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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – UFMG
Dissertação de Mestrado / História e Culturas Políticas
BRUNO TADEU SALLES
A conquista do Paraíso se faz pela guerra: São Bernardo de Claraval e
sua concepção acerca da luta e da cavalaria (1090-1153).
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Adriana Vidotte - Orientadora (História – UFMG).
Profª. Drª. Mônica Valéria Costa Vitorino (Letras – UFMG).
Profº. Drº. Marcelo Cândido da Silva (História – USP).
BELO HORIZONTE
2008
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2
189.5 Salles, Bruno Tadeu
S168c A conquista do paraíso se faz pela guerra: São Bernardo de
2008 Claraval e sua concepção acerca da luta e da cavalaria (1090-
1153) / Bruno Tadeu Salles. – 2008.
206 f.
Orientador: Adriana Vidotte.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de
Minas
Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Bernardo, de Claraval, Santo, 1090 ou 91-1153.
2. História. - Teses 3. Templários - Teses 4. Cavalaria
- Teses 1. Vidotte, Adriana. II. Universidade Federal
de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título
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AGRADECIMENTOS
Primeiro, agradeço a Deus. Agradeço à minha amiga e orientadora, a Profª. Drª.
Adriana Vidotte, cuja orientação perfeita contribuiu não apenas para a pesquisa, mas
também para meu desenvolvimento pessoal e intelectual. Agradeço ao Profº. Drº.
Marcelo Cândido da Silva pelo grande apoio e pela ajuda oferecidos não apenas na
qualificação, mas durante todo o mestrado. Agradeço aos professores Drº. Rodrigo Patto
Motta, Drº. José Antônio Dabdab Trabulsi, Drº. José Carlos Reis e Drª. Regina
Helena cujas disciplinas representaram uma importante contribuição para esta pesquisa.
Agradeço à Profª. Drª. Mônica Valéria Costa Vitorino cujas observações na qualificação
foram de grande ajuda. Agradeço ao departamento de História da UFMG pela confiança
no tema. Agradeço à Norma pelo ótimo suporte oferecido no Colegiado da Pós
Graduação.
Agradeço à minha mãe pelo incentivo e pela fé. Agradeço à minha namorada
Carol, cuja paciência, ajuda e carinho foram indispensáveis para o andamento e
conclusão da pesquisa. Agradeço à família de Carol pelo carinho e pelo apoio.
Agradeço aos meus amigos do grupo de estudos medievais da UFMG pelo grande apoio
e preocupação, em especial à Marcella, Jean-Clair, Bruno, Mário e Elaine. Agradeço
aos alunos que cursaram minha disciplina na graduação, cuja contribuição às discussões
da pesquisa foi muito profícua. Agradeço aos funcionários das bibliotecas da UFMG e
do Instituto Santo Inácio.
6
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................08-11
LISTA DE ABREVIATURAS................................................................................12-13
INTRODUÇÃO CULTURA, POLÍTICA, REPRESENTAÇÕES E PERSPECTIVA:
O NOVUM MILITIAE GENUS ENTRE AS INCERTEZAS E TENSÕES DOS
ESPAÇOS DE SOCIALIZAÇÃO BERNARDINOS................................................14-23
CAPÍTULO I O NOVUM MILITIAE GENUS NAS RELAÇÕES FAMILIARES DE
SÃO BERNARDO.....................................................................................................24-62
01. Cavalaria e família bernardina na Vita Prima de Guilherme de Saint-Thierry.........25
02. Aleth de Montbard e sua relação com São Bernardo................................................34
03. A representação paterna e a conversão dos irmãos milites de São Bernardo ao
monasticismo...................................................................................................................43
04. São Bernardo e os milites que visitam Claraval........................................................50
05. São Bernardo e o miles peregrinus conde Hugo de Champagne..............................52
06. Os milites de João Batista à luz de duas apropriações monásticas distintas: Vita
Prima x De Laude Novae Militiae...................................................................................57
CAPÍTULO II O NOVUM MILITIAE GENUS ALICERÇADO NO DIÁLOGO DE
SÃO BERNARDO COM HUGO DE PAYNS........................................................63-103
01. A militia enquanto configuração social.....................................................................64
02. Considerações acerca da cristianização da cavalaria e do cavaleiro como “pele
vermelha”.........................................................................................................................70
03. A polissemia da palavra miles enquanto índice de militarização social: vassalidade e
nobreza.............................................................................................................................74
04. A função social da cavalaria e sua justificação nas palavras de um miles................82
05. As crônicas de Ernoul e Guilherme de Tiro: demandas e expressões de Hugo de
Payns e seus commilitii....................................................................................................88
06. O De Laude Novae Militia enquanto “conversa” entre dois diferentes milites
Christi..............................................................................................................................93
07. Cristianização da militia e militarização do cristianismo..........................................99
CAPÍTULO III O NOVUM MILITIAE GENUS ALICERÇADO NO
MONASTICISMO CISTERCIENSE DE SÃO BERNARDO..............................104-135
01. A iniciativa de Cister...............................................................................................106
02. A querela do monge Roberto...................................................................................112
03. Apologia a Guilherme de Saint-Thierry..................................................................117
04. Mors sanctorum Dei................................................................................................122
7
05. Breves ponderações acerca dos significados da conversão.....................................131
CAPÍTULO IV A ESPECIFICIDADE DA REPRESENTAÇÃO E DAS PRÁTICAS
DO NOVUM MILITIAE GENUS...........................................................................136-163
01. A “leitura” bernardina.............................................................................................137
02. No tempo de paz......................................................................................................139
03. No tempo de guerra.................................................................................................143
04. A relação entre práticas monásticas e práticas senhoriais na representação de São
Geraldo d’Aurillac.........................................................................................................150
05. A distância entre São Bernardo e Santo Odon........................................................160
CAPÍTULO V - O NOVUM MILITIAE GENUS E SUA INSERÇÃO NAS
RELAÇÕES ENTRE OS PODERES SECULAR E ECLESIÁSTICO.................164-190
01. As Possibilidades para o poder militar....................................................................165
02. A afirmação da Teocracia........................................................................................170
03. A persona mixta do soberano e o rei taumaturgo....................................................172
04. São Bernardo nas relações entre os poderes secular e eclesiástico na primeira metade
do século XII.................................................................................................................177
05. A apropriação do miles Christi pós De Laude Novae Militiae................................183
06. A fragilidade dos milites Templi..............................................................................186
CONSIDERAÇÕES FINAIS O DE LAUDE NOVAE MILITIAE ENQUANTO
PERSPECTIVA SOCIAL E MONÁSTICA..........................................................191-197
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................198-206
FIGURAS
FIGURA 01: São Bernardo e sua família........................................................................33
FIGURA 02: Retable de Saint Bernard...........................................................................42
FIGURA 03: Oto I em majestade..................................................................................175
MAPAS
MAPA 01: Localização dos monastérios de Cluny, Cister (Citeaux), Claraval
(Clairvaux) e Saint Thierry............................................................................................105
MAPA 02: Localização das cidades de Jerusalém e Ascalon......................................149
MAPA 03: Localização da cidade de Aurilac...............................................................154
MAPA 04: Localização da cidade de Bamberge..........................................................169
8
RESUMO
9
Resumo:
Explicar o Novum Militiae Genus ou o Novo Gênero de Cavalaria de São
Bernardo nos leva a problematizar a idéia de cristianização da militia, ou o esforço da
Igreja em direcionar os cavaleiros para o caminho da salvação. Examinamos a relação
entre aquela idéia e o que se pode definir como militarização do cristianismo ou a
influência de elementos militares sobre o cristianismo. Buscamos assim discutir a
concepção bernadina acerca da cavalaria nos espaços de socialização que foram
estabelecidos entre são Berando, sua família, o miles Hugo de Payns e o monasticismo.
Portanto, mobilizando o conceito de habitus, enfocamos as interações nas quais São
Bernardo dialogou com as estruturas culturais, políticas e sociais de seu tempo. Neste
diálogo, o Santo teria pensado de maneira especifica suas idéias sobre a cavalaria.
Palavras Chave: São Bernardo de Claraval, Templários, habitus, relações de poder,
cavalaria.
10
Résumé:
Expliquer le Novum Militiae Genus de Saint Bernard ou le Nouveau Genre de
Chevalerie nous mène à la problematisation de l’idée de cristianisation de la militia, ou
l’effort de l’Église pour directioner les chevaliers sur le chemin de la salutation. Nous
examinons la relation entre celle idée et ce qu’on peut definire comme la militarisation
du christianisme ou l’influence d’éléments militaires dans le christianisme. Nous
cherchons ainsi discuter la conception bernardine de la chevalerie dans les spaces de
socialisation qu’ont été établis entre Saint Bernard, sa famille, le miles Hugo de Payns
et le monasticisme. Donc en mobilisant le concept d’habitus, nous mettons en lumière
les interactions dans lesquelles Saint Bernard a dialogué avec les structures culturales,
politiques et sociales de son temps. En ce dialogue, le Saint aurait de manière spécifique
formaté ses idées sur la chevalerie.
Mots-clé: Saint Bernard de Claraval, Templiers, habitus, relations de pouvoir,
chevalerie.
11
Abstract:
To explain the Bernard’s Novum Militiae Genus or the New Type of the
Knighthood carried us to problematize the idea of christianization of the militia, or the
effort of the Church to direct the knights to the way of the salvation. We examine the
relation between that idea and this we can define as militarization of the christianity or
the influence of the elements militaries on the christianity. We search like with
discussing the Bernard’s conception of the knighthood in the spaces of the socialization
which were established among Saint Bernard, his family, the miles Hugo de Payns and
the monasticism. Thus, mobilizing the concept of the habitus, we approach the
interaction on that Saint Bernard talked to the cultural, politics and social structures of
his time. On that talk, the Saint would have thought of way specific his ideas about the
knighthood.
Key words: Saint Bernard de Claraval, Templars, habitus, relations of power,
Knighthood.
12
LISTA DE
ABREVIATURAS
13
LISTA DE ABREVIATURAS
BAC
.
Biblioteca de Autores Cristianos.
CTAMT
.
Carta a seu tio André, mestre dos Templários.
CMR
.
Carta ao monge Roberto.
CLVIRF. Carta a Luis VI, rei dos francos.
DC
.
De Consideratione.
DLNM
.
De Laude Novae Militiae.
EDUSC
.
Editora da Universidade do Sagrado Coração.
PIOMS
.
Pontifical Institute of Medieval Studies.
RSB
.
Regra de São Bento.
SEI
.
Società Editrice Internazionale.
VG
.
Vita Geraldi.
VT
.
Vita Prima.
LISTA DE ABREVIATURAS DE CITAÇÕES BÍBLICAS
Ap. Apocalipse.
At. Atos dos Apóstolos.
1Cor. 1ª Epístola aos Coríntios.
2Cor. 2ª Epístola aos Corintios.
Ct. Cântico dos Cânticos
Dn. Daniel.
Dt. Deuteronômio.
Ecl. Ecleisastes.
Ef. Epístola aos Efésios.
Ex. Êxodo.
Hab. Habacuc.
Jo. Evangelho de João.
Jó. Livro de Jó.
Lc. Evangelho de Lucas.
1Mc. 1º Livro dos Macabeus.
2Mc. 2º Livro dos Macabeus.
Mc. Evangelho de Marcos.
Mt. Evangelho de Mateus.
1Pd. 1ª Epístola de Pedro.
2Pd. 2ª Epístola de Pedro.
Pr. Provérbios.
Rm. Epístola aos Romanos.
Sb. Sabedoria.
Sl. Salmos.
1Sm. 1º Livro de Samuel.
2Sm. 2º Livro de Samuel.
Tb.Tobias.
14
INTRODUÇÃO
15
CULTURA, POLÍTICA, REPRESENTAÇÕES E PERSPECTIVA: O NOVUM
MILITIAE GENUS ENTRE AS INCERTEZAS E TENSÕES DOS ESPAÇOS DE
SOCIALIZAÇÃO BERNARDINOS
Bernardo, abade do mosteiro cisterciense de Claraval, na primeira metade do
século XII
1
, escreveu um tratado no qual expôs sua concepção sobre a cavalaria e
construiu uma representação inaudita acerca do ofício e das responsabilidades do miles
2
.
O De Laude Novae Militiae
3
e o Novum Militiae Genus
4
,
nele apresentado, suscitam a
discussão do como e do porquê daquela representação. Logo, evidenciam-se alguns
problemas teóricos e metodológicos profícuos para o conhecimento histórico.
Em diálogo com Pierre Bourdieu (1983: 46-81), trabalhamos a idéia daquilo que
se pode classificar enquanto o habitus bernardino, ou seja, as especificidades das
construções e das representações expostas por São Bernardo consideradas à luz de seus
espaços de socialização. Através desses espaços, o Santo interpretou pensou e
problematizou as estruturas culturais, políticas e sociais disponíveis em seu tempo.
Ponderamos também sobre a exteriorização daquela interpretação nas experiências,
práticas e representações sociais de sua trajetória. As posições e estratégias sociais
vivenciadas de maneira específica por São Bernardo ofereceram a ele, igualmente, uma
maneira específica de pensar, sentir e de se apropriar do mundo à sua volta.
Os espaços de socialização são concebidos como aqueles lugares ou momentos
onde se estabelece uma relação, onde é construída uma interpretação e problematizada
uma realidade. São Bernardo, sobretudo na sua família, em seu monastério e na relação
com os milites participou de espaços de interação e tensão. A partir desses espaços de
socialização, a sociedade e suas representações são repensadas, discutidas, justificadas e
até mesmo transformadas.
1
Tradutores como Gregório Diez Ramos (1953-1955: 853) situam esse tratado entre os anos de 1132 e
1136, após o concílio de Troyes em 1129, no qual os Templários foram oficialmente reconhecidos pelo
Papado e obtiveram sua Regra. Jean Leclerq (1957: 81-82), tendo em vista as dificuldades de definir
uma data específica, acha mais prudente atribuir o tratado a uma data anterior a 1136, ano da morte do
cavaleiro que demanda a São Bernardo o tratado, Hugo de Payns, primeiro mestre dos Templários.
Todavia, concorda-se com as observações de Alain Demurger (2005: 60-61) que situa o texto referido
entre 1126 e 1129. Demurger chegou a essa conclusão tendo em vista que, no tratado, os Templários não
são definidos enquanto Ordem, mas apenas como cavalaria e que aquela era apenas uma “promessa”, algo
que, naqueles anos, estava apenas no devir.
2
Cavaleiro.
3
Elogio da Nova Cavalaria.
4
Nova Espécie de Cavalaria.
16
São Bernardo é examinado enquanto leitor ou interlocutor. Todavia, antes de
buscar os “Pais da Igreja”, as concepções de guerra anteriores a São Bernardo, e a sua
interpretação acerca destas, descobrimos na militia, especificamente em Hugo de
Champagne e em Hugo de Payns, e nos monges de Cister e de Cluny os principais, mas
não os únicos referentes de São Bernardo. É a propósito da ação de Hugo de Payns e de
seus milites
5
que São Bernardo pensou a cavalaria, mobilizando toda a sua experiência
e a sua perspectiva sobre a sociedade, a cultura e a política; construindo também uma
nova perspectiva quanto àqueles três elementos. Se o De Laude Novae Militiae propôs
uma relação nova entre militia e monasticismo, ele se constituiu também através de um
posicionamento de Bernardo quanto ao ofício monástico.
A partir do espaço de socialização que foi construído na interlocução entre São
Bernardo e a militia e entre ele e a tradição monástica, avaliamos a sua concepção sob o
prisma das relações de poder entre Igreja e cavalaria e não apenas no viés tradicional do
processo de cristianização daquela última. Nesse sentido, é proposto trazer a dimensão
das relações de poder entre cristianização da militia e militarização do cristianismo
proposta apresentada inicialmente por Hilário Franco Júnior (1990: 19) que foi
aprofundada no presente texto na intrincada construção da representação social e
política do Novum Militiae Genus.
Conceber e registrar um novo gênero ou espécie de cavalaria, herdeiro do
combate de Cristo contra o mal e que seria o ponto de encontro entre práticas
monásticas e práticas guerreiras pode, em um primeiro momento, ser explicado como o
resultado de uma tradição eclesiástico-monástica que se esforçaria por inserir os
cavaleiros no caminho da salvação. Nesse viés, Alain Demurger (2002: 258) apresentou
as conclusões de alguns historiadores que associaram os Templários, e
conseqüentemente o Novum Militiae Genus, à tradição monástica beneditina do
Ocidente. Georges Duby (1976: 144), concluiu que o “grande sonho” de ordenação e
controle social expresso pelo Imaginário das Três Ordens se “realizou singularmente”
naquela instituição. Nesse viés, G. Ambroise (1946: 94) enfatizou que a Ordem do
Templo foi uma inspiração essencialmente cisterciense.
O tratado de São Bernardo se apresentaria, segundo as opiniões citadas no
parágrafo anterior, como um expoente de uma tradição e também de uma evolução
5
Cavaleiros – forma plural de miles.
17
na qual a Igreja se esforçaria, utilizando as palavras de Ivan Lins (1958: 94), por
“plasmar em cavaleiro cristão o rude homem feudal”. Esta visão atribui ao cristianismo
clerical uma força de imposição e determinação incontestáveis. Pouco a pouco, a
nobreza guerreira simplesmente seria cristianizada. Parecia muito tranqüilo encaixar as
palavras e intenções de São Bernardo em uma permanência de matiz monástico, ou em
uma imposição traduzida na longa duração de práticas culturais específicas. Contudo, a
relação entre São Bernardo e a militia, durante as investigações, se apresentou como
mais complexa do que o tranqüilo encaixe em um “padrão de idéias”
(KANTAROWICZ, 1998: 49).
Entre os anos de convívio mais freqüente de São Bernardo com sua família
sobretudo com sua mãe – (1090-1112), passando pelo período de noviciado (1113-
1114) e sua profissão feita em Cister (1115), até o possível ano em que escreveu o
tratado De Laude Novae Militiae (1126-1129), identificamos uma mudança na atitude
do Santo com relação à cavalaria. Nesse recorte temporal, foram examinadas algumas
relações pessoais de São Bernardo que apontaram à incerteza e à tensão daquela
mudança. Foi possível ponderar sobre elas ao se evidenciar o seguinte problema: acaso
não fossem conhecidos o apoio que Bernardo ofereceu ao miles Hugo de Payns no
combate da Palestina e o seu esforço em pregar a Cruzada contra o Islã, poder-se-ia
afirmar que sua posição quanto à guerra e à cavalaria fosse evidente ou segura naqueles
anos? Ou a postura de São Bernardo quanto à militia foi a mesma em todos os
momentos de sua vida?
Por meio de um exercício de teleologia, relaciona-se o elogio escrito para os
cavaleiros da Ordem do Templo ou o capítulo do tratado Consideratione escrito na
década de cinqüenta do século XII no qual São Bernardo trata da Cruzada, à sua
juventude e formação no seio de uma família da média nobreza bourguinhã. Uma
família formada predominantemente por milites, acostumada às práticas militares e
possivelmente tocada pelo fervor que teria acometido a nobreza secular devido às
batalhas da Reconquista na Península Ibérica (FRANCO JÚNIOR, 1997: 155-188) ou
ao sucesso da primeira Cruzada. Como demonstrou Norbert Elias (1994), as
necessidades que conduziriam as interações pessoais no período feudal seriam
basicamente militares. De fato, observações realizadas quanto a utilização e a
polissemia da palavra miles demonstraram a importância da guerra na sociedade
medieval dos séculos XI e XII (BARTHÉLEMY, 1994: 61-63). Seja o monge
18
cisterciense que combate os maus espíritos no claustro (CALMETTE & DAVID, 1953:
213-214), ou o nobre de baixa e média condição, ou o vassalo insubordinado de
condição condal (GUILHIERMOZ, 1902: 331-345 e 370-392), eram definidos enquanto
miles ou cavaleiro. Realidades sociais distintas guardando o mesmo termo militar.
Em outras palavras, o primeiro passo para compreender a concepção militar de
São Bernardo seria explicitar a sua acomodação à cultura monástica ou à estrutura
social militar de seu tempo, muito exaltada pela luta contra o Islã, seja na Península
Ibérica ou no Oriente. Como observou Vauchez (1997), no final do século XI floresceu
no seio da aristocracia uma religiosidade de Cruzada. A guerra contra os muçulmanos
passava a ser um palco onde ocorre a mediação entre Deus e o homem, assegurando ao
cavaleiro cruzado, mistura de peregrino, penitente e miles Christi uma contigüidade
maior com o sagrado e, por conseguinte, com a salvação.
A adaptação às práticas culturais de seu meio ou à estrutura social militar foi
tomada inicialmente como uma evidência inconteste, assumindo o caráter de uma
explicação ou resposta razoável para a representação cavaleiresca de São Bernardo.
Todavia, no decorrer da pesquisa, ela se revelou apenas como primeira pista para a
investigação do problema, ou seja, a relação não se mostrara tão direta, e a aceitação ou
adoção de certas práticas, idéias ou concepções sociais e políticas apresentou-se de
forma mais sinuosa do que a simples explicitação de um conjunto relativamente
homogêneo. Se, para São Bernardo, apoiar a cavalaria e a Cruzada não era algo tão
simples, trabalhamos com a suposição de que não foi de evolução em evolução ou de
progresso em progresso que a história da concepção militar bernardina caminhou, mas
de luta em luta, de dúvidas em dúvidas e de problema em problema.
Se as estruturas ou os conjuntos de determinantes das ações individuais
(BRAUDEL, 1976: 07-70) como a tradição monástica ou a sociedade militarizada
deixam a impressão de uma integração dos fenômenos, o recorte sobre os espaços de
socialização, tal como foram definidos anteriormente, apontam o nível da tensão.
Indagamos se o que é apresentado como novo e específico em uma determinada
realidade histórica é um reflexo, uma execução das estruturas presentes ou um evento.
Este último, na definição de Michel Foucault (1979: 28), é uma “relação de forças que
se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus
utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se distende...”. Pergunta-se: como São
19
Bernardo reagia, interagia e se posicionava frente à cristianização da militia e à
militarização do cristianismo?
Sugere-se que não determinação nem fim último na História, e tomam-se as
estruturas “apenas para questioná-las imediatamente, para desfazê-las e saber se é
possível recompô-las legitimamente; para saber se não é preciso reconstituir outras,
dissipando sua aparente familiaridade...” (FOUCAULT, 1972: 38). Ou seja, é realmente
possível enquadrar e integrar um sujeito histórico como São Bernardo suas práticas
e concepções, em uma estrutura cultural e mesmo social, buscando nelas as explicações
de seus fenômenos? Foucault nos fez relembrar a idéia da multiplicidade, das lutas, do
evento e das necessidades dentro das estruturas e durações. Aquelas necessidades não
seriam apenas ou somente estruturadas ou continuadas, mas estreitamente associadas à
especificidade da existência, da experiência e das interações sociais. Essas interações
demonstraram constituir perspectivas que teriam proporcionado a São Bernardo uma
dimensão particular da cultura, da política e da sociedade de seu tempo, além de um
posicionamento específico quanto à militia.
Para a compreensão do Novum Militiae Genus, dentro dos espaços de socialização
vividos por São Bernardo, destacaram-se as relações estabelecidas entre ele e um miles:
Hugo de Payns. São Bernardo atribui o De Laude Novae Militiae aos insistentes pedidos
daquele miles
.
O mesmo Hugo de Payns, anos antes do De Laude Novae Militiae em
1120 fundara uma confraria objetivando proteger os peregrinos nos caminhos para os
lugares santos da Palestina – estando nas origens da Ordem dos Templários. Ele já havia
escrito, entre os anos de 1120 e 1127, uma carta aos seus milites, enfatizando a
importância do cavaleiro e de sua função protetora na “Casa de Deus” (HUGO
PECADOR. Carta aos Cavaleiros de Cristo. Apud. LECLERQ, 1957: 86-89). Hugo fez
apologia da função militar, aparentemente mal vista por alguns de seus contemporâneos.
Antes de se converter em etapa de um processo tal como pensava Lins (1958)
verificamos que o Novum Militiae Genus esteve nos pontos de tensão entre Igreja e
cavalaria que ganharam uma forma única no relacionamento de Hugo e Bernardo.
Considerar esta tensão conduziu ao questionamento da tranqüilidade e da positividade
das tradições eclesiásticas, de suas práticas e ações. Os milites respondiam de forma
particular àquela tensão, mobilizando argumentos e buscando apoio para se defender
dos seus opositores, tal como fez Hugo de Payns.
20
A insistência de Hugo ao realizar seu pedido a São Bernardo demonstrava
novamente a incerteza da posição do abade de Claraval. Esse titubeio explica-se não
somente por uma modéstia bernardina, tal como ele próprio escreveu, mas por uma
dificuldade em aceitar algo que durante a sua trajetória, até aquele momento, se
mostrava, no mínimo, duvidoso: a legitimidade da cavalaria secular. Verificamos que o
De Laude Novae Militiae deve ser analisado como um evento não apenas por conter
uma nova representação social e política decorrente de uma relação de poder e de
tentativa de convencimento que pensa o papel de um importante grupo social mas
também por ser algo novo na experiência de São Bernardo. A perspectiva do Santo, na
época do tratado, era diferente da perspectiva de sua juventude ou dos tempos de seu
convívio materno.
Problematizar a política considerada enquanto relações de poder na Idade
Média ou, mais especificamente, parte do fenômeno político da primeira metade do
século XII, requer a consideração de certas categorias de pensamento que contribuem
para estruturar ou fornecer referentes que, de alguma forma, condicionam a prática
política e social. Mas, não é suficiente, como foi enfatizado, apenas identificar essas
estruturas estrutura cultural, matrizes de pensamento político, convenções arraigadas
acerca da sociedade etc. Trabalhamos com a idéia de que uma determinada realidade
política e social é contraditoriamente pensada, construída e dada a ver exatamente no
ponto onde se cruzam aquelas categorias e os sujeitos históricos, suas bagagens
culturais e suas experiências formalizadas nas relações sociais e de poder.
Para esta pesquisa, a consideração e discussão de idéias e conceitos como o de
representações e apropriação mostrou-se pertinente para o esforço de compreensão das
relações entre os poderes secular e eclesiástico. Dentro dessas relações buscamos
problematizar a construção da identidade, da legitimidade e da inserção de um grupo
relevante no jogo social e político: os milites. Estabelecer um estudo acerca da política
medieval, no período proposto, levou a pensar o estudo histórico como análise legítima
das relações de poder entre a nobreza leiga e o clero (CÂNDIDO DA SILVA, 2003:
239-252). Junto a isso, enfocamos essas relações enquanto conflito de representações
(imagens, ou concepções formalizadas do jogo político, dos atores que o compõem e
das funções legítimas que devem assumir e das ilegítimas que devem evitar).
Elabora-se um conceito do que vem a ser o poder, ou seja, os meios, capacidades
ou referências disponíveis a uma determinada categoria ou ator social pretendente a
21
certa autoridade e, mais do que isso, pretendente ao reconhecimento da legitimidade de
sua autoridade no mundo (BOBBIO, 1986: 954-962; HOBBES, 2003: 70; FOUCAULT,
2002: 3-26), seja em um nível universal – o Imperador e o Papa – seja em um nível mais
restrito – o rei em seu reino ou o miles nos seus domínios. Da mesma forma, na
elaboração desse conceito, não podemos esquecer os estudos historiográficos
específicos do fenômeno político da Idade Média, como Senellart (2002) e Kantarowicz
(1998).
Observamos que as querelas, desacordos, conflitos e acomodações entre os
poderes secular e eclesiástico remetiam a problemas muito complexos, como a
legitimidade dos poderes, a complexidade das articulações entre o religioso e o secular
ou daquelas que se estabelecem entre monasticismo e cavalaria, como será apresentado
na construção da representação do Cavaleiro Templário.
Por hora, é profícuo deter-se no seguinte ponto: para além das guerras,
excomunhões, interdições mútuas ou “confiscos” das prerrogativas alheias, as relações
de poder são, entre outras coisas, como foi dito anteriormente, um conflito de
representações. Ao Papa, Vigário de Cristo e herdeiro de São Pedro (PACAUT, 1989),
se opõe a persona mixta, sagrada, do Imperador (KANTAROWICZ, 1998) provedor e
protetor da cristandade. Junto a essas, ainda aparece o rei taumaturgo, curador das
escrófulas, feitor de milagres medicinais (BLOCH, 1998). Já o Novum Militiae Genus,
no discurso bernardino, ao pretender associar práticas militares com práticas monásticas,
se oporia a uma representação cavaleiresca interessada no luxo, na beleza e na busca de
bens, honras e dignidades seculares (BARTHÉLEMY, 1994: 40-41).
A importância das representações no esforço de compreensão das sociedades e
suas componentes é algo reconhecido e elaborado desde muito tempo nas ciências
sociais. Émilie Durkheim (1970: 13-41) chega a reconhecer uma relativa independência
das representações coletivas em relação a seu “substrato material”, sejam as células
cerebrais ou os indivíduos componentes do meio social. Concebem-se as representações
enquanto imagens mentais que podem se “arraigar na mente” de um determinado
indivíduo ou sociedade. Ao permanecerem lá, elas podem influenciar suas ações, sem
que muitas vezes seja perceptível (DURKHEIM, 1970: 30). A construção dessas
representações, especificamente as representações coletivas, dependeria, primeiramente,
das células cerebrais do indivíduo, da configuração de uma determinada sociedade ou
da relação desses indivíduos no interior daquela sociedade (DURKHEIM, 1970: 31-32).
22
Todavia, uma vez constituídas essas representações coletivas, elas extravasariam
os indivíduos, adquirindo certa liberdade quanto ao seu “substrato material”. Se
representações coletivas surgem das relações entre indivíduos na sociedade, não será
possível surgirem, também, das relações entre as próprias representações?
(DURKHEIM, 1970: 33). Assim, podem ser compreendidas, em parte, as trocas
simbólicas de insígnias papais e imperiais
6
, além do resultado da fusão de símbolos
cavaleirescos (espada, lança, loriga e cavalo) com símbolos monásticos cistercienses (o
hábito branco e a Regra de São Bento), como é perceptível na Ordem dos Cavaleiros
Templários.
Logo, uma vez que tais representações instituem toda uma trama de correlações
entre imagens arraigadas no plano mental e entre imagens e a realidade socialmente
vivida, elas tenderão, obviamente, a construir modelos e padrões aplicados à sociedade
ou às relações de poder (MORÀS, 2001: 18-19). Nesse sentido, não é fortuito destacar
uma idéia segundo a qual se supõe que “não é em função de sua condição verdadeira,
mas da imagem que é formada [dela] e que nunca fornece um reflexo fiel, que os
homens pautam a sua conduta” (DUBY, 1976: 130-131).
De Durkheim tomamos da idéia das relações entre representações sociais
enquanto formadoras de novas representações. Já em Duby encontramos o reforço da
proposição das imagens ou representações enquanto geradoras e produtoras daquilo que
Roger Chartier (1990: 17) chamou de “estratégias práticas (sociais, escolares e políticas),
que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, (...), a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas”.
Na consideração da política medieval enquanto relações de poder e das
representações sociais e políticas que lhe são imanentes, esbarra-se, como foi proposto
no início, nos problemas de como e porque essas representações são elaboradas de uma
determinada forma, por um determinado sujeito histórico, em um determinado momento.
Pergunta-se como seu desenvolvimento ocorre no decorrer dos anos suas falhas, seus
6
“Infinitas inter-relações entre a Igreja e o Estado, ativas em todos os séculos da Idade Média,
produziram híbridos em ambos os campos. Empréstimos e trocas mútuas de insígnias, símbolos políticos,
prerrogativas e honrarias sempre se realizaram entre os líderes espirituais e seculares da sociedade cristã.
O Papa adornava sua tiara com uma coroa dourada, vestia a púrpura imperial e era precedido pelos
estandartes imperiais ao caminhar em procissão solene pelas ruas de Roma. O Imperador usava sob a
coroa uma mitra, calçava os sapatos pontificais e outros trajes clericais e recebia, como um bispo, o anel
em sua coroação. Esses empréstimos afetavam, na Alta Idade Média, principalmente os governantes,
tanto espirituais como seculares, até que finalmente o sacerdotium possuía uma aparência imperial e o
regnum um toque clerical”. (KANTAROWICZ, 1998: 125).
23
sucessos dentro das suas propostas, adaptações, substituições, etc. Na relação entre os
indivíduos ou na percepção e interpretação do homem acerca de sua realidade ou de sua
situação e do outro no mundo, a “leitura” da realidade e das relações de poder liga-
se, entre outros fatores, intimamente à posição daquele sujeito dentro da sociedade. A
função desenvolvida dentro do corpus social, os círculos de sociabilidade, seja a família,
o monastério ou as cartas , funcionam como espaços de socialização política, no interior
dos quais a percepção das relações de poder e as representações dos atores sociais são
discutidas e constituídas (BERSTEIN, 1998: 356).
Portanto, consideramos as estruturas culturais, sociais e políticas da época de São
Bernardo e as diferentes perspectivas do Santo diante delas. Essas diferentes
perspectivas decorreram de sua interação e dos contatos estabelecidos na sua trajetória.
Nesse cruzamento, São Bernardo construiu, não sem dificuldades, a sua concepção
quanto a cavalaria, deixando explícita na sua trajetória a representação do Novum
Militiae Genus. Se as opiniões como as apresentadas por Demurger (2002) e as
afirmações de Duby (1976) e Ambroise (1946) conduziram a uma afirmação inconteste
das estruturas culturais, leituras como a de Elias (1994), Bourdieu (1996) e Foucault
(1972) trouxeram a desconfiança e um novo olhar sobre o objeto de estudo. Passa-se da
determinação para a interação.
Os espaços de socialização escolhidos para problematizar a concepção de guerra e
cavalaria de São Bernardo foram sua família, seu monastério, sua interação com os
Pobres Cavaleiros de Cristo e seu envolvimento com os poderes secular e eclesiástico,
nos quais o Santo concebeu articular a cavalaria. Se a representação do Novum Militiae
Genus mostra-se como uma relação entre militia e monasticismo é profícuo analisar não
as relações entre Bernardo e a cavalaria, mas também entre ele e o monasticismo de
seu tempo. Da mesma forma, é relevante o posicionamento político do Santo e a função
atribuída por ele, no jogo do poder, à militia. Todos esses espaços, pelos motivos
citados, compõem-se, de acordo com a metodologia apresentada, como indispensáveis
para o entendimento da construção do Novum Militiae Genus enquanto importante
representação política da Idade Média.
24
CAPÍTULO I
25
O NOVUM MILITIAE GENUS NAS RELAÇÕES FAMILIARES DE SÃO
BERNARDO
01. Cavalaria e família bernardina na Vita Prima de Guilherme de Saint-Thierry
Como afirmaram Berstein (1998) e Pierre Bourdieu (2003), a família se converte
em um importante vetor de socialização e de constituição de perspectivas sociais,
culturais e políticas. A partir dela, o sujeito constitui suas primeiras impressões, suas
primeiras bagagens, que podem ou não serem preservadas. Considera-se que Bernardo
partiu com uma “herança” construída no seio de sua família, mas tal “herança” se
revelou móvel e fluída, com certo nível de permeabilidade, durante sua trajetória. Nosso
objetivo é demonstrar, comparativamente, as dificuldades dos primeiros
posicionamentos de Bernardo quanto à cavalaria e como sua perspectiva se alterou, no
decorrer dos anos, nas discussões e interpretações constituídas acerca da militia.
Por volta de 1148, o abade cluniacense Guilherme de Saint-Thierry escreveu
uma Bernardi Vita Prima. É curioso o fato dessa obra ter tido início em vida de São
Bernardo, relatando vários milagres e feitos extraordinários ligados à figura bernardina.
Trata-se, portanto, de uma hagiografia escrita em vida de seu protagonista. Como
salientou Sofia Boesch Gajano (2002: 455), em meados do século II, um gênero literário
surge destinado a “fixar a memória histórica dos heróis da nova fé”, ou seja, do
Cristianismo. Além disso, esse gênero é permeado por esteriótipos narrativos que visam
tornar conhecido um personagem e tentam difundir seu culto. Esses estereótipos são
perceptíveis na proporção em que se avalia, especificamente na Vita Prima, a
aproximação implícita ou explicita das personagens com certas figuras bíblicas e se
considera os elementos semelhantes a outras obras hagiográficas – valorização da figura
materna, dificuldades do protagonista em seguir a carreira religiosa, oposição dos
parentes leigos, etc.
Portanto, pode-se propor que o objetivo central da hagiografia de Guilherme de
Saint-Thierry era perpetuar a memória dos feitos de Bernardo, identificando, na sua vida,
uma santidade bem evidente. No prólogo da obra, o autor expressara a sua admiração
pelo abade de Claraval e o desejo de deixar impressa a sua vida. Guilherme informou ao
leitor que as obras de Bernardo continuam notáveis e em destaque. Animado por seus
amigos e temendo que sua saúde não o permitisse executar a empresa, Guilherme se
dizia impelido a escrever Vita Prima:
26
Para eu escrever, em honra de Teu nome, assim como Tu Senhor Deus me deres e
ministrares, a vida daquele Teu servo, pelo qual quiseste que a Igreja de nosso tempo
reflorescesse na antiga honra da graça e virtude apostólica, eu chamo em ajuda o Teu
amor, o qual já em outro tempo nisto me foi acendedor. (...). Em qual coisa, já em outro
tempo, querendo eu agir, certas razões me refrearam e embargaram que o não fiz até
agora: uma foi por me estimar não ser digno de escrever tão digna matéria e a deixar
para mais dignos mestres e a outra por entender melhor que é mais conveniente de
fazê-lo depois da sua morte que em sua vida, para não o gravar com seus próprios
louvores; com segurança, isto é feito por conturbação do homem e contradição da
língua. Mas ao contrário, aquele vigoroso e valente, quanto mais enfermo pelo corpo,
tanto se faz mais forte e potente, não cessa de agir por digna memória e sempre
acumula grandes feitos aos maiores, os quais, pelo silêncio, requerem ser escritos. Eu,
verdadeiramente tomado pelas urgentes enfermidades da morte deste corpo e por
todos os membros empreendidos terem a decisão da proximidade da morte, sinto instar
o tempo de minha resolução. Receio muito que cedo me falte tanto tempo e que me
dispersasse, porque, primeiro que o desaparecimento, eu deseje de todos os modos que
seja levado ao fim. E ainda, o bom desejo de alguns irmãos me move a isto...
7
.
(GUILHERME DE SAINT-THIERRY. Vita Prima. In: MIGNE, v. 185, t. 01, 1855:
225-226, trad. nossa).
Em outros trechos, Guilherme procurou evidenciar sua proximidade com São
Bernardo. Ele demonstrara ter tido uma amizade forte com o abade de Claraval. De fato,
a forma sagrada que Bernardo assume no relato e a menção das conversas e seus
conteúdos evidenciam a impressão que Guilherme teria do abade de Claraval e da
relação entre ambos. Especificamente, ele escreve sobre um milagre de cura que o
abade de Claraval teria operado em seu benefício. Guilherme relata as suas visitas a
Claraval, o convívio próximo com o abade e seus colóquios:
Como fosse que eu uma vez estivesse enfermo em nossa casa e muito me fatigasse e
atribulasse a dor prolongada, ouvindo ele isto, enviou a mim o seu varão de boa
memória, Geraldo, que me trouxesse a Claraval, prometendo-me que ou aí cedo estaria
são ou morreria. E eu como se divinamente recebesse poder e lugar de morrer perto
dele ou viver algum tempo (destas coisas então não me lembro qual queria mais), parti
e fui logo, ainda com grande esforço e dor. Onde foi feito o que me fosse permitido.
Foi-me dada saúde de grande e perigosa enfermidade, mais as forças do corpo
voltaram pouco a pouco. Oh, Bom Deus! Que coisa de bem me deu aquela enfermidade,
aquelas férias, aquele chamamento! Em parte foi pelo que desejava, porque na minha
necessidade em todo tempo da minha convalescença e ajudava a sua enfermidade que
7
Scripturus vitam Servi tui ad honorem nominis tui, prout tu dederis, Domine Deus ipsius, per quem
Ecclesiam temporis nostri in antiquum apostolicae gratiae et virtutis decus voluisti reflorere, eum invoco
adjutorem, quem jam olim habeo incentorem, amorem tuum... In quo cum ego jam olim vellem
qualecumque ministerium agere vicis meae, seu timore, seu verecundia prohibitus sum usque adhuc,
modo quidem supra me judicans esse dignitatem materiae, et dignioribus opificibus reservandam; modo
etiam post obitum ejus, quase supervicturus ei, melius hoc et competentius, deliberans actitandum, cum
jam homo non gravaretur laudibus suis; et tutius id fierete a conturbatione hominum, et contradictione
linguarum. At ille vigens et valens, quanto infirmior corpore, tanto fortior fit et potens, non cessans agere
digna memoriae, et magna majoribus semper accumulans, quae ipso tacente scriptorem requirant. Ego
vero jam delibor, urgentibus infirmitatibus corporis mortis hujus, et membris omnibus incipientibus
habere responsum vicinae mortis, sentio instare tempus resolutionis meae; plurimumque timeo, ne sero
me poeniteat tamdiu distulisse, quod, prius quam pereffluam, velim omnimodis peregisse.
Se et me fratrum quorumdam pia benevolentia plurimum ad hoc impelit...
27
nesse tempo sofria. Ambos, portanto enfermos, todos os dias conferíamos e falávamos
da espiritual física da alma e dos meios das virtudes contra as enfermidades dos
pecados. Certamente, ele então me declarou, enquanto dourou aquele tempo da minha
enfermidade, o Cântico dos cânticos, mormente, entrevendo dos mistérios daquela
escritura, por que eu o desejava e assim lhe pedira. Cada dia quaisquer coisas que
ouvira sobre isto, para não me fugir, eu as escrevia enquanto Deus me dava e a
memória ajudava
8
. (VP, v. 185, t. 01: 259, trad. e grifos nossos).
Em uma carta, datada do ano de 1125, São Bernardo discutia com Guilherme,
repreendendo-o, pois este o questionava de que não correspondesse com iguais mostras
de amor. O que sentia Guilherme e a proximidade entre ambos os abades era ainda mais
evidente na resposta dada por São Bernardo, sobretudo na seguinte passagem:
“Quanto mais amo, menos amado sou”.
Estas são tuas palavras e preferiria que não fossem tuas, porque não sei si são
verdadeiras, se tu o sabes, quem as tem dito? Como podes provar que tu me amas mais
que eu a ti? Acaso pelo que assinalas em tua carta que nossos monges que passam
por tua casa não te transmitem nenhuma mostra de meu amor e benevolência? Que
sinal, que prova de amor me pedes? Acaso te inquieta que me tens escrito muitas
cartas e nunca tenho respondido? Como podia pensar que tua sensatez tão madura
podia comprazer-se lendo minhas torpes linhas? Porque sei quem disse: “Filhinhos,
não amemos com palavras e com a língua, mas com obras e com verdade[1Jo 3:18].
E que não demandaste algo de mim sem que eu não te dera?
9
(BERNARDO DE
CLARAVAL. Carta a Guilherme de Saint-Thierry. In: ARAGUREN & BALANO, v.
07, 1983: 320. trad. e grifos nossos).
8
Cum autem et ego aegrotarem aliquando in domo nostra, et jam me nimium fatigasset et attrivisse in
longum nimium se protendens aegritudo, audiens hoc misit ad me fratrem suum, virum bonae memoriae
Gerardum, mandans me venire ad Claram-Vallem, spondens me ibi cito aut curandum, aut moriturum.
Ego vero quasi divinitus accepta vel oblata facultate, seu apud eum moriendi, seu aliquandiu cum eo
vivendi (quorum quid maluerim tunc, ignoro), profectus statim sum illuc, quamvis cum nimio labore ac
dolore. Ubi factum est mihi quod promissum fuerat, et, fateor, sicut volui. Reddita quippe mihi sanitas est
a magna et periculosa infirmitate; sed paulatim vires corporis redierunt. Deus bone, quid mihi boni
contulit illa infirmitas, feriae illae, vocatio illa? Ex parte id quod volebam! Nam et cooperabatur
necessitati meae toto illo tempore infirmitatis meae apud eum infirmtias ejus, qua et ipse tunc temporis
detinebatur. Infirmi ergo ambo, tota die de spirituali physica animae conferebamus, de medicamentis
virtutum contra languores vitiorum. Itaque tunc dissuerit mihi de Cantico canticorum, quantum tempus
illud infirimtatis meae permisit, moraliter tantum, intermissis mysteriis Scripturae illius, quia sic volebam,
et sic petieram ab eo. Singulisque diebus quaecumque super hoc audiebam, ne mihi effugerent, scripto
alligabam, in quantum mihi Deus donabat, et memoria me juvagat. In quo cum benigne et sine invidia
exponeret mihi, et communicaret sententias intelligentiae et sensus experientiae suae, et multa docere
niteretur inexpertum, quae nonnisi experiendo discuntur, etsi intelligere non poteram adhuc quae
aponebantur mihi, plus tamen solito intelligere me faciebat quid ad ea inteligenda de esset mihi. Sed de
his huc usque dixisse sufficiat.
9
Haec quippe sunt verba tua, quae nollem fuisse tua, quia nescio si sunt vera. Sed et tu, si scis, unde scis?
Unde, inquam, probasti magis nos a te diligi quam te a nobis? An ex hoc quod in tuis litteris subiunxisti,
quia videlicet qui vadunt et veniunt per te de nostris, nullum tibi a nobis deferunt monumentum gratiae
vel amoris? Quod vero monumentum, quod amoris experimentum a nobis requiris? Numquid forte
scrupulum movet tibi, quod ad plura iam tua ad nos scripta, necdum vel semel rescripsi? Sed quando ego
maturitatem sapientiae tuae delectari posse putarem scriptitationibus imperitiae meae? Sciebam enim qui
dixit: Filioli, non diligamus verbo neque lingua, sed opere et veritate. Quando vero umquam opere meo
opus tibi fuit, et defuit?
28
Admiração e afeto transparecem nesta passagem e nas linhas da Vita Prima. O
trânsito entre os monges cistercienses de Claraval e os cluniacenses da abadia de Saint-
Thierry é também apresentado. O prólogo do Apologia, escrito por São Bernardo em
1125 para o mesmo Guilherme, também apresenta uma linguagem afetuosa e amistosa.
O objetivo desse tratado era, como será discutido, dirimir as querelas que cresciam entre
cistercienses e cluniacenses na década de 20 do século XII. Estes elementos corroboram
o relacionamento próximo e íntimo entre os monges de ordens monásticas distintas. A
despeito da afeição, os principais pontos a serem destacados nesse relacionamento são o
diálogo e a troca de idéias que se estabelecem tanto em Claraval quanto nas cartas e nas
páginas do tratado Apologia.
Figura próxima de Bernardo, Guilherme mantém com ele um contato que lhe
permite se posicionar e registrar parte da trajetória de seu amigo. As principais fontes
mobilizadas por Guilherme de Saint-Thierry foram os monges de Claraval, o seu
próprio testemunho e as conversas com São Bernardo. Se se pensa nos relatos sobre os
tempos de Bernardo antes de seu noviciado em Cister, a biografia reúne, em grande
medida, as conclusões de Guilherme tiradas a respeito das impressões e interpretações
de Bernardo acerca de sua trajetória e de seu relacionamento familiar.
Transparecem a perspectiva do biógrafo, as suas ênfases e escolhas operadas na
interação e no relacionamento com o seu biografado. Parte-se da hipótese de que as
representações familiares e suas formas vinculadas na Vita Prima correspondem ou se
relacionam com o habitus de Guilherme interagindo com o testemunho bernardino.
Entretanto, o autor não propõe ou expõe algo discrepante ou muito distanciado das
impressões familiares de São Bernardo. Esta hipótese ficará mais bem evidenciada na
medida em que são comparadas as representações materna e paterna à luz de
considerações acerca da relação entre guerra, monasticismo e santidade.
Para examinar a juventude de São Bernardo não se dispõe de outro documento, a
não ser a Vita Prima de Guilherme. Frisa-se que o texto é uma iniciativa individual do
abade de Saint-Thierry, revelando uma admiração ou devoção que pretende testemunhar
a graça e os dons monásticos de São Bernardo e de parte de seus familiares. Além de
elogio das práticas monásticas de Bernardo e também de sua e personagem que
Guilherme emprega com o intuito de explicar e tornar lógica a vocação de Bernardo – o
texto ressalta o poder de convencimento e de “conversão” bernardino, ilustrando sua
29
relação com seus irmãos cavaleiros. A cavalaria secular se torna no texto um elemento
antitético para o qual o estado perfeito é o abandono e o ingresso na cavalaria espiritual
ou seja, no claustro. São Bernardo é o mediador deste abandono e deste ingresso,
principalmente no meio familiar.
O biógrafo proporciona problematizar a família do Santo como um importante
espaço de socialização onde é ressaltada a tensão entre a laicidade cavaleiresca e o
monasticismo. Este espaço contribuiu para Bernardo constituir seus primeiros
posicionamentos sobre a cavalaria e as práticas culturais de seu tempo. Notadamente, as
ênfases e “obscurecimentos” de certas personagens, tal como foram formalizadas por
Guilherme, apontam não apenas as impressões de São Bernardo sobre seu
relacionamento familiar, mas as concepções militares e de santidade do próprio
Guilherme. Nesse sentido, certa distância entre o que pensava São Bernardo, na sua
maturidade, e o que pensava o abade cluniacense de Saint-Thierry sobre a relação entre
guerra, monasticismo e santidade, no momento em que a biografia era urdida.
Entre aqueles três pontos guerra, monasticismo e santidade – surge uma
distância que é minimizada no De Laude Novae Militiae. Se na Vita Prima é notável
uma oposição entre práticas cavaleirescas e monásticas, se a condição da primeira torna-
se inferior a da segunda, São Bernardo, no De Laude Novae Militiae, concebe uma
articulação e uma acomodação entre ambas sem exigir da militia um abandono total e
radical de suas práticas. Na Vita Prima transparece uma oposição entre militia e
monasticismo como será apontado que no tratado bernardino torna-se relativamente
insignificante. O Novum Militiae Genus, representação cavaleiresca do De Laude Novae
Militiae, ao propor articular práticas cavaleirescas e monásticas estabelece entre o miles
Templi e o monge um equilíbrio na hierarquia da excelência e da salvação que
Guilherme não pôde ou não conseguiu conceber.
Se Guilherme de Saint-Thierry tem como um dos principais apoios de seu relato
as reminiscências bernardinas, ele as apresenta com um colorido particular, próprio do
autor, caracterizando os sujeitos do relato sobretudo a e e o pai de acordo com
sua experiência acerca da cultura e da sociedade de seu tempo. Logo, Guilherme não
apresenta, mas traduz as relações familiares de São Bernardo e as imagens de seus
parentes estabelecendo dois lados em disputa e conflito.
30
Obviamente, essa tensão que surge na família de São Bernardo, após a sua
conversão ao monasticismo e no seu esforço de converter seus irmãos, não implica em
uma imagem negativa dos familiares. Guilherme não poderia, considerando sua amizade
com o santo, expressar uma opinião mordaz contra a família do amigo. Apesar de não
estarem em um estado considerado ótimo, e se oporem à vontade de Bernardo – exceção
feita à figura materna que sempre está do seu lado os familiares de São Bernardo
apresentam virtudes e qualidades que prenunciariam as suas escolhas e atitudes futuras.
Quanto aos pais de São Bernardo, Guilherme fala que eram honrados segundo a
dignidade do mundo, porém mais dignos e nobres eram segundo a piedade da religião
cristã
10
(VP, v. 185, t. 01: 227, trad. nossa). Apresentação familiar que revela uma
relativa semelhança ou proximidade com outros textos, como a Vita Geraldi. Santo
Odon, abade de Cluny (909-942) escreveu, por volta de 930, a vida de um santo militar,
chamado Geraldo. Este era filho de um conde da cidade de Aurillac, nascido por volta
de 835, fundador de um monastério naquela cidade e amigo de Guilherme o Piedoso
(PACAUT, 1986: 87). Segundo Odon, ele demonstrava ter uma vida muito digna,
praticando a justiça e ajudando os monges. Geraldo também demonstrava preocupação
com os pobres. Esta obra também acentua um caráter pio alicerçado na nobreza secular
e nas virtudes religiosas das pessoas apresentadas:
O homem do senhor, Geraldo, foi oriundo dessa parte das Galias que pelos antigos é
chamada de Céltica, provavelmente no território vizinho que é aruensi e caturrensi e
também albiensi, sendo verdadeiramente gerado por Geraldo e Adaltrude. Tendo carne
nobre, tão excelentemente ilustre que entre as famílias galicanas dessa raça, tanto nas
propriedades, quanto na probidade dos modos era vista como a mais generosa. É
contado, de fato, que os parentes daquele tinham para si modéstia e religião assim
como certa extensão em posse hereditária
11
. (ODON DE CLUNY. Vita Geraldi. In:
MARRIER, 1915: 67, trad. nossa).
Este documento constituirá uma relevante interlocução para nossos problemas e
análises. Geraldo não era apenas um Conde, era um miles, um cavaleiro cujas práticas
religiosas se aproximavam muito das práticas monásticas. Suas obrigações e ações
seculares foram descritas como estando em busca de uma adequação a princípios
10
... parentibus claris secundum dignitatem saeculi, sed dignioribus ac nobilioribus secundum christianae
religionis pietatem.
11
Vir igitur Domini Geraldus ea parte Galliarum, quae ab antiquis Celtica vocatur, oriundus fuit;
territorio videlicet, quod est Aruenensi atq. Catuercensi, necnon etiam Albiensi conterminu, oppido vel
villa Aureliaco, patre Geraldo, matre vero Adaltrude progenitus. Carnis nobilitate tam excellenter illustris,
ut inter Gallicanas familias eius prosapia, tam rebus, quam probitate moru, generosior videretur. Fertur
enim quod parentes illius modestiam atq. religionem veluti quadam haereditaria dote sibi tenuerint.
31
monásticos como a humildade, a caridade e a paz. Georges Duby (1989) propõe que tal
hagiografia inova na medida em que conta a vida de um nobre e propõe à nobreza um
comportamento secular mais religioso. A Vita Geraldi seria a possibilidade de uma
santidade laica. Tanto Guilherme quanto Odon estabeleceram que santidade e
religiosidade eram reforçadas pela origem secular nobre e cristã. Se aproximando de
Odon de Cluny, Guilherme demonstrava uma percepção de santidade ou sacralidade
possível ou favorecida pelas posses materiais e pela honra ou reconhecimento secular.
A obra de Odon de Cluny é um texto relevante para discutir as concepções
militares de Bernardo e também para avaliar as representações familiares da Vita Prima.
Textos separados por mais de dois séculos, mas escritos por abades da mesma Ordem
monástica – Cluny – apresentam a descrição das famílias de seus personagens principais
de maneira próxima. Além disso, Odon também estabelece uma tensão e uma distância
entre monasticismo e cavalaria. Na Vita Geraldi, o personagem principal em certos
momentos se tentado a abandonar a militia para se tornar monge, mas, devido às
responsabilidades de seu senhorio, é frustrado em suas intenções, sofrendo muito com
isso.
Elogio dos bem-feitores das Ordens monásticas e de sua generosidade, ambos os
relatos trazem o ideal de família leiga nobre e pia. Nesta família, a religiosidade
generosa e caridosa é diretamente proporcional à posse de bens e de dignidades. Há,
portanto, a tentativa de uma construção de conduta religiosa secular. Conduta que
responderia não apenas aos interesses dos autores monásticos, mas seria sintomática dos
problemas e das necessidades dos leigos em participarem de uma espiritualidade
próxima ou não destoante de seu estado (VAUCHEZ, 1995: 90-124).
Este estado pode significar, em alguns casos, a condição matrimonial ou a
condição militar e de potestas da nobreza secular. Odon e Guilherme propõem que
vocações podem florescer no seio dessas famílias nobres, pias e principalmente
generosas. Todavia, trata-se de respostas eclesiásticas e monásticas àqueles problemas e
necessidades. Assim, a sacralidade proposta nos textos é basicamente monástica. Será
evidenciado que essa sacralidade relega a um segundo plano ou a um ostracismo o
aspecto secular ou militar. Guilherme reconhece um estado militar apoiado na Bíblia e
elogia a conduta da esposa do miles Tecelino, mãe de São Bernardo, mas é preciso
32
ressaltar qual é o fim dos cavaleiros na Vita Prima e como é a conduta matrimonial
elogiada.
De fato, a breve menção das virtudes e honras seculares, tanto em um quanto em
outro autor, apontariam um relativo reconhecimento de uma laicidade de onde afloram
pessoas sagradas, tal como observou Duby (1989). Contudo, deve-se ressaltar que a
santidade laica tem sentido na proporção em que a associação da nobreza familiar
com as práticas religiosas, muitas vezes de cunho monástico. Se a santidade é
favorecida por essa posse de bens e honras, ambos os textos demonstram seu repúdio a
elas na medida em que, nos enredos, as personagens se deparam com o desconforto de
sua posse e a necessidade ou pressão de abandoná-los.
A difusão destes textos e de seus temas conduz ou tenta conduzir, em certos
casos, a imitação ou a inspiração. Destaca-se que “milagres aureolavam o túmulo de
São Geraldo de Aurilac” e Odon de Cluny intentava transformar a Vita Geraldi em um
“manual de boa conduta, feito em intenção dos poderosos” (DUBY, 1994: 119-121). Já
uma tradução portuguesa da Vita Prima de Guilherme, datada do século XIV ou XV e
realizada pelos monges cistercienses do monastério de Alcobaça, explicita a tentativa de
divulgação de seus exemplos na sociedade medieval posterior ao século XII
(GUILHERME DE SAINT-THIERRY. Vida de Sam Bernardo. In: SHARPE, 1971: 47-
91). Em um caso, haveria a tentativa de divulgar para a nobreza o exemplo de Geraldo,
no outro de difundir o de Bernardo nos meios cistercienses da Península Ibérica, o que
não descarta, ou antes, contribui, para uma apropriação ou leitura da Vita Bernardi pela
nobreza secular portuguesa.
As biografias, de certa forma, direta ou indiretamente, intentariam cativar a
nobreza secular exaltando uma difícil acomodação ou até mesmo a modificação das
práticas seculares tendo como eixo as práticas e representações familiares construídas a
partir de um matiz religioso/monástico. Guilherme de Saint-Thierry conseguiu
apreender na juventude de São Bernardo uma determinada relação entre monasticismo e
cavalaria. Portanto, é necessário problematizar como essa relação é construída e
representada na obra que resulta principalmente dos colóquios e diálogos entre os
abades de Saint-Thierry e de Claraval.
33
Figura 01: São Bernardo e sua família. Reproduzida de: Jacobus de Voragine (
Legenda
Aurea), século XV.
Division Occidentale. (http://mandragore.bnf.fr/html/accueil.html) –
Nesta imagem, São
Bernardo está ao centro, rodeado por monges de Claraval e por seus familiares. À
direita do Santo está Aleth, sua mãe, e à esquerda Tecelino, seu pai.
34
02. Aleth de Montbard e sua relação com São Bernardo
Após demonstrar os valores da família de São Bernardo, Guilherme procedeu à
descrição da figura paterna e materna. A mãe de Bernardo chamava-se Aleth ou
Adelaide. Esta tinha parentesco com as famílias mais influentes da região da Borgonha.
A presença materna nas decisões e nos caminhos escolhidos por Bernardo é algo que na
pena de Guilherme se torna determinante. A descrição das qualidades maternas e os
relatos de feitos sobrenaturais relacionados à sua figura fazem de Aleth a segunda
pessoa mais importante do relato de Guilherme. O autor conta que, durante a gravidez,
Aleth teve uma visão:
Como tivesse Bernardo em seu ventre, que foi seu terceiro filho, viu em sonhos um
presságio do futuro: ter em seu ventre um cão todo branco, ruivo pelas costas e que
ladrava. Ela muito espantada pela visão foi a um religioso que a aconselhasse...
12
(VP,
v. 185, t. 01: 227, trad. nossa).
Consultando um padre, foi informada que a criança que esperava seria um fiel
guardião da Igreja, que seu ladrar protegeria a cristandade e sua língua lamberia e
curaria suas feridas. Espécie de anunciação divina que prediz o caráter extraordinário da
criança e também de sua mãe. Esse episódio, que provavelmente foi informado a
Bernardo pela própria Aleth, tem grande proximidade com a anunciação do anjo Gabriel
a mãe de Cristo (Lc. 01, 26-32)
13
e com o encontro que ela e a mãe de João Batista,
grávidas, tiveram em certa ocasião. João Batista, no ventre materno anunciara o caráter
extraordinário da criança esperada por Maria (Lc. 01, 40-43)
14
.
É verossímil supor que a relação entre Jesus e Maria seja um dos elementos
orientadores das lembranças de Bernardo e da pena de Guilherme. Evidentemente, as
anunciações são diferentes, mas, especificamente no caso de Bernardo, revelaria a
12
Haec cum in ordine filiorum tertium Bernardum haberet in utero, somnium vidit praesagium futurorum,
catellum scilicet totum candidum, in dorso subrufum, et latrantem in utero se habere. Super quo territa
vehementer, cum religiosum quemdam virum consuluisset...
