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Ludmila Costa Ribeiro
A cosmovisão africana da morte:
Um estudo a partir do saber sagrado em Mia Couto.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários, da
FALE Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito à obtenção do título de Mestre em
Literatura.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade
Orientadora: Prof
a
Sabrina Sedlmayer
Belo Horizonte
2010
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Aos ancestrais, gurus e amigos espirituais que prevalecem sobretudo.
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11
Agradecimentos
Agradeço à Sabrina pela orientação cuidadosa;
à minha mãe, pelo tamanho que o amor pode ter;
ao Juninho, meu amor, pela espera zelosa e pela reelaboração do mapa;
à Cris, pela revisão e pela presença amiga;
ao Pedrinho, pela tradução e pelos debates filosóficos;
aos meus familiares e principalmente aos meus irmãos: Ro, Ju, Le Iel e à prima Tamara;
aos amigos, estes que não podem faltar nunca;
à minha família de coração, tribo 44;
à Prof. Sônia Queirós pelo parecer do projeto definitivo e pelas indicações bibliográficas;
à Escola Alternativa pelo incentivo para dar prosseguimento ao mestrado;
à Biblioteca Universitária e aos seus funcionários que me abrigaram por longos meses de
estudo;
ao Programa de Pós Graduação em Letras Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais.
12
A morte sim era o intensíssimo clarão, o deflagrar de estrela. Um sol
entrando na vista, ao ponto de tudo ser visível por sombra. Dito e
redito: a sombração, o acontecer do já havido futuro.
A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra,
pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.
(Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra)
13
Resumo
Os temas da ancestralidade e do saber sagrado se fazem largamente presentes na produção
literária africana atual. Articuladores da memória e da performance cultural, reportam à
cosmovisão no que ela tem de invisível-intraduzível. Mia Couto, um dos escritores
moçambicanos mais conhecidos e premiados da atualidade, percorre em sua literatura um
trajeto sobre o saber tradicional e seus desdobramentos na sociedade contemporânea. Em seus
textos, dentre os diversos pontos relacionados ao universo sagrado, destacam-se
principalmente a morte, a espiritualidade e suas formas de manifestação sendo, em grande
parte de seus livros, temas centrais. Tangenciadoras dos fenômenos sobrenaturais, elas
carregam em si conhecimentos antigos e complexos que se permeiam através do tempo
atualizando-se sempre. A discussão sobre os modos como diferentes expressões da
ancestralidade são recuperados por Mia Couto em sua escrita é um dos trabalhos realizados
nesta dissertação. Nesse caminho, os estudos de Mircea Eliade acerca do sagrado e do profano
são referenciais teóricos centrais. Esta dissertação, ademais, se interessa especialmente pelos
aspectos sobrenaturais que envolvem a morte: a relação entre mortos e vivos, os ritos de
passagem, as formas de intercessão dos não-viventes com os viventes, enfim, as
manifestações transcendentes do sagrado. Para este recorte, as pesquisas de diversos
etnólogos sobre a cultura africana e sobre outras culturas do mundo foram essenciais. Esses
elementos, por sua vez, serão analisados especificamente nas narrativas A varanda de
frangipani e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto, por serem,
nestas obras, presentificados valiosos aspectos do simbolismo tradicional africano.
14
Abstract
The themes of ancestry and sacred knowledge are made widely present in African literature
today. Articulators of memory and cultural performance, relate to the worldview in what it has
of invisible-untranslatable. Mia Couto, one of the best known and awarded Mozambican
writers of today, runs through its literature, a course on traditional knowledge and its
consequences in contemporary society. In his writings, among the various points related to the
sacred universe, stand out especially death, spirituality and its forms of manifestation wich
are, in most of his books, central themes. Tangential of supernatural phenomena, they carry
within them ancient and complex knowledge that permeate through time, always renewed.
The discussion about how the different ways in terms of ancestry are recovered by Mia Couto
in his writing is one task of this dissertation. In this way, studies of Mircea Eliade about the
sacred and the profane are central theoretical references. This work, moreover, is particularly
interested in the supernatural aspects surrounding death: the relationship between dead and
alive, rites of passage, the forms of intercession from non-living with the living, in short, the
manifestations of the sacred transcendent. For this crop, the research of several
anthropologists on African culture and other cultures of the world were essential. These
elements, in turn, will be analyzed specifically in the narratives A varanda de frangipani and
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, for Mia Couto, in these works, made
present valuable aspects of traditional African symbolism.
15
Sumário
1. De um lado e outro das palavras .......................................................................................09
1.1 As narrativas ......................................................................................................................17
2. Lá onde o vento desenrosca sua imensa cauda ................................................................23
2.1 Gestos tradicionais .......................................................................................................24
2.2 Outra noção de realidade...............................................................................................26
2.3 Noção de pertencimento................................................................................................28
2.4 Quando o sagrado se manifesta.....................................................................................30
2.5 Animais sagrados..........................................................................................................32
2.6 Axis mundi Árvore sagrada........................................................................................35
2.7 Construção ritual da morada.........................................................................................39
2.8 Natureza como entidade Simbologia dos elementos..................................................42
2.8.1 Céu................................................................................................................................43
2.8.2 Terra..............................................................................................................................45
2.8.3 Água..............................................................................................................................47
3. O acontecer do já havido futuro........................................................................................51
3.1.1 Mitologias da morte......................................................................................................51
3.1.2 Etimologia da alma........................................................................................................52
3.1.3 Dissociação corpo-alma................................................................................................56
3.2 O encaminhamento ritual da alma.................................................................................61
3.2.1 Preceitos do ritual.........................................................................................................63
3.2.1.1 Ser quente......................................................................................................................66
3.2.1.2 Destelhamento...............................................................................................................68
3.3 Ritos de passagem........................................................................................................70
16
3.3.1 Circuncisão...................................................................................................................74
3.3.2 Ritos femininos de puberdade......................................................................................76
3.4 O sepultamento a partir da cosmogonia........................................................................77
3.5 Feitiços e feitiçaria........................................................................................................80
3.5.1 A atuação do xipoco.....................................................................................................84
3.5.2 Outra face da magia......................................................................................................85
4. A gente se acende é nos outros...........................................................................................89
4.1 Contatos e ressonâncias......................................................................................................89
4.2 O contemporâneo e o contraponto da tradição em Mia Couto...........................................94
4.2.1 Os de fora.........................................................................................................................96
4.2.2 Sincretismo religioso........................................................................................................98
4.3 O contemporâneo: intempestivo e inatual...........................................................................99
5. Referências.........................................................................................................................101
17
1. De um lado e outro das palavras
A espiritualidade comporta uma série de preceitos que guiam a forma de ser e estar no mundo
da tradição africana e desdobra-se na temporalidade buscando formas de permear e
prevalecer, atualizando-se sempre, mesmo com as tantas influências do tempo presente, por
vezes contrárias a esta espiritualidade. Um mundo no qual a relação com o sagrado é
permanente conforma uma realidade desdobrável, na qual os parâmetros modernos muitas
vezes não alcançam compreensão. A herança racional moderna é tantas vezes ignorada que
apenas um deslocamento de perspectiva é capaz de vislumbrar as possibilidades de
conformação desse lócus. Mia Couto, em sua literatura, nos fala desses intensos embates entre
a cultura mítica tradicional e a moderna. Esse autor, atualmente um dos mais conhecidos
escritores africanos no estrangeiro, é amplamente premiado principalmente por sua produção
narrativa de contos, crônicas e romances. Falando de uma África atual, e especificamente de
Moçambique, com suas amplas teias de influências, Mia Couto traz um olhar voltado aos
valores sobrenaturais das formas ancestrais, revelando possibilidades e impossibilidades de
diálogo da tradição com a modernidade e com as formas compósitas advindas da
globalização. Desse diálogo conflituoso nos fala, no romance Vinte e Zinco do autor, o
personagem português:
A Lourenço Castro irritava era esse sim e não dos assuntos em África. Esse poder
ser e não ser, essa líquida fronteira que separa o possível do impossível. Como se a
verdade, nos trópicos, se tornasse em coisa fluida, escorregadiça. O que agastava ao
português era o ser enganado sem nunca lhe chegarem a mentir.
1
A líquida fronteira que separa o possível do impossível, de que nos fala Lourenço Castro,
possibilitando verdades tão fluidas que não deixam de ser mentira, marca uma hipertrofia do
real, característica da visão mística do mundo tradicional. Assim, no projeto literário de Mia
Couto, a voz da ancestralidade se sobressai e é repovoada pela ficção. Essa voz que revela um
território mítico, profundo e enraizado, com motivos antigos e longamente repetidos por
povos e eras, provoca, quase sempre, estranhamento à modernidade.
As estudiosas de Literatura Africana, Maria Nazareh Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury, em
seu livro Mia Couto: espaços ficcionais, localizam a conformação do mito ancestral em
relação à sociedade atual na obra do escritor moçambicano:
A remissão à origem que acompanha a narrativa sagrada do mito, exercendo função
exemplar e reguladora nas sociedades arcaicas, função de harmonizar tempos
1
COUTO. Vinte e Zinco, p. 128.
18
diferentes o imemorial e o presente -se na obra de Mia Couto, atualizada. Isso
se sem a ilusão de uma volta à pureza das origens, pureza sempre presente nas
estratégias de fabricação do projeto nacional. Subverte-se, de certa forma, o mito,
mas simultaneamente ele é valorizado, na possibilidade de a ele se agregarem novos
sentidos. Desse entre-lugar contraditório é agenciada a ideia de nação nos romances,
desacreditando-a, reitere-se, como projeto harmonizador.
2
Ao reportar-se à narrativa sagrada do mito, Mia Couto retoma, conforme as autoras
pontuaram, a concepção de sociedades arcaicas e a diferenciação essencial entre o sagrado e o
profano, tema central do trabalho do estudioso das religiões Mircea Eliade. Este destaca-se
como um grande nome na Ciência das Religiões, ocupando-se em seus livros de analisar os
elementos comuns das diversas religiões, buscando decifrar-lhes as leis da evolução e,
sobretudo, precisar a origem e a forma primeira da evolução.
No célebre livro O sagrado e o profano, Mircea Eliade discorre sobre a oposição entre estas
duas formas de ser no mundo e revela a ligação essencial dessas concepções com a realidade,
o cosmo, a vida e a morte. O autor nos revela que a existência completamente profana é uma
descoberta recente na história do espírito humano, o cosmos dessacralizado caracteriza a
experiência do homem não-religioso das sociedades modernas. Este, por sua vez, torna-se
cada vez mais atrelado à matéria e distante do sobrenatural, o que gera, segundo o autor, uma
dificuldade de reencontrar suas dimensões existenciais e o distancia largamente da perspectiva
do homem religioso das sociedades arcaicas. Denominarei, neste trabalho, assim como Eliade,
as sociedades antigas, tradicionais, por sociedades arcaicas justamente devido à
complexidade de suas formas de existência e evitarei, assim, o uso da expressão sociedades
primitivas da qual pode-se subentender um sentido inferiorizante.
O estudo comparativo das religiões mostra que o modo de ser no mundo do homo-religiosos
das sociedades arcaicas, seja qual for o contexto que se encontre e considerando as inúmeras
formas histórico-religiosas, considera sempre a existência de uma realidade absoluta, o
sagrado, que transcende este mundo, mas que manifesta-se nele e, por este fato, o santifica e
o torna real. A vida, portanto, tem uma origem sagrada e a existência religiosa atualiza as
potencialidades do sagrado na realidade. A história das obras divinas e semidivinas está
conservada nos mitos. Assim, para os homens das sociedades arcaicas, o mito de origem é
fundamental para estabelecer seu modo de ser no mundo que deve ter como referencial o
tempo exemplar da criação. Reatualizando a história sagrada, imitando o comportamento
divino, o homem instala-se e mantém-se junto dos deuses, quer dizer, no real e no
2
FONSECA. Espaços ficcionais, p. 83.
19
significativo. Essa repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: por um lado,
imitando os deuses, o homem se mantém no sagrado e, por consequência, na realidade; por
outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é
santificado. O homem religioso, portanto, só pode viver num mundo sagrado porque, para ele,
somente tal mundo participa do ser, existe realmente.
Embora os trabalhos de Mircea Eliade tenham sido bastante criticados por posteriores estudos
antropológicos por traçarem uma oposição radical entre o sagrado e o profano, criando um
comparativismo dicotômico entre essas instâncias e por não problematizar questões tidas
como importantes tais quais: como ou por que se origina a ideia de sagrado?; ou por adotar a
perspectiva e a linguagem do homem que crê e, dessa forma, não estabelecer uma postura
imparcial exigida pelas ciências humanas; suas teorias interessam a esta pesquisa
principalmente pelo rigor e erudição com que elementos do sagrado são por ele trabalhados.
Além disso, deve-se marcar a importância do estatuto ontológico que este teórico realiza na
releitura de fatos e objetos da realidade circundante, o que promove um encontro fecundo
entre os seus pressupostos e a literatura de Mia Couto.
A sociedade tradicional africana, que nos apresenta Mia Couto em sua obra literária, encontra-
se, em diversos pontos, em consonância com a perspectiva arcaica e seus mitos originais.
Encontramos em sua produção, um convite a deslocar o olhar para as formas sagradas de
vivenciar o mundo africano, conforme nos apresenta Marianinho, personagem do livro Um rio
chamado tempo, uma casa chamado terra: “Nenhuma pessoa é uma vida. Nenhum lugar é
apenas um lugar. Aqui tudo são moradias de espíritos, revelações de ocultos seres.” (p. 201.)
As inúmeras formas de manifestação do sagrado provocam, por sua vez, um certo mal estar
no mundo moderno, de acordo com Mircea Eliade: “O comportamento religioso [do homo
religiosos] parece-nos, hoje, excêntrico, senão francamente aberrante; é em todo o caso muito
difícil de compreender um universo mental alheio, senão situando-se dentro dele, no seu
centro próprio, a fim de acendermos, a partir daí, a todos os valores que tal universo
comanda.”
3
É desse mundo transcendente, desse universo mítico que nos fala o autor moçambicano ao
3
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 173.
20
trazer para sua obra o sagrado e o ancestral. Ao tratar desses valores tendo como cenário uma
África atual, ele retoma e reinventa as referências tradicionais, mostrando seus fluxos e
influxos. Ou, conforme explicitou Fonseca e Cury, ao ser subvertido, o mito é
simultaneamente valorizado e atualizado, pois agrega-se a ele novos sentidos. Segundo as
autoras:
A literatura de Mia Couto, ao mesmo tempo que bebe nos costumes mais
tradicionais, não os assume criticamente. Há simultaneamente uma retomada da
tradição, até com reverência, e sua proposital rasura, como nos processos periódicos.
Os pactos de leitura desalojam o leitor dos lugares consagrados, levando-o a refletir
sobre a situação compósita do modo como a cultura se apresenta, atravessada por
afirmações e negações.
4
Assim, Mia Couto não assume, conforme os estudos essencialistas desejam demonstrar, um
discurso nostálgico e lamentoso da impossibilidade da volta efetiva às origens, a uma África
arcaica no sentido estrito do termo, mas tematiza os discursos simbólicos, míticos, carregados
da exemplaridade própria da tradição em relação às suas conformações e possibilidades de
sobrevivência ou sucumbimento à realidade moderna. Aos estudos e às produções literárias
puristas que desconsideram a atualidade, o autor se contrapõe veementemente, o que foi
apresentado em entrevista concedida à Universidade Federal de Minas Gerais:
Defensores da pureza africana multiplicam esforços para encontrar essa essência.
Alguns vão garimpando no passado. Outros tentam localizar o autenticamente
africano na tradição rural. Como se a modernidade que o africanos estão inventando
nas zonas urbanas não fosse ela própria igualmente africana. Essa visão restrita
restritiva do que é genuíno é, possivelmente, uma das principais causas para explicar
a desconfiança com que é olhada a literatura produzida na África. A literatura está
do lado da modernidade. E nós perdemos “identidade” se atravessamos a fronteira
do tradicional: é isso que dizem os preconceitos dos caçadores da virgindade étnica e
racial.
5
Mia Couto mostra-se, portanto, atento às alterações de sua cultura e às distâncias que separam
a cultura urbana, afeita ao dinamismo das novas tecnologias, da rural, em que as raízes e os
devires ancestrais comportam a força da tradição. É comum, assim, em seus romances, como
em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra e A varanda do frangipani, haver uma
diferenciação até mesmo espacial dos territórios urbano e rural. Nas narrativas acima, por
exemplo, essa diferenciação se através dos espaços da cidade e da ilha, na primeira obra, e
da cidade e da fortaleza, na segunda. Marianinho, do primeiro romance, diz dessa dicotomia:
“Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A
separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância.
Entre um e outro lado reside o infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas.
4
FONSECA. Espaços ficcionais, p. 76.
5
COUTO apud FONSECA. Espaços ficcionais, p. 60.
21
Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas.” (p. 18.)
Em seus textos a modernidade é muitas vezes apresentada de uma maneira crítica e em tensão
com a tradição. denúncias a aspectos críticos atuais de Moçambique como as secas, a
disparidade social, o consumismo, a corrupção, os conflitos entre espaços urbanos e rurais, o
aniquilamento das línguas nativas, a perda da oralidade, a desvalorização dos mais velhos, a
pressão das multinacionais, os conflitos tribais e partidários. A perda da referência tradicional
da figura do ancião na modernidade e a degradação de valores marcada pelo pós-guerra são
temas centrais no livro A varanda do frangipani, e o personagem Salufo Tuco se empenha em
denunciar essa nova configuração africana:
Salufo explicava-se assim: em todo o mundo, os familiares trazem lembranças para
reconfortar os que estão nos asilos. Na nossa terra era o contrário. Os parentes
visitavam os velhos para lhes roubarem produtos. À ganância das famílias se
juntavam soldados e novos dirigentes. Todos vinham tirar-lhes comida, sabão, roupa.
Havia organizações internacionais que davam dinheiro e apoio à assistência social.
Mas esse dinheiro nunca chagava aos velhos. Todos se haviam convertido em
cabritos. E como diz o ditado cabrito come onde está amarrado. (p. 107-108)
Esse ponto de tensão do qual se constrói o discurso de Mia Couto instala a imagem da
diversidade na qual se confrontam e dialogam registros, concepções e sistemas simbólicos
diferenciados e diversos. A isso, Leda Maria Martins, em seu livro Afrografias da memória,
denomina encruzilhada:
é o lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, textos e
traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas,
multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.
Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como lugar terceiro, é
geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos.
6
A literatura que emerge desse ponto de encruzilhada é balizada, portanto, pela
heterogeneidade da herança cultural. É desse ponto que Mia Couto declara a condição
mestiça, híbrida de seu projeto literário:
Sou um escritor africano de raça branca. Este seria o primeiro traço de uma
apresentação de mim mesmo. Escolho estas condições a de africano e a de
descendente de europeus para definir logo à partida a condição de potencial de
conflito de culturas que transporto. Que vai se “resolvendo” por mestiçagens
sucessivas, assimilações, trocas permanentes. Como outros brancos nascidos e
criados em África, sou um ser de fronteira. […] Para melhor sublinhar minha
condição periférica, eu deveria acrescentar: sou um escritor africano, branco, de
língua portuguesa. Porque o idioma estabelece meu território preferencial de
mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu
lado português a marca de minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido
6
MARTINS. Afrografias da memória, p. 28.
22
africano, mas só o sei fazer usando panos e linhas europeias.
7
Ciente de que o descompasso temporal pode desacelerar a transmissão e conservação de
valores transmitidos pela força da palavra viva ou mesmo consumir as tradições da cultura
dos antepassados, a escrita literária de Mia Couto passa a assumir funções complexas de
“lugares de memória”. Em seu projeto literário, nota-se, então, um desejo de recriar, no
âmbito da literatura, ambientes de memória próprios da cultura ancestral.
Nessa linha, diversos personagens de sua obra assumem o estranhamento diante do moderno e
a defesa pela tradição e, na maioria das vezes, isso se na figura do mais velho, como é o
caso de a Carolina da crônica “Sangue da avó, manchando a alcatifa”, do livro Cronicando,
conforme salienta a pesquisadora de literatura africana Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco no
seu artigo “Mia Couto e a incurável doença de sonhar”.
8
Avó Carolina, exilada de seus
costumes, sente-se estrangeira em seu país e na casa dos próprios filhos, desejando regressar a
sua aldeia. Não entende a riqueza dos filhos, em meio à miséria e à guerra, e, revoltada, joga a
bengala na televisão, estilhaçando-a. A voz enunciadora da personagem, por meio do discurso
indireto livre, externaliza críticas ao contexto moçambicano do pós-independência, e o gesto
de estilhaçamento da televisão metaforiza a resistência e a rebeldia manifesta na luta pela
preservação das raízes africanas ameaçadas de desaparecimento. A velha, após o episódio,
regressa para a aldeia. Mas aquilo não poderia ser o desfecho do processo. Restou, na casa
dos filhos, na alcatifa que ficava diante do aparelho, uma nódoa de sangue que nunca mais
saiu, o que lhes fez chamar o feiticeiro: “O homem consultou o lugar, recolheu sombras.
Enfim, pronunciou. Disse que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos,
transitando de gota para o rio, de rio para o oceano. Aquela mancha não podia, afinal, resultar
de pessoa única. Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria vida.”
9
Sobre esse papel agenciador ou recriador da memória na literatura nos fala Maria Nazareth
Soares Fonseca, no artigo “Percurso da memória em textos de literaturas africanas de língua
portuguesa”: Ao expor em seu processo de criação as possibilidades de recriar
ilusoriamente os ambientes de memória, a literatura que se faz atenta aos vestígios e
manifestações de culturas orais assume o gesto que legitima os „lugares de memória‟, mas
7
COUTO apud SECCO. África & Brasil, p. 264.
8
SECCO. África e Brasil. p. 261-283.
9
COUTO. Cronicando, p. 32.
23
pode, também, povoá-los com os afetos que a leitura agencia.”
10
Também José Craveirinha,
poeta moçambicano renomado, confirma o que aponta a ensaísta a propósito da escrita de Mia
Couto: “O escritor funde sua dicção lírica, que busca recuperar a ternura perdida em meio aos
sofrimentos provocados pela guerra, com olhar crítico sobre a realidade do país.”
11
Secco conta da preocupação enunciada pelo autor em palestra proferida na Faculdade de
Letras da UFRJ, em 11/09/1997 com os rumos tomados pela memória em seu país. Nesta
palestra, Mia Couto analisa a condição atual de seu país e o considera uma nação sem
memória, sem passado, onde quase não mais se fala das guerras. Ele fala de um país em
transformação e em reconstrução, voltado apenas para os investimentos modernos, para o
futuro (palavra que não existe em diversas línguas das etnias moçambicanas), e
completamente distanciado da perspectiva tradicional, da qual o porvir se afigura como um
território sagrado, proibido de ser visitado. O autor denunciou como perigosa essa atitude
silenciosa do povo e alertou para o fato de as feridas não cicatrizadas e os fantasmas da
história poderem ressurgir inesperadamente.
Mia Couto, porém, salienta que formas de resistência a esse aniquilamento da História e
acredita na Literatura como uma delas. Para ele, fazendo dialogarem o real, o imaginário e o
fictício, institui-se um espaço simbólico capaz de possibilitar a catarse desses momentos
problemáticos do passado. Carmen Lúcia localiza as maneiras da denúncia política nos textos
do escritor: “Embora os textos de Mia Couto denunciem duramente a realidade de
Moçambique, com lúcida visão política, fundam também uma nova cartografia que ultrapassa
os limites geográficos do país dilacerado, e traçam, pelo viés dos sonhos e da recriação verbal,
o mapa de uma nação reimaginada à procura de sua própria identidade.”
12
A literatura africana passou por uma mudança no período da descolonização ao pós-colonial.
Nesse trajeto, houve a necessidade da criação de outros métodos de abordagem e diálogo com
o mundo global, numa lógica de “abrir novos espaços”. Isso nos apresenta a estudiosa
africana Inocência Mata, em seu artigo “A condição pós-colonial das literaturas africanas de
língua portuguesa”:
Os significantes desses novos espaços apontam para três direções: primeiro, para
novas conceitualizações socioculturais: assim, à ideologia negritudinista segue-se a
10
FONSECA. Literaturas africanas de língua portuguesa, p. 88.
11
CRAVEIRINHA apud SECCO. África & Brasil, p. 269.
12
SECCO. Africa & Brasil, p. 273.
24
concepção de uma cultura híbrida africana como corolária do processo colonial e,
portanto, como resultado inevitável do reencontro colonial e do agenciamento pós-
colonial; em segundo lugar, apontam para um equilíbrio entre o tradicionalismo e a
adaptação da tradição às experiências de um mundo cujos mecanismos de regulação
ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição.
13
A autora segue argumentando que, desta segunda demanda do pós-colonial (a adaptação das
tradições diante do novo mundo), surgiu a necessidade da reescrita e a repaginação da
identidade cultural, seguindo estratégias não de ruptura, mas de remitologização. Em Mia
Couto, especificamente, nota-se um processo duplo de abordagem da tradição: um guiado
pela ficcionalização; outro por uma representação mais estrita da referência tradicional; o que
será visto mais adiante, nesta dissertação.
Nesse trabalho de reconstrução de uma identidade sufocada pela colonização, são
reorganizadas formas de identificação do homem com suas referências primordiais: a terra e
os ensinamentos dos ancestrais. E em sociedades que comportam a referência mítica, a
abertura ao mundo transcendental é essencialmente veiculada pelos rituais. Nas práticas
africanas, a ritualização envolve em grande parte cantos e danças, que englobam figuras como
as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e
os que ainda vão nascer. Laura Padilha enfatiza que,
como lugar de significância, a ancestralidade constitui a essência de uma visão que
os teóricos das culturas africanas chamam de visão negro-africana do mundo. Tal
força faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos
cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissolúvel
cadeia significativa.
14
O culto dos antepassados, então, define as relações humanas que passam essencialmente por
uma ligação entre mortos e vivos, e esta assume uma centralidade na obra de Mia Couto, o
que interessa especialmente a este trabalho. A perspectiva da tradição africana das fronteiras
entre vida e morte, porém, distancia-se absolutamente da visão ocidental dualista, dicotômica,
de herança estruturalista. Aponta, sim, para uma visão triádica, em que entre um e outro
elemento há pelo menos mais uma forma de configuração. Seria o que o já citado personagem
Lourenço Castro designa como “uma líquida fronteira que separa o possível do impossível”.
Nesse perspectiva, vida e morte aproximam-se, confundem-se até. Isso fica nítido na epígrafe
do conto “Rosalinda, a nenhuma”:
13
MATA. Contatos e ressonâncias, p. 46.
14
PADILHA. Entre a voz e a letra, p. 10.
25
É preciso que compreendamos: nós não temos
competência para arrumarmos os mortos no lugar
do eterno.
Os nossos defuntos desconhecem a sua condição
definitiva: desobedientes, invadem-nos o quotidiano,
imiscuem-se do território onde a vida deveria ditar
sua exclusiva lei.
A mais séria consequência desta promiscuidade
é a própria morte, assim desrespeitada pelos
seus inquilinos, perde o fascínio da ausência total.
A morte deixa de ser a mais incurável e absoluta
diferença entre os seres vivos.
15
Assim, o culto à palavra dos mortos em culturas de tradição ancestral, arcaicas, é constante e
inquestionável, o que reafirma Medeiros: “Os antepassados não estão desligados do presente.
Eles revivem sempre que são chamados a auxiliar decisões no agora. Em certo sentido, a sua
influência no evoluir do presente não é menor do que a época em que viviam, não sendo o seu
poder contestado.”
16
A literatura africana atual e, no caso, especificamente a de Mia Couto, evidencia uma forma
singular de convivência entre os africanos através de simbolismos significativos, não somente
os atos em si, mas ritualidades com expressões próprias da cultura. Vale a pena, então, discutir
os modos como diferentes expressões da ancestralidade são recuperados pela literatura
africana escrita em língua portuguesa. Ademais, este trabalho se interessa especialmente sobre
os aspectos sobrenaturais que envolvem a morte: a relação entre mortos e vivos, os ritos de
passagem, as formas de intercessão dos não-viventes com os viventes, enfim, as
manifestações do sagrado. Esses elementos serão analisados especificamente nas narrativas A
varanda de frangipani e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
17
, sendo a escolha
das obras da pesquisa orientado principalmente pela intensa carga simbólica.
1.1. As narrativas
Aquilo que estou escrevendo se afigura num outro escrito.
(Um rio chamado tempo)
Um rio chamado tempo conta a história de Marianinho, um jovem universitário que volta,
depois de longo período, à sua terra natal, a ilha Luar-do-Chão, motivado pelo falecimento
15
COUTO. Cada homem é uma raça, p. 49.
16
MEDEIROS apud FONSECA. Espaços ficcionais, p. 82.
17
A partir deste momento o livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra será identificado pelo título
Um rio chamado tempo, nesta dissertação.
26
daquele que ele crê ser seu avô, Dito Mariano. O jovem, nascido e criado na ilha, já se
encontrava inserido em um outro universo cultural distante de suas referências tradicionais.
Disso o avô havia lhe alertado, quando decidiu partir para prosseguir seus estudos na capital.
Quando voltasse, a casa não mais o reconheceria: “quem parte de um lugar tão pequeno,
mesmo que volte, nunca retorna”. (p. 45.) Mesmo com a distância a qual o jovem se
encontrava daquele lugar, havia sido ele o escolhido pelo avô para comandar a cerimônia
fúnebre, fato que não foi bem recebido pelos familiares, por desrespeitar a tradição.
A morte do avô Dito Mariano, porém, havia se configurado como um grande mistério:
“Aquela não era uma morte, o comum fim da viagem. O falecido estava com dificuldade de
transitação, encravado na fronteira entre os mundos.” (p. 41.) Todos buscavam entendimento
sobre o estado moribundo do avô, mas nem as rezas da avó Dulcineusa e de Padre Nunes,
nem o diagnóstico do médico da ilha, o doutor Amílcar Mascarenhas, alcançavam
compreensão. Então, restavam dúvidas: “na incerteza de um epílogo, o que se faria: emitir
uma incertidão de óbito?” (p. 114.)
