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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM
CIÊNCIAS HUMANAS/DOUTORADO
SILVIA CARDOSO BITTENCOURT
A “bíblia da farmacologia” e os antidepressivos: análise dos livros-
texto “Goodman e Gilman – As bases farmacológicas da
terapêutica”
de 1941 a 2006
Florianópolis
Maio 2010
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SILVIA CARDOSO BITTENCOURT
A “bíblia da farmacologia” e os antidepressivos: análise dos livros-
texto “Goodman e Gilman – As bases farmacológicas da
terapêutica” de 1941 a 2006
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas – Doutorado, Centro de
Filosofia e Ciências Humanas (CFCH),
Universidade Federal de Santa Catarina.
Área de Concentração: Condição Humana na
Modernidade.
Linha de pesquisa: Evolução das Ciências da Vida
e da Saúde (ECVS).
Orientadora: Professora Sandra Caponi
Co-orientadora: Professora Sônia Maluf
Florianópolis
Maio 2010
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Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da
Universidade Federal de Santa Catarina
.
B624b Bittencourt, Silvia Cardoso
A Bíblia da farmacologia e os antidepressivos [tese] :
análise do livro texto de Goodman e Gilman - as bases
farmacológicas da terapêutica de 1941 a 2006 / Silvia
Cardoso Bittencourt ; orientadora, Sandra Noemi Cucurullo
de Caponi. - Florianópolis, SC, 2010.
340 p.: quadros
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa
de Pós-Graduação em Ciências Humanas.
Inclui referências
1. Ciências humanas. 2. Antidepressivos.
3. Medicamentos. 4. Farmacologia –
História. 5. Reducionismo. I. Caponi, Sandra Noemi
Cucurullo de. II. Universidade Federal de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas. III. Título.
CDU 168.522
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SILVIA CARDOSO BITTENCOURT
A “bíblia da farmacologia” e os antidepressivos: análise dos livros-
texto “Goodman e Gilman – As bases farmacológicas da
terapêutica” de 1941 a 2006
Esta tese foi julgada adequada para a obtenção do título de Doutor em
Ciências Humanas e aprovada em sua forma final pelo Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade
Federal de Santa Catarina.
5
A todos que buscam aliviar
as dores humanas.
6
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que, de forma direta ou indireta, contribuíram pa-
ra que esse trabalho fosse realizado: familiares, amigos, colegas do Pro-
grama de Pós-graduação Interdisciplinar.
Ao Paulo, por ter incentivado que eu iniciasse este trabalho, à
Anne, pelo suporte durante o processo de desenvolvê-lo, e à Arine, pelo
auxílio nos momentos finais.
Agradeço aos professores deste Programa e também a todos aque-
les que contribuíram em minha trajetória como aluna, desde o ensino
fundamental. Em especial às orientadoras, Sandra Caponi e Sônia Ma-
luf.
Agradeço aos pacientes que atendi e atendo como médica. Eles
me fazem repensar a condição de ser humano e como lidar com a dor e o
sofrimento cada vez que acontece esse encontro.
Agradeço aos secretários do Programa Interdisciplinar, pela paci-
ência e cuidado com que sempre fizeram seu trabalho.
À CAPES, que propiciou bolsa de estudos nos últimos seis meses
de trabalho para que eu pudesse me dedicar exclusivamente a ele.
Agradeço à Isamira e ao Mateus pela compra dos livros texto Go-
odman e Gilman no original, facilitando meu trabalho de pesquisa, e ao
Marcos pelo auxílio com a parte de informática. Aos três pelo auxílio
em questões de tradução.
7
Graça divina no dom que a retina tem
De reter a cor
Graça divina no dom que a aspirina tem
De aspirar a dor
A eficácia da graça divina tem
Um pé na farmácia outro no amor
(Gilberto Gil)
8
RESUMO
Se a dor e o sofrimento são inerentes à condição humana, a
forma como lidamos com essas condições tem sido diversa em diferentes
contextos socioculturais e históricos. O uso de medicamentos chamados
antidepressivos para tratar situações relacionadas à tristeza com sintomas
que caracterizam sofrimento físico e psíquico é uma estratégia terapêutica
na biomedicina desde o surgimento dessas drogas. O uso abusivo desses
medicamentos tem sido questionado. Estão sendo levantadas questões
como a redução do sofrimento a aspectos puramente biológicos, excluin-
do desse modo uma abordagem compreensiva de problemas de saúde que
não estariam restritos apenas à intervenção em alterações bioquímicas
endógenas. O objetivo deste estudo é conhecer o modo como a farmaco-
logia e os medicamentos antidepressivos foram apresentados a profissio-
nais e estudantes de medicina ao longo da segunda metade do século XX
e analisar quais as estratégias argumentativas utilizadas para justificar o
uso dessas drogas a partir do discurso científico. Para atingir esse objeti-
vo, foram analisadas as diferentes edições do principal livro-texto de
farmacologia, utilizado no século XX em diferentes países como modo de
divulgação do conhecimento científico: o livro Goodman e Gilman: as
bases farmacológicas da terapêutica, conhecido como a “bíblia da far-
macologia”. Inicialmente foi feita uma abordagem dos quadros relacio-
nados à depressão, categoria médica que deu origem aos “antidepressi-
vos”, a partir da melancolia nos primórdios da biomedicina. Foram abor-
dados textos de médicos como Pinel, Esquirol e Dagonet, do início do
período em que “nasce” a medicina moderna, a segunda metade do século
XVIII e o século XIX, com uma breve passagem pelo início do século
XX, quando surgem os trabalhos de autores como Kraepelin e Freud,
trazendo a questão da imprecisão dos diagnósticos médicos na área do
sofrimento psíquico. Os livros-texto de Goodman e Gilman, desde sua
edição (em 1941) até a 11ª edição (em 2006), foram analisados a partir de
uma perspectiva histórica, utilizando como estratégia metodológica a
análise de discurso. Buscou-se identificar questões que influenciaram
tanto o desenvolvimento da farmacologia quanto o desenvolvimento dos
medicamentos chamados antidepressivos. A partir da análise dos textos,
pode-se concluir que: existe dificuldade para especificar as situações em
que os antidepressivos são utilizados, por causa das incertezas do diag-
nóstico clínico; as tentativas realizadas a partir do conhecimento farmaco-
lógico para estabelecer uma relação causal entre diferentes substâncias
endógenas e os sintomas clínicos não são comprovadas até a última edi-
9
ção do livro-texto; os avanços na área do conhecimento técnico-científico
no sentido de controle dos sintomas têm obtido um êxito relativo (pelo
menos em curto prazo, como, por exemplo, no controle dos efeitos colate-
rais e na facilidade de administração dos medicamentos), sendo esse um
aspecto que tem dado força à expansão do uso dos antidepressivos; esses
medicamentos, inicialmente utilizados para tratar sintomas depressivos
(no sentido de pouca ou baixa atividade corporal) vêm tendo seu uso
ampliado progressivamente para situações que não estão relacionadas aos
sintomas que inicialmente lhes deram esse nome (antidepressivos); o
desenvolvimento das pesquisas em farmacologia está vinculado a saberes
e práticas de outras áreas do conhecimento, que, por sua vez, determinam
o desenvolvimento de medicamentos; e, por fim, a industria farmacêutica
está ligada ao desenvolvimento da farmacologia desde os primórdios
desta.
Palavras-chave: antidepressivos; história da farmacologia; reducionismo
biológico; pesquisa interdiciplinar; medicalização.
10
ABSTRACT
If pain and suffering are inherent to the human condition, the manner in
which we deal with such conditions has been diverse in different
sociocultural and historical contexts. The use of antidepressive
medication to cure conditions related to sadness, which can demonstrate
symptoms characterized by physical and psychic suffering, is a
biomedicinal therapeutic strategy used since the emergence of such
drugs. The abuse of such medication has become highly questioned.
Inquiries have surfaced in relation to the reduction of suffering to purely
biological aspects, thereby excluding a comprehensive approach of
health problems that would not be solely restricted to an intervention of
endogenous biochemical alterations. The aim of this study is to identify
how pharmacology and the antidepressant drugs were introduced to
physicians and medical students in the second half of XX century and to
analyze which argumentative strategies are utilized in justifying the use
of such drugs via scientific discourse. In order to achieve this aim, we
have analyzed the different editions of the primary textbook of
pharmacology, used in various countries during the XX century as a
means of disseminating scientific knowledge: Goodman and Gilman:
The Pharmacological Basis of Therapeutics, the commonly
recognized “bible of Pharmacology”. Initially examined are the clinical
conditions related to depression, a medical category that gave origin to
“antidepressants”, by means of melancholia in the early days of
biomedicine. Analyzed were texts from doctors such as Pinel, Esquirol,
and Dagonet from earlier periods, in which modern medicine was
“born”, the second half of the XVIII century, the XIX century, and a
brief passage through the beginning of the XX century, when works
from such authors as Kraeplin and Freud brought forth questions
regarding the imprecision of medical diagnosis in the area of
psychological distress. Goodman and Gilman’s textbooks, from the first
edition (in 1941) through the eleventh edition (in 2006), have been
analyzed from a historical perspective, using discourse analysis as a
methodological strategy. We tried to identify issues that influenced both
the development of knowledge in the area of pharmacology as well as
the development of such medications labeled antidepressants. From the
analysis of texts, one can conclude that: difficulties exist when
specifying the situations in which the antidepressants are utilized, via
the uncertainties of clinical diagnosis; the attempts, from de
pharmacological knowledge, to establish a causal relationship between
11
various endogenous substances and clinical symptoms are not supported
in any of the textbook editions; the advances in the field of technical-
scientific knowledge in order to control the symptoms have obtained a
relative amount of success (at least short-term, for example, in the
control of side effects and in the ease of administering medication), this
being one aspect that has given strength to the expansion of
antidepressants being used; these drugs, originally used to treat
depressive symptoms (in the sense of little or low body activity), have
had their use extended progressively to situations that are not related to
the symptoms that initially gave them that name (antidepressants); the
development of research in pharmacology is linked to understandings
and practices from other areas of knowledge, which in turn determine
the development of such drugs as antidepressants; and finally, that the
pharmaceutical industry is associated to the development of
pharmacology since its inception.
Key terms: antidepressants, history of pharmacology, biological
reductionism, interdisciplinary research, medicalization
12
LISTA DE QUADROS
Quadro 1.1 – Ano de publicação das edições e traduções do livro-
texto Goodman e Gilman 46
Quadro 4.1 – Descrição da 1ª edição do livro
Goodman e Gilman 134
Quadro 4.2 – Descrição da 2ª edição do livro
Goodman e Gilman 145
Quadro 4.3 – Descrição da 3ª, 4ª e 5ª edições do livro
Goodman e Gilman 153
Quadro 4.4 – Descrição da 10ª edição do livro
Goodman e Gilman 182
Quadro 6.1 – Capítulos do livro-texto Goodman e Gilman sobre
drogas utilizadas no tratamento de problemas
psiquiátricos ou de sintomas mentais 233
Quadro 6.2 – Capítulos, subitens relacionados a psicofármacos
e classes de antidepressivos (ATD) nas edições
do livro Goodman e Gilman, da 3ª à 8ª edições 237
Quadro 6.3 – Capítulos e seus subtítulos na 9ª, 10ª e 11ª edições
do livro-texto de farmacologia Goodman e Gilman:
As bases farmacológicas da terapêutica 240
Quadro 6.4 – Medicamentos usados no tratamento da depressão na 3ª
edição do livro Goodman e Gilman: As bases
farmacológicas da terapêutica 242
Quadro 6.5 – Especificação do conteúdo do capítulo que trata das
drogas e o tratamento das doenças psiquiátricas para
depressão e mania no livro-texto Goodman e Gilman,
9ª edição (1996) 256
13
Quadro 6.6 – Drogas classificadas como antidepressivos no capítulo
19 da 9ª edição (1996) de Goodman e Gilman – as
bases farmacológicas da terapêutica. 258
Quadro 6.7 – Subtítulos do capítulo que trata das drogas para
depressão e ansiedade na 10ª edição do livro-texto de
farmacologia Goodman e Gilman 272
Quadro 6.8 – Subtítulos do capítulo que trata das drogas para
depressão e ansiedade na 11ª edição do livro-texto de
farmacologia Goodman e Gilman 273
Quadro 7 – Características analisadas por esta pesquisa nas 11
edições do livro-texto Goodman e Gilman 287
14
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
5-HT 5-hidroxitriptamina (serotonina)
AD Análise de Discurso
AINE Anti-Inflamatórios não Esteroidais
AINH Anti-Inflamatórios não Hormonais
AMA Associação Médica Americana
APA American Psichiatric Association (Associação
Americana de Psiquiatria)
ATD Antidepressivos
BU/UFSC Biblioteca Universitária da Universidade Federal de
Santa Catarina
BASF Badische Anilin und Sodafabriken
BZD benzodiazepínicos
CFM Conselho Federal de Medicina
COMUT Comutação Bibliográfica
DDT Dicloro-Difenil-Tricloroetano
DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
(Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais)
DSM II Diagnostic and Statistical Manual of MentalDisorders,
Second Edition (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doenças Mentais, 2ª edição)
DSM III Diagnostic and Statistical Manual of MentalDisorders,
Third edition (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doenças Mentais, 3ª edição)
DSM III R Diagnostic and Statistical Manual of MentalDisorders,
Third Edition Revised (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Doenças Mentais, 3ª edição revisada)
DSM IV Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,
Fourth Edition (Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doenças Mentais, 4ª edição)
15
DSM IV TR Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,
Fourth Edition Text Revised (Manual Diagnóstico e
Estatístico de Doenças Mentais, 4ª edição, texto
revisado)
ECT Eletroconvulsoterapia
ECVS Evolução das Ciências da Vida e da Saúde
FDA Food and Drug Administration
IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
IMAO Inibidores de Monoaminoxidase
ISRS Inibidores Seletivos de Recaptação da Serotonina
LSD Dietilamina do ácido lisérgico
MHRA Medicines and Healthcare Products Regulatory
Agency
NIMH National Institute of Mental Health (Instituto Nacional
de Saúde Mental dos Estados Unidos da América)
OMS Organização Mundial da Saúde
OPS Organización Panamericana de la Salud
SN Sistema Nervoso
SNA Sistema Nervoso Autônomo
SNC Sistema Nervoso Central (SNC)
TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
TAS Transtorno de Ansiedade Social
TGI Trato Gastrointestinal
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
WHO World Health Organization
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 21
DELIMITAÇÃO DA PESQUISA 27
COMO FICOU ESTRUTURADO O ESTUDO 32
1 ABORDAGEM METODOLÓGICA E MATERIAL DE
PESQUISA 35
1.1 INTERDISCIPLINARIDADE 35
1.2. SOBRE A HISTÓRIA 37
1.3 ANÁLISE DE DISCURSO 40
1.4 MATERIAL DE ANÁLISE 45
1.4.1 O livro-texto de farmacologia 45
1,4.2 Os autores 49
1.4.3 A editora 54
1.4.4 Como as diferentes edições do livro foram
abordadas partir da hipótese inicial de estudo 56
2 ANTIDEPRESSIVOS E DEPRESSÃO: UM LONGO
CAMINHO ATÉ A DOENÇA E O MEDICAMENTO 69
2.1 PRIMÓRDIOS DA BIOMEDICINA 70
2.2 O INÍCIO DA MEDICINA MODERNA 77
2.3 DA MELANCOLIA DOS ANTIGOS À DEPRESSÃO DO
SÉCULO XX PASSANDO PELO CONCEITO DE
“LIPEMANIA” DE ESQUIROL 82
2.4 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX:
O SURGIMENTO DO CONCEITO DE DEPRESSÃO
17
NA BIOMEDICINA 95
2.5 FINAL DO SÉCULO XIX – INÍCIO DO SÉCULO XX 106
2.5.1 Kraepelin, Freud e Mayer 106
2.6 RESUMO DO CAPÍTULO 112
3 A FARMACOLOGIA: O DESENVOLVIMENTO
DA CIÊNCIA DAS DROGAS QUE PERMIU O
“NASCIMENTO” DOS ANTIDEPRESSIVOS 114
3.1 UMA CIÊNCIA LIVRE DE VALORES? 114
3.2 CIÊNCIA E VALORES A PARTIR DE
LEWONTIN E LACEY 119
3.3 O NASCIMENTO DA FARMACOLOGIA E SUA
INTERAÇÃO COM A PRÁTICA BIOMÉDICA 125
4 A FARMACOLOGIA SEGUNDO O LIVRO-TEXTO
“GOODMAN E GILMAN” 132
4.1 A FARMACOLOGIA SEGUNDO O LIVRO-TEXTO
EM SUA PRIMEIRA EDIÇÃO DE 1941 132
4.2 A FARMACOLOGIA NAS OUTRAS EDIÇÕES DO
LIVRO-TEXTO 143
4.2.1 Segunda edição 143
4.2.2 Mudanças que refletem o aumento de
pesquisadores e conhecimentos gerados
a partir de 1965 151
4.2.2.1 O boom da indústria farmacêutica 154
4.2.2.2. Mudanças ocorridas nas edições
de 1970 e 1975 166
18
4.2.2.3 Uma nova geração assume a
farmacologia: o período
de 1980 a 1990 174
4.2.2.4 A farmacologia no final de século XX
e início do século XXI 181
5 ANTIDEPRESSIVOS 189
5.1 PANORAMA GERAL 189
5.2 USO AMPLIADO E ABUSIVO DE ATD 192
5.3 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: A DOR REDUZIDA AO
BIOLÓGICO – CONSIDERAÇÕES DE ILLICH A CONRAD 200
5.3.1 Medicalização 200
5.3.2 A dor reduzida ao biológico 213
6 ANTIDEPRESSIVOS NO LIVRO-TEXTO 218
6.1. DOS “DEPRESSORES” E “ESTIMULANTES” DO SNC
ÀS “DROGAS EM PSIQUIATRIA” 218
6.1.1 A época “pré-psicofarmacológica”
(as edições de 1941 e 1952) 218
6.1.2 A psicofarmacologia ganha espaço:
medicamentos para problemas psiquiátricos
no livro-texto 224
6.2. O LIVRO-TEXTO E OS MEDICAMENTOS PARA
DEPRESSÃO AO LONGO DE 40 ANOS NA
PRÁTICA BIOMÉDICA 236
6.2.1 Do período Pós-Guerra aos anos de 1990:
nascimento e crescimento da
19
psicofarmacologia (a 3ª edição) 240
6.2.1.1 Os IMAO: drogas para tratar sintomas
depressivos que abrem possibilidades de explicação
causal 242
6.2.1.2 Os tricíclicos – abrindo o mercado de
medicamentos para tratar sintomas depressivos e
contribuindo para a teoria bioaminérgica 248
6.2.1.3 Outros temas relacionados nos subitens
“Drogas para depressão” 253
6.2.2 O final do século XX e a 9ª edição (1996): os ISRS
deixam de ser antidepressivos “atípicos” 255
6.2.2.1 Apresentação do capítulo e dos
medicamentos “antidepressivos” 255
6.2.2.2 Os “usos terapêuticos” dos chamados
“antidepressivos” 261
6.2.2.3 Outros subtítulos do capítulo
no livro-texto 263
6.2.2.4 “Prospecto” do capítulo segundo
o livro-texto 267
6.2.3 O século XXI: a 10ª (2001) e a 11ª edições (2006) 271
CONSIDERAÇÕES FINAIS 279
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 288
ANEXOS 313
ANEXO A – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”,
1ª Edição (1941) 313
ANEXO B – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”,
20
3ª Edição (1965) 318
ANEXO C – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”,
7ª Edição (1985) 324
ANEXO D – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”,
9ª Edição (1996) 330
ANEXO E – Antidepressivos no livro-texto, 9ª Edição (1996) 338
21
INTRODUÇÃO
Quando se fala em medicamentos, em geral destaca-se sua atua-
ção sobre o corpo biológico, embora outras dimensões estejam em jogo
quando alguém os utiliza. Como médica, posso constatar na prática
profissional a importância desse recurso terapêutico no cenário de con-
sulta. Qualquer que seja a queixa do paciente, desde o resfriado comum
até situações de saúde mais complexas, os medicamentos ocupam parte
significativa do que o indivíduo busca ao entrar em um consultório.
Como potencial usuária, posso assinalar o fascínio que representa uma
pílula para resolver problemas, seja uma leve dor de cabeça tensional,
um quadro de pneumonia ou um procedimento cirúrgico.
O papel do medicamento e a forma como este se legitima e ganha
espaço na prática médica têm sido motivo de reflexão desde o início de
minha formação profissional. Afinal, os medicamentos são drogas, e
embora muitos sejam os benefícios alcançados com seu uso, não pode-
mos subestimar os danos que também causam. Nossa sociedade ociden-
tal tem levantado bandeiras contra o uso de drogas ilícitas e em relação a
algumas drogas lícitas, como o cigarro e o álcool, por seus efeitos dano-
sos à saúde, mas, por outro lado, parece “esquecero quanto os medi-
camentos, que são drogas lícitas, podem ser prejudiciais à saúde, mesmo
quando prescritos sob os critérios científicos de cada época.
Além da importância das ações farmacológicas, que produzem al-
terações na fisiologia das células do nosso organismo animal, o papel
simbólico desse recurso terapêutico e a sua importância econômica nas
últimas décadas fazem com que os medicamentos modernos ocupem
uma posição central na prática biomédica atual. A pesquisa que desen-
volvi durante o mestrado, abordando o tema dos fitoterápicos (medica-
mentos preparados com plantas medicinais), trouxe questões sobre as
relações entre ciência, técnica e mercado de medicamentos que instiga-
ram o desenvolvimento do trabalho de doutorado nessa área de estudo.
Na época do trabalho de mestrado (BITTENCOURT, 2001), es-
tava sendo retomado, no Brasil e no mundo, o uso dos fitoterápicos no
meio biomédico, ocorrendo também a regulamentação desse uso. A
questão era procurar entender por que esses medicamentos, antes utili-
zados pela medicina ocidental e pela população em geral, passaram a ser
desprezados pela biomedicina e, algumas décadas depois, voltaram a ser
indicados para problemas de saúde e comercializados por laboratórios
farmacêuticos. Um dos motivos dessa “revalorização” teria sido o uso
de substâncias com menor incidência de efeitos colaterais, incentivado
pela onda do retorno a uma “vida mais natural” e o incentivo às terapias
22
tradicionais
1
. Por outro lado, se causam menos efeitos colaterais, suas
ações, em geral, são também mais brandas e mais lentas, no sentido de
intervir no curso da enfermidade. Por esses motivos, o resultado tera-
pêutico tende a ser menos marcado, “aparece menos”.
Os fitoterápicos voltaram a ser prescritos nos consultórios médi-
cos, mesmo que tenha sido como uma terapêutica coadjuvante. Porém,
para que isso ocorresse, precisaram passar pelo mesmo protocolo cientí-
fico a que o medicamento sintético é submetido, inclusive a prova con-
tra placebo
2
. Essa prova envolve gastos importantes, e habitualmente,
1
No final da década de 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) iniciou uma série de
ações incentivando a retomada das medicinas tradicionais (OMS, 1978) como alternativa para
o cuidado da saúde das populações, principalmente em países subdesenvolvidos e em desen-
volvimento, aliada a uma avaliação científica dessas práticas. Essa iniciativa serviu de impulso
para estudos científicos das plantas medicinais e de outras práticas, como, por exemplo, a
acupuntura. Em paralelo a essa iniciativa, nessa época também começaram os estudos sobre a
influência de alguns efeitos colaterais de medicamentos e de outros produtos considerados
avanços tecnológicos, como os defensivos agrícolas (o DDT, por exemplo), constatando que
nem sempre as últimas novidades em termos de ciência e técnica são as melhores opções para
nosso corpo biológico.
2
Os estudos clínicos controlados (ou ensaios clínicos controlados) podem utilizar a prova
“contra placebo” (ou ensaio clínico randomizado duplo-cego contra placebo, que é o “padrão
ouro” na pesquisa clínica com medicamentos), em que o medicamento em teste é comparado
com um placebo (preparado sem efeito farmacológico). Pode ser também utilizado um medi-
camento mais antigo que já tenha tido seu efeito determinado para o problema em questão, mas
nesse caso o teste não se chama “contra placebo”, pois não está sendo utilizado um placebo, e
sim apenas um ensaio (ou estudo) clínico controlado. Nos estudos contra placebo, um grupo de
pessoas recebe o medicamento em teste e outro recebe o placebo (ou, no caso dos ensaios
clínicos controlados, o medicamento que já foi testado) para ver se o primeiro medicamento
tem algum efeito significativo sobre o problema a ser tratado. Ambos os estudos (tanto com
placebo como com uma droga já testada) podem ser “ensaios clínicos duplo-cego”, porque nem
médicos (pesquisadores), nem pacientes (sujeitos da pesquisa) sabem quem usa o medicamento
em teste ou o placebo (ou a droga já consagrada). Isso é feito para evitar o efeito placebo, ou
seja, aquele efeito terapêutico que acompanha qualquer procedimento que tem a intenção de
tratar o doente e que não está relacionado diretamente com a especificidade do tratamento, mas
sim com o fato de o paciente se sentir tratado.
Sobre os ensaios clínicos controlados, Nies (2001) refere que: “A aplicação do método cientí-
fico à terapêutica experimental é exemplificada por um bem desenhado e bem executado
ensaio clínico. [...] A condição sine qua non de qualquer ensaio clínico são os seus controles.
Diferentes tipos de controle podem ser usados, e o termo “ensaio clínico controlado” não é
sinônimo de “ensaio clínico controlado, randomizado, duplo cego contra placebo”. A seleção
de um grupo controle adequado é tão importante quanto a seleção do grupo experimental para
o ensaio clínico. Embora o estudo duplo cego controlado randomizado (aleatório) seja o dese-
nho mais efetivo para evitar os vieses e a distribuição de variáveis desconhecidas entre os
grupos “tratamento” e “controle”, não é necessariamente o desenho mais desejável possível
para todos os estudos. Pode ser impossível usar esse desenho para estudar desordens que
ocorrem raramente, desordens em pacientes que não podem (por regulação, ética ou ambos) ser
estudados (por exemplo, crianças, fetos ou alguns pacientes com doenças psiquiátricas) ou
desordens com maior possibilidade de resultado fatal (como a doença conecida como “raiva”,
ou hidrofobia), onde controles históricos podem ser usados.” (NIES, 2001, p. 47)
23
por seu alto custo, na etapa de provas contra placebo o produto em ques-
tão já está patenteado (PIGNARRE, 1999).
No caso dos fitoterápicos, é muito difícil a execução desse pro-
cesso, pois uma planta inteira não pode ser patenteada, e é a patente que
permite ao laboratório obter o monopólio sobre determinado medica-
mento durante certo tempo para que possam ser “recuperados” os inves-
timentos realizados durante o período de pesquisa. O processo de pes-
quisa, que inclui desde a pesquisa básica em animais até a etapa em que
o medicamento é testado em seres humanos, pode levar de sete a dez
anos, para que, então, o produto possa ser comercializado. Por esse mo-
tivo, entre outros, embora tenha obtido certa “revalorização” no meio
biomédico, esses medicamentos não chegam a ser uma parcela significa-
tiva da produção de grandes laboratórios.
É esse processo de validação pelo qual passa o medicamento mo-
derno, sendo testado em diferentes etapas laboratoriais, que incluem o
“laboratório” com seres humanos para excluir seu possível efeito place-
bo, que diferencia esse medicamento dos fitoterápicos de uso tradicional
e de outros medicamentos utilizados anteriormente pela biomedicina.
Pignarre (1999) lembra que o medicamento moderno, constituí-
do, entre outros aspectos, por uma molécula que pode levar a alterações
biológicas importantes, pretende um efeito terapêutico destituído de
duas características das técnicas terapêuticas pré-modernas: o empirismo
e o efeito placebo (PIGNARRE, 1999, p.13). Ao intervir de uma forma
agressiva no corpo biológico (o que em alguns momentos pode ser mui-
to útil e indicado), esse medicamento traz consigo a promessa da técnica
e da ciência modernas de, sob a ação humana manipulando a natureza,
poder intervir sobre a vida, prolongá-la, curar as dores, as doenças e,
quem sabe, segundo a pretensão de alguns, até evitar para sempre a
morte, fim certo dos seres biológicos.
Inicialmente, minha intenção era continuar com o tema dos fitote-
rápicos durante o doutorado, aprofundando questões não abordadas
durante o mestrado. Porém, outras questões a respeito dos medicamen-
tos modernos relativas à sua utilização em casos de “sofrimento psíqui-
co” surgiram a partir de minha participação em dois grupos de pesquisa.
Um deles trabalha, a partir de uma abordagem crítica, o tema do
“determinismo biológico” e a questão da medicalização da vida
3
; o ou-
3
Núcleo de Estudos em Filosofia e Historia das Ciências da Saúde, coordenado pela professora
Sandra Caponi na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para mais detalhes ver:
<http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0043705JAJDYFA> . Acesso
em 30 abril 2010.
24
tro, estuda questões de gênero e saúde mental
4
. No primeiro grupo de
pesquisa, o tema está centrado na discussão de que algumas característi-
cas desejáveis, como o altruísmo, ou condutas indesejáveis, como a
tristeza, a agressividade e até mesmo a criminalidade, estão sendo vincu-
ladas à biologia do indivíduo, acreditando-se que podem ser transforma-
das com o uso de drogas ou técnicas que intervêm sobre o corpo bioló-
gico. Essa é uma posição defendida por alguns cientistas ligados a di-
versas áreas, como neurociências, genética, biologia e até cientistas
sociais. A abordagem da sociobiologia
5
, que considera os fenômenos
humanos determinados por uma “programação” biológica inata e que
não sofre influência do seu contexto sociocultural, poderia justificar, por
exemplo, o uso de uma molécula neutra” (em termos socioculturais),
agindo objetivamente sobre uma cadeia de receptores biológicos. Dessa
forma, com o medicamento haveria uma mudança no humor, que anteri-
ormente, por uma determinação biológica, estaria “funcionando de uma
forma errada”, biologicamente falando.
No segundo grupo de pesquisa, o foco tem sido a abordagem do
sofrimento psíquico, levando em conta o contexto em que este se apre-
senta para quem se transforma em “doente mental”. Em ambos os gru-
pos, analisamos como vêm acontecendo a “biologizaçãoe a medicali-
zação do sofrimento, tornando biológicas e médicas questões que antes
pertenciam a outras esferas da vida: a família, o grupo social a que se
pertence, o meio em que se vive e que acaba por determinar a forma
como são legitimadas as dores que sentimos, quer sejam elas físicas ou
não.
Se atualmente falamos em medicamentos que agem em nível
farmacológico, em poucos anos talvez estejamos falando em “modifica-
ção de genes”, pois o discurso da busca do gene defeituoso para prevenir
e tratar problemas de saúde promete superar as limitações dos trata-
mentos farmacológicos atuais. Embora até o final do século XX, segun-
do Pignarre (1999, p.76), essa abordagem não parecesse estar obtendo
êxito maior do que a das drogas então disponíveis, Rabinow (1999)
apontava para os riscos que a farmacoterapia gênica pode significar, por
4
Núcleo de Antropologia do Contemporâneo (TRANSES). Para mais detalhes ver:
<http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0043703HLPE7V7> . Acesso
em 30 abril 2010.
5
Sahlins (1976) destaca duas vertentes da sociobiologia que estão inter-relacionadas: a socio-
biologia vulgar e a científica. A primeira afirma que as explicações para o comportamento
social do ser humano estão em determinações biológicas construídas pela natureza na evolução
biológica. A segunda, que não está dissociada da anterior, centra suas explicações na maximi-
zação do genótipo individual e na perpetuação do “gene egoísta”, tomada como a lógica da
seleção natural (SAHLINS, 1976).
25
sua íntima relação com projetos eugênicos. Atuando nos genes, poder-
se-á agir “diretamente” nas causas das doenças, quer seja no tratamento
ou na prevenção de determinadas situações de saúde, identificadas a
partir da “nova genética”. Essas intervenções, tornando pessoas “mais
aptas” à vida em sociedade (e o critério de aptidão deve surgir a partir de
médias e padrões do que se considera “normal”) são mais perigosas que
os projetos eugênicos anteriores, pois estão vinculadas aos “discursos
sérios da biologia” (RABINOW, 1999, p.143-145).
Ainda que existam fortes críticas a esse olhar determinista entre
os próprios cientistas que trabalham na área das ciências biológicas e
biomédicas, como a que é feita por Lewontin (1991; 2003), parece ser
essa a visão hegemônica no meio técnico-científico, que acaba por se
disseminar no senso comum em função do grande poder que a ciência
exerce em relação ao estabelecimento de “verdades”. Na área médica, o
uso de medicamentos que buscam “normalizar” o funcionamento bioló-
gico modificando comportamentos indesejáveis pode ser uma forma de
padronizar a forma de vida das pessoas. Hoje a intervenção médica está
mais relacionada a questões farmacológicas, com drogas que interferem
diretamente no metabolismo, do que à ação sobre os genes, mas com os
avanços da farmacogenética, a atuação nessa esfera não está descartada.
Outro fato que motivou esta pesquisa, e que está, de certo modo,
relacionado ao anterior, foi perceber, como médica em atendimento
ambulatorial e no dia-a-dia em contato com as pessoas, o uso amplo dos
medicamentos antidepressivos para diferentes situações da vida. É quase
impossível encontrar um paciente jovem, adulto ou idoso que não esteja
tomando ou que não tenha tido uma prescrição anterior de uma droga
dessa classe. Os motivos o os mais diversos, desde o diagnóstico de
um quadro de depressão até situações em que se pretende diminuir a
ansiedade, como no período pré-vestibular ou para perder peso. O uso
abusivo de antidepressivos estaria ocorrendo para tratar situações em
que se supõe que a causa dos sintomas apresentados é uma alteração de
neurotransmissão, sem levar em conta, de forma relevante, outros fato-
res (sociais, ambientais), o que pode ser considerado uma forma de re-
ducionismo biológico.
Acredito que não temos noção do contingente de pessoas que está
utilizando essa classe de medicamentos. Se os dados epidemiológicos de
saúde são obtidos através de indicadores de doenças, talvez tenhamos os
números referentes aos diagnósticos de depressão, mas o uso de antide-
pressivos está muito além desse diagnóstico, o qual, por si só, pode
ser questionável. Além do uso para situações em que algum tipo de
sofrimento psíquico (também denominado
mental), os antidepressivos
26
são utilizados para outras situações, como, por exemplo, dores crônicas,
no tratamento de “pacientes poliqueixosos”, dores físicas em que não se
encontram causas orgânicas que as justifiquem. Se os antidepressivos
mais antigos eram utilizados nos casos de dores crônicas, e não ape-
nas para o tratamento da depressão, com o surgimento das novas classes
desses medicamentos na década de 1980, cada vez mais se tem ampliado
as indicações de uso dessas drogas.
Para além da prescrição médica, podemos pensar ainda que exis-
ta um “uso popular” dos medicamentos em geral, inclusive dos psicoati-
vos. É de conhecimento dos profissionais de saúde o uso dos medica-
mentos “por conta própria” e o “comércio” realizado dentro da própria
família, entre vizinhos ou amigos
6
. Há estratégias para a obtenção dessas
drogas. Por exemplo: alguém que utiliza determinado medicamento por
ser portador de um diagnóstico vai a vários consultórios e obtém mais
receitas do que seria necessário por determinado período, com as quais
consegue o medicamento para outras pessoas. Poderíamos pensar que
essa é uma distorção do uso preconizado pelos critérios médico-
científicos, mas, por outro lado, o seria esse um efeito induzido pela
própria indústria de medicamentos?
Embora não pretenda deter-me nesse problema, o do uso indevi-
do, sem prescrição médica, esse pode ser outro sintoma da ampla divul-
gação dos benefícios dos medicamentos em diversas situações, na busca
da “melhora da qualidade de vida”. Os usuários se apropriam das men-
sagens utilizadas pelo marketing direcionado aos leigos e do discurso
dos profissionais de saúde, mesmo quando não se consideram “doentes”,
como bem aborda Azize (2002) em seu estudo sobre o uso de medica-
mentos relacionados à “qualidade de vida”. Segundo esse autor, ao a-
bordar o uso do Prozac®, “tanto médicos quanto usuários fazem uso de
um argumento que poderia ser resumido como ‘se a pílula existe, por
que não usar?’” (AZIZE, 2002, p.85).
Sobre esse aspecto do amplo uso dos novos antidepressivos,
Turnquist (2002) lembra que “É difícil imaginar um único problema
humano que os psiquiatras americanos não tenham relatado ter sido
tratado com sucesso com os Inibidores Seletivos de Recaptação da Sero-
tonina (ISRS)” (TURNQUIST, 2002, p.28). Esses medicamentos, lan-
çados a partir da década de 1980 com o Prozac®, constituem a classe
que ampliou o uso de medicamentos antidepressivos nas últimas déca-
6
Sobre essa questão do “comércio” de medicamentos psicoativos, ver, por exemplo, o trabalho
de Silveira (2000).
27
das, tornando-os talvez tão populares quanto a Aspirina®. Se Aspirina
7
é sinônimo de algo que alivia a dor, Prozac® tornou-se sinônimo de
antidepressivo e de algo que traz confiança
8
.
A partir dessas considerações gerais sobre minha trajetória em re-
lação a questionamentos sobre o papel dos medicamentos na prática
biomédica e, de forma específica, sobre aqueles hoje denominados anti-
depressivos, que têm ganhado papel importante nessa mesma prática, foi
pensado este trabalho de pesquisa.
DELIMITAÇÃO DA PESQUISA
Poderíamos enumerar vários aspectos que contribuem para a am-
pliação do uso dos antidepressivos: a participação da mídia, divulgando
as vantagens dessas drogas; o olhar daqueles que as utilizam; a propa-
ganda feita pela indústria farmacêutica; o movimento de especialistas na
área de psiquiatria, ampliando diagnósticos e definindo novas doenças
através das diversas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Doenças Mentais (DSM)
9
. Porém, em função de minha vivência como
7
Vale lembrar que a Aspirina® é, provavelmente, o medicamento mais popular de todas as
épocas. Sobre esse medicamento e o uso de seu nome como sinônimo de algo que provoca o
alívio da dor, ver página 128 deste trabalho.
8
Sobre o uso de Prozac® como sinônimo de antidepressivo e “estado de ânimo”, Azize (2002)
faz a as seguintes considerações em seu trabalho: “A seleção brasileira de futebol, durante o
ano de 2001, mas não somente, vinha tendo uma seqüência de maus resultados [...]. No dia 9
de agosto daquele ano, o time venceu a seleção do Panamá por um placar considerado elástico
para a modalidade: 5 x 0. No dia seguinte, o caderno de esportes do jornal Folha de São Paulo,
que, como se sabe, está entre os mais importantes do país, trazia como manchete principal a
frase “Meia hora de Prozac-tenso, Brasil leva uma hora para abrir o placar e marca cinco
gols em 30 minutos”. Segundo a reportagem, a seleção teria sido dominada, apesar do resulta-
do, por muito “estresse e afobação”; segundo o técnico, com o resultado a “confiança” teria
voltado ao time. É mais do que óbvio que a equipe como um todo não havia sido tratada com a
pílula que aparece na manchete ou com qualquer outro antidepressivo. Mas o uso do nome da
pílula, em um espaço que sequer está dedicado ao tema saúde ou algum congênere mostra duas
coisas: em primeiro lugar, que a depressão, doença que o remédio se propõe a tratar, já é uma
categoria apropriada por um público leigo, senão a manchete sequer seria entendida; em se-
gundo lugar, que a pílula Prozac ocupa um lugar especial em termos de reconhecimento públi-
co, não apenas entre os profissionais da biomedicina, do contrário nome estaria ocupando
aquele espaço. ‘Prozac’, então, vira sinônimo de antidepressivo, num fenômeno equivalente ao
já ocorrido com outros produtos no Brasil, como nos casos em que nós tiramos um ‘Xerox’ em
vez de uma fotocópia, compramos ‘Bombril’ em vez de palha de aço, mesmo que ela seja de
outra marca, além de fazermos a barba com uma ‘Gillette’, em vez de usarmos uma simples
lâmina de barbear.” (p.18-19)
9
O DSM é um manual que classifica as doenças chamadas mentais, publicado pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA). Sua primeira edição (DSM-I) foi publicada em 1952 , influ-
enciada em grande parte pelas ideias de Adolf Meyer (ver página 109 deste estudo) (Disponível
em:
28
profissional médica, a proposta foi abordar a apresentação dos medica-
mentos denominados antidepressivos aos profissionais da área médica,
desde o início da formação destes nas escolas de medicina, a partir da
perspectiva do conhecimento científico, que a biomedicina privilegia
as ações baseadas nesse saber.
Pensando na divulgação do conhecimento relacionado aos anti-
depressivos durante a formação e a prática médicas, busquei o material
que poderia subsidiar o presente estudo. Por se tratar do tema “medica-
mento”, a escolha foi abordar o campo de conhecimento que está dire-
tamente relacionado a ele: a farmacologia, que é a ciência que estuda o
efeito das substâncias (endógenas ou exógenas) no organismo animal.
Se atualmente as informações técnico-científicas sobre terapêutica far-
macológica são encontradas em congressos médicos, artigos científicos
(em revistas impressas ou na internet), visitas de representantes de labo-
ratório e livros-texto de farmacologia e terapêutica, entre outras fontes,
até algumas décadas atrás, a principal referência baseada no conheci-
mento científico disponível era o livro-texto. O livro foi a principal fon-
te tanto para estudantes de medicina como para os médicos inseridos no
mercado de trabalho, além de referência para pesquisadores e professo-
res, embora estes últimos também utilizassem as revistas científicas.
Leite (2004) lembra que o livro didático é um dos recursos utilizados
para atualização científica dos profissionais formados, como os pro-
fessores que planejam suas aulas a partir desse instrumento, além de
participarem diretamente na formação dos estudantes que os utilizam.
A opção de desenvolver esta pesquisa a partir de um livro de far-
macologia, e não de terapêutica clínica, foi feita em função do tema: o
medicamento moderno é desenvolvido e estudado pela farmacologia. Se
nos livros que abordam as doenças a partir da nosologia biomédica, a
terapêutica medicamentosa das doenças (patologias, situações clínicas)
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/History_1/PostWarClassifications.aspx>.
Acesso em: 30 abril 2010). Sua segunda edição (DSM-II) foi publicada em 1968 (Disponível
em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Diagnostic_and_Statistical_Manual_of_Mental_Disorders>.
Acesso em: 30 abril 2010). A terceira edição (DSM-III) ocorreu em 1980, com o início dos
trabalhos em 1974 (Disponível em:
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/History_1/DevelopmentofDSMIII.aspx>
Acesso em: 30 abril 2010). Há ainda uma nova versão revisada com alterações publicada em
1987 (DSM-III-R). A quarta edição (DSM-IV) é de 1994 (Disponível em:
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/History_1/DSMIIIRandDSMIV.aspx>.
Acesso em: 30 abril 2010), com uma versão revisada no ano 2000 (DSM-IV-TR), até que a 5ª
edição seja lançada em 2012, conforme previsão da APA, que já tem em seu site o plano de
desenvolvimento desta última (Disponível em:
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/DSMIVTR.aspx> . Acesso em: 30 abril
2010).
29
inclui a abordagem dos medicamentos, no livro-texto de farmacologia o
foco é o medicamento, objeto do presente estudo. Os livros de farmaco-
logia são também de terapêutica (como pode ser atestado por seu título),
mas a abordagem ocorre a partir das drogas, enquanto nos livros que se
dedicam à clínica das doenças, o ponto de partida é a condição clínica.
Como a proposta desde o início foi fazer uma abordagem históri-
ca, ou seja, analisar a farmacologia e os antidepressivos a partir da época
em que esses últimos surgem no meio biomédico, optei por utilizar o
livro-texto de farmacologia Goodman e Gilman: As bases farmacoló-
gicas da terapêutica (Goodman e Gilman: The pharmacological basis
of theraputics), que é editado desde 1941, um pouco antes do surgimen-
to dos antidepressivos. A abordagem histórica foi pensada para tentar
apreender o desenvolvimento dos antidepressivos em diferentes momen-
tos ao longo dos anos. Justifico essa abordagem com as palavras de
Michel de Certau:
o passado é, primeiro, o meio de representar uma
diferença. A operação histórica consiste em recor-
tar o dado segundo um lugar presente que se dis-
tingue de seu outro (passado), em tomar distância
com relação a uma situação adquirida e em marcar
assim por um discurso a mudança efetiva que
permitiu esse distanciamento. Ela tem um efeito
duplo: de um lado historiciza o atual [...], presenti-
fica uma situação vivida. Ela obriga a explicitar a
relação da razão reinante a um lugar próprio que,
por oposição a um passado, torna-se presente. (DE
CERTAU, 1974, p.33 apud REIS, 1999, p.91)
Goodman e Gilman tem sido utilizado no ensino para a forma-
ção dos profissionais médicos e como auxílio à prática médica desde sua
primeira edição, em 1941, até a última, em 2006
10
(são, ao todo, onze
edições). No prefácio da (p.v) e 11ª edições (p.xxi) (GOODMAN;
GILMAN, 1970; BRUNTON, 2006) referência ao livro como a “bí-
blia azul da farmacologia”
11
, designação atribuída à obra logo após o
lançamento da edição e que traduz sua autoridade e importância na
área. É possível encontrar a expressão “bíblia da farmacologia” ou “bí-
blia azul da farmacologia” em vários sites da internet que fazem refe-
10
Até 2009 não havia outra edição mais atual. Optei por manter a de 2006 como a última a ser
analisada, mesmo que pudesse haver a ocorrência do lançamento de outra edição até a entrega
deste trabalho.
11
“Bíblia azul” por sua capa azul marinho.
30
rência a esse livro
12
, e até mesmo em resenhas de revistas médicas que
se referem à obra (BURGER, 1971; HASTINGS e LONG, 1991; 1996;
McGRAW HILL COMPANIES, [200?]).
Esse é um livro-texto de abrangência internacional, desde sua
edição. Encontrei exemplares em espanhol da edição à venda na in-
ternet (GOODMAN; GILMAN, 1945), e da edição em espanhol na
referência de um documento da Organização Panamericana de Saú-
de/Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS, 1968, p. 106) sobre o
ensino de farmacologia recomendando essa obra. Também Burger
(1971) ao escrever uma resenha da sua edição (1970) refere-se à “bí-
blia azul” como uma obra que “até mesmo o Congresso dos Estados
Unidos utiliza rotineiramente como base em seus julgamentos a respeito
de tudo o que se refere às drogas” (p. 177-178).
Em sua edição, em 1996, o livro foi publicado em nove lín-
guas: inglês, francês, alemão, grego, indonésio, italiano, japonês, portu-
guês e espanhol (ALTMAN, 2000); na 10ª (2001), foi publicado em
grego, indonésio, italiano, japonês, português, russo e espanhol, e na
11ª, em albanês, italiano, japonês, macedônio, polonês, português, espa-
nhol e turco
13
. Não é um livro de referência importante, como a ele é
atribuído o nascimento da farmacologia como disciplina, tal como ela é
considerada nos dias atuais, como um dos grandes alicerces da biomedi-
cina. Plenk (1994) afirma que foram impressas mais de meio milhão de
cópias do livro de Goodman e Gilman, utilizado no mundo todo desde a
1ª edição e editado em dezesseis línguas.
Fuchs e Wannmacher, autores brasileiros de um livro de farmaco-
logia clínica que está na edição, de 2004, ao referirem-se ao método
farmacológico utilizado hoje (com os estudos clínicos controlados),
citam a obra de Goodman e Gilman como um marco importante:
O subsídio científico da medicação tornou-se va-
lorizado em uma das primeiras obras da farmaco-
logia científica – The Pharmacological basis of
therapeutics, de Goodman e Gilman, publicado
em 1941, hoje, em nona edição. Comparando-a
12
Ver, por exemplo, site da The National academies press , Biographical Memoirs, disponível
em: <http://www.nap.edu/readingroom.php?book=biomems&page=agilman.html>. Acesso
em :12 março .2010; site Mc Graw Hill, disponível em: <http://books.mcgraw-
hill.com/medical/goodmanandgilman/reviews.php>. Acesso em: 12 março 2010.
13
Os dados sobre a publicação em diferentes línguas das três últimas edições, além da referên-
cia já citada de ALTMANN para a 9ª edição, obtive escrevendo para a editora McGraw-Hill,
que, segundo a pessoa que respondeu ao e-mail (Mary_Murray@mcgraw-hill.com), adquiriu
os direitos sobre essa obra a partir dos anos de 1990. Por essa razão, ela não sabia informar em
que línguas a obra foi editada antes da 9ª edição.
31
com livros anteriores, identifica-se a grande mu-
dança que ocorreu na área dos tratamentos medi-
camentosos a partir do desenvolvimento do méto-
do farmacológico. (FUCHS; WANNMACHER,
p.5, 2004)
A relevância desse manual também está no fato de que hoje ele é
utilizado na formação de diversos outros profissionais da área de saúde,
tais como enfermeiros, farmacêuticos, médicos veterinários. A análise
das sucessivas edições a partir de um instrumental teórico-metodológico
adequado (como veremos a seguir, foi utilizada a análise de discurso
AD) poderia permitir a observação de importantes transformações do
pensamento biomédico num período de mais de cinco décadas.
Assim, o objetivo geral do presente estudo é conhecer o modo
como a farmacologia e os medicamentos antidepressivos foram apresen-
tados a médicos e estudantes de medicina na segunda metade do século
XX a partir da divulgação do conhecimento científico por meio das
diferentes edições do principal livro-texto de farmacologia (Goodman e
Gilman: As bases farmacológicas da terapêutica) utilizado no século
XX e XXI em diferentes países.
De forma mais detalhada, este trabalho tem como objetivos espe-
cíficos:
a) Fazer uma abordagem histórica da di-
vulgação científica sobre o desenvolvimento da far-
macologia e do uso dos antidepressivos no referido
livro-texto;
b) Fazer uma abordagem histórica do
conceito de depressão, essa situação médica que deu
origem ao desenvolvimento das drogas denominadas
antidepressivos;
c) Identificar estratégias argumentativas
utilizadas nas diferentes edições do livro-texto para
justificar o desenvolvimento e uso dessas drogas na
prática médica;
d) Analisar se quando o texto se refere às
condições clínicas relacionadas à dor e ao sofrimento
em que se utilizam os medicamentos antidepressivos,
um enfoque tendente ao reducionismo biológico
nas diferentes edições do manual;
e) Contextualizar nas diferentes edições
do livro-texto como o conhecimento farmacológico
32
se articula com a indústria farmacêutica nos vários
momentos históricos.
COMO FICOU ESTRUTURADO O ESTUDO
Este estudo será apresentado em seis capítulos. No primeiro, faço
a abordagem metodológica, com considerações sobre a interdisciplinari-
dade, que este é um estudo que se insere num programa de pós-
graduação interdisciplinar, sobre a abordagem histórica, que forma a
base de análise dos documentos pesquisados, e sobre a análise de dis-
curso, que forneceu subsídios para que o material fosse trabalhado, a
partir de Orlandi (1999; 2005) e Van Dijk (1992; 1999; 2005). Em se-
guida, apresento o material em que pesquisei, ou seja, as diferentes edi-
ções do livro-texto de farmacologia Goodman e Gilman e a forma co-
mo cada edição foi analisada.
No segundo capítulo é feita uma revisão teórica sobre a depressão
e os quadros relacionados a essa categoria clínica. Inicio com a aborda-
gem dos quadros de melancolia nos primórdios da biomedicina, de for-
ma menos aprofundada, a título de contextualização. A seguir são anali-
sados textos médicos do período em que nasce” a medicina moderna:
da segunda metade do século XVIII ao fim do século XIX. São textos de
médicos como Pinel, Esquirol e Dagonet, que incluem categorias diag-
nósticas como a melancolia, lipemania e depressão (esta última no final
do século XIX). Para terminar o capítulo, uma breve passagem pelo
início do século XX, que em relação a esse tema é uma “continuação”
da última década do século XIX, quando surgem os trabalhos de autores
como Kraepelin e Freud, os quais influenciam as classificações clínicas
na biomedicina durante todo o século XX. O objetivo desse capítulo não
é uma revisão completa de todos esses períodos, o que poderia gerar
outro trabalho de pesquisa, mas apresentar a questão dos diagnósticos
clínicos relacionados aos chamados sintomas mentais como um campo
de incertezas e mudanças constantes, sujeito aos valores de determinada
época e subordinado aos olhares subjetivos daqueles que fazem as clas-
sificações.
O terceiro capítulo é dedicado a uma revisão teórica do que trata
a farmacologia, essa ciência que seus primeiros passos quando se
isolam substâncias a partir de medicamentos naturais, no fim do século
XVIII e início do século XIX. Ocorre um impulso maior no final do
século XIX, quando a química passa a sintetizar compostos e a fisiolo-
gia ganha espaço na formação médica como campo de conhecimento.
Além disso, nesse capítulo é feita a abordagem das relações entre a far-
33
macologia e a prática e formação biomédicas, que ao final do século
XIX iniciam um processo de profissionalização e “cientifização”, e da
relação entre valores e atividade científica a partir de Lacey (1998;
2005). Nesse capítulo também são feitas considerações baseadas em
Lewontin, (LEWONTIN, 1993 [1991]; LEWONTIN; ROSE; KAMIN,
2003[1994]) e Canguilhem (2006 [1966]).
No quarto capítulo, a farmacologia é tratada a partir do livro-
texto Goodman e Gilman, desde sua primeira edição até a última em
2006. Os temas apresentados são: o “nascimento” da farmacologia mo-
derna, que, segundo algumas referências, teria acontecido com a edição
desse livro; as mudanças ocorridas no período após a Segunda Guerra,
quando a indústria de uma forma geral e, particularmente, a indústria de
medicamentos abarrotam o mercado com novos produtos (uma questão
que, segundo os autores do livro, tem reflexos na prática médica); o
período dos anos de 1960 e 1970, em que o desenvolvimento tecnológi-
co fornece recursos para que a farmacologia seja estudada de forma
ampliada, aumentando o número de pesquisadores e de áreas específicas
dentro dessa ciência, que agora é capaz de identificar substâncias endó-
genas e seus locais de atuação, propondo a criação de novos medica-
mentos e inferindo hipóteses fisiopatológicas; e, por fim, as décadas de
1980, 1990 e o início do século XXI, em que mais e mais medicamentos
são lançados a partir do processo iniciado na década de1960, com a
perda gradativa, no livro-texto, da contextualização dos fatores históri-
cos, sociais e econômicos no desenvolvimento das drogas, deixando
espaço para que produto final, lançado no mercado, se torne o ator prin-
cipal do processo terapêutico.
O quinto capítulo analisa as drogas utilizadas para tratar os cha-
mados problemas mentais, ou psiquiátricos, com destaque para aquelas
inicialmente usadas no tratamento da depressão que, algum tempo de-
pois de sua introdução na prática médica, receberam o nome de “antide-
pressivos”. Após uma apresentação desses medicamentos, é feita uma
revisão teórica, com ênfase no uso atual e abusivo das chamadas drogas
antidepressivas a partir de autores contemporâneos. A seguir, o tema é a
possível medicalização de aspectos da vida inerentes à condição huma-
na, reduzindo o sofrimento e a dor, no seu sentido mais amplo, a ques-
tões biológicas, que podem então ser tratadas com medicamentos. Para
essas últimas considerações, os trabalhos de Illich (1977 [1975]) e Con-
rad (1985; 2007) subsidiaram a reflexão, com contribuições de Angell
(2007) e Pignarre (1999; 2001).
No sexto capítulo são analisados, a partir do livro-texto, os psi-
cofármacos, medicamentos utilizados para os chamados distúrbios men-
34
tais ou psiquiátricos (este último termo introduzido com mais ênfase a
partir da edição, em 1965). Como nas duas primeiras edições não
havia um capítulo específico para essas drogas, é feita a abordagem
dessa “era pré-psicofarmacológica”, e, em seguida, dos capítulos que
tratam dos psicofármacos de uma forma geral, da 3ª até a 11ª edição. Na
sequência o analisados os medicamentos para depressão, que a partir
da edição
14
são chamados de “antidepressivos”, trazendo questões
como: a dificuldade de especificar as situações em que essas drogas são
utilizadas, pelas incertezas do diagnóstico clínico; as tentativas de esta-
belecer uma relação causal entre diferentes substâncias endógenas e
sintomas clínicos, que não são comprovadas até a última edição do li-
vro-texto; a expansão do uso dessas drogas, no início para tratar sinto-
mas depressivos (no sentido de pouca ou baixa atividade corporal), até
um uso amplo e difuso, mesmo em situações que não são relacionadas
aos sintomas que inicialmente deram nome a essas drogas; o desenvol-
vimento desses medicamentos e sua relação com a indústria farmacêuti-
ca.
14
Na 5ª edição (1975) aparece o termo “antidepressivos tricíclicos” como subitem do subtítulo
“drogas usadas no tratamento das desordens do humor”. No entanto, na 5ª edição o termo
“antidepressivo” não consta no índice alfabético remissivo. Na 7ª edição (1985), esse termo
aparece no índice alfabético remissivo. Não foi possível observar se esse termo aparece no
índice alfabético remissivo da 6ª edição (1980), porque estava disponível na biblioteca apenas
o primeiro volume da edição brasileira de 1983 (algumas edições em português foram editadas
em dois tomos, e a 6ª edição é uma dessas), que não continha o índice alfabético.
35
1 ABORDAGEM METODOLÓGICA E MATERIAIS DE PES-
QUISA
1.1 INTERDISCIPLINARIDADE
Inicio esta seção tecendo considerações sobre o contexto deste es-
tudo, incluindo o programa de pós-graduação do qual faço parte e algu-
mas questões teóricas relacionadas à concepção deste trabalho, tais co-
mo o enfoque historiográfico e a abordagem da análise de discurso.
Esta tese faz parte da área de concentração “Condição Humana na
Modernidade”, na linha de pesquisa “Evolução das Ciências da Vida e
da Saúde (ECVS)” do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas
do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (UFSC). Em artigo que avalia as teses defendidas nesse Programa,
com foco na questão da interdisciplinaridade, Hamilton, Poli e Blanca
(2009) afirmam que
para dar conta dessas reinterpretações e análises
complexas dos objetos de estudo, os autores usam
aportes teóricos de diversas disciplinas. É essa
pluralidade que empresta de forma mais clara a
característica interdisciplinar aos estudos. (HA-
MILTON; POLI; BLANCA, 2009, p.59)
Ainda sobre a interdisciplinaridade, os autores concluem:
a pesquisa interdisciplinar em Ciências Humanas
caracteriza-se pela sua diversidade na construção
metodológica. A operacionalização das categorias
utilizadas tem como resultado a formulação de
questionamentos que dificilmente podem chegar a
ser representativos de uma área de conhecimento
específica. [Um] outro campo de estudos é gerado
a partir da metodologia interdisciplinar [...]. (p.65)
Apesar dessa definição geral aparentemente coerente, a proposta
de fazer uma pesquisa interdisciplinar não é tarefa fácil. Isso é um con-
senso entre os autores que trabalham o tema, pois são várias as formas
como a abordagem interdisciplinar pode ser desenvolvida (GATTÁS e
FUREGATO 2006; LEIS, 2005; POMBO, 2004; KLEIN,1990). Sob
essa denominação são incluídos trabalhos delineados de diferentes for-
mas e enfocando perspectivas diversas. Pombo (2004) lembra que a
palavra interdisciplinaridade
cobre um conjunto muito heterogêneo de experi-
ências, realidades, hipóteses, projetos, e, talvez,
36
dever-se-ia pensar em abandoná-la ou encontrar
outra que estivesse em condições de significar,
com precisão, as diversas determinações que, pela
palavra interdisciplinaridade, se deixam pensar.
(POMBO, 2004, p. 3)
No entanto, mesmo que se considere essa denominação ampla e
suscetível a vários significados, essa mesma autora destaca que
a resistência a todas as ambiguidades e a todos os
diferentes contextos em que é utilizada, obriga-
nos a reconhecer que ela [a palavra interdiscipli-
naridade] deve ter alguma pregnância, que o que
por ela se procura pensar é algo que porventura
merece ser pensado. (POMBO, 2004, p.3)
Mesmo que nos remeta a “certa incerteza”, ainda assim:
verificamos que a interdisciplinaridade é um con-
ceito que invocamos sempre que nos confronta-
mos com os limites do nosso território de conhe-
cimento, [...] sempre que nos defrontamos com
um daqueles problemas imensos cujo princípio de
solução sabemos exigir o concurso de múltiplas e
diferentes perspectivas. (POMBO, 2004, p.6-7)
No caso dos medicamentos antidepressivos, o apelo à abordagem
interdisciplinar estaria relacionado ao fato de que esse é um tema que
poderíamos chamar de “imenso”, no sentido da grande abrangência do
uso de medicamentos de uma forma geral e dos antidepressivos mais
especificamente. Isso porque estão incluídos em seu desenvolvimento,
validação e uso, enquanto recursos terapêuticos e mercadorias, conhe-
cimentos e práticas relacionados às áreas da saúde, das ciências sociais e
da economia, além de estarem sujeitos à influência de fatores políticos e
culturais no percurso que vai do laboratório à casa daquele que é medi-
cado. Por essas razões, trata-se de tema complexo, outro fator que justi-
fica a abordagem interdisciplinar (CUPANI, [2000?]; KLEIN, 1990).
Cupani destaca que:
quanto aos motivos ou razões para que haja inter-
disciplinaridade, é possível imaginar os seguintes:
complexidade das questões ou fenômenos; co-
munidade de uma questão a mais de uma disci-
plina; [...]. Em todo caso, parece-me que a inter-
disciplinaridade não pode surgir como um propó-
sito (“temos que trabalhar com interdisciplinari-
dade”), mas como uma necessidade sentida.
(CUPANI, [2000?];
grifos do original)
37
Segundo Pombo, se na pluridisciplinaridade são postos em para-
lelismo diversos pontos de vista das diferentes disciplinas, na interdisci-
plinaridade há a proposta de avançar “no sentido de uma combinação, de
uma convergência, de uma complementaridade dos diferentes pontos de
vista das disciplinas” (POMBO, 2004, p.6), embora a autora reafirme
não ser esse um consenso entre aqueles que lidam com o tema. Essa
seria uma condição diferente da transdisciplinaridade, em que haveria
uma fusão dos olhares, sem diferenciar o que cada disciplina oferece de
contribuição (POMBO, 2004, p.6). Klein (1990, p.27) também reafirma
a manutenção da identidade de cada disciplina quando se fala em inter-
disciplinaridade, e não a ocorrência de uma “fusão” em que não se per-
ceba os limites de cada uma.
Assim, a escolha de uma abordagem interdisciplinar aconteceu
em função do tema “medicamentos” ser amplo, complexo, comum a
várias disciplinas e, por esses motivos, sujeito a estudo sob a perspectiva
de diversas áreas do conhecimento, preservando as especificidades des-
tas. Parafraseando Cupani ([2000?]), a busca de uma abordagem inter-
disciplinar foi uma “necessidade sentida” ao pretender abordar os medi-
camentos antidepressivos.
1.2 SOBRE A HISTÓRIA
O ponto de partida, ou a disciplina da qual parte a análise deste
estudo sobre medicamentos antidepressivos, é a abordagem histórica.
Como disciplina, a história
analisa os fenômenos mais diversos em função da
sua capacidade de mudar com o tempo [...] Ao ser
atribuído um lugar específico a estes fenômenos
no tempo, em meio à sucessão dos acontecimen-
tos, tais fenômenos são considerados como úni-
cos, na medida em que estão na origem de novos
acontecimentos que contribuem por si mesmos pa-
ra dar à história um curso particular. (MOMM-
SEN, 1982, p. 236).
A partir dessa perspectiva, é possível selecionar fatos considera-
dos importantes para o historiador que se desenvolvem em um espaço e
em um tempo e que formam a história. Essa abordagem permite que os
acontecimentos sejam reunidos de um modo significativo, explicando,
ainda que indiretamente, a realidade atual (MOMMSEN, 1982, p. 236-
237). Por outro lado, ao estudar temas da sociedade moderna, a contri-
buição de teorias econômicas, sociológicas e de disciplinas como a an-
38
tropologia para os estudos de historiografia pode ser útil “na reconstitui-
ção de complexos sistemas sociais de interação, ou processos profundos
e lentos de mudanças sociais e econômicas” (p.240).
Burke (2002) destaca que, embora as relações entre a história e
outras ciências sociais, como a sociologia e a antropologia, sejam dinâ-
micas e não isentas de conflitos, os investigadores dessas áreas têm
estudado problemas comuns, relacionados à sociedade como um todo ou
ao comportamento humano. Seria útil tratar essas diferentes abordagens
como complementares na busca do entendimento dos fenômenos que
interessam a todas.
Um marco importante para a história é o movimento iniciado a
partir da revista Annales d´Histoire Économique Et Sociale, fundada
por March Bloch e Lucien Febvre na década de 1920. Esse movimento,
conhecido como “Escola dos Annales, buscou uma aproximação da
história com as ciências sociais e fez uma crítica à história tradicional
(BURKE, 2002; REIS, 1999). Se, com essa escola, a história procurou
um estatuto de objetividade e cientificidade (REIS, 1999, p.8-9), parece
difícil que tenha se distanciado da filosofia da história. Segundo Reis,
O historiador é incapaz de abordar o material his-
tórico sem pressuposições, está impregnado, sem
confessá-lo, de ideias filosóficas. [...] aquele con-
junto de instrumentos [na busca de objetividade]
era utilizado para sustentar pontos de vista gerais,
que não nasciam do próprio material histórico,
mas do pesquisador que interpretava e explicava o
material. (REIS, 1999, p.9)
Reis considera que a interdisciplinaridade, uma das características
do programa dos Annales, proposta pelos seus fundadores, deveria se
dar, segundo eles próprios,
pelo ‘objeto comum’ à história e às ciências soci-
ais: o homem social. A ‘troca de serviços’ [entre
história e ciências sociais] seria necessária para
que, olhando um mesmo objeto sob perspectivas
particulares, se pudesse chegar a uma visão mais
global e detalhada dele. (REIS, 1999, p.66)
Por outro lado, o autor aponta a limitação dessa abertura da histó-
ria, que “se perdeu nos objetos e problemas das ciências sociais” (REIS,
1999, p.67), e como a interdisciplinaridade estaria ameaçando a identi-
dade da disciplina.
Também sobre os limites indefinidos que a abordagem histórica e
as ciências sociais passam a compartilhar, Burke (2002), ao referir-se a
ambas as disciplinas nas últimas décadas do século XX, afirma que:
39
Vivemos em uma era de linhas indefinidas e fron-
teiras intelectuais abertas, uma era instigante e, ao
mesmo tempo, confusa. [...] o surgimento do dis-
curso compartilhado entre alguns historiadores e
sociólogos, alguns arqueólogos e antropólogos, e
assim por diante, coincide com um declínio do
discurso comum no âmbito das ciências sociais e
humanidades [...]. (BURKE, 2002, p.37)
Esse autor lembra que até mesmo uma subdisciplina como a his-
tória social estaria correndo o risco de fragmentação. Mas, ainda assim,
existe um debate comum sobre os modelos e métodos, ou seja, pelas
abordagens compartilhadas por várias disciplinas. Por exemplo, o em-
prego do “microscópio social”, com antropólogos e sociólogos utilizan-
do a análise microssocial e historiadores utilizando aquilo que veio a ser
conhecido como “micro-história” (BURKE, 2002, p.61). Ele assinala
ainda que Foucault “estimulou microestudos com a discussão sobre o
poder” (BURKE, 2002, p.63), e apesar do surgimento de críticas a estu-
dos desse tipo, algumas delas em relação à generalização a partir da
análise de um tema específico, aponta justificativas para seu emprego.
Uma delas seria que
A escolha de um exemplo individual a ser estuda-
do em profundidade pode ser motivada pelo fato
de representar a miniatura de uma situação que o
historiador ou antropólogo já sabe (por outros mo-
tivos e com base em outras fontes) que é predo-
minante. (BURKE, 2002, p.64)
A busca da abordagem histórica como auxílio para uma crítica
voltada ao presente, que tem Foucault como um dos difusores, propõe
uma forma alternativa à abordagem histórica tradicional, essa última
“construída como um discurso contínuo e fechado em si mesmo” (RA-
GO, 2008, p.1).
É essa linha, da abordagem histórica como uma crítica voltada ao
presente, que pretendo seguir. Este estudo, que se propõe a traçar a “mi-
cro-história” da apresentação dos antidepressivos aos profissionais da
área médica a partir das várias edições do livro-texto de farmacologia
Goodman e Gilman, pode ser considerado um exemplo individual que
foi escolhido a partir de uma situação geral conhecida a priori: o uso de
medicamentos pela biomedicina na busca do alívio para a dor, seja esta
classificada pela prática biomédica como física ou psíquica, a partir de
critérios científicos que não são livres de valores, nem eticamente neu-
tros.
40
A análise histórica dessa situação singular permite olhar de outro
modo um problema localizado no presente, que é o reducionismo bioló-
gico no uso de medicamentos, problema para o qual nos alertam diver-
sos estudos de sociologia, antropologia e epistemologia. Isso porque o
medicamento moderno, esse recurso tecnológico que é utilizado como
estratégia terapêutica, faz parte da cultura ocidental moderna e ganha
características que só podem ser validadas em função do contexto socio-
cultural em que está inserido, a partir de valores simbólicos e econômi-
cos que traz consigo.
Autores contemporâneos, como Pignarre (1999;2001) e Marcia
Angel (2007), têm abordado o tema dos medicamentos nos diferentes
níveis em que estes circulam (ciência, mercado e homens da sociedade),
apontando para questões éticas relacionadas ao seu desenvolvimento e
uso. Se os medicamentos trazem consigo a substância capaz de alterar
farmacologicamente funções do corpo biológico, por outro lado trazem
também componentes além dessa ação que são dignos de serem assina-
lados. Não se pretende negar a existência de fatores biológicos na ação
do medicamento, mas, concordando com Pignarre, entre a molécula, que
possui uma ação biológica, e o medicamento, que é uma mercadoria
administrada socialmente, uma construção social que acaba por fazer
desse último “uma maneira original de ligar o biológico ao social. Privi-
legiar um ou outro [desses aspectos] é atribuir-lhe [ao medicamento] um
excesso de honra ou indignidade” (PIGNARRE, 1999, p. 15).
Partindo de uma abordagem histórica, servi-me também de pres-
supostos da análise de discurso para abordar essas outras “faces” do
medicamento a partir da análise de textos do livro que serve de base a
este estudo.
1.3 A ANÁLISE DE DISCURSO
Essa “micro-história” referente ao modo como foi construído,
transformado e divulgado o conhecimento sobre antidepressivos a partir
do livro-texto de farmacologia, foi desenvolvida com o auxílio da análi-
se de discurso (AD), na tentativa de apreender questões relacionadas a
aspectos culturais, políticos, econômicos e sociais presentes no discurso
científico. A análise de discurso (AD) é apresentada por Orlandi como
uma disciplina “que teoriza a interpretação, isto é, que coloca a interpre-
tação em questão” (ORLANDI, 1999, p. 25). Embora suas origens pos-
sam ser buscadas na Antiguidade (ORLANDI, 1999; VAN DIJK, 1992),
o estudo do discurso aparece, a partir das décadas de 1960 e 1970, no
âmbito das ciências humanas e sociais como uma “alternativa” a abor-
41
dagens tradicionais e positivistas nessas áreas (NOGUEIRA, 2008;
VAN DIJK, 1992). Van Dijk, assim como Nogueira (2001; 2008), Fair-
clough e Wodak (2000), aponta que, a partir dessas décadas, passam a
existir diferentes referenciais teóricos que acabam por constituir “linhas”
de análise sob o leque da AD. Em relação a como se constitui cada uma
dessas “linhas”, o primeiro autor considera que
é difícil estabelecer distinções disciplinares preci-
sas no campo dos estudos do discurso, que parece
cada vez mais se caracterizar como um campo in-
terdisciplinar independente, no qual métodos e te-
orias puramente linguísticos ou gramaticais se
mesclam àqueles da etnografia, microssociologia
e [...] psicologia. (VAN DIJK, 1992, p.11)
Ainda que sejam várias as “linhas” sob a denominação “análise
de discurso”, uma “unidade” em função de pontos comuns. Pode-se
dizer que a AD:
representa um conjunto relacionado de aborda-
gens ao discurso, abordagens que acarretam não
práticas de recolha de dados e de análise (ques-
tões metodológicas), mas também um conjunto de
assunções metateóricas e teóricas. [...] É impor-
tante enfatizar que AD é simultaneamente teoria e
método. Do ponto de vista metodológico, não será
possível utilizar os seus princípios, se desenqua-
drando da perspectiva epistemológica subjacente.
(NOGUEIRA, 2008, p.235 -236)
Dentre as várias perspectivas teóricas incluídas sob o rótulo de
AD, ou que constituem formas dessa abordagem, a que considerei mais
próxima da que pretendia utilizar foi a denominada por alguns como
“análise crítica do discurso” (VAN DIJK, 1999; FAIRCLOUGH e
WODAK, 2000; NOGUEIRA, 2008). Esse seria o tipo de análise de-
senvolvido pela escola francesa de AD, incluindo a abordagem foucaul-
tiana (que estaria relacionada à crítica social) e aquela desenvolvida por
Michel Pêcheux (que tem como um de seus pontos de referência a teoria
do discurso de Foucault). Sobre as abordagens de AD de Pêcheux e
Foucault, Sena destaca que
Na análise de discurso de M. Pêcheux, vertente a-
travessada pela Linguística, pelo Marxismo e pela
Psicanálise, o discurso é uma espécie pertencente
ao campo ideológico, é o espaço onde emergem
significações (da ordem da semântica, portanto),
interpretações, e o processo discursivo é o de pro-
dução de sentidos. Opondo-se a esta concepção
42
interpretativa, em Foucault o discurso é o espaço
onde saber e poder se articulam em história carre-
gada de rupturas (descontinuidades), mediatizado
por políticas gerais de verdade, discurso concebi-
do segundo o princípio de dispersão e não o prin-
cípio de unidade. (SENA, 2007, p.36-37)
Orlandi (2005), embora assuma uma perspectiva filiada àquela de
Pêcheux, refere que não há porque utilizar o adjetivo “crítico/a” ou
qualquer outro, pois as noções e procedimentos desse tipo de abordagem
suporiam essa definição. No entanto, o uso do adjetivo “crítico” poderia
ser justificado porque todos esses autores (incluindo Foucault e Orlandi,
que não o utilizam) “estão interessados essencialmente na maneira como
o poder, a dominação e a desigualdade social são estabelecidos, repro-
duzidos e combatidos através do discurso” (VAN DIJK, 2004, apud
NOGUEIRA, 2008, p.237).
Utilizo a partir daqui apenas a denominação Análise de Discurso
(AD), de acordo com a argumentação de Orlandi, considerando que essa
é uma abordagem que supõe uma posição crítica daquele que a utiliza.
Com a AD, pretende-se extrair as “não transparências(ou opacidades)
da linguagem, que põem em relação sujeitos e sentidos (ORLANDI,
1999; NOGUEIRA, 2008). Segundo Orlandi, não há o propósito de
encontrar o que o texto quer dizer, mas como o texto significa. A con-
tribuição que essa abordagem traz é colocar o pesquisador em estado de
reflexão e, mesmo que não estejamos conscientes de tudo o que pode
estar significando o texto, tornar possível interpretá-lo (ORLANDI,
1999, p.9-20).
Sobre os sentidos, Orlandi destaca que não estão nas palavras e-
las mesmas, estão além e aquém delas. Ela afirma que o sentido é de-
terminado por “posições ideológicas colocadas em jogo no processo
sócio-histórico em que as palavras são produzidas” (1999, p.42) e intro-
duz o conceito de “formação discursiva”, que, embora seja uma noção
polêmica, estaria relacionado com a produção de sentidos. A formação
discursiva seria “aquilo que numa formação ideológica dada, ou seja, a
partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada,
determina o que pode e deve ser dito. [...] As formações discursivas, por
sua vez, representam no discurso as formações ideológicas” (1999,
p.43). O sentido das palavras é dado por essas formações discursivas,
que Orlandi exemplifica com o uso da palavra “terra”, que tem signifi-
cados diferentes para “um índio, para um agricultor sem terra e para um
grande proprietário rural” (1999, p.45).
43
Tomando essa noção de formação discursiva direcionada à pro-
dução de sentidos, ao pensarmos no discurso científico que divulga o
conhecimento sobre os medicamentos, temos que considerar que os
sentidos atribuídos a determinadas palavras, tais como “depressão”,
“antidepressivos”, “uso terapêutico” estão sujeitos aos diferentes mo-
mentos históricos em que esse discurso ocorre. Como afirmado por Or-
landi, esses sentidos partem de “uma posição dada em uma conjuntura
histórica dada” e, por essa razão, refletem os valores de determinada
época e de determinado grupo social.
A noção de ideologia é ressignificada pela AD: segundo Orlandi,
para haver sentido é necessário interpretar, e “nesse movimento de in-
terpretação o sentido aparece-nos como evidência, como se ele estivesse
sempre lá. Interpreta-se e ao mesmo tempo nega-se a interpretação,
colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que é produzido na relação do
histórico e do simbólico” (1999, p.45 e 46). Assim, poderíamos pensar
que o sentido de “antidepressivo” e “depressão” sofre um “apagamen-
to”. Ele é considerado ou interpretado como algo óbvio, em direção a
uma condição “natural” (antidepressivo é algo que vai combater a de-
pressão que seria uma condição biológica igual para quaisquer contextos
sociais ou históricos), bastando definir do que se trata segundo a biome-
dicina. Apesar de ocorrer uma interpretação de “antidepressivo” e “de-
pressão”, essa interpretação é negada e naturalizada.
Esse “apagamento” da interpretação é feito por um mecanismo
ideológico, “construindo-se transparências [...] para serem interpretadas
por determinações históricas que se apresentam como imutáveis, natura-
lizadas” (ORLANDI, 1999, p.46). Por outro lado, essa autora afirma que
ao analisarmos criticamente o discurso, trabalhamos nos limites da in-
terpretação. Não necessariamente fazemos uma interpretação, mas apon-
tamos para as opacidades, para o não dito, tentamos mostrar que o dis-
curso não é transparente, sem afirmar esta ou aquela interpretação sobre
os significados. Quem está analisando sob essa perspectiva, elabora,
segundo Orlandi (2005), a possibilidade de interpretação daquilo que
está escrito em uma determinada disposição, inclusive reintroduzindo a
densidade material contraditória da linguagem, e não dissecando-a ou
excluindo-a (a linguagem).
Nessa direção, Van Dijk (1999) aponta para as “estratégias dis-
cursivas” (p.31) que incluem tanto questões relacionadas: (a) ao contex-
to, que podem ser exemplificadas com a questão subjetiva da credibili-
dade de quem escreve o texto; (b) à estruturação do texto (por exemplo,
à forma como os temas são dispostos no texto, à importância que se dá a
cada um deles, se a informação é transmitida no título ou na conclusão,
44
entre outros elementos). Assim, no livro de farmacologia, a ordem em
que aparecem determinados tópicos, a explicação ou não de determina-
dos conceitos nas diferentes edições, o uso de tipos gráficos de diferen-
tes tamanhos para diferentes assuntos, entre outros aspectos, refletem a
importância que cada tema ocupa em determinado momento histórico
para aqueles que escrevem o livro.
Quando se utiliza a AD, que se ressaltar a importância não a-
penas daquilo que é dito ou que está expresso no texto, mas também do
que pode estar relacionado ao “não dito” nos contextos discursivos
(ORLANDI, 1999), ou seja, as “ausências” (NOGUEIRA, 2001, 2008)
de determinado discurso. Por exemplo, a não referência aos contextos de
descoberta de determinadas drogas, às controvérsias relacionadas à es-
colha desta ou daquela pesquisa farmacológica, entre outros, podem
levar à “naturalização” do que se fala sobre o medicamento e a situação
de saúde em questão. Dessa forma, àquele que se depara com o texto de
divulgação científica sobre o medicamento, pode parecer que a única
“verdade” que sempre existiu sobre certo tema é aquela que ali está
apresentada.
Novamente vale lembrar que, no caso do discurso utilizado para
divulgar o conhecimento científico sobre os antidepressivos, alguns
significados podem estar naturalizados, como, por exemplo, a própria
denominação “antidepressivos”. Se o medicamento tem essa denomina-
ção, ela surge a partir de uma condição que supõe a existência da “de-
pressão” (ou estado “depressivo”), em relação à qual a droga se proporia
a ir “contra”, no sentido etimológico, já que “anti” é um prefixo que tem
esse significado
15
. O antidepressivo seria uma droga que age “contra” a
depressão. Porém, sabemos que “depressão” não tem o mesmo signifi-
cado em diferentes épocas. Podemos nos perguntar então: quando rece-
beram essa denominação, na década de 1950, os medicamentos “antide-
pressivos” se referiam às mesmas condições que hoje são caracterizadas
como “depressivas”?
Para um médico ou estudante de medicina pode parecer “óbvio”
que se está tomando o conceito atual de um estado “depressivo”, “sín-
drome depressiva”, “episódio depressivo maior”, quando se fala em
“antidepressivos”, mas essas são situações nomeadas e explicadas pela
biomedicina atual como condições clínicas que implicam em sofrimen-
to psíquico e físico, não são necessariamente as mesmas situações que
caracterizaram inicialmente o nome desses medicamentos, que se man-
tém até hoje.
15
Anti: do grego antí, corresponde ao prefixo latino contra (BECHARA, 2009, p.269).
45
Por outro lado, mesmo que essas drogas tenham essa denomina-
ção, elas não são utilizadas apenas para “depressão” ou “estados depres-
sivos”, conforme assinalado (p. 21 deste estudo). Mais ainda, vá-
rias categorias de drogas, com modos de ação diferentes, provocando
efeitos diversos entre si, porém todas sob o mesmo rótulo: antidepressi-
vos. Isso nos faz refletir que, embora pareça “natural” dizer que a utili-
zação do “antidepressivo” é feita para “combater a depressão”, nem
sempre essa relação é tão óbvia, pois o medicamento pode estar sendo
utilizado para condições cada vez mais distantes do que se afirma ser um
quadro “depressivo” ou “depressão”.
Esses são exemplos de como recursos da AD, aliados à perspecti-
va histórica, foram utilizados para o desenvolvimento deste estudo sob
um enfoque interdisciplinar, buscando apreender questões presentes no
discurso científico que estão relacionadas a aspectos sociais, culturais e
econômicos no que diz respeito aos medicamentos antidepressivos no
material de análise.
1.4 MATERIAL DE ANÁLISE
1.4.1 O livro-texto de farmacologia
Goodman e Gilman é obra reconhecida e utilizada amplamente
nas escolas médicas de vários países como referência na formação na
área de farmacologia, além de ser consultado por profissionais gradu-
ados em busca de atualização sobre medicamentos, auxiliando-os a con-
duzir sua prática depois de formados. A primeira edição ocorreu em
janeiro de 1941, alguns anos antes da introdução dos primeiros antide-
pressivos na prática médica, e possui o seguinte título completo: As
bases farmacológicas da terapêutica: livro-texto de farmacologia,
toxicologia e terapêutica para médicos e estudantes de medicina.
Tem como autores Louis Goodman e Alfred Gilman, e foi publicado
pela Mcmillan Company, com sede nos Estados Unidos, Canadá e Rei-
no Unido
16
.
Ao todo, são onze edições da obra, conforme pode ser visualizado
no quadro (Quadro 1.1), em que consta também o ano de publicação do
original e da tradução em português.
16
Em relação à primeira edição do livro, pesquisei em dois exemplares: parte da 8ª impressão
de 1943, da qual fiz cópia, e a 15ª impressão de 1947 (obra toda), ambas dos Estados Unidos.
46
Quadro 1.1 – Ano de publicação das edições e traduções do livro-texto
Goodman e Gilman
Edição Ano de pu-
blicação do
original
Ano de publicação
da tradução em
português
Ano da publicação de
traduções em outras
línguas
1941 Não foi encontrada
nenhuma referência a
edições em português
1945 (espanhol)
1954 1962 (espanhol)
1965 1967 -
1970 1973 -
1975 1978 -
1980 1983 -
1985 [198?] 1986 em espanhol
1990 1991 -
1996 1996 Francês, alemão, grego,
indonésio, italiano, japonês,
espanhol.
10ª 2001 2001 Grego, indonésio, italiano,
japonês, espanhol, russo.
11ª 2006 2006 Albanês, italiano, japonês,
macedônio, polonês, espa-
nhol, turco.
Fonte: Goodman e Gilman´s the pharmacological basis of therapeutics (1ª a 11
edições)
Se inicialmente era dirigido apenas a estudantes de medicina e
médicos, atualmente o livro também é utilizado na formação de outros
profissionais da área da saúde.
No prefácio da quinta edição do livro, esse aspecto é destacado:
Um eminente farmacologista, comentando sobre a
primeira edição muitos anos após seu aparecimen-
to, declarou que a obra proporcionou o renasci-
mento, ou talvez mais exatamente o nascimento,
do ensino e da prática da farmacologia (GOOD-
MAN; GILMAN, 1975, p.v,
grifo do original).
47
Segundo relato de Altman, muitas vezes Goodman teria referido
que na década de 1940 a farmacologia estava com uma terrível reputa-
ção, e muitas escolas médicas não a ofereciam como curso: “Quando eu
estava em Yale, os estudantes de Yale e Harvard costumavam discutir
qual das universidades tinha o pior curso de farmacologia” (ALTMAN,
2000, p.1).
A descoberta de tratamentos medicamentosos para as infecções
(antibióticos) e para doenças como o diabetes melitus nas primeiras
décadas do século XX (GRAY, 2000; WHEATERALL, 1996) são mar-
cos importantes para a farmacologia. Gray (2000) se refere à busca de
bases científicas para a prática médica e afirma que uma das formas em
que essa busca ocorre é com o desenvolvimento do conhecimento vindo
de ciências experimentais, como a farmacologia. Ele destaca a impor-
tância da “revolução farmacológica” e da publicação da obra que é obje-
to de análise deste estudo como reflexo do fato de que “a disciplina de
farmacologia estava vibrante o suficiente para autorizar seu maior livro
texto quando Goodman e Gilman publicaram as Bases Farmacológicas
da Terapêutica [em 1941]” (Gray, 2000, p.111). Ainda que a farmaco-
logia, enquanto área do conhecimento, seja anterior a esse livro, pode-se
dizer que ele é um marco na difusão do saber técnico-científico, que tem
suas origens no século XIX e busca no laboratório, através dos experi-
mentos, a validação de substâncias que são utilizadas como recurso
terapêutico.
A intenção de tornar científico o conhecimento biomédico, dei-
xando práticas empíricas de lado, tal como é a proposta que se inicia no
final do século XIX e ganha força no século XX, pretende deixar de lado
opiniões e interesses pessoais dos terapeutas e substituí-los por práticas
científicas. Essas seriam neutras e adequadas por estarem embasadas em
um conhecimento validado segundo critérios metodológicos que lhes
tornam quase inquestionáveis por outros saberes. A ciência não estaria
sujeita a questões filosóficas e aos contextos relacionados àqueles que a
praticam, pois seu método contornaria esses vieses. Sob uma abordagem
técnica e científica, o desenvolvimento de medicamentos e do próprio
conhecimento farmacológico divulgado não estaria sujeito a fatores
subjetivos ou a influências econômicas, como, por exemplo, aquelas
relacionadas aos interesses da indústria farmacêutica. Por outro lado,
podemos considerar que o desenvolvimento de drogas e, indiretamente,
até mesmo novos diagnósticos médicos, estão relacionados ao poder
exercido por essa indústria, que apoia e contribui para o desenvolvimen-
to da farmacologia, tanto para a pesquisa de novas drogas como para a
divulgação daquelas validadas e inseridas no mercado. No caso dos
48
medicamentos que atuam sobre problemas “mentais”, esse tema tem
sido abordado por vários autores, tais como Marcia Angell, Philipe Pig-
narre, Angel Martinez e Conrad, entre muitos outros.
