não
viviam necessariamente em oposição, houve um período que existia um vínculo
sustentável entre ambos.
A cópula, por exemplo, mantinha-se sob um código moral suscetível a encontrar
no próprio impulso sexual ritualizado uma ligação direta com o divino; assim os fiéis
experimentavam uma possibilidade de união carnal como tributo a uma deidade.
Mesmo as orgias na antiguidade eram devidamente institucionalizadas e apresentavam-
se como um cerimonial religioso. A presença dos Interditos diretamente associada ao
trabalho e as obrigações sociais – não inibiam estes excessos, estes momentos de
extravasamento. Os animais, que para o homem, estavam irremediavelmente ligados à
morte e a devastação que lhe é própria, eram cultuados nestes eventos; o corpo humano
tal qual a Carne animal estavam num mesmo patamar, entregues a irracionalidade do
coito, que dentro do pensamento batailliano, faz uma referencia direta com a morte.
Com o advento do cristianismo, porém, toda a Transgressão tornou-se pecado, foi
banida e encarcerada pelo conjunto das rígidas Interdições cristãs. O Deus de Jesus
destruiu o panteão que ofertava as sociedades antigas o acesso a Animalidade, que
desde então, progressivamente se perdeu no mundo profano do trabalho e do culto a um
Deus casto.
As leituras de Bataille em relação aos escritos de santos e místicos não tiveram o
intuito de analisá-los metodicamente por intermédios dos conceitos por ele fundados ao
longo de suas obras. A interpretação filosófica da Carta aos Romanos, escrito no ano de
107 d.C, pelo Bispo de Antioquia durante sua prisão que culminaria no seu martírio na
cidade de Roma, coube aos estudantes do pensamento batailliano. Uma vez
compreendida a obra do filósofo, intentamos transpô-la como mediadora na leitura desta
carta, que representa uma das primeiras tentativas de condensação dos dogmas da
cristã para as comunidades ainda em formação em terras romanas.
Mas qual interesse que uma correspondência entre cristãos poderia suscitar em
um estudante da obra batailliana? Primeiro, uma das características marcantes deste
escrito é a exaltação do martírio como meio de Salvação cristã, idéia esta alicerçada no
ideal nascente onde sacrifício, humilhação e o anulamento de todo desejo carnal se
tornariam tanto um caminho eficaz para a imitação do Nazareno como também um meio
de distanciamento de tudo que os aproximasse do reino natural, onde morte e cio se
13
tornam um movimento. Para uma crença em que o estado de Perfeição é almejado, a
realidade assoladora da natureza e dos instintos ligadas a ela deveria ser combatida
por meio de um discurso redentor, completamente interditório, que visava criar em
torno de si um mundo pós-morte, em que a felicidade seria encontrada por meio do
Cristo. O pensamento teológico inaciano - alinhado ao anseio de alcançar este estado de
Perfeição - ecoa por toda a primeira era cristã, principalmente por organizar os
primeiros conceitos norteadores desta fé, delineando os traços da hierarquia eclesial e
traçando os argumentos que culminariam na crença irredutível da dupla natureza de
Cristo.
Para alcançar este estágio de Perfeição, um caminho tortuoso se apresentava,
levando homens como Inácio a encontrarem na morte um meio de atingir este objetivo,
ou seja, o de se tornar tal qual a imagem do Pai. Para tanto, a Carne (entendido como
extensão corpórea nas cartas de Inácio) deveria ser domada, pois a fraqueza desta
atrairia o pecado e impediria que os crentes transmutassem sua existência decaída na
nova imagem do Adão redimido, representado por Jesus. É dentro deste quadro que
alguns pontos serão investigados no pensamento teológico inaciano. Assim, os
conceitos de “Perfeição”, “Carne” e “Sacrifício”, delimitaram a compreensão que o
santo alimentava sobre si e sobre o seu angustiante distanciamento em relação ao Filho
de Deus. Uma vez apresentando os dados teológicos que perpassam toda a carta aos
Romanos, os confrontei com as concepções filosóficas que o pensador francês Georges
Bataille formulou em suas diversas obras sobre o pensamento cristão, construída em
torno da idealização do Homem Perfeito que, segundo Bataille, não compõe nossa
singular natureza.
Para o filósofo, a tentativa desesperada de superar nossas tendências animais
conduziu os homens - encantados pelo ideal cristão - a criarem mecanismos de
Transgressão dentro dos próprios preceitos castradores que criaram. A partir desta
concepção, em que Sacrifício e Erotismo se entrelaçam, a leitura da carta inaciana, pela
ótica batailliana será investigada, no intuito de mapear o conceito de Animalidade
dentro da carta martírica aos Romanos, escrito pelo Bispo de Antioquia.
_______________________________________________________________________
Capítulo I – O Cristianismo Primitivo
15
1. Martírio como Redenção
Os três primeiros séculos do cristianismo foram marcados por eventos de grande
impacto; o período dos mártires entrelaçou mortes violentas com a propagação da Boa
Nova. A exaltação do martírio apontava para uma nova concepção existencial, onde o
homem comprometia-se a participar das dores sobrenaturais de um Deus encarnado, na
figura de Cristo, que se entregou em sacrifício para sanar o estado pecaminoso que toda
a humanidade estava condenada, infectada pela presença da morte que foi introduzida na
história a partir da queda de Adão.
A ambição de compartilhar do conhecimento até então monopolizado por Deus,
motivou a expulsão do primeiro homem do conforto do paraíso para o desalento do
trabalho, do cansaço e da finitude. A geração nascida deste varão herdou sua sorte,
como afirma o Apóstolo Paulo
4
: “Eis por que, como por meio de um só homem o pecado
entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e assim a morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”
5
. Anular a transgressão de Adão estava diretamente relacionado
com a crença na restauração da Aliança entre Deus e os Homens, segundo o pensamento
cristão. Tal anseio havia se confirmado por intermédio da morte dolorosa e vexatória de
um Homem, que nascido Deus, alimentou a esperança de muitos num futuro póstumo de
bem-aventurança, para além das limitações do corpo e do mundo. Para tanto, o Filho de
Deus consagrou-se ao martírio, o que posteriormente seria entendido por parte de grupos
cristãos, como o caminho mais eficaz para alcançar a sua Realeza, daquele que, suspenso
no madeiro
6
, não esbravejou contra sua divindade, mas apenas por seu destino humano:
“Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?”
7
.
Os relatos evangélicos da Paixão de Jesus, popularizados em sua maioria de
forma verbal rapidamente se expandiram nas primeiras décadas do cristianismo
apostólico, convertendo judeus e gentios à crença em um Deus ressuscitado, convicção
esta que uniu diversas colônias romanas numa mesma comunidade de fé.
Dentro do período histórico do governo de Nero (54-68), as narrativas sobre os
embates enfrentados pelos seguidores de Cristo diante dos legisladores romanos se
disseminam, encorajando muitos cristãos a repetir os atos heróicos destes homens que
4
Todas as citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e
ampliada. Paulus, 2004.
5
Rm 5, 12-14.
6
Cf. Gl 3,13.
7
Mc 15, 34.
16
com suas mortes, garantiram a propagação da mensagem evangélica por todo o Império
Romano.
A própria Paixão de Cristo, contendo os detalhes de seu flagelo e humilhação
pelas ruas de Jerusalém, exalta uma importante característica do cristianismo primitivo,
a saber, a espetacularização com tintas excessivamente dramáticas do auto-sacrificio,
em que o trágico se transforma num veículo promissor para uma evangelização
pedagógica e eficaz. Um Deus que agoniza, sangra e lamenta-se diante de espectadores
vorazes informa aos seus futuros seguidores quais serão os alicerces do reino dos céus
nascidas na ignomínia da cruz e nos traços essencialmente teatrais de seus personagens.
Quando lemos em Santo Atanásio:
“Se, portanto, Cristo houvesse morrido sem doença, nem dor, em particular, sozinho
num canto ou lugar deserto, ou em casa, ou tivesse conservado o corpo oculto em
qualquer lugar e em seguida reaparecido subitamente, dizendo ter ressuscitado dos
mortos, tudo isso assemelhar-se-ia antes a uma fábula (...) Igualmente se o corpo
morresse de certo modo oculto, e se a morte fora invisível e sem testemunhas, a
ressurreição também teria sido invisível e não atestada.”
8
Compreendemos através deste raciocínio o porqda importância da multidão
contemplando o espetáculo da cruz
9
, cena inaugural de uma série quase interminável de
martírios que tinham por base a humilhação sofrida pelo Filho nu de um Pai
misericordioso, que entrega aos homens a agonia de seu rebento como forma de
reconciliação com os seus. Um grande grito
10
retira do corpo de Jesus seu último suspiro
e inicio ao processo da Ressurreição, da Sua vitória contra a morte, alimentando de
ânimo seus discípulos até então acovardados, mas previamente convocados para o
mesmo destino de seu mentor, de dificuldades, tribulações e dor, como comprova o
apóstolo Paulo: “Julgo que Deus nos expôs, a nós, apóstolos, em último lugar, como
condenados à morte: fomos dados em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens.”
11
Quando ainda judeu praticante, Saulo de Tarso presenciou o apedrejamento do
discípulo Estevão, que fiel ao seu mestre, entoou palavras de perdão aos seus agressores:
8
ATANÁSIO (295-373). Contra os pagãos, a encarnação do verbo: Apologia do imperador
Constâncio: apologia da fuga: Vida e conduta de santo Antão. Tradução de Orlando Tiago Loja
Rodrigues Mendes. São Paulo. Editora Paulus, 2002. p. 156.
9
Lc 23,48.
10
Mc 15,37.
11
1 Cor 4.9.
17
“Senhor, não leves em conta este pecado”
12
, o futuro apóstolo observou indiferente o
gesto que inseriu definitivamente a mística do martírio dentro do pensamento cristão,
influenciando diretamente inúmeros grupos em formação na época.
Assim, para a propagação da mensagem se fazia necessário um componente que
pudesse unir seus membros apaixonadamente num mesmo objetivo; a perseguição
Romana contra a nova considerada “superstitio illicita”
13
, foi determinante para o
entendimento do cristianismo como a religião dos escolhidos, já que a fidelidade de cada
crente seria recompensada devidamente, como havia anunciado o próprio Cristo: “Pois o
Filho do Homem de vir na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a
cada um de acordo com o seu comportamento”
14
. O tesouro reservado aos escolhidos
tinha como brilho a Vida Eterna (Ressurreição), no reino celeste onde o pecado não mais
reinaria.
É importante ressaltar que atrair o trágico para si tornou-se uma constante no
cristianismo primitivo, fato este comprovado pelo isolamento de parte dos crentes da
vida social romana; o desinteresse pelos jogos, pelas lutas de gladiadores e,
principalmente, a recusa em cumprir os ritos da religião oficial do Império evidenciavam
o perigo da conversão à nova fé. Nero, um dos grandes inimigos do cristianismo
nascente proporcionou o primeiro grande evento, em que o assassinato de cristãos se
tornou a atração principal para a ávida platéia romana, sempre em busca de novas
diversões. O historiador Daniel Rops nos expõe em sua obra A Igreja dos Apóstolos e
dos Mártires alguns detalhes sobre as festividades organizadas pelo Imperador como
punição aos “possíveis” incendiários dos bairros mais empobrecidos de Roma; os
acontecimentos deste festim, datado do ano 64 d.C, desencadearam as violentas
perseguições posteriores e marcaram profundamente o pensamento teológico do período
como veremos mais adiante em que o martírio mesclado à humilhação pública se
torna o momento derradeiro de uma aproximação da divindade de Cristo:
“No cérebro espantosamente fértil deste homem, a intenção política e o gosto doentio
pelos espetáculos associaram-se numa idéia atroz. E surgiram então as cenas dos
jardins Vaticanos (...) Não se limitaram a torturar, decapitar e crucificar as vítimas no
circo de Nero, instalado no lugar onde se encontra hoje São Pedro. Organizaram
caçadas nos jardins imperiais e a caça eram os cristãos metidos dentro de peles de
12
At 7, 60.
13
LESBAUPIN, Ivo. A bem-aventurança da perseguição. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 18.
14
Mt 16,27.
18
feras que os cães acabavam por dilacerar. Reproduziram-se as mais escabrosas e
bárbaras cenas mitológicas, sendo figurantes os cristãos, que eram submetidos aos
maiores ultrajes.”
15
A pele dos animais que encobriam os corpos dos cristãos, chamando para si o
ataque dos cães, não os colocavam numa situação constrangedora, como os
confrontavam com uma lembrança dolorosa proveniente da tradição judaica, a saber, a
condenação imposta a Adão e Eva quando expulsos do paraíso: “Iahweh Deus fez para o
homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu”
16
. Ocultar os corpos desobedientes
com a pele animal ressaltou o destino do primeiro casal, colocando-os em de
igualdade com a terra amaldiçoada que habitaram. Porém, no caso das festividades
descritas, a pele animal por sobre o corpo das vítimas de Nero possuía uma função
adversa, a de reintroduzi-los no reino de Deus - para longe do saber-se nu de Adão por
intermédio do martírio. A pele atirada sobre seus corpos, além de animalizá-los, atrairia
os cães e a morte, transmutando sua existência impura na singularidade do corpo salvo
dos escolhidos.
O martírio, porém, não seduzia todos os membros da comunidade cristã, pois é
sabido que Roma, apesar da brutalidade de suas ações, admitia historicamente o culto de
diversas divindades na vida privada, mas exigia em troca a obrigatoriedade do ato cívico
de reverência aos deuses locais, o que comumente era aceito até mesmo pelos judeus
instalados em terras romanas e membros da comunidade cristã que reuniam-se em sigilo.
No entanto, o gradativo afastamento dos costumes romanos e das diretrizes do judaísmo
estabelecido por parte de membros do cristianismo prejudicou a aceitação da nova fé,
criando uma aura misteriosa e malévola para a sustentação da religião em território
helênico; a acusação de que em suas reuniões ocorriam atos de incesto, infanticídio,
desobediência ao culto local e libertinagem inflamou a perseguição dos imperadores que
substituíram Nero, ofertando aos que desejavam se filiar àquela religião todas as
possibilidades de uma morte trágica, que o Império Romano podia proporcionar aos seus
opositores. O espetáculo dos assassinatos de cristãos tornou-se uma marca do período
das grandes perseguições
17
, que ao invés de mitigarem a coesão cristã, acabaram por
15
ROPS, Henri Daniel. História da Igreja de Cristo I:A igreja dos apóstolos e dos mártires.
Tradução de Eduardo Pinheiro.Porto: Livraria Tavares, 1960. p. 183.
16
Gn 3,20-21.
17
O período corresponde a aproximadamente 64 d.C sob o Império de Nero e segue, oscilando
entre pequenas e grandes perseguições até o Império de Maximiano no ano de 313.
19
fortalecer sua expansão através de conversões alicerçadas, em parte, pela comovente
morte dos mártires. Heróis pululavam em cada evento organizado para massacrá-los;
homens e mulheres comuns, em nome da fé em Cristo, sujeitavam-se a inúmeras torturas
com mansidão e perseverança na esperança do recebimento da recompensa que seria
outorgada a cada um deles que haviam superado pela a corporeidade efêmera dos
filhos do primeiro casal. Todo o sangue cristão derramado seria devidamente justificado,
assim como cada agressor ganharia sua paga por sua ousada tentativa de impedir o culto
ao Nazareno. A indiferença de muitos cristãos à sua autopreservação em nome da e a
certeza da punição dos seus algozes, brotava de uma raiz ideológica nascida no
judaísmo, em que a noção de Testemunho está diretamente ligada ao conceito de
Sacrifício. Tal noção se encontra no Antigo Testamento, especificamente no Livro dos
Macabeus, que retrata a resistência do povo judeu sob o julgo do conquistador Antíoco
IV que profana o Templo hebreu e inicia um embate que centra-se na oposição entre os
mantenedores das Leis Abraamicas e a imposição cultural dos conquistadores helênicos;
a resistência dos membros da comunidade judaica diante das violentas investidas de
Antíoco e as sucessivas narrativas das torturas infligidas aos mesmos moldaram o perfil
do mártir cristão frente aos seus opositores.
José Adriano, em seu artigo Testemunho e Martírio na Sagrada Escritura
18
lista
sete características da construção narrativa dos martírios, elementos estes que também
podem ser encontradas abundantemente nas narrativas cristã primitivas. Porém, aqui,
nos ateremos a apresentar apenas seis
19
destas características: “1) Testemunho dado
diante da autoridade, o que grande dramaticidade ao fato, 2) Citação das Escrituras,
4) Valor propiciatório e expiação vicárica do testemunho e 5) Certeza do castigo do
tirano 6) Certeza da ressurreição.” No relato da paixão e morte de Cristo todos este
elementos coexistem, noutros casos, apenas parte deles: na morte de Estêvão, por
exemplo, a lapidação, a citação das escrituras e o testemunho se harmonizam. Em
outros, como veremos agora, a ressurreição e o castigo são os dados norteadores da
crença de que o testemunho, as escrituras e a expiação tornar-se-ão motivadores para que
o castigo transforme toda a beatitude cristã no inverso da recompensa celestial. O estudo
destes no decorrer deste capítulo nos auxiliará a compreender o trágico no pensamento
18
ADRIANO, José, Cônego. Testemunho e Martírio na Sagrada Escritura, Revista de Cultura
Teológica, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. vol. 02. num. 08, 1994. p. 19-40.
19
Julgamos correto, porém, citar a característica restante 7) tentativa de convencimento para
abandonar a fé.
20
martírico, o sacrifício como forma de redenção (a partir do entendimento inaciano), a
importância dos algozes como carrascos de Deus e a Ressurreição como possibilidade de
uma continuidade do ser. Eusébio de Cesaréia, um dos mais eminentes historiadores do
cristianismo nascente, detém-se inúmeras vezes em sua obra História Eclesiástica na
narrativa do destino dos opositores a cristã, listando os algozes de Deus: “Pilatos,
suicída-se”
20
cumprindo o designo divino, como o autor comenta: “a justiça divina não o
poupou por muito tempo”
21
. Agripa perseguidor dos apóstolos “morreu devorado
pelos vermes”
22
. Aos judeus que emboscavam os discípulos de Cristo, a fome os
assolou: “Recolhia-se até o que os mais vis dos irracionais não teriam tomado para
comer. Não se abstinham dos cintos e das sandálias; enfim, arrancavam o couro dos
escudos para roê-los.”
23
. Ao filho do Imperador Maximiano, de nome Maxêncio, coube a
decomposição das genitálias:
“Com efeito, de repente brotou um abscesso nas partes mais escondidas do corpo;
depois uma úlcera profunda com fístula, e esses males incuráveis corroeram-lhes as
entranhas, onde formigava uma quantidade enorme de vermes (...) pôs-se a apodrecer
e oferecia aos circunstantes um espetáculo intolerável e assustador”
24
.
Aos algozes, restava a decomposição e uma estranha proximidade do reino
animal. Os vilões que perseguiam os discípulos do Cristo tinham como punição a morte
dolorosa e a ruína, mas a condenação corporal não era suficiente, a eles também estavam
reservados as agruras do inferno como afirma o próprio Cristo: “E irão estes para o
castigo eterno enquanto os justos irão para a vida eterna”
25
. A certeza da punição dos
torturadores e de recompensa celestial aos mártires entusiasmou a mesmo cristãos
ilustres como São Justino, que aguardava com ansiedade o instante de seu confronto com
os carrascos de sua crença: “Eu mesmo espero ser vítima das ciladas de algum desses
demônios aludidos e ser cravado no cepo”
26
. O anseio desmedido por uma morte
desastrosa por parte de alguns cristãos explica a divergência que o conceito de “mártir”
ganharia nos primeiros séculos, que a definição do termo confirmaria a excelência do
20
Eusébio de CESARÉIA. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas do Mosteiro
de Maria Mãe de Cristo. São Paulo. Editora Paulus, 2000. Cap.VII.
21
Ibidem, Livro II. Cap.VII
22
Ibidem, LivroII. CapX, 1.
23
Ibidem, Livro III, Cap.VI, 19.
24
Ibidem, Livro VII, CapXVI, 04.
25
Mt 25, 46.
26
JUSTINO, Mártir. Santo Justino de Roma: I e II apologias. Tradução de Ivo Storniolo, Euclides
M. Balancin. São Paulo: Editora Paulus, 1995 p. 98.
21
candidato como discípulo fiel de Cristo. Tal fato se nota na tradição do culto religioso
em cemitérios, tal como Ivo Lesbaupin, em sua obra dedicada ao tema da perseguição no
cristianismo primitivo, nos informa: (...) os mártires eram celebrados não como
defuntos, mas como pessoas vivas, unidas a eles e intercessores permanentes junto a
Deus”
27
. Em períodos de grande repressão, o magistrado romano não permitia que
nenhum cristão se aproximasse do cadáver dos martirizados
28
, o que nos permite
presumir que os mesmos se decompunham ao ar livre, como uma forma cruel de
aprendizagem para os simpatizantes da crença. A punição póstuma ao cadáver tinha
comumente o intuito de humilhar os adversários, apontando seu caráter meramente
animal no borbulhar dos vermes; no entanto, devemos nos recordar que para os cristãos
primitivos o corpo era um depósito breve da alma imortal, e assim o corpo desfeito em
pedaços exaltava a coragem do cadáver e seu retorno à natureza a partir da superação
desta. O culto aos mártires tomou uma importância unificadora; suas figuras
representavam a coragem humana, além de incorporarem um nobre ofício, ou seja, o de
intercessores entre Deus e os homens. Por isso, importantes apologistas do período
tentaram precisar o significado do termo “Mártir”, estabelecendo uma hierarquia do
sofrimento ao distinguir os flagelados pelo Império Romano, entre “Confessores” e
“Mártires”. Assim, poder-se-ia estabelecer quais cristãos deveriam ser teologicamente
identificados como merecedores da “coroa do martírio”, pois estes seriam os
participantes ativos da Parusia, em que os crentes surgirão, tal como descreve João,
ressaltando seus privilégios como os escolhidos e assistindo de camarote o grande
desfecho histórico cristão:
“Tomou a palavra um dos Veneráveis, dizendo-me: Estes, envoltos em vestes
resplandecentes, quem são? E de onde vieram? Respondi-lhe eu: Meu Senhor, tu o
sabes. E disse-me Ele: Estes são os que vêm da grande tribulação, lavaram as suas
vestes e as tornaram brilhantes no sangue do Cordeiro. Jamais terão fome nem sede;
não os molestará o sol nem qualquer espécie de ardor, porque o Cordeiro que se acha
entre eles e o trono, os pastoreará e os conduzirá às fontes de água da vida. O próprio
Deus enxugar-lhe-á toda a lágrima dos olhos
29
”.
27
LESBAUPIN, Ivo. A bem-aventurança da perseguição, p. 30.
28
Cf. Ibidem, p. 28.
29
Ap. 7, 15-16.
22
Catalogar adequadamente o nome dos condecorados de Deus foi o que Tertuliano
(160–225), Orígenes (185-255) e São Cipriano (200-258), tentaram fazer em trechos de
suas obras teológicas. Estes autores abrilhantaram a busca de uma definição adequada do
termo “Mártir”, que na visão de cada pensador foi compreendido a partir das
circunstâncias de morte de cada fiel. Pensadores como São Cipriano incluíam no livro
dos mártires o nome daqueles que haviam sofrido torturas, humilhações e deserções
ocasionadas pela perseguição, sem que tenham perdido suas vidas em decorrência dos
padecimentos infligidos nas arenas romanas, como argumenta Cipriano:
“Aos corpos de todos aqueles que, ainda sem haver passado pela tortura, saem,
todavia, do mundo com gloriosa morte na prisão, que conceder-lhes vigilância e
cuidado mais fervoroso, pois nem seu valor nem sua honra é menor para não incluí-
los, também a eles, entre os bem aventurados mártires.”
30
Outros elementos também são incorporados à noção de mártir pelo autor.
Assim, apesar de manter a terminologia “Confessor” para os homens que publicamente
deram seu testemunho de diante dos tribunais sem padecer por tal ação, o santo de
certa forma abre um precedente, observando sob um ponto de vista mais psicológico o
sofrimento do fiel, levando em consideração também o abandono e o sofrimento
silencioso dos cárceres, como fica claro em carta direcionada aos fiéis de Tibaris: “E não
é menor a gloria do martirio por não haver morrido públicamente e em presença de
muitos, sempre que a causa pela qual se morre seja por Cristo.”