Enquanto esperava a sucessão dos acontecimentos para iniciarem as cerimônias fúnebres,
Marianinho passou a ter estranhas experiências, recebendo visitações do mundo dos não
viventes, que lhe chegavam na forma de cartas. Essa circunstância era incomum ao jovem que
se encontrava tão distante do mundo de seus ancestrais, os Malinanes, e seus xicuembos,
espíritos. Ele precisaria reaprender a comunicar-se com os não viventes, já que havia se
tornado um de fora. As revelações, entretanto, chegavam-lhe pouco a pouco e eram
misteriosamente remetidas pelo moribundo avô Dito Mariano, que o orientava sobre missões
a serem ainda cumpridas, ensinava-lhe a tradição e lhe revelava segredos inauditos. “Você não
veio a esta Ilha para comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano, você
cruzou estas águas por motivo de um nascimento. Para colocar nossos mundos em seu devido
lugar. Não veio salvar o morto, veio salvar a vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo
não por doença, mas por desmérito do viver.” (p. 64.)
As cartas lhe apresentavam um universo dominado por uma espiritualidade africana, com a
qual Marianinho aos poucos foi se sensibilizando. Esse conhecimento sagrado, amplo e
complexo, carrega em si a sabedoria que os africanos dizem ser de conhecimento dos antigos,
dos mais velhos, que, por sua vez, receberam-na dos seus mais velhos e, assim por diante,
num processo de uma tradição que comporta rituais iniciáticos. O reencontro de Marianinho
27
com sua referência ancestral, por sua vez, seria, a partir daquela comunicação, orientada pelo
avô: “Ainda bem que chegou, Mariano. Você vai enfrentar desafios maiores que as suas
forças. Aprenderá como se diz aqui: cada homem é todos os outros. Esses outros não são
apenas os viventes. São também os transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os
outros ecos. Você está entrando em sua casa, deixe que a casa entrando dentro de si”. (p.
56.)
À medida que se apercebeu desse universo sutil e ameaçado, Marianinho redescobriu uma
outra história para a sua própria vida e para a sua terra. Compreendeu uma série de intrigas e
segredos familiares que envolviam: seu pai, Fulano Malta, ex-combatente da luta anti-
colonialista que com o tempo se resignara na pequenez daquele ilha, com quem mantinha uma
relação de desafeto: “Poucos foram os momentos em que conversávamos. No sempre, meu
pai foi severa descompanhia: nenhuma ternura, nenhum gesto protetor” (p. 74.); sua avó
Dulcineusa, católica dedicada que, devido ao peso da idade, acreditavam estar perdendo a
razão; seu tio Abstinêncio, o munumuzana, filho mais velho, que tanto havia se
enclausurado em casa, em zanga com o mundo, sofrendo a abstinência da vida, semelhante
aos melancólicos, saturninos; seu tio Ultímio, ganancioso globalizado envolvido com tramas
políticas; sua desejosa tia Admirança, guardadora de segredos e paixões; e também sua mãe,
Mariavilhosa, e as nebulosas circunstâncias em torno de sua morte.
Marianinho, com a orientação do avô, trilhou uma passagem de encontros conflituosos. Essa
orientação, quase como uma dívida do patriarca para com ele, estabelecia o paradoxo entre o
eterno e a vida. E o velho, como devedor, necessitava demasiadamente do neto para o
cumprimento de seu destino. E, ao final, a realização do nascimento anunciado
prematuramente pelo avô: “As cartas instalavam em mim o sentimento de estar transgredindo
a minha humana condição. Os manuscritos de Mariano cumpriam o meu mais intenso sonho.
Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar
vivo, ao território dos vivos.” (p. 258.)
o romance A varanda de frangipani é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, morto
às vésperas da independência de Moçambique, quando trabalhava nas obras de restauro da
fortaleza de São Nicolau que, após a guerra, deixou de ser um monumento de defesa da nação
para se transformar em um melancólico asilo para velhos. Mucanga é um xipoco, alma
errante, que vive numa cova sob uma árvore de frangipani, na varanda da fortaleza colonial.
28
“Sou desses mortos a quem não cortaram o umbigo desumbilical. Faço parte daqueles que não
são lembrados. Mas não ando por pandemoniando os vivos. Aceitei a prisão da cova, me
guardei no sossego que compete aos falecidos.” (p. 10.) Mucanga se encontra em tal estado
por ter falecido longe de sua terra natal e não lhe terem preparado as cerimônias tradicionais.
Vinte anos depois do funeral, quando arrefeceu a guerra civil que sobreveio à libertação de
Portugal, as autoridades do país quiseram transformá-lo em herói nacional. Mas ele pretendia
morrer definitivamente e ascender ao estado de xicuembo, que o os defuntos definitivos.
Para tanto, precisaria remorrer. Então, seguindo o conselho de seu pangolim, uma espécie de
tamanduá africano que comporta saberes sagrados, encarnou no inspetor de polícia Izidine
Naíta, que estava a caminho da fortaleza para investigar a morte do diretor Vasto Excelêncio.
“O lugar mais seguro não é o ninho da cobramamba? Eu devia emigrar em corpo que
estivesse mais perto de morrer. Apanhar boleia dessa outra morte e dissolver-me nessa
findação.” (p. 14.)
A fortaleza colonial era um local afastado, onde vigoravam outras formas de realidade, lugar
de uma existência peculiar que se alternava entre o crer o descrer: “Eu neste mundo não
ponho certeza. Até me pergunto: o chifre nasce antes do boi? (p. 63.) Nesse sítio,
convergiam memórias reais e inventadas, heranças das tradições dos mitos ancestrais,
simbolizados pelos idosos que habitavam: Navaia, Nhonhoso, Xidimingo, Nãozinha; e
também pelos outros habitantes: Salufo Tuco, Ernestina, Vasto Excelêncio e Marta Gimo. As
histórias fantásticas de cada um desses idosos eram narradas ao inspetor Izidine Naíta a cada
passo da investigação. Os velhos cumpriam, a cada depoimento, o gesto ritual de uma
contação de histórias; ou mesmo cumpriam, a cada contação de histórias, a gestualidade do
depoimento. Reais ou irreais, as histórias desnorteavam a continuidade das convicções do
investigador: “Tudo me parecia tão além do real que eu nem sabia fazer perguntas.” (p. 106.)
No romance, dessa forma, a maior parte das personagens se encontra sob a esfera de uma
nova lógica, que subverte os comportamentos habitualmente esperados. Navaia Caetano sofria
a doença do tempo, idade antecipada, era o velho-criança. “Tinha sido assim: eu nascera,
crescera e envelhecera num só dia. A vida de uma pessoa se estende por anos, demorada como
um desembrulho que nunca mais encontra destinadas mãos. Minha vida, ao contrário, se
despendera toda num único dia.” (p. 30.) A tentativa de burlar a passagem fatal do tempo
mostrou-lhe o caminho do jogo e este personagem entregou-se à meninice servindo-se de
29
alegrar aquele asilo. Nãozinha é a feiticeira que “amamentava os filhos de imaginar, meninos
abandonados durante a guerra” e, à noite, liquefazia-se nas águas de uma banheira onde
dormia. Era portadora de uma estranha história de incesto e guardava velados saberes
sobrenaturais. Ernestina, esposa de Vasto Excelêncio, enlouqueceu de dor pela morte do filho
e pela traição do marido. Marta, a jovem enfermeira do asilo, buscava o refúgio do sonho,
junto aos velhos. É duramente marcada por ter visto muitas crueldades durante a guerra, por
ter sido privada do filho na hora do parto e é quem mantém a lúcida loucura, que é o
rendimento da tradição. Salufo Tuco, empregado de Vasto Excelêncio, é quem, junto a Marta,
adverte para o desprestígio dos velhos, para a corrupção no país. Ele escolhe uma morte
quixotesca em um moinho de vento. Nhonhoso é o que se torna amigo do português
Domingos Mourão e lhe mostra um outro viés da história da conquista moçambicana pelas
tropas lusitanas: “Não foram as armas que nos derrotaram. O que aconteceu é que nós,
moçambicanos, acreditamos que os espíritos dos que chegavam eram mais antigos que os
nossos. Acreditamos que os feitiços dos portugueses eram mais poderosos (p. 67.)
Xidimingo, alcunha do português, cultuava declarada paixão pela frangipaneira e pelo mar, e
o amigo Nhonhoso se empenhava em localizar-lhe a condição de seu desaportuguesamento:
“– Você, Xidimingo, pertence a Moçambique, este país lhe pertence. Isso nem é
duvidável.”(p. 47.)
Assim, essa obra evidencia, dentre outros elementos, as contradições de um país novo, que
parece perdido entre a referência tradicional e a avidez pela modernidade. Enfatiza o caos de
um país dominado pela guerra, a deterioração dos valores humanos, a morte do antigamente e,
simultaneamente, traz o valor do mundo simbólico, dos ritos, da oralidade. “Hoje eu sei:
África rouba-nos o ser. E nos vaza de maneira inversa: enchendo-nos de alma.” (p. 47.)
Ambos os romances, A varanda do frangipani e Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra, são, portanto, norteados pela presença da morte e pelos valores tradicionais vinculados
a ela. Desde a necessidade de reverenciar diariamente os mortos e os antepassados, não
deixando que a realidade se configure sem eles, ao seguimento dos preceitos do sepultamento,
quando a alma do morto é conduzida ritualmente para o mundo de lá; encontramos uma
vinculação essencial da tradição nas obras e uma centralidade da morte como uma passagem.
Assim, nota-se que o saber e as práticas da ancestralidade perpassam as narrativas de Mia
Couto, que laboriosamente os ficcionaliza. Ou, conforme discorre Terezinha Taborda Moreira
em O vão da voz:
30
A vida é reinventada. O mundo torna-se uma varanda, esse lugar frontal e, às vezes,
sobre elevado, visível, e marcado como tal, que permite ampla visão para o entorno.
Por isso, possibilita a observação da passagem, da travessia de corpos à deriva a
representarem ações que mantém, com a realidade, uma relação metafórica, se
entendemos por literatura uma forma de metaforizar a realidade.
18
Isto, que é ficcionalizado por Mia Couto, encontra uma série de correlatos em inúmeras
sociedades arcaicas, explicitando a relação entre mortos e vivos como condição indubitável do
sagrado.
18
MOREIRA. O vão da voz, p. 9.
31
2. Lá onde o vento desenrosca sua imensa cauda
O convite para penetrar num território de referências míticas ancestrais é feito, por Mia
Couto, logo no início da obra Um rio chamado tempo ou, mais especificamente na epígrafe
inicial do livro. Este pequeno texto circunscreve o espaço sagrado pelo qual transitarão
elementos da narrativa e estabelece com o leitor um pacto de leitura, ou um pacto de
perspectiva:
No início,
a casa foi sagrada
isto é, habitada
não só por homens e vivos
mas por mortos e deuses.
19
Esses versos de Sophia de Mello Breyner, elegidos por Mia Couto como abertura
condensadora da obra, reportam-se ao universo sagrado africano, singularizado pelo mito
primordial das sociedades arcaicas, de que nos fala Mircea Eliade. Conforme o estudioso, o
mito é fundamental para estabelecer o modo de ser no mundo arcaico, que tem como
referencial o tempo exemplar da criação. Na perspectiva do homem religioso, o mundo e o
tempo tiveram uma origem. Toda a criação é imaginada como tendo tido lugar no começo do
tempo, in principio, quando os deuses, os Seres Supremos, criaram o homem e o mundo, e
deixaram que os heróis civilizadores, os antepassados míticos, acabassem a criação. A
presença e a atividade dessas entidades no tempo ab origine tornavam tanto o próprio tempo
quanto o espaço original forte e puro, isto é, exemplar.
Essa perspectiva é amplamente contemplada tanto na epígrafe inicial do livro Um rio
chamado tempo a qual retoma parâmetros arcaicos, rompendo com a visão moderna,
evolutiva, da supremacia da existencialidade humana; quanto em uma passagem do romance
A varanda do frangipani, em que o morto, Ermelindo Mucanga, fala sobre a origem da
tradição: “Tudo começa antes do antigamente. Nós dizemos ntumbuluku. Parece longe mas é
que nascem os dias que ainda estão em botão.(p. 26.) O termo ntumbuluku designa, nas
línguas do Sul de Moçambique, simultaneamente a origem dos seres e os primórdios da
natureza.
Mia Couto propõe, então, uma travessia por uma espacialidade na qual vigoram pactos com o
sagrado e habitam parâmetros que vão de encontro com a existência arcaica apresentada por
19
BREYNER apud COUTO. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, p. 9.
32
Mircea Eliade. Sua literatura inspira-se em fontes onde a referência à cosmogonia e ao tempo
primordial é fundamental, conforme declara o escritor em entrevista concedida à PUC Minas:
Eu vivo num país onde os contadores de histórias têm uma grande importância.
Nessas zonas rurais eles são, de fato, os grandes defensores, os grandes reprodutores
dessa via antiga dos valores rurais. Os contadores de histórias têm um sistema muito
ritualizado de narrar, o que é uma cerimônia muito complicada, com interdições: não
se pode contar histórias de dia porque senão fica careca, tem de se contar histórias
de noite. E dos rituais, uma das normas é que o contador de histórias nunca se
intitule ele próprio um criador, ele está reproduzindo a palavra divina dos
antepassados.
Então, no final, ele tem de fazer uma operação delicada que se chama fechamento da
história, ele tem que fechar a história. E ele chega ao fim da história, é como se
falasse com a história, como se a história fosse uma entidade, ele vira para ela e diz:
“Voltem pra casa, Zavane e Guana (o primeiro casal humano). É dentro dessa caixa
que estão as histórias”. Então ele diz: “Voltem para casa Guana e Zavane”. Se ele
não faz isso, a assistência fica doente e é chamada doença de sonhar.
20
Sendo o mito original a essência do modo de existência da tradição, todo o esforço de vida
das sociedades arcaicas está em aproximar-se potencialmente do sagrado, imitando os gestos
exemplares dos deuses. Assim, no ato da contação de histórias, por exemplo, reproduz-se a
palavra divina dos antepassados, com a licença de Guane e Zavana, e o modo ritualizado de
fazê-lo é essencial para resguardar os ciclos.
2.1. Gestos tradicionais
Sinais vitais, secretas janelas do espírito.
(Um rio chamado tempo)
No dia-a-dia do homem tradicional, os atos são carregados de simbologia e ampliam o
significado dos acontecimentos cotidianos. A intenção voltada ao cosmos é a todo momento
transformada em ritualizações. O que para o homem moderno seria um gesto corriqueiro,
mecanizado, para o homem arcaico configura um modo sagrado de estar na vida. O
automatismo, transgredido dessa maneira, espaço a uma outra configuração de realidade,
mais sensitiva. A gestualidade tradicional africana é trazida à cena na obra de Mia Couto,
elaborando, assim, um espaço carregado de exemplaridade e símbolos ancestrais. Dessa
forma, a tradição se cumpre trazendo ao dia-a-dia o sobrenatural e permitindo que o
extraordinário sacralize o território.
Nas narrativas Um rio chamado tempo e A varanda do frangipani, os gestos exemplares
fazem parte do dia-a-dia dos personagens. No primeiro romance, logo no início da história,
Marianinho e tio Abstinêncio atravessam de barco o rio Madzimi, que divide a ilha de Luar-
20
SECCO. África e Brasil, p. 272-273.
33
do-Chão, para chegarem ao funeral do avô Dito Mariano. O jovem se espanta com um
costume do tio de reclinar-se a cada instante. E Abstinêncio explica: “É que em todo o lado,
mesmo no invisível, uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples
convidados. A vida, por respeito, requer constante visita.” (p. 16.) O tio, com seu gesto,
afirma o caráter perene, transitório da vida, sublinhando para o sobrinho uma existência ligada
ao cosmo. A reverência ao limiar é simbolicamente representativa nas culturas tradicionais, o
que é descrito por Mircea Eliade: “O limiar, a porta, mostram de uma maneira imediata e
concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque
são símbolos e ao mesmo tempo veículos de passagem.”
21
Marianinho, mais adiante, enfatiza
a presentificação do cosmo na realidade diária: “Nada demora mais do que as cortesias
africanas. Saúdam-se os presentes, os idos, os chegados. Para que nunca haja ausentes.” (p.
26.)
Seguindo a viagem, Marianinho e Abstinêncio chegam a Luar-do-Chão e toda a família espera
por eles de maneira ritualizada: homens à frente com os pés banhados pelo rio, mulheres atrás
com os braços entrecruzados. O tio pede ao sobrinho que espere antes de pisar em terra e
ajoelha-se na areia. Com a mão esquerda, desenha um círculo no chão, junto à margem. O
rabisco divide os mundos de um lado a família, do outro os chegados até que uma onda
desfaz o desenho na areia. Estava escrito o respeito pelo rio, o grande mandador. Acatara-se o
costume.
Também no romance A varanda do frangipani, o personagem Izidine Naíta, o inspetor de
polícia que se dirigira à antiga fortaleza colonial para investigar sobre a morte do diretor do
asilo, espanta-se ao se deparar com os gestos da tradição, como, por exemplo, em uma vez
que viu os velhos do asilo na árvore do frangipani comendo as lagartas matumanas que davam
nos troncos na época das chuvas. Diziam que as matumanas davam sonhos a quem as ingeria
e que as borboletas saiam pelos olhos enquanto dormiam. “Diziam mais que os insetos
cresciam dentro deles, constituídos em borboletas carnudas. Enquanto as borboletas lhe
escapavam pelos olhos, eles iam ficando magros, vazios, até lhes restarem os ossos.(p.
94.) O cotidiano ritualizado presentifica a existência sagrada e dilata, pois, as possibilidades
de configuração da realidade.
21
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 40.
34
2.2. Outra noção de realidade
Os únicos que conhecem a verdadeira cor do mar
são as aves que olham de um outro azul.
(A varanda do frangipani)
José Craveirinha, sobre a escrita de Mia Couto, diz que “Em jeito de aforismo, Mia Couto
remete-nos para enredos e tramas cuja lógica se mede não poucas vezes pelo absurdo, por um
irrealismo, conflitantes situações”.
22
Assim, as tramas são atravessadas por um viés de
realidade que oscila entre o possível e o impossível, o que transgride e desnorteia o
pensamento moderno. No livro Cultura tradicional banto, Raul Ruiz de Asúa Alturna orienta
a mirada para os parâmetros tradicionais das culturas africanas: “Tudo é sinal e patenteia ou
que mais além dele... Deste ponto de vista, a cultura africana... deve ajudar-nos sair do
positivismo que... encerra a acção nos limites da ordem.”
23
O olhar positivista, cartesiano, da modernidade é desnorteado diante do estranhamento com a
perspectiva de realidade das culturas africanas tradicionais, conforme ilustrou o
personagem português de Vinte e Zinco, Lourenço Castro: “A Lourenço Castro irritava era
esse sim e não dos assuntos em África. Esse poder ser e não ser, essa líquida fronteira que
separa o possível do impossível.”
24
A fluidez das verdades e das mentiras, do possível e do impossível, atravessa a literatura de
Mia Couto. O deslocamento da realidade e da percepção sobre ela fazem-se presente também
em diversas passagens das duas obras aqui analisadas. Atravessando as narrativas, essa
perspectiva instaura um território vasto de possibilidades em que as histórias de vida dos
personagens e também a associação dos símbolos aproximam-se do mito.
Na história da personagem Niambeti, de Um rio chamado tempo prevalece a configuração de
um universo que se constrói a partir da impossibilidade. Ela, irmã do sábio coveiro Curozeiro
Muando, era estranhamente bela e mantinha modos reclusos por sua dificuldade com a fala,
sendo conhecida como a moça do cemitério. Dizia-se que ela tomava venenos diariamente,
não passava dia sem tragar uma dose. O costume da menina teve origem em seu parto, quando
ela escapou das mãos da parteira e, ao cair na areia, foi mordida por uma cobra sobradeira,
dessas que espalham mortes por onde andam. Mas, para a surpresa de todos, o efeito daquela
22
CRAVEIRINHA. In: COUTO. Vozes anoitecidas, p. 10.
23
ALTUNA. Cultura tradicional banto, p. 90.
24
COUTO. Vinte e Zinco, p. 128.
35
mordedura na criança foi inverso, dando-lhe força e fazendo-a florescer. A garota, porém, em
seu crescimento, adoecia a quem lhe oferecesse o peito, as mulheres ficavam contaminadas
pelas gosmas que exsudavam de seus lábios. Desvalida para aleitamento, ela se nutriu de
venenos. Traziam-lhe das variadas fontes. Essa era a razão de seu cio e daí provinha
também a sua dificuldade de se expressar. “A cobra fizera um na sua alma, enroscando-se-
lhe na voz.” (p. 206.)
em A varanda do frangipani, as fronteiras entre realidade e irrealidade no desenrolar da
trama são ainda mais indefinidas. Noção de verdade não parece ser algo que aflija os velhos
do asilo, pois verdade e mentira coabitam sem mesmo se diferirem. É comum, assim, durante
a narrativa, algo passar de falso a verdadeiro sem que isso irrompa em uma incoerência
como é o caso, por exemplo, dos dons de feitiçaria da personagem Nãozinha.
Esta é portadora de uma história misteriosa, carregada de significações míticas. Envolveu-se
em uma relação incestuosa com o pai, por recomendação do feiticeiro, para livrá-lo de uma
maldição, uma cegueira que o acometia quando fazia amor com alguma mulher. Mas, também
por recomendação do curandeiro, deveria entregar-se ao ato sexual resguardada pelo efeito de
uma porção. Entretanto, sem o conhecimento do pai, ela nunca ingeriu tal bebida. Passou,
assim, lucidamente de filha a amante, até que o velho morreu e ela teve de partir da aldeia,
acusada de feitiçaria.
Também o personagem Navaia Caetano dedica ao inspetor a narração de sua vida, que se
assemelha à narrativa mítica. A mãe de Navaia era parideira, dava a luz a muitos filhos. Mas
estes filhos eram sempre o mesmo, a cada vez que um nascia, o anterior desaparecia. A causa
desses estranhos partos estava na desobediência do pai à tradição: ele não esperava o
cumprimento do resguardo para tocar o corpo da mãe. O pai buscou, então, uma estratégia
para cessar com aqueles desaparecimentos. Quando fosse fazer amor com a esposa, amarraria
um na cintura do filho e estaria a salvo da maldição. Dessa artimanha do pai, entretanto,
veio a desgraça: o nascimento do menino velho. E foi o chirema, o feiticeiro, que previu a
condição do garoto: ele não poderia sofrer nenhuma tristeza, caso contrário seu
envelhecimento seria ainda mais acelerado.
Percebe-se, portanto, que as narrativas apresentam, na história de muitos personagens, uma
visão ampliada do que é possível na existência real, estando mais próxima da visão arcaica do
36
mundo do que da mirada moderna que muitas vezes se reduz a possibilidades concretas e
mensuráveis. Em alguns momentos, a inversão da lógica dá-se de maneira tão aguda que
alude ao perspectivismo, conceito proposto por Eduardo Viveiros de Castro no artigo
“Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”
25
. De acordo com tal conceito, o
modo como os seres humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o
universo deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos
metereológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos , é profundamente diferente do
modo como esses seres veem os humanos e se veem a si mesmos.
Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos veem como
humanos. Eles e apreendem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em
suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e
características sob a espécie de cultura: veem seu alimento como alimento humano
(os jaguares veem o sangue como cauim, os mortos veem os grilos como peixes, os
urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.) como adornos ou
instrumentos, seu sistema social como organizado identicamente às instituições
humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamento etc.)
26
Isso configura, então, uma realidade pautada em uma outra ordem, não cartesiana, baseada
mais na cultura do que na natureza e assim, portanto, infinitamente em estado de devir, como
podemos ver em alguns fragmentos de A varanda do frangipani: “Rindo-se concluíam: Não
somos nós que comemos os bichos. Eles é que nos comem a nós.” (p. 94.) “Não é assim?
Aqui capim é que come a vaca.” (p. 25.)
Escutavam-se as gaivotas, suas tristes estridências. Não tardaria a ouvirem-se os
chori-choris, esses passaritos que chamam pela maré cheia. O mar enche e vaza sob
mando das aves. Ainda a pouco eram os tcho-tchó-tchós que ordenavam que as
águas descessem. Engraçado como um ser gigante como o oceano presta
obediências a tão ínfimas avezitas. (p. 40.)
2.3. Noção de pertencimento
Nossa família, o lugar onde somos eternos.
(Um rio chamado tempo)
As obras apresentam também uma noção ampliada de parentesco, tendo mais uma
conformação de clã, na qual noções como irmandade e pertencimento são essenciais, do que a
estrutura restrita de núcleo familiar, constituída de pai, mãe, irmãos e parentes consanguíneos.
Isso é lembrado ao personagem Marianinho, em Um rio chamado tempo, logo que ele chega
em Luar-do-Chão e é recebido pela força de completude de sua tradição: “Em Luar-do-Chão
não palavra para dizer meia-irmã. Todos são irmãos em totalidade. (p. 29.) E ainda:
25
CASTRO. A inconstância da alma selvagem, p. 345-401.
26
CASTRO. A inconstância da alma selvagem, p. 350-351.
37
“família não é coisa que exista em porções. Ou é toda ou não é nada. (p. 126.) Dessa
composição tradicional africana nos falam as estudiosas Fonseca e Cury:
Pensando-se ainda na concepção de espaço nacional, é importante registrar a
importância comparativamente maior que tem, na cultura africana, a ideia de
família. Não é apenas a família nuclear pai, mãe, irmãos mas abrange um
sistema ampliado de parentesco, englobando a etnia, o grupo. A ideia de nação,
sendo muito fluida nessa cultura, o mais das vezes se relaciona a projetos de
governo. Por outro lado, ou talvez por isso mesmo, o culto dos ancestrais se revela
tão importante.
27
A noção de família arcaica abrange, então, uma gama ampliada de seres vivos e abarca, além
disso, especialmente os mortos e os ancestrais míticos. Estes, sendo essenciais para a
conformação tradicional, devem ser sempre presentificados. “Olho a fotografia na parede:
toda a família cabe em um retrato? Não as nossas, famílias africanas, que se estendem como
túneis de formigueiro. Na imagem, são mais os ausentes que os estampados” (p. 56.), observa
Marianinho em Um rio chamado tempo.
Nessa noção ampliada de parentesco, vigoram parâmetros de coletividade que chegam a
romper até mesmo com a ideia de individualismo ou mesmo de individuação, como se
percebe na orientação que avô Mariano ao neto: “Aprenderá como se diz aqui: cada
homem é todos os outros. Esses outros não são apenas os viventes. São também os já
transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros ecos.” (p. 56.)
Assim, o devir coletivo apreende o que se entende por sociedade arcaica, sendo a formação
familiar composta por uma gama variada de seres viventes e não viventes. Nessas sociedades,
a noção de posse, de propriedade, não é restrita, e em muitos momentos se distancia da
perspectiva capitalista. Isso é afirmado por Navaia Caetano, em A varanda do frangipani, ao
inspetor, preocupado em descobrir o paradeiro de um pertence seu que sumiu: “Explico: nesta
fortaleza ninguém é dono de nada. Se não proprietário, não roubo.” (p. 25.) A mesma
lógica é afirmada por Marianinho, em Um rio chamado tempo, depois de uma longa travessia
por Luar-do-Chão, no final da narrativa: “Do que se sabe, porém, a terra não tem posse.
Não dono vivente. Os únicos fiéis proprietários são os mortos, esses que moram lá.” (p.
168.)
2.4. Quando o sagrado se manifesta
Me aprontar a nascer de novo, em semente e chuva.
27
FONSECA. Espaços ficcionais, p. 91.
38
(A varanda do frangipani)
Em sociedades tradicionais, como a apresentada por Mia Couto em sua literatura, as
manifestações do sagrado na Terra, as hierofanias, assumem, então, uma centralidade. O
termo hierofania tem significação etimológica literal: “algo de sagrado se nos mostra”.
Conforme nos apresenta Mircea Eliade em seus estudos em Ciência da Religião, apresentados
em livros como O sagrado e o profano e O mito do eterno retorno, na história das religiões,
das mais primárias às mais elaboradas, as hierofanias formam um número considerável. De
hierofanias mais elementares, como a manifestação do sagrado em um objeto cotidiano, uma
pedra ou uma árvore, a hierofanias mais complexas como é, para um cristão, a encarnação de
Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. “Encontramo-nos diante do mesmo
ato misterioso: a manifestação de algo de ordem diferente de uma realidade que não
pertence ao nosso mundo em objetos que fazem parte integrante de nosso mundo natural,
profano.”
28
As hierofanias são sinais interpretados a partir da relação com o símbolo, conforme apresenta
Asúa Altuna em seus estudos sobre a cultura tradicional africana: “Para o banto, cada coisa é
sinal e sentido ao mesmo tempo. O seu mundo está cheio de símbolos, de coisas visíveis que
significam e atualizam a realidade invisível. Decifra, no invisível, anúncios portadores de
outras realidades que também as expressa, quando as sente, pelos símbolos.”
29
Assim, através
do simbolismo, o banto capta, comunica ou expressa a realidade transcendente, ultrapassando
o significado convencional do objeto apreendido pela experiência profana. Mais ainda, o
conteúdo religioso, pelos símbolos, faz-se comunicante e apropriável; a participação vital
entende-se, reforça-se, vivencia-se, expressa-se e é possuída.
O homem arcaico opta, então, por estar muito perto dos seres e objetos consagrados. Estes,
sendo irruptivos de hierofanias, por meio da simbologia, transportam o sagrado para a
realidade, carregando elementos cotidianos de poder.
Para o personagem Domingos Mourão, de A varanda do frangipani, por exemplo, o mar é um
sinal portador de significância sagrada, sendo uma manifestação numinosa que lhe transporta
ao universo cósmico:
E eu amo tanto o mar que até me dá gosto ficar enjoado. [...] Falo muito do mar? Me
28
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 26.
29
ALTUNA. Cultura tradicional banto, p. 90.