Russo e Caponi (2006) lembram a separação entre a “prática ci-
entífica e a reflexão sobre os fundamentos do conhecimento científico”
(p.15) que ocorre a partir do século XIX com a estruturação dessa práti-
ca e de sua metodologia, que, de uma forma geral, nos leva a caracteri-
zar a ciência contemporânea por um forte componente pragmático
(RUSSO; CAPONI, 2006, p.15-16). Esse componente pragmático pode
estar nos permitindo “esquecer” que o conhecimento técnico-científico,
a ciência e a técnica enquanto produtos da atividade humana, e, em con-
sequência, a sua divulgação, mesmo quando se propõem ser eticamente
neutros, não estão isentos de influências sociais, culturais, políticas e
econômicas.
Ainda segundo essas autoras, a atividade científica supõe certa in-
terpretação do mundo, e quando provocamos esse tipo de reflexão (his-
tórica e filosófica), colocamos em evidência a atuação das instituições,
dos aspectos coletivos da descoberta, o peso das influências políticas, as
responsabilidades coletivas das escolhas de teorias científicas entre ou-
tros fatores que influenciam a teoria e a prática das ciências. Elas afir-
mam que
Não se trata aqui de relativizar a ciência segundo
a época ou o cientista que a pratica, pois isso seria
negar a reprodutibilidade dos fenômenos, negar a
possibilidade de sua previsão e, por consequência,
afirmar a impossibilidade da ciência em si mesma.
[...] Trata-se apenas de propor um estudo filosófi-
co da história das ciências [biomédicas] que nos
permita compreender melhor seu presente, seus
desafios, seus problemas teóricos e sua aplicabili-
dade. A reflexão histórica e filosófica da ciência
oferece a possibilidade de revisitar os caminhos
da atividade científica, apontar suas possíveis di-
reções e avaliar o peso da influência política e ins-
titucional. (RUSSO; CAPONI, p.23)
No caso da farmacologia como ciência, o livro-texto que faz sua
divulgação aos profissionais médicos e da área da saúde em geral pode
parecer, à primeira vista ou sob um olhar cotidiano daqueles que o utili-
zam, desvinculado do contexto histórico e social. Pode parecer “natural
que aquilo que ali está descrito como informação sobre o conhecimento
científico seja um reflexo “idêntico” ao que ocorre na realidade do inte-
rior de nosso organismo, como no caso das teorias sobre neurotransmis-
49
são utilizadas hoje em farmacologia. Porém, sobre esse aspecto, vale
lembrar, além do que já foi assinalado acima, o que nos diz Lacey quan-
do afirma que
As teorias [da ciência moderna] constituem uma
imagem das coisas em termos de leis e quantida-
des. Nelas os fenômenos são abstraídos de qual-
quer inserção na experiência humana e nas ativi-
dades práticas, além de qualquer relação com
questões relativas a valores sociais. (LACEY,
1998, p.17)
Assim, utilizar esse livro-texto para pesquisar o que diz a farma-
cologia poderia contribuir para identificar como se forma o discurso
biomédico que justifica e explica o uso de determinados medicamentos
em determinadas situações e em diferentes épocas. Se considerarmos
que o conhecimento científico não é algo estático e, tampouco, algo que
se desenvolva em sentido linear, ou “evolutivamente”, como uma visão
positivista o descreveria, mas que está sujeito a avanços e recuos e aos
valores vigentes em cada época, perceberemos o quanto as razões que
justificam determinados “caminhos científicos” estão vinculadas a esses
valores
17
.
1.4.2 Os autores
Louis S. Goodman nasceu em Portland, no estado de Oregon, em
1906. Graduou-se na University of Oregon Medical School, em 1932, e
fez o internato médico
18
no Johns Hopkins Hospital, em Baltimore. A
seguir, foi para a Universidade de Yale para continuar seus estudos e
posteriormente ensinar farmacologia. Em 1943 tornou-se chefe da cadei-
ra de farmacologia e fisiologia na Universidade de Vermont
19
e em 1944
17
Esse tema, que relaciona valores e atividade científica, no caso a atividade da farmacologia,
é abordado em um capítulo específico deste trabalho.
18
A formação médica nos Estados Unidos inclui quatro anos na universidade e dois anos de
internato (estágio supervisionado) em uma unidade hospitalar.
19
Universidade de Vermont: estabelecida em 1791 como a quinta faculdade na Nova Inglaterra
(depois de Yale, Harvard, Darmouth e Brown), a Universidade de Vermont tem as iniciais
UVM (em latim Universitas Viridis Montis ou Universidade das Montanhas Verdes). Inicial-
mente era uma universidade privada, mas, com a inclusão da Faculdade Estadual de Agricultu-
ra em 1862 e por meio de um Ato Constitucional, tornou-se quase pública. Hoje é uma univer-
sidade mista, com 16% do seu fundo geral pertencendo ao estado de Vermont. Teve como uma
de suas características a inclusão pioneira de mulheres e americanos afrodescendentes: ainda
em 1877 formou o primeiro estudante negro (Disponível em:
<http://www.uvm.edu/about_uvm/?Page=history/default.html&SM=historysubmenu.html
>.
Acesso em: 10 julho 2010.).
50
foi para Salt Lake City como fundador do departamento de farmacologia
na Escola Médica de Utah
20
. Em Utah fez parte do núcleo de professores
que estabeleceu o programa da Escola Médica em quatro anos a partir da
década de 1940, com destaque para núcleos de pesquisa na área biomé-
dica, como, por exemplo, na área oncológica, recebendo incentivos go-
vernamentais através dos NIH (ver notas de rodapé 3 e 10).
Goodman estudou as reações dos medicamentos no organismo
21
,
em especial aquelas ocorridas no Sistema Nervoso Central (SNC). Atu-
ou com destaque na pesquisa dos primeiros medicamentos quimioterá-
picos
22
e era uma autoridade em medicamentos direcionados ao trata-
mento das crises epiléticas. Foi membro da Academia Nacional de Ci-
ências dos Estados Unidos
23
(NAS), participou de comitês dos Institutos
Nacionais de Saúde (National Institutes of Health - NIH) e foi consultor
de oito companhias de medicamentos. Algumas dessas companhias
“proporcionaram subsídios ilimitados considerados por Goodman como
20
Escola Médica de Utah (University of Utah – School of Medicine): A Universidade de Utah
foi fundada em 1850. Em 1905 houve a fundação do Departamento de Medicina, que teve seu
nome mudado para University of
Utah Medical School em 1912 (PLENK, 1994). A partir
dessa data, passou a ter um programa médico de dois anos, fazendo
parte da Associação
Ame-
ricana de Escolas Médicas (American Association of Meical Schools – AAMC) e do Conselho
de Educação Médica da Associação Americana de Medicina (American Association of Medici-
ne –AMA) (UNIVERSITY OF UTAH HEALTH CARE, 2005). Os alunos frequentavam
esses dois anos em Utah e terminavam os quatro anos de estudos requeridos para obterem o
diploma em outra universidade. Na década de 1940, a escola médica passou a ter quatro anos
de duração e a contar com um programa de residência médica. A partir da década de 1950 e até
os dias de hoje, expandiu seus programas de especialização e pós-graduação, tornado-se refe-
rência local e internacional em diversas áreas da medicina (tanto em relação à formação médica
como em relação à pesquisa) (PLENK, 1994; UNIVERSITY OF UTAH HEALTH CARE,
2005).
21
Área da farmacologia hoje conhecida como farmacodinâmica.
22
Antes das pesquisas desenvolvidas pela equipe de Goodman, as neoplasias malignas eram
tratadas apenas com cirurgia e radioterapia. Seus estudos abriram esse campo de estudos na
área farmacológica.
23
A Academia Nacional de Ciências (National Academy of Sciences – NAS) dos Estados
Unidos é uma organização sem fins lucrativos fundada pelo presidente do país Abraham Lin-
coln em 1863, no auge da Guerra Civil. À NAS foi atribuído “‘investigar, examinar, experi-
mentar e relatar sobre qualquer assunto da ciência e da arte’, sempre que solicitado por algum
departamento do governo” (NAS, 2010). Em 1916 a NAS criou o Conselho Nacional de
Pesquisa (National Research Council – NRC) para expandir o conhecimento técnico especiali-
zado dentro da própria instituição e dos serviços prestados ao governo, em função da comple-
xidade crescente das questões científicas. Ainda em função da expansão da complexidade dos
temas científicos, a NAS criou, em 1964, a Academia Nacional de Engenharia (NAE) e, em
1970, o Instituto de Medicina (IOM) (NAS, 2010; NRC, 2010). A NAS, o NRC, a NAE e o
IOM lidam com questões de controle e fiscalização relacionados ao conhecimento técnico-
científico (sendo que a maior parte das questões de regulação e fiscalização é feita pelo NRC,
que foi criado com esse propósito), sempre com apoio governamental.
51
muito importantes para o seu departamento em Utah” (ALTMANN,
2000).
Alfred Gilman nasceu em Bridgeport, Connecticut, em 5 de feve-
reiro de 1908. Graduou-se em 1928 no Yalle College
24
, onde permane-
ceu como aluno do departamento de “química fisiológica”, como eram
chamados os departamentos de bioquímica nessa época. Embora plane-
jasse se tornar um pesquisador clínico, as “exigências da Grande De-
pressão” levaram-no a uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de
Yale no departamento de bioquímica e depois na farmacologia. Nessa
época (início da década de 1930) encontrou Goodman, e ambos passa-
ram a lecionar farmacologia juntos. O projeto de um livro para auxiliá-
los no ensino de farmacologia em Yale foi iniciado. John Fulton, profes-
sor de fisiologia da mesma universidade, apresentou-os à Mac Millan
Publishing Company (RITCHIE, 1996).
Durante a Segunda Guerra, Alfred Gilman deixou Yale para ser-
vir às Forças Armadas como chefe da Seção de Farmacologia da Divi-
são Médica no Arsenal de Edgewood, em Maryland. Nesse período
desenvolveu estudos com antídotos para gases organofosforados e nitro-
gênio mostarda. Antes de servir ao exército (em 1942), um contrato foi
firmado entre as forças armadas e a Universidade de Yale, e os achados
com os estudos do nitrogênio mostarda (coordenados por Goodman e
Gilman) deram origem a medicamentos para o tratamento de neoplasias
como o linfoma.
Foi também membro da NAS a partir de 1964, atuando em ações
específicas relacionadas a medicamentos, e consultor de empresas far-
macêuticas como a Burroughs Wellcome e a Smith Kline French
25
(SKF). Segundo Ritchie (1996), “Gilman não via a academia e a indús-
tria como entidades completamente separadas ou rivais. Mais que isso,
24
Yale University: é uma universidade privada, que tem suas origens no século XVII em New
Haven, Connecticut, quando clérigos protestantes inauguram uma escola nessa cidade, procu-
rando preservar a tradição liberal da educação europeia no Novo Mundo. Em 1718 foi nomea-
da Yale College, e nos séculos XIX e XX passou a graduar vários profissionais, tornando-se
uma universidade, buscando basear-se em universidades como Oxford e Cambridge. A Escola
de Medicina de Yale foi criada em 1810. Ainda no século XIX, recebeu alunos internacionais,
da América Latina, China, entre outros. (Disponível em:
<http://www.yale.edu/about/history.html>. Acesso em 10 julho 2010).
25
A empresa Burroughs Wellcome foi fundada em Londres em 1880 por dois farmacêuticos
americanos. A Smith Kline também tem suas origens na Inglaterra em 1843, porém em 1891
une-se a uma empresa francesa e passa a se chamar Smith Kline French. No ano 2000 essas
duas empresas se uniram (a primeira já havia se unido em 1995 à Glaxo, uma empresa da Nova
Zelândia, criada em 1904, formando a GlaxoWellcome) formando a GlaxoSmith Kline, a
quarta maior indústria de medicamentos do mundo. (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/GlaxoSmithKline>. Acesso em: 10 julho 2010)
52
no que diz respeito à terapêutica, estas seriam complementares, cada
uma delas dependendo criticamente da outra” (p. 66). A academia era
vista como a base para treinar novas gerações de farmacologistas, mas o
desenvolvimento de novos agentes terapêuticos seria responsabilidade
da indústria sob os cuidados da academia. Gilman atuou no desenvolvi-
mento de um diurético para a SKF e citava essa experiência para exem-
plificar o valor da interdependência entre indústria e academia. Esta
última participaria com “conselhos prudentes” e a indústria, com a pos-
sibilidade de financiar equipes multidisciplinares para o desenvolvimen-
to dos medicamentos que os órgãos governamentais não poderiam ban-
car (RITCHIE, 1996, p. 66-67).
Em 1956 Gilman tornou-se professor e chefe do Departamento de
Farmacologia no Albert Einsten College of Medicine, fundado no ano
anterior na Universidade de Yeshiva
26
, em Nova Iorque. Nesse mesmo
ano foram iniciados os programas de aperfeiçoamento científico (mes-
trado e doutorado), e o Albert Einsten College foi um dos três agracia-
dos pelo National Institute of General Medical Sciences do National
Institutes of Health (NIH)
27
, sendo considerado por três décadas o me-
lhor dos programas da nação. Em 1973, voltou para Yale (RITCHIE,
1996, p.69).
Alfred Goodman Gilman, o filho de Alfred Gilman que recebeu
“Goodman” em seu nome em homenagem ao livro de farmacologia, foi
editor associado do livro-texto a partir da edição, em 1975. Nasceu
em New Haven, Connecticut, em 1941, logo após o lançamento do li-
vro-texto. Formou-se em bioquímica na Universidade de Yale e em
1962, após um estágio no laboratório da Burroughs Wellcome, foi para a
26
Universidade de Yeshiva: em 1929 foi inaugurado o colégio de Yeshiva e lançada a pedra
fundamental para a universidade, que tem orientação judaica (Disponível em:
<http://spider.mc.yu.edu/news/photogallery/photogallery_show.cfm?categoryID=1105> .
Acesso em 10 julho 2010). Suas origens remontam à fundação de uma escola elementar judaica
no ano de 1886. (Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Yeshiva_University>. Acesso
em 10 julho 2010.)
27
National Institutes of Health (NIH): O NIH é a agência do Departamento de Saúde e Servi-
ços Humanos dos Estados Unidos e é constituído por 27 institutos (tais como o Instituto Na-
cional do Câncer e o Instituto de Saúde Mental, entre outros). É responsável pelas pesquisas
relacionadas à saúde humana. Tem como seu predecessor o Laboratório de Higiene (1887), que
sofreu mudanças e foi nomeado National Institute of Health (no singular, na época) em 1930.
Tem uma parte em funcionamento “intramuros”, em que as pesquisas são conduzidas em suas
sedes próprias (como os campus de Bethesda e Baltimore, em Maryland) e uma parte “extra-
muros”, que financia pesquisas em outras instituições (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/National_Institutes_of_Health>. Acesso em: 10 julho 2010.).
53
Case Western University
28
, em Cleveland, Ohio, como estudante de pós-
graduação. Em seguida trabalhou em Bethesda e, na sequência, tornou-
se professor assistente de farmacologia na Universidade de Virgínia
(1971) e professor de farmacologia em Dallas (1981). Essa última mu-
dança foi adiada por dois anos, pois, segundo ele próprio, em 1979,
quando foi convidado a mudar para Dallas, estava extremamente envol-
vido com suas pesquisas e com a sexta edição do livro-texto de Good-
man e Gilman, agora como editor principal junto com Alfred Goodman
(GILMAN, 1994). Atualmente é professor da University of Texas Medi-
cal Center, que faz parte do Sistema de Universidades do Texas, uma
instituição pública que tem suas origens no século XIX (década de 1880,
quando possuía um ramo médico) e hoje conta com nove universida-
des e seis instituições de saúde (UNIVERSITY OF TEXAS CITY,
2010).
Em 1994 Alfred Goodman Gilman, junto com Martin Rodbell, re-
cebeu o prêmio Nobel de fisiologia e medicina pela descoberta das pro-
teínas G e de seu papel nos sinais de transdução nas células (NOBEL-
PRIZE.ORG, 1994), um achado que permitiu entender o funcionamento
celular e sua interação com substâncias presentes no organismo. As
proteínas G desempenham um papel intermediário no metabolismo de
várias substâncias endógenas: por exemplo, no caso da adrenalina, ao
atingir determinado receptor na célula para ativar uma enzima, ela não
ativa diretamente tal enzima, mas sim a proteína G, que por sua vez
ativa a enzima (GILMAN, 1994b; WIKIPEDIA, 2010).
A partir da edição, o livro se tornou multiautoral, com especia-
listas nos diversos temas respondendo por diferentes capítulos. Também
participaram da editoração, em diferentes anos, outros autores. No en-
tanto, da até a 10ª edição estiveram presentes pelo menos um dos três
autores acima citados: Louis Goodman, Alfred Gilman e Alfred Good-
man Gilman. Na 11ª edição, em 2006, o fato de “nenhum Goodman e
nenhum Gilman” participar da elaboração do livro é citado pelo editor
principal no prefácio (Laurence Bruton, professor da Universidade da
Califórnia, San Diego) (BRUTON; LAZO; PARKER; 2006).
28
Case Western University: a Universidade tem suas origens no Western Reserve College
(1826), em uma cidade próxima à Cleveland, para onde foi transferido em 1882 em função do
crescimento dessa última cidade, e recebeu o nome de Western Reserve University. Em Cleve-
land, a Case School of Applied Science, fundada em 1877, com ênfase em estudos de engenha-
ria, já existia quando a primeira instiuição se transferiu para lá. Ambas estavam em um espaço
geográfico próximo e realizaram parcerias no decorrer dos anos. Em 1967 passam a formar a
Case Western University, uma universidade privada (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Case_Western_Reserve_University> ;
<http://www.case.edu/stage/about/history.html>. Acesso em: 10 julho 2010.).
54
1.4.3 A editora
A primeira edição do livro, em 1941, foi feita pela Macmillan
Company, na época uma subsidiária da Macmillan Co., uma empresa
britânica fundada em 1843 pelos irmãos Daniel e Alexander Macmillan,
que em 1896 instalou um ramo em Nova Iorque. Nessa ocasião, o livro
foi distribuído ainda pela Macmillan Company do Canadá, também um
ramo da empresa britânica criado em 1905 e vendido na década de 1970.
Por ocasião da segunda edição (1955), a Macmillan Americana era uma
empresa independente da britânica, mas continuava mantendo atividades
conjuntas com a empresa original, tanto que a segunda edição continuou
sendo distribuída pela Macmillan de Londres e sua subsidiária do Cana-
(MACMILLAN, 2008; MCMASTER UNIVERSITY, 2009; FUN-
DINGUNIVERSE, 2006; WIKIPEDIA, 2010b). Desde 1999 a Macmil-
lan de Londres pertence ao grupo publicitário Georg von Holtzbrinck.
(GEORG VON HOLTZBRINCK, 2010a) Já a Macmillan dos Estados
Unidos (independente da britânica desde a década de 1950), continuou
publicando livros didáticos durante as décadas de 1960, 1970 e 1980,
quando passou por problemas financeiros, sendo incorporada pela
Holtzbrinck em 2001 (HOLTZBRINCK, 2010b; WIKIPEDIA, 2010b).
A empresa britânica publicou livros de autores como Lewis Car-
roll, e, ainda no século XIX, recebeu o apoio de um religioso de Cam-
bridge, tornando-se suporte para um movimento reformista chamado
“socialismo cristão”. A maioria de suas publicações refletia os sentimen-
tos liberais desse grupo em relação à educação e à reforma religiosa.
Logo a firma se tornou referência em publicações relacionadas à educa-
ção e questões de reforma religiosa (FUNDINGUNIVERSE, 2006). Em
1869 lançou o primeiro exemplar da revista Nature, que, apesar de al-
gumas falhas nos primeiros 30 anos de seu lançamento, “tornou-se a
ilustre revista semanal conhecida mundialmente hoje”. Ainda no final
do século XIX e início do século XX, abriu subsidiárias na Índia, África
do Sul e outras colônias da Inglaterra, além dos Estados Unidos e Cana-
dá, e, no decorrer do século XX, em vários países da África, no Japão,
na Austrália, entre outros (MACMILLAN, 2008).
Segundo Young (1995), a Macmillan Company do Canadá foi a
maior empresa do ramo no país durante o século XX, e, na década de
1930, tinha como seu presidente um homem extremamente nacionalista,
que buscava a publicação de livros canadenses. Se inicialmente estava
destinada a distribuir os livros publicados em Londres e em Nova Ior-
que, nas primeiras décadas do século XX foi ganhando solidez e pas-
55
sou a publicar livros escritos no Canadá. No entanto, os livros canaden-
ses não possuíam um apelo internacional, e a publicação de livros didá-
ticos de autores canadenses ganhou espaço na editora. A Grande De-
pressão, que afetou vários países na década que precedeu a Segunda
Guerra, também afetou a editora nesse país, e os livros didáticos cana-
denses também perderam espaço para as publicações inglesas e ameri-
canas na área de educação. A partir da segunda metade da década de
1930, muitas províncias canadenses optavam por títulos publicados nos
Estados Unidos, sob a influência no modelo educacional americano.
Assim, muitos livros didáticos publicados pela Macmillan do Canadá,
eram originários dos Estados Unidos (YOUNG, 1995), como no caso do
livro de Goodman e Gilman. No início da década de 1970, a Macmillan
do Canadá foi vendida (MACMILLAN, 2008; MCMASTER UNIVER-
SITY, 2009), deixando de existir como companhia em 1999 (WIKIPE-
DIA, 2008), sendo que até a edição do livro de Goodman e Gilman,
em 1985, participou da distribuição deste.
As (1965), (1970), (1975), (1980) e (1985) edições
foram editadas pela Macmillan Americana, que, conforme mencionado,
a partir da década de 1950 era uma empresa independente da Macmillan
de Londres. A edição (1990)
29
foi editada pela Pergamon Press, uma
empresa do grupo Maxwell, pois em 1989 a Macmillan americana havia
sido comprada por esse grupo. Em 1991 a Maxwell faliu, e após uma
segunda compra por outro grupo financeiro, em 2001 foi adquirida pelo
grupo Holtzbrick (WIKIPEDIA, 2010b).
A partir da 9ª edição (1996), a MacGraw-Hill foi responsável pela
publicação do livro-texto de farmacologia. Essa editora (McGRAW-
HILL, 200?b) atualmente faz parte do grupo McGrawHill Companies,
que inclui outros tipos de atividades além da publicação de livros didáti-
cos. No entanto, embora hoje se dedique a outros negócios, suas origens
estão relacionadas ao campo educacional: em 1884 James H. McGraw,
professor em Nova Iorque iniciou seu trabalho com publicações. Em
1888 comprou o American Journal of Railway Appliances
30
. Nessa
mesma época, John A. Hill trabalha como editor de uma outra revista, a
Locomotive Enginner. Em 1899 James cria a McGraw Publishing
Company, e, em 1902, Jonh estabelece a Hill Publishing Company. Em
1909 eles se unem para formar a McGraw Hill Book Company, Inc., que
29
Na página em que consta o nome da editora nessa edição, aparecem as cidades de Nova
Iorque, Oxford, Pequim, Frankfurt, São Paulo, Sidney, Tokio e Toronto, indicando os países
em que o livro foi distribuído (ainda que a 8ª edição em português tenha ocorrido em 1991, um
ano depois da edição original em inglês).
30
Railways Appliances: temas relacionados a estradas de ferro.
56
em 1917 torna-se McGraw-Hill Publishing Company, com a fusão das
duas empresas após a morte de John. São publicados livros e revistas
técnicos, como a Aviation Week, ainda hoje a maior revista na área de
aviação industrial, aeroespacial e de defense industry.
Na década de 1950, a empresa, que inicialmente publicava livros
e revistas direcionados ao público de nível superior, passa a expandir
seus negócios, publicando livros para escolas secundárias, aproveitando
o público que necessitava desse material em virtude do baby boom após
a Segunda Guerra. Na década de 1960, entra no ramo da construção
civil, entre outras atividades. Em 1964 é renomeada McGraw-Hill, Inc.,
atuando nessa época em outras áreas além da publicação de livros e
revistas. Nas décadas seguintes, a empresa expande seus negócios, com-
prando outras empresas (inclusive editoras), como por exemplo, a Mayl-
field Publishing, em 2001, líder em publicações na área de ciências hu-
manas e sociais (McGRAW-HILL, [200?]b). O livro-texto de farmaco-
logia é editado por um ramo da MacGraw-Hill Companies Inc (assim
chamada desde 1995), a McGraw-Hill Education, que atualmente inclui
publicações de livros técnico-científicos e livros educionais para crian-
ças e para nível médio, com sede em Nova Iorque e escritórios em ou-
tros estados americanos, no Canadá, na Ásia, na Europa, na África e na
América Latina.
1.4.4 Como as diferentes edições do livro foram abordadas a partir
da hipótese inicial do estudo
Sabemos que o discurso científico faz parte da sociedade atual,
inserida em uma cultura que se desenvolve no decorrer de um tempo e
que, por isso, está sujeita a influências relacionadas, entre outros fatores,
a aspectos econômicos e políticos. A partir desse pressuposto, foi for-
mulada a seguinte hipótese de trabalho: o medicamento antidepressivo,
mercadoria disponibilizada pela influente indústria farmacêutica, vem
sendo apresentado aos profissionais médicos com a proposta de aliviar
dores e “consertar” distúrbios biológicos responsáveis pelo sofrimento
físico e psíquico (ou mental), e está induzindo uma abordagem de inter-
venção que reduz dor física e psíquica (anteriormente consideradas co-
mo questões multidimensionais) a alterações fisiológicas. Questões “não
ditas” ou “ausentes” no discurso científico podem estar ocultando aspec-
tos políticos e econômicos relacionados à produção e inserção na prática
médica desse recurso terapêutico.
A partir dessa hipótese, os textos foram abordados levando em
conta:
57
1) a questão da multidimensionalidade da
dor e do sofrimento, que vem sendo abordada pela
biomedicina com tendência a ser reduzida à dimen-
são biológica (sobre esse aspecto, as abordagens de
Illich (1977[1975]) e Horwitz e Wakefield, 2007,
subsidiaram a análise);
2) a questão da suposta neutralidade e
imparcialidade do conhecimento científico, utilizan-
do textos de Lacey (1998; 2008);
3) a questão da participação da indústria
farmacêutica na construção do conhecimento sobre
os antidepressivos, intrinsecamente vinculada ao i-
tem (2), com o apoio de autores como Pignarre
(1999; 2001), Marcia Angell (2007) e Conrad
(2007).
Para analisar a “biografia” dos medicamentos antidepressivos, a
escolha dos trechos (excertos) dos livros-texto estudados se deu em
várias etapas, e o processo de análise ocorreu desde o início, nas repeti-
das leituras dos textos. Mesmo nas primeiras leituras, realizadas mais
superficialmente para a escolha dos trechos a serem trabalhados de for-
ma mais minuciosa, o olhar esteve direcionado para alguns aspectos,
tais como:
a) Quais são as argumentações
oferecidas para justificar o uso dessas drogas
(em quais situações, quais os possíveis me-
canismos de ação, quais as vantagens do seu
uso, etc.);
b) Como são apresentados possí-
veis efeitos benéficos e possíveis efeitos co-
laterais;
c) Como é abordada a questão da
indústria farmacêutica em relação à pesquisa
desses medicamentos e qual a influência
dessa indústria no desenvolvimento do dis-
curso científico, que a pesquisa de fárma-
cos também tem sido financiada por ela;
d) Como foram abordados aspec-
tos sociais, econômicos e históricos em rela-
ção ao desenvolvimento e uso de medica-
mentos;
58
e) Como foi tratado o contexto
clínico e social em que o uso de medicamen-
tos ocorre, tanto no que se refere à relação
médico/paciente, como em relação ao doente
e seu problema de saúde;
f) Quais aspectos foram aborda-
dos ou não em relação ao uso desses medi-
camentos (dúvidas em relação à forma de
ação, limitações do uso dessas drogas, pos-
síveis efeitos em longo prazo, entre outros,
que podem surgir a partir da leitura dos tex-
tos e a partir da leitura dos textos teóricos
que servem de referência para a análise do
texto técnico-científico);
g) De que modo os medicamen-
tos se articulam com as atividades clínicas
vigentes na época em que aparecem, inclu-
indo as categorizações de diagnósticos das
doenças mentais como, por exemplo, os
DSM.
Inicialmente foi realizada uma primeira leitura do índice (Table
of Contents/Contents) de todas as edições e identificadas seções que
poderiam servir de material para análise. Num primeiro momento, optei
por fazer cópia (em todas as edições, com exceção da 4ª, da qual pos-
suía um exemplar da tradução em português que me foi doado), das
seguintes partes dos livros:
1. Prefácio (apresentação de cada uma das edi-
ções; em todas as edições repetia-se o primeiro prefácio além
do atual);
2. Índice do início do livro (Índice/Table of con-
tents/Contents)
31
;
31
Os primeiros escritores portugueses utilizaram a expressão “Tabuada da Matéria” ou “Tábua
da Matéria” para indicar as principais partes ou capítulos de uma obra e sua localização no
texto, segundo a numeração das páginas. Encontramos em francês a expressão equivalente,
Table des Matières”, utilizada com o mesmo fim. Em inglês havia a expressão Table of
Contents”, a qual, obedecendo ao espírito sintético dessa língua, simplificou-se para Con-
tents”, atualmente em uso. A palavra “Índice”, derivada do latim Index, icis, de muito
vem sendo usada em substituição a “Tabuada da matéria” ou “Tábua da matéria”. Nessa acep-
ção podemos encontrá-la averbada nos melhores léxicos da língua portuguesa. “Sumário”
provém do latim “Summarium”, derivado de “Summa”, “a parte mais importante, a parte
essencial”. Portanto, as duas palavras, “Índice” e “Sumário” são antigas e de uso corrente em
português, a primeira para indicar a relação da matéria e sua localização no texto e a segunda
59
3. Seções ou capítulos que tratavam dos medica-
mentos em geral (tais como modo de ação, farmacocinética,
farmacodinâmica, efeitos adversos, toxicologia);
4. Seções ou capítulos que tratavam de medica-
mentos atuantes no sistema nervoso central (SNC);
5. Seções ou capítulos que tratavam de neuro-
transmissores ou neuro-humores (esta uma denominação mais
antiga dos primeiros);
6. Seções ou capítulos que tratavam de substân-
cias liberadas em outros locais do organismo que não as sinap-
ses, mas que fossem relacionadas às substâncias liberadas no
SNC (por exemplo, “autacoides”, incluindo histamina e sero-
tonina,);
7. Apêndice sobre “princípios de prescrição”, en-
contrado ao final de todas as edições.
Os capítulos e seções obedecem a uma disposição peculiar a cada
livro. A partir das cópias das seções referidas, foi encaminhada uma
segunda etapa. Nessa etapa fiz a leitura cuidadosa de todos os prefácios
e dos índices (Índice/Table of contents/Contents), buscando conhecer a
forma como cada edição foi estruturada. Nos prefácios referência às
modificações importantes ocorridas em cada uma das obras: inclusão de
novas drogas, novos capítulos, partes que foram suprimidas, seções
novas acrescentadas, transferência de capítulos que estavam em uma
seção em determinada edição e depois foram incluídos em outras, etc.
Uma característica a ser destacada é que a primeira edição de 1941 tem
seu prefácio publicado em todas as outras, com prefácios adicionais
repetindo os objetivos iniciais da obra, reforçando alguns deles e acres-
centando outros objetivos e características que aparecem em cada uma
das edições. Nos índices foi possível visualizar a divisão da obra em
“seções” e as subdividivisões em capítulos.
Em um terceiro momento, fiz a leitura do índice remissivo alfabé-
tico da penúltima edição (10ª), buscando identificar palavras/temas rela-
cionados aos antidepressivos. Minha intenção foi buscar essas palavras
no índice alfabético em uma das últimas edições para verificar se em
algum outro capítulo, além daqueles que havia copiado, havia refe-
para designar um pequeno resumo destinado a orientar o leitor (REZENDE, 2004). Nos livros
analisados, as edições em português utilizaram “Índice” para aquele do início da obra, em que
constam os capítulos e seções, e “Índice Alfabético”, para o índice ao final da obra, no qual
constam as palavras em ordem alfabética com sua página de localização. Nas edições em inglês
encontrei Table of Contentsou Contentspara o índice do início da obra e Index para
aquele ao final da obra.
60
rência ao tema de estudo. De uma forma geral, a estruturação da 10ª e da
11ª edições segue um mesmo padrão. O livro é estruturado em seções
que contêm de um a vários capítulos. As seções da 10ª e 11ª edições são
as mesmas, com exceção de uma delas, da 10ª edição, que foi excluída
(“Sobre vitaminas”) na 11ª edição. Os capítulos são praticamente iguais,
com mínimas modificações, como a exclusão de alguns poucos na 11ª
edição, tal como o chamado “História dos anestésicos”. Como inicial-
mente não fiz cópia de todos os índices alfabéticos remissivos, apenas
de algumas delas (além dos exemplares completos das 1ª, 2ª, e
edições), e tinha o índice alfabético remissivo da 10ª edição disponível,
onde os antidepressivos aparecem de forma semelhante à 11ª (ou seja,
próximo daquilo que se fala hoje em termos de farmacologia), fiz a lei-
tura detalhada do índice remissivo da 10ª edição. Nesse índice remissivo
foram pesquisados:
a) As palavras relacionadas aos
medicamentos em geral (efeitos colaterais,
modo de ação dos medicamentos, medica-
mentos, entre outras);
b) As palavras relacionadas aos
processos farmacológicos ocorridos no SNC
ou com substâncias que têm sido relaciona-
das aos medicamentos nele atuantes (seroto-
nina, dopamina, noradrenalina, etc.);
c) Os nomes de medicamentos
utilizados para tratamento de problemas re-
lacionados à saúde mental (esquizofrenia,
depressão, distúrbio bipolar);
d) Os sintomas e categorias clí-
nicas relacionados a problemas de saúde
mental (suicídio, insônia, depressão, altera-
ção de humor).
Esses são alguns exemplos de palavras. Com essa identificação,
foi possível constatar duas situações. A primeira e mais importante delas
foi que, de uma forma geral, as palavras (temas) incluídas nas categorias
descritas acima fazem parte dos capítulos que haviam sido copiados
inicialmente. Ou seja, nessa edição analisada, as palavras relacionadas
aos problemas psiquiátricos e medicamentos estavam nos capítulos que
se referem à farmacologia relacionada ao SNC, confirmando o que era
esperado.
No entanto, a segunda situação observada foi que, fazendo parte
de uma minoria dos casos, alguns temas relacionados aos antidepressi-
61
vos são desenvolvidos em outras seções e capítulos que não aqueles
relacionados ao SNC. Por exemplo, a expressão serotonin receptors
modulators” está indexada em um capítulo que não se referia à farmaco-
logia ou à descrição de drogas que intervêm nessa via para um distúrbio
depressivo, mas aos antieméticos
32
e a agentes utilizados para síndrome
do intestino irritável. Como esse texto se encontra em uma seção ou
capítulo não copiado na primeira etapa, porque se refere a problemas do
trato gastrointestinal, fiz a anotação do capítulo que se refere a esse tema
e, quando necessário, pude utilizar essa referência (ou outras semelhan-
tes) de duas formas. Diretamente nessa edição, para avaliar a pertinência
do texto para análise, e indiretamente, anotando o tema (serotonin re-
ceptors síndrome do intestino irritável) para buscá-lo em outras edi-
ções se necessário. Digo “se necessário” porque nem todas as referên-
cias encontradas no índice alfabético, mesmo que relacionadas aos anti-
depressivos, como no exemplo acima, foram consideradas importantes
para a análise, principalmente porque uma minoria dos temas relaciona-
dos está fora dos capítulos relacionados ao SNC. A partir dessas duas
constatações, optei por não avaliar os outros índices alfabéticos remissi-
vos de forma sistemática, deixando essa opção de análise para eventuais
necessidades percebidas no decorrer do trabalho.
Surgiu, então, outra questão. Como localizar nas primeiras edi-
ções questões relacionadas à farmacologia dos antidepressivos se, em
algumas delas, essas drogas ainda não existiam ou estavam no início do
seu desenvolvimento e inserção no mercado e na prática biomédica?
Uma das estratégias foi analisar as seções relacionadas ao SNC, con-
forme já foi referido. Por outro lado, a divisão das seções com seus capí-
tulos nas primeiras edições segue uma lógica diferente da que ocorre nas
últimas, pois a farmacologia daquela época difere daquela de hoje. His-
toricamente, as primeiras edições estão mais distantes do que se fala
hoje sobre medicamentos em geral e sobre antidepressivos especifica-
mente. Alguns exemplos:
a) Se um medicamento era utili-
zado como antidepressivo na década de
1960 e não o é mais atualmente, mesmo as-
sim os textos que se referem a eles teriam
que ser incluídos no estudo. Da mesma for-
ma, um texto que se refere a um medica-
mento que atualmente está incluído na cate-
goria “antidepressivos” e na década de 1950
32
Antieméticos: medicamentos utilizados para combater a náusea e o vômito.
62
era utilizado como “antipsicótico”, e não
como antidepressivo, por exemplo, também
poderia ser alvo de análise na edição de
1950. Nesse último caso ficou mais simples,
porque os capítulos que tratam de drogas pa-
ra psicoses estão incluídos nas seções sobre
o SNC, mesmo nas primeiras edições;
b) Uma das primeiras drogas uti-
lizadas como antidepressivo foi a iproniazi-
da, derivada da isoniazida, esta última utili-
zada para tratamento da tuberculose no final
da década de 1940. A isoniazida não consta
como antidepressivo na segunda edição do
livro, embora ao falar de suas ações como
droga contra a tuberculose haja referência ao
seu efeito euforizante;
c) Nas duas primeiras edições,
não um capítulo ou seção específico para
“doenças psiquiátricas” ou “distúrbios psi-
quiátricos”, nem a denominação “antide-
pressivos”, como acontece nas edições mais
atuais, tampouco a referência a drogas como
a imipramina, que foi um dos primeiros me-
dicamentos utilizados para tratar quadros
clínicos reconhecidos como depressivos. Por
outro lado, no índice remissivo das duas
primeiras edições, referência ao azul de
metileno (DAGONET; PIGNARRE, 2005,
p.32), composto a partir do qual a primeira
droga foi desenvolvida;
d) Os sais de lítio, utilizados
algumas décadas para o quadro hoje conhe-
cido como distúrbio bipolar, até algum tem-
po atrás denominado psicose maníaco-
depressiva, estão incluídos na terceira edição
em uma seção não relacionada ao SNC, e
sim junto com outros sais e íons (“Água,
sais e íons”), ou seja, não estão em uma se-
ção relacionada ao SNC.
Pensando em questões como essas, optei por comprar as duas
primeiras edições americanas (1941 e 1955) dos livros para facilitar a
63
pesquisa, que não estavam disponíveis na Biblioteca da Universidade
Federal de Santa Catarina (BU/UFSC), diferentemente das demais edi-
ções. Elas tiveram partes suas copiadas no início do trabalho, através de
um pedido de parceria com outras bibliotecas que permitiu que viessem
a Florianópolis
33
. No entanto, como eram fundamentais, pois fazem
parte da época de “gestação” e “nascimento” dos antidepressivos, embo-
ra essas drogas não apareçam antes da edição (1965) do livro, fiz a
compra dos exemplares.
Encontrei também dificuldades ao iniciar a análise da edição
brasileira (da qual fiz cópia parcial na BU/UFSC). Na avaliação do seu
prefácio, logo na primeira frase, referência às “ciências biométricas
(no original em inglês, “ciências biomédicas”, conforme pesquisa poste-
rior), uma expressão que pareceu estranha. Dessa forma, optei por ad-
quirir também a edição americana, pois é na edição do livro que
aparece pela primeira vez, incluído no capítulo “Drogas usadas no tra-
tamento das desordens psiquiátricas”, um subtítulo que se refere às
“Drogas para Depressão”.
Finalmente, como a edição (1970) que estava disponível tam-
bém era em português por doação de uma médica, optei por comprar
essa mesma edição em inglês para evitar confusões com expressões que
pareciam não traduzir o sentido original dos autores. A única edição da
qual não consegui a original em inglês foi a edição (1980). Da
(1975) à 11ª (2006) edições fiz cópia de partes das obras, uma delas em
português (6ª edição), em inglês (5ª, 7ª, 10ª e 11ª) e em português e em
inglês (8ª e 9ª). Como essas últimas edições citadas (da 5ª à 11ª) estavam
disponíveis na Biblioteca da UFSC, sempre que necessário pude recor-
rer à obra toda.
Sobre a tradução dos excertos, considero importante justificar a
tradução de dois termos utilizados no original que são centrais para a
análise: drug e medicine. Drug pode significar “droga”
34
de uma forma
geral, ou “fármaco”
35
, ou “medicamento”
36
. Medicine pode significar
33
A 1ª e a 2ª edições vieram da Universidade Federal de Minas Gerais pelo sistema de troca de
obras entre bibliotecas – COMUT.
34
Droga: O termo droga pode ser utilizado como sinônimo de fármaco, como afirmam Schen-
kel , Mengue e Petrovick, (2004, p.13): “O componente responsável pelo principal efeito do
medicamento é denominado fármaco, droga, princípio ativo ou substância ativa.” (grifo
meu)
35
Fármaco: “Substâncias capazes de modificar uma função orgânica foram denominadas
fármacos, originados do próprio homem, de fontes biológicas ou inorgânicas, ou, sintetizados
em laboratório. Suas propriedades foram identificadas e descritas por farmacologistas, utilizan-
do-se de modelos experimentais similares aos dos fisiologistas. A inserção desses efeitos em
mecanismos produtores de doenças levou alguns fármacos à condição de medicamentos.
64
“medicamento” ou “remédio”
37
. Assim, em alguns momentos, quando o
termo no original era drug, a tradução foi feita com um dos seus três
significados, de acordo com o contexto do discurso, o mesmo valendo
para medicine. Muitas vezes, quando tive disponível a mesma edição em
português, minha tradução foi diferente da tradução que consta no livro.
Por exemplo, na edição brasileira (GOODMAN; GILMAN, 1983,
p.1), o termo drug (GOODMAN; GILMAN, 1980, p. 1) foi traduzido
como “substância” na definição de farmacologia. Em casos extremos,
em que em um mesmo excerto traduzi drug com os dois significados
diferentes, optei por assinalar que no original o termo se repetia (ver p.
161 deste trabalho).
Em todas as obras foram analisados os prefácios, os índices e a
parte do texto que definiu a farmacologia e suas subdivisões na aborda-
gem da farmacologia como ciência e dos aspectos gerais do livro. As
duas primeiras edições, embora não se refiram às drogas antidepressi-
vas, foram analisadas cuidadosamente, pois elas refletem como ocorreu
o início da farmacologia como ciência e como disciplina. A definição do
que abrange o estudo da farmacologia e a questão do vínculo da indús-
tria farmacêutica foram exploradas nessas edições. Outro aspecto explo-
rado foi a abordagem da dor (no seu sentido sico e também de sofri-
mento em geral) e das drogas utilizadas para amenizá-la, com destaque
para as seções que tratam das drogas atuantes no Sistema Nervoso Cen-
tral. Embora o uso de drogas para tratar problemas psiquiátricos tenha
ganhado força por volta das décadas de 1940 e 1950, nessas edições não
capítulos ou seções específicas sobre “problemas mentais” ou “pro-
blemas psiquiátricos”; por essa razão, fiz a leitura de todos os capítulos
relacionados às drogas atuantes no SNC (as duas primeiras seções des-
ses livros), em busca de possíveis indicações para esses problemas.
Quando encontrada alguma referência pertinente ao tema deste estudo,
Por exemplo, nitratos passaram a ser medicamentos antianginosos quando se identificou
que seu efeito vasodilatador revertia a obstrução coronariana causadora da angina do
peito.” (grifo meu). (FUCHS; WANNMACHER; FERREIRA, 2004, p.5). Ver nota 21.
36
Medicamento: “Os medicamentos são preparações que se utilizam como remédio, elabora-
dos em farmácias, em hospitais ou empresas industriais farmacêuticas e atendendo especifica-
ções técnicas ou legais. [...] São produtos tecnicamente elaborados, com a finalidade de diag-
nosticar, prevenir, curar doenças ou então aliviar os seus sintomas e, também, para modificar
determinados estados fisiológicos. Ao utilizar medicamentos é importante ter claro a ação
esperada” (SCHENKEL; MENGUE; PETROVICK, 2004, p.11).
37
Remédio: “Remédio são os recursos ou expedientes para curar ou aliviar a dor, o desconfor-
to ou a enfermidade. [...] Remédio é um termo amplo, aplicado a todos os recursos terapêuticos
para combater doenças ou sintomas: repouso, psicoterapia, fisioterapia, acupuntura, cirurgia,
etc.” (SCHENKEL; MENGUE; PETROVICK, 2004, p.11).
65
selecionei os excertos, que aparecem neste trabalho quando abordo essas
duas primeiras edições e o uso de medicamentos para esses distúrbios.
Uma das razões para o não aparecimento de drogas psicoativas
em um capítulo específico para doenças mentais ou psiquiátricas já na 2ª
edição (1955) está relacionada ao fato de que o uso ampliado desses
medicamentos na prática médica diária acontece apenas a partir da se-
gunda metade da década de 1950. Por outro lado, vale lembrar que leva
um tempo para que determinado medicamento pesquisado e utilizado na
prática médica passe a fazer parte de qualquer livro-texto.
No caso da farmacologia, isso acontece apenas quando exis-
tem estudos sobre as repercussões da droga em pacientes a partir de
testes clínicos (nas últimas décadas) ou experiência de alguns anos (no
caso das edições mais antigas). Os autores do livro-texto lembram, em
todas as edições, que as informações sobre as drogas estão em constante
mudança e que outras fontes, atualizadas de forma mais dinâmica (por
exemplo, documentos de regulação, trabalhos científicos, entre outros)
também devem ser consultados. O tempo existente entre cada uma das
edições acaba refletindo na obra o que aconteceu nos anos anteriores,
sendo esse período mais longo entre as primeiras. Por exemplo, o que
está incluído na edição, de 1965, reflete as pesquisas e usos de medi-
camentos nos 10 anos anteriores, que a edição foi publicada em
1955. Na edição de 1970 (4ª edição) estão as pesquisas, práticas corren-
tes e documentos dos cinco anos anteriores, já que a 3ª edição é de 1965,
e assim por diante.
Nas edições seguintes, 3ª e 5ª, que passam a incluir um capítu-
lo específico para os problemas psiquiátricos e uma parte dedicada ex-
clusivamente aos antidepressivos, foram explorados esses temas, além
daqueles abordados nas edições anteriores. A partir da edição fo-
ram tratados os temas acima, relatados de uma forma geral também no
capítulo relacionado às drogas em psiquiatria, procurando pontos de
vista diferentes, ou mudanças em relação ao mesmo tema que havia
sido explorado nas edições anteriores. Muitas vezes as mudanças não
foram consideradas significantes, e por essa razão partiu-se para a análi-
se da edição seguinte ou da próxima ainda, em que houvesse algo que
pontuasse uma visão diferente daquelas anteriormente encontradas.
Além dos capítulos específicos sobre drogas em psiquiatria a par-
tir da edição, outras partes do livro foram abordadas quando havia
referência a elas no capítulo analisado, ou ainda quando alguma dúvida
sobre algum tema específico surgiu. Por exemplo: os capítulos sobre
autacoides, sobre neuro-humores, sobre neurotransmissores, sobre regu-
lação de drogas (incluindo um subitem que apareceu em todas as edi-
66
ções a partir da 3ª edição (1965), com exceção da 11ª (2006), denomina-
do “Guia para a selva terapêutica”).
Assim, este estudo se desenvolveu a partir dos livros que terão
seus títulos e alguns dados referentes a eles aqui somente descritos, para
serem analisados nos capítulos seguintes. Isso porque questões como as
mudanças nos títulos dos livros, a disposição diferente dos capítulos e
seções, entre outras características presentes em cada edição, são aspec-
tos importantes, que refletem a forma como a farmacologia e os medi-
camentos aparecem para o público em momentos históricos diversos,
como já foi referido ao discorrer sobre a AD.
A seguir é apresentada a lista com as edições analisadas neste
trabalho:
1. (1ª edição, 1941)The pharmacological basis
of therapeutics: a textbook of pharmacology, toxicology
and therapeutics for physicians and medical students. Es-
crito por Louis Goodman and Alfred Gilman, editado pela
Macmillan Company, New York
38
. impressão, dezembro de
1943. Partes da obra fotocopiadas;
2. (1ª edição, 1941)The pharmacological basis
of therapeutics: a textbook of pharmacology, toxicology
and therapeutics for physicians and medical students. Es-
crito por Louis Goodman and Alfred Gilman. Macmillan
Company, New York. Publicado em janeiro de 1941. 15ª im-
pressão, abril de 1947. Obra inteira. 1387p.;
3. (2ª edição, 1955)The pharmacological basis
of therapeutics: a textbook of pharmacology, toxicology
and therapeutics for physicians and medical students. Es-
crito por Louis Goodman and Alfred Gilman. Macmillan
Company, New York. impressão, fevereiro de 1955. Partes
da obra fotocopiadas;
4. (2ª edição, 1955)The pharmacological basis
of therapeutics: a textbook of pharmacology, toxicology
and therapeutics for physicians and medical students. Es-
crito por Louis Goodman and Alfred Gilman. Macmillan
Company, New York. (The Macmillan Company New York,
38
Encontrei na internet uma edição em espanhol, de 1945, Bases Farmacologicas de la Tera-
peutica, publicada pela Union Tipográfica Editorial Hispanoamericana, Buenos Aires, Cara-
cas, Guatemala, Lima, Montevideo, Rio de Janeiro e mais duas cidades que não consegui
identificar (< http://br.gojaba.com/book/698530/Bases-Farmacologicas-de-la-Terapeutica-Em-
2-Tomos-Louis-Goodman-e-Alfred-Gilman>. Acesso em: 10 janeiro 2010).
67
Chicago, Dallas, Atlanta, San Francisco, London, Manila
39
. In
Canada Brett Macmillan LTD. Galt, Ontario). Obra inteira. 8a
impressão 1964.
5. (3ª edição, 1965)The Pharmacological Basis
of Therapeutics: a textbook of pharmacology, toxicology
and therapeutics for physicians and medical students. Edi-
tado por Louis Goodman and Alfred Gilman. Macmillan Com-
pany, New York (Collier-Macmillan Limited London; Collier-
Macmillan Canada Limited Toronto). Obra inteira.
6. (3ª edição, 1965) As bases farmacológicas da
terapêutica. Editado por Louis Goodman e Alfred Gil-
man.Guanabara Koogan, Rio de Janeiro. Edição Brasileira
traduzida da Edição Americana. 1967. Partes da obra foto-
copiada.
7. (4ª edição, 1970) As Bases farmacológicas da
terapêutica. Editado por Louis Goodman e Alfred Gilman.
Guanabara Koogan, Rio de Janeiro. Edição Brasileira tradu-
zida da 4ª Edição Americana. 1973. Obra inteira.
8. (5ª edição, 1975) The pharmacological basis
of therapeutics. Editado por Louis Goodman e Alfred Gilman
(Alfred G. Gilman e George B. Koelle, editores associados)
40
.
Mcmillan Publishing Co. New York (Collier Mcmillan, Cana-
da. Baillière Tindall, London). Partes da obra fotocopiadas.
9. (6ª edição, 1980) As bases farmacológicas da
terapêutica. Editado por Alfred Goodman Gilman, Louis S.
Goodman e Alfred Gilman (editores associados: Steven E.
Mayer e Kenneth L. Melmon). Guanabara Koogan, Rio de Ja-
neiro. Edição Brasileira traduzida da Edição Americana.
1983. Partes da obra fotocopiadas.
10. (7ª edição, 1985) Goodman and Gilman´s:
the pharmacological basis of therapeutics
41
. Editado por Al-
fred Goodman Gilman, Louis Goodman, Theodore W. Rall e
Ferid Murad. Macmillan Publishing Company, New York
39
Manila – cidade das Filipinas
40
A 5ª edição brasileira é de 1978, Editora Guanabara Koogan, 1478 p.
41
Há uma observação na contracapa dessa edição destacando que a Macmillan Publishing
Company detém os direitos autorais das primeiras edições de 1941, 1955, 1965, 1970 e 1975,
intituladas The pharmacological basis of therapeutics, e da primeira edição de 1980, intitu-
lada Goodman e Gilman´s: the pharmacological basis of therapeutics.
68
(Collier Macmillan Cana, Inc. Collier Macmillan Publishers,
London).
42
Partes da obra fotocopiadas.
11. (8ª edição, 1990) Goodman e Gilman: as ba-
ses farmacológicas da terapêutica. Editado por Alfred
Goodman Gilman, Theodore W. Rall, Allan S. Nies e Palmer
Taylor. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro. 8ª Edição Brasilei-
ra traduzida da Edição Americana. 1991. Partes da obra fo-
tocopiadas.
12. (8ª edição, 1990) Goodman and Gilman´s:
the pharmacological basis of therapeutics
43
. Editado por Al-
fred Goodman Gilman, Theodore W. Rall, Allan S. Nies e
Palmer Taylor. Pergamon Press (Member of Maxwell Macmil-
lan Pergamon Publishing Corporation New York, Oxford, Bei-
jing, Frankfurt, São Paulo, Sydney, Tokyo, Toronto). Partes da
obra fotocopiadas.
13. (9ª edição, 1996) Goodman and Gilman´s:
the pharmacological basis of therapeutics
44
. Editado por Joel
Hardman, Lee E. Limbird, P. B. Molinoff, R. W. Ruddon, and
A. G. Gilman. Edição internacional. McGraw-Hill, New York.
Partes da obra fotocopiadas.
14. (10ª edição, 2001) Goodman and Gilman´s:
the pharmacological basis of therapeutics. Editado por Joel
G. Hardman, Lee E. Limbird e Alfred Goodman Gilman.
McGraw-Hill, Medical Publishing Division, New York (Chi-
cago, San Francisco, Lisbon, London, Madrid, Mexico City,
Milan, New Deli, San Juan, Seoul, Singapore, Sydney, Toron-
to). [International Edition
45
] Partes da obra fotocopiadas.
15. (11ª Edição, 2006) Goodman and Gilman´s:
the pharmacological basis of therapeutics. Editado por Lau-
rence L. Bruton, John S. Lazo e Keith L. Parker. McGraw-Hill
Companies, Inc. 2021p.
42
A 7ª Edição brasileira é de 1983, pela Editora Guanabara Koogan.
43
Há uma observação semelhante à nota 41, incluindo as edições de 1980 e 1985.
44
Há uma observação semelhante à nota 41, incluindo as edições de 1980 e 1985.
45
Na página em que está a ficha catalográfica do livro há a seguinte observação: “A edição
internacional não está disponível na América do Norte”.
69
2 ANTIDEPRESSIVOS E DEPRESSÃO: UM LONGO CAMINHO
ATÉ A DOENÇA E O MEDICAMENTO
Se hoje situações como a “loucura” e a “depressão” são aceitas
como condições passíveis de serem abordadas e tratadas como proble-
mas médicos por meio do uso de medicamentos, nem sempre foi assim
(talvez para alguns grupos sociais em que a visão hegemônica não é a da
biomedicina, até hoje essas situações sejam consideradas não médicas).
Pensando apenas na abordagem biomédica, embora hoje o medicamento
esteja no centro da terapêutica, reforçando uma etiologia farmacológica
das doenças mentais baseada no funcionamento defeituoso da neuro-
transmissão cerebral, no decorrer do tempo encontraremos para esses
distúrbios explicações, critérios, diagnósticos e abordagens diferentes.
Porter lembra que “as relações entre estar raivoso ou louco como uma
emoção extrema ou comportamento excêntrico (por um lado) e a loucura
como um diagnóstico médico (por outro lado), são complexas e contro-
versas” (PORTER, 1996b, p. 278). Mais ainda, para aqueles que consi-
deram a loucura uma doença, restam dúvidas sobre o que é a loucura,
quais suas causas e o que pode ser feito no sentido de intervir sobre ela.
O tema deste estudo são os medicamentos denominados “antide-
pressivos”, que surgem por volta da metade do século XX para tratar
uma situação clínica reconhecida como “depressão”. No entanto, é na
segunda metade do século XIX que “nascem” as pesquisas farmacológi-
cas que investigam substâncias para dar origem a medicamentos tais
como os utilizados hoje, agindo sobre um local específico do organismo
biológico para tratar determinados problemas de saúde. Entre esses pro-
blemas está a “depressão”, que vai originar o desenvolvimento e o uso
dos medicamentos chamados antidepressivos. Levando em conta que a
entidade nosológica “depressão” surgiu em determinado momento histó-
rico e não é uma categoria “natural”, mas construída para lidar com
determinadas situações em que o indivíduo se encontra, a proposta neste
capítulo é fazer uma abordagem de situações que nos remetem a esse
quadro em períodos anteriores à “Era dos Antidepressivos” na medicina
ocidental.
Essa condição, a depressão, ou distúrbio depressivo, que hoje
aparece de uma forma naturalizada, como se sempre houvesse existido
enquanto condição biológica, e a partir da qual se pensou o uso de de-
terminadas drogas para combatê-la (os antidepressivos), pode incluir
várias situações sob o mesmo rótulo. Ao nos depararmos com a história
dos chamados distúrbios mentais, e aqui se incluem os transtornos de-
pressivos, quer seja na sociedade ocidental ou em outros contextos so-
70
cioculturais, podemos observar que os limites para caracterizar esses
quadros dificilmente são precisos e sofrem influências do momento
histórico da sociedade em questão.
2.1 PRIMÓRDIOS DA BIOMEDICINA
No Ocidente, na Antiguidade havia a busca de explicações ra-
cionais sobre a natureza, a sociedade e a consciência. Em relação à lou-
cura/perda da razão, podem ser identificadas nessa época duas tradições
buscando entender essa situação. Numa delas, expressa na cultura atra-
vés da arte, os dilemas humanos e as paixões podem levar à loucura
como resultado de conflitos da alma. Nas palavras de Porter, “uma guer-
ra civil psíquica torna-se intrínseca à condição humana” (PORTER,
1996b, p.280), podendo ter como resultado a perda da razão. A outra
explicação está relacionada à medicina hipocrática, nascente nesse perí-
odo, em que se buscam causas naturais para os problemas humanos
através de explicações empíricas e racionais. A medicina ocidental mo-
derna, apesar de muito diferente da medicina grega antiga, tem nesta
última um de seus “pontos de partida” no que se refere à busca de expli-
cações naturais e racionais para os problemas de saúde.
O século V a.C. na Grécia, segundo o relato de historiadores
(NUTTON, 1996; PORTER, 2004), parece ser a época em se encontram
os primórdios, no ocidente, da medicina que tenta romper com práticas
sagradas envolvidas nos processos de intervenção sobre a saúde, predo-
minantes até então. É desse período a explicação das doenças baseada
no desequilíbrio de quatro humores/fluidos essenciais: o sangue (fonte
da vitalidade); a bile amarela, ou cólera (indispensável à digestão); a
fleuma (que incluía várias secreções transparentes e inespecíficas); e a
bile negra, um líquido escuro com origem atribuída ao baço (capaz de
misturar-se aos outros fluidos provocando escurecimento dos mesmos).
Nesse esquema explicativo, o predomínio de determinado fluido tam-
bém caracterizava traços corporais e psicológicos dos indivíduos, confi-
gurando quatro personalidades e temperamentos, os tipos colérico,
fleumático, sanguíneo e melancólico. Segundo essa visão, quando exis-
tisse excesso de um desses fluidos, instalar-se-ia algum distúrbio ou
doença (NUTTON, 1996; PORTER, 1996b; PORTER, 2004; HORT-
WITZ; WAKEFIELD, 2007).
A classificação baseada nos humores e fluidos corporais perpetu-
ou-se em épocas seguintes. Seu esquema explicativo, que incluía os
elementos ar, água, terra e fogo, além das polaridades quente e frio, seco
e úmido, relacionado-os com a personalidade, com as doenças, com os
71
ciclos da natureza e o próprio ciclo de vida do homem, continuou nos
séculos seguintes. Os médicos gregos intervinham sobre as alterações da
saúde relativas ao desequilíbrio dos humores sugerindo principalmente
mudanças no estilo de vida (alimentação, atividade física, sono). Às
vezes prescreviam preparados à base de plantas ou outras substâncias,
sangrias, e eventualmente realizavam cirurgias. Mais do que ter êxito na
intervenção, importava ser fiel ao doente e principalmente não prejudi-
cá-lo – primum non nocere (PORTER, 2004), expressão lembrada ainda
hoje na biomedicina moderna. Importava o homem e seu contexto na
elaboração de um diagnóstico, considerando suas relações com o meio
em que vivia, tanto o meio físico como o social.
Por exemplo, em relação à melancolia (que literalmente significa
“excesso de bile negra”, levando a determinadas características de per-
sonalidade, como a introspecção, sensibilidade exagerada a estímulos
externos, apetite pouco intenso, entre outras), esta poderia ser um atribu-
to do indivíduo, sem que isso representasse doença (PORTER, 2004;
HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007). Caso essas características fossem
muito exacerbadas em alguém que as possuísse antes (personalidade
melancólica não relacionada a qualquer distúrbio) ou aparecessem em
indivíduos que tinham outras características corporais e de personalida-
de, sem causa aparente ou a ponto de torná-lo isolado do seu grupo soci-
al, levando a perda de peso importante, tornando-o incapaz de realizar
suas atividades cotidianas ou provocando ideias e tentativas de suicídio,
então a melancolia se caracterizava como um quadro de doença. Uma
terceira situação de melancolia também era descrita, na qual, a partir da
ocorrência de um evento externo importante – perda de um grande amor,
perda de um filho apareciam sintomas melancólicos que com o tempo
desapareceriam. Embora naquela época essas três situações fossem ca-
racterizadas como melancolia, a primeira e a última não eram conside-
radas distúrbios. Já a segunda era vista como distúrbio e como evento de
vida que necessitava de acompanhamento médico. A melancolia como
desordem, ou desordem da bile negra, englobava outras situações, como
a epilepsia, estados paranoides, desordens psicóticas e até abscessos.
Vale a pena destacar que os casos considerados distúrbios eram acom-
panhados da perda de conexão com o “mundo real”, de alucinações,
ideias de perseguição e de outras características que sugerem algum
componente que, segundo a abordagem biomédica atual, chamaríamos
de psicótico. (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007). Nessa época também
foram descritos os casos de mania, aos quais eram atribuídos “excesso
de calor relacionado ao sangue e ao coração”. (PORTER, 1996b;
HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007).
72
Embora não se falasse em farmacologia nem se conhecessem os
mecanismos de ação das poções que eram administradas, foram assina-
ladas alterações de humor pelo uso de substâncias exógenas. Além das
alterações dos humores desencadeadas por mudanças internas do orga-
nismo, foram também relatados ataques de fúria ou mania (“com visí-
veis furor, excitação e euforia”) causados pela ingestão de bebidas alco-
ólicas, de mandrágora
46
e ébano negro
47
em cultos religiosos (PORTER,
1996b, p.281). Nos dias de hoje, poderíamos considerar esses quadros
tanto como alterações de consciência causadas por uma substância psi-
coativa quanto como manifestações psicóticas desencadeadas por essas
mesmas substâncias, mas que permaneceram após cessar sua ação far-
macológica.
Pouco mais à frente, Galeno, médico grego que viveu em Roma,
teve papel importante na medicina ocidental por sistematizar o conhe-
cimento médico existente até então e por inovar, propondo maior inter-
venção sobre o processo saúde e doença (ao contrário do que acontecia
até essa época, em que mais se acompanhava o curso dos problemas)
(LORENZANO, 1998). Ele também descreveu alguns eventos na área
dos distúrbios mentais. Repetiu a definição de melancolia hipocrática,
que foi vigente nos cerca de 600 anos anteriores: “medo ou humor de-
primido (Galeno utiliza o termo “distimia”), que permanece por longo
tempo” (JACKSON, 1986, apud HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007,
p.60), descrevendo os sintomas básicos e enfatizando os sintomas psicó-
ticos nos quadros de melancolia: medo da morte e desejo de morrer,
alucinações, ódio das pessoas e, ao mesmo tempo, falta das pessoas.
Galeno destacou também o critério “sem causa” (externa) para caracte-
rizar esse quadro como doença, o medo gerado pelo “excesso de bile
negra no cérebro”, diferente daquele gerado por um fator externo que
justificasse os sintomas. Essa visão da melancolia como uma tristeza
sem razão, um “medo de coisas que não são temíveis”, medo sem causa,
46
Mandrágora Mandragora officinarum, Mandragora officinallis e outras plantas do gênero
Mandragora, família das solanáceas. Planta com provável origem no Mediterrâneo, conhecida
desde a antiga China e a antiga Grécia por suas propriedades anestésicas e psicoativas. Era
também chamada de “planta do diabo”, pois dizia a lenda que aquele que a consumisse conse-
guiria conquistas, mas o preço seria a venda de sua alma. As raízes da planta assemelham-se à
forma de um humano, e era considerada mágica, inclusive com propriedades afrodisíacas e de
fertilidade. Na Palestina, onde pode ser encontrada em abundância, era chamada “maçã do
amor” pelos hebreus, e o livro da Gênese (Antigo Testamento) faz referência à mandrágora e à
sua propriedade de intervir na fertilidade (CLARK, 1962; ZARCONE, 2005). Na Idade Média,
fazia parte das substâncias utilizadas como anestésicos durante as cirurgias (QUICK, 2006).
47
Planta rica em alcaloides, originária da Europa e utilizada desde a Antiguidade em templos
para acesso aos oráculos. Na Idade Média fazia parte das substâncias utilizadas como anestési-
cos em cirurgias (QUICK, 2006). Diospyrus ebenum (WIKIPEDIA, 2006).
73
como algo diferente de uma reação proporcional a estímulos externos
que a justificariam, persiste nos séculos seguintes, mas é somente na
Renascença que a abordagem da melancolia volta a ter o destaque na
área médica que possuía nas antigas Grécia e Roma (HORTWITZ;
WAKEFIELD, 2007, p.61).
A partir do Século XVI, além do enfoque médico que se difundiu
nos séculos anteriores, baseado na busca de causas “naturais”, caracteri-
zando a melancolia como o distúrbio de uma “tristeza sem causa”, apa-
rece novamente a questão das causas divinas relacionadas à melancolia
(PORTER, 1996b; HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007). Bright, médico
inglês, descreve em 1568 no Tratado sobre a melancolia a diferença
entre a melancolia doença e a melancolia que surge como resultado da
culpa, acusada pela consciência daquele que transgride as leis e sofre as
consequências da fúria divina. No entanto, não deixa de assinalar que,
quando os sintomas não são resultado dessa culpa, deve-se considerar
que existe um distúrbio (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007).
Outra obra desse período é o clássico Anatomia da melancolia
48
,
escrito por Robert Burton (BURTON, 2007 [1832/1651-2]
49
) em 1621 e
com várias edições posteriores revisadas por ele próprio, até mesmo a de
1651-2, primeira edição após a morte do autor (BURTON, 1832;
CHAPPLE, 1993; DEWEY, 1971; LYON, 1996). Burton (1577-1640)
foi um clérigo anglicano, escritor, que viveu em Oxford. Ele próprio
parece ter sofrido a condição de melancólico, e, talvez, seu interesse e
dedicação a essa obra estivesse relacionado a isso (DEWEY, 1971;
TRAISTER, 1976). Sua obra reflete os pensamentos da época, mas tam-
bém está baseada nos escritos dos antigos ele se refere à época clássi-
48 O nome completo do livro é: The Anatomy of Melancholy, What it is, with all the Kindes,
Causes, Symptomes, Prognostickes and Several Cures of it: In Three Maine Partitions With
Their Several Sections, Members, and Subsections, Philosophically, Medicinally, Historically
Opened and Cut up, by Democritus Junior.
49 Esta edição está disponível em:
<http://ebooks.adelaide.edu.au/b/burton/robert/melancholy/complete.html>. Acesso em: 17
agosto 2008. Segundo consta no início da publicação, como referências da obra, parece ser
derivada da edição de 1832 publicada por Longman, Rees & Co. Consta também que a edição
de 1832, por sua vez, foi reimpressa a partir da edição de 1651-2, a primeira após a morte do
autor, em função de que, segundo uma nota da edição de 1832 (ver sub item “Account of the
author”, sem página na internet), essa versão teria sido corrigida pelo próprio Burton antes de
sua morte. Seriam oito as edições no século XVII: 1621, 1624, 1628, 1632, 1638, 1651-2, 1660
e 1676. Lyons (1996) refere seis edições da obra com a participação do autor, excluindo as
duas últimas publicadas sem a participação do mesmo (ainda que a 6ª edição tenha sido publi-
cada após sua morte, ele realizou alterações nela).
74
ca, inclusive em relação ao helebore
50
, planta utilizada pelos gregos,
mas que no século XVII não era mais considerada um recurso terapêuti-
co válido (CHAPLLE, 1993). Chapple (1993), ao analisar a Anatomia
da melancolia de Burton e o mapeamento dessa condição, refere que
muitos textos gregos e latinos foram “redescobertos” na época dessa
obra, e que certamente esse autor segue esse caminho, pois muitas vezes
utiliza referências de textos gregos antigos em suas metáforas (p.107).
O livro é dividido em três partes: a primeira tem o propósito de
“abrir e dissecara melancolia; a segunda pretende instruir como curá-
la; a terceira fala sobre a melancolia ligada à religião e ao amor (BUR-
TON, 2007 [1832/1651-2]). Na primeira parte, o item “Definição de
melancolia, nome, diferença" inicia dizendo, a partir da definição da
palavra melancolia:
o nome é imposto a partir do assunto, e [a] doen-
ça, denominada a partir da causa material, como
Bruel observa: Μελανχολα
51
, quase Μελαιναχό-
λη
52
. E, se ela é a causa ou um efeito, uma doença
ou sintoma, deixe[mos] Donatus Altomarus e Sal-
vianus decidir; não vou entrar em debate a respei-
to disso. (BURTON, 2007 [1832/1651-2], seção I,
member III, subitem 1)
Burton fala sobre as “partes afetadas” e, apesar de pontuar sua
dúvida sobre quais seriam estas, destaca que acredita ser o cérebro a
parte mais afetada no corpo. Trata também dos fatores relacionados à
melancolia: as estações do ano, o parentesco, a idade, a maior frequência
50 Helebore (Helleborus Níger L.): sobre essa planta ver
<http://194.254.96.52/main.php?key=ZnVsbHxlMzQ4MjB4MTV4OTNfMTAxfHw> . Acesso
em: 30 abril 2010. Era utilizada nos templos gregos de cura, e Chaple (1993) destaca que no
trabalho de Burton (2007 [1832/1651-2]) este se refere ao helebore como uma planta não só
para curar a melancolia, mas a insanidade em geral: “Muitas cidades na Grécia foram chama-
das Antícera, e todas famosas por seu helebore negro, uma planta usada pelos médicos para
‘purgar a mente’. Dizer ‘ir à Anticera’ era um modo de dizer ‘você é louco’. O geógrafo grego
Strabo fez sua exposição e os referiu-se aos vários tipos de helebore que cresciam lá. [...]”
(CHAPLE, 1993, p.107). Cazenave (1837) refere-se ao helebore também como uma “miscelâ-
nea” de plantas utilizadas em vários estados “nervosos” em sua época e que diferem botânica-
mente entre si.
51 Μελανχολα - Melancolia; disponível em:< http://www.websters-online-
dictio-
nary.org/translation/Greek/%25CE%25BC%25CE%25B5%25CE%25BB%25CE%25B1%25C
E%25BD%25CF%2587%25CE%25BF%25CE%25BB%25CE%25AF%25CE%25B1>. Aces-
so em: 31janeiro 2010.
52 µελαιναχολη - melaina chole, bílis negra; disponível em:
<http://revistacult.uol.com.br/novo/dossie.asp?edtCode=2821A2A7-1F12-4309-9FB5-
E8B4354FEE9A&nwsCode=849022B6-D17B-4E56-933E-4D39AAA2253C>. Acesso em:
31janeiro 2010.
75
desse quadro em homens do que em mulheres, entre outros. Cada um
dos temas é explorado em seções específicas da obra, que tem cerca de
670 páginas. Embora não seja um tratado de medicina, Burton se baseia
também em obras de médicos, desde a medicina grega antiga, como
foi referido e como pode ser observado no trecho que fala da definição
anteriormente citada sobre os humores gregos. Embora fale do cérebro
como principal “parte acometida”, ele não afirma ser a melancolia um
problema “do cérebro”. Chama a atenção para as seguintes dúvidas:
“doença ou sintoma?”, “causa ou efeito?” (BURTON, 2007 [1832/1651-
2], Seção I, mesma parte anterior).
Esse autor descreve “loucura, melancolia e tolice” como inerentes
à condição humana: “Quem não é um tolo, melancólico ou louco? [...]
Demência, Melancolia e Loucura não são a mesma doença? Delírio é o
nome comum a elas
53
(CHAPLLE, 1993). Segundo Burton, os que
apresentam essa doença sofrem alterações no humor, na cognição e
sintomas físicos. Segundo Hortwitz, Burton insiste que somente a pre-
sença desses sintomas não caracteriza desordem: é necessária a ausência
de causa (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007). Embora o livro Anato-
mia da melancolia não tenha sido escrito para médicos, aspectos desse
tratado “médico-filosófico” (como o próprio Burton chama o texto)
refletem a visão médica da época, incluindo a persistência do critério
“sem causa” para diferenciar a “melancolia desordem” daquela inerente
à condição humana.
Nessa mesma época, cerca de dois mil dos muitos pacientes aten-
didos por Richard Napier têm sua condição cuidadosamente relatada
pelo médico inglês, que também era reverendo anglicano, astrólogo e
apotecário
54
(HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007; ROUSSEAU, 1983).
53 “Who is not a Fool, Melancholy, Mad? – Qui nilmolitur inepte, who is not brain-sick?
Folly, Melancholy, Madnesse, are not one disease? Delirium is a common name to all”.
(BURTON apud CHAPLLE, 1993, p.105-106).
54
Apotecário: O termo apotecário deriva de “apotheca”, que significa o lugar onde eram guar-
dados vinhos, especiarias e ervas. A partir do século XIII, na Inglaterra, aqueles que possuíam
um estoque desses produtos e os vendiam, passaram a ser chamados de apotecários. Por volta
da metade do século XVI, os apotecários tornaram-se o que seria hoje equivalente ao que
denominamos farmacêuticos: eles preparavem produtos medicinais e os vendiam. Em 1617, foi
fundada a sociedade de apotecários de Londres. A partir de 1704, na Inglaterra, os apotecários
passaram a ter o direito de prescrever e dispensar medicamentos, e em 1815 adquiriram o
direito legal de realizar exames e praticar a medicina. (Disponível em:
<http://www.apothecaries.org/index.php?page=6>. Acesso em: 30 abril 2010). Os apotecários
cuidavam de situações de saúde, auxiliando em partos e fazendo cirurgias, além de dispensa-
rem medicamentos, não só na Inglaterra, onde essa profissão tinha uma Sociedade desde o
século XVII. A partir do século XIX, a medicina se institucionaliza e essas últimas funções
76
Napier descreve as alterações que os pacientes apresentam e infere pos-
síveis fatores relacionados ao desencadeamento de quadros mentais,
inclusive da melancolia. Mcdonald destaca que a maior parte dos paci-
entes era levada a Napier principalmente para fazer o diagnóstico da
desordem, mais do que para algum tipo de tratamento (ROUSSEAU,
1983, p.526-527).
Nas anotações do médico aparecem três tipos de melancolia. Uma
delas é caracterizada como uma experiência universal de tristeza e dor,
resultado de perdas e conflitos; os outros dois tipos são tidos como de-
sordem: aquele em que os sintomas de tristeza e desilusão não têm causa
aparente e aquele em que, apesar de haver alguma perda importante
(morte de familiar, perda amorosa), os sintomas tornam-se muito inten-
sos e com uma duração maior do que a esperada (HORTWITZ; WA-
KEFIELD, 2007, p.65).
Sobre os tratamentos, podemos dizer que no século XVII o bem
estar físico e mental estavam interligados. As condutas de intervenção
para os distúrbios mentais, assim como para outras doenças, incluíam
orientações alimentares, caminhadas, algumas drogas (principalmente
derivadas de plantas), além do auxílio divino, através de peregrinações e
preces. Havia também os tratamentos domésticos ou de outros curadores
não médicos, com ervas e cuidados alimentares, e algumas intervenções
médicas, como sangrias e banhos, sempre buscando agir sobre o orga-
nismo para que se reequilibrasse, e não com o objetivo de intervir sobre
a doença propriamente (NUTTON, 1996; PORTER, 2004).
Nesse período, as questões religiosas ainda são consideradas por
alguns como importantes na gênese da loucura. Existe um movimento
que advoga que mesmo os desvarios da religiosa e a bruxaria são na
verdade alterações psicopatológicas decorrentes de disfunções do corpo
e que devem ser tratadas por um médico. Aqueles que perdem a razão e
não seguem as normas da sociedade não são considerados dignos de
fazer parte da vida comum. Se na Idade Média a maioria dos que eram
considerados doentes mentais (lunáticos, aflitos espiritualmente, men-
talmente perturbados) permaneciam junto à família, nas casas, aos pou-
cos essa forma de lidar foi mudando e foram se instalando instituições
para abrigar essas pessoas. Nesses locais também se encontravam prosti-
tutas, pequenos criminosos e outras pessoas “sem razão”, que eram iso-
ladas do meio social com aqueles considerados “loucos”. Porter destaca
que, se a principal razão da existência dos asilos, ou “casas para loucos”,
passam a ser exclusivas da profissão médica (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Apothecary>. Acesso em: 30.04.2010), pelo menos teoricamente.
77
era manter os doentes mentais segregados da vida na comunidade, outro
aspecto pode ser levantado: essas instituições passam a fazer parte do
comércio local e tornam-se uma fonte de lucro para quem as mantém
como negócio, inclusive com estabelecimentos de luxo para aqueles que
podiam despender somas maiores (PORTER, 1996b).
Nos séculos XVII e XVIII, as ideias da revolução científica pas-
sam a influenciar cada vez mais as explicações sobre o corpo, a natureza
e também sobre a saúde e os problemas mentais. A teoria humoral co-
meça a ser criticada, e o conhecimento anatômico do corpo, dos múscu-
los e dos nervos torna-se importante e contribui para explicar as altera-
ções que ocorrem no indivíduo (PORTER, 1996b, p.283). É dessa época
a popularização do termo “nervos” e a difusão do termo “neurose”, cu-
nhado por Willian Cullen
55
(1712-1790) como sinônimo de uma lesão
física do sistema nervoso (PORTER, 1996a). Outro termo que também
parece ter sido cunhado por essa época é o termo “depressão”. Segundo
Hotrwitz e Wakefield (2007), um famoso dicionário inglês da época,
escrito por Samuel Johnson, parece ser parcialmente responsável pelo
uso desse termo no lugar de “melancolia”. Johnson refere-se a três tipos
de melancolia: dois deles seriam desordens e um seria uma reação emo-
cional normal. Em suas definições aparece a palavra “depressão” quan-
do fala no distúrbio carregado de tristeza, desânimo e medo.
A abordagem dos distúrbios mentais começa a ter explicações di-
ferentes a partir do Renascimento, mas no final do século XVIII e início
do século XIX o critério da contextualização do quadro clínico em rela-
ção ao início dos sintomas mantém-se. Permanece também a divisão em
dois tipos básicos de melancolia: como resposta esperada para infortú-
nios e vieses da vida e como desordem, semelhante a outros distúrbios
mentais, esse último tipo tendo como causas aspectos relacionados ao
corpo físico ou a questões espiritual-religiosas, em uma época em que os
modelos explicativos coexistem e estão em disputa.
2.2 O INÍCIO DA MEDICINA MODERNA
É difícil precisar quando determinadas ideias perdem força e ou-
tras passam a ser preponderantes em um determinado contexto, pois o
fato de algumas delas influenciarem determinadas condutas em certa
55 Willian Cullen – Médico, cirurgião, estudou em Galsgow em 1727 e mudou-se para Lon-
dres em 1729. Foi um dos fundadores da Royal Medical Society de Edinburgo, depois mudou-
se para Glasgow, onde foi professor universitário nas cadeiras de medicina botânica, química e
matéria médica. Lecionou também medicina clínica no Hospital Real (STIRLING, 1902).
78
época não significa que as anteriores tenham perdido completamente seu
valor. No entanto, é possível perceber que, a partir de determinado mo-
mento, as ações, valores e modo de vida são permeados por explicações
diferentes, que justificam este ou aquele encaminhamento em relação a
uma situação específica. Pode-se dizer que, se a partir do século XVII a
teoria humoral passa a perder força, é no final do século XVIII, início do
século XIX, que as explicações racionais e a busca do conhecimento
científico embasando procedimentos médicos ganham espaço, dando
início ao que denominamos medicina moderna.
Foucault, no Nascimento da clínica, refere que:
A medicina moderna fixou sua própria data de
nascimento em torno dos últimos anos do século
XVIII. [...] esse presumido empirismo repousa
[...] em uma reorganização do espaço manifesto e
secreto que se abriu quando um olhar milenar se
deteve no sofrimento dos homens. O rejuvenesci-
mento da percepção médica, a iluminação viva
das cores e das coisas sob o olhar dos primeiros
clínicos, não é, entretanto, um mito; no início do
século XIX, os médicos descreveram o que, du-
rante séculos, permanecera abaixo do limiar do vi-
sível e do enunciável. (FOUCAULT, 2006a, p.IX)
O conhecimento do corpo, o olhar que objetiva e torna científica
a medicina, definindo os parâmetros do que é normal e do que é desejá-
vel, vai direcionar o que deve ser feito. Se, antes, observar, ter empatia,
tentar compreender o doente e intervir pouco eram as regras, agora os
parâmetros passam a ser obtidos através das observações dos órgãos
mensurados e das funções metabólicas decifradas, identificando “o que
está doente” naquele indivíduo. Ocorre uma “reorganização em profun-
didade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria possibilidade
de um discurso sobre a doença” (FOUCAULT, 2006a, p XVI). A doen-
ça passa a ter mais importância do que o doente. É preciso conhecer a
história da primeira, para poder intervir sobre ela. A doença passa a ser
uma entidade ideal, independente daquele que está doente, e existe um
momento certo para agir sobre ela para que a cura ocorra. “Médicos e
doentes não estão implicados, de pleno direito, no espaço racional da
doença; são tolerados como confusões difíceis de evitar: o paradoxal
papel da medicina consiste, sobretudo, em neutralizá-los” (FOU-
CAULT, 2006a, p.8).
Ao mesmo tempo em que ocorre uma mudança de direção do fo-
co do doente para a doença, outro processo se desenvolve no período
próximo à Revolução Francesa. Segundo Foucault, a medicina passa a
79
atender a dois mitos. O primeiro deles é o de uma profissão instituciona-
lizada, coordenada pelo Estado e que visa permitir o controle do ambi-
ente em que a doença ocorre. O segundo mito é o da ausência de doen-
ças, uma “sociedade sem distúrbios e sem paixões” (p. 34), tomando da
Igreja o papel de consolar almas e aliviar o sofrimento. Além das técni-
cas de cura, esse novo modelo passa a abordar as condições de vida
individuais e sociais, e para evitar as doenças, cria-se um modelo de
homem saudável, que se torna um ideal a ser atingido (FOUCAULT,
2006ª, p.35-37).
Até o fim do século XVIII, a medicina considerava válido que “o
único lugar possível de reparação da doença é o meio natural da vida
social a família” (p.42), desaconselhando a manutenção dos hospitais.
Por outro lado, a necessidade de proteção dos sadios em relação às
doenças contagiosas e em relação às “doenças complexas, extraordiná-
rias” (p.44). No início da anatomopatologia, quando a profissão médica
se institucionaliza, o hospital transforma-se em um aliado do conheci-
mento de algumas ciências que contribuem para a arte de curar, assu-
mindo um papel importante na formação e prática médicas (FOU-
CAULT, 2006a).
Embora os hospitais existissem desde os primeiros séculos da
Era Cristã (NUTTON, 1996), mantidos por instituições filantrópicas e
religiosas, a partir dos séculos XVIII e XIX, passam a ser locais onde os
médicos atuam e iniciam a construção de uma nova medicina (FOU-
CAULT, 2007). Aparecem os hospitais especializados para doenças
venéreas, para crianças, para os distúrbios mentais (que passam a ser
conhecidos como hospícios, depois manicômios, asilos de loucos e hos-
pitais psiquiátricos), entre outros. Se anteriormente eram apenas depósi-
tos de pessoas sem esperança de melhora, agora são provocadas inter-
venções buscando combater as doenças, o que na prática não significa
muita coisa: os hospitais, e mais ainda os hospitais psiquiátricos, conti-
nuam funcionando como um depósito de indivíduos sem esperança de
melhora e de retorno ao seu meio social (NUTTON, 1996; PORTER,
2004), ainda que sejam o espaço de produção do saber médico.
Se, por um lado, ocorre um declínio da influência das questões
religiosas na explicação dos quadros de melancolia, dando espaço às
explicações decorrentes de observações médicas, um processo que vinha
ocorrendo desde o início do século XVIII, por outro lado, os critérios da
contextualização (“com causa”, “sem causa”) e da intensidade despro-
porcional ao evento que desencadeia o quadro, continuam sendo impor-
tantes. Os escritos de Pinel, Esquirol e outros psiquiatras da época, da
Europa e dos Estados Unidos, reafirmam essa visão. Philippe Pinel
80
(1745-1826) escreve em 1800 o livro que marca o início da psiquiatria
na França: Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale.
Nesse tratado, entre outros assuntos abordados, o tópico específico
sobre os tipos de desordem mental, que seriam cinco: “a melancolia;
mania com delírio; mania sem delírio; demência, ou abolição do pensa-
mento, e idiotismo, ou obliteração das faculdades intelectuais, mentais e
emocionais” (NICOLAS, [2008?]).
Pinel descreve os sintomas da melancolia: a tristeza, o medo de
todas as coisas, os delírios (que podem ser diferentes, tanto em relação a
indivíduos distintos, como em fases diversas da vida do mesmo indiví-
duo), gerando ansiedade e atormentando o melancólico. Refere-se tam-
bém aos sintomas de mania naqueles acometidos pela melancolia: “de-
pois de muitos anos [pode haver], uma forte revolução interior por cau-
sas incomuns, e seu delírio muda de objeto ou toma uma nova forma”.
Para ilustrar essa característica, Pinel conta o caso de um homem que,
inicialmente internado com apatia e dificuldade para se alimentar, de-
pois de alguns anos passa a se sentir poderoso “como o Criador e sobe-
rano do mundo, ideia que lhe faz sentir uma felicidade suprema” (PI-
NEL, 1816, p.592).
Sobre o tratamento da melancolia, Pinel fala em duas abordagens
terapêuticas: a primeira delas pretende “destruir a ideia dominante dos
melancólicos, combater seus delírios exclusivos”; a outra consiste em
“operar a cura radical da doença” (PINEL, 1816, p. 593). Sobre essa
última abordagem, destaca que é importante ir atrás das causas da me-
lancolia. Se a tristeza e a ansiedade ocorrem por determinada situação de
vida, esta deve ser modificada. Para isso, aconselha que a melancolia
seja combatida com um “bom regime físico e moral”, através de exercí-
cios físicos, equitação, viagens, mudança na alimentação, ou até através
da música, com o intuito de modificar as condições externas que estão
propiciando o aparecimento dos sintomas (p.595). Embora se fale na
doença melancolia, o doente ainda é o foco da ação do médico na visão
de Pinel, e a necessidade de contextualização aparece claramente neste
trecho sobre a melancolia:
É impossível curar radicalmente a melancolia se
não destruirmos as causas que a produzem. [...] É
através de um regime físico e moral que deve con-
sistir o tratamento da melancolia. [Para isso] é
preciso ser um médico hábil em encontrar os mei-
os, em determinar as escolhas e a ordem dessas
escolhas, de acordo com o conhecimento da cons-
tituição particular da doença, da idade, do sexo,
81
das ocupações habituais e do país que o paciente
habita, e, sobretudo, as causas ocasionais da do-
ença e o tempo que ela tem percorrido. (PINEL,
1816, p.595, grifo meu)
Ainda quanto ao tratamento, Pinel se refere também ao uso de
medicamentos quando a causa da melancolia for física: se o doente não
está evacuando, que se administrem laxativos; se existe outra situação
de acometimento físico (lesão de pele, gota, etc.), que seja tratada. Nos
casos em que grande abatimento, ele recomenda o uso de substâncias
“analépticase tônicos, como a quinina misturada com o ópio
56
. Além
disso, recomenda cuidados alimentares (p.596).