31
Assim, a glória
também recairia sobre os tantos sem nome que longe dos estádios morreram, sem ter
como pano de fundo a visibilidade altiva do Cristo no alto do Gólgota.
Orígenes, outro importante apologista, também negava a necessidade de uma
morte pública para alcançar a plenitude da mensagem cristã. Seguindo a linha de
pensamento de São Cipriano, o autor admite até mesmo o procedimento da fuga em caso
de perseguição como forma de legítima defesa do fiel em momentos de perigo. Sua tese
se sustenta na passagem bíblica: “Quando pois vos perseguirem nesta cidade, fugi para
outra”
32
. O mesmo também sustentou esta posição na sua obra Contra Celso, em que
contesta as argumentações ateístas de Celso, que insinua que os cristãos que fogem dos
seus algozes o fazem temendo as forças ocultas dos deuses romanos, que poderosamente
30
RUIZ BUENO, Daniel. Actas de los mártires. Madrid: La editorial Católica, 1951. p. 20.
31
Ibidem, p. 23.
32
Mt 10,23
23
os afugentavam. Sobre o tema Orígenes responde: “E se acontece que um cristão fuja,
não é por medo, mas para obedecer ao preceito de seu mestre, conservar-se livre e ajudar
na salvação dos outros”
33
. Se São Cipriano e Orígenes possuíam uma visão mais ampla
do conceito “Mártir”, foi o apologista africano Tertuliano, movido por um desejo de
resistência absoluta à moral difundida pelo mundo helênico, que se armou vorazmente
em defesa do martírio como forma de demonstração soberana de amor e fidelidade a
Cristo.
Extremista, Tertuliano se posicionou contra os pensadores que ofertavam a coroa
martírica aos cristãos que padeciam nos cárceres, nos desertos ou sofriam severas
necessidades em terras estrangeiras; segundo ele, a glória de tal sacrifício cabia apenas
ao que eram timas fatais nos tribunais romanos, entregues à morte para distração dos
cidadãos romanos nos espetáculos, onde eram comumente acuados e devorados por
animais selvagens. O testemunho ofertado nestes termos apresentava-se para o pensador
africano como incontestável prova de amor a Cristo, e fonte das recompensas celestes:
“Portanto, oh benditas!, por mais duro que seja o que sofres, pense que se pede o
exercício das virtudes da alma e do corpo. Bom combate irás celebrar, em que é Deus
vivo quem estabelece os prêmios aos lutadores, o Espirito Santo é o dono do estádio,
o guardião da coroa da eternidade, e da glória, que de durar seculos e seculos na
companhia das angélicas substancias nos ceus.”
34
Para Tertuliano, o fim perfeito se confirmava no martírio. Este seria o momento
ideal que os cristãos - até então anônimos em suas pequenas comunidades - teriam para
semear a mensagem cristã entre os espectadores dos grandes circos Romanos. A
resistência atlética de cada crente diante dos flagelos e da morte os transformaria em
inusitados heróis diante dos olhos romanos, acostumados a prestar culto a deidades que
não possuíam qualquer grau de cumplicidade amorosa com seus adoradores e em que a
morte ganhava contornos pouco atraentes para uma sociedade que se espelhava na
voluptuosidade de seus governantes e na fome de novas conquistas. A perseguição,
assim, tornou-se o objetivo eufórico de homens como o apologista africano, uma grande
oportunidade de triunfar soberanamente para além das acanhadas tentativas pessoais
para alcançar a Perfeição cristã e uma chance única de colocar em prova toda a
33
ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo. Editora Paulus, 2004. p.
650.
34
RUIZ BUENO, Daniel. Actas de los mártires. p. 388.
24
fidelidade a Cristo de uma maneira ruidosa, contrapondo-se ao poder do Império
Romano.
Será sob o olhar de Tertuliano que entenderemos o Martírio como tradução
irrepreensível de dedicação e imitação do Cristo; nossa escolha está ancorada na
similaridade que o pensamento do apologista possui em relação ao nosso objeto de
investigação, a teologia de Santo Inácio de Antioquia. Entre ambos existe uma harmonia
que se fortalece quando somada ao pensamento paulino que observou o cristianismo
pelo prisma do Deus crucificado.
Todas as características até aqui traçadas representam parte da imensa herança
martírica que no decorrer deste capítulo desaguarão na figura do Bispo de Antioquia, o
anfitrião que nos apresentará seus grilhões como pérolas e seu desejo de sacrifício como
fonte de sua crença na divindade de Cristo. Imersões nos escritos teológicos de Inácio,
em sua figura histórica e nas lendas que se construíram sobre sua pessoa farão com que
encontremos um dos maiores patriarcas de sua época e mbolo expiatório de uma
entrega perfeita.
Parte de sua constituição intelectual foi influenciada pelo pensamento de Paulo, o
que será fonte de vários elementos investigativos. Tal ligação entre o Bispo e o apóstolo
pode ser observada na correspondência de Inácio direcionada à comunidade de Efésios:
Vós sois o lugar de trânsito dos que são assumidos para Deus, iniciados nos
mistérios com Paulo, o santificado, que recebeu testemunho, e mereceu chamar-se
bem-aventurado, em cujas pegadas gostaria de encontrar-me na hora de estar com
Deus.”
35
H. Roester reforça tal aproximação quando afirma que: “Para Inácio, Paulo é,
portanto o mártir bem-aventurado em cujo discipulado ele quer seguir até a morte”
36
,
este parentesco intelectual entre ambos será de grande importância para nosso
desenvolvimento deste estudo, que será o apóstolo tardio que ofertará pesadas penas à
Carne levando Inácio aclamar: “Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para
amar a matéria”
37
. João, também habitará a consciência inaciana, com todas as suas
tensões fatalistas de uma Parusia que em breve arrebatará a todos com seu espetáculo de
35
Inácio de ANTIOQUIA. Efésios, 12,2.
36
KOESTER, Helmut.Introdução ao Novo Testamento: 2. História e literatura do cristianismo
primitivo. Tradução de Paulo Feine, Johannes Behm e Isabel Fontes Leal. São Paulo, Paulus,
2005. p. 307.
37
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos 7, 2.
25
dor e de punição aos que não se enquadraram na verdade Cristã. Moreschine e Norelli
38
mesmo não acreditando num contato direto da com o evangelho joanino por Inácio,
supõe que o mesmo o conhecia através da tradição oral, indicando como leitura outro
trecho da carta para Efésios onde resplandece a mística de João:
“Embora fossem honrados também os sacerdotes, coisa melhor porém é o Sumo-
Sacerdote, responsável pelo santo dos santos, pois só a Ele foram confiados os
mistérios de Deus. É Ele a porta para o Pai, pela qual entram Abraão, Isaac e Jacó, os
Profetas, os Apóstolos e a Igreja. Tudo isso leva à unidade de Deus.”
39
A mística inaciana torna-se uma mescla da tragédia narrada nos livros dos
Macabeus e o lamento de Paulo diante da condição humana, as visões joaninas de um
fim retumbante e a morte martírica que posteriormente foi exortada por homens como
Tertuliano. De certa forma, todas as cartas escritas às sete comunidades cristãs possuem
tais características, mas será na carta direcionada a comunidade localizada em Roma que
todas as questões teológicas se tornam evidentes e que o fim trágico se torna a opção
mais doce para que o velho Bispo alcance a Glória de Deus, na promessa de uma vida
plena, onde tudo que ele era seria transmutado em Perfeição, para longe da Carne que,
como veremos - nos arrasta a fraqueza de Adão. Devemos percorrer agora as veredas do
desejo de morte e Perfeição em Santo Inácio, a partir de suas cartas nas quais
paulatinamente compreenderemos as motivações que o conduziram ao Coliseu de Roma,
transformando seu martírio em um cortejo sacrificial, em um abate para a expiação de
muitos.
1.1. As cartas inacianas
A cidade de Antioquia era a quarta colônia de Roma em importância e para o
cristianismo nascente uma das principais rotas de encontro e expansão da Boa Nova. Sua
importância bíblica é incontestável, como podemos comprovar em Atos dos Apóstolos,
que narra o encontro de Barnabé, Paulo e outros crentes após a primeira dispersão
ocorrida depois da morte de Estevão:
“Entretanto, partiu Barnabé para Tarso, à procura de Saulo. De lá, encontrando-o,
conduziu-o a Antioquia. Durante um ano inteiro conviveram naquela Igreja e
38
Cf. MORESCHINE, Claudio e Enrico Norelli. História da Literatura Cristã Antiga: de Paulo à
era Constantina. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo. Edições Loyola, 2000. p. 166.
39
Inácio de ANTIOQUIA. Efésios. 9,1.
26
ensinaram numerosa multidão. E foi em Antioquia que os discípulos, pela primeira
vez, receberam o nome de cristãos.”
40
Foi também de Antioquia que Paulo e Barnabé saíram para iniciar o processo de
evangelização (At 13.1ss), foi nesta cidade que Paulo e Pedro debateram sobre a
legitimidade da partilha da mensagem cristã para os gentios (Gl 2.11-14); foi de que
Santo Inácio foi capturado para padecer na capital Romana.
Segundo Rops, a Antioquia do período inaciano poderia ser descrita como:
“Riquíssima, cosmopolita, sofrivelmente dissoluta como a maior parte das cidades
helênicas, era um desses lugares de encontros, de reuniões e de sincretismo, como tantos
havia então no Oriente.”
41
Estas definições podem nos auxiliar a compreender os
inúmeros problemas que Inácio enfrentou em uma terra onde templos pagãos afrontavam
sua vontade de triunfar sobre suas seduções, que para sua decepção, influenciavam
muitos homens a se prenderem em seus anzóis de vaidade
42
. Para uma insurreição
vitoriosa, para literalmente desestabilizar as estruturas helênicas e seus deuses cheios de
atrativos mundanos, se fazia necessário a criação de uma organização diferenciada que
ofertasse parâmetros singulares de e moral a ser adotada uniformemente por todos os
cristãos, uma resistência pacífica, numa terra onde colunas eram erigidas a deus dos
rebanhos e a Afrodite deusa do amor.
A necessidade de criar um corpo doutrinal homogêneo transformou a trajetória
de Inácio a caminho da morte em um esforço intelectual de ofertar diretrizes as
hierarquias ainda embrionárias do cristianismo; mesmo não havendo uma ordenação
sistemática em suas correspondências, podemos encontrar nelas todas as diretrizes que
moldariam o pensamento da Igreja Católica. Nosso intuito em apresentar os principais
conceitos teológicos destacados nas cartas inacianas é o de ressaltar sua imensa
influência na história do cristianismo e compreender o conjunto de suas idéias como um
testamento de morte aos que em vida, viveriam sobre a sombra de suas recomendações
paternas.
Muitos fatos sobre a vida de Inácio se perderam no tempo. De seu bispado, por
exemplo, não possuímos qualquer narrativa; sua figura obscura imortalizou-se aos
sessenta anos de idade, a caminho de sua morte: “Rezai pela Igreja da Síria, donde sou
40
Atos 11, 25-26.
41
ROPS, Henri Daniel. História da Igreja de Cristo I:A igreja dos apóstolos e dos mártires. p. 53.
42
Cf. Inácio de ANTIOQUIA. Magnésios. 11,1.
27
levado preso para Roma.”
43
Acredita-se que as famosas correspondências inacianas
foram emitidas diretamente aos representantes responsáveis pela evangelização em
determinadas comunidades, que foram ter com o Bispo uma última audiência, antes da
consumação de seu martírio sob o Império de Trajano.
Sete grandes comunidades cristãs foram beneficiadas com a catequese inaciana:
Efésios, Magnésios, Tralianos, Romanos, Filadélfios, Esmirnenses e os discípulos de
São Policarpo, que conforme narra a tradição “beijou as cadeias de Santo Inácio quando
este passava por Ermirna a caminho do martírio”
44
. A influência de seus conselhos
pastorais possuiu um valor incontestável, ocasionado por sua posição privilegiada diante
das comunidades citadas; o fato de Eusébio de Cesárea considerá-lo o segundo Bispo de
Antioquia
45
- o que oferta a Inácio um papel mediador entre a última geração de
apóstolos e o período pós-apostólico
46
pode exemplificar como as palavras do velho
Bispo ecoaram dentro da tradição cristã.
Dispersas entre as cartas, encontramos temas que se tornaram pilares da nova fé:
o papel do Bispo como regente máximo das comunidades, a função dos presbíteros e
diáconos, a Unidade da Igreja Católica, a doutrina da Encarnação e da Ressurreição
como combate às teses docetistas, o dogma da Virgindade de Maria, um dos primeiros
esboços explicativos da Trindade, o valor do Batismo, a necessidade da comunhão
Eucarística e a narrativa do Martírio como morte perfeita. Estes temas serão brevemente
relatados neste capítulo, porém, como cada um deles compõe discussões amplas,
simplesmente nos deteremos em apontar as argumentações inacianas sobre as mesmas.
De certa forma, todas as sete correspondências desaguam na carta aos Romanos,
marco da patrística, e alvo que seguiremos atentamente, que ela é o resumo
testemunhal de todas as demais reflexões. Nossa investigação terá como norte o
pensamento martírico de Inácio, ou seja, notando como suas colocações dogmáticas se
tornaram um porto seguro para sua concepção de vida e morte cristã. Assim, para
assegurar a existência eterna de muitos, se fazia necessário a instauração de um clero
conciso que transformasse toda a mensagem num processo pastoril unificado. Tal
43
Inácio de ANTIOQUIA. Efésios. 21,2.
44
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vida dos santos. Traduzido por Hilário Franco Júnior.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 239.
45
EUSÉBIO, Bispo de Cesárea. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas do
Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo. Editora Paulus, 2000. Cap.22. p. 139.
46
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: 2. História e literatura do cristianismo
primitivo. p. 300.
28
preocupação com a dispersão do rebanho encontra-se na carta dirigida aos fiéis de
Magnésios 6,1, onde Inácio determina a autoridade máxima do Bispo
47
dentro da
comunidade cristã:
“Esforçai-vos por fazer tudo na harmonia de Deus, sob a presidência do Bispo em
lugar de Deus e dos presbíteros em lugar do colégio dos apóstolos e dos diáconos,
particularmente queridos, encarregados do serviço de Jesus Cristo, o qual antes dos
séculos estava com o Pai e nos últimos tempos se manifestou.”
48
Esta diretriz tornou-se a mais polêmica de suas declarações, pois transforma o
Bispo num intercessor entre Deus e os Homens; sua presença equivale à do próprio
Cristo: “Torna-se pois evidente que se deve olhar para o Bispo, como para o próprio
Senhor.”
49
. Será através da figura do Bispo que a Unidade da Igreja irá se organizar; a
presença deste funda a eclesiologia nas correspondências inacianas, em que os
presbíteros também ganham uma posição de destaque: “Segue daí, que vos convém
avançar junto, de acordo com o pensamento do Bispo, como aliás fazeis. Pois vosso
presbitério digno de tão boa reputação, digno que é Deus, sintoniza com o Bispo como
cordas com a cítara.”
50
Uma vez atando o presbítero ao seu Bispo, coube ao mártir determinar o papel do
diácono: “Quem se encontra no interior do santuário é puro, isto é, quem pratica alguma
coisa sem o Bispo, o presbitério e o diácono, este não é puro em sua consciência.”
51
Instituindo assim uma pirâmide eclesial, centralizando a Igreja como coração de uma
rede de relações hierarquizadas. Inácio ofertava aos seus fiéis faces humanas a se
obedecer, como espelhos para se alcançar o Paraíso. Mas sempre ressaltando que cabe
ao Bispo a supremacia entre os demais, pois: “Onde quer que se apresente o Bispo, ali
47
A autoridade do Bispo claramente defendida por Inácio dentro da unidade da Igreja Católica foi
altamente contestada pela reforma protestante, onde a autenticidade das cartas foi questionada.
Depois de uma investigação criteriosa, o teólogo protestante J.B.Lightfoot comprovou a
autenticidade das sete cartas em sua versão média, na sua grande obra “The Apostolic Father”,
publicada em 1889, em três volumes. Seu parecer entra em conformidade com o escrito de
Eusébio de Cesárea sobre as mesmas cartas em sua “História Eclesiástica” (III,36). Porém, se a
comprovação histórica se confirmou, as declarações contidas nas mesmas ainda é fonte de
controvérsias, que não serão aqui esmiuçadas, pois nos conduziriam a uma investigação outra.
48
Inácio de ANTIOQUIA. Esmirnenses, 8,2.
49
Ibidem, Efésios, 6,1.
50
Ibidem, Efésios. 4,1.
51
Ibidem, Tralianos. 7,1.
29
também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos
assegura a presença da Igreja Católica”
52
.
Mais que regentes, crentes e o próprio local de culto, a Igreja em Inácio se define
como “Igreja Católica”, isto é, “universal”. O santo condensou numa só expressão
diversos corpos no corpo stico de Cristo, cabendo aos fiés a imensa responsabilidade
de sustentar sua divindade, seu crânio majestoso, como reitera Paulo: “vosso corpos são
membros do Cristo”
53
. Sob o cajado de Inácio, o Bispo torna-se portador da presença
divinal e a Igreja um corpo único.
Tendo esboçado, ao longo das cartas, conselhos para uma boa organização
eclesial da Igreja, se fazia necessário advertir especificamente os crentes para os
discursos influentes de dois grupos de opositores, que negavam a Encarnação e a
Ressurreição de Cristo. O primeiro, conhecido como “docetista”, não acreditava na
existência terrena de Jesus; a idéia que vigorava entre eles estava ligada à
“impossibilidade, ante a impureza da matéria, de o Cristo ser de Carne humana, sendo o
seu corpo apenas aparente, o que demonstrava o caráter ilusório da Crucificação, da
Ressurreição e da Ascensão de Cristo.”
54
. Inácio se posicionou contra as heresias
proferidas por estes teóricos quando escreveu: Se, porém, como afirmam alguns que
são ateus, isto é, sem fé, Ele tivesse sofrido aparentemente - eles é que só existem
aparentemente - eu por que estou preso, por que peço para combater com as feras?.”
55
Ele reforça também o conceito de Ressurreição como parte do plano divino: “O
qual de fato também ressurgiu dos mortos, ressuscitando-O o próprio Pai.”
56
. Para
reafirmar a humanidade de Cristo, Inácio tomou para si a pessoa de Maria, tanto para
comprovar a encarnação do Filho como para sustentar o milagre da concepção virginal
da mãe de Jesus: “Pois nosso Deus, Jesus Cristo, tomou Carne no seio de Maria segundo
o plano de Deus, sendo de um lado descendente de Davi, provindo por outro do Espírito
Santo”
57
, assumindo como verdade a pureza matriarcal: “Permaneceu oculta ao príncipe
deste mundo a virgindade de Maria e seu parto, como igualmente a morte do Senhor:
três mistérios de grande alcance, que se processam no silêncio de Deus.”
58
O Bispo de
52
Ibidem, Esmirnenses, 8,2.
53
1 Cor 6,15.
54
AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário histórico das religiões. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2002. p. 133.
55
Inácio de ANTIOQUIA. Tralianos, 10,1.
56
Ibidem. Tralianos, 9,2.
57
Ibidem. Efésios 18,2.
58
Ibidem, Efésios19, 1.
30
Antioquia ainda em combate vigoroso contra os docetas renova as palavras do apóstolo
João: “sabendo que o Pai tudo pusera em suas mãos e que ele viera a Deus e a Deus
voltava”
59
, escreveu às comunidades de Magnésios: “Acorrei todos ao único templo de
Deus, ao único altar do sacrifício, a um só Jesus Cristo, que saiu de um só Pai,
permaneceu Num e a Ele voltou.”
60
. Uma vez entoando os cânticos evangélicos de
um Deus, o mártir insere os primeiros passos para a explicação trina do credo cristão:
“Cuidai por conseguinte de permanecer firmes nas doutrinas do Senhor e dos Apóstolos,
para que tudo quanto fazeis se encaminhe bem na Carne e no espírito, na fé e na
caridade, no Filho e no Pai e no Espírito, no começo e no fim.”
61
.
O último grupo combatido por Inácio será o dos “judaizantes”, homens que,
segundo Inácio, estavam atados às antigas Leis, sem se dar conta de que com Cristo a
Lei havia se cumprido plenamente: “Não vos deixeis iludir pelas doutrinas heterodoxas,
nem pelos velhos mitos sem utilidade. Pois se ainda agora vivemos conforme o
judaísmo, confessamos não ter recebido a graça.”
62
e também: “Para mim, documentos
antigos são Jesus Cristo; para mim, documentos invioláveis constituem a Sua Cruz, Sua
morte, Sua Ressurreição, como também a fé que nos vem d’Ele!.”
63
Como podemos observar, em Inácio se estabelecem mais que simplórias
recomendações às comunidades em perigo; nelas se pode encontrar minúcias da doutrina
católica que se consolidaria séculos à frente, além de uma prévia dos desafios que os
intelectuais cristãos enfrentariam diante das muitas interpretações do evangelho.
De forma sinuosa, todos os escritos parecem preparar seus leitores para a Carta
aos Romanos, em que as recomendações se tornam mais pessoais e em que o Bispo
descreve mais sobre si e suas intenções de alcançar a santidade por meio do martírio. As
referências ao sacramento do batismo na carta a Policarpo apontavam para a
necessidade de permanecer fiel a Deus alistando-se entre seus soldados:
“Procurai agradar Àquele sob cujo estandarte combateis, de quem igualmente
recebeis o soldo. Que não se encontre desertor entre vós. Vosso batismo há de
permanecer como escudo, a como capacete, o amor como lança, a paciência como
armadura.”
64
59
Jo 13,3.
60
Inácio de ANTIOQUIA. Magnésios. 7,2.
61
Ibidem. Magnésios. 13,1.
62
Ibidem. Magnésios 8,1.
63
Ibidem. Filadélfios, 8,2.
64
Ibidem. Policarpo. 6,2.
31
O sacramento ganha contornos de combate contra o mundo helênico, uma renúncia
à vida longe dos desígnios de Cristo, um “morrer” simbólico para todos os encantos
romanos. Quando o apóstolo Paulo escreve: “Pelo Batismo nós fomos sepultados com
Cristo na morte, a fim de que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória
do Pai, assim também nós vivamos vida nova.”
65
, atesta que a imersão nas águas
batismais chamava os crentes a uma participação intensa na Paixão do Cristo, que com
seu sangue, tal qual água límpida, purificou os pecados do mundo. Diante de tal fato, o
sangue do mártir - útil em seu poder de difundir o evangelho mostra-se sempre uma
oferta simplória. Na ceia do Senhor, porém, o sacrifício poderia ser compartilhado por
todos dos que ascendiam ao martírio até o pequenino cristão solitário em sua caminhada
para a imitação de Cristo no cotidiano: “A participação na Eucaristia é tão necessária,
que só ela decide se alguém é cristão ou não é
66
. A idéia na qual a abstração cristã
chega próxima ao seu ápice (na concepção católica de comunhão) fechará nossa
apresentação sobre o conteúdo das cartas inacianas, que nossa intenção neste estudo é
nos concentrarmos na morte martírica e solitária de Inácio, investigando os dados que o
aproxima da Animalidade enquanto face da natureza tão veemente renegada pelo
cristianismo. Para tanto, nos dedicaremos a estudar a transmutação da concepção de
“Carne” dentro das cartas paulinas para o conceito de “Corpo” nos escritos inacianos, no
intuito de mapear seu desejo de morte e Perfeição enquanto negação da frágil
carnalidade humana.
1.2. Carta aos Romanos: A noção de Carne como Corpo
Para uma melhor compreensão do tema aqui proposto - a relação entre Carne e
Corpo - examinaremos o conceito de Carne dentro do pensamento paulino, a partir da
análise formulada pelo teólogo James. D.G. Dunn em sua obra A Teologia do Apóstolo
Paulo. Decifrar a concepção do apóstolo em relação à Carne nos auxiliará a observar as
mutações que o termo sofreu em solo helênico e o quanto o mesmo repercutiu no
conceito inaciano de Corpo. Assim, iniciarmos nossas investigações a partir do enfoque
que o autor J. Dunn lança sobre os termos gregos “Soma” (Corpo) e “Sarx” (Carne) nos
escritos de Paulo. Para o Apóstolo, Corpo e Carne ganham significados distintos. O
primeiro diz respeito à unidade cristã, ou seja, a ação de cada cristão junto à sociedade,
65
Ibidem. Romanos.. 6,4
66
Inácio de ANTIOQUIA. Introdução. p. 32.