13
No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia chamada Nazaré, a uma
jovem, prometida em casamento a um homem chamado José, da família de David; e essa jovem se
chamava Maria. O anjo veio à presença dela e lhe disse: Alegra-te, ó tu que tens o favor de Deus, o
Senhor está contigo”. A estas palavras, ela ficou grandemente perturbada, e se perguntava o que podia
significar esta saudação. O anjo lhe disse: “Não temas, Maria, pois obtiveste graça junto a Deus. Eis que
engravidarás e darás à luz um filho, e lhe darás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado filho do
Altíssimo...”.
14
Ela entrou na casa de Zacarias e saudou Elisabete. Ora, quando Elisabete ouviu a saudação de Maria, a
criança pulou em seu seio e Elisabete ficou repleta do Espírito Santo. Ela deu um grande grito e disse:
“Tu és bendita mais do que todas as mulheres; bendito é também o fruto do teu ventre”!
35
interpretação de um presságio, intuição ou sonho orientado por apropriações bíblicas ou
mesmo por uma leitura da tradição hagiográfica. O importante a perceber é como a
relação mãe/filho cumpre um papel central na Vita Prima, e provavelmente nas
reminiscências bernardinas. Esta relação ganha maior destaque pelo colorido bíblico da
relação Maria/Jesus.
Foram encontradas duas vidas de santos que revelam também a presença dessa
anunciatio. Na vida de Santo Arnulfo que viveu por volta do final do século XI um
anjo apareceu a sua mãe quando ela estava grávida, ordenando que desse o nome de
Cristóvão ao filho. Entretanto, o chefe da linhagem lhe impôs o próprio nome e fez dele
um cavaleiro (DUBY, 1988: 95-96). De acordo com o relato hagiográfico da vida de Ida,
Condessa da Borgonha escrito por volta de 1130 em sua adolescência, ela sonhara
que vira o sol descer do céu e repousar por instantes em seu seio (DUBY, 1988: 101).
Sendo mãe de Godofredo de Bulhão, Defensor do Santo Sepulcro, e de Balduíno I, rei
de Jerusalém, este sonho prenunciara os seus rebentos ilustres.
Quanto às práticas maternas de Aleth, elas são misturadas às práticas monásticas.
Elas explicam e prenunciam o destino de seus filhos:
A mãe Aleth, oriunda do castelo chamado Montbard, na sua ordem tinha regra
apostólica, submissa ao marido, sob ele, segundo o temor de Deus, regia sua casa,
dando-se as obras da misericórdia e criando seus filhos em toda boa disciplina e
ensinamento. Esta gerou, não tanto por seu marido quanto por Deus, sete filhos: seis
homens e uma mulher. Os homens, ela prometeu de fazê-los monges e a mulher monja.
Logo que cada um nascia ela o tomava em suas mãos e oferecia ao Senhor por qual
coisa não queria consentir que dessem a criar para amas alheias, mas com o seu leite
os criava para neles infundir e lançar a natureza da bondade maternal. Depois que
deixavam de mamar não os criava com comidas delicadas, mas acostumava-os a
comidas grosseiras e gerais, juntando-os e acostumando-os a vida monacal a que
desejava enviá-los
15
. (VP, v. 185, t. 01: 227, trad. e grifos nossos).
A proximidade da descrição da maternidade de Aleth com a da citada
Condessa Ida é notada. Esta também decidira amamentar, ela própria, seus filhos. O ato
da condessa da Borgonha teria como objetivo evitar que “através do leite de outro peito,
15
Mater Aleth, ex castro cui nomen Mons-Barrus; et ipsa in ordine suo, apostolicam regulam tenens,
subdita viro, sub eo secundum timorem Dei domum suam regebat, operibus misericoridae insistens, filios
enutriens in omni disciplina. Septem quippe liberos genuit non tam viro suo quam Deo, sex mares,
feminiam unam: mares omnes monachos futuros, feminam sanctimonialem. Deo namque, ut dictum est,
non saeculo generans, singulos mox ut partu ediderat, ipsa manibus propriis Domino offerebat. Propter
quod etiam alienis uberibus nutriendos committere illustris femina refugiebat, quasi cum lacte materno
materni quodammodo boni infundens eis naturam. Cum autem crevissent, quandiu sub manu ejus erant,
eremo magis quam curiae nutriebat, non patiens delicatioribus assuescere cibis, sed grossioribus et
communibus pascens; et sic eos praeparans et instituens, Domino inspirante, quasi continuo ad eremum
transmittendos.
36
eles fossem ‘contaminados’ e ‘conduzidos a maus costumes’” (DUBY, 1988: 101-102).
Destaca-se que a entrega dos filhos a amas de leite era uma prática comum da
aristocracia, sendo notável e insólito a decisão materna de amamentá-los. Esta iniciativa
é um ato que simboliza e traduz o amor e a dedicação maternal enquanto abandono de si
e entrega incondicional aos rebentos. Essa entrega completa à maternidade esboça-se
também na preocupação de Aleth em conduzir a educação de seus filhos, pelo menos
até certo período.
A anunciação e a amamentação, analisadas nos relatos de Guilherme e
comparadas a outros textos, enfatizam a figura da boa mãe. A maternidade, ou melhor,
aquilo que os autores, como o biógrafo de São Bernardo, concebem como a maternidade
virtuosa, proporciona a mulher uma espiritualidade que tem como referência primordial
o exemplo da mãe de Deus. Sonhos premonitórios e maternidade afetuosa caracterizam
Aleth, da mesma forma que a condessa Ida, como uma espécie de mãe bíblica. Se a
proximidade com Maria não é explícita, mas deduzida pela representação da
personagem, a proximidade entre Aleth e a mãe do profeta Samuel (1Sm. 24-28)
16
é
bem exposta por Guilherme de Saint-Thierry. Ambas as mães haviam prometido seus
filhos ao serviço da religião:
Em seguida, quando nasceu [Bernardo], não o ofereceu a Deus no modo que aos
outros filhos fazia, mas assim como se de Santa Ana, mãe de Samuel, a qual, quando
teve o filho que pediu ao Senhor, logo o ofereceu no tabernáculo que o servisse para
sempre: assim ela o ofereceu a Igreja de Deus
17
. (VP, v. 185, t. 01: 228, trad. nossa).
A aproximação com Ana e Maria proporciona a Aleth uma espiritualidade
materna com um colorido monástico. Se os leigos – sobretudo os cavaleiros – se
depararam com dificuldades em encontrar uma espiritualidade apta a aceitar sua
condição, são perceptíveis os obstáculos “suplementares” para a espiritualidade
feminina (VAUCHEZ, 1995: 99). O conceito de espiritualidade, neste trabalho, pode ser
compreendido como “uma relação com o divino susceptível de efeitos purificadores”
16
Quando o menino [Samuel] desmamou, ela o fez subir consigo e levando três touros, uma medida de
farinha e um odre de vinho, introduziu-o na casa do Senhor, em Shilô. Ali o menino passou a servir.
Imolaram o touro e conduziram a criança a Eli. Haná lhe disse: “Por favor, meu senhor! Certo como Tu
vives, meu senhor, eu sou aquela mulher que esteve aqui, junto de Ti, orando ao Senhor; é por este
menino que eu orava, e o Senhor me concedeu o pedido que lhe fiz. Eu, por minha vez, o cedo ao Senhor.
Para todos os dias da sua vida, ele é cedido ao Senhor. E ali, diante do Senhor, ele se prosternou.
17
Mox enim ut felici partu edidit, non modo obtulit eum Deo, sicut de aliis agere consueverat; sed, sicut
legitur de sancta Anna matre Samuelis, quae petitum a Domino et acceptum filium in tabernaculo ejus
destinauit perpetuo serviturum: sic et ipsa eum in Ecclesia Dei acceptabile obtulit munus.
37
(VAUCHEZ, 1987: 287). Evidentemente, essa relação é apreendida e constituída de
diversas formas, em diversos momentos e se compõe como um dos referentes
orientadores de condutas políticas e sociais.
Apropriações do livro de Gênese, que constroem uma imagem pejorativa de Eva
(ZUBER-KLAPISH, 2002: 138-142), atribuem à mulher qualidades que a estabelecem
em um vel inferior ao homem (DUBY, 1988: 21-23). Responsabilizada pela queda do
Paraíso e tendo uma origem secundária a de Adão, a mulher teve uma posição social
fundamentada por exegeses misóginas.
Além disso, na medida em que impede os homens casados de abraçarem a vida
monástica, a mulher é encarada como um obstáculo para a santidade masculina. Na Vita
Prima, se virtudes familiares e maternas são postas em primeiro plano, há a figura da
esposa como entrave ao monasticismo do cônjuge. A única alternativa para a esposa é o
abandono do marido e da família em troca do monastério. Essa visão do casamento
como empecilho fica evidente quando Guido, irmão mais velho de São Bernardo,
aquiesce a seus conselhos para abandonar a vida secular:
Guido, irmão primogênito deles, era casado, homem grande e mais arraigado no
mundo de todos os outros. Este primeiramente duvidou um pouco, mais logo
entendendo e cuidando qual coisa era, deu consentimento na conversão, assim, porém,
se a sua mulher aprovasse e outorgasse. Porque era jovem e de nobre linhagem e tinha
filhos pequenos que criava, o que parecia ser impossível ela permitir, mas Bernardo
tendo esperança na misericórdia do Senhor sem duvida lhe prometeu que ou sua
mulher consentiria ou morreria
18
. (VP, v. 185, t. 01: 232, trad. e grifos nossos).
A esposa de Guido, de início, não consentira na conversão do marido. Então,
sendo acometida por uma enfermidade grave, segundo Guilherme, ela não só permitiu a
conversão do marido, como ela própria tomou a companhia “de santas mulheres”,
tornando-se monja. Guilherme apresenta Bernardo como que prevendo e até mesmo
desejando a enfermidade da esposa do irmão. A partir desse exemplo, observa-se que, o
elemento feminino é para São Bernardo, na pena de Guilherme, um entrave a vocações
e conversões.
Se a figura da esposa é problemática, as condutas de Aleth mostram-se como
“simulacros” de virtudes monásticas tal como a humildade, a castidade e o abandono de
18
Guido primogenitus fratrum, conjugio jam alligatus erat, vir manus, et prae aliis jam in saeculo
radicatus. Hic primo paulum haesitans, sed continuo rem perpendens et recogitans, conversioni consensit,
si tamen conjux annueret. Verum id quidem de juvencula nobili, et parvulas gilias nutriente, pene
impossibile videbatur. At Bernardus de misericorida Domini spem concipiens certitorem, incunctanter ei
spopondit aut consensuram feminam, aut celeriter morituram.
38
si. Estes simulacros fazem de Aleth uma esposa aceitável e irrepreensível no relato.
Guilherme tem uma leitura monástica e ascética das qualidades e práticas de Aleth.
Logo, práticas femininas e maternas legítimas se tornam secundárias ou dependentes,
em uma interpretação monástica, de exemplos veneráveis apropriados e relacionados
com o ascetismo ou um semi-ascetismo:
E suae, criados fielmente seus filhos e acabadas todas as coisas pertencia à criação
deles, com bem-aventurança se foi deste mundo para o Senhor. Cuja vida não é para
deixar de dizer: Como vivesse aqui por muito tempo com seu marido honestamente e
justamente segundo a justiça e honestidade deste mundo e segundo a fé e lei do
casamento; por certos anos, nos quais, antes da sua morte, criou os filhos, assim como
ela pode e como convinha à mulher que estava sob o poderio do marido e que não tinha
poder sobre o próprio corpo, a própria precedeu a todos. Ela em sua casa e na
profissão do casamento e no meio do século foi vista, não por pouco tempo, por imitar
a vida eremítica ou monástica, no comer pouco, nos vestido vil, para se abdicar das
pompas e riquezas e remover de si os cuidados seculares e entregar-se aos jejuns,
vigílias e orações. De resto, minguava com esmolas e variadas obras de misericórdia
ou remissão
19
. (VP, v. 185, t. 01: 229-230, trad. e grifos nossos).
Ao despojamento, à humildade e ao abandono das vaidades soma-se a castidade.
Aleth foi uma mulher fértil, afinal teve sete filhos. Entretanto, não tendo controle sobre
o próprio corpo e abandonando-se ao poderio do marido, ela manifestou uma recusa dos
prazeres carnais. O ato sexual teria apenas o objetivo de procriar, de “repovoar o
Paraíso”, e não proporcionar prazer. Ao exaltar a mãe Aleth, destacando suas vocações,
não em Guilherme uma recusa do sexo e da procriação. Há apenas a idéia de que
quando a missão reprodutora da mulher está cumprida, ela deve seguir uma conduta
casta.
Enquanto figura central, de comportamento familiar inquestionável e de feitos
miraculosos ou insólitos, ela é exemplo declarado para outras damas. A difusão da
imagem de Aleth fica bem evidente na ocasião em que a irmã de São Bernardo decide
procurá-lo em Claraval:
19
Mater ejus liberis fideliter educatis et vias saeculi ingredientibus, quasi peractis omnibus quae sua
erant, feliciter migrauit ad Dominum. De qua nequaquam praetereundum est, quod cum multo tempore
vixisset cum viro suo honeste et juste secundum justitias et honestates saeculi hujus, et legem fidemque
conjugii; per aliguot ante obitum suum anos, in eo ad quod nutrire filis videbatur, prout potuit et licuit
mulieri sub potestate viri constituae, nec habenti proprii corporis potestatem, omnes ipsa praevenit.
Etenim in domo sua, et in professione conjugali, et in medio saeculi eremiticam seu monasticam vitam
non parvo tempore visa est aemulari, in victus parcitate, in vilitate vestitus, delicias et pompas saeculi a se
abdicando, ab actibus et curis saecularibus, in quantum poterat, se subtrahendo, insistendo jejuniis,
vigiliis, et orationibus; et quod minus assumptae professionis habebat eleemosynis et diversis operibus
misericordiae redimendo.
39
A irmã deles [São Bernardo e seus irmãos], casada e entregue ao mundo,, andando em
perigo das riquezas e deleites mundanos, uma vez inspirou Deus a ela que viesse ver
seus irmãos, a qual, vindo para ver seu venerável irmão, chegou à porta do mosteiro
com soberba comitiva e aparato. Aquele, detestando e maldizendo, como a rede do
diabo para enlaçar e tomar as almas, o quis sair para vê-la. Pois, ela, confusa e
muito ofendida, como nenhum de seus irmãos se dignificasse vir ao seu encontro, e
como fosse censurada por seu irmão André, o qual encontrara junto à porta do
monastério, que, pelo aparato das vestimentas que trazia, era esterco envolvido, toda
em lágrimas disse: “Se sou pecadora, Cristo morreu por tais. E porque eu sou
pecadora, portanto venho requer e demandar conselho e colóquio de bons. E se meu
irmão despreza a minha carne, não despreze o servo de Deus a minha alma. Venha e
mande-me, e, qualquer coisa que mandar, estou disposta a fazer”. Portanto, depois, o
que tem a promessa, seu irmão, saiu para ela com seus irmãos. Porque não a poderia
separar do marido começou a lhe interdizer de toda glória do mundo na afetação das
vestimentas e em todas as pompas e curiosidades do século, prescreveu a ela o modo e
forma da vida de sua e, na qual muito tempo vivera com o marido, e desta maneira
se despediu dela
20
. (VP, v. 185, t. 01: 244-245, trad. e grifos nossos).
Aleth é uma personagem que tem o papel de auxiliar São Bernardo nas suas
obras de conversão. Seja em vida ou depois de morta, o Santo mantém uma forte
relação com a figura materna. Pensando na ligação de São Bernardo com sua mãe
através de outras fontes, é novamente percebida a presença Maria. Em uma igreja
templária há algumas representações iconográficas que mostram Bernardo no culto
marial (Figura 02). Além disso, o próprio Guilherme destacara um tratado escrito pelo
santo em louvor de Cristo e de Maria. Ou seja, um escrito que trata da relação mãe/filho
modelo. A devoção de Bernardo a Maria e a aproximação que sua mãe tem com ela no
relato de Guilherme proporcionam avaliar e problematizar a representação de Aleth e
sua presença na vida do Santo. A devoção à Maria pode ser considerada como que
proporcionada ou favorecida pela influência materna na vida de Bernardo. Se para
diversas pessoas, diversas razões conduziriam a um grande respeito pela mãe de Cristo,
para São Bernardo, Aleth seria um elemento importante para despertar sua veneração.
20
Soror quoque eorum in saeculo nupta et saeculo dedita, cum in divitiis saeculi periclitaretur, tandem
aliquando inspirauit ei Deus ut fratres suos visitaret. Cumque venisset quasi visura venerabilem fratrem
suum, et adesset cum comitatu superbo et apparatu, ille detestans et exsecrans eam tanquam rete diaboli
ad capiendas animas, nullatenus acquievit exire ad videndum eam. Quod audiens illa, confusa, et
compuncta vehementer, cum ei nullus fratrum suorum occurrere dignaretur, cum a fratre suo Andrea,
quem ad portam invernerat monasterii, ob vestitum apparatum stercus involutum arqueretur, tota in
lacrymas resoluta: “Et si peccatrix sum”, inquit, “pro talibus Christus mortuus est. Quia enim peccatrix
sum, idcirco consilium et colloquium bonorum requiro. Et si despicit frater meus carnem meam, ne
despiciat servus Dei animam meam. Veniat, praecipiat: quidquid praeceperit, facere parata sum”. Hanc
promissionem tenes, exiit ad eam cum fratribus suis frater ejus. Et quia eam separare a viro non poterat,
primo verbo omnem ei mundi gloriam in cultu vestium, et in omnibus saeculi pompis et curiositatibus
interdixit; formam vitae matris suae, in qua multo tempore vixit cum viro, ei indixit, et sic eam a se
dimisit. Illa vero obedientissime parens praecepto, rediit ad propria, mutata repente secundum
omnipotentiam dexterae Exclesi. Stupebant omnes adolescentulam nobilem, delicatam, subita mutatione
in habitu et victu, in medio saeculi vitam ducere eremiticam: instare vigiliis e jejuniis, et continuis
orationibus, et ab omni saeculo prorsus se facere alienam.
40
São Bernardo não era o filho mais velho, o que abriria seu caminho para a
carreira religiosa, sob a influência de Aleth. Além disso, São Bernardo foi uma pessoa
com frágil saúde. Guilherme de Saint-Thierry mencionou uma enfermidade que São
Bernardo sofrera em Claraval
21
. Além disso, o mesmo hagiógrafo relatou um fato no
qual São Bernardo, na juventude, era acossado por dores de cabeça: Como, ainda
rapazinho, fosse abalado por grave dor de cabeça, caiu no leito. Por outro lado, séria
mulher veio junto a ele para de algum modo mitigar a dor por meio de encanamentos
22
.
(
VP, v. 185, t. 01: 228, trad. e grifos nossos).
São Bernardo recusara ser tratado por tais encantamentos, confiando apenas em
sua fé. Tal atitude piedosa, segundo Guilherme, o teria milagrosamente curado. Se a
saúde bernardina apresentava problemas desde a infância, a historiografia e a
hagiografia de Guilherme de Saint-Thierry mostram a possibilidade de que a
austeridade e os rigores de sua ascese contribuíram para debilitá-lo ainda mais na
maturidade. O fato de o Santo apresentar uma frágil saúde é relevante na medida em que
consideramos a maior proximidade materna que tal fato teria proporcionado (PACAUT,
1993: 56). Esta característica tornaria o Santo mais susceptível à influência da
espiritualidade e da piedade de Aleth do que seus outros irmãos (AUBÉ, 2003: 33).
Como sugere Jacques Le Goff (1965: 357), o jovem, sob pena de sair da
influência feminina, onde sua puerilidade não seria mais levada a sério, era lançado nas
fadigas rurais ou na aprendizagem militar. Contudo, São Bernardo, pelos seus
problemas, se manteria mais afastado da aprendizagem militar e da influência paterna.
Observamos que um miles, além de outras virtudes, deveria ter uma boa condição
física
23
(BLOCH, 1982: 325-326), o que não seria o caso de São Bernardo. Considera-se
a hipótese de que Bernardo, por sua fragilidade não estaria apto às atividades militares.
A saúde do Santo nos permite problematizar os laços familiares tecidos com sua mãe e
21
Ver páginas 26 e 27.
22
Cum adhuc puerulus gravi capitis dolore vexaretur, decidit in lectum. Adducta autem ad eum est
muliercula, quasi dolorem mitigatura carminibus.
23
Na citada Vita Geraldi, transparece a importância da condição física para o exercício do ofício
militar: Passada a infância, como agora ele tivesse se desenvolvido, o vigor dos membros consumiu os
humores nocivos do corpo. Mas, tão veloz foi feito, que atravessasse com um salto o dorso dos cavalos. E
porque fortemente agilizava pelas qualidades do corpo, queria acostumar-se à cavalaria armada. (VG:
69, trad. nossa). Texto original: Transmissa pueritia cum iam adolesceret, membrorum robur nociuum
corporis consumpsit humorem. Tam velox autem factus est, ut equorum terga facili faltu transuolare. Et
quia viribus corporis fortiter agiliscebat, armatam militiam assuescere querebatur.
41
com seu pai, além de permitir avaliar a sua ligação com a atividade militar, cara à
nobreza secular.
Ressaltada a importância da relação mãe/filho, influenciada pela condição física
do Santo, procuramos demonstrar que a tripla figura de Aleth e, esposa e semi-
monja pautada pelas práticas e intenções monásticas, oferecem a ela, como foi dito
anteriormente, um lugar de destaque no relato de Guilherme de Saint-Thierry. Se a
esposa de Guido e a irmã de São Bernardo são repreensíveis, Aleth apresenta uma outra
imagem de mulher. Obviamente, o elogio às práticas de Aleth tem sentido na medida
em que elas se aproximam, espontaneamente, do monasticismo. Guilherme mostra-se
coerente ao abordar as mulheres, pois o único caminho legítimo para elas é uma conduta
semi-ascética no casamento ou o abandono total do mundo. A diferença que ocorre
entre elas é a aceitação espontânea da mãe do biografado e a resistência, inútil, das
demais.
Comparando com outras fontes citadas e em diálogo com a historiografia,
identifica-se como plausível a idéia da grande proximidade entre São Bernardo e sua
mãe. A descrição do relacionamento de São Bernardo com Aleth é feita por intermédio
de signos que trazem afinidade com a Sagrada Família. As reminiscências de São
Bernardo ganham sentido e compreensão na mobilização de representações bíblicas e
monásticas disponíveis a Guilherme de Saint-Thierry. Essas representações informam a
relação de Bernardo e sua mãe descrevendo seu caráter como fundamental para a
trajetória do monge, pois, antes do monge, ninguém entre os familiares próximos havia
manifestado uma vocação religiosa, salvo Aleth.
As representações construídas por Guilherme de Saint-Thierry, as observações
feitas acerca da saúde de Bernardo e da iconografia da igreja templária, dentre outros
elementos, demonstram como a relação materna proporcionou ao abade de Claraval
uma perspectiva social e cultural muito marcante. Em outras palavras, Aleth possibilitou
ao Santo o contato com referências e escolhas que contribuíram para a construção de
sua perspectiva social e cultural, sendo representada de forma notável, ascética e
santificada. Essa primeira perspectiva bernardina é algo que se explicitou mais
fortemente na sua interação com seu pai e seus irmãos.
42
Figura 02: Retable de Saint Bernard. Reproduzida de DEMURGER, 2005: 337.
43
03. A representação paterna e a conversão dos irmãos milites de São Bernardo ao
monasticismo
Identificamos a recusa da vida secular na juventude de Bernardo. Esta recusa
não é apenas explicitada por seus feitos na juventude, ou pela influência materna tal
como foram descritos por Guilherme mas, sobretudo, pela escolha de ingressar na
Ordem Monástica de Cister por volta do ano de 1112. Esta escolha é rica em
significados para pensar a sua concepção de cavalaria e o De Laude Novae Militiae.
Contudo, por enquanto, observar-se-á o seguinte: por sua condição de saúde, por sua
posição dentro da família e pela religiosidade materna, São Bernardo recusou a
condição militar uma recusa que se verificará como muito complicada. Nesse sentido
é profícuo indagar: qual é a posição de Bernardo, na sua juventude, frente à militia? Ou
melhor, como o Santo se relacionava com os cavaleiros? Especificamente: qual a sua
relação com seu pai e seus irmãos milites? Existe uma disparidade entre as
representações de Aleth e de Tecelino, ou entre a mulher mãe, esposa, semi-monja e
o pai miles. Mãe e pai não são apresentados da mesma forma ou com a mesma
intensidade.
Tecelino era um castelão, oriundo da média nobreza bourguinhã, vassalo e
conselheiro do Duque da Borgonha (GIOVANDO, 1944: x-xi). Já a sua descrição na
Vita Prima se restringe a alguns aspectos que descrevem a imagem do miles fiel e bom
vassalo:
O pai dele, Tecelino, era cavaleiro de legítima e antiga cavalaria, cultor de Deus e
tenaz de justiça. Usava a cavalaria segundo a doutrina evangélica, não fazendo
crueldade nem maldade alguma, contentando-se com os estipêndios que lhe davam
seus senhores e rendas que tinha, as quais lhe abastavam para todas suas boas obras.
Em tal modo servia com conselho e armas a seus senhores temporais, afim de que não
negligenciasse entregar ao seu Senhor Deus o que devia
24
. (VP, v. 185, t. 01: 227, trad.
e grifos nossos).
O pai de São Bernardo encarnava a figura dos militares evangélicos que
perguntaram a João Batista sobre o que fazer para terem uma boa conduta. Eles
receberam a resposta de que bastaria não fazer violência, nem mal a ninguém e que se
24
Pater ejus Tecelinus, vir antiquae et legitimae militiae fuit, cultor Dei, justitiae et tenax. Evangelicam
namque secundum instituta praecursoris Domini militiam agens, neminem cocutiebat, nemini faciebat
calumniam, contentus stipendiis suis, quibus ad omne opus bonum abundabat. Sic, consilio et armis
serviebat temporalibus dominis suis, ut etiam Domino Deo suo non negligeret reddere quod debebat.
44
contentassem com seu soldo (Lc. 03, 14)
25
. Se para Aleth o exemplo de Maria e da mãe
de Samuel são as principais referências bíblicas, para Tecelino o os milites
interlocutores de João Batista.
A representação militar de Tecelino apresenta três virtudes fundamentais: o
contentamento com o soldo não ambicioso –, a recusa da tirania e a fidelidade a seus
senhores. Logo, Tecelino não introduzia a confusão no edifício social e político,
cumprindo os deveres básicos de um vassalo (GANSHOF, 1989: 117-126) auxilium et
consilium
26
evitando a desobediência quanto a seus senhores e os excessos ou
extrapolações de seus poderes sobre os inermes
27
. Ressalta-se que a observância
religiosa não é esquecida por Guilherme e que a condição secular de Tecelino era
adaptada a ela.
Apesar de suas qualidades, Tecelino não alcança uma santidade implícita tal
como Aleth. O miles não realiza eventos miraculosos. Comparado à imagem de Aleth, o
relato de Guilherme quanto a Tecelino é lacônico. As referências que dizem respeito ao
pai de São Bernardo restringem-se a cerca de quatro ou cinco passagens pouco densas.
A passagem mencionada anteriormente se constitui a mais extensa e com maior
quantidade de detalhes.
Em certo episódio, o autor conta que o irmão mais novo de São Bernardo,
chamado Everaldo, não tendo idade ainda para se “converter”, ou seja, se tornar monge,
havia ficado com seu pai. Mas, assim que alcançara idade suficiente, ingressou em
Claraval, monastério sob a regência de São Bernardo. É dito que “nem seu pai, nem
seus parentes e amigos” puderam demovê-lo de seu intento. Sublinha-se que Tecelino
tentara dissuadir seu filho mais novo de converter-se ao monasticismo. Everaldo era o
único filho de Tecelino que até aquele momento não havia se tornando monge. Logo,
ele deveria se opor a isso, considerando, entre outras coisas, que suas propriedades
ficariam sem herdeiros.
O pai de São Bernardo é o único familiar próximo que não se convertera
imediatamente como os irmãos e certos tios ou mostrara afinidade com o
25
Militares lhe perguntavam: “e nós, que devemos fazer”? Ele lhes disse: “Não façais violência, nem mal
a ninguém, e contentai-vos com o vosso soldo”.
26
Auxílio e conselho – o auxilio poderia ocorrer através de bens materiais ou de apoio militar.
27
Desarmados: segundo os Concílios de Paz do século XI eram os mercadores negociando, as mulheres,
os clérigos e os camponeses que estivessem prestando algum serviço no campo.
45
monasticismo tal como Aleth. Tecelino ficara em casa e foi para Claraval muito
tarde, onde morreu em “boa velhice”. Ressalta-se que Tecelino fora para Claraval
somente quando alcançou a senilidade. O editor da Patrologia Latina, Migne (1855:
243-244), sublinhou que o monge Tecelino Tecelinus monachus “falecera nos idos
de abril” do ano de 1121. Antes disso, fazia um ano que ele estava vivendo no
monastério de Bernardo (GIOVANDO, 1944: xii). A conversão de Tecelino é, portanto,
certa, mas tardia, ficando durante muito tempo em sua casa se ocupando de seus
afazeres e responsabilidades seculares, tendo em vista que os cuidados com as
propriedades familiares ficaram inteiramente sob sua alçada.
Relacionando a resistência de Tecelino quanto à conversão de Everaldo e seu
relativo atraso para entrar em Claraval, Guilherme deixa entrever um aspecto importante
daquele miles: o pai de São Bernardo considerava seu ofício, suas práticas militares
como dignas e aptas a conduzirem à salvação. Tecelino aparece como uma personagem
distinta no texto. Vários milites cumprem uma ação de deposição de seu estado militar
para abraçar o monasticismo. A conversão destes é rica em detalhes. A figura paterna
não cumpre explicitamente tal ato. A participação e a intervenção de Tecelino para
conseguir ao filho uma doação onde este estabeleceria o monastério de Claraval não são
descartadas (PACAUT, 1993: 60). Mas, consentir que todos seus varões abandonassem
a vida secular e militar parece ser estranho ao miles Tecelino.
Pela leitura e análise da figura de Tecelino, na biografia, o cavaleiro está
afastado do monge e o mantém com ele alguma relação mais íntima ou afetuosa, ao
contrário da mãe semi-monja. Ou seja, Guilherme de Saint-Thierry traduz uma oposição
entre militia e monasticismo através de protocolos de leitura que destacam certos
personagens e minimizam a atuação de outros.
É preciso não confundir afastamento, ou uma afinidade discutível, com
hostilidade. O que se percebe pela leitura da Vita Prima é a maior identificação de
Bernardo com sua mãe do que com seu pai. Esse afastamento fica bem evidenciado na
medida em que se consideram os outros milites do relato, principalmente os irmãos de
Bernardo. É relevante observar que, durante o relato hagiográfico, a grande maioria dos
cavaleiros que mantêm algum contato com São Bernardo abandona as armas. Essa
conversão, para muitas personagens, não é algo espontâneo, mas que apresenta uma
forte pressão de São Bernardo, ajudado por visões, presságios ou profecias. Além dos
46
protocolos de leitura referidos acima, Guilherme aponta uma oposição entre
monasticismo e cavalaria personificada na oposição entre a fraternidade e a
maternidade:
Quando os irmãos e aqueles que carnalmente o amavam perceberam que ele se
ocupava da conversão, começaram a agir, em todos os modos, de que pudessem
afastar a alma dele para o estudo das letras, e o implicar estreitamente no mundo pelo
amor da ciência secular. Pois certamente, como ele costuma confessar, por algum
tempo seus passos foram retardados por tal tentação. Mas a memória da mãe santa
não deixava de constranger seu espírito, em tal modo que lhe parecia amiúde que a via
queixosa, pois não o criara desta maneira tão ternamente para as frivolidades, nem o
ensinara sob tal esperança. Desse modo, indo ele ver seus irmãos, os quais estavam
com o Duque da Borgonha no cerco de um castelo que chamam Granceiu, começou
se angustiar veementemente neste pensamento. Achou em meio do caminho uma igreja,
nela orou com muitas lágrimas, alçando as mãos ao céu e lançando seu coração ante a
presença do seu Senhor Deus
28
. (VP, v. 185, t. 01: 231-232, trad. e grifos nossos).
Passagem significativa que introduz um problema na família bernardina. De um
lado, seus irmãos milites, e provavelmente seu pai, tentando dissuadi-lo de suas
intenções ao perceberem que ele se ocupava da conversão das pessoas ao monasticismo.
De outro lado, surge novamente a figura materna, em aparição fantasmagórica, adversa
às “burlas e vaidades deste mundo”. Compreendem-se essas vaidades como a busca da
honra, a ambição, o gosto pela aparência, pelas armas, pelo luxo e riquezas
(BARTHÉLEMY, 1994: 40). Tais características, segundo a historiografia, se
identificariam com a cavalaria. O clero, especificamente o regular, tentou se opor a estas
e propor outras formas de conduta, senão a vida monacal.
Ao apresentar as oposições dos familiares diante do esforço de conversão e a
situação em que eles se achavam apoiando o Duque da Borgonha no cerco ao castelo
Graceiu Guilherme procura demonstrar o arraigamento” da família de São Bernardo
no mundo sobretudo da parte masculina. Mesmo que Tecelino e seus irmãos tenham
uma observância religiosa admirável, eles continuam “no século”, combatendo,
ganhando honras. Mais importante do que exercer essas ações é a impressão de que eles
28
Ubi vero de conversione tractantem fratres ejus, et qui carnaliter eum diligebant, persenserunt;
omnimodis agere coeperunt ut animum ejus ad studium posset divertere litterarum, et amore scientiae
saecularis saeculo arctius implicare. Qua nimirum suggestione, sicut fateri solet, propemodum retardati
fuerant gressus ejus: sed matris sanctae memoria importune animo ejus instabat, ita ut saepius sibi
occurrentem videre videretur, conquerentem et improperantem, quia non ad hujusmodi nugacitatem tam
tenere ducauerat, non in hac spe erudierat eum. Demum cum aliquando ad fratres pergeret, in obsidione
castris, quod Granceium dicitur, cum duce Burgundiae constitutos, coepit in hujusmodi cogitatione
vehementius anxiari. Inventaque in itinere medio ecclesia quadam, divertit, et ingressus orauit cum multo
imbre lacrymarum, expandens manus in coelum, et effundens sicut aquam cor suum ante conspectum
Domini Dei sui.
47
as consideravam como legítimas. O próprio Bernardo confessou para Guilherme que,
por certo tempo, vivera “nessas tentações do mundo”. Isso permite propor que São
Bernardo, em breve período de sua juventude, apesar de sua saúde debilitada, manteve
uma vida cavaleiresca ou próxima da cavalaria (PACAUT, 1993: 56).
Percebe-se a oposição entre duas práticas sociais, representada ou simbolizada
nas relações familiares. Essa tensão enfatiza as dificuldades da vocação de São
Bernardo e objetivam engrandecer as conversões ulteriores junto a sua fraternitas. Mais
do que elogiar as virtudes de São Bernardo, Guilherme de Saint-Thierry preza a
conversão ao monasticismo e as virtudes das práticas que lhe subjazem. Os milites do
relato, principalmente os irmãos e um tio do Santo, que se chamava Galdrico, encarnam
esse elogio da conversão na medida em que são obrigados e pressionados a reconhecer
que o claustro conduz a uma vida melhor que a cavalaria:
O primeiro de todos Galdrico, o mais velho deles, sem resistência ou excitação, pelos
pés, como dizem, caiu na sentença do sobrinho, e no consenso da conversão, homem
honesto e poderoso no mundo e conhecido pela glória da cavalaria secular, senhor do
castelo no território Eduensi que chamam Tuilio
29
. E logo depois, Bartolomeu, o mais
jovem dos outros irmãos e ainda não cavaleiro, deu, sem dificuldade, na mesma hora,
consentimento ao salutar aviso. Além disso, André, mais novo que Bernardo e naquele
tempo recentemente cavaleiro, admitia com dificuldade as palavras do irmão, aque
uma vez começou a bradar subitamente e disse: “Vejo minha mãe”. A qual visivelmente
lhe apareceu com a face clara, sorrindo e agradecendo o propósito dos filhos. E por
isso, o próprio deu consentimento e de tirano do mundo foi feito cavaleiro de Cristo
30
.
(VP, v. 185, t. 01: 232, trad. nossa).
O fantasma de Aleth aparece novamente a um de seus filhos com o intento de
convencê-lo a abandonar a cavalaria. Guilherme afirma que Aleth desejava que seus
filhos se tornassem monges, logo, não deveria concordar com a opção cavaleiresca que
certos dentre eles fizeram. A anunciação do caráter extraordinário de São Bernardo – ou
um presságio, intuição ou imaginação apresentada com tal e a descrição de aparições
fantasmagóricas oferecem ao leitor uma espécie de prova de sacralidade que atesta a
santidade da mãe. Logo, talvez, a aparição do fantasma de Aleth, no momento em que
29
Touillon.
30
Primus omnium Galdricus avunculus ejus, absque dilatione aut haesitatione, pedibus, ut aiunt, ivit in
sententiam nepotis, et consensum conversionis, vir honestus et potens in saeculo, et in saecularis militiae
gloria nominatus, dominus castri in territorio Aeduensi, quod Tuillium dicitur. Continuo etiam
Bartholomaeus occurrens, junior caeteris fratribus, et nectum miles, sine difficultate eadem hora
salutaribus monitis dedit assensum. Porro Andreas, Bernardo etiam ipse junior et novus eo tempore miles,
verbum fratris difficilius admittebat, donec subito exclamauit: “Video”, inquit, matrem meam”.
Visibiliter siquidem ei apparuit, serena facie subridens, et congratulans proposito filiorum. Itaque et ipse
continuo manus dedit, et de tirone saeculi factus est miles Christi.
48
Bernardo tenta convencer seu irmão, enfatize um aspecto superior e divino do oficio
monástico frente a cavalaria, pois neste momento, André se convenceu e se tornou
monge.
A documentação encontrada sobre a “maneira de fazer ou tornar-se cavaleiro”
mobiliza termos como acostumar-se a cavalaria armada (VG: 69, trad. nossa). Outros
documentos, como o convite feito pelo Conde de Pontigny ao Bispo Lamberto de Arras
para a cerimônia de adubament do filho do rei Felipe I, Luis futuro rei Luis VI em
1098, emprega expressões ordenar e ornar com as armas militares, promover e ordenar
à cavalaria
31
(GUIDO DE PONTIGNE. Carta ao Bispo Lamberto de Arras. In:
BOUQUET & DELISLE, v. 15, 1840-1904: 187, trad nossa).
A historiografia, sobretudo Guilhiermoz (1906), Flori (1993) e Barthélemy
(1994 e 2007) fizeram profícuas observações a esse respeito, concluindo que o
adoubament ou ato da entrega das armas ao postulante da militia coroa um aprendizado,
marca o ingresso do adolescente na vida adulta e simboliza a potestas e o status do
nobre. Além disso, o adoubament marca uma relação social entre o que recebe e o que
entrega as armas, seja estreitando os laços de afeto e amizade ou constituindo um
vassalo para o séqüito do senhor.
No trecho supracitado da Vita Prima, um cavaleiro abandona a cavalaria secular
para se tornar miles Christi. Ele, assim como todos os milites da Vita Prima, cumpre
uma espécie de rito de passagem, de mudança de vida, não detalhado por Guilherme de
Saint-Thierry. Esse abandono das armas, em troca da vida religiosa, é algo antigo e
atestado pela documentação: em 951 um miles que entrara em Cluny dizia: dissolvo o
arnês da cavalaria, corto a barba e a cabeleira da cabeça por divino amor e, por Deus
auxiliador, disponho receber o hábito monástico no predito monastério
32
(DODA &
LEOTBALDUS. Carta de doação a Cluny. In: BERNARD & BRUEL, 1876-1903, v.
01: 756, trad. nossa). A negação da cavalaria e a entrada ao monasticismo são
compostas por ritos e sinais que se aproximam e invertem os ritos e sinais do
adubament ou do ingresso do jovem na vida militar.
31
... armis militaribus adornare et honorare, et ad militiam promovere et ordinare.
32
Cingulum militiae solvens et comam capitis barbamque pro divino amore detundans, monasticum, Deo
auxiliante, habitum in predicto monasterio recipere dispono.
49
Realiza-se, portanto, a passagem de uma militia efetiva, das armas concretas,
para uma militia metafórica (BARTHÉLEMY, 1994: 55-56). O monasticismo se
apropriava de uma linguagem militar para expressar a adoção de um modo de vida ou
de práticas específicas que estabeleciam uma relação afetiva entre duas pessoas
Bernardo foi identificado como pai espiritual de seus irmãos (VP, v. 185, t. 01, 1855:
236)
33
marcavam uma escolha pelo abandono da vida secular e o ingresso em um
gênero de luta espiritual. Abandonar os combates terrenos coroava um amadurecimento
religioso, necessário para efetuar a luta espiritual sob a conduta de um “pai” espiritual.
Obviamente, nem todos os cavaleiros mostravam-se aptos a aceitar essa
passagem ou a fizeram por espontânea vontade como no exemplo de Galdrico, tio de
São Bernardo
34
. No caso de André, irmão do Santo, foi necessário a intervenção
materna para impulsioná-lo. Mais complicada e mais dramática, segundo Guilherme, foi
a conversão de Gerardus ou Geraldo, o segundo irmão mais velho de São Bernardo.
Neste caso, não houve intervenção materna, mas apenas o cumprimento de uma profecia
bernardina. Assim como no caso da conversão da esposa de Guido, uma profecia, que
apresenta um tom forte de ameaça, conduz para a conversão:
O segundo irmão depois de Guido era Geraldo, nobre cavaleiro intrépido em armas,
de grande prudência e de exímia benignidade, que todos amavam. O qual, aos
primeiros que ouvem e as primeiras aquiescências do dia, como foi dito, reputa por
leviandade, como é costume da sabedoria secular, com espírito obstinado, repelia os
avisos e salutares conselhos do irmão. Então Bernardo, acendido na e no zelo do
amor e caridade fraternal, de modo exasperado lhe disse: “Eu sei que atribulação dará
consentimento ao teu intelecto”. s-lhe o dedo no costado, e disse: “Virá um dia, e
cedo virá, que uma lança, fixa neste lado, fará caminho ao teu coração por conselho de
tua saúde, que tu desprezas e certamente tu temerás, mas não morrerás”. Assim como
foi dito, assim foi feito. Daí a poucos dias, foi cercado por inimigos e capturado e
ferido, segundo a palavra do irmão, trazendo a lança no próprio lado, alojada naquele
lugar onde lhe pusera o dedo. E como já temendo a presença da morte, bradava:
“Monge sou, monge sou de Cister”. Não menos foi capturado e recluso em custódia.
Bernardo foi chamado rapidamente por um mensageiro, ma ele o quis vir e disse:
“Eu sabia e primeiro lhe disse que seria duro lançar coices contra o aguilhão, porém
esta ferida não é para morte dele, mas para a vida”
35
. (VP, v. 185, t. 01: 233. trad e
grifos nossos).
33
Jam vero adveniente die reddendi voti et complendi desiderii, egressus est de domo paterna Bernardus,
pater fratrum suorum, cum fratribus suis, fillis suis spiritualibus, quos verbo vitae Christo genuerat.
34
Ver página 47.
35
Secundus natu post Guidonem Geradus erat, miles in armis strenuus, magnae prudentiae, benignitatis
eximiae, et qui ab omnibus diligeretur: qui caeteris, ut dictum est, primo auditu et primo die
acquiescentibus, ut mos est sapientiae saecularis, levitatem reputans, obstinato animo salubre consilium et
fratris monita repellebat. Tum Bernardus fide jam igneus, et fraternae charitatis zelo mirum in modum
exasperatus: “Scio”, inquit, “scio, sola vexatio intellectum dabit auditui”. Digitumque lateri ejus
50
São Bernardo conseguiu que seu irmão deixasse a cavalaria para se tornar um
monge. Todos os filhos de Tecelino seguem São Bernardo no abandono da vida secular.
A relação entre o Santo e seus irmãos, especificamente, os cavaleiros – André e Geraldo
pode ser disposta em três momentos distintos. Primeiro, uma recusa ou resistência
inicial aos “conselhos” de São Bernardo; segundo, a mediação feita pela mãe ou por
algum evento insólito estreitando os vínculos fraternos e terceiro, a aceitação e mudança
de idéia que submetiam os cavaleiros ao juízo e à vontade maternal e fraterna. Se a
família bernardina era basicamente militar, ela torna-se, não obstante resistências e
dificuldades, uma família monástica.
04. São Bernardo e os milites que visitam Claraval
Tecelino e seus filhos não foram os únicos milites apresentados na obra de
Guilherme. Após ter cumprido seus votos e se tornado abade de Claraval, São Bernardo,
em uma data difícil de se estabelecer devido às poucas coordenadas oferecidas por
Guilherme, mas que pode ser localizada após o ano de 1115, recebe em seu monastério
alguns cavaleiros. Estes pretendiam participar de alguns torneios ou simulações de
combate condenadas pela Igreja, devido às turbulências que poderiam causar (FLORI,
1998: 62-70). A atitude de Bernardo quanto a esse séqüito de militares não é tão
consoante com seu posicionamento perante seus irmãos:
Certa vez, foi um grupo de cavaleiros nobres a Claraval para verem esse lugar e o seu
santo abade. Estava próximo o tempo da quaresma e todos eles eram jovens e dados à
cavalaria secular, e andavam desejando aqueles execráveis jogos chamados torneios.
Ele começou a pedir que naquele ínterim dos poucos dias que eram antes da
quaresma não empregassem armas. Os quais com espírito obstinado recusaram
consentir as suas advertências. E ele disse: “eu confio no Senhor que Ele me dará a
trégua que vós me negastes”. E chamou um frade e mandou que lhes oferecesse cerveja
e, benzendo-a, disse-lhes que bebessem a poção das almas. Então, todos beberam,
alguns deles, ainda forçados pelo amor do século, temendo aquele amor da divina
virtude que depois o experimentados os efeitos. Como, portanto, saíram pelas portas
do mosteiro começaram a acender uns com os outros em palavra porque o coração de
todos ardia. Portanto, Deus inspirando e correndo rapidamente a sua palavra, reversos
nessa mesma hora e conversos de seus caminhos, ofereceram suas destras a cavalaria
apponens: “Veniet”, inquit, “dies, et cito veniet, cum lancea , lateri huic infixa, pervium iter ad cor tuum
faciet consilio salutis tuae, quod aspernaris: et timebis quidem, sed minime morieris”. Sic dictum, sicque
factum est. Paucissimis interpositis diebus circumvallatus ab inimicis, captus et vulneratus juxta verbum
fratris, lanceam gestans ipsi lateri, eidemque infixam loco cui ille digitum applicuerat, trahebatur, et
mortem quasi jam praesentem metuens clamabat: “Monachus sum, monachus sum Cisterciensis”.
Nihilominus tamen captus et reclusus in custodia est. Vocatus est Bernadus per celerem nuntium, se non
venit. “Sciebam”, inquit, “et praedixeram quod durum esset ei contra stimulum calcitrare: nec tamen ad
mortem ei vulnus hoc, sed ad vitam”.
51
espiritual. Dos quais alguns ainda agora servem da Deus, outros, desembaraçados os
vínculos carnais, já reinam com Ele.
Não é maravilha que a maioridade honre este homem com devotos serviços quando em
devoção dele a divina virtude excita essa infância ainda ignorante e não conhecedora
da devoção e da razão? Muitos conheceram o nobre varão Valtero de Monte
Maravilhoso, sobrinho de Frei Valtero que entre aqueles cavaleiros que dissemos foi
professo na santa cavalaria
36
. (VP, v. 185, t. 01: 257. trad. e grifos nossos).
Guilherme permite que um detalhe seja vislumbrado: ao utilizar a expressão ne
armis interim uterentur, o autor diz que o desejo de Bernardo era conseguir que os
milites não empregassem armas naqueles dias próximos da quaresma. A expressão
interim que significa durante este tempo, enquanto isto, por um instante (FARIA,
2003: 517), da mesma forma na língua portuguesa demonstra perfeitamente o que
Guilherme apreende de Bernardo neste episódio. Este não pediu que os cavaleiros
abandonassem a militia, mas apenas que se abstivessem das armas em um momento
preciso e restrito no tempo.
O que se segue é uma adequação dos eventos aos apresentados na biografia.
Os jovens milites resistiram a seguir os conselhos de Bernardo. Somente após beberem
a cerveja benzida, eles abandonam a militia e ingressam na cavalaria espiritual.
Guilherme cita o nome de um desses cavaleiros convertidos e de seu sobrinho,
procurando estabelecer referências ou testemunhas que possam confirmar o ocorrido em
Claraval. Mais importante do que confirmar o evento é a possibilidade de demonstrar e
testemunhar a santidade de seu abade.
Os cavaleiros se converteram, mas, aparentemente, a intenção de Bernardo não
era essa. Cada conversão cavaleiresca é um fato singular na biografia, nenhuma ocorre
da mesma forma. Contudo, a acima referida mantém-se mais afastada das demais por
demonstrar que o abade de Claraval não exigiu a conversão, apenas a abstinência
36
Diverti aliquando nobilium cohors militum ad Claram-Vallem, ut viderent locum, ac sanctum ejus
Abbatem. Prope autem erat sacrum Quadragesimae tempus: et illi omnes fere juvenes dediti militiae
saeculari, circumibant quaerentes exsecrabiles illa nundinas, quas vulgo tornetas vocant. Coepit itaque ab
eis petere, paucos illos qui ante Quadragesimam supererant dies, ne armis interim uterentur. Quibus
obstinato animo ejus acquiescere monitis renuentibus: “Confido”, ait, “in Domino, quod ipse mihi dabit
inducis quas negastis”. Et accersito fratre, jubet eis cerevisiam propinari, benedicens eam, et dicens ut
potionem biberent animarum. Biberunt ergo pariter, quidam tamen inviti prae amore saeculi, metuentes
eum quem postea sunt experti dininae virutis effectum. Ut enim egressi sunt monasterii fores, mutuis sese
coeperunt inflammare sermonibus, quia cor eorum ardens erat in eis. Inspirante igitur Deo, et currente
velocite verbo ejus, eadem hora reversi, et conversi a viis suis, spirituali militiae dextras dedereunt.
Quorum quidam adhuc militant Deo, quidam autem cum eo jam regnant, carnis vinculis absoluti.
Quid autem mirum quod devotis hunc hominem colit osbequiis major aetas, in cujus devotionem divina
virtus ipsam quoque infantiam excitat expertem adhuc rationis, et devotionis ignaram? Norunt multi
illustrem juvenem Waltherum de Monte-Mirabili, cujus patruus frater Waltherus, inter eos quos
praediximus milites, sacram in Clara-Valle militiam est professus.
52
temporária dos milites. O desenrolar da interação entre o abade e os milites re-introduz a
coerência no relato ao ficar evidente que todos os milites da Vita Prima abandonam
abertamente ou discretamente a militia.
Não obstante os resultados alcançados, a posição de São Bernardo quanto à
cavalaria, na sua juventude, junto de sua família e perante os milites que chegam a
Claraval não é apreendida, inicialmente, da mesma forma. Pelo menos, não seria tão
radical ou contundente no caso dos últimos. Essa consideração apóia-se no fato de seu
biógrafo não registrar uma tentativa inicial de conversão, apenas um aconselhamento de
restrição prática. Pensando nas diferenças existentes entre a conversão de André e
Geraldo e dos milites de Claraval é possível evidenciar uma mudança de atitude
bernardina frente à cavalaria?
São Bernardo não pediu aos milites convertidos que voltassem para a cavalaria.
Mantinha-se a conversão. Nesse sentido, não se pode assinalar uma mudança de postura
de São Bernardo quanto à cavalaria. Mesmo que sua intenção inicial não fosse a
conversão, o abade de Claraval não se opunha ao abandono da militia. Se a juventude
cavaleiresca comporia a ponta de lança da agressividade feudal” (DUBY, 1989: 137),
São Bernardo era elogiado na hagiografia por “conduzir à razão esta infância” (VP, v.
185, t. 01: 257). Guilherme de Saint-Thierry não permite analisar, dentro de sua obra,
uma mudança de atitude de São Bernardo quanto à cavalaria. Percebemos um
distanciamento entre as narrativas de conversão, mas os resultados delas remetem a um
comportamento e um posicionamento de São Bernardo apreendidos e traduzidos de
maneira coerente pelo autor da Vita Prima: todos os cavaleiros, de uma forma ou de
outra tem seus estados militares modificados pela atuação do Santo.
05. São Bernardo e o miles peregrinus conde Hugo de Champagne
Historiadores como Demurger (2005), Duby (1989) e Flori (1998) assinalaram
um entusiasmo religioso no Ocidente que decorre da pregação do Papa Urbano II na
cidade de Clermont no mês de novembro de 1095 o êxito da Primeira Cruzada e da
tomada de Jerusalém aos muçulmanos em 1099. Pode-se considerar este entusiasmo
observando uma convenção feita entre o abade de Cluny e um miles, que deixava seus
bens aos cuidados do dito abade para partir rumo a Jerusalém. Convenção que se
realizou em abril de 1096, ou seja, cerca de cinco meses após o a pregação de Urbano
II:
53
Que fosse conhecido aos cristãos presentes e futuros que eu, Acardo, cavaleiro, do
castelo que chamam Monte Merulo, por outro lado, filho de Wicardo, o mesmo também
é chamado Monte Merulo, eu, digo, Acardo, desejoso de ir a Jerusalém para lutar
contra os pagãos e sarracenos, em benefício de Deus, nesta tão numerosa e máxima
excitação ou expedição do povo cristão, e, agitado por tal intenção, querendo ir
armado naquela, desta maneira faço convenção com o senhor Hugo, abade venerável
cluniacense e com os monges dele. Verdadeiramente ante, outros monges são autores
comigo desta convenção: senhor Bernardo camareiro e senhor Gaufredo, prior de
Monte Bertoldo, e senhor Geraldo de Cavariaco. Por isso, certa possessão minha, que
está disponível a mim por direito hereditário paterno, agora ponho em convenção com
os ditos senhores, aceitando destes dois mil soldos em moeda lugdunense e quatro
mulas. Por tal continuidade, faz-se verdadeiramente essa convenção, afim de que
nenhuma pessoa consangüínea ou aparentada possa me redimir, a o ser eu próprio.
Que se nesta peregrinação a Jerusalém eu for morto, ou de algum modo desejar
permanecer naquelas partes, isto que em convenção é tido, agora então, não em
convenção, mas em possessão legítima e hereditária, o monastério de Cluny tenha em
direito perpétuo
37
. (ACARDO MILES. Carta de convenção feita com o abade de
Cluny. In: BERNARD & BRUEL, v. 05, 1876-1903: 51-53. trad nossa).
Acardo abandonara tudo para cumprir o ato “piedoso” e penitencial de lutar em
defesa dos lugares considerados santos na Palestina contra os muçulmanos
(DEMURGER, 2002: 22-24). Esse abandono não significava apenas deixar família,
amigos e propriedades no Ocidente, mas também recusar as guerras fratricidas e as
rapinagens que, nas palavras do clero, a cavalaria exercia no Ocidente (DUBY, 1994:
55). Nas palavras do cronista Foucher de Chartres, Urbano II teria dito:
Que eles marchem, diz ainda o Papa no final, contra os infiéis, e terminem pela vitória
uma luta que desde longo tempo deveria ser começada, estes homens que, até o
presente, tiveram o hábito criminoso de se abandonar às guerras internas contra os
fiéis; que eles se tornem verdadeiros cavaleiros, aqueles que por tão longo tempo foram
somente ladrões; que eles combatam agora, como é justo, contra os bárbaros, aqueles
que outrora brandiam suas armas contra os irmãos de mesmo sangue que eles; que eles
procurem as recompensas eternas, esta gente que durante tantos anos venderam seus
serviços como mercenários por um miserável pagamento; que eles trabalhem por
adquirir uma dupla glória, aqueles que pouco tempo sofriam tantas fadigas em
detrimento de seu corpo e de sua alma. Que mais eu acrescentaria? De um lado seriam
miseráveis privados dos verdadeiros bens, de outro, homens cobertos pelas verdadeiras
37
Notum sit fidelibus Christi presentibus et futuris, quod ego Acardus, miles, de castro quod vocant
Montem Merulum, filius autem Wicardi, qui et ipse dictus est de Monte Merulo, ego, inquam, Acardus in
hac tam multa et permaxima excitatione uel expeditione christiani populi decertantis ire in Iherusalem, ad
belligerandum contra paganos et Sarracenos pro Deo, et ipse tali intentione permotus, cupiensque illo ire
armatus, facio conventionem hujusmodi cum domino Hugone, abbate venerabili Cluniacensi, et cum
monachis ejus. Ante alios vero monachos hujus conventionis auctores mecum sunt: domnus Bernadus
camerarius et domnus Gaufredus, prior de Monte Bertaldi, et domnus Geraldus de Cavariaco; itaque
quandam possessionem meam que ex paterne hereditatis jure mihi obvenit pono in convadium jam dictis
senioribus, accipiens ab eis duo milia solidorum Lugdunensis monete, et quatuor mulas. Fit vero
convadium istud tali tenore, ut a nulla persona cumsanguinitatis uel cognationis mee redimi possit, nisi a
me ipso. Quod si in hac peregrinatione Iherosolimitana mortuus fuero, uel quoquomodo illis in partibus
remorari voluero, istud quod pro cumvadio nunc hagetur, jam tunc non convadium, sed possessio legitima
atque hereditas Cluniacensis monasteriis erit jure perpetuo.
54
riquezas; de uma parte os inimigos do senhor combaterão, do outro, seus amigos
38
.
FOUCHER DE CHARTRES. Histoire des Croizades. In: GUIZOT, 1825: 09, trad.
nossa).
Um dos resultados mais importantes do contato entre esta expeditia da
cristandade e a cavalaria é a possibilidade da representação do miles peregrinus. Este
cavaleiro não derramaria sangue cristão, mas pagão, em defesa do próprio Cristo. Um
desses nobres que atendera ao apelo de Urbano II, não de imediato, mas viajou para a
Palestina e retornou para o Ocidente em sussecivas viagens, entre os anos de 1114 e
1125, foi o conde Hugo de Champagne (GIOVANDO, 1944: 268). Realizar essas
viagens, sob os auspícios do clero, instituindo penitências, era uma prática comum entre
a nobreza guerreira. Ir, combater os muçulmanos e voltar para a casa se convertia em
uma purgação dos pecados cometidos pelos cavaleiros.
Todavia, em uma de suas viagens, o Conde Hugo decidira se fixar em Jerusalém.
Além de permanecer naquela cidade, ele abandonara a dignidade condal, se tornara um
simples miles e ingressara na confraria dos cavaleiros Templários, cujo líder era
exatamente seu vassalo Hugo de Payns. Pessoa próxima de São Bernardo, Hugo de
Champagne informou-lhe sua decisão e recebeu do abade de Claraval a seguinte
resposta:
Se, pela causa de Deus, te fizeste simples cavaleiro e pobre, de riquíssimo que tu eras,
disto vos felicitamos e em ti damos glória a Deus, sabendo bem que esta é uma
mutação da destra do Altíssimo. De outra parte, confesso de não ser insensível,
encontrando-me privado, não por aquela razão de Deus, da tua amável presença,
tanto que não posso ver-te nem uma vez, ao passo que teria voltado, se me fosse
possível, a encontrar-me contigo. Possamos s esquecer o antigo afeto e os benefícios
que com tanta generosidade tem provido à nossa casa? Se dignificas o senhor, pelo
qual amor igual te comporta, não serás esquecido na eternidade! Porque, por aquilo
que depende de nós, longe de mostrar-te ingratos, conservamos altamente impresso no
coração a recordação da abundância da tua caridade e, na oportunidade mostraremos
de fato. Oh! Quanto prazer teríamos em prover ao bem de tua alma e de teu corpo, se
nos fosse concedido de estar aqui conosco! Mas porque não é assim, nos resta somente
que, não podendo ter-te presente, sempre oramos por ti ausente
39
. (BERNARDO DE
38
Qu’ils marchent, dit ancore le pape en finissant, contre les infidèles, et terminent par la victoire une
lutte qui depuis long-temps déjà devrait être commencée, ces hommes qui jusqu’à présent ont eu la
criminelle habitude de se livrer à des guerres intérieures contre les fidèles; qu’ils deviennent de véritables
chevaliers, ceux qui si long-temps n’ont été que des pilards; qu’ils combattent maintenant, comme il est
juste, contre les barabares, ceux qui autrefois tournaient leurs armes contre des fréres d’un même sang ,
qu’eux; qu’ils recherchent des récompenses éternelles, ces gent qui pendant tant d’annés ont vendu leurs
services comme des mercenaires pour une misérable paie: qu’ils travaillent à acquérir une double gloire
ceux qui naguère bravaient tant de fatigues, au triment de leur corps et de leur ame. Qu’ajouterai-je de
plus? Dans côté seront des misérables privés des vrais biens, de l’autre des hommes comblés des vrais
richesses; d’une part combattront les ennemis du Seigneur, de l’autre ses amis.