Sobre a obra de Pinel, que contribuiu de forma importante para
que as “doenças dos nervos” mantivessem o estatuto de “não orgânicas
até o início do século XIX, Foucault (2006a) destaca que:
seu método requer apenas secundariamente a clí-
nica ou a anatomia das lesões; fundamentalmente,
trata-se da organização, segundo uma coerência
real, mas abstrata, de estruturas transitórias pelas
quais o olhar clínico ou a percepção anatomopato-
lógica procuraram, na nosologia existente, seu
suporte ou seu equilíbrio de um instante. (FOU-
CAULT, 2006ª, p.194)
Embora nessa época já ocorresse a busca de uma localização para
a doença, um órgão anatomicamente alterado, a anatomopatologia não
podia dar conta de algumas situações, como as febres e as doenças men-
tais, porque não se achava a “lesão”. O método classificatório, que tam-
bém estava no cenário em relação à abordagem das doenças nesse perí-
odo, reafirmava essa visão, e as febres e doenças mentais permaneceram
como “não orgânicas”. Segundo Foucault (2006a), embora reconheci-
das, essas alterações foram preteridas pelos fundadores da visão anato-
moclínica, como Bichat, por não possuírem uma localização específica
56 Joseph Caventou (1795-1877), químico e vice-presidente da Academia de Medicina na
França (Dispnível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Joseph_Bienaim%C3%A9_Caventou>
Acesso em: 10 julho 2010) , e Joseph Pierre-Joseph Pelletier (1788- 1842) (Disponível em:
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/449295/Pierre-Joseph-Pelletier> Acesso em: 10
julho 2010) isolaram vários alcalóides na década de 1820. A emetina, da ipeca (Psychotria
ipecacuanha), uma planta brasileira; a quinina, da Cinchona officinalis, e a morfina, do ópio,
extraído da Papaver somniferum. A Cinchona officinalis é uma planta americana trazida por
volta de 1630 para a Europa que, inicialmente utilizada para febre, tornou-se um tônico am-
plamente difundido. O ópio é conhecido desde as antigas civilizações como medicamento para
induzir o sono, controlar a dor e para o tratamento da diarreia, além de ser utilizado como
droga recreativa (WHEATERAL,1996). Essas e outras substâncias, como a cafeína, eram
utilizadas nos preparados à base das plantas nas quais ocorrem naturalmente, e, a partir dessa
época, passam a ser isoladas e assim utilizadas.
82
no corpo (p. 191-193). A classificação desenvolvida por Pinel sobre
diferentes tipos de doenças mentais, incluindo a melancolia e os casos
em que ela aparecia alternando períodos de mania, prescinde da anato-
mia patológica e se baseia na análise dos comportamentos do doente.
2.3 DA MELANCOLIA DOS ANTIGOS À DEPRESSÃO DO SÉCU-
LO XX, PASSANDO PELO CONCEITO DE “LIPEMANIA” DE ES-
QUIROL
A psiquiatria, por essa época, entre os séculos XVIII e XIX, está
em desenvolvimento em vários países da Europa, e as ideias de Pinel,
que dão início à psiquiatria na França, são um marco importante na psi-
quiatria de todo o continente europeu. Elas continuam sendo desenvol-
vidas por seus sucessores, e entre eles está Étienne Esquirol (1772-
1840), que desenvolve os conceitos de monomania e lipemania (lypé-
manie), relacionados à melancolia, a partir das observações relatadas
por Pinel. Logo no início de seu livro
57
que classifica as doenças men-
tais, Esquirol propõe que para os casos em que existe uma situação pato-
lógica “com delírio circunscrito e fixo de tristeza”, o termo “melancolia”
seja substituído por “monomania”. Propõe que o termo melancolia seja
utilizado nos casos de tristeza ou outras características, como introspec-
ção e ideias fixas, que acometam certos indivíduos, mas que não carac-
terizem um “quadro médico” (ESQUIROL, 1838, p.398-399).
Esquirol argumenta que o termo melancolia, criado pelos antigos
como sinônimo de bile negra, não pode ser mais utilizado porque os
modernos sabem que o quadro de “melancolia” não ocorre devido a um
distúrbio da bile, que levaria às alterações de humor
58
. O termo mono-
mania (“mono” um, único; “mania” obsessão, ideia fixa) seria utili-
zado porque o delírio desse tipo de distúrbio “é fixo, parcial, [quer seja
ele] alegre ou triste”, um delírio sem febre (p.398). O aspecto comum
nesse distúrbio seria o fato de os sintomas estarem relacionados à sensi-
bilidade e às paixões humanas; por esse motivo, tais paixões deveriam
57 ESQUIROL, Jean Étienne Dominique. Des maladies mentales considérées sous les rap-
ports médical, hygiénique et médico-légal. Paris : J.-B. Baillière, 1838, Vol.I..
58 “Les auteurs, depuis Hippocrate, donnent le nom de mélancolie au délire caractérisé par la
morosité, la crainte e la tristesse prolongées. Le nom de mélancolie a éte imposé à cette espèce
de folie, parce que, selon Galien, les affetions morales tristes dépendent dúne dépravtion de la
bile qui, devenue noire, obscuirit les esprits animaux et fait délirer. Quelques modernes ont
donné plus déxtension au mot mélancolie, même dans la acception des anciens, offre souvent à
lésprit de une idée fausse, car la mélancolie ne dépend pas toujours de la bile” (ESQUIROL,
1838, p. 398).
83
ser conhecidas, pois “os delírios dos monomaníacos são exclusivos,
fixos e permanentes, como as ideias do homem apaixonado” (ESQUI-
ROL, 1838, p.400).
Outro ponto levantado por Esquirol, seguindo o que havia sido
destacado por Pinel, é o das formas sob as quais o distúrbio aparece: o
delírio ou ideia fixa vai ser diferente em contextos diferentes: se para um
francês o delírio é de um tipo, para um japonês vai ser de outro; para um
religioso vai ser diverso do de um camponês. Segundo Esquirol, se o
quadro é observado no indivíduo, a sociedade deve ser analisada, e o
processo civilizador está relacionado ao distúrbio:
Aquele que deseja se aprofundar no estudo da
monomania não pode desconhecer os conheci-
mentos relativos ao progresso e à marcha do espí-
rito humano, em consequência, a frequência dessa
doença está diretamente relacionada ao desenvol-
vimento das faculdades intelectuais. [...] muito
que se diz ser a loucura uma doença da civiliza-
ção, e seríamos mais exatos se o disséssemos so-
bre a monomania: com efeito, a monomania é tan-
to mais frequente quanto mais a civilização é a-
vançada (ESQUIROL, 1838, p. 399-400).
Esquirol faz então a diferenciação dos tipos de monomanias: uma
com delírios “fixos” e permanentes, que podem ser alegres, com exalta-
ção, e, em outras épocas, de tristeza e ideias opressivas. Para esse tipo
ele propõe a manutenção do termo monomania, dedicando-lhe uma
seção do seu livro. O segundo tipo, ao qual ele chama “lipemania” (ly-
pémanie, “lypé”= tristeza, dor; “mania”= ideia fixa, obsessão), é carac-
terizado pela presença de um delírio “parcial”, com sentimentos de tris-
teza e opressão. Esquirol refere que a lipemania seria a melancolia triste
dos antigos, a mesma tristimania de Benjamin Rush (1745-1813)
59
(HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007, p.67), médico considerado o “pai
da psiquiatria americana” (APA, 2010; HORTWITZ; WAKEFIELD,
2007). Embora tenha inicialmente proposto que o termo melancolia não
fosse mais utilizado para os estados patológicos, mas apenas para as
situações de tristeza não caracterizadas como distúrbios, admite o termo
melancolia para este último tipo, a lipemania, em função do seu uso
consagrado na prática e na literatura médica desde os antigos (ESQUI-
ROL, 1838, p.403-404). Temos aqui então uma nova classificação dos
59 Esquirol cita o livro de Rush em que é feita a classificação da tristimania, Medical inquires
and observations upon the diseases of the mind – Filadélfia, 1812. (ESQUIROL, 1838,
p.403).
84
distúrbios que até então eram considerados como melancolia: (a) os
casos categorizados como monomanias, que anteriormente estavam
incluídos nos casos considerados como melancolia e que Esquirol pro-
põe considerar como outra categoria de doença mental; e (b) os casos de
lipemania, que anteriormente também eram considerados como melan-
colia e aos quais ele propõe um novo nome, ressaltando que em função
do uso consagrado do nome possam continuar sendo considerados como
melancolia.
O termo lipemania não substitui o termo melancolia em outros
países, como Reino Unido, Alemanha e Áustria (BERRIOS, 1996), mas
as descrições dos psiquiatras franceses em relação a essa doença, em que
um distúrbio das emoções e o afeto predominante é a tristeza, contri-
buíram para a delimitação desses quadros, antes incluídos com outras
situações sob o termo melancolia. Mesmo os psiquiatras que continua-
ram utilizando o termo melancolia para as situações de doença com
intensa tristeza encontram na sistematização da “lipemania” subsídios
para sua abordagem médica.
Sobre a descrição dos casos de lipemania, para os quais aceita a
utilização de melancolia como sinônimo, e a abordagem destes, Esquirol
dedica um capítulo (83 páginas) do primeiro volume de seu mencio-
nado tratado Des maladies mentales considérées sous les rapports
médical, hygiénique et médico-légal. Ali o autor faz uma revisão breve
desse distúrbio sob o ponto de vista de diversos autores, desde Hipócra-
tes, passando por Galeno e outros autores da Antiguidade, até seus con-
temporâneos ou os que escreveram um pouco antes dele. Pontua então
algumas questões que parecem ser controversas ou pouco esclarecidas.
Algumas delas são: a) sobre o delírio, Hipócrates refere a presença de
tristeza e sensibilidade prolongadas sem a menção a delírios, ao passo
que Razhés
60
refere um delírio parcial nesses casos; b) a inclusão da
hipocondria e da histeria entre os componentes da melancolia por al-
guns, e c) a distinção entre esses três distúrbios para outros autores.
Sobre esses pontos mal definidos, Esquirol lembra que:
[Provam] a flutuação e a incerteza de opiniões so-
bre as características e a natureza dessa doença:
nós a cremos bem definida ao dizer que a melan-
colia com delírio ou lipemania é uma doença ce-
rebral caracterizada por um delírio parcial, crôni-
co, sem febre, por uma paixão triste, debilitante
ou opressiva. (ESQUIROL, 1838, p.406)
60 Razhés: médico persa, viveu entre 865-925 d.C.
85
Ele considera que o delírio existe na melancolia, mas é parcial,
diferente daquele que ocorre na monomania, que é fixo. Considera a
melancolia
61
(lipemania) como situação diferente da hipocondria, pois
nesta última, segundo ele, não existe delírio, e sim uma supervalorização
dos sintomas por parte daqueles que estão sofrendo. A hipocondria, por
sua vez, ocorre como consequência de alterações físicas que modificam
a ação do estômago e alteram as funções digestivas (p.407). Ainda dis-
tinguindo a hipocondria, acredita que os melancólicos possuem um
componente hereditário, que nascem com um temperamento melan-
cólico que “os dispõem” a desenvolver a lipemania, e essa disposição
seria acentuada pela educação e “componentes morais” (p.406-407).
Aqui aparece a abordagem multifatorial do distúrbio mental, se falásse-
mos em linguagem contemporânea, considerando fatores predisponen-
tes, como os genéticos, mas necessitando de fatores ambientais para que
o quadro se manifeste.
Esquirol passa então a relatar casos clínicos para desenvolver su-
as explicações sobre “as causas que a produzem [a lipomania], os sinto-
mas que a caracterizam, a marcha que lhe é própria, suas terminações e
seu tratamento” (p.407). Sobre os sintomas, nos casos relatados descre-
ve a tristeza, falta de apetite, presença de movimentos lentos ou quase
imobilidade, o medo de tudo e de todos como “delírio” ou “ideia fixa” e
a persistência da razão como ponto importante, diferenciando a lipema-
nia de outros quadros de distúrbio mental em que há perda da razão:
Parece que mantêm em ão toda sua potência in-
telectual para se fortalecer em seu delírio; é im-
possível imaginar toda a força, toda a sutileza de
seus raciocínios para justificar suas prevenções,
suas inquietudes, suas crenças: raramente pode-
mos convencê-los, jamais podemos persuadi-los:
“eu entendo bem o que você me diz”, me refere
um melancólico, “você tem razão, mas não posso
crer-lhe”. [...] eles não são jamais irracionais.
(1838, p.419-422)
Fala também da insônia, da inquietude, sobre uma grande sensibi-
lidade a estímulos externos, e destaca o medo, o temor como sintoma
importante, que, ao lado da tristeza é o sentimento que caracteriza for-
temente o quadro de lipemania (ou melancolia como desordem):
61 Melancolia aqui é utilizada como sinônimo de lipemania, e não de tristeza intensa, refletin-
do o quanto um termo consagrado por longo período ainda faz parte da linguagem, embora o
próprio autor se proponha a utilizar outro termo, que é lipemania.
86
Tudo age sobre eles [os doentes] com uma im-
pressão muito viva [...], o frio, o calor, a chuva, o
vento [...], o silêncio [...], tudo é forçado, tudo é
exagerado em sua maneira de sentir, de pensar e
de agir. (1838, p. 413)
São solapados por um sentimento vago que não
tem nenhum motivo. “Eu tenho medo”, dizem es-
ses doentes; “eu tenho medo”, mas de quê? “Eu
não sei, mas tenho medo”. Seu exterior, sua fisio-
nomia, suas ações, seus discursos, tudo exprime
um olhar de terror, o mais profundo, o mais pun-
gente, do qual eles não conseguem nem se distrair
nem triunfar [sobre ele]. (1838, p.417)
O medo, a tristeza e a sensibilidade exagerados estão também
presentes na melancolia não doença, mas nos casos clínicos relatados
por Esquirol percebe-se que esses sintomas levam a limitações impor-
tantes na vida do indivíduo, como inanição, impossibilidade de manter o
papel social, e até à morte, quer seja ela passiva ou o suicídio de uma
forma ativa, por “raiva ou tédio” (Esquirol, 1838 [1821]).
Hortwitz destaca que a desproporção dos sintomas e a resposta
intensa a determinados estímulos para os quais habitualmente não se
esperaria tanta reação são pontos assinalados por diversos autores dessa
época. Ele cita vários psiquiatras, tais como Benjamin Rush, Henry
Maudsley
62
, Wilhelm Griesinger
63
, Jonh Charles Bucknill
64
, George
62
Henry Maudsley (1835–1918) foi um pioneiro na psiquiatria inglesa. Formou-se em 1857 no
University College London e foi editor de1862 a 1878 do periódico publicado pela Associação
Médico-psicológica, o Journal of Mental Science, hoje conhecido como The British Journal
of Psychiatry. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Henry_Maudsley >. Acesso em:
30 abril 2010.
63
Wilhelm Griesinger (29 July 1817 - 26 October 1868) foi psiquiatra e neurologista alemão.
Estudou na Universidade de Zurique, trabalhou em vários locais na Alemanha, permaneceu um
tempo no Egito e depois retornou ao primeiro país, onde trabalhou com crianças institucionali-
zadas por problemas mentais. Em Berlin fundou dois periódicos importantes relacionados à
saúde mental: Medicinisch-psychologische Gesellschaft e Archiv für Psychiatrie und
Nervenkrankheiten. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Griesinger>.
Acesso em: 30 abril.2010.
64
Jonh Charles Bucknill (1817–1897) foi um medico inglês que atuou na reforma da saúde
mental da Inglaterra. Filho de um cirurgião, iniciou seus estudos em Dublin e terminou em
Londres. Em 1875 Bucknill viajou para a América. Visitou asilos nos Estados Unidos e Cana-
dá e relatou essas visitas no livro Notes on Asylums for the Insane in America.. Nessa mes-
ma ocasião foi convidado a participar da associação dos superintendentes médicos para as
insituições de insanos (precursora da APA). Em 1853 fundou o Journal of Mental Science,
participando como seu editor até 1862 e foi co fundador da revista Brain. (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/John_Charles_Bucknill>. Acesso em: 30 abril 2010)
87
Savage
65
e Richard von Krafft-Ebing´s
66
, que falam dessa desproporção,
sempre lembrando que os sintomas são os mesmos que acometem os
não doentes. Esses autores assinalam que a doença é caracterizada pela
intensidade desses sintomas e pela capacidade que têm de “tomar conta”
da vida do indivíduo, pois sentimentos de medo e tristeza ou mesmo
certos sintomas físicos podem ocorrer em alguns momentos da vida sem
caracterizar um quadro de doença. (HORTWITZ;WAKEFIELD, 2007,
p.66-71)
O segundo subtítulo da obra de Esquirol no capítulo sobre a li-
pemania trata das causas desse distúrbio. Segundo esse autor, não
uma causa, mas inúmeras, algumas comuns a outros distúrbios men-
tais, destacando-se entre essas a hereditariedade. Esquirol se propõe,
então, a listar as causas específicas da lipemania, as que considera mais
frequentes e que têm ação imediata em relação às características do
quadro apresentado. Uma delas seria o clima. Tanto determinadas regi-
ões (como as montanhas, que seriam locais em que é mais comum a
presença de melancólicos), como a passagem das estações do ano reper-
cutiriam no desencadeamento dos quadros. Lembra que outros antes
dele referiram o outono como a estação em que mais quadros apare-
cem, mas destaca ter observado muitos casos de internação na primavera
e verão, e paradoxalmente, segundo ele próprio, a primavera seria a
época em que ocorrem mais casos de cura. Esquirol propõe, então, que
se olhe com cuidado para esse tópico e se discuta mais o tema (1838,
p.422).
Outro fator relacionado à lipemania seria a idade, e Esquirol a-
ponta a ocorrência de casos desde a infância e a adolescência, depois na
idade adulta e mais raramente na velhice. Lembra que na adolescência
os conflitos entre os desejos e a educação religiosa podem desencadear
um quadro de lipemania. Na idade adulta, os jovens seriam os mais
acometidos (entre 25-35 anos), mas destaca que as mulheres que entram
na menopausa estão sujeitas ao distúrbio, “particularmente aquelas que
fizeram do mundo e da coqueteria a única ocupação de sua vida frívola”
65
George Henry Savage (1842-1921) foi um proeminente psiquiatra inglês. Seu trabalho mais
importante foi a obra Insanity and Allied Neuroses, um livro de referência para estudantes
publicado em 1884 e revisado em 1894 e 1907 (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/George_Savage_(physician)>. Acesso em: 30 abril 2010).
66
Richard von Krafft-Ebing´s (1840 – 1902) foi um psiquiatra alemão que desenvolveu traba-
lhos a respeito da sexualidade. Escreveu a obra Psychopathia Sexualis (1886), uma série de
estudos de caso abordando questões da sexualidade humana. Trabalhou em vários asilos e por
décadas foi uma autoridade no tema relacionado à diversidade sexual, sendo seu livro uma das
obras mais influentes nessa área antes dos trabalhos de Freud (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Richard_von_Krafft-Ebing >. Acesso em: 30 de abril de 2010).
88
(1838, p.427). Após os 55 anos, refere que são raros os casos, a não ser
que se fale em melancolia senil”, em que indivíduos com uma vida
turbulenta tornem-se retraídos, avarentos e injustos com seus familiares
e com a sociedade. Destaca que, segundo sua observação, a questão da
idade parece ser semelhante em relação às diversas classes sociais, in-
clusive em relação às classes altas.
Em terceiro lugar, Esquirol fala sobre o sexo, sendo as mulheres
mais suscetíveis a desenvolver o distúrbio, fato relatado desde os anti-
gos. Mas, pondera, não seria porque “nossas mulheres são mais sedentá-
rias” e estão sujeitas a situações às quais os homens não estão, como “a
menstruação, a gravidez, o parto e a amamentação” (1838, p.428-429)?
O próximo fator causal destacado é o temperamento. O “melan-
cólico dos antigos(o “bilioso-nervoso de Hallé
67
”) predisporia ao de-
senvolvimento do quadro de lipemania. Esquirol descreve as caracterís-
ticas físicas dos que possuem esse temperamento, e aqui podemos iden-
tificar uma semelhança com os escritos antigos, que se perpetuaram em
épocas seguintes. A exacerbação de uma característica do indivíduo
(geralmente inteligente, ligado às artes ou à ciência, com ideias fortes)
que possuía um temperamento melancólico início ao quadro de
distúrbio melancólico (ou lipemania).
Um quinto fator é abordado: a profissão ou “maneira de viver”.
As profissões ou os modos de vida que incluem a atividade física regu-
lar seriam fatores protetores em relação a esse distúrbio. A passagem de
uma vida com muita atividade para uma vida ociosa, o hábito de estudar
sem dar espaço para exercícios físicos, ou profissões que levem a essa
situação, principalmente aquelas “concentradas sobre um só objeto, e se
esse objeto é abstrato, místico ou romântico”, predisporiam ao apareci-
mento da doença (1838, p.431).
Os fatores “físicos” são citados em sexto lugar, responsáveis por
enfraquecer o organismo, podendo levar à lipemania. Entre essas causas
estariam incluídos o jejum e a fome prolongados, os alimentos de difícil
digestão (Esquirol desaconselha o leite para aqueles que têm um tempe-
ramento melancólico), o abuso do ópio, as bebidas quentes, as bebidas
alcoólicas, a masturbação, a contenção de uma evacuação habitual e
outras doenças que quando curadas dão lugar ao quadro de lipemania
(úlceras, quadros de mania, entre outros).
67 Jean-Noel Hallé (1754-1822) – estudou na faculdade de medicina de Paris, escreveu várias
obras, incluindo questões de higiene e saúde pública. Foi professor do Collège de France e
membro da Academia Nacional de Medicina. Foi defensor das idéias de Lavoisier (DUBOIS,
1852; WIKIPEDIA, 2009).
89
Como último fator importante no desencadeamento desse distúr-
bio, Esquirol cita as paixões:
As paixões são verdadeiras loucuras, mas loucuras
passageiras; elas se apoderam das faculdades inte-
lectuais, absorvem-nas tão energicamente que o
homem não é mais capaz de pensar em outra coisa
que não o objeto de sua paixão. [...] Se as paixões
têm uma influência sobre todas as nossas funções
[nervos, coração, cérebro e outras vias orgânicas],
em relação ao estado de saúde, mais enérgica será
essa influência sobre uma doença na qual a desor-
dem das paixões constitui a principal característi-
ca. (1838, p.434)
Entre as paixões, o autor enumera o amor contrariado, o ciúme, o
temor “que é a percepção de um mal futuro ou que nos ameace”
(p.435) e o terror (de um mal presente). Essas seriam as que, segundo
Esquirol, produzem o maior número de casos de lipemania nos jovens,
nas mulheres e nas classes mais baixas. Ele cita ainda a ambição, a ava-
reza, o amor-próprio ferido, os reversos da fortuna e o jogo como pai-
xões que predispõem os adultos, os “homens feitos” e indivíduos de
classes sociais mais altas ao distúrbio, e afirma que as “paixões tristes”
são as que mais levam a quadros de lipemania com delírio (1838,
p.435).
Segundo Esquirol, “as causas não produzem efeitos imediatos”
no indivíduo, e um melancólico pode se tornar hipocondríaco (que para
ele é outro distúrbio), “trocando” de doença. Ele lembra que outra situa-
ção seria quando o indivíduo se fixa em questões de doença, mas o qua-
dro é típico de melancolia, o que o autor propõe que se denomine “lipe-
mania hipocondríaca”. Em alguns desses casos, os sintomas de tristeza
levam ao marasmo e à morte, e o indivíduo refere ter algum corpo estra-
nho dentro de si (no estômago ou no abdômen, por exemplo) ou até que
têm “o diabo dentro do corpo”. Nesses doentes, ao fazer-se a abertura do
cadáver encontrou-se algum tipo de lesão importante: uma úlcera, um
câncer, peritonite crônica, entre outros. Essas considerações podem nos
fazer pensar que, provavelmente, essas situações produziam um descon-
forto físico importante nesses indivíduos, e tal desconforto era verbali-
zado como “corpo estranho”, “demônio” ou qualquer outra figura que
representasse algo que não era seu “normalmente”.
A multicausalidade é considerada por Esquirol, ao contrário de
outras abordagens que buscam uma causa única, como uma alteração
anatômica a ser reparada: para a lipemania, assim como para outras
doenças, ele considera que as causas podem ser (1) remotas, ou distan-
90
tes, e (2) próximas, ou desencadeantes. O autor destaca que essa não é
uma classificação estática e que, principalmente, é difícil haver uma só
causa. Segundo ele, geralmente existem causas sobrepostas ou consecu-
tivas contribuindo para o desencadeamento do quadro (p.437-438).
Outra observação sobre as causas é a de que muitas vezes elas
não podem ser identificadas, e aqui Esquirol cita Hipócrates e outros
autores que o precederam, concordando que muitas vezes não se conse-
gue identificar as causas ou fatores desencadeantes. No entanto, acres-
centa que o olhar cuidadoso do médico torna essa “descoberta” mais
fácil. Para “descobrir” as causas, ressalta, é importante conhecer o “mo-
do de vida” do paciente (p. 439)
68
.
Levando em conta a forma como a lipemania se comporta, Esqui-
rol a classifica em contínua, renitente ou intermitente, sendo a segunda o
tipo mais comum. Ele acredita que a cura pode ocorrer espontaneamente
no início dos quadros, mas ressalta que as curas mais duradouras são
precedidas de uma crise “física ou moral”: um episódio de vômito, san-
gramento, até uma crise de mania, “uma paixão violenta, bruscamente
provocada, que faz divergir da ideia fixa” (1838, p.441), mas o mais
comum seria o indivíduo passar lentamente da situação de melancolia
(lipemania) para a situação de mania. Esse fato provocaria, muitas ve-
zes, a confusão da lipemania com a mania. Outra possibilidade seria a
“degeneração para um caso de demência”, caso em que as ideias fixas
persistem, mas os doentes perdem a coerência e a racionalidade presen-
tes no quadro inicial (de lipemania). Finalmente, os casos em que os
indivíduos não se curam e desenvolvem doenças orgânicas por comerem
pouco e ficarem debilitados. Eles acabam suscetíveis às afecções crôni-
cas, habitualmente a “tísica” (tuberculose) ou outras afecções abdomi-
nais.
Esquirol dedica um tópico do capítulo sobre a lipemania para fa-
lar da “abertura dos corpos” e conclui que a anatomopatologia não en-
contra aspecto característico nessa doença: L’anatomie pathologique
n’a rien appris de positif sur le siège de la mélancolie(p.442). O que
ele encontra são as características mais comuns das doenças crônicas das
68
Vale a pena chamar a atenção para o fato de que o cuidado e a atenção dispensados para
conhecer o modo de vida de um doente requerem disponibilidade de tempo por parte do profis-
sional médico. Habitualmente são necessários vários encontros entre ambos para que se estabe-
leça uma relação de confiança e para que situações de conflito, dificuldade ou crise possam ser
expostas pelo doente e visualizadas pelo médico. Esse é um fator importante a ser pontuado, pois
cada vez mais o tempo dedicado ao contato com o doente está sendo reduzido, tanto em função
do grande número de pacientes que o médico tem que atender, como em função da necessidade
de redução de custos por parte de planos de saúde (públicos ou privados).
91
quais esses pacientes acabam morrendo. Lembra que os antigos falavam
da bile negra alterando as funções do cérebro e que vários autores (seus
contemporâneos) tentaram achar esse líquido na abertura dos corpos,
mas não o encontraram. Destaca que na necropsia, outro líquido amare-
lado aparece no cérebro desses pacientes, mas esse líquido também é
encontrado em outros cadáveres, de indivíduos que não sofriam de me-
lancolia; portanto, tal líquido não pode ser “nem efeito, nem causa dessa
doença” (1838, p.444).
Esquirol também refere não ter encontrado nenhuma característi-
ca peculiar no cérebro dos melancólicos e discorda de achados sobre
consistência, tamanho cerebral e outros. A única alteração que considera
digna de nota é o fato de ter observado que nos corpos daqueles acome-
tidos pela lipemania frequentemente o cólon estava em posição anatô-
mica diferente da habitual, mas não acredita que a troca de posição ana-
tômica seja consequência da doença, mas uma alteração prévia presente
nesses indivíduos. Essa anormalidade foi encontrada em corpos necrop-
siados acometidos de outras doenças, mas em frequência bem menor.
Sobre essa alteração, Esquirol procura relacioná-la com o que desta-
cavam os antigos: que os melancólicos habitualmente se queixam de
desconforto abdominal que não apresenta melhora com laxantes ou ou-
tros procedimentos (1838, p.465).
O autor deixa, portanto, essas duas observações como achados
das necropsias: a primeira está relacionada a alterações por doenças
crônicas e inflamatórias das quais esses doentes acabam morrendo (in-
fecções do trato gastrointestinal, tuberculose); a segunda, uma alteração
anatômica de cólon que não parece ser consequência da melancolia nem
de outras doenças crônicas que acometem esses indivíduos, mas uma
característica prévia que poderia estar relacionada às queixas de dores e
desconforto abdominal desses doentes.
Essas descrições reafirmam a posição da não localização cerebral.
Embora Esquirol baseie-se na visão científica, a partir da observação
sistemática e das considerações da medicina da época, que busca nos
corpos as alterações das doenças, ele continua reafirmando que o distúr-
bio principal não está no corpo. Considera que o distúrbio aparece no
corpo, como não poderia deixar de ser, e mesmo que existam causas
predisponentes nesse corpo, sua origem está em outra instância, a das
“paixões”, ou, como poderíamos chamar hoje, das emoções. Seguindo
essa linha de abordagem multicausal e com papel importante para as
paixões na gênese desses distúrbios, Esquirol propõe tratamentos que
abrangem diferentes aspectos da vida do doente, afirmando que não é
possível tratar essa doença apenas com medicamentos:
92
É preciso, antes de toda medicação, estar bem
convencido de que essa doença é difícil de curar,
que a medicina moral, que procura no coração as
primeiras causas do mal, que lastima, que consola,
que partilha os sofrimentos e que desperta a espe-
rança, é frequentemente preferível a qualquer ou-
tra. Deve-se sempre estar bem informado das cau-
sas distantes e das causas próximas. O tratamento
da lipemania pode ser higiênico, moral ou farma-
cêutico. (ESQUIROL, 1835, p.465)
Esquirol enumera, então, algumas medidas para intervenção nes-
ses casos. Inicia com a questão do clima/estações do ano. Busca nos
antigos a referência sobre os benefícios do clima seco e com temperatu-
ra branda para a recuperação desses doentes. Corrobora essa indicação
exemplificando com casos assistidos por ele e que tiveram êxito com a
mudança do paciente para outra cidade na época em que o clima estava
frio e úmido, evitando nova crise como havia acontecido por anos se-
guidos anteriormente. Fala a seguir sobre as vestimentas, que devem
aquecer esses indivíduos, com tendência a sentir “frio nos pés” (p.467).
Em terceiro lugar, fala sobre os alimentos: dever-se-ia evitar os alimen-
tos irritantes, gordurosos e outros de difícil digestão, preferindo vegetais
e frutas, principalmente aquelas doces, do verão. Cita autores que rela-
tam casos de cura com o uso abundante dessas últimas. A próxima refe-
rência é em relação aos exercícios (equitação, caminhar, mexer na terra,
entre outros) e as viagens. Ambos são considerados muito importantes
para a recuperação daquele acometido pela lipemania:
O exercício, de qualquer maneira que seja feito, é
sem objeção um dos grandes recursos para com-
bater a lipemania; as viagens, que agem sobre o
cérebro por suas impressões, fazendo passar de
alguma forma através da inteligência uma multi-
plicidade de imagens incessantemente renovadas,
destroem necessariamente essa fixação de ideias,
essa concentração da atenção (ESQUIROL, 1838,
p.468)
O texto segue com a sugestão de ocupação do doente: tarefas ma-
nuais, estudar ou escrever, considerando essas ações como medidas
terapêuticas e sempre dando preferência àquelas que estejam aliadas a
uma atividade física. Em sexto lugar, Esquirol cita a importância do
isolamento: o “estar só” exerceria “um poder misterioso que reabilita as
forças morais” do paciente (p.470). uma sétima medida terapêutica,
os banhos mornos, preconizados desde Galeno e ainda considerados por
93
Esquirol como recurso útil. Em seguida, ele comenta sobre as dificulda-
des de urinar e evacuar dos pacientes, e sugere que devem ser tomadas
medidas (alimentares, banhos) para facilitar essas funções. Cita também
a vantagem do coito no processo de cura (também uma referência anti-
ga) e questiona se o efeito terapêutico seria proporcionado por seu as-
pecto físico ou pelo aspecto moral. Por fim, além das regras higiênicas
que citou, fala sobre um item que considera importante: abordar as pai-
xões desses doentes, o que requer grande habilidade por parte do médi-
co, pois essas paixões aparecem de formas diferentes em cada um deles.
Pode ser necessário “substituir uma crença real por uma imaginária [...]
[ou] conquistar sua confiança, relevar sua coragem abatida fazendo
nascer a esperança em seu coração” (p.472).
Esquirol sugere que o médico deve usar a criatividade para dissu-
adir o doente de suas crenças. Ele conta, por exemplo, que uma mulher
acreditava ter engolido uma serpente, então seu médico colocou de fato
uma serpente no vaso enquanto ela vomitava. Depois desse episódio, ela
saiu do quadro melancólico. A música também seria um recurso para
agir sobre as paixões, segundo ele utilizada em outros transtornos men-
tais, e que, dentre todos os distúrbios mentais, teria um efeito ainda mai-
or sobre a melancolia.
O tratamento de funções orgânicas alteradas, que está diretamente
relacionado às questões físicas, é recomendado sempre que associado ao
tratamento moral e higiênico, pois Esquirol reforça ser a lipemania uma
doença de fundo moral, mas que tem aspectos físicos no seu desenvol-
vimento. Destaca que a ação sobre as funções fisiológicas contribui para
a cura desses doentes e lembra que “em cada época os tratamentos são
preconizados segundo o conhecimento dessa época”, citando o uso do
helebore (negro ou branco) pelos antigos, como “medicamento de exce-
lência da melancolia” para restabelecer o fluxo da “bile negra” (1838,
p.477). Em sua época, preconiza a substituição dessa planta por outras
mais conhecidas ou sais que tenham efeito semelhante (laxativos e capa-
zes de provocar vômitos) com menos efeitos colaterais. Desaconselha o
uso de uma “máquina rotatória” utilizada na época, que se propõe a
provocar efeitos purgativos, mas que, segundo ele, pode ter outros efei-
tos, mais perniciosos do que benéficos. Também não vantagens no
uso de sanguessugas (1838, p.478-479).
Segundo Esquirol, os pacientes com quadro de lipemania não a-
presentam alterações significativas nos sistemas digestivo ou sanguíneo
que possam indicar que as origens do distúrbio estão ali. Ele acredita
94
que as origens estão no sistema nervoso. Uma alteração do sistema ner-
voso, uma melancolia “nervosa”, “sem matéria
69
”, conforme assinalado
por Lorry
70
, diferente da “melancolia com matéria”. Por esse motivo, as
ações morais ou a intervenção com medidas físicas brandas, apenas para
“provocar as alterações morais”, são preconizadas por Esquirol para
esses casos, pois as medidas “evacuadoras” intensas mais piorariam do
que melhorariam esses quadros.
As descrições de Esquirol não deixam dúvidas de que ele fala de
casos de melancolia com severas limitações. Embora nessa obra especí-
fica ele se refira a alguns casos que acompanhou de doentes não interna-
dos, a maioria dos casos que relata, inclusive aqueles em que realizou
necropsias, foram de indivíduos que passaram por internações em insti-
tuições psiquiátricas. Ainda que considere os casos graves, sua aborda-
gem não deixa de levar em conta o contexto de vida desses doentes, a
multicausalidade no desencadeamento dos casos (com causas próximas
e remotas) e intervenções que levam em conta as diferentes faces da
doença no doente. Busca intervir em diferentes aspectos de suas vidas:
sobre o corpo físico, sobre os hábitos de vida e, principalmente, segundo
ele próprio, sobre as “paixões” desses indivíduos. Essas paixões e seus
sintomas seriam as mesmas que podem acometer qualquer pessoa. A
diferença seria que nos quadros caracterizados como doença, o indiví-
duo precisaria de ajuda, de uma intervenção para sair desse quadro, pois
em alguns casos essa condição poderia levá-lo à morte. A intensidade
dos sintomas e a sua duração, além da dificuldade de lidar com a situa-
ção, são critérios utilizados para caracterizar o quadro de doença, dife-
renciando-o de um quadro de tristeza “normal” ou de “não doença”.
Ao desaconselhar medidas “evacuadoras” – purgantes, sangrias, a
“máquina rotatória”, Esquirol reafirma a posição assumida por Pinel de
conceder um tratamento menos agressivo à doença mental. Por outro
lado, ao destacar a importância do tratamento moral e higiênico (no
sentido de mudanças de hábitos de vida), reforça a perspectiva multicau-
sal da doença, embora reafirme sempre que esse distúrbio está centrado
69
Essa expressão “sem matéria” faz pensar em uma alteração que ocorre no sistema nervoso,
mas que não corresponde a uma alteração anatômica localizada nesse sistema.
70 Annes Charles Lorry (1726-1783) (Disponível em: <http://www.bium.univ-
paris5.fr/histmed/hm_bio.htm> e <http://web2.bium.univ-
paris5.fr/livanc/?cote=34179&do=livre>. Acesso em: 10 agosto 2008) escreve em 1765 um
tratado sobre a melancolia e as doenças melancólicas, e é considerado por Henri Dagonet o
autor que inicia uma observação sistemática desse distúrbio. Embora Dagonet avalie que há
confusões na classificação de Lorry, delega-lhe uma contribuição importante para uma visão
mais racional das doenças mentais.
95
nas paixões (ou emoções). Por fim, não deixa de lado a intervenção
sobre os aspectos fisiológicos, considerando que alterações no corpo
físico por outras doenças podem levar a situações de debilidade física e
propiciar o aparecimento do quadro de distúrbio relacionado à saúde
mental.
2.4 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX O SURGIMENTO
DO CONCEITO DE DEPRESSÃO NA BIOMEDICINA
A obra de Esquirol em que ele faz essa minuciosa caracterização
dos quadros de “melancolia triste”, ou lipemania, foi escrita em 1820.
Em 1862, Henri Dagonet
71
escreve sobre as doenças mentais e também
dedica um capítulo à lipemania, adotando a nomenclatura de Esquirol,
mas com algumas diferenciações na sua classificação dos subtipos em
que esses casos se apresentam. Inicia seu tratado lembrando nomes im-
portantes da psiquiatria do século XIX, dentre os quais destaca Lorry, o
médico inglês Cullen, Pinel, Broussais e Esquirol, algumas correntes
teóricas presentes na Alemanha (como a espiritualista e a somática) e,
por fim, teóricos seus contemporâneos, como Buchet e Bergmann.
Sobre Pinel, destaca que, além de uma sistematização cuidadosa
dos casos, classificando diferentes quadros clínicos, ele contribuiu para
a humanização do tratamento dos doentes com distúrbios mentais: as
violências físicas são proscritas como forma de tratamento, pois Pinel
“coloca como princípio a influência incontestável do tratamento moral”
(DAGONET, 1862, p. 20). Para Dagonet, se Broussais, que defende a
localização da doença mental como decorrente da alteração anatômica
de algum órgão, se opõe com veemência à visão de Pinel, esta ganha
força com seu discípulo Esquirol. Ele continua o trabalho de observar
com cuidado os sintomas dos doentes mentais, de classificar as diferen-
tes formas de apresentação das doenças e de propor tratamentos menos
agressivos. Dagonet afirma que, em sua época, “mesmo as tentativas
feitas nestes últimos tempos contra a classificação que ele [Esquirol]
edificou, ela própria continua servindo de base, não somente à classifi-
cação, mas, sobretudo, ao tratamento dos alienados” (DAGONET, 1862,
p.21).
71 Henri Dagonet: médico psiquiatra francês, escreve a obra Traité elémentaire et pratique
des maladies mentales. Foi o primeiro médico a utilizar fotografias de pacientes em uma obra
didática (ESMAN, 1999; DAGONET, 1862).
96
Embora destaque que novas observações foram acrescentadas por
outros autores após Esquirol, Dagonet considera não ser possível anali-
sar cada uma delas, preferindo citar as escolas que representam as ten-
dências científicas da época, que tentam explicar as causas dos distúr-
bios mentais. Apresenta então duas escolas alemãs: A Escola Espiritua-
lista, ou Psicológica, e a Escola Somática. A primeira tem suas origens
com o médico alemão Stahl
72
, que acreditava haver um princípio orga-
nizador para além da matéria, a alma, que mantém a organização do
corpo orgânico. Esse médico admite que se a desordem se instala na
economia corporal, no entanto, ela se origina na própria alma, por deso-
bediência às missões que esta teria no mundo. A Escola vai além desta
afirmação: propõe mais ainda, “exagerando essa abstração metafísica”,
que a alienação ocorre ao nível da alma e seria consequência de uma
“perversidade moral”. Por outro lado, dentro dessa mesma escola
outra tendência que discorda e condena essa visão: considera também
que a doença mental tem origem na alma, mas é através de uma paixão
ou por uma inclinação (“degrée superiour du penchant”) que ocorre a
passagem do processo de saúde para doença. O tratamento seria desco-
brir essa inclinação predominante e evitar seu desenvolvimento excessi-
vo (DAGONET, 1862, p.24).
A Escola Somática, por outro lado, advogava que a doença men-
tal estava localizada no cérebro e em outros órgãos do corpo, negando
qualquer influência moral em relação à gênese desses distúrbios. Jacobi
é citado como o representante mais importante dessa escola, ao afirmar
que mania e melancolia o “termos para designar os sintomas” de do-
enças orgânicas, assim como são apenas sintomas de doenças orgânicas
(não do cérebro, mas também de outros órgãos) todas as doenças
consideradas psíquicas
73
. Esses sintomas psíquicos seriam consequên-
cias de determinados órgãos doentes, a cada um destes correspondendo
determinados sintomas psíquicos (Dagonet, 1862, p.23 e 24).
Sobre as teorias modernas (contemporâneas suas), cita Buchez
74
,
que descarta a existência de uma lesão anatômica, mas fala em uma
72
Georges Ernst Stahl (1659/1660- 1734): médico alemão. (Disponível em:
<http://web2.bium.univ-paris5.fr/bio/?cle=7078 >. Acesso em: 08 setembro 2009)
73 Dagonet destaca que o termo “doenças psíquicas” é utilizado pelos alemães para designar as
doenças mentais.
74 Philippe-Joseph-Benjamin Buchez (1796-1865/1866), foi médico, historiador e político na
França. Formou-se em medicina em 1825 e logo publicou a obra “Estudos em teologia, filoso-
fia e história”. (Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Philippe_Buchez>. Acesso em:
30 abril 2010; <http://web2.bium.univ-paris5.fr/bio/?cle=3301> Acesso em: 30 abril 2010 ).
Tinha interesse na condição humana de forma mais ampla e, no âmbito da medicina, ocupou-
se em grande parte do seu tempo das questões psicológicas a partir do ponto de vista médico .
97
possível alteração da “nutrição cerebral”, relacionando, por exemplo, a
piora dos quadros de mania com a perda sanguínea (seja por hemorragi-
as, seja pelo fluxo menstrual). Dagonet pontua que, se as hemorragias
pioram quadros de doença mental, não necessariamente causam esses
quadros, pois existem situações em que há hemorragia sem doença men-
tal e também pessoas caquéticas, com problemas de nutrição, que não
desenvolvem distúrbios mentais.
Dagonet aponta ainda outra teoria, desenvolvida pelo médico a-
lemão Bergmann
75
, que defende a existência de alterações anatômicas
relacionadas ao funcionamento do cérebro. Esse médico teria encontra-
do fibras em achados de necropsias que estariam relacionadas às funções
psíquicas, e alterações em suas formas causariam as doenças mentais.
Para Dagonet, as evidências da época não demonstram a existência de
alterações anatômicas do cérebro que possam justificar a gênese da do-
ença mental. Não porque não existam alterações anatômicas no cérebro
desses doentes, e sim porque não se pode inferir que essas alterações
sejam a causa da doença: em alguns casos podem ser (um tumor ou
outra doença desencadeando o quadro), e em outros não achado ne-
nhum que justifique seu aparecimento. Ele sugere cautela quando se fala
em ciência, principalmente relacionada à medicina, e que se até onde
a observação pode ir, não cedendo lugar à imaginação apenas para tentar
justificar uma teoria. Lembra, citando Esquirol, da importância do cére-
bro apenas porque “se é por esse órgão que experimentamos as manifes-
tações de inteligência e da consciência, se é por ele que racionamos, é
por ele evidentemente que vamos perder a razão” (p.32). Assim, consi-
dera que “uma mesma forma de alienação mental pode ser produzida
por razões diversas, orgânicas ou morais; é importante conhecer essas
causas quando se necessita fixar o diagnóstico e adotar um método de
tratamento” (1862, p.180).
A multicausalidade continua sendo considerada, e é proposta a
classificação de duas formas: em causas gerais, que envolvem questões
alheias ao indivíduo e à sua família, e em causas especiais, que envol-
vem questões individuais. Estas são subdivididas em hereditárias, mo-
rais e físicas. As primeiras seriam “alheias” ao indivíduo e incluem: o
processo de civilização, a aglomeração de populações, ideias reinantes
Contribuiu com a revista Annales médico-psychologique até poucos anos antes de sua morte
(essa revista continua sendo editada até os dias de hoje) (Disponível em:
<http://www.ohio.edu/chastain/ac%20/buchez.htm >. Acesso em: 30 abril 2010).
75 Ernst Von Bergmann (1836-1907) (Disponível em: <http://web2.bium.univ-
paris5.fr/bio/?cle=1811> Acesso em: 10 abril 2010).
98
em uma determinada época ou localidade (políticas, religiosas, etc.), a
educação mal dirigida ou precoce
76
, ser homem ou mulher
77
, idade
78
,
estado civil
79
, religião. Dentre as causas especiais, a primeira citada é a
hereditariedade, como uma causa predisponente. Em seguida são descri-
tas as causas determinantes ou ocasionais, aquelas que estão mais pró-
ximas, “que provocam diretamente a alienação mental” (p.193), e que,
nessa época, são divididas em causas físicas e morais. Entre as causas
físicas, Dagonet cita: doenças que afetam diretamente o cérebro (como
tumores e traumas), doenças orgânicas que levam a um desequilíbrio
sistêmico
80
e a ingestão de substâncias como o álcool ou outros narcóti-
cos. Cita ainda as neuroses
81
como causas físicas que podem desencade-
76 O autor exemplifica com a conduta de certos pais que, por acreditarem estar contribuindo
para a formação de “homens superiores”, iniciam a educação precoce de seus filhos, quando
estes ainda não estariam fisiologicamente preparados para isso, podendo levar a alterações
cerebrais que propiciariam o desenvolvimento de distúrbios mentais. Cita Rousseau, ao referir
que “a natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens; se quisermos
inverter essa ordem, poderemos produzir frutos precoces que não terão nem maturidade nem
sabedoria” (DAGONET, 1862; p.183).
77 Dagonet faz observações sobre a incidência das doenças mentais, algumas mais frequentes
em homens, outras em mulheres, e destaca aspectos relacionados ao papel social de cada um
deles. A questão do casamento, trabalho agrícola ou urbano, a educação diferenciada, entre
outros.
78 Segundo Dagonet, ocorrem mais casos de doenças mentais nas idades de 30 a 50 anos do
que em outras faixas etárias. Ele descreve características diferentes nos casos de início precoce,
na infância.
79 Dagonet refere maior incidência em indivíduos solteiros. Poder-se-ia questionar se o fato de
ser solteiro não seria uma consequência de determinadas características da personalidade do
indivíduo, e não uma causa que predisponha ao distúrbio mental.
80 O autor descreve algumas situações clínicas, tais como a febre tifoide; a pneumonia; o
reumatismo/gota; os excessos sexuais (aqui ele inclui a Tabes dorsalis, que é a fase terciária da
sífilis, quando esta atinge o sistema nervoso central); a masturbação (sobre esta lembra que o
contrário também pode ocorrer: a masturbação pode ser um sintoma ou prelúdio de uma doen-
ça mental); as verminoses; as desordens menstruais; a gestação e o período puerperal (destaca
que esse período é particularmente sensível ao desenvolvimento de distúrbios mentais, que se
resolvem após a mulher sair dessa condição); a anemia; a sífilis (nessa época não havia sido
ainda identificado o agente causador da sífilis, mas havia a observação clínica de que pacientes
que tiveram sífilis desenvolviam lesões no sistema nervoso central e sintomas neurológicos,
embora nem todos os cientistas da época concordassem com essa relação entre Tabes dorsalis e
sífilis); a pelagra (na época atribuída a alterações nutricionais, embora ainda não se conhecesse
o papel da falta de uma vitamina do complexo B, a niacina, no seu desenvolvimento); a epilep-
sia (Para maiores detalhes, ver DAGONET, 1862, cap. 6, Etiologia das doenças mentais; p.
178-247).
81 Neurose – Dagonet refere que entre as neuroses e a alienação mental existem diversos
pontos em comum que se inter-relacionam, tanto por seus sintomas como por sua localização, e
que esses distúrbios podem substituir um ao outro reciprocamente. Ele refere que existe um
“estado organopático” comum às neuroses e à alienação, que denomina “estado nervoso”, o
qual por si só pode ser considerado uma forma de alienação. Caracteriza tal estado como uma
“suscetibilidade doentia que entra em ação e sobre-excita as circunstâncias mais insignifican-
99
ar um quadro de alienação mental e considera a epilepsia
82
e a histeria
83
como subtipos da neurose, destacando que os ataques epilépticos aca-
bam por afetar o cérebro depois de ocorrerem muitas vezes, o que a
histeria não faz, por possuir “ação mais fugaz”. Considera que as causas
físicas são mais fáceis de serem identificadas, e as morais, de mais difí-
cil identificação. Essas últimas não seriam menos evidentes, e o modo
complexo como interagem – a primeira agindo sobre a segunda ou vice-
versa, são destacados pelo autor:
Essas causas, nós compreendemos que possuem
uma ação complexa e se combinam entre si de mil
maneiras. [...] O homem é um ser essencialmente
complexo: ele contém em si dois modos de exis-
tência intimamente ligados um ao outro, e é im-
possível para o médico separá-los de uma maneira
absoluta. Os dois modos simultâneos, mas não i-
dênticos, de existência humana exercem um sobre
o outro uma influência recíproca. Como um ser
organizado, vivendo no tempo e no espaço, o ho-
mem obedece instintivamente às leis necessárias,
comuns a todos os animais. Como um ser inteli-
gente, assim diz Bonald
84
, tem consciência de si
mesmo e de sua inteligência, assiste consciente-
mente aos fenômenos morais que ocorrem dentro
de si, possui uma liberdade moral, uma força, em
virtude da qual pode não somente dirigir os mo-
vimentos de seu corpo, mas, mais ainda, até certo
ponto entravar ou modificar certos atos da vida
orgânica (p.196-197).
tes. [...] as circunstâncias exteriores as impressionam de uma forma singular [...], os sentidos
são objeto de percepções as mais bizarras [...]. Esse estado nervoso, sobre o qual acreditamos
dever insistir com detalhes, é um dos sinais prodrômicos quase constante das diversas formas
de alienação mental; merece, por isso, que se fixe a atenção de uma maneira especial” (DA-
GONET, 1862, p.234-235).
82 Epilepsia – Dagonet destaca que aqueles que têm ataques epilépticos repetidos acabam por
desenvolver problemas mentais, alguns já na infância, outros no decorrer da vida. O autor fala
sobre as características desses indivíduos, que se tornam tristes, são facilmente irritáveis e
desenvolvem diferentes formas de alienação: mania (episódios de agitação que precedem ou
sucedem os ataques, muitas vezes percebidos pelo próprio doente quando sente que uma nova
crise está se aproximando), lipemania e demência. Esta última, segundo ele, como consequên-
cia de ataques repetidos que afetam o cérebro.
83 Histeria – Para o autor, a histeria aparece de forma quase imperceptível nos estabelecimen-
tos para alienados (DAGONET, 1862, p.243).
84
Louis Gabriel Ambroise Bonald (1754-1840): filósofo e político contra-revolucionário
francês. (Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Gabriel_Ambroise_de_Bonald>.
Acesso em: 10 abril 2010)
100
As considerações sobre a inter-relação entre os aspectos psíquicos
e físicos são detalhadas com diversos exemplos, como dores levando à
tristeza ou preocupações levando a sintomas físicos, refletindo a opção
de abordagem que leva em conta diferentes aspectos da vida humana: o
biológico e o “moral”. Este último relacionado ao pensar, que seria uma
a capacidade ou habilidade que o ser humano possui, diferentemente dos
outros animais.
Se é no cérebro que se manifestam as alterações da doença men-
tal, reforça Dagonet, é porque esse é o órgão com que pensamos e racio-
cinamos, mas as causas da doença mental são complexas, interativas e
têm origem tanto no “organismo animal” como nos “fenômenos morais”
que fazem parte do ser humano. Para ele, as causas morais são indiscuti-
velmente consideradas como capazes de alterar as funções cerebrais e
provocar a alienação. Como o fazem “é, sem dúvida, um problema que
continuará por longo tempo obscuro” (p.244). Apesar disso, Dagonet
considera que as causas morais predominam sobre as causas físicas na
gênese da doença mental. Cita como causas morais: os desgostos do-
mésticos
85
, o medo/temor
86
, o fanatismo religioso e o amor
87
. No capítu-
lo em que fala sobre a lipemania, Dagonet traz, a partir da classificação
de Esquirol, a diferenciação desse distúrbio em relação à monomania:
ambos com delírios parciais, na última com características expansivas, e
na primeira com
exacerbação de um sentimento depressivo [...],
[onde] as manifestações exteriores, tanto em rela-
ção à ordem moral como à ordem orgânica, são
sem energia e como que entorpecidas; a atividade
funcional oprimida é, de qualquer forma, domina-
da por um estado de sofrimento e depressão mo-
rais (DAGONET, 1832, p. 307).
O autor inicia, então, a descrição das características físicas desses
doentes, e a primeira delas refere-se à fisionomia. Diferentemente da
descrição de Esquirol, que traz mais as características físicas da facies
65 Aqui o autor inclui perda de fortuna, brigas familiares, desilusão de pais com filhos, morte
de um ente querido, perda de emprego, ciúme, amor contrariado, entre outros.
86 Dagonet cita o medo/temor como causas “mais comuns do que se imagina” das alterações
intelectuais e dos problemas nervosos e como as principais causas de ataques epilépticos e de
histeria. Descreve as diversas alterações somáticas que ocorrem quando um indivíduo está com
medo e destaca os efeitos intensos desse sentimento quando ocorre em crianças ou jovens
(1862, p.246).
87 Dagonet destaca, nesse caso, o papel da literatura, “que superexcita as paixões, tende a
exaltar a imaginação [...] e desenvolve uma tendência marcada à loucura” (1862, p.247).
101
desses indivíduos
88
, Dagonet, embora se refira à descrição de aspectos
físicos, em seu relato pontua, de forma mais enfática que o primeiro, as
emoções e sentimentos que encontra ao observar esses doentes:
A fisionomia reflete de uma maneira notável e
com uma fidelidade perfeita as paixões enervantes
que torturam o espírito do doente; podemos ler
sobre sua figura os sentimentos de todos os tipos
que lhe inquietam. A inveja, o ciúme, a raiva, a
desconfiança, a amargura, o temor, o terror, o de-
sespero, imprimem à sua fisionomia uma caracte-
rística que não pode escapar à observação mais
superficial (DAGONET, 1862, p.308).
Descreve a seguir, com aspectos muito semelhantes àqueles que
Esquirol descrevera, outras alterações físicas. As “alterações orgâni-
cas”, tais como a transpiração, as eliminações, as alterações circulatórias
e respiratórias. Os aspectos relacionados à postura do doente: a motili-
dade diminuída, com tendência a permanecer imóvel; a sensibilidade a
estímulos externos também diminuída (chegando a um estado de estupor
em alguns casos); a falta de iniciativa para tomar banho, para pentear
cabelos, e a insônia.
Se no início de sua obra, no capítulo sobre a etiologia das doen-
ças mentais e no decorrer da descrição dos fatores predisponentes e
desencadeantes da doença mental, o autor fala em causas físicas e causas
morais, no capítulo sobre a lipemania ele se refere a sintomas físicos e
sintomas psíquicos. Embora também utilize os termos de Pinel e Esqui-
rol quando fala em causas morais e paixões, introduz o termo “sintomas
psíquicos”, referindo-se a aspectos do indivíduo relacionados a questões
não físicas, não orgânicas. Se os outros autores valorizavam a influ-
ência das paixões/emoções na lipemania, ainda descreviam os sintomas
físicos que traduziam essas alterações. Conforme pontuado acima, aqui,
ao contrário, parece haver uma descrição mais minuciosa dos aspectos
relacionados às emoções desses indivíduos. Por exemplo, quando des-
creve a facies dos doentes, fala muito mais das emoções do que de ca-
racterísticas físicas.
também a introdução de outros termos que são diferentes da-
queles utilizados algumas décadas antes, como “sentimentos afetivos”,
“paixões depressivas” e “estado subjetivo”. Esses termos parecem refle-
88 Embora Esquirol fale em “facies que exprime o terror e a tristeza”, descreve com detalhes
sintomas físicos como a palidez, aridez da pele, olhar baixo e oblíquo (ESQUIROL, 1838,
p.408).
102
tir uma nova forma de abordagem desses doentes, nomeando as questões
subjetivas, valorizando-as dessa forma e tornando-as mais visíveis aos
olhos da biomedicina. Estão incluídos nos sintomas psíquicos a “sensi-
bilidade moral”, a vontade, os impulsos violentos, os delírios e as aluci-
nações. Sobre a sensibilidade moral, o autor destaca que os lipemanía-
cos têm uma “suscetibilidade excessiva”, que tudo lhes causa sofrimento
e desconfiança, mesmo os menores fatos ou causas, e que seus senti-
mentos afetivos são transformados em função do quadro da doença. Fala
sobre as paixões depressivas – o receio, a raiva, levando ao abatimento e
à angústia, deixando o indivíduo alheio aos familiares e às suas funções
sociais, transformando sentimentos de afeto em “sentimentos contrários
de aversão profunda”.
Dagonet destaca uma percepção subjetiva desses indivíduos ao
descrever suas reações: “eles não compreendem que o mal que sofrem
não tem nenhuma razão de ser [...], tomam um estado subjetivo de sua
alma por um estado objetivo e, por consequência, passam a explicar
objetivamente as impressões que resultam desse estado”, embora não
percam a razão, mantendo um raciocínio lógico sobre uma “base falsa”
(DAGONET, 1862, p. 311 a 314). Ao pontuar esse aspecto, o autor está
reforçando a visão de que não existe perda da razão, como na loucura,
mas que a razão está distorcida, “sobre uma base falsa”. Isso havia
sido pontuado por Pinel e Esquirol, mas aqui Dagonet o faz de uma
forma em que nomeia essa distorção de visão: ela ocorre por uma visão
subjetiva, “um estado subjetivo da alma”. Esse estado parece pontuar de
forma incipiente a subjetividade do paciente que, pouco a pouco, passará
a ser valorizada por algumas abordagens da saúde/doença mental.
Ao falar sobre paixões depressivas, Dagonet introduz o termo
“depressivo” em sua obra, que até então não aparece na obra dos autores
que o antecederam: “[As] paixões depressivas têm um papel importante
na lipemania” (p.311). Ele não utiliza o termo “depressão”, mas Berrios
(1996, p.298) afirma que o termo aparece por volta dessa época, 1860,
em dicionários médicos, substituindo aos poucos o termo melancolia na
linguagem médica, que esse último termo sofreu redefinições do seu
significado a partir do início do século XIX:
“melancolia” foi renomeada “depressão”, um ter-
mo que se tornou popular na medicina cardiovas-
cular da metade do século XIX, referindo-se a
uma redução da função. O termo foi utilizado
primeiramente de forma analógica como “depres-
são mental”, mas logo o adjetivo “mental” foi reti-
rado. Por volta de 1860, aparece nos dicionários
103
médicos “aplicado às baixas de espírito das pesso-
as que sofrem uma doença”. [...] Os médicos pre-
feriram a palavra depressão à melancolia ou lipe-
mania, talvez porque ela evoque uma explicação
“fisiológica”. (BERRIOS, 1996, p.299)
A primeira edição do Manual prático de medicina mental do
Dr. Régis
89
, segundo Berrios, define depressão como “o estado oposto à
excitação. Consiste na redução da atividade geral, abrangendo desde
pequenas falhas na concentração até uma paralisia total” (BERRIOS,
1996, p.299). Régis (1885) trata da “melancolia ou lipemania” no capí-
tulo seis de sua obra, dividindo esse distúrbio em: melancolia aguda”,
que inclui a melancolia subaguda, a melancolia crônica, a melancolia
com estupor, intermitente e remitente; melancolia delirante” e “melan-
colia com razão” (raissonante) (RÉGIS, 1885, p.159). Esse autor fala de
uma característica geral comum aos que sofrem de melancolia (ou lipe-
mania) aguda: a reação geral é de “depressão física, mais ou menos
marcada”, e duas situações são comuns nesses casos: a tendência ao
suicídio e a recusa do alimento (RÉGIS, 1885, p.164). As subdivisões
do item “melancolia aguda” correspondem a estados para os quais esse
distúrbio pode evoluir, como para melancolia crônica (segundo o autor,
uma situação menos comum do que a evolução para mania).
Ao descrever cada um desses tipos de melancolia, Régis utiliza os
termos “depressivo” e “depressão” no sentido apresentado por Berrios,
como um estado contrário ao de excitação, caracterizando a situação de
pouca atividade, falta de iniciativa, imobilidade. Régis diferencia ainda
alguns subtipos desse distúrbio, alguns em que há delírio, outros em que
este não ocorre, e, diferentemente de Dagonet, exclui a hipocondria das
formas de melancolia. Tanto Dagonet como Régis não utilizam o termo
depressão para substituir lipemania (antes incluída entre outros quadros
na abrangente “melancolia” e, a partir de Esquirol, ainda podendo ser
utilizada como sinônimo dessa última), mas introduzem um termo que
está circulando na medicina da época e que caracteriza um estado fisio-
lógico de pouca atividade.
Se a lipemania de Esquirol parece corresponder, pelo menos em
parte, ao que depois vem a ser denominada psicose maníaco-depressiva
por Kraepelin, envolvendo diferentes formas de desordens afetivas
(BERRIOS, 1996, p.298), Dagonet inclui na sua classificação, além
89 Emmanuel Régis, médico, antigo chefe (ancien chef) de clínica das doenças mentais na
Faculdade de Medicina de Paris.
104
desses distúrbios
90
, desordens que não estavam na classificação de Es-
quirol
91
. A hipocondria é a primeira delas: uma forma de lipemania onde
a pessoa preocupa-se demais com a sua saúde e seu corpo, e teme ser
acometida por doenças “perigosas, incuráveis”. Assim como as outras
formas de lipemania, a hipocondria tem como característica principal
um afeto triste. Novamente, ao descrever os sintomas físicos, além de
falar sobre a cor da pele, excreções, etc., o destaque para aspectos
que traduzem as emoções do doente: “o olhar é sombrio, selvagem; tem
qualquer coisa de inquieto e de interrogador; o doente tenta ler na fisio-
nomia do médico a impressão que lhe causa” (DAGONET, 1862, p.329-
330). Sobre os aspectos morais, fala de inquietude, receio, “mobilidade
de espírito”, com mudanças constantes de opinião, e da atitude que os
próprios doentes têm de solicitar internação em asilos de alienados e
inclusive de sugerir a qual tratamento devem ser submetidos. Destaca
que são acometidos frequentemente por ideias de suicídio que raramente
levam adiante (DAGONET, 1862, p.332).
Sobre o tratamento da doença mental de uma forma geral, Dago-
net continua, assim como Régis, na mesma linha de Esquirol e Pinel,
preconizando as ações sobre os aspectos morais e físicos, com destaque
para as “medidas profiláticas”, para evitar novos quadros naqueles al-
guma vez acometidos por essas doenças. Dagonet cita Esquirol, con-
cordando com o último quando considera essa doença de difícil trata-
mento, e diz ser “a medicina moral, aquela que procura no coração as
causas primeiras do mal, que lastima, que chora, que consola, que parti-
lha os sofrimentos e que desperta a esperança, é geralmente preferida a
todas as outras” (ESQUIROL apud DAGONET, 1862, p.321). Completa
afirmando que esse tratamento traz de volta a confiança que lhe falta
(DAGONET, 1862, p.323).
Se os autores precedentes falavam em medicamentos e remédios,
além de medidas higiênicas (alimentação, atividade física, atividades
ocupacionais, entre outras) e morais, Dagonet utiliza esses termos, mas
também usa o sinônimo de “tratamento farmacêutico” para o medica-
mentoso, citando os laxativos, os purgantes, a “infusão de valeriana”, as
“doses leves de ópio e digitálico”, os medicamentos tônicos como o
90 Ele descreve as formas sob as quais a lipemania pode se apresentar (associada a sintomas
mais ansiosos ou ao suicídio), a passagem de períodos de lipemania para períodos de mania ou
outros quadros de doença mental, as causas específicas relacionadas a esse distúrbio, como, por
exemplo, as estações do ano ou problemas familiares, na mesma linha de Pinel e Esquirol.
91 São incluídas como subtipos: a hipocondria, a lipemania religiosa e a demonomania, a
lipemania ansiosa e a lipemania erótica, as duas últimas separadas da lipemania na classifica-
ção de Esquirol.
105
quinino e o ferro, entre outros (DAGONET, 1862, p.322). Todas essas
substâncias eram utilizadas para o tratamento de várias doenças ou dis-
túrbios, e aqui eram indicadas de acordo com os sintomas de cada indi-
víduo (por exemplo, se estava debilitado, se não estava evacuando, se
tinha gases retidos no abdômen). É possível perceber a importância do
contexto em que o distúrbio aparece na abordagem de Dagonet, a partir
dos relatos de observação sistemática dos casos e do destaque para a
interação entre os aspectos físicos e aqueles relacionados às emoções
decorrentes da vida social (quer seja no nível individual, familiar ou da
própria sociedade). Embora admita que as interferências de aspectos
físicos e “morais” possam ocorrer em uma via de mão dupla (por exem-
plo, um tumor levando a sintomas de uma doença mental), na maioria
das vezes considera que ocorre o contrário: situações de vida levam ao
quadro de lipemania. Seria esse um distúrbio das emoções, desencadea-
do por múltiplas causas, que vai levar o indivíduo a provocar mudanças
em seu comportamento e, dessa forma, desencadear alterações físicas
em seu corpo.
Nessa época, com a prática médica privada, fora dos asilos, pas-
sam a ser vistos mais casos de pacientes com tristeza intensa, mas sem
desilusão ou sintomas psicóticos, e esses casos são chamados de “me-
lancolia simples”. Situações assim eram reconhecidas desde a antigui-
dade (embora anteriormente a ênfase ocorresse sobre os casos associa-
dos aos sintomas que deixavam o indivíduo alheio ao seu meio) e pas-
sam a ser tratadas com mais frequência em função do aumento de aten-
dimentos extra-hospitalares (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007; BER-
RIOS, 1996). No final do século XIX, as situações clínicas incluídas sob
o rótulo de “melancolia” (para alguns “lipemania”) vão lentamente ser
incluídas sob o rótulo “depressão”, termo que vai se consolidar no sécu-
lo XX.
Segundo Berrios (1996), mesmo que o termo lipemania não tenha
sido aceito em substituição à melancolia em outros países além da Fran-
ça, foi um dos termos mais importantes na transição da melancolia como
um distúrbio da razão para a depressão como um distúrbio do afeto.
Destaca que a lipemania é um exemplo do que os historiadores cha-
mam de categoria “ponte”: serviu somente para catalisar a transi-
ção entre a antiga noção de melancolia (como uma desordem pri-
mária do intelecto) para uma nova (uma desordem primária do
afeto) (BERRIOS, 1996, p. 304).
Como foi possível observar, essas situações não são exatamente
as mesmas para diferentes autores, mas o ponto em comum entre elas
106
são as características de tristeza, medo e depressão (no sentido de menor
atividade) física e psíquica.
Tanto nos casos de pacientes internados como nos casos vistos
fora dos asilos, está presente a ênfase no contexto de vida daquele aco-
metido pelos sintomas e nas abordagens relacionadas aos fatores multi-
causais. A visão médica que preponderava no final do século XIX, base-
ada em critérios empíricos e buscando argumentos na ciência da época,
era de multicausalidade. Essa é uma visão bem diferente da que obser-
vamos atualmente, quando a intervenção nos distúrbios mentais se de-
senvolve a partir da busca de uma causa, situada na alteração de neuro-
transmissão cerebral. Os argumentos a favor da abordagem clínica e
multicausal eram então mais fortes do que aqueles a favor de uma única
causa orgânica, e acabaram direcionando a prática clínica dessa época.
No entanto, vale lembrar que já no século XIX há a tentativa de localizar
a doença, ou a causa que estaria levando a alterações, na atividade cere-
bral e, em consequência, ao aparecimento dos sintomas depressivos,
embora, segundo Berrios, a busca de lesões para correlacionar sinais e
sintomas na psiquiatria não tenha obtido sucesso naquela época (BER-
RIOS, 1996, p. 294-5).
2.5 FINAL DO SÉCULO XIX – INÍCIO DO SÉCULO XX
Ainda no final do século XIX, podem ser citados três médicos
que trabalharam com a psiquiatria e que influenciaram de forma signifi-
cativa as classificações e condutas nessa área no século XX. São eles
Emil Kraepelin e Sigmund Freud, na Europa, e Adolf Meyer nos Esta-
dos Unidos. A seguir são resumidamente pontuadas suas ideias e contri-
buições na tentativa de visualizar o contexto que precede a inserção dos
antidepressivos na prática biomédica. Embora não seja tema deste capí-
tulo, e sim do seguinte, vale lembrar que é também na época em que
esses profissionais atuaram que a farmacologia e a indústria farmacêuti-
ca tiveram seu desenvolvimento incrementado em função de novas tec-
nologias que se tornaram disponíveis.
2.5.1 Kraepelin, Freud e Meyer
Kraepelin, psiquiatra alemão que viveu entre 1856 e 1926, traba-
lhou na Europa principalmente com doentes hospitalizados e buscou
inserir a psiquiatria dentro de conceitos biomédicos que consideravam
as manifestações das desordens mentais como consequência de patolo-
gias físicas cerebrais (HORWITZ; WAKEFIELD, 2007, p.75). Ainda no
107
final do século XIX, conforme descrito acima, o termo “depressão”, ou
“depressivo”, foi ganhando espaço na prática biomédica, a partir de
vários autores, para caracterizar situações relacionadas à melancolia.
Segundo Berrios, Kraepelin “legitimou o termo, utilizando-o de maneira
adjetiva, e, entre os ‘estados depressivos’, incluiu a melancolia simples,
o estupor, a melancolia grave, a melancolia fantástica e a melancolia
com delírio” (BERRIOS, 1996, p.300). Da mesma forma que ocorria
com os conceitos anteriores, esse não era um termo com limites claros.
Havia confusões sobre a “nova” melancolia, pois outras “insanidades”
também apresentavam alguns sintomas incluídos nessa categoria. Krae-
pelin criou então, posteriormente, uma ampla categoria que abarcava
várias formas de depressão e mania, colocando inclusive sob esse rótulo
(“doença maníaco-depressiva”) situações tais como paranoias, neuraste-
nias e alguns tipos de irritações intestinais. Essas seriam formas da do-
ença maníaco-depressiva distintas daquelas situações em que havia dete-
rioração importante do quadro (como na “melancolia involucional
92
e
na dementia praecox, esta última hoje reconhecida como esquizofrenia)
(BERRIOS, 1996, p.300).
O grande diferencial de Kraepelin em relação aos outros autores
apresentados até agora foi inserir uma visão que prioriza a origem do
distúrbio em uma alteração endógena, do corpo biológico, independente
dos fatores externos que possam ter interagido com o doente em sua
vida. Essa ideia ganha força principalmente no século XX, e os traba-
lhos desse autor são considerados uma das bases para a abordagem re-
ducionista dos distúrbios mentais em biomedicina, centrando a causa de
tais distúrbios no corpo biológico.
No entanto, ainda que em relação à doença (mesmo em suas ma-
nifestações mais brandas) ele considere a origem no corpo biológico,
Kraepelin não deixa de pontuar que podem existir situações de tristeza
intensa como reação esperada aos infortúnios da vida, e que os sintomas
nessas situações podem ser semelhantes àqueles presentes na doença.
Segundo Hortwitz, ao analisar o trabalho de Kraepelin, os critérios “com
causa” e “sem causa” continuam sendo utilizados por este para caracte-
92 Segundo Berrios, inicialmente Kraepelin utilizou o termo “involutional melancolia” para se
referir a casos de depressão que começam após a quinta década de vida, em contraste com a
doença maníaco-depressiva, que apareceria nas primeiras décadas de vida. Após contestações
de outros autores sobre essa situação clínica, que seria, segundo eles, muito semelhante a
outras situações incluídas no grande rótulo “doença maníaco-depressiva”, Kraepelin abandona
o termo “involutional melancolia” e inclui o quadro que aparece na segunda década de vida no
grande termo “guarda-chuva” (BERRIOS, 1996, p. 300-313).
108
rizar a tristeza “normaldos quadros de depressão (HORTWITZ; WA-
KEFIELD, 2007, p. 75-82).
Também atuando na Europa, Freud foi um médico neurologista
austríaco que viveu entre 1865 e 1939, desenvolvendo seu trabalho em
Viena entre 1891 e 1938, quando fugiu da ocupação nazista (GAY,
1976). Ele desenvolveu a psicanálise, ramo da psicologia entre a filoso-
fia e a medicina (EDLER, 2008), e com ela trouxe uma abordagem ino-
vadora para os chamados distúrbios mentais. A abordagem psicanalítica,
que se inicia com Freud, procura desvendar a dinâmica, possivelmente
inconsciente, dos processos mentais que podem levar a determinados
sintomas, considerando que essa psicodinâmica subjacente às desordens
mentais também está presente na normalidade (HORTWITZ; WAKE-
FIELD, p.73). Freud desenvolveu sua terapia a partir do atendimento de
pacientes ambulatoriais, escutando suas queixas e tentando “descobrir”
situações ou acontecimentos ocultos que estivessem relacionados aos
sintomas apresentados por eles. Gay (1976) utiliza a metáfora da ar-
queologia, aceita pelo próprio Freud, para referir-se à psicanálise:
A seu ver [de Freud], a escavação científica de
vestígios pré-históricos descreve os procedimen-
tos psicanalíticos de maneira mais acurada do que
qualquer outra disciplina comparável. Tal como o
arqueólogo, o psicanalista se depara com superfí-
cies promissoras, mas enganosas, que sugerem,
mas de modo algum garantem, estranhos achados
embaixo. Como o arqueólogo, deve tomar cui-
dado para não destruir o sítio com suas sondagens;
deve ser paciente, hábil, delicado. E também co-
mo o arqueólogo, é um cientista prático, guiado
por construções teóricas abertas à revisão (p.18-
19).
Aceita por alguns como uma ciência, questionada por outros por
não preencher determinados critérios que a enquadrassem como tal, de
toda forma, a psicanálise estabeleceu-se como prática para a abordagem
de problemas relacionados à saúde mental. Não foi utilizada apenas por
Freud, mas difundiu-se entre os médicos e influenciou a abordagem
biomédica a partir do início do século XX na Europa e, logo em seguida,
na América.
Sobre a depressão, Freud elabora, a partir das considerações de
seu discípulo Karl Abraham, o artigo: “Luto e melancolia” (HORT-
WITZ; WAKEFIELD, 2007, p.74). Esse artigo, escrito em 1915, é coe-
rente com a visão psicanalítica mais geral, considerando que aspectos
psicodinâmicos da mente o parecidos tanto nos processos do desen-
109
volvimento “normal” quanto na doença. Destaca nesse trabalho o aspec-
to natural das reações que acompanham o período de luto e o aspecto
enigmático e complexo dos sintomas que acompanham os casos de me-
lancolia (SAROLDI, 2008, p.12). Segundo Edler,
Freud faz uso do termo depressão e da expressão
estados depressivos ao longo de sua obra e classi-
fica a melancolia como o mais grave entre eles.
[...] [Deve-se] ter em mente que o quadro melan-
cólico descrito por Freud pode ser designado hoje
como uma forma de psicose [...]. Há, além disso,
[...] o fato de seu passaporte se dar pela via de um
afeto normal: o luto (EDLER, 2008, p.21 e 22,
grifo do original).
No entanto, essa mesma autora lembra que, apesar de situar a me-
lancolia no campo das psicoses, “segundo a classificação freudiana [...],
a melancolia, com ou sem o contraponto da mania, foi considerada uma
neurose narcísica” (EDLER, 2008, p.41). Mais uma vez aparece o as-
pecto incerto dos quadros incluídos como “melancolia” e “depressão”:
Freud utiliza o termo melancolia, mas faz questão de mencionar que
mesmo na psiquiatria descritiva da época esse termo não se refere a algo
uniforme. Ele caracteriza essa condição como um estado doloroso e que
traz como principal consequência a falta de interesse pelo mundo exter-
no. É acompanhada de diminuição de todo tipo de atividade, de um
“rebaixamento do sentimento de si” (EDLER, 2008, p.28 e 29) e da
perda da capacidade de sentir prazer (HORTWITZ; WAKEFIELD,
2007, p.74). Freud faz analogia desse quadro com o afeto que aparece
no luto, diferenciando, no entanto, que no último há dor em decorrência
de uma perda clara, enquanto na melancolia não clareza sobre qual
seria essa perda: importa que o processo desencadeado no melancólico
de alguma forma é semelhante àquele que ocorre no luto. O quadro clí-
nico pontua sintomas descritos por outros médicos: insônia, repulsa ou
rejeição da comida e prostração (EDLER, 2008, p.30). Sobre a evolução
dos quadros de melancolia, podem existir “intervalos lúcidos” entre os
episódios, que podem também “desaparecer sem deixar expressivos
vestígios”, retornar ou se transformar em períodos de mania (EDLER,
2008, p.39-40).
No caso do luto, reação normal ou esperada a uma perda impor-
tante (quer seja a perda de ente querido ou de algo significativo, como
um emprego ou país), Freud não preconiza nenhum tipo de tratamento,
pois essas reações fariam parte do processo natural de elaboração da
perda. Já no caso da melancolia, a possibilidade de expressar, com ajuda
110
profissional, os sentimentos de raiva e hostilidade presentes (e nem
sempre conscientes), poderia ser terapêutica para aquele que apresenta
esse quadro. Hortwitz e Wakefield destacam que Freud desconsidera
fatores biológicos na gênese da melancolia patológica, tal como foram
considerados nos dois mil e quinhentos anos anteriores, mas mantém os
critérios “com causa” e “sem causa” para o aparecimento do distúrbio
(HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007, p.74-75).
Vale lembrar que o próprio Freud insistia que eram passíveis de
tratamento pela psicanálise pacientes com distúrbios moderados, pois
essa abordagem requer a cooperação daquele que está em tratamento; no
caso de quadros caracterizados como psicóticos, cuja principal caracte-
rística seria a perda de contato com a realidade, isso não seria possível
(PORTER, 1996b, p.298-300), ou seria mais difícil realizar esse tipo de
tratamento, mesmo que não fosse impossível.
A psicanálise iniciada por Freud se desenvolveu nas décadas se-
guintes como um campo de conhecimentos e práticas que influenciou a
medicina (e ainda a influencia), a psicologia, e a sociedade como um
todo no decorrer do século XX. No caso das classificações das doenças
mentais em psiquiatria, se inicialmente exerceu grande influência tanto
em relação aos diagnósticos como em relação às abordagens terapêuti-
cas, perdeu espaço dentro da instituição médica para outras abordagens,
mais biologicistas, mas, ainda assim, continua delimitando algumas
situações clínicas. Além disso, ou mais do que isso, ela se estabeleceu
como um campo de saber independente da medicina, e deu origem a
diversas “correntes” que lidam com os sintomas mentais ainda hoje em
vários países do mundo, investindo na ideia de que a abordagem dos
sintomas pode ocorrer de forma diferente daquela que os reduz a uma
alteração do corpo biológico.
Adolf Meyer nasceu na Suíça em 1866 e emigrou para os Estados
Unidos em 1892 (WIKIPEDIA, 2010c). Quando chegou aos Estados
Unidos, a psiquiatria americana era predominantemente kraepeliana, e
ele insistiu no caráter dinâmico dos processos mentais (RENNIE, 2010).
Se Benjamin Rush é considerado o “pai” da psiquiatria americana
93
,
Meyer é considerado o principal psiquiatra americano do início do sécu-
lo XX. Foi influenciado pelas ideias de Kraepelin e Freud (HORT-
WITZ, WAKEFIELD, 2007), mas considerou outros fatores, como os
sociais, influenciando na nese das doenças mentais. Atuou de 1910 a
1941 na John Hopkins University como diretor da clínica psiquiátrica
fundada nesse hospital. Participou de várias associações profissionais e
93 Ver página 83 deste trabalho.
111
foi também presidente da Associação Americana de Psiquiatria (APA)
94
(RENNIE, 2010), influenciando as duas primeiras edições do DSM
95
(que também utilizou critérios das teorias psicanalíticas), na classifica-
ção dos distúrbios mentais no século XX. Nessas duas edições, a contex-
tualização do paciente e os critérios “com causa” e “sem causa” estive-
ram presentes na abordagem dos casos relacionados à tristeza e à de-
pressão (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007). Como destaca Aguiar:
A principal marca do DSM-I é a noção de reação,
originária da psicobiologia de Adolf Meyer. A u-
tilização desse termo reflete [...] o fato da psiqui-
atria americana, à época, entender a doença men-
tal como uma reação a problemas de vida e situa-
ções difíceis encontradas pelos indivíduos. A in-
fluência da psicanálise também se faz presente
no manual, como pode ser evidenciado pelo uso
frequente de expressões como “mecanismos de
defesa”, “neurose” e “conflito neurótico”. (A-
GUIAR, 2004, p.27)
Diferentemente, nas edições seguintes, em nome da objetividade
e de uma linguagem científica que pudesse auxiliar a precisão dos diag-
nósticos, esses critérios foram sendo deixados de lado a partir da edi-
ção do DSM, com o DSM-IV mostrando um distanciamento ainda maior
das ideias de Meyer e Freud (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007).
Meyer considerava os distúrbios psiquiátricos, entre eles aqueles
relacionados aos sintomas depressivos, sob um enfoque dinâmico, inclu-
indo fatores sociais e ambientais no desenvolvimento desses distúrbios,
sendo esse tipo de abordagem chamado de “biopsicossocial” (HORT-
WITZ; WAKEFIELD, 2007, p.82; RENNIE, 2010). As desordens psi-
quiátricas, incluindo a depressão, eram consideradas por ele “reações
mal-adaptativas que surgiram a partir de predisposições constitucionais
e psicológicas, educação individual e condições sociais, assim como da
interação dos organismos individuais com o meio ambiente”. As predis-
posições constitucionais citadas acima são relacionadas a características
biológicas do indivíduo e consideradas um dos componentes que influ-
94 A Associação Americana de Psiquiatria foi fundada em 1844, com o nome de The Associa-
tion of Medical Superintendents of American Institutions for the Insane; em 1892 mudou o
nome para The American Medico-Psychological Association; em 1921 tornou-se The Ameri-
can Psychiatric Association. (APA, Disponíve em:
<http://www.psych.org/MainMenu/EducationCareerDevelopment/Library/APAHistory.aspx>.
Acesso em: 07 fevereiro 2010 )
95 Sobre DSM, ver p. 27 deste trabalho.
112
enciam a resposta ao estresse a que tal indivíduo foi exposto. Depen-
dendo da interação ocorrida entre todos esses fatores, caso não houvesse
uma boa adaptação do indivíduo, poderiam surgir os sintomas de distúr-
bios mentais, entre eles a depressão (HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007,
p.83). Sobre esta, Meyer apoiou o uso do termo para se referir aos qua-
dros de melancolia (BERRIOS, 1996, p.300), e distinguiu-os daquele
em que a tristeza intensa (e os sintomas físicos que a acompanham)
tinha uma causa justificada. Esse autor definiu a melancolia simples
como uma “depressão excessiva e totalmente injustificada” (JACKSON
apud HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007, p.83).
2.6 RESUMO DO CAPÍTULO
Neste capítulo foram abordadas, em diferentes épocas da medici-
na oficial praticada no Ocidente, situações que nos remetem a quadros
em que a tristeza e o desânimo foram pontuados de forma marcante,
caracterizando um distúrbio de saúde. De alguma forma, essas situações,
denominadas de maneiras diversas, mas por muito tempo recebendo o
nome de melancolia, nos remetem ao que hoje denominamos depressão.
Inicialmente tratamos, de forma superficial, dos quadros que nos pri-
mórdios da biomedicina, na época dos gregos antigos e nos primeiros
séculos da Era Cristã, eram denominados “melancolia”.
Em seguida, e de forma mais aprofundada, por meio do relato de
médicos franceses que atuaram na área de saúde mental (tais como Pi-
nel, Esquirol e Dagonet) e da literatura que trata desse tema, abordamos
os conceitos e atitudes relacionados aos quadros de tristeza e desânimo
considerados como doença nos séculos XVIII e XIX, período em que a
medicina ocidental moderna estabeleceu suas bases atuais. Vale destacar
que no século XIX coexistiam denominações diferentes para os quadros
que durante séculos estiveram relacionados ao termo “melancolia”:
nessa época aparecem a “lipemania” e a “depressão”, embora a denomi-
nação anterior ainda fosse utilizada.
Por fim, de forma também não aprofundada, apenas a título de
contextualização, foram pontuadas as abordagens de saúde mental no
final do século XIX e no início do século XX, com ênfase nesses mes-
mos quadros caracterizados por tristeza, desânimo e falta de iniciativa.
O destaque nesse último período é para os profissionais que, a partir de
suas teorias e condutas, influenciaram de forma importante os conceitos
e abordagens terapêuticas em saúde mental durante todo o século XX e
também o século XXI, como Emil Kraepelin e Sigmund Freud, na Eu-
ropa, e Adolf Meyer, nos Estados Unidos.
113
Devemos lembrar também dois pontos que se mantiveram, com
raras exceções, na abordagem médica sobre esses quadros no decorrer
dos anos, desde os antigos gregos até o início do século XX: a valoriza-
ção do contexto em que estava inserido o indivíduo acometido pelo
quadro, influenciando a abordagem diagnóstica e terapêutica, e a falta de
precisão, ou os limites difusos, dos quadros inseridos sob os termos
“melancolia”, “lipemania”, “tristimania” e “depressão”. Em relação ao
contexto (situações de perda vivenciadas, características individuais e
sociais daquele em que os sintomas apareceram, entre outros), este foi
fundamental para distinguir os casos caracterizados como distúrbios
daqueles em que havia reações de tristeza intensa e apatia, mas que esta-
riam relacionadas a fatos significativos, como o luto.