39
deixe explicar, senhor inspetor: eu sou como o salmão. Vivo no mar mas estou
sempre de regresso ao lugar da minha origem, vencendo a corrente, saltando a
cascata. Retorno ao rio onde nasci para deixar o meu sêmen e depois morrer.
Todavia, eu sou o peixe que perdeu a memória. À medida que subo o rio vou
inventando uma outra nascente para mim. É então que morro com saudade do mar.
Como se o mar fosse o ventre, o único ventre que me ainda faz nascer. (p. 48.)
O mar é para Xidimingo a manifestação visível que o reporta à existência sagrada de
significâncias invisíveis, é o ventre, o lugar primeiro de sua origem e do seu renascimento.
Assim, a realidade efetiva é mística; e a realidade visível, o seu efeito ou manifestação.
Também o sol, símbolo hierofânico por excelência, assume a sua centralidade arcaica de
transporte entre os mundos no livro Um rio chamado tempo, o que é descrito por Marianinho:
Cruzo o rio, é quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol. A voz
antiga do Aparece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. E o gesto
gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o mpela djambo, o
umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão dentro: a ausente permanência
de quem morreu. (p. 15.)
Assim como o sol (mpela jambo), o mar, o rio, toda hierofania é, pois, um paradoxo:
manifestando o sagrado, um objeto torna-se outra coisa, e contudo, continua a ser ele mesmo,
porque continua a participar de seu meio cósmico envolvente. Assim, uma pedra sagrada, pela
perspectiva profana, não é mais do que uma pedra, pois nada a distingue das demais pedras.
Mas para aqueles a quem a pedra se revela sagrada, a sua realidade imediata transforma-se
numa realidade sobrenatural. Isso quer dizer que, numa existência religiosa, toda a natureza é
susceptível de revelar-se como uma sacralidade cósmica. O cosmo na sua totalidade pode
tornar-se uma hierofania.
As hierofanias, como os símbolos que expressam a conexão com o mundo invisível, no tecido
simbólico banto, são representadas, de acordo com o estudioso Asúa Altuna, por signos,
símbolos, gestos, ritos, iniciações, cnicas, palavras e instituições, compreendendo, assim,
diversos elementos. Segundo o autor, “como realidade visível pode ser uma pessoa, como o
Chefe, que simboliza a vida dos antepassados; um objeto, como a pulseira dos chefes, que
simboliza o seu poder; uma ação; um gesto como elevar as mãos; uma palavra; uma fórmula;
um nome, como o do epônimo, que simboliza a unidade no sangue.
30
O símbolo, por sua
vez, é sempre concreto, não exclusivamente mental ou abstrato, e está neste mundo como uma
projeção concreta, e pressupõe o esforço humano para contatar com ele.
2.5. Animais sagrados
Me convidavam para travessias bem para além da última curva do rio.
(Um rio chamado tempo)
30
ALTUNA. Cultura tradicional banto, p. 92.
40
Como é sabido, a cultura negro-africana é constituída por uma vasta simbologia, já que todo o
existente participa vitalmente e pode ser ativo ou passivo na interação vital. O mundo animal,
por sua vez, oferece inúmeros elementos simbólicos representativos da cultura tradicional e
irruptivos de hierofanias. Os estudos de Asúna Ruiz revelam alguns animais carregados de
simbologia no universo da tradição banto e suas respectivas significações:
Por exemplo, o leão, o hipopótamo e o búfalo simbolizam a fortaleza, assim como o
elefante, que também é realeza e sabedoria. A tartaruga é sabedoria, prudência e uma
vida longa, a pantera, força e a estirpe nobre dos chefes. A hiena covardia; o
antílope, a agilidade e a intrepidez; a aranha e a formiga, a prudência e a
laboriosidade; a serpente e o lagarto a astúcia e a rapidez; a abelha a laboriosidade e
seu mel é manjar nobre.
31
Os animais presentes na literatura de Mia Couto assumem, na maioria das vezes, funções
míticas, sendo dotados de grande sabedoria, capacidade de professar e orientar. Na obra A
varanda do frangipani, a presença do halakavuma, animal mítico, é essencial para a
orientação do futuro do morto Ermelindo Mucanga, sendo elemento norteador da narrativa.
Esse animal é um pangolim, mamífero coberto de escamas que se alimenta de formigas. Em
todo o Moçambique, a crença de que ele habita os céus, descendo à terra para transmitir
aos chefes tradicionais as novidades sobre o futuro. “Há alguém que desconheça os poderes
deste bicho de escamas, o nosso halakawuma. Pois este mamífero mora com os falecidos.
Desce dos céus aquando das chuvadas. Tomba na terra para entregar novidades ao mundo, as
proveniências do porvir.” (p. 13.)
O pangolim é o animal de estimação do personagem Ermelindo Mucanga e vive com ele na
cova, sob a árvore do frangipani. “Eu tenho um pangolim comigo, como em vida tive um cão.
Ele se enrosca a meus pés e faço-lhe uso como almofada.” (p. 13.) O animal é chamado para
exercer seu papel premunitório na narrativa no momento em que Mucanga deseja
furtivamente escapar de uma condecoração que o governo resolveu prestar-lhe, como forma
de equilibrar desentendimentos políticos. Tantos anos após sua morte, que não contou com as
cerimônias fundamentais da tradição, Mucanga, quase esquecido, foi certo dia desperto
pelo golpe de pás e enxadas que buscavam seus restos mortais para um sepultamento com
pompa e sequente condecoração como herói nacional. “Precisavam de um herói, mas não um
qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo e região. Para contentar discórdias, equilibrar
as descontentações. Queriam pôr em montra a etnia, queria raspar a casca para exibir o fruto.
31
ALTUNA. Cultura tradicional banto, p. 92.
41
A nação carecia de encenação. Ou seria vice-versa?” (p. 11-12.)
O pangolim apresentava características peculiares que variavam entre o humano e o animal, o
que é descrito por Mucanga no momento em que ele pede uma solução para escapar da
cerimônia. “O pangolim rodou sobre si próprio. Perseguia a extremidade do corpo ou afinava
a voz para que eu lhe entendesse? Porque não é com qualquer um que o bicho fala. Ergueu-se
sobre as patas traseiras, nesse jeito de gente que tremexia comigo.” (p. 13.)
As falas do halakavuma, por sua vez, eram metafóricas, condensadas, o que é caraterístico de
seres com capacidades proféticas: “– Veja a sua volta, Ermelindo. Mesmo no meio desses
destroços nasceram flores silvestres. […] – É que aquele será, para sempre, o teu jardim: entre
pedra e ferida e flor selvagem.” (p. 13.) Mas a orientação é precisa: “– Você, Ermelindo, vo
deve remorrer.(p. 13.) Essa solução é crucial para a narrativa que se desenvolve a partir da
incorporação de Ermelindo Mucanga em Izidine Naíta, o inspetor de polícia que se dirigiu à
fortaleza colonial para investigar sobre a morte do diretor do asilo, Vasto Excelêncio.
A coruja também aparece na obra A varanda do frangipani como animal intercessor. Mas,
dessa vez, ao invés de ser um bicho de estimação, é ela quem adota um personagem, o
menino-velho Navaia Caetano, como objeto de estimação. Esse animal, que é miticamente
representante de sabedoria, aparece, na obra, ligado à fidelidade:
O que é, inspetor? Está a ouvir essa coruja? Não receie. Ela é a minha dona, eu
pertenço a essa ave. Essa coruja me apadrinhou e me sustenta. Todas as noites ela
me traz restos de comida. Ao senhor lhe faz medo. Entendo-lhe, inspetor. O pio da
coruja faz eco no oco da nossa alma. A gente se arrepia por vermos os buracos por
onde vamos escoando. Antes, eu me assustava também. Agora, essa piagem me
requenta as minhas noites. Daí a um pouco vou ver o que, desta vez, ela me trouxe.
(p. 31-32.)
Os seres míticos são tidos como orientadores nas sociedades tradicionais. Quando se necessita
de uma orientação e ela não se manifesta nas imediações, pratica-se uma espécie de evocação
aos animais sagrados. Trata-se, em suma, de uma evocação de formas e figuras sagradas,
tendo como objetivo imediato a orientação na homogeneidade do espaço. Pede-se um sinal a
fim de pôr fim a uma tensão provocada pela relatividade e à ansiedade alimentada pela
desorientação, em suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto.
Na narrativa Um rio chamado tempo é o mangozwane, um pássaro-martelo tido na tradição
africana como a ave dos presságios, que exerce tanto o papel premonitório quanto o papel
42
orientador para o personagem Marianinho. Isso ocorre no final do livro, servindo como sinal
de fim de uma indefinição. No momento da trama em que a ave aparece, Marianinho
encontra-se perdido em meio a tantos acontecimentos estranhos e inusitados. Resolve, então,
dar um passeio nos arredores da lagoa Tzivondzene e é lá, em meio a divagações sobre
descobertas acerca da história de sua mãe, Mariavilhosa, que o pássaro-martelo rodopia
chamando sua atenção:
Um pássaro-martelo rodopia sobre mim. Pousa e aproxima, sem medo. Fica-me
olhando, sereno como se eu lhe fosse familiar. Me apetece tocar-lhe mas me guardo,
imóvel. Ele se incha em seu próprio corpo, parece adormecido. Fecho os olhos,
afrouxado naquela quietude. Quando me levanto e, ante pé, tento despertar o
pássaro, ele se conserva imóvel. Estaria adoentado, ainda me ocorreu. Um pássaro
adoece? Ou desmorona-se logo na morte, sem enfermidade pelo meio? Encorajado
pela atitude da ave acabo tocando-lhe, num leve roçar de dedos. É então que do
corpo do mangodwanese libertam dezenas de outras aves semelhantes, num
deflagrar de asas, bicos e penas. E o bando, em espesso cortejo, se afasta, renteando
o rio Madzimi, lá onde minha mãe se converteu em água. (231- 232.)
A extraordinária multiplicação do corpo da ave, provocando o deflagrar de dezenas de aves
semelhantes, era o sinal de uma premonição. O estranhamento diante do acontecido orientou,
então, Marianinho para um encontro que lhe explicaria sobre a origem de sua vida e o motivo
da interdição da morte de Dito Mariano. Ao dirigir-se para casa, na busca pela avó
Dulcineusa, o jovem encontrou tia Admirança e, em seguida, uma carta do avô. Ambos se
prestavam a explicar sua verdadeira paternidade e maternidade. No choque das revelações,
Marianinho aludiu ao símbolo: “Eu teria escutado bem? Ou a Tia estaria contaminada pela
morte que pairava na casa? A sombra do pássaro-martelo atravessa o chão da minha alma.” (p.
232.) A explicação dos segredos interditos libertavam Dito Mariano para sua passagem
definitiva ao mundo dos mortos. E a orientação dada na carta sobre o local adequado ao
sepultamento havia sido anteriormente ditada pelo voo dos pássaros-martelo, que partiram
em cortejo para o rio Madzimi onde Mariavilhosa se havia vertido em água.
Os animais míticos, como captadores da sacralidade de um local, constituem uma crença
recorrente nas sociedades arcaicas, de acordo com Mircea Eliade: “Em todos os casos, são os
animais que revelam a sacralidade do lugar; o que é o mesmo que dizer que os homens não
são livres de escolher o terreno sagrado, que os homens não fazem mais do que procurá-lo e
descobri-lo com a ajuda de sinais misteriosos.”
32
O pedido do avô chega, então, para
Marianinho como algo simbolicamente já apresentado:
Me leve agora para o rio. Já chegou o meu tempo. Peça a Curozero que lhe ajude.
32
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 41- 42.
43
[...] Lembra onde foram enterrados as águas de sua mãe e o corpo de seu pequenito
irmão, o pré-falecido? Junto à lagoa que nunca seca. Pois eu quero ser enterrado
junto ao rio. [...] Sabe, Marianito? Quando você nasceu eu lhe chamei “água”.
Mesmo antes de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe deitei: madzi.
E agora lhe chamo outra vez água. Sim, você é a água que me prossegue, onda
sucedida em onda, na corrente do viver. (p. 238.)
Além de demarcar um território sagrado, os animais surgem também para figurar
acontecimentos drásticos, como a aparição em sonho de Nãozinha, em A varanda do
frangipani, anunciando para Marta, a partir da imagem dos morcegos, a perda do filho
durante o parto.
Ontem, lá na fortaleza, se deu a espantável acontecência. De repente, o céu se cobriu
de morcegos. Os bichos, a surto e sustos, saíram do armazém onde Vasto Excelêncio
escondia suas mercadorias. Cinzentos, a cor dos mortos, os vampiros enervoaram o
mundo. Um eclipse, parecia. Os bichos rasaram as casas, exibindo dentes e
mandíbulas. Se escutaram suas asas como manuais helicópteros militares. Os velhos,
aflitos, se abrigaram. Então, os morcegos desataram a atacar as andorinhas. Em
plenos ares, eles as devoraram. E eram tantas as avezinhas sacrificadas que
respingavam gotas vermelhas em toda a parte. As plumas dançavam pelos ares,
caindo com gentileza sobre o chão. Parecia depenavam as próprias nuvens. Nesse
dia, choveu tanto sangue que o mar todo se tingiu. (p. 130.)
2.6. Axis mundi Árvore sagrada
Esta árvore, tal como eu, não tem cultura ensinada.
Aprendeu apenas da embrutecida seiva.
(A varanda do frangipani)
Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, adverte que o território, nas sociedades
tradicionais, não é tido como homogêneo: ele apresenta roturas, quebras, porções
qualitativamente diferentes umas das outras. Assim, locais tomados como fortes,
significativos, isto é, sagrados, e locais amorfos, não consagrados. Os espaços sagrados
transportam, em sua conformação, uma existência real e hierofânica, e estão sempre
associados à fundação do mundo. Ademais, no mundo arcaico, não se pode viver em um
território sem que este seja consagrado, sem que ele nasça como um espaço sagrado. Por isso,
é preciso fundá-lo ritualisticamente. A homologação de um território é orientada pela
cosmogonia e equivale à criação do mundo. É marcada espacialmente pela projeção ritual de
um ponto fixo, um centro.
Esse ponto fixo, que demarca um centro em torno do qual se erige o espaço sagrado,
apresenta-se de diversas formas nas sociedades arcaicas pilar, escada, montanha, árvore,
liana, etc e é, em grande parte, expressa pela imagem de uma coluna universal, Axis Mundi,
44
que liga e ao mesmo tempo sustenta o Céu e a Terra. Tal coluna cósmica demarca, para a
sociedade arcaica, o centro do mundo, porque a totalidade do mundo habitável estende-se em
torno deste eixo. Esse ponto simbólico, por via de uma hierofania, efetua a rotura dos níveis:
opera ao mesmo tempo uma abertura superior, ao mundo divino; e uma abertura inferior
captada pela base que se encontra cravada no mundo de baixo, as regiões inferiores, o mundo
dos mortos. Os três níveis cósmicos Terra, Céu, Regiões Inferiores tornam-se, então,
comunicantes.
Os estudos de Mircea mostram que o protótipo da imagem cosmológica dos pilares cósmicos
que sustentam o Céu e ao mesmo tempo abrem a via para o mundo dos deuses teve grande
difusão em sociedades arcaicas de diversos lugares e épocas.
Até a sua cristianização, os Celtas e os Germanos conservavam ainda o culto de tais
pilares consagrados. O Chronicum Laurissense breve, escrito por volta de 800, conta
que Carlos Magno, por ocasião de uma das suas guerras contra os Saxões (772),
mandou demolir, na cidade de Eresburg, o templo e o madeiro sagrado do seu
“famoso Irmensû”. Rodolfo de Fuda (c. 860) precisa que esta famosa coluna é a
“coluna do Universo, sustentando quase todas as coisas” (universalia culunna quasi
sustinens omnia). Encontra-se a mesma imagem cosmológica entre os Romanos
(Horácio, Odes, III, 3), na Índia antiga, onde se fala do skambha, pilar cósmico (Rig,
Veda, 105; X, 89, 4; etc.), e também entre os habitantes das Ilhas Canárias e em
culturas tão afastadas como as dos Kwakiultl (Colúmbia Britânica) e a dos Nada de
Flores (Indonésia).
33
Além dos pilares consagrados, a imagem cosmológica da montanha sagrada como Axis Mundi
é igualmente bastante difundida. Numerosas culturas falam de tais montanhas, ora míticas ora
reais: “é o caso de Meru, na Índia; Harberezaiti no Irão, da montanha mítica Monte dos
Países na Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava, aliás, Umbigo da Terra.”
34
No romance, A varanda do frangipani, o frangipani, árvore de flores brancas perfumadas que
ocupava a varanda da fortaleza São Nicolau, ergue-se como um centro, um ponto fixo em
torno do qual é estabelecido um território sagrado, como nos fala o personagem Domingos
Mourão: “Tudo sempre se passou aqui, nesta varanda, por debaixo desta árvore, a árvore do
frangipani. Minha vida se embebeu do perfume das suas flores brancas, de coração amarelo.
o frangipani me devolvia esse sentimento do passar do tempo.” (p. 45.) E ainda, de acordo
com a vivência do personagem Ermelindo Mucanga: “Meu coração, afinal, não tinha sido
enterrado. Estava ali, sempre esteve ali, reflorindo no frangipani. Toquei a árvore, colhi a flor,
aspirei o perfume. Depois divaguei na varanda, com o oceano a namorar-me o olhar. Lembrei
33
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 48.
34
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 51.
45
as palavras do pangolim: Aqui é onde a terra se despe e o tempo se deita.” (p. 139.)
Secco, no artigo “Mia Couto e a incurável doença de sonhar”, é que bem define a árvore do
frangipani como um Axis Mundi:
O frangipani se erige, assim, como figura axial que estabelece uma comunicação
entre o céu e a terra, entre a morte e a ressurreição, oferecendo-se como caminho
dos antepassados, dos que transitam entre o visível e o invisível. Funciona, assim,
como um espaço sacralizado que abriga os mortos e as tradições ancestrais. Eixo do
mundo, eixo da memória, eixo da narrativa, essa árvore ambivalente deita raízes na
terra, enquanto seus galhos estendem sonhos na direção dos céus.
35
As árvores sagradas são ponto axiais comuns às sociedades tradicionais e, na cultura do Sul
de Moçambique, tem-se tal simbologia no canhoeiro, árvore sagrada frutífera da qual se
produz, a partir do fruto (nkanyu), uma bebida alcoólica servida em festas; e na mafurreira,
árvore de onde se extrai o óleo da mafurra. Na narrativa, o frangipani torna-se um ponto
sagrado à medida que, sendo a única árvore das proximidades, passa a desempenhar a função
de centro, tornando-se um eixo cósmico para os habitantes do asilo. Para o personagem
Ermelindo Mucanga, ela assumia uma representatividade vital em sua condição de alma
errante:
Me ajudou o ter ficado junto a uma árvore. Na minha terra escolhem um canhoeiro.
Ou uma mafurreira. Mas aqui, nos arredores deste forte, não senão uma magrita
frangipaneira. Enterraram-me junto a essa árvore. Sobre mim tombam as perfumosas
flores do frangipani. Tantas e tanto que eu até cheiro a pétala. Vale a pena me adoçar
assim? Porque agora o vento me cheira. No resto, ninguém me cuida. [...] Eu
nunca tive quem me deitasse lembrança, eu sou sonhado por quem? Pela árvore.
o frangipani me dedica noturnos pensamentos. (p. 11.)
em Um rio chamado tempo, a árvore sagrada embondeiro é que aparece como ponto de
ligação ao cosmos. Um naufrágio havia provocado inúmeras vítimas no rio, causando
sofrimento na Ilha. Padre Nunes passava o dia rezando frente ao Madzimi e, um dia, apareceu
Fulano Malta para lhe fazer companhia. Este propôs, então, que a visão de Mariavilhosa se
concretizasse: o plantio de um embondeiro no leito do rio recuperaria os mortos
naufragados.
No mundo profano, a vida vegetal revela normalmente apenas ciclos de nascimentos e mortes.
Na experiência religiosa da vida tradicional, porém, além de simbolizar o vínculo com o
Cosmos, são apreendidas outras significações no ritmo da vegetação: regeneração, juventude,
saúde, imortalidade, religiosidade e realidade absoluta. Mircea Eliade, nos estudos de religião
35
SECCO. Letras em laços, p. 279.
46
comparada, localiza a simbologia de árvores sagradas em diversas culturas e o papel dessas
hierofanias:
Ao lado das Árvores Cósmicas, como Yggdrasil da mitologia germânica, a História
das Religiões conhece Árvores da Vida (por ex. Mesopotâmia), de imortalidade
(Ásia, Antigo Testamento), de sabedoria (Antigo Testamento), de juventude
(Mesopotâmia, Índia, Irão), etc. Por outras palavras, a Árvore conseguiu exprimir
tudo o que o homem religioso considera real e sagrado por excelência, tudo o que
ele sabe que os Deuses possuem pela sua própria natureza, e que só é raramente
acessível aos indivíduos privilegiados, os Heróis e os semi-Deuses.
36
Sendo o frangipani portador de tamanha simbologia na Fortaleza de São Nicolau, o diretor
Vasto Excelêncio, autoritarista avesso à tradição, manda derrubá-la. “– O que é que te mandei
fazer, mandala? [...] Eu não disse para deitares a árvore abaixo? [...] Mandei-lhe cortar a
árvore do tuga e você desobedeceu. Agora já sabe...” (p. 83.)
Para o homem religioso, então, o Cosmos apresenta-se como uma cifra, uma sequência de
símbolos significativos a serem captados. E, nessa simbologia, de acordo com Eliade, os
ritmos da vegetação revelam mistérios da vida e da criação, ao mesmo tempo que revelam
mistérios do renovo, da juventude e da imortalidade. Poderia dizer-se que as árvores e as
plantas que são consideradas sagradas devem a sua situação privilegiada ao fato de
encarnarem o arquétipo, a imagem exemplar da vegetação. Assim, conforme o autor, em
diversas culturas arcaicas, a renovação de seres vivos exemplares, como o vegetal, esligada
à renovação cósmica. É por essa razão que, em muitas tradições, “o Cosmos foi imaginado
sob a forma de uma Árvore Gigante: o modo de ser do Cosmos e em primeiro lugar a sua
capacidade de se regenerar, sem fim é expressa simbolicamente pela vida da Árvore.”
37
Tal simbologia é relatada no final da obra A varanda do frangipani. Já no término da travessia
do morto Ermelindo Mucanga pelo corpo do inspetor Izidine Naíta, uma grande tempestade
de fogo passa pelo céu da Fortaleza de São Nicolau, assolando inclusive a frangipaneira.
Havia, porém, entre tudo o que restava, uma prova dessa desordem, um testemunho
que a morte visitara aquele lugar. Era a árvore do frangipani. Dela restava um tosco
esqueleto, dedos de carvão abraçando o nada. Tronco, folhas, flores: tudo se vertera
em cinzas. Os velhos foram chegando à varanda e cuidaram de não pisar os restos
ardidos. Xidimingo se inacreditava:
Está morta?
A visão daquela morte me fez lembrar meu próprio fim. (p. 142.)
A morte da árvore do frangipani sinalizou a Ermelindo Mucanga o momento de concretizar
36
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 157-158.
37
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 157.
47
sua passagem derradeira. E, neste fragmento, o frangipani, como árvore sagrada, Axis Mundi,
cumpre o seu papel regenerativo, de renovação cósmica.
Recordei ensinamentos do pangolim. A árvore era o lugar de milagre. Então, desci
do meu corpo, toquei a cinza e ela se converteu em pétala. Remexi a réstia do tronco
e a seiva refluiu, como sêmen da terra. A cada gesto meu o frangipani renascia. E
quando a árvore toda se reconstituiu, natalícia, me cobri com a mesma cinza que a
planta desintactara. Me habilitava, assim, a vegetal, arborizado. (p. 143.)
Essa tendência tanto dos arcaicos quanto dos homens das sociedades pré-modernas de viver
próximo a objetos consagrados justifica-se, segundo Eliade, pela ideia de que o sagrado
equivale ao poder, e, no fim das contas, à realidade por excelência. “O sagrado está saturado
de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A
oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou
pseudo-real.”
38
2.7. Construção ritual da morada
Porque essa casa sou eu mesmo.
(Um rio chamado tempo)
Relativamente à morada humana há, nas sociedades tradicionais, também uma necessidade de
consagrar a casa, instaurando-a como centro do mundo, imago mundi, conforme apresentam
as estudiosas Fonseca e Cury, em Espaços ficcionais:
A casa simboliza em geral o centro do mundo, sendo a imagem do universo. No
romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, é denominada Nyumba-
Kaya, como forma de inscrever no nome reduplicado, na sua identidade, marcas do
norte e do sul: “Nymba é a palavra para nomear casa nas línguas nortenhas. Nos
idiomas do Sul, casa se diz kaya‟”. A sempre mesma e a sempre outra casa.
39
Nyumba-Kaya, a grande casa do Malinanes, estabelece-se, em Um rio chamado tempo,
também como um eixo, um ponto central e sagrado, como afirma Marianinho logo que
desembarca em Luar-do-Chão e se depara com a grandeza de sua antiga morada:
A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez
mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya, se ergue de encontro ao tempo. Seus
antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se
conforma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas
casa seria aquela, única, indisputável.” (p. 28-29.)
Assim, conforme salienta avô Mariano, Nyumba-Kaya ergue-se como um espaço essencial, o
que abarca a perspectiva arcaica em relação à habitação. Para as sociedades tradicionais, seja
qual for sua estrutura uma sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores, ou uma
38
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 26-27.
39
FONSECA. Espaços ficcionais, p. 95.
48
sociedade que se encontre no estágio de civilização urbana , instalar-se em um território e
construir uma morada comporta uma escolha vital, uma vez que, nesse ato, há algo
fundamental: criar o seu próprio mundo e assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo.
Essa atribuição vital é amplamente sustentada na obra Um rio chamado tempo pela figura de
avó Dulcineusa. Esta, dentre outras funções, cultivava o hábito de regar diariamente o chão da
casa, vislumbrando na morada funções anímicas. E, no final da narrativa, o restabelecimento
do equilíbrio das relações realça, na morada, o renovo: “A casa tinha reconquistado raízes.
Fazia sentido agora aliviá-la das securas. Admirança se levanta, me segura as mãos e fala em
suspiro como se estivesse em recinto sagrado.” (p. 247.)
No mundo arcaico, a casa é, então, santificada constituindo-se como imago mundi. A
perspectiva tradicional se difere largamente da visão moderna, não comportando a morada
como um objeto, um espaço para habitar, constituído para funcionar de maneira prática,
facilitando a vida para o trabalho; como ocorre de uma forma geral na atualidade. Eliade
assinala que, no mundo arcaico, “toda a construção e toda a inauguração de uma nova morada
equivalem de um certo modo a um novo começo, a uma nova vida. E todo o começo repete o
começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia.”
40
Descrições de
Nyumba-Kaya, em Um rio chamado tempo, referenciam a casa em relação ao primordial
como, por exemplo, descreve Marianinho: “Vou pelo corredor, alma enroscada como se a casa
fosse um ventre e eu retornasse à primeira interioridade.” ( p. 111.)
Os afetos do jovem são também associados a vivências de sua infância na cozinha da grande
casa quando, cumprindo à tradição, os homens manuseavam o fogo e as mulheres a água. “E
se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como nos
céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago. A cozinha me transporta para distantes
doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o
próprio tempo. [...] Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer.” (p. 146.)
O fato de, no mundo arcaico, haver uma multiplicidade de elementos que marcam o centro do
mundo não é tido como uma dificuldade para o pensamento religioso, pois, de acordo com
Mircea Eliade, não se trata de espaço físico e geométrico, mas sim de um território existencial
40
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 69.
49
e sagrado. Isso é enfatizado, na narrativa, pelo avô Mariano, na epígrafe do capítulo 4: “O
importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.” (p. 53.)
Esse espaço sagrado apresenta constituição própria, susceptível a uma infinidade de roturas, e
portanto de comunicações com o transcendente. Assim, o que assinalam os imago mundis,
como a morada, é a possibilidade de vinculação ao Cosmos; o que é tematizado na obra, por
exemplo, quando avó Dulcineusa elege Marianinho para resguardar a casa, entregando-lhe um
saco com as chaves: “Tome. E guarde bem escondido. Guarde essa casa, meu neto! [...] Você
é quem meu Mariano escolheu. Para me defender, para defender as mulheres, para defender a
Nyumba-Kaya. É por isso que lhe entrego a si essas chaves.” (p. 33-34.) As chaves, porém,
eram de fechaduras antigas, não tendo mais função concreta naquela casa, entretanto
Dulcineusa insistia na necessidade de guardá-las, “porque sofria de uma crença: mesmo não
havendo porta, as chaves impediam que maus espíritos entrassem dentro de nós.” (p. 111.)
Torna-se nítido o abismo que marca a diferença entre os comportamentos arcaico e moderno
relativamente à morada humana. A morada, na atualidade, tem se estabelecido como um
produto fabricado em série pelo sistema capitalista. É elaborada, dessa forma, a partir de um
padrão cada vez mais repetido e moldado, antes de tudo, para a funcionalidade, em prol de
uma vida de trabalho. Assim, atualmente, mudar de casa, de cidade ou de país, é algo
corriqueiro que, muitas vezes, não ocasiona grandes atribulações. Não se trata, porém, de
desconsiderar o afeto e os vínculos que prevalecem em relação à morada contemporânea, mas
de perceber que não se sustentam relações com o sagrado.
Esse conflito entre o tradicional e o moderno relativo à habitação é problematizado em Um
rio chamado tempo. Grande parte dos personagens, principalmente os mais velhos, se
preocupam com a perda da ligação com o ancestral. Alguns se incumbiam de buscar medidas
para que isso não se estabelecesse de fato, como ADulcineusa, outros tomavam a causa
como perdida, como é o caso de Miserinha. Esta, quando interpelada por Marianinho para
voltar a habitar Nyumba-Kaya, apresenta sua perspectiva quanto à perda da sacralidade:
Eu não posso ir para Nyumba-Kaya. Porque essa casa não tem raiz. Não tarda a
que se vá embora.
Se vá embora?
Vão levar essa casa, meu filho.