39
Si causa Dei factus es ex comite miles, et pauper ex divite, in hoc profecto tibi ut iustum est,
gratulamur, et in te Deum glorificamus, scientes quia haec est mutatio dexterae Excelsi. Caeterum, quod
55
CLARAVAL. Carta ao conde Hugo de Champagne. In: GIOVANDO, v. 12, t. 01,
1944: 269-271, trad. nossa).
O conde Hugo havia repudiado sua esposa, considerada infiel, deserdado o filho,
que acreditava não fosse seu e transmitido o condado de Champagne para seu sobrinho
Teobaldo (READ, 2001: 102-103). Hugo recusara os bens materiais e se tornara um
simples e pobre cavaleiro. Na sua resposta, São Bernardo lamentou de não ter a
presença do Conde em Claraval. Ao dizer que gostaria de “prover ao bem da alma e do
corpo” de Hugo, Bernardo demonstraria que desejava a sua entrada em Claraval. O
abade lamentava sua vontade não ser satisfeita.
Inicialmente, se poderia imaginar que as palavras de Bernardo significariam
apenas uma espécie de saudade ou cortesia de um anfitrião ao seu suserano bem-feitor,
pois Claraval localizava-se no condado de Champagne e seu abade lembrara os
benefícios que o conde havia cumulado seu monastério. Contudo, considerando a
conversão de seus parentes milites e as palavras escolhidas por ele para se expressar,
conclui-se que Bernardo acharia melhor que o conde abandonasse sua dignidade e poder
para se tornar monge e não miles (DEMURGER, 2005: 58). Com palavras de afeto,
Bernardo tentaria, não de forma incisiva, converter o Conde Hugo.
No início da carta, Bernardo louvou a mutatio de Hugo, afirmando que fora obra
do altíssimo. A consideração de que a mudança do rico conde para o pobre cavaleiro
ocorria pela destra do altíssimo não deixa dúvidas quanto à sinceridade ou à seriedade
da apreciação bernardina. De fato, São Bernardo deveria desejar a conversão de Hugo,
no entanto, o felicitou e não impôs maiores restrições ou empecilhos à profissão militar
do conde. A carta do Santo a Hugo de Champagne permite que uma aceitação reticente
das práticas militares seja perceptível. Se não foi possível trazer o conde para Claraval,
a decisão de abandonar a riqueza e o poder, nas condições descritas pela missiva,
deveria não ser tão desagradável a Bernardo.
Na Vita Prima encontra-se a idéia de que o miles se associa a uma espécie de
poder local. Os milites Tecelino e Gaudrico estavam à frente de castelanias,
tua iucunda praesentia nobis ita nescio quo Dei est subtracta iudicio, ut ne interdum quidem videre te
valeamus, sine quo nunquam, si fieri posset, esse vollemus, aequanimiter, fateor, non portamus. Quid
enim? Possumusne oblivisci antiqui amoris, et beneficiorum quae domui nostrae tam largiter contulisti?
Utinam ipse pro cuius amore fecisti, in aeternum non obliviscatur Deus! Nam nos, quantum in nobis est,
minime prorsus ingrati, memoriam abundantiae suavitatis tuae mente retinemus, et, si liceret, opere
monstraremus. O quam libenti animo et corpori tuo pariter et animae providissemus, si datum fuisset, ut
simul fuissemus! Quod quia non est, restat ut, quem praesentem habere non possumus, pro absente
semper oremus.
56
respectivamente em Fontaine-Le-Dijon e Touilon. Já o jovem irmão de Bernardo, André,
no momento de sua conversão, era dito que “de tirano do século se fez cavaleiro de
cristo”. Obviamente eles estão intimamente ligados a uma teia de relações vassálicas,
devendo obrigações aos seus senhores. Trata-se de nobres, de sangue de antiga origem e
reconhecidos por suas obras militares que deteriam direitos e poderes locais. Por outro
lado, as referidas oposições entre cavaleiros e condes, evocadas por São Bernardo,
enfatizam, não o poder ou a influência política dos milites, mas a sua inferioridade em
uma hierarquia social e de poder.
Em uma carta, escrita em 1127 ao sucessor de Hugo, o conde Teobaldo II,
Bernardo o lembrara que: Se acaso, algum de vossos cavaleiros ou ministros se
comportar injustamente com seus bens, ou pretender alguma vez alterar a paz que
devem gozar em Deus, saiba por certo que com ele ferirão muito gravemente o vosso
favor
40
(BERNARDO DE CLARAVAL. Carta ao conde Teobaldo II. In: ARAGUREN
& BALANO, v. 07, 1983: 204. trad. e grifo nossos). Evidencia-se a posição do Conde
de Champagne que comanda e está acima de cavaleiros e ministros. Compreender o que
significava a palavra miles para São Bernardo naquele momento é de fundamental
relevância. A cavalaria, na carta a Hugo de Champagne, provavelmente não deixa de
trazer uma conotação de autoridade política restrita, mas o seu significado principal é o
do serviço e da subordinação militar simples e humilde (GUILHIERMOZ, 1902: 331-
345).
Para São Bernardo, estaria o conde Hugo cumprindo uma espécie de ascese
militar? Ao se tornar Templário, o mesmo conde não estaria realizando uma espécie de
“conversão”? Os elementos que conduzem a esse entendimento da ação de Hugo de
Champagne são fortes. Se não fosse possível trazer o conde para o monastério, a
deposição do poder condal, o abraço da pobreza e a adoção de um modo de vida
considerado mais simples e humilde – em uma hierarquia secularsubmetido às ordens
de um ex-vassalo conduzem a uma “conversão” para um estado particular. Tal estado
Bernardo ainda pensa que não seja perfeito, mas o Santo caminha para uma aceitação
reticente e restrita. O entusiasmo cruzado de Hugo de Champagne se apresentou para
40
Et si quis forte militum seu ministrorum vestrorum res illorum iniuste contingere, aut quietem, quam in
Deo habere debent, infestare in aliquo tentauerit, pro certo se sciat vestram sibi ob hanc rem gratiam
gravissime redditurum infesam.
57
São Bernardo de uma forma particular e o fez considerar e pesar possibilidades para a
cavalaria.
O principal ponto a se destacar na carta é a não oposição férrea do Santo quanto
ao estado militar do conde. Bernardo lamentava a ausência do amigo e bem-feitor, mas
não impunha suas condições e não realizava ameaças em forma de profecias. Assinala-
se uma mudança de atitude formatada na relação entre o conde/miles e o Abade. A
perspectiva constituída no seio familiar e sob a forte influência materna foi colocada em
questão na medida em que novas interações, em novas condições, levaram Bernardo a
repensar ou a reconsiderar suas concepções. A felicitação do Santo ao conde, associada
à sua lamentação de não recebê-lo em Claraval, demonstrava as dificuldades da
modificação do habitus bernardino. Não obstante, evidenciamos certa maleabilidade e
flexibilidade das concepções e posicionamentos na intervenção de novos espaços de
socialização, nos quais, certezas e seguranças adquirem um caráter modificado ou de
incerteza.
06. Os milites de João Batista à luz de duas apropriações monásticas distintas: Vita
Prima x De Laude Novae Militiae
Guilherme de Saint-Thierry não afirmou que o ofício da guerra fosse pernicioso
ou condenável. A conduta militar dos milites que seguiam os conselhos de João Batista
era melhor do que a conduta daqueles que não seguiam. Porém, a “cavalaria espiritual”
composta pelos monges era melhor que a “boa” cavalaria secular. Podemos assim,
avaliar não apenas a concepção de cavalaria do jovem Bernardo, mas também a
concepção de Guilherme de Saint-Thierry. Logo, contrapomos a concepção do abade de
Saint-Thierry com a de seu amigo na maturidade.
As diferentes formas da apropriação e citação da passagem bíblica de João
Batista e dos militares são elucidativas dos posicionamentos de Guilherme de Saint-
Thierry da Vita Prima
41
e de São Bernardo no De Laude Novae Militiae. Como foi
observado na descrição de Tecelino, para Guilherme de Saint-Thierry, tal passagem
bíblica era apenas o exemplo de conduta militar aceitável. Por outro lado, para São
41
Ver páginas 43-44. O pai dele, Tecelino, era cavaleiro de legítima e antiga cavalaria, cultor de Deus e
tenaz de justiça. Usava a cavalaria segundo a doutrina evangélica, não fazendo crueldade nem maldade
alguma, contentando-se com os estipêndios que lhe davam seus senhores e rendas que tinha, as quais lhe
abastavam para todas suas boas obras. Em tal modo servia com conselho e armas a seus senhores
temporais, afim de que o negligenciasse entregar ao seu Senhor Deus o que devia. (VP, v. 185, t. 01:
227, trad. nossa).
58
Bernardo, aquela serviria como elemento justificador da guerra. Ou seja, o primeiro
intentava evidenciar restrições a possíveis comportamentos violentos ou cúpidos dos
militares, já o segundo desejava demonstrar o não impedimento divino às práticas
militares. A mobilização da passagem evangélica não ocorre com o mesmo sentido ou
intensidade em ambos os abades:
Pois, enfim, se seria totalmente interdito aos cristãos de “golpear com a espada” [Lc.
22, 49-51], por que o precursor do Salvador ordenava “aos militares de se contentar
com seus estipêndios”? [Lc. 03, 14]. Ora, este serviço é belo e bem permitido a todos
aqueles que aí sejam estabelecidos por Deus e não sejam votados a um melhor estado
de vida
42
. (BERNARDO DE CLARAVAL. De Laude Novae Militiae. In: EMERY, v.
367, t. 31, 1990: 60, trad. e grifos nossos).
Há, portanto, uma distância entre a apropriação de Guilherme em 1148 e de São
Bernardo entre 1126 e 1129 quanto à escritura bíblica e quanto à cavalaria. Em um caso
destaca-se a intenção de evidenciar ao leitor uma prática militar aceitável e restrita pelos
conselhos bíblicos, em outro caso justifica-se a guerra. Além da grande diferença entre
o São Bernardo da biografia e o São Bernardo do tratado, foi notável a distância entre as
percepções de cavalaria presentes no De Laude Novae Militiae e na Vita Prima. As
relações entre os cavaleiros, os monges e a santidade são diferentemente construídas em
ambos os textos. Na Vita Prima, santidade se liga intimamente ao monasticismo –
percebe-se isso na imagem de Aleth e de Bernardo no tratado de São Bernardo a
possibilidade de uma santidade cavaleiresca, associada ao monasticismo, mas não
inferior a ele.
Ao destacar que o pai de Bernardo não fazia maldades nem crueldades,
Guilherme teve uma postura mais restritiva quanto à cavalaria, comparado, é claro, com
o tratado de Bernardo. A fórmula interrogativa empregada pelo abade de Claraval
contrasta com o emprego descritivo de Guilherme quanto às palavras de João Batista.
Os conselhos do precursor de Cristo podem ser divididos em duas partes: a restrição da
violência e o contentamento militar com seus estipêndios ou rendimentos. Guilherme
empregou e se deteve em ambas as partes, Bernardo enfocou mais o segundo ponto
ressaltando com uma pergunta, cuja resposta parece óbvia, a não restrição divina ao
42
Quid enim? Si percutere in gladio omnino fas non est christiano, cur ergo praeco Salvatoris contentos
fore suis stipendiis militibus indixit, et non potius omnem eis militiam interdixit? Si autem, quod verum
est, omnibus fas est, ad hoc ipsum dumtaxat divinitus ordinatis, nec aliud sane quidquam melius proessis.
59
ofício da cavalaria. Apoiado em uma argumentação evangélica, Bernardo reconhecia a
beleza do ofício cavaleiresco dos Pobres Cavaleiros de Cristo.
O Bernardo da juventude poderia ser mais belicoso do que mostra a Vita Prima?
O De Laude Novae Militiae e o caráter pacífico de Guilherme levam a suspeitar da sua
representação bernardina? Ou o aspecto “monastizante” de Guilherme encobririam um
jovem Bernardo mais próximo do elogio aos Templários? Comparando a Vita Prima e o
De Laude Novae Militiae é possível afirmar que Guilherme estaria obscurecendo a
concepção militar de Bernardo durante sua juventude? O Bernardo, que insistentemente
convertia os cavaleiros na biografia, na passagem citada do tratado o ofício
cavaleiresco como belo e bem permitido. Além disso, na sua carta a Hugo de
Champagne, ele não estabeleceu restrições mordazes a sua adoção do estado da militia.
Bernardo certamente crescera no seio de uma família cavaleiresca que tinha
consciência da nobreza de seu ofício. As dificuldades das conversões fraternas relatadas
por Guilherme apóiam esta conclusão. Percebe-se que as conversões das personagens
que não eram milites ou que ainda não haviam sido “feitos” milites se constituem de
maneira mais fácil ou relativamente mais tranqüila, senão desejadas pelos próprios
protagonistas – como no caso de Bartolomeu e Everaldo. Entre os milites, o trabalho de
conversão de Bernardo é bem maior, exceção feita ao seu tio Gaudrico, que talvez pela
idade avançada já não pudesse exercer o ofício das armas.
Junto a essa dificuldade, observa-se um ponto relevante quanto aos dois irmãos
mais novos que Bernardo – André e Bartolomeu. André era “recentemente” feito miles e
Bartolomeu ainda não era, mas quando Guilherme mobiliza o termo “ainda”, deixa a
entender que o mesmo Bartolomeu haveria de se tornar miles. Se os dois irmãos mais
novos de Bernardo eram ou estavam destinados a serem milites se não fosse a sua
atuação por que ele próprio também não o seria? Ele não confessara para Guilherme
que vivera por algum tempo nas tentações seculares?
Poderia intervir a participação materna e, quiçá, paterna em destinar um de seus
filhos à vida religiosa como foi dito anteriormente, destinar um de seus filhos a vida
religiosa era prática comum da nobreza secular. A saúde bernardina também conduziria
esta escolha. A família de São Bernardo, apesar das observações piedosas de Guilherme
era uma família tipicamente militar, a carreira religiosa era apenas um acessório, algo
eventual, evidenciador de uma piedade laica, mas relegado aos membros pouco capazes
60
para exercer o trabalho de miles. A maioria dos parentes, e provavelmente Bernardo,
seguiriam, naturalmente, a carreira das armas.
Havia a promessa de Aleth em tornar todos os seus filhos e filha monges.
Verdadeira ou inventada por Guilherme ou Bernardo, esta promessa se mostra enganosa
ou frágil na medida em que os filhos escolhem, por influência do pai e dos tios, a
carreira das armas. Essa escolha é alterada e a suposta promessa de Aleth cumprida
na proporção em que São Bernardo interfere, ajudado por artifícios não humanos. A
resistência fraterna e possivelmente paterna quanto à conversão de todos os membros da
família denotam este caráter militar da família bernardina, os quais, em certo momento
do relato, estavam com o duque da Borgonha no cerco de um castelo que chamam
Granceiu (VP, v. 185, t. 01: 232, trad. nossa).
Por outro lado, é muito provável que Bernardo se posicionasse contrário às
práticas cavaleirescas. Foram apontados elementos que corroboram esta observação. De
forma coerente, identificamos dois momentos principais de São Bernardo. Aquele da
juventude, da Vita Prima e outro, do De Laude Novae Militiae. Se em um, a conversão
ao monasticismo é indiscriminada, no outro ele já considera a cavalaria, encarnada nos
Templários, como um belo ofício, caso não se tenha sido destinado a um outro melhor.
na carta a Hugo de Champagne, anterior ao De Laude Novae Militiae, Bernardo
denota recalcitrância quanto a cavalaria, mas já não é o mesmo Bernardo da Vita Prima.
O importante a perceber, como foi demonstrado, é a intervenção dos espaços de
socialização na configuração da concepção de cavalaria bernardina. O habitus, pensado
como perspectiva de apropriação e interpretação da realidade, se alterava, com maior ou
menor dificuldade, nas interações bernardinas.
Apesar das relações de Bernardo com o Templário Hugo de Payns e com o
conde Hugo de Champagne serem tão importantes para a sua concepção de guerra, elas
não foram contempladas por Guilherme. O autor não fornece nenhuma referência sobre
os Templários. Pode-se argumentar que o autor tenha abordado eventos anteriores
àqueles mencionados, pois falecera antes de concluir sua obra. Entretanto, a posição que
a cavalaria ocupa no relato e o tema da obra demonstraram como verossímil a rejeição
consciente de assuntos que tenham como centro a militia ou que priorizem, de certa
forma, suas práticas.
61
Quando São Bernardo justificou o ofício guerreiro na passagem do De Laude
Novae Militiae que evocava João Batista, ele destoou da Vita Prima. Primeiramente por
tentar justificar o ofício da cavalaria e em segundo lugar por não construir,
primordialmente, uma imagem cavaleiresca a partir das palavras do “precursor de
Cristo”, tal como fez Guilherme. O abade de Claraval simplesmente a utilizou como um
artifício retórico de legitimação sagrada e, portanto, incontestável das práticas dos
primeiros cavaleiros Templários. Guilherme de Saint-Thierry era um homem pacífico
que enxergaria nas palavras de João Batista uma interdição ou restrição das práticas
cavaleirescas, mais do que uma justificação. Ou melhor, Guilherme não era apenas um
homem pacífico, era mais pacífico do que o São Bernardo que fomentou o Novum
Militiae Genus.
Entretanto, Guilherme de Saint-Thierry não se enganou ao escolher a vida do
amigo para encarnar o elogio à conversão. Influenciado pela mãe, convicta do caráter
extraordinário de seu filho, sem condições de seguir a carreira das armas, o Santo
demonstrara uma afinidade com um monasticismo mais rigoroso, o cisterciense.
Todavia, não é suficiente para o jovem Bernardo seguir sozinho para o monastério. Ele
iniciara uma série de debates visando a convencer seus parentes a segui-lo em sua
escolha. São Bernardo mudou a característica primordial de sua família militar,
converteu os cavaleiros e deixou o pai solitário em casa até o dia em que ele próprio se
convertera em Claraval. Evidentemente, houve sérias resistências, mas o monge
triunfava no final sobre os cavaleiros.
É, no mínimo, estranho uma família com uma característica militar tão forte se
transformar em uma família monástica. Tal mudança se relacionaria com a influência de
uma espiritualidade ascética reformada (PACAUT, 1993: 29-31) que procuraria um
retorno às práticas eremíticas e uma maior recusa do mundo secular. Essa
espiritualidade foi apropriada e traduzida por São Bernardo aos seus familiares.
Evidentemente, como foi observado na obra de Guilherme de Saint-Thierry, essa
espiritualidade, apropriada pelo Santo, não influenciaria os milites se não houvesse,
além da intervenção bernardina, feitos extraordinários e fantasmagóricos para convencê-
los.
Na sua juventude, Bernardo recusou a cavalaria e se esforçou por convencer os
cavaleiros a abandoná-la. A expressão utilizada pelo Santo em outra carta a Guilherme
62
de Saint-Thierry, por volta de 1125, que demandava um tratado a São Bernardo, aponta
esse abandono do mundo, essa opção monástica: Deves saber que essa classe de
escritos me fere não pouco, pois me retira muito de minha vida interior, me interrompe
o cultivo da oração, sobretudo por que não tenho suficiente capacidade para ditar, nem
tempo disponível
43
(BERNARDO DE CLARAVAL. Carta a Guilherme de Saint-
Thierry. In: ARAGUREN & BALLANO, v. 07, 1990: 319, trad. nossa).
A intenção de Bernardo era manter uma vida contemplativa, retirada e apostólica.
O renome de grande místico que seria atribuído ao abade de Claraval pela posteridade
(AMATO, 1997-1998), ao lado de sua atuação política, evidencia a importância que a
ascese e o mundo secular assumem, respectivamente, para a historiografia
contemporânea, em São Bernardo. Pelas observações feitas, conclui-se que a posição de
Bernardo quanto a cavalaria não era a mesma na sua juventude, na carta ao Conde Hugo
e no De Laude Novae Militiae. Mesmo que Guilherme tenha pintado as relações
familiares de Bernardo com uma cor própria, ele não se afastou demasiadamente dos
primeiros posicionamentos de Bernardo quanto a militia. O discurso contido na Vita
Prima é o tênue equilíbrio entre o habitus de Guilherme de Saint-Thierry e as
reminiscências bernardinas.
Nota-se que o posicionamento de São Bernardo só foi alterado na proporção em
que novos relacionamentos, com outros milites, em circunstâncias diferentes
interferiram. A bagagem cultural constituída nos anos de convívio familiar e materno
foi colocada em questão. O São Bernardo místico e contemplativo, abade de Claraval,
abandonava sua meditação e, colocado diante dos problemas da legitimidade e da
identidade da cavalaria, tomava uma posição diferente da que se poderia esperar na sua
juventude. Construindo no De Laude Novae Militiae uma representação da cavalaria, o
Santo trouxe ou tentou trazer um equilíbrio para a militia e o monasticismo que não é
encontrado ou concebido na Vita Prima. Novas interações proporcionam aos sujeitos
históricos novas perspectivas e novas visões quanto aos elementos que compõe a sua
realidade.
43
Scito tamen non modico me in huiusmodi scriptitationibus feriri detrimento, quia multum hinc mihi
devotionis subtrahitur, dum studium orationis intermittitur, praesertim cum nec usus suppetat dictandi,
nec otium.
63
CAPÍTULO II
64
O NOVUM MILITIAE GENUS ALICERÇADO NO DIÁLOGO DE SÃO
BERNARDO COM HUGO DE PAYNS
01. A militia enquanto configuração social
O processo dinâmico e interativo de constituição das representações das
diferentes formas de sentir, pensar, compreender e apresentar uma existência que são
encontradas em grupos ou conjuntos sociais específicos, como aqueles onde se
encontravam os milites e os monges, tem sua complexidade explicitada na medida em
que é proposto um problema amplo: “quais os conjuntos de relacionamentos sociais que
pressionaram no sentido de desenvolver o que chamamos ‘sistema feudal’?
(ELIAS, 1994, v. 01: 16)
44
.
Restringimos aquela pergunta e realizamos escolhas dentro daquele “sistema
feudal” denominado por Elias. Tais escolhas têm como vetor a documentação
disponível. Assim, é problematizado o conjunto de relacionamentos que pressionaram,
ou melhor, concorreram para conformar ou tornar possível o imaginário social, político
e religioso dos primeiros milites Templi – aqueles cavaleiros ligados a Hugo de Payns –
tal como foi reconhecido, apropriado e traduzido por São Bernardo.
Elias (1994) apontou a evolução dos comportamentos, das formas de pensar e
agir em sociedade, especificamente a que conduziu à formação da sociedade de corte.
De acordo com sua “história dos costumes”, houve um processo no qual se passava de
certa “brutalidade” ou “liberdade dos costumes” para modos mais corteses, polidos e
civilizados. Seja através das posturas à mesa, das formas de se utilizarem os talheres e
de se recolher ao quarto de dormir, da relação entre gêneros ou simplesmente do modo
de assoar nariz, foi percebida a historicidade dos comportamentos sociais. O autor
enfatizou um processo no sentido de conformação da idéia de civilidade, de controle dos
impulsos, das paixões e das emoções. Elias destacou como os afetos e sentimentos
foram progressivamente pacificados no Ocidente.
44
A definição de “feudalismo”, evocada por Elias, se mostrou muito polêmica na medida em que
consideramos as discussões historiográficas a respeito do termo, principalmente em Duby (1989) e
Barthélemy (1994). Esse “sistema feudal”, para Elias, dizia respeito à sociedade do Ocidente entre os
séculos X, XI e XII. Nesse sentido, salientamos também que a própria delimitação cronológica do
“feudalismo” é um assunto controverso na historiografia. Se Duby (1989) identificou mudanças nas
estruturas sociais e políticas a partir do século XI, como a ascensão dos milites enquanto sujeitos políticos
importantes, a multiplicação dos castelos e a fragmentação política, Barthélemy (1994: 35) falou em uma
“revelação feudal” no século XI. Nesta “revelação feudal”, aquelas mudanças não seriam novidades no
século XI, sendo incorreto identificar uma ruptura naquele período.
65
“O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou chocar os outros orienta,
em conjunto com outros imperativos sociais e outras relações de poder, as práticas e
ações de forma mais estrita que no período precedente” (ELIAS, 1994, v. 01: 91). Esse
“período precedente” é aquele no qual encontramos a ascensão da militia enquanto
importante ator social e político: o feudalismo. Elias percebe, portanto, a historicidade
das regras e representações coletivas ligadas à historicidade da organização ou
disposição das relações sociais.
A nobreza francesa, segundo Elias, se caracterizaria por uma fragmentação.
Cada senhor viveria em seu domínio, auto-suficiente e autárquico. A fragmentação e a
independência dariam vazão aos impulsos belicosos, às paixões guerreiras. Nesse
contexto político, haveria certa liberalidade quanto às pulsões e aos desejos. Através de
um complexo processo político, com o progressivo fortalecimento do poder real e a
centralização do poder nas mãos de uma pessoa, ocorreria um enfraquecimento daqueles
senhores. O fortalecimento do poder monárquico, cujas raízes, em França, podem ser
encontradas desde o século XIV com o rei Filipe IV (BROWN, 1987) e quiçá
anteriormente, traria certa pacificação dos costumes. Tendo em suas mãos o monopólio
da violência legítima e do controle fiscal, as oportunidades de sucesso e expansão das
riquezas, antes dispersas, ficariam a disposição do rei, que as distribuiria de acordo com
as necessidades e as posições dos grupos políticos à sua volta: burguesia e aristocracia
(ELIAS, 1994, v. 02).
A antiga nobreza secular, perdendo sua função militar em favor de exércitos
mercenários recrutados entre a plebe, se transformaria em nobreza cortesã, se reunindo e
se acomodando em torno do rei, distribuidor de privilégios, benefícios e sinecuras. A
aristocracia teria sua influência e seu poder balanceados pela presença da burguesia,
grupo composto por comerciantes, mercadores, artesãos e outras camadas citadinas
influentes. O monarca se converteria em gestor das tensões entre a nobreza e a
burguesia, impedindo que um grupo conseguisse supremacia social e política sobre o
outro, o que colocaria em risco todo o edifício social. Em uma sociedade cortesã, onde a
convivência era constante, o importante não seria demonstrar força ou dar vazão a
sentimentos e ações violentas ou desafiadoras, mas controlar seus impulsos, disfarçar
seus desejos e tentar conhecer os pensamentos e intenções dos outros, em particular os
66
do rei. Disfarçar suas emoções e intenções e conhecer as dos outros seria uma forma de
ter sucesso nessa teia social.
Pacificação dos afetos, articulações concorrência, competição e acomodação
em torno da figura do rei, controle dos modos, “teatralização”, essas seriam as
principais características da configuração social específica da sociedade de corte.
Entretanto, quando Elias (1994, 1987) evidenciava a sociedade cortesã e se referia à
nobreza enquanto autárquica e auto-suficiente, não era negada a existência de relações
sociais no interior daquela. O autor propunha a especificidade das relações e das
necessidades que colocavam em contato os diferentes atores sociais constituintes da
sociedade feudal, em particular da nobreza. Essas necessidades não eram as mesmas que
conformavam as relações de dependência no seio da configuração social cortesã. Se
Elias pensou e problematizou as necessidades que levariam as pessoas a se relacionar na
sociedade de corte, era necessário fazer o mesmo com a nobreza secular dos séculos XI
e XII.
Tocamos em um ponto relevante: o conceito de configuração social. Dialogando
com Elias (1994) e com Chartier (1990), definimos aquele conceito como um recorte
social, limitado no tempo e no espaço, no interior do qual são estabelecidas interações
ou interdependências orientadas por necessidades sociais específicas. Dentro de uma
configuração social também afloram formas singulares de sentir, de pensar e de intervir
no mundo social e político. Em suma, entendemos a configuração social se relacionando
com a idéia de perspectiva ou posição social. Estas interferem na forma como tradições,
valores, categorias e outros elementos da cultura e da política são pensados e traduzidos
em um determinado contexto histórico.
A configuração social e os pressupostos que ela traz em si nos permitiram
problematizar e desenvolver a questão da identidade sócio-política da cavalaria tema
relevante para analisar a concepção militar de São Bernardo. Diferentes formas de
relações e consequentemente de representações sociais trazem a idéia de especificidade,
seja considerando a própria coletividade e sua “evolução” ou sua posição perante outras
coletividades em um determinado recorte temporal. Logo, essa especificidade, ou seja, a
própria identidade, pode ser entendida em dois sentidos que não são opostos, mas se
complementam: a forma como uma configuração social é dada a ver em comparação a
si no tempo os cavaleiros durante o período feudal e durante o absolutismo e a
67
forma como ela é dada a ver na sua interseção e articulação com outras coletividades de
seu tempo os cavaleiros e os monges. As idéias contidas na definição de configuração
social nos remetem ao complexo jogo das relações de poder e do papel político e social,
implícita ou explicitamente disputado, discutido e reivindicado pelos atores históricos.
A construção, destruição ou reconstrução da identidade sócio-política a forma
como é reconhecida a inserção, a atuação e a articulação de poderes por referência às
maneiras como se apresentam as relações sociais não é exclusividade de um grupo
social, mas é algo compartilhado com outros agentes, diferentemente posicionados na
sociedade (FOUCAULT, 2002). Assim, a posição e a inserção que Hugo de Payns, o
miles e a militia tiveram na sociedade de seu tempo, forneceram a ele uma perspectiva
singular para pensar e discutir a sua função. Por outro lado, São Bernardo e sua inserção
em seus espaços de socialização permitiram-lhe dialogar de forma específica não
com Hugo de Payns e com a militia, mas também com a tradição monástica, propondo
uma concepção de cavalaria com as colorações de seu monasticismo.
Ainda é preciso tomar cuidado com a inversão de pensamento. Ao relacionar a
cultura com as estruturas sociais, não se deve encobrir ou esquecer as influências
mútuas entre representações e práticas sociais. Afinal, como veremos, São Bernardo e
Hugo de Payns se expressaram e orientaram suas ações e a resolução de suas
necessidades através de uma linguagem e de um imaginário religioso/militar disponível
no seu tempo. Da mesma forma, nos pareceu relevante manifestar certa prudência com a
identificação ou proposição de estruturas sociais seja no Antigo Regime ou durante o
feudalismo. Reduzir cada interação social ou cada relação a um denominador comum
poderia deformar nossas conclusões acerca das relações entre São Bernardo e Hugo de
Payns.
Essa deformação é freqüente quando generalizamos de forma arbitraria e
apriorística nossas percepções e conclusões a uma época inteira. Assim, quando
identificamos certo grau de militarização nas relações sociais do século XI e XII,
partimos da análise documental e da discussão historiográfica, testando nossas hipóteses.
Essa análise e essa discussão nos proporcionaram perceber as especificidades das
relações sociais, assim como as especificidades da militarização que poderia ser
evidenciada em algumas delas particularmente no caso do abade de Claraval e do
miles Hugo de Payns.
68
Para o nosso trabalho, o importante a reter do Processo Civilizador é a idéia da
ligação das relações sociais com o que o autor chamou de estrutura ou construção da
personalidade dos indivíduos (ELIAS, 1994, v. 02: 79). Essa ligação, frisamos, é
historicamente constituída. A mudança das formas das relações sociais seria
acompanhada por mudanças nas formas de pensar, sentir e compreender o mundo, as
quais se convertem – no interior da duração dessas relações – em hábitos arraigados que
interferem nas próprias relações sociais (ELIAS, 1994, v. 01: 144). O que pode ser
definido enquanto um processo de “sociogênese”, de evolução das relações sociais e das
interdependências pessoais, exerce certa influência no processo de “psicogênese”, ou
seja, a apropriação e interpretação que as pessoas elaboram acerca de suas vidas, de suas
posições sócio-políticas e de seu mundo (ELIAS, 1994).
Percebemos, então, a sociedade de corte ou os nobres guerreiros dos séculos XI
e XII como componentes de diferentes configurações sociais, ou seja, de distintas
coletividades – cujo tamanho é muito variável – nas quais os atores sociais estão ligados
por laços de dependência específicos e cuja duração depende do equilíbrio e da
disposição das tensões que envolveriam a sociedade (CHARTIER, 1990: 100). A
especificidade dos laços e dos valores que se associam ou são associados a uma
determinada configuração social atribuem a seus membros uma identidade, uma forma
de sentir e pensar própria, uma distinção frente a outras configurações sociais. Com
essas idéias, partimos para caracterizar, de uma forma ampla, o meio social no qual se
articulavam São Bernardo e Hugo de Payns.
Segundo Ganshof (1968: 118), o serviço militar do vassalo era, do ponto de vista
do senhor, a essencial razão de ser do contrato” entre eles: “é para dispor de cavaleiros
que o senhor aceita vassalos”. Pela documentação analisada foi possível confirmar a
observação de Ganshof e assim como Bloch (1982: 325-331), identificar na guerra uma
das principais necessidades que faziam os nobres laicos estabelecerem relações entre si.
Preocupações militares, de ataque ou defesa, caracterizavam os espaços de socialização
onde os milites se convertiam em atores de suma importância.
Cada componente de uma configuração social interpreta ou problematiza, no
embate e na tensão de suas relações, as representações sociais e políticas presentes em
seu tempo. Essas especificidades das configurações sociais não funcionam como um
bloqueio que impede as interferências e influências mútuas. Ou seja, não se pensa
69
apenas nos embates e tensões no interior daquelas, mas também no contato estabelecido
entre diferentes configurações. São Bernardo utilizou um vocabulário militar para
expressar sua compreensão do oficio monástico e Hugo se apropriou da humildade
monástica e do imaginário eclesiástico das três ordens para legitimar a importância de
seu mister.
Da mesma forma, dentro da própria cavalaria poderiam ser identificadas várias
atitudes, desde a aceitação das palavras e do discurso de Hugo até uma recusa radical,
afinal dentro de uma configuração social está pressuposto certa heterogeneidade, a qual
se transforma em motriz das interdependências e relações sociais. Todavia, um
cavaleiro era um cavaleiro e não um monge, estando sujeito a posicionamentos,
experiências e a interpretações próximas entre eles, mas não coincidentes e até mesmo
antagônicas. Essas diferenças explicar-se-iam pelas diferentes posições sociais que,
como enfatizamos, forneciam uma perspectiva quanto ao arcabouço cultural disponível.
Nesse sentido, Elias conduziu à consideração da historicidade das relações
sociais e das representações que lhe acompanham. Se, na sociedade de corte, as
oportunidades e necessidades sociais encarnadas na pessoa do rei motivavam a nobreza
a estabelecer complexas relações, no seio da militia ou da nobreza guerreira, as relações
sociais, eram postas em movimento, sobretudo por questões militares. Contudo, não se
pretende reduzir as interações sociais a questões belicosas, mas apreciar e ponderar a
importância da militarização social para a constituição de certas representações políticas
e sociais, tal como o Novum Militiae Genus.
Esse enfoque sobre a militarização das relações sociais trouxe consigo a ênfase
na militarização dos afetos, dos sentimentos, das formas de sentir e pensar, seja a
religião, a sociedade ou as relações de poder. Por referência a essa militarização social,
questionamos o que se convencionou chamar de cristianização da militia, ou seja, a
imposição do cristianismo às práticas cavaleirescas e sua absorção no âmbito da cultura
clerical. Mesmo que São Bernardo tenha tentado conduzir a cavalaria para caminhos e
práticas cristãos, de caris monásticos, sua iniciativa incidiu na leitura de práticas,
intenções e interesses dos integrantes de uma configuração social distinta: Hugo de
Payns e os primeiros Templários.
70
02. Considerações acerca da cristianização da cavalaria e do cavaleiro como “pele
vermelha”
Concebemos as relações de poder entre Igreja e cavalaria pelo prisma do diálogo
entre São Bernardo e Hugo de Payns. Logo, é necessário indagar a historiografia a
respeito daquelas relações. Nessa parte, mobilizamos a leitura de três historiadores:
Marc Bloch, Ivan Lins e Alain Demurger. Bloch é considerado uma das matrizes do
estudo da sociedade medieval e da cavalaria (DUBY, 1989: 3-21). Lins é um intelectual
brasileiro, falecido, cuja obra de referência para os estudos cavaleirescos foi
publicada em 1958. Demurger é um medievalista francês que atualmente publica seus
estudos a respeito das Ordens Militares e Religiosas. Tomamos, portanto, opiniões
sobre a cavalaria oriundas de pessoas diferentes, com formações diferentes, publicando
em lugares e momentos diferentes.
Bloch em seu livro A Sociedade Feudal publicado pela primeira vez em 1939
apresentou, em determinado ponto da obra, aquilo que podemos definir como práticas
culturais cavaleirescas a relação da cavalaria com a guerra, a imagem do cavaleiro, o
hábito da caça e dos torneios, as habitações etc. Se referindo aos torneios cavaleirescos,
estes “simulacros de combate” nos quais os cavaleiros encontravam ocasião de se
exercitar, o autor se referiu a eles como “festas mais cristianizadas do que cristãs”
(BLOCH, 1982: 336). Esta observação é importante, na medida em que supõe a
distância entre as determinações eclesiásticas e as práticas cavaleirescas. Aquelas
seriam apropriadas e interpretadas de acordo com as posições e representações
assumidas pela cavalaria. Bloch nos sugere, portanto, um cristianismo militar, ou seja
que tem suas origens nos milites.
Demurger (2002: 15-24) identificou um longo processo de cristianização da
cavalaria, no qual a Igreja se esforçou por sacralizar e integrar o cavaleiro na sociedade.
O mesmo autor também demonstrou como essa sacralização não foi um termo sinônimo
de justificação de toda militia, mas que a salvação do cavaleiro passaria por sua
“conversão, por uma renúncia da secularidade” (DEMURGER, 2002: 24). A criação
das Ordens Militares – como os Templários – seria o ponto final desse processo,
“arrematando o trabalho de sacralização, bem como de integração dos cavaleiros à
sociedade cristã”.
71
Ivan Lins (1958: 94) destacou o esforço da Igreja em regulamentar a cavalaria,
“associando a idéia de obrigações morais à de deveres militares”. Lins, baseado,
sobretudo, na obra La Chevalerie, de Leon Gautier (1884) um historiador do século
XIX – acreditava que a Igreja elevara a cavalaria a uma espécie de “oitavo sacramento”,
não sendo uma tarefa fácil “plasmar em cavaleiro cristão o rude homem feudal” (LINS,
1958: 94). Um pouco mais adiante, o autor associara a figura do índio Pele Vermelha ao
cavaleiro, a quem apenas faltariam as faces tatuadas e uma coroa de penas na cabeça”
(LINS, 1958: 94). É notório o fato de Lins se basear em autores franceses do final do
século XIX e não mencionar autores como Bloch ou Guilhiermoz (1902).
Seja Demurger, enfatizando o esforço do clero em disciplinar a cavalaria, ou
Lins, na evidência de seu preconceito e ingenuidade na leitura das fontes eclesiásticas,
ambos atribuem aos religiosos e à religião um papel determinante, senão impositor.
Uma imposição, cuja observação de Bloch quanto às festas cavaleirescas nos fez
duvidar do sucesso. Uma linha de tempo na qual a cavalaria seria direcionada rumo
aos caminhos considerados cristãos foi insinuada por Demurger e por Lins. a
valorização do longo processo de arregimentação e disciplinarização da cavalaria.
Todas as ações e moções seriam estruturadas nesse viés. Lins (1958: 95) consegue
mesmo identificar o ponto inicial e final desse longo processo.
Pensando nessa duração, que pressupõe uma progressiva extensão do ideal
eclesiástico às camadas sociais, em particular à militia, São Bernardo, através do De
Laude Novae Militiae, seria um de seus componentes e expoentes. A própria carta de
Hugo de Payns aos Templários e sua iniciativa em 1120 fundando uma confraria
militar piedosa – demonstrariam a relativa eficácia daquele processo. Afinal, os próprios
cavaleiros estavam se colocando à disposição da cristandade. Assim, segundo alguns
eclesiásticos, que legaram uma imagem de barbárie para a militia, o ideal de cristianizar
a cavalaria era pouco a pouco concluído.
A leitura de Lins acerca das relações entre cavalaria e Igreja atribui uma ênfase,
até certo ponto exagerada, aos componentes de uma cultura clerical, ou seja, praticados
pelos religiosos e tidos como corretos e incontestáveis. A sensação de imposição e
determinação por parte da Igreja, que estende sua influência sobre a cavalaria em uma
evolução linear, é bem clara nos nossos dois interlocutores Demurger e Lins. Além
disso, há uma discutível noção de sucesso associado às iniciativas da Igreja.
72
De acordo com os autores, esse processo não foi tranqüilo. Posteriormente,
Demurger (2005: 19) afirmou e retificou que o primeiro passo para a criação das Ordens
Militares partiu de elementos da cavalaria, respondendo a suas demandas e seus anseios.
Para Lins, as ações da militia vêem no sentido de brutalidade e barbárie pura e simples,
como uma criança que precisa de seu tutor para amadurecer. Lins parece desconsiderar
as especificidades das interações sociais nas quais os milites estavam inseridos e a
influência ou a contribuição desses para as outras configurações sociais. Além disso, na
relação entre Igreja e cavalaria, o autor atribuiu um caráter discutível às iniciativas e
práticas cavaleirescas, sendo essas uma espécie de reflexo distorcido ou realização
imperfeita da vontade eclesiástica, senão uma brutalidade pura e simples (LINS, 1958:
92-123).
Esse processo que intentou colocar os cavaleiros no rumo certo para o Paraíso,
não pode, entretanto, encobrir a dimensão do conflito, da incerteza, das pressões e dos
confrontos de interesses entre a nobreza guerreira e a nobreza eclesiástica. Logo,
discutir a cristianização da cavalaria pela iniciativa de São Bernardo no início do século
XII não deve obliterar a militarização do cristianismo e a experiência que o abade teve
com a militia. É preciso pensar essa militarização no sentido de considerar as
apropriações feitas pela cavalaria, bem como as apropriações que os clérigos faziam
dela e de suas práticas. Como foi demonstrado anteriormente, São Bernardo, na sua
juventude, teve uma experiência com a cavalaria cujas conseqüências ou frutos diferem
de seus contatos e relações posteriores com os milites.
Falamos então, como Elias (1987), em uma teia de relações de poder na qual a
um movimento segue outro, tal como no xadrez. Nesses diversos movimentos, a cultura
sai de seu imobilismo estrutural ou de sua lenta caminhada e ganha uma fluidez que a
transforma, modela, fortalece ou destrói alguns de seus elementos. É necessário, então,
interrogar os milites e problematizar as relações sociais nas quais estavam inseridos,
utilizando o longo processo exposto por Demurger (2002) e Lins (1958) como ponto de
partida para o complexo jogo das relações de poder entre Igreja e cavalaria. Além disso
partindo de uma leitura crítica da obra de Lins é necessário recuperar a cavalaria
como sujeito histórico ativo, complexo e interativo e não como uma “criança mal
criada” ou um “pele vermelha” de acordo com uma leitura questionável dos
ameríndios.
73
Conceber a política enquanto relações de poder (FOUCAULT, 2002: 03-26)
entre os diferentes sujeitos ou configurações sociais pressupõe a possibilidade de ação,
capacidade de convencimento e mobilização por parte de dois sujeitos históricos, sejam
indivíduos ou grupos. Colocando em questão a idéia de um processo de cristianização
simples da cavalaria e de sua resistência pautada apenas em uma violência “indígena ou
pueril”, considerada de forma negativa, trazemos o problema da militia, de sua “força”
ou poder na sociedade de seu tempo. A idéia de militarização do cristianismo coloca em
questão e faz repensar o processo de cristianização da cavalaria. Se o clero pensava a
cavalaria, a cavalaria pensava o cristianismo.
O pressuposto da militarização do cristianismo nos ofereceu uma chave de
análise para uma carta atribuída ao miles Hugo de Payns. Este miles se dirigiria aos seus
companheiros cavaleiros. Examinaremos esta carta, mais adiante, enquanto vontade de
inserção e de justificativa do oficio militar na sociedade. Inserção, justificação e
também resistência. O miles, cujo labor era desqualificado e mal visto, tendo em vista
um possível comportamento turbulento, indisciplinado, além da relação próxima com a
morte violenta, utilizava os símbolos correntes no círculo eclesiástico para reivindicar
sua posição no corpo social. O que Bloch chamou de festas “mais cristianizadas do que
cristãs” alerta para as apropriações e adaptações que a tradição cristã eclesiástica sofria
no cotidiano da nobreza guerreira.
Chamamos a atenção para a militia enquanto configuração social e ator político
relevante, cujas pressões sobre a sociedade não incidiram apenas no que autores mais
tradicionais chamariam de violência gratuita e selvagem. Mesmo quando essa ocorria,
evidenciava algo mais do que barbaridade ou brutalidade. A violência cavaleiresca traz
à tona as disputas pelas oportunidades de expansão e “sobrevivência” em uma teia
intrincada e particular de relações de poder.
Ao aprofundarmos nosso enfoque sobre o miles Hugo de Payens, verificaremos
a apropriação que um miles fez da tradicional organização social, intentando mobilizar
seus pares e reivindicando reconhecimento. Essa apropriação, em conjunto com a
linguagem militar que São Bernardo aplicou ao seu monastiticismo, evidenciam a força
e a influência da militia ou da apropriação de uma cultura militar naquele período.
Todavia, não foi suficiente deduzir essa força seja pela demanda de Hugo ou pelos
escritos bernardinos. Assumindo a militarização do cristianismo como um fenômeno
74
real – cujas evidências serão apresentadas adiante verifica-se que ele se relaciona com
a militarização das relações sociais ou de parte significativa de seus componentes, tal
como auferimos anteriormente.
Deve-se ressaltar que não é necessário, para efeito de nossa análise, buscar a
gênese desse fenômeno ou fazer um levantamento minucioso de suas causas,
evidenciando uma preocupação exagerada quanto a questão das “origens” dos
fenômenos históricos (BLOCH, 2002: 56-60). É suficiente identificar a sua existência e
a sua expressão no final do século XI e início do século XII, ou seja, aproximadamente
uma geração anterior a Hugo de Payns e São Bernardo. Identificar esse fenômeno nos
deixa em condição de questionar o determinismo das decisões e da influência da cultura
clerical e reforçar o caráter incerto e delicado dos posicionamentos bernardinos
expostos no De Laude Novae Militiae. Movemo-nos, então, entre as interações e as
representações sociais, sendo ambas palco das relações de poder.
03. A polissemia da palavra miles enquanto índice de militarização social:
vassalidade e nobreza
Ivan Lins falava em “peles vermelhas” e na ação da Igreja em plasmar uma
representação considerada ideal nos homens “rústicos do feudalismo”. Por outro lado,
Hugo de Payns e São Bernardo nos mostram a força da militia nas representações
sociais e nas relações de poder. De acordo com leituras tradicionais, os eclesiásticos
buscavam se proteger contra os milites, reforçando o papel do rei, estabelecendo
sanções e restrições religiosas às práticas guerreiras ou tentando despertar a piedade
cristã da cavalaria. Todavia, as práticas e relações sociais, as disputas entre as vontades
de potência do clero e dos elementos da militia, colocavam em tensão e tornavam
imprevisíveis os efeitos daquelas ações e interações. O De Laude Novae Militiae é um
exemplo disso.
Problematizamos aquelas interações examinando o emprego da palavra miles e
de seus derivados na documentação recolhida. Procuramos compreender a quem era
atribuído o termo miles e em que sentido era empregado. Esse método mostrou-se
plausível na medida em que analisávamos a documentação e discutíamos com a
historiografia, sobretudo com o trabalho de Guilhiermoz (1902), cuja erudição deve ser
reconhecida (BARTHÉLEMY, 1994: 22). É possível caracterizar um pouco melhor os
milites a quem São Bernardo se referiu no seu tratado e compreender as relações em que
75
estavam inseridos. Dessa forma, dedicando atenção às relações entre a nobreza secular,
colocamos em questão as idéias de Lins sobre a cavalaria enquanto receptora ou reflexo
distorcido das determinações eclesiásticas.
Elias (1994) problematizou as especificidades dos laços que ligavam as pessoas
na sociedade do Antigo Regime, evidenciando as representações sociais que provinham
desses mesmos laços. Nesse sentido, investigamos as necessidades que levavam a
nobreza guerreira a estabelecer relações entre si, identificando as especificidades dessas
mesmas relações. Remetemos-nos então a um diploma de 1071, no qual a condessa do
Hainaut entregava suas terras aos cuidados do Imperador Henrique IV, que por sua vez,
as enfeudava ao duque Godofredo, o Corcunda. Este nobre se comprometia a prestar
apoio militar à Condessa. O documento nos revela que Godofredo era vassalo ou miles
feito” do bispo Dietwini, tendo aceito o benefício com a autorização de seu senhor:
No ano da encarnação do senhor de 1071, no dia oito do mês [de maio], Henrique,
quarto rei dos Romanos, que vem animado pela clemência divina, entrega, por Santa
Maria e por São Lamberto, o condado de Hainaut, com todos os benefícios, com todos
os castelos, com todas as abadias, com os prepostos, com todos os poderes e cavaleiros.
Em juramento perpétuo doou e concedeu, doação entregue junto ao altar pelas mãos de
seu advogado, em presença da condessa Richilde e em acordo com seu filho Balduíno.
E no mesmo lugar, em presença do rei e de todos os príncipes, o duque Godofredo,
cavaleiro feito do bispo Dietwini, por ele, tendo aceitado o beneficio
45
. (HENRIQUE
IV. Ato de Enfeudação do condado de Hainaut. In: SHWALM & WEILAND, 1893, v.
01: 650, trad. e nossa).
Godofredo era um duque, ou seja, personagem de grande importância social e,
dentro da nobreza laica, uma figura de prestígio. Todavia, ele também era um vassalo
do bispo Dietwini e o termo miles, empregado para qualificá-lo, remetia-se à idéia de
dependência ou serviço. No texto latino, o uso da partícula apassivadora é feito”
effectus est e o emprego do caso genitivo para o nome do bispo, que traz a idéia de
posse domni episcopi Dietwini demonstravam a percepção do círculo imperial com
relação ao miles, ou seja, de vassalidade e de dependência. Miles não qualificava o
simples servo ou o camponês da gleba, para o qual eram atribuídos outros termos, como
vilão. Aquela palavra se aplicava, no círculo Imperial, ao vassalo/militar.
45
Anno Dominice incarnationis MLXXL in die VII, mensis [Maii] Heinricus quartus Romanuorum rex
Leodium veniens divina instinctus clementia dedit sancte Marie [et] sancto Lamberto comitatum de
Hainou et marchiam Valenti[nian]am, cum omnibus beneficiis, cum castris, cum abbatibus, cum
prepositis, cum omnibus potentiatibus et militibus suis, iure perpetuo dedit et donavit, datum ad altare per
manum advocati sui legaliter tradidit, presente comitissa Richilde.... et annuente cum filio Balduino. Et
ibidem in presetnia regis et omnium principium dux Godefridus miles effectus est domni episcopi
Dietwini, accepto ab eo hoc beneficio.
76
Em uma ata de juramento do século XI encontramos a equivalência das palavras
miles e cavaleiro. Essa ata, assim como outros documentos, aponta a noção de que
seguramente na segunda metade do século XI quando se referiam a miles, pensavam
no cavaleiro, no nobre guerreiro que combatia a cavalo: Convém... que deliberasse que
seja o seu fiel cavaleiro e perfeito homem do senhor..., que agora, seu fiel cavaleiro e o
senhor avancem contra todos seus inimigos
46
. (Apud: GUILHIERMOZ, 1902: 142, trad.
e grifo nossos). Guerreiros a cavalo, mas dependentes de um senhor.
Em outro diploma imperial, datado do ano de 1107, o Imperador Henrique V
conclamara seus vassalos a participarem da expedição contra o conde de Flandres.
Segundo o diploma, aquele conde havia cometido usurpações e ignomias contra o
Imperador e seus súditos, sendo necessária a formação de uma força repressora:
Henrique, rei dos romanos pela graça de Deus, a Oto, bispo babenbergense, seu
caríssimo fiel, graça e todo bem. Como nos regozijássemos pela providência de Deus e
pelo desígnio dessa grande piedade sobre nosso reino pacificado por toda parte,
vieram até nós os núncios da parte do duque G[odofredo], do duque B[alduino] e de
outros de nossos fiéis da marcha de Flandres. Os núncios dizem que não é possível
sustentar as moléstias do conde R[oberto], que para a ignomia de nosso reino e de
todos que nele estão, investiu sobre eles e para si usurpou de nós o episcopado
cameracense. Daí, como se levantava o assunto, consultamos nossos príncipes reunidos
e, explicada a situação, estabelecemos pelo conselho deles: nós haveremos de fazer
expedição em Flandres sobre tão presunçoso inimigo, que deve ser nosso cavaleiro, e
que ele, impunemente, não se orgulhe por mais tempo sobre o enfraquecimento e a
vergonha de nosso reino
47
. (HENRIQUE V. Carta ao bispo Oto. In: SHWALM &
WEILAND, 1893, v. 01: 133, trad. e grifo nossos).
Roberto II era um inimigo considerado tão terrível que o Imperador julgou que
ele “deva ser nosso cavaleiro”. O pronome de posse traz novamente a idéia de
pertencimento, dependência ou serviço, caracterizando o miles com a idéia de
vassalidade. Segundo Guilhiermoz (1902: 344), neste documento a palavra miles
poderia ser traduzida também por vassalo. A partir da consideração desses dois
diplomas e do texto do juramento firmado por um cavaleiro a seu senhor, construímos a
46
Convenit... ut delibere suus fidelis cavallarius sit et perfectus homo dominicus..., ita ut, fidelis suus
miles et dominicus, adjuvet contra omnes suos ostes.
47
Heinricus Dei gratia Romanorum rex O(toni) Babenbergensi episcopo, suo fideli karissimo, gratiam et
omne bonum.
Cum Dei providentia et magnae pietatis eius consilio de nostro regno ubique pacificato congauderemus,
advenerunt nobis nuntii ex parte G. ducis et B. comitis aliorumque fidelium nostrorum marchiae
Flandrensis, intimantes eos diutius non posse sustinere molestias R. comitis, qui regnum nostrum invasit
et ad ignominiam omnium, qui in eo sunt, sibi nostrum Cameracensem episcopatum usurpavit. Unde,
quemadmodum res hortabatur, nostros pincipes convocatos consuluimus, et ab eis sapienter re notata,
constituimus eorum consilio, nos facturos expeditionem in Flandriam supra tam praesumptuosum hostem,
qui nostre miles debet esse, ne diutius de inminutione et dedecore regni nostri impune superbiat.
77
idéia provisória de que a palavra miles não trazia em si e nem por si alguma carga de
nobreza ou destaque. Se Godofredo e Roberto eram nobiles isso advém de seu sangue e
de seus títulos – respectivamente de duque e conde – não da atividade de miles.
Por outro lado, se voltamos nossa atenção para as cartas que se referem às
doações feitas por milites a abadia de Cluny, no sudeste da França, atribuímos um
sentido diferente à palavra miles. Um ano antes do ato de enfeudação de Hainaut, um
certo Hugo miles que não é Hugo de Payns realizou a doação de algumas
propriedades nos seguintes termos:
Em nome da santa e indivisa Trindade, dos santos apóstolos Pedro e Paulo, Hugo
cavaleiro, com seus filhos em perpétuo:
Nós oferecemos alguma coisa, embora muito pouca, que de ser útil aos usos do
serviço sempre divinamente. Entregamos a Deus, para o seu serviço, não damos
abundantemente ao nosso; afim de que sejamos agentes e devamos tudo a ele, em
verdade não com ingratidão, pela remissão dos nossos pecados junto a tanta esperança
clemente da segurança dele. Por isso, queremos que seja conhecido que, eu cavaleiro,
pelos beatos apóstolos Pedro e Paulo, junto ao local de Cluny, doei quando do meu
direito, a igreja em honra de São Jorge, situada sob o castelo Vendopere, com o mesmo
subúrbio, retida por nenhum costume, seja por poder ou justiça. Mas quaisquer que
forem hospedados, ainda que alguém faça clamor deste fato, estarão livres e seguros
por todo serviço e cobrança, salvo no serviço de São Pedro e dos monges. Pelos
próprios seja feita justiça, sendo excetuadas as pessoas de nossos servos. E sobre todos
os usos, tanto nas florestas, prados, águas, pastagem tenham em perpétuo [...]. A fim de
que permaneça estável e firme, ponho esta doação nas os dos dois priores
cluniacenses, senhor Warmund e senhor Odon, e a partir desse momento, louvei esta
carta ser feita e fiz meus filhos e mulher louvarem em presença de meus cavaleiros
48
.
(HUGO MILES. Carta de Doação a Cluny. In: BERNARD & BRUEL, v. 04, 1876-
1903: 549, trad. e grifos nossos).
Neste documento de doação, datado por volta de 1070, os milites de Hugo foram
testemunhas de seu ato. Ou seja, a presença daqueles cavaleiros, vassalos de Hugo,
assegurava a veracidade e o cumprimento do que foi estipulado. Hugo se referia àqueles
milites como sendo seus, o que reforça o sentido da palavra miles para expressar a
condição do dependente militar. Todavia, o mesmo Hugo, por duas vezes, se disse miles.
48
In nomine sancte et individue Trinitatis, sanctis apostolis Petro et Paulo, Hugo miles, cum filiis suis in
perpetuum. Quotiens divine servitutis usibus profutura quedam licet perpauca offerimus, sua Deo
reddimus, non nostra largimur, ut hec agentes simus et ei cui omnia debemus, non omno ingrati, et de
nostrorum remissione peccatorum apud ejus clementiam aliquantisper securi. Quapropter, tam presentibus
quam futuris notum esse volumus, quod ego miles beatis apostolis Petro et Paulo, ad locum Cluniaci,
donavi quandam mei juris ecclesiam in honore sancti Georgii, sub castro Vendopere sitam, cum eodem
suburbio, nulla ibi prorsus consuetudine sive potestate justitiave retenta, sed quicumque ibi hospitati
fuerint ab omni servitio et exactione liberi et securi, nisi in servitio Sancti Petri et monachorum, etiamsi
clamor de his factus fuerit, per ipsos justitia fiat, exceptis nostris servis hominibus. Et insuper omnem
usuariam, tam in silvis, pratis, aquis, pascuis, perpetuo habeant [...]. Quod ut stabile firmumque
permaneat, donum hoc in manu priorum duorum Cluniacensium domni Warmudi et domni Odonis misi,
et hanc cartam inde fieri laudavi, et uxorem atque filios meos in presentia militum meorum laudare feci.
78
É nítido que, pela doação realizada, este cavaleiro detinha certa potestas, não por
fazer um dom, mas por estipular as condições desse dom o que deveria ser pago, os
isentos, a ênfase de que os bens doados não eram retidos por qualquer direito ou justiça,
etc.
Logo, Hugo, que se definia como miles, possuía certos direitos e poderes,
mantinha um séqüito de guerreiros e parecia gozar de relativa autonomia, pois não
mencionava abertamente quem seria seu senhor. Tão importante quanto considerar as
condições da doação é examinar como Hugo se referia a sua pessoa. Tal como foi
observado, não há nenhum qualificativo ou título nobiliárquico ligado ao seu nome,
exceto o termo miles. A partir desta carta e de nossas observações, propomos que aquela
palavra tinha a conotação de vassalagem afinal Hugo falava “na presença de seus
cavaleiros” mas poderia indicar, também, uma condição social de destaque, pelo
menos em nível local – Hugo, detentor de poder, se definia como miles.
Condição em que o ofício das armas é valorizado, se Hugo não tinha ligações
com uma nobreza de sangue ou tivesse ligações muito tênues, sua posição poderia ser
representada pela atividade militar. Se compararmos esta carta com os outros dois
documentos citados anteriormente, percebemos que miles, no caso de Hugo, é um título
que cumpriria as funções qualificativas e designativas dos títulos conde e duque.
Portanto, o termo miles torna-se apropriado para designar uma situação específica que
não é simplesmente a do vassalo militar, mas do guerreiro, que possui consideráveis
poderes e influências locais. É preciso destacar que no rculo imperial, miles assumia
um sentido diferente daquele que era empregado no sudeste da França.
No documento de doação a Cluny há duas realidades para a palavra miles, um
significado de dependência e outro de distinção ou titulação. Há uma gradação dentro da
própria militia (BARTHÉLEMY, 1994): Hugo era um miles, mas tinha milites a seu
serviço, os quais testemunharam sua generosidade para com o monastério de Cluny. Em
outras palavras, a cavalaria enquanto conjunto de milites pode ser considerada como
uma configuração social heterogênea, cujos componentes apresentavam graus ou veis
diversos, além de diversas formas de interação aliança, hostilidade, testemunho etc.
Esses diferentes graus ouveis sociais criavam uma teia de interdependências: o
vassalo se colocava a serviço e sob a proteção do senhor, que por sua vez precisava de
seus serviços para se defender de outros senhores ou submeter um vassalo rebelde.