32
como o teólogo nos esclarece: “Denota a pessoa corporificada em determinado
ambiente. É o meio pelo qual a pessoa se relaciona com esse ambiente e vice-versa”
67
;
entende-se, portanto, que Soma é o modo do homem agir no mundo, as suas inter-
relações dentro do corpo social, para além de uma classificação simplista ou
mecanicista da anatomia humana. Quando Paulo declara: “Vossos corpos são membros
de Cristo”
68
, devemos entender por “membros” cada crente, que compõe a estrutura do
corpo stico cristão, caracterizado pela dedicação cotidiana de cada fiel para a
fortificação da comunidade. O Corpo para o Apóstolo, possui uma dimensão social,
ética, que devia ser preservada e zelada pelos demais crentes. Porém, se a ação de cada
cristão influenciava o movimento interno do grupo, esta não inibia o poder imposto pela
Sarx, que convocava cada fiel a um combate solitário entre o Espírito e os muitos
anseios da Carne. Segundo James Dunn, para Paulo, a “Sarx” torna-se literalmente o
campo de batalha entre o homem antigo e o novo homem representado por Cristo, como
verificamos nas palavras do estudioso:
“Paulo andou sobre uma estreita linha entre considerar a Carne como
irremediavelmente falha e tratá-la como ativamente antitética e hostil a Deus (...)
Mas o fio condutor ao longo de tudo é a fraqueza e a corruptibilidade da Carne, de
modo que a vida vivida nesse nível ou caracterizada por esse nível está destinada
inevitavelmente à morte”.
69
Adão que falhou na Carne, reencontra na materialidade de Cristo a cura para a
chaga que se proliferou por toda a humanidade que, fadada à morte, rebaixou-se “ao
nível do animal de satisfazer apenas os apetites e desejos humanos.”
70
Afastando-se do
céu, o homem aproximou-se perigosamente da terra, misturando-se às suas impurezas.
Este estágio inferior condenou-os “a uma inevitável dimensão de pecado, de falha e
transgressão”
71
; por isso, para Paulo, a situação humana diante de Deus é extremamente
frágil. Os homens são como filhos adotivos que possuem como fardo o peso da Carne,
habitat natural do pecado: “De fato, o desejo da Carne é a morte, ao passo que o desejo
do espírito é a vida e a paz, uma vez que o desejo da Carne é inimigo de Deus: pois ele
67
DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo,
Paulus, 2003 . p. 87.
68
1 Cor 6,15.
69
DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. p. 99.
70
Ibidem, p. 99
71
Ibidem, p.137.
33
não se submete à lei de Deus, e nem o pode, pois os que estão na Carne não podem
agradar a Deus”
72
.
Carne e Morte, para o apóstolo, são elementos inseparáveis: a primeira, ofensiva
em sua natureza efêmera, atrai para si a segunda, como punição à sua constante rebeldia
adâmica; aqui a figura sombria da morte, intrinsecamente ligada ao pecado, diz respeito
diretamente ao fim biológico do homem, da estrutura que decomposta expõe a todos a
sua vulnerabilidade. A putrefação, como modelo exemplar da condenação comum a
todos os seres vivos, conduziu o fiel cristão a encontrar no estado nauseante do corpo
disforme o mesmo destino que os espíritos escravizados pela Carne experimentarão
num lugar reservado aos homens desobedientes, que pela via do pecado petrificaram
seus Espíritos, transformando-os em algo semelhante à matéria impura. Para estes
homens guiados pela Carne -, será negado a incorruptividade destinada unicamente
aos que seguiram fielmente os passos do Nazareno. A veemente afirmação: “Os que
estão na Carne não podem agradar a Deus”
73
ressalta o aspecto quase metafísico que a
Sarx ganhou no Evangelho paulino, para o qual somente a Carne irrepreensível de
Cristo deveria ser reverenciada e imitada; pois seria através da superação da matéria que
os crentes se transmutariam num recipiente límpido, prontos para a Parusia.
Assim, em Paulo, um matrimônio pacífico entre Corpo e Carne se torna
inquietante: embora não se oponham frontalmente, ambos pertencem a núcleos
próprios, que por força da fraqueza humana podem se tocar, mediados principalmente
pelo erro. Quando interpretamos o versículo de Paulo: “Pois os que são de Cristo Jesus
crucificaram a Carne com suas paixões e seus desejos”
74
e Inácio em Romanos:
“Portanto, que o pecado não impere mais em vosso corpo mortal, sujeitando-vos às suas
paixões.”
75
, observamos como a influência da Carne poderia interferir na unidade
corporal dos participantes da Igreja, através da força do efêmero, que possui o poder
inato de transformar os servos piedosos de Cristo em escravos condenados aos prazeres
terrenos.
Porém, no transcorrer da história cristã, os conceitos paulinos até aqui
analisados sofreram mutações. Soma e Sarx se aproximaram de forma promíscua,
alinhando-se em um mesmo patamar decaído, até então inédito dentro do pensamento
72
Rm 8,6-8.
73
Rm 8,8.
74
Gl 5.16-17.
75
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos. 6.12
34
paulino. Vamos verificar como se deu esta transformação dentro do pensamento
inaciano e suas conseqüências no discurso de salvação do mártir. Possivelmente as
alterações do significado dos termos “Carne” e “Corpo ocorreram no período
patrístico, na tentativa teológica de inibir as argumentações gnósticas disseminadas
nos primeiros séculos cristãos - que veementemente negavam a participação da Carne
na encarnação do Cristo. Para tal comprovação, recorreremos novamente à análise do
teólogo James Dunn, que lançará luzes sobre a dispersão que os conceitos adquiriram
em solo helênico:
com Inácio de Antioquia a necessidade de combater o gnosticismo exigiu a
insistência em que foi a Carne de Jesus que foi ressuscitada. E subseqüentemente na
helenização do pensamento cristão os aspectos negativos da carnalidade tornaram-se
cada vez mais ligados à corporeidade humana e em grande medida à função criativa
da sexualidade
”.
76
Em Inácio e no cristianismo primitivo - a diferença entre Carne e Corpo se faz
nebulosa, fato que se verificará tanto nos relatos hagiográficos posteriores como na
construção de um significado unificador. Segundo Koester
77
, apesar de este ter
conhecimento dos textos paulinos, existe em Inácio um esquema dualista em relação a
Carne e Espírito, onde a corruptibilidade do corpo é mais palpável que a metafísica do
pecado. Para além de um empobrecimento semântico, o beato arrastou o Corpo (com
sua carência de prazeres e alimento) para um patamar semelhante ao da Carne,
aproximando-os num mesmo campo simbólico, em que será imposta ao Corpo a imensa
responsabilidade de resguardar o Espírito de todos os malefícios criados para
satisfazerem a Carne em sua corporeidade. Diferentemente da dicotomia gnóstica, a
preocupação de Inácio não estava em denegrir a Carne, mas em entendê-la como uma
força que afrontava os homens pela via da materialidade; assim, para bloquear a
ascensão dos desejos mundanos, se fazia aconselhável preservar o Corpo de todas as
impurezas do mundo.
Peter Brown em seu livro Corpo e Sociedade investiga a questão do Corpo no
cristianismo nascente, destacando a influência dos escritos de Paulo nas concepções
76
DUNN, G. James. A teologia do apóstolo Paulo, p. 105.
77
Cf. KOESTER, Helmut.Introdução ao Novo Testamento: 2. História e literatura do
cristianismo primitivo. p. 299.
35
posteriores de Soma. Na citação que se segue, podemos verificar o casamento entre
os termos:
“Em todos os escritos cristãos posteriores, a noção de Carne inundou o corpo de
associações perturbadoras: de algum modo, enquanto Carne, as fraquezas e
tentações do corpo faziam eco a um estado de desamparo e até de rebeldia diante de
Deus, estado esse que era maior do que o próprio corpo”.
78
O atrito entre Soma e Sarx formulado pelo apóstolo não desapareceu por
completo, porém outra lógica lhe foi agregada: nesta. o Corpo não seria mais entendido
como Corpo social, mas como meio para se atingir e domar a fome transgressora da
Carne. Referindo-se a Inácio, o mesmo pesquisador destaca os desejos que o santo
reservava em relação à moral dos membros de suas comunidades: “Quando Inácio deu
conselhos práticos às igrejas, o mundo por que ansiava era baseado numa sexualidade
ordeira.”
79
.
Nesta existência “ordeira”, as palavras do santo: “Não me agradam comida
passageira nem prazeres desta vida”, deveriam ressoar como parte de seu testemunho de
vida e patrimônio a ser compartilhada pelos demais fiéis.
O reflexo casto das palavras de Paulo: “Fugi à fornicação. Todo outro pecado
que o homem cometa, é exterior ao seu corpo; aquele, porém, que se entrega à
fornicação, peca contra o próprio corpo.
80
, incitou os seus seguidores a encontrarem na
retenção dos desejos, no celibato
81
do próprio Cristo, o caminho para a Salvação. Inácio
compreendeu a mensagem
82
; seu Corpo e Carne permaneceram intactos para serem
entregues em estado incorruptível para o sacrifício, que eliminaria as astúcias da Carne
na dolorosa mortificação do Corpo. A conduta celibatária possuía como intuito maior
preservar o homem de um contato direto com o pecado original; cada passo distante de
Adão podia significar um passo a caminho de Jesus. Tertuliano, conhecido entusiasta da
abstinência sexual e da rigidez moral, afastado da idéia concebida por Paulo em
78
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
cristianismo primitivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1990. p.
51.
79
Ibidem, p. 59.
80
1 Co 6,18.
81
Cf. 1Co 7,8.
82
Nos escritos sobre a vida de Santo Inácio de Antioquia, não existem registros sobre qualquer
relação amorosa ou de matrimônio.
36
relação à Sarx, anunciava: “Nenhuma alma alcança a salvação, se não estiver unida a
Carne, a Carne é o fundamento da salvação”
83
.
O apologista - participante da releitura do termo - defende a Carne como
incontestável participante da Parusia. Porém, esta Carne deveria ser pura, incorruptível,
eis a nova característica do homem redimido. A Carne em Tertuliano é a que
permaneceu soberana diante de sua natureza volúvel, encerrada em seu invólucro
corporal, unidos como irmãos nas virtudes e também na tendência à permissividade.
Assim, seria através do Corpo que os candidatos ao Paraíso deveriam eliminar as
tentações exercidas pela Carne, pois se se admitisse que a glorificação de Deus se daria
em nosso corpo
84
e que Cristo condenou o pecado em sua Carne
85
, poderíamos conceber
o aparecimento de Jesus aos apóstolos como prova da vitória do Corpo enquanto
estrutura sensível em relação à cadência sensualista da Carne que, porém, mantinha-se
vivaz nas chagas que Tomé tocou. Esta, no entanto se encontrava em sua versão
domada e cil, santificada pela ascensão da virtude sobre sua tendência à selvageria
irascível.
O Corpo social de Paulo perdeu-se na corporeidade de cada cristão. O aspecto
quase fantasmagórico da influência da Carne na vida humana inseriu-se na
materialidade visível e muitas vezes aviltante do Corpo, com sua perenidade, seus
odores e sua decadência estética. Uma vez mescladas, unificadas, não havia meios de
poupá-las “do peso aterrador de Deus”
86
, como teorizou Tertuliano em relação a esta
extensão falha, semelhante ao velho “Adão, vencido e afastado do paraíso”
87
, conforme
palavras de Ireneu. O Corpo cristão, na tentativa de tornar-se apto para assemelhar-se ao
seu soberano escultor, deveria estar disponível ao martírio ou, num grau menor à
obediência. Suportar a abstinência, os longos jejuns, a perseguição e até mesmo a
castração como símbolo de
88
, auxiliava os homens a experimentar a dor de sacrificar
o Corpo em prol do reino vindouro.
83
CORBELLINI, Vital. A na Ressurreição da Carne em Tertuliano. Teo Comunicação. Vol.
37, no. 156 (2007) p. 273-283
84
Cf. 1Cor 6,20.
85
Cf. Romanos. 8,3.
86
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
cristianismo primitivo. p. 67.
87
IRENEU, Bispo de Lião. Contra as Heresias. Tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus,
1995. p. 543.
88
São Justino narra a seguinte história: “Nós, ou nos casamos desde o princípio para única
finalidade de gerar filhos, ou renunciamos ao matrimônio, permanecendo absolutamente castos.
Para vos mostrar que a união promíscua não é um mistério que celebramos, houve o caso que um
dos nossos apresentou um memorial ao prefeito Félix em Alexandria, pedindo-lhe que
37
Quando Inácio aconselha os fieis: “Não quero que procureis agradar a homens,
mas que agradeis a Deus, como de fato agradais”
89
ou “Já não quero viver à maneira dos
homens.”
90
, observamos o quanto ele desejava se afastar “de todo colorido estranho”
91
ofertado pelo mundo, acreditando encontrar em tudo a imagem do exílio de seu
ancestral feito de barro. Para se libertar do rastejar das serpentes, da vergonha da queda,
para resistir a este mundo hostil, se fazia necessário que “este ser corruptível seja
revestido da incorruptibilidade”
92
, como idealizava Ireneu. Mas, para tornar-se
incorruptível se fazia necessário identificar o que era o “corruptível”, para que este fosse
reconhecido, temido e afugentado por todos que não deveriam assemelhar-se com ele.
1.3. A Carne Humana como Carne Animal
O papel funesto de representar a face indomável da natureza decaída foi
direcionada à união entre a “Carne pecadora” e a “irracionalidade animal”. O que antes
havia sido fruto de contentamento para Deus no Livro do nesis
93
, agora
simbolicamente transforma-se na face dos impulsos sexuais e na violência dos que
tinham em suas artérias o sangue de Caim. A maldição que assolou Adão também se
estendeu a todos os habitantes da terra: “que cessam de falar uma língua comum”
94
e,
expulsos, transformaram a face da terra em um combate constante, em que a
sobrevivência de um está condicionada a dois fatores: a morte e o devorar o outro.
Expressar-se de forma pejorativa sobre atos transgressivos dando aos mesmos uma
correspondência animal não é incomum na tradição judaico-cristã; Irineu de Lião, por
exemplo, lembrava seus fiéis o quanto os antigos sábios do Velho Testamento se
referiam aos homens que, conduzidos pelos prazeres da Carne, se tornavam
desobedientes às Leis:
autorizasse seu médico para cortar-lhe os testículos, pois os médicos daquele lugar diziam que tal
operação não podia ser feita sem permissão do governador. Félix negou-se absolutamente a
assinar o pedido e o jovem permaneceu solteiro, contentando-se com o testemunho de sua
consciência e o de seus companheiros na fé.” (JUSTINO, Mártir, I e II Apologia. p. 45.)
89
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos. 2,1.
90
Ibidem. Romanos. p.7,1.
91
Ibidem. Romanos. p. 64.
92
IRENEU, Bispo de Lião. Contra as Heresias. p. 551
93
Gn.1,24-25: “Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo a sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo a sua espécie’ e assim se fez. Deus fez as feras segundo a sua
espécie, os animais domésticos segundo a espécie e todos os répteis do solo segundo a sua
espécie, e Deus viu que isso era bom.”
94
DUNN, G. James. A teologia de Paulo, p.121.
38
“Já os profetas, por estes mesmos motivos, equipararam-nos aos animais irracionais.
Assim, por causa de sua conduta contrária à razão, diziam: ‘Tornaram-se como
garanhões no cio, cada um relinchando para a mulher de seu próximo.’; e ainda: ‘O
homem que tinha sido acumulado de honra, se tornou semelhante aos jumentos’; é
por sua culpa que o homem se torna semelhante aos jumentos emulando sua vida
irracional. Também nós costumamos chamar essas pessoas de jumentos e de
brutos”
95
.
A ligação entre os animais e a violência como seres que, como a Carne, se
opõem a Deus intensificou a exteriorização do mal na figura dos irracionais, tanto de
seu cio promíscuo e sem vínculo de parentesco, como de seu fim anônimo, comumente
renegado à decomposição no relento. A corruptibilidade terrena dos homens se
assemelhava a estes seres, que se tornaram lembranças móveis de uma convivência
anteriormente pacífica que se desfez pela intercessão de uma única serpente. Este tema é
destacado por J. Dunn, dentro do pensamento paulino, quando comenta:
“Mas a humanidade cometeu o equívoco de pensar que podia alcançar uma relação
mais satisfatória com o mundo, se se libertasse da sua relação com Deus (...) Em
conseqüência, a humanidade caiu quando pensava levantar-se, tornou-se insensata e
não sábia, mais aviltada e não superior. Negou sua semelhança com Deus e preferiu
a semelhança com os animais e as coisas.”
96
Retratos do vil são exatamente os animais que abrilhantaram a morte de muitos
mártires; nestes espetáculos, a natureza confrontava-se diretamente com a fé. A Carne
pedante entraria em contato direto com a carne em estado bruto dos animais, que contêm
em si todas as características de um mundo próximo do demoníaco, em que o não
reconhecimento da divindade de Cristo unificava animais e platéia num mesmo coro
profano. Entregar-se a este contato colocava duas forças decaídas em combate: o contato
entre as Carnes dos animais e a dos filhos de Adão, exaltava o poder do Espírito cujo
destino é superior ao do Corpo, que participa como espectador do desmantelamento de
sua morada provisória na terra. O período histórico em que o cristianismo primitivo
estava encerrado também colaborou para que esta dinâmica conflitante entre os
seguidores do nazareno e a morte ocasionada por animais selvagens marcasse o
espelhamento entre a fúria dos predadores e os representantes do Império (legisladores,
95
IRENEU, Bispo de Lião. Contra as Heresias. p. 536.
96
DUNN, G. James. A teologia de Paulo. p. 138.
39
governadores, torturadores) em uma mesma imagem opressora: “Os pobres miseráveis
condenados às feras nem sequer podiam esperar por um antagonista humano. O horror
surrealista da damnatio ad bestias, da condenação às feras selvagens estava em se
permitir que o humano sucumbisse totalmente ao animal”.
97
Os animais, que desde o princípio da criação tinham como sina a obediência aos
homens, como destaca Orígenes: O Criador, portanto, colocou-as todas a serviço do
animal racional e de sua inteligência natural”
98
, no período martírico foram utilizados
como meio de punição pelo Império Romano, fato que se inverte pela vontade dos
cristãos de morte pela mordedura dos animais. A carta aos Romanos de Santo Inácio nos
oferta um exemplo precioso sobre o tema:
“Desde a Síria, venho combatendo com feras até Roma, por terra e por mar, de noite
e de dia, preso a dez leopardos, isto é, a um destacamento de soldados, que se
tornam piores quando se lhes faz o bem. Por seus maus tratos, porém, estou sendo
mais instruído, mas nem por isso estou justificado. Oxalá goze destas feras que me
estão preparadas, rezo que se encontrem bem dispostas para mim, para que me
devorem depressa, e não aconteça o que aconteceu com outros: que, amedrontadas,
me não toquem”.
99
Um destacamento de soldados são para Inácio como “dez leopardos”,
embrutecidos não exatamente pela função exercida, mas pelo pecado a eles associados,
em que descrença e brutalidade se misturam. A hostilidade destes “animais” ofertava
ao Bispo uma prévia do que seria o encontro com as bestas no Coliseu de Roma. A
tortura, comumente, intermediava o choque dos mártires com as feras. A técnica nela
utilizada era bem variada: pentes, garfos, garras de ferros e o cutelo, cumpriam a função
de retirar de suas vítimas o arrependimento; eram como artifício que tinham como
intuito desviar os fiéis de sua missão heróica de proclamar o evangelho na entrega de sua
própria vida. Os guardas que acompanham Inácio, os torturadores que abundam nos
relatos de Eusébio de Cesaréia ou na tradição hagiográfica, são seres que são
intermediários entre esta existência mundana e a ânsia carnívora das feras. Átalo, um dos
mártires mais conhecidos da Gália, narrado no quinto livro da História Eclesiástica
aponta para esta aproximação nem sempre óbvia:
97
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do
cristianismo primitivo. p. 72.
98
ORÍGENES. Contra Celso. p. 358.
99
INÁCIO, de Antioquia. Romanos. 5,1-3.
40
“Átalo, sentado na cadeira de ferro onde era queimado, enquanto se exalava o odor
do corpo assado, disse à multidão em latim: ‘Vede. Devorar homens é o que fazeis.
Nós, porém, não somos antropófagos e não praticamos crime algum’”
100
.
O contato direto com a irracionalidade tinha seus anfitriões “antropófagos”, seus
“leopardos” em forma humana, munidos de técnicas que, semelhantes aos animais
utilizados nas arenas, buscavam enfraquecer os crentes por meio da dor infligida.
Porém, aos sobreviventes de todo o tipo de tortura antropofágica, restava, enfim, o
combate derradeiro entre Homem e Natureza. O Corpo, com suas fornicações, impurezas
e libertinagem, entraria em contato direto, nos estádios romanos, com a cegueira
irracional de leões, leopardos, touros e cães, ocasionando uma difícil distinção entre elas.
A distinção feita por Paulo: “Nenhuma Carne é igual às outras, mas uma é a Carne dos
homens, outra a Carne dos quadrúpedes, outra a dos pássaros e dos peixes”
101
, num
recinto de animais esfomeados e humanos encurralados, poderia se tornar pouco clara. O
próprio Inácio, prevendo seu destino, não ignora esta mistura de seres:
Deixai-me ser comida para as feras, pelas quais me é possível encontrar Deus. Sou
trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro
de Cristo. Acariciai antes as feras, para que se tornem meu túmulo e não deixem
sobrar nada de meu corpo, para que na minha morte não me torne peso a
ninguém”.
102
Um corpo sepultado entre os dentes de feras como desejo testemunhal coloca
Inácio acima da força indomável da natureza, para muito além das impurezas da Carne e
indiferente às duas forças terrenas até então soberanas em sua época: o Império Romano
e a força ainda expressiva dos animais selvagens. A morte do Bispo de Antioquia,
desfeito em mordeduras em conformidade com sua vontade, impunha aos seus
seguidores a necessidade de dar um fim honroso aos seus restos mortais. Obviamente, a
obrigatoriedade do cumprimento de um rito fúnebre não possui suas raízes no
cristianismo, mas será este que lamentará dolorosamente a utilização do cadáver de seus
mártires como meio de advertência aos propagadores da Boa Nova. Livrar o corpo dos
mártires do mal estar borbulhante dos vermes torna-se um objetivo concreto do período
100
Eusébio de CESARÉIA. História Eclesiástica. Livro V. Cap I, 52.
101
1 Co 15,39.
102
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos. 4,1-2.
41
histórico e uma obsessão no campo literário, no que se refere à construção das Lendas e
Martirológios.
Para a morte de Inácio, três versões se imortalizaram, e cada uma delas pode nos
esclarecer pontos relativos ao cuidado que seu corpo recebeu após o martírio, em que
iremos nos deparar com o anseio cristão de livrar o santo ao menos no campo da
narrativa literária da corrupção imposta pelo apodrecimento. Observaremos agora a
narrativa sobre a morte de Inácio, contida na obra Padres Apostólicos, em que lemos:
“Os cristãos aquí podemos sem perigo crer em Martyrium apressaram-se a recolher
os ossos que as feras não trituraram e, postos em uma caixa, foram transportados para
Antioquia”
103
. na clássica pesquisa organizada por Alban Butler, no volume II da
Vida dos Santos, um relato aproximado com o trecho acima pode ser localizada,
principalmente no que se refere ao cadáver do santo: “No devido momento, os soldados
o arrastaram para o anfiteatro Flaviano, onde dois ferozes leões foram soltos e
imediatamente o devoraram, deixando apenas os ossos maiores”
104
. Os ossos restantes
depositados em caixas ou rejeitados pelas feras libertam o mártir não da Carne, mas
principalmente dos efeitos da decomposição. No esqueleto embranquecido, a crueldade
da decomposição não se faz mais presente. Quando recorremos à leitura da Legenda
Áurea, nossa investigação ganha dados diferenciados, mas ainda persiste a idéia de um
corpo santo: “Dois leões furiosos aproximaram-se e sufocaram-no, sem tocar em sua
Carne, o que levou Trajano, admirado, a não proibir que pegassem o corpo do mártir”
105
.