Vão levar como?
Vão levar tudo. Já levaram a nossa alma. Agora só falta a Ilha.” (p. 137.)
50
E a lucidez de Miserinha, a visionária que passou a enxergar apenas as sombras do mundo,
captava os planos do político Ultímio, que planejava vender a casa a investidores estrangeiros.
Desconsiderando todo e qualquer vínculo com a tradição, Ultímio desejava fazer de
Marianinho um aliado:
Está a ver o que fizeram? Destroem tudo, esta malta dá cabo de tudo. Quem
mandou destruir esta merda de telhado?
Ultímio sabia que era obediência de tradições. Mas não aceitava que eu, moldado e
educado na cidade, não me opusesse. Para ele aquilo era obsoleto. Outros valores
nele se avolumavam.
É que isso desvaloriza a propriedade...
Confessa, então, o fio de sua ambição. Ele quer desfazer a casa da família. E vender
Nyumba-Kaya a investidores estrangeiros. Ali se faria um hotel.
Mas esta casa, Tio...
Aqui só mora passado. Morrendo o A para que é que interessa manter essa
porcaria? Além disso, a Ilha vai ficar cheia de futuro. Você não sabe, mas isso tudo
vai levar uma grande volta.
Resisto, opondo argumento contra intento. Nyumba-Kaya não poderia sair de nossas
mãos, afastar-se de nossas vidas.” (p. 151.)
A aura de ambição, que se formava como uma preocupação principalmente na cabeça de
Dulcineusa, que temia as brigas pela propriedade, surgiriam depois da morte de Dito Mariano.
Tudo aquilo fazia de Nyumba-Kaya um lugar desapropriado pelos ancestrais, o que é
remetido como um delírio da avó:
A Aparece vencida por um repentino cansaço. A cabeça se abate sobre o ombro
esquerdo e emerge em fundo sono. Todos permanecem em silêncio, vigiando a velha
mãe. Nem passam minutos, porém, quando Dulcineusa desperta, confusa.
Quero ir-me embora reclama.
Para onde, mamã?
Para casa.
Mas a senhora já está em sua casa...
Que não, que não estava. Seu olhar revela essa inexplicável estranheza: perdera a
familiaridade com o próprio lar.
Levem-me, meus filhos, lhes peço. Levem-me para minha casa. (p. 34.)
2.8. Natureza como entidade simbologia dos elementos
Porque eu estudo na chuva. Ela é minha ensinadora.
(A varanda do frangipani)
Torna-se claro que, para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente natural, sendo
em sua totalidade susceptível de se revelar como uma sacralidade cósmica. Assim, sendo
símbolo hierofânico, o sobrenatural e o natural são indissoluvelmente ligados, a natureza
exprime sempre alguma coisa que a transcende, que está carregada de um valor religioso. De
acordo com Mircea Eliade, “esta obra divina guarda sempre uma transparência, quer dizer,
51
desvenda espontaneamente os múltiplos aspectos do sagrado.”
41
Nessa perspectiva, a partir da observação do mundo e de seus fenômenos naturais, o homem
arcaico apreende múltiplos modos do sagrado e estabelece sua forma de existência. E, nessa
noção, configura-se uma realidade distante da visão contemporânea, não prevalece a
supremacia humana, nem a supremacia da racionalidade. Ou o homem irmana-se à natureza
ou é susceptível e dependente de suas forças. Dessa primeira possibilidade de relação, mais
harmoniosa, fala, no livro A varanda do frangipani, o personagem Nhonhoso ao português
Xidimingo, quando este o acusa de não gostar da natureza, já que ele havia tentado derrubar a
frangipaneira, a mando de Vasto Excelêncio.
E lhe contei sobre a origem do antigamente. Primeiro, o mundo era feito de
homens. Não havia árvores, sem animais, nem pedras. existiam homens.
Contudo, nasciam tantos seres humanos que os deuses viram que eram de mais e
demasiado iguais. Então decidiram transformar alguns homens em plantas, outros
em bichos. E ainda outros em pedras. Resultado? Somos irmãos, árvores e bichos,
bichos e homens, homens e pedras. Somos todos parentes saídos da mesma matéria.
(p. 67.)
Esse mito original define um modo de estar na natureza, de ser natureza, sendo homens e
elementos naturais formados da mesma essência. E essa visão retira a perspectiva do homem
como dominador e muitas vezes o coloca como ser à deriva da natureza, que age como uma
entidade sagrada. Não faltam, nos romances Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra e A varanda do frangipani, acontecimentos nos quais a natureza é incisiva na definição
dos caminhos humanos e nos caminhos da narrativa, como quando a terra se fecha recusando-
se a receber um morto mal morrido, ou quando uma tempestade de raios e um dilúvio põem
fim à ganância e à hierarquia das relações. Nas sociedades arcaicas, então, elementos naturais
são hierofânicos por excelência, sendo transmissores de uma forma de estar no mundo e
algumas vezes bravos estabelecedores da ordem. Os elementais Céu, Terra e Água
apresentam forças indissoluvelmente sobrenaturais, o que será abordado a seguir,
configurando-se como seres míticos, como potências da natureza, sendo muitas vezes
traduzidos por funções anímicas.
2.8.1. Céu
O contato com a abóboda celeste, desde tempos muito remotos, revela ao homem a condição
enigmática da existência, a pequenez da condição humana frente à expansão do cosmos.
41
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 127.
52
Diante da imensurabilidade do símbolo celeste e de seus elementos constituintes lua, sol,
estrelas, astros, raios, trovões, chuvas, nuvens, colorações, etc. , diversas tradições se
debruçaram contatando e elaborando mitos que reportassem à existência sagrada, mesmo
porque o Céu é o lugar para onde acredita-se que migraram os deuses e os antepassados
míticos após a criação terrena.
Na narrativa A varanda do frangipani, a presença do wamulambo, uma entidade celeste
tradicional, “essa uma cobra gigantíssima que vagueia pelos céus durante as tempestades” (p.
85.), é definidora no enredo e na passagem dos personagens. Ela aparece na narrativa no
momento em que Vasto Excelêncio exerce sua tirania desmedida sobre os velhos do asilo.
havia imposto castigos corporais a Nãozinha, surrando-lhe os seios, fazia com que os amigos
Nhonhoso e Xidimingo se desentendessem e ordenava-lhes que se agredissem fisicamente.
Quando parecia que não havia mais medida para o caos, deflagrou, de repente, uma
tempestade de rasgar os céus, com relâmpagos e trovões.
Os velhos, que respeitavam a tradição, calaram-se diante da presença do wamulambo e
Nãozinha, conhecedora dos poderes das plantas, entregou a cada um dos velhos um ramo da
erva kwangula tilo para que segurassem durante a passagem da entidade, a fim de prevenir
contra a pressão que poderia arrebentar os pulmões. Vasto Excelêncio, desmerecedor da
tradição, não foi resguardado pela erva e saiu correndo com dores intestinais. E foi
Xidimingo quem alertou para o descuido com a tradição, os telhados de zinco deveriam estar
pintados para ofuscar o brilho, pois “essas cobras das ventanias confundem o brilho onduloso
das telhas com as ondas das águas. E assim se abruptam no vão do espaço, mergulhando
sobre o zinco.” (p. 86.)
A passagem da cobra das tempestades espalhou estragos pelo asilo, quebrou telhas, vários
utensílios, inclusive a banheira onde Nãozinha se desaguava, além de incendiar a árvore do
frangipani. E a anciã, mesmo abalada pelo estilhaçamento de seu leito, não se atrevia a seguir
os pedidos de Xidimingo de manipular a cobra celeste para benefício próprio: Lhe digo
uma coisa, branco: nunca queira uma cobra dessas. Elas ajudam os donos mas, em
contraparte, estão pedindo sempre sangue...” (p. 86.) Diante da potência da natureza, os
velhos se apequenaram, “um velho depende do estado do tempo, se fragiliza a metereologias.
Agora, cada um de nós, velhos, nos sentíamos frágeis como o calcanhar. Mourão era o que
mais sofria o peso das nuvens. Olhava o firmamento e dizia: Está um céu de desaparecer a
53
Virgem.” (p. 86.)
A cobra celeste, denominada wamulambo na obra de Mia Couto, aparece também em estudos
etnográficos dos povos Vendas, bantos do Norte de Transval, em trabalhos de diversos
etnólogos reunidos por Mircea Eliade no livro O conhecimento sagrado de todas as eras. Os
autores reconhecem entidade celeste similar pelo nome Raluvhimba, nome composto pelo
prefixo Ra-, que é ligado à ideia de pai, e por luvhimba, que é a águia, o pássaro que paira nas
alturas. Simboliza, segundo os estudiosos, o grande poder que atravessa o Cosmo, usando os
fenômenos celestes como instrumento.
Raluvhimba está ligado à criação do mundo e presume-se que viva em algum lugar
do céu e esteja relacionado a todos os fenômenos astronômicos e físicos... Um
meteorito é Raluvhimba fazendo uma viagem; sua voz é ouvida no trovão, cometas,
raios, meteoros, terremotos, estiagens prolongadas, inundações, pragas, epidemias
de fato, todos os fenômenos naturais que afetam a população como um todo são
revelações do grande Deus.
42
uma certa noção de Raluvhimba como sendo a providência divina. Ele cuida não apenas
da tribo como de um todo, mas de seus membros individuais. Ele é tido como o criador de
todas as coisas e é quem concede a chuva. Os etnólogos relatam que o Raluvhimba é saudado
nas tribos por onde passa muitas vezes como presságio de algo positivo. Suas manifestações
na forma de estrondos, trovões, terremotos, tempestades são recebidos com palmas e as
pessoas dedicam-lhe pedidos. Quando sua ação prejudica a vida humana, em forma de
enchentes ou secas, o povo lhe oferece sacrifícios e preces em pedido de reconciliação.
43
No livro Um rio chamado tempo, a entidade também é reconhecida, dessa vez por tia
Admirança que é quem alerta Marianinho para os modos da manifestação: „– Cuidado com
os relâmpagos insiste ela. Olho a noite e não vislumbro faiscação. O céu está limpo de
escuro. Admirança nota a minha incredulidade. „–Não sabe? Aqui desses relâmpagos que
não fazem luz. Esses é que matam muito.‟” (p. 30.)
2.8.2. Terra
A simbologia da terra, associada à imagem primordial da Terra-Mãe, encontra-se em diversas
partes do mundo, sob muitas formas e variantes. Ela é ligada à fecundidade, à geração, é tida
como quem nascimento a todos os seres. Que os homens são paridos pela Terra, é uma
42
ELIADE. O conhecimento sagrado de todas as eras. p. 18.
43
ELIADE. O conhecimento sagrado de todas as eras. p. 19.
54
crença universalmente espalhada. Por isso, é tantas vezes associada à mulher e o parto é tantas
vezes tido como uma versão microcósmica de um ato exemplar realizado pela terra. “A
mulher está, pois, misticamente solidarizada com a Terra, o dar à luz apresenta-se como uma
variante, à escala humana, da fertilidade telúrica. A sacralidade da mulher depende da
santidade da Terra. A fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Mater, a Mãe
Universal.”
44
Isso justifica a recorrência, nas tradições, do parto na terra, da deposição do
recém nascido no chão, a fim de receberem dela as energias benéficas e encontrarem a
proteção maternal.
Além da deposição do recém nascido no solo, depõe-se também o moribundo, o doente e
pessoas que passam por ritos de passagem. De acordo com Mircea Eliade, “o rito da
deposição na Terra implica a ideia de uma identidade substancial entre Raça e Solo.”
45
Isso
justifica nas sociedades tradicionais o valor da terra e a vinculação essencial da terra natal nos
ritos.
O costume de dormir sobre a terra é apresentada em ambas as narrativas estudadas como uma
forma de energização e de pertencimento. No romance A varanda do frangipani, o
personagem Izidine Naíta se espanta ao se deparar com esse gesto tradicional quando, em uma
manhã, ao se dirigir para a cozinha da Fortaleza, encontra Marta dormindo nua sobre a terra.
Estremunhado, espera que ela se cubra, mas ela, da maneira como estava, revela disposição
para conversar e justifica-lhe: “não era por causa dos piolhos ou das ratazanas. Ela dormia
fora porque aqueles quartos lhe davam uma tristeza de caixão sem cova. E ainda mais: dormia
assim, despida, para receber da terra estranhas forças.” (VF, p. 71.) Também para Dito
Mariano a terra era o melhor leito. “Mariano sempre se defendeu de adormecer no leito. Cama
era só para namorar. Conforme dizia: incorre-se no risco de cair ou, ainda pior, de nunca mais
descer. Preferia a terra a toda cama.” (p. 42.)
Além de fonte vital, a terra é reportada pela personagem Miserinha, como sendo o meio pelo
qual se pode ler a vida de uma pessoa. Segundo a visionária, a vida de um homem é
apreendida pela maneira como ele pisa no chão. “Tudo está escrito em seus passos, os
caminhos por onde ele andou.” (p. 20.) Como representante do saber ancestral, ela localiza o
elemento para Marianinho: “– A terra tem suas páginas. […] Você lê o livro, eu leio o chão (p.
44
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 153.
45
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 151.
55
20.)”.
E, como entidade com forças próprias, é a terra que, no romance Um rio chamado tempo, dita
as maneiras da tradição. A família optou, pela pressa, por realizar o funeral do moribundo
Dito Mariano e a Mãe Telúrica se fechou, negando-se a receber um morto interdito. Assim,
quando o coveiro Curozero Muando foi cumprir a tarefa de abrir a cova, a bateu no chão e
repicou como se tivesse se chocado contra um ferro. “Em lugar do golpe suave se escuta um
sonoro clinque, o rasposo ruído de metal contra metal.” (p. 178.) Tentou abrir a cova em
diversos lugares e a pá sempre raspava em superfície dura. Até Tio Ultímio, em gesto
desarvorado, tentou cavar o chão com as unhas e não obteve mais do que sangue nos dedos.
A terra se recusava a abrir para receber o morto, acontecimento desnorteador e sem
precedentes. E foi do coveiro Curozero, o comunicante mais consoante à terra, a explicação
pertinente: “vingança do chão sobre os desmandos dos vivos. Eu que pensasse na quanta
imundície estavam enterrando por aí, desamundos, sujando as entranhas, manchando as
fontes. [...] O que estava sucedendo naquele cemitério era desforra da terra sobre os homens”
(p. 181-182.) A terra como entidade estabelecia, assim, o limite da ação humana. Os homens
que soubessem ler os sinais cósmicos e se reconciliassem com os poderes da natureza.
2.8.3. Água
A água transporta simbolicamente várias possibilidades de existência, pois precede a forma,
sendo vulnerável ao ambiente. Também a conformação da matéria é composta predominante
por este elemento, tanto do planeta quanto dos seres vivos. a crença de que a água foi a
matéria primeva, o elemento primordial por excelência, assim como apresenta, em Um rio
chamado tempo, a personagem Miserinha: “No fundo, porém, o azul nunca é uma cor exata.
Apenas uma lembrança, em nós, da água que fomos.” (p. 20.) Sendo constituição fundamental
da existência, é portadora de simbologia vasta, reconhecida principalmente como fonte de
purificação e regeneração. São os vapores de água que o coveiro Curozero Muando usa como
fonte de purificação para o seu trabalho de transporte entre os mundos: “Sobre o lume está
uma lata de água fervendo. Curozero recebe vapores em pleno rosto. Tais são os calores que
até os olhos parecem transpirar. É assim que os coveiros fazem para se purificarem”. (p. 157.)
Foram também as águas da chuva o meio que este personagem teve para escoar suas tristezas
após o sepultamento do pai assassinado: “Nessa noite choveu, ele sabia que não era apenas
56
chuva. Saiu de casa, dirigiu-se ao cemitério e sentou-se junto à campa. Enquanto a água
escorria, chorou, chorou e chorou. Chorou sem parar enquanto choveu. Até que nada lhe
doía mais. Tinha sido lavado, os céus lhes tinham retirado saudades e silêncios”. (p. 162.)
O gesto de submergir e emergir da água porta a simbologia da desintegração e reintegração. A
imersão na água simboliza a dissolução das formas, o regresso ao pré-formal, a reintegração
no modo indiferenciado da preexistência. Já a emersão repete o gesto cosmogônico da
manifestação formal, o nascimento, o retorno à existência. A vida da feiticeira Nãozinha, em
A varanda do frangipani, atravessava diariamente o trajeto do formal ao pré-formal, ela
renascia todos os dias, conforme ela segreda ao inspetor Izidine Naíta em sua confissão:
Escute bem: em cada noite eu me converto em água, me trespasso em líquido. Meu
leito é, por essa razão, uma banheira. Até os outros velhos me vieram testemunhar:
me deito e começo transpirando às farturas, a carne se traduzindo em suores.
Escorro, liquedesfeita. Aquilo dói tanto de ser visto que os outros se retiraram
medrosos. Não houve nunca quem assistisse até o final quando eu me desvanecia,
transparente, na banheira. (p. 81.)
O gesto afirma a simbologia das águas como renascimento, conforme afirma Mircea Eliade:
“O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado porque a imersão
fertiliza e multiplica o potencial de vida.”
46
E Nãozinha diz que apenas no estado de água ela
se sente feliz, pois apenas nesse estado ela dorme e é dispensada de sonhar: água não tem
passado ela afirma. E a feiticeira desafia o inspetor a interpretar o enigma aquático:
aquela adivinha que reza assim: “em quem podes bater sem nunca magoar?O
senhor sabe a resposta? Eu lhe respondo: na água se pode bater sem causar ferida.
Em mim, a vida pode golpear quando sou água. Pudesse eu para sempre residir em
líquida matéria de espraiar, rio em estuário, mar em infinito. Nem ruga, nem mágoa,
toda curadinha do tempo. Como eu queria dormir e não mais voltar! (p. 81.)
E o conforto do estado de água, sem memória, sem passado, parece ser também o que busca a
Mariavilhosa, mãe de Marianinho, em Um rio chamado tempo. Sobre essa morte, pouco o
filho sabia, pouco se falava. Diriam que fosse um afogamento ou um suicídio, mas a avó
Dulcineusa escolhe as palavras para narrar o fato ao neto, pois nenhuma dessas coisas foi
realmente o que ocorreu.
O que ela fez, uma certa tarde, foi desatar a entrar pelo rio até desaparecer, engolida
pela corrente. Morrera? Duvidava-se. Talvez se tivesse transformado nesses espíritos
da água que, anos depois, reapareceram com poderes sobre os viventes. Até porque
houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia
submergindo, Mariavilhosa ia se convertendo em água. Quando entrou no rio seu
corpo já era água. E nada mais senão água. (p. 105.)
46
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 144.
57
A crença nos espíritos das águas que têm poderes sobre os viventes é algo comum na
simbologia tradicional. A entidade reconhecida entre os bantos do Sul como Raluvhimba é,
por exemplo, responsável por fenômenos metereológicos ligados à água: as chuvas, os
dilúvios, as secas. A sacralidade das águas é, assim, atestada também pelas catástrofes
aquáticas, tanto os dilúvios quanto as secas prolongadas revelam a potência das entidades
aquáticas. Ao fechamento da terra, em Um rio chamado tempo, a natureza respondeu, depois,
com uma chuva incessante. “Desde o funeral que não para de chover. Nos campos, a água é
tanta que os charcos se cogumelam, aos milhares. Poeiras brancas ondulam à tona da água.
[...] Quem disse que a terra engole sem nunca cuspir?” (p. 243.)
E são também as entidades aquáticas que estabelecem um ponto de definição à ganância dos
governantes de Luar-do-Chão. O barco que fazia o trajeto entre Luar-do-Chão e a cidade
vinha sobrecarregado de pessoas e mercadorias. A ambição dos administradores locais
impunham condições cada vez mais desumanas para a navegação, até que um dia o casco do
barco se rompeu, provocando um acidente com muitas mortes. Os corpos dos tripulantes se
afundaram definitivamente na corrente, tendo como único sobrevivente um burro que migrou
estranha e definitivamente para dentro da igreja. Logo que sucedeu a catástrofe do naufrágio
no Madzimi, uma súbita tempestade de ventos e chuva desabou do céu. “Era uma bátega
estranha, dessas que chegam sem anúncio e, num instante, fazem o céu dissolver-se todo
inteiro.” (p. 96.)
A leitura das forças tradicionais que atuam nos fenômenos naturais nunca poderia abarcar a
coincidência ou o gratuito. As entidades mandam recados enfáticos que o homem deve ser
capaz de interpretar:
Agora se entendia a súbita alteração dos elementos, nas primeiras horas da manhã.
Quando o barco foi engolido pelas águas, o céu da Ilha se transtornou. Um golpe
roubou a luz e as nuvens se adensaram. Um vento súbito se levantou e rondou pelo
casario. Na torre da igreja o sino começou a soar sem que ninguém lhe tivesse
tocado. As árvores todas se agitaram e, de repente, num movimento, seus roncos
rodaram e se viraram para o poente. Os deuses estavam rabiscando mágoas no fundo
azul dos céus. Os habitantes se apercebiam que o que se passava não era apenas um
acidente fluvial. Era muito mais do que isso. (p. 99-100.)
A simbologia das águas nos livros de Mia Couto e especialmente em Um rio chamado tempo
abarca uma simbologia extensa e com intensas relações, que partem até mesmo da estrutura
de Luar-do-Chão como ilha, cercada definitivamente pelas águas. O rio Madzimi, assim, é
vínculo crucial entre o sagrado e as águas, portando, em seu próprio nome, a relação com a
58
ancestralidade. A saber: dentre os povos Xonas, do grande império Monomotapa que existiu
onde hoje se encontra Moçambique, os espíritos dos ancestrais eram denominados vadzimu,
sendo o singular deste termo madzimu; designação que é apresentada por Ney Lopes em seu
livro Bantos, malês e identidade negra. A própria personagem Miserinha, impedida de ver as
cores, era remediada de sua condição pelas águas do Madzimi: “– Agora, sabe o que faço?
Venho perto do rio e escuto as ondas: e, de novo, nascem os azuis. Como agora estou a
escutar os azuis.” (p. 20.)
Assim, a tradição atenta-se para as mágoas que os deuses rabiscam no fundo azul dos céus. E
a indissolubilidade entre o natural e o sobrenatural se configura na realidade. A sacralização
dos elementos naturais faz parte, portanto, de uma condição de existência, e as simbologias
dos elementos naturais buscam ser sempre bem definidas, pois, como é sabido pelos velhos do
asilo de São Nicolau, em A varanda do frangipani: “Sim, eu sei o perigo disso: quem
confunde céu com água acaba por não distinguir vida e morte.” (p. 48.)
Sobre isso, vale também observar como o nome Luar-do-chão” estabelece um interessante
elo entre elementos do céu (luar), da terra (chão) e da água, que as águas de um rio são
suporte adequado para sustentar o reflexo de um luar, espaço que possibilita concretamente ao
luar estar no chão. Luar-do-chão se delineia assim como um espaço híbrido: celestial e
terreno ao mesmo tempo. Mais uma vez Mia Couto brinca com o possível e o impossível,
transcende a noção dicotômica tão habitual em nossa sociedade: encima não é o oposto de
embaixo, encima e embaixo são noções que se confundem porque os opostos se confundem,
sobrepõem-se, misturam-se.
59
3. O acontecer do já havido futuro
3.1.1. Mitologias da morte
Lembrança de uma anterior existência.
(Um rio chamado tempo)
O tempo primordial das sociedades arcaicas, essencial e exemplar, era perene: os ancestrais
míticos desconheciam a morte. Foi um acontecimento ocorrido na origem do mundo que a
tornou um fato existencial inerente à vida. No mito de origem da morte reside, então, a
história que explica a condição de existência do homem para o qual a vida será
invariavelmente finda.
Estudos sobre as mitologias arcaicas
47
apresentam duas linhas comuns referentes à construção
desse mito. A mais difundida, encontrada nas tribos australianas e em povos da Ásia, Sibéria e
América do Norte, atribui a mortalidade a um ato cruel e arbitrário realizado, no tempo
primordial, por um ser demoníaco, adversário do criador. Já a outra vertente, com uma
recorrência bem mais reduzida, encontrada principalmente na África, explica a existência da
morte como transgressão do homem a um mandamento divino. Por isso há, nos meios
africanos, numerosas histórias que tornaram-se conhecidas com títulos como “Dois
mensageiros” ou “O recado que não chegou”. Segundo elas, Deus enviou o camaleão aos
ancestrais, com o recado de que eles seriam imortais e enviou o lagarto com a mensagem de
que morreriam. O camaleão parou para descansar no meio do caminho, dando trégua para que
lagarto chegasse primeiro. Assim que chegou esta mensagem, a morte entrou no mundo.
Nas obras de Mia Couto, quem narra uma versão desse mito é o personagem Ermelindo
Mucanga, logo no início de A varanda do frangipani. Mucanga, ao apresentar sua condição de
morto, revela-se deveras preocupado com sua passagem interdita.
Lembrei o caso do camaleão como mensageiro da eternidade. O bicho demorou-se
tanto que deu tempo a que Deus, entretanto, se arrependesse e enviasse outro
mensageiro com o recado contrário. Pois eu sou um mensageiro às avessas: levo
recado dos homens para os deuses. Me estou demorando com a mensagem. Quando
chegar ao lugar dos divinos já eles terão recebido a contrapalavra de outrem. (p. 12.)
A morte, instaurada na Terra, inaugura um novo modo de ser e a consciência da finitude passa
a integrar a vida. A partir do mito, então, surge a condição específica do homem e os próprios
critérios de humanidade. Atrelado a isso, tornam-se essenciais noções como alma, espírito e
seres espirituais, ao que aludiu Ermelindo, anteriormente, ao se identificar como um ser em
47
Ver o artigo “Mitologias da morte.” In: ELIADE. Bruxarias, ocultismos e correntes culturais, p. 41-56.
60
trânsito entre os homens e os deuses, um ser que se destina a um território divino.
No célebre estudo concedido ao animismo e a seus desdobramentos culturais, Edward Burnett
Tylor tornou conhecida esta teoria sobre a alma.
48
Embora este teórico utilize, em seu
trabalho, expressões extremamente pejorativas como primitivos, raças menos evoluídas,
culturas inferiores, ao abordar as sociedades arcaicas, seu estudo é orientador no sentido de
apresentar uma vasta gama de referências e exemplos etnográficos de culturas distintas.
Destacarei, em sua pesquisa, aspectos valiosos conquanto as referências etimológicas ligadas
às palavras espírito e alma e a dissociação corpo-alma.
49
3.1.2. Etimologia da alma
Ao ponto de ser tudo visível só por sombra.
(A varanda do frangipani)
Primeiramente, ater-me-ei aos aspectos etimológicos e, nesse sentido, é relevante
observarmos as palavras que foram julgadas apropriadas pelas culturas arcaicas para
denominar alma e espírito, a fim de compreender as concepções populares em torno destas. É
importante ressaltar que, neste estudo, não farei diferenciação entre alma e espírito o que é
feito em algumas vertentes espiritualistas por não haver essa menção nem nas obras
literárias analisadas, nem nos principais referenciais teóricos utilizados.
Foi da forma imaterial, espectral, vista pelo visionário ou pelo sonhador, que surgiu a
associação da alma ao termo familiar sombra. A natureza dessa manifestação parece ter tido
ocorrência comum em diversas sociedades, o que comprovam os estudos linguísticos a partir
da recorrência da expressão, tendo seu significado explícito ou implícito nos significantes,
segundo nos apresenta Tylor:
A palavra tasmaniana que significa sombra tem o significado de espírito; os
algoquinos descrevem a alma de um homem como otahchuk, “sua sombra”, na
língua arawak, ueja quer dizer “sombra, alma, imagem”; e os abipones dão à palavra
loákal o significado de “sombra, alma, eco, imagem”. […] Os basutos chamam o
espírito que permanece após a morte de seriti ou “sombra”; […] e, no Calabar
antigo, existia a mesma identificação de espírito com sombra na palavra ukpon, e a
perda desta é fatal para um homem. Encontra-se, assim, entre as raças menos
evoluídas, não apenas os sinais familiares dos termos clássicos, skia e umbra, mas
também o que parece ser a base conceitual das histórias de homens sem sombra.
50
A riqueza desta pesquisa de correlação entre os termos ueja, loákal, otahchuk, ukpon, seriti,
48
TYLOR. Primitive Culture./TYLOR. Religion in Primitive Cultures.
49
LOPES. Bantos, malês e identidade negra, p. 113-120.
50
TYLOR apud LOPES. Bantos, malês e idientidade negra, p. 113.
61
skia, umbra , de tradições tão distintas, encontra consonância com a forma como Mia Couto
se reporta ao espírito emancipado do corpo através da morte. O espectro, a sombra
permanecem, em sua literatura, de maneira direta ou metafórica, conforme veremos a seguir.
Realçando aspectos menos positivos, temos, por exemplo, a associação feita por ozinha,
em A varanda do frangipani, da morte como escuro-noite-sombra. Esse emprego dá-se
quando ela relata a morte do pai, e também marido, que partiu ainda na infância da
personagem: “E assim me sucedi, esposa e filha, até que o meu velho morreu. Se pendurou
como um morcego em desmaio de ramo frutalecido. Veio o poente. Veio a assombravel
sombra: a noite. Passaram as horas e ele balançando no escuro, o escuro balançando dentro de
mim.” (p. 80.) Temos, aqui, a sombra da noite, a sombra do desconhecido, a sombra da dor.
Destaca-se, nesse contexto, a atribuição mais sombria do termo que se expande no caminho
da dúvida, da indefinição.
É também do incerto que nos fala Ermelindo Mucanga ao dizer sobre a ignorância dos
viventes, e até mesmo dos não viventes, a respeito da emancipação da alma. “Mesmo esses
que rondam, pontuais, os cemitérios, que sabem eles dos mortos? Medo, sombras e escuros.
Até eu, falecido veterano, conto sabedoria pelos dedos.” (p. 10.)
Ainda nos rumos do sombrio, temos, mais uma vez, a voz de Nãozinha. Agora, porém,
amadurecida, idosa, exercendo seus dons premonitórios. Nesta passagem, no final da obra, a
velha alertava o inspetor Izidine Naíta de que seu fim estava próximo: ele seria assassinado
pelo piloto que lhe trouxe da cidade e agora vinha buscá-lo.