Quanto aos limites imprecisos dos termos, é possível perceber
que em uma mesma época, ou em épocas muito próximas, certos casos
eram considerados por alguns como “melancolia” e, por outros, como
categorias diferentes. Por exemplo, a hipocondria foi incluída como uma
forma de lipemania (termo que substituiu a melancolia para alguns) por
Dagonet, mas Esquirol, que cunhou esse último termo, considerava a
hipocondria um distúrbio à parte. Ou ainda a classificação dos “estados
depressivos” de Kraepelin, que incluía vários tipos de melancolia e
compartilhava com outras “insanidades” alguns dos sintomas incluídos
nessa categoria.
3 FARMACOLOGIA: O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA
DAS DROGAS QUE PERMITIU O “NASCIMENTO” DOS AN-
TIDEPRESSIVOS
Este capítulo trata da “ciência das drogas”, a partir da qual “nas-
cem” e se desenvolvem os medicamentos antidepressivos. Eles vão
aparecer na prática biomédica somente a partir da década de 1950, mas
114
fazem parte de uma situação mais ampla, que é a do desenvolvimento de
medicamentos em geral a partir dos investimentos nessa área do conhe-
cimento que é a farmacologia. A visualização de fatores econômicos e
sociais que contribuíram para o processo de crescimento dessa última
permite que sejam também observados fatores que estiveram em cena no
desenvolvimento e inserção no mercado desses medicamentos.
Inicio com considerações sobre a farmacologia enquanto ciência
e, por essa razão, sujeita à influência de valores socioculturais, assim
como acontece com outras áreas do conhecimento científico; a seguir
abordo a profissão médica e sua relação com a farmacologia no final do
século XIX, pontuando situações que indicam como a indústria farma-
cêutica e instituições governamentais e não governamentais atuaram na
formação dessa ciência (e depois também disciplina); depois das consi-
derações teóricas, passo para a abordagem dessa área do conhecimento a
partir das edições do livro-texto Goodman e Gilman.
3.1 UMA CIÊNCIA LIVRE DE VALORES?
Wheaterall (1996) afirma que “a farmacologia, a ciência das dro-
gas, tornou-se necessária quando a primeira pessoa a ficar bêbada vis-
lumbrou o que estava acontecendo com ele ou ela” (p.246). Embora isso
tenha acontecido provavelmente há mais de cinco mil anos, é a partir do
século XVIII, com os avanços da ciência moderna, que também influen-
ciaram os estudos de química e fisiologia, que essa área do conhecimen-
to se destaca. Se o impulso ocorre no século XVIII, é no final do século
XIX que, ao lado da indústria farmacêutica, a farmacologia tem seu
desenvolvimento incrementado em função de novas tecnologias dispo-
níveis e da valorização das ciências básicas na formação médica. Sche-
indlin (2001) lembra que
etimologicamente, farmacologia é a ciência das
drogas (do grego pharmakos = medicamento ou
droga; logos = estudo). No seu atual uso, no en-
tanto, seu significado é limitado ao estudo da a-
ção das drogas. [...] [Tem] sido definida como
“uma ciência experimental que tem como propósi-
to o estudo das mudanças ocorridas nos organis-
mos vivos pela atuação de substâncias químicas
(com exceção dos alimentos), quer sejam utiliza-
das para fins terapêuticos ou não”. (SCHEIN-
DLIN, 2001, p.87, grifo meu)
Esse autor destaca a importância crucial dessa ciência no proces-
so de descoberta de novas drogas:
115
A farmacologia é uma das pedras angulares do
processo de descoberta de drogas. O químico me-
dicinal pode criar um composto candidato a medi-
camento, mas é o farmacologista quem testa a ati-
vidade fisiológica desse composto. Um composto
promissor é investigado por muitos outros cientis-
tas – toxicologistas, microbiologistas, clínicos
mas somente depois de o farmacologista ter do-
cumentado um potencial efeito terapêutico.
(SCHEINDLIN, 2001, p.87)
Scheindlin distingue ainda dois campos de ação nos estudos far-
macológicos: um deles refere-se ao estudo dos efeitos das drogas, e
outro a como as drogas exercem seus efeitos, lembrando que existe
diferença em abordar o que a droga faz e como ela atua. Ele exempli-
fica essa questão com o seguinte exemplo:
[A] amoxacilina cura uma faringite estreptocóci-
ca, e a cimetidina promove a superação das úlce-
ras duodenais
96
. [A] farmacologia pergunta “Co-
mo?”. [A] amoxacilina inibe a síntese do muco-
peptídeo da parede celular da bactéria que causa a
infecção, e a cimetidina inibe a secreção de ácido
gástrico por sua ação antagonista nos receptores
histamícos H2
97
. (SCHEINIDLIN, 2001, p.87)
Assim, os principais objetivos ou funções da farmacologia seri-
am, segundo Scheindlin: (a) fazer screenings de drogas para uma ativi-
dade desejada; (b) determinar o modo de ação das drogas; (c) quantificar
a atividade de uma droga quando métodos químicos não estão disponí-
veis (Scheindlin, 2001, p.87).
Vale destacar (um aspecto não citado por Scheindlin) que as pes-
quisas farmacológicas vêm sendo realizadas para procurar novas drogas
com ações específicas e para explicar seu efeito, mas tambémm servi-
do para tentar entender como o organismo funciona sob o aspecto bioló-
gico e como os distúrbios patológicos estariam ocorrendo nesse âmbito,
ou seja, têm sido buscadas explicações farmacológicas para determina-
das situações clínicas. Em algumas visões mais deterministas e reducio-
96
Esses seriam os efeitos das drogas, a amoxacilina cura a faringite e a cimetidina promove a
superação das úlceras duodenais. No original: “Thus, amoxicillin cures a strep throat, and
cimetidine promotes the healing of duodenal ulcers”.
97
Essa seria a forma como as drogas exercem seus efeitos. O ácido gástrico em excesso
propicia o aparecimento das úlceras, por isso sua inibição promove a cicatrização das mesmas.
No original: “Pharmacology asks “How”? Amoxicillin inhibits the synthesis of cell wall muco-
peptide by the bacteria that cause the infection, and cimetidine inhibits gastric acid secretion
by its antagonist action on histamine H2 receptors”.
116
nistas, o aparecimento de situações clínicas é considerado o resultado de
um processo desencadeado por alterações nessas substâncias endógenas
a partir de deficiências do organismo daquele indivíduo. Por exemplo,
nos casos em que tristeza e desânimo, classificados sob o grande rótulo
de “depressão”, são vistos como consequência unicamente das altera-
ções de neurotransmissores cerebrais, sem levar em conta os fatores
ambientais e sociais que poderiam contribuir para alterações endógenas,
teríamos uma visão reducionista.
Por outro lado, poderíamos pensar em alterações na neurotrans-
missão cerebral como consequência de uma série de fatores, incluindo
o estresse ambiental, levando a determinados sintomas, e não como
causa primária dos sintomas
98
. Nesse caso, o aparecimento de certos
sintomas não implica necessariamente em doença. A tristeza, o desâni-
mo e os sintomas físicos podem desencadear alterações fisiológicas nos
processos de liberação neuro-hormonal e de neurotransmissão em algu-
mas situações de sofrimento que poderiam ser consideradas reações a
situações de vida ou “distúrbios” originados de alterações temporárias.
Em muitos casos, o próprio organismo seria capaz de redimensionar tais
“distúrbios” ou alterações com seus próprios recursos biológicos, ou
com apoio social ou terapêutico não medicamentoso
99
. Não poderíamos
caracterizar esta última situação como “patológica”, mas como uma
reação que inclui mudanças fisiológicas no organismo em função de
mudanças na vida do indivíduo.
Canguilhem (2006 [1966]) nos alerta que a tentativa de localizar
a doença para que possamos combatê-la, retirando-a ou agindo sobre
ela, é uma conduta antiga, que nos acompanha desde os primórdios da
biomedicina, e representa uma visão ontológica da doença. Por outro
lado, também não é nova a visão que supõe uma concepção dinâmica da
doença. Ela pode ser representada pela medicina dos gregos antigos, em
que a perturbação do equilíbrio e harmonia da natureza (dentro e fora do
organismo humano), provoca a doença. Nesta última abordagem
a doença não está em alguma parte do homem. Es-
em todo o homem e é todo ele. [...] A doença é
uma reação generalizada com intenção de cura. O
organismo desenvolve uma doença para se curar.
A terapêutica deve, em primeiro lugar, tolerar e,
se necessário, até reforçar essas reações hedônicas
e terapêuticas espontâneas. A técnica imita a ação
98
Sobre o que falam esses autores, ver item 5.2 deste trabalho.
99
Ver item 5.2 deste trabalho.
117
médica natural (vix medicatrix naturae). (CAN-
GUILHEM, 2006 [1966], p.10 e 11)
Assim, segundo esse autor,
o pensamento dos médicos oscila, até hoje, entre
essas duas representações da doença, entre essas
duas formas de otimismo, encontrando, de cada
vez, para uma ou outra atitude, alguma boa razão
em uma patogenia recentemente elucidada. As
doenças de carência e todas as doenças infeccio-
sas e parasitárias
100
fazem a teoria ontológica
marcar um ponto; as perturbações endócrinas e
todas as doenças marcadas por um dis reafirmam
a teoria dinamista ou funcional. (CANGUILHEN,
2006 [1996], p.10 e 11)
Ambas as teorias encaram a doença, ou a situação de estar doen-
te, como uma “situação polêmica”, quer seja do organismo lutando con-
tra um ser estranho, quer seja pelo processo de luta interna que caracte-
rizaria a tentativa de reequilíbrio. A diferença entre saúde e doença man-
tém-se no aspecto qualitativo (estar ou não em equilíbrio, estar ou não
com um micro-organismo agindo), supondo um estado heterogêneo
entre ambos (saúde e doença). No entanto, o surgimento da concepção, a
partir de Bacon, “que admite e espera que o homem possa forçar a natu-
reza e dobrá-la a seus desejos normativos” torna insustentável essa visão
qualitativa, privilegiando a busca do “domínio da doença” por meio do
conhecimento de suas relações com o “estado normal”. Desde Bacon, a
distinção normal/patológico entra na lógica das explicações quantitati-
vas, da distância numérica que separa a doença da normalidade. Para
isso existe “a necessidade teórica, mas com prazo técnico diferido, de
fundar uma patologia científica ligando-a à fisiologia” (CANGUI-
LHEM, 2006 [1966], p.11). Com o auxílio da classificação nosológica,
da anatomia patológica e das demais ciências básicas que se desenvolve-
ram a partir do século XIX, ocorre a evolução das ideias médicas, que
tem como resultado
100
Vale lembrar que, mesmo quando pensamos nas doenças causadas por um parasita ou
micro-organismo, a concepção dinamista ou funcional, que considera a doença como resultante
de um desequilíbrio, também pode ser levada em conta. Por exemplo, vários indivíduos podem
estar em uma sala em que circula a bactéria causadora da meningite meningocócica. Todos vão
entrar em contato com o micro-organismo, alguns vão necessitar desencadear uma “guerra”
fisiológica (através do sistema imunológico) contra os mesmos, mas só uns poucos irão desen-
volver a doença. Mesmo que a bactéria seja condição básica para o desenvolvimento da doen-
ça, ela não é condição única, pois as condições de defesa do hospedeiro (no caso, o homem)
influenciam a ocorrência ou não da doença meningite.
118
A formação de uma teoria de relações entre o
normal e o patológico, segundo a qual os fenôme-
nos patológicos nos organismos vivos nada mais
são do que variações quantitativas, para mais ou
para menos, dos fenômenos fisiológicos corres-
pondentes. Semanticamente, o patológico é desig-
nado a partir do normal, não tanto como a ou dis,
mas como hiper ou hipo. (CANGUILHEM, 2006
[1966], p.12)
No caso da depressão
101
e dos medicamentos buscados para “con-
sertá-la”, os antidepressivos, o termo não utiliza os prefixos citados por
Canguilhem, mas a ideia de “baixo” (no sentido de hipo), podemos con-
jeturar, está presente na concepção que pretende relacionar doses baixas
de neurotransmissores (abaixo do “normal”) a um mau funcionamento.
A mesma ideia está presente na busca de substâncias que intervenham
no metabolismo aumentando a quantidade de neurotransmissores, rein-
troduzindo a “normalidade” metabólica e, pretensamente, restabelecen-
do a saúde.
Há que se diferenciar, nessa situação, o êxito técnico da farmaco-
logia, que promove o desenvolvimento do medicamento, modificando
determinado estado fisiológico e retirando um sintoma (cumprindo as-
sim o primeiro objetivo dessa área do conhecimento, conforme a enume-
ração de Scheindlin apresentada anteriormente na p. 94), da explicação
causal (que não caberia apenas à farmacologia) sobre o aparecimento
dos sintomas que caracterizam os inúmeros quadros clínicos medicados
com as drogas antidepressivas. Como afirma Canguilhem, ainda que as
teorias de explicação científica sobre a relação entre fisiologia e patolo-
gia se mantenham inconclusas, pode haver o desenvolvimento e o uso
do medicamento, estabelecendo-se práticas a partir do produto técnico-
científico.
Deixo registrado que com isso não nego a importância dos estu-
dos farmacológicos no sentido de buscar explicações fisiológicas e re-
cursos para intervir em determinados sintomas. Mas sendo o ser huma-
no, além de um corpo biológico, um ser social capaz de modificar seu
funcionamento fisiológico em decorrência de seus hábitos e regras soci-
ais e, além disso, capaz de atribuir significados simbólicos a eventos da
101
Refiro-me à depressão porque foi essa condição clínica que deu origem ao desenvolvimento
de drogas chamadas antidepressivos. No entanto, atualmente, são vários os distúrbios ou
sintomas caracterizados como consequência de baixos níveis de neurotransmissores que cabe-
riam nessa situação de “hipofuncionamento” por uma “quantidade” insuficiente de substâncias
endógenas “normalizadas” com medicamentos que “aumentam a sua quantidade”.
119
vida, alterando também assim seu metabolismo, outros campos do co-
nhecimento, além de uma ciência básica como a farmacologia, devem
atuar no sentido de buscar explicações causais para esses mesmos sin-
tomas. Se reduzirmos o aparecimento das disfunções a apenas alterações
de neurotransmissão ou de transmissão neuro-humoral, talvez estejamos
sendo “científicos de menos”. Segundo Sepilli (1998), a biomedicina
atual estaria errando, não ao ser “científica demais”, e sim ao ser “cientí-
fica de menos”, pois aborda questões médicas utilizando apenas algu-
mas partes do conhecimento científico, deixando de lado outras faces
também importantes desse conhecimento, tais como os estudos antropo-
lógicos, psicológicos, sociológicos e de interação do homem com o
meio ambiente.
Levando em conta o exposto acima e pensando a farmacologia
como uma ciência, vale destacar alguns aspectos que envolvem o co-
nhecimento científico de forma geral e que se aplicam também a essa
ciência em particular. O êxito da técnica a partir do conhecimento cientí-
fico que busca o controle da natureza (também comentado por Cangui-
lhem ao referir-se às doenças) muitas vezes é confundindo com as expli-
cações teóricas da ciência sobre determinado fenômeno (como no caso
da possível explicação dos sintomas sendo causados por alterações ori-
ginadas em defeitos de neurotransmissão). Será preciso analisar de que
modo a técnica e o conhecimento científico estão perpassados por valo-
res e limitados pelo contexto no qual aparecem. Para discorrer sobre
essa questão, utilizo as argumentações de Lacey (1998; 2005) e Lewon-
tin (1991; 2003).
3.2 CIÊNCIA, FARMACOLOGIA E VALORES A PARTIR DE LE-
WONTIN E LACEY
Lewontin (1991) lembra que podemos pensar a ciência como uma
instituição, como um conjunto de métodos, um conjunto de pessoas, um
grande corpo de conhecimento denominado científico (que é reconheci-
do como sendo objetivo) e como algo não sujeito a influências que afe-
tam outros setores da nossa vida e de nossa sociedade (LEWONTIN,
1991, p.3), tais como os valores pessoais e sociais. No entanto, ele con-
sidera que, por ser produzido por pessoas, o conhecimento científico
está sim sujeito aos valores de outras instituições, tais como a família e
o Estado, e a fatores econômicos, que acabam por gerar as condições
para que esse conhecimento seja desenvolvido em organizações gover-
namentais (por exemplo, universidades e centros de pesquisa) ou não
governamentais (como, por exemplo, empresas). Além de ser influenci-
120
ado por esses vários setores sociais, que determinam o que é importante
ser pesquisado ou não, esse conhecimento pode ser utilizado, através do
discurso dos cientistas, para reforçar a importância das instituições que
apoiam determinadas pesquisas, levando a uma situação em que o apoio
é recíproco entre as instituições e o conhecimento científico.
Lewontin destaca que as duas funções da ciência anteriormente
citadas, fornecer meios para a manipulação de recursos da natureza pro-
porcionando mudanças no modo de vida e buscar explicações para “co-
mo as coisas são e como funcionam(LEWONTIN, 1991, p.4), muitas
vezes estão completamente separadas, embora possam também estar
relacionadas. Na área da saúde, o autor cita o seguinte exemplo em que
o direcionamento da pesquisa é para a busca de uma explicação causal,
mas, na prática, o resultado das pesquisas fornece um produto técnico
que permite a intervenção sobre a situação, sem necessariamente atingir
o objetivo inicialmente proposto:
A maior parte das curas para o câncer envolve a
remoção de tumores ou sua destruição com poten-
tes radiações ou substâncias. Virtualmente, ne-
nhum desses progressos na terapia do câncer ocor-
reu por causa de um entendimento aprofundado
dos processos elementares do crescimento e de-
senvolvimento celular, embora quase toda pesqui-
sa em câncer, além do nível clínico, seja dedicada
precisamente ao entendimento dos detalhes mais
íntimos da biologia celular. A medicina permane-
ce, apesar de todo o discurso [talk] da medicina
científica, essencialmente um processo empírico
no qual se faz o que funciona. (LEWONTIN,
1991, p.5)
O resultado técnico da ciência tem nos trazido inúmeros benefí-
cios, como medicamentos para o tratamento do câncer, mesmo quando
não consegue estabelecer a relação causal de determinado processo (ou
evento). Assim, determinados valores estimulam o desenvolvimento da
técnica, e os produtos técnicos acabam por reforçar a importância de seu
desenvolvimento, no sentido de reciprocidade apontado por Lewontin.
Sobre valores sociais e o desenvolvimento da ciência e da técnica
influenciando-se mutuamente, Cupani (2004) destaca que
Valorações tais como “a economia deve visar lu-
cro”, “é lícito desenvolver indefinidamente a tec-
nologia” ou “a vida humana deve ser administra-
da” ilustram atitudes sociais geralmente não ques-
tionadas na sociedade moderna e amplamente sus-
121
tentadas mediante informação científica e produ-
tos tecnológicos. (CUPANI, 2004, p.129)
Também sobre essa relação entre valores
102
e ciência, Lacey
(1998) afirma que, se por um lado a ciência (desenvolvida a partir de
certos valores cognitivos) tem gerado um conhecimento exemplar por
tornar a ação e a prática fundamentadas no conhecimento científico bem
sucedidas (e com isso permitir a ação da tecnologia moderna) (p.27), por
outro, a ciência está sujeita à influência dos valores pessoais
103
e soci-
ais
104
, ainda que articulados em níveis diferentes com seus valores cog-
102
A palavra valor, segundo Lacey, tem usos variados e complexos, refletindo uma vasta
extensão da tarefa desempenhada em nossas práticas comunicativas, e também porque a pro-
fundidade de seu significado depende parcialmente dos valores que sustentamos (LACEY,
1998, p.35). Pode-se dizer que “valor” refere-se a algo que é bom, que tem valia, que merece
ser considerado. Sobre valores, ver em sua obra (LACEY, 1998) o capítulo II, “Para uma
análise de valores” (p.35-60).
103
Valores pessoais: Lacey (1998)) afirma que “podemos pensar acerca dos valores pessoais
que eles são dialeticamente tanto produtos quanto os pontos de referência dos processos com os
quais nós refletimos e avaliamos os nossos desejos. [...] O componente de desejo da sustenta-
ção dos valores aponta para seu caráter pessoal, de que os valores de uma pessoa estão ligados
a seus desejos mais fundamentais e a seus sentimentos mais profundos. Sustentar um valor
também envolve um componente de crença, a crença de que a qualidade em questão esteja
realmente ligada à experiência de uma vida plena, e também, talvez, a crença de que uma vida
marcada por essa qualidade não deve causar ou basearem-se em condições que prejudiquem a
vida de outros” (p.40). Ele complementa dizendo que: (a) esses valores podem ser manifesta-
dos no comportamento; (b) eles estão “entrelaçados em uma vida” na medida em que alguém
exibe um comportamento constante relacionado a esses valores; (c) um valor pessoal pode ser
expresso em uma prática quando esta é promovida por esse mesmo valor e (d) os valores
podem estar presentes na consciência e articulados em palavras. Sobre esse último aspecto,
destaca que “[É] parte da natureza dos valores que eles sejam articulados; a articulação é em si
mesma uma modalidade essencial dos valores – parte de sua formação, manutenção, transfor-
mação, aprofundamento, clarificação, reconhecimento e definição. E o próprio ato de articula-
ção dos valores pode também manifestá-los, uma vez que aqueles para os quais nós articula-
mos nossos valores, como e em que profundidade, vão variar no caso em que uma audiência
for composta de um ser amado, ou de amigos, ou de colegas de um movimento, e assim por
diante. [...] Finalmente, a articulação dos valores permite que eles se tornem objetos de investi-
gação (psicológica, epistêmica e avaliativa), de reflexão, de discussão e de argumento crítico, e
quando alguém descobre – em consequência da articulação – que compartilha valores com
outros, tais valores podem se tornar a base da participação em práticas compartilhadas e de
construção da comunidade, o solo para a convivência mútua sem violência. Essa articulação
torna possível a reflexão racional acerca de valores; se não se reflete racionalmente acerca de
valores, não se poderá dar valor à razão” (p.40-42). A partir dessas e de outras considerações, o
autor admite que os valores pessoais, embora sejam vivenciados no âmbito da vida de cada
indivíduo, estão vinculados aos valores sociais e à vida social, influenciando-os e sendo influ-
enciado pelos segundos; eles se articulam entre si.
104
Valores sociais: “Os valores sociais são manifestados nos programas, leis e políticas de
uma sociedade, e expressos nas práticas cujas condições eles proporcionam e reforçam. Esses
são os valores que se tornam articulados nas tradições explicativas da sociedade acerca das
espécies de instituições que tem [sic] sustentado, e na retórica de sua liderança. [...] Por exem-
plo, a liberdade, o primado dos direitos de propriedade e, em grau muito menor, a igualdade,
122
nitivos. Assim, não como negar a interação entre ciência e valores, e
Lacey “propõe um modelo, segundo o qual todo conhecimento científi-
co é produzido mediante a subordinação a alguma estratégia de pesqui-
sa, que carrega consigo a marca dos valores sociais mais prementes e
que impõe limites à parcela da realidade que será ‘tocada’ pela investi-
gação” (FERNANDEZ, 2004, p.6).
A partir das considerações de outros autores, Lacey (1998) dife-
rencia os valores cognitivos de outros tipos de valores, como os morais e
os sociais. Os valores cognitivos são
Os primeiros critérios a serem satisfeitos por uma
boa teoria científica. Eles são valores constitutivos
da ciência. As teorias científicas são, é claro, for-
muladas, transformadas, transmitidas e avaliadas
no decorrer das práticas científicas, as quais inclu-
em a atividade de agentes inseridos em institui-
ções sociais e, assim, envolvem a expressão de vá-
rios valores, além dos valores cognitivos. [...] A
título de especificação e ilustração do meu argu-
mento, considere-se a pequena lista a seguir, cujos
itens têm sido considerados como valores cogniti-
vos, pelo menos em alguns momentos na história
da ciência: adequação empírica, consistência,
simplicidade, fecundidade, poder explicativo e
certeza.
105
(LACEY, 1998, p.62)
Nesse processo de relação entre valores (cognitivos e outros),
buscando uma abordagem não subjetivista dos valores (LACEY, 1998,
p.9), a ciência, para Lacey, pode manter a imparcialidade como um ide-
al, mas sua neutralidade e sua autonomia em relação a outros setores do
contexto sociocultural são aspectos mais difíceis de serem atingidos. A
imparcialidade
são valores altamente entrelaçados à sociedade norte-americana. [...] Há uma relação estreita
entre os valores entrelaçados numa sociedade e os valores pessoais que uma sociedade incorpo-
ra, e também entre os valores que são articulados pelas instituições dominantes de uma socie-
dade (ideologia) e os valores pessoais que se tornam articulados através da sociedade. Essa
ligação não precisa ser formal, e pode tornar-se aparente apenas quando a ordem social desen-
volve-se concretamente no decorrer do tempo. Assim, por exemplo, a liberdade (liberdade
negativa) e o primado dos direitos de propriedade, como entrelaçados no interior das institui-
ções econômicas e legais concretas dos Estados Unidos, promovem a incorporação de valores
pessoais individualistas, egoístas e competitivos. Na verdade, a incorporação de tais valores
pessoais pode ela mesma ser construída como um valor social altamente entrelaçado na socie-
dade (p.45)”.
105
Sobre valores cognitivos e, inclusive, sobre a especificação de cada um desses exemplos
citados, ver Lacey, (1998), capítulo III, “Valores cognitivos” (LACEY, 1998, p.61- 86).
123
pressupõe uma distinção entre valores cognitivos
e outros tipos (moral, social) de valores, e afirma
que uma teoria é propriamente aceita somente se
ela manifesta os valores cognitivos num alto grau
à luz dos dados empíricos disponíveis e de outras
teorias apropriadamente aceitas; como ela se rela-
ciona com os valores morais e sociais nada tem a
ver com a aceitabilidade de uma teoria. (p.9)
Já a autonomia que tem sido atribuída à ciência presume que
as agendas da pesquisa científica tendem a refle-
tir o interesse da comunidade científica no esta-
belecimento de mais e melhores proposições so-
bre quais teorias manifestam os valores cogniti-
vos em grau elevado, bem como na descoberta de
novos fenômenos que favoreçam tal interesse.
(p.76)
A autonomia poderia ser buscada em uma “pesquisa fundamen-
tal
106
”, como no caso da pesquisa básica farmacológica que investiga o
processo de transmissão neuroquímica para tentar entender como fun-
ciona a fisiologia do organismo humano. Isso porque a autonomia supõe
que “os cientistas possam seguir seu objetivo de obter e confirmar en-
tendimento de fenômenos do mundo” (LACEY, 2005, p.43). No entan-
to, como também aponta Lacey, grande parte da pesquisa contemporâ-
nea nessa área não busca um fenômeno qualquer, mas aquele que inte-
ressa a outras instituições não científicas, tais como as Forças Armadas,
as empresas agrícolas e a indústria farmacêutica (LACEY, 1998, p.78).
No caso da farmacologia básica, haveria autonomia se a busca de enten-
dimento ocorresse para a elucidação da fisiologia sem a vinculação des-
sa situação com a produção de medicamentos, o que não acontece, pois
desde o início do desenvolvimento dessa ciência ela esteve intimamente
relacionada à indústria farmacêutica, como veremos no decorrer deste
capítulo.
A neutralidade parece um ideal mais difícil de ser atingido, em
parte em decorrência da argumentação anterior sobre a imparcialidade.
Supostamente, as proposições teóricas da ciência poderiam ser aplicadas
em qualquer estrutura de valores, e por essa razão haveria neutralidade.
No entanto, Lacey nos lembra que na prática científica está incluído um
valor que não pode ser dela separado, a busca do controle da natureza
pelo homem, e que “as descobertas científicas de novos fenômenos [...]
106
Pesquisa fundamental: aquela que “está direcionada ao estabelecimento de mais e melhores
proposições acerca de estruturas, leis e processos subjacentes” (LACEY, 1998, p.78).
124
tendem a favorecer certos interesses especiais”, não podendo ser aplica-
das a todas as estruturas de valores (LACEY, 1998, p.78 e 79). Essa
situação, sobre a qual também se referem Canguilhem e Lewontin, da
busca do controle sobre a natureza como característica importante da
ciência moderna, acaba por direcionar as pesquisas, pois se esse valor
não estivesse implícito, os caminhos da pesquisa seriam outros.
Ele cita o exemplo da pesquisa de sementes transgênicas, que só é
feita (na área da pesquisa básica, a pesquisa com genes precede a pes-
quisa do desenvolvimento de sementes) porque se pretende controlar a
“natureza da semente”. Se a pesquisa fosse direcionada a partir de valo-
res tradicionais, tais como preservar sementes que permitam a autono-
mia de uma determinada comunidade sem precisar de todo o aparato
tecnológico que é oferecido pela indústria que desenvolve insumos agrí-
colas, provavelmente a trajetória da pesquisa seria outra. Em ambos os
tipos de pesquisa pode haver neutralidade cognitiva
107
no processo de
investigação científica à medida que são respeitados os valores cogniti-
vos, mas em ambas é difícil garantir a neutralidade aplicada, pois os
diferentes programas de pesquisa são guiados por valores diferentes em
relação ao controle da natureza (LACEY, 2005, p.52). O segundo pro-
grama de pesquisa “poderia estar em continuidade com o conhecimento
tradicional de uma comunidade e de uma cultura. Aí, o empreendimento
sistemático e empírico reconheceria a importância do papel de agriculto-
res locais ao lado do de cientistas ‘especializados’” (LACEY, 2005,
p.51). Nos dois casos, não neutralidade aplicada, pois são considera-
dos valores distintos; cada uma das abordagens “não produz resultados
que poderiam ser aplicados genericamente de modo igual para todo o
mundo” (LACEY, 2005, p.52).
Aqui cabe a ressalva de que, em determinado sentido “é parte da
natureza humana controlar a natureza” (LACEY, 1998, p.118). Confor-
me também apontado por Canguilhem quando se refere aos tratamen-
tos (intervenções humanas) nas abordagens que consideravam a doença
como alteração qualitativa do organismo, segundo Lacey o que difere na
modernidade é a extensão do controle realizado. O controle sobre a
natureza passa a ser preeminente e central em nossas vidas, a assumir o
papel de valor superior e virtualmente não subordinado a outros valores,
exigindo “esforços intensos para expandir e implementar nossa capaci-
dade de exercê-lo” (LACEY, 1998, p.118), e o desenvolvimento tecno-
lógico atual permite corroborar essa visão. É esse ponto de vista da ci-
ência moderna, buscando o controle da natureza, que também guia a
107
Sobre neutralidade cognitiva e neutralidade aplicada ver Lacey (2005).
125
farmacologia. O quanto essa área do conhecimento está sujeita a este ou
a outros valores, sociais e pessoais, pode diferir em épocas diversas do
seu desenvolvimento. Na seção seguinte pontuo algumas relações da
farmacologia com instituições governamentais e não governamentais
(como universidades, centros de pesquisa e a indústria farmacêutica) a
partir do seu surgimento no século XIX.
3.3 O NASCIMENTO DA FARMACOLOGIA E SUA INTERAÇÃO
COM A PRÁTICA BIOMÉDICA
A título de contextualização, vale lembrar que, se anteriormente o
conhecimento biomédico fora desenvolvido principalmente na Europa, a
partir da segunda metade do século XIX, a América passa a contribuir
na sua formação. Coelho (1995) lembra que por volta desse período
inicia a regulamentação da profissão médica, padronizando a formação e
o modo de atuação dos profissionais na medicina moderna nos países da
Europa e também nos Estados Unidos. Se na França a divisão entre
médicos, apotecários
108
e cirurgiões era bem definida nessa época, com
a medicina centrada no atendimento hospitalar, nos Estados Unidos e na
Inglaterra os médicos clínicos dividiam o atendimento dos pacientes
com esses outros profissionais e até mesmo com práticos (como partei-
ras e ajustadores de ossos, entre outros). Na década de 1840 foi fundada
a Associação Médica Americana (AMA), na tentativa de controlar o
número excessivo de escolas médicas e de aperfeiçoar o ensino médico
(AMA,<http://www.amaassn.org/ama/pub/aboutama/ourhistory.shtml>).
Em 1893 foi criada a Medical School da John Hopkins
109
que, segundo
Coelho
[foi] a primeira experiência bem sucedida no país,
de combinação das ciências básicas com a medi-
cina hospitalar, ou, do treinamento clínico com a
pesquisa científica. [...] A partir da experiência da
John Hopkins, a educação médica no país iria pas-
sar para as mãos de cientistas e pesquisadores, e
prevaleceriam na educação dos médicos os crité-
rios e valores dos especialistas acadêmicos. (CO-
ELHO, 1995, p.46-47)
108
Apotecários: ver nota na página 60 deste trabalho.
109
Na John Hopkins University, que por sua vez foi fundada em 1876. (Disponível em:
<http://webapps.jhu.edu/jhuniverse/information_about_hopkins/about_jhu/a_brief_history_of_
jhu/index.cfm>. Acesso em: 09 fevereiro 2010).
126
Ao contrário, na França da segunda metade do século XIX, a
primazia era dos médicos clínicos, e a sua medicina estava baseada na
estrutura hospitalar, fornecendo uma fonte imensa de material através da
observação dos pacientes e descrição dos seus sintomas (COELHO,
1995, p.49), como pode ser observado nas descrições de Pinel, Esquirol,
Dagonet e Régis relatadas anteriormente. Para que se tenha uma ideia da
superioridade da clínica baseada no modelo hospitalar, Coelho destaca a
reprovação de Claude Bernard, médico fisiologista que influenciou de
forma importante a farmacologia e a prática biomédica, no exame que
dava acesso à docência na Faculdade de Medicina de Paris. Essas provas
eram elaboradas para os médicos que trabalhavam em hospitais, e não
para aqueles que se dedicavam à pesquisa, que por sua vez, era desen-
volvida fora das universidades, em laboratórios particulares ou outras
instituições públicas (p.50). Ainda que o laboratório não estivesse dire-
tamente influenciando a formação médica da França (COELHO, 1995;
WHEATERALL, 1996), a pesquisa nesse espaço se desenvolvia, como
por exemplo, com os trabalhos de Claude Bernard (PORTER, 2004;
PORTER, 1996ª; BLACK, 1999). Outro país em que se desenvolveu de
forma intensa a pesquisa química, e depois farmacológica, foi a Alema-
nha (PORTER, 1996a, p.182), onde atuou Oswald Schmiedeberg, con-
siderado o “pai da farmacologia” (DAGOGNET; PIGNARRE, 2005, p.
232; SCHEINDLIN, 2001).
No século XVIII começam as pesquisas com substâncias quími-
cas que tentam identificar quais delas seriam responsáveis pelos efeitos
terapêuticos nos preparados à base de plantas utilizados desde os tempos
antigos para tratar problemas de saúde. Na primeira metade do século
XIX, algumas dessas substâncias, tais como estriquinina, emetina, mor-
fina e quinina, foram isoladas de plantas por pesquisadores franceses,
entre eles François Magendie. Na segunda metade do século XIX, Clau-
de Bernard, que era assistente de Magendie
110
, conseguiu identificar, ao
estudar a ação do curare
111
, o local de atuação dessa planta no músculo
animal. Embora sem saber exatamente qual a estrutura química das
substâncias que estavam atuando na placa motora (local da terminação
110
A partir de 1840 inicia seu trabalho com Magendie (Foster, [1889]), e, em 1842 inicia seus
estudos com o curare e sua ação sobre a placa motora (SCHEINDLIN, 2001).
111
Curare é uma preparação inicialmente utilizada por índios da América do Sul para banhar
suas flechas utilizadas na caça ou na guerra e que provoca a paralisação do animal sem matá-
lo. (Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Curare>. Acesso em: 09 fevereiro 2010) Seu
efeito é reversível, e sua ação foi estudada por C. Bernard, sendo um marco para a fisiologia e
estudos farmacológicos por trazer a ideia de receptor para drogas no organismo. (DAGOG-
NET; PIGNARRE, 2005, p.104)
127
nervosa no músculo), percebeu que estas agiam nesse local específico
do organismo. A partir dessa constatação, tem início um conceito fun-
damental em farmacologia: o organismo possui receptores para drogas
que, embora ainda não idenificados na época por não existirem recursos
técnicos disponíveis, permitem “visualizar” a ação dos medicamentos
como um evento químico (WHEATERAL, 1996, p.259-260). Esse é um
marco fundamental para a farmacologia moderna, embora na ocasião,
como já foi pontuado, ainda não houvesse o reconhecimento desses
estudos pelos médicos clínicos. Porter (1996ª, p.182) destaca que as
inter-relações entre fisiologia, patologia e farmacologia constituíam,
para Claude Bernard, “os fundamentos da medicina experimental”.
Embora os estudos farmacológicos tenham iniciado no começo
do século XIX, é em 1847, depois das pesquisas de Claude Bernard, que
aparece a primeira cadeira de farmacologia como uma ciência “de labo-
ratório”, separada das demais, na universidade de Dorpat, na Estônia.
Foi nomeado professor dessa cadeira, na ocasião de sua criação, Rudol-
ph Buchheim, que teve como sucessor Oswald Schmiedeberg em 1869.
Este último vai para a Alemanha em 1872 (SCHEINDLIN, 2001;
WHEATERAL, 1996), e, ao contrário de seu antecessor, que montou
um laboratório para pesquisa em sua própria casa, com seus próprios
recursos, Schiedeberg recebe incentivos governamentais para montar um
grande instituto de farmacologia, onde foram formados médicos do
mundo.
Parece situar-se aqui o primeiro grande ponto de expansão dessa
nova ciência, que vai dar um salto ainda maior após a Segunda Guerra
Mundial. Schmiederberg treinou a maior parte dos médicos que foram
professores de farmacologia em universidades na Alemanha
112
e em
outros países nas décadas seguintes. Nos Estados Unidos, a primeira
cadeira de farmacologia foi fundada por um aluno seu, John Jacob Abel,
em 1890 em Michigam. Logo em seguida, em 1893, este pesquisador
transferiu-se para a John Hopkins University (SCHEIDLIN, 2001), a
“mais germânica das universidades americanas”, segundo Porter (1996a,
p.154). Wheaterall (1996) destaca que um dos poucos clínicos que nessa
época percebeu a importância da química para a prática médica foi o
canadense Sir Willian Osler, que se tornou professor de medicina na
112
Disponível em: <http://www.unistra.fr/index.php?id=59>. Acesso em: 12 março 2010. Em
1532, na Vila de Estrasburgo, é fundado o “Ginásio Protestante”, que em 1621 é transformado
em Universidade (Universidade de Estrasburgo). Em 1668 foi tomada pela França, e em 1870
foi retomada pela Alemanha, permanecendo assim até 1918, quando volta a pertencer à França.
128
mesma universidade e construiu a primeira unidade de experimentação
clínica em um país anglo-saxão no final da década de 1880
113
(p.260).
A farmacologia foi definida por Schmiederberg
como uma ciência independente e puramente bio-
lógica que se ocupa da ação dos medicamentos
independente de sua importância prática. A far-
macologia deve permitir compreender os efeitos
das substâncias químicas sob condições fisiológi-
cas, e os resultados devem nos trazer os conheci-
mentos toxicológicos, terapêuticos ou puramente
fisiológicos. (SCHMIEDERBERG apud DA-
GOGNET; PIGNARRE, 2005, p.232)
Se o principal local de estudo da farmacologia, no sentido atribu-
ído acima, era e continua sendo o laboratório, onde as pesquisas são
desenvolvidas com tecidos vivos isolados e animais de experimentação,
também a experimentação das substâncias em humanos para fins
terapêuticos, e este é o campo da farmacologia clínica. Inicialmente,
muitas vezes as “cobaias” eram os próprios pesquisadores, como no
caso do ópio, isolado em 1805 por Friedrich Serturner e experimentado
em si mesmo e em três de seus colegas de trabalho (Scheindlin, 2001),
ou do LSD (dietolamina do ácido lisérgico), pesquisado por Hoffman
em 1943 e também autoexperimentado (GOODMAN; GILMAN, 1965,
p.205). Outros experimentos foram feitos com voluntários, ou mesmo a
partir da decisão do médico em testar a droga em algum paciente, como
no caso da penicilina (FRIEDMAN; FRIEDLAN, 2000) e de muitas
outras substâncias, porém não de forma sistemática como ocorre atual-
mente em estudos controlados
114
. Os estudos controlados (com placebo
ou com outras drogas) fazem parte da pesquisa atual de medicamentos,
e, embora não sejam objeto deste estudo, vale lembrar que questões
éticas
115
relacionadas a pesquisas com humanos foram levantadas no
decorrer de todo o século XX e continuam em debate no século XXI.
Mesmo que a definição de Schmiederberg tenha guiado os pri-
meiros passos da farmacologia, caracterizando-a como a busca do en-
113
Em 1889 ele era chefe da equipe médica do John Hopkins Hospital, e em 1893, um dos
primeiros professores de medicina da Johns Hopkins University School of Medicine (Disponí-
vel em: <http://en.wikipedia.org/wiki/William_Osler>. Acesso em: 09 fevereiro 2010).
114
Ver sobre estudos controlados a nota 2 deste trabalho.
115
Desde episódios de pesquisas para testar drogas com prisioneiros nos campos de concentra-
ção da Alemanha na época do nazismo, passando por estudos com detentos nos Estados Uni-
dos, com a população civil na África (na validação de tratamentos para AIDS), entre outros que
têm sido alvo de controvérsia entre aqueles que conduzem estes estudos e a sociedade organi-
zada que luta em prol dos direitos humanos.
129
tendimento dos mecanismos de ação das drogas nos seres vivos, pelo
menos em parte como algo independente da relação com a clínica, é
impossível separá-la deste âmbito e do desenvolvimento de medicamen-
tos pela indústria farmacêutica. É possível perceber, nos objetivos da
farmacologia listados por Scheindlin (2001), que descrevemos anteri-
ormente (p. 94 deste trabalho), que “estudar o mecanismo de ação das
drogas” é o segundo objetivo dessa ciência no início do século XXI,
enquanto o primeiro deles é “fazer screening para atividades desejadas”.
“As atividades desejadas” são definidas a priori quando se busca uma
droga ou medicamento: “baixar a febre”, “melhorar o humor”, “comba-
ter células neoplásicas”, entre outras situações. Mesmo que em algum
momento possa existir uma “descoberta” ao acaso, quando se está tes-
tando determinada droga para um fim específico e observa-se sua ação
para outro problema, tem-se em mente esse outro problema como situa-
ção clínica que poderia se beneficiar desse “achado”, imprevisto em um
primeiro momento.
O desenvolvimento da indústria tampouco pode ser dissociado
desse contexto de descoberta dos medicamentos, e isso pode ser consta-
tado na época em que o “pai da farmacologiaatuou, se pensarmos,
por exemplo, no ácido salicílico. Sintetizado em 1853, teve sua estrutura
modificada para ácido acetilsalicílico por Félix Hoffmann em 1893, um
funcionário da Bayer, e, em 1899 foi nomeado Aspirina
®
(BAYER,
2009). Mesmo entrando para domínio público em 1919
116
(DAGOG-
NET; PIGNARRE, 2005, p.49-52) e a partir daí comercializado por
outras empresas sob seu nome químico
117
, esse talvez seja o medica-
116
Ou seja, a Bayer não podia mais deter a patente desse medicamento, e outros laboratório
passaram a produzi-lo e comercializá-lo.
117
Sobre os nomes pelos quais os medicamentos são referidos, Schenkel, Mengue e Petrovick
(2004) lembram que “os nomes usados para identificar um medicamento merecem uma análise
cuidadosa, já que sua função vai além da função de identificação. Diferentes nomes são usados
para designar um medicamento e não são raros os casos em que a confusão gerada pela propa-
ganda de medicamentos enfatizando apenas os nomes de marca (também denominados nome
fantasia e nomes comerciais), somada à falta de informações à disposição do consumido levam
a problemas graves. O nome de marca, também chamado nome fantasia, é aquele registrado e
protegido pela marca registrada em cada país e que identifica um medicamento como produto
de uma determinada indústria. Um mesmo medicamento pode ser comercializado sob muitos
nomes fantasia. Esses nomes nada têm a ver com as características químicas ou farmacológicas
dos medicamentos. São criados em função de uma identificação comercial dos produtos. [...]
O nome químico é o nome do composto indicado como substância ativa, de acordo com regras
de nomeclatura química, presente no medicamento. Embora exista apenas um nome químico
oficial, aprovado pela União Internacional de Química Pura e Aplicada, o qual
identifica uma
determinada substância ativa, costuma-se usar uma variedade de outros nomes, por serem mais
simples ou por serem tradicionais. Os nomes químicos são universais e de domínio público, e
são importantes por serem os únicos que identificam uma substância de forma unívoca e a
130
mento mais famoso e difundido de todos os tempos, inclusive sendo
mais conhecido pelo nome comercial (Aspirina
®
) do que pelo seu nome
químico. Sua inserção na vida das pessoas no Ocidente é tal que talvez
seja o único medicamento que conste em dicionários não médicos, como
um vocábulo usual. No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, por
exemplo, aparece “aspirina” com o significado de “1. Medicamento
analgésico e antipirético. 2. Comprimido de aspirina.” (FERREIRA,
1980, p.183). inclusive traduções do vocábulo para diferentes lín-
guas, como no Dicionário Larousse (LARROUSSE, 2001, p.23; LAR-
ROUSE, 2008, p.23), no Dicionário Collins Inglês/Português (COL-
LINS, 1964, p.33 e p.479), no Dicionário de Língua Inglesa (MERRI-
AN-WEBSTER, 1966, p.28). Também há a definição desse vocábulo
118
.
Pode-se dizer até que algumas vezes, na linguagem coloquial, o termo
“aspirina” virou sinônimo de analgésico, alívio da dor, sendo utilizado
como metáfora para se referir a algo que alivia dores não físicas. Se
houve a tentativa de definir a farmacologia como ciência independente
da produção de medicamentos (os produtos da técnica que ela tem gera-
do), parece que, na prática, essa separação é impossível.
A farmacologia e a abordagem dos problemas de saúde no século
XX (incluindo os quadros relacionados a tristeza, melancolia e depres-
são) iniciam contando com o arcabouço de teorias e práticas herdadas
dos séculos anteriores, mas se desenvolvem tendo como base as mudan-
ças ocorridas no século XIX. Entre elas, aquelas incluídas nas novas
propostas de categorização dos problemas mentais (tais como as de
Kraepelin e Freud), o desenvolvimento das ciências de laboratório, o
incentivo de organizações governamentais e empresas ao desenvolvi-
mento da indústria química (aqui incluída a dos medicamentos) e a regu-
lamentação da profissão médica.
Caminhando lado a lado e se influenciando reciprocamente a par-
tir de seus valores, homens da ciência, homens do mercado e homens da
sociedade vão conduzir no século XX (e também no século XXI) as
pesquisas em farmacologia, direcionadas à produção de medicamentos e
estrutura química de um fármaco. [...] Os nomes genéricos são também de domínio público e
constituem designações curtas utilizadas para identificar os componentes ativos dos medica-
mentos. [...] Apresenta-se como alternativa ao uso do nome químico, que também é utilizado
para identificar asubstâncai aativa, mas que é, de modo geral, longo e de difícil memorização.”
Por exemplo, Tylenol®, e Dôrico® são nomes comerciais (entre muitos outros de diferentes
laboratórios faramcêuticos) da substância que tem o nome genérico de paracetamol ou aceta-
minofeno (tem dois nomes genéricos também) e os nomes químicos 4-hidroxi-acetinilida ou N-
acetil-p-aminofenol (também tem dosi nomes químicos) (p. 22-24).
118
Aspirin: whyte cristalinne drug used to relieve pain and fever” (MERRIAN-WEBSTER,
1966, p.28).
131
também à assistência aos que sofrem, incluindo os que se inserem nas
categorias “depressão” e “melancolia”. Os interesses de cada um dos
grupos envolvidos com esses objetivos estarão em disputa no decorrer
das décadas seguintes, ora prevalecendo a busca de recursos terapêuticos
visando o bem estar dos doentes, ora prevalecendo a ênfase no conheci-
mento científico que busca o entendimento dos fenômenos fisiológicos,
ora prevalecendo o conhecimento científico que pretende desenvolver
medicamentos, esses produtos da ciência e da técnica que oscilam entre
restabelecer a saúde e gerar ganhos para as empresas que os produzem.
4 A FARMACOLOGIA SEGUNDO O LIVRO-TEXTO GOOD-
MAN E GILMAN
4.1 A FARMACOLOGIA SEGUNDO O LIVRO-TEXTO EM SUA
PRIMEIRA EDIÇÃO DE 1941
132
The Pharmacological Basis of Therapeutics: a textbook of
pharmacology, toxicology and therapeutics for physicians and med-
ical students, escrito por Louis Goodman e Alfred Gilman, foi lançado
em 1941. Décadas depois, quando deixaram de participar ativamente do
processo de escrita e/ou edição, os autores acabaram por dar nome à
obra, atualmente intitulada Goodman e Gilman: as bases farmacológi-
cas da terapêutica. O próprio Goodman (ALTMAN, 2000), afirmou
que seu maior legado para a sociedade teria sido o livro escrito por ele e
Gilman, embora outras contribuições importantes, como o pioneirismo
na pesquisa do uso de drogas para tratamento do câncer, façam parte de
sua atuação profissional.
A primeira edição foi realizada pela Macmillan Company, de
Nova York e pela Macmillan Company do Canada, Toronto, sendo pu-
blicada em janeiro de 1941, com 1.387 páginas. Obtive acesso à versão
de 1943 (8ª impressão) e à 15ª impressão de abril 1947. Sobre essa pri-
meira edição, Altman (2000) diz que
a Macmillan imprimiu cautelosamente três mil
cópias e prometeu aos autores uma caixa de uís-
que escocês caso fossem vendidas em quatro anos.
Elas foram [vendidas] em seis semanas, e vende-
ram mais de 86 mil cópias, em parte devido à ên-
fase na história do desenvolvimento de cada dro-
ga, que tornou grande o interesse pela leitura do
livro. (ALTMANN, 2000, p.2)
Segundo Altman (2000), quando Goodman e Gilman apresenta-
ram o manuscrito da primeira edição à editora Macmillan em 1940,
houve receio na sua publicação, porque a obra tinha mais do que o dobro
das 500 páginas esperadas. Mas, como foi dito na citação acima, o livro
foi um sucesso de vendas, e iniciou naquele ano uma trajetória que con-
tinua nos dias atuais.
Se a ênfase no aspecto histórico do desenvolvimento das drogas
foi a característica que contribuiu para o sucesso dessa primeira edição,
aos poucos houve mudança nesse sentido. A abordagem dos aspectos
históricos mantém-se nas edições seguintes, quer seja no corpo de cada
capítulo ou num capítulo específico, como no caso da “História da A-
nestesia”. No entanto, essa abordagem vai ganhando menor importância
no decorrer dos anos, a ponto de na última edição (11ª, 2006), o referido
capítulo, que esteve presente nas dez edições anteriores, ter sido supri-
mido.
133
A primeira edição, como foi mencionado, tem o título The
Pharmacological Basis of Therapeutics, que aparece na capa e na
primeira folha escrita da obra. Em sua segunda folha escrita, nova-
mente o título, seguido da complementação a textbook of pharmaco-
logy, toxicology and therapeutics for physicians and medical stu-
dents”, direcionando a obra para esse público. Esse aspecto é reforçado
no prefácio do livro, quando os autores apresentam a obra:
Embora a farmacologia seja uma ciência médica
básica em si mesma, ela recebe contribuições e
contribui livremente com vários assuntos e técni-
cas de muitas disciplinas médicas, quer sejam elas
clínicas ou pré-clínicas. Consequentemente, a cor-
relação da informação farmacológica estrita com a
medicina como um todo é essencial para a apre-
sentação adequada da farmacologia aos estudantes
e médicos. (GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941],
p.v)
A obra está organizada da seguinte forma: prefácio, table of con-
tents, 14 seções (cada uma delas subdividida em vários capítulos), um
apêndice que contém os “Princípios de redação da prescrição” e o índice
alfabético, num total de 1.387 páginas (Quadro 4.1).
Embora o livro tenha a data de 1941, seu prefácio é assinado em
20 de novembro de 1940. Esse prefácio aparece não nessa edição,
mas em todas as outras, reforçando os objetivos iniciais da obra no de-
correr dos anos. Os autores iniciam explicitando esses objetivos, que são
três. Nas palavras dos autores:
Três objetivos guiaram a escrita deste livro: (1) a
correlação da farmacologia com as ciências médi-
cas a ela relacionadas, (2) a reinterpretação das
ações e usos das drogas a partir dos importantes
avanços em medicina e (3) a colocação de ênfase
nas aplicações da farmacodinâmica para a tera-
pêutica. (GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941],
p.v)
A seguir há explicações sobre o porquê de cada um dos objetivos.
Em relação ao primeiro objetivo, o argumento é o mesmo citado aci-
ma, enfatizando que a farmacologia contribui com várias outras discipli-
nas e recebe também a contribuição destas. Em relação ao segundo obje-
tivo, são feitos os seguintes comentários:
Além disso, a reinterpretação das ações e usos de
agentes terapêuticos bem estabelecidos, à luz dos
recentes avanços nas ciências médicas, é uma fun-
ção tão importante para um livro-texto de farma-
134
cologia moderna quanto a descrição de novas dro-
gas. Em muitos casos, essas novas interpretações
necessitam de rupturas radicais em relação a con-
ceitos aceitos, porém ultrapassados, sobre a ação
das drogas. (GOODMAN; GILMAN, 1943, p.v).
Quadro 4.1 – Descrição da 1ª edição do livro Goodman e Gilman
1ª Ediç
ão
(1941)
Seção I - Introdução (com apenas um capítulo “Princípios Gerais”);
Seção II - Depressores do SNC (com 13 capítulos);
Seção III - Estimulantes do SNC (com três capítulos);
Seção IV - Anestésicos locais (com um capítulo);
Seção V - Drogas atuando nas células efetoras autonômicas (com nove capí-
tulos);
Seção VI - Drogas cardiovasculares (com quatro capítulos);
Seção VII - Água, sais e íons (com três capítulos);
Seção VIII - Drogas que afetam a formação de urina (um capítulo);
Seção IX - Drogas que atuam nos órgãos reprodutores (dois capítulos);
Seção X - Gases e vapores (com três capítulos);
Seção XI - Metais pesados e metaloides (com três capítulos);
Seção XII - Drogas que atuam localmente na pele e nas membranas mucosas
(com quatro capítulos);
Seção XIII - Antissépticos, desinfetantes e drogas utilizadas na quimiotera-
pia de doenças infecciosas (com 12 capítulos);
Seção XIV - Drogas atuantes no sangue e nos órgãos formadores de sangue
(com três capítulos);
Seção XV - Drogas de origem endócrina (com sete capítulos);
Seção XVI - As vitaminas (com quatro capítulos).
Apêndice: “Princípios de redação da prescrição”
Índice alfabético.
Total: 1.387 páginas.
Fonte: GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941].
Os dois primeiros objetivos trazem as questões (a) da inter-
relação da farmacologia com outras áreas médicas do conhecimento,
pois é uma ciência básica, uma área do conhecimento que não é clínica
e, por essa razão, não lida diretamente com os indivíduos em sofrimen-
to, e (b) da necessidade de estar em contato com “avanços” dessas ou-
tras áreas, que estão em constante mudança. Se os conhecimentos gera-
dos com a pesquisa farmacológica trazem contribuições para a atuação
clínica do profissional, novas condutas clínicas que surgem a partir dos
saberes construídos em outras disciplinas (outras áreas do conhecimento
médico) influenciam o que vai ser pesquisado, o que vai ser “descober-
to” e desenvolvido na área da farmacologia.
135
Outro aspecto é a ruptura com os conhecimentos anteriores que
os autores consideram “ultrapassados”. Parece que o novo conhecimento
vem para superar os anteriores, mas fica a questão sobre os limites que
esse novo conhecimento tem em relação aos antigos. Mais ainda, mes-
mo que a argumentação se refira a uma inovação, não fica clara a forma
como esse novo conhecimento vai se relacionar com o anterior, aquele
que é utilizado pelos médicos e repassado aos estudantes de medicina na
prática médica. Como observamos com a abordagem da depressão, da
melancolia e de situações clínicas correlatas, quando uma nova aborda-
gem para determinado problema aparece no dia a dia da prática médica,
ela coexiste por algum tempo com as abordagens antigas que até então
eram preconizadas.
O terceiro objetivo fala da farmacodinâmica, uma subárea da
farmacologia, que será abordada logo adiante. Mas, para compreendê-lo,
precisamos primeiro entender o que é a farmacologia e quais são as suas
subdivisões segundo os autores. Na Seção I, Capítulo 1 Princípios
Gerais, subtítulo “Abrangência da farmacologia” (“Scope of pharmaco-
logy”), o primeiro parágrafo define:
O assunto [subject] da farmacologia é amplo e
inclui o conhecimento das fontes, propriedades
químicas e físicas, composição, ações fisiológicas,
absorção, destino e excreção, e o uso terapêutico
das drogas. Uma droga
119
pode ser definida, de
uma forma ampla, como qualquer agente químico
que afete o protoplasma vivo, e poucas substân-
cias podem escapar de sua inclusão nessa defini-
ção. Para o estudante de medicina e para o médi-
co, no entanto, a abrangência da farmacologia e o
número de substâncias a serem vistas [reconheci-
das] como drogas, são mais restritas do que a de-
finição acima. O médico está interessado nas a-
ções e usos das drogas na terapia da doença.
(GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941], p.3, grifo
no original)
Ainda nesse capítulo dos “princípios gerais” comentários so-
bre as divisões da farmacologia, que seriam: a farmacognosia, a far-
mácia, a farmacodinâmica e a farmacoterapêutica. O texto fala da
primeira, que trata das substâncias de origem natural, principalmente
plantas, e considera este ramo pouco importante para o médico da épo-
119
Em inglês, drug; em português, droga ou medicamento. Sobre essa questão ver página 63
deste trabalho.
136
ca, embora tivesse sido importante no passado, classificando-a como
uma ciência puramente descritiva. Sobre a segunda, que trata da prepa-
ração dos medicamentos, esta seria uma atividade que não cabe aos
médicos, pois os medicamentos já estão sendo vendidos prontos. Não há
mais necessidade de prepará-los, e, embora nessa época nem todos os
medicamentos sejam industrializados, a observação pode refletir o quan-
to o processo de industrialização já está vigente.
Os autores afirmam não ser objeto específico da obra (que nessa
edição se dirige principalmente a médicos) falar sobre a farmácia, mas
anunciam que serão especificadas algumas questões, como, por exem-
plo, de que forma a droga pode ser mais bem administrada para uma
prescrição adequada, principalmente para aqueles medicamentos que são
manipulados
120
. Aqui vale lembrar a questão da divisão das tarefas ou
campo de atuação dos profissionais: se anteriormente médicos e farma-
cêuticos em alguns momentos dividiam as funções de preparar medica-
mentos e tratar doentes, com a regulamentação da profissão médica no
final do século XIX, essas funções passam a ser separadas para cada
uma das profissões (ver item 3.3 deste trabalho). Ao dirigir o livro para
estudantes de medicina e médicos, o enfoque da farmacologia passa a
ser para dicos, e a função do farmacêutico como aquele que apenas
manipula as fórmulas e dispensa medicamentos é a reafirmada pelos
autores.
Chegamos então à farmacodinâmica como terceira subdivisão da
farmacologia e incluída no terceiro objetivo da obra (“colocar ênfase nas
aplicações da farmacodinâmica para a terapêutica”, p.xxii). Ela está
definida como “o estudo das ações das drogas no organismo vivo” (p.4).
Completando,
É uma das mais novas ciências médicas experi-
mentais, e data somente do final da segunda me-
tade do século XIX. [...] é uma ciência limítrofe
[border]. Ela toma emprestados livremente temas
e técnicas da fisiologia, química fisiológica, pato-
logia e bacteriologia. Porém, é a única [dessas ci-
ências] que tem sua atenção focada na ação das
drogas. Como implica seu nome, seu assunto é de
caráter dinâmico. (GOODMAN; GILMAN, 1947
[1941]], p.4)
120
Há referência sumária às formas como os medicamentos podem se apresentar, como, por
exemplo, pomadas, líquidos (em solução alcoólica ou não), destacando quais as vantagens de
cada uma delas, como devem ser administradas, vantagens e desvantagens de cada apresenta-
ção, cuidados com o produto, entre outras questões relativas ao preparo farmacêutico.
137
Aqui podemos destacar algumas questões. Em primeiro, a “novi-
dade” do interesse pela ação das substâncias (drogas ou medicamentos)
no organismo vivo, gerando um campo a ser explorado dentro da área
“médica”
121
e “experimental”. Embora o interesse em entender as ações
das drogas no organismo humano comece no século XIX, será no século
XX que tal prática vai ganhar lugar privilegiado.
Em segundo lugar, os autores falam da farmacodinâmica como
uma ciência limítrofe e da impossibilidade de separá-la de outras áreas
básicas do conhecimento médico, como a fisiologia e a patologia. Já está
apontada a íntima relação da farmacologia, através da subárea da farma-
codinâmica, com a abordagem que no futuro vai servir para o desenvol-
vimento de teorias que explicam o funcionamento fisiológico e fisiopa-
tológico do organismo. Se pensarmos que a medicina ocupa-se das do-
enças e a biologia, do funcionamento dos seres vivos, que patologia
122
e
fisiologia
123
estão ligadas, respectivamente, a esses dois campos do co-
nhecimento (ao mesmo tempo em que estão interligadas) e que a farma-
cologia aborda temas que são comuns à ambas, podemos levar em conta
as considerações de Canguilhem (2006[1996], p.153) e Jean Gayon
(2006). Este último fala sobre a epistemologia da medicina, com carac-
terísticas próprias que a distinguem daquela da biologia. Embora ambas
as concepções tenham como objeto lidar com a vida do ser humano,
para a biologia algumas alterações na fisiologia seriam consideradas
adaptações, ao passo que para a medicina essas mesmas alterações po-
dem ser consideradas patologias.
Nessa mesma direção, Canguilhem lembra que “se nos colocar-
mos no ponto de vista estritamente objetivo, não diferença entre a
patologia e fisiologia” (p.169), pois ambas lidam com condições de vida
que seguem as mesmas leis físico-químicas, que não se alteram segundo
121
Nessa edição não se fala em “farmacologia clínica”, termo que vai aparecer em edições
posteriores.
122
Patologia: 1. the branch of medicine dealing with the essential nature of disease, especially
changes in body tissues and organs that cause or are caused by disease; 2. the structural and
functional manifestations of disease (Disponível em: <http://medical-
dictionary.thefreedictionary.com/pathology>. Acesso em: 17 março 2010).
123
Fisiologia: “é aciência do funcionamento dos sistemas vivos. É uma subcategoria da biolo-
gia. Em fisiologia o método científico é aplicado para determiner como os organismos, siste-
mas organicos, órgãos, células e biomoléculas realizam as funções químicas e físicas que
possuem nos sistemas vivos. A palavra fisiologia deriva do grego φύσις, physis, ‘natureza,
origem’ e -λογία, -logia, ‘estudo de’ (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Physiology> Acesso em: 17 março 2010). “Um ramo da biologia
que lida com as funções e atividades da vida ou da matéria viva (como órgãos, tecidos ou
células) e os fenômenos físicos e químicos relacionados” (Disponível em:
<http://en.wiktionary.org/wiki/physiology>). Acesso em: 17 março 2010.
138
a saúde ou a doença. O que distingue os eventos que o considerados
patológicos dos fisiológicos, segundo Canguilhem, é o valor biológico
que se atribui a eles (p.168), e esse valor não é objetivo, mas subjetivo e
percebido através da abordagem clínica. Assim,
são os insucessos da vida [o que consideramos
doença ou ‘mau funcionamento’] que chamam – e
que sempre chamaram a atenção para a vida.
[...] É a própria vida, pela diferença que estabelece
entre seus comportamentos propulsivos e seus
comportamentos repulsivos, que introduz na cons-
ciência humana as categorias de saúde e doença.
Essas categorias são biologicamente técnicas e
subjetivas, e não biologicamente científicas e ob-
jetivas. [...] Em resumo, a distinção entre a fisio-
logia e a patologia tem, e pode ter, um valor
clínico. (CANGUILHEM, 2006 [1996], p.170 e
171)
A farmacologia, embora se ocupe das ações das substâncias em
situações fisiológicas, só se desenvolveu por conta das situações patoló-
gicas, ou seja, aquelas situações fisiológicas às quais foi atribuído um
valor biológico “de mal
124
ou negativo, conforme apontado por Can-
guilhem.
Ao falar sobre a farmacodinâmica, os autores utilizam o exemplo
do funcionamento de uma parte do Sistema Nervoso (SN). Referem que
não forma melhor de se entender a fisiologia do Sistema Nervoso
Autônomo (SNA) do que estudando as ações de drogas que evitam cer-
tas respostas que seriam desencadeadas pelos impulsos nervosos, assim
como as substâncias que mimetizam as ações destes últimos (p.4). Vale
destacar que, embora o Sistema Nervoso não seja explicitamente o foco
da obra, o primeiro exemplo fisiológico a ser utilizado refere-se a ele, e
a disposição dos capítulos nessa primeira edição, assim como nas se-
guintes, coloca o Sistema Nervoso Central (SNC) como primeiro tópico
logo após a primeira seção, que apresenta a farmacologia, embora a
partir da edição (1980) a abordagem do SNC deixe de ser a segunda
seção para dar lugar à seção que trata dos neurotransmissores (um tema
124
“A doença é um comportamento de valor negativo para um ser vivo, individual, concreto,
em relação de atividade polarizada com seu meio. Nesse sentido, não é apenas para o homem,
mas para qualquer ser vivo, que só existe doença do todo orgânico, apesar de os termos patolo-
gia ou doença, por sua relação com pathos e com mal, indicarem que essas noções se aplicam a
todos os seres vivos apenas por regressão simpática a partir da experiência humana vivida.” O
tradutor da obra para o português explica, em nota de rodapé, que “em francês, a palavra
maladie, cuja tradução é doença, tem o radical mal” (CANGUILHEM, 2006 [1996], p.171).
139
comum à farmacologia em geral). No entanto, o SNC continua sendo o
primeiro dos sistemas tratados no livro em todas as edições.
Lembrando Van Dijk (1999, p.31-32),
Os temas (macroestruturas semânticas) organizam
globalmente o significado do discurso. que tais
temas com frequência representam a informação
mais importante, podem influenciar a organização
de um modelo: as proposições relevantes serão
colocadas em uma posição mais alta, na hierarquia
do modelo, do que as proposições menos impor-
tantes. [...] O simples fato de que uma informação
seja transmitida em um título ou em uma conclu-
são consegue atribuir a essa proposição uma posi-
ção mais destacada nos modelos de acontecimen-
tos e nas representações semânticas. Faz com que
as informações sejam mais bem memorizadas e,
consequentemente, mais persuasivas. (VAN
DIJK, 1999, p.31 e 32)
Vale lembrar que o fato de colocar nesta ou naquela disposição a
sequência de capítulos, priorizando aqueles que se referem ao SNC ou
utilizando o exemplo do SNA, não significa uma intenção proposital
(consciente) de tornar o leitor mais interessado no tema. Nesse caso, isso
pode ser reflexo do papel que o tema ocupa na área, e é isso que se quer
destacar. Mesmo parecendo uma disposição aleatória, um enfoque da
farmacologia para essa parte do organismo, ainda que nessa época não
houvesse a noção de neurotransmissão e de neurotransmissores como
consideramos hoje. Talvez porque, desde sempre, as drogas que atuam
no SN estejam no centro de nossa atenção, como argumentou Wheate-
rall (1996) sobre o uso das bebidas alcoólicas (ver p. 93 deste trabalho),
tanto por alterarem os estados de consciência quanto, até mesmo em
função dessa primeira ação, por reduzirem a dor. Muitas drogas que hoje
sabemos atuar sobre o SNC e o SNA, sobre as quais há teorias farmaco-
lógicas de atuação, são conhecidas e utilizadas desde a antiguidade,
como, por exemplo, o ópio da papoula, o helebore
125
, o ébano
126
, a man-
125
Helebore : O Helleborus niger , ou helebore negro era conhecido como melanopódio. Suas
folhas escuras e flores brancas no inverno foram responsáveis pelo nome “rosa de natal”. O
helebore usado pelos gregos foi identificado como sendo o Helleborus officinalis , mas outras
variedades de plantas eram conhecidas como helebore. Era utilizado como abortivo, emenago-
go, para doenças mentais e como veneno. Os medicamentos preparados com o helebore eram
feitos com seu rizoma e as flores eram usadas para fins ornamentais. Foram identificadas
substâncias nessa planta, tais como a heleborina, helebrina e helebriginina, com atividades
narcóticas, tônicas do músculo cardíaco e purgativas (Disponível em:
<http://www.ucl.ac.uk/~ucgajpd/medicina%20antiqua/Medant/hellebore.htm>.
140
drágora
127
, embora naquela época fossem utilizadas a partir dos efeitos
que provocam, e não porque se sabia onde atuavam.
A farmacodinâmica, segundo os autores, se ocupa: (a) dos assun-
tos relacionados à absorção das drogas, locais de atuação e excreção no
organismo, (b) da farmacologia comparativa (transposição de efeitos
que ocorrem em animais de laboratório que possivelmente podem ocor-
rer no ser humano) e (c) da correlação da ação de uma droga com sua
constituição química (p. 4 e 5). Esse último aspecto aponta para as pers-
pectivas que surgem nessa época, e que, conforme veremos adiante, têm
sido a tônica da pesquisa para desenvolver novos medicamentos nos
últimos anos. Nas palavras dos autores, “Este é um campo [de pesquisa
básica] que apenas começou a ser desenvolvido, a partir do qual prova-
velmente surgirão as maiores contribuições da farmacologia” (p.5).
Aqui se aponta para uma área de estudo, ou forma de abordar o
conhecimento sobre os medicamentos, que ainda não é uma prática cor-
rente na época, mas que é vislumbrada como um caminho futuro.
Essa correlação da estrutura química com a ação no organismo pode
apresentar consequências ambíguas. Se, por um lado, a farmacologia
estuda esse aspecto e o torna disponível aos médicos, é possível que
estes julguem, a partir desse dado, possíveis ações no organismo. Por
exemplo, fazendo analogia com outras drogas que possuem estrutura
química semelhante, podem entender a forma como determinada droga
age, inferindo possíveis efeitos, tanto benéficos como maléficos (efeitos
colaterais). Por outro lado, a indústria farmacêutica tem utilizado o arti-
fício de promover nimas alterações em uma molécula e com isso
lançar novos medicamentos no mercado quando o medicamento mais
Acesso em: 17 março 2010.). Cazenave (1832-1846/1837) também afirma que são várias as
plantas conhecidas como helebore (Veratrum album L. seria o helebore branco; Helleborus
niger, o helebore negro). Pertencem ao gênero Helleborus (além de várias outras desse gênero
utilizadas como medicinais na época em que esse autor escreve) e são nativas da Europa. Esse
autor afirma que o helebore negro provavelmente é aquele a que se referem os gregos antigos
para tratamento dos problemas mentais. Essa planta crescia no monte Olimpo e, sobretudo, na
Antícera. Esse autor refere ainda que “nada se iguala em terapêutica, à celebridade que o
helebore adquiriu. [...] sua reputação era popular, e a crença de que ele tinha uma ação especial
sobre o cérebro era tão acreditada, que os filósofos em seu trabalho e os oradores em atividade
demandavam frequentemente sua excitação, que tantas vezes, nos tempos modernos, é encon-
trada com o uso do café”. Uma de suas funções mais famosas era curar a loucura. Era usado
para vários problemas mentais (p.96). No entanto, esse autor lembra que na sua época (século
XIX) essas plantas não eram mais utilizadas com a frequência dos antigos gregos, tendo sido
abandonada pela medicina moderna da época como uma planta “multi uso” e permanecendo
utilizada ainda algumas vezes como purgativo e para provocar vômitos (p.97).
126
Ver p. 72 deste trabalho.
127
Ver p. 72 deste trabalho..
141
antigo terminou o período de patente (ANGELL, 2007). Com isso, in-
veste-se em marketing no novo produto, divulgando vantagens em rela-
ção ao medicamento semelhante que perdeu a patente e que é muito
parecido com o novo. Essas vantagens muitas vezes são pouco signifi-
cantivas, mas, com o investimento da divulgação junto aos médicos, tais
vantagens são “vendidas” como muito importantes e, com isso, os lucros
da empresa são muito maiores, pois o novo produto passa a ser mais
prescrito que o anterior (ANGELL, 2007; PIGNARRE, 2001).
Poderíamos pensar que esse conhecimento científico que correla-
ciona estruturas químicas com determinados efeitos biológicos possui
imparcialidade no sentido atribuído por Lacey. Como ele vai ser aplica-
do, se vai ser incluído na explicação para que os profissionais de saúde
possam utilizá-lo como ferramenta para decidir sobre o uso de determi-
nada droga ou se vai ser utilizado pela indústria para produzir novos
produtos que garantam sua ampla margem de lucro através de novas
patentes, é uma questão que entra no âmbito de outros valores. Não mais
dos valores cognitivos que geraram o conhecimento teórico sobre essa
relação biológica, e sim dos valores sociais que determinam como esse
conhecimento vai ser utilizado ou aplicado.
Sobre a farmacoterapêutica, última subdivisão da farmacologia, o
texto diz que
é o estudo do uso das drogas no tratamento da do-
ença. [...] não é mais praticada de uma maneira
empírica, mas a terapia racional com drogas é ba-
seada, sempre que possível, na correlação da a-
ção farmacodinâmica das drogas com a fisiopato-
logia [pathological physiology] das doenças. So-
mente em casos excepcionais as drogas continuam
sendo utilizadas sobre bases empíricas. (GOOD-
MAN; GILMAN, 1947 [1941], p.5, grifo meu)
Embora a primeira parte dessa afirmação possa ser válida, quanto
à utilização excepcional do uso das drogas sobre bases empíricas, não
parece ser essa a avaliação feita sessenta anos depois. Na 10ª Edição do
Goodman e Gilman, na seção “Princípios gerais”, Nies (2001) se refere
à “terapia como ciência” e lembra que
Há um século atrás, Claude Bernard formalizou os
critérios para a coleta de informações válidas na
medicina experimental. No entanto, [a] aplicação
desses critérios para a terapêutica e o processo de
tomada de decisões em relação à terapêutica tem
sido, até recentemente, lento e inconsistente. Em-
bora os aspectos diagnósticos da medicina sejam
142
aproximados da sofisticação científica, [as] deci-
sões terapêuticas muitas vezes são tomadas com
base nas impressões e na tradição. (NIES, 2001,
p.45)
128
Isto é, o uso terapêutico de drogas ainda é realizado com bases
empíricas.
O texto da introdução (capítulo “Princípios Gerais”) da edição
continua dando destaque para o ensino da farmacodinâmica e da farma-
coterapêutica na formação médica, sendo a primeira delas (atuação das
drogas no organismo, objeto da farmacologia básica) ensinada quando o
estudante ainda não tem noção clínica nenhuma, nos anos iniciais de
formação. A segunda, que aborda o uso dos medicamentos para proble-
mas específicos, não é tratada nas fases iniciais do ensino, porque o
estudante ainda não está familiarizado com a abordagem clínica. Isso,
segundo os autores, seria um erro, e estaria acontecendo apenas porque
se tem em mente uma abordagem empírica, e não um uso das drogas
baseado no que se sabe sobre a fisiopatologia das doenças (GOOD-
MAN; GILMAN, 1947 [1941], p.5). Nas palavras dos autores, “é duran-
te o estudo da farmacodinâmica que o estudante tem a melhor oportuni-
dade de correlacionar as ações das drogas com o conhecimento que ele
já adquiriu sobre a fisiologia patológica da doença” (p.5).
A seguir, ainda nesse mesmo primeiro capítulo, o subtítulo
“Mecanismos de ação das drogas”, que inicia com a consideração de que
a área de pesquisa farmacológica que procura os mecanismos de ação
das drogas é uma das mais fascinantes e mais difíceis. São apontados
exemplos em que é fácil identificar a ação de uma droga, como no caso
do cloreto de mercúrio atuando como antisséptico. Nesse caso, os auto-
res apontam que é fácil saber que as bactérias morrem porque essa subs-
tância precipita suas proteínas. Já no caso de substâncias depressoras do
sistema nervoso central (SNC), ainda não havia na época uma explica-
ção de como provocam inconsciência (GOODMAN; GILMAN, 1947
[1941], p. 5 e 6), por exemplo.
Essa questão, sobre o modo de ação das drogas, com a tentativa
de localizar os sítios de ação de cada uma delas, que no decorrer das
diferentes edições vai sendo “desvendada” a partir de descobertas dos
receptores celulares e neurotransmissores e com o desenvolvimento de
teorias que buscam explicar determinados funcionamentos do organismo
128
A partir das edições em que o livro de Goodman e Gilman tem outros autores e os capítu-
los abordados, como o das “drogas para doenças psiquiátricas”, são escritos por outros autores,
como nesse caso em que o autor do capítulo é Nies (2001), faço as citações a partir do nome do
respectivo autor.
143
e fisiopatologias de doenças, será abordada pelos autores nas edições
posteriores. Embora seja possível adiantar que, apesar dos novos conhe-
cimentos que serão gerados nos anos seguintes, muitas decisões terapêu-
ticas continuarão sendo tomadas com base em critérios empíricos, e não
a partir dos resultados experimentais e das novas teorias que serão gera-
das explicando os modos de atuação das drogas, como foi afirmado
pelos autores na décima edição.
Outro subtítulo desse capítulo fala da classificação química das
drogas e chama a atenção para a principal distinção a ser feita sobre esse
aspecto: a diferenciação entre as drogas sintéticas e aquelas de origem
natural. O texto lembra que o estudo das primeiras é um campo de in-
vestigação muito novo, que muito se estudou sobre as drogas de ori-
gem natural, mas ao futuro pertence o estudo das substâncias sintéticas
(GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941], p.16). Sobre as drogas de ori-
gem natural como recurso terapêutico, apenas na segunda edição ainda
são abordadas; a cada nova edição menos referência a elas. O que
passa a acontecer é a referência a alguma droga que tem origem natural,
mas que é manipulada em laboratório, com seu princípio ativo isolado
129
e transformado em medicamento, ou este passa a ser sintetizado a partir
do “modelo natural
130
”.
4.2 A FARMACOLOGIA NAS OUTRAS EDIÇÕES DO LIVRO-
TEXTO
4.2.1 Segunda edição (1955)
A segunda edição tem basicamente as mesmas características da
primeira, apesar de publicada 14 anos depois (em 1955), e isso é afirma-
do pelos próprios autores no segundo parágrafo do seu prefácio, embora
eles também apontem a presença de grandes mudanças na área médica
que se refletem na obra:
Na verdade, essa segunda edição constitui-se em
uma completa revisão da primeira. Os 14 anos que
separam os dois livros testemunharam avanços
farmacológicos e terapêuticos que provavelmente
não têm paralelo na história da medicina. Quase
129
Princípio ativo: ver página 49 do capítulo 1 deste trabalho.
130
Sobre substâncias inicialmente isoladas de plantas e processos industriais que buscam a sua
produção a partir da síntese laboratorial, ver documento da FAO (Food and Agricultural Orga-
nization of the United Nations) disponível em:
<http://www.fao.org/docrep/t0831e/t0831e08.htm>. Acesso em: 09 maio 2010.
144
todas as páginas do texto revelam esses progres-
sos. (GOODMAN; GILMAN, 1955, p. v)
Os autores e a editora permanecem os mesmos da primeira edi-
ção. No prefácio da terceira edição (1965), eles lembram que esse inter-
valo de 14 anos entre as duas edições iniciais não ocorreu por “indolên-
cia dos autores, mas devido ao rápido crescimento da farmacologia no
período de 1941 a 1955” (GOODMAN; GILMAN, 1965, p. v).
As subdivisões em seções (Quadro 4.2) são praticamente as
mesmas em ambas, embora tenham sido incluídas duas novas seções e
alguns novos capítulos naquelas anteriormente existentes. São ao todo
18 seções e dois apêndices, além dos prefácios da e edições e do
índice alfabético (Index). Pesquisei em duas versões, na impressão de
fevereiro 1955 (parte da obra) e na 8ª impressão de 1964.
O prefácio dessa edição, assinado em novembro de 1954, começa
reafirmando os três objetivos que guiaram a primeira edição, com o
acréscimo de mais um. destaque para o período compreendido entre
as edições, justificado pelos autores na citação a seguir:
Em função da acelerada velocidade com que
novas drogas vêm sendo comercializadas pa-
ra o uso clínico, um quarto objetivo ganhou
uma atenção proeminente, a saber, propor-
cionar ao leitor “um modo de pensar sobre os
medicamentos”. Dessa forma, o leitor vai es-
tar mais bem preparado para resistir ao fluxo
de apelos não comprovados que frequente-
mente são feitos para [o uso] de novas drogas
e para avaliar criticamente a literatura publi-
cada sobre as propriedades e usos de muitos
agentes terapêuticos novos em comparação
com outros compostos antigos, de uso bem
estabelecido, da mesma classe. (GOOD-
MAN; GILMAN, 1964 [1955], p.v.)
Quadro 4.2 – Descrição da 2ª edição do livro Goodman e Gilman
2ª Edição
(1955)
Seção I - Introdução (com apenas um capítulo “Princípios Gerais”);
Seção II - Depressores do SNC (com 14 capítulos);
Seção III - Estimulantes do SNC (com dois capítulos);
Seção IV - Anestésicos locais (com um capítulo);
Seção V - Drogas atuando nas células efetoras autonômicas (com nove
capítulos);
Seção VI - Histamina e seus antagonistas (com um capítulo)
145
Seção VII - Drogas cardiovasculares (com três capítulos);
Seção VIII - Água, sais e íons (com três capítulos);
Seção IX - Drogas que afetam a função renal e o metabolismo eletrolíti-
co (três capítulos);
Seção X - Drogas que afetam a motilidade uterina (um capítulo);
Seção XI - Gases e vapores (com dois capítulos);
Seção XII - Metais pesados e antagonistas dos metais pesados (com qua-
tro capítulos);
Seção XIII - Drogas de ação local (com quatro capítulos);
Seção XIV - Antissépticos, desinfetantes e drogas utilizadas na quimio-
terapia de doenças infecciosas (com 12 capítulos);
Seção XV - Drogas utilizadas na quimioterapia de doenças neoplásicas
Seção XVI - Drogas atuantes no sangue e nos órgãos formadores de san-
gue (com três capítulos);
Seção XVII - Hormônios e antagonistas hormonais (com sete capítulos);
Seção XVI - As vitaminas (com quatro capítulos).
Apêndices: “Princípios de redação da prescrição” e “Princípios Gerais
de toxicologia”
Índice alfabético (Index)
Fonte: GOODMAN; GILMAN, 1955.
Esse quarto objetivo aparece no prefácio dessa edição e da tercei-
ra de maneira explícita. Na quarta e quinta edições ele é referido, mas
em relação às edições anteriores, não constando como objetivo específi-
co dessas últimas. A partir da sexta edição não mais referência no
prefácio a essa questão.
A definição de farmacologia é idêntica àquela da primeira edição,
assim como as considerações sobre suas divisões (farmacodinâmica e
farmacoterapêutica), refletindo, possivelmente, que apesar dos 14 anos
decorridos e do grande número de novas drogas, não houve mudança
significativa no modo de pensar essa ciência. Mesmo assim algumas
diferenças podem ser destacadas entre as duas edições, refletindo o re-
sultado de novas pesquisas na área farmacológica. Elas são descritas a
seguir, embora, de uma forma geral, as obras sejam semelhantes na
estrutura, como foi apontado inicialmente.
Foram incluídas novas seções e novos capítulos. Os novos capí-
tulos foram colocados em seções novas e também em seções que
existiam. Algumas seções tiveram seus títulos modificados, mesmo
tratando dos mesmos temas. Aparecem duas seções novas (a edição
conta com 16 seções no total; a 2ª, com 18). São elas: “Histamina e seus
antagonistas(seção VI na edição) e “Drogas utilizadas na quimiote-
rapia de doenças neoplásicas” (seção XV na 2ª edição).
146
Na edição, a histamina estava incluída em um capítulo deno-
minado “Histamina, tiocianatos e drogas cardiovasculares diversas”, na
seção “Drogas cardiovasculares”. Na ocasião (1941), o texto sobre essa
substância começava da seguinte forma:
A histamina é uma droga de considerável impor-
tância acadêmica, mas pouca importância terapêu-
tica. É um potente vasodilatador, embora seus e-
feitos colaterais frequentemente impeçam a possi-
bilidade de sua aplicação clínica para esse propó-
sito. [...] É amplamente distribuída nos tecido a-
nimais e de plantas. Foi identificada primeiramen-
te no ergot por Barger e Dale em 1910, embora o
composto tenha provavelmente sido isolado da so-
ja um ano antes por Yoshimura, mas não foi iden-
tificado. A forma como a histamina se combina e
é estocada no corpo animal é um problema não re-
solvido. [...] A versatilidade de ações associadas à
distribuição ubíqua da histamina no organismo a-
nimal tem proporcionado a base para inúmeras te-
orias de função fisiológica da [substância] quími-
ca. (GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941], p.566)
Em todo o texto sobre a histamina, esta é tratada como uma subs-
tância que está em praticamente todos os locais do organismo, com fun-
ção desconhecida, mas com a descrição de alguns de seus efeitos. Sobre
seus usos terapêuticos, indicação como substância para provocar o
teste de acidez gástrica, dessensibilização (administração de nimas
doses) para casos de alergia, para causar vasodilatação em problemas
circulatórios periféricos e em outros testes terapêuticos (1947 [1941], p.
572) refletindo seu uso restrito como medicamento.
Na edição, em que consta como tema de seção (“Histamina e
seus antagonistas”) com apenas um capítulo (“Histamina e agentes anti-
histamínicos), o enfoque é diverso. Vale a pena analisar a introdução
dessa nova seção, porque ela reflete um passo diferente na caminhada da
farmacologia: se na edição anterior a histamina aparecia como “uma
droga [substância] de interesse acadêmico, mas de pouca importância
terapêutica” (1947 [1941], p.566), na edição ela passa a nomear uma
seção. Apesar de o capítulo iniciar afirmando que “[A] histamina conti-
nua um enigma para farmacologistas e fisiologistas” (1964 [1955],
p.644) e que a forma como atua no organismo ainda não está bem com-
preendida, o desenvolvimento de drogas anti-histamínicas já está estabe-
lecido nessa edição. Os autores destacam que:
147
Ela tem sido implicada como participando em
uma variedade de processos fisiológicos e farma-
cológicos e tem fornecido a base para disputas
controversas. Dragstedt (1945)
131
declarou que a
evidência de participação da histamina em certas
reações fisiológicas e patológicas varia desde su-
posições infundadas e inferências ilógicas até pro-
vas substancialmente concretas e incontestáveis.
As razões pelas quais a histamina tem recebido
ampla atenção são óbvias. O composto é um cons-
tituinte natural de muitos tecidos, tanto vegetais
como animais, apesar do fato de não ter sido atri-
buído [a ele] um papel fisiológico definitivo. [...]
As propriedades farmacológicas excepcionais da
histamina, assim como seu possível papel fisioló-
gico, [desde] cedo estimularam a pesquisa para
agentes bloqueadores efetivos [de sua ação]. [...]