Nesta última narrativa, o mártir é preservado em sua totalidade corpórea, numa
imagem poética em que a violência animal corresponde simplesmente a uma interrupção
do sistema respiratório, levando-o ao óbito, sem o estardalhaço de Carnes entreabertas,
mas na calma de quem expira como o Cristo na cruz
106
. Nestes escritos - dos ossos
embranquecidos ao corpo intacto – uma característica é ressaltada: o constrangimento da
putrefação não afligiu Inácio. As palavras testemunhais do Bispo, “não deixem sobrar
nada de meu corpo”
107
, estão alicerçadas na esperança de que, uma vez totalmente
devorado, estaria definitivamente liberto não da Carne, mas do estágio biológico
último. Arremessar-se as bestas, num choque antropomorfo, leva a Carne do santo ao
103
BUENO, Daniel Ruiz. Padres Apostólicos. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid, 1950. p.
432.
104
BUTLER, Alban. Vida dos Santos. Tradução de Hamilton Francischetti. Petrópolis, RJ, Editora
Vozes, 1984. p. 241
105
VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vida dos santos. p.18
106
Cf. Mc 15,37.
42
extremo, em um misto de exaltação da matéria como sacrifício de bom grado a Deus,
como também de total desapego pela mesma, ofertado como ração a animais famintos.
Entre eles quem come e quem é devorado está Inácio e seus leões que,
diferentemente da tradição hagiográfica posterior que exalta a docilidade do animal
guardião, como ocorre nos relatos em relação a São Jerônimo
108
e seu leão de estimação
e São Francisco
109
com seus animais falantes, o Bispo de Antioquia se encontra em um
momento histórico em que a primazia das bestas era dominante nos circos Romanos, e
será exatamente a sana indócil das feras que o conduzirão ao reino Celeste, onde os
anjos se prostram diante da grandeza do homem, que distante da natureza e sua
corruptibilidade, se fez Homem Perfeito. Dois caminhos se abriam para os que
intentavam a imitação do Cristo: a morte em sacrifício e a preservação da pureza do
corpo. O conselho de Inácio aponta para o segundo caminho: “Se alguém é capaz de
preservar a castidade em honra da Carne do Senhor, persevere sem orgulho”
110
. A
castidade representava uma das possibilidades humanas de imitação de Jesus, pois inibia
o avanço sempre perigoso dos impulsos sexuais e todo o excesso aliado a este. O projeto
de Perfeição cristã requeria esforço e uma dedicação de corpo e alma dos crentes, o sexo
só se tornava lícito no casamento.
Uma das características das religiões monoteítas é esta preocupação com a
ascensão dos impulsos sexuais, pois acredita-se que o sexo dispersa a fé. Parte da crença
cristã primitiva relacionada à Perfeição dos adeptos estava consequentemente ligada à
imitação do Nazareno e a dolorosa via de adequar-se a sua divindade. Será esta procura
que investigaremos no tópico que se segue.
1.4. O cristão em busca da Perfeição celeste
A afirmação joanina: “E o verbo se fez Carne, e habitou entre nós, e nós vimos a
sua glória, glória que ele têm junto ao Pai como Filho único, cheio da graça e de
verdade”
111
representa a difícil transposição do Deus incorpóreo do Velho Testamento,
para a carnalidade incorrupta de Jesus Cristo. O Criador que causava terror ao salmista:
“Sim, somos consumidos, por tua ira, ficamos transtornados com teu furor.”
112
, o Ser
107
Cf. Inácio de ANTIOQUIA. Romanos. 4,2.
108
Cf. VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vida dos santos. p. 825.
109
Cf. Ibidem. p. 836.
110
Inácio de ANTIOQUIA. Carta a Policarpo, 5.2.
111
1 Jo 1,14.
112
Salmos 90,7.
43
primeiro princípio e origem de todo ser
113
, num determinado momento da história
materializa-se em cordeiro, “manso e humilde de coração”
114
, faz de Si seu Filho e
escolhe uma mulher de corpo virginal para nascer, afastando de sua encarnação
qualquer vestígio da doença disseminada por Adão e sua triste geração.
A voz de Iahweh ganha cordas vocais, solidifica-se no refletir de Si em seu
Filho, mantendo um elo contínuo de Perfeição entre eles, em que a carnalidade de seu
primogênito não afeta a irretocável soberania do Pai. Na cumplicidade de ambos, a
virtude, como um cordão umbilical os unia num parentesco comum, atraindo-os num
amor mútuo que impele a humanidade impregnada de múltiplos desejos a amar como
Eles. Mesmo manchados em sua carnalidade, serão os homens os protagonistas de toda
ação salvífica, enredados em um minucioso plano de resgate para o restabelecimento da
obediência das criaturas ao seu Soberano, que, perpetuamente acima de toda a natureza
fadada à imPerfeição, intenta que a raça por Ele criada voltasse a assemelhar-se a Este,
não como Narciso contemplando a si mesmo, mas como Alguém que contempla
orgulhoso a sua criação. O autor Ernest Benz, na obra Descrição do Cristianismo,
refere-se à este tema, quando reflete sobre esta relação dos pequeninos diante do Verbo:
“Deus chega à plenitude do seu ser no Homem”
115
mostra que será Cristo o
estereótipo do Homem Perfeito, a plenitude de um Deus que desejou aconchegar-se
entre os membros de sua criação e conduzir seu rebanho desgarrado novamente para os
domínios do seu pasto. Iahweh revela-se aos homens na figura de Jesus e se expõe em
lágrimas
116
e dores em igualdade biológica com seus Filhos, mas estabelecendo com
estes uma hierarquia moral e gica (milagres) que o mantém superior aos que
aparentemente deveria ser seus iguais.
A superioridade à qual nos referimos não estava centrada somente em sua
divindade, mas propriamente neste amor incomum que estimulava todos a sentir. Tomar
as ações de Jesus como exemplo partia de uma tradição fundada pela Escola teológica
de Antioquia que defendia a tese
117
de que seria exatamente por esta via que os cristãos
poderiam assemelhar-se a Ele. Para tanto, outros elementos deveriam ser acrescentados,
para que a imagem de Cristo fosse remontada em cada fiel: Todo cristão,
113
BOEHNER, Philotheus . GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde às origens a
Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier, 8a edição, Petrópolis. Vozes, 2003. p.15.
114
Mt 11,29.
115
BENZ, Ernest. Descrição do Cristianismo. Tradução de Carlos Alberto Pereira. Petrópolis RJ.
Editora Vozes, 1995 p. 171.
116
Jo 11, 35.
44
individualmente, é chamado a tornar-se um seguidor de Cristo; o ser incorporado ao
corpo de Cristo é concedido a quem estiver pronto a realizar em si próprio o destino de
Cristo, sua paixão, morte e ressurreição”
118
.
O nascimento do Deus-Homem vincula-se ao seu fim trágico, determinado por
seu corpo frágil porém, munido de uma Carne incorrupta - que na sua agonia humana,
necessitou da ajuda de estranhos
119
para cumprir as estações de sua Paixão. Carnal
como muitos, mas longínquo de todos, Cristo é o modelo do Homem Perfeito, que
coloca-se como fonte unilateral
120
da Salvação e caminho seguro para quem anseia um
dia se refestelar junto ao Pai. A Carne de Cristo da qual a morte não se alimentou em
função da Ressurreição apresenta-se como sinal de sua humilde Encarnação, de seu
Amor incondicional à raça humana e de sua incontestável superioridade sobre a mesma.
A singular figura de Jesus, para seus seguidores, abre-se como uma meta a ser
alcançada; a Perfeição de suas ações oferta mesmo entre névoas - a possibilidade
humana de assemelhar-se à sua essência divina. Um Deus que age como Homem, que
ama e habita entre seus discípulos
121
faz ecoar as palavras do apóstolo Paulo: “Não
sabeis que sois templos de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?”
122
; aqui,
encontramos corpos nascidos para moldarem-se em templos, estruturas imperfeitas que
devem estar aptas a receber alegremente o Cristo. Estes “abrigos”, na exaustiva
tentativa de aperfeiçoamento, possuem como fim o intuito de abrigar a grandeza de
Cristo, como professa a Catequese Católica:
“A criação tem a sua bondade e sua Perfeição próprias, mas não saiu completamente
acabada das mãos do Criador. Ela é criada “em estado de caminhada” (“in statu
viae”) para uma Perfeição última a ser atingida, para a qual Deus a destinou”
123
.
O fiel cristão é impelido a alimentar uma estranha sensação de insuficiência,
que poderia ser minimizado mediante a intercessão de Jesus, que conduzindo-os pela
via de Sua Paixão, os instruirá a aceitar o sofrimento como um desdobramento de sua
missão redentora, como Ele mesmo declarou: “Guardai-vos dos homens: eles vos
117
Cf. Ibidem, p. 425.
118
BENZ, Ernest. Descrição do Cristianismo. p.177.
119
Lc 23,26: “Enquanto o levavam, tomaram certo Simão de Cirene, que vinha do campo, e
impuseram-lhe a cruz para levá-la atrás de Jesus.”
120
Jo 14,6.”Eu Sou o caminho a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por Mim.”
121
Gl 2,20.
122
1 Cor 3,16.
123
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo. Loyola.Cap IV,301.
45
entregarão aos sinédrios e vos flagelarão em suas sinagogas. E, por causa de mim, sereis
conduzidos à presença de governadores e de reis, para dar testemunho perante eles e
perante as nações”
124
.
Porém, este testemunhar não deve ser entendido como um ato suicida em prol da
verdade cristã, mas como meio de tornarem-se participantes do grandioso amor
anunciado pela Boa Nova. Sentimento este será o ponto culminante da pregação
apostólica: “Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é Amor”
125
. O
Homem que lhes promete Ressurreição é o mesmo que, ofertando sua vida por todos, os
convoca a experimentar seu Amor e o seu destino de dor; entre o mestre e seus
seguidores é a conceituação de um Amor que tudo suporta que os aproxima e os liga
diretamente à misericórdia do Pai.
A descrição evangélica da humanidade de Cristo possui rompantes de um
sentimentalismo incomum para um Deus, em que amar os seus inimigos e orar por seus
perseguidores
126
são máximas que tendem a transformar seus discípulos em homens
armados de uma mansidão escravizante, em que a coragem apresenta-se como a
negação da auto-preservação da vida. Como frei Ivo Lesbaupin nos esclarece: “Pelo
amor o cristão se esvaziava inteiramente de si mesmo, para abrir-se plenamente a Deus
e aos outros. Não era mais ele que comandava a sua existência, mas Cristo.”
127
Para
arcar com o peso de tal amor divino, o cristão deveria esquecer-se como homem e
entender-se como cordeiro, cuidando para que suas atitudes não se transformem em sua
própria condenação, que: “Deus não nos chamou para a impureza, mas sim, para a
santidade.”
128
Este amor deveria estar comprometido com a frutificação de si mesma,
como um bálsamo curativo para uma humanidade caída e eterna devedora das dores de
Cristo: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem
nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação por nossos pecados.”
129
.
Assim, entende-se que nossos pecados serão perdoados pela força deste amor
divino, pois será ele que conduzirá o homem a um estágio de santidade em que a
vontade de Deus se fará presente. Nos escritos do apóstolo Paulo os temas Perfeição e
amor estão estreitamente ligados, como afirma Lucien Cerfaux:
124
Cf. Mt 10, 17-18.
125
1 Jo 4,8.
126
Conf. Mt 5,44.
127
LESBAUPIN, Ivo. A bem-aventurança da perseguição, p. 44.
128
1 Ts 4.7.
129
1 Jo 4,10.
46
“O cristão perfeito, o homem interior, está fundado na e no amor (Ef 3.17-18);
estas colocam em condições de penetrar, como todos os santos, nas profundezas de
Deus. Ele encontra de novo o amor de Cristo, que supera tudo o que podemos
imaginar, assim ele se une a Cristo para chegar à plenitude de Deus”.
130
A via de acesso a esta plenitude, no cristianismo primitivo, estava vinculada à
morte martírica, o que nos faz compreender ainda mais profundamente a aflição de
Inácio em submeter-se ao sacrifício em nome deste amor sem limites, que seria por ele
publicamente colocado em prova na arena romana. “Preso em Cristo”
131
, atado não
somente pela enorme recompensa da eternidade, mas também pela Perfeição que irá
finalmente incorporar-se à sua dedicada e até então incompleta vida cristã, o Bispo
cativo pela fadiga da Carne - se posiciona como um humilde servo, o portador de um
não merecimento incurável: “Amo, é certo, o sofrimento, mas não sei se sou digno
dele”
132
. A angústia auxiliará Inácio a calcar os espinhosos degraus da Perfeição de
Jesus, pronto a cumprir as etapas evolutivas deste imenso amor:
“Esta consiste no amor a Deus sobre todas as coisas e na renúncia a tudo o que possa
contrariar este amor, exige-se, além disso, que todos os homens se amem
mutuamente, como convém aos filhos de um mesmo Pai celeste (...) irmanados em
Cristo Jesus, e chamados a se tornarem membros de seu corpo místico, pela infusão
de um mesmo espírito de amor”
133
.
Para o Bispo de Antioquia, amar a Cristo religiosamente se mostrava insuficiente;
fazia-se necessário se sacrificar por Ele e como Ele, em nome deste amor soberano. Mas
quem poderia amá-Lo ou imitá-Lo de uma forma tão incondicional? Se um único cristão
conseguisse tal intento, por certo não somente O imitaria com exatidão, como também,
igualando-se a Ele, incorreria na presunção de sentir-se tal como o Filho do Homem, e
por certo pecaria por tal cobiça. Assim, o homem deveria se equilibrar entre dois pólos,
as virtudes pedagógicas de Jesus e a sua altivez amorosa, que ultrapassava toda a
matéria e as cortes angelicais, que segundo Inácio pertencem a um núcleo tão servil
quanto o dos homens: “Ninguém se iluda: mesmo os poderes celestes e a glória dos
130
CERFAUX, Lucien. O Cristão na teologia de Paulo. Tradução de José Raimundo Vidigal. São
Paulo. Editora Teológica, 2003. p. 522.
131
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos, 1.1.
132
Inácio de ANTIOQUIA. Tralianos.4,2.
133
BOEHNER, PHILOTEUS. Gilson, Etienne. História da filosofia cristã: desde às origens até
Nicolau de Cusa. p. 17.
47
anjos, até os arcontes visíveis e invisíveis hão de sentir o juízo, caso não crerem no
sangue de Cristo”
134
. A certeza inaciana que “Nada escapa ao Senhor; antes, o que é
segredo para nós está perto d’Ele”
135
ecoa até mesmo entre os seres celestiais, que tal
como os homens estão subordinados ao comando de Deus e seus ditames.
O autor Ernest Benz ressalta esta dependência de toda a criação em torno da
Perfeição de Deus na imagem de seus servos alados, seres “que em amor e liberdade
o circundam num reino de graus e hierarquias individualizadas, louvando-o e
atuando no universo como seus mensageiros e executores de sua vontade”
136
,
segundo a tradição judaico-cristã, a rebelião de um grupo de anjos suscitou a criação
de um novo espécime para preencher a lacuna deixada pelos seres celestiais tortos,
condenados à escuridão. Assim, os homens surgem como “criaturas espirituais
capazes de oferecer a Deus o livre amor que lhe foi negado pelos anjos rebeldes”
137
.
A platéia é recomposta em torno do amor do Criador que, encarnado na figura de
seu Filho, vem ofertar sua vida e morte como exemplo de Perfeição à humanidade,
diferente do fracassado molde de barro anterior que, tal como os primeiros anjos,
rebelou-se contra o Pai. Se para o Criador uma multidão foi solicitada para seu
louvor, sua versão humana, contentou-se momentaneamente com doze homens, que
partilhariam de suas bênçãos e do jugo que significava estar ao lado do Filho de
Deus, como o próprio messias afirmou aos seus discípulos: “Eis que vos envio como
ovelhas entre lobos”
138
. Paulo, por exemplo, que segundo James Dunn interessou-
se pelo Jesus crucificado
139
, destacou em seus escritos esta penosa obrigatoriedade de
tornar-se um manso diante de seus inimigos, no intuito de se assemelhar o máximo
possível àquele “amor que não se contenta com amar, mas torna outros capazes de
amar”
140
, incluindo na vastidão deste amor o autodepreciamento e o perdão sem
limites:
134
Inácio de ANTIOQUIA. Traianos, 6,1.
135
Inácio de ANTIOQUIA. Efésios. 15,3.
136
BENZ, Ernest. Descrição do Cristianismo. p.141.
137
Ibidem, p. 141.
138
Mt 10,16.
139
Conf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. p. 254.
140
Dicionário de mística. Tradução de Benôni Lemos, José Maria de Almeida, Silvia Debetto
Cabral Reis e Ubenai Lacerda Fleuri (dirigido por L. Borriello, E.Caruana, M.R. Del nio, N.
Sulffi), São Paulo. Editora Paulus, 2003. p. 56.
48
“Julgo que Deus nos expôs, a nós, apóstolos, em último lugar, como condenados à
morte: fomos dados em espetáculo ao mundo, aos anjos e aos homens. Somos
loucos por causa de Cristo, vós, porém, sois prudentes em Cristo; somos fracos, vós,
porém, sois fortes; vós sois bem considerados, nós porém, somos desprezados. Até o
momento presente ainda sofremos fome, sede e nudez; somos maltratados, não
temos morada certa e fatigamo-nos trabalhando com as próprias mãos. Somos
amaldiçoados, e bendizemos; somos perseguidos, e suportamos; somos caluniados, e
consolamos. Até o presente somos considerados como o lixo do mundo, a escória do
universo.”
141
O “amor até o fim
142
transforma os apóstolos de Cristo em atração para o coro
angelical no firmamento e para os homens que se divertem com o confronto desigual
entre estes e as forças que se impõem contra sua fé. Quando Inácio escreve na carta
IV: “O cristianismo não é resultado da persuasão, mas grandeza, justamente quando
odiado pelo mundo.”
143
, o Bispo harmoniza-se com o pensamento paulino, onde a
Perfeição cristã e o sofrimento atrelados culminam na concepção de Santidade. Tudo
pode, e deve, ser sacrificado para que este estágio seja alcançado com sucesso. Para
tanto, a antiga visão de sacrifício expiatório constante do livro de Levítico deveria
ser substituído pelo Testemunho narrado no Livro dos Macabeus, culminando na
Paixão, que em suma, representa a morte ideal.
1.5. O Último Sacrifício.
Segundo a obra Padres Apostólicos, o cortejo que conduzia Inácio de
Antioquia ao martírio encontraria em seu desfecho “Dez mil gladiadores e doze mil
feras”
144
, um grandioso espetáculo, possivelmente organizado para celebrar a vitória
do Imperador Trajano sobre seus inimigos, os dacianos; porém o que se ofertava aos
cidadãos era o sacrifício de homens que, em nome de Cristo, entregavam-se
alegremente a morte, condenados em sua maioria exatamente por se recusarem a
sacrificar ao Império e aos seus deuses. Cristo que “foi levado como ovelha ao
matadouro” e cumpriu na Carne a profecia constante em Isaias 53,4-6:
141
1 Co, 4. 9-13.
142
Jo 13,1.
143
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos. 3,3.
144
BUENO, Daniel Ruiz. Padres Apostólicos. p. 432
49
“E no entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si,
Nossas dores que ele carregava.
Mas nós o tínhamos como vítima de castigo.
Ferido por Deus e humilhado.
Mas ele foi transpassado por causa de nossas transgressões
Esmagado por nossas iniqüidades.
O castigo que havia traze-nos a paz, caiu sobre ele,
sim, por suas feridas fomos curados.
Todos nós como ovelhas, andávamos errantes,
Seguindo cada um o seu próprio caminho,
Mas Iahweh fez cair sobre ele
A iniqüidade de todos nós.”
Demonstrou que sua Paixão substituiu e automaticamente anulou a
necessidade até então habitual entre os judeus de sacrificar animais como forma de
expiação pelos pecados da comunidade diante de Iahweh. Quando observamos estes
versículos retirados de Levítico 16,21:
“Aarão poambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as
faltas de israelitas, todas as suas transgressões e todos os seus pecados. E depois de
tê-los assim posto sobre a cabeça do bode, enviá-lo-á ao deserto, conduzido por um
homem preparado para isso, e o bode levará sobre si todas as faltas deles para uma
região desolada.”
Compreendemos o grande diferencial inaugurado por Cristo, que extinguiu
por intermédio de sua morte os antigos cerimoniais de expiação coletiva através do
extermínio da Carne irracional; não são cordeiros, novilhos ou cabras que devem
respingar seu sangue nos altares consagrados a Deus. O “perfume de agradável
odor”
145
das Carnes queimadas na entrada da tenda de Iahweh, que até então redimia
o povo de Israel de seus erros diante de seu Criador, foi substituído pelo próprio
Deus, que se colocou no lugar dos pecadores, libertando todos os homens do
aguilhão da morte e todos os animais da morte expiatória. Para os hebreus, os
animais selecionados para os rituais deveriam cumprir determinadas exigências
146
145
Lev. 17,6.
146
Lev.3,6: “Se for animal pequeno que alguém oferecer como sacrifício de comunhão a Iahweh,
deverá oferecer um macho ou uma fêmea sem defeito”
50
referentes à sua pureza enquanto objeto de sacrifício a Deus. James Dunn, referindo-
se às aproximações entre os ritos hebraicos e a nova aliança fundada por Cristo
dentro dos escritos paulinos, comenta:
“(...) o pecador identificava-se com o animal, ou pelo menos indicava que o animal
de alguma forma o representava. Quer dizer, o animal representava o oferente
enquanto pecador, de modo que o pecado do oferente era de algum modo
identificado com o animal e a vida deste substituía a sua. A única diferença no caso
de Cristo é que a iniciativa vinha de Deus e não do pecador.”
147
O “sangue” depositário da vida do animal, que deveria ser derramado sobre o
altar segundo a vontade de Deus, em Jesus foi dado em comunhão sem a
interferência de outros, senão do sacerdote que cumpria em si também o destino do
cordeiro. Toda a celebração ritualística se consumou na Carne dilacerada do Filho
abandonado na cruz: “Ele entregou o seu próprio Filho por nós
148
, é Ele o Deus que
desce para ofertar-se por seus servos, e é a morte do Filho do Homem, Àquele que
seduziu homens de sólida a se prontificar a padecer em nome da instauração do
Reino de Deus na terra, entregando-se como animais em holocausto a Iahweh. Além
da ressurreição prometida aos crentes, o martírio também poderia beneficiar toda a
comunidade que se fortalecia com a coragem de seus heróis e com a unificação que
os aproximaria numa mesma causa. Os autores Claudio Moreschini e Enrico Norelli,
por exemplo, teorizam que Inácio, que tão veementemente exaltou o martírio como
um exemplo de humildade e devoção a causa cristã, encontrou na própria morte um
meio de apaziguar os conflitos teológicos que afligiam a Igreja de Antioquia,
principalmente em relação ao crescimento das idéias docetistas entre os seus:
“Perdoai-me, irmãos; não queirais impedir-me de viver, não queiras que eu morra;
ao que quer ser de Deus não o presenteeis ao mundo nem o seduzais com a matéria.
Permiti que receba a luz pura: imitador do sofrimento de meu Deus. Se alguém o
possui dentro de si, há de saber o que quero e se compadecerá de mim, porque
conhece o que me impulsiona.”
149
147
DUNN, James. A teologia de Paulo. p. 265.
148
Rm 8,32.
149
Inácio de ANTIOQUIA. Romanos, 6.2-3.
51
Além da ressurreição, a unidade e a obediência dos cristãos em tempo de
turbulência também impulsionaram Inácio a aceitar as feras como sua sepultura. Sua
Carne e sangue seriam úteis para a causa cristã; seria na negação destes que o reino
de Deus seria exaltado; na imitação da morte do Cristo, de cuja glória Inácio sonhou
compartilhar, não mais sustentando-se na celebração eucarística como sacrifício
simbólico, mas sim na ação literal de quem se coloca como atração trágica para a
eufórica platéia romana que, aproximadamente dois séculos depois, dobrar-se-ia,
cultuando suas antigas vítimas. Quando Inácio refere-se à Eucaristia como fonte de
alimento espiritual, ele acredita que o mesmo é o elo perfeito, passível de ser
compartilhado por todos os que, em vida, desejam experimentar a mística absoluta de
um contato material com o corpo de Deus: “Quero pão de Deus que é Carne de Jesus
Cristo (...) e como bebida quero o sangue d’Ele que é amor incorruptível.”