79
Tanto no ato de enfeudação, quanto na conclamação da expedição a Flandres ou na
doação a Cluny, podemos auferir que as necessidades militares conduziam parte
significativa das relações sociais no seio da alta ou da baixa nobreza secular do
Ocidente.
Assim, concordamos com Guilhiermoz (1902: 331-345) quando este demonstra
a palavra miles guardando um sentido de vassalidade e dependência um ponto comum
para a “velha escola” de historiadores da cavalaria (BARTHÉLEMY, 1994:24-30).
Todavia, é visível a importância que o miles assumia nas relações sociais, sendo um
termo de definição ou título. No início do século XII, a atividade guerreira mostrava-se
como algo complementar à noção de nobilitas, ou seja, da nobreza:
Balduíno, pela misericórdia de Jesus Cristo, rei de Jerusalém, príncipe de Antioquia,
ao venerável pai Bernardo, que vive no reino da Gália, digno de toda reverência, abade
do monastério de Claraval, as exéquias de boa vontade. Os irmãos Templários, que o
Senhor excitou para a defesa da mesma província e de algum modo maravilhoso [a]
conservou, desejam obter confirmação apostólica e ter certa norma de vida. Por este
motivo, enviamos a vós Andream e Gundemarum, ilustres pelas guerras feitas e pelo
sangue de antiga origem, a fim de que obtenham, pela ordem pontifícia, a sua
aprovação, e os espíritos deles inclinem para prestar a nós subsídio e auxílio contra os
inimigos da fé...
49
(BALDUÍNO II. Carta a São Bernardo. In: ALBON, 1913-1922: 01,
trad. e grifo nossos).
Nesta carta, o próprio rei de Jerusalém, Balduíno II apresentava os Cavaleiros
Templários a São Bernardo. Segundo Albon, editor de um cartulário da Ordem dos
Templários, a data desta correspondência pode ser estabelecida entre os anos de 1119 e
1126. Esta carta seria anterior ao De Laude Novae Militiae. Podemos estabelecer que,
aproximadamente, a carta do rei de Jerusalém foi escrita na década de vinte do século
XII.
Este é um documento de suma importância, pois relacionava o sangue de antiga
origem de Andream e Gundemarum com as guerras feitas por eles. O reconhecimento e
também a nobreza, neste texto, foram apresentados não pelo parentesco nobre, mas
pela atividade militar (DUBY, 1989). A palavra miles relacionava-se, portanto, com
nobiles. Todavia, a primeira não substituía ou tornava-se sinônimo da segunda, apenas a
49
Balduinus, miseratione Iesu Christi rex Ierosolymorum, princeps Antiochie, venerabili patri Bernardo,
in regno Gallie degenti, totius reverentie digno, abbati monasterii Clarevallis, prompte voluntatis
obsequium. Fratres Templarii, quos Dominus ad defensionem hujus Provide excitavit et mirabili quodam
modo conservavit, apostolicam confirmationem obtinere et certam vite normam habere desiderant. Ideo,
mittimus ad vos Andream et Gundemarum, bellicis operibus et sanguinis stemmate claros, ut a pontífice
ordinis sui approbationem obtinerant, et animum ejus inclinent ad prestandum nobis subsidium et
auxilium contra inimicos fidei....
80
complementava e ajudava a compor seu significado. No início do século XII, fazer
guerras e combater a cavalo eram atividades que dignificavam e atribuíam
reconhecimento à nobreza laica.
Quase trinta anos antes da carta de Balduíno II, em 1098, o conde de Pontigne
convidava o bispo Lamberto para participar da cerimônia de promoção e ordenação do
jovem rei Luis VI à militia:
Guido, conde de Pontigne, a Lamberto, pela graça de Deus, bispo atrevasense e seu
parente, saúde e amizade. Humildemente suplico a Vossa piedade que se dignificais vir
a Villa-do-Abade na sétima festa de Pentecostes, porque, na manhã de domingo, devo
adornar e honrar a Luis, o filho do rei, com as armas cavaleirescas e para a
Cavalaria promover e ordenar
50
. (GUIDO DE PONTIGNE. Carta ao bispo Lamberto.
In: MICHEL-JEAN-JOSEPH, 1878: 187, trad. e grifo nossos).
Evidência da valorização da guerra e da atividade guerreira por parte da realeza
capetíngia, o convite do conde Guido mostra que a militia, ou as práticas militares,
foram valorizadas também pelos reis. Receber as armas da cavalaria não era algo
imprescindível, aparentemente, para Luis VI assumir o trono. Entretanto, a cerimônia a
qual Guido se referia acrescentava mais dignidade ao futuro rei. Podemos pensar, neste
caso, em uma realeza legitimada pela herança de sangue e honrada por sua ligação com
o ofício militar. O rei seria não apenas o herdeiro legítimo do trono, mas um homem
adestrado na arte militar, competente para a guerra e o comando de suas tropas.
Ao propormos que a atividade militar acrescentava a noção de nobreza, nos
documentos citados, não pretendemos insinuar que fosse diferente em séculos anteriores.
O monge Richer de Reims e o abade Odon de Cluny apontaram, nos séculos IX e X,
como a alta nobreza era ciente de suas obrigações militares. Richer dizia que: No ano da
encarnação do senhor de 888..., fizeram rei a Odon, homem militar e de grande valor...
O pai deste era Roberto, de ordem eqüestre...
51
(RICHER. Histoire de Richer em quatre
livres. In: POISIGNON, 1855: 17). Odon de Cluny mencionara a existência no seio
da nobreza de um ius militiae – direito de cavalaria.
50
Lamberto, Dei gratia, Atrebatensi episcopo et cognato suo, Guido Pontivorum Comes salutem et
amicitiam. Vestram humiliter obsecro pietatem, ut septima feria Pentecostes Abbatis-villam venire
dgnemini, quoniam in crastina die Dominica debeo Ludovicum Regis filium armis militaribus adornare et
honorare, et ad militiam promovere et ordinare.
51
Anno itaque incarnationis dominicae 888..., Odonem virum militarem ac strenuum..., regem creant. Hic
patrem habuit ex equestri ordine Rotbertum...
81
Na proporção em que a alta nobreza valorizava, desde cedo, a atividade militar,
recusamos a idéia de que a cavalaria ou a atividade cavaleiresca fosse algo oriundo de
uma “nova aristocracia”. Esta “nova aristocracia”, segundo Duby (1989) proveria da
desagregação do poder dos reis carolíngios e do enfraquecimento de seus oficiais. Ela
apresentaria laços frágeis com a antiga nobilitas e que necessitasse de legitimidade e
dignidade, encontrando estas na atividade militar. A polissemia da palavra miles
demonstrou a fragilidade de uma observação que valorize exclusivamente seja a
continuidade seja a ruptura, pois a antiga nobreza valorizava o termo miles, e certos
domini, de origem obscura ou incerta, se apropriavam deste termo como título ou uma
designação.
A partir de nossa análise do termo miles, concluímos que, em locais diversos,
mas em um mesmo recorte temporal, esta palavra e seu significado assumiram um papel
relevante na definição e na expressão das relações sociais no seio da nobreza laica ou
entre esta e a nobreza eclesiástica. Miles designava o grande vassalo militar aliado ou
inimigo indicava o pequeno ou médio nobre com poderes e influência locais
consideráveis. Além disso, podemos assinalar o monge que lutava contra os maus
espíritos em seu monastério se dizia um miles. Se esta palavra guardava no século XII
uma continuidade que remontaria ao culo X ou se era algo novo, o importante foi
identificar nos seus diversos significados o índice de uma sociedade cujas dependências
se constituíam, em grande medida, a partir de interesses e necessidades militares.
Mais do que uma configuração social heterogênea, de onde afloravam
expressões, definições e representações militares, a militia secular ou a nobreza
guerreira do final do século XI e início do XII – da qual Hugo de Payns fazia parte – foi
um locus onde as necessidades e relações militares assumiam o primeiro plano. Essa
militarização torna-se evidente não apenas nas representações dos milites e na função
designativa e qualificativa que essa mesma palavra e seus derivados assumiam em
contextos diferentes, mas também na linguagem simbólica que a nobreza eclesiástica
apropriava para expressar sua religiosidade e suas relações com a religião
especificamente São Bernardo.
82
04. A função social da cavalaria e sua justificação nas palavras de um miles
Aprofundar a compreensão sobre a militia e a experiência de seus membros, os
milites, passa pela explicitação das representações do mundo social, das imagens, dos
sentimentos e das expressões que foram dadas a ver de si próprios, de suas condições,
necessidades ou vontades. Outro caminho diz respeito à percepção das articulações que
podem ser estabelecidas entre aquelas mesmas representações e as interdependências ou
interações que encontraram lugar em um determinado contexto ou recorte social. Essas
representações também traduzem a apreensão dos sujeitos históricos quanto a sua
posição em um determinado conjunto complexo de relações sócio-políticas.
Em outras palavras, se as representações que uma dada coletividade tem de si ou
do mundo orientam suas ações e práticas sociais e políticas, essas mesmas
representações se transformam ou permanecem, ganham força ou enfraquecem no
complexo jogo das necessidades e interesses que impulsionam os homens a
estabelecerem contatos entre si ou a apresentarem um característico grau de
interdependência” (ELIAS, 1987: 132). Logo, não é de estranhar a possibilidade e o
afloramento de expressões ou representações militares em uma sociedade cujas relações
de seus componentes, em proporção considerável, assumem um caráter militar e seus
atores definam a si e os elementos constituintes de sua cultura – crenças, valores,
normas, tradições e concepções – segundo idéias, palavras ou conceitos militares.
É possível identificar aquelas expressões e representações através de uma carta
escrita por um componente da militia, Hugo de Payns, em uma data que pode ser
estabelecida entre os anos de 1127 e 1129 (LECLERQ, 1957). A dita carta foi assinada
por Hugo Peccator. Em princípio, aquela carta foi atribuída ao cônego Hugo de Saint-
Victor, pois seu autor era versado em direito canônico (DEMURGER, 2005: 54-56).
Todavia, Demurger observou que “as relações de Hugo de Saint-Victor com o Templo
eram inexistentes” (2005: 56). Além disso, se ele fosse o autor desse texto, não o teria
enviado diretamente aos Templários, mas a Hugo de Payns, seu mestre tal como fez
Guido prior dos cartuxos em 1127 (GUIDO DOS CARTUXOS. Carta a Hugo de Payns,
prior da Ordem de Cavalaria do Templo: In: UM CARTUXO, 1962: 154-160).
Leclerq (1957: 84) evidenciou que as idéias da carta são aquelas de alguém que vivia
com os Templários, que conhecia “seus pensamentos e suas tentações”. Logo, de acordo
83
com as conclusões de nossas análises, o homem que assinou a carta e Hugo de Payns
eram a mesma pessoa.
Essa carta pretendia incentivar ou animar a atividade militar dos companheiros
de Hugo no reino de Jerusalém. Esses cavaleiros, cujo chefe era o próprio Hugo de
Payns, questionavam ou eram questionados sobre a validade ou a legitimidade do seu
ofício – a guerra:
Hugo Pecador, aos Cavaleiros de Cristo, no Templo de Jerusalém, cuja observância de
sua devoção, através da freqüência religiosa, os fez santificados: lutar, vencer e coroar
em Jesus Cristo, Nosso Senhor.
Quanto mais, irmãos caríssimos, o diabo vela para a nossa decepção e subversão, tanto
mais, s, pelo zelo da circunspecção, devemos vigiar com precaução não somente
contra o mal, mas igualmente no bem. Pois que, o primeiro esforço do diabo é que nos
arraste para o pecado, o segundo é que corrompa nossa intenção em obrar bem, o
terceiro, que, como sob aparência do Progresso, nos faça, na instabilidade do bem,
afastar da intenção de obrar pelo propósito virtuoso. Para acautelar-se com a primeira
fé, a Escritura diz: “Filho, cuide que você não consinta em algum pecado[Tb. 04,
06]. Para acautelar-se com a segunda, diz em outro lugar: “Faz bem pelo bem
52
”; pois
não faz bem quem, na boa obra procura sua glória e não a de Deus. Para acautelar-se
com a terceira fé, diz em outro lugar: “Fica em teu lugar” [Dn. 10, 11], de modo
que, verdadeiramente, quem não quer ficar no seu lugar, a partir desse que é conhecido
agir pelo que é devido, por mente inconstante sempre é raptado junto a outro diferente
apetite; para corrigir esta leviandade e inconstância o Apóstolo diz: “Cada um
permaneça na vocação que foi chamado[I Cor. 07, 20]. [Mas cada um recebe de
Deus um dom particular], um este, outro aquele [I Cor. 07, 07]. Veja irmãos, se todos os
membros do corpo tem um único oficio, o corpo não pode sobreviver. Que o Apóstolo
seja ouvido: “Se o dissesse, ‘eu não sou um olho, portanto eu não sou parte do
corpo’, ele ainda o é parte do corpo”? [I Cor. 12, 15]. Freqüentemente, os mais
humildes são os mais úteis. O pé toca a terra, mas suporta todo o corpo. Não enganeis
a vós próprios: que cada um aceite a recompensa segundo seu labor. Os tetos das casas
suportam a chuva, o granizo e os ventos; mas se não fossem os tetos, por que pintariam
as casa com ornamentos?
Falamos nisto irmãos, pois ouvimos alguns de vós estarem perturbados, por quaisquer
indiscretos, que dedicais vossa profissão, vossa vida por portar armas contra os
inimigos da Fé e da paz em favor da defesa dos cristãos; como, digo, que aquela
profissão seja ilícita ou perniciosa, isto é, ou pecado ou impedimento para o maior
progresso
53
. (HUGO PECCATOR. Carta aos Cavaleiros de Cristo. Apud: LECLERQ,
1957: 86-87, trad. nossa).
52
Esta passagem não está na Bíblia.
53
Christi militibus in templo Iehrosolimitano religiosa conuersatione studium suae deuotionis
sanctificantibus, Hugo peccator: pugnare et uincere et coronari in Christo Ihesu Domino nostro.
Quanto magis, fratres carissimi, diabolus ad nostram deceptionem et subuertionem inuigilat, tanto magis
nos per circumspectionis studium non solum contra mala, sed etiam in bonis agendis sollicite uigilare
debemus. Primus enim labor diaboli est ut nos ad peccata pertrahat; secundus ut in bono opere
intentionem nostram corrumpat; tercius ut quasi sub specie proficiendi, a proposito uirtutis opere nos
excutiens, in bono instabiles effitiat. Propter primam fraudem cauendam dicit Scriptura: “Filli, uide ne
aliquando peccato consentias”. Propter secundam fraudem cauendam, dicit alio loco: “Fac bonum bene”;
bonum enim non bene facit qui in opere bono non Dei, sed suam gloriam querit. Propter tertiam fraudem
cauendam, alibi dicit: “Sta in loco tuo”; quasi enim in loco suo stare non uult qui de eo quod ex debito
agere cogitur, per inconstantiam mentis semper ad aliena uaria apetitu raptatur; propter hanc
inconstantiam et levitatem corrigendam dicit Apostulus; “Vnus quisque in ea uocation in qual uocatus est,
84
Escrito revelador da necessidade de legitimar a continuidade de um ofício e de
fazer apologia de sua utilidade. Esta é uma carta escrita por um miles aos seus
commilitii. Deparamos com um cavaleiro defendendo a função da cavalaria na casa de
Deus. Indício de uma religiosidade militar, ou seja, que floresce a partir de milites,
Hugo encontrara sua justificativa na Bíblia, ou em passagens dessa que puderam ser
interpretadas no sentido de dar apoio a atividade cavaleiresca. Mesmo que essas
passagens não estivessem diretamente relacionadas à guerra ou se remetessem a
contextos não belicosos, sua referência afirmava, no imaginário de Hugo e de seus
companheiros, que o cavaleiro teria sua utilidade no mundo e que o diabo cuidava de
dissuadi-lo da bondade e da utilidade de sua ação.
Hugo fez uma apropriação singular do escrito bíblico. Apropriação singular no
sentido de se constituir em escolhas e ênfases baseadas nas necessidades, demandas e
crises dos componentes da militia. Por outro lado, trata-se não apenas de uma
apropriação bíblica militar. Aquele miles interpretou e mostrou uma visão própria de
profundas categorias de pensamento político, de relações de poder. Os pés que tocam a
terra, mas sustentam o corpo e os tetos que resistem às intempéries para proteger as
pinturas ornamentadas das casas formam uma linguagem simbólica que enfatizava a
importância da militia. Todavia, a linguagem dessa importância estava alicerçada não
no orgulho militar, mas na simplicidade e na indispensável contribuição dos mais
humildes elementos que Hugo de Payns encontrou em seu imaginário: os pés e o teto.
Sentimentos de humildade e de utilidade ressaltam o caráter indispensável da
cavalaria através de símbolos os pés e o teto ou de relações simbólicas específicas –
os pés e os olhos, os tetos das casas e as pinturas ornadas. Nesse jogo complexo, a
cavalaria se aproximaria mais dos pés e dos tetos do que dos olhos
54
ou das pinturas.
in ea permaneat”. “Alius sic et alius sic”. Videte, frates si omnia corporis membra unum officiu habeant,
corpus ipsum omno subsistere non possit. Apostollum audit : Siquidem dixerit pes : “Non sum oculus,
non sum de corpore”, non ideo est de corpore ? Sepe que magis ignobilia sunt, magis sunt utilia. Pes
tangit terram, sed totum corpus portat. Nolite decipere uosmetipsos: unusquisque mercedem accipiet
secundum suum laborem. Tecta domorum imbrem et grandinem et uentos accipiunt; sed si non essent
tecta, quid facerent laquearia picta ?
Hoc idcirco dicimus, frateres, quia audiuimus quosdam vestrum a quibusdam minus discretis perturbari,
quasi professio uestra, qua uitam uestram ad portanda arma contra inimicos fidei et pacis pro defensione
christianorum dedicastis, quasi, inquiam, illa professio uel inclicita sit uel pernitiosa, id est uel peccatum
uel maioris profectionis impedimentum.
54
Como observou Senellart (2006: 103) a representação do clero como os olhos da sociedade era bem
antiga: No século VII, na Espanha Visigótica, os bispos reunidos em um Concílio em Toledo atribuíam-se
a função de olhos no corpo místico da Igreja.
85
Poder-se-ia atribuir à imagem dos pés uma ligação direta com a cavalaria. Porém,
afirmar que os pés representassem, para Hugo, a cavalaria, mostrou-se enganoso, na
medida em que aquele mbolo seria invocado apenas para ilustrar aos milites que, se
até mesmo os pés que tocam a terra tinham uma importância fundamental, porque os
cavaleiros não teriam? A cavalaria não estava representada pelos pés, mas se
aproximava destes na medida em que seu ofício é tão útil e tão desconsiderado quanto o
deles. Na carta, o esforço de Hugo era exatamente de combater aquela desconsideração
pelo reforço do sentido da humildade/utilidade e pela reivindicação da justa recompensa
segundo o labor de cada um.
o símbolo do teto empregado por Hugo pode ser diretamente relacionado à
cavalaria devido à idéia de proteção que ele evocava. Hugo desejaria argumentar que se
não fossem pelos milites os cristãos estariam expostos às violências de seus inimigos.
Deve-se ressaltar que Hugo escreveu após a primeira Cruzada (1099) aos seus
cavaleiros em Jerusalém, onde a insegurança e a ameaça do Islã deveriam ter uma
influência considerável no imaginário das pessoas, sobretudo dos milites daquela região.
Os tetos, assim como os pés, exercem um trabalho simples, mas imprescindível e
indispensável. Nesse sentido, este trabalho se torna merecedor de sua recompensa. O
sentido de recompensa na carta de Hugo pode significar tanto a salvação das almas
militares quanto as orações e doações feitas pelos cristãos em intenção dos milites que
lutavam com ele na Terra Santa.
A instrumentalização de símbolos que evocavam a humildade e a utilidade
indica uma importância do monastério e do monasticismo enquanto interlocução
relevante para Hugo de Payns pensar os problemas de sua realidade. Não é infundado
apontar o círculo dos cônegos do Santo Sepulcro, dos quais Hugo era vassalo, e uma
possível proximidade com São Bernardo (DEMURGER, 2005: 59) devido a
existência de laços sangneos – como espaços de socialização indispensáveis para
possibilitar as construções e relações que Hugo estabelece para a sociedade a partir de
elementos disponíveis em seu imaginário. Em outras palavras, a humildade enfatizada
por Hugo sobretudo na frase: frequentemente os mais humildes são os mais úteis
deixou visível a presença de um conjunto de imagens e expressões monásticos
anteriores, que seriam oriundos, sobretudo, de uma tradição monástica beneditina.
86
Consideremos novamente a Vita Geraldi de Santo Odon. No momento, o
importante a observar é que esse texto hagiográfico conta a vida de um miles, cujas
virtudes militares não eram empecilho muito grande para a dedicação às atividades
piedosas (DUBY, 1989: 32-33). Segundo Santo Odon, Geraldo de Aurilac era um
homem forte, excelente nas atividades militares, mas conhecedor da Bíblia e pessoa
humilde. Exercendo o ofício militar, o pio Geraldo se tornou Santo. Aceitando a
hipótese de Duby, que acredita na grande difusão e no sucesso dessas hagiografias
militares, e do exemplo de santos tais como Geraldo, a Vita Geraldi de Santo Odon
pode ter sido uma referência para o comportamento de milites como de Hugo de Payns.
Como foi demonstrado, Hugo parecia conhecer a Bíblia e suas palavras
enfocavam a humildade e a utilidade de seu ofício, virtudes próximas do exemplo de
São Geraldo. Não podemos afirmar que Hugo lera ou conhecera a Vita Geraldi, mas é
plausível pensar que o miles se apropriou de elementos hagiográficos, interiorizando-os,
e exteriorizando-os de forma a legitimar seu ofício perante a sociedade. A linguagem
militar/monástica dessas vidas de santos guerreiros, cuja Vita Geraldi é um exemplo,
forneceria subsídios e modelos possíveis para Hugo de Payns ponderar, interpretar e
defender a especificidade da cavalaria. Da mesma forma, a idéia de penitência, ligada a
Cruzada e ao exercício militar contra os povos considerados inimigos do cristianismo,
muito incentivada e difundida pelos eclesiásticos, seria um elemento relevante para
Hugo. Como podemos verificar no relato do Sermão do Papa Urbano II em 1095, no De
Laude Novae Militiae e em outras referências, a luta na Palestina constituía um ato
penitencial para a nobreza ou parte dela.
A importância de um imaginário ou de símbolos religiosos, especificamente
monásticos, evidenciada nas palavras de Hugo, não deve conduzir ao engano de
conceber uma pacificação ou a predominância de preceitos religiosos do monastério
sobre os cavaleiros dos campos de batalha ou dos castelos. As citações bíblicas, a idéia
de penitência militar e a humildade dos tetos que suportam os castigos do tempo e dos
pés que tocam a terra serviriam para justificar a ação, em especial a ação militar. Pela
pena daquele miles sob o impacto das escolhas orientadas pelas suas necessidades e
interesses elementos de uma cultura monástica e talvez até mesmo o cristianismo
ganharam uma forma particular.
87
O miles Hugo de Payns escolheu e mobilizou certos referentes disponibilizados
pela cultura de seu tempo e em seu meio social, nos permitindo visualizar expressões,
sentimentos e representações de uma religiosidade militar. Elementos que possuíam
influências ou componentes variadas oriundos das tradições políticas, do imaginário
cavaleiresco ou do imaginário monástico cristão etc. mas que formavam um todo
coerente na cabeça daquele miles. A importância de elementos que se ligavam
intimamente a um imaginário monástico, tais como a humildade e a paciência foi
possível na medida em que se relacionava ou dialogava com escolhas, necessidades e
crises específicas de uma determinada coletividade ou de elementos de uma dada
configuração social, como a militia.
Mesmo não pondo em risco o edifício e a organização social idealizados pelo
imaginário eclesiástico das três ordens, as palavras de Hugo de Payns podem ser
entendidas como uma forma de resistência. Trata-se de uma resistência na proporção em
que eram demandados um reconhecimento e uma legitimidade através da apropriação
militar, ou seja, que parte de um miles, de uma linguagem religiosa. Hugo conhecia a
Bíblia e certas doutrinas acerca da organização e hierarquização social. Ele mobilizou
seu conhecimento para superar certas resistências ou visões negativas em relação a sua
atividade. Assim, as pressões, negociações, interpretações e influências mútuas
decorrentes das interações entre militia e Igreja são problemas políticos tão importantes
para a sociedade dos séculos XI e XII quanto às querelas entre o Papado e o Império.
Hugo intentaria trazer a cavalaria junto ao clero ou a qualquer outra função
social convencionalmente considerada importante. Ao relacionar a cavalaria com os pés
e os tetos, contrapondo estes aos olhos e às pinturas das casas que poderiam se
identificar com o próprio clero – o miles deixava implícito em seu discurso a hierarquia
de funções sociais e de organização dos poderes. Nessa hierarquia e organização, a
militia deveria assumir um reconhecimento legítimo – sem a militiao haveriam
pinturas, não haveriam casas.
Devemos frisar que o escrito de Hugo não significava negação ou anulação, mas
apenas um esboço ou intuição de hierarquização ou organização social que difere do
que foi convencionalmente pensado ou organizado pelos poderes estabelecidos para a
cavalaria. Se estes pensaram o rei ou o clero como cabeças da Ecclesia, ou seja, da
Cristandade, (DUBY, 1994: 54-56), o miles Hugo de Payns e posteriormente o monge
88
Bernardo trouxeram o foco para a militia. Podemos sem equivoco supor que Hugo,
quando, em uma linguagem metafórica, contrapôs os pés ao corpo e os tetos às pinturas,
desejasse expressar: quem decidia a guerra nos campos de batalha era tão importante
quanto o clérigo que orava.
Religiosidade militar, imaginário sócio-político cavaleiresco, leitura original que
nasceu no seio da militia são observações que encontram sustentação e sentido, não
somente nas estruturas culturais e nas categorias de pensamento político disponíveis a
Hugo, mas nas relações sociais nas quais o mesmo se insere. Estas lhe forneceram uma
perspectiva específica daquelas mesmas culturas e categorias. Hugo não põe em xeque o
edifício social, mas resiste ao estigma que ele diz ser atribuído à cavalaria mobilizando
uma linguagem de símbolos, articulando-os de forma a valorizar a posição daqueles que
conduziam a guerra nos campos de batalha na Terra Santa. Mais do que o teto da
sociedade, Hugo pensava que os milites eram o teto de Jerusalém.
05. As crônicas de Ernoul e Guilherme de Tiro: demandas e expressões de Hugo de
Payns e seus commilitii
Analisamos o fragmento da carta que Hugo escreveu a seus milites. Agora, é
relevante interrogar dois importantes cronistas cujos relatos se referiam àqueles milites.
A escolha de Ernoul e Guilherme de Tiro se explica por dois motivos: além de relatarem
os inícios da Ordem do Templo, eles são oriundos de diferentes grupos sociais o
primeiro era um escudeiro, ou seja, um laico; o segundo era o arcebispo da cidade de
Tiro, portanto, um clérigo. Cada um deles deu ênfase a um aspecto diferente da ação de
Hugo de Payns. Ernoul enfatizou a iniciativa de Hugo enquanto um desejo de
emancipação. Por outro lado, Guilherme de Tiro enfocou suas responsabilidades
religiosas e os desejos do clero de Jerusalém.
Sobre a iniciativa de Hugo e seus companheiros de fundarem uma confraria, o
cronista Ernoul não se contentara em fornecer uma descrição dos fatos, ele se mostrou
seguro o bastante para reproduzir o que eles teriam sentido e afirmado naquele
momento de suas vidas:
Quando os cristãos conquistaram Jerusalém, tantos cavaleiros se entregaram ao
templo do Sepulcro e muitos se entregaram depois, vindos de todas as terras. E
estavam obedientes aos padres do Sepulcro. Haviam bons cavaleiros doados; então,
eles tomam conselho entre si e dizem: Nós abandonamos nossas terras e nossos
amigos e estamos aqui, vindos para levar e exaltar a lei de Deus. Mas sim, somos
89
arrastados aqui para beber e para comer e para dispensar sem fazer trabalho; não
disputamos, nem tomamos as armas, e a necessidade está na terra; e somos
obedientes a um padre, a tal ponto, não fazemos feitos de armas. Tomemos conselho e
fazemos mestre um de s, pelo consentimento de nosso padre, que nos conduza em
batalha quando tiver lugar”. Enquanto neste lugar estava o rei Balduíno [Balduíno II],
eles vão até ele e dizem: “Senhor, por Deus, estando aconselhados, que assim, de
forma feita, temos escolhido fazer mestre um de nós que nos conduza para a batalha
pela segurança da terra”. O rei ficou muito contente e disse que de bom grado daria
conselho e ajuda.
Portanto, o rei convoca o patriarca, os arcebispos, os bispos e os barões da terra para
tomar conselho. Então, tomam conselho, e concordam que bem seja a fazer... E então,
tanto o rei e seus conselheiros fazem a respeito do padre do Sepulcro que os liberte da
obediência...
55
(ERNOUL. Chronique d’Ernoul. In: MAS LATRIE, 1871: 07-09 trad. e
grifos nossos).
Ernoul, não presenciou os acontecimentos que relatara. Ele se referia aos fatos
transcorridos por volta de 1120, escrevendo, provavelmente, após 1186. Tendo em vista
sua posição junto à nobreza do reino de Jerusalém Ernoul era escudeiro de Balião de
Ibelim, o qual negociara a rendição de Jerusalém aos exércitos do sultão Saladino em
1187 é muito provável que tivesse acesso a documentos que se referissem aos inícios
daquela confraria. Além disso, certa tradição ou convenção, que se estabeleceria em
torno daqueles inícios e uma proximidade ou identificação entre Ernoul e aqueles
milites, proporcionada pelo exercício da mesma atividade as armas conferiram a
Ernoul a segurança de reproduzir a fala e as moções de Hugo e seus milites.
Alain Demurger (2005: 18) aufere que Ernoul, possivelmente, introduziu em sua
crônica uma “tradição” que seria bem próxima dos eventos que haviam conduzido Hugo
de Payns e outros milites a romperem, amigavelmente e com o aval do rei de Jerusalém,
seus laços com o Santo Sepulcro. Considerar a existência de uma tradição próxima entre
Ernoul e Hugo de Payns é bem verossímil na medida em que se considera um
importante fator mencionado no parágrafo anterior: o exercício da mesma função.
Atrelado a este exercício, espaços de socialização similares atribuíam a Ernoul um
55
Quant li Crestiien orent conquis Jherusalem, si se rendirent assés de chvaliers au temple del Sepulcre ;
et mout s’en i rendirent puis de toutes tiers. Et estoient obéissant au prieus dou Sepucre. Il i ot des boins
chevaliers rendus ; se prisent consel entr’iaus et disent : « Nous avoumes guerpies noz tieres e nos amis,
et sommes chi venu pour la loy Dieu i lever et essauchier. Si sommes chi arresté pour boire et pous
mengier et por despendre sans oevre faire ; ne noient ne faisons d’armes, et besoingne en est en le tiere ;
et sommes obéissant à un prieste, si ne faisons oevre d’armes. Prendons consel et faisons mestre d’un de
nos, par le congié de no prieus, ki nous conduie en bataille quant lius en sera ». À icel tans estoit li rois
Bauduins. Si vindrent a lui, et disent : « Sire, pour Dieu, consilliés nous, qu’ensi faitement avons esgardé
à faire maistre de l’un de nous qui nous conduie en bataille pour le secours de le tiere ». Li roi en fut mout
liés et dist que volentiers i meteroit consel et aïe.
Adont manda li rois le patriarche e les archevesques et les veskes et les barons de la terre, pour consel
prendre. prisent consel, et s’ accorderent tuit que bien estoit à fere... Et fist tant li rois et ses
consausx viers le prieus dou Sepucre qu’il les quista de l’obedienche...
90
habitus ou uma perspectiva da cultura e da política próximo ou equivalente aos dos
milites de sua narrativa.
Em outras palavras, ao ser apontada a existência de traços em comum entre
Hugo de Payns e Ernoul não se está evidenciando uma mentalidade abrangente no
tempo e no espaço que abarcaria toda uma época (LE GOFF, 1976: 71). Porém, é
considerada a existência de sentimentos e religiosidades, além da apropriação de valores,
ideais, crenças e outros elementos que, em conjunto, proporcionam identidade ou
reconhecimento a um conjunto restrito de pessoas, no presente caso os milites. A gama
desses elementos a forma como se apresentam se configura no interior de relações
sócio-políticas que logram certa duração no devir histórico (BERSTEIN, 1998).
Descontentamento com a ociosidade, vontade de continuar movendo um
combate tido como legítimo e reconhecimento de uma identidade que não é compatível
com a subserviência inativa a um estabelecimento eclesiástico que não é capaz de
conduzir seus milites à guerra teriam sido, para Ernoul, os móveis daqueles cavaleiros.
Segundo Ernoul, identificamos em Hugo de Payns e seus milites a afirmação da
necessidade e da especificidade do ofício cavaleiresco. Junto a essa afirmação,
reforçamos que é visível a insinuação de uma religiosidade de caráter e de feições
militares, muito ligada ao ideal de Cruzada.
A crônica escrita por Ernoul era a continuação de outra elaborada por Guilherme
de Tiro. Apesar do arcebispo de Tiro ter relatado em sua crônica a iniciativa daqueles
milites, Ernoul julgou necessário voltar sua atenção para ela e contá-la novamente.
Guilherme de Tiro, em 1174, se tornou chanceler do reino de Jerusalém e no ano
seguinte fora eleito arcebispo da cidade de Tiro. Escrevendo a sua crônica entre 1170 e
1184, a pedido do rei de Jerusalém, Amauri, Guilherme de Tiro assim se referiu a Hugo
de Payns e àqueles cavaleiros que foram os primeiros Templários:
No curso do mesmo ano, alguns nobres cavaleiros da ordem eqüestre, homens
devotados a Deus e animados por sentimentos religiosos, se consagraram ao serviço do
Cristo e fizeram profissão entre as mãos do patriarca de viver para sempre segundo o
uso dos cânones regulares, na castidade, obediência e sem bem próprio. Os primeiros e
os mais distintos dentre eles foram dois homens veneráveis: Hugo de Payns e Godefroy
de Saint-Omer. Como eles não tinham igreja nem lugar para viver, o rei lhes cedeu
temporariamente um lugar de habitação no seu palácio, na parte inferior do Templo do
Senhor, na direção sul. Sob certas condições, os negos do Templo do Senhor lhes
cederam um terreno que eles possuem próximo deste lugar para que ele servisse a
Ordem. De mais, o senhor rei [Balduino II] e seus nobres também o senhor patriarca e
seus prelados lhes deram certos benefícios de seus próprios domínios, em perpétuo ou
temporariamente, afim de que eles pudessem se nutrir e se vestir. O primeiro
91
engajamento de sua profissão, prescrito para eles pelo senhor patriarca e os outros
bispos para a remissão de seus pecados era que deveriam proteger as rotas e as vias,
tanto quanto eles pudessem, das emboscadas dos ladrões e dos ataques, em particular
para a segurança dos peregrinos
56
. (GUILHERME DE TIRO. Historia Rerun in
Partibus Transmarinis Gestarum. In: MIGNE, v. 201, 1855: 526-527, trad. e grifos
nossos).
Da mesma forma que Ernoul, Guilherme de Tiro não conheceu aqueles milites.
Todavia, diferentemente do primeiro, o segundo não atribui qualquer fala aos
personagens que eram narrados. É perceptível que a iniciativa de formar uma confraria
militar parte sem dúvida de elementos ligados à militia, mas o sentimento de piedade
religiosa é o motor principal, senão o único, da ação de Hugo e seus companheiros.
Guilherme de Tiro não mencionara o possível descontentamento com a ociosidade, ou
as demandas militares de Jerusalém insinuados por Ernoul. Além do mais, no
discurso de Guilherme de Tiro a ênfase nas determinações eclesiásticas, sendo seu papel
tão ou mais importante que a iniciativa dos milites.
Nas duas passagens, é contado o surgimento de uma confraria militar. A
formação dessa confraria em 1120 é o marco de fundação da Ordem dos Cavaleiros
Templários. O atributo marcante dessa Ordem era a união do ofício e dos votos
monásticos com a atividade guerreira concretizada na figura de seus cavaleiros.
Guilherme de Tiro, ao contrário de Ernoul, fez menção a esses votos, ou seja, o
arcebispo de Tiro identificou naqueles cavaleiros a vontade de criar não uma
confraria militar, mas uma confraria militar e religiosa. É provável que Hugo, em 1120,
tenha intuído a união dos ofícios monástico e guerreiro amalgamada em um sentimento
ligado à idéia de penitência. Porém, a adoção dos votos monásticos é posterior à
fundação da confraria, sendo algo desenvolvido e aprofundado no diálogo de Hugo de
Payns com São Bernardo na década de vinte do século XII.
56
Eodem anno, quidam nobiles viri de equestri ordine, Deo devoti, religiosi et timentes Deum, in manu
domini patriarchae, Christi servitio se mancipantes, more canonicorrum regularium in castitate, et
obedientia et sine proprio velle perpetuo vivere professi sunt. Inter quos primi et praecipui fuerunt, viri
venerabiles, Hugo Paganis et Gaufredo de Sancto Aldemaro. Quibus, quoniam neque ecclesia erat, neque
certum habebant domicilium, rex in palatio quod secus templum Domini, ad australem habet partem, eis
ad tempus concessit habitaculum. Canonici vero templi Domini, plateam quam circa praedictum habeant
palatium, ad opus officinarum, certis quibusdam conditionibus concesserunt. Dominus autem rex cum
suis proceribus, dominus quoque patriarcha cum praelatis ecclesiarum, de propriis dominicalibus certa eis
pro victu et amictu beneficia quaedam ad tempus, quaedam in perpetum contulerunt. Prima autem eorum
professio, quodque eis a domino patriarcha et reliquis episcopis, in reminssionem peccatorum injunctum
est, ut vias et itinera, maxime ad salutem peregrinorum, contra latrorum et incursatium insidias pro
viribus conservarent.
92
Afirmação de identidade, descontentamento com uma determinada relação de
dependência, demanda e justificação religiosa de uma atividade, esses são os
sentimentos que podem ser atribuídos aos primeiros Templários a partir das passagens
citadas de Hugo de Payns, Ernoul e Guilherme de Tiro. Mesmo reconhecendo a
existência de influências, seja de Balduíno II ou de outra autoridade laica ou eclesiástica
do reino de Jerusalém, o impulso formador daquela confraria foi algo que floresceu no
seio da militia. Nesse sentido destacamos que aquela formação é fruto “da vontade de
reconhecimento ao mundo de alguns milites estabelecidos em Jerusalém”
(DEMURGER, 2005: 19).
A demanda e a vontade desses milites cruzados, às quais São Bernardo deu voz e
transformou em algo universal, sugerem em conjunto com a imagem militar que o
Santo faz do ofício monástico certa militarização da sociedade naquele período. A
apropriação que um miles realizou de elementos eclesiásticos e a demanda de apoio que
realizou, demonstram certa consciência da importância de seu ofício e uma vontade de
afirmá-lo perante os seus contemporâneos. Da mesma forma, a tradução do ofício
monástico segundo um vocabulário militar traz a idéia da influência e da relevância de
certas práticas para determinados componentes de uma sociedade. Tal fenômeno
evidenciaria a ascensão dos componentes da militia enquanto um grupo social de
destaque. Além disso, possibilitaria o florescimento de uma religiosidade e
representação política militares que parte dos milites. Tal religiosidade e visão de
mundo cavaleirescas contribuem para dar forma àquilo que podemos definir enquanto
Novum Militiae Genus.
O reconhecimento de sentimentos e expressões que de alguma forma se ligam ou
são atribuídos à militia ou a certos milites, como percebemos na carta de Hugo, abre,
como foi proposto, um caminho para a caracterização desse conjunto de homens. Mas,
não apenas para caracterizar a militia na primeira metade do século XII, aqueles
elementos condicionam a problematização e o esforço de compreensão das relações
sociais ou das interações que, historicamente, os tornaram possíveis. Logo, percebemos
a presença e a ascensão de interesses e desejos em Hugo de Payns que foram
confrontados com os interesses e desejos de São Bernardo.
93
06. O De Laude Novae Militia enquanto “conversa” entre dois diferentes milites
Christi
Fruto da capacidade literária bernardina, o texto do De Laude Novae Militiae
também resultou da apropriação, ou seja, da interpretação e do contato estabelecido
entre o Santo e o miles Hugo de Payns. Problematizar aquele tratado à luz do habitus
bernardino nos conduziu à problematização do diálogo entre o Santo e o cavaleiro, entre
o monge e o miles. A representação e a percepção bernardina da militia originam-se do
ponto de encontro entre as práticas de uma cultura cavaleiresca práticas constituídas
de forma complexa e o habitus de São Bernardo. No prólogo de seu escrito, São
Bernardo afirmou que estava escrevendo a pedido de um miles, para um miles e os
milites que lhe seguiam:
A Hugo, cavaleiro de Cristo, mestre da cavalaria de Cristo, Bernardo, Abade de
Claraval – de nome apenas: Que ele combata o bom combate! [II Tim. 04, 07].
Uma, duas e mesmo três vezes, salvo o erro, meu muito querido Hugo, tu solicitastes de
minha parte um escrito de exortação para ti e teus companheiros de armas. Tu querias
que, na falta de lança, eu brandisse minha pluma contra o inimigo tirano, pois tu me
afirmavas que eu vos seria de uma verdadeira ajuda vos encorajando por um texto,
que não posso o fazer pelas armas. Certamente, eu adiei minha resposta, não por tua
demanda me parecer merecer o desprezo, mas eu queria evitar passar por culpado
aceitando-a rapidamente e com precipitação: poder-se-ia encontrar alguém mais capaz
para cumprir, melhor que eu, esta tarefa; e me julgava pouco apto a empreender [tal
tarefa] e, no caso, comprometer o resultado desta empresa tão necessária. No entanto,
eu percebi que esta assaz longa espera me trazia prejuízo: eu parecia demonstrar mais
ainda vontade do que incapacidade. Também, terminei por fazer isto que eu pude:
ao leitor caber julgar se satisfiz a demanda. E mesmo se minha resposta acabe por
desagradar ou parecer insuficiente, aquilo me importaria pouco, pois não faltei de
aquiescer a tua vontade, na medida de meu saber
57
. (DLNM, v. 367, t. 31: 48-50, trad.
e grifos nossos).
A demanda de um miles, um cavaleiro, Hugo de Payns, foi posta em evidência.
Este miles, como pôde ser observado na sua carta, desejou incentivar e animar a si
próprio e a seus companheiros. Buscando reforçar a mensagem de sua missiva, Hugo
demandou a São Bernardo um escrito, uma exortação. O Santo respondeu dirigindo sua
57
Hugoni, militi Christi et magistro militiae Christi, Bernardus Claraevallis solo nomine abbas: bonum
certamen certare.
Semel, et secundo, et tertio, nisi fallor, petisti a me, Hugo carissime, ut tibi tuisque commilitonibus
scriberem exhortationis sermonem, et adversus hostilem tyrannidem, quia lanceam non liceret, stilum
vibrarem, asserens vobis non parum fore adiutorii, si quos armis non possum, litteris animarem.
Distuli sane aliquamdiu, non quod contemnenda videretur petitio, sed ne levis praecepsque culparetur
assensio, si quod melius melior implere sufficeret, praesumerem imperitus, et res admodum necessaria
per me minus forte commoda redderetur. Verum videns me longa satis huiuscemodi exspectatione
frustratum, ne iam magis nolle quam non posse viderer, tandem ego quidem quod potui feci: lector
iudicet, an satisfeci. Quamquam etsi cui forte aut minime placeat, aut non sufficiat, non tamen interest
mea, qui tuae pro meo sapere non defui voluntati.
94
mensagem não apenas para aqueles milites, mas para a militia, ou seja, o conjunto de
todos os cavaleiros do mundo. Mesmo que em seu tratado São Bernardo dividisse a
militia em duas, qualificando uma de maliciosa e a outra de cristã e virtuosa, o público
leitor visado era todos os milites. Aos próprios milites São Bernardo atribuira a tarefa de
julgar se ele atendeu à demanda e aos anseios de Hugo de Payns.
O prólogo testemunha que Hugo pediu de forma insistente e que São Bernardo,
finalmente, aquiescera. O Santo animava Hugo a combater “o bom combate” e, mesmo
não podendo usar a lança, o abade empunhava sua pena contra “o inimigo tirano”, que
no caso assumia a forma do Islã. O prólogo é uma passagem de grande riqueza, pois
atribui ao tratado o significado de um auxilium, um socorro a um miles que, com foi
demonstrado, teria necessidade de incentivo e ânimo para dar continuidade à sua luta, às
práticas de seu ofício.
Como observou Flori (1998: 09), o termo miles e seus derivados poderiam
designar não o cavaleiro, o nobre guerreiro armado, mas os monges que combatiam,
em nome de Cristo, os maus espíritos e os demônios. A observação de Flori pode ser
corroborada na medida em que verificamos que Guilherme de Saint-Thierry identificara
na conversão dos milites que visitavam a Claraval uma passagem para uma cavalaria
espiritual spirituali militiae. O próprio São Bernardo apresentou uma visão militar da
ascese e do retiro monásticos, entendendo estes enquanto um combate árduo do
religioso contra as entidades malévolas e contra as tentações do mundo:
Levanta-te, cavaleiro de Cristo, levanta-te, sacode a poeira, volta para a luta da qual
fugistes, volta a lutar mais valorosamente depois da fuga, para triunfar mais
gloriosamente.
[...]
Por que recusas o peso e a aspereza das armas, cavaleiro mole? Insistente adversário
e as setas voadoras fazem com que o escudo não seja pesado nem se sinta a couraça
nem o elmo
58
. (BERNARDO DE CLARAVAL. Carta ao monge Roberto. In:
GIOVANDO, v. 12, t. 01, 1944: 35-37 e 39, trad. nossa).
Para tentar trazer seu sobrinho de volta para o monastério de Claraval filiado a
Ordem de Cister do qual havia fugido das rigorosidades se retirando em Cluny, São
Bernardo, em 1122, não se contentou em dizer a ele os perigos para a salvação de sua
58
Surge, miles Christi, surge excutere de pulvere, revertere ad praelium unde fugisti, fortius post fugam
praeliaturus, gloriosus triumphaturus.
[...]
Quid armorum refugis pondus et asperitatem, delicate miles? Adversarius instans et circumvolantia
spicula facient clypeum non esse oneri, loricam non sentiri vel galeam.
95
alma, mas fez uma arenga, um incentivo para a batalha espiritual ao estilo de um chefe
militar. São Bernardo, em sua linguagem simbólica das armas, da armadura e do escudo,
se apresentava como um conhecedor da equipagem e das práticas militares de seu tempo.
Da mesma forma que é perceptível a presença de elementos monásticos na carta de
Hugo, a existência de elementos cavaleirescos na concepção monástica de São Bernardo
também é evidente. Apropriações culturais, trocas simbólicas entre cavalaria e
monasticismo apontam um diálogo ou uma fluidez de elementos e imagens cuja
disposição e forma finais conduzem, novamente, para a especificidade do meio social,
em um nível mais amplo, no qual foram possibilitadas.
A observação do duplo significado que o termo miles cavaleiro e monge
assumiu em São Bernardo nos remete a perceber o De Laude Novae Militae, como foi
dito, enquanto ajuda de um miles, combatente do monastério, a outro miles, combatente
das batalhas cavaleirescas.. “O bom combate” de Hugo de Payns a que São Bernardo se
referia no prólogo do De Laude Novae Militiae era o das Cruzadas, da defesa e proteção
do reino de Jerusalém, em particular dos peregrinos cristãos. São Bernardo foi um
pouco mais longe do que Hugo ao fazer sua apologia do ofício cavaleiresco. O Santo
realizou uma espécie de “inversão” ou releitura daquilo que poderíamos chamar de
hierarquia da Salvação. Ele estabeleceu o Novum Miliae Genus na frente não da
militia secular, mas também dos próprios monges:
Uma cavalaria de uma espécie nova toda a terra o reconhece vem nascer naquela
região que outrora o Sol se levantando, presente na carne, visitou do auto [Lc. 01, 78].
Na fortaleza de sua mão [Is. 10, 13], ele expulsava então os príncipes das trevas [Ef. 06,
12]. E agora, extermina os séqüitos dos próprios, os filhos da infidelidade [Ef. 02, 02],
pelas mãos dos seus fortes. E também, agora, é feita a redenção de seu povo e
novamente erguido o troféu da nossa salvação na casa de Davi seu servidor [Lc. 01,
68-69]. Esta é uma Cavalaria de uma nova espécie, que os séculos passados não
conheceram, e pela qual o Senhor conduz infatigável e conjuntamente um duplo
combate: contra a carne e o sangue e contra os espíritos nos espaços celestes [Ef. 06,
12]. Em verdade, resistir corajosamente pelas forças do corpo a um inimigo
corporal não me parece tão surpreendente, do mesmo modo que não é uma raridade. E
por outro lado, engajar a força da alma em uma guerra contra os vícios e os demônios
não é mais surpreendente ainda que digno de louvor; o mundo, como se vê, está cheio
de monges
59
. (DLNM, v. 367, t. 31: 50, trad. e grifos nossos).
59
Novum militiae genus ortum nuper auditur in terris, et in illa regione, quam olim in carne praesens
visitauit Oriens ex alto, ut unde tunc in fortitudine manus suae tenebrarum principes exturbavit, inde et
modo ipsorum satellites, filios dissidentiae, in manu fortium suorum dissipatos exterminet, faciens etiam
nunc redemptionem plebis suae, et rursum erigens cornu salutis nobis in domo David pueri sui.
Novum, inquam, militiae genus, et saeculis inexpertum, qua gemino pariter conflictu atque infatigabiliter
decertatur, tum adversus carnem et sanguinem, tum contra spiritualia nequitiae in caelestibus. Et quidem
ubi solis viribus corporis corporeo fortiter hosti resistitur, id quidem ego tam non iudico mirum, quam nec
96
Esta passagem resume a concepção de cavalaria de São Bernardo, aquilo que ele
imaginava que seria a militia ideal. A Palestina, berço de Cristo, lugar que testemunhara
“o Sol se encarnar vindo do alto” assistiu ao advento de uma nova militia que jamais
existira nos séculos anteriores. Essa seria herdeira do combate de Cristo contra “os
príncipes das trevas” ou seus seguidores. O Novum Militiae Genus se inscreve, portanto,
nos quadros do exército divino, conduzindo um combate similar ao de Cristo contra o
“Mal”. Em terras tradicionalmente santas, não é de estranhar que, para São Bernardo, a
cavalaria que lá lutasse também comungasse dessa santidade.
Todavia, essa sacralidade não era automática. Era preciso passar por uma
conversão, ou pela adoção de um modo de vida específico: o cavaleiro que lutava contra
o inimigo da carne e contra os maus espíritos. Este cavaleiro é o ponto equidistante e
ideal entre as práticas do monge e do cavaleiro. São Bernardo foi informado por Hugo
da situação da Palestina e da atuação de seus companheiros. O Santo traduziu e
radicalizou o que lhe era informado, estreitando a ligação entre guerra e monasticismo,
estabelecendo uma representação singular da cavalaria. O importante nessa passagem é
a proeminência que o miles assume. São Bernardo o estabelece na frente do monge
convencional e talvez de si próprio. Todavia, não é toda a cavalaria que assume aquela
proeminência, mas somente aquela que o Santo qualifica enquanto “nova”.
A gravidade de um miles que interpretava as representações sociais de sua
posição ou de um abade que concebia um cavaleiro/monge herdeiro e Santo de Cristo
fica bem exposta na proporção em que consideramos, através da obra de Duby (1994), o
lugar que o bispo Gerardo de Cambrai na primeira metade do século XI atribuía aos
milites no Imaginário das Três Ordens. Segundo a análise de Duby (1994: 55), “sob a
pena do secretário de Gerardo, a palavra miles evoca a inferioridade.... Os cavaleiros são
gente ruim que se torna perigosa quando os seus amos..., lhes soltam as rédeas”. Para
Gerardo, ao rei e ao bispo caberia proteger as populações contra esses milites
usurpadores e turbulentos.
Quando o bispo Gerardo dividiu a sociedade entre os que oram (oratores), os
que combatem (bellatores) e os que trabalham (laboratores), os milites não entrariam
nessa tripartição, não sendo considerados bellatores, mas somente o rei e alta nobreza.
Miles, na obra de Gerardo, não era sinônimo de bellator (DUBY, 1994: 55-56). O
rarum existimo. Sed et quando animi virtute vitiis sive daemoniis bellum indicitur, ne hoc quidem
mirabile, etsi laudabile dixerim, cum plenus monachis cernatur mundus.
97
estigma que pesava sobre os milites é bem atestado nos Concílios e nodos de Paz do
século XI, os quais buscavam restringir a violência militar e assegurar a proteção
daqueles que não portavam armas, como camponeses, clérigos e mercadores. Marc
Bloch (1982: 330) apresentou o alívio de um mercador ao saber que um desses
cavaleiros, considerado bandido, estava morto.
Evidentemente, o bispo Gerardo de Cambrai, como o próprio Duby verificou,
tinha problemas com um castelão, um miles chamado Gautier. Esses problemas
ajudariam a conformar uma visão depreciativa da cavalaria. Tal visão seria legada à
posteridade deixando a impressão de um rompimento e uma distância entre
pugnatores/belatores com a militia. As figuras do rei e do Imperador seriam para os
autores episcopais, segundo Duby, os defensores legítimos do povo, os que freariam as
hostilidade dos milites.
Contudo, Barthélemy (1994: 41) observa que não se pode aceitar a distinção
estabelecida por Duby e por outros historiadores entre a ordo pugnatorum e os milites.
Barthélemy destaca a função militar ou cavaleiresca do rei. Tal função pôde ser
examinada na carta do conde Guido ao bispo Lamberto que falava sobre o ornamento e
a ordenação do jovem Luis VI quanto às armas cavaleirescas
60
. Além disso, Barhtélemy
(1994: 41-42) também demonstrou que desde o século IX, em certos textos eclesiáticos,
os oratores e os bellatores rivalizavam na defesa dos desarmados, retomando a idéia,
antiga por sinal, das duas militias espiritual e efetiva. Essa discussão demonstra que é
preciso ser prudente na associação entre miles e bellator. Apesar de certos autores,
como Odon de Cluny, terem-na realizado de maneira direta e Barthélemy não ver
grandes problemas em tal associação, o miles só seria bellator na medida em que
exercesse uma violência considerada justa e necessária na defesa dos cristãos.
São Bernardo, assim como Odon de Cluny na Vita Geraldi, mobilizou São Paulo
para legitimar a violência exercida pelo Novum Militiae Genus: Verdadeiramente, não
sem causa ele porta o gládio: verdadeiramente ele é ministro de Deus para vingar dos
malfeitores, verdadeiro louvor dos bons
61
[Rom.13,04].
(DLNM, v. 367, t. 31: 58, trad.
nossa). O sentido de Juiz de Deus e do porte justificado do gládio, ao mesmo tempo em
60
Ver página 80.
61
Non enim sine causa gladium portat: Dei enim minister est ad vindictam malefactorum, laudem vero
bonorum.
98
que há a idéia de defesa dos cristãos na Palestina aportam aos milites de Hugo de Payns
a feição de bellatores, defensores legítimos do povo, tal como o conde Geraldo de Odon
de Cluny. Odon e Bernardo tinham objetivos próximos: evidenciar uma legitimidade
militar ancorada no ofício bíblico de juiz de Deus. Porém, as realidades sociais são bem
distintas – comes e milites.
A historiografia aponta que as origens dos Templários ligavam-se ao
descontentamento de alguns cavaleiros com sua situação de submissão aos cônegos do
Sepulcro. Além disso, eles cumpririam um difícil trabalho, escolta dos peregrinos, sem
o devido reconhecimento por parte da cristandade. Esta necessidade de reconhecimento
é evidente na carta de Hugo Peccator. Então, nessa “crise militar”, Hugo rumou ao
Ocidente pedindo apoio a São Bernardo. Logo, São Bernardo, apoiado nas cartas
paulinas, identificou a legitimidade e o caráter admirável do ofício militar de Hugo e
percebeu aquele, como temos salientado, sendo mais louvável que o ofício monástico
devido à sua peculiaridade. Peculiaridade não apenas no exercício justificado das armas,
mas também na associação monástica e militar. Diante desse panorama, perguntamos: a
relação entre os dois milites, São Bernardo e Hugo de Payns, foi sintomática apenas de
uma crise de alguns cavaleiros cruzados ou dizia respeito a um quadro mais amplo?
Quando Hugo de Payns e Bernardo discutiram em seus escritos e entre si a
situação militar, com diferentes linguagens, por referência direta ou indireta ao ofício
clerical, um problema amplo se colocava. São Bernardo contrapôs os monges aos novos
cavaleiros, mas apesar de defender o ofício militar de Hugo e seus companheiros, ele
dizia que era legitimo a não ser que se tivesse sido destinado para um ofício melhor.
(DLNM, v. 367, t. 31: 60, trad. nossa). Em outras palavras, mesmo que o Novum
Militiae Genus seja melhor” que o ofício monástico, haveriam outros misteres
considerados melhores ou mais dignos, os quais o Santo não apontou. Evidentemente,
haveria uma hierarquia imaginária de misteres cujo topo não seria ocupado pelo Novum
Militiae Genus. Todavia, ao exaltar as virtudes militares – coragem, eficiência em
combate e cuidado com os cristãos – e monásticas – disciplina cenobítica e humildade –
aquela representação cumpriria um papel de difusão e reconhecimento desejados por
Hugo e os primeiros Templários, estabelecendo-os, senão no topo social, pelo menos
em um lugar de destaque e visibilidade diante da cristandade.
99
O problema que se colocava na relação entre São Bernardo e aqueles milites
liga-se a uma situação militar conflitante. Se por um lado identificava-se naqueles “bons
militesa função de defensores da cristandade, articulados em um esquema hierárquico
imaginário três ordens por outro, os diferentes matizes dessa configuração social
faziam pesar sobre seus membros desde a desconfiança até uma recusa total de suas
atividades, estabelecendo-os em um nível social inferior, senão maldito. Barthélemy
(1994) acertou ao perceber esse antagonismo no discurso eclesiástico com relação à
cavalaria. A partir de Hugo de Payns pudemos problematizar sua percepção e o seu
posicionamento quanto a esse discurso e o trabalho de São Bernardo para justificar a
inserção de suas intenções e ações no grupo dos bellatores ou defensores da
cristandade – pelo caminho que estamos discutindo: o Novum Militiae Genus.
As relações de poder entre Igreja e cavalaria sendo esta última uma
concorrente forte pelas oportunidades de expansão de poder e riqueza faziam pesar
sobre os seus membros, ou pelo menos sobre alguns deles, o estigma e a fama daquilo
que seria ruim e sem controle. Hugo de Payns deixa isso implícito em sua carta e o
próprio Bernardo chega a associar a militia secular à malitia. Insistimos então, na
importância que assume o diálogo de Hugo de Payns com São Bernardo nas
representações cavaleirescas no século XII. A situação da configuração social
cavaleiresca era muito delicada, assumindo diferentes facetas nos diferentes discursos e
suscitando discussões e reflexões por parte tanto de seus membros quanto de outros
atores sociais.
07. Cristianização da militia e militarização do cristianismo
As relações entre São Bernardo e Hugo de Payns, entre o Santo e a cavalaria
trouxeram o problema da cristianização da militia e da militarização do cristianismo.
Nesse sentido, antes de se converter em etapa de um processo, as origens do Novum
Militiae Genus e das Ordens Militares e Religiosas estão no ponto de tensão entre Igreja
e cavalaria. Considerar esta tensão nos levou a questionar a tranqüilidade e a
positividade das tradições eclesiásticas, de suas práticas e ações que tinham como foco
os milites. Como apontou Barthélemy (1994: 22), certas interpretações apresentam duas
“idades” para a cavalaria: a primeira seria a ascensão e o destaque do miles na sociedade,
marcada pela belicosidade, violência e excessos, e a segunda a pacificação ou
moralização do miles sob influência eclesiástica.
100
O esforço de Hugo em criar uma confraria, conscientizar seus pares e convencer
São Bernardo a apoiá-lo constituíam indícios dessa relação, dessa política, que
rediscutia e reconstruía o papel e as representações tradicionais da cavalaria na
sociedade. Na medida em que Hugo Peccator enfatizava o merecimento de sua
recompensa e afirmava a legitimidade do portar armas em defesa da sociedade, ele
reforçara diante de seu tempo que a cavalaria era um ofício legítimo, sobre o qual não
deveria pesar dúvidas ou receios. O que estava em jogo, tanto na carta de Hugo, quanto
na exortação de São Bernardo era a identidade e a legitimidade dos membros da militia
em um contexto cuja necessidade de seus esforços se fazia premente: as Cruzadas.