As propriedades farmacológicas desses agentes
bloqueadores têm justificado àqueles que atribu-
em à histamina um papel em certos processos bio-
lógicos [novas pesquisas], e, como resultado, têm
sido introduzidos na terapêutica vários compostos
que têm importantes aplicações terapêuticas, de-
nominados anti-histamínicos. (GOODMAN;
GILMAN, 1964 [1955], p. 644)
Os autores discorrem sobre os inúmeros locais do organismo em
que é possível visualizar sua ação, tais como músculo uterino, atividade
secretória do pâncreas e de outras glândulas do trato digestivo, mediação
da dor cutânea, reações alérgicas, entre outros. Essa ação ampla é perce-
bida mesmo sem que seus mecanismos sejam compreendidos, e, segun-
do os autores, a partir dessa percepção são aventadas hipóteses e teorias
para explicar a ação fisiológica da substância. Mesmo sem entender
como estes funcionam, a pesquisa com os anti-histamínicos se desen-
volve, e essas drogas passam a ser utilizadas terapeuticamente. Sobre as
drogas anti-histamínicas, os autores relatam que provavelmente elas
atuam em receptores da histamina, antagonizando sua ação, e atribuem
esse efeito em função da estrutura química dessas drogas, já que mesmo
sendo diferentes entre si, têm algumas características químicas em co-
mum. Aqui é possível perceber que mesmo quando não há conhecimen-
131
Leaster R. Dragstedt (1893-1975) – Médico cirurgião e fisiologista que desenvolveu a
técnica cirúrgica de vagotomia para tratamento de úlcera péptica, com vários artigos sobre a
histamina (Disponível em: <http://resources.metapress.com/pdf-
preview.axd?code=2566433q5p37n758&size=largest>. Acesso em: 19 janeiro2010).
148
to sobre como as coisas funcionam, ou qual o mecanismo de ação da
substância (histamina) provocando este ou aquele efeito, o desenvol-
vimento de um produto da técnica (medicamento anti-histamínico), que
pode ser utilizado na terapêutica, mesmo sem se saber também como
ele funciona. Vale destacar que são aventadas hipóteses de ação das
drogas anti-histamínicas e também da própria histamina, e há a busca de
uma teoria para explicar suas atuações, mas, independentemente dessa
questão, vários produtos anti-histamínicos no mercado sendo comer-
cializados e utilizados na terapêutica médica.
No caso da histamina, que já era conhecida na 1ª edição, mas dis-
cutida em outra seção, vale destacar a mudança de papel que ela passa a
ocupar na edição, e isso parece ter ocorrido em função dos medica-
mentos anti-histamínicos: das 23 páginas que compõem o capítulo (que
corresponde à seção inteira), nove falam da substância e dez falam sobre
os anti-histamínicos. referência ao futuro promissor que deve acon-
tecer a partir do seu estudo, e dois aspectos podem ser pontuados. O
primeiro relaciona-se com a identificação de uma substância que ainda
não é conhecida como neurotransmissor, mas que em breve vai ser iden-
tificada como tal. O conceito de neurotransmissor (que já existia de
forma incipiente desde Claude Bernard) vai modificar totalmente a for-
ma como os medicamentos passarão a ser desenvolvidos a partir da
década de 1950. Ainda que não nomeada com esse termo, a histamina é
apresentada nessa segunda edição com esse enfoque. Talvez essa seja a
primeira substância identificada (de forma isolada), presente em vários
processos fisiológicos, que na prática passa a ser pesquisada buscando
relacionar suas ações com determinados quadros clínicos, uma linha de
pesquisas que vai se expandir nas décadas seguintes também com a
serotonina. É importante não esquecer que as pesquisas farmacológicas
ganham incentivo no período após a Segunda Guerra, ao mesmo tempo
em que o desenvolvimento industrial está em expansão, e é nesse con-
texto que estão inseridos os anti-histamínicos.
Segundo Goodman e Gilman,
Que os antagonistas a esta amina altamente ativa
provariam ser ferramentas valiosas na pesquisa e
possivelmente medicamentos úteis, era muito
tempo óbvio. Embora um agente efetivo em blo-
quear a histamina não tivesse sido descoberto até
mais de 25 anos após as propriedades farmacoló-
gicas dessa amina serem definidas. Nesse interva-
lo, antagonistas fisiológicos foram descobertos.
[O] proeminente foi a epinefrina, que contra-ataca
os efeitos da histamina tanto nos vasos como na
149
musculatura brônquica. Mas não foi antes de 1937
que Bovet e Staub demonstraram que certos éteres
fenólicos eram hábeis em bloquear o efeito da his-
tamina, presumivelmente prevenindo o acesso da
amina ao receptor da substância na célula. (1964,
[1955], p.653)
Especificamente sobre a influência da Segunda Guerra, os autores
destacam a dificuldade de troca de conhecimento científico sobre essas
drogas entre pesquisadores franceses e americanos na década de 1940, o
que não impediu que na França e nos Estados Unidos fossem desenvol-
vidas drogas semelhantes com essa ação. E reafirmam o seu sucesso na
prática terapêutica:
A recepção clínica dos anti-histamínicos foi tão
entusiástica que estudos foram iniciados em mui-
tos laboratórios diferentes para descobrir novos
antagonistas histamínicos. A relação estrutura-
atividade nesse campo provou ser tal que a maio-
ria desses esforços culminou com sucesso. (1964,
[1955], p.654)
O segundo aspecto a ser pontuado está de certa forma relacionado
ao primeiro e refere-se à ação das drogas anti-histamínicas no SNC e ao
desenvolvimento da psicofarmacologia. Segundo Goodman e Gilman:
“as mais importantes ações farmacodinâmicas diretas das drogas anti-
histamínicas são aquelas [efetuadas] no SNC” (1964, p.658).
Esse efeito não passou despercebido para as indústrias de medi-
camentos da época, que iniciaram, após a década de 1940, a pesquisa
com substâncias anti-histamínicas para tratar situações relacionadas ao
comportamento. (HEALY, 1997; HEALY, 1998). A Rhone-Poulec, por
exemplo, desenvolveu, em conjunto com o Instituto Pasteur, medica-
mentos anti-histamínicos “que prometiam tornar-se um sucesso comer-
cial, como remédios sedativos ou para induzir o sono” (FANGMANN,
2008, p.1). Essas ações levaram pesquisadores a investigar “alguns
compostos anti-histamínicos até então não utilizados [que] foram encon-
trados nos estoques da Compania Geigy. Novas esperanças emergiram
considerando que eles poderiam talvez ser oferecidos a pacientes psiqui-
átricos” (FANGMANN, 2008. p.2). É a partir de uma dessas substâncias
que nasce a imipramina, um dos primeiros antidepressivos utilizados na
prática médica
132
(FANGMANN, 2008; HEALY, 1997).
132
Sobre esses primeiros medicamentos utilizados como antidepressivos, ver o capítulo especí-
fico “Antidepressivos”.
150
Em relação à seção que trata das drogas utilizadas para neoplasias
(também novo nessa edição), vale destacar que os autores foram pes-
quisadores da área, estudando compostos a partir do gás utilizado na
Primeira Guerra Mundial (nitrogênio mostarda) que demonstrou, nos
casos de intoxicação provocados por ele, diminuir os leucócitos. Foram
feitas pesquisas com esse gás e desenvolvidas drogas utilizadas para
tratamento da leucemia. Nessa nova seção estão incluídas outras drogas
citotóxicas, além de radioisótopos e hormônios.
Em relação a outros novos capítulos, são dignos de nota na Seção
I, que trata dos “Depressores do SNC”, os capítulos 11 e 12, respecti-
vamente: “Drogas efetivas no tratamento das desordens convulsivase
“Relaxantes musculares de ação central”. No capítulo 12 constam dro-
gas que não estavam descritas na edição. O principal uso dessas dro-
gas, de acordo com o livro, é na terapia adjuvante do processo anestési-
co e na doença de Parkison. Aqui também é destacado o desconheci-
mento em relação a como as drogas agem: o medicamento é utilizado
pelo seu efeito clínico. a seguinte observação, logo na introdução
desse capítulo, sobre a pesquisa e desenvolvimento de drogas:
infelizmente, a utilidade dos agentes disponíveis é
limitada, mas pode ser razoavelmente antecipado
que a próxima década será testemunha do desen-
volvimento de drogas que serão mais potentes,
mais específicas e menos xicas do que as discu-
tidas abaixo. (GOODMAN; GILMAN, 1955,
p.206)
Essa observação reafirma a tendência de busca de produtos deri-
vados da técnica mesmo sem o entendimento de como as drogas funcio-
nam.
O capítulo 11 fala sobre as drogas utilizadas para convulsões e
começa explicando como está estruturado: inclui as drogas utilizadas
para tratar convulsões e algumas relacionadas quimicamente a estas,
mesmo que não sejam utilizadas pra este fim. Há o destaque para drogas
como o brometo e o fenobarbital
133
que na edição são abordadas em
outro capítulo, porque, segundo os autores, embora sejam os anticonvul-
sivantes mais antigos, seu principal uso nessa época não é para o trata-
mento das crises convulsivas. A principal diferença a ser assinalada é
que nessa edição as drogas são agrupadas a partir de uma condição clí-
nica que está mais bem conhecida e classificada segundo vários tipos.
133
Atualmente é utilizado para tratamento das crises convulsivas. Na 10ª edição da obra, essa
droga é apresentada no capítulo dos barbitúricos (a classe de medicamentos à qual pertence) e
também no capítulo sobre drogas anticonvulsivantes.
151
Se na primeira edição as drogas eram incluídas nas seções “depressoras
e “excitantes” do SNC, e, à medida que se discorria sobre cada uma
delas eram enumerados os diferentes usos (para anestesia, para convul-
sões, para dor, entre outros), aqui, no caso dos anticonvulsivantes, elas
são abordadas segundo uma condição clínica. Essa nova apresentação
reflete a interação da farmacologia básica com as mudanças que ocor-
rem a partir da clínica. Novos diagnósticos ou problemas de saúde que
são reorganizados clinicamente direcionam o uso dos medicamentos,
como também vai acontecer com os antidepressivos: eles surgem origi-
nalmente para tratar a depressão, mas, a partir do momento em que sur-
gem outras condições clínicas, eles deixam de ser “antidepressivos”
(apesar do nome) para constarem na indicação dessas outras situações.
4.2.2 Mudanças que refletem o aumento de pesquisadores e conhe-
cimentos gerados a partir de 1965
Aqui são analisadas a 3ª (1965), a (1970) e a (1975) edições
do livro-texto. As três edições têm tradução para o português, sempre
alguns anos depois da edição original (1967, 1973 e 1978, respectiva-
mente). Não foi possível identificar em quais outras línguas foram pu-
blicado além do português e inglês.
Embora cada uma dessas três edições tenha suas peculiaridades,
elas têm entre si algumas características comuns. A primeira é que, com
a terceira edição, inaugura-se uma nova etapa do livro. Goodman e Gil-
man passam a ser os editores, e não os únicos escritores. Esse fato é
justificado no prefácio da 3ª edição:
Passamos de autores a editores deste livro com
sentimentos mistos. A escrita da primeira edição
foi completada em menos de três anos. O interva-
lo de quatorze anos entre a primeira e a segunda
edições não foi devido à indolência dos autores,
mas ao rápido crescimento do campo da Farmaco-
logia entre 1941 e 1955. Durante a última década
houve um ritmo acelerado, não somente em rela-
ção ao desenvolvimento de novas drogas, mas
também quanto à compreensão dos mecanismos
de ação das drogas em seu nível mais básico. Tor-
nou-se visível, quando o tempo de uma nova edi-
ção chegou e passou, que os intervalos entre as
revisões periódicas não poderiam depender so-
mente do nosso tempo disponível para esta tarefa,
152
difícil em um campo em rápida mudança. (GO-
ODMAN; GILMAN, 1965, p.v)
134
Além da mudança de autoria, o título do livro apresenta pequenas
modificações nessas três edições: a complementação “A textbook of
pharmacology, toxicology, and therapeutics for physicians and medical
students” mantém-se na e edições. Nas traduções para o português,
editadas em 1967 e 1973 respectivamente, o título não tem essa com-
plementação especificando que a obra é direcionada para médicos. Na
quinta edição em inglês, o livro perde essa complementação de título e
passa a ser denominado apenas “As bases farmacológicas da terapêuti-
ca” (“The Pharmacological basis of therapeutics”). Essa modificação
provavelmente reflete a expansão da abrangência dessa área do conhe-
cimento para outras profissões que passam a estudar farmacologia e
utilizar a obra como referência.
Em segundo lugar, a disposição das seções e capítulos é a mesma
nas três obras, com mínimas alterações em alguns dos títulos dos capítu-
los, totalizando dezoito seções e 77 capítulos na edição. Os temas de
cada uma das seções e dos capítulos são praticamente os mesmos nas
três edições. O que se modifica são algumas expressões em função de
novos conhecimentos agregados, como, por exemplo, o capítulo 70 na 3ª
edição chama-se “Androgênios” e na edição “Androgênios e esteroi-
des anabólicos” (ver Quadro 4.3).
A terceira modificação que se inicia com a obra de 1965 e que se
mantém de forma idêntica nessas três edições, inclusive em relação ao
local que ocupa na obra, e que particularmente interessa ao tema abor-
dado neste estudo, é a mudança de nome das seções que abordam as
drogas de atuação no SNC. Nas edições anteriores havia duas seções
relacionadas ao tema: “Drogas depressoras do SNC” e Drogas estimu-
lantes do SNC”, totalizando 17 capítulos. Na terceira edição as duas
seções passam a formar uma única, com o nome “Drogas que atuam no
SNC”, e incluem os 17 capítulos das edições anteriores mais dois deno-
minados “Drogas utilizadas no tratamento de doenças psiquiátricas” e
“Dependência e abuso de drogas”. No original em inglês, este último
capítulo é denominado Drug addiction and drug abuse(3ª e edi-
ções), e na obra em português, “Vício por drogas e medicamentos” (3ª
edição) e “Vício, uso e abuso de tóxicos” (4ª edição). Optei por fazer
nova tradução a partir da obra em inglês,para refletir melhor os objetivos
dos autores com esse capítulo.
Na introdução deste, eles explicam que o
134
Utilizo aqui a tradução feita por mim a partir da edição em inglês, pois embora tivesse à
disposição a versão em português (1967), encontrei divergências entre ambas.
153
tema se refere ao uso indevido de qualquer droga, incluindo medicamen-
tos para quaisquer fins (medicamentos atuantes no SNC, laxantes, anti-
bióticos, vitaminas, entre outros), porém com ênfase naquelas que pro-
vocam mudanças no humor e comportamento (GOODMAN; GILMAN,
1965, p.285). A seguir são abordadas as peculiaridades de cada uma
dessas edições.
Quadro 4.3 – Descrição da 3ª, 4ª e 5ª edições do livro Goodman e Gilman
3ª E
dição
(1965) – formatação semelhante na 4ª e 5ª edições
Seção I - Introdução (com apenas um capítulo: “Princípios Gerais”);
Seção II - Drogas atuando no SNC (com 18 capítulos);
Seção III - Anestésicos locais (com um capítulo);
Seção IV - Drogas atuando [nos locais das] sinapses e nas junções neuroefe-
toras (com nove capítulos);
Seção V - Autacoides (com dois capítulos, sendo um deles “Histamina e An-
ti-Histamínicos” e o outro “Hidroxitriptamina e antagonistas; polipeptídeos - angio-
tensina e cininas”)
Seção VI - Drogas cardiovasculares (com cinco capítulos);
Seção VII - Água, sais e íons (com três capítulos);
Seção VIII - Drogas que afetam a função renal e o metabolismo eletrolítico
(introdução mais três capítulos);
Seção IX - Drogas que afetam a motilidade uterina (um capítulo);
Seção X - Gases e vapores (com dois capítulos);
Seção XI - Metais pesados e antagonistas dos metais pesados (com dois ca-
pítulos);
Seção XII - Drogas de ação local (com quatro capítulos);
Seção XIII - Quimioterapia de doenças parasitárias (com quatro capítulos);
Seção XIV Qsuimioterapia de doenças microbianas (com sete capítulos);
Seção XV - Drogas utilizadas na quimioterapia de doenças neoplásicas (um
capítulo);
Seção XVI - Drogas atuantes no sangue e nos órgãos formadores de sangue
(com três capítulos);
Seção XVII - Hormônios e antagonistas hormonais (com sete capítulos);
Seção XVIII - As vitaminas (com quatro capítulos).
Apêndice: “Princípios de redação da prescrição”.
Índice alfabético
Fonte: GOODMAN; GILMAN, 1965; 1970;1975
4.2.2.1 O boom da indústria farmacêutica
O prefácio da terceira edição começa reafirmando o boom ao qual
vários autores se referem (GEREZ, 1993; GIOVANNI, 1980; GREENE,
2007; HEALY, 1997) quando abordam o tema da indústria farmacêutica
e o desenvolvimento de novas drogas nas décadas seguintes à Segunda
Guerra:
154
o quarto de século entre a primeira e terceira edi-
ção de “As bases farmacológicas da terapêutica”
testemunhou a expansão das ciências biomédicas
em uma escala sem precedentes. Paralelamente
aos importantes avanços nas disciplinas médicas
básicas, tem havido um número crescente de no-
vas drogas disponíveis ao médico e o aumento
[do] que veio a ser chamado de “selva terapêuti-
ca”. (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.v)
São reforçados os três objetivos que constam na primeira edição e
ainda o quarto, que foi inserido na 2ª, em função da consideração acima
exposta. Reafirmando essa posição, esse quarto objetivo reaparece na
edição:
o fluxo de novas drogas tornou-se uma torrente a
partir da metade de 1950, e tanto o nascimento
como a mortalidade de drogas se aceleraram. [...]
É também por essa razão que o médico é alertado
a não ser o primeiro a adotar um novo remédio,
nem o último a descartar o antigo. (GOODMAN;
GILMAN, 1965, p.v)
Os editores explicam como será abordada a questão das muitas
drogas disponíveis: a prioridade de apresentação é para os protótipos
bem conhecidos e com margem de segurança estabelecida, e as novas
drogas a eles relacionadas (congêneres e compostos secundários) serão
descritas brevemente, sempre subordinadas aos primeiros (1965, p.v). A
partir dessa edição, em função do aspecto destacado como quarto objeti-
vo a partir da 2ª edição (“fornecer um modo de pensar sobre as drogas”)
e aqui reforçado ao nomear a “selva terapêutica”, há a inserção do subtí-
tulo “Guia para a selva terapêutica” na Seção I dessa edição. Esse
subtítulo, que não existe na 11ª edição (2006), permanece até a 10ª edi-
ção (2001) com o seguinte parágrafo escrito de forma praticamente idên-
tica (apenas com pequenas alterações na grafia, mas com as mesmas
palavras) em todas elas:
O fluxo de novas drogas nos anos recentes tem
proporcionado dramática melhora na terapia me-
dicamentosa, mas também tem criado problemas
de igual magnitude. Não é o menor deles a assim
chamada “selva terapêutica”, termo utilizado para
referir-se à combinação do esmagador número de
medicamentos, à confusão sobre a nomenclatura
das drogas e à situação de incerteza associada a
muitas dessas drogas. Uma redução no marketing
dos produtos da mesma categoria muito parecidos
155
e de medicamentos com mistura de drogas, além
da melhora na qualidade das propagandas (anún-
cios comerciais) são importantes remédios para a
selva terapêutica. No entanto, o médico pode con-
tribuir para remediar essa situação prescrevendo
produtos pelos seus nomes não comerciais, mais
do que pelos seus nomes comerciais
135
, sempre
que possível, utilizando protótipos tanto como um
objetivo educativo como na prática clínica, ado-
tando uma atitude crítica em relação a novas dro-
gas e conhecendo e fazendo uso de fontes confiá-
veis de informação sobre novas drogas. Mais im-
portante, ele deve desenvolver um “modo de pen-
sar sobre drogas” baseado nos princípios farmaco-
lógicos. (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.33)
Também em todas as edições a partir da e até a 10ª desta-
que nesse subtítulo para o fato de que “somente uma pequena fração das
novas drogas representa avanços importantes na terapêutica, e a eficácia
e segurança de uma nova droga será avaliada após ela estar em uso
clínico” (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.34). Essas são considerações
que reforçam a influência do mercado na prescrição médica, que ha-
via sido pontuada nas edições anteriores, mesmo que não existisse um
item específico como esse, como na citação que aparece na edição
(1955) sobre os barbitúricos, drogas que eram utilizadas como sedativos
e para vários outros propósitos:
Novos barbitúricos estão sendo constantemente
introduzidos, usualmente sob nomes comerciais
confusos, e reivindicações são feitas, para cada
composto particular, sobre sua potência superior,
margem de segurança e duração de ação. Algumas
vezes, parece que o único objetivo em produzir
novos barbitúricos, tem sido obter sua venda ex-
clusiva pelos fabricantes. Nos anos seguintes [à
introdução do barbital], foram sintetizadas e in-
troduzidas no mercado para uso clínico dezenas
de barbitúricos. (GOODMAN; GILMAN, 1955,
p.127)
É recomendado que o médico esteja bem interado
dos poucos barbitúricos [que são] bem conhecidos
e adequadamente estudados, [...], mais do que a
prescrição promíscua cada vez que um composto
é colocado no mercado, muitas vezes sem experi-
135
No original “nonproprietary rather than proprietary names”.
156
mentação ou avaliação clínica suficientes. (GO-
ODMAN; GILMAN, 1955, p. 139)
Se na 1ª (1941) e 2ª (1955) edições esse tipo de alerta aparecia no
decorrer da descrição da droga, como é o caso desse excerto retirado do
texto que abordava os barbitúricos, a partir da 3ª edição ele passa para o
subitem “Guia para a selva terapêutica”. Além disso, na (1965) e
(1970) edições, esse subitem é destacado no prefácio da obra. Da
(1975) à 10ª (2001) edição, o subitem se mantém na obra, mas perde o
destaque no prefácio, desaparecendo completamente na 11ª edição
(2006), como já foi assinalado, tornado-se uma questão “não dita”.
Ainda no prefácio da edição, os autores reafirmam sua inten-
ção em manter o livro, da mesma forma que nas edições anteriores,
atrativo e de fácil consulta para médicos e estudantes nos diferentes anos
de formação, sempre estabelecendo uma ponte entre a farmacologia
básica e a medicina clínica. Apesar da múltipla autoria, Goodman e
Gilman afirmam que a obra pretendeu continuar unificada, “um volume
de múltiplos autores bem superior a uma série de contribuições indivi-
duais” (1965, p.vi). Dos 42 autores, 23 foram alunos dos editores e per-
maneceram, nas palavras destes, como “parentes de segunda geração
(1965, p.v-vi). Lembram também que pretendem manter o livro como
uma obra não “maçante” e do esforço feito para conservá-lo em um
único volume. Sobre este último desafio, destacam que foi necessário o
uso de “letras pequenas” para algumas partes dos textos, e afirmam que
sinceramente, é difícil justificar o uso da impres-
são grande e pequena; no entanto, com certas ex-
ceções, tipos reduzidos foram utilizados naquelas
porções do texto que são menos relevantes, mas
que se mantêm com alguma importância que não
desencoraje o leitor curioso. Por exemplo, “A fas-
cinante história das drogas”, que em essência é
uma parte estimulante da história da medicina, é
apresentada dessa forma. Do mesmo modo, deta-
lhes da relação estrutura-atividade [da droga] apa-
recem em tipos pequenos. [...] um importante ca-
pítulo “Dependência e abuso de drogas”, é feito
em tipo reduzido; de certo modo, esta contribui-
ção é única em um texto de farmacologia, e é dada
como um dividendo extra; ela cruza as fronteiras
da sociologia, da lei, da medicina clínica e da
farmacologia, e apresenta um dos problemas mais
desafiantes da sociedade moderna. Mas essa ex-
plicação parcial e superficial sobre os tipos meno-
res não oferece conforto ao estudante de segundo
157
ano de medicina. Em última análise, ele deve con-
fiar no seu julgamento e no conselho de seus pro-
fessores para determinar qual material de texto é
pertinente aos seus interesses e necessidades.
(GOODMAN; GILMAN, 1965, p.vi, grifo meu)
É possível pensarmos em algumas questões ao nos depararmos
com o trecho acima, que abre essa edição. Na 1ª e 2ª edições há o uso de
letras maiores e menores, mas não consegui perceber os critérios para o
uso de uma ou outra. Se em alguns trechos as letras menores foram uti-
lizadas para subtemas, em outros foram utilizadas para um tema princi-
pal, e no mesmo capítulo outro tema que poderia ser considerado princi-
pal tinha letras menores. Em alguns locais naquelas edições, os aspectos
históricos incluídos nos capítulos estiveram em letras maiores, outras
vezes em letras menores, da mesma forma que as explicações sobre
“ações farmacológicas”. Na edição (e essa tendência vai se manter
nas seguintes) começa a haver essa padronização que separa temas
“mais importantes” de “menos importantes”. Mesmo que ao final fique
livre para que cada leitor, especialmente aqueles em formação (os estu-
dante de medicina), escolha no texto as partes que julgue pertinentes, ou
mais pertinentes, fica claro que um direcionamento, tanto pela expli-
cação oferecida como pelo fato subjetivo de que aquilo que está em letra
maior “salta aos olhos” daquele que visualiza o que está escrito.
No entanto, da mesma forma que foi colocado em relação à ques-
tão de editoração, logo no início do prefácio da edição, parece haver
um “sentimento misto”, ou posição contraditória por parte dos editores.
Se, por um lado, os aspectos históricos do desenvolvimento das drogas
são colocados em letras menores, por outro, teria sido essa abordagem,
ao que parece, uma das razões para o sucesso deste livro desde sua pri-
meira edição, por isso a necessidade de reforçar sua importância. Pode-
ríamos considerar que inicialmente, na edição, não havia dúvida de
que os aspectos históricos, contextualizando a medicação no espaço e no
tempo, eram importantes para aqueles que estudam as drogas, mas nesse
momento subsequente, talvez pressionados por questões da época, a
necessidade de diminuir este enfoque.
Da mesma forma, em relação ao tema do abuso de drogas que os
autores consideram um dos mais desafiantes, todo o capítulo fica em
tipos menores, por ser um capítulo “extra”. Em relação à questão “estru-
tura (química)/atividade da droga” essa contradição (ou ambiguidade)
também fica aparente, conforme foi aventado
neste capítulo. Não é
este último um tema importante quando se fala em farmacologia? Por
exemplo, no caso dos anti-histamínicos abordados acima, sua ação está
158
relacionada a determinadas características das suas moléculas. Uma
hipótese a ser aventada é que o entendimento dos médicos sobre essas
características que estão relacionadas ao modo de ação das drogas passa
a ser secundário, ou pelo menos isso deixa de ser “leitura obrigatória”.
Poderíamos pensar que nessa época entram em jogo valores que
antes não estavam em questão, pelo menos não de uma forma tão inten-
sa, tais como os valores do mercado a partir da influência da crescente
indústria farmacêutica que passa a centralizar a questão da estrutura-
ação das drogas. Ao analisar a estrutura de vários medicamentos seme-
lhantes e observar que são mínimas as diferenças entre eles e que, con-
sequentemente, suas ações são muito próximas umas da outras, talvez o
profissional médico não optasse por aquele que é o último lançamento.
Exemplificando, ainda com o caso dos anti-histamínicos, Good-
man e Gilman na edição do livro (1955) afirmam que, devido à gran-
de relação entre estrutura e atividade dessas drogas, inúmeros compostos
foram sintetizados em diferentes laboratórios farmacêuticos (p. 17).
Complementam que, em virtude dessa característica: “Como resultado,
literalmente dezenas de drogas anti-histamínicas foram introduzidas na
terapia para perplexidade da profissão médica. Para contribuir com a
confusão, existia muito pouca diferença na eficácia das numerosas pre-
parações, como será discutido [adiante]” (1955, p.654).
Fica a ambiguidade sobre a questão da relação entre estrutura
química e ação farmacológica; se por um lado os autores definem esse
tema para tipos menores, subjetivamente colocando-o como secundário,
por outro eles próprios destacam o quanto esse aspecto é utilizado pela
indústria para vender medicamentos muito semelhantes como diferentes.
Também no uso abusivo parece haver ambiguidade: os autores apontam
para uma questão considerada importante por eles, mas que na ocasião
não é um tema da farmacologia. Sobre esse último tema, a situação mo-
difica-se na próxima edição (4ª), pois ali o capítulo que trata do uso
abusivo de drogas não vai mais ser impresso em tipos menores, mas da
mesma forma que os demais.
Como na maioria das vezes ocorre, não é de uma hora para outra
que o valor, ou importância social, de um tema diminui a ponto de que
este seja substituído por outro tema. Aqui parece estar registrado, na
forma de escrever, o momento em que algumas questões estão sendo
definidas como mais ou menos importantes para a farmacologia, para a
terapêutica clínica e para a sociedade, tais como: o conhecimento histó-
rico contextualizando o desenvolvimento do conhecimento técnico e
científico; a pesquisa científica básica para a compreensão de determi-
nadas ações (importância em estudar a relação entre estrutura da droga e
159
funcionamento fisiológico ou patológico); como questões sociais se
inter-relacionam com um produto do conhecimento técnico-científico
(as drogas e medicamentos que passam a ser usadas de forma abusiva).
Nas próximas edições depois da 3ª, não referências semelhan-
tes às partes “mais ou menos importantes” para o leitor. Se aqui a
presença do “sentimento” ambíguo, ou da não certeza daquilo que deve
ser mais ou menos valorizado, deixando inclusive ao leitor a dúvida e a
escolha, nas edições seguintes, a mensagem fica subliminar: se está em
letras menores, é menos importante.
O conceito de farmacologia é modificado na edição e mantém-
se sob essa nova forma na e edições. As mudanças incluem o a-
créscimo de alguns atributos que não constavam nas edições de 1941 e
1955, ficando assim a sua definição:
Em sua totalidade, [a] “farmacologia” abrange o
conhecimento da história, fonte, propriedades
químicas e físicas, composição, efeitos bioquími-
cos e fisiológicos, mecanismos de ação, absor-
ção, distribuição, biotransformação e excreção,
e usos terapêuticos ou outros usos de drogas.
Desde que “droga”
136
é amplamente definida co-
mo qualquer agente químico que afeta o proto-
plasma vivo, o tema da farmacologia é obviamen-
te muito extenso. Para o médico e o estudante de
medicina, a abrangência da farmacologia é menos
expansiva do que a indicada na definição acima.
(GOODMAN; GILMAN, 1965, p.1, grifos meus)
Complementam essa definição a diferenciação das partes da far-
macologia que interessam aos médicos e quais delas interessam às ou-
tras profissões. É possível notar o aspecto de transição dessa edição em
relação ao direcionamento dessa área do conhecimento a outras profis-
sões, a partir da ênfase de quais partes da farmacologia são direcionadas
ao médico e quais são direcionadas aos outros profissionais. Nas pala-
vras dos autores:
Os interesses do médico em farmacologia são cla-
ramente diferentes dos do químico que sintetiza
novos medicamentos
137
, do farmacêutico que
compõe fórmulas medicamentosas
138
, do farma-
cognosista ou microbiologista que estuda a bios-
136
Na oitava edição em português, que tem o mesmo conceito de farmacologia, o termo “dro-
ga” foi traduzido como “fármaco”. (ver página tal deste trabalho, capítulo TAL)
137
No original medicines.
138
No original drugs.
160
síntese de agentes terapêuticos, do bioquímico ou
fisiologista que usa drogas
139
como ferramentas
para o avanço de suas próprias disciplinas ou do
toxicologista que está preocupado com os poten-
ciais perigos das drogas
140
. Primariamente, o mé-
dico está interessado somente nas drogas que são
úteis na prevenção, diagnóstico e tratamento das
doenças humanas, ou na prevenção da gravidez
141
.
Seu estudo da farmacologia dessas drogas pode
ser razoavelmente limitado àqueles aspectos que
proporcionam a base para seu uso clínico racional.
Secundariamente, os médicos também estão preo-
cupados com os agentes químicos que não são uti-
lizados na terapia, mas são comumente responsá-
veis por intoxicações domésticas, ambientais e in-
dustriais. (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.1)
São abordadas como subáreas da farmacologia a farmacodinâmi-
ca, a farmacoterapêutica e a toxicologia, tratando também os autores do
que compete a cada uma delas, com uma abordagem muito semelhante à
das edições anteriores. Não mais a definição de qual seria a abran-
gência da farmacognosia e da farmácia como na primeira edição, apenas
breve referência ao que tratam essas áreas, da mesma forma como ocor-
reu na edição de 1955.
Se na segunda edição foi inserida uma nova seção com o capítulo
sobre a histamina e drogas anti-histamínicas, nessa terceira edição
outra novidade: a seção que contém o capítulo sobre a “Histamina e
anti-histamínicos” (cap.29) passa a ser chamada de Autacoides” e ga-
nha outro capítulo intitulado “5-hidroxitriptamina e antagonistas; poli-
peptídeos angiotensina e cininas(cap. 30) que inicia com a seguinte
explicação:
Reunidas para consideração nesta seção estão um
número de substâncias com estruturas e atividades
farmacológicas amplamente diferentes; embora
díspares nesses aspectos, elas foram agrupadas
aqui porque partilham um aspecto em comum, a
ocorrência natural no corpo. Ao mesmo tempo, a
oportunidade é utilizada para discutir drogas que
antagonizam suas ações quando essas drogas estão
disponíveis. As substâncias mais antigas e mais
139
No original drugs.
140
No original drugs.
141
Prevenção da gravidez: nessa 3ª edição aparecem pela primeira vez os anticoncepcionais
(GOODMAN; GILMAN, p.1561-1564).
161
familiares no grupo, histamina e anti-
histamínicos, são tratadas no capítulo 29. O capí-
tulo seguinte é dedicado a substâncias como a “5-
hydroxitriptamina” (5-HT, enteramina, serotoni-
na
142
) e seus antagonistas, e os polipeptídeos “an-
giotensina”, “bradicinina” e “calidina”. Essa seção
inclui uma variedade de substâncias [...] que não
podem convenientemente ser classificadas com
outros membros desse amplo grupo, como são os
neuro-humores
143
e hormônios. (GOODMAN;
GILMAN, 1965, p.614)
Tanto a histamina quanto a serotonina (5-HT) não são considera-
das neuro-humores (ver nota 128) segundo essa definição sobre o que
trata o capítulo dos autacoides em que estão incluídas. No entanto, no
capítulo da introdução sobre drogas que atuam no SNC, quando se refe-
rem aos mecanismos neuro-humorais, os autores referem-se à 5-HT
como uma substância que atua como “mediador” (1965, p.38) nas ter-
minações nervosas. Os conceitos e funções dessas substâncias ainda não
estão claros. E isso é afirmado por eles próprios ao se referirem a essas
substâncias “não bem definidas”:
autacoid, uma palavra derivada do grego autós
(próprio) e akos (agente medicinal ou remédio)
144
.
[...] Qual o significado [importância] desse grupo
de autacoides? Qual o seu papel no corpo [body]?
Qual o seu valor como medicamentos [drugs] e
qual o seu lugar na terapêutica? Infelizmente, so-
mente poucas respostas imprecisas podem ser da-
das para essas questões. O fato certo [pelo] qual
essas substâncias foram classificadas sob o título
impreciso
145
de “autacoides” é, em certo sentido,
142
5-HT, enteramina, serotonina e 5-hidroxitriptamina são sinônimos para a mesma substância
(na época). Como será explicado adiante, a 5-hidroxitriptamina é a parte ativa da serotonina,
mas ambos os nomes têm sido utilizados como sinônimos, por possuírem ações idênticas no
organismo.
143
Sobre neuro-humores, segundo Goodman e Gilman, nessa mesma edição (3ª), há seguinte
consideração no capítulo que trata da “Transmissão neuro-humoral e o sistema nervoso autô-
nomo”: “Há agora a aceitação geral, pela maioria dos fisiologistas e farmacologistas, da teoria
de ‘transmissão neuro-humoral’, isto é, que os nervos transmitem seus impulsos através da
maioria das sinapses e das junções neuroefetoras por meio de agentes químicos conhecidos
como ‘transmissores neuro-humorais’.” (1965, p.399)
144
O significado das palavras gregas foi retirado do texto traduzido para o português (GIL-
MAN; GOODMAN, 3ª edição, 1967, p.559).
145
“Impreciso” foi a tradução que fiz de Noncommital” = que não tem uma característica clara
ou distintiva; que dá uma indicação não clara de uma atitude ou sentimento. (Merriam-Webster
162
uma confissão de que, no presente, a evidência
não permite uma classificação funcional tal como,
por exemplo, a de hormônio ou neuro-humor. Se-
guindo o exemplo de Pirandello
146
, que nomeou
uma peça sua Seis personagens à procura de um
autor
147
, a seção presente poderia ser intitulada
“Vários autacoides à procura de uma função”. O
problema, que vai se tornar claro em seguida, está
mais relacionado ao excesso de hipóteses do que à
carência delas. Mas enquanto os cientistas dispu-
tam direitos rivais para as diferentes hipóteses, to-
dos concordam que cada um dos autacoides a ser
discutido é de importância para a economia corpo-
ral. [...] eles são claramente parte e parcela dos fe-
nômenos fisiológicos e patológicos que fornecem
as bases para a terapia racional com drogas, e sua
descoberta tem permitido novas possibilidades de
intervenção terapêutica pelo uso de drogas que an-
tagonizam suas ações ou interferem de uma ma-
neira ou de outra no metabolismo. Juntos, esses
fatores impulsionam os autacoides diretamente
para o centro dos interesses daqueles que estão in-
teressados nas bases farmacológicas da terapêuti-
ca. (1965, p.614-15, grifos no original)
Mais uma vez, é possível observar a argumentação para a busca
de uma ação específica que vai ser identificada como responsável por
determinado problema. Mas essa parte do conhecimento científico que
lida com a busca de explicações para os fenômenos acaba sendo secun-
dária se comparada com essa parte do conhecimento que lida com a
busca de produtos técnicos. Se por um lado não nada de estranho na
busca de um produto da técnica para aliviar ou tratar uma dor ou pro-
blema de saúde considerado doença esse sempre foi o papel daqueles
que lidam com o sofrimento em todas as sociedades em diferentes épo-
cas por outro, parece que se tenta argumentar de forma diferente essa
ação. Paradoxalmente, ao utilizar o medicamento implicado na via me-
tabólica de determinada substância (aqui representada pelos autacoides),
Online Search. Disponível em: <http://www.merriam-webster.com/dictionary/noncommittal >.
Acesso em: 25 março 2010)
146
Luigi Pirandello (1867-1936) escritor italiano de várias peças, sendo um de seus temas o
problema da identidade (Disponível em:
<http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1934/pirandello-bio.html>. Acesso em:
30 abril 2010).
147
Tradução retirada da 3ª edição em português (1967, p.559), no original “Six characters in
search of na author.
163
pretende-se agir sobre uma via específica, e a informação sobre como tal
droga age é divulgada como uma “teoria”, que nesse caso, mesmo não
comprovada, é considerada uma correta representação do “real”
148
.
A partir do conhecimento que se tem atualmente (e que corrobora
a ideia inicial apresentada acima) podemos dizer que essas substâncias,
tais como a serotonina, hoje também denominada neurotransmissor
149
,
estão presentes em inúmeros locais do organismo e participam de diver-
sos processos biológicos. No entanto, parece que o interesse em delegar
funções específicas, atribuindo a cada substância funções que poderiam
ser manipuladas pelo recurso técnico que é o medicamento, é quem guia
o interesse da pesquisa, a partir desse momento inicial, mesmo quan-
do se admite não saber bem que substância é essa. Como veremos adian-
te, a serotonina foi “perseguida” até que se encontrasse um medicamen-
to capaz de atuar sobre suas ações, e, coerentemente com a ideia inicial
de que ela faz parte de inúmeros processos, os inibidores de recaptação
de serotonina são utilizados para resolver ou tratar “quase tudo”.
Como foi questionado anteriormente, não seriam os ISRS
grandes sintomáticos que estão sendo “vendidos” como drogas que
“consertam” determinadas funções? Novamente vale lembrar que os
medicamentos sintomáticos são úteis e não devem ser desprezados.
Quem não se beneficiou de um antitérmico para um filho com 40
graus de febre ou o sentiu o alívio de um anti-inflamatório após uma
cirurgia de urgência para tratar um caso de apendicite? Essas drogas são
“milagrosas” nesses momentos. No entanto, o profissional médico tem
clareza de que são medicamentos sintomáticos; ele sabe também que
um limite para seu uso. Não é possível administrar o anti-inflamatório
ou antitérmico antes de ter clareza sobre do que se trata o quadro clínico.
Elas não atuam diretamente no processo de resolução do problema, e
sim proporcionam alívio ao doente. No caso de uma apendicite, não
seria produtiva, ou melhor, seria maléfica a conduta se os anti-
148
Sobre as teorias científicas comprovadas segundo os valores cognitivos da ciência e sua
relação com a realidade a partir da perspectiva do materialismo científico, a partir da qual,
segundo Lacey, se desenvolve a maior parte das teorias científicas modernas, “as teorias cons-
tituem uma imagem das coisas em termos de leis e quantidades. Nelas os fenômenos são
abstraídos de qualquer inserção na experiência humana e nas atividades práticas, além de
qualquer relação com questões referentes a valores sociais. [...] Sob a perspectiva do materia-
lismo científico, apenas as categorias empregadas dentro das estratégias materialistas são
adequadas para representar o mundo tal como ele é, independentemente das suas relações com
os seres humanos. Nesse ponto de vista, a neutralidade deriva da afirmação de que a teoria
representa o mundo tal como ele é” (LACEY, 1998, p.17-19).
149
Sobre autacoide:< http://medical-dictionary.thefreedictionary.com/Autacoids>. Acesso em:
30 abril 2010. Atualmente a serotonina ainda pode ser considerada um autacoide, mas também
é considerada um neurotransmissor.
164
inflamatórios e os analgésico fossem utilizados para tratar a dor e o
doente fosse mandado para casa apenas com esse tratamento. O que se
quer destacar é que, na busca de ações para os neurotransmissores como
a serotonina, têm-se atribuído funções específicas a drogas que atuam no
metabolismo dessa substância para tratar doenças, como se a serotonina
(ou a falta dela) fosse o problema de base. Não parece que essas drogas
tenham esse atributo de especificidade se observarmos o percurso de sua
descoberta e as considerações que foram levantadas no contexto históri-
co da caminhada até o desenvolvimento dos ISRS.
É nessa edição do Goodman e Gilman que a serotonina aparece
pela primeira vez, pelo menos constando no índice alfabético ou no
índice geral. Nas edições anteriores, fiz a leitura dos capítulos que tra-
tam das drogas que atuam no SNC e SNA, e não encontrei referência à
substância. Caso tenha sido feita referência a ela nas edições anteriores,
pode ter acontecido de forma muito discreta, em algum trecho que tenha
passado despercebido. Nessa terceira edição, ela ganha metade do capí-
tulo 30, com cerca de dez páginas. Ao abordar a história da identificação
dessa substância, os autores lembram que os fisiologistas que trabalha-
vam com mamíferos, mais de um século (em relação a 1965) referi-
am-se a uma substância vasoconstritora
150
que recebeu vários nomes,
entre eles “vasotonina”. No final da década de 1940, durante trabalhos
de pesquisa relacionados à hipertensão arterial na Cleveland Clinic
151
com a angiotensina, foi identificada uma substância vasoconstritora
150
Vasoconstritor (a): qualquer agente que cause a diminuição da luz de um vaso sanguíneo.
Pode ser, por exemplo, o frio ou substâncias como a nicotina, a noradrenalina, adrenalina, entre
outras (Disponível em: <http://www.thefreedictionary.com/vasoconstrictor>. Acesso em 29
abril 2010).
151
A Cleveland Clinic recebeu seus primeiros pacientes no dia 28 de fevereiro de 1921, com a
missão de: “promover o melhor cuidado aos doentes, a investigação de seus problemas, educa-
ção e formação do corpo clínico. Os quatro fundadores da Cleveland Clinic tiveram o objetivo
de desenvolver uma instituição em que diversos especialistas poderiam “pensar e agir como
uma unidade. [...] 81 anos e milhões de pacientes depois, a missão dos fundadores continua
sendo um princípio orientador para a Cleveland Clinic, um grupo sem fins lucrativos em que o
cuidado dos pacientes, pesquisa e educação estão indissociavelmente vinculados para que
possa ser oferecido a cada paciente o melhor cuidado possivel. A Cleveland Clinic foi fundada
em 1921 pelos Drs. George Crile, Frank Bunts, William Lower e John Phillips. Naquela época,
a noção de vários médicos trabalharem como um grupo era novidade e praticamente inexisten-
te. Mas o médico empreendedor Dr. Crile e seus colegas foram em frente, convencidos de que
realizariam melhor o principal objetivo da organização: cuidar de pessoas doentes – através de
uma prática de grupo integrada, apoiada por pesquisa e educação. Hoje a clínica está situada na
cidade de Cleveland, no estado de Ohio nos EUA e tem filiais no Canadá e na Arábia Saudita”
(Disponível em:
<http://my.clevelandclinic.org/locations_directions/international/locations/default.aspx>;
<http://my.clevelandclinic.org/about/overview/mission_history.aspx>. Acesso em: 26 março
2010).
165
considerada uma “praga” que precisava ser eliminada para que os pro-
cessos de investigação pudessem ser continuados. Em 1948, na mesma
instituição, foi isolada essa mesma substância cristalina que recebeu o
nome de serotonina. No ano seguinte foi identificada sua parte ativa
denominada então 5-hidroxitriptamina (5-HT). Foi constatado em 1951
que essa última tem as mesmas ações da serotonina encontrada natural-
mente no organismo.
Ao mesmo tempo, desde a década de 1930, na Itália, vinham sen-
do desenvolvidos trabalhos em outra linha de pesquisa em busca de uma
substância ativa na mucosa do trato gastrointestinal (TGI). Por volta de
1940, foi isolada, a partir de células do TGI, a substância chamada ente-
ramina. Na década seguinte, quando a 5-HT foi isolada no sangue, os
pesquisadores italianos constataram que era a mesma substância encon-
trada em seus trabalhos. Logo se percebeu que tal substância tinha am-
pla distribuição no organismo, e houve uma explosão de pesquisas rela-
cionadas a ela (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.644) Assim,
existia uma massa de evidências indicando que
ela estava amplamente distribuída na natureza e
possuía uma variedade de ações farmacológicas.
Portanto, não foi surpresa que a introdução da 5-
HT sintética desencadeou uma explosão de pes-
quisas sem rival nos anais de farmacologia. A re-
visão de Esparmer
152
(1961), escrita apenas uma
dúzia de anos após a descoberta da droga, contém
mais de 1.300 referências. Todos esses trabalhos
estabeleceram a 5-HT como um autacoide de inte-
resse excepcional e incitaram numerosas especu-
lações sobre suas possíveis funções fisiológicas.
Uma das hipóteses mais disputadas [challenging]
caracteriza a 5-HT como um transmissor neuro-
humoral.” (GOODMAN; GILMAN, 1965, p.644)
Nessa época, se sabia que a serotonina estava distribuída no
organismo, principalmente no cérebro, no intestino e nas plaquetas (no
sangue), e, como referido acima, havia a conjectura de uma possível
atuação na transmissão neural. No entanto, sobre essa última ação, os
autores destacam que não é possível afirmar tal atividade em função das
dificuldades de realização de pesquisas no cérebro, e consideram que
talvez seja necessária mais de uma década para que “se acumule evidên-
cias suficientes para tornar essa ideia provável” (1965, p.650). Em rela-
152
Esparmer foi o pesquisador chefe da equipe que conduziu as pesquisas com a enteramina na
Itália, identificando-a como sendo a mesma 5-HT isolada no sangue na década de 1950.
166
ção a medicamentos atuando sobre processos relacionados à serotonina,
nessa edição do livro há referência apenas aos seus antagonistas, que são
indicados para enxaqueca e alguns sintomas de alergia (1965, p.651-
653). O resultado da quantidade de pesquisas “sem rivalidade” da déca-
da de 1960 provavelmente apresentará seus reflexos no desenvolvimento
das novas drogas que vão atuar na recaptação de serotonina a partir das
décadas seguintes.
4.2.2.2 Mudanças ocorridas nas edições de 1970 e 1975
Na e edições, a definição de farmacologia é praticamente a
mesma presente na edição, com a seguinte modificação: se na edição
de 1965 havia a inclusão de “outros usos de drogas” como campo de
interesse da farmacologia, aqui esses “outros usos” foram retirados da
conceituação principal. A seguir a complementação de quais partes
interessam ao médico e ao estudante de medicina (semelhante àquela da
edição), sem, no entanto, se referir a outras profissões. Nas palavras
dos autores, o que consta a mais nessas duas edições, substitui o que na
terceira edição era apresentado como “outros usos”:
Secundariamente, o médico também está interes-
sado nos agentes químicos que não são utilizados
na terapia, mas são comumente responsáveis por
intoxicações domésticas e industriais, assim como
pela poluição ambiental. Seu estudo dessas subs-
tâncias é justificavelmente restrito aos princípios
gerais da prevenção, reconhecimento e tratamento
de tal intoxicação ou poluição. Finalmente, todos
os médicos partilham da responsabilidade em aju-
dar a resolver o problema sociológico contínuo do
abuso de drogas. (GOODMAN; GILMAN, 1975,
p.1; 1970, p.1; 1973, p.1)
Essa observação sobre problemas relacionados à poluição do am-
biente ou ao abuso de drogas na introdução da Seção I (na página 1 do
livro), mantém-se até a edição em 1996. A primeira edição do novo
século (XXI), não traz mais a referência explícita a esses problemas
sociais.
Na edição (1970; 1973 em português) constam os prefácios
das três edições anteriores, além do prefácio da obra atual, apresentando
o livro e destacando as questões que influenciaram sua escrita, assim
como conteúdos novos acrescentados ou antigos modificados, tais como
a observação sobre os “tipos grandes e pequenos” da edição. No pre-
fácio da edição, há a sugestão ao leitor que se dirija a todos os prefá-
167
cios anteriores para conhecer a trajetória do livro
153
, aspecto este refor-
çado com a contextualização das quatro edições da obra, também no
prefácio:
Por mero acidente histórico, cada edição surgiu
num período estratégico. A primeira edição foi es-
crita quando a farmacologia básica ainda não ha-
via atingido sua atual importância e não era com-
pletamente aceita pelos colegas clínicos como
uma disciplina significante ou relevante. O apare-
cimento deste livro contribuiu muito para modifi-
car o quadro. Um eminente farmacologista, co-
mentando recentemente a primeira edição, afir-
mou que ela forneceu um renascimento, ou, talvez
mais apropriadamente, um nascimento do ensino
e da prática da farmacologia. (GOODMAN;
GILMAN, 1970, p.v, grifo no original)
Em seguida, referem-se à 2ª e à 3ª edição:
A segunda edição, publicada em meados da déca-
da de 1950, refletiu o imenso impacto do cresci-
mento vigoroso, após a II Guerra Mundial, da
pesquisa biomédica e a torrente de novos medi-
camentos que ainda não tinha alcançado seu ápice.
Essa edição forneceu orientação ao estudante e ao
clínico perplexos para a travessia mais fácil e mais
segura através da “selva terapêutica”. A terceira
edição, publicada no meio da década de 1960, e
pela primeira vez escrita em ltipla autoria, apa-
receu depois que a maré de novos medicamentos
começou a refluir e quando avanços fundamen-
tais, altamente pertinentes à terapêutica racional,
foram feitos por muitas subdisciplinas florescen-
tes da farmacologia. (1970, p.v)
Referindo-se à edição, os editores reforçam aspectos pontu-
ados acima e a ampliação da abrangência da farmacologia na época
dessa edição:
Esta quarta edição aparece em uma ocasião em
que os citados avanços continuam e quando, de
maneira igualmente importante, o impacto da
farmacologia está recebendo atenção crescente,
não somente na prática da medicina como também
153
“Transcreveremos o prefácio das três primeiras edições, não apenas por definirem os objeti-
vos primários do livro como por indicarem as consideráveis modificações que ocorreram entre
as diversas edições. Convidamos o leitor novo a ler esses prefácios, os antigos amigos do livro
não precisam fazê-lo, pois estão em terreno familiar” (GOODMAN; GILMAN, 1970, p.v).
168
na própria sociedade. A disciplina alcançou tal es-
tatura que é agora objeto de notoriedade com [by-
word with] legisladores, sanitaristas [oficiais de
saúde pública], cientistas sociais, autoridades le-
gais, ecólogos e muitos outros especialistas inte-
ressados no bem-estar blico e na qualidade do
ambiente. três décadas nem teríamos sonhado
que o tópico “drogas e sociedade” pudesse ser
uma questão pública maior. Em cada capítulo a-
propriado desse livro prestou-se atenção a esse
aspecto da farmacologia. (1970, p.v)
No prefácio da edição também considerações sobre as edi-
ções anteriores, porém constam apenas os prefácios da 1ª e da 5ª edição,
diferentemente do que aconteceu até a edição, em que constavam
todos os prefácios anteriores. A partir desse momento, ou seja, da
edição, as questões referentes tanto à história das drogas, quanto à ques-
tão da história da farmacologia, como a referência à interação da farma-
cologia com aspectos da vida social, perdem espaço. Não aparecem mais
nos prefácios como temas de destaque da obra.
No prefácio da edição, destaque para uma nova subdivisão
da farmacologia, a farmacocinética:
Tanto os aspectos básicos como os aspectos apli-
cados da farmacocinética apresentaram avanços
impressionantes devido a técnicas analíticas refi-
nadas que podem também ser utilizadas clinica-
mente. Os princípios básicos da farmacocinética
são discutidos separadamente, já que estão rela-
cionados a todas as drogas, e o médico praticante
vai encontrar descritos conceitos valiosos, agora
ensinados para a geração corrente de estudantes
biomédicos. Princípios aplicados são apresentados
para drogas individuais quando a disposição bio-
química alterada ou a excreção diminuída requere-
rem mudança na dosagem dos regimes (esquemas
terapêuticos). Em diversos casos, os dados apro-
priados são resumidos sob a forma de uma tabela
útil. (GOODMAN; GILMAN, 1975, p.v)
No capítulo dos “Princípios Gerais”, a definição da abrangên-
cia dessa subárea que passa a ser ensinada aos novos profissionais e é
apresentada na edição àqueles que estão atuando na prática médica e
169
não a conheciam. Sua definição naquela ocasião mantém-se praticamen-
te inalterada até os dias de hoje
154
:
A farmacocinética lida com absorção, distribui-
ção, biotransformação e excreção das drogas. Es-
ses fatores, associados à dosagem, determinam a
concentração da droga em seus sítios de ação, e,
por consequência, a intensidade de seus efeitos em
função do tempo. Muitos princípios básicos de bi-
oquímica e enzimologia, e princípios físicos e
químicos que governam a atividade, a transferên-
cia passiva e a distribuição das substâncias através
das membranas são prontamente aplicáveis para
esse aspecto importante da farmacologia.
(GOODMAN; GILMAN, 1975, p.1-2)
Partes dos atributos que estavam antes incluídos no campo da
farmacodinâmica passam a fazer parte dessa nova subdivisão que lida
com a forma como a droga “caminha” no organismo. Fica à farmacodi-
nâmica “o estudo dos efeitos bioquímicos e fisiológicos das drogas e
seus mecanismos de ação”, além da “correlação de sua estrutura química
com seus efeitos e ações” (GOODMAN; GILMAN, 1975, p.2). Nos
estudos de farmacocinética são identificadas e quantificadas as caracte-
rísticas da droga em si, quanto tempo esta dura no organismo até ser
degradada ou até atingir o órgão alvo. Na farmacodinâmica pretende-se
conhecer seu modo de funcionamento no organismo vivo, como a droga
atua no receptor, em qual receptor, que processos ela desencadeia. No
entanto, essa parece ser uma divisão didática, pois ao mesmo tempo em
que a droga “caminha” e se distribui no organismo, ela inicia sua atua-
ção. Talvez a divisão nessas duas subáreas proporcione a redistribuição
das pesquisas com os medicamentos que se expandem cada vez mais.
Ou seja, é necessário que as partes da pesquisa que lidam com as dife-
rentes etapas sejam abordadas separadamente, porque à medida que
aumenta a investigação em cada uma dessas etapas, é preciso que ocorra
a divisão de trabalho entre os pesquisadores e, didaticamente, torna-se
mais adequado separar essas questões.
Sobre essa nova subdivisão da farmacologia, a farmacocinética,
também é possível visualizar outra questão além da necessidade de re-
distribuição das pesquisas com medicamentos, que passam a aumentar
de volume. Se inicialmente a farmacodinâmica abordava as drogas e
seus caminhos no organismo, além das peculiaridades de cada uma des-
154
Até a 10ª edição é mantida sua definição, abrangendo os mesmos aspectos aqui citados,
mesmo que seja escrito de forma diferente.
170
sas substâncias, o foco principal era o indivíduo e seu organismo que
recebia o medicamento. Com o surgimento dessa nova subárea, o foco
se divide: uma parte da farmacologia que estuda como o organismo
reage ao medicamento (a farmacodinâmica) e outra que estuda o medi-
camento em si (a farmacocinética).
Ao observarmos as várias edições do livro, é possível perceber
que com o passar dos anos a farmacocinética, ou o estudo das drogas
que serão introduzidas no organismo, passa a ganhar espaço. Cada vez
mais o medicamento ganha uma “vida própria”, independente do orga-
nismo vivo. São estudadas suas características, como ele “caminha” no
organismo, como interfere em diferentes funções metabólicas (até mes-
mo aquelas que não são seu alvo principal), independentemente, pelo
menos teoricamente e para fins didáticos, de como vai ocorrer sua atua-
ção. Como afirmam os autores, a divisão da farmacologia em farmaco-
dinâmica e farmacocinética é didática, mas o aparecimento desta pode
estar refletindo o papel de destaque que os medicamentos passam a ter
no processo terapêutico: no mínimo dividindo o cenário com o paciente,
que anteriormente ocupava o papel principal.
Há referência às características peculiares de reação de indivíduos
diferentes em relação a uma mesma droga. Essas diferenças na forma de
reagir são atribuídas a fatores enzimáticos, características herdadas ge-
neticamente ou outros fatores atribuídos a algum componente celular ou
de determinado órgão. Se nas primeiras edições se falava em diferenças
individuais localizadas em tecido e células, no decorrer dos anos, fala-se
em vel celular, molecular, bioquímico e de neurotransmissores. Se na
edição se falava em receptores celulares, é na edição que os
“neurotransmissores” são apresentados com essa denominação, vislum-
brando ações que serão exploradas nas edições seguintes, mesmo que
anteriormente já se falasse em transmissão neuro-humoral. Na e na
edições referência ao fator genético influenciando as respostas indi-
viduais às drogas, inclusive com a utilização do termo farmacogenética,
o qual não é explorado nessas edições, apenas citado. Segundo Good-
man e Gilman,
Os objetivos da farmacogenética incluem não
somente [a] identificação das diferenças nos efei-
tos das drogas que têm base genética, mas tam-
bém [o] desenvolvimento de métodos simples pe-
los quais indivíduos suscetíveis possam ser reco-
nhecidos antes de a droga ser administrada. (GO-
ODMAN; GILMAN, 1970, p.24; 1975, p.35)
171
Se nessa época foi apresentada a genética e sua relação com a
farmacologia, é a partir da edição que surge um capítulo destinado
exclusivamente a esse tema.
Ainda no prefácio destaque para as novas descobertas relacio-
nadas à ação das drogas em nível celular, mais uma vez com a utilização
de um exemplo relacionado ao SNC:
Estudos sobre receptores para neurotransmissores,
autacoides, hormônios e drogas têm levado a um
melhor entendimento dos mecanismos de ação das
drogas, e, em certas instâncias, a hipóteses frutífe-
ras ou a mais conhecimento fundamental sobre a
fisiologia patológica dos estados de doença. Um
exemplo notável é a inibição da ativação dopami-
nérgica da adenilato ciclase pelas drogas antipsi-
cóticas, tanto no núcleo caudato como no sistema
límbico. (1975, p.v)
Os anti-histamínicos, que apareciam desde a edição como
drogas promissoras, também são citados no prefácio da edição com a
expansão dos seus usos a partir da identificação dos subtipos de recepto-
res para a histamina:
Desnecessário dizer, as drogas recém aprovadas
são totalmente discutidas, assim como aquelas que
continuam em estágio de desenvolvimento, mas
demonstram considerável promessa como futuros
agentes terapêuticos. Um exemplo notável é o
grupo de drogas que bloqueia o efeito da histami-
na (e pentagastrina) na secreção gástrica, as assim
chamadas drogas bloqueadoras [de] receptor H2.
(1975, p.v)
Vale destacar a citação do receptor H2” nessa edição indicando
uma nova fase da abordagem farmacológica: as subdivisões de tipos
diferentes de receptores para uma mesma substância, cada vez mais na
direção de identificar “locais específicos” relacionados a funções fisio-
lógicas. No caso das drogas anti-histamínicas, se as fenotiazinas (as
primeiras delas), desenvolvidas no final do século XIX atuavam de for-
ma inespecífica sobre vários locais do organismo, a partir da década de
1970
155
os estudos farmacológicos passam a identificar peculiaridades
desses receptores em diferentes locais do organismo. São identificados
os receptores H1, H2 nessa época. As respectivas drogas anti-
155
Os estudos que se referem aos diferentes tipos de receptores histamínicos nesse capítulo são
da segunda metade da década de 1960 e da década de 1970 (até a edição do livro que é de
1975).
172
histamínicas que atuam neles estão relacionadas aos sintomas antialérgi-
cos (H1), à secreção de ácido gástrico (H2) (DAGOGNET; PIGNAR-
RE, 2005, p. 39-41). Essa identificação dos tipos de receptores ocorreu a
partir da observação da ação de alguns anti-histamínicos: os classifica-
dos como agindo no receptor H1 provocavam ação constritora nos brôn-
quios e intestino, os classificados como H2 com ação principalmente no
estômago (GOODMAN; GILMAN, 1975, p. 591-592). Atualmente
foram identificados os subtipos H3 e H4 e criadas subdivisões em cada
um desses subtipos, na tentativa de encontrar drogas com ação “ultra-
específica”, evitando possíveis efeitos colaterais das substâncias de ação
em vários locais do organismo.
Por outro lado, surge a dificuldade em manter na mesma obra os
novos conhecimentos e aqueles que vinham sendo abordados anterior-
mente, pois o volume do livro vem aumentando a cada edição. A estra-
tégia dos tipos grandes e pequenos (utilizada desde a primeira edição e
“sistematizada” desde a terceira) parece não ser mais suficiente para
limitar o tamanho da obra, que desde o início “ultrapassou” o volume
esperado
156
. São eliminadas algumas partes para dar lugar aos “avanços
terapêuticos”, como pode ser observado no seguinte trecho que vem
logo em seguida àquele que cita a novidade dos “sub-receptores” hista-
mínicos: “A fim de evitar a expansão da presente edição, áreas menos
dinâmicas ou ultrapassadas foram condensadas ou eliminadas para per-
mitir considerações adequadas de todos os avanços farmacológicos e
terapêuticos importantes” (1975, p.v). Mesmo que ocorra referência às
“áreas menos dinâmicas ou ultrapassadas”, não há especificação de
quais seriam essas áreas. Seriam os aspectos históricos? Seriam teorias
que não são mais utilizadas para explicar determinadas ações? Resulta
difícil entender o que seriam as áreas menos dinâmicas, mas poderíamos
conjeturar que sejam os aspectos históricos, que esses não podem
mudar.
A edição, de 1975, apresenta uma última novidade em relação
ao contexto geral da obra: além da múltipla autoria inaugurada na edição
de 1965, Goodman e Gilman contam com o auxílio de dois editores
associados: Alfred Goodman Gilman e George Koelle. Ambos também
contribuem com capítulos da obra. Sobre esse último, lembram no pre-
fácio que ele vinha contribuindo com a obra desde a terceira edição.
Sobre o primeiro, filho de Alfred Gilman, referem-se a ele como repre-
sentante da nova geração de farmacologistas ao lado dos cerca de 40
autores que escreveram capítulos na 3ª e 4ª edições.
156
5ª Ed., 1704 p; 4ª Ed., 1794p; 3ª Ed., 1785 p; 2ª Ed., 1831 p.; 1ª Ed., 1387 p..
173
Se no prefácio da edição Goodman e Gilman se referem a cer-
ca de metade dos autores dos capítulos da obra como “antigos” alunos,
antigos ou atuais companheiros de trabalho, e à outra metade como “pa-
rentes de segunda geração” (alunos dos seus alunos), Alfred Goodman
Gilman não é filho de um deles: o “Goodman” que carrega em seu
nome é uma homenagem ao referido livro. Ele próprio afirma:
O maior livro-texto de farmacologia, As bases
farmacológicas da terapêutica, foi fruto da cola-
boração de Goodman e Gilman, publicado pela
primeira vez em 1941. Eu também nasci em 1941
(em New Haven, Connecticut) e fui chamado de
Alfred Goodman Gilman. Talvez meu destino te-
nha sido selado nesse dia. Como disse certa vez
meu amigo Michael Brown, provavelmente eu se-
ja a única pessoa que tenha sido nomeada após um
livro-texto. (GILMAN, 1994)
Fazendo parte de uma “terceira” geração de alunos de Goodman e
Gilman, pode ser conjeturado que esse editor associado, que nas próxi-
mas edições passa a editor chefe, compartilha além dos valores institu-
cionais e sociais, os valores pessoais dos autores iniciais da obra, por
sua relação tão próxima com estes. De alguma forma, ele pode ser um
dos fatores que mantêm, nas edições seguintes, algumas das característi-
cas que marcaram o início da obra. O modo como são apresentadas as
definições dos temas, as considerações sobre a indústria farmacêutica,
os cuidados com novos medicamentos e, apesar da tendência de elimi-
nação desse aspecto no decorrer dos anos, a abordagem dos fatores his-
tóricos relacionados ao desenvolvimento de drogas. Mesmo que a cada
edição esse último aspecto ganhe gradativamente menor enfoque, sua
abordagem se mantém. Porém, na 11ª edição, elaborada “pela primeira
vez sem um Goodman nem um Gilman entre os autores ou editores”
(CASAVANT, 2006, p.2791), os fatos históricos passam a pequenos
trechos em letras menores, e o capítulo que trata da história da anestesia
é excluído. Como mencionado em resenha sobre essa última edição por
Casavant, “alguma história” se mantém: “A maioria dos capítulos inicia
com informação de fundo sobre a anatomia e fisiologia normais dos
sistemas em discussão e alguma história do desenvolvimento farmaco-
lógico na área” (p.2791). Essa que era uma característica importante na
primeira edição vai cedendo lugar a outros detalhes do conhecimento
farmacológico nas décadas seguintes.
4.2.2.3 Uma nova geração assume a farmacologia: o período de
1980 a 1990
174
A década de 1980 foi palco de mudanças importantes na área de
farmacologia (M. Angell). Iniciando sua quarta década de vida, o livro-
texto, que na edição (1980) reflete os acontecimentos da pesquisa e
do desenvolvimento industrial dos cinco anos anteriores, tem seu nome
novamente modificado
157
. Ele incorpora o nome de seus editores e auto-
res das primeiras edições, passando a ser chamado de Goodman and
Gilman´s: the pharmacological basis of therapeutics, ou, nas versões
em português, Goodman e Gilman: as bases farmacológicas da tera-
pêutica. Pouco antes do início da edição, em 1984, morre Alfred
Gilman (RITCH, 198?), e na 8ª edição Louis Goodman deixa de partici-
par da obra, embora tenha vivido ainda por mais dez anos. Alfred Go-
odman Gilman, filho de Gilman, e “filho” de ambos enquanto farmaco-
logista, continua como editor, junto com outros farmacologistas.
A definição de farmacologia permanece idêntica nessas três edi-
ções, praticamente inalterada em relação ao conceito que foi apresentado
na edição. O destaque na sexta edição é para essa área do conheci-
mento que passa a tomar espaço na formação e prática biomédicas, situ-
ação pontuada no início do seu prefácio (em parte muito semelhante ao
da 4ª edição), com destaque para o próprio livro nesse trajeto:
A primeira edição deste livro, publicada apro-
ximadamente quarenta anos, foi escrita quando a
farmacologia básica não era aceita totalmente co-
mo uma disciplina biomédica importante ou rele-
vante. O aparecimento deste livro fez muito para
modificar esse quadro. Um farmacologista emi-
nente, ao tecer comentários sobre a primeira edi-
ção muitos anos após a sua publicação, declarou
que esta ofereceu uma renascença ou naissance do
ensino e da prática da farmacologia. [...] As edi-
ções subsequentes foram escritas como trabalho
de vários autores um reflexo da enorme mudan-
ça do teor, do desenvolvimento e da função da
farmacologia, de seu papel na ciência biomédica e
de seu impacto sobre a ciência clínica e terapêuti-
ca racional. (GOODMAN; GILMAN, 1983
[1980], prefácio s/n)
Em relação à estruturação das seções e dos capítulos, ocorrem
modificações que se mantêm na 7ª (1985) e 8ª (1990) edições. A Seção I
157
A primeira modificação ocorreu na 5ª, edição quando o título principal perdeu a comple-
mentação “A Textbook of pharmacology, toxicology, and therapeutics for physicians and
medical students”.
175
sobre farmacologia ganha novos capítulos, e aquela que tratava da “A-
ção das drogas nas junções neuroefetoras” deixa de ser a Seção IV para
ocupar a Seção II, refletindo a ampliação da abrangência desse tema
para a farmacologia. Se inicialmente a transmissão estava situada logo
após as seções (ou seção) que tratava das drogas atuantes no SNC, agora
esse tema o precede. As novas tecnologias de pesquisa permitiram que
se estudassem os mecanismos de ação das drogas também no SNC, e os
mesmos princípios de transmissão estudados em receptores periféricos
também são investigados nessa área corporal, antes de difícil acesso.
Essas mudanças são destacadas também na apresentação da obra:
A seção sobre princípios gerais (Seção I) foi am-
pliada e dividida em três capítulos, incluindo um
novo tratado introdutório sobre os “Princípios da
Terapêutica” (Cap.3). Os dados sobre a farmaco-
cinética estão se tornando disponíveis num ritmo
acelerado e, portanto, existe uma atenção contínua
para os aspectos básicos e aplicados desse assun-
to. [...] Outras modificações importantes incluem
um capítulo novo sobre “Transmissão Neuro-
Humoral e o Sistema Nervoso Central” (Cap.12),
apresentado sob a forma de uma introdução à se-
ção que descreve as drogas que modificam as fun-
ções do SNC; esse capítulo serve como um com-
plemento para o seu já bem conhecido predeces-
sor sobre “Transmissão Neuro-Humoral e o Sis-
tema Nervoso Autônomo (Cap.4).” (GOODMAN;
GILMAN, 1983 [1980], prefácio s/n)
A cada edição aumento das informações, requerendo nesse
momento a ampliação da seção “Princípios gerais”, aquela que trata da
farmacologia como um todo, onde são abordadas questões comuns a
todos os medicamentos, como os aspectos farmacocinéticos, que, como
referido, são aqueles relacionados aos “caminhosque um medica-
mento faz no organismo. O capítulo “Princípios da terapêutica”, refe-
renciado no prefácio, introduz de forma explícita “A terapia como ciên-
cia” (seu primeiro subtítulo), que implica no estudo das drogas em seres
humanos. Se antes esse tema permeava as discussões dos autores ao
abordar o estudo das drogas, aqui ele é exposto pela primeira vez segun-
do os critérios dessa nova “Era” da farmacologia que vai caracterizar o
que hoje conhecemos como “farmacologia clínica”, e nos remete mais
uma vez ao tema da medicina como ciência. Assim é feita sua apresen-
tação:
176
Historicamente, a ausência de dados precisos do
efeito das drogas no homem foi, em grande parte,
devida a padrões éticos da experimentação huma-
na. A “experiência” nos seres humanos era impos-
sibilitada, e geralmente, não era admitido que todo
tratamento por qualquer médico fosse e devesse
ser planejado e, em algum sentido, registrado co-
mo uma experiência. Embora deva existir sempre
uma preocupação ética quanto à experiência no
homem, princípios têm sido definidos e não há
mais obstáculos éticos na coleta dos dados, ou ex-
perimentais ou de observação, na eficácia de dro-
gas em adultos. Além do mais, deve-se considerar
agora absolutamente não ético continuar-se a arte
como oposta à ciência da terapêutica, que direta
(adulto ou criança) ou indiretamente (feto) receba
medicamentos para propósitos terapêuticos. (GO-
ODMAN; GILMAN, 1983 [1980], p.36)
A tentativa de tornar a terapêutica totalmente baseada em crité-
rios da ciência continua, embora possamos questionar se é realmente
possível prescindir de critérios não científicos (éticos, sociais ou subje-
tivos, como a sensibilidade daquele que cuida) para exercer a medicina.
A referência aos “padrões éticos da experimentação humana” leva-nos a
pensar sobre quais seriam esses padrões
158
, que embora “aperfeiçoados”
durante o século XX, têm permitido pesquisas que liberam medicamen-
tos não tão seguros (em termos de eficácia ou de efeitos colaterais) co-
mo imaginamos que “estudos controlados” o fariam. Muitas vezes, re-
sultados indesejados em fases iniciais de estudos clínicos são “maquia-
dos” ou “esquecidos”, e até que sejam percebidos, o medicamento já foi
utilizado por milhares de pessoas, como foi o caso do Vioxx®
159
. Angell
lembra que “os laboratórios farmacêuticos publicam somente os resulta-
dos positivos, não os negativos” (ANGELL, 2007, p. 128), e que o con-
trole sobre esses dados por parte dos órgãos de regulamentação fica
prejudicado pelas várias estratégias desenvolvidas pelas empresas. Essa
158
Não é objeto deste estudo falar sobre regulação de questões éticas em protocolos de pesqui-
sa em seres humanos, mas, como já foi pontuado antes, esse é um tema que tem levantado
inúmeros questionamentos em todo o mundo, exigindo constante vigilância e regulação por
parte da sociedade civil, pois são inúmeros os casos de violação dos direitos humanos. Tanto é
assim, que aqueles que trabalham com pesquisas com seres humanos têm discutido essas
questões em diversos fóruns, e existe a Declaração de Helsinke, assinada por representantes de
vários países para tentar evitar abusos nesse sentido.
159
Ver página 199.
177
autora cita vários exemplos
160
de medicamentos que tiveram dados de
pesquisa manipulados por pesquisadores para a liberação de medica-
mentos no mercado. Não que eles não tenham seguido rigorosamente os
critérios técnicos e científicos para suas pesquisas, apenas omitiram
alguns resultados considerados pouco relevantes naquele contexto, mas
que passam a ser significantes no contexto maior da prática médica “re-
al”, que não é a do laboratório.
Mas quem são os pesquisadores e órgãos envolvidos na pesquisa
de medicamentos? Como vimos, desde o final do século XIX, a pes-
quisa com drogas utilizadas na terapêutica se desenvolve dentro dos
laboratórios das indústrias. Ou melhor, a partir da década de 1980, cada
vez mais a indústria está associada a órgãos públicos que sustentam a
pesquisa básica na área de farmacologia (ANGELL, 2007). Nesse capí-
tulo específico do livro-texto, a pesquisa de medicamentos em humanos
é apresentada como requisito para tornar científica a terapêutica com
medicamentos, como se esse fosse um recurso terapêutico isento dos
aspectos econômicos. Se nas primeiras edições da obra havia referência
a questões econômicas que permeavam a venda e uso de medicamentos
no decorrer de sua apresentação como recurso terapêutico, nessa edição
a questão é isolada e advoga-se em nome do novo conhecimento que
pretende ser “cientificamente” adequado. Mesmo que no capítulo espe-
cífico sobre regulação de drogas ocorra menção ao controle da sua pro-
dução por órgãos legisladores, e alguma advertência para uma “atitude
crítica perante as drogas” (GOODMAN; GILMAN, 1975, p. 41), o co-
nhecimento farmacológico que justifica a indicação e o uso de uma dro-
ga é isolado do seu contexto social e econômico. Questões que apareci-
am antes, como considerações sobre a poluição do meio ambiente, não
aparecem mais.
Nesse momento ainda não se utilizava corriqueiramente os ter-
mos “estudo clínico” e “farmacologia clínica”, mas é deles que se está
falando quando se introduz o tema da observação do efeito das drogas
em seres humanos a partir do olhar da ciência. É essa grande área, que
passa a ser explorada a nas últimas décadas do século XX, que está sen-
do apresentada. Os estudos clínicos que testam uma nova droga compa-
rando-a com um placebo
161
ou, mais recentemente, comparando-a com
uma droga reconhecida como útil para determinado problema de saú-
de, vendem a imagem de saber validado quase que sem erros por fazer
160
Sobre essa questão, ver Angell (2007), capítulo 6: “Até que ponto os novos medicamentos
são bons?”.
161
Estudos clínicos contra placebo: ver nota 2.
178
parte de uma abordagem científica. No entanto, a fase final desses estu-
dos só se completa após seu lançamento no mercado, quando se avalia o
uso crônico da droga. Certamente em situações em que as condições de
saúde são graves e colocam em risco a integridade daquele que está
doente, como no caso de quadros depressivos com comprometimento do
autocuidado básico, os benefícios imediatos justificam os riscos ainda
não conhecidos. Mas, se pensarmos no caso do Paxil®
162
, ou de outros
antidepressivos que passam a ser utilizados quase como “cosméticos”
para eliminar sintomas indesejáveis, ainda que relativamente limitantes
(ou passíveis de serem abordados de forma não medicamentosa), talvez
estejamos subestimando efeitos colaterais. Efeitos que talvez já tenham
sido vislumbrados nos estudos iniciais, mas que serão “estatistica-
mente significantivos” após longos anos de uso em um grande número
de pessoas. Ou seja, anos após seu lançamento no mercado.
A proposta é para uma observação controlada, segundo valores
cognitivos extrapolados a partir de estudos científicos realizados em
outras áreas do conhecimento. No entanto, como lembra Pignarre, ob-
servar não foi o que sempre fizemos, desde as mais antigas tradições?
Esse autor nos alerta:
O empirismo contido na prova contra um placebo
jamais parece merecer um comentário extenso.
Acaso a medicina moderna progride afastando-se
de práticas empíricas? Não é essa mesma palavra,
empirismo, que se utiliza para explicar descober-
tas feitas em sociedades tradicionais ou as de nos-
sos antepassados? Como falar do progresso inin-
terrupto da medicina científica e ao mesmo tempo
redefini-la em torno de uma prática que representa
o triunfo do empirirsmo? Não haveria o risco de
dar a entender que a prova contra placebo, embora
moderna, seria apenas uma maneira de acelerar
um método de descoberta que não é muito no-
vo? (PIGNARRE, 1999, p.19).
É nessa edição (1980) que também se explicita, logo no prefá-
cio, a tentativa cada vez mais intensa de explicar os fenômenos fisioló-
gicos a partir do conhecimento das drogas que mimetizam ou alteram as
substâncias endógenas, identificadas a partir das novas tecnologias:
Os estudos dos receptores para neurotransmisso-
res, autacoides, hormônios e drogas estão possibi-
litando um discernimento importante sobre os me-
162
Sobre o Paxil®, ver capítulo 5 deste trabalho (item 5.3.1).
179
canismos de ação medicamentosa, assim como os
da fisiologia da doença. Os exemplos abordados
no texto incluem os receptores que regulam a sín-
tese do AMP cíclico, o papel dos anticorpos con-
tra os receptores colinérgicos nicotínicos na mias-
tenia gravis, a inibição da biossíntese de prosta-
glandinas e autacoides relacionados por uma série
de agentes anti-inflamatórios, o papel do NA+,
K+-ATPase no mecanismo de ação dos glicosí-
deos digitálicos e muitos outros
163
(GOODMAN;
GILMAN, 1983, prefácio s/n)
Esses avanços tecnológicos que permitem novas investigações,
cada vez mais minuciosas, no corpo biológico são reforçados na edi-
ção (1985). Eles apontam para a resolução de problemas, a partir desses
avanços, que indubitavelmente melhoram a vida daqueles acometidos
por problemas de saúde em que a deficiência de uma substância es-
pecífica, como no caso do indivíduo diabético que tem deficiência de
insulina:
É cada vez mais necessário para o farmacologista
ser um biólogo completo, versado em bioquími-
ca, fisiologia, biofísica, biologia celular e genéti-
ca molecular. Técnicas desenvolvidas por biolo-
gistas moleculares estão provocando atualmente
um profundo impacto na farmacologia. A clona-
gem molecular do DNA e biossíntese de produ-
tos codificados a partir dele permitem a produção
em larga escala de agentes como a insulina hu-
mana e o hormônio do crescimento. Ainda de
maior significância, a informação detalhada da
estrutura primária de importantes macromolécu-
las tem se tornado disponível como um resultado.
[...] Embora não antecipados uma década atrás,
os próximos anos verão uma explosão destas in-
formações. A seguir estarão a capacidade em
predizer a estrutura terciária dessas proteínas e,
finalmente, desenhar drogas que alterem suas
funções seletivamente e [de forma previsível].
(GOODMAN; GILMAN , 1985, p.v)
O destaque para esse ponto de vista farmacológico e os ganhos
terapêuticos que este traz marcam pontos para a abordagem biomédica,
163
Deixo essa citação com vários termos técnicos que se referem a substâncias específicas para
ilustrar os novos locais identificados no organismo relacionados a elas, as intervenções tera-
pêuticas e explicações que surgem para o aparecimento de determinados problemas de saúde.
180
que consegue localizar uma disfunção ou falta de determinada substân-
cia que agora pode ser reposta a partir dos recursos técnicos disponíveis.
O fato de ser apresentado esse exemplo logo no prefácio reforça a visão
de que, aos poucos, “uma explosão” de conhecimento vai permitir que a
terapêutica intervenha cada vez mais em locais específicos, “seletiva-
mente” e de forma “previsível”. Implicitamente fica a mensagem que ao
agir de forma seletiva e precisa são minimizados ou até evitados os efei-
tos indesejáveis. É essa abordagem que se pretende para todos os medi-
camentos, e é sob a sua influência que serão extrapolados os ganhos
obtidos a partir de casos exitosos, como a síntese de insulina homóloga à
humana para outras situações de saúde, como os sintomas relacionados
ao humor
164
.
De forma geral, a 7ª e 8ª edições continuam na perspectiva inicia-
da com a edição, seguindo a mesma formatação e explorando essa
possibilidade de identificar novos locais e os caminhos dos medicamen-
tos no organismo. A interação entre drogas no organismo é abordada,
evidenciando que cada vez mais as pessoas utilizam múltiplos medica-
mentos, seja para tratar um mesmo problema de saúde, seja para diferen-
tes problemas que coexistem. A interação entre medicamentos havia
recebido atenção na edição de 1980, com a inclusão de um apêndice
(Apêndice III) no final da obra abordando essa questão de forma que o
profissional encontrasse uma resposta resumida e rápida para aplicar em
situações práticas, que se mantém na 7ª, mas não na 8ª edição.
A serotonina continua na seção dos autacoides na e edições.
Porém, na edição essa seção tem seu nome modificado de “Autacoi-
des” para “Autacoides: terapia medicamentosa da inflamação”. Essa
complementação no título reflete a imensa importância que os medica-
mentos envolvidos com os processos inflamatórios passam a ter nas
últimas décadas do século XX, tanto para o tratamento de problemas
agudos como para problemas crônicos. Surgem medicamentos novos
para o tratamento da asma, e os anti-inflamatórios não esteroidais (entre
os quais se incluem o Vioxx®, comentado anteriormente) ocupam
lugar importante na prática médica. O uso destes últimos como analgé-
sicos sintomáticos para inúmeros problemas transcende a prescrição
médica, e essas drogas ganham espaço na automedicação em todo o
mundo.
164
Sobre essa extrapolação dos êxitos dos medicamentos que repõem substâncias, como a
insulina, ou que atuam seletivamente sobre microorganismos, para situações complexas como a
depressão ou outros sintomas relacionados ao comportamento, ver Pignarre (2001, capítulo
“PETITE BIOLOGIE”)
181
Na edição de 1990 (8ª edição) referência no prefácio a drogas
antes não disponíveis, como o AZT para tratamento de infectados pelo
HIV, a eritropoeitina, que estimula a formação de hemácias em indiví-
duos que sofrem de anemia e que anteriormente necessitavam de trans-
fusão sanguínea, e os medicamentos para baixar os níveis de colesterol
(GOODMAN; GILMAN, 1990, p.v.). A farmacologia inaugura uma era
de expansão que pode ser caracterizada como seu terceiro grande boom
(o primeiro foi com a síntese de substâncias no final do século XIX e o
segundo no período após a Segunda Guerra). A habilidade técnica no
desenvolvimento de novos medicamentos e a possibilidade de visualiza-
ção de microestruturas no organismo biológico permite o desenvolvi-
mento de inúmeras drogas e a inferência de possíveis mecanismos cau-
sais a partir de modelos animais e dos testes clínicos. Essas inferências
causais passam a ser “vendidas” como válidas a partir de explicações
que serviram para determinadas situações clínicas, mas que transporta-
das para outras podem não ter a mesma validade. No entanto, a forma
como são conduzidas a divulgação científica e a abordagem dos profis-
sionais de saúde por parte da indústria farmacêutica para inserir novos
produtos no mercado, acaba por ocultar os inúmeros interesses que estão
por trás dessa grande expansão na produção e venda de medicamentos.
4.2.2.4 A farmacologia no final do século XX e início do século XXI
A apresentação da edição de 1996 começa com a seguinte consi-
deração:
A nona edição do Goodman e Gilman As Ba-
ses farmacológicas da terapêutica é a primeira
edição desse livro que não foi minuciosamente e-
ditada, palavra por palavra, por um membro da
família Goodman ou Gilman. No entanto, os três
objetivos que guiaram a escrita da primeira edi-
ção, estabelecidos no seu prefácio, são reimpres-
sos aqui [e] também guiaram nossos esforços.
(HARDMAN; LIMBIRD, 1996, p.xix)
Quadro 4.4 – Descrição da 10ª edição do livro Goodman e Gilman
10ª Edição (2001)
Seção I –“Princípios Gerais” Com os seguintes subitens: Introdução; Cap.1
Farmacocinética; Cap.2 Farmacodinâmica; Cap.3 Princípios de terapêutica; Cap.4
182
Princípios de toxicologia e tratamento de envenenamentos; Cap.5 Terapia genética.
Seção II –Drogas atuando nas sinapses e nos locais de junções neuroefetoras
(com seis capítulos);
Seção III –Drogas que agem no Sistema Nervoso Central (com 13 capítu-
los);
Seção IV Autacoides; Terapia medicamentosa da inflamação com introdu-
ção mais quatro capítulos, sendo que o capítulo de sobre a serotonina não está mais
aqui incluído.
Seção V Drogas que afetam as funções renal e cardiovascular (com oito
capítulos)
SeçãoVI – Drogas que afetam a função gastro-intestinal (três capítulos);
Seção VII Quimioterapia de doenças parasitárias (introdução mais três ca-
pítulos);
Seção VIII – Quimioterapia de doenças microbianas (com nove capítulos);
Seção IX – Quimioterapia de doenças neoplásicas (introdução mais um capí-
tulo);
Seção X – Drogas usadas como imunomoduladores (um capítulo);
Seção XI Drogas que agem sobre o sangue e os órgãos hematopoiéticos
(com dois capítulos);
Seção XII – Hormônios e antagonistas hormonais (sete capítulos);
Seção XIII –As vitaminas (introdução mais dois capítulos);
Seção XIV – Dermatologia (um capítulo);
Seção XV – Oftamologia (um capítulo);
Seção XVI – Toxicologia (dois capítulos).
ainda dois apêndices (“Princípios de redação da prescrição de receitas e
orientação para adesão do paciente”; “Desenho e otimização dos regimes de dosa-
gem, dados farmacocinéticos”) e o índice alfabético, com um total de 2148 páginas.