150
Para
Inácio, porém, o banquete pascal não pode saciar seu desejo de tornar-se “trigo de
Deus”
151
, trazendo para si, no derradeiro momento de sua morte, o olhar de muitos,
que observaram o espetáculo da transmutação de sua Carne em carcaça e de sua
alegria cristã em silêncio.
150
Ibidem. 7,3.
151
Ibidem. 4,1
Capítulo II – A Continuidade do Ser na obra de Bataille
53
2. As Faces do Erotismo
Parte dos estudos de Georges Bataille foi dedicada ao estudo das religiões
orientais, porém foi o cristianismo que atraiu sua atenção e o conduziu a reflexões que
têm como ponto de partida a investigação da construção do pensamento religioso
cristão, sob a ótica do Erotismo - conceito batailliano que estudaremos neste Capítulo
e que nos auxiliará a esclarecer um conceito que lhe é filial: o da Animalidade, tema
norteador desta dissertação. Para tanto, para tanto percorreremos primeiramente
algumas análises sobre a concepção de Erotismo dentro das religiões arcaicas, no intuito
de observarmos de forma adequada a nazarena no capítulo que se segue. Assim,
vamos nos ater a decifrar o significado do Erotismo, a partir das palavras do próprio
pensador: Falamos de Erotismo todas as vezes que um ser humano se conduz de uma
maneira que estabelece um contraste com as condutas e julgamentos habituais.”
152
Adentramos aqui em um campo do conhecimento que extrapola a noção de Erotismo até
então popularizada. O conceito na obra batailliana tem o intuito de retratar a
possibilidade de ultrapassamento do homem em relação a si mesmo, para além do coito,
do gozo e da morte. Trata-se de uma possibilidade de ascensão, uma passagem para o
impossível, a partir de uma experiência interior que constituiria uma quebra com o
mundo formal, arremessando o homem para um além de si; um rompimento (próximo
ao êxtase) com os mecanismo da razão, pelo qual angústia humana chegaria ao seu
ápice. Maurice Blanchot nos descreve esta experiência dentro da concepção batailliana:
“A experiência-limite é a experiência daquilo que existe fora de tudo, quando o tudo
exclui todo exterior, daquilo que falta alcançar, quando tudo está alcançado, e que falta
conhecer, quando tudo é conhecido: o próprio inacessível, o próprio desconhecido.”
153
Esta experiência-limite, que ocorre no interior dos que se opõem às diretrizes da razão,
está numa instância particular, oculta entre o obsceno e o religioso, entre as esferas
orgiásticas e os ritos onde todo o excesso despendido transforma-se em um movimento
singular que pode oscilar entre o silêncio do claustro a alegria incomunicável do
martírio, como no caso de Inácio. Quando o trabalho deixa de ser o núcleo da vida
humana e os estados de transe se tornam mais sublimes que a razão, entramos em
contato com esta existência particular que nasce de nossa individualidade, de nossa
solidão. Para localizar esta fusão de anseios que comporia a complexa alma humana, o
152
BATAILLE, Georges. O Erotismo. . p. 170.
153
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita II: A Experiência Limite.Tradução de João Moura
Júnior. Editora Escuta.São Paulo. 2005. p. 187.
54
filósofo inicia suas investigações a partir de dados antropológicos
154
para sustentar
algumas de suas afirmações sobre o despertar do Erotismo entre os membros da espécie
humana.
Assim, selecionamos um caminho investigativo que tem como intuito apresentar
a cisão e a possibilidade de reconciliação entre os extremos destacados pelo autor,
sendo estes: vida e morte, sexo e animalidade, ócio e trabalho, para assim,
compreendermos seu peso dentro das relações humanas no campo da religiosidade.
Para Bataille dois movimentos foram decisivos para que os homens primitivos
dessem os primeiros passos para a construção de um mundo racionalizado: a
conscientização da morte e a ligação entre sexo e violência, características estas que
emanavam do reino animal no qual a morte é disseminada pela fúria predatória das
bestas e a violência promiscua do cio. Para manter os primeiros agrupamentos sociais
apartados do movimento assolador propagado pelo reino natural, o homem inseri em
seu meio o mundo do oficio, que tinha como objetivo apartar a espécie humana da
virulência contida na existência animal, em que morte e sexo coabitam num mesmo
plano. Porém, para Bataille, este afastamento o conseguiu enquadrar plenamente o
homem em seu projeto meticuloso de organização, a lacuna deixada por nossa essência
animal persiste:
“Por meio de sua atividade, o homem construiu o mundo racional, mas nele
sempre subsiste um fundo de violência. A própria natureza é violenta e, por mais
razoável que tenhamos nos tornado, uma violência que não é nada além da
violência natural pode nos dominar novamente que é a violência de um ser
racional, que tentou obedecer, mas sucumbe ao movimento que em si próprio
não pode reduzir à razão
155
.
No entanto, a violência associada principalmente à morte (e os fatores aliados a
esta, como o cio), moldou a consciência humana em relação a si mesma e ao mundo que
a rodeava; as religiões, segundo Bataille, são frutos do processo de recriação simbólica
desta verdade irreversível, que arrasta consigo tudo que vive. Devemos nos ater ao fato
que a morte nos iguala aos demais animais, forçando-nos a uma reintegração à natureza
de onde decidimos nos afastar, por meio do trabalho, do mundo das coisas úteis, que se
funda em contrapartida ao reino dos seres irracionais que desconhecem o trabalho, a
154
Os dados antropológicos utilizados por Bataille estão condensados na obra Lágrimas de Eros.
155
BATAILLE, Georges. O Erotismo. p. 61-62.
55
morte e o pudor - não mantendo, portanto, qualquer nível de subordinação em relação a
estes. Seguindo a linha de raciocínio do autor, podemos concluir que para os homens
arcaicos a morte possuía um poder devastador: é ela que destruía tudo que fora
arquitetado, organizado e programado. Semelhante à imprevisibilidade da fúria animal,
que aniquilava as esperanças humanas de ver durar tudo que somos e edificamos, é ela
que nos aproxima perigosamente do irracional e estanca as possibilidades de um
ultrapassamento literalmente distinto de todo o reino natural. A necessidade de isolar a
morte dos agrupamentos humanos possivelmente impulsionou a ascensão do trabalho
(como esquecimento da morte) e determinou os primeiros tabus relacionados ao sexo
(como distinção ao cio) e consequentemente as primeiras linhas do pensamento
religioso. Este surge para preencher esta lacuna deixada pelo fim biológico, que expõe
nossa efemeridade e a vulnerabilidade de nossa Carne diante do apodrecimento e do
movimento febril do sexo.
O Erotismo nasce neste limite entre morte e vida, neste jogo de repulsa e atração
que arremessa o homem para a busca de um contato imediato com seu próprio fim,
como se este desvelasse uma experiência única, em que a vida colocada à prova e que
possibilitaria uma abertura para a superação da razão, tal como afirma o autor: “Do
Erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até a morte”
156
. O desejo de
Continuidade é esta aprovação, esta esperança de ver durar o que se é, estender a
existência para além da decomposição física. Para Bataille, três caminhos podem ser
traçados para o alcance deste estado de Continuidade, em que a morte se reconciliaria
com a vida, sendo estes: Erotismo dos Corpos, Erotismo dos Corações e o Erotismo
Sagrado.
Para compreendermos o ponto que culminará no anseio de Continuidade dentro
da escrita inaciana, passaremos primeiro pelas características destas três fases, que se
interligaram por intermédio de um mesmo desejo: o anseio de duração do ser. Quando o
filósofo questiona: “O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do ser dos
parceiros?”
157
, Entramos na busca pela Continuidade no contato físico entre macho e
fêmea que se envolvem durante o coito em um movimento frenético onde ambos se
violam mutuamente, num processo de aniquilamento consentido, em prol do “instante”
onde supostamente se unirão plenamente num só corpo:
156
BATAILLE, Georges. O Erotismo. p. 19.
157
Ibidem, p. 24.
56
“O espermatozóide e o óvulo são, em seu estado elementar, seres descontínuos,
mas eles se unem, e consequentemente uma continuidade se estabelece entre eles
para formar um novo ser, a partir da morte, do desaparecimento de seres
distintos”
158
.
A concepção esconde um movimento de morte; corpos finitos reproduzindo
corpos finitos. No momento em que vida e morte se proliferam, uma possessão física
toma os parceiros que se entregam a violência própria do sexo. A individualidade dos
parceiros sexuais entra em colapso, os corpos nus transgridem as normas relativas à
obrigatoriedade das vestes e a contenção da moral aliada a estas.
O Erotismo dos Corpos requer um estado de nudez total ou parcial dos parceiros,
peça importante para concretização do coito, pois desvela a dimensão simbólica do
corpo caído, acanhado pela visão do paraíso perdido. E são estes corpos condenados que
se procuram em busca do Éden nostálgico. A pele despida conduz os parceiros à trama
que inflama os órgãos à procura mútua. Todos conhecemos a nudez - principalmente na
modernidade onde o corpo foi exposto, fragmentado e massificado ao extremo - suas
características anatômicas e peculiares não são novidades, mas ainda persiste no despir
do outro uma sacralidade tênue, um objeto a ser possuído e profanado, que transforma o
Erotismo dos Corpos em um motor precursor de inumeráveis ações humanas. Em
termos antropológicos, as vestes não nos auxiliaram a preservar nossa frágil camada
epidérmica no decorrer de nossa evolução como espécie como também definiram nossa
relação com o próprio corpo.
A pele animal, muitas vezes utilizada como vestimenta, se transformou em uma
peça fundamental para a sobrevivência dos homens primitivos, cumprindo não a
função de protegê-los do frio, mas também de camuflá-los e integrá-los socialmente a
partir de um mesmo signo. A pele nua está associada à transgressão sendo um dos
elementos vitais para a concretização do ato sexual, como observa Bataille: “Os corpos
se abrem para a Continuidade por intermédio desses condutos secretos que nos
provocam o sentimento de obscenidade.”
159
, e este “sentimento de obscenidade” está
vinculado ao elemento de violação intrínseco à cópula, que evidencia uma violência
primitiva, necessária para que o ato sexual se realize plenamente, inflamado pela
158
Ibidem, p. 29
159
BATAILLE, G. O Erotismo, p. 20.
57
ascensão libidinosa da nudez de ambos, pelo encerramento do contato físico entre
quatro paredes, pelo excesso despendido pelo ato sexual e pelo aniquilamento dos
corpos perdidos num movimento familiar ao da morte que impulsiona os corpos
Descontínuos (finitos) para o anseio da Continuidade. Em harmonia com os conceitos
bataillianos encontramos no texto de Andréas-Salomé, chamado Reflexões sobre o
Problema do Amor e o Erotismo, uma análise que explicita o que dizemos aqui:
“É que nossa vida sexual está localizada muito precisamente no corpo e isolada
de outras funções, como por exemplo, a digestão no estômago ou a respiração
nos pulmões; e, em contraste com aquelas, age, a partir de seu domínio físico
particular, sob a forma de uma agitação interior do ser humano no seu conjunto,
e que causa uma perturbação violenta”
160
Os corpos durante o coito exteriorizam a violência dos órgãos internos em
constante perturbação. A movimentação frenética do casal representa um transtorno nas
estruturas formais estabelecidas socialmente, e é por isso que a normalização desta fúria
deveria ser redirecionada para um fim útil. Desde as explosões orgiásticas das festas
dedicadas a uma divindade (que tinham uma finalidade última) ou institucionalizadas no
rito do casamento, o consentimento coletivo teve a função de controlar a violência dos
fiéis e dos conjugues, determinando os limites de suas ações. Devemos destacar – ainda
dentro da concepção de Erotismo dos Corpos – que o homem enquanto extensão
corpórea está a mercê de dois planos vivenciais, a ser esclarecidos: o do Interdito e o da
Transgressão. O primeiro correspondente ao tempo das coisas úteis, das ocupações, da
feitura de objetos (destacando que seres Descontínuos também produzem objetos
Descontínuos, como uma extensão falha de si mesmo) e da sociabilização moldada pelo
signo da cordialidade e do pudor, tal como o autor nos esclarece:
“A Interdição elimina a violência e nossos movimentos de violência (entre os quais
os que respondem ao impulso sexual) destroem em nós a calma ordenação sem a
qual a consciência humana é inconcebível”.
161
Assim o Interdito nasce como uma força que, mesmo não se opondo
frontalmente com os movimentos que o embatem, vem no entanto definir seus limites.
160
SALOMÉ, Lou Andréas. Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. Tradução de
Antônio Daniel Abreu . São Paulo: Landy. 2005. p. 21.
161
BATAILLE, G. O Erotismo
, p. 58.
58
a cópula como movimento animalesco liga-se ao tempo da Transgressão, do ócio, da
violência, do prazer efêmero do sexo que consequentemente reverencia a morte (mesmo
que inconscientemente); é o tempo das “despesas improdutivas”, da produção do luxo
(fadado à inutilidade), das cerimônias, dos enterros, das guerras, dos cultos e do sexo
puramente gozoso. Neste contexto, o Sagrado é a face da Transgressão, o tempo da
animalidade e dos instintos selvagens, e que corresponde ao movimento do coito como
um excesso destinado ao ócio.
J
á que o objetivo reprodutivo é sempre frustrado
enquanto uma possibilidade real de ver o ser que sou continuar em sua exatidão na nova
vida que se forma. O abismo - a Descontinuidade que existe entre um ser e outro
fracassa na tentativa de encontrar na alcova a libertação de sua existência provisória.
A ligação entre o Erotismo dos Corpos e a Animalidade encontra-se no ritmo
inconstante onde coito e cio se assemelham e se comportam no mesmo ritmo febril.
Assim, se a primeira categoria do Erotismo batailliano está diretamente ligada ao
frenesi dos membros durante a cópula, será através do Erotismo dos Corações que
compreenderemos o quanto a atração dos corpos pode ser potencializada, ganhando
contornos ainda mais contundentes que o contato sexual: “Para quem o experimenta, a
paixão pode ter um sentido mais violento que o desejo dos corpos”
162
. A Continuidade
neste estágio pode ser encontrada na figura do ser amado. Apesar de Bataille descrever
esta característica do Erotismo como uma experiência “difícil de definir”
163
, ele também
consegue identificar nesta o desejo humano de abandono de suas individualidades na
miragem amorosa, onde os indivíduos vislumbram no outro o improvável, ou seja, o
derradeiro fim de suas respectivas Descontinuidades na entrega plena da paixão.
A morte continua tendo um papel preponderante neste contexto, já que ela
representa a ausência do amado, e ameaça os amantes com a perda do ser desejado:
“Sofremos pelo nosso isolamento na individualidade descontínua: se você possuísse o
ser amado, este coração que a solidão estrangula formaria um coração com o do ser
amado”
164
. A reciprocidade dos sentimentos condena os amantes à expectativa de uma
felicidade perpétua, porém inalcançável, que a “paixão nos leva assim ao sofrimento,
uma vez que, no fundo, ela é a busca do impossível”
165
. O amor que os aproxima vive
sob o código do receio de ver findar a tênue felicidade que conduzem os enamorados a
162
Ibidem, p. 32.
163
Ibidem, p. 33.
164
Ibidem, p. 33.
165
Ibidem, p. 33.
59
encontrarem na presença do outro a Continuidade que pode ser interceptada a qualquer
momento. O sofrimento antecipado pelo possível fim do relacionamento assombra e
supervaloriza a figura do amado, que parece sempre “bailar em um abismo”, que a
separação representa o fracasso da Continuidade almejada:
“Se a união de dois amantes é o efeito da paixão, ela faz apelo à morte, ao desejo de
matar ou de suicídio. A paixão é designada por um halo de morte. Sob essa violência
à qual corresponde o sentimento de violação contínua da individualidade
descontínua começa o domínio do hábito e do egoísmo a dois, e isso quer dizer
uma nova forma de descontinuidade
.”
166
A sensação que o outro nos transportará para um estado de satisfação física e
sentimental de perfeição esbarra na impossibilidade de quebra das Descontinuidades
dos enamorados, transformando o Erotismo dos Corações em uma promessa falha
mesmo tendo como soma a fusão dos corpos já comentada. Nossas múltiplas expressões
corporais e sentimentais que ambicionam nos conduzir a um estado de extravasamento,
de superação do que somos, recaem na ilusão de uma fusão real entre os seres. Portanto,
os dois exemplos apresentados até aqui destacam nosso inconformismo enquanto seres
efêmeros, afastados de uma Continuidade que deveria nos ser própria e que demarcaria
definitivamente nossa relação de superioridade em relação a tudo que padece ao nosso
redor. As duas possibilidades de emancipação da mortandade se esgotam em
imperfeitas promessas de retirar-nos desta nostálgica Continuidade de forma definitiva.
Porém, uma última instância pode nos proporcionar uma derradeira experiência interior
de superação, de entrar em contato com esta Continuidade almejada, sendo o Erotismo
Sagrado o mais complexo estágio humano de crença, pois se alimenta das duas outras
características anteriores (a atração física e emotiva) e pode ser entendido como
provedor e mantenedor das crenças religiosas de forma atemporal, pois se insere no
campo do mistério, de ritos que visam buscar este transbordamento de vida até na
morte.
Para além da materialidade do outro, o Erotismo Sagrado oferta o incognoscível
como objetivo último, o caminho para a “nostalgia da Continuidade perdida”
167
, que
pode ser definido na obra do autor como uma memória antropológica, reminiscência de
uma época onde a relação entre homem e natureza se fazia intima, em um período onde
166
Ibidem, p. 34.
167
Ibidem, p. 28.
60
o homem não se sentia um estranho entre os membros de sua própria espécie, do seu
meio ambiente e onde o Império da razão ainda não havia se fortificado. Podemos
considerar a concepção de Erotismo Sagrado como o estágio mais refinado da ambição
de Continuidade humana; é a abstração de um sentimento de perda, que no tópico que
se segue, será relacionado à imanência animal, em que o esquecimento de si próprio
abre-se para uma instância mística, em que os objetos não mais existem e tudo que
somos se transforma em tudo que existe.
2.1. O Erotismo Sagrado e a Animalidade
Se os corpos e as emoções não permitem um contato direto com a Continuidade
que nos arremessaria para uma instância de completude, o Sagrado representou para os
homens antigos o ponto de contato com os extremos: morte transmutada em vida e
violência em apaziguamento dos instintos. Se o Sagrado na obra de Georges Bataille é
por excelência o tempo da Transgressão, é cabível afirmar que, sendo o animal o
propagador e símbolo desta violência aniquiladora (representada pela morte e cio), o
Sagrado, por sua vez, possuía parte das características da existência animal. Para uma
análise cuidadosa desta hipótese que levantamos, percorreremos o caminho reflexivo do
autor, para compreendermos suas conclusões sobre a essência da vida animal a partir de
uma observação filosófica. Quando Bataille afirma que algo na natureza animal que
“me escapa”
168
, devemos nos ater a esta conclusão, pois ela é o núcleo dos estudos do
pensador sobre os irracionais. Para o filósofo, os animais estão “no mundo como água
no interior da água”
169
, vivem em um estado de imanência, ou seja, de pura imediatez.
O olhar do animal espalha-se por todo o ambiente em que vive, estende-se ao infinito
sem o saber. Pois, impossibilitado de determinar objetos e a função dos mesmos, torna-
se silencioso cúmplice de tudo que o envolve, dentro de uma Continuidade que lhe é
particular, incomunicável e da qual não podemos compartilhar, já que nossa consciência
esbarra nos inúmeros obstáculos impostos por nossa seqüência interminável de relações
entre nós e os objetos que nos rodeiam. Os animais, por sua vez, não se apartam dos
acontecimentos, pois não podem distingui-los; simplesmente participam deles sem o
saberem. Poderíamos, no entanto, nos interrogar sobre a relação existente entre o animal
168
BATAILLE, G. Teoria da Religião. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo: Ática, 1992.
p. 23
169
Ibidem, p. 20.
61
que devora e o animal que é consumido por este: Não haveria uma distinção concebível
entre o primeiro animal em relação ao segundo? Bataille esclarece:
“Não se trata de um semelhante conhecido como tal, mas do animal que come ao
animal comido não há transcendência: há, sem dúvida, uma diferença, mas esse
animal que come, o outro não pode a ele se opor na afirmação desta diferença”
170
.
O animal que a outro devora não está para este como seu opositor, pois não pode
distingui-lo dele mesmo; ele consome uma extensão de si mesmo, e o faz por uma
força que desconhece, mas que o leva através do instinto da fome ou do cio a um
combate. O animal ataca, e se sua força prevalecer sobre o outro, devora-o. O que
distingue a caça do caçador se oculta neles, na força que lhes uma propriedade
específica e através da qual se determinará quem terá o papel de algoz.
Na vida animal, o cio e a fome são exigências do instinto, são extintos num
momento sempre presente, que a razão humana é capaz de ordenar a extensão do
tempo. Quando Antonio Campillo analisa o conceito de Animalidade na introdução da
obra de Georges Bataille Lo que entiendo por soberanía, escreve: “O animal vive
sempre no presente, em um presente eterno”
171
, o tempo animal é de um presente
contínuo, um presente perpétuo, ou, a bem dizer, algo que se assemelha à própria idéia
de eternidade. Adentrar num mundo onde as coisas não têm significado e o olhar desliza
simplesmente, para aquém do sentido que ofertamos para as mesmas, o nos foi dado:
“Nada, para dizer a verdade, nos é mais inacessível do que essa vida animal da qual
somos resultantes”
172
. Como “água no interior das águas”
173
, é a essência animal, é a
Continuidade que na sua imediatez destrói o outro, o consome e o arremessa ao
desaparecimento, sem que o outro seja identificado como tal ou sua morte como algo
diferente de tudo que existe. Não se um rompimento verificável, não uma
Descontinuidade consciente para estes; o que se verifica é apenas um presente que se
alonga, e que, segundo Bataille, não pode ser teorizado ou descrito sem um acréscimo de
poesia. Na obra Lágrimas de Eros o pensador percorre a história do desenvolvimento
civilizatório do homem
174
, e teoriza a partir das poucas imagens pintadas em cavernas -
170
Ibidem, p. 21.
171
Devemos destacar que o animal é um ser Descontínuo, sua Continuidade está associada ao
desconhecimento de sua finitude.
172
BATAILLE, G. O Erotismo. p. 21.
173
Ibidem. p. 20.
174
Devemos destacar que os dados arqueológicos com que Bataille trabalha em suas teorias são os
disponíveis em sua época.
62
que restaram do período posterior ao do homem de Neanderthal
175
- que se os homens se
representavam por meio de máscaras de animais, estes deveriam acreditar que os
mesmos representassem o Sagrado, o Contínuo, que dentro de um movimento
absolutamente próprio poderia guiá-los para a emancipação da Descontinuidade.
A atração exercida pela existência animal está na violência que lhe é nata e à qual
estão harmoniosamente integrados. Para os primeiros homens, cultuar o movimento
destrutivo em que morte e cópula formam um elemento os aproximaria destas
características animais, também entendidas como divinas. Apartados desta imanência,
restou aos homens a angústia potencializada pela razão que determinou nossa separação
de tudo que nos envolve sem conseguir inibir, no entanto, o desejo de Continuidade; não
somente numa Continuidade vindoura, mas dentro da mesma Descontinuidade, ou seja,
no anseio de perpetuação da vida através do outro na sublimação de um amor supremo,
que nos ofertasse a experiência de Continuidade pela via da fé. O sacrifício animal na
história humana cumpriu este papel: o de ofertar aos que observavam o ser abatido a
Continuidade da vida entregue novamente ao mesmo movimento cego ao qual sempre
pertenceu.
2.2. A relação entre Morte e Sacrifício
Se os homens identificavam nos animais uma assustadora (mas atraente) ligação
com a morte, esta relacionava-se também com a própria visão que o homem possuía de
seu fim. Assim, além de preservar os vivos dos males que habitavam a natureza, se fazia
necessário preservar os cadáveres humanos de um contato direto com os bichos,
impedindo que a mistura das Carnes restaurassem um parentesco entre formas de vidas
tão semelhantes biologicamente e tão distantes racionalmente. Partindo deste
pensamento, Bataille verificou nos costumes dos homens primitivos rudimentos dos
primeiros rituais funerários e indícios do nascimento das Interdições dentro do culto aos
mortos. O receio que o homem possui da morte
176
, principalmente em sua forma
decomposta, quando o ser Descontinuo sofre diretamente a ação desintegrante da vida e
revela sua conseqüência funesta, ou seja, a visão da podridão, de um projeto de
Continuidade fracassada, é que transformará o rito fúnebre em uma cerimônia de
175
Cf. BATAILLE, G. O Erotismo, p. 130.