Assumindo que não fosse fácil responder se guerrear era ou não um pecado ou
como Hugo Peccator disse em sua carta: “um impedimento ao progresso maior” – e que
os milites – nas palavras do bispo Gerardo de Cambrai: “essa gente ruim” – não
tivessem uma posição unanimemente reconhecida ou bem vista na sociedade ou nas
suas representações, a relação entre Hugo e São Bernardo foi também um evento.
Todavia, esse evento o deve ser reduzido a uma decisão, uma guerra ou outro fato
pontual, mas trata-se de uma “relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um
vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se
enfraquece, se distende...” (FOUCAULT, 1979: 28). Hugo pretendeu convencer São
Bernardo de que seus esforços militares não guardavam qualquer mácula ou pecado.
A apropriação que Hugo fez de elementos religiosos e a representação que São
Bernardo realizou acerca do Novum Militiae Genus expuseram a dimensão da
importância da cavalaria naquele período. Afinal, tratava-se de um miles que
interpretava e utilizava os símbolos da tradição cristã e de um monge que louvava a
tenacidade militar na Palestina e pretendia estender seu modo de vida ao miles, sem que
este abandonasse as práticas de seu ofício. Não podemos esquecer a linguagem militar
que São Bernardo mobilizara para definir o esforço monástico. Ao recortarmos as
especificidades das relações sociais no seio da militia, as idéias de um miles e os
símbolos militares formalizando práticas monásticas, o propomos inverter a
afirmação de Lins (1958: 94)
62
e assinalar uma influência determinante da cavalaria e
de elementos militares frente aos eclesiásticos e suas práticas culturais e sociais.
Propusemos acentuar o aspecto da relação entre Igreja e cavalaria, da interação e da
62
Ver página 71.
101
influência mútua entre São Bernardo e Hugo de Payns como um problema político no
qual era discutida e construída uma solução possível para as dificuldades da função e da
conduta social da cavalaria.
Negar simplesmente o esforço de cristianização da cavalaria implicaria em negar
a apropriação que São Bernardo fez da incitativa de Hugo de Payns e encobrir os
interesses e as necessidades que moveriam o Santo a escrever seu tratado. Bernardo
atendeu aos pedidos insistentes daquele miles, mas apresentou uma leitura própria não
da cavalaria, mas também das práticas militares relatadas por Hugo de Payns. Este
miles reivindicou a inserção e a justificação cavaleiresca frente à sociedade lembrando a
utilidade dos misteres mais humildes. São Bernardo exortou a militia estreitando os
laços entre monasticismo e guerra, radicalizando a união entre as práticas monásticas e
guerreiras. Há, no abade de Claraval, uma decisão tomada no sentido de justificar as
práticas cavaleirescas de Hugo e de seus companheiros, mas também há a proposição de
um comportamento mais cristão e santo aos milites em geral.
Encontramos um hiato entre São Bernardo e Hugo, uma distância que marca a
especificidade de cada um. Os interesses e necessidades de São Bernardo – preocupação
com a fragilidade militar do reino de Jerusalém, necessidade de mobilizar e cristianizar
a cavalaria, problemas entre a autoridade do clero e o poder dos laicos, preocupação
com o monasticismo etc. sua perspectiva social e política forneceram elementos para
explicar sua resposta àquele cavaleiro, a representação do Novum Militae Genus e a
forma que assumiram. Confrontado com os interesses de Hugo de Payns, hesitando a
princípio em responder a ele, São Bernardo assumiu uma posição particular frente às
relações de poder entre Igreja e militia. O Santo acolheu e relacionou a cavalaria com a
luta metafórica de Cristo. Ele reconheceu a sua dignidade e importância, mas pretendia
estender a ela o modo de vida dos monges, intentando unir os dois tipos de miles Christi
em um só – o do claustro e o da caserna.
Porém, se São Bernardo intentou cristianizar a cavalaria, não se deve obliterar
que o próprio Santo, na época de seu tratado, tinha uma leitura militar de seu
monasticismo. Da mesma forma, a própria cavalaria apresentava uma leitura particular
do cristianismo. A carta de Hugo Peccator pode ser considerada como um exemplo
importante disso que definimos enquanto um cristianismo militar. Perceber esses
diversos elementos, expressões e contatos entre a cristianização da militia e a
102
militarização do cristianismo nos conduziu a uma apreciação verossímil de parte das
relações de poder entre Igreja e cavalaria durante o período feudal. São Bernardo e os
Templários, nesse sentido, fizeram parte de um importante momento das relações de
poder durante o século XII.
Intentamos fazer um aporte ao estudo da sociedade dos séculos XI e XII: a
militia e suas relações de poder. Em outras palavras, aquele período foi palco de
expressão da militia dos dependentes militares e dos nobres que identificavam na
guerra um dos pontos de apoio para sua nobilitas. A militia encontrou tensões com os
poderes estabelecidos, sobretudo com a Igreja, gerando uma série de problemas e
representações sociais que problematizavam e davam um lugar, legítimo ou não a
cavalaria. Objetivamos abordar aquelas relações de poder analisando o exemplo de
Hugo de Payns e São Bernardo. Entendemos que a concepção de guerra exposta pelo
Santo no De Laude Novae Militiae não era meramente mais um esforço estruturado do
clero para impor um modo de vida à nobreza secular. Aquela concepção foi, em
princípio, o equilíbrio tênue, pois poderia ser contestado pelo seu interlocutor, que São
Bernardo encontrara após ser interpelado por Hugo de Payns a respeito dos seus
problemas e de seus companheiros. Um equilíbrio tênue e constituído com dificuldade
na medida em que recordamos os posicionamentos cavaleirescos de São Bernardo
perante sua família e seu titubeio diante do pedido daquele cavaleiro.
Em suma, o problema político que se colocava no encontro das necessidades
daquele grupo de milites e da posição assumida por São Bernardo era exatamente o de
constituir ou conceber a inserção, o dever, as representações e a participação da
cavalaria no meio social. Ao pensar e problematizar esses três aspectos, em conjunto
inserção, dever e representações Hugo de Payns e São Bernardo na idéia de Novum
Militiae Genus – estavam discutindo ou rediscutindo a identidade sócio-política da
militia. Logo, a afetuosidade bernardina perante o pedido de Hugo de Payns não pode
fazer esquecer a recalcitrância de São Bernardo diante da militia. Hugo e os Templários
marcaram, portanto, uma virada significativa na postura bernardina diante da cavalaria.
Frente à importância social dos símbolos e do ofício cavaleirescos na sociedade
dos séculos XI e primeira metade do século XII como demonstramos não são de
estranhar o esforço de um de seus membros e a adesão de um abade no sentido de
reconhecer e firmar um lugar social para a cavalaria. Além disso, o Santo, em seu
103
diálogo com Hugo de Payns, foi capaz de reconhecer na militia uma sacralidade que
adviria, não de uma unção como no caso dos bispos e reis mas da praxis militar e
monástica. Se Hugo foi um móvel para as representações bernardinas, estas foram
constituídas de um lugar específico e correspondendo a interesses específicos. Em
outras palavras, se Hugo convenceu e ofereceu para São Bernardo uma segurança
quanto às práticas cavaleirescas, estas foram confrontadas com o monasticismo
cisterciense do abade de Claraval e traduzidas de acordo com a sua perspectiva.
104
CAPÍTULO III
105
MAPA 01: Localização dos monastérios de Saint-Thierry, Claraval (Clairvaux), Cister
(Citeaux) e Cluny. Reproduzido de: MATTHEW, 1996: 75.
106
O NOVUM MILITIAE GENUS ALICERÇADO NO MONASTICISMO
CISTERCIENSE DE SÃO BERNARDO
01. A iniciativa de Cister
Poder-se-ia argumentar simplesmente que a leitura militar do De Laude Novae
Militiae se constituiu pelo olhar de um monge cisterciense abade de Claraval sobre
as práticas e intenções de um grupo de cavaleiros. Todavia, tal observação não é
suficiente, na medida em que se consideram os posicionamentos iniciais de Bernardo
quanto à relação militia efetiva/militia metafórica cavalaria/ monasticismo. Nesse
sentido, como será demonstrado, mais do que um escrito sobre as práticas militares, o
De Laude Novae Militiae é o posicionamento de São Bernardo perante o monasticismo
e a relação deste com a cavalaria. Uma relação que se constitui de forma qualitativa, na
proporção em que o Santo tentou trazer o valor da morte militar para o mesmo patamar
da morte monástica e que as práticas militares observadas pelo Santo foram traduzidas e
associadas com as práticas monásticas inspiradas na Regra de São Bento ou em
exemplos bíblicos.
São Bernardo traduziu práticas militares bem específicas realizando uma junção
entre representações distintas. Como foi apresentado, o rei de Jerusalém Bauduíno II
enviara seus emissários a São Bernardo, Hugo de Champagne declarara a “seu pai
espiritual” a decisão de tornar-se um miles e Hugo de Payns procurara o Santo a fim de
pedir um escrito exortativo para seus cavaleiros. São Bernardo se viu diante dos
problemas e necessidades dos dignitários do reino de Jerusalém. O Santo se apropriou
então dessas informações e as traduziu através do De Laude Novae Militiae. Não se
deve ignorar que o palco de atuação dos Templários, onde macabeus e apóstolos
empregaram esforços em causas tidas por São Bernardo como lícitas libertação da
Judéia e sobrevivência do cristianismo os inseria, de acordo com certa interpretação,
em uma continuidade de luta, resistência e devoção a Deus.
Tal apropriação militar ligava-se também ao monasticismo cisterciense, ao qual
São Bernardo era filiado. É preciso, no entanto, esmerar esta observação: a
representação do Novum Militiae Genus liga-se intimamente ao monasticismo
cisterciense tal como foi apropriado por São Bernardo e às suas relações com as pessoas
do reino de Jerusalém. Comparando e contrapondo a Vita Geraldi com o De Laude
Novae Militiae foi possível perceber diferentes posicionamentos, de Odon e Bernardo,
107
quanto ao monasticismo e quanto à cavalaria. Há uma tradição beneditina, mas ela é
apropriada de uma forma diferente para pensar problemas bem localizados e específicos
tais como o do monasticismo e o da cavalaria.
A questão é evidenciar um monasticismo cisterciense especificamente traduzido
por São Bernardo e consolidado nas suas interações. Valoriza-se então, não tanto a
matriz, mas o posicionamento de São Bernardo quanto a esta. Verificamos que o
monasticismo e as concepções monásticas de Bernardo se consolidaram na sua relação
com Cluny. Especificamente, ele se fortaleceu na resolução de seus problemas com os
monges de Cluny. O objetivo dessas observações é definir a contribuição do
monasticismo de São Bernardo para sua concepção de guerra. Para cumprir tal meta
serão inicialmente mobilizados dois documentos: a carta escrita para seu sobrinho, o
monge Roberto (1122) e o tratado Apologia (1125). Assim, será objetivado, respeitando
os limites desta análise, levantar as características do monasticismo bernardino
relevantes para a sua representação militar.
Nesse sentido, nos detemos nos inícios da Ordem de Cister no final do século XI.
Dispomos de alguns documentos que se remetem à sua fundação, em 1098, pelo abade
Roberto de Molesme. Dentre esses documentos, o Pequeno Exórdio mostrou-se
importante para realizar considerações sobre os regulamentos e as expectativas em
Cister. O Pequeno Exórdio é o documento narrativo cisterciense mais conhecido e mais
difundido. Escrito provavelmente por um de seus fundadores (Santo Estevão, segundo
abade de Cister) é um relato que foi estabelecido no início da compilação legislativa da
Ordem que data de 1152. Segundo François de Place (1997: 33), o documento existia
em uma redação bem avançada em 1119, ano da apresentação da legislação cisterciense
ao Papa Calixto II.
Apesar do Pequeno Exórdio se referir pouco ao monastério de Molesme, as
relações entre seus monges constitui um dos pontos fundamentais para a análise da
experiência cisterciense. No ano de 1071, Roberto, abade de Saint-Michel de Tonnerre,
originário de Champagne, após manter contato com alguns eremitas, se retirou para uma
floresta vizinha de Collan. Consta que esse grupo vivia na mais extrema pobreza
(PACAUT, 1993: 34). Todavia, em 1075, seja pela consciência das dificuldades do
eremitismo, seja por uma busca maior de isolamento, transfere sua comunidade para os
bosques de Molesme, dos quais o senhorio local lhe concedera uma porção. Pacaut
108
(1993: 34-35) chama a atenção o fato de Roberto ter criado naquele lugar um
monastério ao qual impôs o estrito respeito à regra beneditina e a necessidade de não
manter contato algum com os habitantes da vizinhança. Havia nas ações de Roberto o
desejo de estabelecer uma coletividade retirada que observasse de maneira imperativa a
regra monástica de São Bento.
A iniciativa de Roberto atraiu vocações. Isto lhe permitira fundar ou integrar
priorados que permaneceram sob sua dependência. As doações também começaram a
afluir para Molesme, da mesma forma que se tornavam freqüentes os contatos com os
senhores da redondeza. Aparentemente, houve um desvio da vontade inicial de reclusão,
sendo seu abade convertido em árbitro dos problemas e desentendimentos entre os
nobres da vizinhança. Salientamos também a participação dos monges de Molesme no
ofício religioso das paróquias onde estavam instalados.
Observa-se que certos recrutas vinham para Molesme sem serem realmente
desejosos de observar uma extrema austeridade, objetivando “uma religião banal e
rotineira” (PACAUT, 1993: 35). Muitos nobres prometiam um dos seus filhos às
congregações monásticas sem estarem certos ou conscientes da existência de uma
vocação religiosa. Esse ponto contribuiu para a adoção de práticas monásticas menos
rigorosas e de uma ascese mais moderada, de uma interpretação regular menos estrita.
Aparentemente, essa situação provocou problemas em Molesme. Ocorreu a oposição
entre os partidários de um retorno à antiga disciplina ascética e aqueles satisfeitos com
os hábitos e observâncias em vigor. Segundo a historiografia, Roberto permaneceu fiel à
proposta primitiva da congregação. Seu desejo se formalizara na reforma das práticas
dos monges de Molesme. Todavia, surgiram resistências que impunham obstáculos
àquele desejo.
Diante da resistência de uma parte considerável dos monges de Molesme,
Roberto percebia a necessidade de realizar uma ação mais efetiva e drástica.
Acompanhado de outros religiosos, dentre os quais estavam o prior Aubri e o monge de
origem inglesa Estevão Harding, Roberto optou pelo rompimento. Esse rompimento
pautava-se pelo restabelecimento da observância original da Regra de São Bento,
interpretada e traduzida pela reforma de Bento de Aninane em 817 e pelas apropriações
cluniacenses. Estas apropriações, anos depois, São Bernardo qualificara de “fantasias”.
109
De acordo com Vauchez (1995: 36), o monge era, para São Bento, antes de tudo
um penitente, entrando na vida religiosa para chorar os seus pecados e colocar-se sob a
direção espiritual do abade. O ofício litúrgico orações, leitura de salmos e outras
passagens bíblicas não tinha um lugar privilegiado ou exclusivo no monasticismo de
São Bento. Contudo, no ano de 817, a pedido do Imperador Luis o Pio, o monge Bento
de Aniane intentou reformar as práticas monásticas de seu tempo. Observava-se certa
dispersão das observâncias monásticas no seio de cada monastério. Bento de Aniane
instituiu, através de uma lei, a obrigação de todos os monastérios observarem a Regra
beneditina, insistindo sobre alguns pontos (livre eleição do abade e cenobitismo).
Todavia, o trabalho manual e cotidiano fora relegado a algumas atividades simbólicas.
A ênfase principal da reforma residia no oficio religioso ou litúrgico.
Esta tendência se acentuou em Cluny, principalmente quando se considerava que
na Regra de São Bento era prescrita a leitura de quarenta salmos a cada dia e em Cluny,
no fim do culo XI, diziam-se duzentos e quinze. Para caracterizar Cluny, observando
o lugar privilegiado da liturgia em suas práticas, pode-se adotar, a princípio, a idéia de
que o religioso cluniacense era um religioso que orava em permanência (PACAUT,
1986: 133). A abadia de Molesme parece não ter sido indiferente a essas adaptações e
interpretações monásticas da regra beneditina, o que acarretou, como foi explicitado, em
um conflito no interior daquela comunidade.
A solução para o desacordo em Molesme tomara a forma do rompimento.
Roberto e seus partidários decidiram procurar o legado papal na cidade de Lyon,
expondo sua vontade. Pacaut (1993: 37) apontou a intenção do legado em reformar o
clero e restaurar a sua disciplina, o que proporcionaria aos dissidentes de Molesme um
contato favorável com o representante papal, que via com bons olhos a sua iniciativa.
Com a benção do legado, eles se estabeleceram na floresta de Cistels, coberta de juncos
e, portanto, pantanosa. Os nobres locais doaram a eles um alódio, ou seja, uma
propriedade sob a qual não pesavam tributos ou obrigações feudais. O cultivo e o
cuidado da terra caberiam aos próprios monges, guardando aos doadores o direito de
explorar um lote por três servos. Este estabelecimento, cujo nome atribuído fora Novum
Monastérium, ou o Novo Monastério, lançou as bases para o desenvolvimento da
Ordem de Cister.
110
Segundo o Pequeno Exórdio, a ação de Roberto e de seus companheiros ocorreu
da seguinte forma:
No ano de 1098 da Encarnação do Senhor, Roberto, de feliz memória primeiro abade
da Igreja de Molesme fundada na diocese de Langres, e alguns irmãos do mesmo
mosteiro, foram procurar o venerável Hugo, então legado da Santa Apostólica e
arcebispo da Igreja de Lyon, assumindo o compromisso de pautar sua vida pela
observância da santa Regra de nosso Pai Bento. E a fim de realizar este projeto com
mais liberdade, pediram-lhe com insistência que lhes concedesse o apoio firme de sua
autoridade apostólica. O legado acedeu com muito agrado aos seus desejos...
Depois disto, contando com o apoio de tanta e o alta autoridade, o abade e seus
monges voltaram a Molesme e, nessa comunidade monástica, escolheram
companheiros desejosos de observar a Regra. Desta maneira, entre os que haviam ido
falar com o legado em Lyon e os que foram chamados do mosteiro, contaram-se vinte e
um monges. O grupo assim reforçado dirigiu-se com entusiasmo a uma solidão
chamada Cister, situada na diocese de Chalon e de difícil acesso por causa da
densidade da floresta e dos espinhos, sendo habitada pelas feras. Ao chegar ali, os
homens de Deus compreenderam que aquele local era tanto mais propício ao gênero de
vida monástica que haviam concebido e em razão da qual ali estavam, quanto mais
desprezível e inacessível parecia às pessoas seculares...
63
(MONGES CISTERCIENSES. Pequeno Exórdio. In: DE PLACE &
GUIMARÃES,1997: 37-40, trad. nossa).
Apesar das questões quanto à autoria do Pequeno Exórdio ser atribuída a
Estevão ou a alguém do séqüito de Roberto ou a alguma personagem posterior àqueles
acontecimentos, é importante salientar a memória daquelas ações. Tal memória ganhou
o significado de uma tentativa de reforma no interior de uma congregação e de um
pretenso retorno à fonte monástica original a Regra de São Bento. Este seria o desejo
motriz de Cister e seus monges.
Mesmo que o Exórdio não tenha mencionado abertamente, os monges que
permaneceram em Molesme ficaram insatisfeitos. Roberto havia escolhido um sucessor
antes de partir, mas sua iniciativa de rompimento deveria parecer ofensiva a alguns, pois
quebrava o voto de estabilidade. Além dos monges que desejavam a permanência das
práticas monásticas próximas de uma religiosidade clunicense e dos que optaram pelo
63
Anno ab incarnatione domini milesimo nonagesimo octavo, beatae memoriae Robertus molismensis
ecclesiae in episcopatu lingonensi fundatae primus abbas, et quidam eiusdem coenobii fratres, ad
venerabilem Hugonem tunc apostolicae sedis legatum ac lugdunenssis ecclesiae archiepiscopum
venerunt, vitam suam sub custodia sanctae regulae patris Benedicti se ordinaturos pollicentes, et idcirco
ad hoc liberius exequendum, ut eis et sui iuvaminis apostolica auctoritate robur porrigeret, constanter
flagitantes. Quorum votis legatus ille laetanter favens...
Post haec, tali ac tanta antedictus abbas et sui auctoritate freti, Molismum redierunt, et de illo religioso
fratrum collegio socios votum et regula habentes elegerunt, ita ut inter eos qui legato Lugduni fuerant
locuti, et illos qui de coenobio vocat, viginti et unus monachi essent; talique stipati comitatu, ad
heremum, quae Cistercium dicebatur, alacriter tetenderunt. Qui locus in episcopatu Cabilonensi situs, et
pro nemoris spinarumque tunc temporis opacitate accessui hominum insolitus, a solis feris inhabitabatur.
Ad quem viri Dei venientes, locumque illum religioni quam animo iamiamque conceperant, et proter
quam illuc advenerant habiliorem quanto saecularibus despicabiliorem et inaccessibilem intelligentes...
111
rompimento, havia os que desejavam a reforma sem a secessão no seio da comunidade.
Ocorrera então certa animosidade entre Molesme e o Novum Monasterium. Contudo,
Roberto entrara em acordo com os monges de Molesme, retornando ao seu comando.
Ele atribuiu a dignidade abacial do Novum Monasterium ao prior Aubri. O problema
com os monges de Molesme parece ter sido contornado de forma tranqüila e os desejos
de reforma daquela abadia, aparentemente, concretizados com o retorno de Roberto.
Diferentemente de Cister, que se originou da vontade de alguns monges em
seguir estritamente a regra de São Bento em um monastério de inspiração eremítica, a
Ordem de Cluny nasceu de um pequeno monastério que, sob a ação de seus dois
primeiros abades Bernon e Odon se tornara um modelo de estabelecimento
monástico. Este, estendendo e exercendo sua influência sobre outros monastérios, se
tornou uma congregação muito poderosa (PACAUT, 1993: 27). Congregação tão
poderosa que entrou em conflito com os poderes episcopais, como demonstrou Duby
(1994: 59-71) ao analisar a representação social construída pelo bispo Adalberon de
Laon na primeira metade do século XI. O bispo de Laon censurou o abade Odilon por
tentar usurpar, com orgulho e ostentação, o ofício episcopal duplamente representado no
verbo orare aconselhar ao rei e interceder junto a Deus pelo homem. Conhecem-se
também os esforços dos primeiros abades de Cluny em assegurar a independência
quanto ao poder episcopal buscando a proteção papal.
A historiografia sugere, quanto aos inícios de Cister, que os problemas surgiram
apenas no seio da comunidade de Molesme. As pretensões dos pioneiros da floresta de
Cistels não foram ao encontro de uma critica monástica ferrenha aos modos de Cluny,
muito menos a uma subtração à autoridade episcopal. Explicita-se que Cister é, além da
fundação de Molesme entre 1071 e 1075, o esforço de determinados monges, entre os
quais figura Roberto de Molesme, em reinterpretar a prática monástica em um nível
restrito e bem localizado.
Durante cerca de quinze anos, o Novum Monasterium permaneceu na solidão.
Isso se deveu não apenas à vontade dos monges em manter um isolamento do mundo e
de suas relações, mas por que eles não lograram atrair vocações (PACAUT, 1993: 49).
O segundo abade do Novum Monasterium, Aubri, faleceu em janeiro de 1109, sendo
eleito Estevão Harding como seu sucessor. Estevão era um dos monges que
acompanhara Roberto no rompimento com Molesme. Segundo Pacaut (1993: 52) entre
112
a eleição de Estevão e a chegada de São Bernardo e seus companheiros (1110), Cister
conseguiu uma tímida ascensão material. Destaca-se a importância do terceiro abade em
manter o ânimo e a vontade firme dos monges.
É interessante perceber a fragilidade da empresa monástica do Novum
Monasterium. Observa-se que a maioria dos monges retornou para Molesme junto com
Roberto, permanecendo em Cistels alguns poucos religiosos. O número destes não é um
consenso, mas não se supõe que fosse mais do que duas dezenas. Além disso, e da
pouca atração inicial, a comunidade era acossada pela fome e pela necessidade de
coragem e esperança. Davi e Calmette (1953: 37) informaram um fato que se mostra
elucidativo para demonstrar as condições iniciais de Cister.
Além das mortes naturais, uma epidemia viria a vitimar o conjunto dos monges.
O abade Estevão parecia considerar a possibilidade de desaparecimento dos últimos
sobreviventes. Como um dos poucos remanescentes estava em vias de expirar, Estevão
ordenou-lhe que perguntasse a Deus sobre o destino de sua congregação e que voltasse
para dar-lhe a resposta (CALMETTE & DAVI, 1953: 37). Dias depois da morte do
monge, Estevão vislumbrou a figura de seu fantasma. Este afirmara que a posteridade
da Ordem seria numerosa, semelhante à posteridade de Abraão. Este episódio mostra
ainda mais o caráter incerto da comunidade. Os inícios de Cister não se diferenciavam
de outras iniciativas religiosas igualmente piedosas, porém efêmeras (PACAUT, 1993:
46-48).
É preciso refletir e explicitar essas particularidades de Cister e a sua situação
naqueles anos, pois essa é a escolha de São Bernardo. Escolha significativa que marca
um dos referentes fundamentais e essenciais para a reflexão do Santo sobre o
monasticismo e também sobre as ações, intenções e práticas militares de Hugo de Payns
e seus companheiros. São Bernardo aderira ao Novum Monasterium estendendo a
influência de Cister ao fundar o monastério de Claraval em 1115, cuja iniciativa não
seria a única naquele decênio. Com São Bernardo, a historiografia reconhece uma
ascensão extraordinária da influência cisterciense, testemunhada pelo número
significativo de novas filiais.
02. A querela do monge Roberto
A oposição entre as duas vertentes monásticas beneditinas Cluny e Cister
ficou mais evidente durante a trajetória de São Bernardo. Monge filiado à matriz
113
cisterciense, São Bernardo formalizou e consolidou sua perspectiva monástica, entre
outras coisas, no contato ou no conflito com outras vertentes monásticas, em especial a
de Cluny. O ponto crucial é demonstrar a singularidade das escolhas monásticas
bernardinas que o ajudam a pensar o mundo a sua volta. Evidentemente, explicitar a
filiação cistercisense é profícuo, mas insuficiente.
Essa insuficiência é ressaltada na proporção em que salientamos o monasticismo
de São Bernardo posto em questão e consolidado nas suas relações com a Ordem de
Cluny. Além disso, a humildade, a simplicidade, a vontade de retiro do mundo e o
destaque do trabalho manual como necessários à salvação apresentam uma forma
específica em São Bernardo que contribuiu para a leitura singular do Novum Militiae
Genus. Essa leitura singular ocorrera principalmente por aqueles contatos com sua
família, com os milites, com os cistercienses e, de forma mais conturbada, com os
cluniacenses. Destacamos que as querelas, nas quais São Bernardo se envolvera com a
Ordem de Cluny, foram bem mais enfáticas do que aquelas registradas nos inícios do
Novum Monasterium. Pode-se afirmar que São Bernardo foi mais crítico com as práticas
monásticas dos monges do que os pioneiros da floresta de Cistels. Pelo menos, a
documentação apresenta as críticas bernardinas de uma forma mais mordaz.
No capítulo anterior mencionamos a carta que o Santo escreveu a seu sobrinho
Roberto
64
. Esta carta é reveladora de um monasticismo concebido e traduzido enquanto
esforço militar. Todavia, este é apenas um componente do argumento bernardino. O
Santo o constituiu na promessa de não realizar retaliação contra seu jovem parente e na
exposição da periculosidade dos modos de Cluny para a salvação. O objetivo de São
Bernardo era convencer seu sobrinho a retornar para Claraval. As escolhas e imagens
pintadas por São Bernardo ligam-se intimamente a esse objetivo. Portanto, São
Bernardo saiu de sua solidão ascética e incidiu em uma censura ferrenha aos modos
cluniasences:
Primeiramente, na verdade, certo prior foi enviado pelo principal dos priores: de fora
tinha a aparência das vestes de um cordeiro, por dentro, por outro lado, era um lobo
rapace; e pela custódia e pela estimação foi apanhado o cordeiro! Foi a ação do lobo
junto ao solitário cordeiro. O que mais? Atraiu, aliciou e se fez lisonjear, e o pregador
do novo Evangelho recomenda a embriaguês, condena a parcimônia, diz miséria para
a pobreza voluntária, chama de insanidade o jejum, as vigílias, o silêncio e os
trabalhos manuais: pelo contrário, proclama o ócio e a ostentação; e chama de
discrição a voracidade, a falação, a curiosidade, enfim, toda intemperança. Pois que
64
Ver página 94.
114
ele pergunta, Deus é atraído pelos nossos sofrimentos? Em que parte a Escritura
toma que alguém se mate? Qual é a verdadeira religião, cavar a terra, cortar as
árvores, transportar esterco? Acaso, não é a sentença da Verdade, o desejo da
Misericórdia e não do sacrifício? E, não a morte do pecador, mas que se converta e
viva? E que se para que nos deu corpo, se proibisse sustentá-lo? E, finalmente, quem
prefira para si o que é de qualidade em prejuízo do que é bom? Quem, alguma vez,
em sabedoria, alimentou ódio contra a sua carne?
65
(BERNARDO DE
CLARAVAL. Carta ao Monge Roberto. In: GIOVANDO, v. 12, t. 01, 1944: 13-15.
trad e grifos nossos).
São Bernardo relacionava Cluny com um “Novo Evangelho”. Chama atenção a
oposição de práticas apresentadas de uma forma sarcástica. São Bernardo pretendia
reproduzir a fala do prior que conduziu Roberto de Claraval para Cluny. Estariam
representadas nesse fragmento as idéias e concepções dos monges cluniacenses? Pacaut
(1993: 28) afirmou que “o regime de Cluny era degradado sem ser decadente”. Os
costumes cluniacenses, no final do século XI e início do XII, a forma como se
apropriaram da Regra de São Bento, como pôde concluir a historiografia, eram
realmente menos rudes ou austeros do que Claraval ou Cister. Percebemos que, na Vida
de São Geraldo, Santo Odon valorizava muito a meditação e o ócio religioso de sua
personagem enquanto elementos de sua religiosidade.
Contudo, especular sobre os modos de Cluny o é o objetivo principal dessa
análise. Os pontos importantes a se demonstrar são a apreciação e a representação que
os modos cluniacenses ganharam na carta de São Bernardo e as variações de leituras e
interpretações da relação entre guerra e monasticismo relacionadas ao posicionamento e
à perspectiva dos sujeitos históricos quanto às tradições disponíveis. Nesse sentido,
podemos evidenciar a filiação bernardina a Cister, mas querelas como a de seu sobrinho
Roberto e mesmo a demanda de Hugo de Payns, deram um colorido único às práticas e
representações cistercienses bernardinas. Essa filiação serviu como ponto de partida
65
Primo quidem missus est magnus quidam prior ab ipso principe priorum: foris quidem apparens in
vestimentis ovium, intrinsecus autem lupus rapax; deceptisque custodibus, aestimantibus quippe ovem
esse, vae! vae! admissus est solus ad solam lupus oviculam. Nec refugit ovicula lupum, quem et ipsa
putabat ovem. Quid plura? Attrahit, allicit, blanditur, et novi Evangelii praedicator commendat crapulam
parsimoniam damnat; voluntariam paupertatem, miseriam dicit, ieiunia, vigilias, silentium, manuumque
laborem, vocat insaniam: e contrario otiositatem, contenplationem nuncupat; edacitatem, loquacitatem,
curiositatem, cunctam denique intemperantiam nominat discretionem. Quando, inquit, delectatur Deus
cruciatibus nostris? Ubi praecipit Scriptura quempiam sese interficere? Qualis vero religio est fodere
terram, silvam excidere, stercora comportare? Nunquid non sententia Veritatis est, Misericordiam volo, et
non sacrificium? Et, Nolo mortem peccatoris, se magis ut convertatur et vivat? Et, Beati misericordes,
quoniam ipsi misericordiam consequentur? Utquid vero Deus cibos creavit, si non liceat mandurcare?
Utquid nobis corpora dedit, si prohibeat sustentare? Denique, qui sibi nequam, cui bonus? Quis unquam
sanun sapiens, carnem suam odio habuit?
115
para a resolução de problemas únicos, e nessa medida a própria filiação se tornou única,
diferente do que era antes dos problemas.
Mais adiante, na carta a Roberto, São Bernardo continuou:
Por tais alegações, no final, o jovem crédulo, circundado pelo mal, segue a sedução e,
levado para Cluny, é despojado, tornado brilhante, lavado, e privado da rusticidade, do
antigo, do sujo; é revestido de preciosidades, de novidades e de coisas nítidas; e deste
modo é sustentado no convento. Mas, com quais honras, com qual triunfo, com quanta
reverência? Ele é elevado sobre todos os seus contemporâneos e tanto quanto a vitória
que é ganha na batalha, assim o pecador é elogiado nos desejos de sua alma. É
sustentado no alto, colocado em um estado não medíocre, assim o adolescente situa
entre os muitos idosos prelados: bem disposto, é agradado, é congratulado por todos os
irmãos, todos exultantes, tanto quanto os vitoriosos na tomada dos despojos, quando
dividem o espólio. Oh! Bom Jesus, quanta coisa é feita para a perdição de uma única
alma! Qual peito, por quão robusto, isso não amoleceu? Qual olho, por maior que
seja o espiritual, não é turbado? Quem, com tal distração, sabe reconhecer a própria
consciência? Quem, finalmente, em tanta exaltação, pode discernir a verdade ou
obter a humildade?
66
(CMR, v. 12, t. 01: 15-17. trad e grifos nossos).
São Bernardo pretendia colocar na balança os costumes das duas Ordens. Ele
expôs as seduções e ardis que teriam acossado Roberto. O Santo parecia compreender e
mesmo justificar a “debandada” do sobrinho diante de tantas tentações. Mais do que
medir as duas práticas monásticas, São Bernardo estabelecia suas práticas como
legítimas e as de Cluny como perniciosas. O monasticismo de Bernardo ganhava
robustez, como foi dito anteriormente, na tentativa de solucionar o problema de seu
sobrinho e também na contraposição dos costumes de Cluny. Se os costumes deste
monastério eram mais brandos, enfatizando mais liturgia que os rigores do labor, São
Bernardo se apropriava dessa característica de uma forma particular. Era preciso expor
que o Santo demonstrava um carinho muito grande por seu sobrinho. Isso é algo que
não se pode desprezar na construção do argumento bernardino. O autor da carta parecia
estar profundamente ofendido e magoado. Bernardo não culpou o sobrinho e o
censurava de forma branda, deixando as imprecações para os cluniacenses. Em outras
66
Talibus tandem allegationibus male credulus puer circumventus seducitur, seductorem sequitur,
Cluniacum ducitur; tondetur, raditur, lavatur; exuitur rusticanis, vetustis, sordidis; induitur pretiosis, novis
ac nitidis; et ita in conventum suscipitur. Sed cum quali putas honore, cum quo triumpho, cum quanta
reverentia? Defertur ei super omnes coaetaneos suos, et tanquam victor rediens a pugna, sic laudatur
peccator in desideriis animae suae. Sustollitur in altum, statu non mediocri collocatur, ita vt multis
senioribus praelatus sit adolescens: favet, blanditur, congratulatur ei universa fraternitas; exsultant
omnes, tanquam victores capta praeda, quando dividunt spolia. O Iesu bone, quam multa facta sunt pro
unius animulae perditione! Cuius ad haec quantumlibet robustum pectus non emollesceret? Cuius interior,
quantumvis spiritualis, oculus non turbaretur? Cui inter talia ad suam liceat recurrere conscientiam? Quis
denique in tanta pompa vel veritatem valeat agnoscere, vel obtinere humilitatem?
116
palavras as emoções e afeições produziam ou ajudavam a produzir, na missiva, certa
perspectiva depreciativa quanto à Ordem de Cluny.
Mas a afetividade, que no documento sobressalta a mágoa, não foi o único
problema. Roberto se punha contra as práticas monásticas de seu parente. O episódio de
Roberto não foi apenas um caso familiar, uma “secessão” no seio da família bernardina,
mas era muito mais sério. Roberto questionava não apenas a conduta do Santo para com
ele, mas a própria conduta monástica de Claraval. São Bernardo foi forçado a rever suas
convicções e a construir uma argumentação que convencesse seu leitor ao mesmo tempo
em que defendesse as suas posições e convicções. Logo, como se sugeriu anteriormente,
a carta era também uma reflexão do Santo acerca do seu monasticismo. Nela, o
monasticismo cisterciense de São Bernardo se afirmava na proporção em que ele
procurava justificar as características da aspereza ascética pautadas no trabalho manual
e na proximidade com a dureza militar:
A salvação está mais no cuidado dos vestidos e na opulência dos alimentos que na
comida sóbria e no vestido ordinário? Se as peles brandas e quentes, os panos finos e
preciosos, as mangas folgadas e largas, o capuz amplo e a boa roupa fazem santo a um,
que penso eu que o te sigo? Mas estas são branduras de enfermos, não armas de
lutadores
67
. (CMR, v. 12, t. 01: 31, trad e grifo nossos).
A conclusão de São Bernardo foi objetiva e direta. Se os cluniacenses eram
milites Christi (MICCOLI, 1989: 41), um exército de monges que oravam a Deus, São
Bernardo os considerava delicados, abrandados. O Santo se via munido das armas dos
lutadores arma pugnantium ou seja, os vestidos rústicos, a comida parca e os
costumes rudes. os cluniacenses estão próximos dos enfermos infirmatium fomenta
tornados suavizados por costumes que eram reprovados por São Bernardo. Costumes
reprovados por não constituírem uma prática aceitável às convicções do Santo e por
terem influenciado seu sobrinho a se afastar de Claraval. O monasticismo de São
Bernardo ganhava então um caráter crítico e reformador, pretendente à salvação por
meio de uma ênfase na vontade de pregar a aspereza material.
67
Si pelliciae lenes et calidae, si panni subtiles et pretiosi, si longae manicae et amplum caputium, si
opertorium silvestre et molle stamineum, sanctum faciunt: quid moror et ego quod te non sequor? Sed
haec infirmantium sunt fomenta, non arma pugnantium.
117
03. Apologia a Guilherme de Saint-Thierry
Mesmo que Roberto tenha aceitado retornar a Claraval, um problema teve início
entre Bernardo e os cluniacenses. Por volta de 1125, Bernardo escrevera um tratado a
pedido de seu amigo e hagiógrafo Guilherme de Saint-Thierry. Este tratado, intitulado
Apologia, tinha como objetivo dirimir as indisposições que teriam surgido entre
Claraval e Cluny naqueles anos. Logo, o principal interessado no dito tratado parece ter
sido Guilherme, pois era a seu pedido que Bernardo escrevia o dito tratado. O Santo
afirmou que aceitava escrever para atender ao desejo de seu amigo que tranqüilize aos
que se lamentam de que somos detratores da Ordem cluniacenses
68
... (BERNARDO DE
CLARAVAL. Carta a Guilherme de Saint-Thierry. In: ARAGUREN & BALLANO, v.
07, 1990: 318, trad. nossa). O tratado Apologia é uma obra muito importante enquanto
chave para o monasticismo bernardino. O Santo, na primeira parte, afirmou o caráter
miserável de sua Ordem e demonstrava perplexidade pelo aparecimento de tais
indisposições entre cistercienses e cluniacenses:
Em verdade, de que modo posso ouvir desta maneira silenciosa vossas queixas sobre
nós? Que evidentemente, em panos e cordões de miseráveis homens, a partir de
cavernas, como se diz, somos proclamados julgar o mundo, e o que de resto é mais
intolerável: derrogar agora a vossa gloriozíssima Ordem santa e impudentemente
detrair quem nela louvavelmente vive e de nossa sombra ignominiosa insultar as luzes
do mundo
69
. (BERNARDO DE CLARAVAL. Apologia. In: LOS MONJES
CISTERCIENSES DE ESPAÑA, v. 01, 1983-1990: 250. trad. nossa).
São Bernardo indagou: de que maneira poderia aceitar tais queixas?
Aparentemente este não era o único problema. As reclamações também falavam do
caluniar às escondidas. A idéia que o Santo tentou propor era aquela do esforço
monástico posto em risco por algo tão insignificante, mas ao mesmo tempo indigno de
qualquer monge, o mal dizer de outra Ordem monástica. Assim, Bernardo procurava
desacreditar as acusações que haviam sido impetradas contra ele e sua Ordem:
Se isso é deste modo, a fim de que nos mortificamos em vão todo o dia e somos
estimados como ovelhas do matadouro? Digo, se com esta jactância de fariseus, que é
mais soberba, desprezamos os outros homens melhores que s, do que nos vale tanta
68
... qui de nobis tamquam detractoribus Cluniacensis Ordinis conqueruntur, satisfaciam....
69
Si hoc ita est, ut quid sine causa mortificamur tota die, aestimati sicut oves occisionis? Quomodo
namque silenter audire possum vestram huiscemodi de nobis querimoniam, qua scilicet miserrrimi
hominum, in pannis et semicinctiis, de cavernis, ut ille ait, dicimur iudicare mundum, quodque inter
cetera intolerabilius est, etiam gloriosissimo Ordini vestro derogare, sanctis, qui in eo laudabiliter vivunt,
impudenter detrahere, et de umbra nostrae ignobilitatis mundi luminaribus insultare.
118
pobreza e aspereza em nosso alimento, o perene exercício no trabalho cotidiano, nos
jejuns e vigílias, enfim, certo isolamento e também a conversão mais austera de
nossa vida? Exceto se fazemos toda nossa obra afim de que sejamos vistos pelos
homens. Mas disse o Cristo: “Em verdade vos digo, receberam sua recompensa” [Mt.
06, 05]. Não é verdade que se esperamos em Cristo apenas nesta vida, somos os mais
miseráveis de todos os homens? [1Cor. 15, 19]
70
. (Apologia, v. 01: 250. trad. e grifo
nosso).
O Santo novamente enumerou algumas características das práticas cistercienses,
salientando que tais consistiam no caminho escolhido para a Salvação e não para a
admiração dos homens. Para desacreditar as acusações, São Bernardo se orientou pelas
palavras de Cristo. Se todo o esforço ascético, enumerado pelo Santo, fosse feito para a
admiração dos homens, não haveria sentido esperar a Salvação, pois teriam recebido
sua recompensa neste mundo. A conclusão deste raciocínio é feita pela citação de um
versículo da carta de São Paulo, que lamenta pelos homens que esperam ter suas
recompensas apenas neste mundo, ignorando a eternidade.
Nesta passagem, além de tentar evidenciar o despropósito das queixas, Bernardo
pretendeu demonstrar algumas características de suas práticas monásticas. Percebemos
que ele enfatizou muito as questões de ordem prática ou os afazeres cotidianos, menos
do que as ações litúrgicas. Claro, havia as vigílias, mas se consideramos este texto em
conjunto com a carta a Roberto, o enfoque principal do Santo era o labor cotidiano.
Além do labor, o abade de Claraval pretendia enfatizar seus cuidados com sua
simplicidade e austeridade. Todavia, estes cuidados não tinham como objetivo, como
foi dito anteriormente, a autopromoção ou a depreciação dos outros. Ele tentava se
defender evidenciando a contradição entre seus hábitos monásticos, os preceitos
bíblicos e as calúnias que teriam sido movidas contra Cluny, cuja autoria lhe era
atribuída.
Em um segundo momento, Bernardo elogiou Cluny, dizendo que levais uma
forma de vida santa, honesta, enriquecida com a castidade, singular por sua discrição,
fundada pelos Pais, inspirada no Espírito Santo, não mediocremente idônea para a
salvação das almas
71
... (Apologia, v. 01: 254. trad. e grifo nossos). Elogio que destoa
70
Si ita, inquam, pharisaica iactantia ceteros homines et, quod est superbius, nobis meliores descpicimus,
quid nobis prodest tanta in nostro victu parcitas et asperitas, in quotidiana desudatio, in ieiuniis et vigiliis
iugis exercitatio, totius denique vitae nostrae singularis quaedam atque austerior conversatio, nisi forte
omnia opera nostra facimus ut videamur ab hominibus?
71
... modus quidam vitae est sanctus, honestus, castitate decorus, discretione praecipuus, a Patribus
institutus, a Spiritu Sancto praeordinatus animabus salvandis non mediocriter idoneus.
119
do tom da carta a Roberto
72
. A ação do abade Pedro o Venerável em Cluny, a partir de
1122, acarretou em uma relativa reforma de seus modos e costumes. Duby (1994: 257)
afirmou que Pedro o Venerável, ao lado de São Bernardo, foi um dos últimos grandes
abades da França medieval. Como observou Ramos (1953-1955: 824) em sua edição do
Apologia, o antecessor de Pedro, Hugo II, era um “relaxado”. As invectivas de São
Bernardo contra Cluny e a insatisfação aparente de alguns de seus membros, como o
abade de Saint-Thierry, parecem ter conduzido a certa mudança na Ordem de Cluny
durante o abaciado de Pedro o Venerável.
Pode-se propor que tal mudança, aliada à solução amistosa no problema de
Roberto, tenha sido percebida por Bernardo no Apologia. No entanto, tal proposição
mostra-se infundada na medida em que se considera a parte final do Apologia. No final,
São Bernardo retomou suas críticas aos costumes de Cluny e indagou: Quem ia pensar,
quando se instituiu a Ordem Monástica, que se ia chegar a semelhante relaxamento?
Quão longe estamos destes monges que viveram nos tempos de Antônio!
73
(Apologia, v.
01: 276. trad. nossa).
São Bernardo manteve a coerência com seu posicionamento e suas convicções.
Ele elogiara Cluny, mas não podia deixar de lamentar o relaxamento que ele enxergava
em seus costumes. O ponto principal a enfocar neste momento é que Bernardo louvava
o espírito cluniacense inicial e a intenção “original” de seus pais fundadores. Para o
abade de Claraval, o problema não seria a Ordem em si, mas os rumos que esta tomou
no decorrer do século XII. Bernardo deixou clara sua intenção de tolerância a Cluny na
medida em que acrescentou uma idéia interessante: a pluralidade dos modos de vida na
casa Deus:
Será possível que tenhais de suspeitar de mim pelo mero fato de ser monge de outra
Ordem? Pois, por essa mesma razão, todos os que vivem segundo observâncias
distintas às nossas estão dilacerando também a nossa Ordem. Mas, pelo mesmo,
tenderíamos a crer que continentes e cônjuges se enfrentam mutuamente porque, ao
cumpri leis distintas no seio da Igreja, professam estados de vida distintos. Ou havia de
dizer que monges e clérigos regulares se desacreditam entre si somente porque os
separam suas observâncias correspondentes. E inclusive deveríamos supor que Noé,
72
Ver páginas 113-116.
73
Quis in principio, cum Ordo coepit monasticus, ad tantam credere monachos inertiam devenire? O
quantum distamus ab his, qui in debus Antonii exstitere monachi!
120
Daniel e não possam conviver juntos em um mesmo reino, pois sabemos que
chegaram a ele por caminhos muito distintos
74
.
(Apologia, v. 01: 256. trad. nossa).
São Bernardo também defendeu tal pluralidade ao expor os três caminhos da
santidade (Noé, Daniel e Jó). A idéia ou intenção que Bernardo trouxe em mente era
aquela mesma que Hugo Peccator mobilizara para legitimar a existência da militia e seu
ofício: cada um permaneça na vocação à qual foi chamado
75
[I Cor. 07,20]. A
pluralidade de vocações e estados era legitimada através da citação de uma passagem da
carta de São Paulo aos coríntios. No caso de São Bernardo, ele pretendia ilustrar a
legitimidade da existência de várias ordens religiosas. Já Hugo Peccator
76
demonstrava
a legitimidade e a necessidade do trabalho militar. A idéia de que cada um tem seu
papel social, representada nas apropriações da passagem de São Paulo, ganhava o
sentido de uma espécie de solidariedade social imaginada para o bom andamento da
sociedade e do alcance da meta primordial de toda cristandade: a salvação ou o encontro
definitivo com Deus.
Apesar do objetivo de São Bernardo fosse defender a pluralidade de Ordens
Monásticas, o seu raciocínio pode ser considerado mais profundo na medida em que ele
concebe uma pluralidade de “estados” em uma forma mais ampla. Bernardo concebia a
existência dos continentes e dos casados lembrando a existência de leis particulares para
cada um. Portanto, a reflexão do Santo não tangia apenas as Ordens Monásticas. Por
analogia, ela alcançava outras esferas do mundo social e também da hierarquia
eclesiástica os monges e os clérigos regulares. A metáfora que São Bernardo utilizou
para ilustrar esta pluralidade e solidariedade era a imagem da túnica multicolorida e sem
costuras que Deus tecera para Cristo:
Reconhece Pai Todo Poderoso, a túnica de tantas cores que tecestes para teu Cristo,
fazendo a uns apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e
mestres, com outras muitas riquezas que acumulastes em seus preciosos atavios para
perfeição consumada dos santos, até chegar à idade adulta, a medida da maturidade da
plenitude de Cristo...
74
An forte quia iuxta alium Ordinem conversari videor, proptera suspectus hinc habeor? Sed eadem
ratione et vos nostro derogatis, quicumque aliter vivitis. Ergo et continentes, et coniuges invicem se
damnare putentur, quod suis quique legibus in Ecclesia conversentur. Monachi quoque ac regulares clerici
sibi invicem derogare dicantur, quia propriis ab invicem observantiis separantur. Sed et Noe, et Danielem,
et Iob in uno se regno pati non posse suspicemur, ad quod utique non uno eos tramite iustitiae pervenisse
cognovimus.
75
Unusquisque in ea vocatione, in qua vocatus est, permaneat.
76
Ver página 83.
121
...Se alguém pergunta: Quem nos separará do amor de Cristo [Rom. 08, 35]? Que
escute a resposta que lhe dá a túnica de tantas cores. “Tem diversidade de dons, porém
o Espírito é o mesmo. Tem diversidade de serviços, porém o Senhor é um” [I Cor. 12,
04-06]. E depois de enumerar os distintos carismas, como se fossem as diversas cores,
para ver como está tecida e demonstrar que não tem costura, pois é de uma peça só,
acrescenta: porém, isso o realiza o mesmo Espírito, que a cada um o que lhe parece
[I Cor. 12, 11]. O amor inunda nossos corações pelo Espírito Santo que se nos tem
dado [Rom. 05, 05]. Que não se divida a Igreja; que permaneça integra pelo direito
hereditário. Por isso, pensando nela, deixou escrito: De à tua direita está a rainha
com um vestido bordado de ouro, enriquecido com diversas variedades [Sl. 44, 10]
77
.
(Apología, v. 01: 258-260. trad. nossa).
A túnica multicolorida e sem costuras era a Igreja Ecclesia ou o conjunto de
todos os fiéis clérigos e laicos. Bernardo reivindicava a sua unidade. A metáfora da
túnica, enquanto representação social, assim como aquela do corpo ou da casa de Hugo
Peccator lembraria aos cristãos a diferença e a solidariedade que devia mantê-los unidos
por um sentido de diversidade e interdependência. Claro, o raciocínio bernardino e
hugoniano dialogam com Imaginário das Três Ordens e com as elaborações doutrinais
do século XI que pensavam a sociedade dividida entre o clero os que oram e o
laicato os que combatem e os que cultivam a terra. A túnica social alcançava a todos
na sociedade, sem exceção:
E assim, temos recebido todos os diversos dons, uns um, e outros outro. Os
cluniacenses, os cistercienses, os clérigos regulares, todos o fiéis do laicato, o mesmo
que toda ordem, toda língua, toda idade, todo sexo, todo estado de vida, em todo lugar
e tempo, desde o primeiro homem até o último. Referindo-se o profeta a esta túnica que
chega até os calcanhares, afirmou: “nada se livra de seu calor” [Ps. 18,07]; está na
medida exata do que a vai carregar. Por isso diz em outro lugar a Escritura: “Chega
com vigor de extremo a extremo e tudo alcança suavemente” [Sb. 8,1]
78
. (Apologia, v.
01: 260. trad. nossa).
77
Recognosce, omnipotens Pater, eam quam fecisti Christo tuo polymitam, dando quidem quosdam
apostolos, quosdam autem prophetas, alios vero evangelistas, alios pastores et doctores, et cetera quae in
eius ornatu mirifico decenter apposuisti, ad consummationem utique sanctorum, occurrentium in virum
perfectum, in mensuram aetatis plenitudinis Christi...
...Quis me, inquit, separabit a caritate Chirsti? Audi quomodo polymitam: Divisiones, ait, gratiarum sunt,
idem autem Spiritus; et divisiones operationum sunt, idem vero Dominus. Deinde diversis enumeratis
charismatibus, tamquam variis tunicae coloribus, quibus constet eam esse polymitam, ut ostendat etiam
inconsutilem et desuper contextam per totum, adiungit: Haec autem operatur unus atque idem Spiritus,
dividens singulis prout vult. Caritas quippe diffusa est in cordibus nostris per Spiritum Sanctum qui datus
est nobis. Non ergo dividatur, sed totam et integram hereditario iure sortiatur Ecclesia, quia et de illa
scriptum est: Astitit regina a dextris tuis in vestitu deaurato, circumdata varietate.
78
Itaque diversi diversa accipientes dona, alius quidem sic, alius vero sic, sive Cluniacenses, sive
Cistercienses, sive clerici regulares, sive etiam laici fideles, omnis denique Ordo, omnis lingua, omnis
sexus, omnis aetas, omnis conditio, in omni loco, per omne tempus, a primo homine usque ad
novissimum. Nam et popter hoc talaris dicta est, quod ad finem usque pertingat, dicente Propheta: Et non
est qui se abscondat a calores eius, nimirum congruens ei cui et facta est qui, perhibente videlicet alia
Scriptura, et ipse attingit a fine usque ad finem fortiter, et disponit omnia suaviter.
122
Bernardo expôs esse princípio da túnica aos cluniacenses como um critério de
tolerância e alteridade. A túnica era uma metáfora para a solidariedade e a
interdependência eclesiástica baseada na variedade profetas, pastores, mestres, etc.
Todavia, era evidente sua relação com o todo social na medida em que pretendia
demonstrar os diferentes dons que cada um recebe, desde o clero até os fiéis do laicato.
Nesses termos e nessas circunstâncias, ou seja, na apropriação, sobretudo, dos textos
paulinos e dos salmos e também na vontade de dirimir um conflito, Bernardo
desenvolvia um duplo princípio: da solidariedade monástica e da harmonia coletiva
embasadas na diferença de dons e de estados sociais. Ao mesmo tempo em que
concebia essa pluralidade de estados, Bernardo não deixava de afirmar seu caminho
para a Salvação, procurando deixar evidente sua certeza quanto às virtudes e às
características primordiais de seu monasticismo cisterciense.
04. Mors sanctorum Dei
Consideremos que o cerne do Novum Militiae Genus consistia na união de dois
gêneros de homens monge e cavaleiro reunidos em uma única pessoa. Esta
continuaria o combate de Cristo na Palestina. Mas Bernardo não apenas explicitou a
reunião de duas práticas em uma mesma pessoa, ele fez uma apreciação crítica entre
ambas:
Quão gloriosos os vitoriosos que voltam da batalha! Quão felizes os mártires mortos
em batalha! Felicidades, fortes atletas, se vivem e vencem no Senhor, mas mais
exultante e glorioso se morreres e se unires ao Senhor. Na verdade, a vida é frutuosa e
a vitória gloriosa, mas de uma parte e de outra, a morte sagrada é com justiça posta
adiante. Na verdade se felizes aqueles que morrem no Senhor, não muito mais felizes os
que morrem pelo Senhor?
Verdadeiramente, se morre no leito ou na batalha, sem dúvida, seja mais precioso, aos
olhos de Deus, a morte de seus santos
79
.
(DLNM, v. 367, t. 31: 52, trad. nossa).
São Bernardo estabeleceu o novum miles em um nível equivalente ao dos
mártires, daqueles santos que encontraravam no suplício um caminho para a salvação.
São Bernardo exaltou a sua vitória e também a sua morte. A figura do mártir, pelas
palavras de Bernardo, era emblemática de uma espécie de resistência religiosa efetiva.
79
Quam gloriosi revertuntur victores de proelio! Quam beati moriuntur martyres in proelio! Gaude, fortis
athleta, si vivis et vincis in Domino; sed magis exsulta et gloriare si moreris et iungeris Domino. Vita
quidem fructuosa, et victoriosa, et victoria gloriosa; sed utrique mors sacra iure praeponitur. Nam si beati
qui in domino moriuntur, non multo magis qui pro Domino moriuntur?
Et quidem sive in lecto, sive in bello quis moritur pretiosa erit sine dubio in conspectu Domini mors
sanctorum eius.
123
Como destacou Vauchez (1989: 212), foi exatamente por terem morrido como seres
humanos, seguindo a Cristo e empenhados na fidelidade à sua mensagem que, na
perspectiva cristã, os mártires tiveram depois acesso a glória do Paraíso e à vida eterna.
Claro que Bernardo deveria conhecer os relatos das vidas dos religiosos que,
principalmente durante a perseguição aos cristãos dos primeiros séculos, conheceram
uma morte dolorosa e cruel. Além da resistência religiosa à opressão de uma força pagã,
a morte através do martírio era o esforço extremo despendido em nome de uma certeza
e de uma recompensa que coroavam o encontro do mártir com o próprio Cristo. Logo,
São Bernardo expôs uma leitura da morte daqueles milites que fazia referência ao
cristianismo primitivo. Este retorno trouxe a possibilidade de uma santidade militar
ancorada na morte legítima e violenta do mártir por causa de sua fé.
Sofia Boesch Gajano (2002: 456) destaca que, sobretudo a partir do século IV,
houve uma modificação na idéia de santidade. A figura do mártir de sangue seria
substituída pelo mártir da penitência e da prática das virtudes eremitas, cenobitas e
bispos passariam a ser figuras de grande influência na vida espiritual. Tal mudança se
relacionaria com o contato que o cristianismo passou a desenvolver com o Império
Romano naquele período. Ao se converter em uma religião tolerada (315) e
posteriormente oficial (396), o sacrifício dos cristãos perderia um pouco de seu sentido.
Isso contribuiria para a ascensão de outros modelos de santidade e virtude cristã.
Pensando nessas duas matrizes de santidade e nas palavras de São Bernardo,
encontramos uma leitura desses dois modelos de legitimidade social. Podemos propor
ainda a existência de uma definição militar Novum Militiae Genus interpretada por
referência a um cristianismo primitivo – ancorado na idéia do martírio – e a um
monasticismo que encontrava sua legitimidade em outros referentes, especificamente
referentes beneditinos cistercienses.
Entrevê-se para aqueles cavaleiros a segurança da salvação e a possibilidade da
santidade através do seu martírio: a derrota em combate e sua conseqüente morte. A dor
física e o esforço militar frustrado “sublimam-se de um valor moral” (SCHMITT, 2002:
260) que “purificava” o miles e o aproximava ainda mais de Cristo. A batalha e seus
resultados vitória ou morte transformavam-se em vinculadores da santidade, tal
como foi definido anteriormente. A morte do Novus Miles seria mais vantajosa que a
vitória. Aparentemente aquele miles desejava a morte violenta devido à segurança do
124
seu futuro na eternidade junto do Cristo. A morte dos componentes desse exército era
exaltada na sua associação com o martírio e na certeza de seu encontro, pós-morte, com
o próprio Cristo. Bernardo pretendia que Cristo fosse a inspiração dos Novi Milites em
combate e sua meta após a morte.
Se se considera as primeiras partes do De Laude Novae Militiae, nas quais
Bernardo estabeleceu o Novus Miles como continuador das “obras belicosas” de Cristo
na Palestina, não é absurdo propor que o Santo pensasse em Jesus como praticante
militar. Uma prática militar metafórica. Cristo esteve, durante sua encarnação e Paixão,
engajado em uma luta diferente, espiritual, mas ainda assim, segundo São Bernardo,
comungando com o combate do cavaleiro. Além da continuação da luta de Cristo e da
garantia do encontro com ele após a morte em batalha, a questão do martírio militar vem
corroborar essa proximidade, essa íntima identidade, entre Cristo e o Novum Militiae
Genus.
Para além da luta metafórica de Cristo não se deve esquecer o momento em que
ele tomara um chicote nas mãos e expulsara os negociantes do Templo. Momento
curioso do evangelho, no qual Jesus, tomado de cólera, investia contra aqueles que
estariam maculando a “Casa de Deus” [Mt. 21,12-13]. Esta passagem evangélica
acentua a expulsão de pessoas cujas atividades eram indignas para o Templo. A
lembrança de tal passagem não é por acaso. São Bernardo a mencionou como um
comportamento análogo e inspirador para os cavaleiros:
Em verdade, todos estes objetos demonstram claramente que nossos cavaleiros
queimam pela casa de Deus do mesmo zelo que se manifestara outrora, quando o chefe
dos cavaleiros, inflamado de uma cólera muito violenta, entra no Templo, tendo em sua
mão muito santa, o uma arma de ferro, mas um chicote. Ele caça os vendedores,
dispersa a moeda dos negociantes e revira as mesas dos vendedores de pombas,
estimando perfeitamente indigno de prostituir a casa da prece por uma feira deste
gênero.