Fonte: HARDMANN; LIMBIRD; GILMAN; 2001
Essa edição tem Joel Hardman e Lee E. Limbird como editores
chefes, Perry B. Molinoff e Raymond W. Ruddon como editores e Al-
fred Goodman Gilman como editor associado. A forma das seções e
capítulos apresenta arranjos que diferem das edições anteriores, e essa
mudança de formatação é explicada pelos editores chefes que assinam o
prefácio:
Algumas mudanças foram feitas nessa edição para
facilitar a realização desses objetivos
165
. Por e-
xemplo, cada um dos capítulos foi revisado por
pelo menos um médico, especialista na área clíni-
ca tratada pelos agentes discutidos, e por um far-
macêutico. [...] Cada capítulo inicia-se com uma
sinopse, em um esforço de ligar o conteúdo de ca-
165
Os objetivos gerais do livro desde a 1ª edição que são referidos e citados nessa 9ª edição.
Eles são citados no item 4.1 deste trabalho desse capítulo, quando analiso a edição de 1941.
183
da capítulo com outros capítulos do livro onde
material complementar é discutido. (HARDMAN;
LIMBIRD, 1996, p.xix)
Essa formatação, com resumos no início de cada capítulo, em le-
tras itálicas, contendo de dez a 30 linhas, mantém-se na 10ª edição
(2001), que é muito semelhante à edição (1996). pequenas dife-
renças entre essas duas obras, como, por exemplo, a seção “Drogas que
afetam a motilidade uterina”, que ainda constava na e é suprimida na
10ª edição. Na 9ª edição há a introdução de novas seções, que não cons-
tavam na 8ª edição, e que se mantêm na 10ª e 11ª edições (Oftalmologia,
Dermatologia), e a mudança de capítulos para outras seções sob nova
classificação. Exemplificando: no caso da seção excluída (Drogas que
afetam a motilidade uterina), as substâncias que constavam no único
capítulo dessa seção (ocitocina, ergotamina, prostaglandinas) foram
direcionadas para outros capítulos que tratavam das substâncias endóge-
nas relacionadas a elas. Nesse caso, as drogas relacionadas à motilidade
uterina e às prostaglandinas foram para a seção “Autacoides”, que tem
um capítulo tratando das prostaglandinas e drogas relacionadas a ela na
10ª edição; a ergotamina foi para seção que trata da serotonina que
está relacionada a essa substância, e assim por diante.
Como aconteceu na e edições, as modificações na forma de
organização da obra ocorrem por conta dos conhecimentos produzidos
no período. Os autores destacam, ainda no prefácio, que “vários novos
capítulos foram adicionados” (HARDMAN; LIMBIRD, 1996, p.xix),
refletindo esse momento da farmacologia, em que uma nova categoriza-
ção das drogas é apresentada como consequência de campos de investi-
gação que já vinham em desenvolvimento, mas que ganham visibilidade
a partir do final do século XX. Os editores exemplificam essa nova or-
ganização com os capítulos adicionados sobre gene therapy e sobre a
serotonina:
um capítulo foi adicionado sobre os princípios de
geneterapia. [...] A identificação de diversos sub-
tipos de receptores para serotonina e o esclareci-
mento dos papéis dos diferentes subtipos no SNC
e TGI nos encorajaram a incluir um novo capítulo
sobre agonistas e antagonistas [de] receptores [de]
serotonina. [...] Assim como nas edições prévias,
cada capítulo desse livro enfatiza os avanços tera-
pêuticos permitidos pelas drogas recentemente
comercializadas e alguns agentes em investigação.
(HARDMAN; GILMAN; LIMBIRD,1996, p.xix)
184
A serotonina, que estava na seção “Autacoides” desde a edi-
ção, a partir da edição vai fazer parte da seção “Drogas atuando nas
sinapses e nos locais de junções neuroefetoras”. Essa substância, que
nas edições anteriores era classificada como autacoide
166
, mas também
era citada em partes da seção que tratava dos neuro-humores ou neuro-
transmissores (esta última, uma denominação mais recente), agora é
apresentada “ao contrário”: ela é abordada como neurotransmissor e
citada como participante de outras funções no organismo. Se inicialmen-
te seu principal papel no livro estava focado nesses outros locais do
organismo que não o SNC, agora, mesmo que ela continue agindo em
outros locais do organismo
167
, o enfoque é para a sua neurotransmissão
cerebral. É nessa edição que são apresentados os antidepressivos que
atuam especificamente sobre a serotonina como drogas regulares para o
tratamento da depressão. Na 8ª edição, os ISRS foram apresentados
como “antidepressivos atípicos”, e não como drogas de primeira esco-
lha.
Se na edição há a argumentação sobre o novo capítulo da sero-
tonina a partir dos achados no SNC, não há explicação do porquê de sua
saída da seção dos autacoides. No prefácio da 10ª edição, não refe-
rências sobre conteúdos específicos do livro da forma como ocorreu em
todas as edições anteriores (sobre este ou aquele capítulo, sobre a orga-
nização da obra, sobre novas substâncias, entre outros), mas apenas
agradecimentos e considerações generalizadas sobre a obra. Nessa últi-
ma edição, no resumo que precede o capítulo dos autacoides, também
não há referência ao porque de sua inclusão em outra seção, apenas que,
apesar dela ser considerada também um autacoide, suas funções e as
drogas relacionadas a ela são abordadas em outro local. Assim principia
o resumo do referido capítulo:
As substâncias consideradas nessa seção têm ati-
vidades fisiológicas e farmacológicas diversas.
Elas são agrupadas em conjunto em grande parte
porque participam, ao menos em algumas situa-
ções [some settings], em respostas fisiológicas ou
fisiopatológicas ao trauma [injury]. Ao mesmo
tempo, aproveita-se a oportunidade para discutir
as drogas que antagonizam suas ações ou inibem
sua elaboração, quando essas drogas estão dispo-
166
<http://medical-dictionary.thefreedictionary.com/Autacoids> sobre a definição de autacoide.
Acesso em: 11 abril 2010.
167
Seu papel nas funções fisiológicas, determinado pela natureza deve ser o mesmo desde que
existimos enquanto espécie.
185
níveis. [...] A serotonina (5-hidroxitriptamina), ou-
tro contribuinte da resposta inflamatória, é apre-
sentada no capítulo 11
168
. (HARDMAN; LIM-
BIRD; GILMAN, 2001, p. 643)
Aqui vale destacar, conforme apontado por Orlandi (1999), as
não transparências do discurso, o “não dito”
169
ou as “ausências” (No-
gueira, 1991). A justificativa para que a serotonina mereça um capítulo
para ela é dada, no prefácio da edição, pelo fato de que foram des-
cobertos subtipos de receptores para serotonina no SNC. Mas não
explicação sobre o porquê da mudança dessa substância para outra se-
ção, que também tem papel significativo em outros locais do orga-
nismo. Na citação acima, apenas comunica-se que ela não estará mais
ali, como havia acontecido nas seis edições anteriores a esta. É certo que
ela vai para um local “neutro”, que fala da neurotransmissão em vários
locais do organismo, mas vale a pena ver como sua ação no SNC é des-
tacada logo no início do resumo do capítulo 11, na 10ª edição:
Esse capítulo lida com os diversos papéis fisioló-
gicos da 5-hidroxitriptamina (5-HT, serotonina)
como um neurotransmissor no SNC, como regu-
lador da função do músculo liso nos sistemas car-
diovascular e gastrointestinal e como regulador da
função plaquetária. A clonagem molecular tem
revelado uma diversidade não esperada de subti-
pos de receptores [...]. Esse capítulo abrange anta-
gonistas e agonistas dos receptores 5- HT, inclu-
indo os novos emergentes como resultado do uso
de receptores recombinates para investigar novos
agentes seletivos para os subtipos. Modelos expe-
rimentais utilizados para testar drogas que alteram
comportamentos complexos, tais como compul-
são, agressão, ansiedade, depressão e ciclos de so-
no e vigília, são também descritos. (HARDMAN;
LIMBIRD; GILMAN, 2001, p.269)
Nessa citação, ao contrário da anterior, ressalta-se o papel dessa
substância no SNC, levando-nos a considerar a observação de Van Dijk
(1999, p.31)
170
sobre a estruturação do texto, a ordem de prioridade em
que os elementos são dispostos quando se aborda um assunto, demons-
trando seu destaque no contexto. Seu papel como neurotransmissor no
168
A seção IV, dos “Autacoides” inclui os capítulos 25, 26, 27 e 28. O capítulo 11 está na
seção II.
169
Ver item 1.3 deste trabalho.
170
Ver item 1.3 deste trabalho.
186
SNC é apontado como primeiro na ordem de apresentação. No entanto,
sua distribuição no organismo e o que se conhece sobre sua ação
décadas não estão relacionados a esse aspecto. Conforme outro trecho
desse mesmo capítulo,
a 5-HT tem seu maior papel na regulação da mo-
tilidade gastrointestinal; ela é estocada e secretada
nas células enterocromafins [localizadas no intes-
tino] e nas plaquetas. Embora os estoques perifé-
ricos deem conta da maior parte da 5-HT no cor-
po, essa monoamina também age como um neuro-
transmissor no cérebro. (HARDMAN; LIMBIRD;
GILMAN, 2001, p.274, grifo meu)
Não há referência na 10ª ou 11ª edição sobre a quantidade de dis-
tribuição da serotonina no organismo, esse é um dado “não dito” nessas
edições. Na edição a afirmação de que “Cerca de 90% da 5-HT
presente no corpo [...] está alojada no trato gastrointestinal, principal-
mente nas células cromafins” (DOUGLAS apud GILMAN et al., 1985,
p.631).
Na 11ª edição (BRUNTON; LAZO; PARKER, 2006), a aborda-
gem no início do capítulo que trata da serotonina é diferente, elencando
as funções desta a partir de sua ação na musculatura lisa do sistema
cardiovascular e do intestino (onde se localizam seus maiores estoques
no organismo), nas plaquetas e, por fim, no SNC (SANDERS-BUSH;
MAYER, 2006, p. 297). Sua forma de atuação é explicada nessa edição
a partir dos subtipos de receptores que possui e que são responsáveis por
diferentes funções, algumas delas classificadas como “não conhecidas”.
São listados 14 diferentes subtipos em uma tabela que relaciona sua
localização no organismo com possíveis funções nos tecidos e células
(vasoconstrição, excitação neuronal, contração, entre outras, incluindo
as “não conhecidas”). Ainda que o enfoque seja para funções fisiológi-
cas no organismo, nesse mesmo capítulo outra tabela que relaciona
os subtipos de receptores de serotonina com determinadas drogas e de-
sordens clínicas para as quais essas mesmas drogas são utilizadas, tais
como depressão, enxaqueca, distúrbio obsessivo compulsivo, fobia soci-
al, entre outros.
Se algumas relações causais em nível celular estão bem estabele-
cidas, como a constrição de um músculo quando a molécula de seroto-
nina se liga a um determinado subtipo de receptor (esse efeito pode ser
reproduzido em laboratório), não há como relacionar diretamente a sero-
tonina com o comportamento humano. Por essa razão, há a abordagem
dos modelos animais que tentam relacionar essa substância com deter-
187
minados comportamentos (de agressividade, ansiedade ou depressão,
por exemplo). Mas as justificativas para a participação da serotonina
nesses distúrbios não são resultado de uma observação em laboratório.
Elas são buscadas a partir dos relatos clínicos, e os modelos animais
tentam comprovar a inferência feita a partir dos primeiros:
Os efeitos das drogas que ativam a 5-HT [5-HT-
active drugs], como os ISRS, na ansiedade e nas
desordens depressivas sugerem fortemente um e-
feito de mediação neuroquímica da 5-HT nessas
desordens. No entanto, [essas drogas] com efeitos
clínicos na ansiedade e depressão têm efeitos va-
riados nos modelos clássicos dessas desordens,
dependendo do paradigma experimental, das es-
pécies e do grupo [strain]. (SANDERS-BUSH;
MAYER, 2006, p. 304)
Ou seja, a referência aos problemas nomeados a partir da clí-
nica, que não são aqui caracterizados (não são descritos os sintomas), e a
colocação das possíveis relações entre esses problemas e a serotonina a
partir dos efeitos provocados no contexto clínico pelas drogas relaciona-
das a ela. No entanto, não uma relação estabelecida entre a ação da
substância e determinados efeitos no organismo, pois eles ainda estão
em estudo.
A farmacologia também é redefinida nas duas últimas edições do
livro texto. Se na 9ª edição a definição de farmacologia se mantém como
nas quatro precedentes (5ª, 6ª, e 8ª), na 10ª edição essa definição “re-
gride”, e é apresentado o conceito que constava na edição de 1941,
“como tributo aos autores originais e “por manter sua validade”
(HARDMANN; LIMBIRD; GILMAN; 2001, p.1). O que difere o con-
ceito apresentado aqui daquele das cinco edições anteriores, que havia
sido ampliado explicitamente por Goodman e Gilman na edição, são
alguns atributos, tais como o conhecimento da história, dos mecanismos
de ação e dos outros usos das drogas que não apareciam na edição. A
farmacocinética e a farmacodinâmica têm definições mais concisas,
muito semelhantes às anteriores, com ênfase nos aspectos práticos da
terapêutica, como pode ser observado: “de forma breve, a farmacociné-
tica explora os fatores que determinam a relação entre a dosagem da
droga e a variação de sua concentração no(s) seu(s) local (locais) de
ação” (GILMAN, 2001, p.1).
Na 11ª edição não qualquer definição sobre a abrangência do
conhecimento da farmacologia, tampouco sobre o que seria a abrangên-
cia do conhecimento que cabe à farmacodinâmica ou à farmacocinética.
Ambas voltam a ser abordadas em um único capítulo (na e 10ª edi-
188
ções cada uma delas tinha seu próprio capítulo), refletindo a situação
proposta pelos editores no prefácio:
Entre as tentações aparentemente irresistíveis e
compreensíveis [understandable] em escrever um
capítulo está o desejo de incluir todas as coisas, de
explicar a sinalização da proteína G, a inclinação
de descrever em detalhes a história da área em que
cada um é especialista, citando todos os trabalhos
desde Claude Bernard até o presente. Esses riscos,
associados ao contínuo avanço do conhecimento,
produzem considerável pressão para o aumento de
tamanho do livro. Como um antídoto, os editores
associados e eu trabalhamos para eliminar repeti-
ções e fatores externos. Pressionamos duramente
os autores dos capítulos, utilizando a facilidade e
rapidez dos e-mails para interagir com eles, para
clarear e condensar, e para reescrever aderindo
aos princípios dos autores originais e conservando
as competências para as quais se conhece o livro.
(BRUNTON; LAZO; PARKER, 2006, p.xxi)
Os editores afirmam ainda que a fisiologia e a farmacologia bási-
ca são apresentadas em tipos maiores para que o estudante as localize
com facilidade, e que “o clínico e o especialista encontram detalhes nos
escritos em tipo menor sob títulos identificáveis” (BRUNTON; LAZO;
PARKER, 2006, p.xxi). Essa estratégia dos tipos grandes e pequenos, já
utilizada nas primeiras edições, redefinindo o que importa ao estudante e
o que importa ao especialista ou médico formado, nesse caso não expli-
ca o que são os “detalhes” que interessam a esses últimos.
Tanto no caso da mudança de local no capítulo em que é aborda-
da a serotonina (de autacoide para neurotransmissor) quanto no da ex-
clusão de fatores externos que não são especificados (tais como a abor-
dagem histórica do desenvolvimento das drogas) e no caso da não defi-
nição do que abrange a farmacologia, os critérios para que essas modifi-
cações ocorram parecem não fazer parte do corpo de conhecimentos que
é a farmacologia. Assim, a proposta dos editores da última edição
(2006) de manter a obra livre de “fatores externos”, parece não ser pos-
sível, pois qualquer atividade humana, incluindo aquelas em que os
critérios são baseados no conhecimento científico, sofre a influência de
valores sociais e pessoais da época em que essa atividade acontece.
189
5 ANTIDEPRESSIVOS
5.1 PANORAMA GERAL
Se os termos substância psicoativa
171
e psicotrópico
172
são utili-
zados para denominar uma ampla categoria de drogas que agem no sis-
tema nervoso central e para tratar condições psiquiátricas, o termo “an-
tidepressivo” refere-se especificamente a uma subcategoria dessas subs-
tâncias. Os antidepressivos constituem uma classe de medicamentos
psicoativos
173
que vêm sendo utilizados para tratar vários problemas de
saúde na prática biomédica. Esses medicamentos surgiram por volta da
década de 50 do século passado, quando começou a “Era da Psicofarma-
cologia”
174
com o uso da clorpromazina para tratar pacientes com o
diagnóstico de esquizofrenia (HEALY, 1998; DAGOGNET; MAZA-
NA; PEREIRA; CABRERA, 2002; PIGNARRE, 2005; LOPEZ-
MUNOZ, 2004; PIGNARRE, 2001).
Embora na década de 1940, Henri Laborit tenha percebido o
efeito tranquilizante de substâncias com ação anti-histamínica utilizadas
para quadros de alergia, o evento clínico da utilização de uma droga
para tratar pacientes com distúrbios mentais ocorre por volta de 1952,
promovido por uma equipe de um hospital psiquiátrico francês, coman-
dada por Pierre Denicker e Jean Delay. O conceito de neuroléptico
175
,
desenvolvido por Denicker e Delay (HEALY, 1998), provocou uma
revolução terapêutica, dando força à psiquiatria biológica (psiquiatria
farmacológica, psicofarmacologia, neuropsicofarmacologia) em relação
171
Substâncias psicoativas: segundo a Organização Mundial da Saúde, são aquelas capazes de
mudar a consciência, o humor e os pensamentos por meio da ação em receptores cerebrais
específicos (WHO, 2004).
172
Psicotrópico: substâncias que atuam no SNC sedando, estimulando ou alterando o humor.
Podem ser divididos em (a) ansiolíticos-sedativos, (b) antidepressivos, (c) estabilizantes do
humor e (d) neurolépticos ou antipsicóticos (BALDESSARINI, 2001, p.447).
173
Medicamento psicoativo: é uma substância psicoativa utilizada como medicamento para
tratar problemas de saúde.
174
Psicofarmacologia: subespecialidade, desenvolvida a partir da década de 1950, que lida com
o uso dos medicamentos psicoativos utilizados para tratar problemas de saúde mental. A psico-
farmacologia estuda a química, a disposição, as ações e a farmacologia clínica das drogas que
atuam no SNC, sedando, estimulando ou provocando outras alterações no humor (BALDES-
SARINI, 2001, p.447).
175
Neuroléptico: termo utilizado para designar as drogas antipsicóticas. Owens (1996) afirma
que o uso desse termo, mais comum que “antipsicótico”, ocorre porque enfatiza as ações
neurológicas dessas drogas. Outros termos foram propostos enfatizando os estados mentais,
mas não se tornaram amplamente difundidos como o termo “neuroléptico”.
190
ao tratamento dos problemas psiquiátricos (AGUIAR, 2004; MAZANA;
PEREIRA; CABRERA, 2002; DAGOGNET; PIGNARRE, 2005; 2001).
Quando se ampliou o uso de fármacos industrializados, logo após
a Segunda Guerra, observou-se que algumas dessas drogas, até mesmo
algumas que estavam sendo testadas para outros problemas de saúde
(alguns deles não psiquiátricos) melhoravam o humor de pacientes com
sintomas depressivos, daí o termo antidepressivo. A primeira classe
desses medicamentos foi a dos Inibidores da MAO
176
. Ao utilizar a i-
proniazida
177
para tratar a tuberculose, percebeu-se que essa droga me-
lhorava o humor dos pacientes tratados. Porém, por possuir muitos efei-
tos colaterais, aos poucos deixou de ser utilizada nas décadas seguintes,
com o aparecimento de outros medicamentos que também melhoravam
o humor de pessoas com sintomas depressivos. A investigação de subs-
tâncias relacionadas às fenotiazinas (a mesma classe de medicamentos
que deu origem à clorpromazina) estava sendo explorada pelas maiores
indústrias de medicamentos da época em função da descoberta de sua
relação com a histamina, uma substância endógena, reconhecida
anos, e que nesse momento passa a ser relacionada a várias situações
clínicas. (DAGOGNET; PIGNARRE, 2005; FANGMAN, 2008; HE-
ALY,1997)
Em 1883, Heinrich August Bernthsen, diretor do laboratório ale-
mão BASF (Badische Anilin und Sodafabriken), que trabalhava com
substâncias corantes, principalmente o azul de metileno (derivado da
anilina, que por sua vez foi desenvolvida a partir do alcatrão), sintetizou
a primeira fenotiazina a partir desse corante. Em 1898, Thiele e O. Hol-
zinger sintetizaram o composto fenotiazínico iminodibenzil, que na
ocasião não foi utilizado na indústria de roupas como corante e perma-
neceu nos “porões” da Geigy
178
. Cerca de 50 anos depois, o diretor do
176
Inibidores da MAO: inibidores da enzima da monoaminoxidase, que faz a recaptação de
neurotransmissores como as catecolaminas e a serotonina na fenda sináptica (BRUNTON;
LAZO; PARKER, 2006).
177
A iproniazida foi descoberta a partir da hidrazina, uma substância carburante utilizada nos
foguetes V2 pelos alemães durante a Segunda Guerra. Quando a guerra terminou, as grandes
indústrias químicas recuperaram os estoques dessa substância e testaram uma série de seus
derivados para diferentes doenças (DAGOGNET; PIGNARRE, 2005, p.33).
178
A empresa de Johann Rudolf Geigy-Gemuseus foi fundada na Basiléia, Suíça, em 1758,
comercializando corantes e medicamentos. Em 1914, torna-se uma empresa de capital aberto
(já possuía filiais na Inglaterra e na França) e passa a se chamar J.R. Geigy Ltda. Em 1970 esta
empresa se une à Ciba, que produzia inseticidas e herbicidas desde 1935 e possuía um depar-
tamento farmacêutico desde 1938, formando a Ciba-Geigy Ltda. Em 1992, a Ciba, nome
adotado na fusão de 1970, se une à Sandoz (empresa também suíça fundada em 1886) forman-
do a Novartis. A partir de 1996, outras empresas, de medicamentos e vacinas são incorporadas
à Novartis, que passa a produzir também medicamentos genéricos, tornando-se uma das maio-
191
setor farmacológico dessa indústria incentivou a pesquisa com os com-
postos fenotiazínicos na busca de medicamentos sedativos, e o iminodi-
benzil foi “ressuscitado” dos porões, dando origem a 42 derivados atra-
vés da pesquisa dos químicos F. Hafliger e W.Schindler. Dentre esses
42 compostos, um deles, conhecido internamente como G 22150 foi
testado pelo médico suíço Roland Kuhn, que no início da década de
1950 não valorizou os resultados obtidos com o uso em seus pacientes,
pois além de não encontrar efeitos benéficos significantes, a droga apre-
sentava muitos efeitos colaterais. Na metade dessa década, após os rela-
tos do uso da clorpromazina para problemas psiquiátricos, foi realizado
novo contato entre esse médico e a Geigy, dessa vez testando o compos-
to G 22355 (também derivado do iminodibenzil), que demonstrou me-
lhora no estado de alguns pacientes que apresentavam sintomas depres-
sivos. Em 1957 os resultados desses testes foram apresentados em um
congresso de psiquiatria em Zurique. Assim, nesse ano passa a ser co-
mercializada a imipramina sob o nome de “Tofranil®”. Essa substância,
derivada das fenotiazinas, embora não demonstrasse efeitos sobre paci-
entes agitados, produzia melhora dos sintomas daqueles deprimidos:
nascia aqui a classe dos antidepressivos tricíclicos (HEALY, 1997;
FANGMAN, 2008). Esses medicamentos são utilizados ainda hoje, não
para a depressão, mas também em outras condições clínicas, como
dores crônicas, distúrbios de ereção, enurese noturna em crianças, entre
outros.
No decorrer dos anos, novas classes de drogas, de acordo com
seu mecanismo de ação, ou seja, de acordo com os tipos de receptores
com os quais interagem no organismo, foram incluídas no grupo dos
antidepressivos. O desenvolvimento de uma nova classe terapêutica na
década de 1980, a dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina
(ISRS), merece destaque na história dos antidepressivos, tanto pela difu-
são do seu uso por outros profissionais da área médica que não são psi-
quiatras, quanto pela ampliação do seu uso para outros diagnósticos
além dos quadros caracterizados por sintomas depressivos (HORT-
WITZ; WAKEFIELD, 2007; TURNIQUIST, 2008; DAGOGNET;
PIGNARRE, 2005; BRUNTON; LAZO; PARKER, 2006; PIGNARRE,
2001).
res indústrias de medicamentos e vacinas da atualidade.(Disponível em:
<http://www.novartis.com.br/_sobre_novartis/historia/geigy_ciba_sandoz.shtml>
<http://www.sandoz.com.br/site/br/sobre_a_sandoz/historia/index.shtml>. Acesso em: 20
fevereiro 2010).
192
Por fim, nas últimas décadas do século XX e início do século
XXI, outros medicamentos, como os inibidores seletivos da noradrena-
lina e os inibidores seletivos de noradrenalina e serotonina, foram pes-
quisados e lançados no mercado para tratamento dos quadros de depres-
sivos refratários aos medicamentos mais antigos e como drogas para
outros problemas de saúde (BRUNTON; LAZO; PARKER, 2006). A
difusão do uso dessas drogas tem tomado grandes dimensões. Conforme
assinalado por Turniquist (2002) parece não haver um único problema
psiquiátrico que não venha sendo tratado com os ISRS. Poderíamos
complementar sua afirmação dizendo que o são apenas os problemas
psiquiátricos: vários outros problemas de saúde com sintomas físicos
têm sido tratados com essas drogas e também com os inibidores de re-
captação de noradrenalina.
Neste capitulo abordo questões relativas ao uso dos antidepressi-
vos da seguinte forma: após esta introdução, no segundo subitem, dis-
corro sobre o uso ampliado e possivelmente abusivo a partir de revisão
da literatura sobre o tema; no seguinte (subitem três) abordo as questões
da medicalização da sociedade, a partir de Illich e Conrad, e da redução
da dor (tanto no sentido de sofrimento físico como psíquico) a seu com-
ponente biológico a partir das considerações do primeiro autor, que, na
década de 1970, escreveu sobre a industrialização e a medicina que
resulta desse processo, provocando iatrogenias em nome de intervenções
para restabelecer a saúde; no capítulo seis desta tese, apresento os anti-
depressivos a partir dos livros-texto e analiso como essas questões da
dor (física e psíquica), da industrialização intervindo na prática biomé-
dica e do possível uso abusivo aparecem no livro-texto.
5.2 USO AMPLIADO ABUSIVO DE ATD
Como foi referido, se por um lado os antidepressivos recebe-
ram esta denominação por serem destinados ao tratamento de uma situa-
ção clínica chamada “depressão”, por outro eles vêm sendo utilizados
para tratar outras situações, como dores crônicas, síndrome do cólon
irritável, disfunção erétil, transtornos de ansiedade, anorexia nervosa,
bulimia, obesidade, fibromialgia, entre outros (AGUIAR, 2004; BAL-
DESSARINI, 1996; BALDESSARINI, 2001; BALDESSARINI, 2006).
Em relação ao tratamento da “depressão”, poderíamos questionar
se esses medicamentos não estariam sendo utilizados além do necessário
ou até indevidamente, em função da grande flexibilidade e/ou impreci-
193
são dos instrumentos que definem o que seria um quadro de depres-
são
179
. Essa flexibilidade/imprecisão em relação ao diagnóstico tem sido
questionada por alguns autores (AGUIAR, 2004; CONRAD, 2007;
HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007; PIGNARRE, 2001; PILGRIM,
2007). Ao analisarem instrumentos como o DSM e escalas de depressão,
eles destacam modificações nos critérios para determinar o que seria um
quadro depressivo como desordem/doença, permitindo a inclusão de
situações em que as reações de tristeza, raiva ou até reações somáticas,
antes consideradas “normais”, passam a ser caracterizadas como estados
patológicos. Vale lembrar, conforme abordado no capítulo que trata dos
quadros de melancolia e depressão antes do século XX, que a classifica-
ção dos chamados “distúrbios mentais”, incluídos esses em que pre-
domina o afeto “depressivo”, permite confusões e ambiguidades não
apenas na atualidade, mas também em épocas anteriores.
Essas ambiguidades e imprecisões podem ocorrer pelos seguintes
motivos: porque os limites dos quadros depressivos são mal definidos e
muitas vezes confusos em relação a quadros que têm sintomas seme-
lhantes e estão incluídos em outras categorias; porque os quadros de-
pressivos são semelhantes a reações autolimitadas que poderiam ser
justificadas como decorrentes de infortúnios da vida e, por essa razão,
esperadas nesse contexto; e, finalmente, porque muitas vezes as classifi-
cações sofrem influência daqueles que as constroem, sem necessaria-
mente refletir a realidade vivenciada por todos os grupos sociais.
Outro fator a ser questionado, e que talvez esteja relacionado ao
primeiro, é o papel da indústria de medicamentos promovendo ampla
divulgação no meio leigo sobre situações que poderiam melhorar com o
uso dos antidepressivos, levando os pacientes a procurarem os médicos
em busca de sua prescrição (APPLBAUM, 2006; AZIZE, 2002; CON-
RAD, 2007; PILGRIM, 2007; TURNIQUIST, 2002). O marketing
direcionado aos médicos é uma estratégia utilizada há tempos para todas
as classes de medicamentos, e não apenas para os psicoativos (AN-
GELL, 2007; BRODKEY, 2005; CONRAD, 2007; CUNHA, 1981;
GIOVANNI, 1980; PIGNARRE, 1999;). Porém, no caso desses últimos
é imprescindível para a indústria que o profissional médico seja aborda-
179
Depressão (WHO, 2008): “Depressão é uma desordem mental comum que se apresenta com
humor deprimido, perda de interesse ou prazer, sentimentos de culpa ou baixa autoestima, sono
ou apetite alterados, baixa de energia e dificuldade de concentração. Esses problemas podem se
tornar crônicos ou recorrentes e levar a prejuízos substanciais na capacidade individual de
autocuidado de suas responsabilidades diárias. Em sua pior forma, a depressão pode levar ao
suicídio, uma fatalidade trágica associada a cerca de 850 mil vidas ao ano [...] A depressão
ocorre em pessoas de todos os gêneros, idades e culturas”.
194
do, pois essas drogas poderão ser utilizadas sob prescrição médica.
Essa é uma situação diferente do caso dos anti-inflamatórios não este-
roidais (AINE), como o Vioxx®, que em países como o Brasil não pre-
cisam de receita médica e acabam por gerar grandes lucros às empresas
porque a população pratica amplamente a automedicação com esse tipo
de medicamento
180
.
Apesar de o médico ser imprescindível para a prescrição, a divul-
gação diretamente aos consumidores pode contribuir para a ampliação
do uso desses medicamentos. A indústria divulga sinais e sintomas de
alguns quadros considerados como doenças, e os pacientes, ao conhecê-
los, podem identificar alguns deles em si mesmos, solicitando que sejam
tratados/medicados com essas drogas. Por serem sintomas que também
ocorrem em situações em que seria “normal” ou esperado apresentá-los
(tristeza, medo, raiva, irritabilidade, entre outros), pode haver uma su-
pervalorização dos mesmos, induzindo, inadvertidamente, a prescrição
médica em nome da “melhora da qualidade de vida” (AGUIAR, 2004;
AZIZE, 2002; CONRAD, 2007).
Um terceiro questionamento sobre a opção pelo uso dos antide-
pressivos, seria em relação à finalidade do uso dessas drogas. Ainda que
nos detivéssemos apenas às indicações baseadas em critérios técnico-
científicos, estas estariam sendo utilizadas para “tratar” e “curar” doen-
ças ou apenas como um grande medicamento sintomático? Deixando-se
de lado a abordagem de outros fatores sociais, psicológicos, econômi-
cos – que podem estar influenciando o desencadeamento de quadros que
atualmente são considerados tratáveis com estes medicamentos. Moncri-
eff e Cohen (2006) sugerem inclusive, em relação à abordagem da de-
pressão, que se modifique o nome “antidepressivospara outro, pois,
apesar de sabidamente modificarem o humor dos indivíduos que utili-
zam estas drogas, não se pode afirmar que sejam “anti” depressão,
que não “curam” a depressão.
Esses autores fazem um paralelo com as alterações provocadas
pelo álcool no sistema nervoso central. Pessoas tímidas e que ficam
ansiosas em alguns ambientes sociais, ao utilizarem bebidas alcoólicas
tendem a ficar mais extrovertidas e menos inibidas sob seu efeito. Isso
não quer dizer que elas se tornem menos tímidas em geral, a não ser que
180
Atualmente, no Brasil, o Vioxx® necessita de receita médica em virtude dos efeitos colate-
rais que justificariam sua retirada do mercado, mas, por terem indicação para algumas situa-
ções clínicas ainda são prescritos. No entanto, a classe de medicamentos antiinflamatórios
habitualmente é de venda livre e quando foram lançados esses medicamentos (Vioxx® e
semelhantes), eles não necessitavam de prescrição médica , podendo ser comprados em qual-
quer farmácia pelos consumidores.
195
repitam o uso do álcool. Ou seja, o álcool não é uma droga que cura a
timidez, mas uma droga que altera a percepção do indivíduo e modifica
seu humor e comportamento. Por isso os autores propõem que a visão
atual sobre depressão seja modificada: do atual “modelo centrado na
doença” para um “modelo centrado na droga”.
Segundo eles, no “modelo centrado na doença”, os pressupostos
são: (1) as drogas antidepressivas corrigem um estado anormal do cére-
bro; (2) os efeitos terapêuticos são derivados da patologia presumida da
doença; (3) os efeitos são diferentes em pacientes e voluntários; (4) o
paradigma que direciona essa visão é o da insulina utilizada para o paci-
ente diabético. Já no “modelo centrado na droga”, os pressupostos seri-
am: (1) as drogas criam um estado cerebral anormal; (2) os efeitos tera-
pêuticos são casuais e dependem do contexto; (3) os efeitos da droga
não diferem entre pacientes e voluntários; (4) o paradigma que direciona
essa visão é o do álcool para a ansiedade social (MONCRIEFF; CO-
HEN, 2006).
Se existe a pretensão de correlacionar a falta de serotonina e no-
radrenalina com a causa dos sintomas depressivos (além de outros como
a ansiedade) há que se ter cuidado ao afirmar que a falta dessas substân-
cias causa esses sintomas apenas porque eles aumentam a disponibilida-
de dessas substâncias pelo uso de drogas que provocam esse efeito.
Quando se fala em determinar fatores causais, uma ambição na área
médica que vem sendo perseguida no intuito de evitar doenças ou poder
intervir sobre elas, existe um longo caminho a ser percorrido (FA-
GOUT-LARGEAULT, 2006), nem sempre um caminho fácil e linear.
Sobre os medicamentos antidepressivos, sabemos que eles atuam sobre
neurotransmissores e seu uso diminui sintomas encontrados em quadros
caracterizados como ansiedade e depressão, mas não é possível afirmar
que o défict de serotonina ou noradrenalina, por exemplo, sejam a causa
desse quadro clínico.
Uma hipótese que poderia ser levantada é a de que esse déficit se-
ria o resultado final de uma cadeia de eventos que começou por outra
causa que não apenas uma determinação biológica do indivíduo. Com
isso não se está descartando que algumas pessoas com sintomas sicos
decorrentes de um sofrimento psíquico ou estresse biológico intensos
possam se beneficiar dessas drogas. O que se pretende questionar é a
redução do quadro de sofrimento (tanto físico quanto psíquico) à altera-
ção do neurotransmissor, independentemente da situação em que este
indivíduo se encontra. (CAPONI, 2009).
O universo que inclui outros fatores que interferem no processo
saúde-doença de cada um e de determinado grupo social tem sido negli-
196
genciado pela biomedicina, incluindo aqui os recursos utilizados para
intervir nesse processo. O itinerário terapêutico de cada indivíduo, a
forma como o medicamento é utilizado e transita em conjunto com ou-
tras terapias são reduzidos a coadjuvantes, priorizando a intervenção no
corpo biológico através de uma molécula específica: no caso aqui abor-
dado, o medicamento antidepressivo. Na busca de recursos, não apenas
medicamentosos, que redimensionem o momento de vida daquele indi-
víduo em relação ao contexto social em que ele vive, e que, muitas ve-
zes, está diretamente relacionado ao aparecimento da doença, (MALUF,
2007; QUINTANA, 1999), é possível que o corpo biológico também se
“rearranje”, modificando suas substâncias endógenas (GREENFIELD,
1985) e restabelecendo o estado de saúde.
Talvez a grande diferença da biomedicina moderna quando com-
parada a outras abordagens terapêuticas tradicionais seja o fato de que
estas últimas visam restabelecer a saúde, curar a doença e proporcionar
alívio ao sofrimento, mas sempre respeitando características inerentes à
condição de ser humano. Nascimento, reprodução, vida, adoecimento e
morte são vivenciados de acordo com o contexto sociocultural em que o
indivíduo está inserido (BUCHILLET, 1991; LANGDON, 2003; S-
CHEPER-HUGUES; LOCK, 1990). Buchillet afirma, baseando-se em
diversos estudos antropológicos, que:
nas sociedades não ocidentais, a aparição da do-
ença, assim como o advento de um infortúnio, in-
dividual ou coletivo, que não constituem categori-
as separadas do ponto de vista da causalidade,
inscreve-se num dispositivo de explicação que
remete ao conjunto das representações do homem,
de suas atividades em sociedade e do seu meio na-
tural. [...] Toda interpretação da doença é, assim,
imediatamente inscrita na totalidade do seu qua-
dro sociocultural de referência (BUCHILLET,
1991 p.25).
As intervenções para modificar situações de doença/infortúnio
nas medicinas tradicionais
181
habitualmente utilizam plantas medicinais,
rituais, mudanças na alimentação, mudanças na rotina do indivíduo,
entre outros procedimentos. Ao final, esse conjunto de medidas levaria a
uma mudança na fisiologia do organismo e haveria um restabelecimento
181
Segundo a OMS, Medicina Tradicional é “A soma de conhecimentos teóricos e práticos,
explicáveis ou não, utilizados para diagnóstico, prevenção e supressão de transtornos físicos,
mentais ou sociais, baseados exclusivamente na experiência e observação, e transmitidos
verbalmente ou por escrito de uma geração a outra. Pode-se considerar também um conjunto
sólido de prática médica e experiência ancestral” (OMS, 1978, p.8).
197
da saúde, fazendo um caminho na direção contrária, porém seguindo a
mesma lógica do aparecimento do distúrbio: a partir da interação de
fatores sociais, ambientais e biológicos, o organismo redimensiona suas
funções, o que no processo de tratamento significa a volta ao “estado de
saúde”. Langdon (2003) lembra que:
Ultimamente há uma tendência, não na antro-
pologia, mas também nas ciências médicas, de re-
conhecer que a divisão cartesiana entre corpo e
mente não é um modelo satisfatório para entender
os processos psicofisiológicos de saúde e doença.
As representações simbólicas não expressam o
mundo, mas, através da experiência vivida, elas
são incorporadas ou internalizadas a tal ponto de
influenciarem os processos corporais. (LANG-
DON, 2003, p. 101)
Em outros contextos de tratamento da saúde e em alguns segmen-
tos das ciências biomédicas, admite-se e valoriza-se a importância do
contexto sociocultural no processo de adoecimento e de restabelecimen-
to da saúde. Leva-se em conta o papel social do indivíduo e do terapeu-
ta, e as regras sociais do grupo não são respeitadas como moldam as
condutas terapêuticas. Pelo contrário, o medicamento moderno, privile-
giado na abordagem biomédica, pretende atuar de forma objetiva e pon-
tual, com sua molécula agindo diretamente em determinado receptor
biológico em qualquer indivíduo, não importando o contexto ou a etapa
de vida, com a proposta de alterar suas reações, como as emoções ou o
humor, de uma forma definitiva. E ainda mais: embora não se afirme
isso, essa ação deve ser sem efeitos colaterais, que o grande avanço
das pesquisas em relação aos medicamentos tem sido a busca de uma
droga que atue cada vez mais sem os efeitos secundários indesejados
que habitualmente um medicamento produz.
A ampliação do uso dos antidepressivos ISRS parece ter ocorrido
basicamente pela possível ausência de efeitos colaterais prometida pelos
laboratórios que desenvolvem essas drogas. Pelo menos se pensarmos
em um prazo mais curto, esses novos antidepressivos não apresentam os
inconvenientes dos mais antigos. São uma espécie de “pílula mágica”
que poderia substituir todos os outros tipos de intervenções, quer sejam
práticas anteriormente aceitas pela biomedicina, como algumas psicote-
rapias, ou outras abordagens terapêuticas.
Será que é possível produzir um medicamento sem efeitos colate-
rais e que modifique quaisquer situações que nos incomodem? Essa
parece ser a promessa da técnica e da ciência dos medicamentos, e pode
estar servindo de motivação para o uso tão amplo destes. Surge então
198
outro questionamento: quais as implicações éticas do uso de substâncias
agindo no sistema nervoso central quando não conhecemos suas ações
por períodos mais longos? Se olharmos para trás poderemos constatar
que a falta de precaução e o controle insuficiente sobre as empresas
farmacêuticas e o uso de medicamentos resultaram em danos para a
saúde. Como exemplos recentes, podemos citar o clássico caso da tali-
domida
182
e o dos anti-inflamatórios não-esteroidais (AINE), quer sejam
os mais antigos, levando a internações por lesões no trato gastrointesti-
nal, ou os mais novos, como o Vioxx® e outros dessa classe terapêuti-
ca, que vieram para contornar o efeito indesejado e levaram a outro mais
grave, o surgimento de problemas cardiovasculares
183
.
No caso dos medicamentos psicoativos, podemos citar os benzo-
diazepínicos, que, a partir da década de 1960 e até pouco tempo atrás,
eram a grande “arma” contra a ansiedade. Devido à sua ampla prescri-
ção, têm deixado inúmeros dependentes químicos, pois, passado o “pe-
ríodo indicado” pela prescrição médica, muitos pacientes não conse-
guem, ou não querem, deixar de utilizar esses ansiolíticos, e retornam
periodicamente aos consultórios para uma nova receita “controlada”.
Embora continuem sendo utilizados para tratar a ansiedade, o fato de
sabidamente causarem dependência tem restringido seu uso no meio
médico, ou pelo menos limitado um pouco mais a sua prescrição. Esse é
um fato amplamente reconhecido em termos de saúde pública. Existem
182
A talidomida é um medicamento com atividade tranquilizante que foi utilizado para tratar
náuseas do início da gravidez nas décadas de 1950 e 1960, provocando inúmeros casos de
abortos/natimortos e cerca de 12 mil casos de crianças com deformidades. A principal caracte-
rística dessas deformidades é o encurtamento dos membros superiores e inferiores (focomega-
lia) (GEREZ, 1993). É um defeito relativamente raro e que aumentou dramaticamente em um
curto período de tempo. A relação da deformidade congênita com o uso da droga foi descoberta
com a realização de estudos epidemiológicos retrospectivos (SPIELBERG; NIES, 1996).
183
Um dos principais efeitos colaterais dos anti-inflamatórios é causar desequilíbrio no pH
gástrico, levando ao desenvolvimento de gastrites e úlceras gástricas, responsáveis inclusive
por internações hospitalares. Na década de 1990, foram desenvolvidos anti-inflamatórios sem
esse efeito colateral, agindo em outra etapa da cadeia do processo inflamatório, porém apare-
ceu um efeito mais grave, relacionado ao uso crônico de alguns deles: aumento do risco de
morte por problemas cardiovasculares. O Vioxx® foi o primeiro destes medicamentos a ser
denunciado e retirado do mercado em 2004 (DAGOGNET; PIGNARRE, 2005). Em 2005
surgiu a denúncia de que, em 2001, o órgão governamental nos Estados Unidos, responsável
pelo controle de medicamentos, o Food and Drug Administration (FDA), já havia solicitado
uma posição do laboratório sobre a possível relação do medicamento com problemas cardio-
vasculares. Ainda assim, esse medicamento rendeu à empresa cerca de 2,5 bilhões de dólares
em 2003 e foi consumido por cerca de 84 milhões de pessoas no mundo desce o seu lançamen-
to (AUDET & PARTNERS, 2007; CBS NEWS, 2004). A partir desse fato, outros medica-
mentos dessa classe vêm sendo retirados do mercado em vários países, até os dias atuais.
199
grupos de autoajuda para dependentes de benzodiazepínicos que, mesmo
sob orientação médica, não conseguem deixar de utilizar essas drogas.
Sobre os benzodiazepínicos, que são prescritos no Brasil em re-
ceituário controlado de cor azul, Silveira (2000) lembra no capítulo
“Acalmando médicos e pacientes: a receita azulde seu livro que trata
da doença de “nervos
184
”, que “sua descoberta trouxe benefícios indiscu-
tíveis para pacientes e facilidades para os médicos, porém provocaram
uma iatrogenia específica, desencadeada, principalmente, pelo mau uso
desse recurso terapêutico” (p.75). Essa autora lembra ainda um comen-
tário, frequente em serviços de pronto atendimento, que ironiza o uso
desses medicamentos que “fazem dormir”: “o paciente ganhou uma
receita de calmantes para que o médico pudesse dormir” (p.82).
Atualmente, uma das muitas indicações dos ISRS é para casos de
distúrbio de ansiedade, com o argumento de que não causam dependên-
cia com o uso crônico, ao contrário dos benzodiazepínicos, que sabida-
mente levam à dependência farmacológica. Embora não se tenha relatos
de dependência química com o uso crônico de antidepressivos, outros
efeitos indesejáveis têm sido pontuados. A questão do risco de suicídio
aumentado no início do tratamento com algumas dessas drogas foi le-
vantada alguns anos a partir da avaliação de alguns estudos publica-
dos e de outros não publicados (FDA, 2004, 2007; NIMH, 2008). Embo-
ra existam controvérsias sobre esse aspecto (BIRMAHER; BRENT,
2005; BRIDGE et al., 2007; KURIAN et al., 2007; MAIA; ROHDE,
2007; SAFER, 2006; SCAHILL, 2005) e não exista ainda uma palavra
final sobre a indicação dessas drogas para crianças e adolescentes, elas
continuam sendo utilizadas. Nos últimos cinco anos, órgãos reguladores
como o Food and Drug Administration (FDA) (FDA, 2004; 2007), nos
Estados Unidos e o Medicines and Healthcare Products Regulatory
Agency (MHRA) (MHRA, 2003), no Reino Unido, têm alertado os usu-
ários e monitorado relatos sobre efeitos adversos, exigindo das indús-
trias farmacêuticas que constem na bula destes medicamentos advertên-
cias sobre os possíveis efeitos colaterais
185
.
Poderíamos questionar se, da mesma forma que ocorreu, e ainda
ocorre, com os benzodiazepínicos, os medicamentos antidepressivos não
estariam sendo prescritos muitas vezes para “acalmar o médico”, que
tem a função social de intervir sobre o sofrimento e não se apto a
184
O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença (SILVEIRA, 2000), onde analisa a
doença de “nervos” a partir de pesquisa com mulheres no interior da Ilha de Santa Catarina.
185
Atualmente vários medicamentos antidepressivos têm na sua bula, no item “efeitos colate-
rais”, a descrição da possibilidade aumentada de suicídio com o uso da medicação.
200
abordar outros aspectos da vida do doente relacionados à sua dor física
ou psíquica que não seja o biológico. Ou ainda, se não estaríamos “a-
calmando” a dor resultante da exposição do indivíduo a conflitos soci-
ais, que se tornam mais facilmente contornados com medicamentos do
que com questionamentos sobre determinadas situações de vida que
estão gerando o sofrimento físico e psíquico.
Poderíamos pensar também que essa dificuldade em lidar com os
outros fatores, além do biológico, que contribuem para o aparecimento
dos sintomas hoje tratados com os antidepressivos, esteja sendo explo-
rada pela indústria farmacêutica que, para vender seu produto, “vende”
também a ideia de que esses medicamentos “consertam defeitos inatos”,
prometendo a “cura” dos distúrbios pretensamente gerados a partir des-
ses “defeitos”.
Essas são algumas considerações sobre o uso ampliado dessas
drogas chamadas “antidepressivos”, e, ao que parece, um uso também
abusivo. Como a questão do uso abusivo está relacionada à medicaliza-
ção de situações de vida, como apontam Illich e Conrad, faço considera-
ções sobre essa situação a partir desses autores a seguir. A medicaliza-
ção pode ser definida como um processo em que problemas que faziam
parte de outros âmbitos da vida se tornam problemas médicos e devem
ser abordados pela medicina ou profissões relacionadas à área da saúde.
Illich, na década de 1970, escreveu sobre a questão da industrialização e
da medicina provocando iatrogenias em nome de intervenções para res-
tabelecer a saúde, e Conrad tem apontado questões contemporâneas do
processo de medicalização.
5.3 MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: A DOR REDUZIDA AO BIOLÓ-
GICO – CONSIDERAÇÕES DE ILLICH A CONRAD
5.3.1 Medicalização
Em sua obra sobre a medicalização da vida, Illich (1977[1975])
aponta para as consequências indesejáveis (ou iatrogenias) causadas nos
indivíduos e na sociedade como um todo pela intervenção médica e pela
indústria (de equipamentos, de medicamentos) que a acompanha. Embo-
ra algumas colocações suas possam ser relativizadas (tais como seus
questionamentos sobre a validade dos exames de rastreamento para
câncer de mama e dos procedimentos para o controle da hipertensão
arterial sistêmica, intervenções estas que têm apresentado melhoras na
qualidade e na expectativa de vida de muitas pessoas), outras permane-
cem pertinentes. Uma delas, que pretendo relacionar ao uso dos medi-
201
camentos denominados “antidepressivos”, é a sua abordagem em rela-
ção ao reducionismo da dor a causas biológicas para que seja abordada
medicamente apenas em seu aspecto físico.
É certo que desde os tempos mais antigos o homem busca palia-
tivos para amenizar a dor (física ou manifesta através de tristeza, raiva
ou outras formas), quer seja através de medidas mecânicas (calor ou frio
no local de uma lesão, por exemplo), de rituais ou de substâncias como
o ópio, a folha de coca, as bebidas alcoólicas, entre outras (ver Capítulo
2). No entanto, Illich considera que a partir do desenvolvimento indus-
trial a dor passa a ser algo reduzido ao aspecto biológico, desconside-
rando outras dimensões que a acompanhavam nas visões tradicionais, e
esse reducionismo seria um tipo de iatrogenia. Esse reducionismo faria
parte da “iatrogênese estrutural” provocada pela medicina da Era Indus-
trial, que provoca também a “iatrogênese clínica” e a “iatrogênese soci-
al”. Embora meu interesse seja principalmente a questão da dor, que
esse autor inclui na iatrogênese estrutural, também serão abordadas
algumas questões relacionadas aos outros dois tipos de iatrogênese a-
pontadas por Illich, relacionando-as ao uso de antidepressivos.
Sobre a primeira das iatrogêneses, Illich destaca que o cuidado
médico à saúde pode se tornar uma fonte de dependência: cada um perde
a capacidade de se autocuidar, e o médico torna-se um “cuidador eter-
no”. Quanto mais aumentam os serviços médicos, mais se perde a auto-
nomia (que seria um constituinte importante da saúde), provocando-se
uma iatrogenia (ILLICH, 1977 [1975], p.15).
Sobre esse aspecto, ao abordar a questão do tratamento da de-
pressão em indivíduos de diferentes etnias, Karasz (2004) encontrou em
seu estudo diferenças na forma como mulheres casadas de origem euro-
americana e mulheres casadas de origem sul-asiática, ambos os grupos
vivendo em Nova Iorque, abordaram esse problema de saúde. Entre as
primeiras, as explicações para o problema foram relacionadas a causas
principalmente “neurológicas” e “hormonais”, e a referência à procura
de profissionais (médicos ou psicólogos) para resolver o problema foi
maior do que no outro grupo. Entre as mulheres sul-asiáticas, as causas
do problema foram relacionadas mais a problemas sociais e morais, e,
embora também tenham feito referência à procura de ajuda profissional,
elas relataram a autoajuda ou o pedido de auxílio a seus maridos, mães,
filhas ou outros parentes mais frequentemente do que o primeiro grupo.
Segundo o autor, essas diferenças refletem o contexto sociocultu-
ral em que cada um dos grupos tem origem. Se pensarmos que as sul-
asiáticas compartilham, além de valores da época atual, valores que têm
origem na época pré-industrial, mais do que as mulheres euro-
202
americanas, que estão imersas na cultura industrializada da América,
podemos nos remeter à questão da perda de autonomia apontada por
Illich o contexto dessa última cultura. As mulheres americanas não se
remetem ao seu grupo social imediato na busca de solução para o pro-
blema da depressão, ao passo que as asiáticas, mesmo não negando a
possibilidade de ajuda médica, buscaram apoio na rede familiar.
Outros aspectos apontados por Illich, ainda na iatrogênese clínica,
são: a “multidão de efeitos secundários, porém diretos da terapêutica”
(p.33) que tem a ver com os efeitos relacionados à técnica incorporada à
medicina, como, por exemplo, os efeitos colaterais de medicamentos e
cirurgias ou uma “não-doença” iatrogênica: um falso diagnóstico. Aqui
poderíamos pensar nos limites imprecisos dos diagnósticos novos para
os quais são preconizados os medicamentos antidepressivos (depressão,
síndrome do pânico, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade,
fibromialgia, entre outros), muitas vezes incluindo situações para as
quais o indivíduo teria a capacidade de reação e adaptação com outro
tipo de auxílio que não o médico. Teríamos então os dois tipos de iatro-
genia descritos por Illich: a possibilidade de receber um diagnóstico de
doença sem que ela exista e a possibilidade de expor o paciente aos
efeitos colaterais dos medicamentos. Um aspecto importante, segundo o
autor, é que o erro (tanto do diagnóstico como do tratamento) agora
toma um status não clínico, não é de responsabilidade do médico, passa
a ser impessoal:
Com a transformação do médico artesão, que e-
xercia sua habilidade em indivíduos que conhecia
pessoalmente, em técnico que aplica regras cientí-
ficas a categorias de doentes, as falhas adquiriram
novo status, anônimo e quase respeitável. [...] A
despersonalização do diagnóstico e da terapêutica
transferiu as falhas do campo ético para o âmbito
do problema técnico. (ILLICH, 1977 [1975], p.37)
A citação acima destaca a mudança de papel do médico: antes ele
era responsável pelo medicamento que escolhia; hoje ele ainda é respon-
sável, mas a maior parte da responsabilidade sobre os efeitos indesejá-
veis da droga está nas mãos do laboratório durante o processo de valida-
ção da droga. A necessidade de que o médico fique alerta aos efeitos
iatrogênicos diretos de uma droga é pontuada no livro de farmacologia
Goodman e Gilman em sua 9ª edição:
É difícil quantificar o problema das reações ad-
versas para os fármacos comercializados. Estima-
se que 3 a 5% de todas as hospitalizações possam
ser atribuídas a reações medicamentosas adversas,
203
resultando em 300.000 hospitalizações anuais nos
EUA. Uma vez hostipalizados, os pacientes têm
cerca de 30% de chance de apresentar um efeito
indesejável relacionado à terapia medicamentosa
[...] (JICK, 1984). As reações medicamentosas
adversas são a causa mais comum de doença ia-
trogênica (LEAP et al., 1991).
186
(NIES; SPIEL-
BERG, 1996, p.42)
Segundo Spielberg e Nies (1996, p.42), o médico deve registrar
efeitos indesejáveis que tenha observado sobre a droga e comunicá-los
aos órgãos reguladores, que possuem um sistema de registro e controlam
esses possíveis efeitos colaterais a partir dos relatos de profissionais de
saúde. O papel do médico em relação aos efeitos colaterais de drogas
recém lançadas no mercado, como aponta Illich, torna-se anônimo, pois
a responsabilidade fica com os técnicos que as desenvolveram. Os estu-
dos feitos com medicamentos antes de lançá-los para uso regular no
mercado tentam identificar possíveis efeitos colaterais, mas, como já foi
dito anteriormente, muitas vezes esses efeitos podem ser minimizados,
pois só passam a ter importância quando utilizados em um número
grande de indivíduos, ou não são valorizados pela indústria, como lem-
bra Angell (2007).
Sobre a iatrogênese social, Illich a considera um “efeito social
não desejado e danoso do impacto social da medicina, mais do que a
ação técnica direta” (ILLICH, 1975, p.43). Segundo esse autor, a sub-
missão aos serviços médicos tira a autonomia do indivíduo em relação a
trabalho, lazer, alimentação e repouso, pois o saber médico passa a de-
terminar o que é certo em todas as áreas da vida. Com isso, a capacidade
de adaptação ao meio (um dos requisitos para a saúde) torna-se difícil.
Um dos aspectos relacionados a essa situação é o aumento de gastos
com recursos técnicos para a saúde (inclusive coletivo, dos governos e
planos de saúde), pois para seguir o que é preconizado pela medicina
moderna é necessário consumir seus produtos, ou não se consegue um
“bom estado de saúde”. Sobre esse aspecto o autor afirma:
A medicalização do Orçamento
187
é indicador de
uma forma de iatrogênese social na medida em
que reflete [...] a ilusão de que o grau de cuidados
no campo da saúde é representado pelas curvas de
distribuição dos produtos da instituição médico-
186
A referência “(JICK, 1984)” e “(LEAP et al., 1991)” fazem parte do trecho escrito no
original por Nies e Spielberg (1996).
187
Conforme o original.
204
farmacêutica. [...] Se as despesas médicas aumen-
taram a uma taxa de 14% ao ano durante os anos
sessenta, as despesas farmacêuticas aumentaram a
uma taxa de 16-17%. [...] A multiplicação de as-
sociações permite ao médico evitar a procura de
uma etiologia distante e orientar a ação no tra-
tamento dos sintomas; é também um sintoma da
invasão do modesto saber médico tradicional por
um pseudo-saber farmacêutico. (ILLICH, 1977
[1975], p. 50 e 51, grifo meu)
Relacionado ao aumento dos gastos de orçamento com medica-
mentos estaria outro tipo de iatrogênese social, o “superconsumo” de
medicamentos, que prejudica a sociedade e estaria sendo promovido,
segundo Illich, pela “invasão farmacêutica” através da indústria de me-
dicamentos. Dentre os medicamentos mais consumidos, lembra que os
tranquilizantes são aqueles que têm seu uso ampliado mais rapidamente,
e apresenta os seguintes dados sobre essas drogas:
Nos Estados Unidos, os produtos que atuam sobre
o sistema nervoso central [...] representam 31%
das vendas globais. [...] O consumo de substâncias
prescritas que produzem hábito ou dependência
aumentou 290% de 1962 para cá. Durante esse pe-
ríodo, o de bebidas alcoólicas cresceu apenas 23%
per capita. (ILLICH, 1977 [1975] ,p. 52)
Para a prescrição das drogas que atuam no SNC, nessa época
existe regulamentação que prevê a necessidade de prescrição médica, e
o autor relaciona o abuso da prescrição médica à influência que a indús-
tria farmacêutica exerce sobre os profissionais médicos desde a sua
formação e durante seu período de atuação profissional.
Sobre medicamentos em geral, em 1972 a indústria farmacêutica
teria gasto em publicidade e promoção comercial, cerca de 4,5 mil dóla-
res para cada um dos seus 350 mil médicos clínicos em divulgação (IL-
LICH, 1977 [1975], p.54-57), o que representava cerca de 1,6 bilhões de
dólares ao ano naquela ocasião. Dados mais atuais sobre investimentos
na divulgação junto aos profissionais médicos, segundo Márcia Angell,
nos remetem à cifra de 11 bilhões de dólares gastos apenas em amos-
tras grátis de medicamentos “doados” a eles no ano de 2001. (AN-
GELL, 2007, p.131). Ela complementa:
Naquele mesmo ano [2001], os laboratórios far-
macêuticos enviaram cerca de 88.000 representan-
tes de vendas a consultórios médicos para distri-
buir as amostras grátis, além de muitos presentes
pessoais [...]. A indústria alega ter gasto outros
205
US$ 5,5 bilhões nesta atividade, um valor que me
parece baixo demais, já que é improvável ter cus-
tado somente US$ 62.000 US$ 5,5 bilhões divi-
didos por 88.000 representantes para cobrir os
salários, benefícios, despesas de viagem e presen-
tes de cada um dos representantes. (p.131-132)
Esses são os números que as empresas admitem gastar em marke-
ting. Angell (2004) lembra que em tais gastos não estão incluídos aque-
les referentes ao “apoio” financeiro e à promoção de eventos educacio-
nais (congressos, simpósios, palestras, entre outros), que “geralmente
não são considerados atividades promocionais” (ANGELL, 2007,
p.138). As atividades “educacionais” da indústria acabam por influenci-
ar de forma inquestionável a conduta médica, levando à situação apon-
tada na década de 1970 por Illich e hoje corroborada por autores como
Angell (2007), Conrad (2007), Greene (2007), Pignarre (1999, 2001),
entre vários outros.
Resultante das duas primeiras formas de iatrogênese social está o
“controle social pelo diagnóstico”, a terceira forma de iatrogênese social
apontada por Illich. Ele cita como exemplo a “etiquetagem iatrogênica
das diferentes idades humanas”, crianças, mulheres no climatério e ido-
sos, incluídos em categorias que necessitam de cuidado médico especial,
consumindo formas diferentes de terapêutica. Se aqui ele se refere ao
cuidado médico preconizando diferentes condutas e modos de viver a
partir da visão médica, inclui também condutas como a histerectomia
após a idade reprodutiva da mulher, que nessa época era preconizada
mesmo sem a presença de doença no útero. Nas palavras do autor:
condições medicalizáveis, como são a menopausa
ou a presença de um útero na idade em que o es-
pecialista decide que ele é demais. A puberdade, a
depressão, a esterilidade, o alcoolismo, o homos-
sexualismo, a obesidade permitem classificar o
cidadão em categorias de clientes. [...] Em 1960,
96% das mães chilenas alimentavam seus filhos
no seio além do primeiro ano. Em 1970 elas não
eram mais do que 6% e não mais que 20% aleita-
vam seu bebê nos dois primeiros meses. [...] com
a mamadeira transformada em sinal de status, um
novo tipo de controle médico fez-se necessário. A
razão disso é que novas doenças apareceram nas
crianças que não tinham sido alimentadas no seio,
e faltou às mães o conhecimento necessário para
se ocupar de crianças cujo comportamento é dife-
206
rente daquele a que estavam sendo habituadas.
(ILLICH, 1977 [1975], p.59-60)
Essa substituição do leite materno por mamadeiras com leite de
vaca, principalmente industrializado, em pó, a que se refere Illich, teve
grande participação da indústria na década de 1960 no mundo todo. É de
conhecimento comum que não houve pediatra que não tenha sido visita-
do por um representante da indústria que processava esse produto, além
de revistas médicas, congressos e outros meios de divulgação, atribuin-
do vantagens do leite em industrializado em relação ao leite materno
e, inclusive, distribuindo amostras grátis para que fossem fornecidas aos
pacientes (ou às suas mães). Se hoje existe legislação rigorosa sobre a
propaganda das fórmulas que podem substituir o leite materno, naquela
época o conhecimento dos médicos, em especial dos pediatras, sobre
nutrição infantil, esteve nas mãos da indústria de produtos lácteos. Não é
difícil encontrarmos no dia a dia, pessoas que foram influenciadas por
essa conduta. pouco tempo atendi uma paciente que sofre de crises
convulsivas desde o nascimento, mas que, segundo ela, teve esse
diagnóstico por volta dos sete anos de idade. Embora sua mãe tenha
percebido algo estranho na primeira semana de vida, ao buscar ajuda
médica foi orientada a suspender a amamentação ao seio, pois o profis-
sional atribuiu as alterações relatadas pela mãe a “problemas com o leite
materno” e introduziu a alimentação com outro leite.
Embora o aleitamento materno não seja o tema deste trabalho, es-
se é um fato amplamente reconhecido que inclui as relações da indústria
com a prática médica e que levou algumas décadas para ser revertido. A
informação divulgada pela indústria aos médicos interveio sobre a vida
de inúmeras pessoas que acreditavam (ou pelo menos seus pais e mães)
estar recebendo orientações validadas cientificamente e orientadas para
uma “saúde melhor”, mas o principal “lucro” (no sentido literal e no seu
sentido mais amplo, não monetário) resultante dessa conduta foi para as
indústrias. Infelizmente, parece que os profissionais médicos se esque-
cem de exemplos como esse rapidamente. Aceitam os brindes, as infor-
mações “científicas” e a “educação” profissional oriunda das empresas
como isenta de valores e interesses, sem questioná-los, e hoje talvez
estejamos prescrevendo medicamentos (como os antidepressivos) para
situações que são categorizadas como “doenças” a partir dos critérios
divulgados por essa mesma indústria em nome de uma saúde que prova-
velmente não é “saudável”.
Poderíamos questionar se hoje não está ocorrendo a medicaliza-
ção de sintomas como a tristeza e a ansiedade ou o medo, que têm sido
apontados como problemas médicos na depressão, na síndrome do pâni-
207
co, na fobia social, entre outras condições hoje categorizadas como “do-
ença”.
Outros tipos de iatrogênese social são apontados por Illich: a in-
tervenção em nome da prevenção de doenças, causando ansiedade (co-
mo no caso dos exames de check-up) e gerando novas demandas médi-
cas que alimentam a indústria tecnológica (de equipamentos, exames e
medicamentos); o desenvolvimento de técnicas para prolongar a vida a
qualquer custo (através de máquinas, equipamentos médicos ou medi-
camentos), segundo ele hoje tentando substituir feitos heróicos que ante-
riormente eram atribuídos aos reis, feiticeiros ou outros com poderes a
mais do que os simples mortais, mas nem por isso evitando a morte de
forma definitiva (pelo contrário, às vezes prolongando o sofrimento)
188
;
e, por último, a “eliminação do status de saúde graças à multiplicação
ilimitada dos papéis de doente”, inclusive formando categorias que in-
cluem as pessoas com condutas socialmente indesejadas, que, ao rece-
berem um diagnóstico médico que as incluam, passam a poder ser con-
troladas pela sociedade.
Sobre esse último aspecto, da inclusão das pessoas em diferentes
categorias médicas a partir de um diagnóstico, “multiplicando os papéis
de doente”, vale a pena lembrar as considerações de Conrad (2007) ao
abordar o tema da medicalização da sociedade. Ao afirmar que a medi-
calização “descreve um processo pelo qual problemas não médicos pas-
sam a ser definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em
termos de doenças (illness) ou desordens” (2007, p.4), ele se refere a
esse mesmo tema.
Conrad discorre sobre os fatores que estariam dando suporte para
a expansão da jurisdição médica e sobre as implicações sociais desse
desenvolvimento, destacando que seu interesse não é questionar se re-
almente existe uma enfermidade (disease), mas sim considerar as doen-
188
Illich lembra que muitas vezes a arte médica de curar dá lugar à ciência que visa “salvar a
humanidade”, para a qual importa mais administrar o tratamento adequado preconizado pela
ciência do que a cura ou o alívio do sofrimento. Ele também destaca que aliviar o sofrimento
não pode ser apenas um papel atribuído à medicina, outros setores e pessoas da sociedade
também podem exercer esse papel (ILLICH, 1977 [1975], p.112-114). Sobre o prolongamento
da vida a qualquer custo, lançando mão de recursos técnicos, a partir de 2009 o Conselho
Federal de Medicina tem realizado discussões com os médicos no Brasil no sentido de refletir
sobre questões éticas no prolongamento da vida a qualquer custo em pacientes que não têm
expectativa de vida (doenças neoplásicas em estado terminal, doenças degenerativas em esta-
dos avançados – como no caso de demências em que não há mais possibilidade de alimentação
via oral e movimentação do indivíduo, entre outras situações que sabidamente não são reversí-
veis, ao contrário, de forma inquestionável estão encaminhando o indivíduo para a morte).
208
ças ou síndromes (ilness)
189
que estão relacionadas a comportamentos,
estados psíquicos ou condições corporais e que atualmente têm um di-
agnóstico ou tratamento médicos. Mas como um problema se torna me-
dicalizado? Para ele,
A chave para a medicalização é a definição [do
problema]. Ou seja, um problema é definido em
termos médicos, descrito utilizando uma lingua-
gem médica, entendido através da adoção de uma
rede de explicação médica ou ‘tratado’ com inter-
venções médicas. (CONRAD, 2007, p.5)
No entanto, Conrad lembra que, embora a maioria dos trabalhos
sobre medicalização tenha um olhar crítico, em alguns casos, como na
epilepsia, tornar um problema médico pode aliviar o fardo daqueles
acometidos por um problema de saúde. Destaca “que medicalização
descreve um processo. [...] Embora ‘medicalizar’ signifique ‘tornar
médico’, e a ênfase analítica tenha sido sobre a supermedicalização e
suas consequências, assumir a supermedicalização [a priori] não é algo
dado em uma perspectiva [de análise]” (CONRAD, 2007, p.5). Ou seja,
quando se fala em medicalização, pode-se estar falando de algo que se
tornou um tema médico, mas não necessariamente de algo que foi torna-
do médico “em excesso”, ou que seja algo maléfico.
As razões para que os problemas se tornem medicalizados não se-
riam resultado apenas da “colonização médica” ou de uma “empreitada
moral”, como afirmam alguns autores, e aqui Conrad inclui essa crítica a
Illich, que fala do “imperialismo médico” como principal causa da me-
dicalização da sociedade. Conrad considera que haveria a contribuição
de outros fatores, como a diminuição da tolerância das pessoas a sinto-
189
Sobre Illness e Disease, a abordagem de Hellman pode nos auxiliar. Segundo esse autor,
illness corresponde àdoença” no seguinte sentido: “o que o paciente está sentindo quando se
dirige ao médico. [....] a definição de doença (illness) não inclui somente a experiência pessoal
do problema de saúde, mas também o significado que a pessoa confere à mesma [...]. Tanto o
significado conferido aos sintomas quanto a resposta emocional aos mesmos são influenciados
pelo background do paciente e sua personalidade, bem como pelo contexto cultural, social e
econômico em que aparecem. Em outras palavras, a mesma “enfermidade” (disease) – como a
tuberculose – ou o mesmo sintoma – dor – podem ser interpretados de maneiras completamen-
te diferentes por dois pacientes provenientes de culturas e contextos distintos. [...] A doença,
assim como outra adversidade qualquer [perda de safra, queda do telhado, etc.], é, normalmen-
te, parte integrante das dimensões psicológica, moral e social de uma cultura em particular”.
Disease corresponderia a “enfermidade”, e “é considerada um desvio dos valores normais,
acompanhada de anormalidades na estrutura e funcionamento dos sistemas e órgãos do corpo
humano. [...] as mudanças anormais [a normalidade é definida através da referência a determi-
nados parâmetros físicos e bioquímicos, tais como peso, altura, níveis hormonais, entre outros],
ou as enfermidades (diseases), são consideradas ‘entidades’, com ‘personalidade’ própria
caracterizada por sintomas e sinais particulares” (HELLMAN, 1994, p.100-104).
209
mas moderados e a condições corporais desconfortáveis, que antes eram
aceitos e agora são reclassificados como enfermidades (diseases)
(CONRAD, 2007, p.6).
Se por um lado o processo de medicalização, por outro pode
haver a desmedicalização, e ele cita como exemplos a masturbação,
considerada um problema médico no século XIX e hoje não mais, e a
homossexualidade, que deixou de ser um problema médico, mas atual-
mente corre o risco de ser remedicalizada. Tanto um como outro proces-
so seriam resultado de uma ação coletiva, pois, apesar do papel central
dos médicos, tanto os pacientes como as pessoas leigas (formando asso-
ciações ou atuando em movimentos sociais, por exemplo) influenciam
na medicalização ou desmedicalização. É certo que muitas vezes as
associações de pacientes e familiares, ou mesmo de simpatizantes, são
influenciadas pelas indústrias, como assinalam Moynihan e Cassiel
(2006) em relação ao Distúrbio de Déficit de Atenção e Hiperatividade,
ou próprio Conrad (2007), sobre esse mesmo tema.
A partir da análise de vários estudos que abordam o tema da me-
dicalização (incluído o de Illich), Conrad aponta os seguintes fatores
influenciando o processo de medicalização: (a) o suporte da profissão
médica; (b) a descoberta de novas etiologias
190
; (c) a viabilidade e van-
tagens de [novos] tratamentos; (d) a cobertura do tratamento da situação
medicalizada pelo seguro médico; e (e) a presença de indivíduos ou
grupos que promovam ou modifiquem as situações médicas. Por outro
lado, aponta também os fatores que podem coibir tal processo: (a) as
definições concorrentes para esse mesmo problema; (b) os custos do
tratamento médico; (c) a ausência de suporte da profissão médica [con-
siderando o problema como não pertencendo ao seu âmbito de ação]; e
(d) a limitação da cobertura dos seguros médicos para o problema
(CONRAD, 2007, p.7).
Se esses são os fatores que agem diretamente sobre o processo de
medicalização, as origens para o encorajamento desse modo de ver os
problemas, além das questões de interesse da indústria em promover
determinados produtos e procedimentos visando o lucro, estariam rela-
cionadas a outras questões. Seriam elas: uma continuada (permanen-
te) na ciência, na racionalidade e no progresso; o poder e prestígio cres-
190
Aqui há de se diferenciar situações em que se “descobre” uma etiologia, explicando uma
relação causal a partir do conhecimento científico (FAGOUT-LARGEAULT, 2006), daquelas
em que, a partir de um resultado observado, se infere uma relação causal, como no caso da
divulgação da causa dos sintomas depressivos (físicos ou psíquicos) como resultado de uma
alteração inata de serotonina (FAGOUT-LARGEAULT, 2006).
210
centes da profissão médica
191
; a tendência americana para a solução
tecnológica e individual dos problemas [visão essa que influencia outros
países]; e, de uma forma geral, uma tendência humanitária existente nas
sociedades ocidentais [tentando minimizar o sofrimento] (CONRAD,
2007).
Na crítica ao processo de supermedicalização dos problemas de
vida, um aspecto importante a ser apontado: a “fonte dos proble-
mas” é o indivíduo, e não a sociedade. A busca de soluções para os
problemas também se concentra no indivíduo, e não se procura soluções
no contexto social. O aumento da jurisdição médica aumenta o controle
social médico exercido pela profissão: apesar de existirem várias defini-
ções do que seria o “controle social médico”, “o maior poder do controle
social vem da autoridade de definir certos comportamentos, pessoas e
coisas” (SCHNEIDER, 1992, p. 8, apud CONRAD, 2007, p.6). Dessa
forma, fica difícil um questionamento individual em relação a determi-
nado procedimento, como no caso da prescrição de um medicamento. Se
toda uma categoria médica, que tem credibilidade alta, preconizando
determinada conduta terapêutica (muitas vezes influenciada pela indús-
tria), como o paciente pode não aderir ao tratamento? A resposta talvez
esteja na reação que a sociedade, através de seus diferentes segmentos
(outros profissionais, associações de pacientes, órgãos legisladores),
possa exercer questionando determinadas categorizações e condutas,
como em parte aponta Conrad.
Especificamente sobre a ampliação do uso de psicofármacos,
Conrad destaca o pagamento desses medicamentos pelos planos de saú-
de para tratar problemas psiquiátricos e o não pagamento de outros tra-
tamentos, como a psicoterapia, além da divulgação de determinadas
situações que podem ser tratadas por essas drogas diretamente ao públi-
co leigo, levando-o a solicitar ao médico a droga a partir daquilo que foi
191
Em pesquisa realizada pelo Instituto GFK no Brasil e no mundo em 2009, as profissões que
mais inspiram confiança na população são os bombeiros, que lideraram o ranking em todos os
países (95% dos votos no Brasil), seguidos dos carteiros (90% dos votos no Brasil) e dos
médicos (82% no Brasil). Disponível em: <http://www.ecaderno.com/noticia.php?id=778>.
Acesso em: 23 fevereiro 2010.
Em pesquisa realizada pelo IBOPE em 2005 no Brasil, avaliando a confiança dos brasileiros
em determinadas instituições, o primeiro lugar, com 81% dos votos de confiança foi para os
médicos, contra apenas 16% afirmando que não confiam, e 3% não opinaram. Dentre as 18
instituições que estavam incluídas na pesquisa, as cinco seguintes, em ordem decrescente de
confiabilidade, após a Medicina foram: a Igreja Católica (71% afirmaram confiar), as Forças
Armadas (69% afirmaram confiar), os Jornais (63% afirmaram confiar), Engenheiros (61%
afirmaram confiar), Televisão (57% afirmaram confiar) (Disponível em:
<http://www.ibope.com.br/opp/pesquisa/opiniaopublica/download/opp098_confianca_portalib
ope_ago05.pdf>. Acesso em: 22 fevereiro 2010).
211
divulgado na mídia
192
. Sobre essa última forma de abordagem, divul-
gando o tema para o público em geral, com o apoio de profissionais
médicos reforçando a credibilidade de determinado procedimento, e, em
consequência, tornando médica (medicalizando) uma situação de vida
que provavelmente não caberia nessa categoria, o autor exemplifica com
o caso do Paxil® (paroxetina). Aprovado em 1996 para depressão, após
o lançamento do Prozac® (fluoxetina), encontrou um mercado saturado,
com grande venda dessa última droga, além de outros antidepressivos. A
empresa
193
direcionou sua propaganda para o “mercado da ansiedade”,
incluindo a “síndrome do pânico
194
e o “transtorno obsessivo compul-
sivo” (em um primeiro momento), e, em seguida, para o “transtorno de
ansiedade generalizada” (TAG) e “transtorno de ansiedade social”
(TAS) ou “fobia social”. Esses dois últimos transtornos contribuíram
para medicalizar emoções como a preocupação e a timidez. Pessoas que
anteriormente se consideravam “tímidas” e “ansiosas”, mas não “doen-
tes”, passaram a se identificar com os critérios incluídos nessas catego-
rias e foram em busca de tratamento (CONRAD, 2007, p.16-18).
Por outro lado, uma das formas de respaldo da categoria médica
veio através do DSM, que em sua terceira versão, de 1980 (DSM III),
incluiu o TAG e o TAS, quando esses diagnósticos ainda eram mal defi-
nidos e obscuros, possibilitando a expansão dessas “enfermidadese a
inclusão de muitas pessoas em função da falta de precisão dos critérios.
No DSM IV, essas categorias foram mantidas. Assim que o Paxil
®
foi
aprovado para esses distúrbios, a empresa investiu pesado em propagan-
da, misturando visões de experts no assunto com as “vozes dos pacien-
tes”, criando a ideia de que esses transtornos podem “acontecer com
qualquer um”. Uma das estratégias utilizadas pela empresa foi a seguin-
te:
Logo que a FDA aprovou o uso do Paxil
®
para o
TAS, Cohn e Wolfe (relações públicas da firma
que estava trabalhando para a empresa que na é-
poca correspondia à GlaxoSmithKline) iniciaram
a colocação de posters em pontos de ônibus com o
seguinte slogan, ‘Imagine ser Alérgico a Pesso-
as
195
’. Mais tarde [nesse mesmo ano de 1999],
uma série de anúncios [com os seguintes dizeres
192
Sobre esse aspecto ver página 194 deste trabalho. Autores que tratam desse tema: APPL-
BAUM, 2006; AZIZE, 2002; CONRAD, 2007; PILGRIM, 2007; TURNIQUIST, 2002.
193
Na época, SmithKlineBeecham, hoje GlaxoSmithKline.
194
Sobre a síndrome do pânico e sua categorização como um problema médico, ver o trabalho
de Pereira (2002), “O fenômeno do pânico: uma análise de sua construção socio cultural”.
195
Letras maiúsculas no original, grifo meu.
212
foi também distribuída] ‘A eficácia do Paxil® em
ajudar aqueles que sofrem do TAS alimentou fes-
tas e palestras em público’. (KOERNER, 2002,
p.61 apud CONRAD, 2007, p.18)
O diretor de produtos do Paxil, Barry Brand, disse
‘[o] sonho de todo publicitário é encontrar um
mercado não identificado ou desconhecido e de-
senvolvê-lo. Isso é o que estamos aptos a fazer
com o transtorno de ansiedade social’. (VEDAN-
TAM, 2001 apud CONRAD, 2007, p.18)
Assim, Conrad afirma que a empresa redefine esses transtornos
(TAS e TAG) como “comuns”, retirando o estigma existente em outras
doenças psiquiátricas, e ao mesmo tempo “anormais”, que podem ser
tratados com o Paxil®. Estimula, inclusive, que as pessoas se autoapli-
quem um teste com várias perguntas, divulgado pela empresa, para se
autodiagnosticarem e procurarem um médico que possa confirmar o
diagnóstico e prescrever o tratamento medicamentoso. Como é muito
difícil que alguém não tenha algum dos sintomas descritos no teste,
como, por exemplo, “medo de falar em público”, a possibilidade de
expansão do diagnóstico para um grande número de pessoas torna-se
muito provável. O psiquiatra Murray Stein, da Califórnia, utilizou o
termo psicofarmacologia cosmética para drogas como o Paxil®
(CONRAD, p.19). Qualquer um poderia se “beneficiar” desse tipo de
medicamento, melhorando sua performance, da mesma forma que as
pessoas utilizam o álcool em eventos sociais, como apontado anterior-
mente.
Os esforços para estabelecer o Paxil® como droga para os distúr-
bios de ansiedade foram exitosos: em 2001 ele era um dos três medica-
mentos mais conhecidos junto, com o Viagra® e o Claritin®, e suas
vendas foram de aproximadamente 2,1 bilhões de dólares nos Estados
Unidos e cerca de 2,7 bilhões de dólares no mercado global. Com o
aparecimento de eventos não esperados, como os relatos de síndrome de
abstinência em usuários e risco de suicídio entre adolescentes que utili-
zavam a droga, algumas restrições foram feitas ao seu uso, mas a contri-
buição da indústria para o processo de medicalização da ansiedade
aconteceu: os transtornos de ansiedade são hoje uma categoria diagnós-
tica. Aqui, da mesma forma que no caso da difusão dos benefícios da
amamentação artificial na década de 1960, quem “lucrou” (novamente
nos dois sentidos) foram as empresas.
Esse exemplo do Paxil® demonstra como a indústria é um “faze-
dor de mercado médico”, e não um fabricante de drogas. Essa mu-
dança está relacionada em parte com o ato da FDA em 1997, que permi-
213
tiu uma ampliação das recomendações “educacionais” sobre doenças e
desordens, incluindo os usos off label
196
, e não apenas orientações sobre
a droga em si. (CONRAD, 2007, p.18-19). Se a indústria vem invadindo
o espaço social de determinação do que é ou não um problema médico,
outros fatores, tais como os apontados acima por Conrad podem estar
contribuindo para essa “invasão”. A questão humanitária das sociedades
atuais, evitando o sofrimento e a dor, poderia ser alegada como justifica-
tiva para medicamentos que intervenham sobre situações que geram
esses desconfortos. Por outro lado, pode estar havendo um excesso de
intervenções sobre a dor e o sofrimento, mesmo aqueles antes conside-
rados leves, tentando eliminá-los a qualquer custo da vida cotidiana, e a
promessa de “pílulas mágicas” agindo sobre o corpo biológico feita pela
indústria farmacêutica passa a ser vendida junto com muitas drogas de
prescrição médica. No próximo subitem, abordo a questão da dor redu-
zida ao corpo biológico e as intervenções da era tecnológica, a partir das
considerações de Illich.
5.3.2 A dor reduzida ao biológico
A iatrogenese estrutural é referida por Illich como sendo a tercei-
ra forma de consequência indesejável da medicina da era industrializada.
Para o autor, a saúde “supõe a faculdade de assumir uma responsabili-
dade pessoal diante da dor, da inferioridade, da angústia e finalmente da
morte”, sempre dentro da cultura e da sociedade em que se está inserido
e que acabam por nos transformar (ILLICH, 1977 [1975], p.121). Ele
acrescenta:
Toda cultura elabora e define um modo particular
de o ser humano ser sadio, de gozar, de sofrer e de
morrer. Todo código social é coerente com uma
constituição genética, uma história, uma geografia
dadas e com a necessidade de se confrontar com
as culturas vizinhas. O código transforma-se em
função desses fatores, e com ele se transforma a
saúde. [...] cria o sentido que o homem ao so-
frimento, à enfermidade e à morte. (p.122, grifo
no original)
A cultura seria tanto mais saudável, para Illich, quanto mais for-
necesse “chaves” para a interpretação dessas três ameaças (sofrimento,
enfermidade e morte) que reforcem a vitalidade de cada indivíduo, uma
196
Off label”: uso ainda não regulamentado pelas agências reguladoras como o FDA, mas que
já é feito no âmbito clínico pelos médicos.
214
característica que estaria presente nas culturas tradicionais e que estaria
sendo desprezada na cultura industrial da qual a medicina moderna, tal
como conhecemos hoje, faz parte. Na instituição médica atual, a ideia
central é a de que “o bem estar exige a eliminação da dor, a correção de
todas as anomalias, o desaparecimento das doenças e a luta contra a
morte”, exigindo para que sejam atingidos esses objetivos o consumo de
produtos médicos e a submissão a uma “constante reparação” (ILLICH,
1977 [1975], p.123).
Se nas culturas tradicionais existem regras para diferentes aspec-
tos da vida (comer, dormir, amar, divertir-se, sofrer e morrer), a “eficá-
cia” desses programas “repousa na integração de aspectos técnicos,
sociais e simbólicos”, que permite um “programa de ação pessoal”. Na
cultura industrial, a medicina passa a “dar instruções” sobre como cada
um deve agir e se comportar, influenciando de forma coletiva o compor-
tamento que inclui uma “perda de confiança na recuperação e adaptação
biológica”, deixando à terapêutica médica a responsabilidade pela ma-
nutenção da saúde. O resultado dessa situação seria uma “regressão
estrutural da saúde”, que saúde seria compreendida como “poder de
adaptação do ser consciente”. A essa regressão, Illich denomina iatroge-
nese estrutural (p.124 e 125).
Dentre alguns fatores que estariam levando a essa “perda de a-
daptação” (ou “não saúde”), ele aponta para a “alienação da dor”, reti-
rando da dor significados e transformando-a em um problema técnico,
medicalizando-a. E considera que, se inicialmente a dor era vivenciada
não de forma heroica, mas como uma experiência comum e cotidiana,
“pessoal e social, e não artificial e individualista”, ela passa a ser um
problema técnico para o homem industrializado e para a sociedade, que
através da medicina é responsável por “tirar sua dor”. Assim, o indiví-
duo torna-se um consumidor de anestesias, de tratamentos para provocar
insensibilidade, inconsciência, abulia
197
, apatia.
Não que antes o homem não buscasse abrandar a dor física, ou
mesmo outras formas de sofrimento, através das diferentes medicinas
existentes, mas, como lembramos, outros fatores além dos biológicos
eram considerados. No entanto, Illich lembra que a dor, além de se ma-
nifestar no corpo biológico, também funcionava como uma experiência
do inevitável e tinha a eficácia política de limitar a exploração do ho-
mem pelo homem; sabemos que fatores socioculturais modulam a sen-
sação biológica da dor (além de “dizer” como ela deve ser manifestada),
197
Segundo o Dicionário Aurélio, “abulia” significa: “Falta de desejo ou de vontade; incapa-
cidade de tomar decisão; abulomania, disbulia” (FERREIRA, 1980).
215
mas agora a profissão médica decide quais são as dores autênticas, quais
são simuladas e quais são imaginadas.
Segundo Illich, na época em que escreveu essa obra, a história da
medicalização da dor ainda estaria por ser escrita (ILLICH, 1977 [1975],
p.130). Poderíamos questionar se o uso ampliado dos medicamentos
antidepressivos para os vários tipos de dor, desde aquelas mais objeti-
vas, como alguns tipos de dores abdominais crônicas, passando por
outras, como aquelas da fibromialgia, até outras tão subjetivas como as
que geram ansiedade e tristeza, não seria uma parte da escrita dessa
história.