176
de se destacar que o temor exercido pela morte, assemelha-se ao estágio erótico onde os seres
descontínuos, na exaltação dos corpos e dos sentidos no ato sexual, são tomados por uma perturbação
singular, uma alteração cega dos órgãos que, em estado convulsivo, como o estado efervescente dos
corpos em decomposição, se contorcem.
63
passagem, que tinha como um dos objetivos abrandar o efeito da morte e de seu contágio
aos que sobreviviam:
“Essas matérias moventes, tidas e mornas, cujo aspecto é aterrador, nas quais a
vida fermenta, essas matérias nas quais fervilham os ovos, os germes e os vermes
estão na origem dessas reações decisivas que chamamos náusea, enjôo,
repugnância. Além do aniquilamento futuro, que pesará totalmente sobre o ser
que sou, que espero ainda ser, cujo próprio sentido é mais esperar ser do que ser
(como se eu não fosse a presença que sou, mas o futuro que espero, que contudo,
não sou), a morte anunciará meu retorno à purulência da vida.”
177
Bataille quer ressaltar no trecho acima os sentimentos ambíguos despertados pela
morte, o horror ligado diretamente ao apego que possuímos pela vida e a fascinação
ímpar que a imagem do cadáver nos provoca; se em vida havia distinções visíveis entre
homens e animais mortos, a imobilidade, o silêncio e os vermes os equivalia. Assim,
para os homens a Carne do morto deveria ser reservada, não poderia tornar-se alimento,
pois, enquanto o animal comido por outro animal é simplesmente destruído, colocado
fora do tempo presente, o cadáver não era entendido como uma carcaça, e assim sua
individualidade deveria ser preservada apartada da violência animal; desse modo, os
corpos deveriam ser enterrados ou incinerados, antes que a ação degenerativa da
natureza afrontasse a todos com a ebulição dos vermes, da Animalidade que, mesmo
imóvel, brotava espontaneamente dos poros do cadáver.
O corpo humano transforma-se na questão crucial entre o reino do Interdito e da
Transgressão. Se a morte humana deveria ser ocultada dos próprios homens e dos
irracionais, a carne animal possuía duas funções sagradas: a de alimentar os homens e
muitas vezes a de agraciar os deuses. O sacrifício
178
de animais foi um ato muito comum
nas religiões ditas primitivas e a Carne do animal, Transgressor em sua natureza,
transmutava-se em alimento sagrado, materializando em matéria Contínua: “Ao ser
individual, descontinuo, do animal, de sua morte, sucedera a Continuidade orgânica da
177
BATAILLE, G. O Erotismo, p. 87.
178
A história do Sacrifício pode ser compreendida por diversos ângulos, como todos os estudos
contidos na modernidade. Os dados aqui relacionados terão como intuito percorrer o pensamento
filosófico de Georges Bataille sem nos prendermos demasiadamente a um estudo no qual
vertentes podem se combater em nome de uma unificação no que concerne ao tema deste tópico.
Para tanto, nomes como de René Girard e Marcel Mauss nos ajudarão a compreender o
desencadeamento de formulações que Bataille nos ofertará para o encontro sobre a
especificidade da coalizão entre a Carne (enquanto duto de salvação na cristã) e a Carne
animal, representante da violência, sem nos atrever a adentrar na discussão calorosa sobre a
origem destes ritos dentro da história da humanidade.
64
vida, que a refeição sagrada encadeia na vida comum dos participantes. Um bafio de
bestialidade subsistia de vida carnal e ao silêncio da morte.”
179
Acompanhando os estudos de Marcel Mauss e Henri Hubert, no ensaio O
esquema do sacrifício
180
notamos que a manipulação da carne do animal imolado em
diversas culturas, sofriam as regras do Interdito, já que seu consumo era alterado,
mesmo sendo considerado Sagrado. Assim, a carne dos animais não deveria ser
consumida, sem que certos procedimentos mudassem sua cor, formato e sabor, visto que
um animal assado, cozido, grelhado e condimentado (mesmo que com a simples adição
de sal) não mais se parece com o animal abatido, não possui o seu sabor original ou faz
lembrar que foi um ser vivo. Os condimentos, tais como os enfeites fúnebres, ocultam a
morte. A Carne, que será entendida como matéria profana no cristianismo, resguarda,
para as sociedades arcaicas em que a Transgressão e a Interdição conviviam sem um
contraste incisivo, um tratamento diferenciado e cuidadoso, como se o mesmo
guardasse um elemento permanentemente perigoso e misterioso, ou seja, a capacidade
de nos fazer retornar à “liberdade ameaçadora”
181
ligada a própria Carne, sendo o sexo
uma de suas expressões mais angustiantes.
A materialidade da Carne sempre ocultou para o homem uma verdade
sensualista e opostamente repugnante. Não é de se estranhar que para os humanos, de
todos os alimentos provenientes do reino animal, nenhum causa maior repugnância que
a idéia de “canibalismo”, do homem consumindo seu semelhante como se este fosse
simplesmente uma peça de caça; os relatos de tribos canibais sempre preencheram a
imaginação dos colonizadores, porém o ato canibal foi poucas vezes registrado. Sua
“possibilidade” no entanto aponta para uma Transgressão absoluta, que ultrapassa os
limites do sexo, que vai para além do “possuir” para o “consumir”. A náusea que esta
idéia causa remete à quebra suprema dos limites mais sagrados, em que a Transgressão
seria totalmente suplantada, isto acarretaria uma perda de sentido perigosa, pois abriria
uma viagem vertiginosa de rompimento dos parâmetros universalmente aceitos,
arremessando a todos para um lugar que a razão não suportaria habitar. Por isso nascem
as Interdições: para limitar nossa fome de uma Transgressão suprema. Estes dois
tempos são importantes para a compreensão do sacrifício como um tempo apartado do
179
BATAILLE, G. O Erotismo. p. 143.
180
Cf. MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. Tradução de Paulo Neves o Paulo:
Cosac Naify, 2005. p. 25-54.
181
Ibidem. p. 144.
65
tempo comum. Se o Profano é o tempo das obrigações, o Sagrado como tempo das
festas e dos excessos abre-se para o que Bataille denomina de “despesas
improdutivas”, que se caracterizam por uma apurada organização da mesma nostalgia
da Continuidade perdida comentada anteriormente, mantendo seus elementos
essenciais, ou seja, a morte e a imanência animal, porém ordenando-os minuciosamente.
Este sistema de “despesas” caracterizado pela “perda”, tal qual descreveu
Bataille em sua obra A Parte Maldita, inspira-se nas pesquisas do antropólogo Marcel
Mauss em seu trabalho intitulado Ensaio sobre a Dádiva (1923-24), e tem como intuito,
a partir de uma leitura batailliana, ressaltar a necessidade de destruição, intensamente
ligada ao Erotismo como atração e anseio de morte que nos arrasta para a Transgressão
onde a Animalidade repousa.
A chamada “dádiva” se identifica como um sistema de trocas que extrapola as
normas de escambo conhecidas dentro das sociedades arcaicas. É o reino do
“presentear” como forma de aliança entre grupos sociais distintos com (ou sem) uma
expectativa de retribuição. Este sistema vigorava nas relações entre chefes de tribos e
em ritos religiosos, em que os sacrifícios tornavam-se o meio de comunicação entre os
homens e os deuses. Bataille, na mesma obra citada, também trabalha o conceito de
Potlatch (que quer dizer essencialmente: nutir, consumir), palavra herdada de tribos do
nordeste americano, que possui uma característica específica dentro do sistema de
dádiva. Dentro das sociedades arcaicas o Potlatch aplica-se às cerimônias de iniciação,
casamentos e funerais, tendo porém, como intuito a perda como forma de aquisição, ou
seja, a destruição excêntrica de bens como forma de obtenção de poder e prestígio. O
que o Potlatch visa, está para além dos cálculos e da racionalidade: “Sem dúvida o
‘Potlatch’ não é redutível ao desejo de perder, mas o que ele fornece ao doador não é o
inevitável aumento das dádivas de revide, é a ‘oposição’ por ele conferida àquele que
tem a última palavra”
182
. Para o sucesso da oferta, é necessário acúmulo para um
desperdício espetacular. O fimútil” das coisas perde sua credibilidade dentro dos
parâmetros do Potlatch, o que se desfaz nestes casos, são coisas Profanas que são
entregues ao Sagrado, ao ilimitado, onde nada é utilidade. Como podemos observar
neste exemplo fornecido por Bataille:
182
BATAILLE, Georges. A Parte Maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Imago, 1975. p. 108.
66
“Em época relativamente recente, ocorria um chefe Tlingit apresentar-se perante seu
rival para degolar alguns de seus escravos diante dele. Essa destruição era retribuída
em um determinado prazo pela degolação de um número maior de escravos. Os
Tchukchi do extremo nordeste siberiano, que conhecem instituições análogas ao
potlatch, degolam equipagens de cachorros de valor considerável, a fim de sufocar e
humilhar um outro grupo. As destruições, no noroeste norte-americano, chegam a
incêndios de aldeias, a afundamento de frotas de canoas (...) O delírio próprio da
festa associa-se indiferentemente às hecatombes de propriedade e às divas
acumuladas com a intenção de espantar e de rebaixar.
183
O excesso, o desperdício voluntário de bens entre os povos primitivos, aponta
para a necessidade de destruição, ligada à violência e à morte. O acúmulo de
Descontinuidade deve ser sacrificado de forma exuberante para exaltação não do ato,
mas também de seus feitores. Nestes exemplos, o profano acumulado deverá ser
desperdiçado e arremessado ao Sagrado. Além dos sacrifícios que apaziguavam a ira
dos deuses e estancavam a proliferação da morte entre os homens, a festa (outra forma
representativa do excesso) também possuía o poder de conduzir seus participantes ao
encontro do Sagrado, através do desperdício de energia, do desgaste de tudo aquilo que
foi produzido no tempo profano.
As festas, tal como o processo apresentado no sistema da dádiva, também
transformam a destruição em sua fonte de contentamento, porém, organizar a perda, e o
excesso desta perda, é o que deveria ser contido nas festas de cunho religioso na
antiguidade. Nestas festividades e tomaremos como exemplo as festas dedicadas ao
deus Dionísio - os corpos, e o excesso despendido deles, eram parte do próprio
sacrifício à deidade. Bataille observa nas narrativas do culto a Dionísio traços de um
Erotismo trágico, de uma euforia convulsiva, de abundância e esvaziamento, de loucura
vivificante, morte e Animalidade. Antes da ascensão do cristianismo, que transformou
tudo o que tocou em Interdito, se pode enxergar um parentesco entre um e outro: “São
opostos, são inconciliáveis, se contradizem, mas nem a transgressão nega
definitivamente, suprime, destrói o limite, nem o movimento que no homem para
transgredir, exceder, ultrapassar os limites pode ser totalmente abolido.”
184
Interdito e Transgressão se complementavam, o primeiro vigiava o segundo,
com cautela e consentimento, para que a violência exercida pelo segundo não se
183
Ibidem, p. 35.
184
BATAILLE, George. O Erotismo, p. 115
67
sobressaísse indevidamente, alastrando a Animalidade entre os seus. A Transgressão
pelo crivo do Interdito tinha data e local marcado para explodir, dentro, porém, de
ditames impostos por Interditos moldados para a expansão limitada da Transgressão. As
festas dedicadas a Dionísio, por exemplo, continham inúmeros aspectos nos quais
nitidamente o Sagrado apropria-se da Animalidade para exercer seu poder sobre o
mundo profano do Descontinuo. Nestas festividades as hierarquias familiares e sociais
eram temporariamente suspensas, o tempo do excesso era reverenciado. Mesmo
entendendo que parte das narrativas das festas dionisíacas podem cair no campo dos
relatos míticos como as Bacantes de Eurípides, o tema interessa a Bataille quanto à
possibilidade de analisar um culto a partir do movimento perturbador do sexo:
“Os excessos dionísicos foram limitados, salvo quando se cobravam vítimas: raras
vezes se chegava a morte como desenlace... O delírio das Ménades chegou a um
ponto em que o despedaçamento de crianças vivas seus próprios filho parecia o
único meio de satisfazer suas insaciáveis ânsias.”
185
Esta desordem, porém, nos abre caminho para uma possível leitura do impulso
Transgressor que nasce de cultos religiosos, em que o Profano (a Interdição) é suspenso
em prol de momentos de libertação de uma energia humana e material retida até o
instante do festejo. Na euforia dionisíaca, os corpos se entregavam aos prazeres e a festa
orgástica se tornava o próprio rito e sacrifício ao deus que os induziriam a um estado de
euforia singular, em que a violência exercida entre os corpos se misturaria aos instintos
primitivos aflorados no frenesi em que a Transgressão era o próprio tributo sagrado. O
comentário do antropólogo René Girard vai ao encontro da mesma citação: “Em As
Bacantes também ocorre uma perda da diferença entre o homem e o animal, sempre
ligada á violência”
186
. No movimento assolador do sexo, homens e animais se irmanam;
a Continuidade abre-se poderosamente, arrastando todos para o perigoso movimento do
excesso e da irracionalidade, no intuito nostálgico de alcançarem a imanência animal,
tragada pela ferocidade branda de “água entre as águas”. E será o Interdito que inflamará
este processo Transgressivo. Nas sociedades arcaicas, as orgias ritualísticas marcaram
sua presença, pontuando a ausência permitida das interdições dentro de determinados
eventos. Das bacanais dionisíacas aos ritos sexuais grupais para obtenção de fartas
185
Ibidem, p.10-18
186
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo:
Ed. Paz e Terra. 1990. p.164.
68
colheitas, não faltam, entre os antigos, narrativas que vêm corroborar esta ligação entre o
Sagrado e o Erotismo. Situar a Interdição neste campo, porém, é primordial para
demonstrar o quanto sua existência oferta sustento para o Sagrado: “A interdição e o
tabu se opõem ao divino em um sentido, mas o divino é o aspecto fascinante da
interdição; é a interdição transfigurada”
187
. Assim, o Sagrado é também Interdito, pois só
pode entender-se como tal graças ao intermédio de algo que o torne distante e proibido o
suficiente para transformá-lo em singular, supremo, divino.
O relacionamento entre Interdição e Transgressão (Profano e Sagrado,
Continuidade e Descontinuidade) é viável na esfera religiosa, até mesmo na união
efêmera entre os corpos nas comemorações em que o sexo era o instrumento do
sacrifício, e se tornava um “corpo” unificado, andrógeno, em que os participantes
perdiam suas particularidades, a caminho de uma experiência singular. Bataille encontra
nestes movimentos orgiásticos um “sentimento de semelhança” entre os participantes,
um ato de desprendimento dos pudores e da individualidade que culmina no
esquecimento momentâneo de sua singularidade de sua identidade humana.
Se os eventos dionisíacos permanecem hoje no campo da antropologia, e tendo
afirmado Girard:
(...) que nas culturas modernas, a literatura estava fadada a tomar o
lugar do rito e isso porque através dela poder-se-ia vislumbrar a verdade histórica que
permaneceu oculta por tantos séculos de pretensa racionalidade cientifica”
188
.
Percorreremos agora a obra do autor francês Marquês de Sade, que influenciou
diretamente a obra batailliana por manipular os elementos sacrificais no campo da
linguagem, mantendo, ainda assim, o impacto das imagens fictícias com poder de recriar
através das letras o núcleo da questão do holocausto: o casamento entre morte e sexo.
Potencializar o sexo ligando-o a violência que lhe é intrínseca, exaltando-a ao
extremo, foi o objetivo do escritor Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814),
tratado por Bataille como um “homem soberano”
189
que fez da Animalidade o seu gozo
Transgressor. O Sagrado sempre foi o objeto de destruição de Sade; costumeiramente,
abades e outros membros do clero participam lascivamente de seus banquetes regados a
pedofilia, incestos, estupros e assassinatos. Sade coloca em jogo em seus romances o
impossível de eventos intratáveis que carregam seus leitores à fronteira da náusea. No
entanto, sua literatura não prega diretamente o ateísmo, que a figura de um Deus
187
BATAILLE, George. O Erotismo, p. 104.
188
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado.p.10.
189
BATAILLE, George. O Erotismo, p. 179.
69
criador é necessário para que possa ser destruído, para se transformar em motivo de
deboche e infâmia, pois a figura da Continuidade pregada pelo cristianismo possui seu
valor gozoso na medida que pode ser corrompida. O excesso é a lei a ser seguida pelos
libertinos sadianos que, na seqüência industrial de seus assassinatos, atrelam a natureza
como o motor de seus desejos de destruição. Fugir dos instintos ligados ao prazer seria
como negar a natureza, a nossa essência, que, para Sade, a busca pelo coito e pela
morte são partes de nossas pulsões mais marcantes que aprisionamos, movidos por
receios ligados à religião e aos pudores impostos pela vida social. Assim, Bataille
comenta: “Sade o que ele quis dizer geralmente causa horror mesmo àqueles que
fingem admirá-lo e não reconhecem este fato angustiante: que o movimento de amor,
levado ao extremo, é um movimento de morte.”
190
Os libertinos sadianos incorporam a brutalidade, porém não se comportam como
incendiários irracionais; ao contrário, mostram-se como decoradores minuciosos de
calabouços onde suas vitimas serão sacrificadas com características religiosas. Prazer e
sacrifício em Sade casam-se. Bataille nos recorda que com freqüência as personagens
sadianas são descritas com características animalescas, como observamos na novela
mais contundente escrita pelo autor, intitulado Os 120 dias em Sodoma, em que
apresenta o Duque de Blangis aos leitores:
“Tinha um metro e oitenta de altura, membros de grande resistência e energia,
poderosos tendões, nervos elásticos, além de um semblante orgulhoso (...) Mas, se
esta obra da natureza era violenta nos seus desejos, como seria, meu Deus! Quando
excitada pela voluptuosidade da bebedeira? Não era mais um homem, era então um
tigre raivoso. Coitado de quem estivesse no momento servindo suas paixões; chamas
pareciam sair-lhe dos olhos, espuma pela boca, relinchava como um garanhão, podia
tomar-se pelo próprio deus da luxuria.”
191
O embrutecimento de seus perfis, aponta para uma destruição soberana que, não
raramente, tem no canibalismo sua expressão mais significativa, que o corpo, longe
de qualquer relação com o Sagrado, é apenas mais uma peça a ser manipulada e
devorada pelos homens que, acompanhando o movimento da natureza, tentam
permanentemente imitar seus ciclos de aniquilamento de tudo que há. Citar Sade
190
Ibidem, p. 64.
191
SADE, Marquês. Os 120 dias de Sodoma. Tradução de João M.P. de Albuquerque. São Paulo:
Ed. Aquarius, 1980, p.21.
70
equivale a exemplificar o que poderia se aproximar daquele “impossível”, que Bataille
nos fala. O Corpo (entendido como corpo-cristão), inserido dentro de rígidas regras de
conduta, torna-se na criação sadiana um objeto Descontínuo, sem qualquer valor, sem
qualquer possibilidade de Continuidade. O libertino sadiano é divinizado somente
quando se posiciona racionalmente contra as Interdições e pequenas Transgressões; o
homem soberano ostenta saciar sua infinita sede de prazeres, sem qualquer remorso. O
Deus cristão, tão ridicularizado nos textos de Sade, representa o algoz dos fracos, o
castrador de todos os prazeres e verdadeiro inimigo de toda criação, como comenta
Klossowski em sua obra critica Sade, meu Próximo:
“(...) todos os males com que Deus oprime a humanidade não seriam o resgate
contra o qual Deus outorgaria ao homem o direito de fazer sofrer e de ser
infinitamente vicioso? A tal ponto que se poderia ver em Deus o culpado original, e
teria agredido o homem antes que este o agredisse: por isso, o homem teria
adquirido o direito e a força de agredir seu semelhante. Ora, essa agressão divina
seria tão incomensurável que legitimaria para sempre a impunidade do culpado e o
sacrifico do inocente.”
192
O sacrifício de inocentes seria a resposta a um mundo de corrupção e morte,
onde a presença divina pode ser contemplada através de máscaras que ocultam seu
papel destruidor; diante do nascimento das luzes, Sade encontrou na razão o mesmo
abismo de outrora, a mesma corrupção, a mesma necessidade de sacrifícios. Foi
exatamente no encarceramento, no seio do Interdito, que o escritor deu vazão à sua
imaginação, como escreveu Bataille:
“Excluindo-se da humanidade, Sade só teve na sua longa vida uma ocupação, que
decididamente o prendeu, o de enumerar até à exaustão as possibilidades de destruir
seres humanos, de destruir e de gozar com o pensamento de sua morte e do seu
sofrimento.”
193
.
Em Sade, toda Animalidade é abrandada por uma versão humanizada da
violência. O extermínio é o único objetivo a ser alcançado, sexo e violência formam
uma trajetória, direcionadas a dor e a morte. Ler Sade, segundo Bataille, é ter a rara
192
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade, meu próximo. Tradução de Armando Ribeiro. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1983. p. 87.
193
BATAILLE, G. A literatura e o mal. Tradução de. Antonio Borges Coelho. Lisboa: Ed.
Ulisseia, 1957, p.145.
71
experiência de coabitar com o excesso, sem pormenores, de forma definitiva e
inigualável. O que paira sobre a obra sadiana é o silêncio, que ele se pôs a comunicar
o que parecia improvável, as trevas que se ocultam no frenesi do sexo, sem disfarces,
sem deidades justificando gozos, apenas a fria necessidade de inflamar os órgãos e se
deleitar com a morte.
_____________________________________________________________
Capítulo III – Bataille lê Inácio
73
3. Martírio: o Trágico como Espetáculo.
A relação entre Bataille e eventos onde a diversão e a morte se misturam serviu
como contundente cenário na construção do seu primeiro romance (um misto de
autobiografia e ficção) intitulado História do Olho, em que a personagem de nome
Simone (que possui como característica marcante a imprevisibilidade e a obscenidade
de seus atos) excita-se observando o desenrolar de uma tourada espanhola:
“Três momentos da corrida a fascinavam: o primeiro, quando o animal dispara feito
um meteoro do touril, como uma grande ratazana; o segundo, quando ele enterra
seus chifres, até o crânio, no flanco de uma égua; e o terceiro, quando a absurda
égua galopa arena afora, escoiceando de propósito e deixando cair, por entre as
pernas, uma massa de entranhas de cores abjetas, branco, rosa e cinza-carmim.
Quando a bexiga rebentava, lançando de chofre uma poça de urina de cavalo sobre a
areia, as narinas de Simone fremiam”
194
.
Neste caso, porém, são animais que num enfrentamento cego atacam-se em prol
do espetáculo que se arma em torno de um sacrifício diferente dos de outrora, que,
neste evento, nenhuma divindade será agraciada com o sangue dos animais. Mas a
excitação de Simone é o retrato de um frenesi antigo, em que a morte de um irracional
representava uma abertura e um contato direto com a violência oculta nele; sobrevive
ainda a idéia de que “o espírito de Transgressão é o do deus animal que morre, desse
deus cuja morte é animada pela violência”
195
ainda sobrevive, porém em meio a
diversão inconsciente de um público que aguarda pela morte dos animais como forma
de entretenimento. Para Simone, no entanto, a Continuidade brotava juntamente com as
entranhas da égua e com a voracidade do touro. Neste plano, dois elementos se
destacam: o dos espectadores Descontínuos e dos animais absortos na imanência, de um
lado o tempo, no outro a ausência deste. Porém, é a violência que costura estes dois
tempos em um. A angústia gerada pelo sangue que escorre na arena inflama a ânsia da
personagem para uma experiência substancial, que a aproxime da atração gerada pela
aproximação da morte. É a partir da entrada do toureiro na arena que a excitação se
torna insuportável, o homem, como opositor direto do animal, abre uma nova instância,
em que dois corpos entraram em um combate erótico:
194
BATAILLE, Georges. História do Olho. Tradução de Eliane Robert Moraes. São Paulo. Cosac
& Naify. 2003. p.62-63.