O exemplo de tal Rei galvaniza este exército que lhe é consagrado. Também julga ele
ainda mais indigno e infinitamente mais intolerável de deixar os infiéis macularem o
santo lugar que ver os vendedores o infestarem
80
.
(DLNM, v. 367, t. 31: 74, trad.
nossa).
80
Plane his omnibus liquido demonstrantibus eodem pro domo Dei fervere milites zelo, quo ipse
quondam militum Dux, vehementissime inflammatus, armata illa sanctissima manu, non tamem ferro, sed
flagello quod fecerat de resticulis, introivit in templum, negotiantes expulit, nummulariorum effudit aes et
cathedras vendentium columbas evertit, indignissimum iudicans orationis domum huiuscermodi
forensibus incestari.
Talis proinde sui Regis permotus exemplo devotus exercitus, multo sane indignius longeque intolerabilius
arbitrans sancta pollui ab infidelibus quam a mercatoribus infestari...
125
Pode-se afirmar que o Novum Militiae Genus foi uma representação militar, ou
seja, da militia, que era centrada em Cristo. A luta metafórica de Cristo contra o diabo,
seu exemplo ao expulsar os negociantes do Templo e a certeza de sua aprovação quanto
à luta dos milites na Palestina destacavam aspectos da vida de Jesus que o estabeleciam
como um líder militar, uma figura régia, comandante de um exército de santos
cavaleiros. A passagem evangélica da expulsão dos vendedores no Templo contém uma
lógica relevante para a concepção militar de São Bernardo, afinal, os cruzados estavam
exercendo um trabalho semelhante ao de Cristo.
O cristianismo primitivo se vê rodeado dessas figuras, desses martyres. São
Bernardo vislumbrou uma perspectiva particular quanto ao martírio. Este foi entendido
como a derrota e a morte do cavaleiro em uma empresa militar conduzida em nome de
Cristo, cujos algozes eram os inimigos que triunfavam no caso, os guerreiros do Islã.
Fala-se em derrota na medida em que os “objetivos concretos” se tornavam impossíveis
de serem alcançados. Todavia, Bernardo afirmava que o miles Christi desejava a morte,
pois receberia Cristo como consolo e recompensa: Em verdade, ele [o Novus Miles] não
teme a morte, pois ele deseja morrer
81
(
DLNM, v. 367, t. 31: 52, trad. nossa). De
qualquer forma, seja na vitória ou na morte, o Novum Militiae Genus tinha sua
recompensa assegurada. Se o Novus Miles era continuador da obra de Cristo na
Palestina, sua morte, assim como a dele, deveria se revestir de um caráter dignificante,
penoso e purificador. o dignificante e purificador quanto à morte do monge em seu
leito.
Essas considerações acerca do martírio se tornaram mais complexas na
proporção em que São Bernardo indagava se quem morria por Cristo era tão feliz
quanto quem morria em Cristo. O Santo reservava as honras do martírio aos
componentes do Novum Militiae Genus mortos em combate. Já ao propor uma pergunta,
ele estabelecia implicitamente uma equivalência entre a prática monástica e a prática
militar. Entende-se que quem morria em Cristo era a pessoa cujas práticas sociais e
culturais se aproximavam das dele, segundo uma exegese específica que enfatizava a
mansidão, a simplicidade, a humildade e a pobreza. O monge seria o exemplo
primordial daquela pessoa que, segundo aquela interpretação, morreria em Cristo.
81
Nec vero mortem formidat, qui mori desiderat.
126
O morrer por Cristo, no tratado bernardino, assumia um caráter legitimador da
reconquista dos lugares santos da Palestina e da impugnação dos herdeiros do diabo. O
cavaleiro que morria por Cristo não tinha que morrer mansa e pacificamente, depondo
suas armas e abraçando a vida monástica, tal como os irmãos de São Bernardo fizeram.
O cavaleiro precisava exercer um serviço considerado útil a Cristo para alcançar a
salvação. São Bernardo teceu uma proximidade entre Cristo e o cavaleiro cuja base
estava na apropriação e representação de práticas militares específicas e na interpretação
de uma figura de Cristo mais belicosa, cujo ápice seria o momento da expulsão dos
vendedores e dos negociantes do Templo de Jerusalém. Cristo transformava-se, na
mobilização das preposições in e pro, em exemplo para dois atores sociais distintos e
específicos. Em suma, o morrer por Cristo era o ato que coroava um grande esforço
físico ou um sacrifício voluntário, empregado com o objetivo de exercer um serviço útil
e garantir um futuro próximo da divindade.
Existem, no discurso de Bernardo, duas vias de santidade que se assentavam,
entre outras coisas, em interpretações ou apropriações de singularidades da vida de
Cristo. De um lado a paz, o amor e a entrega mansa e abnegada; do outro, uma espécie
diferente de amor e abnegação: o combate e a vontade de livrar a Terra Santa do diabo e
seus agentes. Morrer por Cristo é tão bom quanto morrer em Cristo? Ou melhor, o
cavaleiro que morria derramando sangue por Cristo era tão feliz quanto o monge que
morria pacificamente em Cristo? A pergunta, enquanto artifício retórico do texto
laudatório pretenderia desconstruir uma possível interpretação que relacionava o in e o
pro, de acordo com uma hierarquização desfavorável à segunda preposição
relacionada no tratado bernardino com o serviço militar. Percebe-se como esse sentido
do pro era percebido por certos eclesiásticos na medida em que Guilherme de Saint-
Thierry expunha as atitudes do jovem São Bernardo diante da militia
82
.
No De Laude Novae Militiae ambas as mortes especificadas e expressadas na
apropriação de duas preposições latinas são legítimas. Conclui-se que: o monge não
teria para São Bernardo proeminência sobre o Novum Militiae Genus. Ainda sobre o
tema da morte ou da boa morte, o último ponto a ser discutido destaca ainda mais a
relação eqüitativa entre monasticismo e a Nova Espécie de Cavalaria. Essa relação
82
Ver páginas 47, 49 e 50-51.
127
mostra-se verossímil na proporção em que era afirmada a preciosidade da morte dos
santos (sanctorum) de Deus, no leito ou na guerra.
Bernardo discorreu sobre a morte em batalha e concluiu pelo caráter sacro desta.
Mais do que a segurança oferecida por um tipo de morte física diante da salvação foi a
relação entre militia e monasticismo que era posta. A representação das mortes e dos
mártires, apreendida em uma escala rudimentar, trazia a consideração de que Bernardo
não impunha o monasticismo à cavalaria. O abade se via diante da possibilidade da
interação, da intercessão e da equivalência salvacional entre ambas as práticas aquelas
dos que morriam no leito em Cristo e as dos que morriam em batalha por Cristo.
Interseção e interação percebidas não apenas na influência de códigos monásticos sobre
o Novus Miles, mas também na influência de digos militares sobre o monasticismo
bernardino.
O ponto primordial destas considerações sobre as “tipologias” da morte legítima
disponíveis aos cristãos – no presente caso, duas é vislumbrar uma relação hierárquica
entre as categorias expressas por São Bernardo. Se o Santo se preocupou em louvar e
equiparar duas espécies de mortes é provável que uma delas não gozasse de uma
unanimidade e de fato não gozava. No tratado, São Bernardo se ocupava em exaltar a
morte ideal do Novus Miles e torná-la equivalente à morte exemplar e pacífica do
monge.
Além desse esforço, o abade de Claraval procurou distinguir a morte do Novus
Miles da morte do miles secularis. Tal distinção assentava-se nos diferentes objetivos de
ambas e nos seus diferentes resultados. O Santo não apenas teceu uma representação do
Novum Militiae Genus e suas práticas, como também repudiou a cavalaria secular:
Qual pode ser a meta ou o proveito, eu não digo desta cavalaria, mas desta malícia
secular
83
, se aquele que mata peca mortalmente tanto quanto aquele que é morto
perece pela eternidade? De fato, para falar como o Apóstolo aquele que trabalha deve
labutar na esperança, como aquele que mói o grão na esperança de ter sua parte [I
Cor. 09: 10]. , oh cavaleiro, erro tão estupendo, loucura mais insuportável:
dispensar tanta riqueza e trabalho na guerra para não retirar outro proveito que a
morte ou o crime?
Vós cobris vossos cavalos de seda; s revestis sobre vossas lorigas eu o sei quais
panos; vós pintais vossas lanças, vossos escudos, vossa sela, vós ornais de ouros, prata
e pedras preciosas as bridas e as espadas. E isto em uma pompa de sorte que, com um
83
O jogo de palavras utilizado por São Bernardo para definir a cavalaria secular (militiae/malitiae) é mais
claramente percebido na versão latina do texto citada a baixo. Tal utilização da língua encontra referência
em Santo Anselmo, como observou Bloch (1982: 352).
128
furor infame e uma estupidez sem vergonha, vós vos atirais à morte. Trata-se de
insígnias militares e não de enfeites femininos? Por acaso, a espada do adversário
respeitará o ouro, desviará as pedrarias, será impedida de atravessar a seda?
84
(DLNM, v. 367, t. 31: 56, trad. e grifos nossos).
A cavalaria secular, ao empregar suas forças em batalhas que São Bernardo
considerava vãs e cúpidas, estaria duplamente ameaçada se o cavaleiro matasse seu
inimigo ou se fosse morto por ele, em ambas as ações ele incorreria na condenação de
sua alma. A única causa digna para empreender o esforço militar, no De Laude Novae
Militiae, era a causa de Cristo. Essa causa de Cristo ganhava os contornos da
impugnação dos inimigos dos cristãos, seja para impedir que continuassem espalhando
o terror e o mal, seja para libertar a Palestina ou simplesmente para que não
perguntassem aos cristãos: onde está o Deus deles? [Sl. 113, 02]
85
(DLNM, v. 367, t.
31: 62, trad. nossa).
São Bernardo, nesse ponto, pareceu retomar alguns pontos dos concílios de Paz
do século XI e da pregação de Urbano II em 1095. O Santo, evidenciando os perigos
que rondavam a morte de certos milites, condenava as práticas fratricidas e as lutas
intestinas do Ocidente. Por um lado, ao matar seu inimigo por motivos e intenções tidos
como pecaminosos – orgulho e vingança – o cavaleiro incorreria no crime de homicídio;
por outro lado, se ele fosse morto, não receberia o prêmio da salvação devido à sua
participação em batalhas consideradas indignas:
De fato quando tu marchas para a batalha, tu que fazes parte de um exército do
mundo, tem todo temor que tu o mates teu inimigo em seu corpo, certo, mas tu
mesmo em tua alma, ou que o inimigo não te mate, corpo e alma. Pois, considerando
as disposições do coração, e não julgando o resultado da guerra, que é necessário
estima o perigo corrido por um cristão ou a vitória que ele alcança. Se a causa do
combate é boa, seu objetivo não seria mau. Ao contrário, o fim não seria julgado bom,
se a causa é má, e se a intenção o é direita. No caso onde, bem decidido a matar o
outro, é tu quem é morto, tu não morre menos na situação de homicida. E se tu te
mostras o mais forte, matando talvez um homem no desejo de vencer ou de se vingar, tu
vives em situação de homicida. Ou, morto ou vivo, vitoriosos ou vencidos, não convém
ser um homicida. Triste vitória aquela onde, para vencer um homem, tu sucumbes ao
84
Quis igitur finis fructusve saecularis huius, no dico, militiae, se malitiae, si et occisor letaliter peccat, et
occisus aetenaliter perit? Enimvero, ut verbis utar Apostoli, et qui arat, in spe debet arare, et qui triturat,
in spe fructus percipiendi. Quis ergo, o milites, hic tam stupendus error, quis furor hic tam non ferendus,
tantis sumptibus ac laboribus militare, stipendiis vero nullis, nisi aut mortis, aut criminis?
Operitis equos sericis, et pendulos nescio quos panniculos loricis superindutitis; depingitis hastas, clypeos
et sellas; frena et calcaria auro et argento gemmisque circumornatis, et cum tanta pompa pudendo furore
et impudenti stupore ad mortem properatis. Militaria sunt haec insignia, an muliebria potius ornamenta?
Numquid forte hostilis mucro reverebitur aurum, gemmis parcet, serica penetrare non poterit?
85
Ubi est Deus eorum?
129
vício, e onde, dominado pela cólera ou orgulho tu se gabas, bem por erro, de ter
suprimido um homem
86
. (DLNM, v. 367, t. 31: 54, trad. e grifos nossos).
Não foi suficiente para São Bernardo equiparar a morte dos “santos de Deus”
do monge e do Novus Miles ele realizou uma nuance entre as possíveis mortes e suas
causas no seio da própria cavalaria. Segundo o Bernardo existiria uma razão justa
para combater, esta assegurava a salvação ao cavaleiro. O Santo mencionava claramente
as garantias daquela morte contrapondo-a à morte do miles saecularis. Da mesma forma,
Bernardo depreciava as vestimentas e hábitos indumentários da cavalaria secular
pautando suas críticas em dois pilares que mantêm uma ligação íntima: humildade,
utilidade, eficiência / luxo, inutilidade, embaraço. Repúdio ao luxo, que Duby (1994)
também observou na apreciação bernardina com relação à arte cisterciense, a equipagem
cavaleiresca se via também reduzida ao necessário para oferecer ao cavaleiro os meios
para combater eficazmente ou morrer gloriosamente pro Christi.
São Bernardo, como havia demonstrado em sua carta ao jovem Roberto, teve
uma noção clara do equipamento necessário ao miles para conduzir o seu combate. Esse
equipamento não devia estar em desacordo com os cuidados dignos da salvação:
humildade e simplicidade. Para lutar ou morrer pro Christi não era necessário luxo,
riqueza e ostentação, algo que se relacionava com uma individualidade ou afirmação de
identidade individual que pareciam hostis a São Bernardo. Um dos pontos principais
que transpareceram na comparação da representação bernardina das duas militias – nova
e antiga era exatamente a preservação de um caráter ou ideal comum, talvez
cenobítico, de igualdade evangélica e quiçá monástica no Novum Militiae Genus. Por
outro lado, a antiga cavalaria foi caracterizada como individualista e orgulhosa. Mais do
que criticar o luxo e a riqueza cavaleirescas, é a crítica à individualização e ao orgulho
militar que transparece.
Contudo, Barthélemy (2007: 277) observa que a crítica de São Bernardo ao luxo
e à cobiça militar pode se constituir em um paradoxo. Afinal, se os cavaleiros se
86
Quoties namque congrederis tu, qui militam militiam militas saecularem, timendum omnino, ne aut
occidas hostem quidem in corpore, te vero in anima aut forte tu occidaris ab illo, et in corpore simul, et in
anima. Ex cordis nempe affectu, non belli eventu, pensatur vel periculum, vel victoria christiani. Si bona
fuerit causa pugnantis, pugnae exitus malus esse non poterit, sicut nec bonus iudicabitur finis, ubi causa
non bona, et intentio non recta praecesserit. Si in voluntate alterum occidendi te potius ccodi contigerit,
moreris homicida. Quod si praevales, et voluntate superandi vel vindicandi forte occidis hominem vivis
homicida. Non autem expedit sive mortuo, sive vivo, sive victori, sive victo, esse homicidam. Infelix
victoria, qua superans hominem, succumbis vitio et, ira tibi aut superbia dominante, frustra gloriaris de
homine superato.
130
ocupavam em pilhar seus adversários, a morte em batalha deveria ser um fato raro. O
mesmo autor enfatiza que a guerra legítima pregada por Urbano II e São Bernardo era
implacável. De fato, para os cavaleiros, as guerras na Palestina seriam mais duras e
violentas do que as guerras no Ocidente, tal como observou Barthélemy (2007).
Se se consideram as atas dos concílios de paz, cuja existência no século XI se
fez em praticamente todo Ocidente, as quais salientavam a proteção quanto aos
desarmados, ou a pura lógica militar, os mais expostos à morte em combate deveriam
ser os camponeses, os mercadores, os clérigos desarmados e as mulheres. A observação
de Barthélemy, associada a outras evidências, é pertinente, mas não deve ignorar as
impressões do Santo quanto às batalhas seculares no Ocidente e o destino das almas
militares que, em maior ou menor quantidade, morriam nelas. Além disso, aquelas
guerras deveriam parecer mais cruéis aos eclesiásticos, pois, além de colocarem em
risco a si próprios, levavam cristãos a matarem cristãos.
A argumentação bernardina quanto à legitimidade da morte do Novum Militiae
Genus em batalha e da conduta repreensível da militia tomou a forma de perguntas,
cujas respostas, se pretendendo óbvias, tornavam as conclusões dos leitores evidentes.
Protocolos de leitura, reforçados por citações bíblicas, que procuravam assegurar o
entendimento da mensagem bernardina. Tal argumentação se constituiu com o objetivo
de convencer o leitor da legitimidade do Novum Militiae Genus.
Tal convencimento se sustentava na observação não apenas da continuidade do
combate de Cristo, “pelas mãos de seus fortes”, mas pela equivalência entre duas
espécies de mortes do monge e do cavaleiros e da tradução do esforço militar
segundo signos cristocêntricos. Ou melhor, São Bernardo interpretou a ação militar e as
práticas do Novus Miles através de uma relação estabelecida entre a militia e as práticas
de Cristo. Outros elementos, apresentados anteriormente e que corroboram esta
observação, dizem respeito à avaliação bernardina do caráter extraordinário do Novum
Militiae Genus comparado com dos monges: o elogio da morte do Novus Miles e sua
“equiparação” à morte monástica no leito. Além disso, o Santo afirmava a segurança
de sua salvação face aos vícios da cavalaria secular. Ao refletir sobre a morte dos
cavaleiros de Cristo em batalha, São Bernardo persuadia e insistia concluindo que o
Novum Militiae Genus era um caminho para a salvação tão legítimo quanto o
monasticismo.
131
05. Breves ponderações acerca dos significados da conversão
É necessário ainda realizar mais algumas observações quanto à carta de São
Bernardo ao conde Hugo de Champagne
87
. Perguntamos se São Bernardo poderia
interpretar as palavras e informações do conde como uma espécie de conversão militar,
próxima à conversão monástica. Como foi apresentado por Bernardo, Hugo de
Champagne realizava uma renúncia, um abandono de sua condição por outra que se
considerava inferior: comes/miles. Demurger (2005: 58) também apreende àquela ação
como uma “conversão. Nesse sentido, não é irrelevante insistir na primeira frase da
carta, a qual é elucidativa da apreensão bernardina do exemplo de Hugo de Champagne:
se unicamente pela causa de Deus te fizeste simples cavaleiro e pobre, de riquíssimo
que tu eras... (BERNARDO DE CLARAVAL. Carta ao conde Hugo de Champagne.
In: GIOVANDO, v. 12, t. 01, 1944: 269, trad. nossa). A felicitação de Bernardo foi algo
indicativo da aceitação de uma transformação baseada em um abandono do poder e da
riqueza.
É notório o fato de que o Santo não tenha tentado insistentemente convencer
Hugo de Champange ou o seu herdeiro, Teobaldo II, a se tornarem monges. Pensando
especificamente em Teobaldo II, o piedoso princeps, destacada sua relação com
Claraval, não foi pressionado, tal como os irmãos de Bernardo, a se converter. As cartas
que o abade escrevera ao Conde Teobaldo II eram bem significativas do caráter que
assumia para o Santo a participação dos poderes seculares no mundo. São Bernardo,
entre os anos de 1127 e 1128, recomendara alguns religiosos à proteção do conde. Este
provedor da religião utilizaria o seu poder e a sua influência para apoiar os religiosos
frágeis. Logo, Teobaldo II cumpriria uma missão louvável na medida em que
direcionasse sua potestas em benefício da religião.
Consideramos, portanto, três níveis de apreensão de São Bernardo quanto à
nobreza laica. O primeiro é o da conversão ao monasticismo ilustrado pelas ações de
seus parentes o segundo, da conservação do poder secular justificado pelo apoio e
provimento da religião e dos religiosos e o terceiro, da possibilidade de um estado
militar distinto apreendido na carta a Hugo de Champagne e no De Laude Novae
Militiae. Deter-nos-emos na terceira possibilidade.
87
Ver página 54.
132
A missiva ao conde Hugo de Champagne trouxe dois aspectos chave que se
aprofundam no De Laude Novae Militiae. O primeiro é o da permanência do nobre
secular na vida militar e sua não conversão ao monasticismo. O segundo é a relação
entre vida militar e vida monástica consideradas como formas de renúncia que se
aproximam e que não incomodam os seus protagonistas. Hugo de Champagne e Hugo
de Payns informaram Bernardo da existência de escolhas militares específicas no
contexto das Cruzadas, disponibilizando ao Santo um impulso para uma nova
perspectiva militar. A carta foi um ponto crucial que revelou uma nuance na concepção
de São Bernardo acerca da militia. Pode-se corroborar esta hipótese na proporção em
que, neste momento, aprofundamos o olhar sobre a complexidade do monasticismo
bernardino enquanto contribuição para as suas perspectivas sociais e políticas.
Tomemos a idéia de conversão e algumas definições desta nas palavras de
Urbano II durante o concílio de Clermont de 1095; nas passagens da Vita Prima sobre a
mudança de estado dos cavaleiros; e na frase inicial da carta de São Bernardo ao conde
Hugo de Champagne. A primeira diz respeito à mudança operada junto aos inimigos de
Deus, os quais, nas Cruzadas, se convertiam em seus amigos. A segunda expressão diz
respeito à mudança de estado ou à deposição das armas dos familiares de São Bernardo.
A terceira conversio é aquela deposição de honras e riquezas realizada pelo conde Hugo,
que mantinha, contudo, o seu estado militar. Nestes três exemplos, a idéia de
abandono ou alteração de uma postura ou conduta anterior por outra que, de acordo com
a perspectiva de seus interlocutores, era considerada melhor. Urbano II louvava a
mudança de atitude dos milites que abandonavam as guerras fratricidas no Ocidente em
prol da Cruzada, Guilherme de Saint-Thierry se maravilhava com o abandono do arnês
militar pelo hábito monástico e São Bernardo destacava a mudança realizada por Hugo
como obra de Deus.
A presença do ideal de transformação permeia as três expressões. Contudo, a
transformação mais radical foi aquela manifestada no relato de Guilherme de Saint-
Thierry. Segundo este abade, os convertidos não preservavam qualquer ligação com seu
estado militar anterior. nas palavras de Urbano II, os milites se mantinham ativos nos
campos de batalha, mas direcionando sua violência para usos considerados corretos,
tornando-se pugnatores. Barthélemy (1994: 44) observa que a Igreja do século XI se
esforçou por moderar e direcionar a violência militar. Evidentemente, como demonstra
133
a documentação, houve esse esforço, mas também houve a apropriação, a resistência e a
interpretação do discurso eclesiástico partindo da militia, como pudemos observar na
relação entre Hugo de Payns e São Bernardo.
Se o discurso de Urbano II e de Guilherme de Saint-Thierry são bem distintos, a
conversão de Hugo de Champagne reúne aspectos de ambos os discursos. Podemos
deduzir que o conde de Champagne se propôs a deixar as lutas fratricidas do Ocidente e
a reafirmar seu compromisso de lutar nas Cruzadas. Além disso, ele realizava um
abandono das riquezas e dignidades mundanas e abraçava um estado humilde e
subordinado: a militia. Evidenciamos e reiteramos essa situação nas oposições
expressadas pelo Santo no início da carta.
Se a conversão dos milites da Vita Prima assinalava um abandono das honras
seculares em prol de um monasticismo caracterizado pela humildade, esforço físico,
rusticidade e precariedade, a mudança do conde Hugo em 1125 deveria parecer bem
próxima dessa conversão ao monasticismo. A diferença estaria na manutenção e no
destaque do estado militar enquanto um serviço humilde, com grande esforço físico,
simples e realizado em um ambiente precário ou muito adverso.
É verossímil propor que, em 1125, o ato penitencial de Hugo de Champagne
tenha parecido a São Bernardo uma espécie de conversão ao monasticismo. O discurso
de Hugo de Payns reforçaria tal interpretação na medida em que este falava de jejuns e
abstinências aos seus companheiros: verdadeiramente, na paz, com a própria carne vós
lutais com jejuns e abstinências...
88
. (HUGO PECCATOR. Carta aos Cavaleiros de
Cristo. In: LECLERCQ, 1957: 87). São Bernardo, portanto estaria, após 1125 e,
sobretudo, durante a redação do De Laude Novae Militiae, convicto ou prestes a se
convencer do caráter próximo da conversão monástica que assumiria a societas de Hugo
de Payns. No De Laude Novae Militiae, o abade de Claraval aprofundou e explicitou
melhor essa aproximação, justificando-a e convencendo seus interlocutores e a si
próprio de sua legitimidade.
Tomemos então uma quarta expressão da conversão, manifestada por São
Bernardo:
Sim, Cristo soube se vingar em seus inimigos, não somente triunfando deles, mas,
também, ele frequentemente costuma, tanto gloriosamente quanto fortemente, triunfar
por eles. Sem dúvida, ele começou a ter mais felicidade e comodidade assim que
88
In pace enim cum carne propria ieiuniis et abstinentia pugnatis...
134
anunciou defensores os que durante muito tempo foram antagonistas e fez do
adversário, cavaleiro, pois, de certo Saulo perseguidor, fez Paulo pregador [At. 09,20-
21] Eis por que não se espantar, se também por aquela assembléia do alto, como o
testemunho do Salvador, se exulta mais sobre um pecador que se faz penitente, que
sobre muitos justos que não m necessidade de penitência [Lc. 15, 07], enquanto a
conversão do pecador e do maligno é, longe de dúvida, proveitosa, por quantos
anteriormente e habitualmente se matara
89
. (DLNM, v. 367, t. 31: 78, trad. nossa).
A fala de São Bernardo, nesta passagem, é bem próxima daquela do Papa
Urbano II. Os inimigos de Cristo se transformavam em seus amigos. Os pecadores e
malfeitores se transformavam em defensores. Houve uma mudança de conduta. O
exemplo evocado para ilustrar a disposição divina para com os milites seculares foi São
Paulo. A trajetória deste apóstolo seria emblemática da mudança de conduta hostil para
a adesão ao cristianismo e sua defesa. Além disso, a conversão militar, no trecho citado,
era exposta como a vingança de Cristo, pois Ele não apenas vencia seus inimigos, como
também vencia através da adesão destes à sua causa. Esta passagem de uma malitia
secularis para a militia Christi da malícia secular para a cavalaria de Cristo
demonstra, do ponto de vista bernardino, a dualidade de uma cavalaria necessitada de
cristianizar-se mas prenhe de possibilidades. Os Templários eram, para Bernardo,
convertidos, milites que abraçaram uma conduta cavaleiresca em prol do cristianismo.
Em outras palavras, os Templários eram, também, em uma representação específica,
novos “Saulos/Paulos”.
Todavia, no De Laude Novae Militae a conversão é mais profunda do que uma
transformação de atitude. A conversão militar exposta no tratado era, sobretudo, o
abandono de um estado e a adoção de outro que se aproxima das conversões da Vita
Prima. Aproximam-se, mas não coincidem.
Hugo de Payns e seus amigos, nas palavras do Santo, conjugavam dois estilos de
vida em uma única pessoa. Além de serem cavaleiros de Cristo, eles conduziriam uma
vida cenobítica, de caráter monástico. Devemos perguntar por que a conversão militar
do De Laude Novae Militiae foi tão profunda quanto a conversão dos irmãos de
Bernardo e mais profunda que a conversão dos milites que iam combater nas Cruzadas
89
Sic Christus, sic novit ulcisci in hostes suos, ut non solum de ipsis, sed per ipsos quoque frequenter
soleat tanto floriosius, quanto et potentius triumphare. Iucunde sane et commode, ut quos diu pertulit
oppugnatores, magis iam propugnatores habere incipiat, faciatque de hoste militem, qui de Saulo
quondam persecutore fecit paulum praedicatorem. Quamobrem non miror, si etiam superna illa curia,
iuxta testimonium Salvatoris, exsultat magis super uno peccatore paenitentiam agente, quam super
plurimis iustis qui non indigent paenitentia, dum peccatoris et maligni tantis procul dubio prosit
conversio, quantis et prior nocuerat conversatio.
135
ao clamor de Urbano II. Respondemos essa pergunta ao evidenciarmos as relações entre
o Santo e os milites cruzados na década de vinte do século XII e as informações
chegadas da Palestina por intermédio de Hugo de Payns, Hugo de Champagne e pelo rei
Balduíno II.
Essas informações vieram no sentido de destacar o caráter penitencial e de
grande sacrifício da atividade militar empregada pelos cavaleiros de Hugo de Payns na
Palestina. Ao mesmo tempo, esta atividade era pontuada como uma espécie de ascese
laica isso se evidencia, sobretudo, na carta de São Bernardo a Hugo de Champagne.
As informações chegavam ao Ocidente e a argumentação dos milites era tecida para São
Bernardo, porém a aproximação entre as duas militias – efetiva e metafória, cavaleiresca
e monástica ainda era obscura ou apenas intuída pelos militares. Portanto, o ponto
primordial foi explicitar a perspectiva, o lugar onde São Bernardo estava. Deste lugar,
acossado por problemas e demandas militares, ele repensou suas convicções e certezas,
sendo capaz de realizar uma leitura monástica particular da “conversão” de um grupo de
milites.
136
CAPÍTULO IV
137
A ESPECIFICIDADE DA REPRESENTAÇÃO DAS PRÁTICAS DO NOVUM
MILITIAE GENUS
01. A “leitura” bernardina
Mesmo que Barthelémy (2007: 134 e 277) tenha apresentado certo ceticismo
com relação à intensidade da violência cavaleiresca no Ocidente nos tempos de Santo
Odon e de São Bernardo, não se deve ignorar que ela incomodava aos eclesiásticos e
evidentemente aos camponeses. Um incômodo que tomou a forma de dois escritos
Vita Geraldi e De Laude Novae Militiae que se aproximavam em alguns aspectos,
mas se distanciavam em outros, como será demonstrado. A afinidade de São Geraldo
com o monasticismo e a reiteração de seu dever de defesa dos pobres podem ter
fornecido referentes a Hugo de Payns e a São Bernardo para pensarem a cavalaria,
como foi hipotetizado anteriormente.
Todavia, a representação do Novum Militiae Genus não deve conduzir a uma
aproximação ampla com a Vita Geraldi, sobretudo no que tange a imagem da
religiosidade militar e das práticas na paz e na guerra vinculadas em ambos os escritos.
Mesmo que ambos os abades pensassem uma representação ideal da cavalaria a partir
de suas perspectivas monásticas, as relações entre militia e monasticismo, em ambos os
escritos, foram apresentadas de maneiras diferentes. A percepção de tal fato nos sugeriu
que monges filiados à matriz beneditina, mas de Ordens diferentes, construíram
representações distintas da militia. O que Santo Odon pensava sobre e para a militia não
era a mesma coisa que São Bernardo propunha.
Barthélemy (2007: 276) indagou se o De Laude Novae Militiae tratar-se-ia de
um elogio a uma nova cavalaria, ou a uma nova milícia. Ou seja, Bernardo elogiava
uma cavalaria renovada ou um seguimento de milites que renovam suas práticas? Tal
questionamento liga-se intimamente ao sentido que São Bernardo pretendeu atribuir à
palavra militia em seu texto. Já foi discutida anteriormente a polissemia da palavra miles
e seus derivados. Além disso, nas suas correspondências com os condes de Champagne,
Bernardo deixava claro que o miles era um servidor, subordinado às ordens de alguém.
Mais do que um servidor, para Bernardo, o miles era um vassalo, considerando que a
vassalagem trazia em si um significado militar, de apoio e defesa do suserano.
Ao miles, São Bernardo também atribuía um caráter de nobreza, não somente
pela noção de combatentes de elite ou melhores armados, mas também por sua ligação
138
com famílias antigas, reconhecidamente nobiles ou celebres. Contudo, para São
Bernardo, se se considera sua carta a seu primo Roberto e a representação dos Novi
Milites, o sentido fundamental que o abade de Claraval percebia nos milites era o
esforço físico e o risco de perder a vida. O cavaleiro era, para São Bernardo, uma figura
que empregava um grande esforço em ações que poderiam ser boas ou más.
Vislumbrar esse significado de serviço e labor na figura do miles bernardino foi
um dos caminhos escolhidos para examinar os significados da militia no De Laude
Novae Militiae. Por outro lado, foi perceptível que Bernardo escrevia para um grupo
particular, restrito, de milites. A mensagem do Santo foi para Hugo de Payns e seus
companheiros, mas Bernardo pretendia que os mesmos se convertessem em mensagem
e modelo para os outros milites. A idéia de Bernardo era que, a partir desse grupo de
milites, o resto da cavalaria se convertesse e renovasse suas intenções e práticas, tanto
sociais quanto militares.
Bernardo propôs em certa passagem de seu tratado: Mas agora, para imitação
ou confusão dos nossos cavaleiros, não dos que combatem claramente por Deus, mas
pelo diabo, digamos brevemente os modos e a vida dos cavaleiros de Cristo
90
...
(
DLNM,
v. 367, t. 31: 66, trad. nossa). Os modos e a vida dos primeiros Templários eram algo
para ser imitado ou confundir os cavaleiros seculares. Além dessa vontade, dessa
militância bernardina, percebe-se que Christi eques
91
- cavaleiro de Cristo era um
termo que conservava a mesma semântica de miles Christi. A palavra latina eques
cavalaria – diretamente ligada à figura do cavalo, demonstra que São Bernardo se refere
somente aos guerreiros montados.
Foi possível esmerar ainda mais a pergunta inicial de Barthélemy quanto ao
significado da militia no tratado de São Bernardo e, buscando a especificidade de seu
discurso e de seu monasticismo, acrescentar: como eram as práticas do Novum Militiae
Genus? O que individualizava esse grupo de milites no seio de uma cavalaria que o
abade de Claraval pretendia criticar, mas também orientar? Em suma, investigamos a
relação entre Hugo de Payns e seus milites com São Bernardo sem esquecer a leitura
que este último realizou das práticas dos primeiros.
90
Sed iam ad imitationem seu confusionem nostrorum militum, non plane Deo, se diabolo militantium,
dicamus breviter Christi equitum mores et vitam...
91
No tratado, Bernardo utiliza a forma do genitivo plural de eques equitum que significa: “... dos
cavaleiros”.
139
02. No tempo de Paz
Bernardo prosseguia na caracterização dos Novi Milites:
Primeiro, de alguma maneira a disciplina o é ausente, e a obediência não é jamais
desprezada. De fato, como testemunha a Escritura, “um filho indisciplinado perece”
[Sr. 22, 03] e a rebeldia equivale ao pecado de adivinhação, a obstinação equivale à
feitiçaria” [1Sm.15, 23]. Se ou se vem ao sinal do responsável, se veste o que se dá,
sem se permitir de procurar vestimentas e nutrição alhures. No viver e no vestir se
guarda de todo supérfluo e se é conduzido somente pela necessidade. A vida em
comum é claramente amena e a conversação sóbria, ausentes mulheres e crianças.
E para que não falte nada à perfeição evangélica, se renuncia a toda propriedade
pessoal para habitar todos juntos em uma única casa, atentos a conservar a unidade
do Espírito pelo laço da paz [Ef. 04, 03]. Dir-se-á que sua multidão forma um
coração e uma alma [At. 04, 32]: assim, cada um deles, se abstém absolutamente de
seguir sua própria vontade, mas mais submetidos a obedecer àquele que comanda
92
.
(DLNM, v. 367, t. 31: 66-68, trad. e grifos nossos).
O Santo falou da obediência dos Novi Milites àquele que os comandava e da
rusticidade de seu vestuário e alimentação. Evidentemente, o Santo pretendia trazer a
sua idéia de utilidade que nessa parte se contrapunha ao que era supérfluo no vestir e
nos hábitos alimentares dos cavaleiros. Utilidade e obediência nos remetem a uma
representação inspirada no Evangelho e que dizia respeito ao cotidiano dos apóstolos
que era vivido em comum.
Os primeiros Templários renunciariam a todos os bens particulares e comporiam,
em uma unidade harmoniosa no Templo de Jerusalém, uma espécie de cenóbio militar
ou cavaleiresco. Miccoli (1989: 35), pensando no exemplo dos primeiros monges da
história, observou que, naqueles em que a memória apostólica era mais forte, havia o
desejo de afastar-se da vida social e praticar as regras, estabelecidas pelos apóstolos
para o conjunto da Igreja. Bernardo pode ser considerado como um daqueles que
pensava no exemplo dos apóstolos e de sua comunidade. Bernardo traduziu a
comunidade de Hugo através da imagem apostólica. Se Odon utilizava os preceitos
apostólicos para trazer primordialmente uma idéia de paciência, ética e compreensão a
92
Primo quidem utrolibet disciplina non deest, oboedientia nequaquam contemnitur, quia, teste Scriptura,
et filius indisciplinatus peribit, et peccatum ariolandi est repugnare, et quasi scelus idololatriae nolle
acquiescere. Itur et reditur ad nutum eius qui praeest, induitur quod ille donaverit, nec aliunde
vestimentum seu alimentum praesumitur. Et in victu et in vestitu cavetur omne superfluum, soli
necessitati consulitur. Vivitur in communi, plane iucunda et sobria conversatione, absque uxoribus et
absque liberis.
Et ne quid desit ex evangelica perfectione, absque omni proprio habitant unius moris in domo una,
solliciti servare unitatem spiritus in vinculo pacis. Dicas universas multitudinis esse cor unum et animam
unam: ita quisque non omnino propriam sequi voluntatem, sed magis obsequi satagit imperanti.
140
Geraldo, Bernardo pensava nos exemplos apostólicos para traduzir certo modo de vida e
certo cotidiano compartilhados em um gênero de cenobitismo militar.
A referência aos Atos dos Apóstolos (At. 04, 32)
93
, sobretudo a passagem que
Bernardo utilizou, era significativa de uma apreensão particular dos novi milites. Tal
apreensão, aliada à sua morte em martírio, acrescentava a noção de santidade militar tal
como foi exposta pelo abade de Claraval. O De Laude Novae Militiae não era uma
hagiografia, mas continha os passos e as representações de uma santidade militar.
Novamente Miccoli (1989: 41) observa que o mosteiro não deixava de ser o lugar da
ascese e da penitência individual, do refúgio e da proteção contra “os ferozes costumes
de uma sociedade militar”. Obviamente essa ferocidade militar é uma qualificação
discutível, mas que parte da consideração de uma apreciação eclesiástica da sociedade.
Contudo, a comunidade dos Novi Milites, sendo contraposta à imagem pintada por
Miccoli, parece apontar uma sociedade militarizada em que o cenóbio tomava as formas
de uma caserna. Não se trata somente de um refúgio frente às violências sociais, mas o
cenóbio, para São Bernardo, era apropriado como uma forma ideal de organização e
convívio cavaleirescos.
Outro aspecto relevante para as práticas militares do tratado de São Bernardo,
evidenciado por tradutores do De Laude Novae Militiae como Emery (1990) e Ramos
(1953-1955), era a Regra de São Bento. As determinações da Regra Monástica, junto
com o exemplo apostólico, ilustram a forma de viver de Hugo e seus companheiros. A
apropriação da Regra Beneditina para representar as práticas daqueles cavaleiros é
evidente, principalmente na parte que o Santo afirmava que os Templários se abstinham
de seguir a própria vontade e guardavam obediência a seu chefe. A Regra de São Bento
estabelecia que: ninguém no monastério siga a vontade do próprio coração
94
. (BENTO
DE NURSIA. Regra de São Bento. In: COLOMBAS; SANSEGUNDO & CUNILL,
1954: 336, trad. nossa.). Este regulamento monástico enfocava as idéias de obediência,
fidelidade e disciplina calcadas em uma regulamentação monástica que reduzia a
individualidade e a distinção no meio militar.
93
A multidão daqueles que tinham abraçado a tinham um coração e uma só alma e ninguém
considerava como propriedade sua algum bem seu; pelo contrário, punham tudo em comum.
94
Nullus in monasterio proprii sequatur cordis voluntatem.
141
Por outro lado, São Bento, os cluniacenses e os cistercienses, até o momento do
abade de Claraval, não conceberam uma comunidade de milites regida ou inspirada por
tal conjunto de prescrições. Como apontou Demuger (2005: 15-31), os primeiros
Templários, vassalos do Santo Sepulcro, deveriam conhecer alguma regra de vida, seja
a constituída por Santo Agostinho de Hipona, seja a de São Bento. Contudo, a
aproximação entre Regra Religiosa e práticas militares no De Laude Novae Militiae era
mais estreita e direta. Este fato sugere que Hugo, como foi apontado anteriormente,
pode ter intuído ou concebido, de forma simples, uma confraria de militares com
conduta parecida com o cenobitismo. Porém, São Bernardo deu àquela confraria um
caráter mais concreto, direto e seguro. A representação daqueles milites, no tratado de
Bernardo, tem uma relação mais evidente e direta com os exemplos dos primeiros
cristãos e dos monges de Claraval, para os quais São Bernardo pretendia instituir uma
maior observância da Regra de São Bento.
A referência citada da Regra de São Bento não foi a única. Bernardo prossegue:
Em nenhum momento permanecem ociosos ou vagam curiosos; mas quando eles não
estão em campanha, o que é raro, para não comer seu pão sem o ter merecido, eles
estão sempre a reparar suas armas e suas vestes, consertar o que está usado e pôr em
ordem, como cumprir tudo o que comanda a vontade de seu mestre ou as necessidades
da comunidade
95
. (DLNM, v. 367, t. 31: 68, trad. e grifos nossos).
O Santo, novamente, criticava o ócio e a curiosidade, afirmando que os milites
jamais ficam sem trabalho ou ocupação, mesmo nos tempos de paz. Ele afirmava que os
cavaleiros se preocupavam em não comer seu pão sem merecimento, sempre
procurando reparar as armas e as vestimentas ou se envolvendo nas necessidades da
comunidade. Quanto ao ócio, a Regra de São Bento diz que a ociosidade é inimiga da
alma, por isso, em determinados tempos devem os monges ocupar-se com o trabalho
manual e em certas horas com a lição divina
96
. (RSB: 562, trad. nossa.)
Não se deve
obliterar que o cronista Ernoul (Chronique d’Ernoul. In: MAS LATRIE, 1871: 7-9)
destacou a preocupação dos milites de seu relato em não manterem-se ociosos, pois a
necessidade de defesa era crescente na Palestina dos Estados Latinos.
95
Nullo tempore aut otiosi sedent, aut curiosi vagantur; sed semper, dum non procedunt, – quod quidem
raro contingit –, ne gratis comedant panem, armorum seu vestimentorum vel scissa resarciunt, vel vetusta
reficiunt, vel inordinata componunt, et quaeque postremo facienda Magistri voluntas et communis indicit
necessitas.
96
Otiositas inimica est animae; et ideo certis temporibus occupari debent fratres in labore manuum, certis
iterum horis in lectione divina.
142
Essa lógica da utilidade e da recusa ao ócio parece ter sido algo que permaneceu
forte nas impressões e na memória das pessoas. A necessidade de manter a segurança
em Jerusalém enquanto um trabalho árduo e difícil, que necessitava de dedicação
contínua seja em batalha, seja na caserna, oferecera a Bernardo uma aproximação
possível com as tarefas monásticas que afastavam a ociosidade da vida diária. Seja na
sua carta a seu sobrinho fugitivo ou no Apologia ou ainda no De Laude Novae Militiae
Bernardo confirmou a ocupação nos afazeres diários monásticos ou militares
enquanto um aspecto importante de sua espiritualidade. Se, nas representações militares,
o ócio para a oração era algo valorizado por Odon, para Bernardo o trabalho manual
ocupava uma posição similar na sua relação com o sagrado.
Finalmente, quanto ao tempo de paz, São Bernardo pretendeu descrever como
seriam as relações entre os cavaleiros, os seus costumes e sua aparência:
Entre eles, mínima acepção: é o melhor que se respeita não o mais graduado. Eles
rivalizam entre eles devido à estima recíproca e portam os fardos um dos outros,
completando assim a lei de Cristo [Gl. 06, 02]. Palavra insolente, atividade inútil, riso
sem contenção, murmúrio, mesmo muito ligeiro, ou sussurro: nada disso os
surpreende nem permanece impune. Jogos de xadrez e de dados são considerados
horríveis, em horror também a caça, e mesmo este hábito de apanhar as aves por ardil
não lhes diz nada. Eles rejeitam e abominam magos e narradores de histórias, bufões e
cantilenas, e também espetáculo de jogos, como vanidades e falsas insanidades.
Cabelos cortados, cientes, de acordo com o Apóstolo: é ignominioso para o homem
que tenha mantido a cabeleira [I Cor. 11, 14]. Nunca elegantes, raramente lavados,
híspidos pela barba negligente, cobertos de poeira e enegrecidos pela armadura e pelo
calor.
97
(DLNM, v. 367, t. 31: 68-70, trad. e grifos nossos).
Novamente, evocamos a Regra de São Bento que estabelecia que o monge
deveria: Guardar sua boca de palavras más e perversas. Não ser amigo do falar muito.
Não dizer palavras vãs que excitem o riso. Não gostar do rir muito e estrepitosamente
98
.
(RSB: 350, trad. nossa.)
.
Bernardo ao se remeter às práticas do Novum Militiae Genus
nos tempos de paz apresentou, como demonstramos, duas referências fundamentais para
97
Persona inter eos minime accipitur: defertur meliori, non nobiliori. Honore se invicem praeveniunt;
alterutrum onera portant, vt sic adimpleant legem Christi. Verbum insolens, opus inutile, risus
immoderatus, murmur vel tenue, sive susurrium, nequaquam, ubi deprehenditur, inemendatum
relinquitur. Scacos et aleas detestantur: abhorrent venationem, nec ludicra illa avium rapina, vt assolet,
delectantur. Mimos et magos et fabulatores, scurrilesque cantilenas, atque ludorum spectacula, tamquam
vanitates et insania falsas respuunt et abominantur. Capillos tondent, scientes, iuxta Apostolum,
ignominiam esse viro, si coma nutrierit. Numquam compti, raro loti, magis autem neglecto crine hispidi,
pulvere foedi, lorica et caumate fusci.
98
Os suum a malo vel pravo eloqui custodire. Multum loqui non amare. Verba vana aut risui apta non
loqui. Risum multum aut excussum non amare.
143
caracterizá-lo: as práticas monásticas pautadas pela Regra de São Bento e pelos Atos
dos Apóstolos.
A descrição de São Bernardo apresenta uma riqueza de detalhes muito grande. É
possível que as informações que chegavam ao Ocidente diziam respeito a todas as
facetas descritas pelo Santo? Balduíno II, Hugo de Champagne e Hugo de Payns teriam
fornecido todos esses detalhes, descrevendo sua recusa aos jogos e mesmo sua
aparência? Evidentemente, conclusões como a do escurecimento da pele devido ao calor
e à armadura seriam consensuais e mesmo testemunhadas pelos cruzados que
retornavam ao Ocidente. Além disso, a austeridade e o caráter penitencial do Novo
Gênero de Cavalaria foram aludidos por Hugo Peccator em sua carta. Portanto, a
questão bernardina diz respeito à aproximação, possível e legítima, daquela austeridade
e penitência com os elementos mais familiares e significativos para São Bernardo: as
práticas monacais de Claraval pautadas por uma noção de utilidade e humildade, cujo
matiz orientador era a Regra de São Bento e o livro Atos dos Apóstolos.
No contexto das Cruzadas, ele concebeu uma aproximação entre os esforços,
rigores e durezas militares de Hugo de Payns com os esforços, rigores e durezas do
ascetismo de Claraval. Trata-se, portanto, de uma apropriação da Regra beneditina para
interpretar e apresentar práticas que até então não seriam contempladas ou entendias
pelas intenções de São Bento. Nesse sentido, é secundário especular se as informações
que chegavam ao Ocidente eram detalhadas ou superficiais, pois elas passavam pelo
crivo de sua perspectiva religiosa e monástica. A questão fundamental é perceber que a
leitura que São Bernardo realizou delas dependeu muito de sua perspectiva quanto ao
monasticismo cisterciense e quanto a outros elementos disponibilizados pela cultura de
seu tempo: os textos bíblicos e dos Pais da Igreja, por exemplo.
03. No tempo de guerra
Se em caserna, a representação militar mobilizada por São Bernardo evocava o
exemplo dos apóstolos e as práticas monásticas do Santo, as quais iam ao encontro das
práticas e dos anseios de certos milites, outras imagens e outros exemplos foram
evocados para constituir a imagem de seus atos bélicos. Contudo, antes de descrever os
modos de combate dos Templários, Bernardo novamente apresentou uma outra
definição de seu repúdio ao que ele considerava como supérfluo:
144
Adianta-se a iminente guerra, eles, enquanto armados por dentro pela fé, por fora pelo
ferro, não ornados, se munem não pelo ouro e incutem medo aos inimigos e não
provocam avareza. Desejam ter seus cavalos fortes e velozes, porém, não coloridos ou
enfeitados. Em verdade, eles ponderam a batalha, não a pompa, a vitória, mas não a
glória e cuidam que sejam mais temíveis do que admirados
99
. (DLNM, v. 367, t. 31:
70, trad. e nossa).
É interessante destacar os detalhes contemplados pelo Santo, desde o tratamento
dos cavaleiros com seus cavalos até sua preocupação em serem temíveis e não
admirados pelo inimigo. Descrição que trouxe novamente uma reflexão acerca do útil e
do necessário para o sucesso comum. A subjetividade e a individualidade, espelhados
na pompa e na glória pessoal, são sublimadas pela busca da vitória em conjunto. São
Bernardo, assim como Santo Odon, trouxe uma noção clara de bem ou sucesso pensado
para a comunidade. Todavia, Odon insistiu nas boas intenções de Geraldo para com a
comunidade, já Bernardo destaca a coesão da comunidade militar baseada na sua recusa
do supérfluo. Ou seja, a humildade era apresentada como um elemento coletivo
necessário, mas que guardava imagens um pouco diferentes em ambos os autores.
Deparamos, sem surpresa, com uma representação monástica das práticas militares.
No tempo de guerra, assim como no tempo de paz, os primeiros Templários
encontravam no escrito bíblico modelos onde se espelhar. A figura militar dos dois
livros de Macabeus ajudaram a balizar as impressões bernardinas. Obviamente, São
Bernardo conhecia as práticas militares de seu tempo, mas os modelos bélicos de Judas
Macabeu e dos israelitas, segundo a opinião do Santo, serviriam melhor para ilustrar os
esforços em batalha daqueles milites:
Em seguida, em vez de se precipitar em desordem, com impetuosidade e com
leviandade, eles se organizam e se dispõe com reflexão, com toda cautela e providência,
ordenados e dispostos na linha de batalha [I Mc. 04, 41; 6,40] [II Mc. 15, 20], como foi
escrito dos pais [bíblicos]. Como verdadeiros israelitas, eles avançam pacíficos para
a batalha. Mas quando vem o momento do ataque, deixam sua tranqüilidade primeira,
“não é verdade que odiara quem te odiou, Senhor, e que eu investia sobre teus
inimigos”? [Ps. 138, 21]. Irrompem contra os adversários, reputam os inimigos como
ovelhas. Embora em menor número, absolutamente o temem a cruel barbárie ou a
numerosa multidão. Eles reconhecem e presumem esperar a vitória não de suas
forças, mas da virtude do Senhor Sabaoth, em quem seguramente fosse fácil confiar,
como a sentença do Macabeu [Judas Macabeu]: “fazer tombar muitos nas mãos de
poucos como não fosse diferente no exame do Deus do céu libertar por muitos ou por
poucos, pois a vitória da batalha não está na multidão do exército, mas ela vem da
99
Porro imminente bello, intus fide, foris ferro, non auro se muniunt, quatenus armati, et non ornati,
hostibus metum incutiant, non provocent avaritiam. Equos habere cupiunt foretes et veloces, non tamen
coloratos aut phaleratos: pugnam quippe, non pompam, victoriam, sed non gloriam cogitantes, et
studentes magis esse formidini quam admirationi.
145
força que provém do céu” [I Mc. 03, 18-19]. Pois muito frequentemente são
experimentados que um tenha abatido mil e dois tenham posto em fuga dez mil
[Dt.
32,30]
100
. (DLNM, v. 367, t. 31: 70-72, trad. e grifos nossos).
Os dois livros de Macabeus informam a história dos hebreus durante o período
helenístico, quando a Judéia estava sob o domínio dos soberanos seleucidas que
reinavam em Antioquia. A data dos acontecimentos foi estabelecida por volta de 175 a.
C. e 134 a. C. O tema dos livros resume-se à história de Judas Macabeu e seu homens
que, graças à intervenção divina, reconquistaram a autonomia da sua região e a
liberdade de culto que o rei Antíoco IV Epifanes tentara restringir. Judas Macabeu
alcançou, segundo os livros, vitórias que pareciam impossíveis:
Gorgias tomou consigo cinco mil infantes e mil cavaleiros de escol, e esse
destacamento partiu à noite, a fim de irromper no acampamento dos judeus e cair sobre
eles de surpresa. Os homens da Cidadela serviam-lhe de guia. Judas o soube e partiu
com seus bravos para combater o exercito real que se achava em Emaús, enquanto seus
efetivos ainda estavam dispersos fora do acampamento. Gorgias chegou de noite ao
acampamento de Judas, não encontrou ninguém e s-se a procurar os judeus pelas
montanhas, porque, dizia ele: “Estão fugindo de nós”.
Ao romper o dia, Judas surgiu na planície com três mil homens, mas estes não tinham
as armaduras e espadas que gostariam de ter. Divisavam o acampamento dos pagãos,
poderosos e fortificado, os cavaleiros que o cercavam, todos eram gente experimentada,
adestrada para o combate. Judas disse aos seus homens: “Não temais essa multidão e
não receeis o seu assalto. Lembrai-vos como nossos pais foram salvos no mar
Vermelho, quando o Faraó os perseguia com o seu exército, e elevemos agora ao Céu o
nosso clamor; se ele nos quer, lembrar-se-á da aliança dos pais e esmagará hoje diante
de s aquele exercito, e saberão todas as nações que alguém que resgata e salva
Israel”. Os estrangeiros levantaram os olhos; vendo os judeus marcharem contra eles,
saíram do acampamento para dar batalha. As hostes de Judas fizeram soar a trombeta
e entraram em combate. As nações foram esmagadas e fugiram em direção à planície,
mas os que estavam na retaguarda caíram sob o fio da espada. A perseguição atingiu
Gazara e as planícies da Iduméia, de Azoto e de Jâmnia: pereceram aí cerca de três mil
homens. (BÍBLIA SAGRADA, 2002, 1Mc. 04, 01-17).
O capítulo quatro do primeiro livro dos Macabeus, como demonstra a passagem
citada do De Laude Novae Militae, parecia ser bem familiar a São Bernardo. A citação
bíblica acima contém alguns elementos fundamentais para a leitura do Santo do Novum
100
Deinde non tuburlenti aut impetuosi, et quasi ex levitate praecipites, sed consulte atque cum omni
cautela et providentia seipsos ordinantes et disponentes in aciem, iuxta quod de patribus scriptum est.
Veri profecto Israelitae procedunt ad bella pacifici. At vero ubi ventum fuerit ad certamen, tum demum
pristina lenitate postposita, tamquam si dicerent: Nonne qui oderunt te, Domine, oderam, et super
inimicos tuos tabescebam? Irruunt in adversarios, hostes velut oves reputant, nequaquam, etsi paucissimi,
vel saevam barbariem, vel numerosam muultitudinem fortmidantes. Noverunt siquidem non de suis
praesumere viribus, sed de virtute Domini Sabaoth sperare victoriam, cui nimirum facile esse confidunt,
uxta sententiam Machabei, concludi multos in manus paucorum, et non esse differentiam in conspectu
Dei caeli liberare in multis, et in paucis, quia non in multitudine exercitus est victoria belli, sed de caelo
fortitudo est. Quod et frequentissime experti sunt, ita ut plerumque quasi persecutus sit unus mille, et duo
fugarint decem millia.
146
Militiae Genus. Primeiramente, a luta dos macabeus resumia-se à impugnação de um
inimigo estrangeiro, com hábitos religiosos diferentes e que pretendia dificultar e
mesmo extirpar o culto religioso dos judeus. Em segundo lugar, a resistência macabéia
era conduzida com disciplina e ordem, porém, os macabeus estavam em desvantagem
quanto a seu número e quanto a qualidade de seu equipamento. A vitória macabéia,
como é perceptível na citação acima, foi alcançada na proporção em que a coragem
macabéia unia-se a fé em Deus.
Os cruzados também estavam em desvantagem na Palestina. A documentação e
a historiografia demonstram isso na medida em que evidencia as necessidades de
defensores ou os pedidos de ajuda ao Ocidente. A mobilização da imagem de Judas
Macabeu e dos israelitas não foi fortuita, pois a luta de Hugo de Payns e de seus
companheiros, de acordo com São Bernardo, se aproximava das metas e das
dificuldades dos macabeus. A organização, a disciplina militar – alcançadas com a ajuda
das práticas monásticas a inferioridade numérica e a luta pela libertação da Terra
Santa faziam dos Templários herdeiros dos macabeus. Ou melhor, segundo Bernardo,
os Templários seriam novos macabeus.
É importante observar que a certeza de São Bernardo pode ter fornecido aos seus
interlocutores, os Templários, uma convicção que seria notável em certas crônicas. Em
1153, os cruzados se apoderaram da fortaleza de Ascalon, localizada próximo à costa da
Palestina, em um importante caminho entre o Egito e Jerusalém. Quem narrou as
dificuldades e os longos meses de cerco foi Guilherme de Tiro. Segundo o cronista, os
cruzados posicionaram junto aos muros de Ascalon uma torre de sítio. Os arqueiros e
besteiros dessa torre causavam grandes transtornos e danos tanto aos defensores das
muralhas quanto às pessoas que transitavam na cidade. Convictos da necessidade de
uma ão, os ascalonenses decidiram arremessar madeiras e outros materiais
combustíveis entre a torre e os muros, provocando o incêndio da máquina de sitio.
Bem sucedidos em sua ação, incendiaram a torre, mas, como o vento conduzisse
as chamas para a direção das muralhas, parte destas desmoronou devido ao calor,
abrindo uma brecha. Isso possibilitou uma manobra ofensiva por parte do exército
cruzado. Assistiu-se então a iniciativa templária, cujo desenrolar Guilherme narrou:
Despertados nestas circunstâncias, ao som da ruína, os exércitos inteiramente tomaram
as armas e para aquelas partes acorreram depressa a fim de imediatamente entrar,
como se da parte de Deus fosse aberto o acesso. E, também, o mestre da cavalaria do
147
Templo, Bernardo de Tremelai, com seus irmãos, que muito se adiantam ante os outros,
ocuparam o acesso, não permitindo ninguém entrar, salvo os seus. Diziam-se, porém,
afastá-los por esta intenção, na medida em que, sendo os primerios entrantes, obteriam
maiores espólios e as pilhagens abundantes. De fato, nas cidades tomadas com
violência, até agora, junto a nós, se obtém por lei o direito: o que cada entrante toma
em seu proveito, o possua, para si e seus herdeiros, em direito perpétuo
101
.
(GUILHERME DE TIRO. Historia Rerum in Partibus Transmarinis Gestarum. In:
MIGNE, v. 201, 1855: 702, trad. nossa).
Se as intenções eram ruins, os resultados seriam péssimos: a sórdida pilhagem
não tem bons resultados
102
(HRIPTG, v. 201: 703, trad. nossa). Após entrarem na
cidade, os Templários, em menor número, se viram cercados pela população em armas.
Dessa forma, foram mortos e tiveram seus corpos decapitados e pendurados nas
muralhas de Ascalon. Segundo Guilherme, os ascalonenses conseguiram tapar a brecha
no muro, evitando, por certo tempo, a invasão da cidade. A despeito das antipatias de
Guilherme contra os Templários, o ocorrido em Ascalon nos interessa como elemento
de exame do alcance das representações bernardinas.
Guilherme de Tiro explicou a iniciativa de Bernardo de Tremelai e seus homens
como cupidez, ambição e orgulho. Segundo o jornalista Reinaldo Lopes (2006: 50), os
Templários, na entrada da brecha e de costas para a cidade, teriam lutado contra os
próprios cruzados. Possivelmente, o jornalista exagerou o relato de Guilherme de Tiro,
sendo inverossímil a hipótese apresentada. Read (2001: 153-155) afirmou que
quando da investida dos Templários, os outros cruzados não conseguiram acompanhá-
los.