Cuidado! Vejo sangue!
Sangue?!, se espantou o polícia.
Eles virão aqui. Virão para lhe matar.
Matar-me? Quem vai me matar?
Eles virão amanhã. Você já está perdendo a sombra. (p. 137.)
Perdendo a sombra, Izidine esvaía-se sem energia, sem tom, sem vitalidade, o que se tornava
nítido aos olhos da visionária. O enfraquecimento de todos esses aspectos está ligado a uma
ausência maior: à dissociação corpo-alma. E esta é vista, nas culturas arcaicas, não como um
fim, mas como uma passagem; o que será aprofundado mais adiante. É importante, no
momento, ressaltar que os espíritos desencarnados que circulam entre os viventes, e que
muitos são capazes de vislumbrar, são, em Mia Couto, assim como nos relatos etnográficos
coletados por Tylor, denominados sombra.
62
Nessa linha, o personagem Navaia Caetano, de A varanda do frangipani, é quem relata ao
inspetor sobre o espírito que havia aparecido revirando os pertences do policial: “Mas eu vi
esse mexilhento. Sim, vi. Era um vulto abutreando as coisas do senhor. Aquela sombra esvoou
e pousou nos meus olhos, pousou em todos os cantos da escuridão. Nem parecia artes de
gente. Chiças, até me estremece a alma de lembrar.(p. 25.) Espíritos sem corpos com a
faculdade de revirar coisas, e até mesmo roubá-las, são passíveis também de fazer amor,
conforme encontramos na ficção de Mia Couto. Tal experiência é relatada por Ermelindo
Mucanga que, ainda vivo, passou a encontrar-se todas as noites com uma sombra, com a qual
mantinha relações sexuais. A verdade ou a mentira daquele corpo sem rosto era uma dúvida
maior: “Fui amado por uma sombra quando os outros se multiplicavam em corpos. Em vivo
me ocultei da vida. Morto, me escondi em corpo de vivo.”(p. 141.) Vigora aqui, ainda, a
esfera da incompreensão relativa à morte e à vida, às verdades e às mentiras.
No outro romance analisado, seria a personagem Miserinha uma mulher privilegiada pelos
seus dons visionários, como a capacidade de conhecer a pessoa pela forma como ela pisa no
chão. Mas Miserinha é também uma anciã lesada, privada de enxergar as cores. Ela, então,
passou a enxergar ambiguamente apenas por sombras: as da premonição e as da faculdade de
vislumbrar além da realidade; dons contrabalanceados por uma punição, a de ver um mundo
sem tons.
Um viés contrário retrata os significantes sombra, alma pelo traço mais positivo. Nesse
caminho, tem-se o encontro com a verdade, com o essencial, a partir de uma compreensão
maior da existência. Esta, ademais, está relacionada com a desvinculação com a matéria. A
perspectiva é orientada pelo devir da transcendência e pela transição do estado de vida ao de
morte. Tem-se, nessa linha, a passagem como plenitude, um fim maior; o que é
magistralmente descrito pelo sábio Curozero Muando, de Um rio chamado tempo.
51
O termo
sombra alia-se, desta vez, a palavras que expressam claridade e leveza, como estrela, sol,
nuvem, céu; conforme abaixo:
A morte, sim, era o intensíssimo clarão, o deflagrar de estrela. Um sol entrado na
vista, ao ponto de tudo ser visível por sombra. Dito e redito: a sombração, o
acontecer do já havido futuro.
A gente não vai para o céu. É oposto: o céu é que nos entra pulmões adentro. A
pessoa morre é engasgada em nuvem. (p. 162-163.)
51
Vide epígrafe desta dissertação.
63
A passagem abençoada pelos ancestrais parece chegar como um retorno ao pré-fetal, um
conforto. Assim dá-se, também, o fim de Ermelindo Mucanga e dos velhos do asilo em A
varanda do frangipani: “E Navaia se iluminou de infâncias. Me apertou a mão e, juntos,
fomos entrando dentro de nossas próprias sombras. No último esfumar de meu corpo, ainda
notei que os outros velhos desciam conosco, rumando pelas profundezas da frangipaneira. E
ouvi a sua voz suavíssima de Ernestina, embalando um longínquo menino.” (p. 144.) A
luminura, a quietude, a morte acalantada são, por fim, as últimas palavras de Mucanga: “Aos
poucos, vou perdendo a ngua dos homens, tomado pelo sotaque do chão. Na luminosa
varanda deixo o meu último sonho, a árvore do frangipani. Vou ficando do som das pedras.
Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais quieto que a morte.” (p.
143-144.)
A metáfora passa, então, do sombrio ao claro, do refugiar-se da sombra ao adentrar-se nela. E
é essa a orientação do caminho trilhado pelos mortos interditos de ambas as obras, Ermelindo
Mucanga e Dito Mariano. Mircea Eliade traça os rumos dessa simbologia: “Há, pois, uma
correspondência estrutural entre as diversas modalidades de passagem: das trevas à luz (sol),
da preexistência de uma raça humana à sua manifestação (antepassado mítico), da vida à
morte e à nova existência post mortem (alma).”
52
Em Um rio chamado tempo, o fim dos ciclos dos Marianos é metaforizado pela ascensão à
outra margem, „à terceira margem do rio‟, conforme nos fala o avô: “Esta é a última visitação.
Desta vez não haverá mais cartas. Não carecemos de nos vistar por esses caminhos. De
assim para sim: nesta sombra que afinal dentro de si, você alcança a outra margem,
além do rio, por trás do tempo.” (p. 258.)
Ou ainda:
Agora sabe onde me -de visitar. não necessito de lhe escrever por caligrafada
palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde ganho dimensão, corpo renascendo em
outro corpo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra,
homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós,
corre por dentro da casa e deságua não no mar mas na terra. Esse rio uns chamam de
vida. (p. 258.)
É nítido, dessa forma, que a sociedade tradicional esforçou-se por vencer a morte
transformando-a em rito de passagem ou, conforme o escritor, no ciclo das visitas. Na
52
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 187.
64
perspectiva arcaica, morre-se sempre para qualquer coisa que não fosse essencial: morre-se
sobretudo para a vida profana; processo metaforizado pelo encontro com a própria sombra.
Nessa linha, a morte, então, chega a ser considerada uma suprema iniciação, o começo de uma
nova existência espiritual “sombra onde se ganha dimensão, corpo renascendo em outro
corpo.”
Indo mais adiante e seguindo os pressupostos de Eliade , as noções de geração, morte e
regeneração (renascença) foram compreendidas como os três momentos de um mesmo
mistério. E este tripé da cosmogonia deve estar sempre interligado, não devendo existir cortes
entre estes três momentos. Corroborando com essa visão, encontramos Mia Couto, para o qual
o movimento se apoia em quatro elementos vitais: “casa, terra, homem, rio: o mesmo ser,
diferindo em nome”. E estes seguem sempre ininterruptos, assegurando os ciclos: “Há um rio
que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e deságua não no mar mas na terra. Esse rio
uns chamam vida.”
3.1.3. Dissociação corpo-alma
A morte, portanto, modifica o status ontológico do homem: é nítido, assim, que a separação
corpo-alma inaugura um novo modo de ser. Para as sociedades arcaicas, a partir dessa
dissociação, o homem é reduzido a uma existência espiritual, torna-se um espírito, uma alma.
Mircea Eliade, em seus estudos etnográficos, aponta para a simbologia de uma crença
segundo a qual, por ocasião da criação, “Deus dotou o homem de alma, enquanto a terra
forneceu-lhe corpo. Com a morte, os dois elementos voltam a desintegrar: o corpo volta à
terra, e a alma retorna ao seu auto celestial.”
53
Este parece ser um princípio a partir do qual as culturas tradicionais desenvolveram suas
explicações sobre o desdobramento da alma. Do paradigma, surgiram diversas formas de
pensamento, com múltiplas vertentes. Tylor se empenhou em explicitar a orientação dos
espíritos em algumas tradições. É interessante perceber, nos exemplos a seguir, que tanto
crenças que atribuem unidade à alma, como as que tomam como verdade a existência da
multiplicidade delas para o mesmo corpo.
53
ELIADE. Bruxarias, ocultismos e correntes culturais, p. 44.
65
Os madascarenses acreditam que a mente (saina) desaparece com a morte, a vida (aina)
transforma-se em ar e o espírito-fantasma (matoatoa) paira sobre o túmulo. Entre os
algoquinos, da América do Norte, uma crença profundamente arraigada da dualidade da
alma: após a morte uma delas continua com o corpo e é esta que recebe as oferendas de
comidas dos viventes , enquanto a outra parte para a terra dos mortos. Sabe-se, também, de
culturas cuja divisão engloba três almas. Os índios dakotas creem em uma constituição de
quatro almas: uma permanece com o cadáver, outra fica na aldeia, a terceira paira no ar e a
última vai para a terra dos espíritos. Para os karens, da Birmânia, existe a diferenciação entre
o fantasma-da-vida pessoal (la ou kelah) e alma moral responsável (thah).
nas culturas africanas, uma crença difundida de que a alma do morto que é ritualmente
conduzida após a morte junta-se aos espíritos ancestrais. Os zulus, por exemplo, julgam que,
na morte, a alma-sombra (tunzi) de um homem, de algum modo, deixa o cadáver para tornar-
se um espírito ancestral. Essa visão é encontrada, por sua vez, em ambas as obras analisadas
de Mia Couto, constituindo, ressalta-se, o eixo das narrativas.
Em Um rio chamado tempo, cuja trama, como vimos, circunda a ascensão de avô Mariano a
uma morte consoante à referência ancestral, a voz de algumas personagens delineiam um
norte acerca das noções de existência. Uma dessas vozes é a de Padre Nunes, que se incumbe,
como pode ser visto na passagem a seguir, de orientar a Marianinho para a mirada da tradição
em Luar-do-Chão. Nesse trecho, marcado pelo sincretismo religioso, mais do que uma alusão
ao local, há uma metonímia das concepções arcaicas de vida e morte.
A cruz, por exemplo, sabe o que me parece? Uma árvore, um canhoeiro sagrado
onde nós plantamos os mortos.
A palavra que usara? Plantar. Diz-se assim na língua de Luar-do-Chão. Não é
enterrar. É plantar o defunto. Porque morto é coisa viva. E o túmulo do chefe da
família como é chamado? De yindlhu, casa. Exatamente as mesmas palavras que
designam a moradia dos vivos. Talvez por isso não seja grande a diferença entre o
Avô Mariano estar agora todo ou parcialmente falecido. (p. 86.)
A cruz, para Padre Nunes, estabelece uma ponte entre a católica e a tradição milenar
africana, que tem no canhoeiro e na terra elementos sagrados. Assim, o chão que recebe o
morto, ao invés de um ponto de chegada, o local estático de sepultamento, constitui o meio
fértil para um renascimento, partida para uma segunda natureza. E essa perspectiva da morte
como recomeço é ponto de convergência das culturas tradicionais de todo o mundo. Nela,
vida-morte, morte-vida mantêm-se como fronteiras líquidas, limites tênues para os quais casa
e túmulo (yindlhu) ou morte total ou parcial podem indiferir.
66
É fato que a aparição da vida é o mistério central do mundo. Para o homem religioso,
conforme ressalta Eliade, “esta vida vem de qualquer parte que não é este mundo, e
finalmente retira-se de de baixo e vai-se para o além, prolonga-se de uma maneira
misteriosa num lugar desconhecido, inacessível à maior parte dos vivos.”
54
Assim, no viés
arcaico, a vida humana não é sentida como uma breve aparição entre dois nadas; é, sim,
precedida de uma preexistência e estende-se numa pós-existência das quais se sabe muito
pouco. O certo é que, para as diversas culturas tradicionais, a morte não põe um termo
definitivo à vida: a morte não é mais do que uma outra modalidade da existência humana; e
esta perspectiva atravessa a literatura de Mia Couto, conforme em Um rio chamado tempo:
“Em África, os mortos não morrem nunca. Exceto aqueles que morrem mal. A esses
chamamos desnascidos. Afinal, a morte é um outro nascimento.” (p. 30.)
55
Para o encaminhamento da alma dos mortos, os ritos fúnebres que serão desenvolvidos em
seus pormenores posteriormente nesta dissertação são essenciais. É a partir deles que a alma
do morto é celestiada, tornando-se ancestral. Nas obras estudadas, o personagem Ermelindo
Mucanga é quem melhor nos localiza o prosseguimento ritual após a morte e os status
advindos do rito na cultura moçambicana. Segundo Mucanga, a cerimônia fúnebre tem o
papel de “cortar o cordão desumbilical” do morto. Aquele que tem uma passagem realizada
em conformidade com a tradição torna-se um ancestral divinizado pela família, o que é
designado por xicuembo. Este vive no sossego que compete aos falecidos, é chamado e amado
pelos vivos e faz parte daqueles que são sonhados. Ou ainda conforme Ermelindo, é um morto
encontrado com sua morte.
O livro Povos de Moçambique: história e cultura, de A. Rita-Ferreira, apresenta uma
riquíssima compilação de pesquisas etnográficas sobre os grupos que compunham a região
onde hoje se encontra Moçambique, e que constituem, por sua vez, as referências primeiras da
cultura moçambicana. Encontra-se, a seguir, o mapa dos Grupos étnicos de Moçambique, com
as respectivas legendas.
54
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 156.
55
A este propósito ver o filme: A PARTIDA. Direção: Yojiro Takita. Japão: Amuse Soft Entertainment, 2008.
67
Figura 1: mapa dos Grupos étnicos de Moçambique. (RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique: história e
cultura, p. 10 cores acrescentadas por nós.)
68
Entre o grupo Tsonga, acredita-se que todo Tsua que falece transforma-se num antepassado,
nguluve ou tinguluve (pl.), continuando em relações íntimas com os seus parentes vivos, mas
revestido de poderes sobrenaturais exceto o espírito das crianças e dos falecidos sem
descendência. A eles são endereçadas as práticas religiosas de preces e sacrifícios, além de
serem constantemente informados de tudo quanto importante acontece aos seus parentes
vivos; não havendo dúvidas, assim, de que constituem verdadeiros objetos ocultos. Sendo
força ancestral, ninguém deve aproximar-se deles sem ser portador de uma oferenda ou de um
sacrifício.
Os tinguluve são, pois, fontes imediatas de força e vida e atuam como mediadores entre os
seres humanos e o Poder Celeste. Todavia, quando tornam-se revestidos de caráter
insatisfatório, podem levar à obstrução dos canais que distribuem o fluido vital por toda a
criação, ocasionando infortúnios, doenças, desequilíbrios e até mesmo catástrofes naturais
como acontece em Um rio chamado tempo no momento em que a terra se fecha recusando-se
a receber um morto interdito. Nesses casos, é necessário consultar o adivinho que, por meio
dos ossículos divinatórios, busca a compreensão das causas e os meios para apaziguar os
antepassados. Para os Tsonga, o mais importante dos tinguluve é o avô ou o bisavô paterno.
Para ele vão as maiores deferências durante o grande sacrifício regular do tempo fresco
(nhamba ia hombe) ou quando os mortos são carpidos (baniha).
São os tinguluve, conforme as tradições Tsonga, ou os xicuembos, de acordo com a referência
trazida por Mia Couto, que recebem, nos meios celestes, as almas dos mortos que são
encaminhadas pelos vivos por meio dos ritos fúnebres. Isso explica a Marianinho o sábio
Curozero Muando que, assim como Padre Nunes, também desempenha, em Um rio chamado
tempo, o papel de portar os conhecimentos sobre a morte e a transcendência.
É a mim que vem procurar?
Sim, há outro coveiro por aqui?
No outro lado do céu existem também os coveiros. Ou melhor, os descoveiros.
Despreza a minha ignorância. Que eu não sabia, mas a gente enterra aqui os mortos
e eles, lá, nos aléns, os desenterram e os celestiam. (p. 157.)
A complexidade e a importância dos ritos de morte -se, então, não somente por se tratar de
um fenômeno natural, a dissociação corpo-alma, mas principalmente por se tratar de uma
mudança de regime ao mesmo tempo ontológico e social. Assim, durante a passagem, além do
defunto ter de afrontar certas provas que interessam ao seu próprio destino post mortem, deve
ser reconhecido pela comunidade dos mortos e aceito entre eles, o que está centralizado na
69
função dos descoveiros, conforme Mucanga.
Celestiado pelos ancestrais, após cumprir todas as etapas do rito de passagem, atinge-se a
plenitude da morte. Essa perspectiva está, também, condensadamente circunscrita na
definição de morte que inicia e encerra o romance circular, à qual podemos aludir. A morte é
como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência.
A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando
as ordens.” (p. 15.) Estas são as primeiras palavras de Marianinho que, embora distante da
cultura tradicional, não atribui passividade à morte como os contemporâneos; suas palavras
são referenciadas, em concordância, por Dito Mariano em sua passagem definitiva: “Eu
apenas estou usando a morte para viver. Você, meu filho, você disse o certo: a morte é uma
cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma nossa apagada existência.” (p.
260.)
3.2. O encaminhamento ritual da alma
Urgente e autenticada cerimônia.
(Um rio chamado tempo)
Falando sobre as visões acerca da constituição da alma e sobre as perspectivas dos seus
desdobramentos após a dissociação do corpo, ater-me-ei, neste tópico, mais cuidadosamente
sobre os ritos de morte e suas simbologias.
Estamos certos de que, em todas as sociedades arcaicas, a morte era considerada um segundo
nascimento, o começo de uma existência nova, espiritual. Esse segundo nascimento, porém,
não era natural como o primeiro, o nascimento biológico, cujas formas são dadas pela
natureza; por isso, como gesto cultural, ele deveria ser criado ritualmente. O estudo
comparativo das religiões, apresentado por Mircea Eliade, nos localiza essa potencialidade
criadora do ato da morte. Segundo o estudioso, entre as sociedades tradicionais, vigora uma
concepção a partir da qual a morte somente é um fato real, consumado, quando as cerimônias
funerárias foram devidamente cumpridas. A morte fisiológica, então, é apenas o sinal de que
devem ser realizadas novas atividades a fim de que se crie uma nova identidade para o morto.
Os ritos de morte comportam, assim, a função de gerar as condições da vida espiritual após a
dissociação do corpo. Seus procedimentos conformam dois aspectos: em um deles, trata-se o
corpo conforme práticas específicas para que ele não seja reanimado pela mágica, evitando,
70
dessa forma, que se torne agente de atos maléficos para a comunidade; no outro, que exerce
papel mais importante, conduz-se a alma à sua nova morada, a fim de que ela seja ritualmente
integrada na comunidade de seus habitantes.
O que está integrado a esta visão é, portanto, que a morte de uma pessoa é reconhecida
como válida quando a alma do defunto foi ritualmente conduzida à sua nova morada, no outro
mundo, e foi aceita pela comunidade dos mortos. Nessa perspectiva, aquele que não é
enterrado, segundo o costume, não está morto. E mais: os enterros feitos com desrespeito às
observâncias são considerados pecados rituais dirigidos ao Poder Celeste, acarretando graves
consequências para a alma do morto.
Este é o paradigma em torno do qual se desenvolve a obra A varanda do frangipani.
Recuperando, aqui, os procedimentos de Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás
Cubas, o livro é iniciado pela narração em primeira pessoa feita pelo morto Ermelindo
Mucanga. Na obra de Mia Couto, as primeiras palavras do narrador apontam para a condição
interdita de sua morte e esta nos interessa especialmente.
Sou o morto. Se eu tivesse cruz ou mármore neles estaria escrito: Ermelindo
Mucanga. Mas eu faleci junto com meu nome faz quase duas décadas. Durante anos
fui um vivo de patente, gente de autorizada raça. Se vivi com direiteza,
desglorifiquei-me foi no falecimento. Me faltou cerimônia e tradição quando me
enterraram. […] Como não me apropriaram funeral fiquei em estado de xipoco,
essas almas que vagueiam de paradeiro em desparadeiro. Sem ter sido cerimoniado
acabei um morto desencontrado da sua morte. Não ascenderei nunca ao estado de
xicuembo, que são os defuntos definitivos, com direito a serem chamados e amados
pelos vivos. Sou desses mortos a quem não cortaram o cordão desumbilical. Faço
parte daqueles que não são lembrados. Mas não ando por aí pandemoniando os
vivos. Aceitei a prisão da cova, me guardei no sossego que compete aos falecidos.
(p. 9-10.)
Sem a devida cerimônia ditada pela tradição, Ermelindo não foi devidamente encaminhado
aos ancestrais, os xicuembos, e tornou-se um morto desencontrado de sua morte. A falta do
segundo nascimento desglorificou-o, não dando prosseguimento às condições de direiteza de
sua vida. Assim, Mucanga tornou-se um xipoco, “essas almas que vagueiam de paradeiro em
desparadeiro” e permaneceu como um fantasma, vagueando sem corpo no território dos vivos.
Percebe-se, então, uma consonância entre os pressupostos arcaicos da morte como ato
criativo, apontados por Eliade, e as narrativas de Mia Couto.
71
3.2.1. Preceitos do ritual
Todavia, cumpro o ritual, preceito a preceito.
(A varanda do frangipani)
O simbolismo religioso das cerimônias funerárias, entre as sociedades arcaicas, depende dos
gestos ritualísticos de cada tradição e, também, da presentificação do ato, o que dificulta, e
por vezes inviabiliza, os estudos etnográficos, principalmente em sociedades tradicionais
antigas. Em Mia Couto, porém, em ambos os livros estudados, encontramos parâmetros dos
ritos fúnebres das culturas africanas. O personagem Ermelindo Mucanga empenha-se em
explicitar os procedimentos adequados e inadequados para o sepultamento, conforme ditames
de sua família.
O primeiro preceito do ritual apontado por ele (e que não foi respeitado em seu enterro) é o de
o morto ser sepultado em posição embrionária. Essa premissa consta em referências
etnográficas africanas, sendo recorrente na tradição dos povos bantos. Encontramos correlato
específico entre o grupo Tsonga, no livro Povos de Moçambique: “Os mortos eram enterrados
com as mãos junto ao queixo e com as pernas dobradas ao longo do tronco.”
56
Ermelindo, em
A varanda do frangipani, por sua vez, apresenta a simbologia dessa falta para sua interdição:
“Não tive sequer quem me dobrasse os joelhos. A pessoa deve sair do mundo tal igual como
nasceu, enrolada em poupança de tamanho. Os mortos devem ter a descrição de ocupar pouca
terra. Mas eu não ganhei acesso a cova pequena. Minha campa se estendeu por sua inteira
dimensão, do extremo à extremidade.” (p. 9.)
Como é sabido, nas sociedades arcaicas, ao gesto ritualístico compete a capacidade de validar
ou invalidar o encaminhamento do morto; assim, o descumprimento do que pode parecer, aos
olhos contemporâneos, um detalhe, é, nesse caso, essencial para o destino da alma. Para
Mucanga, diversas faltas lhe foram graves, como, por exemplo, a posição de suas mãos:
“Ninguém me abriu as mãos quando meu corpo ainda esfriava. Transitei-me com os punhos
fechados, chamando maldição aos viventes.” (p. 9.) É importante perceber, nesse trecho, que
o desrespeito à tradição acarreta danos não apenas para a alma desencaminhada, mas também
para os viventes.
Outro traço que também é bastante encontrado nos estudos sobre os rituais fúnebres africanos
é que o morto deve levar, na sepultura, seus bens materiais. Acredita-se que, assim, ele
56
RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 66.
72
permanece nos estados de riqueza e prosperidade. Mas, na tradição da família de Mucanga, há
um conhecimento complexo sobre a interdição de se portar certos tipos de pertences, como,
por exemplo, os metais:
Os desleixos foram mais longe: como eu não tivesse outros bens me sepultaram com
minha serra e o martelo. Não o deviam ter feito. Nunca se deixa entrar em tumba
nenhuns metais. Os ferros demoram mais a apodrecer que os ossos do falecido. E
ainda pior: coisa que brilha é chamariz da maldição. Com tais inutensílios, me
arrisco a ser um desses defuntos estragadores de mundo. (p. 9.)
Para a família de Mucanga, o monte sagrado representava o espaço da cosmogonia. Os
mortos, então, deveriam ter a fronte inclinada para ele, em reverência aos ancestrais o que
também lhe faltou. “E ainda mais: não me viraram o rosto para encarar os montes
Nkuluvumba. Nós, os Mucangas, temos obrigações para com os antigamentes. Nossos mortos
olham o lugar onde a primeira mulher saltou a lua, arredondada de ventre e alma.”(p. 9.)
A cosmogonia é, pois, o paradigma do modo de vida sagrado. E o território habitável é
intrinsecamente um lugar consagrado e de consagração. Assim, ritualmente estabelecida como
lócus não propício ao caos, a terra natal carrega, para as sociedades arcaicas, a simbologia da
identificação ancestral. Nascer e habitar uma região possui uma significação ampla de
pertencimento e de vinculação a partir das relações com o cosmos e com a terra.
Para os ritos de morte, então, morrer e ser sepultado na terra natal é uma premissa inconteste.
Em Mia Couto, ela tanto nos é apresentada pelo personagem Mucanga, em A varanda do
fangipani, “Todas essas atropelias sucederam porque morri fora do meu lugar. Trabalhava
longe da minha vila natal. Carpinteirava em obras de restauro na fortaleza dos portugueses,
em São Nicolau” (p. 9.), quanto é a preocupação constante dos velhos Nhonhoso e Xidimingo
na fortaleza de São Nicolau:
Você, Xidimingo, pertence a Moçambique, este país lhe pertence. Isso nem é
duvidável. Mas não lhe traz um arrepio ser enterrado aqui?
Aqui, onde?, perguntei.
Num cemitério daqui, de Moçambique?
Encolhi os ombros. Nem cemitério eu não teria, ali no asilo. Mas Nhonhoso insistiu:
É que os seus espíritos não pertencem a este lugar. Enterrado aqui, você será um
morto sem sossego. (p. 47.)
Voltei atrás e me sentei ao lado do português. Senti, naquele instante, tanta pena
dele. O homenzito iria morrer aqui, longe dos antepassados. Seria enterrado em terra
alheia. Ele, sim, estava condenado à mais terrível das solidões: ficar longe dos seus
mortos sem que, deste lado da vida, houvesse familiar que lhe deitasse cuidados.
Nossos deuses estão aqui perto. O Deus dele eslonge, para além da vista e das
visitas. (p. 66.)
É explícita, nessa passagem, a vinculação entre ritual e consagração do morto. Estar próximo
73
aos familiares e ao clã e ser por eles conduzido ao território dos ancestrais é uma prática ritual
que exige cuidados quanto aos pormenores. Cada passo do rito deve ser tomado com rigor aos
símbolos e aos sinais e nenhum território se configura mais propício para tal ato do que a terra
natal. Nela, a identificação e a condição de pertencimento é rizomática, como é também no
viés desse rizoma que o morto ascende ao status de xicuembo.
A reunião da família para as celebrações funerárias é, então, inconteste, como nos apresenta
Mia Couto em Um rio chamado tempo. “No quintal e no interior da casa tudo indicia o
enterro. Vive-se, até o detalhe, a véspera da cerimônia. Na casa grande se acotovelam os
familiares, vindos de todo o país. Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se aglomeram
rostos que, na maior parte, desconheço. [...] o luto nos faz da mesma família.”(p. 29-30.)
Esta passagem sintetiza bem a estrutura compósita da sociedade africana apresentada por Mia
Couto em sua literatura. Nela vigoram pontos de tensão entre o estabelecimento da tradição
“Vive-se, até o detalhe, a véspera da cerimônia”, e, uma estrutura contemporânea na qual os
laços familiares mostram-se mais afrouxados “Só o luto nos faz da mesma família”. As
desvinculações familiares justificam-se por diversos fatores, dentre eles, o que é caro à
história da África, as migrações: Os convidados não paravam de desembarcar. Num barco
especialmente fretado haviam chegado os mulatos é o ramo da família que foi para o
Norte.” (p. 59.)
Nesta obra, são apresentadas algumas hierarquias e papéis das sociedades tradicionais
referentes à organização social do ritual. As medidas relativas ao sepultamento, como o
anúncio aos familiares, a tomada de decisões, o estabelecimento de regras, isto é, o comando
da cerimônia fúnebre, é incumbência do munumuzana, o filho mais velho. No caso dos
Malinanes, seria Abstinêncio; mas por uma decisão polêmica do patriarca Dito Mariano,
anunciada por Dulcineusa, tais funções caberiam a Marianinho. A opinião dos familiares,
entretanto, presava pela tradição: “Você foi escolhido pelo morto. Mas Abstinêncio é o mais
velho. Ele é que foi escolhido pela vida.” (p. 117.)
Quanto aos aspectos relativos aos cuidados com o morto, estes eram incumbência da esposa,
Dulcineusa. A ela caberiam o zelo, “Ela [Admirança] deitaria a velha matriarca na devida
cama, quem sabe despertaria mais tranquila? Que ela muito teria que ganhar repouso. Pois lhe
competia a ela e a ela tratar do amortecido esposo: lavá-lo, barbeá-lo, mudar-lhe a roupa.”
(p. 35.), e a companhia até a derredeiração, culminada pelo enterro: “O caixão, contudo, ainda
74
está em casa. E lá, na sala sem teto, o corpo de Mariano ainda resta fora do caixão, à espera de
um há-de-vir. O Aaguarda em exclusiva companhia de sua esposa, Dulcineusa. depois
de abrirem a cova e encaminharem as primeiras bênçãos, então o trator irá buscar Dito
Mariano.” (p. 177.)
Por fim, tratarei de uma premissa importante em diversos tipos de rituais das sociedades
tradicionais: a abstinência sexual. Para a consciência arcaica, os atos fisiológicos como a
alimentação, a sexualidade, etc, são permeados pela perspectiva sagrada, note-se a variedade
de ritos e mitos que os circundam. O mundo contemporâneo, por sua vez, não comporta mais
essa visão, tratando desses aspectos mais pelo viés orgânico e pela esfera dos afetos não
obstante o número de tabus que circundam essas questões.