195
GEORGES, Bataille. O Erotismo, p.131
74
Aliás, é preciso dizer que, quando o temível animal passa e torna a passar pela
capa, sem descanso e sem trégua, a um dedo do corpo do toureiro, experimenta-se
um sentimento de projeção total e repetida, característico do jogo físico do amor. A
proximidade da morte é sentida da mesma forma. Essa sucessão de passes felizes é
rara e desencadeia na multidão um verdadeiro delírio; tamanha é a tensão dos
músculos das pernas e do baixo-ventre que, nestes momentos patéticos as mulheres
gozam”
196
.
Tudo culmina na obra batailliana com os colhões decepados do touro entre as
pernas de Simone. Os corpos dispersos pela racionalidade se reagrupam em torno de um
momento de êxtase, e, no caso de Simone, de um frenesi libertino, quando os colhões do
animal abatido retornam ao corpo animal dela. Podemos observar nesta narrativa uma
das obsessões de Bataille: a penetração (conjunção das Carnes) transforma dois
elementos aparentemente opostos (levando em consideração a racionalidade) em
parceiros íntimos, num corpo. Todo o romance (recordando que na obra de Bataille.
ensaios filosóficos, literatura e estética se integram) revive este momento de reencontro
entre os homens e seus instintos animais, criando situações - limites, nas quais seres
humanos e bestas assemelham-se no movimento igualmente violento de suas naturezas.
A tourada, dentro do imaginário do filósofo, possui um elemento revelador: o combate
entre seres Descontínuos, em que a morte, porém, só te significado para um dos
jogadores. Se recorrermos ao trabalho de um contemporâneo do autor, Michel Leiris
entenderemos outro aspecto do interesse dos homens por tais eventos sacrificais que
oscilam entre a “tara de um pecado original.”
197
e o “tema do combate entre homem e
animal, da primazia da inteligência sobre a força bruta.”
198
. Nestes episódios, o sexo não
é somente lembrado como indiretamente vivenciado, a “tara” e o “combate” formam um
conjunto atraente para a alegria de um público eufórico que excita-se com este
movimento, que, tal como o coito humano, se encerra num espaço físico preciso. Na
arena do touril ou no circo romano, os três movimentos que compõem o Erotismo
batailliano podem ser visualizados tanto no contato físico entre toureiro e animal (que se
enfrentam num ritual semelhante a sedução que precede o acasalamento), quanto na
paixão que ambos (homem e animal) despertam no público, e o próprio rito, (que,
196
GEORGES, Bataille. História do olho. p. 63.
197
LEIRIS, Michel. Espelho da Touromaquia. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo:
Cosac&Naify.2003. p. 28.
198
Ibidem, p. 29.
75
mesmo inconsciente), relembra os antigos cerimoniais de sacrifício em que o Sagrado se
manifestava, os mesmos elementos que também compõe o martírio cristão.
Se entre toureiro e touro existe um jogo de toque e repulsão, os mártires mantêm
um movimento semelhante, que neste caso os cristãos cumpriam o papel que caberia
aos animais - o de ser abatido. Aos espectadores, no entanto, o mesmo desejo voraz se
mantinha: o de observar a morte com uma euforia insana. É num ambiente semelhante
(para não afirmar categoricamente idêntico) o qual Simone está absorta, que nos
ateremos ao velho santo, indiferente ao seu destino de dor, observando nos leões o
coroamento de sua vida dedicado a Deus, ao Ser que e sua Perfeição se opõe às feras, a
parte vil de sua criação enquanto representantes da violência dispersa e silenciosa da
queda. O que o público aguardava no circo Romano é o desespero das vítimas, a avidez
das feras, e, como fim do espetáculo, um flanco aberto – tal qual o da égua – e humanos
derrotados perante as forças da natureza e do Império que ousaram a desobedecer, mas
que no caso dos cristãos lhes ofertava a possibilidade do espetáculo de sua dor como
meio de salvação e evangelização. Quando Contador Borges comenta:
“O suplício depende deste teatro em que o sofrimento tem que ser visto pelo
outro como um espetáculo que faz soar seus signos (...) é preciso que cada um
sofra no espírito o que o outro sofre na Carne para extirpar o germe indesejável
da transgressão.
199
Entendemos a agitação de Simone, que o suplício de um condenado o foge
demasiadamente ao mesmo destino - o de causar a excitação dos observadores, que
buscavam na morte de homens e animais - o dispêndio do excesso contido no dia-a-dia
do trabalho e dos impostos, em que toda a fome de Transgressão seria
momentaneamente saciada diante da morte do outro. Colocar-se ante este desejo
(tornar-se a fonte de diversão de um grupo de pessoas em estado selvagem) é a intenção
principal de Inácio, quando este se pronuncia: “hei de instigá-las, para que me devorem
depressa.”
200
O santo oferta o seu “sim”, às forças que se processam no corpo das feras
e dos observadores; aceita (pois a apostasia era uma opção oferecida ao Império aos
desistentes) participar daquele evento correspondente ao “último dia dos jogos
199
BORGES, Augusto C. Georges Bataille: Imagens do êxtase. Agulha: Revista de cultura. N 9;
Fortaleza; São Paulo; Fevereiro de 2001. p. 03.
200
INÁCIO, de Antioquia. Romanos, 5,2
76
públicos”
201
, portanto, um dia de euforia própria dos últimos dias de diversão. Morrer
durante um dia festivo nos remete a uma idéia batailliana, para quem a festa representa
“um abrasamento todavia limitado por uma sabedoria de sentido contrário: é uma
aspiração à destruição que explode na festa, mas é uma sabedoria conservadora que a
ordena e a limita.”
202
Assim, o corpo de Inácio será a dádiva, a representação do
excesso, da gama que deve ser desprendida para acalentar a extasiada platéia romana. É
em meio a este excesso Transgressor que Inácio se dispõe a padecer em prol de uma
certeza, que em sua crença o afastaria espiritualmente das feras e das pessoas presentes,
que são para o santo como carrascos, possivelmente semelhantes às “feras” que os
conduziram de Antioquia à capital Romana. Os matadores dentro das narrativas
hagiográficas possuem esta característica: a falta de um perfil individual, são seres sem
rosto, apenas uma face obscura dos desejos humanos, sem nome, identificados apenas
pela função, como um animal que é definido pela espécie; a complacência de Inácio
mediante a atuação destes: “que simplesmente se tornam piores quando se lhes faz o
bem”, reflete a impossibilidade de comunicação com eles, os portadores do sacrifício e,
por que não afirmar, da Salvação. Mas nem mesmo o maltrato imposto pelos soldados
inibe o anseio de Continuidade (de felicidade vindoura) própria dos que crêem na
Ressurreição, como lemos na legenda inaciana: “depois de orar pela Igreja e, com
lágrimas, recomendá-la a Deus, alegremente deixou-se acorrentar, e logo foi conduzido
pelos soldados a Roma
203
; o contentamento do holocausto é uma característica própria
dos mártires contemporâneos ao Bispo, em que morte e alegria se misturavam:
“Declaravam-se cristãos, sem se inquietarem por causa dos tormentos nem das
diversas espécies de suplícios aos quais se expunham; mas falavam com inteira
liberdade, corajosamente, da religião do Deus do universo e recebiam alegres,
risonhos, bem-humorados a sentença final de morte, cantando hinos e dando graças
ao Deus do universo até o último suspiro.”
204
.
Existia um deboche cristão em relação ao seu destino cheio de dor que nos
remete a um comentário da personagem de Nietzsche, no livro Assim falava Zaratrusta:
201
BUTLER, Vidas dos Santos, p. 18.
202
BATAIILE. B. Teoria da Religião. p. 105.
203
BUTLER, Vidas dos Santos. p. 16.
204
EUSÉBIO, de Cesáreia. História Eclesiástica, Cap IX, 05.
77
“Seria preciso entoarem melhores cânticos para eu crer no seu Salvador; seria preciso
que os seus discípulos tivessem mais aparência de redimidos”
205
.
A humildade cristã mistura-se ao orgulho de sucumbir em nome de seu Deus.
Nas narrativas martíricas, a altivez dos condenados destacava a sua indiferença diante
dos perigos e consequentemente dos seus algozes. Cristo, que em nenhum momento do
Evangelho é visto sorrindo, espalha com sua morte a Transgressão do riso que explode
como um símbolo de satisfação erótica, que é um componente próprio do movimento
festivo ou da agitação dos corpos nas orgias. Se o antigo Adão não sorria, já que sendo:
“perfeitos, eternamente belos, eternamente jovens; eles se movimentam, asseguram-
nos os teólogos, em jardim de delícias onde tudo é harmonia; estão nus, mas sem
nenhuma vergonha. Nenhum defeito, nenhum desejo, nenhuma fealdade, nenhum
mal: o riso não tem lugar no jardim do Éden.”
206
Porém, ao contrário do primeiro homem, os seguidores do Nazareno, nos
primórdios da fé, divertiam-se diante de seus algozes, eles, os mártires; por vezes,
representam a face transgressiva do sorrir, da gargalhada que soa no contato dos corpos
durante o ato sexual, que a luxúria está necessariamente ligada ao riso. O “riso vai se
insinuar por todas as imperfeições humanas”
207
, porém sua ação transgressiva não é
entendida como tal pelo cristão. O que se exalta com o riso é a grandeza do próprio
sacrifício, o ato heróico e destemido de enfrentar as feras (e a própria violência que lhes
é intrínseca) e os seus matadores (entendidos como criaturas vis, tal como os animais).
Tanto mais alegres, mas aptos ao martírio. A felicidade descompromissada dos cristãos
não teme a morte e o que a precede, a dor. O contentamento de parte dos crentes se
centrava em sua indiferença diante dos objetos de morte, atitude próxima à dos adeptos
de Dionísio, que encontravam no fúnebre uma alegria indiferença libertina.
Assim, as cenas que transcorrem nas legendas em que a morte dos mártires (e do
próprio Inácio) se alterna com um riso animalizado, inconsciente de seu destino atroz,
escondem o mesmo processo Transgressivo que tão duramente é negado pelo
cristianismo, mas que se transformou em seu componente catalisador e propagador da
mensagem do Interdito: “Não podemos conceber sem mal-estar a transgressão desejada
205
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin
Claret, 1999 .p. 88.
206
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Elena O. Ortiz Assumpção. São
Paulo: Editora Unesp, 1999. p. 112.
207
Ibidem, p. 113.
78
de uma lei que parece santa (...) o desconhecimento da santidade da transgressão é um
fundamento para o cristianismo.”
208
O deixar-se morrer por Cristo aponta para uma
aceitação silenciosa das antigas formas de Transgressão em que o sacrifício animal
representava o contato entre os homens e a divindade. Porém, no período histórico dos
mártires os animais haviam perdido parte de sua aura divina, haviam sido
domesticados, comercializados, tornando-se “coisas”, possuindo um valor material
agregado, entrando na interminável lista humana de objetos negociáveis passíveis de
catalogação. Coube aos mártires cristãos reter para si esta mesma violência já em
processo de dissipação e captá-la, rememorizando-a em cada evento público de morte.
Os mesmos homens que intentaram banir o movimento destruidor dos animais de seu
meio, propagaram a Salvação cristã por intermédio deste mesmo processo de violência e
expiação, ofertando aos espectadores do holocausto a Continuidade, utilizando-se da
Carne para impor o declínio da mesma sobre as ações humanas. Assim, o abraçar de
Inácio as feras simboliza o desejo de igualar-se a elas e ao mesmo tempo suplantar as
forças que faziam a platéia romana expiar.
Foi exatamente este anseio de emancipação do desejo, esta alegria pela morte,
que veio a alimentar entre os fiéis a busca por uma Transgressão ainda mais grandiosa
(entendendo Transgressão como um ato que afasta o homem da normalidade e o
aproxima do crime) no que se refere à imitação do Cristo. Tanto como a morte do Filho
de Deus foi Transgressora, assim também se deu o desfecho da vida de Inácio e outros
tantos, que em meio à festa dos jogos romanos transmutou todo o excesso (do
movimento sacrifical) em escassez, em Interdito e retenção do gozo.
O inverso do significado da morte sacrifical se instaura na que no Interdito
o único passaporte para a Nova Vida. Quando Foucault se refere ao conceito de
Transgressão na obra de Bataille, uma nova possibilidade de leitura se abre:
“Jamais, no entanto, a sexualidade teve um sentido mais imediatamente natural e
sem dúvida talvez tenha conhecido uma tão grande ‘felicidade de expressão’ no
mundo cristão dos corpos decaídos e do pecado.”
209
O objetivo cristão de transformar tudo que tocasse em Interdito afastou do
homem a possibilidade de um ultrapassamento pelas vias até então conhecidas; um
208
BATAILLE, Georges. O Erotismo. p.140.
209
FOUCAULT, Michel. Prefácio a Transgressão. IN: Ditos e escritos III. Estética: literatura e
pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 47-59
79
acordo harmonioso entre Transgressão e Interdito não seria possível. O cristianismo,
com o seu rei que padece na cruz e seus seguidores, instaura um novo movimento em
que o Interdito se torna o coração desta fé, acarretando com isso um transtorno interno
(que perpassa o indivíduo e desemboca na sociedade) num excesso não despendido, um
entrave que culminaria no extravasamento dos sentidos, que pode ser verificado nos
êxtases das enclausuradas ou nas inumeráveis perversões criadas por mentes libertinas.
O gozo de Simone com os colhões do touro dentro do seu sexo é a representação
literária desta necessidade obscura de uma queda brusca, de uma Transgressão que
superasse o Interdito como tempo unificador entre homens e divindade. É cabível
teorizar que o Interdito impulsionou a ascensão silenciosa do gozo humano como gozo
animal, de um prazer que, de tão oprimido, transforma-se num catalisador individual de
toda a Transgressão que anteriormente era experienciado coletivamente. É a partir deste
acanhamento dos ritos de liberação do excedente existente nas sociedades arcaicas que o
cristianismo deu vazão ao nascimento do gozo transcendente dos santos e da orgia
inconsumível dos personagens do Marquês de Sade. Quando o corpo em holocausto não
é mais de um animal, então o cume da Transgressão não supõe mais a necessidade
deste, tem um outro querer, e este foi dado pelo cristianismo, na extensão de um único
corpo humano em substituição e invalidação de sacrifícios animais passados e
vindouros.
Num mundo de onde a Transgressão é expulsa e arremessada à abstração de um
Deus homem (que contém o monopólio da Transgressão), ela perde seu foco e
ordenação, tornando-se potencialmente perigosa exatamente por se tornar inatingível. O
Ser que por si Transcende sempre nossa concepção do que Ele é, retrata o caminho
da Perfeição tão intensamente desejado por Inácio, mas que sempre “os escapa”, tal qual
a essência animal que permanece fora do tempo e esconde-se de nosso entendimento. A
tentativa humana de compreender e colocar o incognoscível na ordem das coisas
culminou em Inácio em todo o processo de hierarquização e organização dogmática da
fé e da Igreja, em que já transparece o intento de direcionar meticulosamente os
convertidos, por meio do Interdito, como forma de atrofiamento dos desejos e do
extermínio da Animalidade dentro dos corpos cristãos. Para os que não morressem em
martírio, restavam as diretrizes do velho Bispo, em que o corpo deveria se adaptar ao
80
projeto de edificação cristã no qual a labuta e a castração dos impulsos transformaria
cada homem em um ser condenado à solidão e à frustração de um projeto inalcançável.
3.1. Carta aos Romanos: O Projeto Cristão da Solidão
As cartas de Inácio esboçaram as primeiras linhas do dogma cristão que
influenciaram todo o pensamento cristão posterior e que lançou luzes sobre as
vicissitudes do além sacrifício, em que o encontro com Cristo seria o episódio final de
uma peregrinação dolorosa até a harmonização entre o rtir, ou o cristão piedoso, e
obediente e seu mestre. As cartas de Inácio nasceram em sua viagem da cidade de
Antioquia até a capital Romana:
“No porto de Seleucia, a dezesseis milhas de Antioquia, embarcaram em um navio que, por
razões desconhecidas, teve que ir costeando as praias meridionais e ocidentais da Ásia
Menor, ao invés de rumar direto para a Itália”
210
.
As cartas que compõem o legado de Inácio nasceram na solidão da prisão, tal
como Barthes destaca sobre o nascimento da obra de Sade: “é a clausura que permite o
sistema, quer dizer, a imaginação”
211
, é a cela vigiada por “dez leopardos” que vida
às cartas de Inácio, é a ociosidade patrocinada pela prisão que estrutura os dogmas. A
figura do Bispo surge historicamente após a sua morte e popularização de seus escritos;
ela está diretamente ligada ao seu aprisionamento, pois é o espaço reduzido de sua cela
que impulsiona o sistema. E não estariam Sade e Inácio construindo o mesmo sistema
imaginário? Se o primeiro apenas o montou em seus livros, o segundo obteve mais
sucesso, criando por intermédio do Interdito um mundo tal qual ansiou, no qual a
hierarquia e a obediência seriam essenciais para a consolidação do ideário cristão.
Porém, inversamente à idealização de homens como o Bispo de Antioquia que
alimentaram a sana de Transgressão de Sade, o Marquês pode ser entendido como um
produto inevitável do complexo sistema de inibição dos impulsos animais negado pelo
cristianismo. Se a clausura sadiana, segundo Barthes, representa “uma qualidade de
existência, uma volúpia do ser”
212
, um transbordamento da imaginação e dos sentidos,
um espaço reduzido que obriga o condenado a expandir-se para além dos limites, este
210
BUTLER. Vida dos Santos, p.16.
211
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Tradução de Maria de Santa Cruz, São Paulo: Edições
70, 1971.p.23.
81
também é o impulso perfeito para que o corpo enclausurado e condenado a restrita
mobilidade
213
encontre outros meios de libertar-se, de ampliar seus desejos de
libertinagem ou de santidade, e transgredir as forças que intentam escravizá-los.
O romper com a natureza inaciana (o afastamento do reino natural) e o romper
sadiano (de ultrapassar o reino natural, afundando-se na fúria deste) fazem parte de um
plano semelhante, de destruir com que lhes é imposto, de tentar suplantar a si mesmo
entregando-se ao sacrifício, a desordem culminará em Sade (em sua clausura) na morte
dos seus personagens libertinos após dias seguidos de luxúria e no caso de Inácio em
sua alegria martírica após anos de contenção dos desejos.
Dois autores, dois projetos aparentemente distintos. Se Sade queria desdenhar da
própria espécie que vivia sob o julgo de proibições e desejos reprimidos criando
mundos que desmascarassem todos os nossos códigos sociais, os escritos inacianos
fazem parte também de um projeto audacioso, mas de um projeto evangelizador, em
que todo o mistério deveria (na medida do possível) ser codificado, inserido na
seqüência das associações humanas, em que até mesmo a morte de seu autor ganharia
um significado plausível para as gerações futuras. No projeto inaciano, porém, o
objetivo a ser traçado no entanto, se faz sempre incompleto, pois este recai no silêncio,
no qual poucas coisas podem ser ditas em relação ao encontro com o Filho do Homem,
que se fecha em seu enigma: “Eu e o Pai somos um”
214
. Intrínseco ao projeto de
Salvação, persiste o mistério no qual a razão não pode tocar e que transforma a narrativa
redentora em um desfecho surreal, que escapa a todo esforço intelectual de associá-lo a
qualquer coisa vista. Todas as escalas do raso conhecimento humano não podem
clarear o profundo (e obscuro) significado deste encontro com Deus, que será apreciado
apenas pelos selecionados, por aquele que encontraram no caminho da Paixão a senda
perfeita.
O sacrifício - como imitação do abate do cordeiro - contém os germes que
desintegram o próprio projeto, transformando-o num eterno romance inacabado, do qual
Inácio poderia participar assim que seu corpo se transmutasse em pedaços diante dos
olhos vorazes daqueles que poderiam compreendê-lo a partir da repugnância de seu
212
Ibidem. p. 22.
213
Podemos nos recordar que para autores como São Cipriano o encarceramento poderia ser
considerada uma face do martírio,
214
Jo 10,30.
82
cadáver. O projeto martírico caracteriza-se como um anteprojeto, arremessando seus
adeptos à instância do não-saber, em que toda angústia acumulada em sua conquista
seria consumida de uma única vez, destruindo ironicamente toda a construção humana
de um fim identificável; a edificação do invisível, em Inácio, não está somente
alicerçada na expansão do evangelho, mas também na ociosidade de uma existência
dedicada à morte - pela via da agonia indecifrável do Cristo - transformando o projeto
em um álibi para que sua experiência solitária ganhe contornos de salvação coletiva
215
.
O sacrifício como projeto é o extermínio do mesmo, é o atirar-se no escuro,
levando consigo o empreendimento até então erguido, para deixar-se guiar para um
lugar inacessível, que por ser mistério extrapola a própria noção de Salvação que
silencia diante da figura do Cristo no Gólgota, aquele que na fragilidade de sua Carne
entreaberta transformou todo o trabalho salvífico em um espetáculo aterrador, no
fracasso retumbante de sua morte, aquilo que Bataille entende como uma espécie de
ausência de salvação, a bem dizer, o desespero de Deus, tal foi o destino do Nazareno e
de seus imitadores na Carne e na angústia, como prossegue Bataille: “A agonia de Deus,
na pessoa do homem, é fatal, é o abismo onde a vertigem solicitava-o a cair.”
216
A morte desfaz o projeto ou ao menos o arremessa na noite do não-saber e
faz com que toda a certeza se torne utópica, que a redenção dos corpos caídos, se torne
o objetivo do impossível, da Perfeição inalcançável e da agonia suprema. Como projeto
do Impossível (a Salvação Cristã) anseia uma Transgressão soberana, um ato de
entrega, cujo fim extingue-se em seu desejo de ir um pouco mais adiante; a própria
concepção de ultrapassamento do ser constituído requer esquecimento da própria
estrutura racional, em um movimento irascível em que, alforriada a angústia, a razão
entra em estado de desintegração, misturando sofrimento e felicidade em uma mesma
experiência limiar.
Mesmo que o saber nesta desestruturação tente agarrar-se aos resquícios de razão
restantes, ainda neste desfalecimento do pensamento um mistério impenetrável, que
no cerne é o que nos “escapa” enquanto tentativa de um discurso lógico; é um penetrar
215
No trecho escrito por Inácio para as comunidades localizadas em Roma, podemos observar o
vínculo que o mesmo faz entre sua morte e o favorecimento que o grupo adquirirá com seu
martírio: “Não queirais favorecer-me, senão deixando imolar-me a Deus, enquanto um altar
preparado, para formardes pelo amor um coro em homenagem a Deus e cantardes ao Pai em
Jesus Cristo.” (Rm 2,2)
83
num mundo de imanência em que os objetos perdem seu significado e seu valor
agregado, em que violência e morte são símbolos insignificantes perante o
ultrapassamento que se oculta para além destas, na instância do inclassificável, bailando
próximo da essência animal, que por si está encerrada no momento presente, no qual
cio, fome e morte se manifestam num instante, sem divisões temporais, apenas na
eternidade do presente sem presente. Porém, não podemos negar que existe um projeto
(mesmo irrealizável) do homem em busca da experiência do impossível, experiência esta
que nasce do interior, e se projeta para fora da jaula que nos separa dos “leopardos” que
irremediavelmente nos amedrontam com a impossibilidade simbólica de suas existências
submersas no silêncio.
Assim, devemos nos ater ao fato que a meta que será alcançada em Inácio está
para além do plano por ele construído; deleita-se na perspectiva da imanência, que se
encontrará no instante em que morte e vida se chocarão num devorar mútuo, em que a
consciência será substituída por uma experiência que, até então, se escondia na
impossibilidade dos discursos racionais. Se o objetivo último recai na escuridão,
podemos investigar o objetivo do Bispo de “ressuscitar n’Ele”
217
, ou seja, de renascer
não mais em sua Descontinuidade corruptível, mas de reviver na Continuidade
representada por Cristo como uma viagem solitária, a um novo patamar angustiado, em
que a Descontinuidade, como veremos abaixo, ganhará apenas um novo significado.
Considerando que o mártir possuía conhecimento dos escritos paulinos, entenderemos o
comentário de Dunn sobre o termo Paulino “estar com Cristo”
218
: "Mas o fato de que a
linguagem com claramente inclui companheiros crentes no com Cristo e outra
advertência de que a participação em Cristo é irredutivelmente corporativa.”