Ele afirma que nos últimos 250 anos (agora 280), houve uma mu-
dança de atitude dos médicos em relação à dor. Esta mudou de posição
em relação a melancolia, culpabilidade, pecado, angústia, medo, fome,
enfermidade. Surgem novas categorias de males: anomalias, depressão,
alienação, invalidez. O que hoje a medicina designa como dor não tem
equivalente na linguagem comum. Lembra que as palavras para nomear
“dor” em várias línguas, também servem para melancolia, tristeza, afli-
ção, ansiedade, vergonha, culpabilidade; palavras que designam dor
corporal também designam trabalho penoso, tortura, punição, doença,
entre outros. Em nossa época, mediada pela intervenção da abordagem
biomédica, é que tem havido uma “medicalização progressiva da lin-
guagem da dor, da resposta à dor e do diagnóstico do sofrimento [que]
está em via(s) de determinar condições sociais que paralisam a capaci-
dade pessoal de sofrer a dor” (p.134).
A partir dessas considerações, Illich faz algumas perguntas: Que
problema a dor suscita em mim e no outro? O que é que não anda bem?
Illlich afirma que ao tornar a dor um problema reduzido ao corpo bioló-
gico, o médico fica surdo a essas perguntas. Importa tirar a dor, intervir
na dor. Quando se retiram os aspectos subjetivos, ocorre um “enfraque-
cimento da dor”, a dor se torna um fato clínico objetivo. Aprende-se a
abafar a interrogação inerente à dor (p.134). Ao tornar a dor e outros
sintomas físicos que traduzem o sofrimento daquele que os apresenta
(quer sejam eles inicialmente causados por traumas físicos ou não) ape-
nas uma manifestação do corpo biológico, fica mais fácil a intervenção
farmacológica.
Para esse autor, “toda doença [física ou psíquica] é uma realidade
criada no seio da sociedade”, e ele faz uma crítica àqueles que tentaram
retirar
os distúrbios mentais do seu status de doença.
[Pois], paradoxalmente, tornaram mais, e não me-
nos difícil levantar o problema [da natureza social
216
do diagnóstico e terapia] em relação à doença em
geral. [...] Todos colocam em oposição a falsa do-
ença mental em oposição à verdadeira doença fí-
sica. (ILLICH, 1977 [1975], p.152)
O que hoje observamos é o uso dos medicamentos antidepressi-
vos não apenas para o tratamento dos sintomas chamados mentais (ou
mais subjetivos e relacionados ao comportamento). Grande parte dos
casos tratados com essas drogas é de pacientes com sintomas físicos:
dores crônicas, alteração do apetite, emagrecimento ou aumento de peso,
choro fácil e repetido (que, embora reflita a tristeza, também é um sin-
toma físico e que pode levar à impossibilidade de realização de ativida-
des corriqueiras), insônia, sudorese nas mãos, entre outros. Ou seja,
temos uma doença “verdadeira” que se apresenta no corpo físico.
Por exemplo: alguém que tenha problemas no trabalho ou na fa-
mília, apresente dores musculares causadas por tensão e, além disso,
trabalhe sentado em frente a um computador durante 8 a 10 horas por
dia, ou na construção civil por cerca de 9 horas diárias. Essa pessoa
passa a fazer uso de anti-inflamatórios ou relaxantes musculares quase
diariamente durante meses (ou anos) para aliviar essas dores. Os pro-
blemas iniciais continuam e, além de o organismo criar tolerância a
essas drogas diminuindo seu efeito analgésico, os níveis de tensão au-
mentam e passam a causar insônia, dores de cabeça, mal-estar gástrico,
provocando diminuição de apetite, náuseas e constipação intestinal tam-
bém de forma crônica. Esse indivíduo passa a utilizar medicamentos
para tratar esses novos sintomas físicos, mas continua sem resolver seus
problemas iniciais e mantém a tensão muscular, além das repercussões
nos outros locais do organismo que são responsáveis pelos outros sin-
tomas, que se aliviaram apenas parcialmente com os novos medicamen-
tos. Depois de um ou dois anos com esses sintomas, caso procure um
médico e os relate a ele, mesmo que o paciente faça a associação de seu
mal-estar com o fator que iniciou a tensão muscular e com seu trabalho,
provavelmente a conduta médica vai ser iniciar o uso de um ISRS, pois,
apesar de uma causa inicial não física associada ao desgaste físico rela-
cionado ao trabalho, nesse momento o paciente tem sintomas crônicos
localizados no corpo físico que provavelmente irão melhorar com o uso
desse tipo de medicamento.
Se pensarmos que esses medicamentos aumentam os níveis da se-
rotonina, que está presente em praticamente todo o nosso organismo,
das células do trato gastrointestinal (TGI), passando pelas plaquetas
(que estão no sangue e, por consequência, em todo o corpo) e no SNC,
vai ser difícil que algum tipo de resposta biológica não ocorra com aque-
217
le que utiliza essa droga. O fato de ocorrer alguma resposta não significa
necessariamente que o problema primário estava nessa substância (pro-
vavelmente, depois de tanto tempo, existem modificações na secreção-
desta), e sim que invariavelmente vai haver uma mudança no metabo-
lismo corporal com seu uso.
Os antidepressivos podem estar fazendo o papel de “analgésicos”
potentes, para situações que antes foram tratadas com analgésicos co-
muns, anti-inflamatórios ou antiespasmódicos, e que acabam por se
tornar “resistentes” a esses medicamentos. Como apontado por Illich, a
dor e o sofrimento causados por situações que estão também relaciona-
das a situações emocionais, culturais e ao modo de vida da sociedade,
são reduzidas ao aspecto biológico, e podem ser tratadas com um medi-
camento potente para a “dor”.
218
6 ANTIDEPRESSIVOS NO LIVRO-TEXTO
6.1 DOS DEPRESSORES” E “ESTIMULANTES” DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL (SNC) ÀS “DROGAS EM PSIQUIATRIA
Nesta primeira parte do capítulo, faço a abordagem dos capítulos
que tratam das drogas atuantes no SNC com pinceladas sobre seu uso
em algumas situações relacionadas aos distúrbios mentais (item 6.1.1),
e, sobre a inserção do capítulo sobre as drogas em distúrbios psiquiátri-
cos na edição, correspondendo à introdução da psicofarmacologia no
livro-texto (item 6.1.2), analisando esses capítulos nas diferentes edições
até a 11ª edição em 2006.
6.1.1 A época “pré-psicofarmacologia” (as edições de 1941 e 1955)
Na (1941) e (1955) edições do livro-texto “As Bases farma-
cológicas da terapêutica”, de Goodman e Gilman, não referência a
drogas denominadas “antidepressivos” ou específicas para tratamento da
depressão ou de sintomas depressivos. Nessas edições referência a
drogas que atuam deprimindo o SNC, no sentido de sua ação farmaco-
lógica, que estão incluídas na seção “Drogas depressoras do SNC” (há
também a seção “Drogas estimulantes do SNC”), indicando o tipo de
ação predominante do medicamento. Sobre as drogas estimulantes do
SNC, os autores referem que elas têm pouca utilização prática na tera-
pêutica, pois embora possuam algumas vezes “efeitos farmacológicos
dramáticos” possuem também efeitos colaterais intensos, e são utiliza-
das principalmente para reverter situações clínicas em que depressão
importante (por outras drogas, por exemplo) do SNC. Além disso, des-
tacam que a ação estimulante não é seletiva no SNC, ela ocorre pratica-
mente em todo o organismo. (GOODMAN; GILMAN, 1941, p.254)
Sobre a outra seção (“Drogas depressoras do SNC”), destacam que
Os depressores são, de longe, os mais importantes,
e representam, entre todos os agentes terapêuticos,
os mais amplamente utilizados. Por conveniência,
os depressores do sistema nervoso central podem
ser divididos arbitrariamente em várias categorias.
Uma classificação simples e prática é a seguinte:
(a) anestésicos gerais [...]; (b) drogas sedativo-
hipnótico-soporíferas [...]; (c) narcóticos [...] e (d)
219
analgésicos e antipiréticos
198
[...] (GOODMAN;
GILMAN, 1941, p.27).
A grande importância dessas substâncias incluídas na seção dos
“depressores” está na sua utilização para a anestesia, na sedação em
ambientes clínicos (como calmantes e indutores do sono), para epilepsia
e, como referido na citação acima, para aliviar a dor (tanto em procedi-
mentos cirúrgicos como em situações clínicas). Como eles próprios
destacam, a classificação em subtipos é didática e arbitrária, e nesse
caso o critério principal para fazer essa classificação foi clínico, baseado
nos usos terapêuticos:
É evidente que existe uma sobreposição conside-
rável nessa classificação. Por exemplo, qualquer
um dos sedativos pode ser administrado em doses
suficientes para causar anestesia. [...] Por outro
lado, os anestésicos gerais produzem analgesia.
No entanto, do ponto de vista terapêutico, os gru-
pos mencionados são bastante distintos. (GOOD-
MAN; GILMAN, 1947 [1941], p.27)
Aqui fica explícita a opção dos autores por essa classificação, a
partir do ponto de vista do uso terapêutico, e eles admitem a arbitrarie-
dade do ponto de vista farmacológico. A classificação, embora se esteja
falando de farmacologia, o parte de critérios exclusivos dessa área, e
sim do uso na prática médica cotidiana. Como destacado por Goodman
e Gilman na edição do livro, a farmacologia é uma ciência que
interage com outras ciências básicas e com a clínica. Portanto, não pode
existir como uma área do conhecimento isolada de outros saberes.
À medida que se discorre sobre determinada droga, que é apre-
sentada segundo as classificações acima citadas, vão sendo elencados
seus vários usos (além do principal, que gerou a classificação) e possí-
veis formas de atuação farmacológica. Além das indicações clínicas
principais (anestésicos, sedativos, analgésicos, narcóticos) referência
de algumas delas para o tratamento de “distúrbios psiquiátricos”. Por
exemplo, ao falar sobre os “barbitúricos”, uma classe de medicamentos
bastante utilizada naquela época, os autores referem:
Algumas das condições mais comuns nas quais a
ação sedativa dessa classe de medicamentos é de-
sejada incluem estados de tensão ansiosa, hiperti-
reoidismo, hipertensão essencial, náusea ou vômi-
tos de origem funcional, enjôo marítimo, labirinti-
198
Antipiréticos ou também chamados antitérmicos são aqueles medicamentos capazes de
reduzir a temperatura corporal, utilizados para baixar a febre. (SCHENKEL; MENGUEL;
PETROVICK, 2004, p.119)
220
te aguda, espasmo de piloro em crianças, coreia,
insuficiência cardíaca, tosse estridente, etc. [...]
Em estados agudos de mania e particularmente no
delirium tremens, os barbitúricos são valiosos e
pode ser necessário empregá-los em doses hipnó-
ticas ou anestésicas por via parenteral. [...] O uso
prolongado de barbitúricos para sedação de paci-
entes com desordens psiquiátricas pode resultar
em confusão e acentuação dos sintomas e deve ser
evitado. (GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941],
p.147, grifos meus)
O termo “depressão” ou “sintoma depressivo”, no sentido de
condição clínica, e não no sentido farmacológico em que é utilizado
nomeando a seção “Drogas depressoras”, quase não aparece nessa se-
ção. Identifiquei-o em duas ocasiões, referindo-se aos usos, efeitos cola-
terais e contraindicações de uso dos brometos
199
:
Pacientes que sofrem de depressão, arteriosclero-
ses e febre estão particularmente sujeitos a desen-
volver uma psicose por brometos em doses da
droga que não parecem excessivas. [...] Obvia-
mente nenhum paciente com um distúrbio mental
ou nervoso não diagnosticado deve receber o ha-
logênio
200
até que seja bem estabelecido, sem dú-
vida (i.e., por uma determinação sérica [da dosa-
gem] de brometo), que a sua doença não é devida
a uma ingestão prévia de brometo. [...] (GOOD-
MAN; GILMAN, 1941, p.160)
O brometo não tem um uso racional no manejo de
pacientes com depressão. [...] Não são analgési-
cos, e seu uso para apaziguar a dor pode causar
delírio. (p. 165, grifos meus)
199
O elemento brometo foi descoberto em 1826 nas águas do Mar Mediterrâneo em Montpelli-
er e, nove anos depois, seu sal de potássio foi introduzido na Farmacopeia Inglesa para o
tratamento da esplenomegalia. [...] Foi observado que seu uso causava sedação. Como era
utilizado com o íon de potássio, a sedação foi atribuída a este último, porque em estudos de
laboratório havia sido observada sedação com a administração de potássio. Em 1850 foi obser-
vada a ação do brometo no SNC após uma intoxicação pela substância. Goodman e Gilman
referem que, se tivesse sido utilizado um sal de sódio com o brometo, mais cedo teria se perce-
bido sua ação sedativa. Foi utilizado para epilepsia pela primeira vez em 1857. Os autores
referem ainda que, na época em que o livro texto foi editado, em 1941, não se sabia qual sua
forma de ação, mas já se sabia que o íon brometo por si só tinha essa ação sedativa. (GOOD-
MAN; GILMAN; 1947 [1941], p. 155)
200
Halogênio é utilizado como sinônimo de brometo, por ser essa uma característica química
sua.
221
Os argumentos em relação à classificação das drogas como “de-
pressoras” e “estimulantes” do SNC continuam os mesmos na edição
(1955), com a inclusão de novas categorias terapêuticas na primeira
subclassificação. Além dos “anestésicos gerais”, das “drogas sedativo-
hipnótico-soporíferas”, dos “narcóticos” e dos “analgésicos”, há a inclu-
são dos “relaxantes musculares de ação central” e dos “antiepiléticos”.
Essa última subcategoria reflete as mudanças de classificação dos dis-
túrbios convulsivos, que agora têm novas drogas disponíveis para a
epilepsia (a categoria médica que mais responde pelo número de casos
de convulsões) e recebe um capítulo novo inteiramente dedicado a elas.
Vale lembrar que em momentos anteriores da história da medici-
na, as convulsões não eram consideradas um problema neurológico e
faziam parte de um amplo leque de doenças relacionadas ao comporta-
mento e até mesmo a questões divinas (PORTER, 2004). Nessa edição a
epilepsia é apresentada como um distúrbio a partir do seu diagnóstico
clínico, confirmado pelo eletroencefalograma
201
, passível de ser tratado
com vários medicamentos, refletindo mais uma vez que a farmacologia
segue as mudanças que ocorrem no âmbito da clínica. Ou seja, em geral,
não são as descobertas na área de farmacologia que determinam a classi-
ficação dos medicamentos ou até mesmo o estudo das drogas em busca
de relações causais para os problemas clínicos. Na maior parte das ve-
zes, as classificações clínicas são responsáveis pela classificação e pes-
quisa dos medicamentos, e, mesmo que ainda não se conheçam como
essas drogas agem farmacologicamente, elas passam a ser classificadas
segundo sua indicação clínica.
O que se faz nos dias de hoje é realizar os chamados estudos clí-
nicos, em que as drogas são testadas em seres humanos antes do seu
lançamento no mercado. Como já foi lembrado por Pignarre (1999), esta
seria uma forma de “apressar” os resultados a partir da clínica, que por
muito tempo ocorreu sem sistematização. Vale lembrar que nos estudos
clínicos, mesmo que se inclua um número “grande” de pessoas, esse
número nunca é tão grande quanto na prática médica cotidiana, e muitas
drogas vão apresentar seus efeitos indesejáveis após anos de uso na
prática clínica. No caso dos anticonvulsivantes, algumas drogas referi-
das nesse capítulo estavam em uso mais de uma década quando o
livro foi lançado, enquanto outras começaram a ser usadas ou tiveram
suas propriedades descritas no início da década de 1950.
201
Os estudos com a utilização do eletroencefalograma iniciaram-se na década de 1930 e por
volta de 1950 estavam disponíveis na prática para o público em geral (Dsiponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Eletroencefalografia>. Acesso em: 30 abril 2010).
222
Embora os estudos com drogas para tratamento de pacientes psi-
quiátricos principiem na década de 1940, eles ainda não estão estabele-
cidos como indicação clínica até a 2ª edição do livro-texto em 1955. Em
consequência disso, não capítulos com drogas específicas para pro-
blemas “mentais” ou “psiquiátricos”. No entanto, menção a usos
“psiquiátricos” ou “neuropsiquiátricos” de algumas das drogas incluídas
na seção “Drogas depressoras do SNC” no decorrer da abordagem de
alguns medicamentos, da mesma forma com ocorria na 1ª edição.
Termos relacionados à “psiquiatria” e “psiquiátricos” aparecem
de forma mais frequente na edição do que na edição anterior do livro,
refletindo que, embora ainda não tenham gerado uma categoria de medi-
camentos, esses termos já estão circulando na linguagem técnica da
medicina da época de forma mais usual. Por exemplo, na parte que trata
dos barbitúricos (drogas às quais são dedicadas várias páginas nessa e
também na edição de 1941), um subtítulo denominado “Usos neuro-
psiquiátricos”, em que os autores explicam o uso dessas drogas tanto
como hipnóticos e sedativos como para realização de um teste “neuro-
psiquiátrico”. Assim é apresentada a droga para uso nesse âmbito:
Em adição ao seu uso como sedativo e hipnótico
para pacientes com estados de tensão ansiosa, ex-
citação aguda, síndromes maníacas, etc., os barbi-
túricos são utilizados com propósito de investiga-
ção em neuropsiquiatria e para o diagnóstico e tra-
tamento de várias desordens mentais. Os termos
narcoanálise e narcoterapia foram cunhados para
designar esses usos especializados. Tanto são ad-
ministradas altas doses por via oral quanto peque-
nas doses por via intravenosa para produzir de-
pressão central próxima à anestesia basal. [...] O
objetivo é estabelecer um estado de relaxamento e
sedação profunda, no qual as inibições são remo-
vidas e o paciente pode ser induzido a comunicar
livremente o material de conflito emocional que
está causando seus sintomas (narcocatarse). Du-
rante esse estado de diminuição da consciência e
aumento da receptividade semelhante à hipnose, a
psicoterapia pode ser oferecida. [...] Os barbitúri-
cos também podem ser administrados junto com
uma amina de ação simpaticomimética, tal como
uma dextro-anfetamina, para o efeito salutar da
combinação sobre o humor, a ansiedade e a ten-
são. (GOODMAN; GILMAN, 1955, p.141)
223
Os autores complementam que a “narcocatarseserve para fazer
o diagnóstico diferencial entre quadros neuróticos (histeria de conversão
e fadiga de combate
202
, entre outros) de quadros psicóticos e para o tra-
tamento dos primeiros, afirmando que não é indicada essa situação para
tratamento de psicoses. Esse exemplo pode nos fazer refletir sobre con-
dutas originadas no âmbito da clínica às quais se associa o conhecimen-
to farmacológico para condutas práticas, mas que, novamente, não têm
sua origem baseada no conhecimento científico farmacológico. O co-
nhecimento farmacológico nesse caso serve apenas para dizer quais
doses provocam o efeito sedativo “de ação central quase próxima da
anestesia”.
Mais uma vez é apresentado o saber relacionado à manipulação
técnica da droga a partir de um uso clínico que não foi direcionado por
um conhecimento farmacológico, mas pelo seu uso empírico, e que, por
essa utilização frequente na prática médica, leva os autores a referirem
seu uso no livro-texto. Fica fácil observarmos o quanto esse tipo de
conduta, com o uso dessas drogas, é prejudicial se pensarmos com o
olhar que possuímos hoje sobre os medicamentos sugeridos em questão:
tanto em relação aos barbitúricos como em relação às “dextroanfetami-
nas”. Todas essas drogas têm efeitos colaterais que não justificam seu
uso clínico habitual. Hoje em dia apenas um medicamento da classe dos
barbitúricos continua sendo prescrito, o fenobarbital, com a indicação
precisa de uso para convulsões. Como sedativos, essas drogas foram
substituídas pelos benzodiazepínicos, que apesar de causarem depen-
dência, possuem efeitos colaterais menos dramáticos do que os barbitú-
ricos.
No entanto, sabemos que as condutas terapêuticas e as classifica-
ções diagnósticas modificam-se com o passar dos anos, como no caso
dos diagnósticos de depressão e melancolia. Aqui podemos observar
dois diagnósticos médicos que não existem mais nos dias atuais, a histe-
ria de conversão e a fadiga de combate. Ainda que possam existir qua-
dros clínicos semelhantes, com outra denominação, nenhum médico
hoje ousaria utilizar tal tratamento com barbitúricos para esses ou outros
quadros, pois essas drogas são altamente tóxicas. Menos ainda a combi-
nação de um barbitúrico com uma anfetamina para tratar um quadro
misto de desordem do “humor, ansiedade e tensão”.
202
Fadiga de combate: “a neurotic disorder caused by the stress involved in war. Desordem
relacionada à ansiedade, hoje não é mais conhecida com essa denominação. Um equivalente
atual seria o quadro de ansiedade pós-traumática (Disponível em:
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/127295/combat-fatigue>. Acesso em: 15 abril
2010).
224
O fato é que no século XXI estamos utilizando os ISRS (drogas
que, segundo a classificação de 1955, poderiam ser consideradas “esti-
mulantes do SNC”) e benzodiazepínicos (que, segundo essa mesma
classificação, são considerados “depressores do SNC”) para tratar qua-
dros clínicos caracterizados como desordens do “humor, ansiedade e
tensão”. O que se advoga hoje, além dos efeitos colaterais menos inten-
sos dessas drogas, é que elas poderiam estar relacionadas com a causa
desses sintomas. No entanto, o conhecimento farmacológico atual não
estabeleceu essa relação causal. O que aparentemente ocorreu é que
substituímos drogas com mais efeitos indesejáveis por outras que possu-
em menos efeitos indesejáveis (os primeiros observados ao longo de
muitos anos e que levaram à pesquisa farmacológica e ao desenvolvi-
mento dos medicamentos que utilizamos hoje).
6.1.2 A Psicofarmacologia ganha espaço: medicamentos para pro-
blemas psiquiátricos no livro-texto
A abordagem dos problemas psiquiátricos e dos medicamentos
antidepressivos como temas de capítulos ou seções específicas no livro
de farmacologia acontece apenas na edição de 1964. Como foi apon-
tado aqui, no capítulo que trata da farmacologia, essa edição sofre
uma reorganização dos seus temas com a substituição das seções Dro-
gas depressoras do SNC” e “Drogas estimulantes do SNC”, que juntas
passam a fazer parte da seção “Drogas que atuam no SNC”. Essa nova
seção, além dos 17 capítulos que faziam parte das duas seções dos livros
anteriores, ganha um novo capítulo: “Drogas utilizadas na terapia de
desordens psiquiátricas”, que começa considerando o papel desses me-
dicamentos no contexto da prática clínica:
Embora o interesse nos efeitos psicológicos dos
agentes farmacológicos seja tão antigo quanto a
humanidade, os usos de drogas para o tratamento
das desordens psiquiátricas tornou-se disseminado
somente a partir da metade dos anos de 1950. Me-
dicamentos têm encontrado seu papel nas práticas
psiquiátricas de orientação mais analítica, e na
prática da medicina eles são usados em grande es-
cala para modificar atitudes e emoções dos paci-
entes. Nessa [última] direção, eles são frequen-
temente abusados. Ninguém vai negar que o in-
divíduo claramente psicótico ou severamente de-
primido está em situação urgente de terapia, e as
drogas agora desempenham um papel maior no
225
tratamento dessas desordens severas. No entanto,
o vasto mero de indivíduos neuróticos poderia
ser auxiliado mais por médicos simpáticos e
compreensivos do que por drogas, se o médico
puder despender mais tempo ouvindo esses pa-
cientes e discutindo seus problemas com eles.
As drogas não deveriam afastar os médicos desse
importante aspecto da prática médica. (JAR-
VIK
203
, 1965, p.159, grifos meus)
Na edição (1970), esse trecho se mantém abrindo esse mesmo
capítulo, que continua de forma geral muito semelhante à edição de
1965. destaque para o papel que o profissional médico ocupa no
processo terapêutico, e os autores chamam a atenção para a responsabi-
lidade do médico ao lidar com essas drogas. Os medicamentos utilizados
na área de psiquiatria são colocados como um recurso terapêutico nas
mãos desse profissional, que deve discernir quando necessidade de
aliviar o sofrimento e evitar seu uso desmedido, apenas para “modificar
atitudes e emoções”. Essa última situação aponta para repercussões
ocorridas com o lançamento dessas drogas no mercado: o uso abusivo
por parte de alguns profissionais. A partir do momento que a droga está
disponível, podem ocorrer vários tipos de uso, e o alerta é para que não
se faça um mau uso desse recurso, ao mesmo tempo em que sinalizam
que já está ocorrendo esse uso indevido.
Na edição o apontados aspectos psicológicos, sociais e eco-
nômicos relacionados aos distúrbios psiquiátricos e são feitas considera-
ções sobre o papel dos medicamentos, agora inseridos na análise desses
aspectos. São abordados os limites e as vantagens do tratamento farma-
cológico, mas sempre contextualizando o assunto, algo que não é obser-
vado da mesma forma nas edições do início do século XXI. O autor
escreve nessa edição um trecho que se mantém idêntico na 4
a
edição
(1970):
É importante assinalar que um diagnóstico psiqui-
átrico, por si só, não determina a natureza da tera-
pia medicamentosa. Um indivíduo com história de
episódios psicóticos pode responder mais a uma
droga como o meprobanato
204
ou o clordiazepóxi-
203
Esse excerto é parte do livro de Goodman e Gilman (1965) e foi escrito por Jarvik. Ver
nota 128.
204
Meprobanato: Por ocasião da 4ª edição (1970) do livro texto, Goodman e Gilman referem
que essa droga está “entre as mais populares para o tratamento da ansiedade”. Essa substância
foi desenvolvida em 1954 por Berger, e cerca de dois anos depois já era uma droga amplamen-
te prescrita, provavelmente, segundo os autores, por diminuir a ansiedade sem causar sonolên-
226
do
205
, porque possui uma ansiedade intensa, do
que a uma fenotiazina
206
. Um paciente deprimido
que manifesta agitação psicótica pode necessitar
de uma fenotiazina. É necessário um julgamento
clínico considerável na determinação de quais
drogas são necessárias para determinado paciente
em uma situação particular. Embora a escola ana-
lítica tenha feito contribuições importantes para as
teorias etiológicas e para o tratamento da doença
mental, existem muitos que não adotam seus con-
ceitos, e as limitações da psicanálise são óbvias.
Por exemplo, tem sido estabelecido que cerca de
17 milhões de pessoas
207
são acometidas por pro-
blemas psiquiátricos. Daqueles hospitalizados,
98% estão em instituições públicas e apenas 2%
estão em hospitais privados. Com os trâmites atu-
ais, a psicoterapia é inconcebível para esse vasto
número de pacientes, e até tratamentos somáticos
como a ECT
208
, são muito caros e deixam muito a
desejar em relação à segurança e efetividade. A
única forma de tratamento que um psiquiatra so-
zinho pode administrar simultaneamente a uma
série de centenas de pacientes é o tratamento me-
dicamentoso. No entanto, a farmacoterapia tem
cia e pela procura dos médicos por drogas não barbitúricas. (GOODMAN; GILMAN, 1970,
p.174). Na 7ª (1985) e 8ª (1990) edições ainda aparece como droga utilizada para ansiedade e
como sedativo para pacientes geriátricos . (HARVEY, 1985, p. 365; RALL, 1990, p. 367) Na
9ª edição (1996), seu uso clínico não é mais preconizado em virtude de seus efeitos colaterais,
e as drogas mais indicadas como ansiolíticos para os casos de ansiedade passam a ser aquelas
da classe dos benzodiazepínicos. (HOBBS; RALL; VERDOON, 1990, p. 381-382) eles afir-
mam ainda, que cerca de 3.000 compostos dessa classe foram sintetizados, cerca de 120 foram
testados para verificar sua atividade biológica, e, por ocasião daquela edição do livro, cerca de
35 compostos estavam em uso clínico no mundo.
205
Clordiazepóxido: droga depressora do SNC sintetizada em 1957, da classe dos benzodiaze-
pínicos. Sua introdução na prática clínica em 1961 iniciou a “era dos benzodiazepínicos”, nas
palavras dos autores do capítulo sobre drogas sedativas da 9ª edição do livro de Goodman e
Gilman (HOBBS; RALL; VERDOON, 1990, p. 361-363).
206
As fenotiazinas (como a clorpromazina) são as drogas de escolha para tratar quadros psicó-
ticos nessa ocasião.
207
O livro não diz se esse número se refere apenas aos Estados Unidos (EUA) ou se é mundial.
Como a maioria dos dados que constam no livro nessas primeiras edições dizem respeitos aos
Estados Unidos, acredito que seja referente a esse país. No censo de 1960, os EUA tinham
179.323.175 de habitantes e a população de Nova Iorque era de cerca de 16.827.000; ou seja, o
número de pessoas diagnosticadas com algum distúrbio mental seria um pouco maior que o
total de moradores de Nova Iorque. (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/1960_United_States_Census>. Acesso em: 21 abril 2010).
208
ECT: eletroconvulsoterapia.
227
limitações claras no tratamento dos distúrbios psi-
cológicos. As drogas não podem modificar dire-
tamente influências hereditárias, [relacionadas]
a estruturas familiares ou situações socioeco-
nômicas de um indivíduo. Elas podem modifi-
car a reação do paciente ao seu meio ambiente
e seu funcionamento emocional e intelectual,
mas o comportamento em curso vai continuar
sendo determinado em grande parte pelas re-
postas aos estímulos que permanecem. (JAR-
VIK, 1965, p.161; 1970, p.153, grifo meu)
Essa última frase reforça o uso dos medicamentos, mas mantendo
a referência ao contexto em que os sintomas aparecem. Os medicamen-
tos são mais um recurso terapêutico para lidar com os sintomas e
clareza de que o paciente é o foco, e não a doença ou o medicamento. É
possível perceber que a abordagem é semelhante àquela descrita nos
séculos precedentes, como apontado por Hortwitz e Wakefield (2007) e
como abordado no capítulo que trata de depressão e melancolia. Tam-
bém nos remete à abordagem de Illich (1977 [1975]), quando este fala
da dor e do sofrimento: embora o livro-texto se refira a tratamento me-
dicamentoso, não abstrai do sofrimento psíquico o aspecto social. Mes-
mo que a argumentação para o uso dessas drogas esteja relacionada a
questões práticas, como a dificuldade econômica, por exemplo, que
se levar em conta que esse indivíduo doente pertence a uma família (que
tem dinâmicas próprias de funcionamento) e que ele próprio pode ter
dificuldades sociais e econômicas que podem manter seus sintomas.
Na edição seguinte, de 1975 (5ª edição), o capítulo mantém o
mesmo nome, mas passa a ser escrito por outro autor e tem sua introdu-
ção modificada. São apresentadas questões como o uso amplo de medi-
camentos:
Vinte por cento das prescrições escritas em uma
comunidade média nos Estados Unidos são para
medicações que se destinam a afetar os processos
mentais, nomeadamente estimular, sedar ou modi-
ficar de outra forma o comportamento. Um grande
número de drogas administradas primariamente
pelos médicos para outros propósitos também
modificam o pensamento, o humor e as emoções.
[...] Os membros de ambos os grupos são frequen-
temente descritos como drogas psicoativas ou psi-
cotrópicas. Cerca de 1.500 compostos classifica-
dos primariamente como agentes psicotrópicos
têm sido descritos (USDIN; EFRON, 1972). Seu
228
uso tornou-se disseminado desde o início dos anos
de 1950. (BYCK
209
, 1975, p.152)
ainda referência às dificuldades em como estabelecer os diag-
nósticos psiquiátricos para o uso preciso das drogas que possuem deter-
minada indicação clínica, pois essa não é uma tarefa fácil:
O uso de drogas para o tratamento das desordens
psiquiátricas é complicado por muitas das incerte-
zas e imprecisões diagnósticas que têm importu-
nado [atormentado, afligido] a psiquiatria. Na
maior parte das áreas da terapêutica, os médicos
estão razoavelmente certos a respeito do diagnós-
tico e da natureza da doença antes de uma terapia
medicamentosa específica ser instituída. Em psi-
quiatria, apesar dos melhores esforços, a confusão
das entidades diagnósticas é antes uma regra do
que uma exceção, e, consequentemente, o uso de
drogas psicotrópicas frequentemente sofre a au-
sência da precisão e da elegância possíveis em ou-
tras áreas da medicina. (BYCK, 1975, p.152)
O autor complementa que a falta de diagnóstico preciso não deve
impossibilitar o uso das drogas que provocam efeitos benéficos ao paci-
ente e lembra que “a terminologia diagnóstica corrente, frequentemente
empregada nos Estados Unidos, é descrita no Manual de diagnóstico e
estatística de saúde mental II
210
(1968), da Associação Americana de
Psiquiatria” (BYCK, 1975, p.153, grifo no original). Destaca também
que as drogas psicoativas, ao longo de sua história, têm sido utilizadas
em duas vias diferentes, enumeradas na seguinte ordem: “a primeira foi
o uso de drogas para modificar comportamentos normais e para produzir
modelos de loucura [madness]. A segunda foi para aliviar ou curar do-
enças mentais”.
Ainda sobre os aspectos históricos, o autor lembra que a pesquisa
psicofarmacológica teve uma rápida expansão na década de 1960, e, em
consequência, houve um aumento no uso desse tipo de medicamentos.
Ele completa: “além disso, muita atenção tem sido dada à responsabili-
dade no tratamento com drogas psicoterapêuticas, e uma visão equili-
brada de suas vantagens e desvantagens está começando a emergir”
(BYCK, 1975, p.153). Essa última frase trás a ideia de dúvidas sobre o
209
Esse excerto texto faz parte do livro Goodman e Gilman, 5ª edição (1975) e foi escrito por
Byck (1975). As outras referências de autores que estão no excerto fazem parte da redação de
Byck, e copiei conforme estavam no original.. Ver nota 128.
210
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders II da Americam Psychiatric
Association (DSM II) foi editado em 1968.
229
uso dessas substâncias. Usos “não equilibrados”, ou abusivos, estariam
ocorrendo ou ocorreram? O texto parece indicar uma resposta a questio-
namentos desse tipo, que não são explicitamente citados na introdução
desse capítulo na edição, como havia sido feito na (1964) e
(1970) edições.
A edição (1980, 1983 no Brasil) também começa comentando
que cerca de 20% das drogas prescritas nos Estados Unidos atuam em
processos mentais, tal como referido na edição anterior. São considera-
das, nesse capítulo do livro que trata das drogas para uso psiquiátrico,
três categorias de drogas, citadas na sua introdução: (a) os medicamen-
tos antipsicóticos, também chamados neurolépticos, utilizados para as
psicoses; (b) os medicamentos chamados de estabilizantes do humor (o
exemplo citado é dos sais de lítio) e antidepressivos, que também são
denominados “agentes elevadores do humor” pelos autores; e (c) os
agentes ansiolítico-sedativos, “particularmente os benzodiazepínicos”,
que são utilizados nos estados de ansiedade (BALDESSARINI
211
, 1983,
p. 346) Essas três categorias eram utilizadas na edição (1975), mas
não constavam os exemplos citados (sais de lítio e benzodiazepínicos)
na introdução, embora ambos também aparecessem nos respectivos
setores do capítulo equivalente a esse.
Novamente, como na edição, na edição são citadas as incer-
tezas do diagnóstico psiquiátrico. No entanto, há a seguinte complemen-
tação nessa edição, demonstrando o vínculo que a farmacologia esta-
belece com os critérios clínicos vigentes em cada época:
Contudo, o diagnóstico psiquiátrico continua a
ganhar objetividade, coerência e confiabilidade. A
associação entre síndromes clínicas específicas e
respostas previsíveis a medicamentos psicotrópi-
cos escorou o impressionante progresso nessa á-
rea. [...] A terminologia e os critérios de diagnós-
tico de emprego corrente nos Estados Unidos es-
tão bem descritos no Manual de diagnóstico e es-
tatística de saúde mental da Associação Ameri-
cana de Psiquiatria (1968, 1979)
212
. (BALDES-
SARINI, 1983, p.347)
211
Baldessarini é autor de capítulos do livro texto de Goodman e Gilman em várias edições,
como pode ser visualizado nas referências bibliográficas. Ver nota 128.
212
O DSM II foi publicado em 1968; o DSM III foi publicado em 1980, mas os trabalhos para
sua elaboração iniciaram-se em 1974, conforme informação que consta no site da Associação
Americana de Psiquiatria sobre a história do DSM III (Disponível em:
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/History_1/DevelopmentofDSMIII.aspx>
Acesso em: 17 abril 2010). Na citação do livro texto de Goodman e Gilman, que foi publicado
230
ainda a referência às pesquisas com os medicamentos psico-
trópicos e suas relações com “possíveis bases biológicas para as doenças
psiquiátricas” que o autor diz serem auxiliadas por “uma disciplina mé-
dica conhecida como psiquiatria biológica”. Ele complementa: “Embo-
ra às vezes haja desacordo entre psiquiatras a respeito do diagnóstico e
das indicações para vários tratamentos, essas incertezas não invalidam
os muitos efeitos salutares de medicamentos sobre os sintomas mentais”
(BALDESSARINI, 1983, p.347).
Essas afirmações mais uma vez nos remetem à questão do conhe-
cimento científico e seus dois âmbitos de desenvolvimento: um relacio-
nado à busca de explicações causais e o outro relacionado ao desenvol-
vimento de produtos técnicos. Se a busca das explicações causais,
esse aspecto está em desenvolvimento no que se refere aos medicamen-
tos psicoativos, e tem oferecido apenas respostas parciais. Embora se
afirme que estão sendo feitos “esforços para objetivar o diagnóstico
psiquiátrico” (p.347) e que “a introdução de hipóteses farmacologica-
mente orientadas referentes às bases biológicas de doenças mentais gra-
ves encorajou a pesquisa racional em psiquiatria” (p.348), não é possível
estabelecer relações causais a respeito das doenças mentais a partir da
farmacologia. O que existe são hipóteses, e o uso de medicamentos ba-
seia-se nos sucessos da clínica: mesmo que não se tenha um diagnóstico
preciso (quer seja ele clínico ou, menos ainda, estabelecido a partir da
farmacologia), o uso de medicamentos pode aliviar sintomas. Esse é um
ganho que a farmacologia, a partir do desenvolvimento do conhecimento
tecnológico nessa área, nos permite obter ao elaborar um medicamento.
No entanto, não pode ser confundido com a explicação etiológica para o
problema de saúde em questão.
A (1985) e (1990) edições têm esse capítulo escrito pelo
mesmo autor da edição (1980), Roos J. Baldessarini, e o texto se
mantém praticamente idêntico, com os mesmos dados e as mesmas ar-
gumentações a respeito dos estudos nessa área. Sobre o diagnóstico
diferencial das doenças psiquiátricas para o uso das drogas que são indi-
cadas em diferentes situações clínicas, não há mais a referência explícita
aos DSM, e sim uma referência indireta: “O uso satisfatório dessas dro-
gas requer experiência no diagnóstico diferencial das condições psiquiá-
tricas (ver Kaplan e Sadock, 1985; Associação Americana de Psiquiatri-
a, 1987)(BALDESSARINI, 1990, p.384). Nas referências bibliográfi-
em 1980, consta essa referência de 1979, talvez porque já havia alguma versão desse manual
disponível mesmo antes do lançamento final em 1980, já que os trabalhos para sua elaboração
começaram em 1974.
231
cas desse capítulo, o encontrei as especificações das referências cita-
das, mas o primeiro possivelmente é da edição (1985) de um livro-
texto de psiquiatria que em 2007 tem sua 10ª edição
213
, e o segundo
provavelmente refere-se ao DSM-III-R (DSM III revisado) que foi pu-
blicado em 1987
214
.
Tanto a como na edição do Goodman e Gilman têm na in-
trodução do capítulo que trata das drogas utilizadas no tratamento das
doenças psiquiátricas a seguinte consideração: “alguns aspectos princi-
pais da nosologia psiquiátrica são sumarizados brevemente aqui, e in-
formações adicionais são fornecidas nas discussões das classes de dro-
gas específicas” (BALDESSARINI, 1985, p.388; 1990, p.384) Sobre
essa nosologia são apresentadas algumas classificações clínicas, como a
diferenciação entre: (a) psicoses, as mais graves segundo o autor, carac-
terizadas por alterações no comportamento, dificuldade de pensar e de
compreender a realidade, entre outros atributos, e que tem a esquizofre-
nia como subtipo; (b) neuroses, caracterizadas como “condições menos
severase que podem ter como sintomas “ansiedade, pânico, disforia”,
“obsessões, medos irracionais” e “compulsões”, entre outros; e (c) as
desordens afetivas maiores ou desordens maníaco-depressivas, caracte-
rizadas como sendo primariamente causadas por alterações das emoções
e do humor, e que podem ser classificadas como “doença bipolar”, “do-
ença unipolar’ ou “episódios moderados de depressão”. Sobre essa
última categoria, o autor refere que: “em adição doença bipolar e
unipolar], a depressão pode ocorrer como uma desordem moderada ou
como um sintoma de outras doenças psiquiátricas ou médicas” (BAL-
DESSARINI, 1990, p.384).
É possível perceber que os diagnósticos incluídos sob essas três
categorias de classificação têm sintomas que podem se sobrepor, corro-
borando a colocação inicial do autor nessa edição e dos autores das edi-
ções anteriores ao se referirem à dificuldade do diagnóstico diferencial
em psiquiatria. Como abordado no capítulo que fala sobre o diagnóstico
de depressão ao longo da história da biomedicina, são vários os quadros
213
Kaplan and Sadock´s Synopsis of Psychiatry – tem a 1ª edição em 1972, a 4ª em 1985 e a
10ª em 2007. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=u-
ohbTtx-
CeYC&pg=PA1479&lpg=PA1479&dq=kaplan++sadock+1985&source=bl&ots=9fzytcf5AT&
sig=GPD-7d4x6Hk1A9lYd9EnqQYrkmw&hl=pt-BR&ei=9CjLS-_5OIuzuAei4-
iQBQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=6&ved=0CBoQ6AEwBQ#v=onepage&q=k
aplan%20%20sadock%201985&f=false>. Acesso em: 18 abril 2010
214
Disponível em:
<http://www.psych.org/MainMenu/Research/DSMIV/History_1/DSMIIIRandDSMIV.aspx>
Acesso em: 26 março 2010.
232
clínicos que recebem nomes semelhantes (melancolia, lipemania, de-
pressão). Tanto a classificação em alguma categoria quanto os tratamen-
tos dependem do diagnóstico realizado, e este sofre a influência da per-
cepção subjetiva do médico e do que é considerado como doença em
determinado momento histórico.
Apesar das tentativas de objetivação citadas no livro de farmaco-
logia, as condutas terapêuticas medicamentosas ainda estão subordina-
das a esses aspectos subjetivos. Mesmo com a busca de uma relação
entre as doenças ligadas ao comportamento e determinadas substâncias
endógenas, o autor deixa claro que ainda não é a partir da farmacologia
que está ocorrendo a classificação das doenças psiquiátricas, mas a par-
tir de critérios da clínica.
A edição (1996) tem várias reformulações na organização do
livro como um todo e também apresenta mudanças nesse capítulo. Por
cinco edições (da à 8ª) o capítulo “Drogas no tratamento das desor-
dens psiquiátricas” incluiu três categorias de medicamentos: (a) drogas
para psicoses; (b) drogas para ansiedade; (c) drogas para depressão (3ª
edição) ou drogas para transtornos de humor (4ª, , 6ª, 7ª, edições).
Na edição, esse capítulo é desmembrado em dois: “Drogas e o trata-
mento das desordens psiquiátricas: psicose e ansiedade” (Cap.18) e
“Drogas e o tratamento das desordens psiquiátricas: depressão e mania”
(Cap.19). Nessa edição, uma pequena introdução à psicofarmacologia
geral aparece no capítulo 18, o primeiro que fala sobre o uso de drogas
para problemas psiquiátricos.
Na 10ª e 11ª edição, essas drogas são descritas ainda em dois ca-
pítulos, que têm os sintomas (ou diagnósticos clínicos) dos seus títulos
organizados de outra forma. Na 10ª edição, eles têm os títulos “Drogas e
o tratamento das desordens psiquiátricas – depressão e desordens de
ansiedade” e “Drogas e o tratamento das desordens psiquiátricas psi-
cose e mania”. Já na 11ª edição, são intitulados “Terapia medicamentosa
da depressão e desordens de ansiedade” e Farmacoterapia das psicoses
e mania” (ver quadro a seguir). Em ambas as edições, uma pequena
introdução sobre a psicofarmacologia geral, localizada nos capítulos 19
(10ª edição) e 17 (11ª edição), os primeiros em cada obra que falam das
drogas usadas em problemas psiquiátricos ou relacionados a sintomas
mentais.
Essas mudanças nos “arranjos” das drogas por capítulos, relacio-
nando-as com os diagnósticos e sintomas em combinações diferentes
demonstram mais uma vez o quanto as classificações nessa área são
flexíveis, mesmo no curto período de tempo que são esses dez anos
entre a (1996) e a 10ª edições (2006). Vale destacar que os benzodia-
233
zepínicos são drogas ansiolíticas utilizadas para tratar a ansiedade em
diversas situações clínicas (nos quadros psicóticos, nos quadros relacio-
nados à depressão com ansiedade, no pré-operatório para acalmar o
paciente e em várias outras) e têm sua descrição em capítulos diferentes
no decorrer das várias edições do livro.
Quadro 6.1 – Capítulos do livro-texto Goodman e Gilman sobre drogas utilizadas
no tratamento de problemas psiquiátricos ou de sintomas mentais.
Edição Capítulos
9ª Edição
(1996, edição internacio-
nal, também em português)
Cap. 18 - “Drogas e o tratamento das desordens psi-
quiátricas: psicose e ansiedade”
Cap. 19 - “Drogas e o tratamento das desordens psi-
quiátricas: depressão e mania”
10ª Edição
(2001, edição americana;
2003, edição brasileira
215
)
Cap.19 - “Drogas e o tratamento das desordens psi-
quiátricas – depressão e desordens de ansiedade”
Cap. 20 - “Drogas e o tratamento das desordens psi-
quiátricas – psicose e mania”
11ª Edição
(2006, edições americana e
brasileira
216
)
Cap. 17 - “Terapia medicamentosa da depressão e
desordens de ansiedade”
Cap. 18 - “Farmacoterapia das psicoses e mania”.
Fonte: Goodman e Gilman the pharmacological basis of therapeutics (9ª,
10ª e 11ª edições)
Como foi referido anteriormente, os compostos benzodiazepíni-
cos não são tema deste estudo, mas, a título de contextualização, vale
lembrar que eles têm sido amplamente utilizados na prática biomédica
desde a sua descoberta. Assim como os barbitúricos foram drogas am-
plamente utilizadas em sua época (inclusive de forma abusiva, como é
possível observar em passagens do livro-texto), os compostos diazepíni-
cos foram “as” drogas psicoativas das décadas de 1960 e 1970, manten-
do seu uso nas décadas seguintes, apesar dos alertas de uso abusivo. São
considerados drogas “ansiolíticas”, além de possuírem efeitos sedativos
e hipnóticos (causam sono). Por possuírem muitos efeitos colaterais,
entre eles a dependência e habituação
217
dos pacientes, dificultando ou
215
A edição Brasileira é de 2003, segundo referência encontrada na BU/UFSC (Disponível em:
http://aspro02.npd.ufsc.br/pergamum/biblioteca/index.php?resolution2=800 . Acesso em 18
abril 2010).
216
Segundo consta no site da editora, pois não encontrei exemplar em português na BU/UFSC
(Disponível em: <http://www.mcgraw-hill.com.br/hc/books/Goodman_BasesFarmac.shtml>.
Acesso em: 18 abril 2010).
217
Tolerância e dependência: “alguns tipos de medicamentos habituam o organismo a seus
efeitos, fenômeno conhecido como tolerância. Tal situação pode induzir ao uso de doses maio-
234
até impossibilitando sua retirada, têm sido alvo de críticas pelo seu po-
tencial uso abusivo (tanto por automedicação como por prescrição mé-
dica) desde a década de 1970. (AUCHEWSKI et all, 2004; WOODS;
KATZ; WINGER, 1988; WHO, 1983; NASTASY, 2008) Essa seria
uma das razões para a busca de medicamentos para tratar a ansiedade
sem esses efeitos colaterais importantes dos benzodiazepínicos (BZD),
que talvez esteja relacionada à introdução dos ISRS para tratar os casos
ambulatoriais de indivíduos com sintomas de ansiedade e depressão
(que ganham nova classificação clínica) a partir da década de 1990.
Embora, como abordado neste estudo, os ISRS possivelmente estejam
sendo utilizados de forma também abusiva, o mercado dos medicamen-
tos psicoativos tem alternado suas “estrelas”. Na maioria das vezes, uma
nova classe de medicamentos torna-se uma “estrela” com a introdução
de novos fármacos que prometem ser mais específicos para os proble-
mas de saúde e com menos efeitos colaterais do que os anteriormente
utilizados.
A “troca”, pelo menos em um primeiro momento, dos BZD pelos
ISRS pode ter suas origens na introdução do diagnóstico de “depressão”
de forma ampliada no meio médico, com a ajuda da própria indústria
farmacêutica. Sobre essa questão, Healy (1997, p.74) lembra que uma
possibilidade de narrativa da descoberta dos medicamentos para tratar a
depressão foi a “descoberta da depressão” como um súbito avanço para
a indústria farmacêutica no final dos anos de 1950 (p.74) com o desen-
volvimento da amiptriptilina, um composto quase idêntico à conheci-
da imipramina. A amitriptilina foi pesquisada ao mesmo tempo (o que
não costuma ser comum no âmbito da indústria farmacêutica) pelas
companhias Merck, Roche e Lundbeck, mas Healy assinala que “quando
se tornou claro que havia dinheiro a ser feito, com sucesso, com os anti-
depressivos”, as duas companhias romperam com a Merck, mas esta
saiu vencedora porque havia patenteado a droga especificamente para a
depressão (no início as pesquisas com a substância foram para vários
usos, por exemplo, para a esquizofrenia) (HEALY, 1997, p.75).
Podem ser citados dois fatores para que a substituição do amplo
uso dos BZD tenha ocorrido apenas com os ISRS no final do século XX:
o primeiro relacionado ao espaço ocupado por essas drogas nas déca-
res para conseguir os mesmo efeitos. [...] Exemplo comum é o uso de medicamentos para
dormir. Em certas situações , o uso continuado pode levar à dependência psíquica ou física do
medicamento. (SCHENKEL; MENGUE; PETROVICK, 2004, p.47. Sobre habituação, depen-
dência e tolerância com uso de benzodiazepínicos, ver: SZARA, S.I.; LUDFORD, J. P. Ben-
zodizepines: a rewiew of research results, 1980. NIDA Research Monograph 33. Washing-
ton, 1980.
235
das de 1960 e 1970, e o segundo relacionado aos efeitos colaterais que
ainda são intensos com os tricíclicos (embora bem menos intensos do
que os dos Inibidores da MAO). Sobre esses fatores, Healy (1997) afir-
ma:
Em essência, no entanto, a Merck não vendeu a-
penas amitriptilina, ela vendeu uma ideia. A ami-
triptilina tornou-se o primeiro dos antidepressivos
a ser vendido em volumes substanciais. Os anos
de 1960, no entanto, eram um mundo no qual o
Librium® e o Valium®
218
eram reis, o que signi-
fica que, comparada com as percepções correntes
[da época] o tamanho do mercado da depressão
não hospitalizada era provavelmente considerado
relativamente pequeno. Não havia, nessas circuns-
tâncias, nenhum espaço para uma diversidade de
conceitos (para energizantes psíquicos, timolépti-
cos
219
e antidepresssivos) e nem tão pouco foram
reconhecidas clinicamente claras diferenças entre
os diferentes grupos de compostos conhecidos, e-
les foram colocados sob a ampla noção “guarda-
chuva” de antidepressivos, suficiente para manter
as vendas até que o eclipse dos BZD conduzisse a
uma expansão do mercado de antidepressivos e à
ampla descoberta desses medicamentos que a-
conteceu com os ISRS. (HEALY, 1997, p.76)
No livro-texto de Goodman e Gilman, os benzodiazepínicos
constam no índice alfabético remissivo a partir da edição (1965). Na
3ª e (1970) edições eles estão incluídos apenas no capítulo das drogas
usadas para tratamento de doenças psiquiátricas e constam como citação
em uma tabela no capítulo “Drogas hipnóticas e sedativas” (esse capítu-
lo existe desde a edição de 1941); na 10ª e 11ª edições eles são descritos
no capítulo “Hipnóticos e sedativos”. Se inicialmente eles eram as dro-
gas de escolha para quadros com ansiedade, no século XXI irão dividir o
cenário das prescrições com os antidepressivos.
Nas últimas duas edições do livro-texto, os benzodiazepínicos são
apenas citados no capítulo sobre ansiedade e depressão como coadju-
vantes do tratamento de quadros com ansiedade (com sintomas agudos
218
Librium® e o Valium®
são os nomes comerciais de dois compostos benzodiazepínicos
amplamente utilizados e reconhecidos pelo nome comercial nas últimas décadas do século XX.
219
Timolépticos: drogas que alteram o humor, como os tricíclicos, inibidores da MAO e sais de
lítio (Disponível em: http://medical-dictionary.thefreedictionary.com/thymoleptic . Acesso em
22 abril 2010).
236
relacionados ao SNA
220
), muitos dos quais passam a fazer parte de no-
vas categorias clínicas que estão incluídas no mesmo capítulo que trata
de quadros com sintomas depressivos (no sentido de baixa atividade,
queda de função). Os medicamentos hoje denominados antidepressivos,
tema deste estudo, são abordados a partir do livro-texto Goodman e
Gilman no próximo subitem.
6.2 O LIVRO-TEXTO E OS MEDICAMENTOS PARA DEPRESSÃO
AO LONGO DE 40 ANOS NA PRÁTICA BIOMÉDICA
Embora os medicamentos antidepressivos (ATD) tenham sido
utilizados desde a década de 1950, eles aparecem no livro-texto de
farmacologia Goodman e Gilman de 1965, quando surge o capítulo
sobre as drogas utilizadas em psiquiatria.
Nas duas primeiras edições, algumas vezes o tema dos medica-
mentos para os distúrbios mentais, ou doenças psiquiátricas, foi aborda-
do no decorrer da descrição das drogas atuantes no SNC, como foi visto
anteriormente. Na 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, e edições eles são apresentados no
capítulo que trata das drogas para problemas psiquiátricos como subi-
tens conforme o Quadro 6.2.
Embora nesse quadro não apareçam os ISRS, eles são citados a
partir da edição (1985), na parte do texto que aborda os ATD tricícli-
cos. Eles são referidos nessa e na 8ª edição (1990) como antidepressivos
atípicos:
Alguns dos novos agentes antidepressivos que es-
tão em uso clínico na Europa e outros locais têm
uma variedade de estruturas químicas e proprie-
dades farmacológicas que diferem dos antidepres-
sivos tricíclicos. Eles são referidos muitas vezes
como “antidepressivos atípicos” para distingui-los
tanto dos inibidores da MAO como dos ATD tri-
cíclicos. Os ATD atípicos que estão sendo comer-
cializados atualmente nos Estados Unidos incluem
a trazodona, um composto heterocíclico comple-
xo que se pensa potencializar as ações da 5-HT, e
a fluoxetina, uma feniltolilpropinamina que é um
inibidor potente e seletivo da recaptação de 5-HT.
[...] Em desenvolvimento estão outras drogas que
220
Sinais do Sistema Nervoso Autônomo (SNA), tais como taquicardia, sudorese, sensação de
“paralisia”, “tontura”, entre outros, relacionados ao medo intenso e à hiperexcitação desse
sistema. Tanto as reações relacionadas ao componente simpático (ligadas à liberação de nora-
drenalina), quanto aquelas do componente parassimpático, em resposta às primeiras.
237
potencializam a ação da 5-HT; esses incluem aná-
logos da fluoxetina (por exemplo, fluvoxamine),
assim como compostos com novas estruturas (por
exemplo, citalopram). (BALDESSARINI, 1980,
p. 414; 1985, p.406)
Quadro 6.2 – Capítulos, subitens relacionados a psicofármacos e classes de
antidepressivos (ATD) nas edições do livro Goodman e Gilman: as
bases farmacológicas da terapêutica, da 3ª à 8ª edições.
Edi-
ção
221
Capítulo Nome do
subitem
Classes de drogas (na
sequência em que são
apresentadas no subi-
tem)
3ª (1965) “Drogas usadas no trata-
mento das desordens psi-
quiátricas”, contendo:
Introdução
Drogas para psi-
coses
Drogas para an-
siedade
Drogas para de-
pressão
“Drogas para
depressão”
Inibidores da
MAO
Compostos
dibenzazepínicos (imi-
pramina e amitriptili-
na)*
4ª (1970) “Drogas usadas no trata-
mento das desordens psi-
quiátricas”, contendo:
Introdução (não
nomeada)
Drogas para psi-
coses
Drogas para an-
siedade
Drogas para de-
sordens afetivas
(depressão e ma-
nia)
Drogas psicoto-
gênicas
“Drogas para
desordens
afetivas (de-
pressão e
mania)”
Inibidores da
MAO
Imipramina,
amitriptilina e
antidepressivos relacio-
nados*
Sais de lítio
Antidepressi-
vos tricíclicos*
221 Ano das edições originais em inglês.
238
5ª (1975) “Drogas usadas no trata-
mento das desordens psi-
quiátricas”, contendo:
Introdução (não
nomeada)
Drogas usadas no
tratamento das
psicoses
Drogas usadas no
tratamento das
desordens afeti-
vas
Drogas usadas no
tratamento da an-
siedade
Drogas psicotó-
xicas
“Drogas
utilizadas no
tratamento das
desordens
afetivas”
Inibidores da
MAO
Carbonato de
lítio
6ª (1980) Medicamentos e o trata-
mento de doenças psiquiá-
tricas contendo:
Introdução (não
nomeada)
Medicamentos
usados no trata-
mento das psico-
ses
Medicamentos
usados nos dis-
túrbios de humor
Medicamentos
usados na ansie-
dade
“Medicamen-
tos utilizados
nos distúrbios
de humor”
222
Antidepressi-
vos tricíclicos*
Inibidores da
MAO
Sais de lítio
7ª (1985) Drogas e o tratamento de
doenças psiquiátricas
contendo:
Introdução (não
nomeada)
Drogas usadas no
“Drogas
utilizadas nos
distúrbios de
humor”
Antidepressi-
vos tricíclicos*
Inibidores da
MAO
Sais de lítio
222
Os termos utilizadso na sexta edição estão conforme consta na ediçãod e 1983, tradução
brasileira.
239
tratamento das
psicoses
Drogas usadas
nas desordens de
humor
Drogas usadas no
tratamento da an-
siedade
8ª (1991) Drogas e o tratamento de
doenças psiquiátricas
contendo:
Introdução (não
nomeada)
Drogas usadas no
tratamento das
psicoses
Drogas usadas no
tratamento das
desordens de
humor
Drogas usadas no trata-
mento da ansiedade
“Drogas
utilizadas no
tratamento das
desordens do
humor”
Antidepressi-
vos tricíclicos*
Inibidores da
MAO
Sais de lítio
Fonte: 3ª a 8ª edições do livro texto de Goodman e Gilman.
*São nomes diferentes para a mesma classe de drogas, hoje conhecida como “Anti-
depressivos tricíclicos”.
Na (1996), 10ª (2001) e 11ª (2006) edições, os antidepressivos
ganham capítulos exclusivos ao invés de constarem como subitens de
outro capítulo. Embora o autor que escreve esses capítulos seja o mesmo
desde a edição, eles têm arranjos diferentes em relação aos diagnósti-
cos ou sintomas clínicos, e a classificação das drogas também sofre
mudanças se compararmos com as edições anteriores, conforme pode
ser visualizado no próximo quadro.
Esse é um panorama geral de como essas drogas são abordadas
no livro-texto em suas diferentes edições. A seguir faço a abordagem
desses medicamentos de forma mais detalhada a partir da 3ª edição
(1965) do livro (quando eles surgem pela primeira vez nessa obra) até a
11ª edição (2006), a mais atual, sempre pontuando mudanças ou aspec-
tos que tenham sido considerados relevantes a partir do olhar iniciado
neste trabalho. A seguir a forma como esses medicamentos são inseridos
no texto é analisada nas diferentes edições.
Quadro 6.3 – Capítulos e seus subtítulos na 9ª, 10ª e 11ª edições do livro-texto
240
de farmacologia Goodman e Gilman: as bases farmacológicas da terapêutica.
Edição Capítulo Subtítulos
Cap.19 “Drogas e o
tratamento das doenças
psiquiátricas – depres-
são e mania”
Resumo do capítulo, com dois
parágrafos
Introdução (sem esse título)
Antidepressivos
Agentes antimaníacos e estabili-
zantes do humor
Prospecto
10ª Cap.19 “Drogas e o
tratamento das doenças
psiquiátricas – depres-
são e desordens de
ansiedade”
Resumo do capítulo, com dois
páragrafos
Introdução: psicofarmacologia
Antidepressivos
Tratamento medicamentoso das
desordens do humor
Drogas usadas no tratamento
da ansiedade
Prospecto
11ª CAp.17 “Terapia medi-
camentosa da depressão
e das desordens de
ansiedade”
Introdução (sem esse título)
Caracterização das desordens
depressivas e de ansiedade (con-
tendo dois subitens: antidepres-
sivos e tratamento medicamen-
toso das desordens do humor)
Sumário clínico
Fonte: 9ª, 10ª e 11ª edições do livro texto de Goodman e Gilman.
6.2.1 Do período Pós-Guerra aos anos de 1990 nascimento e cres-
cimento da psicofarmacologia (a 3ª edição)
Na edição do livro (1965), o capítulo que aborda as drogas pa-
ra problemas psiquiátricos tem três subitens: o primeiro trata de “Drogas
para psicoses”, o segundo de “Drogas para ansiedade” e o terceiro de
“Drogas para depressão” (ver Quadro 6.2). Essa ordem no capítulo pare-
ce refletir a ordem de importância dos medicamentos e das situações
clínicas na época em que cada edição foi publicada. Pois, como lembra
Van Dijk, ao se referir à forma como os elementos do texto, incluindo
títulos e subtítulos, são inseridos em um discurso (1999, p.31), a estrutu-
ração do texto não costuma ocorrer de forma aleatória, e sim refletindo
[1]
a prioridade dos autores ou [2] os valores, abordagens e prioridades
médicas da época.
Nessa mesma lógica de sequência por prioridade de uso ou de va-
lorização, os primeiros medicamentos abordados em “Drogas para de-
241
pressão” na edição do livro-texto são os Inibidores da MAO. São os
primeiros antidepressivos a ser utilizados na prática médica, embora seu
reconhecimento tenha ocorrido quando os tricíclicos também apare-
ceram. Vale destacar que na edição não referência ao termo “anti-
depressivos”, nem no decorrer do texto, nem no índice alfabético remis-
sivo. Esse termo aparece pela primeira vez em sub título do item “Dro-
gas para depressão” da edição (1970) [ver quadro acima], sem, no
entanto, constar no índice remissivo como palavra de busca, refletindo
sua introdução na linguagem da época, mas ainda não de forma disse-
minada. Na6a edição não tive acesso ao índice alfabético, sendo na
edição aprimeira vez que o termo “antidepressivo” aparee no índice
alfabético.
Sobre a questão de quais seriam realmente os primeiros antide-
pressivos reconhecidos, se os inibidores da MAO (IMAO) ou os tricícli-
cos, Healy (1997), refere que em diferentes momentos da história consi-
derou-se uma ou outra classe e seus “descobridores” como pioneiros na
utilização de drogas com o propósito de tratar pacientes depressivos.
Uma das razões para esse reconhecimento “tardio” é que os IMAO fo-
ram pouco valorizados por seus efeitos colaterais facilmente reconhecí-
veis e os tricíclicos foram considerados os medicamentos que “abriram
esse espaço na terapêutica. Sua expansão como recurso terapêutico
ocorreu na década de 1960, “apoiada” pelo lançamento dos tricíclicos no
mercado (HEALY, 1997, p.76). Não dúvidas que os IMAO foram as
primeiras a serem utilizadas em pacientes com sintomas depressivos.
Em todas as edições do livro-texto Goodman e Gilman e também nas
referências bibliográficas sobre esse tema, sua introdução nas pesquisas
pré-clínicas e clínicas é referida a partir do início da década de 1950,
enquanto os tricíclicos aparecem a partir da segunda metade dessa
mesma década.
Por outro lado, a possível relação da serotonina com a depressão
foi apontada pelos pesquisadores que trabalharam com os IMAO como
drogas antidepressivas já na década de 1950 (HEALY, 1997, p.52), tese
que ganhou força nas últimas décadas do século XX e que reforça o
papel dos IMAO como os primeiros medicamentos antidepressivos
(HEALY, 1997, p.72). Isso porque, os IMAO atuam diminuindo a re-
captação da enzima monoamina oxidase, que tem papel importante no
metabolismo das hoje chamadas aminas biogênicas (incluindo as mono-
aminas dopamina, noradrenalina, adrenalina e serotonina). Esse possível
papel das monoaminas, principalmente a serotonina, na explicação dos
sintomas depressivos pode ser responsável pela ordem no texto que
essas drogas receberam nas diferentes edições, inclusive nas últimas,
242
quando “recuperam” algumas indicações e recebem alguma atenção que
não recebiam mais em função dos seus múltiplos efeitos colaterais.
Na edição, eles são os primeiros a serem abordados no seu aspecto
farmacológico, constando sua indicação clínica nessa primeira parte do
texto.
Quadro 6.4 Medicamentos usados no tratamento da depressão na edição do
livro Goodman e Gilman: As bases farmacológicas da terapêutica.
Classe do composto Nome dos compostos
Inibidores da monoamina oxidase
(IMAO)
Isocarboxazida
Nialamina
Fenelzina
Tranciclopromina
Pargilina
Derivados dibenzazepínicos
(atualmente chamados de tricíclicos)
Imiopramina
Amitriptilina
Fonte: GOODMAN; GILMAN, 1965, p. 192.
No entanto, o tratamento da depressão “doença” só é abordado ao
final do subitem, após a apresentação farmacológica dos medicamentos
denominados hoje tricíclicos, quando é discutida a situação clínica em si
e as várias possibilidades terapêuticas, incluindo as não farmacológicas.
Essa abordagem das situações clínicas após a apresentação das diferen-
tes classes de drogas se mantém até a 11ª edição. O que muda é a forma
de abordagem dos autores em relação aos temas que são inseridos nessa
parte ou no início e decorrer do texto, quando as drogas são tratadas a
partir de aspectos farmacológicos.
6.2.1.1 Os IMAO: drogas para tratar sintomas depressivos e que abrem
possibilidades de explicação causal
Sobre os IMAO, na (1965) e (1970) edições do livro-texto,
sua abordagem se inicia da seguinte forma:
Até o final da década de 1950, não havia trata-
mento farmacológico amplamente aceito para de-
pressão. As aminas simpatominérgicas e outras
drogas estimulantes foram tentadas, mas com
pouco sucesso na maior parte dos casos. Até esse
tempo, os principais tratamentos foram a psicote-
rapia para casos moderados e ECT
223
para as de-
pressões severas. A introdução dos inibidores da
223
ECT = Eletroconvulsoterapia.
243
MAO e mais tarde os derivados dibenzazepíni-
cos
224
gerou algum otimismo em relação às várias
síndromes depressivas, que estudos clínicos
controlados têm indicado que ambos os grupos de
agentes são de fato efetivos em certos casos. Os
inibidores da MAO englobam, por melhor dizer,
um grupo heterogêneo de drogas que têm em
comum a habilidade de bloquear a desaminação
oxidativa que ocorre naturalmente nas aminas
225
.
No entanto, a relação entre a inibição da MAO e
as ações terapêuticas dessas drogas não está es-
tabelecida. Além disso, essas drogas têm outras
numerosas ações, muitas das quais continuam
pobremente entendidas até essa data. Por e-
xemplo, eles abaixam a pressão [arterial] e, no
entanto, têm uso limitado no tratamento da hi-
pertensão. (JARVIK, 1965, p.181; 1970, p.153,
grifos meus em negrito e do original em itálico)
Aqui podem ser destacados dois aspectos relacionados a esse ex-
certo: o primeiro refere-se à afirmação sobre “algum otimismo” a partir
de resultados de “estudos controlados”; o segundo, sobre a heterogenei-
dade farmacológica desse grupo de substâncias que atuam em diversas
vias metabólicas e as incoerências de suas ações com o resultado clínico.
Sobre o primeiro aspecto, novamente vale a consideração de Pig-
narre (1999) sobre os estudos controlados: eles não estabelecem relações
causais e servem para “apressar” o que se fez por séculos na prática
terapêutica: a partir de uma observação sistemática de dados empíricos
(e essa não é uma característica exclusiva da biomedicina
226
), chegar à
224
Compostos dibenzazepínicos são as drogas atualmente conhecidas por compostos tricícli-
cos, como a imipramina e amitriptilina entre outros.
225
“Desaminação oxidativa que ocorre naturalmente nas aminas”: o processo de desaminação
oxidativa que é catalisado por enzimas da família da monoamina oxidase. Elas provocam ou
“apressam” a degradação das aminas biogênicas (adrenalina, dopamina, noradrenalina, seroto-
nina) e com isso essas substâncias deixam de exercer sua atividade nas fendas sinápticas.
Existem outras aminas oxidases que têm papel importante na degradação das aminas presentes
nos alimentos e, por essa razão, as drogas que inibem a função das monoaminas oxidases (os
IMAO acabam por interferir também nas primeiras enzimas) também interferem no metabo-
lismo desses alimentos. Por isso, quando uma pessoa está utilizando medicamentos para trata-
mento de quadros depressivos, uma das restrições é para a ingestão de determinados alimentos
que contêm essas substâncias, como determinados tipos de queijo, pelo risco de reações adver-
sas relacionadas ao seu aumento no organismo.
226
Tanto não é exclusiva da biomedicina que os medicamentos modernos valem-se dos dados
de comunidades e de medicinas tradicionais sobre plantas medicinais ou outras substâncias
para escolher produtos a partir dos quais iniciam suas pesquisas sob os critérios do conheci-
mento atual. Como lembram Elisabetsky (1999) e DiStasi (1996), não é produtivo para um
244
conclusão se determinado procedimento é útil ou não para determinado
problema. Não que essa não possa ser uma estratégia válida para obser-
var o efeito do uso de medicamentos, mas que se deixar claro que os
estudos controlados também partem da observação empírica e que o
“controle” das variáveis, quando se fala em seres humanos não pode ser
feito com a mesma precisão que ocorre na pesquisa com tecidos e molé-
culas em um laboratório.
Aqui não tentativa direta de estabelecer relações causais entre
medicamentos e sintomas. No decorrer do texto são relatadas algumas
ações dos IMAO sobre as monoaminas a partir de estudos pré-clínicos, e
através de “métodos clínicos indiretos” são inferidos os efeitos metabó-
licos em humanos (como, por exemplo, a dosagem das aminas na urina
após o uso dessas drogas) (
JARVIK, 1965; 1970
). Os estudos clíni-
cos
227
destinam-se principalmente à observação dos efeitos das drogas
nos pacientes; porém, como indica a citação acima, não relação cla-
ramente estabelecida entre a ação dessas drogas e os efeitos clínicos. No
pesquisador moderno escolher uma planta aleatoriamente para buscar novos compostos. A
chance de um novo composto ser descoberto em um produto ou planta que já é utilizada há
séculos para determinado problema é visivelmente maior do que a busca aleatória, esta última
sabidamente antieconômica.
227
O protótipo dos estudos clínicos controlados é atribuído a James Lind. Em 1747, quando era
médico de um navio, ele verificou os resultados clínicos em marinheiros com escorbuto que
ingeriram alimentos com vitamina C (limão e laranja) comparando-os com outros marinheiros
no mesmo estágio da doença que não receberam esses alimentos (EVANS, I.; THORNTON,
H.; CHALMERS, I. Testing treatments: better reseaerch for better healthcare. London. Ed.
Pinter e MArtin Ltd. 2010. Disponível em: <http://www.jameslindlibrary.org/pdf/testing-
treatments.pdf>. Acesso em: 21abril 2010.). Como já foi referido anteriormente, desde o início
da farmacologia moderna, no final do século XIX, muitas drogas foram experimentadas pelos
pesquisadores em si próprios, em colegas de laboratório e em pacientes. Scheindlin (2001)
lembra que a década de 1940 foi importante para o estudo de medicamentos em humanos. Ele
lembra o estudo com digitálicos realizado em 1942 em duas clínicas cardiológicas de dois
hospitais de Nova Iorque, experiência proposta e executada por um grupo de cardiologistas.
Embora o uso de digitálicos ocorresse mais de um século na medicina, não se conhecia
sua potência para que doses adequadas fossem estabelecidas em humanos, apesar dos vários
estudos laboratoriais com animais. Esses médicos selecionaram pacientes cardiopatas e seus
eletrocardiogramas (foram incluídos aqueles com determinado padrão) e analisaram as altera-
ções quantitativas desses exames, relacionado-as com os digitálicos. Reidenberg (1999) destaca
que Evans e Hoyle (dois pesquisadores do Departamento de Cardiologia do Hospital de Lon-
dres), na década de 1930, foram os primeiros a usar o placebo em um grupo controle para
comparar com o efeito de outros medicamentos para Angina pectoris, dando origem aos estu-
dos contra placebo. Harry Gold, professor de farmacologia na Universidade de Cornell (Re-
indnberg, 1999; Aronson, 2009) é considerado o primeiro a utilizar o termo “farmacologia
clínica” (em 1950). Ele também croiu o termo “duplo controle” em 1937, durante sua pesquisa
sobre o efeito de drogas em pacientes também cardiopatas. Esse termo se refere à situação em
que o pesquisador também não tem conhecimento de qual paciente utiliza a droga e qual utiliza
o placebo, para que seja evitado o viés de conhecimento dos casos pelo pesquisador.
245
entanto, há a tentativa de entender sua relação com as aminas biológicas
através de testes como a sua dosagem na urina.
O otimismo que aparece com o resultado dos usos dessas drogas
em pacientes com sintomas depressivos é precedido do adjetivo “al-
gum”, provavelmente em função dos divergentes resultados nos estudos
clínicos. Estes, por sua vez, parecem não ser uniformes em função da
dificuldade de selecionar os casos tratados para que a realização dos
estudos seja “controlada”, além do “controle” de outras variáveis. Ao
referir-se ao “Tratamento da depressão”, um subitem em letras pequenas
de cerca de duas páginas ao final da parte que trata das “Drogas para
depressão”, o autor destaca:
A eficácia terapêutica dos inibidores da MAO não
está bem confirmada. Alguns investigadores afir-
mam que suas experiências com os inibidores da
MAO têm sido desapontadoras [...]; outros rela-
tam completamente entusiásticos que essas drogas
são efetivas [...]. Aqui novamente o desacordo
pode ser devido às diferenças nas categorias diag-
nósticas, técnicas de avaliação e esquemas de po-
sologia. [...] (JARVIK, 1965, p.203; 1970, p.192)
A eficácia dos antidepressivos foi revista por Co-
le (1964). Dependendo do observador, do paci-
ente e da situação, a depressão pode ser vista
como um sintoma, uma síndrome ou uma enti-
dade nosológica, e a perda de uniformidade em
classificar os diversos quadros clínicos conside-
rados sob a rubrica de depressão constitui o
maior obstáculo para a definição de qualquer
modalidade de tratamento. (JARVIK, 1965, p.
202-; 1970, p. 191. Grifo meu)
Novamente, os aspectos clínicos e as decisões tomadas nesse âm-
bito determinam os resultados das pesquisas farmacológicas. Na edi-
ção (BYCK, 1975, p.186), a parte grifada da citação acima é mantida.
No decorrer das próximas edições, é possível observar a tentativa de
objetivação do diagnóstico da depressão, sempre a partir de critérios
clínicos. Em última instância, é o diagnóstico que determina como serão
conduzidos os estudos com medicamentos em pesquisas pré-clínicas e
em humanos. No entanto, os textos continuam com referências aos crité-
rios clínicos na decisão do uso dos medicamentos e às dificuldades em
determinar qual medicamento deve ser prescrito. Também no texto
comentários sobre as possíveis ações dessas drogas no organismo a
246
partir de estudos farmacológicos sem que a indicação terapêutica parta
da farmacologia.
Lembrando novamente Goodman e Gilman na edição do livro,
“embora a farmacologia seja, em si mesma, uma ciência médica básica,
ela recebe contribuições de muitas disciplinas médicas e contribui li-
vremente com vários assuntos e técnicas dessas disciplinas, quer sejam
estas clínicas ou pré-clínicas” (GOODMAN; GILMAN, 1947 [1941], p.
v). Ou seja, a farmacologia está em relação contínua com outras áreas do
conhecimento. Pelo que é possível observar no decorrer da leitura do
livro-texto, sua relação com a prática clínica, incluindo os critérios diag-
nósticos, é de subordinação a esta última, e não o contrário.
Retomando os aspectos destacados no excerto da página 203, o
segundo deles se refere à heterogeneidade farmacológica desse grupo de
substâncias que atuam em diversas vias metabólicas e às incoerências de
suas ações com o resultado clínico. A ação dos IMAO sobre várias ami-
nas biogênicas, e não apenas sobre as monoaminas, faz com que essas
drogas tenham repercussão em vários locais do organismo de forma não
seletiva. Mesmo se pensarmos na ação desses medicamentos, apenas
sobre as monoaminas (adrenalina, noradrenalina, serotonina e dopami-
na
228
), como elas estão atuando em todo o organismo, as repercussões
acontecem em vários locais do corpo biológico. Os efeitos incoerentes,
como, por exemplo, aquele citado de que os IMAO abaixam a pressão
arterial mesmo não sendo bons anti-hipertensivos, refletem a inespecifi-
cidade dessas drogas, pois mesmo provocando determinado efeito (bai-
xar a pressão), elas interagem em várias vias metabólicas, e ao mesmo
tempo podem provocar outras reações ou concorrer com a ação de ou-
tras substâncias no organismo que não permitem que essa queda de
pressão se mantenha, por exemplo. A manutenção da pressão arterial,
uma condição sistêmica, exige a ocorrência de diversos fatores, e outras
substâncias estão atuando nesse processo.
Assim também parece acontecer com os chamados sintomas de-
pressivos: eles se manifestam de diferentes formas no indivíduo, como
uma reação sistêmica. Desde os sintomas diretamente ligados às emo-
ções, como irritabilidade, tristeza, angústia e ansiedade, até os sintomas
físicos, como tensão muscular, dores generalizadas e alteração do apeti-
te, entre vários outros. Os sintomas depressivos, que podem culminar
228
A dopamina é produzida no SNC e em outros locais do organismo como a glândula suprar-
renal; ela é o precursor da adrenalina e noradrenalina, ou seja, para a produção dessas duas
últimas substâncias, é preciso primeiro que o corpo produza a dopamina. A dopamina, além de
produzir adrenalina e noradrenalina, atua como neurotransmissor na transmissão neuronal.
247
num quadro intenso que pode ser chamado de “depressão”, parecem
mobilizar diversas substâncias endógenas, e o uso de medicamentos
para atuar sobre esses sintomas ocorre em diversas vias metabólicas. Ou
seja, não parece ser possível que os antidepressivos tenham uma ação
“específica”: as substâncias sobre as quais atuam estão amplamente
disseminadas no nosso organismo e, por essa razão, esses medicamentos
podem provocar várias alterações no organismo. Por isso pode-se dizer
que seu papel é de um grande sintomático.
Esta situação, percebida com o uso dos primeiros medicamentos
para tratar esses quadros, estimulou as pesquisas para a identificação de
especificidades, tanto no organismo, como foi o caso da identificação
dos vários subtipos de receptores de serotonina, como na pesquisa de
drogas que pudessem agir sobre esses locais específicos. Se comparar-
mos um IMAO, que age sobre todas as monoaminas, com um ISRS, que
age principalmente sobre a serotonina, conseguimos alguma especifi-
cidade. No entanto, como também já assinalado no capítulo sobre a
farmacologia, mais de 90% da serotonina presente em nosso organismo
está localizada fora do Sistema Nervoso Central (SNC). Qualquer medi-
camento que atue sobre a serotonina tem atuação em todos os locais em
que essa substância estiver, agindo de forma inespecífica. Mesmo com a
identificação de subtipos de receptor, e o desenvolvimento de drogas
atuando de forma mais específica, não é possível garantir que o medi-
camento atue em apenas um local do organismo, embora a ação ocorra
de forma menos inespecífica.
Na edição (1980 [1983 edição brasileira]) a seguinte refe-
rência sobre os IMAO, que se repete na 7ª (1985) e parte dela (a que está
em negrito), na 8ª (1990) edição:
Seu uso em psiquiatria se tornou muito limitado,
já que os antidepressivos tricíclicos passaram a
dominar o tratamento da depressão e condições
relacionadas. Assim, os IMAOs são usados quan-
do os antidepressivos tricíclicos dão um resultado
insatisfatório e quando a ECT é inapropriada ou
recusada. Adicionalmente, foi repetidamente su-
gerido com algum suporte científico (veja RO-
BINSON et al., 1978) que, embora esses agentes
possam não ser a indicação mais favorável para a
depressão grave, certas doenças neuróticas com
características depressivas e também ansieda-
des e fobias podem responder de maneira par-
ticularmente favorável. (BALDESSARINI,
248
1983, p.377; 1985, p.423; 1990, p.414, grifo
meu.)
Nessa citação é possível observar o papel secundário dos IMAO
no tratamento da depressão em relação aos compostos tricíclicos, algo
que ocorreu desde o lançamento destes últimos, segundo Healy
(1997), pois teriam sido esses últimos que impulsionaram os primeiros
no uso cotidiano. Mesmo que as relações causais entre as monoaminas e
os efeitos das drogas usadas para tratar situações com sintomas depres-
sivos não estejam estabelecidas, os IMAO, como já destacado por Healy
(1997) podem ter contribuído para o desenvolvimento de drogas como
os ISRS a partir do conhecimento de sua ação sobre as monoaminas. A
citação acima (parte grifada) aponta o uso dos IMAO para sintomas que
nos anos seguintes passaram a ser categorizados sob a forma de entida-
des nosológicas ou “doençase que têm atualmente os ISRS como indi-
cação terapêutica.
6.2.1.2 Os tricíclicos abrindo o mercado de medicamentos para tratar
sintomas depressivos e contribuindo para a teoria bioaminérgica
Passando à segunda classe de medicamentos apresentada na
edição, os “compostos dibenzazepínicos”, estes são descritos no segun-
do subtítulo do subitem “Drogas para depressão”. Assim se inicia sua
apresentação, que tem a parte grifada repetida na 4ª edição (1970):
Os derivados dibenzazepínicos, imipramina e
amitriptilina são as drogas mais amplamente uti-
lizadas para o tratamento da depressão. Eles po-
dem ser considerados sucessores dos inibidores
MAO, os quais por muitos anos foram considera-
dos os únicos agentes efetivos disponíveis para
essa condição. As aminas simpaticomiméticas,
tais como a anfetamina
229
e fenmetrazina
230
, e
drogas estimulantes semelhantes que atuam no
SNC, tais como o metilfenidato
231
e o pipradol
232
,
foram testadas no tratamento da depressão, mas
não atingiram as expectativas, exceto em casos
moderados nos quais um estado de euforia induzi-
do pela droga poderia ser suficiente. Embora
229
Anfetamina:< http://en.wikipedia.org/wiki/Amphetamine>. Acesso em: 22 abril 2010.
230
Fenmetrazina: <http://en.wikipedia.org/wiki/Phenmetrazine>. Acesso em: 22 abril 2010
231
Metilfenidato: é um medicamento considerado estimulante do SNC e atualmente utilizado-
para tratar o disturbio de hiperatividade e deficit de atenção atualment. (referencia)
232
Pipradol, <http://en.wiktionary.org/wiki/pipradol>, Acesso em: 22 abril 2010
249
pouco se conheça sobre a etiologia da depres-
são endógena ou dos mecanismos de ação das
drogas dibenzazepínicas, sua eficácia em alivi-
ar tal condição tem sido bem estabelecida.
(JARVIK, 1965, p.198, grifos meus)
Na edição, o subitem “Drogas usadas no tratamento das de-
sordens afetivas” traz no seu início dois parágrafos que falam sobre as
desordens afetivas: mania e depressão, consideradas “sintomas primá-
rios”, antes de passar às classes específicas de drogas (tricíclicos, IMAO
e sais de lítio). Nessa parte, o autor destaca que esses sintomas, caracte-
rizados por extremos de humor, podem ser acompanhados de psicoses,
ou o contrário, as psicoses podem apresentar esses sintomas no seu cur-
so. Além disso, “mudanças severas de humor sem psicose podem ser
acompanhadas de ansiedade” (BYCK, 1975, p.174). Após essas consi-
derações, afirma que a escolha de um antipsicótico ou um antidepressi-
vo, fica a critério do médico a partir da história do paciente e do quadro
clínico. Aqui o referência a bibliografias sobre categorias nosoló-
gicas. Como se pode observar, a depressão e a mania são consideradas
tanto uma doença (que pode ser acompanhada de sintomas psicóticos ou
não), como um sintoma (que pode acompanhar uma psicose).
Os tricíclicos são a primeira classe de medicamentos abordados, e
o texto começa com a descrição das características farmacológicas des-
sas drogas, com a afirmação, ainda no parágrafo que abre o subitem
“antidepressivos tricíclicos” que “sua eficácia em aliviar a depressão
tem sido bem estabelecida”, sem referência ao que seria “depressão”.
(BYCK, 1975, p.174). No decorrer do texto sobre os tricíclicos nessa 5ª
edição, há referência à “fisiopatologia aminérgica da depressão na tenta-
tiva de explicar as ações das drogas antidepressivas” (BYCK, 1975,
p.176).
Mais uma vez é demonstrado que, a partir do conhecimento de
ação da droga, a tentativa de atribuir a essas substâncias um papel na
fisiopatologia, mas não se tem certeza de como as monoaminas contri-
buem para os quadros com sintomas depressivos, como pode ser obser-
vado nesses outros excertos, da mesma edição:
A ação dos antidepressivos tricíclicos no metabo-
lismo das catecolaminas e indolaminas
233
no cére-
bro tem contribuído significantemente para a “hi-
pótese bioaminérgica” da depressão. O campo é
233
Catecolaminas: noradrenalina, adrenalina e dopamina (as monoaminas simpaticomiméti-
cas); indolaminas: família de neurotransmissores a qual pertence a serotonina (Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Indolamines>. Acesso em: 22 abril 2010).
250
tão complexo que somente um breve esboço é a-
presentado aqui. [...] As aminas de interesse pri-
mário são a 5-HT e a noradrenalina. [...] Todos os
antidepressivos tricíclicos bloqueiam a recaptação
da noradrenalina pelos terminais adrenérgicos
[dos nervos]. [...] [alguns] são mais potentes em
bloquear a recaptação de 5-HT. [...] A relação
desses efeitos com as ações dos antidepressivos
tricíclicos na depressão humana não é conhecida.
[...] Um parecer mais explícito [sobre as relações
entre as monoaminas e a depressão] não pode ser
feita agora, mas há esperança considerável que
eventualmente uma explicação consistente para a
depressão e seu tratamento será desenvolvida.
(BYCK, 1975, p.176).
Na edição (1980, 1983 brasileira), também no subitem que tra-
ta dos “medicamentos usados nos distúrbio de humor” e antes de entrar
no tema das drogas específicas, uma pequena introdução. Nessa in-
trodução são abordados os quadros de “distúrbios afetivos” (que inclu-
em os diagnósticos de mania e depressão), sua relação com os quadros
de psicoses e as confusões que podem ocorrer no diagnóstico diferencial
influenciando a escolha dos medicamentos. A abordagem é muito seme-
lhante à da edição (1975), mas na edição mais referências aos
sintomas incluídos nos quadros de depressão e mania, da mesma forma
que nas edições seguintes (7ª edição, 1985, e 8ª edição, 1990).