Em relação aos ritos funerários, a abstinência é uma premissa inconteste, e, em Nyumba-
Kaya, em Um rio chamado tempo, cuidados eram tomados para que a condição não fosse
infringida: “Instalaram juntos Abstinêncio e Admirança, por razão de higiene. Os dois são
muito parentes, podem partilhar lençóis. [...] Não há, pois, risco de subirem as hormonas a
nenhum dos meus tios. Seria fatal se, nesse tempo de luto, houvessem namoros na casa.
Durante as cerimônias se requer total abstinência. Caso contrário, o lugar ficaria para sempre
poluído.” (p. 55.)
Essa interdição, porém, não foi respeitada por Marianinho que, no dia em que foi testar as
chaves dadas pela avó na porta do sótão, encontrou-se, no escuro da habitação, com o corpo
de um mulher. Mesmo não reconhecendo aquela anatomia e sabendo dos perigos de, naquela
situação, entregar-se aos prazeres do corpo, Marianinho manteve uma relação sexual na casa
grande. Os riscos daquele ato eram sabidamente graves, espalhando poluição pelo território.
E, talvez, resida neste ato segredado o motivo de Marianinho ser acusado, e até mesmo
perseguido, como uma pessoa quente, em Luar-do-Chão.
3.2.1.1. Ser quente
E eu despertara antigos fantasmas.
(Um rio chamado tempo)
Os estudos etnográficos dos povos do grupo Tsonga, apresentados em Povos de Moçambique,
revelam uma perspectiva de vida baseada em critérios como o ideal de vida suficiente e a
manutenção de uma vida social correta. Nessas culturas, a virtude está na busca pela
75
normalidade, por uma vida pautada em aspirações normais. Assim, tudo o que é excessivo,
inclusive o sucesso, é temido e classificado como anormal, por gerar uma vida mais do que
suficiente e, por conseguinte, prejudicar as relações sociais.
Nesse viés, é considerado bom tudo o que contribua para estabelecer ou manter um
suficiente fluxo de vida, como ter filhos, reverenciar os espíritos dos antepassados (para
ajudar a manter a vida no seio do grupo familiar), usar amuletos (para conservar a vida do
indivíduo). Do mesmo modo, é mau tudo o quanto diminua o fluxo da vida, por exemplo, o
adultério, que rompe diversos tipos de relações e gera doenças, colocando a família em estado
de receber um fluxo ineficiente de vida.
A pessoa normal é, por definição, boa. E se, em resultado de ações pérfidas que inadvertida
e inconscientemente cometeu, espalhar em seu redor a doença e o infortúnio, passa a ser
considerada como contaminada por um estado maligno. A expressão empregada para designar
esses casos é quente (kuhisa). Mia Couto apresenta esse elemento das culturas africanas no
personagem Marianinho, em Um rio chamado tempo, e desenvolve suas consonâncias com a
crença dos Tsongas:
Alguns me aconselharam:
O melhor é você sair da ilha, você é um homem quente.
Ser quente é ser portador de desgraça. Nenhuma pessoa é uma vida. Nenhum
lugar é apenas um lugar. Aqui tudo são moradias de espíritos, revelações de ocultos
seres. E eu despertara antigos fantasmas.
Vão dizer que foi você, Mariano.
Eu, porquê?
Deixou de chover quando você chegou, a terra fechou depois de você estar aqui.
Tudo são coincidências, meu caro. E todos sabemos que coincidência é coisa que
acontece, mas nunca existe. (p. 201-202.)
Sendo quente, Marianinho era tomado como capaz de despertar antigos fantasmas. Para
pessoas em tal estado, é feito um exame retrospectivo para apurar que força maligna ativou a
sua vontade, levando-a a cometer um pecado. Quase sempre essa força é atribuída às ocultas
manobras de indivíduos com poderes de feitiçaria ou por pessoas dominadas por espíritos
possessivos (xipocos, mandikis), pois, conforme Mia Couto, “Aqui tudo são moradias de
espíritos, revelações de ocultos seres.” Por isso, o pai de Marianinho, Fulano Malta,
incumbia-se de buscar proteção para o filho: “Somos interrompidos por meu pai que regressa
do cais, trazendo uma mão cheia de cinzas que recolheu dos restos do incêndio. Vai espalhar
esses pós sobre a terra, ainda penso. Mas não. Fulano esfrega as palmas das mãos nos meus
cabelos. Resisto. O que era aquilo? Por que me untava a cabeça de cinza? Meu pai diz que é
para meu bem, para afastar maus espíritos.” (p. 214.)
76
O estado quente, então, pode ser de origem sexual. A mulher encontra-se em tal condição
durante a menstruação, após o parto e o aborto; o homem, durante a circuncisão; e o casal,
após a cópula. Pode também ser provocado pelo enterro quando se desrespeitam as normas.
Ademais, os guerreiros que abatessem um inimigo tornavam-se quentes enquanto não fossem
purificados. E são por essas premissas que uma ronda policial persegue Marianinho e o
inquere:
De repente, vejo que dois polícias avançam pelo mesmo caminho que eu estava
pisando. [...] Ao cruzarem comigo, porém, eles me seguram e começam, de
imediato, a amarrar-me os braços. [...] Sentado, com impotência estudada, me espera
o administrador. Está com cara de fígado, e sem rodeios me lança, com voz peluda:
Você urinou no chão?[...]
Fez amor durante esses dias?[...]
O que foi fazer nesse cemitério, o que andou a conversar com esse coveiro? (p.
202-203.)
As pessoas, no perigoso estado quente, pela perspectiva Tsonga, não eram consideradas
propriamente criminosas como o eram as acusadas de feitiçaria. Todavia, como o seu estado
temporário era potencialmente destrutivo, não deviam estar doentes e parturientes nem tomar
parte em sacrifícios, porque podiam perturbar o delicado equilíbrio da participação vital.
Assim, Marianinho encontrava-se interditado de fazer diversas atividades como, conforme os
policiais, urinar no chão, ou ainda, e principalmente, banhar-se no rio Madzimi: “– Não se
lave no rio. Não deixe o sangue tombar no rio. Com as mãos faz uma concha e lava-me a
conveniente distância da margem.” (p. 205.)
3.2.1.2. Destelhamento
O importante não é a casa onde moramos
Mas onde, em nós, mora a casa.
(Um rio chamado tempo)
Outro elemento interessante, referente aos preceitos da passagem para a morte, desenvolvido
por Mia Couto em sua obra, é o destelhamento ritual da casa. Esta é uma das primeiras
imagens confrontadas por Marianinho ao desembarcar em Luar-do-Chão:
Mesmo ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É assim, em
caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos compartimentos, para a
limpeza das smicas sujidades. A casa é um corpo o teto é o que separa a cabeça
dos altaneiros céus. Sobre mim se abate uma visão que muito irá se repetir: a casa
levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E eu olhando a
velha moradia, a nossa Nyumba Kaya, extinguindo-se nas alturas até não mais ser
que nuvens entre nuvens. (p. 29.)
A imagem da casa como corpo e do teto como separação da cabeça com o altaneiro céu
77
condiz com a perspectiva sagrada relativa à morada, na qual a habitação, como homologação
corporal, ergue-se como um eixo, um ponto central. Como vimos no capítulo 2 deste trabalho,
diversas culturas do mundo elegeram pontos (a casa, a montanha, a árvores) como axis mundi
que ligam a terra ao céu. Eles tocam de algum modo o céu e marcam, por consequências, um
ponto referencial onde é possível a rotura de nível. Acredita-se também que marcam o centro
do universo.
A imagem sugestiva da casa aberta aos céus, que levanta voo como o pássaro de Miserinha,
tão ricamente trabalhada por Mia Couto, encontra correlato no gesto de diversas tradições de
todo o mundo, conforme se incumbe de apresentar Mircea Eliade:
Este costume indiano tem a sua réplica nas crenças abundantemente espalhadas na
Europa e na Ásia que a alma do morto sai pela chaminé (=buraco do fogo) ou pelo
telhado, e nomeadamente pela parte do telhado que se encontra por cima do ângulo
sagrado. Em casos de agonia prolongada, retira-se uma ou variadas pranchas do
telhado, ou chegam até a despedaçá-lo. A significação deste costume é evidente: a
alma desligar-se mais facilmente do seu corpo se a outra imagem do corpo-
cosmos, que é a casa, for fraturada na sua parte superior.
57
A fratura da parte superior da casa (corpo-cosmos) é consonante com o devir cósmico para o
qual se inclina o mundo sagrado. Nele, os elementos essenciais do mundo universo, templo,
casa, corpo humano são providos de uma abertura superior ou uma abertura para o sagrado.
E, no caso explícito do destalhamento ritual da morada, tem-se o estabelecimento de uma
ligação direta com o céu, a fim de que a alma se desligue mais facilmente, tornando possível a
passagem de um modo de ser a outro, de uma situação existencial a outra.
Esta crença de que a alma do morto sai pela chaminé, o buraco de fogo, ou pelo telhado é
consonante com a perspectiva de Marianinho, em Um rio chamado tempo, conforme a seguir:
O A lá está, teimando em sua horizontalidade. Fico ali, juto a seu corpo, em
solitário velório. Me assalta uma vontade absurda de me deitar no chão e olhar os
céus, na solitária companhia de Dito Mariano. É o que faço. estendido no soalho,
vou alongando sossego numa quase sonolência. A ausência de teto, naquela visão,
me sugere haver uma chaminé por onde fossem saindo as nuvens. E assim,
amolecido, adormeço. (p. 138.)
Nas visões sobre a morte temos, pois, as nuvens como metáfora da leveza, de uma passagem
suave em conformidade com os ritos ancestrais. É o que vemos, acima, na imagem das nuvens
que passam pela chaminé ou, anteriormente, no voo da casa pelas alturas, “a nossa Nyumba
Kaya, extinguindo-se nas alturas até não mais ser que nuvens entre nuvens.”
57
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 182.
78
Indo mais adiante na simbologia do destelhamento, na homologação corpo-casa, a
ultrapassagem da condição humana se traduz, de uma maneira imagética, pelo aniquilamento
do cosmos pessoal que se escolheu habitar. A escolha de um cosmos pessoal equivale, no
plano filosófico, a uma situação existencial que se assumiu. Dessa maneira, o estilhaçamento
do telhado, desdobra-se, além do estabelecimento de uma ligação mais estreita com o cosmos,
na libertação necessária para a passagem, no aniquilamento de todo o mundo condicionado.
Marianinho, entretanto, mesmo tendo familiaridade com os preceitos rituais, não deixa de se
afligir com a desproteção da matrona Nyumba-Kaya: “Por isso me aproximo com receio do
lugar fúnebre. A sala onde depositaram o Aestá toda aberta aos céus. A lua e o escuro
aproveitam a ausência de teto. Aflige-me toda aquela desproteção. E se chover, e se a nuvem
se despejar sobre o indefeso corpo de Mariano?” (p. 41-42.)
Mas a imagem da redenção, ao final da obra, da reorganização das estruturas da Ilha, é
figurada pelo reerguimento do telhado: “Lá fora a noite está perdendo espessura. Salto o muro
da casa, olho para trás e, não cabendo em meu espanto, o que vejo? O telhado refeito. A
casa já não se defendia do luto. Nyumba-Kaya estava curada da morte.” (p. 239.) A passagem
estava cumprida, a casa-corpo-cosmos estava curada da morte.
E é sobre a simbologia da passagem nos meios tradicionais que me debruçarei agora. A ela
está predestinada toda a existência cósmica. Tal como o sol passou das trevas à luz e os
antepassados míticos passaram da preexistência à existência, a necessidade do homem de
passar da pré-vida à vida e finalmente à morte, e, nesse caminho, vigoram os cumprimentos
essenciais dos ritos de passagem.
3.3. Ritos de passagem
Te converterás num ser das águas e
Serás maior do que qualquer viagem.
(A varanda do frangipani)
É certo que diversos ritos de passagem fazem parte da existência do homem religioso e
desempenham um papel cosmológico significativo. Em sua gama variada, estão presentes do
nascimento à morte, passando ao longo da vida pelas iniciações. Representam, pois,
mudanças radicais no regime ontológico e de estatuto social da pessoa.
79
Uma criança, por exemplo, ao nascer, dispõe de existência física, mas apenas após a passagem
pelos ritos lhe é conferido o status de vivo, propriamente dito, e o reconhecimento pela
família e pela comunidade. São as cerimônias tradicionais que o integram à sociedade dos
vivos. Em algumas tradições africanas, esta cerimônia começa com a apresentação dos recém-
nascidos à lua nova pela avó materna e serve, ademais, como meio de defesa contra espíritos
malignos. No livro Povos de Moçambique, uma descrição desse costume entre os povos
Sothos e Vendas:
O lugar escolhido para o parto ficava, em geral, atrás da palhota da parturiente,
nenhum homem podendo a ele assistir. Logo que a mãe da criança voltasse a ser
menstruada, efetuava, como entre Sothos e Vendas, a cerimônia da apresentação à
Lua. Mais tarde quando começava a gatinhar, tinha lugar outra cerimônia, que se
destinava a torná-la um membro regular da comunidade: era-lhe atado à cintura um
cordão previamente untado com as secreções seminais dos pais recolhidas após um
ritual onanista. Depois do desmame, a criança era enviada por um ou dois anos para
junto da família da mãe.
58
Ao longo da vida, assim como as celebrações de nascimento, outras são especialmente
importantes, como a iniciação da puberdade e a transição de uma faixa etária a outra, infância-
adolescência-juventude. Há, também, no decorrer da idade, os ritos de passagem de um grupo
sócio-religioso a outro, como é o caso do casamento. Nele, o recém-casado abandona o grupo
dos celibatários para participar, daí para frente, do clã dos chefes de família. Essa celebração
tinha distinção especial entre os gregos, que chamavam-na consagração (télos), e seu ato
nupcial era rico, semelhante ao dos Mistérios.
No que diz respeito à morte, as passagens são extremamente complexas por se tratar,
conforme trabalhado neste capítulo, não somente de um fenômeno natural, a dissociação
corpo-alma, mas também de uma mudança de regime ao mesmo tempo ontológico e social.
Os rituais iniciáticos, por sua vez, desempenham um papel capital de formação religiosa do
homem e, sobretudo, a mutação do regime ontológico. A condição implicada nessa ideologia é
que os homens das sociedades tradicionais não se consideram acabados ao nível natural de
existência. Para eles, o ato de tornar-se um homem propriamente dito necessita da morte para
a vida primeira, natural, e do renascimento para uma vida superior que é, ao mesmo tempo,
religiosa e cultural.
Mircea Eliade nos apresenta, em O sagrado e o profano, a simbologia desse segundo
58
RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 64.
80
nascimento. De acordo com o estudioso, os ritos iniciáticos comportam as provas, a morte e a
ressurreição simbólicas; e foram fundados pelos deuses ou os antepassados míticos. Eles têm,
então, origem sobre-humana e, efetuando-os, o iniciando imita um comportamento divino.
Dessa forma, é pertinente afirmar que o homem arcaico coloca o seu ideal de humanidade no
plano da transcendência. Somente após ter ultrapassado e, de certa forma, abolido a
humanidade natural, o homem irá se tornar completo.
Os ritos de iniciação começam normalmente com a separação dos iniciandos da família e com
um retiro na floresta. Em inúmeras regiões, existe na selva uma cabana iniciática, onde os
jovens candidatos sofrem uma parte das suas provas e são instruídos nas tradições secretas da
tribo. No período da iniciação, são-lhes ensinados elementos fundamentais da cosmologia e
da cultura tradicional, como os mitos dos Seres Supremos e da origem do mundo, o nome dos
Deuses, a função e a origem dos instrumentos rituais utilizados durante as cerimônias de
iniciação (por exemplo, as lâminas de sílex usadas para a circuncisão). Esse segundo
nascimento, por conseguinte, é representado de diversas maneiras de acordo com cada
tradição. Há formas concretas de expressões, como tatuagens, escarificações, circuncisão e até
mesmo mutilações; e maneiras menos corpóreas como o renomeamento, o aprendizado de
uma nova língua ou, pelo menos, de um vocabulário secreto.
O mistério da iniciação, cujo simbolismo do segundo nascimento acompanha sempre algum
nível de morte, apresenta ao iniciando as verdadeiras dimensões da existência e traduz-se, em
suma, ao acesso à espiritualidade, ao sagrado além, é claro, de obrigá-lo, seja homem ou
mulher, a assumir suas responsabilidades sociais. Nos quadros iniciáticos, a morte, então, em
sentido amplo, significa a transcendência da condição profana de homem natural para homem
religioso.
[A morte] é revelação e introdução. Todas as iniciações atravessam um fase de
morte, antes de abrir o acesso a uma vida nova. Nesse sentido, ela tem um valor
psicológico: ela liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa e libera
as forças de ascensão do espírito. Se ela é, por si mesma, filha da noite e irmã do
sono, ela possui, como sua mãe e seu irmão, o poder de regenerar. Se o ser que ela
abate vive apenas no nível material ou bestial, ele fica na sombra dos Infernos; se ao
contrário, ele vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos de luz. Os místicos,
de acordo com os médicos e os psicólogos, notaram que em todo ser humano, em
todos os seus níveis de existência, coexistem a morte e a vida, isto é, uma tensão
entre duas forças contrárias. A morte em um nível é talvez a condição de uma vida
superior em outro nível.
59
59
CHEVALIER & GHEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 621.
81
Mircea Eliade apresenta algumas mitologias que explicitam as figurações da morte nas
provações pelas quais os candidatos passam:
Em certos lugares acredita-se que um tigre vem e transporta no dorso os candidatos
na selva: a fera encarna o antepassado mítico, senhor da iniciação, que conduz os
adolescentes aos infernos. Além disto, considera-se que o neófito é engolido por um
monstro: no ventre do mostro reina a noite cósmica; é o mundo embrionário da
existência, assim no plano cósmico como no plano da vida humana.
60
Além desses mitos em que feras e monstros encarnam os antepassados míticos, diversos
ritos que iluminam o simbolismo da morte iniciática. Assim, há cenas rituais em que os
iniciandos, enterrados em túmulos cavados ao ar livre ou coberto por ramagens, têm de
permanecer como mortos. momentos, também, em que eles têm de se assemelhar aos
espectros: cobertos de pós brancos devem comer sem usar as mãos, como se crê que as almas
dos mortos fazem.
Desde a imersão na floresta e na cabana iniciática às provas pelas quais passam os iniciandos,
uma regressão simbólica ao estado embrionário, uma passagem pela condição fetal, o
modo virtual, pré-cósmico. Em certas tradições, considera-se que os jovens iniciados
esqueceram tudo da sua vida anterior e, logo após a iniciação, são alimentados como crianças,
conduzidos pela mão; os já iniciados ensinam-lhes de novo os comportamentos. A iniciação é,
pois, um recomeço.
61
Ela comporta, pois, uma tríplice revelação: o sagrado, a morte e a sexualidade. Isso significa
que, apenas a partir do segundo nascimento, o iniciado conhece estas experiências, assume-as
e integra-as na sua nova personalidade. E é por esse motivo que, na história religiosa da
humanidade, encontra-se sempre este tema: o iniciado é aquele que sabe, que conhece os
mistérios, que teve revelações de ordem metafísica. Por isso, a iniciação equivale à maturação
60
ELIADE. O sagrado e o profano, p. 193.
61
“No plano etnológico, seria possível mostrar que toda a atividade ritual tem por finalidade a produção de
identidade por meio do reconhecimento de alteridades. Os rituais de nascimento, de iniciação, funerários, põe
todos em cena um Outro (um ancestral, gerações, um deus ou um feiticeiro) com o qual é preciso estabelecer ou
restabelecer uma relação conveniente para garantir o estatuto e a existência do indivíduo ou do grupo. Dentro de
uma ótica talvez abusivamente funcionalista, e durkheimiana , certos etnólogos chegaram mesmo a dizer que a
finalidade confessa do ritual não era sua verdadeira finalidade. Mas, sem dúvida, não e necessário negar o valor
“idetificante”. Em matéria de rito, também a união, e, mais ainda, a consciência da união, faz a força. Os que
querem, através da celebração de um rito, curar um indivíduo ou conjurar uma catástrofe, querem-no
verdadeiramente mas precisam, para fazê-lo, construir uma instância de referência exterior (outro) em relação à
qual eles se identificam como mesmos (interiores e idênticos). Além disso, uma especialização ritual é um fator
de identificação e de reconhecimento para aqueles que não são associados a ela. Pode-se afirmar, então, que a
atividade ritual cria a identidade e não somente sua tradução.” (AUGÉ, A guerra dos sonhos, 20)
82
espiritual.
3.3.1. Circuncisão
Mas a cerimônia, sim, haveria de ser feita.
Era condição para o ingresso na família dos mais velhos.
(A varanda do frangipani)
Na tradição banto, diversos ritos de passagem marcam a imersão na puberdade. Nenhum
deles, porém, nos meios masculinos africanos, substitui a excelência da circuncisão, este
costume milenar. Estudos etnográficos, apresentados em Povos de Moçambique, sugerem que
esse costume foi trazido pelos árabes que, durante séculos, comerciaram e colonizaram a
África. Explicitarei, pois, alguns trechos desta pesquisa: “A. Cabral julga provável que os
(Bi)Tongas sejam oriundos do norte e que, quando daqui saíam, tivessem trazido o costume
da circuncisão e o seu gosto pela vida marítima, ambos provenientes do contato com os
árabes.”
62
E ainda:
Os Persas e sobretudo os Árabes deixaram, naturalmente, mais profundas marcas.
Além da islamização dos povos do litoral norte, a eles se deve a introdução da
mangueira e dos citrinos, os cofiós bordados de Oman, a tecelagem de panos de
algodão, a confecção de adornos de prata, a importância do pescado e mariscos. Em
certos casos também lhes pode ser atribuída a circuncisão, o apreço atribuído à
virgindade da noiva, a depilação total dos pelos do corpo, incluindo as pestanas e,
enfim, a forma especial dos túmulos com depósitos do cadáver em cavidade
lateral.
63
A tradição da circuncisão, assimilada em quase toda a África, tem características próprias e
distintas em cada povo e região. Tive acesso a algumas informações sobre este rito entre os
Chopes, em Povos de Moçambique, as quais apresentarei a seguir.
Nesses rito iniciático, que eram realizados a cada quatro ou cinco anos para os rapazes de 10 a
16 anos, os jovens ficavam reclusos em abrigos construídos no mato em um período de
aproximadamente três meses. Escolhia-se a estação do ano em que o tempo era fresco para
que as feridas sarassem mais rapidamente. No período da iniciação, os rapazes eram
totalmente cobertos com uma estrutura de capim para não serem reconhecidos. Ao final do
processo, os jovens eram imergidos na lagoa e vestidos com roupas novas. O regresso para a
aldeia era esperado pelas mães, que dançavam ao som das timbilas, manifestando alegria pela
passagem dos filhos.
62
RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 48.
63
RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 35.
83
Mircea Eliade, por sua vez, apresenta alguns dados sobre a circuncisão entre os povos bantos
de região não citada. Segundo a tradição pesquisada, antes de ser circuncidado, o rapaz era
objeto de uma cerimônia conhecida pela designação de nascer de novo. O pai sacrificava um
carneiro e, três dias depois, envolvia a criança na membrana do estômago e na pele do animal,
na qual permanecia por alguns dias. Entretanto, antes de ser envolvida na membrana, o jovem
devia subir para a cama e chorar como recém-nascido. Segundo nos localiza o estudioso, o
simbolismo da renascença mítica pelo revestimento ritual de uma pele de animal é atestado
em culturas de grande importância como a da Índia e a do Egito antigo.
Em Mia Couto, em ambas as obras estudadas, a circuncisão é tematizada como rito
fundamental para inserção na cultura tradicional. Tanto Marianinho quanto Izidine Naíta, os
dois personagens tidos como “de fora”, “estrangeiros”, em algum momento, são interrogados
e questionados a respeito de sua iniciação. Em Um rio chamado tempo, quem inquere a esse
respeito é a avó Dulcineusa. Segundo a tradição de Luar-do-Chão, a passagem por esse rito
era uma premissa para que Marianinho pudesse comandar ou até mesmo participar da
cerimônia fúnebre do avô:
Me diga, meu neto, você lá na cidade foi iniciado?
Tio Abstinêncio tosse em delicada intromissão.
É que ele lá na cidade, mamã...
Ninguém lhe pediu falas, Abstinêncio.
O inquérito tem exata finalidade. Querem saber se eu já atingi a idade do luto. De
novo, a matriarca espeta seus inquisitivos olhares sobre mim:
Me deixe que lhe pergunte, meu neto Mariano, você foi circuncidado?
Abano a cabeça, negando. Meu pai nota o meu embaraço. Calado, ele me sugere
paciência, com um simples revirar de olhos. A Avó prossegue:
Me responda ainda mais: você já engravidou alguma moça?
Abstinêncio interfere, outra vez:
Mamã, o moço tem as maneiras dele para...
Quais são seus namoros? insiste a velha.
Um constrangimento os encolhe a todos. Meu pai brinca, adiantando:
Ora, mamã, o melhor é falar de suas doenças...
Namoros são doenças corrige a Avó.
Não chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no círculo pequeno dos donos
da fala, em obediências e respeitos. Tudo lento, para se escutarem os silenciosos
presságios. Após longa pausa, a Avó prossegue.
Falo tudo isso, não é por causa de nada. É para saber se você pode ou não ir ao
funeral.
Entendo, Avó.
Não diga que entende porque você não entende nada. Você ficou muito tempo fora.
(p. 31-32.)
O rito de passagem para puberdade era o meio de fazê-lo alcançar a idade do luto. A
circuncisão, assim como os namoros e a gravidez, surgiam-lhe como uma permissão para lidar
com elementos fundamentais da cultura, como, naquele momento, o era a cerimônia de
84
sepultamento de Dito Mariano.
Em A varanda do frangipani, o inspetor Izidine Naíta, após algum tempo tentando investigar
sobre a morte de Vasto Excelêncio no asilo, encontrava-se desesperado por ser, a todo
momento, desprezado pelos velhos e por Marta. Até que, em um episódio, jogaram-lhe luz
sobre o fator que lhes levavam a agir assim:
Não lhe confiamos, inspetor.
Mas porquê? por eu ser polícia? [...] Será que, para vocês, eu não sou um
homem bom?
Você não é bom nem mau. Você simplesmente inexiste.
Como inexisto?
Você fez circuncisão?
O inspetor desconseguiu responder. Estava atônito. Então era aquilo? Ou seria
simples pretexto? Mais uma maneira de lhe atirarem poeira? Fosse o que fosse,
deveria saber contornar aquela inesperada barreira. E se aprontou a ser sujeitado a
cerimônias.
Vão me circuncidar?
O velho riu. Já era demasiado adulto.” (p. 94-95.)
No caso de Izidine, a circuncisão foi-lhe cobrada de maneira ainda mais impositiva, como
uma condição para sua existência. O segundo nascimento era-lhe essencial para imersão na
cultura e na tradição. Mesmo a disposição de passar pelo rito não era suficiente, que havia
se tornado demasiado tarde para ser conhecedor nos segredos e nos mistérios.
Assim, ser iniciado, ser circuncidado, passar pela morte e pelo renascimento e integrar essas
experiências à nova personalidade é uma premissa arcaica de alta importância, que equivale,
de fato, à maturação espiritual. Viver sem ela em uma sociedade tradicional africana significa
ser dissipado das cerimônias, dos ritos, do luto e, por conseguinte, da metafísica e da
existência.
3.3.2. Ritos femininos de puberdade
As ondas te levarão e só terá destino num lugar
onde não chega nenhum barco.
(A varanda do frangipani)
Também as mulheres passavam pelos ritos púberes e estes eram mais característicos a cada
tradição, tendo menor disseminação do que a circuncisão. O livro Povos de Moçambique
fornece algumas informações sobre essas passagens, as quais achei pertinente apresentar aqui,
apesar de não serem tematizadas nas narrativas de Mia Couto.
Dentre os povos Chuabos, do litoral entre Pebane e a foz do Zambeze, a puberdade feminina
85
era celebrada por ritos complexos. De acordo com o etnólogo Schulien, dispunham de
canções e de uma linguagem secreta (nluga), própria para cerimônias de iniciação. Essas
canções revelariam a existência de uma vida social regulada e, nessa linguagem secreta, as
palavras de uso comum seriam empregadas em sentido simbólico. Tanto os homens quanto as
mulheres eram proibidos de interferir mutuamente nas respectivas iniciações.
Para os Podzos ou Chipangas, os ritos de puberdade feminina eram mais prolongados e
espetaculares do que os masculinos (nkhuentye), os quais não incluíam a circuncisão. Dentre
os procedimentos de preparação para a vida adulta, fazia parte a dolorosa distensão dos grades
lábios com óleo de rícino. Ainda nessa tradição, por ocasião da menarca, realizava-se a
iniciação (massasseto) das jovens, dirigida pela avó. Nela, as jovens dançavam a erikuba,
recebiam os ensinamentos e, ao final, ganhavam do pai um pano branco que era usado em
torno do peito até o dia do casamento.
A este propósito, a pesquisadora Dora Earthy, ao estudar os Chopes, afirma que o ciclo da
iniciação feminina orientava-se pelos ciclos do ano agrícola. Por ocasião dos primeiros
cultivos, em agosto, as candidatas eram alistadas ou prometidas. No mesmo mês do ano
seguinte, a iniciação era completada pela grande dança (txuruvula). Nesse rito, pelo qual as
jovens se libertam da imaturidade, elas empunham ramos de tsekatseki que simbolizam o
corte do ano, uma vez que nessas plantas estiveram os frutos do ano anterior e se
dependuravam as flores do novo ano.
3.4. O sepultamento a partir da cosmogonia
Cada tradição, pois, possui um simbolismo inerente à sua vertente cultural e ele é constituído
por regras intrínsecas, por valores e tabus. Na obra Um rio chamado tempo, por exemplo, os
ancestrais desautorizam a passagem de Dito Mariano. Sobre a condição interdita dessa morte,
deitado no caixão, fala Dito Mariano: “Nesses dias deitado naquela sala sem telhado, fui
contemplado por luas e estrelas. Às vezes me descia um frio sem remédio. Me chegavam
visões de uma fundura: o abismo que nenhuma ave nunca cruzou. E eu tombando, tombando
sempre. Da rocha para a pedra, da pedra para o grão, do grão para a funda cova do nada.” (p.