219
Se comunidade, existe um corpo de sujeitos que compõe esta, o que identifica
a permanência da individualidade de ambos (do Cristo e de seus fiéis) e aponta para uma
“Salvação” em que a angústia não será suplantada, que a solidão (própria do abismo
que nos separa em mundos distantes) persistirá neste “lugar” incerto, com este ser que
permitirá apenas que O contemplemos, sem no entanto sê-lo, ou seja, ainda permanecerá
216
BATAILLE, G. A experiência Interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné,
Antonio Ceschin. São Paulo: Ática, 1992. p. 54.
217
INÁCIO, de Antioquia. Romanos 4,3.
218
COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon, Petrópolis RJ: Vozes, 1986.
p. 34 e 35.
219
DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo:
Paulus, 2003. p. 470.
84
entre fiel e Deus uma lacuna, um desejo inalcançável, visto que a fusão que destruiria a
solidão de cada homem permanece, e que a imanência (o fim da utilidade e da
catalogação) não será alcançada. Se não há extermínio da angústia, o que se prolongará é
uma nova existência Descontínua, possivelmente mais aterrorizante que a anterior, nesta
prisão celestial, a contemplação “do amor supremo” será expiatória, mas uma nova dor,
conduzida ao extremo, é a Descontinuidade dentro da Continuidade:
“[...] bem mais, ele geralmente fez do além desse mundo real o prolongamento de todas as
almas descontinuas. Ele povoou o céu e o inferno de multidões condenadas juntamente
com Deus à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e danados, anjos e
demônios, tornaram-se os fragmentos imperecíveis, para sempre divididos, arbitrariamente
distintos uns dos outros, arbitrariamente separados dessa totalidade do ser à qual, contudo,
eles devem se juntar”
220
A idéia de que o paraíso cristão ofertaria o repouso nos braços do Pai
resguardava apenas a certeza de não partilhar com Cristo sua divindade, assim, tal qual
os demônios, também os santos estarão condenados à Descontinuidade de sua
personalidade. O que observamos no cristianismo é ascensão da angústia. A Interdição
sacramenta a solidão. O amor que deveria ser compartilhado transforma-se numa
armadilha, de onde os santos não poderem escapar, que todo o amor não é suficiente
para alcançar a divindade numa fusão com o Filho do Homem. A Perfeição, tão
ambicionada, amplia o inesgotável desejo cristão de uma ascese infinita, porém não
descanso, onde reina a particularidade. Sem a possibilidade de Transgressão a própria
Salvação anula-se; anjos e puros estão mergulhados no mesmo inferno pessoal dos
demônios e o projeto se torna num texto sem fim.
3.2. Inácio e a Imitação do Cristo
Cristo é a tentativa humana de materialização de um Deus com as mesmas
características de nossa natureza inexata, mas contendo em si a possibilidade de
emancipação desta. O Nazareno é a ponte para o sonho de alcançar a Continuidade a
partir do Sacrifício de um único Cordeiro. Para tanto, deve-se levar a angústia humana
ao limite, e esta é a mágica cristã - transformar e propagar o terror, como se este
transparecesse o bem. Toda fome - de virtude ou depreciação - pode ser saciada na
220
Ibidem, p. 187.
85
figura de Deus, que, feito Carne, ofertou o espetáculo de sua morte de maneira
retumbante. É no drama, que a dor se expõe:
“O cristão dramatiza facilmente a vida: vive perante o Cristo que, para ele, é mais do
que ele próprio. O Cristo é a totalidade do ser e no entanto, ele é, como o “amante”,
pessoal como o “amante”, desejável: e de repente o suplício, a agonia, a morte. O
fiel do Cristo é levado ao suplício. Levado ele próprio ao suplício: não a qualquer
suplício insignificante, mas à agonia divina. o somente ele tem o meio de atingir
o suplício, mas ele não poderia evitá-lo, e é o suplício do mais do que ele é, do
próprio Deus que é contudo tão homem quanto ele, e igualmente sacrificável.”
221
Em Bataille, pensar em Deus é pensá-lo numa existência tristonha,
vingativa, ilógica e anti-tomista. Um Deus solitário que, angustiado, angustia toda a
criação, chegando ao seu ápice, no desejo de consumação de Si em seu filho; Em Cristo,
o sofrimento humano encontra seu representante máximo, o crucificado é a imagem da
Transgressão; não mais Isaac, nem cordeiro, apenas a súplica. Em Deus, o peso do
absoluto e da Perfeição arremessa os seus à sua “solidão esgotante”
222
, criando no
homem o anseio de desejar ir para além de si mesmo, que fracassa na barreira de
Perfeição fundada por seu próprio Criador, que, no entanto, atrai os homens para a
imensidão de seu Ser agonizante:
A agonia de Deus, na pessoa do homem, é fatal, é o abismo onde a vertigem
solicitava-o a cair. A agonia de um Deus não se interessa pela explicação do pecado.
Ela justifica não somente o céu (a incandescência sombria do coração), mas o
inferno (a infantilidade, as flores, Afrodite, o riso).”
223
É só no Gólgota que a experiência de Deus se fez escandalosamente visível. Cristo
nos arremessou ao seu amor trágico, que nos aponta para o impossível batailliano, para
além da enfermidade seqüencial de nossa existência. A salvação de uma multidão de
pecadores cabe em seu corpo, mas uma multidão de puros não podem assemelhar-se à
sua Carne. Este amor avassalador apregoado pelo Cristo incita os fieis à pacificação dos
instintos e alimenta a piedade entre os homens. Em Cristo, a violência Criadora do Pai,
221
BATAIILE, Georges. A Experiência Interior, p. 31.
222
Ibidem. p.42.
223
Ibidem. p. 54.
86
deveria ser extinta, substituída por um amor benevolente que conduzisse todos à
passividade de uma angústia solitária, em que nenhuma violência deveria co-existir com
o amor absoluto do Filho que foi enviado para nos arremessar a uma harmonia
contemplativa e tediosa, longe do movimento assolador exercido pela Animalidade.
O Erotismo dos corpos se liquefez, perdendo-se dentro de uma multidão de
prescrições. O corpo sofreu as mais fortes Interdições; a violência a ele associada,
interiorizou-se, calou-se. O corpo deveria ser agora santificado, apartado do profano e
utilizado apenas como uma via de multiplicação reprodutiva de novos fiéis que, tal qual
seus pais, deveriam ser educados segundo as regras espirituais, em que a celebração da
morte do cordeiro, poderia suprir a necessidade de sacrifícios de sangue das gerações
futuras.
Com ascensão do cristianismo, restou pouco espaço para Transgressão visível,
tal qual a conhecíamos, a não ser na imaginação e na repetição artística incessante do
sacrifício do Cristo; Nele todos os elementos borbulham e impulsionam a esperança de
homens, que por séculos tentam imitá-lo, no intuito de sentir em sua pele a dor de um
Deus que padece diante de uma humanidade ávida por Continuidade. O corpo de Jesus
transformou-se na dádiva suprema, nada poderia ter maior valor que a destruição
exuberante da vida de uma divindade.
“Os cultos exigem um desperdício sanguinolento de homens e de animais de
sacrifício. O sacrifício não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não
a produção de coisas sagradas. Antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são
constituídas por uma operação de perda: o sucesso do cristianismo, em particular,
deve ser explicado pelo valor do tema da crucificação infame do filho de Deus, que
leva a angústia humana a uma representação da perda e da desgraça sem limites.”
224
Toda a narrativa da Paixão é uma encenação gloriosa de um suplício com
características universais. Todos encontram lá: dor, humilhação e violência, itens
imprescindíveis para atrair intimamente os seres Descontínuos, que encontram no
Salvador o receptáculo perfeito de toda a sua fome de selvageria, porém, com um ar
justificado e santo. O corpo do Cristo, o pão do consumo, é a Transgressão velada em
forma de santidade e pureza. É a ficção da materialidade da Continuidade e o fracasso
da integração com o criador. Na sua solidão da cruz, ao lado de dois Transgressores e
224
BATAILLE, G. A Parte Maldita, p. 31.
87
de inúmeros outros aos seus pés, Jesus ofertou a gratuidade do banquete de sua dor,
que foi admirada e imitada por homens como Inácio. Não foi a sua santidade
interditora que redimiu os pecados, mas sim sua Transgressão mansa, de Carne crua e
derrota exposta a chacota pública.
O crucificado, que intentou afugentar o a animalidade entre o seus, criou apenas
novas linguagens para expressa-las, como nas figuras atormentadas de seus mártires
que, na certeza da Continuidade, tentaram desesperadamente copiá-lo, encontrando na
morte violenta, uma proximidade ainda maior com a existência animal. Já que a Carne,
meramente simbólica do Cristo, não era suficiente (como não foi para Inácio), tornava-
se necessário provar o flagelo, não mais através do Outro, mas na própria Carne.
A Interdição, em forma de recato, limpeza e moderação, pedia aos seus fiéis
mais que submissão, mas também a Transgressão de uma vida improdutiva, ociosa,
aquém da técnica. O santo, exemplarmente, é um desocupado, que transfere sua libido
à benevolência amorosa da caridade sem recompensa, puro dispêndio em seu desejo de
consumir o mínimo e distribuir o máximo entre os seus. “O santo não está à procura da
eficácia. É o desejo e somente o desejo que o anima: nisso ele é semelhante ao homem
do erotismo.”
225
Assim poderíamos entender que o homem sadiano e o santo o
igualmente soberanos na procura pelo desfecho derradeiro de suas existências, no ato
Transgressivo de suas escolhas que os conduziram ao extremo, onde a morte e a
violência de seus desejos (de salvação ou de libertinagem) os arremessaram a uma
instancia muito semelhante, de solidão e sacrifício.
3.3. A Carne Animal como Corpo Santo
Qual a Carne a ser dada em sacrifício, senão a Carne que contém em si a
insuficiência própria de sua natureza? Será esta a Carne dada aos animais na arena, a
Carne que representa o esvaziamento de todos os desejos, e que nada mais é que uma
oferta humilde ao Deus que também ofereceu a própria Carne como alimento espiritual
aos seus. Quando Bataille analisa: “A Carne é em nós esse excesso que opõe à lei da
decência. A Carne é o inimigo inato daqueles atormentados pela interdição cristã”
226
,
nos encontramos novamente com o dilema, já analisado em Dunn, no qual a superação
da Carne será o portal para uma nova vida, para longe da fraqueza a ela relacionada. É
225
BATAILLE, G. O Erotismo, p. 402.
226
Ibidem, p. 144.
88
esta extensão sensível e desejosa que Inácio entregou de bom grado às feras que serão
por ele acariciadas, se necessário for. Finalmente, seu corpo, antes guardião do pecado,
estaria à disposição da morte. Uma das principais características da ânsia cristã por um
distanciamento da natureza está centrada na idéia de incorruptibilidade, de uma postura
que mantivesse o corpo imune às inúmeras possibilidades de prazeres ilícitos que
poderia dispor. O exemplo a ser seguido era o do próprio mestre, que tomou em sua
Carne todos os pecados do mundo e os anulou por intermédio de sua dor.
Libertar-se do corpo (e sua cadência carnal) implicava em alforriar-se da
“escuridão de Adão”
227
, em ter um corpo que superasse a estrutura falha de suas
vontades. O anseio de ser “moído pelos dentes das feras”
228
como escreve Inácio,
aponta para um desejo de desestruturação do corpo. Por fim, recorreremos ao tema do
dilaceramento da vítima por ser este um dos mecanismos utilizados por Bataille para
compreensão do sacrifício. O autor sempre se preocupou demasiadamente em separar as
partes baixas da divindade da cabeça que louva o Senhor (através de pensamentos e
palavras), e esse seria exatamente um dos intentos desta fé: ou seja: desprezar o impulso
sexual e louvar a parte superior do corpo. Para tanto recorreremos à analise de Eliane
Robert Moraes sobre o tema no autor: “a matéria baixa é exterior e estranha às
aspirações humanas ideais e recusa deixar-se reduzir às grandes máquinas ontológicas
que resultam dessas aspirações”
229
. O animal, por não se manter em pé, representa
comumente a parte inferior do corpo humano, a parte que resguarda a selvageria e os
impulsos; daí nasce a recusa em observar as parte debaixo, ligada ao anseio de
esquecimento deste movimento animal e a interferência na relação de harmonia com seu
corpo como analisa Eliana em relação a obra batailliana:
“Porque o homem, deixando de ser arborícola como os macacos, ‘Tornou-se ele
mesmo uma árvore, quer dizer, levanta-se no ar como uma árvore’. Por isso, ele
tende a afastar-se o mais que pode da lama terrestre e ao ‘elevar-se em direção ao
céu e às coisas do céu, ele olha para o seu pé na lama como se fosse um escarro”.
230
A afirmação de Inácio de que seu corpo poderia ser “moído pelos dentes das
feras”, aponta para a aceitação do desmembramento do corpo, porém tendo como
227
Cf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. p. 125.
228
INÁCIO, de Antioquia. Romanos 4,1.
229
MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002 . p.203.
230
Ibidem. p 195.
89
objetivo a ressurreição, que em si, é a promessa de recomposição plena do corpo, não
deste corpo animal, mas de um corpo santo. Para atingir este estado de pureza, no
entanto, seu Corpo mortal deveria passar pelos dentes das feras.
Sua altivez martírica que cai, como um edifício que se sustenta em terreno
pantanoso, estruturado por meio de um projeto falho, é em si a representação de uma
Transgressão suprema, que faria Tertuliano, Sade e Bataille entrarem em acordo, que
a ânsia de martírio de Inácio continua sendo a mesma a exaltação da Carne (como
sacrifício divino a Deus), que constitui matéria nascida para o abate em Sade e como
singular invólucro em que morte e cópula se misturam na obra de Georges.
Inácio, ao entregar-se a Cristo, retorna ao seio da criação, transforma-se
novamente em silêncio e é devolvido à carne à qual sempre desprezou; os leões
devoram o bispo e toda a sua hierárquica tentativa de fugir dos seres que, absortos no
nada, são como o cordeiro morto na cruz.
CONCLUSÃO
91
Quando Bataille escreve: “Minha intenção em certo sentido, difere pouco das
paixões ardentes dos heróis de Sade, mas que, no entanto, está próxima aos mártires e
aos santos.”
231
, o autor abre com isso um precedente para que uma investigação seja
iniciada sobre esta possível aproximação entre libertinos e santos. Porém, mais que uma
aproximação carnal entre estes, uma nova ousadia deveria ser admitida, ou seja,
observá-los por intermédio dos elementos ocultos no carnal: violência, morte, coito, ou
sejam, a Animalidade.
Dos corpos que furiosamente se destroem nas novelas sadianas ou nas narrativas
cinematográficas expostas nas legendas dos mártires, nosso ousado intento foi
aproximar estas estruturas corpóreas da essência animal, do movimento que permeia e
assombra as cadeias de Inácio como também inspira a brutalidade que domina as ações
dos habitantes do Castelo de Silling, do livro 120 de Sodoma. Entre estes homens
aparentemente opostos - existe a necessidade de “perder-se”, de deixar-se dominar por
um instante de esquecimento de si, não somente de suas individualidades, mas também
da razão escravizante. Obviamente que tratar um texto religioso nascido nos primeiros
séculos da era cristã pelo viés da filosofia moderna e multifacetada de Georges Bataille
requer si um ato de santidade e de libertinagem em justa medida. Mas, mesmo
tendo conosco a certeza que muitas outras questões poderão ser trabalhadas de forma
mais prolongada, pensamos que este trabalho veio cumprir seus designos, o de criar
uma ponte argumentativa entre “Os leões e a Cruz”, entre “Bataille e Inácio”.
Já que, afirmar que o sacrifício cristão apresenta-se como uma tentativa de
retorno a imanência animal (ao eterno presente), não seria um atrevimento demasiado,
visto a afirmação de Bataille: o que “a experiência mística revela é uma ausência do
objeto.”, enfim a morte abre-se para este retorno silencioso, a nossa essência animal.
231
BATAILLE, Georges. Sobre Nietzsche Voluntad de suerte. Tradución de Fernando Savater.
Madrid: Taurus, 1986, p.12.
_____________________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
93
Leituras primárias
BATAILLE, Georges. A Parte Maldita. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de
Janeiro: Imago, 1975
_________________. Lo que entiendo por soberanía. Tradución de Pilar Sánches
Orozco y Antonio Campillo, Madrid: Gallimard, 1976
_________________. Sobre Nietzsche Voluntad de suerte. Tradución de Fernando
Savater. Madrid: Taurus, 1986
_________________. Teoria da Religião.Tradução de Eliane Robert Moraes. São
Paulo: Ed. Ática, 1993.
_________________. O Erotismo. Tradução de Cláudia Fares. São Paulo: ARX, 2004.
_________________. A literatura e o mal. Tradução de Antonio Borges Coelho.
Lisboa: Ed. Ulisseia, 1957,
_________________. A experiência Interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho,
Magali Montagné, Antonio Ceschin. São Paulo: Ática, 1992
_________________. História do Olho. Tradução de Elliane Robert Moraes. São
Paulo. Cosac & Naify. 2003
_________________. Las lágrimas de Eros. Traducción de David Fernandez.
Barcelona: Tusquets Editores Barcelona, 1981.
_________________. Letrres, Martyre de Polycarpe.Traducion et notes de P. Th.
Camelot. Paris: Éditions du Cerf, 1951
_________________. Oeuvres complétes I, Écrits postthumes (1922-1940), Paris:
Gallimard, 1972
_________________. Oeuvres complétes II, Écrits postthumes (1922-1940), Paris:
Gallimard, 1972
_________________. Somme Sthéologique II Le Coupable, Paris: Gallimard, 1972
INÁCIO, Antioquia. Cartas de Santo Inácio de Antioquia.Tradução de Dom Evaristo
Arns. Petrópolis RJ: Vozes, 1984
94
Leituras secundárias
ADRIANO, José, Cônego. Testemunho e Martírio na Sagrada Escritura, Revista de
Cultura Teológica, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. Vol. 02,
nº8, julho1994
ATANÁSIO (295-373). Contra os pagãos, A encarnação do verbo: Apologia do
imperador Constâncio: apologia da fuga: Vida e conduta de santo Antão. Tradução
de Orlando Tiago Loja Rodrigues Mendes. São Paulo. Editora Paulus, 2002.
AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário histórico das religiões. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002
BARREIRO, Álvaro. Os mistérios da vida de Cristo nas cartas de santo Inácio de
Antioquia e sua importância atual. Perspectiva Teológica. número 93, pg 247-265.
Ano 2000. Belo Horizonte MG: O Lutador
BARTH, Karl. Carta aos Romanos.Tradução de Lindolfo K. Anders. São Paulo: Novo Século, 2000.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Tradução de Maria de Santa Cruz, São
Paulo: Edições 70, 1971
BENZ, Ernest. Descrição do Cristianismo. Tradução de Carlos Alberto Pereira.
Petrópolis: Vozes, 1995
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém.Nova edição, revista e ampliada. Paulus, 2004
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita II: A Experiência Limite.Tradução de João
Moura Júnior. Editora Escuta.São Paulo. 2005.
BOEHNER, Philotheus . GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde às
origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier, 8a edição, Petrópolis.
Vozes, 2003.
BORGES, Augusto C. Georges Bataille: Imagens do êxtase. Agulha: Revista de
cultura. N 9; Fortaleza; São Paulo; Fevereiro de 2001
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início
do cristianismo primitivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
Editor. 1990.
BREMMER, Jan. De Safo a Sade: Momentos na história da sexualidade, Tradução de
Cid Knipel Moreira, Campinas-SP: Papirus, 1995
BUENO, Daniel Ruiz. Padres Apostólicos. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid,
1950.
_________________. Actas de los mártires. Madrid. La editorial Católica, 1951.
BUTLER, Alban. Vida dos Santos. Tradução de Hamilton Francischetti; organizado por
Herbert Thurston J. e Donald Attwater. Petrópolis, RJ, Vozes, 1984.
95
Catecismo da Igreja Católica. Edição revisada de acordo com o texto oficial em Latim.
São Paulo. Loyola
CESAREIA, Eusébio. História Eclesiástica.Tradução Monjas beneditinas. São Paulo:
Paulus, 2000.
CIPRIANO, São. Tratados e Cartas.Organizador Julio Campos Schap. Madrid, 1964
COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon, Petrópolis RJ: Vozes,
1986.
______________. Epístola aos Filipenses, Petrópolis RJ: Vozes, 1985.
CORBELLINI, Vital. A na Ressurreição da Carne em Tertuliano. Teo
Comunicação. Vol. 37, No 156 junho 2007
Dicionário de Mistica, dirigido por L. Borrielo. E. Caruana, M.R. Del Gênio, N. Suffi.
São Paulo. Editora Paulus: Edições Loyola, 2003.
DUNN, James D.G., A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São
Paulo: Paulus, 2003
EUSÉBIO, Bispo de Cesárea. História Eclesiástica. Tradução das Monjas Beneditinas
do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo. Editora Paulus, 2000.
FOUCAULT, Michel. Prefácio a Transgressão. IN: Ditos e escritos III. Estética:
literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
GIANNATTASIO, Gabriel. Sade, Um Anjo Negro da Modernidade.São Paulo:
Imaginário, 2000
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Tradução de Martha Conceição Gambini.
São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1990.
______________. O Bode expiatório,Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus,
2004
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade.Tradução de Luis Sérgio
Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
IRENEU, Bispo de Lião . Contra as Heresias. Tradução de Lourenço Costa.. São
Paulo: Paulus, 1995.
JUSTINO, Mártir, Santo Justino de Roma: I e II apologias: diálogos com trifão.
Tradução de Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995
96
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade, meu próximo. Tradução de Armando Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
KOESTER, Helmut.Introdução ao Novo Testamento: 2. História e literatura do
cristianismo primitivo. Tradução de Paulo Feine, Johannes Behm e Isabel Fontes
Leal. São Paulo, Paulus, 2005.
PÁL , Peter pelbart. O corpo do informe: IN . leituras do corpo. Organizado por
Christine Gruner, Cláudia Amorin. São Paulo: Anablumer, 2003
LEIRIS, Michel. Espelho da Touromaquia. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo:
Cosac&Naify.2003
LESBAUPIN, Ivo. A bem-aventurança da perseguição. Petrópolis: Vozes, 1975
McGRATH, alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução a
teologia cristã. Tradução de Marisa K.A. De Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd
publicações, 2005
MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. Tradução de Paulo Neves São
Paulo: Cosac Naify, 2005.
MAUSS, Marcel . Ensaio sobre a dádiva.Tradução de Antônio Filipe Marques. Lisboa-
PT, Edições 70, 2008
______________. Sociologia e Antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003
MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível, São Paulo: Iluminuras, 2002
____________________. Sade, a Felicidade Libertina, Rio de Janeiro. Imago. 1994.
____________________. Lições de Sade, ensaios sobre a imaginação libertine, São
Paulo. Iluminuras, 2006.
MORESCHINE, Claudio e Enrico Norelli. História da Literatura Cristã Antiga grega e
latina: de Paulo à era Constantiniana. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo.
Edições Loyola, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra.Tradução de Alex Marins. São Paulo:
Martin Claret, 2009
___________________. O Anticristo: Maldição ao Cristianismo: Ditirambos de
Dionísio. Tradução de César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
O Desejo /Organizador Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das letras. Rio de
Janeiro-Funarte, 1990
ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis. São Paulo.Paulus, 2004
97
ROPS, Henri Daniel. História da Igreja de Cristo I:A igreja dos apóstolos e dos
mártires. Tradução de Eduardo Pinheiro.Porto: Livraria Tavares, 1960.
RUIZ BUENO, Daniel. Actas de los mártires. Madrid: La editorial Católica, 1951.
SADE, Marquês. Os 120 dias de Sodoma. Tradução de João M.P. de Albuquerque. São
Paulo: Aquarius, 1980.
SALOMÉ, Lou Andréas.Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. Tradução
de Antônio Daniel Abreu . São Paulo: Landy. 2005.
SAURAS, Emílio. El Cuerpo Mistico de Cristo.Madri, 1956
SARTRE, Jean Paul. Situações I. Tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac&Naify,
2005
TERTULIANO, El Apologético. Traducción y notas de Julio Andión Marán. Madrid:
Ciudad Nueva, 1997
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vida dos santos. Traduzido por Hilário Franco
Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
THURSTON, H. J.; ATTWATER, D.; Vida dos Santos de Butler. Vol. II. Trad.
Hamilton Francischetti. Petrópolis, Vozes. 1985.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo