3.5.1. A atuação do xipoco
Mergulhados em carne alheia.
(A varanda do frangipani)
A fim de fugir da condecoração, Ermelindo, em A varanda do frangpani, teria, de qualquer
maneira, de penetrar novamente em um corpo. Pensou em ressurgir em sua carcaça antiga,
mas tal processo seria demasiado arriscado:
Certo era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser
evitada, custasse os olhos da cara. Que podia eu fazer, fantasma sem lei nem
respeito? Ainda pensei reaparecer no meu corpo de quando eu era vivo, moço e
felizão. Me retrovertia pelo umbigo e surgiria, do outro lado, fantasma palpável,
com voz entre os mortais. Mas um xipoco que reocupa o seu antigo corpo arrisca
perigos muito mortais: tocar ou ser tocado basta para descambalhotar corações e
semear fatalidades. (p. 13.)
Caso reocupasse seu próprio antigo corpo, ele teria a estranha forma de só ser visível pela
frente. Por detrás, não passaria de oco de buraco, um vazio. Assim, sem querer se retroverter
como um fantasma palpável, semeando fatalidades, buscou a orientação do halakawuma, um
animal com dons proféticos – tema trabalhado no capítulo 2 –, que o orientou, por meio de
seus conhecimentos de feitiçaria, a encarnar no corpo de uma pessoa que estivesse para
morrer. Pegando carona nessa morte, ele realizaria novamente a passagem e poderia, dessa
vez, ascender a xicuembo. Mesmo duvidoso da orientação do pangolim, ele resolveu encarnar
no corpo do recém chegado ao asilo Izidine Naíta:
Nessa mesma noite, eu estava transitando para xipoco. Pelas outras palavras, eu me
transformava num “passa-noite”, viajando em aparência de um outro alguém. […]
Mas iria residir em corpo alheio. Da prisão da cova eu transitava para a prisão do
corpo. Eu estava interdito de tocar a vida, receber diretamente o sopro dos ventos.
De meu recanto eu veria o mundo translucidar, ilúcido. Minha única vantagem seria
o tempo. Para os mortos, o tempo está pisando em pegadas de véspera. Para eles
nunca há surpresa.” (p. 13-14.)
No corpo do policial Ermelindo, então, ele viveria uma outra condição: estaria imerso no
tempo e teria acesso à memória, condições ausentes aos xipocos:
Afinal, eu era um morto solitário. Nunca tinha passado de um pré-antepassado. O
que surpreendia era eu não ter lembrança do tempo que vivi. Recordava somente
certos momentos mas sempre exteriores a mim. Recordava, sobretudo, o perfume da
terra quando chovia. Vendo a chuva escorrendo por Janeiro, me perguntava: como
sabemos que este cheiro é o da terra e não do céu? Não me lembrava, no entanto,
nenhuma intimidade do meu viver. Será sempre assim? Os restantes mortos teriam
perdido a privada memória? Não sei. Em meu caso, contudo, eu aspirava ganhar
acesso às minhas privadas vivências. (p. 16.)
O privilégio de gozar da perecividade e das lembranças não lhe eram, todavia, suficientes para
tirar-lhe o medo de reencarnar. O processo não era tão fácil e o medo que ele declarava sentir
se igualava ao medo dos vivos quando se imaginam morrer. O pangolim, por sua vez,