260.)
86
Essa morte abismal, afundada na cova do nada, tinha como causa da interdição faltas graves
para com a tradição. E foi Marianinho, por meio de cartas e visões, que se incumbiu e foi
incumbido pelo avô de ir cumprindo tarefas para viabilizar essa passagem, conforme o
adequado. “[...] eu sentia-o chegar, meu filho, e a minha cabeça dedilhava em sua mão: e você
escrevia as minhas cartas. Me sustinha a simples certeza: a mim ninguém nunca mais iria
enterrar. E assim veio a suceder.” (p. 260.) As missões consistiam em harmonizar os vínculos
familiares e cumprir os devires da tradição. Assim, Marianinho teve de procurar o pai, Fulano
Malta, para apaziguar sua relação com sua paternidade; trazer Miserinha à Nyumba-Kaya a
fim de que ela fosse curada de seu luto e cuidada como viúva no seio familiar; e, por fim,
visitar o coveiro Curozero Muando no intuito de conhecer os preceitos da ancestralidade.
Todavia, não eram apenas essas situações mal resolvidas que prendiam Dito Mariano à vida.
Algo mais grave fazia-lhe um xicuembo desmerecido: os segredos que ele portou em vida e
que calaria consigo em sua morte. Essa grande causa, vislumbrada antecipadamente por
Curozero Muando, a partir da qual Marianinho compreenderia sua história e a dos Malinanes,
só foi revelada ao protagonista na penúltima carta.
Nela, Dito Mariano declarava ter sido amante de Admirança, sua verdadeira paixão, “Dimira,
assim eu a chamava. Minha Dimira que eu sempre tanto desejei! (p. 233.), e contava da
gravidez que inesperadamente lhe ocorreu quando ela era missionária em Lua-lua.
64
No
desespero de ocultar o ocorrido, o patriarca apelou a Mariavilhosa, pedindo-lhe que fingisse
uma gravidez. O fingimento nutriu-lhe tanto os instintos maternais privados por sua
esterilidade que seu ventre cresceu durante nove meses. Dito Mariano revelava, então, um
grande segredo:
[...] com o tempo o menino cresceu, foi ganhando feições. Admirança definhava
ao pensar que esse moço ia revelando a identidade do pai verdadeiro. Ela me
suplicou que deixasse esse filho sair da Ilha. Ele que crescesse fora, longe das vistas.
E longe de sua culpa. E o menino foi mandado para a cidade. se fez homem, um
homem acreditado no sentimento. Esse homem é você, Mariano. Admirança é sua
mãe. Foi esta mentira que fechou a terra, fazendo com que o chão negasse a receber-
me. (p. 236.)
Admirança era, portanto, a mãe de Marianinho e ele próprio, Dito Mariano, seu pai. A
revelação desse segredo familiar libertava o patriarca de grande parte do peso que lhe prendia
64
Vale observar a simbologia presente em Lua-lua, nome do lugar onde o amor dos dois se realizou: um lugar
que carrega redundantemente uma referência celestial. Assim o lugar do amor verdadeiro, o amor entre Dimira e
Mariano, é um lugar elevado, ligado aos céus diferentemente de Luar-do-Chão, que, como foi dito no final
do capítulo 2, traz a junção de opostos, o celestial e o terreno.
87
à vida, além de esclarecer ao filho-neto uma fração até então obscura de sua vida. Entretanto,
havia algo mais que não poderia ir segredado em sua passagem: ele estava envolvido no
roubo de uma arma com a qual Juca Sabão foi assassinado e acreditava que assim teria
indiretamente contribuído para a morte do amigo.
Todo esse tempo me condisse uma benzida ignorância sobre quem matou. Preferia
assim: acreditar no que disseram os tribunais, ficar de bem com as aparências. Mas
essa ilusão nunca me apaziguou. Nem a mim, nem a meus antepassados que residem
no chão do tempo. A terra não aceita o espinho dessa mentira. Agora deito esta
mágoa na folha, como se rasgasse o silêncio em que rasguei essa lembrança. (p.
237.)
A verbalização desses fatos libertavam Dito Mariano de seu corpo, fazendo-o ascender, enfim,
ao estado de xicuembo: “Com essa estrela já morta que ainda vemos por atraso de luz. Dentro
de mim, até já esse brilho esmoreceu. Agora, estou autorizado a ser noite.” (p. 238)
Permitida a passagem, o avô orientou ao neto que procurasse Curozero Muando para realizar
o sepultamento. Este, por sua vez, foi efetivado com marcas que apontam para um ponto de
tensão entre a tradição e a contemporaneidade tema desenvolvido no capítulo posterior. O
sepultamento, pois, ocorreu na presença exclusiva de Marianinho e Curozero Muando, sem
que o clã dos Malinanes participasse da cerimônia. Assim, por um lado, reverenciavam-se os
ancestrais, presentificando a cosmogonia e, por outro, descartavam-se diversos preceitos da
tradição que, na mirada de Dito Mariano, não passavam de formalidades. Sob a orientação do
falecido, então, o corpo foi enterrado na beira do Madzimi, onde também o fora Mariavilhosa.
No momento da passagem, Curozero se incumbia de repetir simbolicamente a cosmogonia e
de apontar para Marianinho o valor desses gestos rituais.
Muando, descalço, pisoteia o chão, alisando a areia. Em seguida, por cima da
campa, espalha uns pés de ubuku, dessas ervas que crescem junto ao rio. No fim,
entrega-me um caniço e ordena que o espete na cabeceira da tumba. Foi um caniço
que fez nascer o Homem. Estamos repetindo a origem do mundo. Afundo a cana
bravia na areia. Como uma bandeira, o caniço parece envaidecido, apontando o
poente. (p. 240.)
Esse momento condensa uma teia cosmogônica que expande na amplitude de um rizoma. As
águas ancestrais (madzimu) recebem o corpo do patriarca e preparam-no para um segundo
nascimento, simbolizado pelos ubukus. Esse caniço primordial, assim como o frangipani e a
Nyumba Kaya, expande-se axialmente pelos três níveis cósmicos terra, ar e céu
abarcando, pois, a cosmogonia. Como um braço norteador, aponta o mpela jambo, o poente,
“a cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma nossa apagada existência.”
88
(RCT, p. 15.), que atravessa com os Marianos o ciclo da maturação. Ao fim, pois, a morte: o
umbigo, a passagem.
3.5. Feitiços e feitiçaria
A baleia é grande, você ficará maior do que qualquer tamanho.
(A varanda do frangipani)
Até o presente momento, discorri acerca da passagem da morte, da importância dos ritos e
suas simbologias. E, no caminho de transição da vida à morte, não há dúvidas de que a
dissociação corpo-alma é definitiva mesmo que haja um prosseguimento após a passagem: o
corpo enquanto matéria e a alma na esfera espiritual.
Há, porém, no campo da dissociação corpo-alma, outras formas de ocorrência desse evento.
Estas, ressalta-se, comportam algo essencial para a espiritualidade tradicional de uma maneira
geral, com preponderância nas práticas africanas. Trata-se, pois, da separação momentânea da
alma e do corpo vivenciada pelos xamãs, médiuns, feiticeiros, curas (e tantos outros nomes
quanto sejam as culturas) em seus êxtases e suas viagens espirituais.
Essa capacidade, de que algumas pessoas são dotadas, de emancipar-se do corpo por um
pequeno período e de regressar a ele, revela aspectos valorosos sobre a transcendência e o
mundo da morte. As descrições feitas pelos xamãs, após e durante o transe, sobre o universo
espiritual com seus deuses, demônios e espíritos dos mortos contribui, de forma relevante,
para a espiritualização do mundo. Acredita-se, então, que as viagens extáticas são uma forma
de antecipação da morte.
65
Entretanto, não apenas sobre o universo em que a morte se circunscreve jogam luz esses
visionários. Sua mirada atravessadora tem um papel fundamental, nas culturas africanas, de
compreender situações complexas da vida, diagnosticar, orientar, aconselhar, precaver, propor
tratamentos e até mesmo realizar curas. Com importância central para o clã, os xamãs eram
mantidos a par dos acontecimentos críticos que ocorriam, tanto públicos quanto privados, e
inquiridos nos casos em que o conhecimento comum não alçava compreensão. Mantinham-se
como sustentáculos dos valores tradicionais e lutavam para que todos permanecessem no
estado ideal de vida suficiente, conforme tradição Tsua.
65
ELIADE. Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase.
89
Ambas as narrativas estudadas nesta dissertação são permeadas pelas visões ampliadas dos
adivinhos, feiticeiros, que na cultura moçambicana o denominados nhamussoros ou
chiremas, e pelo viés norteador dos curandeiros, médico-mágicos, os ngangas.
66
Estudos
revelam que, em diversas tradições da África, o nhamussoro
67
e o nganga agem
conjuntamente: o primeiro usa de seus conhecimentos e de seus poderes para encontrar a
origem das tensões, enquanto o segundo indica as formalidades rituais e os tratamentos
curativos para cada caso. Essa definição, porém, não é tão precisa, podendo haver ocorrências
variadas, como nos casos em que a mesma pessoa acumula ambas as funções.
Nas duas obras aqui analisadas, a importância desses adivinhos é inegável e presentificada
tanto em personagens centrais, como Nãozinha, em A varanda do frangipani, e Miserinha em
Um rio chamado tempo, quanto nas diversas situações de problema, em que suas orientações
são definidoras. O destino de Nãozinha, por exemplo, ao passar de filha a esposa do pai, foi
guiado pelas palavras de um nhamussoro. O chefe da família escaparia da morte caso
mantivesse relações sexuais com a filha que, no caso, seria resguardada por uma porção que a
pouparia da memória.
68
Também a família do menino-velho Navaia Caetano, em A varanda do frangipani, buscou a
intermediação do chirema para ascender compreensão sobre a estranha condição do recém-
nascido. Para esse caso, o xamã usou como primeiro método o procedimento de cheirar o
espírito (kufemba): “Meu velho mandou chamar o chirema. O adivinho me cheirou os
espíritos, tossiu e, depois, vaticinou.” (p. 29.) O diagnóstico, por sua vez, foi um tanto quanto
assustador: “Este menino não pode sofrer nenhuma tristeza. Qualquer tristeza, mesmo que
mínima, lhe será muito mortal. [...] O que lhe digo, mamã, é que, se chorar, esta criança pode
nunca mas reaparecer.” (p. 29.)
Continuado o tratamento, o adivinho adotou outros dois métodos recorrentes nas orientações
espirituais africanas: a incorporação e o uso de ossículos divinatórios. O primeiro é
normalmente sintomatizado por convulsões, espasmos, mudança de voz e de personalidade. Já
66
Encontrado também com a grafia n'ganga, nyanga.
67
Encontrado também com a grafia nyamussoro.
68
“Os medicamentos mágicos, mesmo que não fossem de origem vegetal, eram designados por muri (planta),
matluka (folhas) e tisinya (ramos). Na sua preparação entravam, frequentemente, despojos do mar, sangue e
órgãos de animais, etc. Eram aplicados por via oral e retal ou por inserção subcutânea. Para produzirem efeito
necessitavam da incantação verbal pela qual o n'anga as ensinava a agir e lhe incutia potência. A par dos
médicos-mágicos havia herbanários que os empregavam unicamente as propriedades terapêuticas das plantas.”
(RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 88-91.)
90
o segundo trata-se da leitura dos ossículos que, em algumas linhagens, são representados por
búzios ou lenhos de madeira especial. O lançamento desses objetos é precedido de uma
pergunta e a resposta depende das posições que eles assumem ao caírem na tabuleta, podendo
ser lidos individualmente ou em relação aos outros.
No caso do personagem Navaia, ambos os métodos foram necessários na busca do tratamento:
O chirema voltou a ser atacado por convulsões. Os espíritos falavam por sua boca
mas era como se, antes, atravessassem a minha carne mais profunda. A poderosa voz
do adivinho seguia entre rouquidão e canto. Se tornava em frases, ascendia por
espasmos. Às vezes, simples fio, sem corpo. Outras, torrente, espantada com sua
própria grandeza.
Eu era mais recém que recente mas já escutava com total discernência. O curandeiro
me perguntou qualquer coisa em xi-ndau, língua que eu desconhecia e ainda hoje
desconheço. Mas alguém, dentro de mim, me ocupou a voz e respondeu nesse
estranho idioma. Os ossinhos da adivinhação. Eu não sabia mas, dentro dos panos,
estavam os remédios contra a tristeza. Esse feitiço me haveria de defender contra o
tempo.
Agora, vai. (p. 29.)
O remédio contra a tristeza estaria no colar empenhado a partir de então pela criança esses
amuletos protetores magicamente preparados pelos ngangas são denominados nas tradições
Tsongas por xishungulo. A salvo da tristeza o menino não estaria, porém, resguardado de seu
destino trágico. Assim, sendo involuntariamente autor da morte da mãe, foi expulso da aldeia
e levado para o asilo. Novamente naquele lugar buscaria o apoio dos tratamentos espirituais e,
dessa vez, a mediadora seria Nãozinha, que, a princípio, negava seus poderes. Entretanto,
adiante, a velha se propôs a armar uma cerimônia para agarrar o espírito ruim que o
acompanhava.
Um dia, porém, ela mudou de ideias, sem explicação. Chamou-me para me dizer que
iria aprontar uma cerimônia para agarrar o mupfukwa, esse mau espírito que me
perseguia. Era preciso um animal, carecia-se de fazer descer o sangue à terra. Mas
animal, ali, onde eu iria desencantar? Falei com a coruja e lhe encomendei peça
viva. Nessa noite, me coube uma garça em estado moribundo. Despescoçamos a
garça. Contudo, o sangue da ave era tão leve que não tombou no soalho. A cerimônia
estava pronta para ter início. Nãozinha falou claro: o espírito de minha mãe que
exigia satisfação.
O que ela quer?
Minha velhota falou por voz do nyanga: a paz me visitaria se, em trocapartilha,
eu lhe concedesse paz a ela. Eu que desse total andamento à minha infância. (p. 33.)
O espírito que não dava paz ao menino-velho era, portanto, o de sua mãe, e o tratamento
proposto era brincar, encher de infâncias os corredores da fortaleza colonial.
Nessa intercessão feita por Nãozinha, ressaltam-se dois aspectos relevantes da tradição
africana. Um deles, recorrente também em tradições de outras partes do mundo, refere-se ao
91
uso de bichos para “fazer descer sangue à terra”. Esse procedimento, conhecido como
baofper, usa a força animal como mediadora em processos rituais. O outro diz respeito à
classificação do mau espírito como mpufukwa,
69
sobre a qual discorrerei a seguir.
Encontramos tal designação também nas tradições dos povos Tsongas, para os quais existem
quatro tipos de espíritos. O primeiro deles é o espírito dos ancestrais, os tinguluve, já
abordado nesta dissertação, no capítulo anterior, e que em Mia Couto aparece com a
denominação xicuembo. O segundo refere-se aos espíritos possessivos estrangeiros, os
mandiki. A pessoa possuída por eles via-se constrangida a obedecer aos seus caprichos e, se
não o fizesse, seria atingida por grave doença. Na cerimônia de detecção da origem do
mandiki, o nhamussoro, com o auxílio de assistentes, entoava cantos repetitivos
acompanhados do toque acelerado e ininterrupto de um tamborim especial e do som de
matracas confeccionadas com latas e milhos (tinjhele). Ao apanhar o espírito, o cura entrava
em transe, tendo seu corpo agitado por tremuras e a voz modificada. Reconhecida, então, a
identidade do hospedeiro, dava-se início a um complexo tratamento que se baseava numa
coexistência pacífica, na qual, por um período, a pessoa obsediada tinha de modificar
completamente sua rotina. O terceiro tipo é formado, como é o caso da mãe do personagem
Navaia Caetano, pelos mpufukwa ou nhamikwaxani, que são os espíritos vingativos,
normalmente pertencentes à família da vítima. O termo cunhado por Mia Couto, mpufukwa, é
derivado do verbo tsonga ku pfhukua que significa “ser acordado”, sugerindo que a pessoa é
desperta da própria morte. Os tratamentos para agarrar tais espíritos, nas tradições Tsongas,
são complexos e mobilizam toda a sociedade. Por último, temos os zigono ou ziphoka, que
consistem em fantasmas de famílias estranhas, mas da mesma tribo.
Nessa gama de definições para os espíritos que vagueiam, temos, em A varanda do
frangipani, também o uso do termo muzimo: “Havia que reclamar a salvação desse menino,
eu, Navaia Caetano. E se prepararam: tambores, capulanas, panos escondidos. Tudo para
sossegar o muzimo que me tinha ocupado.” (p. 36.) ainda a denominação xipoco para as
almas dos mortos não cerimoniados, como o era o personagem Ermelindo Mucanga. A
libertação do xipoco Ermelindo da Terra apontava para um caminho inverso ao dos feiticeiros:
a associação da alma a um outro corpo tema desenvolvido no tópico a seguir.
69
Encontrado também com a grafia mipfhukw.
92
3.5.1. A atuação do xipoco
Mergulhados em carne alheia.
(A varanda do frangipani)
A fim de fugir da condecoração, Ermelindo, em A varanda do frangpani, teria, de qualquer
maneira, de penetrar novamente em um corpo. Pensou em ressurgir em sua carcaça antiga,
mas tal processo seria demasiado arriscado:
Certo era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser
evitada, custasse os olhos da cara. Que podia eu fazer, fantasma sem lei nem
respeito? Ainda pensei reaparecer no meu corpo de quando eu era vivo, moço e
felizão. Me retrovertia pelo umbigo e surgiria, do outro lado, fantasma palpável,
com voz entre os mortais. Mas um xipoco que reocupa o seu antigo corpo arrisca
perigos muito mortais: tocar ou ser tocado basta para descambalhotar corações e
semear fatalidades. (p. 13.)
Caso reocupasse seu próprio antigo corpo, ele teria a estranha forma de ser visível pela
frente. Por detrás, não passaria de oco de buraco, um vazio. Assim, sem querer se retroverter
como um fantasma palpável, semeando fatalidades, buscou a orientação do halakawuma, um
animal com dons proféticos tema trabalhado no capítulo 2 , que o orientou, por meio de
seus conhecimentos de feitiçaria, a encarnar no corpo de uma pessoa que estivesse para
morrer. Pegando carona nessa morte, ele realizaria novamente a passagem e poderia, dessa
vez, ascender a xicuembo. Mesmo duvidoso da orientação do pangolim, ele resolveu encarnar
no corpo do recém chegado ao asilo Izidine Naíta:
Nessa mesma noite, eu estava transitando para xipoco. Pelas outras palavras, eu me
transformava num passa-noite”, viajando em aparência de um outro alguém. […]
Mas iria residir em corpo alheio. Da prisão da cova eu transitava para a prisão do
corpo. Eu estava interdito de tocar a vida, receber diretamente o sopro dos ventos.
De meu recanto eu veria o mundo translucidar, ilúcido. Minha única vantagem seria
o tempo. Para os mortos, o tempo está pisando em pegadas de véspera. Para eles
nunca há surpresa.” (p. 13-14.)
No corpo do policial Ermelindo, então, ele viveria uma outra condição: estaria imerso no
tempo e teria acesso à memória, condições ausentes aos xipocos:
Afinal, eu era um morto solitário. Nunca tinha passado de um pré-antepassado. O
que surpreendia era eu não ter lembrança do tempo que vivi. Recordava somente
certos momentos mas sempre exteriores a mim. Recordava, sobretudo, o perfume da
terra quando chovia. Vendo a chuva escorrendo por Janeiro, me perguntava: como
sabemos que este cheiro é o da terra e não do céu? Não me lembrava, no entanto,
nenhuma intimidade do meu viver. Será sempre assim? Os restantes mortos teriam
perdido a privada memória? Não sei. Em meu caso, contudo, eu aspirava ganhar
acesso às minhas privadas vivências. (p. 16.)
O privilégio de gozar da perecividade e das lembranças não lhe eram, todavia, suficientes para
tirar-lhe o medo de reencarnar. O processo não era tão fácil e o medo que ele declarava sentir
se igualava ao medo dos vivos quando se imaginam morrer. O pangolim, por sua vez,
93
assegurava-lhe “futuros mais-que-perfeitos”: “– Ora, Ermelindo: você vá, o tempo está
bonito, molhado a boas chuvinhas. Eu que fosse e agasalhasse a alma de verde.” (p. 17.)
Aliás, mesmo quando vivo, ele nunca soubera gozar do que é viver.
A incorporação do espírito em outro corpo dava-se como um processo de mutualidade, de
reciprocidade. Assim, tudo o que um fazia, pensava ou queria passava também a ser desejo do
outro. E, sabendo disso, Ermelindo era cauteloso: “Estou num canto de sua alma, espreito-lhe
o cuidado para não atrapalhar os dentros dele. Porque este Izidine agora sou eu. Vou com ele,
vou nele, vou ele. Falo com quem ele fala. Desejo quem ele deseja. Sonho com quem ele
sonha.” (p. 19.) E todo esse processo era acompanhado pelo halakawuma, que deixava o
rastro de suas escamas por onde passava.
Entretanto, nem sempre cuidadosas e cautelosas são as atuações dos xipocos, antes pelo
contrário. Na própria definição, feita pelo personagem Mucanga ao apresentar as condições de
tal estado, o uso de termos como “estragadores de mundo” ou “pandemônios”, assinalando
a recorrência da apropriação desse estado para a disseminação do caos. É importante perceber
também que o uso dos poderes de feitiçaria pelas pessoas que os dominavam os
nhamussoros, os ngangas, assinalados anteriormente tampouco era usado exclusivamente
para causas positivas como a cura e o afastamento dos fluidos negativos. Mia Couto tematiza,
em suas obras, também casos de usos de magia para interesses próprios que, na maioria das
vezes, lesa terceiros, conforme veremos a seguir.
3.5.2. Outra face da magia
Nunca queira uma cobra dessas. Elas ajudam os donos, mas,
em contraparte, estão sempre pedindo sangue.
(A varanda do frangipani)
Em África, acredita-se, então, que certas pessoas, principalmente do sexo feminino, dispõe de
temíveis poderes ocultos que empregam não só em detrimento alheio como também em
proveito próprio. Mia Couto aponta, pois, em A varanda do frangipani, para essa crença
difundida: “Na tradição, nas nossas aldeias, uma velha sempre arrisca a ser olhada como
feiticeira.” (p. 78.) Nesse viés, crê-se que os poderes gicos propiciam às mulheres meios
para disseminar diversos males, realizar atos negativos e até mesmo crimes, o que implicou às
idosas esta condição revelada também em Um rio chamado tempo: “Ser-se velha e viúva é ser
merecedora de culpas.”(p. 34)
94
Essa condição é uma preocupação revelada pelas anciãs das obras estudadas. A personagem
Nãozinha, por exemplo, na fortaleza de São Nicolau, nega veementemente seus
conhecimentos mágicos: “Meus poderes nascem da mentira.” (p. 78.) Afirma ter sido
injustamente taxada de feiticeira, embora em diversos momentos prove ser grande
conhecedora das artes da magia. Diz, entretanto, que dessa rotulação ela não assimila apenas
os aspectos negativos. Beneficia-se principalmente do cuidado que as pessoas têm ao se
aproximarem, temendo as consequências de a negligenciarem.
Também avó Dulcineusa, em Um rio chamado tempo, cujos dons visionários não são
manifestos, expressa, na Nyumba-Kaya, o temor de ser acusada pela condição moribunda do
marido: “Suspeitariam, certamente, que a Aseria autora de feitiços.” (p. 34.) Caso o fosse,
transitaria, nos meios familiares, para o extremo radical, tornando-se de matriarca a uma
estranha, intrusa e rival. Sabendo desse receio, os filhos atribuíam fingimento aos seus
delírios recentes, acreditando ser essa uma estratégia dela para escapar da possibilidade de ser
vista como culpada.
Além dessas personagens centrais, temos, nessas condições, a andarilha Miserinha, em Um
rio chamado tempo, que carrega no fato de não ver as cores a causa da feitiçaria.
Aos poderes adquiridos pelas mulheres que se dedicam à feitiçaria, atribui-se, em culturas
africanas, diversas faculdades, como: furtar o sabor e a essência de alimentos e bebidas,
transferir para sua família ou comunidade a abundância e os usufrutos de outrem, efetuar voos
noturnos, em estado de nudez, para tentar matar ou semear a doença. As feiticeiras podem,
além disso, utilizarem-se de serviços de animais como hienas, mochos, gatos, serpentes e
leões, nos trabalhos de magia, e até mesmo transformarem-se nesses animais para melhor
levar a efeito suas atividades malignas. Elas m, ademais, o recurso de inserir no corpo
potentes medicamentos-mágicos que são fatais para quem quer agredir ou magoar, e sabem,
ainda, manipular venenos para matar as suas vítimas.
Com tantos instrumentos, essas mulheres são simultaneamente objeto de ódio e de certa
admiração. Em A varanda do frangipani, o próprio diretor do asilo, o incrédulo personagem
Vasto Excelêncio, revela esse paradoxo ao observar Nãozinha: “Izidine vagueou todo esse dia
com a imagem da feiticeira ratazanando-lhe o juízo. Lhe impressionara a extrema magreza
dela. Os outros diziam que Nãozinha se alimentava apenas de sal. Trazia água do mar
95
despejava-a em cavidade das rochas. Deixava a água secar e depois lambia o fundo dessas
cavidades.” (p. 93.)
Assim, quaisquer que fossem os atos estranhos que ocorressem na fortaleza de São Nicolau, a
causa recairia sob a idosa delgada. Quando, por exemplo, Nhonhoso deu falta de suas unhas,
sublinhou a Mourão ser serviço de Nãozinha para fazer trabalhos de magia.
Nessa crença, então, costuma-se atribuir à feitiçaria tanto o sucesso dos afortunados quanto o
insucesso daqueles que são vítimas de inveja. Os estudos etnográficos feitos dentre os povos
de Moçambique apontam para o fato de que a magia maléfica nasce de dois impulsos
fundamentais: “o desejo egoísta de melhorar a sua própria existência, mesmo que seja a
expensas de outrem; e inveja em relação aos mais venturosos, quando o sucesso não é
repartido igualitariamente.”
70
E é nesses dois ímpetos que parece residir a motivação da personagem Miserinha para realizar
suas falcatruas passionais em Um rio chamado tempo. Seu plano era lesar Admirança para
ficar com Dito Mariano. Recorrendo ao poder dos animais e à sua capacidade de se
metamorfosear em crocodilo, a velha passou, então, a circundar o rio onde os amantes se
encontravam o que é relatado a Marianinho pelo avô:
Certa vez me alertaram: um crocodilo fora visto no encalço da canoa. O bicho, assim
me disseram, seria alguém. Imaginava mesmo de quem seria: de Miserinha. A
mulher detinha poderes. Por ciúme destinava a morte de sua rival Admirança, nos
remansos do Madzimi. Esbaforido corri para junto de Miserinha. E lhe dei ordem
que suspendesse o feitiço. Ela negou. A dizer a verdade, nem me ouviu. Estava
possuída, guiando o monstro perante a escuridão. Não consegui me conter: lhe bati
na nuca com um pau de pilão. Ela tombou, de pronto, como um peso rasgado.
Quando despertou, me olhou como se não me visse. O golpe lhe tinha roubado a
visão. Miserinha passou a ver sombras. Nunca mais poderia conduzir o seu
crocodilo pelas águas do rio. (p. 234.)
Foi também usando uma outra técnica conhecida na bruxaria, a introdução de medicamentos-
mágicos no corpo, que, em A varanda do frangipani, Nãozinha deu cabo à vida de Vasto
Excelêncio. A velha, após ser surrada pelo diretor, penetrou sândalo pela vagina e, em
seguida, manteve relação sexual com ele. “À minha frente surgia a caixa de sândalo que eu
tantos anos guardara. Retirei a raiz desse arbusto que cresce junto aos mangais. Abri as perna
e, lentamente, fui espetando a raiz no centro do meu corpo, por essa fresta onde eu e a vida
nos havíamos já espreitado. Deixei o veneno espalhar nas minhas entranhas.” (p. 88.)
70
RITA-FERREIRA. Povos de Moçambique, p. 75.
96
É importante perceber, então, como a espiritualidade africana comporta uma série de regras,
combinações, meios e gestos para se manifestar e ser catalisada. Os processos de
desdobramento da alma, dos espíritos e dos conhecimentos sobrenaturais encerram, pois,
múltiplas possibilidades. Na relação entre corpo e alma, por exemplo, a dissociação pode ser
definitiva ou momentânea, tendo diversos fins e finais. Pode-se também ocorrer o processo
inverso, de associação, no qual em um mesmo corpo podem residir duas almas duas
personalidades, duas existências. A arte da magia, os dons de feitiçaria, por sua vez, transitam
da cura à doença, do egoísmo à alteridade. E enfim, nessa vastidão do campo da
transcendência, transita a Literatura, trabalha Mia Couto, transcriando o fantástico da História,
a vastidão das histórias, o real das estórias.
97
4. A gente se acende é nos outros
4.1 Contatos e ressonâncias
Pesava sobre mim esse eterno desencontro
entre a palavra e a idéia.
(Um rio chamado tempo)
Moçambique é o cenário. No tempo presente, vislumbramos uma imagem de nação ainda
fragmentada, em construção, que se ergue após um processo de guerras étnica, colonial e civil
pós-independência. Nesse território habitado por Mia Couto em sua ficção, confrontam-se os
resquícios de um violento processo de aculturação/transculturação marcado pelo embate
entre os valores da cultura mítica tradicional e os da sociedade moderna com um mundo
erguido por uma imensa aspiração à harmonia nos modos de viver e ser.