A ação de Bernardo de Tremelai quem Read crê que tenha conhecido São
Bernardo leva a refletir a importância da representação dos macabeus para os
Templários. Bernardo de Tremelai e seus contemporâneos conheciam o De Laude
Novae Militiae. Logo, as práticas daqueles Templários não se relacionavam com as
certezas e ênfases apresentadas por São Bernardo? É verossímil explicar a ação
daqueles cavaleiros em Ascalon impulsionados por um desejo de glória e despojos
alicerçado nessas representações bíblicas e monásticas interpretadas e traduzidas por
101
Excitus igitur ad hunc ruinae sonitum univesus exercitus, arma corripiunt; ad partes illas convolant
quasi patefacto divinitus aditu, protinus intraturi. At magister militiae Templi, Bernardus de Tremelai,
cum fratribus suis, alios ante multo praevenientes, aditum occupaverant, neminem nisi de suis intrare
permittentes; eos autem hac intentione dicebantur arcere, quatenus primi ingredientes, spolia mjora et
manubias obtinerent uberiores; nam in violenter effractis urbiburs, id hactenus apud nos pro lege obtinuit
consuetudo, ut quod quisque ingrediens sibi rapit, id sibi et haeredibus suis perpetuo jure possideat.
102
Non habet eventus sordida praeda bonos.
148
São Bernardo. A ação do mestre do Templo ligar-se-ia com uma apropriação das
palavras do abade de Claraval. Afinal, que chances teriam um contingente de cerca de
quarenta homens no interior de uma cidade inimiga, se não estivessem conscientes,
além do apoio aliado, dos exemplos de outras figuras lendárias e sagradas que em
condições semelhantes tais como os macabeus moveram combates impossíveis,
porém vitoriosos?
Em outras palavras, o desejo de alcançar honras, despojos e reconhecimento
devido a grandes feitos não era incompatível com o exemplo bíblico dos macabeus.
Pelo contrário, o exemplo complementava e impulsionava as ações, atribuindo-lhes uma
legitimidade que destoa do juízo de Guilherme Tiro quanto ao caráter pernicioso de suas
intenções. A perspectiva de São Bernardo levava a considerar a impugnação e a
espoliação dos muçulmanos como uma ação justa e sem ressalvas, cujo pouco número
dos combatentes não importaria no resultado da batalha – morte ou vitória. Para o Santo,
as intenções e práticas do Novum Militiae Genus eram sempre boas e conduziam a bons
resultados. Se Guilherme de Tiro julgou a intenção e a ação dos Templários como
repreensíveis, São Bernardo mobilizou uma idéia semelhante para identificar neles a
boa intenção e o bem, sendo tal idéia conformada no discurso do De Laude Novae
Militiae um elemento componente e mobilizador da ação de Hugo de Payns e de seus
sucessores.
149
MAPA 02: Localização das cidades de Jerusalém e Ascalon. Reproduzido de:
MATTHEW, 1996: 90.
150
04. A relação entre práticas monásticas e práticas senhoriais na representação de
São Geraldo de Aurillac
Evidenciadas as características fundamentais do discurso bernadino quanto à
militia, voltemos então nosso olhar novamente para a Vida de São Geraldo de Aurilac.
O que destacamos na Vita Geraldi, por hora, não é tanto a conduta laica bondosa
apresentada por Odon no século X, a qual nós tivemos a oportunidade de explicitar nos
dois primeiros capítulos. O ponto principal é verificar a maneira como práticas
monásticas e militares foram abordadas e relacionadas na representação que Odon
construiu em sua hagiografia. Ressaltamos que, assim como São Bernardo, Santo Odon
também era um abade, conhecedor da regra monástica de São Bento. Além disso, o
abade cluniacense também problematizara a cavalaria. Trata-se, portanto, de uma
comparação possível e justificada.
Segundo Duby (1989: 202), a Vita Geraldi foi uma inovação na medida em que
o tema principal residia na vida de um conde, não de um rei ou prelado. Para Duby, este
texto apresenta-se como reflexo do “mutacionismo” político que teria atingido as
“estruturas de poder carolíngias” em benefício da descentralização feudal. Ou seja, o
enfraquecimento dos últimos reis carolíngios e seus oficiais diretos seria acompanhado
por um fortalecimento de seus vassalos, refletido no tema e na personagem escolhidos
por Odon. Qualificado na hagiografia como miles, ou cavaleiro, Duby supôs uma
mudança de atitude do clero quanto à cavalaria, cuja relação com a nobreza ou a
nobilitas se tornaria mais estreita.
De forma sucinta, como destacou Barthélemy (1994: 18-35), certos historiadores,
como Duby (1989), afirmaram ter havido uma mutação nas estruturas políticas e sociais
por volta dos séculos IX e X: a ascensão de novos indivíduos, beneficiados pelo
enfraquecimento da antiga aristocracia, contribuiria para a associação estreita entre o
direito de fazer guerra e a nobreza. Segundo os mutacionistas, antes dessa mutação, a
noção de nobreza se associaria à consciência do sangue familiar de antiga origem e não
ao direito de portar armas ou realizar guerras.
A despeito dos limites e das contribuições do que se chamou “a escola
mutacionista”, a historiografia tem percebido o texto de Odon enquanto expoente de
uma filosofia política (PACAUT, 1986: 86-87). Além de demonstrar o fortalecimento e
o enobrecimento da cavalaria, Duby (1994: 119) afirmou que tal texto era um
151
reconhecimento das virtudes laicas, pois Geraldo alcançava a santidade sem ter que
abandonar seu estado. Mesmo que Geraldo, como será demonstrado, apresentasse uma
ligação com práticas monásticas e se visse tentado a abandonar a vida secular, ele
permanecia na condição de conde que exercia, de uma forma curiosa, o ius militiae o
direito da cavalaria.
Todavia, Barthélemy (1994: 40) discorda de Duby na proporção em que propôs
que aos milites, antes de Odon, jamais faltou certa honorabilidade. Além disso, ele
observa que o personagem da Vita alcançara a santidade por se manter afastado de uma
cavalaria, cujo exercício seria exercido a contragosto. Barthélemy enxerga na Vita
Geraldi uma recusa das práticas cavaleirescas, pois Geraldo, como será demonstrado,
era muito pacífico, se recusava a derramar sangue e repudiava o luxo e, de certa forma,
o exercício do poder. Ao discordar das proposições de Duby com relação à Vita Geraldi,
Barthélemy apresentou observações consistentes.
Este historiador, por outro lado, pretende ligar Odon a São Bernardo enquanto
vitupérios da antiga cavalaria: “a duzentos anos de distância, dois grandes monges
guardam o século com o mesmo horror”! (BARTHÉLEMY, 1994: 40). Odon e
Bernardo teriam a mesma perspectiva social e política quanto à cavalaria? Se Odon e
Bernardo, em seus escritos representavam a recusa da cavalaria, então seu estudo seria
restrito às canções de gesta ou a literatura cavaleiresca, tal como a Canção de Rolando,
nas quais haveria um reconhecimento do luxo, do orgulho e do esplendor cavaleirescos?
O estudo das representações políticas e sociais esboçadas pelos e para os milites seria
interditado àqueles dois autores?
O problema que se evidenciou naquela observação de Barthélemy quanto ao De
Laude Novae Militiae dizia respeito à especificidade da representação militar construída
por São Bernardo. Em uma posição que difere daquele historiador, esta análise parte do
pressuposto que Odon e Bernardo tinham diferentes perspectivas com relação à
cavalaria. Da mesma forma, pelo menos no caso de Bernardo, é infundado falar em um
“horror ao século”, sobretudo se consideramos os percalços de sua trajetória e de seu
posicionamento quanto à cavalaria. Deve-se lembrar que o De Laude Novae Militiae foi
também uma resposta ao miles Hugo de Payns, às suas inquietações e necessidades.
Portanto, a comparação entre Odon e Bernardo justifica-se não somente pelos dois
religiosos construírem uma representação sobre a cavalaria, ou pelos dois serem abades.
152
Tal comparação mostrou-se como um instrumento útil para se apreciar a especificidade
do Novum Militiae Genus e explicitar a singularidade do como e dos porquês daquela
representação.
Em um trabalho recente, Barthélemy (2007: 132-141) demonstrou as
possibilidades de análise da Vida de São Geraldo para pensar as relações dos monges
com os milites daquela época. Ele se refere especificamente aos conflitos pelas posses e
à proteção das propriedades eclesiásticas. Além disso, o mesmo autor observa que
“Santo Odon não parece mentir ousadamente, simplesmente ele escolhe, embeleza e
generaliza certos traços de seu personagem” (BARTHÉLEMY, 2007: 134). Observação
pertinente que leva em conta o ponto de vista, a perspectiva de apropriação de Santo
Odon e sua tradução da vida de Geraldo. Escolhas, embelezamentos e generalizações
que se ligam intimamente à posição assumida por Odon perante a sociedade e as
relações de poder de seu tempo e aos referentes culturais disponíveis e selecionados por
ele. Se consideramos a existência de um habitus bernardino, evidentemente deve-se
supor um habitus odoniano.
Texto rico em possibilidades de considerações sobre a sociedade dos séculos IX
e X e suas relações de poder, dentro desse universo, serão analisadas a representação
das práticas militares de Geraldo e a relação destas com as práticas de cunho monástico.
Os trechos selecionados da Vita Geraldi dizem respeito à passagem de Geraldo da
adolescência para a idade adulta, além de seus primeiros atos e problemas militares. Já
foi mencionado o vigor físico de Geraldo e sua vontade de armar-se como miles. O
personagem de Odon mostrava-se apto ao exercício militar. Contudo, o mesmo Geraldo
apresentava qualidades, talvez vocações, que se distinguiam do ofício das armas.
Habilidades para leitura, especificamente a leitura religiosa, aportavam a Geraldo outras
virtudes além daquelas ligadas à prática da militia:
Mas o espírito do adolescente passeara pela doçura das Escrituras, junto das quais
respirava o zelo afetuozíssimo. Por causa disto, ainda que se destacasse nos ofícios
militares, porém, era seduzido pelo deleite das escrituras, livremente vagaroso nelas
pelo lazer e habituado na observância deste. Acredito nisso, pois ele percebia que,
do lado do testemunho da Escritura, “melhor é a sabedoria que a força”, nada é mais
rico. Pois é facilmente visto a partir destes que a amam: ocupava a mente desse mesmo
adolescente que se apresentasse primeiro diante dela e tivesse o doce consolo de sua
meditação. Nesse sentido, por nenhum impedimento que não fosse voltado para a
paixão de instruir-se pudera Geraldo ser apoderado. Daí é fato que conhecesse quase
153
plenamente o encadeamento das escrituras e tanto mais quanto muitos clérigos
sapientes no conhecimento delas
103
. (VG: 69, trad nossa).
São Geraldo, assim como certos duques normandos e como certos condes de
Carlos Magno, era um leitor. Alguém que se dedicava ao ócio do estudo bíblico. Este
estudo fizera Geraldo chegar à conclusão de que valia mais “a sabedoria que a força”.
Barthélemy (2007: 135), se baseando em outra passagem da Vita, observa que tal
costume do estudo das letras foi oferecido a Geraldo, pois se evidentemente fosse menos
apto aos usos seculares, junto aos eclesiásticos seria entregue
104
(VG: 69). Ou seja, a
Igreja recrutava, em parte, os “rejeitados da cavalaria” – aqueles fisicamente debilitados
– como discutimos no exemplo de São Bernardo.
Para Geraldo, nas palavras de Odon, então, era mais importante a sabedoria que
a força. Referência que sugere ou prediz a conduta posterior do Santo e a sua
inquietação. Melior est sapientia/quam uires poderia representar o estabelecimento de
uma oposição de práticas, ou de ofícios? Conhecedor das escrituras, o jovem miles
Geraldo encontrava na sua meditação e reflexão conforto e consolação. Santo Odon foi
enfático quando afirmara que, apesar das habilidades militares, Geraldo era seduzido
pelo deleite das escrituras. Nesta passagem (Ob hoc licet militarib. emineret officiis,
delectatione tamen litterarum illectus), a palavra licet que significa algo próximo de
“apesar de”, “embora”, “ainda que” (FARIA, 2003: 563) em conjunto com o verbo no
subjuntivo imperfeito emineret “se destacasse” marcou no trecho uma distinção
entre atividade militar e atividade religiosa. Distinção que se mostra clara na medida
em que Odon dizia que Geraldo conhecia melhor as escrituras do que muitos clérigos
sapientes.
103
Sed iam dulce scripturarum adolescentis animum subarrauerat, ad cuius studium affectuosius
anhelabat. Ob hoc licet militarib. emineret officiis, delectatione tamen litterarum illectus, in illis
voluntaria pigritia lentulus, in huius sedulitate erat assuetus. Credo iam sentiscebat quia iuxta Scrpiturae
testimonium, melior est sapientia quam vires, & nihil est locupletius illa. Et quoniam facile videtur ab his
qui diligunt eam, mentem eiusdem adolescentis praeoccupabat, ut ei se prior ostenderet, ut esset dulcis
alloquutio cogitationis eius. Nullo igitur impedimeto Geraldus poterat occupari, quin ad amorem discendi
recurreret. Vnde factum est, ut propemodum pleniter scripturarum seriem disceret, atque multos
clericorum quantumlibet sciolos in eius cognitione praeiret.
104
Quo videlicet, si vsibus seculi minus esset aptus; ad ecclesiasticum officium redderetur accommodus.
154
MAPA 03: Localização da cidade de Aurilac. Reproduzido de: MATTHEW, 1996: 118
155
Odon pretendia escrever a vida de um miles singular, uma raridade segundo a
própria temática do texto. Não se pode esquecer que se tratava de uma hagiografia, no
interior da qual os interesses sociais e políticos de Odon se conjugavam com a
consciência de estar diante de um personagem único um Santo para o qual era
constituído um universo sagrado distinto. Santo Odon, conhecedor da existência de tal
Geraldo, realizou escolhas, ênfases e obscurecimentos nas informações recebidas. A
figura do Santo Geraldo foi tecida na mobilização de elementos hagiográficos relação
reverente com a religião, conduta piedosa, paciência, milagres militares influenciada
pela perspectiva do abade cluniacense no mundo. Nesse esquema, para efeito de estudo
das representações da militia, a singularidade do escrito odoniano reside exatamente na
complexidade da relação entre práticas distintas que resulta do contato de Santo Odon
com a vida do conde d’Aurillac. Essa reflexão se traduz em um vocabulário e em uma
linguagem hagiográficos formalizados pela tradição.
Percebe-se que o cruzamento de práticas monásticas e militares se tornou mais
complexo à medida em que Geraldo alcançava a maturidade. Odon apresentara a
inquietação de sua personagem resultante da incompatibilidade entre a vontade religiosa
do jovem miles e as obrigações advindas de sua posição – direitos e deveres:
Geraldo cresceu e, como alcançasse pela descendência todo poder na propriedade, não
como os jovens acostumam os quais no domínio rapidamente ensoberbecem não
mudou a modéstia inicial do coração. O poder de dominar crescia gradativamente, mas
a mente humilde absolutamente não se tornava arrogante. Quanto experimentara
fugir das amarguras dos negócios terrenos a partir daquela doçura do coração, em
prol de serem organizados e protegidos os negócios, como dissemos anteriormente,
com justiça reivindicara para si e era impelido a apoderar-se da herança. Ele sofria
penosamente abandonar tal segredo de seu coração. Como ainda era possível,
rapidamente recorria àquele. Mas, se fosse visto desabar diante das ocupações terrenas,
ele não sucumbiria; do mesmo modo é costume que os abatidos se reestabeleçam pela
contemplação elevada: deste modo, o recorrente ao amor divino ou à meditação da
Santa Escritura escapa à ruína da morte interna. Penso que ele, inflado por aquele
espírito Davidico, pelo qual não trazia sono nos olhos, enquanto ocupado com ações
diurnas, tivesse encontrado lugar na afeição do Senhor, na qual, sob sua língua
discretamente exultante, experimentaria como Ele é agradável. Assim, como [Jó.
29,6], sobre esta pedra Cristo derramava torrentes de óleo e nem as abundantes águas
podem extinguir aquele vigor nessa vigília da caridade. Na verdade desejava estar
fixado junto a esse repouso do coração, mas era exigido pelos servidores e familiares
no sentido de que consumisse o tempo de retiro e se dedicasse à utilidade dos outros
105
. (VG: 69-70. trad. e grifo nossos).
105
Decendentibus autem parentibus cum eius dominio potestas omnis deueniret, non ut solent
adolescentes, qui in matura dominatione superbiunt, Geraldus intumuit, nec incoeptam cordis modestiam
immutauit. Dominandi potestas gradescebat, sed mens humilis nequaquam insolescebat. Pro disponendis
vero atque tuendis rebus, quas vt diximus, haereditario iure sibi vindicauerat, occupari cogebatur, & illa
cordis dulcedine, quam aliquatenus iam praegustauerat, ad amaritudines terreni negotii foras exire. Hoc
156
Geraldo, portanto, era obrigado a assumir o controle e a proteção das
propriedades familiares. Responsabilidade que, segundo Odon, exigia uma imensa
atenção de sua personagem. Odon expôs novamente uma antítese que opunha os
negócios terrenos e a meditação das escrituras amaritudines terreni negotii/Scripturae
Sanctae meditatione recurrens. Às asperezas ou amarguras dos assuntos terrenos ele
contrapôs a doçura da contemplação, a qual não permitia que Geraldo fosse vencido
pelos rigores de suas obrigações. Espécie de prazer espiritual, essa meditação ou retiro
de Geraldo aparece como um refúgio ou uma consolação necessária para manter firme o
nobre em suas obrigações. No entanto, a última frase do trecho suscita uma observação:
Geraldo não desejava tomar a frente dos negócios familiares. A vontade do Santo era,
possivelmente, tornar-se monge. Odon deixou claro que era contra sua vontade que
Geraldo abandonava o tempo de retiro ou ócio otia contereret para dedicar-se aos
cuidados dos outros. Geraldo desejava estar fixo defixus junto aquela reflexão do
coração.
Para Odon, a vocação religiosa de Geraldo era bem forte. Observa-se, além da
ênfase do autor na humildade, na contemplação e na modestia, que Geraldo também não
se casara, se fundamentando sobre seu amor a Deus e à castidade (BARTHÉLEMY,
2007: 133). Mas Geraldo era obrigado a manter sua posição na nobreza secular. Tal
situação faz transparecer ao leitor o caráter tênue da vida do Santo. Nestes primeiros
trechos da Vida de São Geraldo a impressão de que ele podeabandonar o século a
qualquer momento. Todavia, Geraldo não abandonou suas responsabilidades seculares,
mas se esforçava por adequar suas práticas. Isso é notório não apenas na conduta
humilde, modesta e casta, mas também nas ações, nas espectativas e nas resoluções que
ele era obrigado a tomar diante das necessidades que apareciam as queixas de seus
dependentes e o revide às agressões de seus vizinhos:
Constrangido nessas circunstâncias, acolhia as queixas dos que reclamam devido a
mordazes encargos. De fato, os falantes alegavam com sua voz querelosa: “por que
sui cordis secretum deserere aegre ferebat, mox tamen vt possiblie erat, ad illud recurrebat. Sed du ab alto
contemplationis, quasi ruere per terrena occupationem videretur; sicut ibici mos est, vt ruens in suis
cornibus se recipiat, ne moriatur: ita ad amorem divinu, el Scripturae sanctae meditaionem recurrens,
internae mortis ruinem euadebat: illo nimirum Davidico spiritu iam vt reor afflatus, quo ille feruens non
dabat somnum oculis, donec actionibus diurnis exoccupatus, locum Domino in seipso inueniret, in quo
sub lingua sua secretim exultans, quam dulcis est Dominus degustaret. Forte iuxta illud Job riuos olei huic
petra Christus fundebat, ne aquae multae possent exinguere in eo lucerna caritatis. Et ad istam cordis
reflectione defixus quidem inhiabat, se domesticis tamen, & familiaribus exigebatur, ut otia contereret, &
alioreum sese utilitatibus impenderet.
157
razão um homem poderoso permitia as violências que devastavam suas propriedades a
partir das pessoas mais humildes? Elas o acrescentadas porque, enquanto
explorassem que ele não se quer vingar, devastariam muito mordazmente quem quer
que seja do direito daquele. Fosse mais sagrado e honesto que reconhecesse o direito
da cavalaria armada, cerrasse o ferro no inimigo e parasse a audácia dos violentos: é
melhor os temerários serem perseguidos com força bélica que os camponeses e inermes
serem oprimidos injustamente pelos mesmos”. Pelo fato do ouvinte Geraldo ser
coroado pela razão e o pelo sobressalto, era inclinado a ter misericórdia e a
socorrer. E, pela divina disposição e misericórdia, tratava todos os que se reúnem
como órfãos e viúvas, assim como se guardasse imaculado deste século caso visitasse
frequentemente o preceito Apostólico
106
. (VG: 70. trad. nossa).
Os dependentes de Geraldo seus servos se apresentavam a ele levando as
reclamações dos abusos e das vexações a que eram submetidos. De fato, as razias ou
expedições regulares, cuja duração poderia variar de dias a meses, eram comuns nessa
sociedade. Enviar homens armados às terras do vizinho, exercer violências sobre seus
camponeses, saquear ou devastar suas propriedades não apenas supriam necessidades
materiais, mas também eram um ponto importante nas relações de poder. A vingança,
encarnarda no revide aos excessos e violências, cumpria um papel de justiça atribuindo
ao nobre um poder executivo daquilo que a maioria das pessoas considerava como
honesto e direito. Como Odon demonstrou, a vingança poderia ser considerada como
uma obrigação do nobre que se sentisse ofendido ou prejudicado.
A calma e a paciência de Geraldo inerti patientia levavam os seus belicosos
vizinhos, e mesmo seus dependentes, a escarnecerem dele. O escárnio parece ter a
função de explicitar um comportamento considerado por Odon como “anormal” entre a
nobreza. Além disso, o injusto escárnio elevava a figura de Geraldo na proporção em
que o ajudava a se diferir dos outros homens, afirmando sua singularidade/santidade.
Elemento hagiográfico recorrente, pois, se até mesmo Cristo foi zombado durante sua
Paixão, por que os candidatos à santidade não o seriam? Barthélemy (2007: 136-137)
levanta a hipótese de que o comportamento paciente de Geraldo fosse parte de uma
estratégia, um cálculo político, “uma manobra” de esperteza para com seus inimigos. A
despeito dessa esperteza, Odon atribuiu ao comportamento paciente de Geraldo uma
106
Mordaces igitur curas propter querimonias reclamantium inuitus admittebat. Causabantur enim sui
querelosa voce dicentes, Cur potens vir ab infimis personis quae res suas populabantur, violentias
pateretur; addentes, quia dum explorarent quod ille se nollet vicisci, quicquid illius iuris esset mordacius
devastarent: Sanctius & honestius esse, vt ius amatae mililiate recognosceret, in hostes ferrum stringeret,
violentorum audaciam frenaret: Satius esse temerario vi bellica premi quam pagenses & inermes ab
eisdem iniusti opprimi. Quod Geraldus audiens, non assultu, sed ratione cohortatus, ad miserandum &
subueniendum flectebatur. Totumque se divinae dispositioni ac misericordiae committens, tractabat
qualiter pupillos & viduas iuxta Apostolicum praeceptum visitaret, ut se ab hoc seculo immaculatum
custodiret.
158
interpretação de santidade. Geraldo era calmo por que se inspirava na religião e
pretendia que suas ações estivessem conformes com a dos Apóstolos. Contudo, havia
um limite para a paciência. Este limite foi estabelecido pelo abade de Cluny no risco
que os pobres e indefesos incorriam devido aos comportamentos de seu senhor:
Como verdadeiramente a insaciável maldade de alguns escarnecesse do homem
pacífico que logo imediatamente tira a aspereza do coração, do mesmo modo que
“quebrava o queixo do injusto, assim como tirou a presa de seus dentes” [Jó. 29,17].
Ele ainda não é irritado pelo desejo de se vingar ou seduzido pelo amor da glória
vulgar, como em muitos é de costume, mas que se inspira pela consideração dos pobres
que não podem se defender por si sós. Conduzia-se por isto afim de que não fosse visto
que negligenciasse o preceito do cuidado dos pobres acaso se entorpecesse devido à
paciência dos inertes. Seguramente, ele ordena que os pobres fossem libertados e os
necessitados soltos das mãos dos pecadores
107
. (VG: 70. trad. nossa).
Há nessa passagem a pintura do dever dos nobres: a defesa da sociedade. Quadro
realizado por um eclesiástico que pretendia demonstrar a sua apreciação quanto ao
nobre representado. Geraldo foi obrigado a revidar por causa do cuidado com os pobres.
Odon estaria expondo uma representação do oficio militar exercido com justiça. O
abade de Cluny foi mais direto no seu texto quanto a este aspecto, mas por enquanto,
evidenciar-se-á a prática militar que Geraldo exercia no cumprimento do dever que
Odon lhe atribui:
Porém, como algumas vezes a necessidade inevitável de combater abatesse sobre ele,
recomendou aos seus, com voz imperiosa, que lutassem com as extremidades das
espadas retroagidas e empregassem as lanças sem pontas. Fosse por isto ridículo para
os inimigos, em seguida intolerável aos mesmos, salvo se Geraldo fosse fortificado pela
força divina. Pelo fato de que Geraldo também não demonstrasse provar de experiência,
aos seus parecia muito tolo. Porque a piedade vencia na própria ocasião de lutar,
Geraldo seria sempre invencível. Por conseguinte, como visse que pelo novo modo de
combater, misturado à piedade, triunfasse, convertiam o escárnio em admiração. Enfim,
na verdade, não foi ouvido que o evento da vitória escapasse dele ou de seus cavaleiros,
os quais lutassem sob sua fidelidade. Mas, isto é certo, o consta que o próprio tenha
ferido quem quer que seja, nem inteiramente, que foi ferido por alguém. E de fato,
Cristo que, como foi escrito, mergulha o olho no coração dele, estava ao seu lado e
distinguia que por seu amor fosse tão benéfico que ele não desejasse atacar os
próprios inimigos, mas somente limitar sua audácia
108
. (VG: 70-71. trad. e grifo
nossos).
107
Cum vero inexplebilis malitia quorumdam pacificum hominem irrideret; iam tunc cordis acrimoniam
exerens, conterebat molas iniqui, vt de dentibus eorum , iuxta illud Iob, auferret predam. Non tamen, vt
plerisque moris est, vlciscendi libidine percitus, aut vulgaris amore laudis illectus, sed pauperum
dilectione, qui seipsos tueri nequibant inferuens. Agebat autem hoc ne forte si inerti patientia torpuisset;
praeceptum de cura pauperum neglexisse videretur. Iubet enim eripi pauperem, & de manu peccatoris
egenum liberari.
108
Aliquotiens autem cum ineuitabilis ei praeliandi necessitas incumberet, suis imperiosa voce praecepti,
mucronibus gradiorum retroactis, hastas inantea dirigentes puganarent. Ridiculum hoc hostibus foret, nisi
Geraldus vi divina roboratus, mox eisdem hostibus intolerabilis esset. Quod etiam suis valde videbatur
159
A simplicidade e a misericórdia geraldinas faziam com que a sua forma de
combate sem derramar sangue fosse coroada com sucesso. Segundo Barthélemy
(2007: 134), esta passagem é a mais analisada pela historiografia. Não deixa de ser
curioso o comportamento militar de Geraldo, tal como foi retratado por Odon. Apesar
do aspecto inusitado, Odon percebeu a ação militar de Geraldo com coerência. O abade
não esquecera de mencionar o desdém dos inimigos e a descrença dos aliados quanto ao
conde. Contudo, Geraldo alcançava a vitória. Odon enfatizou que a vontade de Geraldo
não era atacar o inimigo, mas frear a sua audácia. Tal idéia é ilustrativa de uma
violência “cristã” legítima que pode ser encontrada tanto em Hugo de Payns (HUGO
PECCATOR. Carta aos Cavaleiros de Cristo. Apud: LECLERQ, 1957: 87) quanto no
raciocínio de São Bernardo (DLNM, v. 367, t. 31: 58). Tal idéia trabalha com o
pressuposto de odiar e conter a maldade, atacá-la e destruí-la, e não os seus agentes
físicos: as pessoas. Nesse sentido, através de um combate contra o mal e a iniquidade
junto com a intenção de defender os indefesos a ação militar torna-se justificada em
diferentes matizes: segundo Santo Odon, Hugo Peccator e São Bernardo.
Para concluir a exposição da Vita Geraldi é importante destacar como Odon
contrapôs as práticas militares de Geraldo às práticas e intenções militares correntes:
Depois do exemplo dele [Geraldo], embora alguém tenha tomado pelas armas os
inimigos adversos, que pelo exemplo dele não busque a comodidade própria, mas a
comodidade da comunidade. O fato é que se vêem alguns que pelo amor do elogio
como do lucro, corajosamente se colocam à frente dos perigos e de bom grado
sustentam o mal do mundo através do mundo: do que ocorrem amarguras enquanto
perdem as alegrias que querem dele, como disse. Mas, por outro lado, é assunto
deles. Em verdade a obra de Geraldo é luminosa porque a simplicidade é a medida do
[seu] coração
109
. (VG: 71. trad. e grifo nossos).
ineptum; ni experimento probassent, quod Geraldus, quem pietas in ipso praeliandi articulo vincebat,
inuincibilis semper esset. Cum ergo viderent quod nouo praeliandi genere mixta pietate triumpharet,
irrisionem vertebant in admirationem. Etiam victoriae securi, feruabant alacres quod jubebat. Non enim
auditum est aliquando quod vel eum, vel milites eius, qui sub illius fidelitate pugnauerunt, euentus
victoriae fefelisset. Sed & hoc certum constat, quod nec ipse quemlibet vmquam vlnetaruerit, nec prorsus
ab aliquo vulneratus est. Christus namque erat, vt scritpu est, in latere eius, qui corid eius oculu
inspiciens, peruidebat quod pro eius amore tam beneficus erat, vt non hostes ipsos vellet appetere, se sola
in eis audacia dementare.
109
Porro autem, qui exemplo eius aduersus inimicos arma sumpserit, eius quoque exemplo non propriam
commoditatem, sed dommunem quaerat. Videas namque nonnullos qui pro amore laudis vt lucri, sese
periculis audenter obiiciunt, mala mundi pro mundo libenter sustinent: cuius dum amaritudines occurrunt,
eius gaudia, vt ita dixerim, quaerentes perdunt. Sed istorum alia res est. Opus vero Geraldi lucidum est,
quoniam de simplicitate cordis metitur.
160
Odon de Cluny enfatizara como certos militares arriscavam suas vidas por causa
do elogio e do lucro. O abade parecia considerar efêmero o prazer do alcance de tais
metas, pois dizia sucederem amarguras quando aqueles milites perdiam aquelas alegrias
o elogio e o lucro. Logo, Odon tentava desmerecer os motivos dos combates
tradicionais contrapondo a figura de Geraldo, cuja glória era certa, pois não buscava as
alegrias seculares, mas outros objetivos, considerados mais dignos por Odon a defesa
dos pobres e das igrejas através da simplicidade do coração. É notável como Odon
estabelece em lados opostos os interesses individuais e os interesses coletivos
vingança pessoal/defesa dos pobres, orgulho, lucro/simplicidade, interesses da
comunidade. Odon apresentou um ideal de convívio e ordem social balizados pelo
contraponto de virtudes e interesses díspares.
Como sugere a historiografia, o abade de Cluny vivia em um meio social bem
competitivo (Elias, 1994). Aparentemente, os nobres seculares ameaçavam as
propriedades, os bens e as pessoas sob a dependência eclesiástica. Santo Odon se ligava
intimamente aos movimentos de Paz do ano mil por fornecer, em sua hagiografia, uma
base para o discurso pacificador eclesiástico posterior (DUBY, 1989). O abade de Cluny
seria sensível às necessidades de contenção da violência da nobreza guerreira sendo a
Vida de São Geraldo um elemento evidenciador, não da violência social, mas da
percepção de Odon acerca dela e do papel da nobreza ou de um santo militar
específico que era pretendido exemplo e modelo no alcance de uma harmonia social.
Portanto, os problemas fundamentais que Odon propôs na Vita Geraldi eram: a
manutenção de uma ordem pública, a garantia da segurança associada à consciência
cristã do laicato e a garantia divina dos nobres cujos espíritos comungavam com a
serenidade e com o caráter pacífico de Geraldo.
05. A distância entre Santo Odon e São Bernardo
São Geraldo, portanto, se inquietava com sua condição secular. Odon apresentou
para o leitor o desconforto de Geraldo e a oposição entre práticas monásticas e militares
como algo constituinte da personalidade do Santo. Este desconforto, essa espécie de
pressão do claustro ou de uma moral beneditina cluniacense era um dos apoios para
Odon refletir sobre a vida de sua personagem. Percebemos que tal inquietação não
existiu, ou pelo menos não de uma forma muito evidente, no De Laude Novae Militiae.
Além disso, como o próprio Barthélemy (2007) observou, a guerra bernardina seria
161
mais implacável, uma vez que os milites cruzados não retiravam as pontas de suas
lanças nem se precaviam para que suas espadas não ferissem os inimigos. Tal clivagem
sugeriu que as preocupações de Odon diziam respeito exclusivamente à orientação da
nobreza secular em suas interações no seio da cristandade. São Bernardo preocupara-se
com tais interações, reservando àquela mesma nobreza um espaço onde pudesse exercer
uma violência útil à cristandade e sem restrições: as Cruzadas.
Se São Geraldo se inquietava quanto à contraposição entre seus gostos
monásticos e seus deveres senhoriais, este desconforto assinalou uma posição secular
que se colocava, em uma escala salvacional, abaixo da via monástica. Mesmo que a
personagem de Santo Odon conseguisse adequar suas práticas a uma espiritualidade
monástica, a resistência inicial acentuava uma distância implícita, porém considerável,
entre aquelas duas. Por outro lado, o Novum Militiae Genus não se encontrou diante de
uma inquietação ou restrição tal como São Geraldo. As práticas militares se adequariam
perfeitamente às práticas e aos costumes monásticos pregados por São Bernardo,
compondo uma união inusitada, porém perfeita e ideal.
Essa união ideal, sem inquietação e nem explicitamente pendente para um dos
lados, decorreu, sobretudo, do contato entre São Bernardo e os milites após 1125 e quiçá
um pouco antes. Todavia, aquela união se mostrou viável para São Bernardo, na
medida em que uma dada compreensão da militia, ou de parte desta, serviu de referência
para o próprio Santo pensar seu monasticismo. Dessa forma, uma aproximação assaz
estreita entre os dois tipos ideais de milites proporcionara uma aceitação quanto às
práticas militares de certos cavaleiros e sua tradução de acordo com a representação do
Novus Miles. Demonstramos que a imagem militar que São Bernardo mobilizou para
apresentar o monasticismo a seu sobrinho Roberto
110
, conjugada com uma compreensão
monástica da iniciativa de Hugo de Champagne e de Hugo de Payns, contribuíu para
aprofundar as feições dos Templários no final da década de vinte do século XII.
Ou seja, a militia, compreendida como grande esforço físico, perigoso e
arriscado, se tornava digna para servir de tradução para as práticas bernardinas. A
militia também era pensada enquanto um serviço inferior ao ofício religioso e no
contexto das Cruzadas serviria como penitência para nobreza secular. Esta perspectiva
ofereceu a São Bernardo coordenadas fundamentais para a elaboração de sua
110
Ver páginas 94 e 116.
162
representação. A valorização do trabalho manual enquanto um caminho para a salvação,
ou seja, do envolvimento dos monges de Claraval nos ofícios cotidianos do monastério
foi um impulso importante para Bernardo pensar as informações que chegavam do
Oriente. O monasticismo de São Bernardo e também a espiritualidade bernardina se
mostravam diferentes do monasticismo e da espiritualidade de Santo Odon.
Evidenciando, assim, a distância entre as representações militares de Santo Odon
de Cluny e São Bernardo de Claraval, propomos que o De Laude Novae Militiae é
também uma perspectiva do abade de Claraval quanto a seu próprio monasticismo.
Bernardo pensara e reafirmara os elementos primordiais de seu monasticismo: a
importância do rude trabalho manual seja militar ou cotidiano, a pretensa observância
rigorosa da Regra de o Bento, a humildade e o convívio harmonioso e ascético no
cenobitismo. São Bernardo utilizara os elementos de seu monasticismo para interpretar
e compreender as práticas militares de um grupo específico de milites. Estes milites
eram diferentes dos irmãos do Santo e diferentes dos milites que, indo para os torneios,
o visitavam em Claraval.
Identificar uma raiz beneditina no Novum Militiae Genus mostrou-se então
insuficiente à medida que Santo Odon e São Bernardo, teoricamente oriundos da mesma
raiz monástica, construíram representações distintas da militia. Esta distinção
evidenciou-se principalmente na inquietação de São Geraldo quanto à vontade de
exercitar o ócio da oração e à necessidade de seus deveres seculares, diferentemente da
compatibilidade entre práticas distintas no Novum Militiae Genus. Além disso, São
Geraldo se recusava a derramar sangue, prática permitida aos Novi Milites, desde que
fosse o sangue dos inimigos de Cristo.
Relacionar de maneira estreita o Novo Gênero de Cavalaria com o
monasticismo cisterciense revelou-se igualmente insuficiente na proporção em que
Roberto de Molesme e outros cistercienses não elaboraram uma representação
semelhante ou chegaram a conclusões diferentes das de São Bernardo. Devemos
observar que nem todos os religiosos contemporâneos do abade de Claraval foram
simpáticos à representação do Novum Militiae Genus, qualificando-a, às vezes, de
monstruosidade (DEMURGER, 2005: 67-70).
Nesse sentido, São Bernardo utilizara a militia para traduzir o monasticismo e o
monasticismo para interpretar a militia em uma discussão cujo um dos resultados seria o
163
impulso para as Ordens Militares. O monasticismo cisterciense de São Bernardo, cujas
características fundamentais foram discutidas e consolidadas nas suas relações com os
cistercienses, com o monge Roberto, com os cluniacenses e com os Templários
relaciona-se intimamente com o Novum Militiae Genus. A perspectiva bernardina,
móvel, particular e não unívoca da cultura monástica formaram um conjunto de
referentes essenciais e norteadores. Estes referentes compuseram a perspectiva
bernardina quanto às práticas militares de Hugo de Payns e seus confrades e quanto às
possibilidades daquelas mesmas práticas junto à militia como um todo.
164
CAPÍTULO V
165
O NOVUM MILITIAE GENUS E SUA INSERÇÃO NAS RELAÇÕES ENTRE OS
PODERES SECULAR E ECLESIÁSTICO
01. As possibilidades para o poder militar
São Bernardo, Hugo de Champagne e Hugo de Payns conceberam que a
cavalaria ligava-se a um serviço humilde, ou pelo menos, mais humilde do que a
atividade condal ou episcopal. Tivemos a oportunidade de perceber isso em suas
correspondências. Tal concepção foi um dos pontos que tornou possível a associação
entre práticas militares e práticas monásticas descrita no De Laude Novae Militiae.
Devemos ressaltar, no entanto, que serviço humilde não significava falta de nobreza,
insignificância ou falta de importância nas relações de poder. O Novum Miles, herdeiro
do antigo dever de defender os pobres, as viúvas e os órfãos, teria sua capacidade de
atuação social e política acrescida nessa congregação militar e religiosa. Congregação
desenvolvida com a ajuda de São Bernardo e, pela atuação deste, colocada sob a
proteção da Santa Sé.
Falamos que as Ordens militares acrescentaram à mobilização política dos
milites, pois estes não eram indiferentes a ela, muito menos comporiam um bando de
inertes, incapazes ou simples desordeiros. Os acordos realizados com Cluny, aos quais
fizemos menção, demonstram o poder local dos milites, o efetivo aproximado dos
recursos de alguns deles e a possibilidade de realizarem, por eles mesmos, acordos e
convenções com objetivos variados. Nesse ponto, devemos mencionar a existência de
uma carta na qual se registra que um grupo de cerca de trinta milites se reuniu para
realizar uma doação ao monastério de Cluny no ano de 1093 (WILFREDO,
ARDERICO E OUTROS MILITES. Carta de doação da Igreja de São Cassiano a
abadia de Cluny. In: BERNARD & BRUEL, v. 05, 1876-1903: 20-23).
Indício do que chamamos de uma devoção ou de um cristianismo militar, as
cartas de doação, sobretudo as de Wilfredo, Acardo e Hugo Miles
seriam reveladoras da organização de um grupo social
111
. O objetivo desse grupo, com a
suas doações, poderia ser dirimir uma disputa entre eles mesmos, afirmar sua união e
sua piedade ou simplesmente buscar o apoio de uma influente instituição eclesiástica:
Cluny. Da mesma forma, Hugo de Payns demonstrou as possibilidades e os interesses
da cavalaria nas suas relações com São Bernardo.
111
Ver páginas 53 e 77.
166
Por outro lado, se os integrantes da militia, desde os duques e condes do
Imperador Henrique IV, até os beneméritos de Cluny e os cavaleiros Templários,
tomavam decisões e demonstravam seus interesses, o clero também movia ações em
resposta àquelas. Além disso, o clero provocava a resposta da militia. O De Laude
Novae Militia não foi alheio a essas relações, a esse “jogo de xadrez” tal como Elias
(1994, 02 vols.) definiu. Se os milites doavam aos monastérios, procuravam estabelecer
contatos e diálogos com o clero e demonstravam sua piedade cristã, enquanto
concorrentes dos poderes estabelecidos, não deixavam de incomodar. Duby (1982) e
Bloch (1982) constataram esse incômodo.
Como observou Demurger (2002: 19-20), a ação e a reação eclesiástica aos
possíveis incômodos militares pautavam-se, senão pela confrontação direta, por sansões
eclesiásticas. Os movimentos da Paz e da Trégua de Deus pregados pelos concílios e
sínodos em toda parte do Ocidente no século XI são exemplos disso. O clero pretendia
restringir a violência e o alcance da ação militar através de juramentos ou da restrição
da violência e dos atos belicosos de acordo com o calendário. A Paz de Deus da cidade
de Bamberge, datada de 1085, pode ser elucidativa das preocupações eclesiásticas
quanto à belicosidade e à violência militar no interior da sociedade:
01. Como em nossos tempos a Santa Igreja fosse abatida por tribulações além da
medida, ao sofrer devido a tantos perigos e pressões sobrevirem sobre ela, pelo Deus
propício, quanto não pudemos continuar devido às exigências de nossos pecados, nos
ocupamos para que consolidássemos a paz, ao menos a certo ponto para os dias
marcados.
02. No ano da Encarnação do Senhor de MLXXXV, (...), por meio de Deus, tanto pelo
desejo clerical quanto popular, sendo igualmente unânimes, foi estabelecido que: a
partir do primeiro dia do advento do Senhor, ao exato dia da Epifania e a partir do
septuagésimo entrante, até as oitavas de Pentecostes e por todo aquele e em toda quinta,
sexta-feira, sábado, domingo, até o nascer do sol de segunda feira, somados quatro
dias, quanto em toda vigília dos tempos dos apóstolos como no dia seguinte, sobre todo
dia canônico para jejuar ou descansar, instituído ou por instituir; seja mantido este
decreto de paz. De modo que seja muito segura a entrega da tranquilidade dos
caminhantes e dos habitantes das casas, que ninguém faça massacres, incêndios,
pilhagens e assaltos; que ninguém fira com acha ou espada ou então com qualquer
outro gênero de armas. Que ninguém, tanto quanto se quiser manchado pela culpa,
presuma levantar arma, seta ou espada, ou lança, ou absolutamente carga de qualquer
conjunto de armas a partir do advento do Senhor até nas oitavas da Epifania e a partir
do septuagésimo até as oitavas de Pentecostes.
03. Igualmente, nos dias restantes, isto é, no domingo, na quinta, sexta-feira e sábado e
em toda vigília dos apóstolos, como no dia sequente e em todo dia canônico para jejuar
ou para se descansar, instituído ou por instituir, não é permitido, senão longe de
prudências, que causem dano com arma de ferro, como de nenhum outro modo.
12. Foi instituída a entrega da segurança desta paz do Senhor, sobretudo em razão de
todos os maculados. Mas, que eles o ousem, completada a paz, saquear e pilhar por
vilas e casa, pois para aqueles [crimes], antes que esta paz fosse instituída, foi dita lei e
167
sentença. Pois, será tido muito legítimo que predadores e ladrões sejam proibidos da
iniquidade e excluídos inteiramente por esta divina paz e por todos.
16. Mercadores que comerciarem nos caminhos, camponeses enquanto trabalharem os
campos, no arar, escavar, cultivar e que de qualquer modo trabalhem, tenham paz em
todo dia. Por outro lado, mulheres, e todos os titulares sagrados pelas Ordens
[clérigos], usufruam paz perpétua.
112
(SÍNODO DE BAMBERGE. Artigos 01, 02, 03,
12 e 16 do Edito de Paz da Diocese de Bamberge. In: SHWALM & WEILAND, v. 01,
1893: 605-608, trad. nossa.).
Se Santo Odon, através da figura de São Geraldo chamava os milites a
exercerem a defesa da comunidade e dos interesses coletivos, os concílios e sínodos de
paz lembravam a toda sociedade a necessidade de serem respeitados os dias de paz ou
pelo menos de se estabelecerem garantias para a segurança dos clérigos desarmados, das
mulheres, dos mercadores e dos camponeses. Aqueles concílios e os sínodos nos
mostram a complexidade das relações entre o clero e a militia através das fragilidades e
dos riscos sociais encarnados nas ameaças de incêndios, saques, pilhagens etc. A
própria Reforma Gregoriana no século XI intentou não somente moralizar o clero e
libertá-lo da ingerência dos poderes laicos, mas também estabelecer um caminho certo
para os leigos, incluindo os milites, trilharem rumo a salvação (BARTHÉLEMY, 2007:
232-236). Da mesma forma, as Cruzadas propunham por seu discurso a restauração da
paz no interior da cristandade, canalizando o ímpeto militar para o exterior
113
.
112
01. Cum nostris temporibus ultra modum tribulationibus sanctae ecclesia affligeretur, compatiendo tot
pressuris totque periculis subvenire illi Deo propitiante tractavimus, ut pacem, quam peccatis nostris
exigentibus continuares non potuimos, intermissis saltem diebus aliquatenus confirmaremus.
02. Anno dominice incarnationis MLXXXV,(...), Deo mediante tam clero quam populo pari
consentientibus voto constitutum est, ut a primo die adventus Domini usque ad exaetum diem epiphaniae
et ab intrante LXX. usque in octavas pentecostes et per totam illam diem omnique feria V, VI, sabbato,
dominica die usque ad ortum solis secundae feriae, addita feria IIII, quatuor temporum omnique
apostolorum vigilia cum die sequenti, insuper omni die canonice ad ieiunandum vel feriandum statuta vel
statuenda hoc pacis decretum teneatur: quatenus iterantium domique manentium securitatis sit tantissima
traditio, ut cedes et incendia, predas et assultus nemo faciat, nemo fuste aut gladio aut aliquo armorum
genere quemquaqm ledat, et nemo quamvis culpa faidosus ab adventu Domini usque in octavas epiphanie
et a LXX. usque in octava pentecostes tollere arma presumat, seutum vel gladium vel lanceam vel
cuiuscunque prorsus armaturae sarcinam.
03. Similiter in reliquis diebus, id est dominicis, V. et VI. feria, sabbato omnique vigilia apostolorum cum
die subsequenti et omni die ad ieiunandum sive feriandum canonice statuta vel statuenda non licet arma
ferre nisi longe cuntibus, ea tamen contidione, ut nulli quolibet modo lesionem inferant.
12. Securitatis gratia omnibus precipue faidosis huius dominice pacis statuta est tradicio, sed non ut post
expletam pacem rapere et predari per villas et per domos audeant, quia que in illos, antquam ista pax
statueretur, lex et sententia dictata est, diligentissime tenebitur, ut ab iniquitate proibeantur, quia
predatores et grassatores ab hac divina pace et ab omni prorsus excipiuntur.
16. Mercatores in itinere quo negotiantur, rustici dum rusticali operi arando, fodiendo, metendo et aliis
huiusmodi operam dant, omni die pacem habeant. Mulieres autem et omnes sacris ordinibus adtitulati
perpetua pace fruantur.
113
Ver páginas 52-54.
168
Mais do que garantir a segurança social ou a integridade da coletividade, ou
constituir uma identidade para a militia, o problema que Santo Odon, Gregório VII,
Urbano II e São Bernardo estabeleceram foi o papel dos milites nas relações entre os
poderes secular e eclesiástico. Identificamos, no discurso eclesiástico, dois lados
distintos da militia. Se, em algumas ocasiões, os milites prestavam auxílios e
estabeleciam contatos não belicosos com o clero e com eles mesmos, por outro se
mostravam como competidores acirrados, exercendo seus poderes e colidindo com os
interesses eclesiásticos. Essa colisão provocava o discurso do clero que intentava
desqualificar os milites que esbarravam em seus interesses. Além disso, o discurso
eclesiástico pretendia aliviar a tensão com a militia e estabelecer uma relação que
tentasse adequá-la aos seus planos e intenções para a sociedade de seu tempo. Assim,
em maior ou menor grau, o discurso eclesiástico, quanto à cavalaria, tomou a forma de
uma instrumentalização em benefício dos poderes estabelecidos.
Nossa percepção desse discurso de instrumentalização não excluiu ou ignorou a
interação e as discussões entre os milites e os poderes estabelecidos. Contudo, na
consideração dos interesses de São Bernardo para o Novum Militiae Genus, não
podemos deixar de realizar algumas considerações a respeito da cristianização da
cavalaria pelo viés das relações entre os poderes secular e eclesiástico e a posição que o
abade de Claraval assumiu no interior dessas relações.
169
MAPA 04: Localização da cidade de Bamberge. Reproduzido de: MATTHEW, 1996:
94.
170
02. A afirmação da Teocracia
O Papa Gelásio, em 494, apresentou ao Imperador Anastácio uma idéia que
organizava ou pretendia organizar as relações de poder na sociedade. Deixando
implícita uma alegoria comum para os poderes secular e eclesiástico, a alegoria da
“espada”, o Papa manifestou que no mundo havia dois poderes “duas espadas”
114
: a
“espada secular”, dos soberanos leigos e a “espada espiritual”, dos sacerdotes:
Suplico à Vossa Piedade que o considere arrogância a obediência aos princípios
divinos. Que esteja longe, vos suplico, de um imperador romano considerar injúria a
verdade comunicada à sua consciência, pois existem dois organismos, augusto
imperador, pelos quais este mundo é soberanamente governado: a autoridade sagrada
dos pontífices e o poder real, e desses dois poderes é mais importante o dos sacerdotes,
pois têm de prestar contas, também, diante do divino juiz dos governantes dos homens.
(GELÁSIO I. Carta ao Imperador Anastásio. Apud: PACAUT, 1989: 20).
Quem deveria estar à frente da cristandade? Qual “espada” era mais importante,
a do século ou a da religião? Quem deve “soberanamente reger este mundo”? As
imagens construídas acerca das componentes daquela “Casa de Deus”, de suas relações
e suas funções evidenciam certos problemas e certas nuances nas respostas dadas a estas
três perguntas. Esta passagem estabelecia uma comparação que subordinava o poder
secular ao poder espiritual. O Papa se dizia investido de um poder superior, pois teria de
prestar contas a Deus pelas almas dos homens.
Como observou Senellart (2006: 41), “até o século XII, segundo a concepção
ministerial do poder secular o rei, ministro da Igreja o regimen precede o regnum”.
A definição de regimen liga-se, naquele período, ao regimen animarum, ou seja, ao
governo, direção, orientação e condução das almas dos cristãos. o regnum, enquanto
regime monárquico, dignidade real e reino, se constituía como instrumento do regimen.
A Igreja, encarregava-se do cuidado das almas e o Estado (potestas imperial ou real),
responsabilizava-se pelo controle dos corpos e pela disciplina.
Cinco séculos após Gelásio I, o Papa Gregório VII não lembrou ao Imperador
quais poderes deviam governar soberanamente o mundo e não discorreu acerca das
responsabilidades de cada um. Frente ao costume dos Imperadores germânicos de
interferir nos assuntos eclesiásticos, tanto na nomeação dos bispos quanto na eleição do
114
Essa alegoria, presente também em alguns escritos de São Bernardo, representava os poderes secular e
eclesiástico como detentores, cada um, de uma espada. Em uma organização harmônica e ideal do mundo,
o poder secular, ao empregar a força das armas e dos exércitos contra os inimigos da cristandade, teria
como instrumento a espada secular. Já o clero, utilizando contra seus inimigos, sanções religiosas e
divinas, seria detentor da espada espiritual.
171
próprio Papa, de forma categórica, aquele Papa assim se pronunciou em 1075 no seu
Dictatus Papae:
II – Só o pontífice romano é dito, a justo título, universal.
III – Só ele pode depor ou absolver os bispos.
V – O papa pode depor os ausentes.
VII ele pode, segundo a oportunidade, estabelecer novas leis, reunir novos povos,
transformar um colégio em abadia, dividir um episcopado rico e unir episcopados
pobres.
VIII – Só ele pode usar as insígnias imperiais.
IX – O Papa é o único homem cujo todos os príncipes beijam os pés.
XII – Lhe é permitido depor os Imperadores.
XIII – Lhe é permitido transferir os bispos de uma sé a outra, segundo a necessidade.
XIX – Ele não deve ser julgado por ninguém.
XXI – As causa maiores de todas as igrejas devem ser levadas diante ele.
XXII A Igreja romana jamais errou e segundo o testemunho da Escritura jamais
errará.
XXVII O Papa pode desligar os sujeitos do juramento de fidelidade feito aos injustos.
(GREGÓRIO VII. Dictatus Papae. Apud: PACAUT, 1989: 66-67).
Gregório VII afirmava categoricamente o poder pontifício alicerçado, sobretudo
naquela passagem evangélica na qual o Cristo atribui a Pedro, considerado primeiro
Papa, o poder de ligar e desligar (Mt. 16, 17-19)
115
. Mais do que assegurar a
exclusividade de seu poder sobre o clero e afastar a intervenção laica nos assuntos
religiosos, principalmente na investidura dos bispos, aquele Papa, que fora monge da
Ordem Monástica de Cluny, atribuía a si uma imagem imperial, ativo tanto nos assuntos
espirituais quanto temporais. Gregório VII no seu atrito com o Imperador Henrique IV
afirmara sua convicção da superioridade do poder papal sobre qualquer outro poder na
face da terra (BARRACLOUCH, 1970: 78-93). Essa observação ganha plausibilidade
na proporção em que consideramos a passagem da segunda sentença emitida por
Gregório VII contra o Imperador Henrique IV em 1080:
É porque, confiando no julgamento e na misericórdia de Deus e de Maria, sua muito
santa Mãe, sempre virgem, eu excomungo e ligo nos laços do anátema a Henrique, que
se chama rei, e todas suas faltas: da parte de Deus todo poderoso e da vossa, eu lhe
interdito dirigir o reino dos Germanos e da Itália e lhe corto todo poder e dignidade
real; eu proíbo qualquer cristão de lhe obedecer como ao seu rei e desligo os
juramentos passados e futuros daqueles que lhe prestaram ou lhe prestarão como a um
soberano. Que este Henrique, com suas faltas, não tenha alguma força nos combates,
que ele não alcance alguma vitória em sua vida! (PAPA GREGÓRIO VII. Carta ao
Imperador Henrique IV. Apud: PACAUT, 1989: 68).
115
Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do
inferno não prevalecerão contra ela; eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares na terra
será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.
172
No campo da prática política do Papa, este evento celebrara a capacidade papal
de intervir nos assuntos que não faziam parte da esfera exclusivamente espiritual ou de
cunho estritamente eclesiástico. A imagem do Pontífice, tomando de empréstimo
atribuições e funções dos poderes seculares e tornada mais vigorosa na segunda metade
do século XI, apontava para uma característica marcante no jogo político daquele
período: a troca de atribuições de poder e a relação entre o secular e o sagrado. Como
veremos adiante, tão importante quanto às discussões sobre a soberania na cristandade,
a discussão dessa dualidade foi um ponto importante para examinar a imagem do miles
apropriada por São Bernardo.
03. A persona mixta do soberano e o rei taumaturgo
Consideramos as dificuldades encontradas pelo papado na construção de sua
hegemonia sobre os assuntos eclesiásticos. Não é de surpreender os obstáculos postos à
pretensão de tomar em suas mãos tanto o gládio espiritual quanto o temporal. A
historiografia salientou os problemas do papado em exercer o controle sobre as
investiduras dos bispos ou mesmo a proteção de sua própria eleição contra os humores e
vicissitudes da nobreza laica. O controle imperial sobre a eleição episcopal e papal,
além da iniciativa de moralização do clero partindo do Imperador, principalmente dos
antecessores de Henrique IV (PACAUT, 1989: 55-61), deixavam evidente a situação
incômoda do Papado no século XI. A justificativa da intervenção temporal assentava-se
sobre uma convicção do poder Imperial enquanto protetor e promotor maior do
cristianismo, um pouco em detrimento do Papa.
Além dessa convicção do poder Imperial, salientamos que a Igreja, ao enfatizar
o dever régio de corrigir os homens e a si próprio enquanto atividade exercida com
humildade, piedade e misericórdia, realizara um deslocamento das regras de governo.
Não se tratava mais do rei simplesmente assegurar funções de disciplina e controle dos
cristãos, mas, através da humildade exercida pelo justo e correto exercício seria capaz
de alcançar uma alta virtude (SENELLART. 2006: 97). Ao intentar humilhar” ou
subordinar o poder régio, a Igreja proporcionou a abertura de um caminho para a
ascensão daquele poder em termos sagrados. Além dessa promoção do poder gio, a
unção conferida pela Igreja e que o tornava legítimo, proporcionou aos reis e
imperadores um contato mais estreito com o sagrado.
173
Em linhas gerais, podemos identificar dois aspectos das relações entre os
poderes secular e eclesiástico que conduziram a uma sacralização do primeiro: o caráter
humilde e subordinado, além de sua sacralidade proporcionada pela unção eclesiástica.
A partir disso, o governo secular, que consistia para reis e imperadores em corrigir,
julgar e proteger, vai implicar, para certos “monarquistas”, a tarefa de conduzir e dirigir
o povo em igualdade com os eclesiásticos (SENNELLART, 2006: 106). Um ano após a
segunda sentença contra o Imperador Henrique IV, em 1081, o jurista Pedro Crasso
iniciou uma obra em defesa do Imperador e assim se referiu aos atos de Gregório VII e
a pessoa de Henrique IV:
Na ofensa infligida ao rei Henrique, a insolência do Papa golpeou o autor da paz, os
pregadores da paz, os protetores da paz (...). Defender uma tal culpa pela causa de
Deus, não é outra coisa, a meu senso, senão que ofender a Deus para amor de Deus
(...) Após ter reunido sobre a Romana a licenciosidade e a concupiscência (...), ele
tem mais menosprezado os decretos dos santos Padres, tido por nulas as leis e criado
novas [leis] contrárias em tudo ao direito divino. (PEDRO CRASSO. Em defesa do rei
Henrique. Apud: PACAUT, 1989: 80).
As palavras de Pedro Crasso levaram a mais uma indagação relevante: assim
como o Papa, o Imperador era uma figura sagrada? Por volta do ano de 1100, um
clérigo desconhecido que Kantarowickz chamou de o “Anônimo Normando”, escreveu
alguns tratados que deixavam entrever a opinião do autor quanto às relações dos
poderes estabelecidos e a imagem que ele elaborara sobre o poder secular. A opinião do
Anônimo, revestida de um caráter antigregoriano e fortemente monarquista,
mantinham-se em sintonia com os problemas das investiduras eclesiásticas e das
querelas entre o Imperador Henrique IV e o Papa Gregório VII (KANTAROWICZ,
1998: 48).
Para efeito desta análise, o que importa reter do Anônimo e do estudo de
Kantarowicz é a idéia através da qual a imagem do soberano, representada e traduzida
na esfera político-religiosa enquanto a mescla de duas naturezas uma divina e outra
humana, uma sagrada e outra terrena tornava-se similar a Cristo, que é uma pessoa,
mas apresenta duas naturezas:
Assim, temos de reconhecer (no rei) uma pessoa gêmea, descendendo uma, da natureza,
e a outra, da graça... Por intermédio de uma, pela condição natural, conformou-se com
os outros homens; por meio da outra, pela eminência de (sua) deificação e pelo
sacramento (da consagração), excedeu a todos os outros. Em relação a uma
personalidade, ele era, por natureza, um homem individual; em relação à sua outra
174
personalidade, era, pela graça, um Cristo, isto é, um Deus-homem. (ANONONIMO
NORMANDO. Tratados. Apud: KANTAROWICZ, 1998: 50).
Em outra passagem, o Anônimo Normando enfatizou:
O poder do rei é o poder de Deus. Esse poder, especificamente, é de Deus, por natureza,
e do rei, pela graça. Donde, o rei, também, é Deus e Cristo, mas pela graça; e o que
quer que ele faça, ele o faz não simplesmente como homem, mas como alguém que se
tornou Deus e Cristo pela graça (AÔNIMO NORMANDO. Tratados. Apud:
KANTAROWICZ, 1998: 52).
Então, o poder do soberano, imaginado pelo Anônimo Normando, era
constituído ou interpretado sobre a dualidade da própria natureza de Cristo, ou seja, o
homem se tornava divino ou sagrado por sua unção e por sua sagração. Mas, diferente
de Cristo, o rei ou o imperador não eram divinos desde o início, eles alcançavam a
divindade posteriormente pelo rito em que eram elevados como soberanos legítimos.