De forma geral, essas quatro edições trazem as dificuldades de
diagnóstico diferencial e de a mania e a depressão poderem ser tanto
como um sintoma como uma entidade nosológica, como apontado na
citação da página anterior, porém não de forma tão explícita quanto na
3ª e 4ª edições. A partir da 5ª edição, a mania e a depressão são apresen-
tadas antes como uma entidade nosológica do que como um sintoma,
embora essa última condição também seja possível.
Se na edição a hipótese bioaminérgica foi tratada no decorrer
do tema “tricíclicos”, na 6ª, e edições ela faz parte dessa pequena
introdução, antes das classes específicas de drogas, com a seguinte con-
sideração em todas as três edições: os inibidores da MAO e os ATD
tricíclicos têm ação sobre as monoaminas biogênicas (ou neurotransmis-
sores aminérgicos), e essa ação leva à “especulação” (termo usado na 8ª
edição de Goodman e Gilman pelo autor BALDESSARINI, 1990,
p.405) de uma “base biológica” relacionada com alterações nessas subs-
tâncias e os “distúrbios de humor” (como entidade nosológica). Ainda
que se refira à teoria aminérgica como possibilidade de explicação para
251
os sintomas depressivos, a seguinte afirmação logo em seguida: “No
entanto, pouca evidência direta sobre essa visão, e não está claro o
quanto as ações nos sistemas monoaminérgicos são cruciais para os
efeitos clínicos da maioria das drogas antidepressivas” (BALDESSA-
RINI, 1985, p. 413). Ou desta forma na edição: “No entanto, a evi-
dência dessa visão é limitada e inconsistente.” (BALDESSARINI, 1990,
p.405).
outro aspecto a ressaltar nesse trecho da introdução na e
edições: a referência ao “subdiagnóstico de depressão maior” (BAL-
DESSARINI, 1985, p. 412; 1990, p.405), uma categoria clínica que não
aparecia antes. Essa categoria não é explicitamente referida como sendo
retirada do DSM, mas o termo é incluído como uma categoria diagnósti-
ca no DSM III, em 1980, e se mantém na edição seguinte (DSM III R,
1987). Nas primeiras edições do livro-texto, havia referência ao papel do
médico no diagnóstico diferencial dos quadros clínicos e na sua relação
com o paciente como fatores importantes na escolha do medicamento,
algo que agora não é mais destacado.
A partir da década de 1960, embora o diagnóstico clínico e a de-
cisão terapêutica continuem sendo do profissional médico, cada vez
mais uma “sistematização” do que seriam as categorias diagnósticas
por especialistas, como por exemplo, as categorias citadas e as referên-
cias aos DSM, que são desenvolvidos pela Associação Americana de
Psiquiatria. Como lembra Illich, cada vez mais na era industrializada as
decisões se tornam impessoais no âmbito da prática médica e são dele-
gadas a outras instâncias, que não a da relação interpessoal médico-
paciente. Citando novamente esse autor, o médico se torna cada vez
mais um “técnico que aplica regras científicas a categorias de doentes”,
e “a despersonalização do diagnóstico e da terapêutica transferiu as
falhas do campo ético para o âmbito do problema técnico” (ILLICH,
1977 [1975], p.37). Aliando a questão técnica à questão econômica a-
pontada no início do capítulo sobre as drogas usadas em psiquiaria, o
médico torna-se cada vez mais um prescritor de condutas “padrão”. As
normas técnicas, incluindo as classificações diagnósticas, parecem sur-
gir para “dar conta” do grande número de pacientes com problemas de
saúde que “precisam” ser tratados por um profissional médico, que tem
um tempo curto a ser dedicado a cada paciente. O diagnóstico agora
possui critérios sob a forma de tabelas que podem ser encontradas, por
exemplo, nos DSM (embora não constem no livro-texto de farmacologi-
a, apenas a referência bibliográfica). Os critérios sistematizados facili-
tam a abordagem do paciente para um diagnóstico mais rápido e objeti-
252
vo, limitando a abordagem médica à parte biológica envolvida no pro-
cesso de adoecer.
Cada vez mais não há tempo para se interessar pelo contexto, pe-
las situações de vida que podem estar influenciando no aparecimento
dos sintomas do doente. O tempo é escasso, e “tempo é dinheiro”. No-
vamente lembrando Illich, ao reduzir a dor (no seu sentido mais amplo
de sofrimento) ao aspecto biológico, deixamos de lado outros aspectos
aos quais a dor costumava nos remeter: ela também funcionava como
“uma experiência do inevitável e tinha a eficácia política de limitar a
exploração do homem pelo homem(ILLICH, 1977 [1975], p. 130). As
perguntas que a dor suscitava no profissional no encontro com o pacien-
te, agora tentam ser explicadas apenas pela teoria aminérgica, ainda não
comprovada.
Embora se espere de um livro de farmacologia que trate da inte-
ração do medicamento com o corpo biológico, e não de aspectos subje-
tivos, sociais ou econômicos, o que se quer destacar é que no decorrer
dos anos esses aspectos deixaram de ser considerados para dar lugar a
uma tentativa de explicar a doença, ou o sintoma, a partir de teorias
exclusivamente farmacológicas. Não se nega a pertinência de inferir
teorias e tentar comprová-las a partir dos estudos nessa área do conhe-
cimento científico, mas que se deixar claro, como era feito nas pri-
meiras edições do livro-texto, que outros fatores concorrem na explica-
ção e na abordagem dos problemas de saúde. Não citá-los ou negá-los
demonstra a possibilidade de reducionismo explicativo e terapêutico,
algo que torna menos “científica” a teoria farmacológica, pois, mais uma
vez lembrando Goodman e Gilman, a farmacologia é uma ciência que
“vive” na interação com outras ciências básicas e com a prática clínica.
Também é possível observar, como apontado por Lacey, o quanto
é difícil, ou impossível, que o desenvolvimento de uma ciência, tal co-
mo a farmacologia, não sofra influência de valores externos a ela, como
ocorre aqui no caso dos diagnósticos influenciando as teorias aminérgi-
cas e do papel da indústria farmacêutica no desenvolvimento dos medi-
camentos. Se a farmacologia é em parte uma ciência básica, desenvolvi-
da no laboratório e, por essa razão, subordinada a valores cognitivos
próprios no seu desenvolvimento, é difícil que ela se mantenha isenta
dos valores morais e sociais de uma época e seja neutra e autônoma em
relação ao contexto médico e da sociedade em geral. Mais ainda no que
se refere a seu aspecto clínico, que a partir da década de 1950 cada
vez mais os estudos clínicos, testando o efeito de medicamentos em
humanos, tornam-se uma parte importante da pesquisa farmacológica.
Pensando assim, que é impossível isolar essa ciência do quadro socio-
253
cultural (tanto no sentido microssocial da prática médica, como no sen-
tido macrossocial da sociedade como um todo) em que ela está inserida,
mais uma vez, não citar outros aspectos (além dos farmacológicos) rela-
cionados a esses problemas de saúde reflete um reducionismo de abor-
dagem do tema.
6.2.1.3 Outros temas relacionados nos subitens “Drogas para depressão”
Desde a 3ª edição, após os subitens que tratam das classes especí-
ficas de drogas (IMAO, ATD tricíclicos e sais de lítio este último
apenas a partir da edição), um subtópico, em algumas edições em
letra pequenas, intitulado “O tratamento da depressão” (3ª e edições)
ou “O tratamento medicamentoso das desordens afetivas” (5ª, 6ª, e
edições). Apenas a avaliação dos títulos desses subtópicos já nos remete
à redução da abordagem do problema “depressão” e “desordens do hu-
mor” ao aspecto farmacológico nas quatro últimas edições, como desta-
cado acima. Nessas quatro últimas edições, a ênfase no decorrer dessa
parte do texto é para o tratamento farmacológico, como define o próprio
título. Na e edições referências a outros aspectos do problema,
como também vinha ocorrendo no decorrer de outras partes do texto
dessas duas edições.
Exemplificando com um trecho que aparece em ambas, logo a-
pós as considerações sobre a depressão como sintoma, como uma sín-
drome ou como doença:
Mais comumente, a tentativa de diferenciação en-
tre os vários quadros clínicos é feita com base na
severidade, fatores precipitantes ou a presença de
uma hipotética desordem biológica de base. A
maioria dos indivíduos tem variações cíclicas
no humor; alguns dias tristes fazem parte da
condição humana, e não é função dodico
induzir a uma perpétua euforia. Indivíduos
normais também irão exibir tristeza intensa após a
morte de alguém amado, de uma doença maior, de
um fracasso no trabalho ou uma severa queda de
autoestima. [...] Para a tristeza e o fracasso que
são parte inevitável da vida e para aqueles indiví-
duos em que a depressão se tornou um modo de
vida, a medicação antidepressiva é de pouco va-
lor; as drogas são potencialmente tóxicas e não
devem ser utilizadas até que o risco seja equili-
brado com a expectativa de algum benefício.
254
(JARVIK, 1965, p.202 e 203; 1970, p.191 e 192,
grifo meu)
A seguir o autor relaciona outros tipos de situações em que ocor-
rem os sintomas de “depressão” e que são diferentes das acima citadas,
que seriam uma resposta normal aos infortúnios da vida. São elas:
a) Aquelas em que ocorre uma resposta
exagerada aos infortúnios da vida, levando à incapaci-
tação do paciente para o desenvolvimento de suas ati-
vidades diárias, ou seja, em que há um fator precipitan-
te conhecido, mas os sintomas que surgem são incapa-
citantes. Essas seriam as “depressões reativas”;
b) As situações que incluem pacientes
que aparentemente em toda a sua vida parecem “de-
primidos”, com baixa autoestima crônica e sem prazer
em qualquer forma de interação social, que pode ser
representada por indivíduos que têm problemas de de-
pendência com álcool, narcóticos ou com comporta-
mento sociopata;
c) As situações em que os sintomas apa-
recem de forma intensa e bem marcada, mas nas quais
não é possível estabelecer um evento importante que
esteja desencadeando o quadro. Para esses últimos ca-
sos utiliza-se o termo “depressão endógena”, “depres-
são psicótica” ou “depressão involucional”, que al-
guns deles apresentam sintomas psicóticos associados.
Além dessas classificações para os quadros com sintomas depres-
sivos, a consideração de que alguns quadros psicóticos podem apre-
sentar sintomas depressivos associados, como foi apontado anterior-
mente nesse trabalho. (JARVIK, 1965, p.191; 1970, p.153)
A descrição dos sintomas relacionados à mania não é incluída
nessa parte do texto. Ela será feita no subtópico seguinte, que aborda os
sais de lítio, introduzidos pela primeira vez na edição (1965) como
parte do tratamento das doenças psiquiátricas. Embora os sais de lítio
apareçam no índice remissivo a partir da edição (1954), naquela oca-
sião eles foram apenas citados na seção “Água, sais e íons”, sem indica-
ção terapêutica. Seu interesse clínico foi citado como sendo apenas “pe-
la sua potencial toxicidade”. Na edição (1965), ele faz parte dessa
mesma seção “Água, sais e íons”, e também é referido como sendo de
pouco interesse terapêutico, porém, no final dos dois parágrafos que
falam sobre ele, a referência de um trabalho científico de 1954 que
sugere seu uso no tratamento da “doença maníaco-depressiva”.
255
A classificação da “depressão” e de sintomas depressivos na e
edições nos remete, de alguma forma, tanto às classificações dos pri-
mórdios da biomedicina como àquelas feitas nos séculos XVIII e XIX
por Pinel, Esquirol e Dagonet, em que constam os critérios “com causa”
e “sem causa” e a valorização do contexto em que o indivíduo está inse-
rido. Essa classificação também nos remete às propostas de Freud,
quando fala da tristeza como reação ao luto (por uma perda no plano
real ou imaginário), e à classificação proposta por Kraepelin em relação
à doença maníaco-depressiva e à “depressão endógena” ou “depressão
involucional”. Mais uma vez é possível perceber os vários critérios utili-
zados para abordar um problema de saúde coexistindo em determinada
época.
O que parece acontecer nos anos seguintes, e que pode ser visua-
lizado na abordagem preferencial dos fatores biológicos em detrimento
de outros aspectos a partir da 5ª edição (1975) ou de forma mais enfática
a partir da 7ª edição (1985), é que as abordagens mais antigas, que valo-
rizavam outros aspectos além do corpo biológico no aparecimento dos
sintomas ou quadros clínicos perdem espaço.
6.2.2 O final do século XX e a edição (1996): os ISRS deixam de
ser antidepressivos “atípicos”
6.2.2.1 Apresentação do capítulo e dos medicamentos “antidepressivos”
A 9ª edição do livro-texto Goodman e Gilman: as bases farma-
cológicas da terapêutica tem novidades em sua formatação, como já foi
apontado no capítulo sobre a faramcologia deste trabalho. Uma delas é
um pequeno resumo que “abre” o texto, justificado no prefácio dessa
edição pelos editores: “Cada capítulo inicia-se com uma sinopse, em um
esforço de ligar o conteúdo de cada capítulo com outros capítulos do
livro onde material complementar é discutido.” (HARDMAN; LIM-
BIRD
234
, 1996, p.xix).
O capítulo 19, denominado “Drogas e o tratamento das doenças
psiquiátricas depressão e mania”, foi escrito pelo mesmo autor do
capítulo “Drogas para o tratamento das desordens psiquiátricasda e
edições, no qual estavam incluídas as “drogas para depressão e dis-
túrbios do humor”. Ele está estruturado conforme o quadro abaixo:
234
Editores do liv.ro de Goodman e Gilman na 9ª edição
256
Quadro 6.5 Especificação do conteúdo do capítulo que trata das drogas e o trata-
mento das doenças psiquiátricas para depressão e mania no livro-texto Goodman e
Gilman, 9ª edição (1996)
Edição
Capítulo
Subtítulos
Cap.19 “Drogas e o
tratamento das doenças
psiquiátricas – depres-
são e mania”
Resumo do capítulo com dois
parágrafos;
Introdução (sem esse título);
“Antidepressivos”, com os se-
guintes subtópicos: (1) história;
(2) química e relação estrutura-
atividade; (3) propriedades far-
macológicas
SNC/SNA/Sistema Cardiovascu-
lar; (4) absorção, distribuição,
destino e excreção; (5) tolerância
e dependência física; (6) intera-
ções com outras drogas; (7) usos
terapêuticos;
“Agentes antimaníacos e estabili-
zantes do humor”;
“Tratamento medicamentoso das
desordens do humor”;
“Prospecto”.
Fonte: Baldessarini, 1996, p. 431- 460.
Assim se inicia o resumo:
O tratamento da depressão depende de um variado
grupo de agentes terapêuticos antidepressivos, em
parte porque a depressão clínica é uma síndrome
complexa de severidade amplamente variada. Os
primeiros agentes utilizados com sucesso foram os
antidepressivos tricíclicos, os quais provocam
uma ampla esfera de efeitos neurofarmacológicos
em adição à sua presumida ação primária, ou seja,
inibição da recaptação da noradrenalina (e seroto-
nina) nos terminais nervosos, levando a uma faci-
litação sustentada da função noradrenérgica, e
provavelmente serotonérgica, no cérebro. Os I-
MAO, os quais aumentam as concentrações cere-
brais de várias aminas, também têm sido usa-
dos
235
. Recentemente, uma série de agentes inova-
dores altamente bem sucedidos têm sido introdu-
235
Até esse ponto o trecho é idêntico ao início do resumo que também consta na edição seguin-
te, a 10ª, de 2001 (BALDESSARINI, 2001, p.447).
257
zidos, incluindo vários inibidores de transporte
que seletivamente bloqueiam a recaptação de se-
rotonina. (BALDESSARINI, 1996, p.431)
Logo em seguida, após mais um trecho do resumo, está a introdu-
ção do capítulo que trata do diagnóstico e da abordagem clínica das
“desordens afetivas depressão maior e mania (ou doença bipolar
maníaco depressiva) que são caracterizadas por mudanças no humor
como manifestação clínica primária.” Novamente, da mesma forma que
em edições anteriores, o autor lembra que os extremos de humor podem
ser acompanhados de psicose e que episódios de psicose podem ser
acompanhados de alterações no humor, bem como de outras doenças
“médicas”, dificultando o diagnóstico diferencial. Completa esse trecho
a seguinte afirmação: “A sobreposição das desordens pode levar a erros
no diagnóstico e no manejo clínico (American Psychiatric Association,
1994).” (BALDESARINI, 1996, p.431). Há também referência à dife-
renciação entre a depressão maior, “uma das doenças mentais mais co-
muns”, dos estados de tristeza e da “disforia” que acompanha outras
doenças.
O subitem “Antidepressivos” começa com a apresentação dos
compostos “tricíclicos”, denominação pela qual são conhecidos em fun-
ção de sua estrutura química, e o autor comenta o sucesso bem estabele-
cido desses medicamentos no tratamento da depressão maior. Em segui-
da há referência aos IMAO, surgidos logo antes dos primeiros, mas com
menor repercussão clínica em função dos seus efeitos colaterais. Em
terceiro lugar são referidos os novos antidepressivos. Os ISRS, que na 7ª
e edições eram “antidepressivos atípicos” (essa categoria continua
existindo, mas agora representando outras drogas), passam a ser antide-
pressivos incluídos nos “antidepressivos típicos”, embora esta expressão
não conste no texto como a primeira. Assim os autores apresentam essas
drogas:
Recentemente, após décadas de progresso limita-
do, uma série de antidepressivos inovadores tem
emergido. A maior parte deles, como a fluoxeti-
na”, são caracterizados como inibidores da inati-
vação da recaptação ativa da serotonina [...]; ou-
tros, incluindo a “trazodona”, “nefazodona” e
“bupropiona”, têm uma neurofarmacologia menos
bem definida e podem ser considerados “atípi-
cos”. Embora a eficácia dos novos agentes não
tenha demonstrado ser superior aos agentes
mais antigos, sua segurança relativa e tolerabi-
lidade têm levado à sua rápida aceitação como
258
os antidepressivos mais comumente prescri-
tos.
236
(BALDESSARINI, 1996, p.432, grifos
meus)
Quadro 6.6 – Drogas classificadas como antidepressivos no capítulo 19 da
9ª edição (1996) de Goodman e Gilman – as bases farmacológicas da terapêutica.
Classe do medicamento com seus representantes
(nome genérico seguido do nome comercial)
1. Inibidores da recaptação de noradrenalina (aminas terciárias tricíclicas)
Amitriptilina
Clomipramina
Doxepina
Imipramina
Trimipramina
2. Inibidores da recaptação de noradrenalina (aminas terciárias tricíclicas)
Amoxapina
Desipramina
Maprotilina
Nortriptilina
Protriptilina
3. Inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS)
Fluoxetina
Fluvoxamina
Paroxetina
Sertralina
Venlafaxina
4. Antidepressivos Atípicos
Bupropiona
Nefazodona
Trazodona
5. Inibidores da monoamina oxidase (IMAO)
Fenelzina
Tranilciclopromina
Selegine
Fonte: BALDESSARINI, 1996, p. 433-435.
O destaque é para a questão da não superioridade de eficácia em
relação a compostos mais antigos, que está em negrito na citação.
Há um quadro, que ocupa três paginas, com as drogas disponíveis
na época, sua estrutura química, dosagens usuais, efeitos colaterais nos
236
A parte em negrito é idêntica à que aparece na 10ª edição (2001), e a parte inicial dessa
citação é quase idêntica, com a diferença que nos exemplos de drogas são citados mais nomes
(BALDESSARINI, 2001, p.451).
259
diversos locais do organismo e suas características de atuação sobre as
monoaminas. Apresento aqui um resumo desse quadro (Quadro 6.6; a
cópia da original pode ser visualizada no Anexo E).
No decorrer do texto, ao abordar a história do desenvolvimento
das drogas aqui citadas e as respectivas classes de medicamentos catego-
rizadas a partir de sua estrutura química e/ou ação sobre determinadas
substâncias endógenas, referência aos tricíclicos, aos IMAO e até
mesmo ao desconhecimento do modo de ação sobre aqueles ainda de-
nominados “atípicos”.
No entanto, não referência ao desenvolvimento dos ISRS, aos
seus aspectos históricos ou a drogas relacionadas a esses medicametos.
Sobre esses compostos, Healy lembra que se as catecolaminas
(adrenalina, dopamina e noradrenalina) foram investigadas na América,
a Europa se interessou mais pela serotonina. Em 1963, aparecem estu-
dos com o triptofano (o aminoácido precursor da serotonina) e sua rela-
ção com os IMAO na Inglaterra. Nos anos seguintes, isso também acon-
tece na Holanda, Suíça e Suécia. Foi nesse último país, em Gotemburgo,
que três pesquisadores (Carlsson, Berntsson e Hans Corrodi) iniciaram
estudos com os anti-histamínicos bromofeniramina
237
e clorfenirami-
na
238
(HEALY, 1997, p.165). Provocando uma pequena alteração na
molécula da primeira substância (a partir do exemplo de estudos com
essa alteração realizados por outros pesquisadores com outras substân-
cias), Hans Corrodi, que trabalhava em uma subsidiária da Astra
239
,
produziu a zimelidina em 1972, o primeiro inibidor específico da recap-
tação de serotonina. Essa droga foi patenteada para uso como antide-
pressivo, obtendo sucesso com essa ação, e chegou a ser liberada na
Europa, mas foi retirada do mercado em 1982 por ter sido relacionada
237
Bromofeniramina ou bronfeniramina: no Brasil essa substância anti-histamínica é comercia-
lizada com o nome comercial de Dimetapp R Gel, Cápsulas e Elixir, em associação com outro
fármaco. Aqui no país a apresentação do Dimettap Expectorante não contém essa substância.
<http://www.wyeth.com.br/br/nossosprodutos.htm> ;
<http://www.medicinanet.com.br/bula/1948/dimetapp.htm> . Acesso em: 22 abril 2010
Nos Estado Unidos há várias apresentações do dimetapp. Esse medicamento é recomendado
para crianças maiores de 6 anos, após reformulações das bulas por efeitos colaterais graves em
crianças menores, inclusive levando à morte (<http://www.dimetapp.com/faq/formula.asp>.
Acesso em: 22 abril 2010
238
Clorfeniramina: anti-histamínico de primeira geração; vários outros anti-histamínicos, como
a dexclorfeniramina (Polaramine R), são derivados dessa substância
(<http://en.wikipedia.org/wiki/Chlorphenamine>. Acesso em: 22 abril 2010.
239
Desde 1999, a Astra AB, uma empresa sueca, associou-se ao grupo inglês Zeneca , forman-
do a AstraZeneca Internacional (<http://www.astrazeneca.com/about-us/history/>. Acesso em:
22 abril 2010.
260
ao aparecimento de casos da Síndrome de Guillain Barré
240
. Nos Esta-
dos Unidos o processo de aprovação pela FDA não foi concluído por
esse efeito colateral, e a droga não chegou a ser comercializada.
Em outros locais, pesquisas com drogas inibindo a recaptação da
serotonina foram desenvolvidas. Em 1983 foi lançado o citalopram na
Dinamarca pela Lundbeck
241
, que, embora não tenha feito tanto sucesso
na época quanto a fluoxetina (lançada alguns anos depois), continua no
mercado ainda hoje. A fluoxetina, com estudos iniciados também na
década de 1970, foi lançada pela Lilly
242
nos Estados Unidos em 1987
243
e nos anos seguintes em vários países da Europa. Outros compostos da
mesma classe surgiram na década de 1990, como a sertralina e a paroxe-
tina (HEALY, 166-167). A última, cujo nome comercial de lançamento
é o Praxil® foi abordada no Capítulo 5 deste trabalho.
O representante mais significativo desse grupo é a fluoxetina, que
representou os ISRS por anos, inclusive nomeando uma nova Era: a
“Era Prozac®”, em que essa classe de medicamentos surge como a “es-
trela” de uma época em toda a medicina, e não apenas na psiquiatria.
Em 1972, segundo Healy, quando os pesquisadores da Lilly estavam
estudando essa droga
Eles tinham clareza que haviam produzido um i-
nibidor de recaptação de serotonina, mas tinham
menos clareza no início sobre para que esse com-
posto poderia ser usado. Após os primeiros estu-
dos de toxicidade em animais terem demonstrado
que o composto era provavelmente seguro em
humanos, a Lilly convocou uma série de encon-
tros com investigadores clínicos para testar e de-
terminar qual mercado poderia existir para um i-
nibidor de recaptação de serotonina. [...] Foi ape-
nas no início da década de 1980, após o credenci-
amento da zimelidina como antidepressivo ter se
tornado aparente e com a percepção de que o ta-
manho do mercado de antidepressivos começou a
mudar, que a Lilly acelerou o desenvolvimento da
fluoxetina como um antidepressivo. O estudo clí-
240
HEALY, 1997, p.165; LUNDBECK ANNUAL REPORT, 2000, p.17. Disponível em:
<http://www.materials.lundbeck.com/lundbeck/82/104>. Acesso em: 25 abril 2010.
241
Lundbeck: empresa farmacêutica que trabalha com medicamentos psicoativos. Para mais
detalhes, ver: <http://www.lundbeck.com/aboutus/default.asp> Acesso em 25 abril 2010.
242
Eli Lilly: empresa de medicamentos fundadaem 1876 por Eli Lilly. Para mais detalhes ver:
<http://www.lilly.com/about/> Acesso em 25 abril de 2010.
243
1986, segundo o site da própria Ely Lilly (<http://www.prozac.com/Pages/index.aspx>.
Acesso em: 30 abril 2010).
261
nico que evidenciou suas propriedades antidepres-
sivas tornou-se disponível apenas em 1985. (HE-
ALY, 1997, p.167 e 168)
Como abordado no capítulo que trata da farmacologia, em espe-
cial dos autacoides, os pesquisadores da área sabiam que algum medi-
camento intervindo no metabolismo da serotonina haveria de surgir.
Essa substância, presente em todo o organismo, prometia um futuro
promissor àqueles que trabalhavam com o desenvolvimento de medica-
mentos. O “espaço” aberto pela difusão do diagnóstico de “depressão”
na prática clínica em um primeiro momento não foi visualizado, mesmo
pela indústria farmacêutica, que estava usufruindo dele com os tricí-
clicos. Talvez o que deva ser assinalado é que a “depressão” foi a “porta
de entrada” para essas drogas que hoje são prescritas para “quase tudo”,
que a serotonina não é uma substância exclusiva da “depressão” nem
tão pouco do “cérebro”, mas um neurotransmissor e autacoide presente
em todos os locais do nosso organismo: nas células do trato gastrointes-
tinal, em nossas plaquetas no sangue que circula em todo o corpo e nas
sinapses neuronais do SNC.
6.2.2.2 Os “usos terapêuticos” dos chamados “antidepressivos”
No subtópico “Usos terapêuticos(ver item 7 do Quadro 6.3, co-
luna “Subtítulos”) são feitas considerações sobre outros usos dessas
drogas, além do tratamento da depressão maior, foco principal de sua
indicação na 9ª edição (1996). Assim é descrito:
Em adição ao seu uso na síndrome de depressão
maior no adulto, os vários agentes antidepressivos
têm encontrado ampla utilidade em várias outras
desordens psiquiátricas que podem ou não estar
psicobiologicamente relacionadas às desordens do
humor. O estímulo para encontrar novas indica-
ções [desses medicamentos] tem aumentado com
o advento dos agentes mais novos que são menos
tóxicos, simples de usar e muitas vezes mais acei-
tos tanto por médicos como por pacientes. (BAL-
DESSARINI, 1996, p.445; 2001, p.468)
244
Essa parece ser a abertura para a grande expansão dos novos a-
gentes terapêuticos. Eles deixam de ser apenas “antidepressivos”, embo-
ra mantenham esse nome, para se tornarem drogas de múltiplos usos,
244
Esse excerto aparece também na 10ª edição do livro (2001, p.468) e na 11ª edição (2006,
p.449).
262
impulsionados por seus efeitos “menos tóxicos” e por sua “simplicidade
de uso”. O destaque vai para a parte que diz: têm encontrado ampla
utilidade em várias outras desordens psiquiátricas que podem ou
não estar psicobiologicamente relacionadas às desordens do hu-
mor”, abrindo novas possibilidades de uso para essas drogas, que nas
próximas duas edições possuirão outras indicações além de ações “anti-
depressivas”. O que veremos adiante é que eles não serão usados apenas
para “outras desordens psiquiátricas”, mas para vários problemas de
saúde, inclusive não relacionados a essa área clínica.
Mesmo seu uso para tratar o quadro de depressão maior ocorre
com esses novos medicamentos pelos atributos de “melhor tolerabilida-
de” e “segurança relativa”, ainda que para esses casos não tenham de-
monstrado eficácia superior aos mais antigos, como já foi abordado
neste trabalho anteriormente. Esses atributos são altamente questioná-
veis, principalmente se pensarmos no resultado terapêutico proposto. É
claro que se um medicamento for eficaz para o objetivo a que se propõe,
menos tóxico e mais fácil de usar, ele deve ser preferido a outro de efi-
cácia igual e que seja mais tóxico e mais difícil de usar. Mas, se olhar-
mos para a história do uso de medicamentos na prática médica, os efei-
tos colaterais passam a ser percebidos com clareza após muitos anos
de uso. Além disso, a facilidade de administração de uma droga pode
tanto ser um atributo benéfico como estimular seu uso indevido, basta
lembrar o caso dos benzodiazepínicos. No caso dos ISRS, já na década
de 1990 foram levantados alguns efeitos adversos, como o aumento do
risco de suicídio com essas drogas, principalmente em crianças e ado-
lescentes.
Entre os “outros usos” listados nessa 9ª edição estão os seguintes:
o uso de alguns tricíclicos, como a imipramina, para enurese noturna
245
em crianças e para défict de atenção e hiperatividade em crianças e adul-
tos; uso em desordens de ansiedade, incluindo pânico e agorafobia, na
desordem obsessivo-compulsiva e na desordem de estresse pós-
traumático (tricíclicos, IMAO e, em alguns desses distúrbios, os ISRS).
Após a citação desses usos há ainda a seguinte consideração:
Várias desordens psicossomáticas podem res-
ponder, pelo menos parcialmente, ao tratamen-
to com antidepressivos dos tipos tricíclico, I-
MAO ou ISRS. Estas incluem a “bulimia nervo-
sa”, mas provavelmente não a “anorexia nervosa”;
245
“Enurese noturna”: quando a criança ainda não controla o ato de urinar enquanto dorme,
mesmo já estando em idade apropriada para isso.
263
desordens com dores crônicas, incluindo diabetes
e outras síndromes neuropáticas (para as quais os
tricíclicos podem ser superiores à fluoxetina), e
fibromialgia; úlcera péptica e síndrome do intesti-
no irritável; fadiga crônica, catalepsia, enxaqueca
e apneia do sono. [...] Essas desordens podem,
ou não, ter relação com as desordens do hu-
mor. (BALDESSARINI, 1996, p.446) (Grifo
meu)
Novamente nessa edição, há a abertura para a indicação desses
medicamentos para outras situações de saúde. Além de problemas psi-
quiátricos (não necessariamente relacionados às desordens do humor),
são aqui citadas outras “desordens psicossomáticas”. Este termo torna
possível que essa droga seja utilizada em “quase tudo”, pois se utilizar-
mos a abordagem psicossomática
246
, inúmeras doenças podem conter
esse atributo. Ou ainda, se pensarmos que o corpo não está separado de
nossos sentimentos, mas que esses sentimentos podem provocar sensa-
ções ou ser “sentidos” em diversos locais do organismo, todas as doen-
ças, ou distúrbios de saúde, teriam um componente psicossomático.
Como será visto adiante, na 10ª e 11ª edições, o uso ampliado dessas
drogas, que foi apontado na edição, torna-se reconhecido, ou indica-
do, nas duas edições seguintes.
6.2.2.3 Outros subtítulos do capítulo no livro-texto
Ainda nesse capítulo que trata das drogas utilizadas no tratamento
da depressão, que como vimos são drogas que têm indicações para
sintomas diversos, e não apenas para os sintomas chamados depressivos,
um subtítulo que aborda os agentes estabilizadores do humor e anti-
maníacos, que inclui os sais de lítio. Na sequência o subtítulo “trata-
mento medicamentoso das desordens do humor”, que traz uma aborda-
gem clínica geral dos problemas listados (episódio depressivo maior,
depressão e mania), considerando-os como um amplo espectro, desde as
“reações normais de tristeza” e a “distimia” até “reações incapacitantes
que podem levar à morte”. O autor complementa: “o risco de suicídio,
no decorrer da vida, nas desordens depressivas maiores é de 10% a 15%,
mas essa estatística não representa a morbidade e os custos dessa doen-
ça, notoriamente subdiagnosticada e subtratada.” (BALDESSARINI,
1996, p.449-50). Aqui não fica bem claro o que seriam essas “desordens
246
Sobre psicossomática ver Mello Filho (1992), disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Psychosomatic_medicine> Acesso em 09.maio.2010
264
depressivas maiores”, pois no início do capítulo se falava em “episódio
depressivo maior”, mania e distúrbio bipolar.
No decorrer do texto há várias referências bibliográficas que sina-
lizam a necessidade de procurar em outros locais critérios para o deline-
amento dos quadros clínicos. Vale lembrar, como já vinha sendo apon-
tado em todas as edições anteriores, e como observamos no capítulo 1,
que categorias diagnósticas, principalmente relacionadas a distúrbios
mentais, podem se sobrepor e estão em constante mudança, dependendo
de inúmeros fatores e valores sociais e individuais. Por mais que a tenta-
tiva de objetivação venha sendo tentada, como é assinalado a partir da 6ª
edição do livro de farmacologia, essa objetivação não está dada e é
questionável de acordo com diversos autores que se referem-se aos
DSM (como Aguiar, Pignarre, Hortwitz, entre outros.)
Não é objetivo deste trabalho questionar detalhadamente a ques-
tão dos diagnósticos e a forma como são categorizados ou explorar de
forma detalhada os diversos fatores e valores que influenciam as catego-
rizações médicas que passam a considerar “doençadeterminadas situa-
ções de vida, questionando, por exemplo, o que seriam as “desordens
depressivas maiores”. Esse é um tema que tem sido explorado por vários
autores que trabalham com a medicalização de eventos da vida, ou mais
especificamente, no caso dos chamados distúrbios depressivos, a medi-
calização da tristeza, e resultaria em outro trabalho de pesquisa (CON-
RAD, 2007; HORTWITZ; WAKEFIELD, 2007; AGUIAR, 2004; PIG-
NARRE, 2001).
O objetivo principal aqui é analisar o papel que os medicamentos
antidepressivos têm ocupado no discurso, e, em consequência, na prática
médica, contribuindo para reduzir várias situações clínicas (incluindo
aquelas que podem, ou não, ter relação com as desordens do hu-
mor”, conforme citado no texto de farmacologia) a distúrbios de auta-
coides e neurotransmissores no corpo biológico. Assim, em alguns mo-
mentos tornou-se necessário abordar a questão da arbitrariedade das
classificações de sintomas e doenças, além da análise da arbitrariedade
de classificação dos medicamentos (esse sim, tema deste estudo), para
melhor entendimento do contexto em que os medicamentos chamados
antidepressivos estão inseridos.
Sobre o papel dos medicamentos nas alterações do humor, Bal-
dessarini traz as considerações que transcrevo abaixo:
Claramente, nem todo sofrimento, miséria e desi-
lusão são indicações para tratamento médico, e até
mesmo desordens afetivas severas m uma alta
taxa de remissão espontânea, proporcionando que
265
tempo suficiente (frequentemente questão de me-
ses) transcorra.Os agentes antidepressivos e anti-
maníacos são geralmente reservados para as de-
sordens de humor mais severas e incapacitantes, e
os resultados mais satisfatórios tendem a ocorrer
em pacientes que têm doenças moderadamente
severas com características ‘endógenas’ ou me-
lancólicas’ sem traços psicóticos (ver Baldessari-
ni, 1989, 1996; Associação Americana de Psiquia-
tria, 1994; Peselow et al., 1992). Os dados de pes-
quisas clínicas dando suporte à eficácia dos agen-
tes antidepressivos e sais de lítio são convincen-
tes. [...] No entanto, um número de falhas conti-
nua a ser associado a todas as drogas utilizadas
para tratar as desordens afetivas.
247
(BALDES-
SARINI, 1996, p.450)
A abordagem do enfoque clínico, trazendo o papel dos medica-
mentos a partir de um olhar geral sobre o problema da “depressão” ou
transtornos do humor, sempre esteve ao final do capítulo ou subitem, no
caso das edições anteriores a essa. Nesse espaço, os medicamentos são
inseridos em um contexto maior, mas, como foi lembrado antes, a
ordem de localização de determinados temas no decorrer de um texto,
ou discurso, acaba por priorizar o que vai ser lido. A parte do texto que
fala de farmacologia, onde pouco se considera o contexto maior de in-
serção daquele que apresenta o sintoma, vem em primeiro lugar e acaba
trazendo a mensagem principal, ou aquela mais facilmente memorizada.
Após as considerações acima, essa parte do texto continua com um tre-
cho em letras menores, que subjetivamente também atribuem papel
secundário ao texto apresentado, abordando a eficácia clínica das drogas
apresentadas nesse capítulo. Esse trecho inicia-se assim:
Fato um tanto surpreendente é que os antidepres-
sivos empregados clinicamente, como um grupo,
têm superado os placebos inativos em apenas dois
terços a três quartos das comparações controladas
[referências bibliográficas], com uma proporção
similar de indivíduos adultos deprimidos mos-
trando significância clínica semelhante. Na de-
pressão pediátrica e geriátrica, os resultados são
ainda menos claros. Os estudos em pediatria têm
falhado em demonstrar a superioridade da droga
247
Trecho idêntico é encontrado na 10ª edição, com a única diferença nas referências bibliográ-
ficas que são citadas, que são em maior número na 10ª edição (BALDESSARINI, 2001,
p.470).
266
em relação a um placebo*. [...] Apesar do seu po-
tencial de baixas respostas favoráveis à terapia an-
tidepressiva simples, pacientes com depressão se-
vera, prolongada, desabilitante, psicótica, suicida
ou bipolar requerem intervenção médica rápida e
vigorosa.
248
(BALDESSARINI, 1996, p.450)
A seguir o autor traz novamente a questão da facilidade de uso e
dos efeitos colaterais menores dos novos agentes antidepressivos, no
sentido de facilitar a medicação dos casos diagnosticados, que muitas
vezes não eram medicados pelo grande número de efeitos colaterais
conhecidos (por médicos e pacientes) dos antigos agentes. E comple-
menta: “outro problema maior com os agentes antidepressivos, é que,
por causa das taxas de resposta ao placebo tenderem a ser tão altas quan-
to 30 a 40%, a distinção clínica e estatística entre a droga ativa e o pla-
cebo é difícil de ser provada
249
” (BALDESSARINI, 1996, p.450).
Aqui, novamente, não são os estudos estatísticos ou os achados
de farmacologia básica que consideram a teoria monoaminérgica que
determinam o uso dos medicamentos, e sim a gravidade do problema, os
sintomas impossibilitantes, entre outras características citadas acima que
são percebidas de forma subjetiva no encontro do médico com o pacien-
te: o “quadro” em si. Pelo contrário, se fossem levados em conta os
estudos clínicos controlados contra placebo
250
, as drogas não deveriam
ser utilizadas. O conhecimento técnico científico sobre as drogas, assim
como acontecia nas primeiras edições do livro, serve para tornar o uso
clínico dos medicamentos mais seguro (através do conhecimento das
doses adequadas e possíveis efeitos colaterais, das vias de administra-
ção, entre outros aspectos), mas não é a farmacologia quem estabelece
quando o medicamento deve ser usado. É o mal-estar do doente, a per-
cepção do risco de que ele cometa suicídio (a partir de falas do indiví-
duo, por exemplo) ou outros sintomas considerados graves que fazem
com que o médico opte por administrar uma droga, mesmo que a chance
dela fazer efeito seja apenas de 30% além do efeito placebo. Não é o
valor quantitativo que determina o que deve ser medicamente e medi-
camentosamente tratado, e sim o aspecto qualitativo, como afirmava
Canguilhem (2006 [1966]) ao abordar as situações fisiológicas que se
caracterizam como saúde ou doença.
248
Trecho idêntico é encontrado na 10ª edição (BALDESSARINI, 2001, p.470), e um trecho
muito semelhante na 11ª edição (2006, p.450 e 451), até onde está o *.
249
Trecho idêntico é encontrado na 10ª edição. (BALADESSARINI, 2001, p.470)
250
Sobre a questão dos estudos contra placebo, ver Pignarre, 1999.
267
Após essa parte em letras menores, o texto é retomado em letras
usuais, e novamente são referidas as vantagens dos ISRS sobre os tricí-
clicos, estes últimos os “antidepressivos padrão”, nas palavras do autor.
No entanto, segue-se a advertência:
apesar da segurança geral dos agentes mais novos,
eles não são [isentos] de limitações, efeitos colate-
rais e interações com outros agentes. Eles são
também relativamente caros: os preços do supri-
mento diário de antidepressivos podem variar
mais do que dez vezes entre esses agentes.
251
(BALDESSARINI, 1996, p.450)
Aqui é trazida a questão econômica, um dos argumentos utiliza-
dos a favor do uso de medicamentos em relação a outros recursos tera-
pêuticos como, por exemplo, a psicoterapia, como foi assinalado em
edições anteriores. Nos anos seguintes, essa questão do custo dos ISRS
vai ser menos importante, pois com a queda da patente da fluoxetina, o
mais antigo medicamento dessa classe, esses medicamentos tornam-se
acessíveis ao consumidor médio, e aos de baixa renda através dos siste-
mas de saúde, como é o caso do SUS no Brasil, em que essa substância
faz parte da “cesta básica” de medicamentos fornecidos gratuitamente.
6.2.2.4 “Prospecto” do capítulo segundo o livro-texto
O capítulo termina com o “Prospecto”, seu último subitem. No-
vamente, no primeiro parágrafo é reafirmada a situação das baixas taxas
de diagnóstico e tratamento das desordens depressivas maiores, e, por
esse motivo, é destacada a importância de novas pesquisas para o desen-
volvimento de novos “agentes aperfeiçoados”. Essa expressão soa como
“medicamentos que tragam uma melhor resposta terapêutica aos quadros
clínicos, que os atuais deixam a desejar”. A seguir o autor comple-
menta:
Embora os pacientes ambulatoriais deprimidos se-
jam em número muito maior, tenham maior pro-
babilidade de melhora e recuperação e represen-
tem o maior mercado potencial
252
, eles também
são os que mais provavelmente respondam a um
251
Este trecho também é encontrado na 10ª edição (BALDESSARINI, 2001, p.470).
252
Transcrevo aqui a citação original para que não se tenha dúvidas quanto à tradução: “Whe-
reas ambulatory depressed patients are much greater in number, have de highest likelihood of
improvement and recovery, and represent the largest potential market, they also are most
likely to respond to a placebo or other nonspecific treatment, and thus represent a special
challeng.” (BALDESSARINI, 1996, p.453).
268
placebo ou a outro tratamento não específico, re-
presentando assim um desafio especial.
253
(BAL-
DESSARINI, 1996, p.453; 2001, p.474, grifo
meu)
Devo registrar que essa observação, sobre os pacientes “represen-
tarem o maior mercado potencial” foi, por não ter outras palavras para
expressar, de grande impacto para mim enquanto pesquisadora. Se até
esse ponto da pesquisa, embora houvesse em alguns momentos informa-
ções que soassem contraditórias sobre o papel do mercado e da ciência
(mesmo com suas limitações) em relação ao bem-estar do paciente, os
textos transmitiam, em geral, a tentativa de manter as informações sobre
os medicamentos e a farmacologia como um conhecimento que estava a
serviço desse bem-estar. Nas primeiras edições do livro-texto, as obser-
vações dirigidas aos médicos eram para que ficassem atentos às “tenta-
ções” do mercado, inclusive como um dos objetivos do livro-texto,
“guiar os médicos na selva terapêutica”. No decorrer das várias edições,
os trechos que se referem aos interesses da indústria farmacêutica em
conflito com os interesses do médico em tratar os pacientes, tornam-se
menos frequentes e menos explícitas nos textos em geral, embora o item
“Guia para a selva terapêutica” se mantenha até a 10ª edição (2001)
como um item específico. Nessa edição, pela primeira vez aparece
uma situação que é contrariamente visível ao que vinha predominando
nas edições anteriores.
Ao afirmar que os pacientes com sintomas não graves (sintomas
graves seriam os critérios mais importantes para tratar um paciente com
medicamentos), que respondem tanto ao placebo quanto aos medica-
mentos antidepressivos, representariam o “maior mercado potencial
para justificar o desenvolvimento de novos agentes, parece que se está
atestando quanto o desenvolvimento desses medicamentos está vincula-
do à questão do lucro da indústria farmacêutica. “Mercado” não parece
ser um termo que deveria ter espaço na argumentação para o desenvol-
vimento de um novo medicamento a partir do discurso da farmacologia
como ciência. Poderia ser um termo utilizado como argumento pela
indústria, utilizado pelos farmacologistas que trabalham na indústria,
pois “mercado potencial” não é um critério imparcial, neutro, ou que
represente a autonomia da farmacologia na justificativa para o desen-
volvimento de novas drogas.
253
Trecho idêntico é encontrado na 10ª edição (BALDESSARINI, 2001, p.474).
269
Após essa parte, ainda no “prospecto” são feitas considerações
sobre as dificuldades no desenvolvimento desses novos fármacos. Nas
palavras do autor:
A maior limitação dos esforços em desenvolver
novos agentes que alteram o humor é a falta de
uma base racional. O problema fundamental é a
continuada falta de uma fisiopatologia coerente
deixemos de lado a etiologia – da depressão maior
e dos distúrbios bipolares [...]. A depressão maior
pode representar um espectro de desordens, vari-
ando de severidades relativamente moderadas e
autolimitadas que se aproximam da dor [angústia]
humana diária até [outras situações] de doenças
extraordinariamente severas.
254
(BALDESSARI-
NI, 1996, p.453)
Essas dificuldades, ele complementa, estão relacionadas ao fato
de que não é fácil conceber um agente que altere o humor sem que atue
sobre as monoaminas de ação no SNC, ou seja, não há outra via metabó-
lica que possa ser pensada para intervir nos sintomas além daquela em
que as drogas conhecidas interferem. Um novo “pulo do gatoseria
“descobrir” outras substâncias envolvidas no aparecimento dos sinto-
mas, pois trabalhar apenas com a hipótese teórica da ação monoaminér-
gica representa, segundo o autor “tanto uma limitação conceitual à ima-
ginação dos cientistas pré-clínicos como um limite prático para os pa-
trocinadores das novas drogas em desenvolvimento” (BALDESSARINI,
1996, p.453).
A impressão que se tem é que a hipótese monoaminérgica, que
contribuiu para o desenvolvimento de vários medicamentos úteis em
situações graves, não pode justificar o desenvolvimento de novas drogas
para atuar da forma como imaginam aqueles que pretendem lançar no
mercado os medicamentos “eficazes e seguros para situações moderadas
que respondem também ao placebo”.
Outro aspecto a ser destacado na citação acima é o papel dos pa-
trocinadores, que nos remete novamente à indústria como ator importan-
te no cenário da farmacologia. Eles poderiam ser universidades e órgãos
do governo, mas, como apontado por Angell (2007), nas últimas déca-
das, mesmo nas fases iniciais, a indústria farmacêutica tem participado
das pesquisas de desenvolvimento de novas drogas, ainda que a pesquisa
comece em instituições públicas.
254
Trecho idêntico é encontrado na 10ª edição (BALDESSARINI, 2001, p.474).
270
Baldessarini cita várias linhas de desenvolvimento de novos fár-
macos. Segundo ele, nessa época mais de 125 compostos estavam em
estudo, muitos deles relacionados às classes conhecidas (tricíclicos,
IMAO, ISRS), mas sempre buscando maior seletividade. Sobre a ques-
tão da seletividade, referência aos vários subtipos de receptores de
serotonina identificados, como uma promessa para superar as dificulda-
des do desenvolvimento de novos fármacos, inclusive sugerindo ao
leitor do livro texto que leia o capítulo que fala da serotonina nessa obra
(ser a serotonina, ver item 4.2.2 desta tese). Várias drogas em estudo são
abordadas, sempre relacionando seu modo de ação com os problemas
para os quais são utilizadas, embora, como afirma o próprio autor, as
teorias farmacológicas sejam limitadas para explicar a fisiopatologia dos
distúrbios tratados. Algumas dessas drogas aparecem nas próximas edi-
ções como drogas recomendadas para uso na terapêutica médica. Por
fim, encerrando o capítulo dos “antidepressivos” nessa edição, são
citados os benzodiazepínicos, que na 10ª edição aparecem junto com os
antidepressivos para tratar os distúrbios da ansiedade. Aqui eles apare-
cem no seguinte contexto:
Outra abordagem para a área indeterminada entre
as desordens de ansiedade e a depressão moderada
está sendo explorada com os benzodiazepínicos
[...]. Drogas desse tipo [...] ou outros agentes an-
siolíticos parecem ter efeito benéfico em algumas
formas moderadas de depressão que estão entre os
tipos mais prevalentes. (1996, p.454)
Vale lembrar que os benzodiazepínicos, drogas depressoras com
atuação em vias metabólicas compartilhadas com o álcool, por exemplo,
estão longe de apresentar ações específicas. No texto são citados tipos
específicos de benzodiazepínicos, com atuação em subtipos de recepto-
res para uso na área “indeterminada” entre ansiedade e depressão. Como
exemplificado com o uso do álcool, esse modelo de indicação medi-
camentosa está centrado na droga, e não no problema de saúde, pois
apesar das reações que cada indivíduo pode ter, vai ser impossível que
qualquer um de nós não tenha seu metabolismo modificado com seu
uso. Ou seja, não é um “defeito” na via metabólica que vai ser “conser-
tado” por um medicamento específico, mas reações metabólicas que
serão modificadas por intervenção de uma substância externa. Nova-
mente reafirmando, esse tipo de uso terapêutico pode ser justificado em
situações de sofrimento intenso, em que não é possível contar com a
capacidade de autorregulação e reequilíbrio daquele acometido por al-
gum sintoma que cause limitações. O questionamento feito é em relação
271
à redução do sintoma ao aspecto biológico em quaisquer situações, tor-
nando-o passível de abordagem com o medicamento, sem considerar
fatores sociais, culturais, ambientais e psicológicos que estão levando o
indivíduo ao sofrimento, seja ele físico ou biológico.
6.2.3 O século XXI: 10ª (2001) e 11ª (2006) edições
A 10ª e a 11ª edições têm o título do capítulo que trata dos “anti-
depressivos” reformulado: agora eles não estão mais relacionados à
depressão e à mania, e sim à depressão e à ansiedade. Essa é uma modi-
ficação importante, pois as drogas para depressão e a mania sempre
foram abordadas em uma mesma seção ou capítulo desde a edição do
livro. Além disso, as “desordens de ansiedade”, que foram introduzidas
como condições tratáveis com os antidepressivos na edição, agora
estão em “pé de igualdade” com a “depressão” em relação a essas dro-
gas, nomeando o capítulo nessas duas últimas edições.
Em cada uma dessas edições especificidades em relação ao
conteúdo e à forma de abordagem, embora alguns trechos, figuras expli-
cativas e a apresentação dos medicamentos sob a forma de uma ampla
tabela com as drogas listadas segundo sua classe terapêutica sejam idên-
ticos ao que foi apresentado na edição (1996). De forma geral, é pos-
sível perceber que a 10ª edição tem uma estruturação “melhor”, ou mais
didática, do que a 9ª e a 11ª edições. Por exemplo, na 10ª há um subtítu-
lo introduzindo a psicofarmacologia, que esse é o primeiro de dois
capítulos que tratam dos psicofármacos. A impressão geral é de que os
capítulos da edição que tratavam do tema “drogas e doenças psiquiá-
tricas”, apesar de reformulados, foram reescritos e ganharam um “aca-
bamento” melhor ao final.
Não é possível dizer o mesmo da 11ª edição. A organização dos
subtítulos não parece fazer sentido, como no caso do tema “Caracteriza-
ção das desordens depressivas e de ansiedade”, que contém os subtópi-
cos “Antidepressivos” e “Tratamento medicamentoso das desordens do
humor” e do qual está excluido o subtópico “Farmacoterapia da ansie-
dade”, que consta como um subtítulo separado.
Essa edição, como foi relatado antes, é a primeira que não tem
“nenhum Goodman e nenhum Gilman” participando, nem da escrita
nem da editoração da obra, o que provavelmente acarreta modificações
na estruturação do livro, até mesmo por preferências pessoais. Além
disso, os editores dessa obra destacam no prefácio que tentaram diminu-
ir o máximo possível o volume do livro, muitas vezes restringindo de
forma incisiva o que os autores dos capítulos escreveram. Essa restrição
272
intensa pode ter influenciado no formato final do capítulo analisado, que
passou a impressão subjetiva de “mal estruturado”.
Quadro 6.7 – Subtítulos do capítulo que trata das drogas para depressão e ansiedade
na 10ª edição do livro-texto de farmacologia Goodman e Gilman.
Edição
Capítulo
Subtítulos
10ª Edição
(2001)
Cap.19 “Drogas e o
tratamento das doenças
psiquiátricas – depres-
são e desordens de
ansiedade”
Resumo do capítulo com dois
páragrafos
Introdução: “Psicofarmacologia”,
com os seguintes sub tópicos: (1)
história; (2) nosologia; (3) hipóte-
se biológica na doença mental; (4)
identificação e avaliação das dro-
gas psicotrópicas;
Tratamento das desordens depres-
sivas e de ansiedade
(A) “Antidepressivos”, com os se-
guintes subtópicos: (1) história;
(2) química e relação estrutura-
atividade; (3) propriedades far-
macológicas SNC/SNA/Sistema
Cardiovascular; (4) absorção, dis-
tribuição, destino e excreção; (5)
tolerância e dependência física;
(6) reações xicas e efeitos cola-
terais; (7) interação com outras
drogas; (8) usos terapêuticos;
(B) “Tratamento medicamentoso das
desordens do humor”;
(C) “Drogas usadas no tratamento da
ansiedade”
Prospecto contendo dois subitens:
(1) “Novos tratamentos para a de-
pressão maior e desordens de an-
siedade” e (2) “Novos tratamen-
tos para as desordens da ansieda-
de”;
Fonte: Baldessarini, 2001.
Quadro 6.8 – Subtítulos do capítulo que trata das drogas para depressão e ansiedade
na 11ª edição do livro-texto de farmacologia Goodman e Gilman
Edição
Capítulo
Subtítulos
Introdução (sem esse título e
273
11ª Edição Cap.17 “Terapia medi-
camentosa da depressão
e das desordens de
ansiedade”
contendo o subitem “Hipótese
biológica da doença mental”);
“Caracterização das desordens
depressivas e de ansiedade”;
(A) “Antidepressivos”, com os se-
guintes subtópicos: 1) história;
(2) química e relação estrutura-
atividade; (3) propriedades far-
macológicas; (4) absorção e bio-
disponibilidade; (5) distribuição
e monitoramento dos veis séri-
cos; (6) metabolismo, meia vida
e duração da ação; (7) interação
com as isoenzimas do citocromo
P450; (8) tolerância e dependên-
cia física; (9) efeitos advesos;
(10) usos terpêuticos;
(B) “Tratamento medicamentoso das
desordens do humor”;
“Farmacoterapia da ansiedade”
“Sumário clínico”
Fonte: Baldessarini, 2006, p. 429-459.
As classes de medicamentos chamados antidepressivos são as
mesmas apresentadas na 9ª edição (ver Quadro 6.5). Na tabela que apre-
senta essas drogas (ver anexo 2 e 3), a diferença em relação à edição
está em algumas drogas acrescentadas na categoria ISRS e antidepressi-
vos atípicos, tanto na 10ª como na 11ª edição.
De forma geral, os subtópicos e a forma como são abordados na
10ª edição são muito semelhantes à edição, muitas vezes com trechos
idênticos (ver notas de rodapé ao longo da parte em que abordo a
edição, indicando quais excertos são iguais nas duas edições). Partes de
alguns excertos citados da edição também estão na 11ª edição (ver
notas de rodapé indicando).
Uma diferença importante, tanto na 10ª quanto na 11ª edição, é
que os distúrbios de ansiedade deixam de ser parte da área indetermi-
nada”, para se tornarem de uma nova área, agora “definida”. Eles são
abordados no subtítulo “Drogas usadas no tratamento da ansiedade”, e
no “Prospecto” ocupam dois subtítulos (ver Quadro 6.6).
Outro aspecto importante da 11ª edição, que em geral marca uma
grande diferença entre esta edição e todas as demais, são as “ausências”,
tal como a ausência de definições. Como já havia sido abordado no capí-
tulo que analisa a farmacologia a partir do livro-texto, pela primeira vez,
274
desde a 1ª edição, não aparece definição do que seria a farmacologia. No
capítulo que trata das drogas para “depressão e desordens da ansiedade”
(cap.17, 2006), os termos são introduzidos no texto sem que seja feito
qualquer tipo de conceituação. Por exemplo, se na 10ª edição (2001) o
capítulo 19, que equivale a esse da 11ª, inicia com considerações sobre a
psicofarmacologia, tem um subitem intitulado “Hipótese biológica sobre
a doença mental” e define como as drogas psicoativas (“agentes psico-
trópicos” no texto) são classificadas, na 11ª edição os termos técnicos
são lançados no texto sem serem caracterizados. Por exemplo, no capítu-
lo 19 da 10ª edição encontramos:
Os agentes psicotrópicos podem ser classificados
em quatro categorias maiores. Os agentes “sedati-
vo-ansiolíticos”, particularmente os benzodiazepí-
nicos, são aqueles utilizados na terapia medica-
mentosa das desordens de ansiedade; sua farmaco-
logia é estudada no capítulo 17. Os “antidepressi-
vos” (agentes que elevam o humor) e as drogas
antimaníacas ou “estabilizantes do humor” (espe-
cialmente os sais de lítio e certos anticonvulsivan-
tes; ver capítulo 20) são aqueles utilizados para
tratar as desordens afetivas ou do humor e situa-
ções relacionadas. As drogas antipsicóticas ou
neurolépticas são aquelas utilizadas para tratar do-
enças psiquiátricas muito severas, as psicoses e
mania [...]. (BALDESSARINI, p.448, 2006)
no texto equivalente do capítulo 17, 11ª edição (2006), o autor
assinala que
Os agentes antipsicóticos, estabilizantes do humor
e antidepressivos utilizados para tratar as doenças
mentais mais severas têm tido um impacto digno
de nota na prática psiquiátrica e na teoria um
impacto que legitimamente pode ser designado
revolucionário e que está experenciando inovação
continuada. (BALDESSARINI, 2006, p.429)
Nessa última edição não fica explícito o que são “agentes antipsi-
cóticos, antidepressivos e estabilizantes de humor”. Lembrando Orlandi
(1999, 2005), são as opacidades do discurso, mais do que as transparên-
cias, que interessam em uma análise crítica sobre o que está sendo dito.
Ao não dizer o que significam essas denominações, permite-se, por
exemplo, a interpretação (naturalizada, como se essa fosse possível)
de que as drogas “antidepressivase “antipsicóticas” agem “contra” as
depressões e psicoses. Seria uma ação curativa? Seria uma ação inter-
vindo sobre o sintoma? Diferentemente, no excerto anterior a este últi-
275
mo, ao definir que os antidepressivos
255
são “agentes que elevam o
humor”, parece estar sendo atribuído um papel sobre o humor, modifi-
cando o humor de diferentes formas, que “humor” é algo que todos
nós possuímos. As conotações do texto tornam-se diferentes nos dois
tipos de abordagem. Em relação a essa que aparece na 10ª edição, abre-
se um leque de possibilidades, ao passo que no trecho que aparece na
11ª edição, o lugar dos antidepressivos fica preso à “depressão”, poden-
do dar margem à interpretação “não dita” que todos os problemas para
os quais se usam antidepressivos estão relacionados à depressão ou a
alterações metabólicas relacionadas a ela.
Da mesma forma, quando, na apresentação do capítulo, se afirma
que “os agentes antipsicóticos, estabilizantes do humor e antidepressivos
utilizados para tratar as doenças mentais mais severas têm tido um im-
pacto digno de nota na prática psiquiátrica e na teoria”, abre-se a possi-
bilidade de interpretação de que no decorrer do capítulo se estará abor-
dando as doenças graves, em função do adjetivo “severa”. No entanto, o
que é possível observar ao fazer a leitura do capítulo é que este trata de
vários tipos de condições clínicas, inclusive as não psiquiátricas e aque-
las situações que incluem sintomas mentais, mas que poderiam não ser
consideradas graves ou severas. Não explicitação, no início do capí-
tulo, daquilo que vai ser abordado. O “não dito”, como pontuado, é
mais frequente nessa 11ª edição do que em outras.
Ainda assim, no decorrer do texto sobre as drogas para depressão
e desordens da ansiedade na 11ª edição, reafirmam-se questões que
apareciam antes: logo no início, o autor lembra do não esclarecimento
de como ocorre o processo fisiopatológico das chamadas “desordens
mentais”, apesar de todos os avanços na produção de fármacos para
tratar esses problemas (BALDESSARINI, 2006, p.429), a não superio-
ridade dos chamados antidepressivos sobre o placebo em muitos estudos
(2006, p.451) e a não precisão dos diagnósticos psiquiátricos, dificul-
tando a escolha do tratamento medicamentoso. Também, como vinha
ocorrendo em outras edições, referência aos DSM para auxiliar esse
diagnóstico diferencial (2006, p.430), referindo aos especialistas a atri-
buição de critérios para determinação do quadro clínico.
Outra situação digna de nota na 11ª edição (2006) é o subitem
“Interações com as isoenzimas do citocromo P450”, que trata das intera-
ções das drogas antidepressivas com o metabolismo dessas enzimas a
partir das determinações genéticas que influenciam essas últimas. Esse é
um tema relevante, pois um dos destaques dessa 11ª edição é a aborda-
255
O itálico é do original.
276
gem da farmacogenética nos diversos capítulos como uma estratégia de
individualização da terapêutica para os pacientes. Esse não é o tema
deste estudo, mas vale pontuar que toda essa edição vem permeada por
esse enfoque, inclusive o site da editora que divulga o livro aponta para
o novo capítulo da obra, que tem o título “Farmacogenética”, como um
dos diferenciais dessa edição. A relação da genética com a farmacologia
havia sido introduzida na edição (1970), mas aqui na 11ª ela ocupa
um grande espaço no discurso farmacológico, como não havia ocorrido
até então.
Esses são alguns pontos que diferenciam as últimas edições das
primeiras. Temas que já vinham sendo vislumbrados, como a questão da
genética, ganham um grande espaço; temas que vinham perdendo espa-
ço desde as edições do final do século XX, como a contextualização de
aspectos sociais, econômicos e da vida do paciente tratado, quase desa-
parecem; temas como a ampliação do uso das drogas antidepressivas
para diversas situações e sintomas clínicos, que é introduzido a partir da
9ª edição, se estabelecem de forma mais incisiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O surgimento dos medicamentos para tratar situações clínicas re-
lacionadas a sintomas depressivos, no sentido de “baixo funcionamen-
277
to”, ou “redução da função”, a que esse termo se refere (pelo menos no
início da sua introdução na biomedicina
256
esse era o sentido), ocorre
por volta da metade do século XX. Se anteriormente alguns medicamen-
tos eram utilizados para tratar esses sintomas, não havia uma classe de
drogas específicas, como ocorre a partir dessa época.
No livro-texto de farmacologia de Goodman e Gilman, essas dro-
gas aparecem de forma explícita a partir da 3ª edição (1965), mesmo que
tenham sido introduzidas na prática biomédica alguns anos antes. Essa é
uma característica que vai ser observada em relação ao conhecimento
farmacológico no livro-texto: a abordagem dos temas relacionados aos
medicamentos, de uma forma geral, sempre ocorre alguns anos após os
estudos e/ou a introdução na prática clínica terem ocorrido. Essa é uma
característica citada pelos próprios autores no início do livro, lembrando
que o conhecimento científico está em constante mudança, e o tempo
necessário para a pesquisa daquilo que vai ser inserido no livro acaba
por não refletir os acontecimentos do momento em que o livro é editado,
mas sim o que aconteceu alguns anos antes.
É certo que nas últimas edições, principalmente as que ocorrem
no século XXI (2001 e 2006), esse “hiato de tempo” entre os aconteci-
mentos (pesquisas, indicações clínicas e surgimento de efeitos colaterais
observados após o uso ampliado do medicamento, por exemplo) e o que
está no livro-texto diminui, como é apontado pelos editores (no prefácio
da obra) ao se referirem às mudanças na comunicação na época da inter-
net. A partir da edição (1965), aparece o termo “antidepressivo” para
caracterizar um conjunto de drogas que é utilizado para tratar sintomas e
síndromes relacionadas à depressão, uma situação clínica que passa a ser
categorizada como entidade nosológica também por volta da metade do
século XX. Esse período, logo após a Segunda Guerra, é um período de
mudanças significativas em todo o mundo, que teve como reflexo mu-
danças na biomedicina e na produção e pesquisa de medicamentos. Co-
mo afirma Hobsbawm (1995):
A uma Era de catástrofe, que se estendeu de 1914
até depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-
se cerca de 25 a 30 anos de extraordinário cresci-
mento econômico e transformação social, anos
que provavelmente mudaram de maneira mais
profunda a sociedade humana que qualquer outro
período de brevidade comparável. Retrospectiva-
mente, podemos ver esse período como uma espé-
cie de Idade de Ouro, e assim ele foi visto quase
256
Ver item 2.4 deste trabalho, em especial p.64 a 66.
278
imediatamente depois que acabou, no início da
década de 1970. (HOBSBAWM, 1995, p.15)
A farmacologia, a ciência que estuda a ação de substâncias en-
dógenas e exógenas no organismo, teve sua segunda grande expansão
nessa época (a primeira ocorreu com o isolamento de substâncias utili-
zadas como medicamentos por centenas de anos, no final do século
XIX). A farmacologia está sujeita a valores próprios do conhecimento
científico, assim como aos valores pessoais e sociais dos pesquisadores
e do momento histórico. Uma das influências que recebeu, desde os
primórdios, foi da indústria farmacêutica, pois parte do desenvolvimento
da farmacologia ocorreu dentro da própria indústria.
A indústria é um segmento da sociedade que, além de oferecer
um produto a ser usado no tratamento de problemas de saúde, visa o
lucro, e esse é um aspecto que não pode ser dissociado do desenvolvi-
mento dos medicamentos: além de úteis, eles devem proporcionar ga-
nhos financeiros. Se a “Era de Ouro” teve como uma de suas grandes
características a expansão industrial, embora não seja “tão seguro que a
revolução tecnológica” a explique
257
, por outro lado “as principais ino-
vações que começaram a transformar o mundo assim que a guerra aca-
bou talvez tenham sido as do setor químico e farmacêutico”
258
(HOBS-
BAWM, 1995, p.265).
Inicialmente os avanços nessa área ocorreram com a introdução
dos antibióticos, mas, a partir dessa projeção, a indústria farmacêutica
expandiu-se e ganhou espaço na prática biomédica, como afirmam Go-
odman e Gilman na edição do livro texto (1954), apontando, inclusi-
ve, para os riscos dessa grande expansão. Os autores referem, nessa
ocasião, que um dos objetivos do livro-texto é contribuir para que os
médicos façam escolhas adequadas no contexto da “selva terapêutica”
que invade o mercado de medicamentos. A partir da 3ª edição (1965)
um item denominado “Guia para a selva terapêutica”, que desaparece na
11ª edição.
Além disso, a farmacologia é uma área do conhecimento que in-
terage com outras áreas, como afirmado pelos autores Goodman e Gil-
man, influenciando e recebendo contribuições de outras ciências e da
257
Sobre esse período, Hobsbawm (1995) afirma que “muito da industrialização nessas déca-
das deveu-se à disseminação a novos países de processos baseados em velhas tecnologias”
(p.265)
258
Sobre a influência dos setores químico e farmacêutico, Hobsbawm destaca que “seu impacto
na demografia do Terceiro Mundo foi imediato. Os efeitos culturais foram um pouco mais
lentos, mas não muito, pois a revolução sexual no Ocidente se tornou possível em função dos
antibióticos – desconhecidos antes da Segunda Guerra Mundial” (HOBSBAWM, 1995, p.265).
279
prática clínica, e esta última também sofreu mudanças importantes no
período após a Segunda Guerra, acompanhando o processo de transfor-
mações da sociedade de forma geral. A partir do livro-texto, é possível
perceber que, embora a farmacologia possua certa autonomia (tanto em
seus métodos quanto nas suas regras de desenvolvimento, por exemplo),
está em constante diálogo com a prática clínica. Embora hipóteses teóri-
cas e pesquisas com drogas influenciem o desenvolvimento de novos
fármacos, quem determina quais as situações que são de sofrimento, que
merecem ser tratadas ou não com medicamentos, ainda é a prática clíni-
ca. Repito aqui a citação de Canguilhem afirmando que
são os insucessos da vida [o que consideramos
doença ou “mau funcionamento”] que chamam
e que sempre chamaram a atenção para a vida.
[...] É a própria vida, pela diferença que estabelece
entre seus comportamentos propulsivos e seus
comportamentos repulsivos, que introduz na cons-
ciência humana as categorias de saúde e doença.
Essas categorias são biologicamente técnicas e
subjetivas, e não biologicamente científicas e ob-
jetivas. [...] Em resumo, a distinção entre a fisio-
logia e a patologia tem, e pode ter, um valor
clínico. (CANGUILHEM, 2006 [1966], p.170 e
171)
Ou seja, a farmacologia está subordinada à prática clínica: são os
critérios clínicos que impulsionam o desenvolvimento da farmacologia,
e não o contrário. Não cabe aqui abordar como esses critérios clínicos
são estabelecidos
259
, o que é considerado “bom” ou “mau”, saúde ou
doença, a partir da clínica. Como foi abordado neste trabalho, isso
está condicionado a valores pessoais e sociais em determinado momento
histórico. O quanto a indústria farmacêutica influencia a criação ou ex-
pansão dos diagnósticos clínicos para promover a expansão do mercado
de medicamentos não foi diretamente observado no livro-texto, mas essa
é uma questão que tem sido levantada por diversos autores
260
e que foi
259
Esse não foi o objetivo deste trabalho, há vários estudos que analisam a questão dos DSM e
as classificações clínicas, questionando critérios diagnósticos, que se ocupam dessa questão e
que foram citados no decorrer deste trabalho.
260
No caso dos medicamentos psicoativos, por exemplo, Healy (1997) e Conrad (2007). De
uma forma geral, ver por exemplo Sismondo (2007) “Ghost management: how much of the
medical literature is shaped behind the scenes by the pharmaceutical industry?” Disponível em:
<http://medicine.plosjournals.org/archive/1549-1676/4/9/pdf/10.1371_journal.pmed.0040286-
S.pdf > Acesso em 23 agosto 2008.
280
pontuada sempre que apareceram indícios da relação da farmacologia
com o mercado.
Uma exceção foi o trecho da edição sobre a possibilidade de
que os pacientes depressivos representassem “o maior mercado em po-
tencial” para o desenvolvimento de pesquisas com “agentes aperfeiçoa-
dos” para seu tratamento. O termo “mercado” nos remete ao medica-
mento como mercadoria e a uma preocupação do autor com esse aspec-
to, ao invés da abordagem do medicamento como um agente terapêutico.
Em outras edições, principalmente nas primeiras, as considerações eram
no sentido de alertar os médicos para os “perigos” que a indústria e o
mercado representavam para a prática médica. Portanto, a forma como o
livro se referiu à indústria e ao mercado é diferente nas várias edições.
Essa foi uma questão que se tornou visível a partir da análise histórica,
observando as mudanças de discurso em relação a esse segmento. É no
decorrer da leitura de cada uma das edições, que em alguns momentos
sofrem pequenas modificações e em outros grandes modificações (com
reestruturação quase total de suas seções e capítulos), que é possível
perceber o reflexo de transformações ocorridas no âmbito maior da soci-
edade, muitas vezes influenciadas pelo lançamento de novos fármacos.
A importância dos aspectos históricos foi um tema inicialmente
valorizado por Goodman e Gilman quando escreveram as primeiras
edições. O sucesso da primeira edição do livro ocorreu em parte, segun-
do relato de Altman (2000), ao enfoque histórico do desenvolvimento
dos medicamentos em uma época em que a farmacologia não tinha
grande projeção (1941). No decorrer dos anos, essa abordagem foi sendo
cada vez menos valorizada até desaparecer quase completamente do
livro-texto em sua última edição.
Outro aspecto que também aparecia no livro-texto e que vai sen-
do excluído nas últimas edições é o da contextualização dos aspectos
sociais e econômicos que envolvem o desenvolvimento da farmacologia
e do uso abusivo de medicamentos. Também a referência ao paciente, ao
indivíduo doente, cede espaço à referência às drogas, seja de forma ob-
jetiva, deixando de falar desses aspectos, ou de forma subjetiva, com a
introdução da “farmacocinética”. Se nas primeiras edições as drogas
eram abordadas em relação ao paciente, nas últimas elas tornam-se ato-
res principais, ou pelo menos dividem o cenário: a grande “virada” apa-
rece na edição do livro (1975), quando a farmacocinética, a subdivi-
são da farmacologia que estuda as drogas e seus caminhos no organismo
passa a ganhar destaque e dividir o espaço com a farmacodinâmica, a
subdivisão da farmacologia que estuda as drogas e sua interação com
organismo.
281
Este estudo reafirma a importância desses aspectos (históricos, de
contextualização do indivíduo e de contextualização social e econômica
do desenvolvimento de fármacos) na divulgação científica, que ela é
instrumento, no caso do livro-texto, de formação dos profissionais mé-
dicos e da área da saúde. Sua “não presença”, tal como ocorre princi-
palmente nas últimas edições do livro-texto, pode estar refletindo a in-
fluência de fatores externos à própria farmacologia que, no entanto,
precisam ser silenciados ou não expostos, como, por exemplo, os víncu-
los com a produção de medicamentos pela industria farmacêutica.
As estratégias argumentativas para o desenvolvimento de medi-
camentos passam pelo alívio do sofrimento e da dor em determinadas
situações de vida, como já foi pontuado com a argumentação de Cangui-
lhem. O que foi possível observar no decorrer da análise do livro-texto,
tanto em relação à farmacologia de forma geral, como em relação aos
medicamentos chamados antidepressivos, é que não são as teorias far-
macológicas, que tentam explicar funcionamentos fisiopatológicos, que
determinam o uso das drogas. Mesmo quando são utilizados argumentos
a partir dos estudos dessa área do conhecimento, sempre a ressalva
dos autores de que ainda não se comprovou esta ou aquela teoria, que há
“indícios” de que esta ou aquela substância atua em determinada via
fisiopatológica, que se pretende ainda encontrar o “elo perdido” que faz
a ligação entre as substâncias endógenas, os medicamentos que agem
sobre elas e os sintomas clínicos.
Assim, é possível constatar que os avanços farmacológicos ocor-
reram principalmente no âmbito da técnica, um dos caminhos pelo qual
a ciência costuma trilhar. Se, por um lado, as ciências naturais, e aqui se
inclui a farmacologia, m uma vertente que busca explicações para os
fenômenos da natureza, por outro lado, têm um âmbito que está relacio-
nado à manipulação da natureza mais do que à busca de explicações
causais. Nessa direção, a farmacologia apresenta duas linhas de desen-
volvimento: a primeira delas se refere à parte técnico-científica que,
estudando o modo de ação das diferentes substâncias, fornece subsídios
para o desenvolvimento de fármacos (drogas ou medicamentos) que são
úteis na terapêutica. A segunda procura, a partir do conhecimento de
como determinadas substâncias ou drogas agem no organismo, buscar
relações causais entre essas substâncias e o aparecimento de sintomas.
Sobre essas duas direções em que caminha, a farmacologia tem
contribuído muito mais no aspecto técnico-científico, de manipular as
substâncias e transformá-las em medicamentos que podem ser úteis em
determinadas situações de vida, do que trazendo explicações para as
causas dessas situações. Provavelmente isso ocorra em função da influ-
282
ência da indústria farmacêutica, que, como pode ser observado no decor-
rer do trabalho, está ligada ao desenvolvimento da farmacologia desde
seus primórdios, quer seja de forma direta ou indireta. Ou seja, os dire-
cionamentos da pesquisa na produção de fármacos visam um produto da
técnica, que gera lucro para as empresas. Por essa razão, esse aspecto do
conhecimento científico é privilegiado no início do processo em que
são escolhidas as linhas de pesquisa farmacológica. Em especial, no
caso dos medicamentos hoje chamados antidepressivos, foi possível
observar, através da pesquisa nos livros-texto de farmacologia, que essas
drogas foram desenvolvidas para tratar problemas de saúde em que apa-
reciam sintomas depressivos (no sentido de baixo funcionamento, como
sugere seu uso inicial). No entanto, também é possível perceber que seu
desenvolvimento acompanhou o interesse dos pesquisadores em “desco-
brir” funções para substâncias endógenas, tais como a histamina e a
serotonina. A partir do momento em que se percebeu que elas estavam
amplamente distribuídas no organismo e participavam de várias funções,
essas substâncias passaram a ser exaustivamente estudadas, isso por
volta das décadas de 1940, 1950 e 1960.
Em um primeiro momento, o interesse estava na histamina como
substância importante no metabolismo de reações agudas, como proces-
sos inflamatórios, traumas e o choque cardiogênico, esta última uma
situação grave, que coloca em risco a vida do paciente. No entanto, não
houve nenhuma “descoberta” importante na área de desenvolvimento de
fármacos com essa substância para situações agudas e graves. O que
aconteceu foi o desenvolvimento de drogas para situações intermediá-
rias. A partir do desenvolvimento tecnológico de recursos para estudar
cada vez mais o organismo em nível microscópico, até o nível molecu-
lar, foi possível observar locais de ação dessa substância no organismo,
desvendando locais de ação e participação em várias vias metabólicas.
Em paralelo a essa situação, foi também observada a ação das
substâncias anti-histamínicas em situações clínicas relacionadas a diag-
nósticos e sintomas psiquiátricos, a partir dos relatos clínicos. Ou seja,
não foi um conhecimento a partir da farmacologia que indicou o uso
inicial desses medicamentos para os problemas relacionados à saúde
mental, e sim o contrário. Nesse momento também se percebeu que
alguns desses compostos, com pequenas modificações, atuavam no me-
tabolismo da serotonina, outra substância “descoberta” nessa mesma
época e que “prometia” ser importante nas pesquisas farmacológicas.
Ao mesmo tempo em que isso acontecia no âmbito da farmaco-
logia, na prática clínica percebeu-se que os problemas relacionados à
saúde mental ocupavam grande espaço na prática médica, agora em um
283
novo momento em que apareciam cada vez mais indivíduos com sofri-
mento moderado, em nível ambulatorial, além daqueles internados. O
tratamento medicamentoso surgiu como uma estratégia para lidar com
um número grande de pessoas então diagnosticadas com esses proble-
mas. Além disso, como demonstram outros autores, surgiu também a
perspectiva de um novo mercado, a partir da década de 1970, para os
quadros clínicos com sintomas depressivos.
Novamente, um estímulo externo à farmacologia. Dessa vez não
a partir da prática clínica, mas do mercado, impulsionou a farmacologia
no desenvolvimento de fármacos relacionados a esses sintomas. É essa a
direção preponderante. Embora tenha havido tentativas de relacionar
substâncias endógenas e suas alterações metabólicas com o surgimento
de determinados quadros clínicos a partir da inferência de teorias rela-
cionadas a essas substâncias, até hoje não é possível afirmar que estas
sejam responsáveis pelo aparecimento desses quadros. É possível sim
agir sobre essas substâncias e alterar sintomas através de medicamentos
que foram produzidos para esse fim.
Em relação às drogas que atuam sobre a serotonina, o conheci-
mento farmacológico permitiu saber que a ação dessas drogas não foi
superior à ação de medicamentos mais antigos, como os compostos
tricíclicos. Especificamente para os sintomas depressivos mais impossi-
bilitantes, estes compostos continuam sendo indicados. Mais ainda, os
próprios tricíclicos não são superiores ao tratamento com placebo, se-
gundo vários estudos, ou têm resposta muito pouco acima destes, tra-
zendo a questão das categorias diagnósticas como uma questão de difícil
abordagem, pois classificações são úteis para lidarmos com a realidade,
mas não podemos confundi-las com a realidade.
Essa questão do que caracteriza determinado quadro clínico como
doença ou não doença, ou como uma doença específica, como foi possí-
vel observar com a abordagem histórica dos sintomas relacionados a
tristeza, melancolia e depressão, e mesmo nos excertos do livro-texto, é
algo em constante mudança. O que finalmente determinaria o uso ou não
de uma droga em certas situações clínicas seriam as percepções subjeti-
vas de sofrimento e a gravidade intensa, que justificaria o uso de um
medicamento que não tem efeitos muito acima do placebo, mas que,
nessas situações, apresenta-se como um recurso a mais para intervir
sobre o quadro.
Nas últimas edições do livro-texto, também foi possível perceber
que outras indicações surgiram para o uso desses medicamentos que
agem sobre a serotonina, alguns deles, como afirmado no próprio texto
das últimas três edições, sem relação qualquer com os chamados distúr-
284
bios de humor (categoria em que se inserem os pacientes com “depres-
são”). Minha hipótese, concordando com outros autores que analisam o
uso dessas drogas, é que elas se tornaram “grandes sintomáticos”. Ou
seja, por agirem preponderantemente em uma substância que está pre-
sente em praticamente todo o nosso organismo, elas podem mesmo ser
utilizadas para “quase tudo”. Acredito que não muito longe a denomina-
ção desses medicamentos deixará de ser “antidepressivos” para justificar
seu uso em diferentes situações clínicas, como ocorre com o uso para
os “distúrbios de ansiedade” ou mesmo “outros sintomas que podem, ou
não, ter relação com as desordens do humor
261
(BALDESSARINI,
1996, p.446).
Uma das razões para esse uso ampliado, apontada no próprio tex-
to de farmacologia é que esses medicamentos têm poucos efeitos colate-
rais ou menos efeitos colaterais do que outros que poderiam ser usados
para os mesmos problemas. No entanto, sabemos por experiência anteri-
or que muitos medicamentos considerados seguros em determinadas
épocas tiveram seus efeitos colaterais importantes “descobertos” no
decorrer de vários anos de uso. Mais ainda tratando-se de medicamentos
que acabam sendo prescritos para um uso não agudo, por períodos pro-
longados, muitas vezes por anos seguidos. Além disso, eles são referidos
como “mais” seguros e com “menos” efeitos colaterais do que outros
usados para sintomas depressivos, o que não quer dizer que não tenham
efeitos colaterais importantes já constatados, como o risco aumentado de
suicídio com seu uso em crianças e adolescentes.
A tentativa de utilizar esses medicamentos para diversas situações
clínicas, mesmo as não consideradas “graves”, pode ser relacionada à
questão apontada por Illich de que o sofrimento e a dor humanos, muitas
vezes e durante séculos traduzidos em sintomas físicos e nas emoções,
estejam sendo reduzidos a problemas localizados no corpo biológico.
Fica mais fácil, em uma época em que não se tem tempo para parar e
ouvir as queixas do paciente, ou mesmo para o paciente “parar” sua vida
e procurar modificar aquilo que o faz sofrer (sejam esses fatores objeti-
vos ou subjetivos), abordar a dor através de um medicamento. Medica-
mentos como os ISRS podem estar se estabelecendo como uma estraté-
gia terapêutica em uma Era em que o que importa é o alívio imediato do
sintoma que traduz essa dor e sofrimento: a relação causal dos sintomas
com a serotonina não está comprovada, mas o recurso técnico para in-
tervir no quadro clínico já foi desenvolvindo.
261
Sobre essa questão ver capítulo 6
285
Para finalizar, penso em questões que surgiram no decorrer deste
estudo e que podem futuramente ser exploradas, questões que não foram
abordadas diretamente por não serem tema específico do trabalho. De
que modo os profissionais médicos ou os profissionais de saúde em
geral utilizam as informações contidas livro-texto? Que relevância é
concedida, por exemplo, aos aspectos históricos sobre o desenvolvimen-
to das drogas por esses profissionais? Ou, não somente no livro-texto,
mas em várias publicações científicas, como são percebidas as relações
da indústria farmacêutica, que também visa o lucro, com o desenvolvi-
mento de uma ciência como a farmacologia? Quais os critérios que os
profissionais médicos utilizam para selecionar um medicamento chama-
do “antidepressivo” em determinada situação clínica? Outra questão
seria analisar o modo como os médicos percebem as influências da in-
dústria nos diagnósticos médicos, como tem sido apontado por alguns
autores, na tentativa de estabelecer diagnósticos “objetivos” em que o
uso de medicamentos seria indicado (ver caso do Paxil®). Uma última
questão seria sobre aspectos éticos envolvendo profissionais vinculados
com a clínica ou a produção de conhecimento na área da saúde (médi-
cos, farmacologistas, pesquisadores) e a indústria farmacêutica: como
vêm ocorrendo essas relações no estabelecimento de pesquisas clínicas e
pré-clínicas que envolvem a categorização de situações clínicas e o de-
senvolvimento de medicamentos em nossas instituições de pesquisa no
Brasil?
Acredito que a abordagem de questões como estas pode contribu-
ir para compreender melhor a utilização dos medicamentos e influenciar
posturas profissionais daqueles que lidam com a dor e o sofrimento
humanos na sua prática diária enquanto médicos. Foi essa também a
motivação para o desenvolvimento desta pesquisa: buscar um olhar
crítico que possa auxiliar esses profissionais que compartilham momen-
tos de sofrimento com aqueles que os procuram na tentativa de amenizar
suas dores, angústias e tristeza. Mesmo que em alguns momentos a in-
tervenção seja materializada em um medicamento, resulta necessário
reconhecer os limites e as dificuldades desse tipo de intervenção, de
modo tal que não se reduzam a prática terapêutica uma mera busca de
alteração de neurotransmissores ou substâncias endógenas. Essa pers-
pectiva crítica possibilitada pela análise histórica do surgimento dos
antidepressivos aqui proposta pode evitar que qualquer situação de vida
seja compreendida como uma questão química sanável com um produto
de laboratório.
Considero que uma abordagem médica que leva em conta tanto o
contexto sociocultural (tanto no sentido microssocial da família, como
286
no sentido mais amplo) quanto o momento de vida do indivíduo que está
em sofrimento quando procura uma consulta médica são imprescindí-
veis para auxiliar no alívio dos sintomas ou até mesmo na cura de uma
doença. O próprio livro-texto, sem deixar de lado os medicamentos,
sugeria em suas primeiras edições que o doente é o foco do encontro
terapêutico, que o médico deve ouvi-lo e considerar o contexto em que
ele está inserido para auxiliá-lo a lidar com a situação de sofrimento,
algo que no decorrer dos anos vai desaparecendo do discurso. O resgate
desses outros âmbitos na prática médica, inclusive em um livro de far-
macologia, relativizando o papel dessa ciência em relação a outras áreas
do conhecimento e contextualizando o desenvolvimento dos fármacos e
da pesquisa nessa área, como acontecia nas publicações iniciais dessa
obra, certamente pode contribuir para uma terapêutica médica mais
humanizada.
Quadro 7 – Características analisadas por esta pesquisa nas 11 edições
do livro-texto Goodman e Gilman
287
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03 agosto 2008.
ANEXOS
313
ANEXO A – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”, 1ª Edição
(1941)
314
315
316
317
ANEXO B – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”, 3ª Edição
(1965)
318
319
320
321
322
323
ANEXO C – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”, 7ª Edição
(1985)
324
325
326
327
328
329
ANEXO D – Índice do livro-texto “Goodman e Gilman”, 9ª Edição
(1996)
330
331
332
333
334
335
336
337
ANEXO E – Antidepressivos no livro-texto, 9ª Edição (1996)
338
339
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