A essa imagem instaladora da diversidade, formada a partir de pontos de tensão, que ressoa na
atual produção literária moçambicana, a estudiosa Leda Maria Martins denomina
encruzilhada:
71
local radial onde se confrontam e dialogam registros, concepções e sistemas
simbólicos diferenciados e diversos como foi analisado no capítulo primeiro desta
dissertação. A literatura que emerge desse lócus é balizada, portanto, pela heterogeneidade da
herança cultural. Nela coabita a forte presença das vozes da tradição, da ancestralidade, e as
formas de uma cultura contemporânea em formação, com intensas influências externas. É
sobre essa relação entre a tradição e a contemporaneidade (globalizada em sentido amplo) que
me debruçarei, pois, neste capítulo final.
Até o presente momento, interessei-me, a partir das linhagens da tradição etnográfica, pelas
imagens, signos e símbolos das culturas africanas de Moçambique e pela maneira como estes
se relacionam com a vida, com os sonhos e com as visões dos corpos possuídos. Os estudos
de etnografia apontaram, assim, para a maneira pelas quais estas imagens assumiam seu
sentido total no interior de sistemas simbólicos compartilhados a cosmogonia , para a
maneira pela qual elas se reproduziam e, às vezes, modificavam-se por meio da atividade
ritual. E, nesse caminho, imergi nos parâmetros arcaicos acerca da morte e dos ícones
tradicionais.
71
“[...] é o lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, textos e traduções, confluências
e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade,
origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como lugar terceiro, é geratriz
de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos.” MARTINS. Afrografias da memória, p.28.
98
Torna-se importante, no momento, investigar as formas de diálogo, penetração ou subjugação
dos parâmetros arcaicos no universo contemporâneo. Para tanto, apoiar-me-ei na perspectiva
da antropologia social apresentada por Marc Augé em A guerra dos sonhos. Neste livro, o
autor desenvolve um estudo acerca do imaginário: o imaginário individual, o imaginário
coletivo e a ficção (literária e artística, posta em imagem ou não). Seus estudos apontam para
o fato de que, na atualidade, as condições de circulação entre estes diferentes polos mudaram,
o que o leva a questionar sobre o atual estatuto do imaginário. Aborda, ademais, temas como a
colonização da imagem e do simbólico, os quais nos interessam especialmente, além de
elaborar o paralelo entre sonho e possessão, e de apresentar um processo contemporâneo que
ele denomina de “ficcionalização” sistemática do mundo.
Marc Augé inicia sua reflexão localizando o estatuto da antropologia social: ela “sempre teve
por objeto, por meio do estudo de diferentes instituições ou representações, a relação entre
uns e outros ou, mais exatamente, os diferentes tipos de relações que cada cultura autoriza ou
impõe, tornando-as pensáveis e geríveis, isto é, simbolizando-as e instituindo-as.”
72
Assim, a
partir da situação que os antropólogos denominam contato cultural, é possível (e necessário)
pensar os tipos de relações que cada cultura permite no sentido de autorização ou
imposição.
Se é fato que todas as sociedades viveram no e pelo imaginário sem o qual todo real seria
“alucinado” se não fosse simbolizado, coletivamente representado , torna-se essencial pensar
de que maneira “o enfrentamento dos imaginários acompanhava o choque entre povos, as
conquistas e as colonizações, de que modo resistências, recuos, esperanças tomavam forma no
imaginário dos vencidos”.
73
O contato e o confronto entre culturas diversas poderiam e
podem, então, tomar corpo de forma diversa no universo imagético dos vencidos (e dos
vencedores), dependendo da forma de contato e de violação do sistema simbólico.
No que tange as relações inter-culturais, é necessário levar em consideração as condições
inerentes (sine qua non) à existência cultural: a criação e a transformação. Toda cultura viva é
receptiva à influência externa e, nesse sentido, todas as culturas foram culturas de contato. A
história da África, por exemplo, com seus movimentos migratórios milenares, e a história de
Moçambique, especialmente, de que se tem registro, desde o grande Império Monomotapa
72
AUGÉ. A guerra dos sonhos, p. 12.
73
AUGÉ. A guerra dos sonhos, p. 13.
99
(com todos os seus períodos e fases), passando pelo Império Zulu e pela colonização
portuguesa,
74
são formadas a partir do embate com a alteridade. Esta, central também na
existência inconstante dos ameríndios, atravessava as frequentes guerras inter-tribais e
desnorteou os métodos de evangelização dos jesuítas portugueses, conforme discorre
magistralmente o etnólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro no célebre artigo “O
mármore e a murta”.
75
Ambos os teóricos tanto Augé quanto Viveiros de Castro seriam incontestes em afirmar
que uma cultura resguardada, tal qual uma reserva ou gueto, que se reproduz de maneira
sempre idêntica, é um “câncer sociológico”, algo condenado à morte, assim como uma língua
morta é consequência de uma falta de dinamismo. Por esse motivo, é localizado como
delicado o fato de se querer defender ou resguardar veementemente alguma cultura, assim
como é ilusória a busca pela “pureza perdida”, à qual Mia Couto é declaradamente avesso,
conforme item destacado no capítulo 1 deste trabalho:
Defensores da pureza africana multiplicam esforços para encontrar essa essência.
Alguns vão garimpando no passado. Outros tentam localizar o autenticamente
africano na tradição rural. Como se a modernidade que o africanos estão inventando
nas zonas urbanas não fosse ela própria igualmente africana. Essa visão restrita
restritiva do que é genuíno é, possivelmente, uma das principais causas para explicar
a desconfiança com que é olhada a literatura produzida na África. A literatura está
do lado da modernidade. E nós perdemos “identidade” se atravessamos a fronteira
do tradicional: é isso que dizem os preconceitos dos caçadores da virgindade étnica e
racial.
76
A perspectiva de Mia Couto está, pois, em consonância com o viés da antropologia social
atual para a qual as culturas sobrevivem porque são capazes de se transformar como a
produção moçambicana atual que se transcria nas zonas urbanas, com múltiplas influências. E
nessa linha, a mirada exclusiva para o passado é contrária à versatilidade cultural que se
constrói a partir do enfrentamento dos imaginários, cada vez mais dinâmico na modernidade.
A contemporaneidade, por sua vez, está estritamente aliada ao desenvolvimento das
tecnologias, que desencadeou, dentre outros processos em larga escala, a planetarização e a
74
RITA-FERREIRA História de Moçambique.
75
“O tema remonta ao início das atividades da Companhia no Brasil, em 1549, e pode ser resumido em uma
frase: o gentio do país era exasperadoramente difícil de converter. Não que fosse feito de matéria refratária e
intratável; ao contrário, ávido de novas formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionar
indelevelemente por elas. Gente receptiva a qualquer figura mais impossível de configurar, os índios eram para
usarmos um mile menos europeu que a estátua de murta como a mata que os agasalhava, sempre pronta a se
refechar sobre os espaços precariamente conquistados pela cultura. Eram como sua terra, enganosamente fértil,
onde tudo parecia poder plantar, mas onde nada brotava que não fosse sufocado incontinenti pelas ervas
daninhas. Esse gentio sem fé, sem lei e sem rei não oferecia um solo psicológico e institucional onde o
Evangelho pudesse deitar suas raízes.” (CASTRO. A inconstância da alma selvagem, p. 186.)
76
COUTO apud FONSECA. Espaços ficcionais, p. 60.
100
aceleração da história. Nessa mudança na maneira de viajar, de olhar e de se encontrar, as
formas de representação e de relação com o real se modificam, o que criou uma teia complexa
de influências e inter-relações.
Se é posto que todas as culturas são e foram culturas de contato, é pertinente, então,
questionar sobre quais são as condições das transformações advindas do encontro ou do
confronto. O olhar desloca-se, enfim, para pontos fundamentais do questionamento: O que
acontece com nossa relação com o real quando mudam as condições da simbolização? O que
as culturas fazem das influências? Quais são as relações da cultura em contato? Devorar ou
ser devorado?
Para as formas de contato, Viveiros de Castro salienta que a relação com a alteridade é, pois,
imanente e inusitada a partir de cada ideário em questão. Os Tupinambá, por exemplo, (e os
ameríndios de uma forma geral) faziam da diferença o devir identitário, no qual o caminho era
devorar o outro (por isso a receptividade, por isso o canibalismo) e nesse aspecto parece
residir a inconstante condição de murta. Nesse viés, o interior não é mais do que um
movimento para fora, e o que movia era a relação com o exterior, para o qual o outro não era
um espelho, e sim um destino.
Não estou dizendo para insistirmos nesta antropologia negativa que não tenha
existido algo como uma religião, ou uma ordem cultural, ou uma sociedade
tupinambá. Estou apenas sugerindo que essa ordem cultural não se fundava na
exclusão unicista das ordens alheias, e essa sociedade não existia fora de uma
relação imanente com a alteridade. O que estou dizendo é que a filosofia tupinambá
afirmava uma incompletude ontológica essencial: incompletude da socialidade, e,
em geral, da humanidade. Tratava-se em suma, de uma ordem onde o interior e a
identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença,
onde o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de
cosmologia, os outros são uma solução, antes de serem como foram os invasores
europeus um problema. A murta tem razões que o mármore desconhece.
77
Para o caminho do mármore, por sua vez, a alteridade configurava-se, ao contrário, como um
empecilho, assim era necessário igualar os selvagens, dando-lhes rei e lei. Do lado dos
portugueses, sem ambiguidades, o uso seria o da força e o aniquilamento, o do outro.
No livro História de Moçambique é explicitado como essa mesma lógica movia os
portugueses nos reinos onde hoje se localiza Moçambique. Usavam do poderio das armas para
penetrar no universo africano, servindo-se, assim como no Brasil, das divisões étnicas e das
77
CASTRO. A inconstância da alma selvagem, p. 221.
101
guerras tribais para lançar uns contra os outros e se apropriarem da vida política e econômica
dos reinos. A essas ações estava aliado um forte componente, a religião católica, que por meio
das missões jesuítas dirigia suas medidas para a modificação dos sonhos e da imaginação
daqueles povos “impregnados de paganismo” agindo na colonização do imaginário. Há,
assim, um paradoxo entre a ação lusa e a ão árabe na região. Enquanto estes negociaram
durante séculos com os nativos, estabelecendo trocas e monopólios comerciais, aqueles
tinham a meta da conquista e do domínio, o que levou inexoravelmente ao choque.
As perguntas o que acontece com a relação com o real quando mudam as condições de
simbolização, o que fazer da influência, quais são as relações das culturas em contato?
permanecem as mesmas. E a resposta, muitas vezes ambígua, é desnorteadora na atualidade,
na perspectiva de Marc Augé. O autor enfatiza o fato de que hoje, no momento em que a
planetarização poderia nos dar a sensação de que conhecemos todas as coisas do mundo e dos
seres, momento em que, devido às facilitações tecnológicas, nossas inter-relações assumiriam,
enfim, um sentido total, deparamos-nos, assim, com um sintoma contrário e paradoxal: a
impotência da simbolização. Isso, que muitas vezes chamamos crise, explicita-se no
abalamento de nossa percepção e na dificuldade de pensar e estabelecer relações. Para Augé, a
sensação de sermos todos colonizados é um fenômeno disseminado na atualidade (presente
até mesmo nos Estados Unidos), mas, ao contrário do passado, o inimigo hoje não é
facilmente identificável.
A contemporaneidade desenvolve-se, então, seguindo os pressupostos de Augé, a partir de um
notável paradoxo. De um lado, poderosos fatores agem no mundo buscando a unificação e a
homogeneização: a economia globalizada agrupamentos de empresas, novas formas de
vínculos econômicos e políticos estreitando e atrelando a relação de Estados e a tecnologia
altamente difundida imagens e informações circulando em velocidade imediata, hábitos e
tipos de consumo como formas comuns em todo mundo. Do outro lado, movimentos
caminham no sentido oposto: reivindicando sua existência singular e afirmando
particularismos, impérios e federações se deslocam e divisões étnicas e religiosas evocam-se a
nível de extrema violência.
O rizoma é, pois, imbricado por isso desnorteador e desdobra-se ainda em uma série de
fatores atualíssimos como os intensos movimentos migratórios, que enfatizam o desnível
entre os países, o alargamento em todo o mundo do tecido urbano, a desigualdade social
102
dentro dos países, estabelecendo a violência; enfim, o mundo se unifica na amplitude de um
mercado, primando por interesses de concorrências e/ou parcerias.
A literatura de Mia Couto explicita veementemente essa condição paradoxal da
contemporaneidade. O autor, mesmo trazendo à cena os locais de memória da cultura
tradicional e a referência ancestral, não deixa de situá-los e inseri-los na complexa (e confusa)
configuração da atualidade. Em seu projeto literário, ganham voz perspectivas diversas e, por
vezes, divergentes acerca das influências externas, das novas simbolizações e das relações que
surgem a partir do contato intercultural, conforme veremos a seguir.
4.2. O contemporâneo e o contraponto da tradição em Mia Couto
Queria finalmente saber se era explicável no ciência dos livros.
(Um rio chamado tempo)
A relação entre tradição e modernidade, na obra de Mia Couto, é apresentada de maneira
polifônica. Por um lado, o autor considera a mudança cultural e a afirmação identitária como
um processo, que se estabelece a partir da redefinição da relação de alteridade, e está em
consonância com a perspectiva de que não cultura viva sem criação cultural, para a qual a
própria referência ao passado é também um ato de criação e de mobilização. Por outro, alerta
e denuncia que muitas relações inter-culturais costumam se dar de maneira desequilibrada e
que dessa trama participam fatores contrários à convivência com a diversidade, como o uso
do poder e da força.
Marta e Salufo Tuco, em A varanda do frangipani, e Miserinha, em Um rio chamado tempo,
são personagens que denunciam a forma como a tradição e o outro estão sendo aniquilados
por meio da violência de um dramático processo social, político e econômico. Nesse caminho,
a mudança é tida como uma perda, como um investimento para o caos, no qual não
condições para a convivência com a alteridade, como pode-se perceber na fala de Salufo ao
voltar da cidade para o asilo:
O mundo, lá fora, tinha mudado. ninguém respeitava os velhos. Dentro e fora dos
asilos era a mesma coisa. Nos outros lares de velhos a situação ainda era pior do que
em São Nicolau. De fora vinham os familiares e soldados roubar comida. Os velhos
que antes ansiavam por companhia já não queriam receber visitantes.
Sofremos a guerra, haveremos de sofrer a Paz. (p. 107.)
Em A varanda do frangipani, o enredo cria condições para a denúncia da guerra civil pós-
independência que assolou o país por longas décadas e cumpre a tarefa de salvar o passado no
103
presente, como diz Walter Benjamin, ou de ser um local de memória, nas palavras de
Inocência Mata. No trabalho de escovar a história a contrapelo, a personagem Marta Gimo é
categórica:
O culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra. Todas as
culpas são da guerra. Foi ela que matou Vasto. Foi ela que engasgou o mundo onde a
gente idosa tinha brilho e cabimento. Estes velhos que aqui apodrecem, antes do
conflito eram amados. Havia um mundo que os recebia, as famílias se arrumavam
para os idosos. Depois, a violência trouxe outras razões. E os velhos foram expulsos
do mundo, expulsos de nós mesmos. [...] A guerra cria um outro ciclo no tempo. A
guerra instala o ciclo do sangue. Passamos a dizer “antes da guerra, depois da
guerra.” A guerra engole os mortos e devora os sobreviventes. (p. 121.)
Os personagens mais velhos de ambos os livros, lúcidos quanto à condição de desencanto, são
a metonímia dos valores ancestrais. E as duas narrativas explicitam que o momento é de crise,
apresentando diversas metáforas que se multiplicam por este caminho, conforme em Um rio
chamado tempo:
78
“No mundo de hoje, tudo é areia sem castelo.” (p. 136.); “Vão levar tudo.
levaram nossa alma. Agora falta a Ilha.” (p. 137.); “Como estamos doentes, todos nós!
Era ela que estava vendo sombras? Ou seriam os demais que nada enxergavam, doentes
dessa cegueira que é deixarmos de sofrer pelos outros?” (p. 136.)
Outros fatores aparecem também como instaladores da violência atual, como o tráfico de
drogas (que em Um rio chamado tempo são levadas para Luar-do-Chão e culminam no
assassinato de Juca Sabão), as corrupções políticas e o partidarismo (que fazem o médico
goês ter constantemente de deixar a Ilha), a disseminação do capitalismo (que, figurado em
Fulano Malta, faz de Luar-do-Chão um local visado por empresas multinacionais) e a
valorização da cultura letrada em detrimento da oral (aludida no momento em que Fulano
Malta joga no Madzimi os livros do filho).
Se por um lado temos as influências contemporâneas como fatores de repressão e
aniquilamento, no extremo oposto temos essa função atribuída à tradição. E quem apresenta
essa visão não é um jovem, mas o patriarca Mariano, no final de sua vida. Em suas
comunicações com Marianinho, ele mostra que os vínculos culturais muitas vezes não são
uma escolha, são antes um aprisionamento. E, ao seu ver, o fato de Marianinho, seu filho-
neto, ser alguém que rompeu com o paradigma tradicional alia-se mais a virtudes como
coragem e enfrentamento do que à deserção, como o pensam outros personagens:
78
Ressalva-se que uma diferença de tom denunciatório entre as narrativas. Enquanto em A varando do
frangipani as causas da crise recaem sobre a guerra civil, em Um rio chamado tempo o inimigo não é tão
localizado.
104
Você despontou-se, saiu da Ilha, atravessou a fronteira do mundo. Os lugares são
bons e ai de quem não tenha o seu, congênito e natural. Mas os lugares nos
aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa.
A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades. o
medo do que fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou
não em distância, mas se alonjou em nossa existência. (p. 65.)
Para avô Mariano, então, uma grande parcela da liberdade é reprimida pelo vínculo
identitário, constituindo “raízes que amarram a vontade da asa”. E essa perspectiva é também
embora não tão declaradamente a de Fulano Malta, como o patriarca se incumbe de
apresentar: “Para seu pai, a outra margem do rio, onde iniciava ser cidade, era o chão do
inferno. Mas tudo isso que ele dizia era como o chifre do caracol: nascia da boca. Pois, no
escondido da noite ele sonhava visitar aquelas luzes do lado de cá. Calcava o sonho, matava a
viagem ainda no ovo da fantasia.”(p. 145.) Assim, Mia Couto estabelece em sua literatura
uma ampla trama de perspectivas que divergem e convergem entre si, estabelecendo, enfim, o
paradoxo do que é ser contemporâneo.
Essa condição contraditória, por sua vez, não se apenas na relação de personagem para
personagem. Ocorre, por vezes, no discurso da mesma pessoa. O Dito Mariano, por exemplo,
ao mesmo tempo em que se contrapõe a uma visão nostálgica ou resguardadora da cultura, é
quem inicia o filho-neto no conhecimento tradicional, afirmando aqueles valores e primando
para que o essencial não se perdesse, o que pode ser percebido no fragmento a seguir de uma
de suas cartas:
Essa terra começou a morrer no momento em que começamos a querer ser outros, de
outra existência, outro lugar. Luar-do-Chão morreu quando os que governam
deixaram de a amar. Mas a terra não morre, nem o rio se suspende. Deixe, o chão
voltará a se abrir quando eu entrar, sereno, na minha morte. É por isso que você deve
me escutar. Me escute, meu filho. (RCT, p. 195.)
4.2.1. Os de fora
Me educaram em língua que não era a materna.
(A varanda do frangipani)
Em um viés menos denunciatório, temos adaptações criativas como partes mais harmonizadas
de um processo de adaptações interculturais. Compondo esse aspecto, percebe-se que, tanto
em A varanda do frangipani quanto em Um rio chamado tempo, os personagens centrais,
Marianinho e Izidine Naíta, são pessoas distanciadas do pensamento tradicional, “de fora”
(ambos possuem formação acadêmica e vivem em cidades modernizadas), mas que se
configuram na narrativa como fortes mobilizadores de processos espirituais e tradicionais.
A condição de estrangeirismo no momento de chegada é inescapável e desnorteadora.
105
Marianinho, em um momento de choque cultural, desabafa sobre sua condição:
As ruas estão cheias de crianças que voltam da escola. Algumas me olham
intensamente. Reconhecem em mim um estranho. E é o que sinto. Como se a ilha
escapasse de mim, canoa desamarrada na corrente do rio. Não fosse a companhia da
Avó, o que eu faria naquele momento era perder-me por atalhos, perder-me tanto até
estranhar por completo o lugar. (p. 91.)
Esse sentimento é, para ele, ainda mais paradoxal, pois esse estranhamento se em sua
própria terra natal, berço de sua infância, lugar onde ele viveu boa parte de sua vida. O
distanciamento, que avô Mariano premeditou como definitivo, tornava-se, então, explícito:
“Não é apenas a ngua local que desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para
entender Luar-do-Chão.” (p. 211.)
Em A varanda do frangipani, as condições de estrangeirismo de Izidine Naíta são
evidenciadas desde o primeiro momento em que ele desembarca na fortaleza e tenta
estabelecer contato com Marta e com os velhos. A forma de abordagem dos seus métodos
investigativos e a sua postura impositiva eram incongruentes com aquele sítio, e tornaram-se
um empecilho para que os velhos o recebessem. Quem explicita as condições estrangeiras de
Izidine Naíta é o seu hospedeiro, Ermelindo Mucanga:
Ele estudara na Europa, regressara a Moçambique anos depois da Independência.
Esse afastamento limitava o seu conhecimento da cultura, das línguas, das pequenas
coisas que figuram a alma de um povo. Em Moçambique ele ingressara logo em
trabalho de gabinete. O seu quotidiano se reduzia a uma pequena porção de Maputo.
Pouco mais que isso, no campo, não passava de um estranho. (p. 41-42.)
À medida, porém, que Izidine e Marianinho penetravam no universo tradicional, foram
modificando e sendo modificados em um processo nem sempre acelerado de
transformação cultural. Dito Mariano, por exemplo, ao buscar uma forma de comunicação
com Marianinho teve de usar a mediação da escrita e lançar mão de métodos sobrenaturais.
“Estas cartas são os modos de lhe ensinar o que você deve saber. Neste caso, não posso usar
os métodos da tradição. Você está longe dos Malinanes e seus xicuembos. A escrita é a
ponte entre os nossos e os seus espíritos. Uma primeira ponte entre os Malinanes e os
Marianos.” (p. 125-126.) Essas adaptações, por sua vez, se davam de maneira não conflituosa:
“Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou
as vozes, você dá a escritura.” (p. 65.)
A questão do contato cultural é, como vimos, presentificado por Mia Couto. E, nas obras
analisadas, os personagens “de fora”, ao longo da trama, tornam-se mobilizadores de
106
processos importantes ou imprescindíveis aos locais, a ilha de Luar-do-Chão e a fortaleza São
Nicolau. Sem terem cumprido as premissas da tradição (serem circuncidados ou
munumuzanas), são guiados e orientados pelos ancestrais míticos, como a cobra celeste
(wamulambo) que salva Izidine do assassinato. Tornam-se comunicantes com os não viventes,
como pode ser percebido ao final de ambas as obras: Nãozinha e Dito Mariano conseguem
orientar os protagonistas sem a mediação da escrita ou da comunicação direta. São capazes,
então, de cumprir “o ciclo das visitas”, sepultando o avô, no caso de Marianinho, e
contribuindo para a emancipação de Ermelindo, no caso de Izidine. E assim, libertos,
experimentam a sensação de pertencimento a algo sempre novo, que é o devir tradicional
através do tempo.
As cartas instalavam em mim o sentimento de estar transgredindo a minha humana
condição. Os manuscritos de Mariano cumpriam o meu mais intenso sonho. Afinal,
a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar
vivo, ao território dos vivos. Eu me tinha convertido um viajante entre esses
mundos, escapando-me por estradas ocultas e misteriosas neblinas. Não era João
Celestioso que tinha ultrapassado a última montanha. Eu também tinha estado lá. (p.
258.)
4.2.2. Sincretismo religioso
A gente reza melhor é quando nem sabemos que estamos a rezar.
O silêncio, doutor. O silêncio é a língua de Deus.
(Um rio chamado tempo)
Um outro ponto que merece, por fim, ser levantado sobre o contemporâneo em Mia Couto diz
respeito ao sincretismo religioso. Tanto em A varanda do frangipani quanto em Um rio
chamado tempo, uma estrutura cosmogônica fortemente imbricada nas formas dos
personagens de vivenciar o mundo e o cosmos, figurados em diversos componentes como os
mitos, os gestos tradicionais, a crença nos seres míticos, a convivência com os mortos, dentre
muitos outros. Entretanto, mesmo inseridos em um largo pensamento comum sobre a
existência e as formas de ligação com o além, um ponto de quebra dessa unidade quando
nos deparamos com a heterogeneidade das crenças religiosas.
Tem-se, por exemplo, em Um rio chamado tempo, a presença da religião católica na igreja da
ilha, nas missas e na presença de Padre Nunes, os quais são cruciais para a vida de
Dulcineusa. Para ela, era, por exemplo, fundamental abençoar o marido, na condição
moribunda em que este se encontrava, consoante a religião católica. Por isso, no escondido da
noite, ela e Padre Nunes realizaram a extrema unção de Dito Mariano.
107
Todos, porém, sabiam da recusa do marido a tal prática, ele que passava a vida repetindo:
O meu anjo, felizmente, nunca me guardou.” As rezas silenciosas do patriarca nunca foram
dirigidas para nenhum deus, ou talvez para deuses apenas dele. Na observação do padre, que
bem o conhecia, “essas divindades, de qualquer modo, deveriam ser bonitas. Que não o
abandonavam nesse período em que ele se suspendia entre a vida e a morte.” (RCT, p. 89.)
Também Nunes, personagem de A varanda do frangipani, pendia entre a religião católica, a
diversidade das crenças e a descrença diante do mundo. Para ele, o modo de viver atual era
um colapso para o qual mesmo Deus não parecia apontar para a esperança. E no momento em
que o desespero o pôs à prova, quando houve o grande naufrágio da embarcação, ele se
dirigiu ao feiticeiro e pediu-lhe que atirasse os búzios fato antes condenado por ele.
para Xidimingo, também de A varanda do frangipani, Deus era um preguiçoso que não
trabalhava, fazia milagres. Para o velho Nhonhoso, a condição em que se encontravam no
asilo era uma prova de que Deus não os acompanhava. A visão de Fulano Malta (Um rio
chamado tempo) é consonante com a de Nhonhoso. Ele muito havia perdido a no deus
dos católicos e exercia sua exclusiva dentro de si mesmo. E essa descrença no catolicismo
imposto em tantos anos de colonização
79
é localizada nas palavras de Dito Mariano, em sua
carta final, quando ele apregoa a presença do deus primordial, que se ausentou após a
conclusão da obra (crença difundida nas sociedades arcaicas).
Agora eu durmo além do sono. Dormir é um rio, um rio feito de curva e
remanso. Deus está na margem, vigiando de sua janela. E invejando o irmos,
infinitos, vidas afora. Vem daí o cansaço de Deus. Esse Deus do Padre Nunes se
consome na desconfiança. séculos que Ele deve controlar a sua obra, com seu
regimento de anjos. O nosso Deus não necessita de presença. Se ausentou quando
fez a sua obra, seguro de sua perfeição. (p. 259.)
4.3. O contemporâneo: intempestivo e inatual
A vida é um fogo,
Nós somos suas breves incandescências.
79
A cristianização dos bantos: “É o que Georges Balandier havia observado outrora ao comentar as análises se
S. F. Sundkler. Este último distinguira dois tipos entre as Igrejas negras que haviam se constituído como reação à
presença branca e cristã no sul da África: o tipo que ele chamava „sionista tentava manter ou ressuscitar as
práticas tradicionais, principalmente terapêuticas, e afirmava a especificidade das formas africanas de religião.
As Igrejas do tipo „etíope‟, observava ele, eram muito mais marcadas pelo cristianismo e limitavam suas
referências à tradição. Por isso mesmo, eram mais toleradas pelas autoridades oficiais. Por essa mesma razão, no
entanto, observa Balandier, elas forneceram um local ideal de formação identitária apoiou-se, então, nesse
contexto, numa considerável mudança cultural.” (AUGÉ. A guerra dos sonhos, p. 28.)
108
(Um rio chamado tempo)
Em uma aula inaugural realizada em 2008 por Giorgio Agamben, publicada posteriormente
sob o título O que é contemporâneo?, o autor sintetiza a noção de dialogia na configuração da
realidade. Para o estudioso, não existe um presente, ou uma visão lúcida sobre este,
desvinculada do passado. Somente quem é capaz de vislumbrar os traços do arcaico (arké:
origem) no mundo moderno está realmente nele inserido e compreende o que é ser
contemporâneo. E a noção de origem que não discorre cronologicamente está inserida no
devir histórico e não para de operar neste.
O vínculo entre moderno e arcaico é, pois, a chave de configuração do contemporâneo, que
nunca é isolado, está atrelado a uma ligação transformadora com o imemorial e com o pré-
histórico. E a condição de inalcançabilidade desse devir é um ciclo ao qual estaremos, na
perspectiva do autor, sempre retornando sem, no entanto, nunca alcançá-lo.
É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem
necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um
passado remoto, mas tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso
viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais
poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não vivido em
todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa
daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema
proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não vivido é a
vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um
presente em que jamais estivemos.
80
Nesse ponto de atenção ao não vivido ao qual se alude, encontramo-nos com a literatura de
Mia Couto que, sempre atualizada, não deixa de voltar-se inalcançavelmente para o arcaico.
E, nesse ponto das transformações incessantes, dos contatos, das ressonâncias dos encontros
inesperados e por vezes indesejáveis vemos a África de hoje, recriada, reimaginada
literariamente. Nesse emaranhado tão extenso de relações, influências e acontecimentos
históricos, que por vezes gera a descrença e o desencanto, Moçambique ergue-se com a força
do encantamento mantido nos mais secretos recursos de sentido e razão de seu mundo. E disto
Mia Couto não se distancia jamais. Junto a Luandino Vieira, boiando na memória gorda das
águas do Kinaxixi, parece testemunhar uma luta única: “nunca nos deixaremos domesticar,
juro!”
81
80
AGAMBEN. O que é contemporâneo?, p. 70.
81
VIEIRA. No antigamente, na vida, p. 36.
109
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