“Pessoa Gêmea”, a definição da pessoa e das naturezas de Cristo, associada com o rito
da unção, fornecia subsídios para o entendimento das naturezas imperial e real.
Pouco mais de 120 anos antes do Anônimo, o poder soberano era apresentado
enquanto algo partilhado com a divindade. Uma representação pictórica do Imperador
Oto II (fig. 03) o apresentava sentado em seu trono, com o escabelo de seus pés
sustentado por uma figura antropomórfica que simbolizava a terra. Em baixo, são
percebidas quatro figuras, que representavam altas personagens clericais direita) e
leigas esquerda). Oto II tem tanto à sua direita, quanto à sua esquerda, outras duas
figuras importantes, aparentemente reis ou príncipes. É verossímil supor que o artista
pretendesse que o poder Imperial fosse o maior, tanto na esfera secular quanto na esfera
eclesiástica.
175
FIGURA 03. Oto II em majestade (Evangelhos de Aachen, c. 975). (Extraído de:
KANTAROWICZ, 1998).
176
Outro ponto relevante da imagem é o véu que passa no peito de Oto II e é
sustentado pelas figuras que representam os quatro evangelistas. Esse véu pode ser
entendido como o firmamento, que separa o céu da terra. Em outras palavras, fazendo
uma alusão àquilo que Kantarowickz se refere enquanto cristomimetes semelhança
com a natureza de Cristo o véu pode ser compreendido enquanto o símbolo que
afirmava a dualidade do poder secular: com os pés na terra, mas ligado e ascendente aos
céus (KANTAROWICZ, 1998: 61-63). Além disso, a mão de Cristo desce a cabeça de
Oto II, seja como um sinal para abençoá-lo ou para diretamente colocar-lhe a coroa na
cabeça. O Imperador, naquela figura, mantinha uma relação direta com o próprio Deus.
Não nos esqueçamos também do poder curativo dos reis franceses, que, a crer
em Bloch (1998), a partir da segunda metade do século XI, livravam seus súditos do
mal das escrófulas. Este poder ficou bem evidente em um relato do abade Guibert de
Nogent-Sous-Coucy, que nos mostrara uma representação santificada do poder real de
Luis VI cujo reinado vai de 1108 a 1137 a qual parece assegurar, ou contribuir para
justificar a dinastia no reinado:
Que digo eu?! Não temos visto nosso senhor, o rei Luis [Luis VI], usar um prodígio
costumário? Com meus próprios olhos, vi doentes que sofriam de escrófulas no pescoço
ou em outras partes do corpo ocorrer em profusão, a fim de ser tocados pelo rei
toque a que ele ajuntava um sinal da cruz. Eu estava lá, bem perto dele, e a o
defendia contra a importunação. O rei, entretanto, mostrava para com eles uma
generosidade inata; afastando-os de sua mão serena, fazia humildemente o sinal da
cruz sobre eles. Seu pai, Filipe, também exercera, com ardor esse mesmo poder
miraculoso e glorioso. Não sei que erros cometidos por ele fizeram que o perdesse.
(GUIBERT DE NOGENT-SOUS-COUCY. Relato dos poderes do rei Luis VI. Apud:
BLOCH, 1998: 53).
Nesse sentido, encontramos, no período que Kantarowicz destacou como
cristocêntrico, o entendimento, pelo menos em determinados círculos ligados
diretamente ao Imperador, do poder secular enquanto algo divino, sagrado. Além
daquela cristomimetes do poder imperial, o poder real ganhava colorações santas,
postando-se enquanto agente de curas miraculosas. Se o Papado afirmava sua esfera de
influência, não dentro do clero, mas nos assuntos seculares também, o poder secular
absorvia um caráter sagrado e não só legitimava sua existência enquanto agente a
serviço direto de Deus, como concorria com as pretensões pontifícias. Senellart (2006)
chama nossa atenção para o fato de que a apropriação, por parte da realeza, de um
177
discursso sagrado eclesiástico proporcionou um dos fundamentos para as monarquias
nacionais a partir do século XIII.
04. São Bernardo nas relações entre os poderes secular e eclesiástico na primeira
metade do século XII
Identificamos, nos séculos XI e XII, pelo menos duas matrizes de pensamento
político/religioso: a Teocracia e “Os Dois Corpos do Rei”. Cada uma, a seu modo,
logrou êxitos ou sucessos no esquema do jogo político, mas também, tanto uma quanto
outra, gerou acalorados debates, páginas e páginas de tratados legitimadores e
polêmicas acirradas. Por se tratar de matrizes que buscam fundamentos e referentes, em
grande parte, na tradição religiosa do cristianismo, será mais apropriado mencioná-las
enquanto “doutrinas políticas” (CÂNDIDO DA SILVA, 2003: 244), sem, é claro,
reduzir seu alcance ou seu interesse por causa de algum preconceito gerado pela palavra
“doutrina”.
Evidenciar essas matrizes de pensamento e realizar considerações acerca da
relação entre elas, sobretudo na exposição do regimen e do regnum, foi um trabalho
relevante não apenas para caracterizá-las, mas também para examinar a apropriação que
delas fizeram os sujeitos históricos. Voltaremos nosso olhar agora para a matriz
Teocrática, examinando, especificamente, a apropriação que São Bernardo de Claraval
fez de suas componentes, em particular da representação das relações entre os poderes
secular e eclesiástico, dos próprios poderes e, mais adiante, dos milites. Como destacou
Pacaut (1989: 85), o pensamento político de São Bernardo estava exposto em fórmulas
um pouco rápidas e dispersas no conjunto de sua obra.
São Bernardo foi uma personagem bem ativa nos problemas enfrentados pelo
clero, sobretudo pelo Papado, na primeira metade do século XII. Entre os anos de 1130
e 1138 a Romana era balançada por um novo problema: um cisma. De um lado,
Inocêncio II, o Papa considerado legítimo por São Bernardo e apoiado pelo Imperador
germânico Lotário, de outro, Anacleto, Papa cismático, sustentado por poderosos nobres
da Península Itálica.
A intervenção de São Bernardo nos assuntos gerados pelo cisma foi algo bem
reconhecido. Além de interferir junto aos nobres influentes da Península Itálica, o abade
de Claraval desempenhou um papel capital diante do povo da cidade de Milão em prol
de Inocêncio II. Este Papa, após afastar e destituir o arcebispo milanês, temendo uma
178
sublevação popular naquela cidade, enviou emissários a ela, dentre os quais figurava
São Bernardo. Segundo Pacaut, baseado nos hagiógrafos do Santo, sua “reputação de
santidade o precedeu na cidade” (PACAUT, 1993: 104). Aparentemente, Bernardo foi
recebido com entusiasmo e logrou êxito na missão confiada por Inocêncio II. Um
registro dessa passagem de Bernardo por Milão é uma carta escrita pelo Santo a seus
cidadãos, provavelmente em 1136, na qual ele se posicionava quanto ao Papado e sua
autoridade frente ao clero:
A plenitude do poder sobre as igrejas do universo foi dada à apostólica por uma
prerrogativa especial. Por consequência, quem resiste a este poder, resiste à ordem
querida por Deus [Rom. 13,12]. Ela pode, se julgar útil, estabelecer novos bispados
onde o existam ainda. Ela pode, entre aqueles [bispados] existentes, rebaixar uns e
elevar outros, se a razão lhe dita, e é permitido a ela transformar os bispos em
arcebispos (e o inverso também) se isto é necessário. Ela pode evocar e chamar junto à
sua presença qualquer qual pessoa eclesiástica, não uma ou duas vezes, mas sempre
que parecer conveniente
116
. (BERNARDO DE CLARAVAL. Carta aos cidadãos
milaneses. In: ARAGUREN & BALANO, v. 07, 1983: 492, trad. nossa).
Assim como Gregório VII, São Bernardo afirmara e reafirmara a autoridade e o
poder do Papa, pelo menos daquele que era considerado “canonicamente entrante”, ou
seja, legítimo. A figura papal tinha seu poder recebido direto de Deus e a extensão desse
poder é algo legítimo, contra o qual ninguém pode se insurgir, sob pena de se insurgir
contra o próprio Deus. Será que a consciência do poder papal de Inocêncio II estava
seriamente ameaçada? Será que a autoridade de alguns bispos representava formas de
resistência “à plenitude do poder da Sé Apostólica”? Considerando as palavras do Santo,
podemos inferir que a imagem de Inocêncio II, frente ao clero e ao povo milanês,
apresentava certa fragilidade. Com muitas dificuldades São Bernardo conseguiu
assegurar o apoio de Milão à causa de seu Papa (PACAUT, 1993: 104).
Devemos destacar que, na passagem citada, a plenitude do poder do Papa, ao
contrário dos Dictatus Papae e das sentenças contra Henrique IV, não ultrapassava a
hierarquia eclesiástica. Segundo São Bernardo, aquela plenitude não se aplicaria, pelo
menos em um primeiro momento, ao rei, ao Imperador ou a qualquer alta figura da
nobreza leiga. Claro, a preocupação de São Bernardo naquela carta era exclusiva com o
116
Plenitudo siquidem potestatis super universas orbis ecclesias, singulari praerogativa Apostolicae Sedi
donata est. Qui igitu huic potestati resitit, Dei ordinationi resistit. Potest, si utile iudicaverit, novos
ordinare episcopatus, ubi hactenus non fuerunt. Potest eos qui sunt, alios deprimere, alios sublimare, prout
ratio sibi dictaverit, ita ut de episcopis creare archiepiscopos liceat, et e converso, si necesse visum fuerit.
Potest a finibus terrae sublimes quascumque personas eccleiasticas evocare et cogere ad suam
praesentiam, non semel aut bis, sed quoties expedire videbit.
179
episcopado. Esta preocupação não o permitira realizar outras reflexões a respeito dos
poderes seculares. Contudo, ao proferir todas aquelas palavras, São Bernardo não estaria
salvaguardando ou reafirmando a exclusividade pontifícia frente aos assuntos
eclesiásticos, contra, talvez, alguma ingerência secular?
O papel dos poderes leigos no mundo é um ponto relevante no pensamento
bernardino. Alguns anos antes do Cisma, entre os anos de 1127 e 1129, um problema
opôs o Santo ao rei francês Luis VI. Certo Estefano, que outrora havia sido chanceler do
reino francês, quando fora eleito bispo de Paris, “se retirou da corte e procurou restringir
os excessos do deão e do arquidiácono daquela sua igreja sobre o clero” (GIOVANDO,
1944, v. 12, t. 01: 316-317). Aqueles procuraram o rei Luis VI, o qual confiscou os bens
de Estefano e de seus partidários. Tendo instituído um interdito nos domínios do rei, o
bispo se retirou para a arquidiocese de Sens. Após um capítulo geral da Ordem
monástica de Cister, São Bernardo e outras personagens eminentes tomaram partido
pelo bispo de Paris e intervieram junto ao rei Luis VI:
O Rei do céu e da terra vos tem dado um reino aqui embaixo, e vos dará no céu se vos
esmerais em administrar justa e prudentemente o que haveis recebido. Isto é o que
desejamos e pedimos para vós, para que reineis aqui com fidelidade e com gozo.
Porém, o que tem passado em vosso interior para que agora resistais tão duramente a
essas orações que, se recordais, nos solicitavas antes com tanta humildade? Com que
ânimo s podemos nos atrever a levantar nossas mãos ao Esposo da Igreja, a quem
assim contristais, como julgamos, sem alguma razão e com uma ousadia desconhecida?
Visto que, ela mesma depõe contra vós sua queixa ante seu Esposo e Senhor, enquanto
quem aceitara ser defensor, mantém-se agressor. s vos dirigis a este que vós levastes
a ofensa? o se trata do bispo parisiense, mas do Senhor do paraíso que é
verdadeiramente terrível, e dos príncipes furta o alento [Sl. 75,12-13]. O Próprio disse
aos bispos: Quem vos despreza, despreza a mim [Lc. 10, 16]
117
. (OS RELIGIOSOS DE
CISTER. Carta a Luis VI, rei dos Francos. In: GIOVANDO, v. 12, t. 01, 1944: 317-
319).
São Bernardo e outros religiosos cistercienses interpelavam o rei Luis VI
lembrando os dons que Deus lhe teria dado e aqueles que lhe daria no céu. Os
partidários de Estefano tentavam convencer o rei da injustiça de seu ato, destacando as
orações que haviam feito em sua intenção e de sua família. Além disso, os religiosos
117
Rex coeli et terae regum vobis in terra donavit, donaturus et in coelo, si id quod accepistis, iuste et
sapienter administrare studueritis. Hoc est quod vobis optamus et pro vobis oramus, ut et hic fideliter, et
illic feliciter regnetis. Caeterum vos quonam consilio eisdem nostris pro vobis orationibus (quas, si
recolitis, olim tam humiliter requisistis) modo tam acriter repugnatis? Qua enim iam fiducia manus pro
vobis levare praesumimus ad Sponsum Ecclesiae, quam ita, et sine causa (ut putamus) ausu inconsulto
contristatis? Gravem siquidem adversum vos apud eumdem Sponsum et Dominum suum querimoniam
deponit, dum quem acceperat defensorem, sustinet oppugnatorem. Attenditis iam cui ex hoc infensum vos
redditis? Non utique episcopo Parisiensi, se Domino paradisi, et quidem terribili, et ei qui aufert spiritum
principum. Ipse quippe est qui ad episcopos dicit: Qui vos spernit me spernit.
180
destacaram a contradição entre o dever régio de defender a Igreja e o ataque contra o
bispo de Paris. O objetivo da missiva era, por uma admoestação amigável e fraterna,
segundo os próprios religiosos, demover Luis VI de sua obstinação contra aquele bispo.
Contudo, os cistercienses, avisavam que, caso não fossem atendidos em seus apelos,
recorreriam ao Papa com a pobreza característica de seu estado monástico:
Por outro lado, se s, irmãos e amigos vossos, que cotidianamente oramos por s,
vossos filhos e reino, não somos dignos para nos receber, porém desdenhados, tenhais
consciência que, a partir desta nossa pobreza, a qual em nós tem sido forte, não
podemos abandonar à Igreja de Deus e aos seus ministros e certamente ao nosso pai e
amigo venerável o bispo parisiense: o qual requisitou, contra vós, nossa humildade
interpelante e nossas cartas ao senhor Papa, pelo direito da fraternidade e em seu
benefício
118
. (CLVIRF, v. 12, t. 01: 319-321).
Este episódio é particularmente importante por apresentar um ponto de contato
entre o poder secular e o poder eclesiástico, ou melhor, um ponto de conflito entre esses
dois poderes. A questão era primordialmente da esfera clerical, um problema entre o
bispo, o deão e o arquidiácono. Por outro lado, os dois últimos recorreram ao rei Luis
VI que não se constrangeu em intervir contra o bispo Estefano. São Bernardo e os
outros abades, para socorrer Estefano, cumpriram o aviso expresso na carta a Luis VI e,
através de suas cartas ao Papa, censuraram a conduta régia e demandaram uma solução
para o problema. Esta carta, datada de cerca de 1129, é um exemplo da tenacidade
bernardina em prol do clero e contra os “excessos” dos seculares:
Ao Soberano Pontífice Honório, os servos e se tal nome nos seja concedido, os seus
filhos, Estefano de Cister, Hugo de Pontigne e Bernardo de Claraval, quanto é urgente
apresentar-se ao seu reverendíssimo senhor e pai boníssimo.
Do fundo dos monastérios, onde nos tem conduzido nossas culpas, o esquecemos de
pregar por vós e pela Igreja de Deus a s confiada, enquanto apenas nos felicitamos
com a Esposa de Cristo [a Igreja] por haver conseguido um [sim] fiel guardião, e como
o amigo do Esposo pela sua fadiga despendida, mas de forma frutuosa. Deste lugar, é
que com zelo e fidelidade viemos a informar a Vossa Paternidade dos males que com
dores vemos nesse nosso reino cair sobre nossa Mãe [a Igreja].
Por aquilo que podemos julgar, nós que dele somos vizinhos, o Rei Luis persegue, o
tanto os episcopais, quanto o zelo da justiça, o culto da piedade, e o hábito da religião
dos bispos
119
. (OS RELIGIOSOS DE CISTER. Carta ao Papa Honório. In:
GIOVANDO, v. 12, t. 01, 1944: 339-341, trad. nossa).
118
Alioquin, si non meremur exaudiri, sed contemnimur, et nos fratres, et amici vestri, et qui quotidie
oramus pro vobis et filiis vestris et regno; ex hoc iam noveritis parvitatem nostram, in quibus valuerit, non
posse deesse Ecclesiae Dei, et ministro eius, venerabili videlicet patri et amico nostro episcopo Parisiensi:
qui nostram adversus vos humilitatem interpellans, nostras pro se ad dominum Papam iure fraternitatis
litteras requisivit.
119
Summo Pontifici Honório, servi et (si digni iudicamur) filii, Stephanus Cisterciensis, Hugo
Pontiniacensis, Bernardus de Clara-Valle, quod revendissimo domino, quod benignissimo patri. Degentes
181
A querela foi solucionada no concílio de Troyes em 1129, graças à autoridade do
Papa Honório II e às pressões de São Bernardo, o qual conseguiu livrar o bispo de Paris
das pressões do rei Luis VI. A interiorização ou a interpretação de problemas tais como
o do Cisma de Anacleto e do bispo de Paris, aliada à bagagem ou ao capital cultural de
São Bernardo, serviram para fornecer ao santo, já no final de sua vida, uma imagem
segura, não dos “poderes que soberanamente regem o mundo”, mas das articulações
que deviam ser estabelecidas entre eles.
Nesse sentido, nos debruçaremos sobre o tratado intitulado De Consideratione,
que provavelmente é a última obra realizada por São Bernardo. Escrevendo a pedido do
Papa Eugênio III, que fora seu pupilo em Claraval, o Santo expressara nele toda a sua
concepção acerca dos poderes estabelecidos e das funções que cada um deve assumir.
Porém, o foco central do texto é a atividade papal, tratando de forma secundária e até
mesmo rápida o poder secular:
Por mim, não reputo por justo apreciador das coisas a quem pareça indigno dos
apóstolos ou dos homens apostólicos o julgar tais coisas, sendo certo que tem
recebido o poder de julgar os maiores. Que muito tenham a menos o julgar das terras e
ínfimas possessões dos homens os que no céu hão de julgar aos mesmos anjos? Logo,
vosso poder se deve exercer sobre os crimes, não sobre as possessões, posto que para
aqueles, não por estas, recebestes as chaves do reino de Deus, a fim de excluir os
prevaricadores, não aos possuidores. Para que saibais, diz que o Filho do homem tem
poder na terra de perdoar os pecados [Mt. 16, 19], etc. Que dignidade e poder vos
parece maior: a de perdoar os pecados [Mt. 09, 16] ou a de dividir as heranças?
Porém, não tem comparação. Estas coisas ínfimas e terrenas têm seus juízes, que são os
reis e os príncipes da terra. A que fim vos introduzís nos termos de outros?
120
(BERNARDO DE CLARAVAL. De Consideratione. In:
LOS MONJES
CISTERCIENSES DE ESPAÑA, v. 01, 1983-1990: 66-68, trad. nossa).
Refletindo sobre o papado e para o papado, São Bernardo conclui que não é uma
atribuição digna do pontífice intervir em assuntos como divisões de terras ou de
in monasteriis, ad quae nos nostra peccata compulerunt, non cessamus orare pro vobis, et pro commissa
vobis Dei Ecclesia: congaudentes et sponsae Domini super tam fido custode, et sponsi amico super labore
tam fructuoso. Fidenter proinde atque fideliter vestrae Paternitati suggerimus, quae in regno nostro eidem
matri nostrae dolentes cernimus adversari. Quantum quidem nos sentimus qui vicini sumus, rex
Ludovicus non tam Episcopos, quam in Episcopis iustitiae persequitur zelum, pietatis cultum,
habitumque ipsum religionis.
120
Mihi tamen non videtur bonus aestimator rerum, qui indignum putat Apostolis seu apostolicis viris non
iudicare de talibus, quibus datum est iudicium in maiorca. Quidini contemnant iudicare de terrenis
possessiunculis hominum, qui in caelestibus et angelos iudicabunt? Ergo in criminibus, non in
possessionibus potestas vestra, quoniam propter illa, et non propter has, accepistis claves regni caelorum,
praevaricatores utique exclusuri, non possessores. Ut sciatis, ait, quia filius hominis habet potestatem in
terra dimittendi peccata, etc. Quaenam tibi maior videtur et dignitas et potestas, dimittendi peccata an
praedia dividendi? Sec non est comparatio. Habent haec infima et terrena iudices suos, reges et principes
terrae. Qui fines alienos invaditis?
182
heranças. Estes assuntos, considerados menores, teriam seus próprios juízes: príncipes e
reis. São Bernardo, ao longo do De Consideratione diz o que é e o que não é lícito ao
Papa, atribuindo ao mesmo uma certa aura monástica. Entretanto, em passagens como a
que foi citada, ele faz alguns apontamentos quanto aos reis e imperadores. Assim,
encontramos a relação entre o Papa e os soberanos leigos expressada em uma fórmula
significativa, através da qual, hierarquicamente, são apresentados os poderes secular e
eclesiástico:
Porque havias de empunhar de novo a espada que vos mandaram voltar à bainha? [Jo.
10, 12] A qual, sem dúvida, se alguém nega que é vossa, o me parece que entenda
bem as palavras do Senhor, que diz assim: “volta tua espada para a bainha” [Jo. 18,
11]. Vossa é, pois, ela também, devendo desembainhar-se quiçá a vossa insinuação,
não com vossa o. De outra sorte, se o pertenceria a vós quando disseram os
discípulos: “eis aqui duas espadas” [Lc. 22, 38], não tivera respondido o senhor:
“bastante é”, sem demasia. Uma e outra espada, é a saber, a espiritual e a material,
são da Igreja; porém esta certamente se deve esgrimir a favor da Igreja, e aquela pela
mesma Igreja; aquela pela mão do sacerdote, esta pela do cavaleiro, porém, pela
ordem do sacerdote e ao comando do imperador
121
. (DC, v. 01: 160-162, trad. nossa).
Mais do que esboçar uma representação acerca do jogo político ou das relações
de poder, São Bernardo pensou em uma guerra legítima. Ele atribuiu ao clero o papel de
chefe militar supremo da Cristandade. Sob as ordens do clero, especificamente do Papa,
os cavaleiros desembainhariam suas espadas sob o comando dos imperadores.
Esvaziado de sua imagem sagrada, o poder secular é então ofuscado pelo brilho
pontifício. Logo, o Papa, por sua legítima sacralidade, torna-se maior que o imperador,
relegado a meras funções de comandante de tropas da Igreja (PACAUT, 1989: 86).
Destaca-se que, nesta passagem, o papel do Imperador é meramente técnico. Ele decide
a melhor maneira de se alcançar o objetivo proposto pelos “Pais da Igreja”, mas o
Imperador não tem autonomia ou discernimento para escolher ou decidir guerrear por
sua própria vontade. Ao clero era reservada a direção da Cristandade (SENELLART,
2002: 102-103).
Mas, não na organização das relações de poder ou na construção da imagem
papal, o que está em discussão também é a identidade e o papel específico que cada
121
Quid tu denuo usurpare gladium tentes, quem semel iussus es reponere in vaginam? Quem tamem qui
tuum negat, non satis mihi videtur attendere verbum Domini dicentis sic: converte gladium tuum in
vaginam. Tuus ergo te ipse, tuo forsitan nutu, etsi non tua manu, evaginandus. Alioquin, si nullo modo ad
te pertineret et is, dicentibus Apostolis: Ecce gladii duo hic, non respondisset Dominus: satis est, sed:
Nimis est. Uterque ergo Ecclesiae, et spiritualis scilicet gladius, et materialis, sed is quidem pro Eccleisa,
ille vero et ab Ecclesia exserendus: ille sacerdotis, is militis manu, sed sane ad nutum sacerdotis et iussum
imperatoris.
183
categoria deve assumir no mundo. De acordo com sua carta ao rei Luis VI
122
, o papel
desse nobre subordinava-se ao que era considerado salutar para os cristãos.
Evidentemente, segundo a perspectiva teocrática de São Bernardo, os seculares
deveriam executar o que era útil à cristandade, mas a escolha e a resolução dessa ação
cabiam ao clero.
05. A apropriação do miles Christi pós De Laude Novae Militiae
No contexto das relações de poder entre o clero e a nobreza leiga, São Bernardo
realizou uma importante contribuição para a Teocracia. Na media em que discutira e
desenvolvera a noção de miles Christi com a representação do Novum Militiae Genus, o
a abade de Claraval intentou instrumentalizar a cavalaria em benefício do Papado.
Diante dos problemas advindos de uma nobreza que insistia em interferir nos assuntos
eclesiásticos, tal como Luis VI, ou da fragilidade papal no momento do cisma, uma
nova espécie de cavalaria encontrava seu papel enquanto ponto de apoio para a Igreja.
Em 1153, São Bernardo escreveu uma carta a seu tio André, então mestre da
Ordem dos Templários. Nessa carta, o Santo intentava animar seu tio perante as
dificuldades da defesa da cidade de Jerusalém. Por enquanto, a despeito das moções de
André, as quais São Bernardo fez alusão, nos deteremos na imagem das Cruzadas
apresentada pelo Santo:
Tu desejas me ver e dizes que depende de minha decisão que se cumpra teu desejo.
Indicas que somente esperas meu mandato. Que queres que te diga? Desejo que venhas
e temo não venhas [Fl. 01, 23]. Ante a perplexidade de querer e não querer que seja
disposto, tiram as coisas de mim e o sei o que escolher [Fl. 1, 22]. Por uma parte
quero satisfazer teu desejo e o meu também; por outro lado creio mais que o grande
prestígio que tens e o fato de ser considerado tão necessário nessa terra, que tua
ausência, segundo se diz, traria grandes perigos. Assim, pois, como o posso mandar-
te nada, opto por te ver antes de morrer. Tu podes ver e julgar melhor como vir sem
causar escândalo a essa gente. E talvez tua vinda não seja completamente inútil. É
possível que, com a ajuda de Deus, terias algumas pessoas que te acompanhariam a
socorrer a Igreja de Deus quando regressares de novo, pois és muito conhecido e
estimado aqui
123
. (BERNARDO DE CLARAVAL. Carta a seu tio André, mestre dos
Templários. In: ARAGUREN & BALANO, v. 07, 1983: 890-892, trad nossa).
122
Ver página 179.
123
Desideras me videre, et de meo, ut scribis, arbitrio desiderii tui pendet effectus. Nam mandatum super
hoc meum te indicas exspectare. Et quid dicam tibi? Et cupio ut venias, et timeo ne venias. Ita inter velle
et nolle positus, coarctor e duobus; et quid eligam, ignoro. Unum, ne videlicet tuo satisfaciam desiderio,
et meo pariter: an credam magis celebri de te opinioni, qua terrae ita pernecessarius praedicaris, ut de tua
absentia non mediocris illi desolatio imminere credatur. Itaque quod mandare non audeo, opto tamen ut te
videam antequam moriar. Tu melius id videre et cognoscere potes, si quo modo sine damno et sine
scandalo illius gentis venire possis. Et fieri posset quod adventus tuus omnino non esset inutilis. Forte,
184
André insistia em ver seu parente. São Bernardo temia que a sua ausência da
Palestina acarretasse algum prejuízo ou escândalo para a segurança dos cristãos.
Contudo, o Santo percebia que a viagem de André ao Ocidente poderia alcançar a
adesão de algumas pessoas que ajudariam a socorrer a Igreja de Deus”. Documento
evidenciador da fragilidade militar do reino de Jerusalém, a carta de São Bernardo
relacionara aquela fragilidade como um ponto fraco na Casa de Deus, a qual necessitava
de socorro. Quem poderia socorrê-la eram exatamente, mas não exclusivamente, os
milites.
Além da fragilidade militar dos cruzados, as palavras de São Bernardo
confirmaram as Cruzadas como um projeto de cunho eclesiástico. Associamos esta
passagem com o trecho do tratado De Consideratione, no qual o Santo dizia que a
espada deveria ser desembainhada pelas mãos dos milites, sob o comando do Imperador
e pelas ordens dos padres. A idéia da cavalaria enquanto instrumento ou pretenso
instrumento da Igreja é percebida pela intenção de sua direção e coordenação em uma
empresa cuja atuação eclesiástica foi bem enfatizada: as Cruzadas. Tal empresa São
Bernardo julgava importante para a Casa de Deus. Não cumprir aquela determinação ou
ordenação trazia, seja por parte dos imperadores, seja por parte dos milites, como
demonstraremos adiante, o fracasso para a cristandade e a ameaça para a Igreja.
Diante das incertezas da adesão do poder secular às causas da Igreja ou mesmo
perante a hostilidade de certos nobres, o Novum Militiae Genus, passava de uma
exortação militar a um grupo de cruzados, para uma espécie de garantia àquela
determinação. Salientamos que o Santo não fazia distinção se a espada deveria ser
desembainhada pelos Templários ou por outros milites quaisquer. Tal generalidade
reafirma nossa observação de que, para São Bernardo, o Novum Militiae Genus era um
caminho louvável, mas não o único caminho legítimo para a militia. Porém, a atuação
do cavaleiro Templário traria, por todo discurso bernardino, uma maior segurança para
os interesses eclesiásticos, especificamente os interesses papais.
Não podemos ignorar que São Bernardo conseguira atender ao pedido do rei
Balduíno II. O Papa Honório II, no Concílio de Troyes de 1129, concedera sua
aprovação e outorgara uma norma de vida para a Ordem dos Templários. Em 1139, o
Papa Inocêncio III, através da bula Omne Datum Optimum, reafirmara a associação da
favente Deo, non deesent qui te sequerentur revertentem ad subveniendum Ecclesiae Dei, quoniam
omnibus notus es et dilectus.
185
Ordem dos Templários, ou seja, do Novum Militiae Genus, com a causa da Igreja
Católica:
Inocêncio, episcopal, servo dos servos de Deus. Aos diletos filhos Roberto, mestre da
religiosa cavalaria do Templo que está situada em Jerusalém, seus sucessores e todos
os irmãos, tanto presentes quanto futuros em modo perpétuo. Toda doação que vem do
pai da luz, junto de quem não mutação, nem obscurecimento, pela vicissitude é
ótima e todo dom é perfeito. Pela providência, diletos filhos em Deus, por vós e em
vosso benefício, exaltamos juntos o senhor onipotente, pois vossa Ordem e instituição
digna de respeito é anunciada no mundo inteiro. Verdadeiramente, como tivésseis
estado a caminhar, filhos, pela natureza e abandonados às vontades seculares, agora,
por graça favorável, feitos ouvintes não surdos dos evangelhos, abandonadas a morte,
escolhestes a humildade e o árduo caminho que conduz para a vida. Além disso, para
comprovar que sejais contados na cavalaria de Deus, incessantemente fizestes em vosso
peito o sinal vivificante da Cruz. Acrescenta a isto, pois assim, como os verdadeiros
israelitas e versadissímos guerreiros do divino combate, verdadeiramente acesa a
chama da caridade, realizastes por obras o dito evangelho que é anunciado: ninguém
tem maior amor quanto quem e sua vida em favor da vida dos seus, daí também, de
acordo com a voz do sumo Pastor, vós tivestes mínimo medo de dispor vossas almas
pelos irmãos e de defendê-los das incursões dos pagãos e se declarais com o nome
cavaleiros do Templo, sois constituídos, pelo senhor, defensores da Igreja católica e
impugnadores dos inimigos de Cristo
124
. (INOCÊNCIO II. Bula Omne Datum
Optimum. In: ALBON, 1913-1922: 375-376, trad. e grifos nossos).
Como observou Pernoud (1976: 17), a bula de Inocêncio II estabelecia os
privilégios da Ordem dos Templários, como a isenção da jurisdição episcopal e do
pagamento do dízimo. Entretanto, nos deteremos na representação militar contida
naquele documento. Além da afirmação do caráter humilde e abnegado da Ordem, o
Papa reafirma seu papel de defensora da Igreja e de impugnadora dos inimigos de Cristo.
São Bernardo realizou uma associação estreita entre o Novum Miltiae Genus e os
interesses da Igreja e consequentemente do Papado. A benção de Honório II e de
Inocêncio II marcam, de certa forma, uma apropriação pontifícia do discurso bernardino
e da iniciativa dos milites ligados a Hugo de Payns. Tal apropriação, evidenciada pela
representação militar exposta na bula citada, retomava o De Laude Novae Militiae
124
Innocentius episcopus, servus servorum Dei. Dilectis filiis Roberto magistro religiose militie Templi
quod Iherosolimis situm est, ejusque successoribus et fratribus tam presentibus quam futuris in
perpetuum. Omne datum optimum et omne donum perfetum desursum est, descendens a patre luminum,
apud quem non est transmutacio nec vicissitudinis obumbracio. Provide, dilecti in Domino filii, de vobis
et pro vobis, omnipotentem Dominum collaudamus, quoniam in universo mundo vestra religio et
veneranda institutio nuntiatur. Cum enim natura essetis filii ire et seculi voluptatibus dediti, nunc, per
aspirantem gratiam, evangelii non surdi auditores effecti, relictis pompis secularibus et rebus propriis,
dimissa etiam spatiosa via que ducit ad mortem, arduum iter quod ducit ad vitam, humiliter elegistis,
atque ad comprobantdum quod in Dei militia computemini, signum vivifice crucis in vestro pectore
assidue circumfertis. Accedit ad hoc quod tanquam veri Israelite atque instructissimi divini prelii
bellatores, vere karitatis flamma succensi, dictum evangelium operibus adimpletis quod dicitur: majorem
hac dilectionem nemo habet quam ut animam suam ponat quis pro animis suis; unde etiam, juxta summi
Pastoris vocem, animas vestras pro fratribus poneres eosque ab incursibus paganorum defensare, minime
formidatis; et, cum nomine censeamini milites Templi, constituti estis a Dominio catholice ecclesie
defensores et inimicorum Xpisti impugnatores.
186
afirmando as características religiosas do Novum Militiae e Genus e sua função na Casa
de Deus.
Portanto, identificamos o tratado de São Bernardo e a representação militar nele
contida, como uma importante contribuição para a Teocracia. Se na afirmação do poder
Papal, ao longo do século XI, a idéia de um cavaleiro de Cristo, fiel ao Pontífice, era
desenvolvida, São Bernardo aprofundara essa noção. O Santo oferecia à Santa um
discurso mobilizador da cavalaria, cuja apropriação por parte do Papado marcou uma
nova etapa nas relações entre a Igreja e a cavalaria e na política papal com relação a
uma parte importante dos poderes seculares.
06. A fragilidade dos milites Templi
De acordo com Duby (1994: 251), além dos monges, São Bernardo se
preocupou exclusivamente com os cavaleiros. O Santo, apesar de ter se relacionado com
o poder secular, não escreveu um tratado para reis e imperadores. Percebemos aquela
afirmação de Duby na complexidade da discussão presente no De Laude Novae Militiae.
Também no De Consideratione, mesmo que tenha sido de uma forma ligeira, o Santo
voltou seu olhar sobre aquela personagem que deveria desembainhar a espada pelas
ordens do sacerdote e sob o comando do Imperador. Uma personagem humilde, mas
que teria o poder executivo da violência legítima.
No contexto das discussões em torno da afirmação do papado frente aos poderes
seculares e frente à própria hierarquia eclesiástica, e na esteira de outros problemas
como a violência cavaleiresca, São Bernardo aprofundara noções como a de miles
Christi e miles Sancti Petri. Assim, o Santo se esforçou por mobilizar a nobreza
guerreira através da representação do miles Templi no contexto da dilatação da
cristandade do Ocidente durante as Cruzadas.
Um aspecto importante para o papado no culo XI e consequentemente para a
Teocracia é a noção de miles christi. Não era prática incomum abades e bispos,
enquanto senhores eclesiásticos, recrutarem milites para defender seus domínios
(DEMURGER, 2002: 21). A crer no testemunho do clérigo Raul Glaber
e em outros
religiosos que escreviam no século XI, a violência dos leigos era um problema em
certas regiões do ocidente:
Um dos pontos mais importantes era a conservação de uma paz inviolável: [a decisão
dos concílios] havia provido, ordenando a todo particular das duas classes, qualquer
187
que fosse sua conduta anterior, de sair sem armas, com uma inteira segurança
125
.
(RAUL GLABER. Les Cinq Livres de ses Histoires. In: PROU, 1866: 312. trad. nossa).
Falamos não apenas na mobilização ou orientação da militia, mas nas
impressões sociais que conduziam as ações e práticas do clero. Portanto, manter o clero
livre da influência imperial, ou evitar fissuras no interior da própria hierarquia
eclesiástica não deviam ser as únicas preocupações da Romana e de seus aliados. De
acordo com a documentação eclesiástica, fazia-se necessário discutir a violência e a
impetuosidade da nobreza laica e de seus milites. Entretanto, mais do que refrear os
milites, sua existência deveria ganhar um sentido e sua força, disciplinada, direcionada
para objetivos que lhes assegurassem a salvação.
Evidenciam-se disputas pelo poder entre os milites e clero. Os próprios papas
recrutaram milites: Leão IX empregou seus Milites Sancti Petri para combater em
Civitate no ano de 1053 e certos relatos já os designavam enquanto Milites Christi.
Como informamos, Gregório VII também idealizou empregar esses milites contra
soberanos mais “exaltados” como Henrique IV (DEMURGER, 2002: 21). Duby (1994:
37-38) observou que Gerardo de Cambrai, para solucionar seus problemas com o
castelão Gautier, pretendeu submetê-lo fazendo-o prestar um juramento de fidelidade.
Os próprios movimentos da Paz e da Trégua de Deus intentaram controlar e, de
certa forma, utilizar a violência militar. A delimitação de uma violência legítima e outra
ilegítima demonstra essa observação. Escritos como a Vita Geraldi e o De Laude Novae
Militia, explicitadas as suas especificidades, aprofundavam essa utilidade social da
militia ao proporem uma imagem militar ligada à idéia de ministro de Deus, ou seja, de
protetores dos pobres e observadores do bem estar coletivo. A idéia de um interesse
coletivo era contraposto aos problemas dos interesses individuais militares,
caracterizados de forma negativa como orgulho, arrogância e rapinagem. Nesse sentido,
se a violência militar encontrava tentativas de regulamentação e orientação, essas
mesmas regulamentação e orientação foram problematizadas pelos próprios milites.
Podemos aceitar, em um primeiro momento, a idéia de Demurger que falava de
um processo de sacralização da cavalaria (2002: 23). Da mesma forma, aceitamos a
proposição de Kantarowicz sobre a sacralização que os homens daqueles tempos
125
Un des points les plus importants était la conservation d’une paix inviolable: on y avait pourvu, en
ordonnant à tout particulier des deux classes, quelle que fût sa conduite antérieure, de sortir sans armes,
avec une entière sécurité.
188
realizavam sobre os elementos componentes de sua realidade (1998: 49). O processo do
miles ao miles Christi, ao miles Sancti Petri e ao miles Templi, o qual nós pudemos
perceber na análise do discurso eclesiástico foi evidenciador dessa sacralização.
Contudo, novamente, devemos observar as dificuldades e as incertezas desse processo e
nos precaver de sua aparente linearidade.
Voltemos novamente nossa atenção então para a carta que São Bernardo
escrevera a seu tio André:
A carta que me enviaste há pouco, recebi no leito da enfermidade. A acolhi com as
mãos abertas, a li de bom grado e a reli com alegria, porém, me teria regozijado muito
mais te vendo. Nela li o desejo que tem de ver-me e também teu medo ante o perigo em
que se acha a terra honrada com a presença do Senhor e a cidade consagrada com
seu sangue. Ai de nossos príncipes! Não tem atuado bem na terra do Senhor, e ao
voltar rapidamente à sua pátria não cessam de praticar o mal nem os dói o desastre de
José [Am. 06,06]
126
. São muito fortes para fazer o mal e incapazes de realizar o bem
127
. (CTAMT, v. 07: 890, trad e grifo nossos).
O Santo apresentou a vontade de seu tio em vê-lo e o seu temor quanto ao
destino da Terra Santa. André temia o perigo que ameaçava os Estados Latinos,
especificamente Jerusalém, após o fracasso da segunda Cruzada em 1150. Além desse
temor, São Bernardo atribuía aos príncipes certa incompetência e até mesmo
vontade quanto ás necessidade de realizar o bem. Novamente, os interesses individuais
se sobrepõem aos coletivos. Essa oposição é destacada na citação de Amós. Ele
afirmava que os príncipes retornavam rapidamente para o Ocidente, onde eram aptos e
eficazes ao fazer o mal, mas pouco capazes para realizar o bem. Nos defeitos dos
príncipes estariam as causas dos perigos da Terra Santa e dos temores de André.
São Bernardo continuou expondo o que seu tio sentia quanto aos problemas e às
ameaças da Palestina:
Fazes muito bem em comparar-te à formiga... Que fruto tira o homem de todas as
fadigas que o esgotam sob o sol [Ecl. 01, 03]? Elevemo-nos, portanto, sobre o sol e
vivamos no céu, antecipando-nos com a mente aonde iremos também com o corpo.
126
... bebem vinho em taças e perfumam-se com o óleo das primícias, mas de modo algum se atormentam
com a ruína de José.
127
Litterae tuae, quas novissime tranmisisti, invenerunt me in lectulo decumbentem. Accepi eas obviis
manibus; libenter legi, lbenter relegi, sed libentius te vidissem. Legi in illis desiderium tuum videndi me,
legi et metum tuum pro periculo terrae, quam Dominus sua praesentia honoravit; periculo civitatis, quam
suo sanguine dedicavit. Vae principibus nostris! In terra Domini nihil boni fecerunt; in suis, ad quas
velociter redierunt, incredibilem exercent malitiam, et non compatiuntur super contritione Ioseph.
Potentes sunt ut faciant mala, bonum autem facere nequeunt.
189
Ali, querido André, ali estão os frutos de teu trabalho, ali tua recompensa. Lutas sob o
sol, porem o fazes por aquele que reina acima do sol. Lutemos aqui e esperemos ali o
prêmio
128
. (CTAMT, v. 07: 890, trad nossa).
O ânimo e o entusiasmo de André pareciam estar arrefecendo. A comparação
que aquele cavaleiro provavelmente fazia entre sua atividade e a da formiga corroborava
sua necessidade de apoio e de consolo. Aparentemente, havia muito a ser feito e poucos
homens dispostos a fazê-lo. São Bernardo, nesta carta, também demonstrara a
necessidade de atualizar o De Laude Novae Militia, ou seja, fazer presente junto a
memória dos milites a mensagem exortativa de suas páginas. A despeito da segurança
oferecida por aquele tratado, os milites Templários se deparavam com dificuldades e
incertezas que questionavam a validade de seus esforços. São Bernardo novamente
evocava o trabalho árduo sob o sol como garantia das recompensas no Paraíso. A carta
para André foi, entre outras coisas, um novo conforto e o reforço das certezas eternas
atribuídas ao Novum Militiae Genus.
Nas entrelinhas do discurso bernardino, marcado pelo esforço de apoiar o seu tio
no socorro da Terra Santa, ficou evidente o desânimo e o questionamento do cavaleiro.
Este não deveria ser o único descontente. Bernardo dera voz a esse descontentamento e
conservara para nós a raiz de sua insatisfação: os crescentes perigos em Jerusalém e as
dificuldades do trabalho dos Cruzados. André, provavelmente se sentia impotente
perante a grande carga do trabalho que deveria desempenhar. Diante das necessidades
das Cruzadas, a participação dos próprios templários encontrava obstáculos. Se essa
adesão e a representação do Novum Militiae Genus conduziam à sacralização da
cavalaria, ou de parte desta, a apropriação dessa representação era marcada pela
incerteza. Se André se dizia uma formiga e temia o destino da Palestina, percebemos
que a dita sacralização não estava no discurso eclesiástico, mas na sua interação com a
militia.
Da mesma forma, como sugeriram Senellart (2002) e Kantarowicz (1998), se
reis e imperadores se apropriavam das representações e dos discursos eclesiásticos e por
eles pautavam suas relações de poder, a militia se apropriou também do De Laude
Novae Militia. Essa apropriação foi orientada pelas relações nas quais ela estava
128
Bene facis formicae te comparans... Quae autem abundantia homini de unverso labore, quo laborat
ipse sub sole? Ergo ascendamus super solem et conversatio nostra in caelis sit, iam mente praecedentes
quo sumus et copore secuturi. Ibi, mi Andrea, ibi fructus laboris tui; ibi retributio tua.
190
inserida. Mesmo com o tom de incentivo da carta de São Bernardo, podemos entender o
desânimo de André com as ocorrências e as incertezas do reino de Jerusalém.
Os discursos presentes na Vita Geraldi, no De Laude Novae Militia ou nos
editos da Paz e da Trégua de Deus, assim como em outros escritos eclesiásticos, não
foram suficientes para aprofundar a análise da cristianização ou sacralização da militia.
Foi necessário, de alguma forma, direta ou indiretamente, examinar a apropriação
militar daqueles discursos. Assim, a despeito de uma história das idéias ou
especificamente de uma história da idéia de miltia Christi, procuramos recuperar a
dimensão humana ou social da cristianização da militia através da incerteza e da
fragilidade dos ideais eclesiásticos discutidos e questionados pelas especificidades dos
espaços de socialização dos milites.
Se os soberanos seculares se tornavam sagrados pela unção eclesiástica e pelo
discurso que os humilhava, os milites Templi traduziram de maneiras diversas o escrito
bernadino. Se, como demonstramos anteriormente, Bernardo de Tremelay poderia se
inspirar na referência que São Bernardo fazia aos Macabeus e André desanimava
perante as dificuldades, necessitando voltar ao abade de Claraval para reforçar e
reafirmar as certezas da exortação, isso comprovou uma espécie de desvio dos desejos e
das vontades eclesiásticos. Se, no século XII os papas se esforçaram em tornar a
Cruzada um assunto eclesiástico, os milites e também os Novi Milites de São Bernardo,
demonstravam a incerteza de seus rumos.
Esse possível desvio dos desejos eclesiásticos nos mostrou as dificuldades e as
incertezas de seu discurso perante as relações de poder e as especificidades da militia.
Propor uma idéia de instrumento e intentar submeter a mão do cavaleiro às ordens do
Papa e ao comando do Imperador foi algo diferente e até mesmo muito distante do que
exercer tal idéia. São Bernardo, mesmo pretendendo ligar o Novum Militiae Genus à
vontade Papal, provavelmente percebeu essa diferença ao se deparar com o fracasso da
Segunda Cruzada e com os temores de seu parente, mestre dos Templários.
191
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
192
O DE LAUDE NOVAE MILITIAE ENQUANTO PERSPECTIVA SOCIAL E
MONÁSTICA.
Discutimos as práticas políticas no século XI e primeira metade do século XII,
assim como a perspectiva bernardina quanto a elas. Nessa discussão, definimos a
política, de acordo com aquele contexto, enquanto relações de poder e identificamos os
conflitos de representações e as trocas simbólicas entre os poderes secular e eclesiástico
como uma parte relevante, senão fundamental, para sua compreensão. Foi possível
visualizar, no âmbito das relações de poder, como uma sociedade se problematiza e
como são construídas/destruídas, formadas/reformuladas, afirmadas/rejeitadas etc. as
identidades de seus grupos componentes.
Nesse esquema, deparamos com a necessidade de situar a representação do
Novum Militiae Genus no interior daquelas relações e daquelas trocas e influências
simbólicas, restringindo o enfoque para a cavalaria e o monasticismo cisterciense
personificado em São Bernardo. Buscamos apresentar uma história da incerteza e da
excitação. Tal meta se constituiu como um elemento fundamental para esta pesquisa,
pois nos ajudou a escapar, de um lado, da determinação unívoca das estruturas culturais
e sociais e, por outro, proporcionou a reconstituição das interações que foram
importantes para a concepção militar de São Bernardo. Através dessa história da
incerteza, examinando os espaços de socialização do Santo a família, as relações com
a militia e o monastério – identificamos possibilidades de análise tão importantes para o
estudo do Novum Militiae Genus quanto a leitura de São Bernardo acerca dos “Pais da
Igreja”.
Historiadores como Bloch (1982: 352) e tradutores como Ramos (1953-1955, v.
01: 856) identificaram a importância das idéias de Santo Agostinho e de Santo Anselmo
para a representação militar do De Laude Novae Militiae. Assim, tomamos um caminho
um pouco diferente e seguimos o percurso da leitura de São Bernardo sobre a cavalaria
analisando suas interações com monges e milites. De fato, não ignoramos as
contribuições de Santo Anselmo e Santo Agostinho para o Novum Militiae Genus. A
idéia de guerra justa e a oposição entre a militia Christi e a militia secularis esboçada no
jogo de palavras malitia/militia evidenciam aquela contribuição. Porém, era necessário
recuperar e precisar a contribuição de Hugo de Payns, de Hugo de Champagne e dos
monges cistercienses e cluniacenses para a concepção de São Bernardo.
193
A cavalaria, enquanto uma configuração social complexa, heterogênea e
interativa, foi identificada como interlocutor de fundamental importância para o abade
de Claraval. Tal fato se observou na medida em que as relações de São Bernardo com a
cavalaria, ilustradas pela hagiografia de Guilherme de Saint-Thierry, pela carta a Hugo
de Champagne e pelo De Laude Novae Militiae, exigiram um maior aprofundamento
sobre os milites e suas características fundamentais. Estabelecer as relações familiares
como primeira parte deste texto serviu para salientar como as concepções militares de
São Bernardo se alteraram no contexto de suas relações com a militia.
Sublinhamos as diferentes interações estabelecidas entre o Santo e a cavalaria,
além dos diferentes posicionamentos do Santo: recusa, recalcitrância, aceitação reticente,
apoio fervoroso, entre o período de convívio com Tecelino, seu pai, e os contatos com
os primeiros Templários. Tal recurso demonstrou que as diferentes relações
estabelecidas pelo Santo levaram-no a diferentes posicionamentos quanto à cavalaria,
quanto à cultura e à sociedade de seu tempo.
Percebemos a complexidade desses posicionamentos ao procurar responder a
seguinte pergunta: o o Bernardo, que convertia os milites ao monasticismo na sua
juventude poderia assumir o ideal de uma cristandade concebida como uma túnica
multicolorida e sem costura, onde cada um teria a recompensa segundo seu estado? É
certo que São Bernardo convertera seus parentes e ingressara na Ordem de Cister, como
enfatizamos. Deve-se acentuar então, de maneira prudente, um amadurecimento no
pensamento de São Bernardo. Ele converteu seus irmãos milites, os cavaleiros que
foram visitá-lo em Claraval e possivelmente desejava trazer Hugo de Champagne para o
claustro, na circunstância em que este abandonara seu estado condal. Poder-se-ia então
perceber no tratado Apologia no principio da solidariedade e também no De Laude
Novae Militiae uma mudança radical no pensamento bernardino?
As conclusões não devem ser tão rápidas, da mesma forma que o desejo de
Bernardo em monastizar a sociedade deve ser mais bem apreciado. É preciso lembrar
que os irmãos de Bernardo deviam se envolver, devido a seus laços de vassalagem, nos
combates seculares que Urbano II qualificara de fratricidas, que os Concílios de Paz no
decorrer do século XI pretendiam conter e que o próprio Bernardo repudiara no De
Laude Novae Militiae. Além disso, os milites que foram visitar o abade de Claraval
estavam se dirigindo aos Torneios, essas guerras simuladas condenadas pelo clero. Logo,
194
nada poderia interditar a São Bernardo a idéia de trazer aqueles milites para o
monasticismo. De uma perspectiva monástica bernardina, a cavalaria efetiva da Vita
Prima era uma má cavalaria. Mesmo que as virtudes pessoais de seus parentes se
evidenciassem, era necessário convertê-los, afinal, o que de efetivo se poderia propor
para a militia além da frágil trégua ou deposição de armas regidas pelo calendário
religioso?
Os parentes milites de São Bernardo estavam longe de fazer parte de uma
solidariedade social que concebesse a aceitação do ofício das armas. As tais guerras
fratricidas que Urbano II lembrara em Clermont dificultavam tal solidariedade e a
percepção de um caminho salutar para a cavalaria, claro, segundo o clero e segundo o
jovem Bernardo. A dificuldade do Santo conceber um ius militiae tal como definido por
Odon de Cluny, em conformidade com a solidariedade social foi expressa na insistência
da conversão de seus irmãos André e Geraldo. São Bernardo não os convidou ao
exercício de uma cavalaria que pudesse ser, na concepção do Santo, mais cristã. O
máximo que a Vita Prima explorou foi o convite de Bernardo a certos milites, afim de
que renunciassem às armas por um período determinado de tempo. A proposta
primordial do jovem Bernardo para os milites tomava a forma do claustro e do hábito.
Algo diferente do que pôde ser apreendido na carta a Hugo de Champagne e na sua
resposta a Hugo de Payns.
Nesse sentido, o princípio da solidariedade e da diferença que o Santo pretendia
ilustrar na metáfora da túnica e na citação de São Paulo “do cada um permaneça em sua
vocação” não era válido na medida em que o Santo considerava a sua distorção no mau
exercício da militia as guerras entre nobres cristãos. O dito amadurecimento de São
Bernardo veio na medida em que aquele princípio da solidariedade, em sua
aplicabilidade a cavalaria, foi refletido e ponderado no problema com Cluny e na
resposta a Hugo de Payns. O que São Bernardo fez com o Novum Militiae Genus foi
descobrir e esmerar uma espécie de inserção cavaleiresca no tecido daquela túnica
social que cobria e representava a unidade da Ecclesia.
A representação do Templário não foi pensada apenas um estímulo aos milites
hugonianos, ex-vassalos dos cônegos do Santo Sepulcro, mas também um espelho para
a militia/malitia, cujos riscos mortais foram apresentados. Os Templários eram os
exemplos perfeitos da solidariedade social cristã na medida em que, segundo São
195
Bernardo, defenderiam a cristandade e nos momentos de paz se dedicariam a exercícios
e práticas apostólicos, penitenciais, cenobíticos e expiatórios.
São Bernardo concebeu na comunidade militar dos Novi Milites um tratamento
de respeito recíproco que pode remeter o leitor as suas críticas a Cluny. Em sua carta ao
monge Roberto, Bernardo evidenciou o tratamento que seria dado ao adolescente pelos
monges de Cluny. Roberto seria elevado sobre seus contemporâneos, não importando
quão idosos ou veneráveis eles fossem (BERNARDO DE CLARAVAL. Carta ao
Monge Roberto. In: GIOVANDO, 1944: 15-17). O abade de Claraval criticou tal
distinção que subvertia uma ordem e uma organização pretendida como natural: os mais
novos submetidos aos mais velhos. De um modo similar, Bernardo identificava na
comunidade dos Novi Milites um respeito e consideração baseados no critério da virtude
e do mérito dos melhores, não da nobreza.
Noção de humildade e unidade que ilustra a força dos laços comunitários do
Novum Militiae Genus, mas que encontra respaldo em uma noção de respeito e união
discutidos, em um outro momento, no interior da questão monástica com seu sobrinho
Roberto. Não se pode afirmar que a noção de unidade/humildade de São Bernardo seja
diretamente ligada à querela com Cluny. O que pretendemos foi demonstrar como o
Santo pensara a coesão e o relacionamento no seio de um monastério e como ele
traduziu as interações entre os milites de Hugo de Payns. Há uma aproximação entre
ambos os casos que se evidencia pela ênfase dada à autoridade dos mais velhos sobre os
mais novos e dos melhores sobre aqueles que não guardavam totalmente os preceitos da
comunidade, talvez inexperientes ou pouco dedicados.
Quando Bernardo afirmava: são submetidos aos melhores
129
(DLNM, v. 367, t.
31: 68, trad. nossa), não aos mais nobres, ele pretendia trazer um grau de organização
hierárquica que não tinha o eixo na nobreza e nas distinções nobiliárquicas, mas no
mérito e nas práticas cuja excelência assentava-se na humildade, bom convívio e
eficiência militar. O melhor, para o abade, nem sempre seria o mais nobre. Claro, não se
trata de uma revolução social que abolisse a nobreza de sangue, afinal o caráter nobre
não era estranho aos Novi Milites. Como lembrou Bathélemy (1994), a noção de
nobreza nunca faltou aos milites. O cavaleiro era um nobre, os Templários eram nobres
e Bernardo falava de um critério de convívio e distinção tecido para nobres. O ponto
129
Defertur meliori, non nobiliori.
196
essencial da reflexão bernardina não era desprezar a nobreza de nascimento, mas, no
interior desta, focar outros critérios monásticos e apóstólicos que serviriam à
preservação da comunidade e de sua utilidade no contexto das cruzadas. Devemos
lembrar que o primeiro mestre dos Templários foi Hugo de Payns e que seu antigo
suserano, conde Hugo de Champagne, se tornara, na Ordem, um dos milites sob seu
comando.
A perspectiva monástica do Santo quanto ao seu monasticismo se revelou
também muito importante para sua concepção militar. O monasticismo baseado na
humildade, no trabalho manual e na solidariedade comunal levou São Bernardo a uma
apreciação particular das práticas militares de Hugo de Payns. Claro, não atribuímos ao
monasticismo cisterciense uma das bases do Novum Militiae Genus. Atribuímos esta
base ao monasticismo cisterciense de São Bernardo. Aquelas características
fundamentais foram aprofundadas e até mesmo radicalizadas na resolução de seus
problemas com o monge Roberto e nas consequências daquela resolução: a indignação
dos cluniacenses quanto a uma possível difamação movida pelo Santo e pelos seus
monges de Claraval.
São Bernardo, antes de seus contatos com os Templários, se viu na necessidade
de afirmar a dureza de seu monasticismo e incitar o monge Roberto ao bom combate
pela salvação através da associação entre a dureza da prática monástica e a dureza da
prática militar. Além de afirmar as feições de sua ascese, o Santo viu no ofício dos
milites uma forma adequada e digna para traduzir as suas práticas monásticas. Se essa
aproximação ocorria no sentido de demonstrar e justificar o esforço de seu
monasticismo, não poderia ocorrer no sentido inverso? Ou seja, o monasticismo não
poderia demonstrar e justificar o ofício militar?
Todavia, tal demonstração e justificativa só ocorreram devido ao diálogo movido
por São Bernardo, Hugo de Champagne e Hugo de Payns. Concluímos então, que a
perspectiva monástica de São Bernardo proporcionou a ele uma perspectiva específica
da prática militar, não de todos os milites, mas da de um grupo de cruzados. A
representação do Novum Militiae Genus foi, portanto, o resultado do contato entre dois
mundos distintos, mas comunicantes. Interessante observar que se foi possível a São
Bernardo ler a iniciativa dos Templários utilizando a Regra de São Bento, o exemplo
dos apóstolos e dos macabeus, isso evidenciava uma certeza na justiça e na legitimidade
197
daqueles milites. Tal justiça e legitimidade ultrapassava a oposição bernardina da
juventude e a relativa incerteza demonstrada na carta a Hugo de Champagne e no
prólogo do De Laude Novae Militae.
O tratado de São Bernardo qualificava o Novum Militiae Genus como uma
espécie de conversão próxima da conversão ao monasticismo. Os Novi Milites
exerceriam um labor que os redimiria dos pecados cometidos em combate. As durezas
do esforço militar na Palestina e a organização dos milites Templi, esboçada pelo Santo,
aproximavam aqueles dois conjuntos de práticas. Isso criou uma representação que,
oriunda do contato e da discussão entre interesses distintos os dos primeiros
Templários e os de São Bernardo problematizava o papel e a inserção do miles na
sociedade.
Considerando essa tensão de interesses, identificamos o Novum Militiae Genus
como uma representação política no interior da qual era repensada a identidade de um
importante componente da sociedade medieval: a militia. Assim como Hugo de Payns
apresentou suas inquietações a São Bernardo, o qual lhe dera uma resposta no De Laude
Novae Militiae, os Templários posteriores ao seu primeiro mestre também se
apropriaram das representações que foram tecidas no contato daquelas duas personagens.
Fomos informados da apropriação desses cavaleiros através das ações de Bernardo de
Tremelay e de André, tio de São Bernardo. Se por um lado, o Novum Militiae Genus
fornecia certezas e convicções às ações do primeiro, para o segundo, após o fracasso da
segunda Cruzada, a representação militar do abade de Claraval precisava ser reafirmada
e confirmada. Podemos propor também a apropriação que os papas realizaram a cerca
daquela representação. A bula Omne Datum Optimum foi um dos documentos capitais
para, brevemente, realizar tal pretensão.
Portanto, no entrecruzamento de diferentes representações e apropriações,
constituída de forma complexa nas relações entre o Santo e a cavalaria, o Novum
Militiae Genus mostrou-se como uma representação política, pois problematizava e
questionava o papel e a inserção dos membros de uma coletividade no tecido social.
Essa representação construída, modificada e reconstruída com dificuldades a partir de
interesses específicos de diferentes componentes da sociedade foi uma das formas que
assumiu a discussão do problema da conquista do Paraíso ser realizada pela guerra.
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