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UNIVERSIDADE
FEDERAL
DA
BAHIA
ESCOLA DE TEATRO – ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
PPGAC
Prog rama de P ós-graduaç ão em Artes Cênica s
MARISE BERTA DE SOUZA
ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA
OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU
SALVADOR
2008
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MARISE BERTA DE SOUZA
ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA
OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.
Orientadora: Professora Antonia Bezerra Pereira
SALVADOR
2008
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MARISE BERTA DE SOUZA
ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA
OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal
da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.
Salvador, 29 de fevereiro de 2008.
Banca examinadora:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Antonia Bezerra Pereira (PPGAC/UFBA) - Orientadora
__________________________________________________________
Profa. Dra. Ângela Reis (PPGAC/UFBA) - Examinadora
__________________________________________________________
Profa. Dra. Sônia Lúcia Rangel (PPGAC/UFBA) - Examinadora
__________________________________________________________
Profa. Dra. Rosa Maria Berardo (UFG) - Examinadora
__________________________________________________________
Prof. Emérito Guido Antonio Sampaio de Araújo (FACOM/UFBA) - Examinador
__________________________________________________________
Prof. Dr. Mahomed Bamba (UEFS) - Examinador
Para Umbelino, o meu amor, pela ventura de juntos viver o cotidiano e
o cinema.
Para Hildo e Yeda, os meus pais, pelo exercício do afeto.
Para Janaína, a filha bem-vinda, por me deixar enxergar minhas
pegadas nos seus passos.
Para Nelson Pereira dos Santos, pela motivação e incondicional admiração.
Para Babalu (in memoriam), por guiar os caminhos da fé.
AGRADECIMENTOS
Mesmo correndo o risco de incorrer em alguma exclusão das muitas contribuições efetivas e afetivas
que recebi, dar o crédito às pessoas que contribuíram para atravessar o percurso até a conclusão desta
tese é tarefa necessária.
À professora Antonia Bezerra Pereira, de quem tive o apoio imprescindível de orientação, pela
confiança, disponibilidade e atenção, traduzidas numa interlocução freqüente, ágil e prestativa.
Ao PPGAC, que desenvolve com êxito um trabalho pioneiro na área de artes no Nordeste do País, o
meu reconhecimento ao empenho de todos: coordenação, professores e funcionários.
Aos professores Sônia Lúcia Rangel e Claudio Luiz Pereira, pelas suas importantes intervenções e
sugestões no Exame de Qualificação, que motivaram a experimentação neste trabalho.
À Faculdade de Tecnologia e Ciências, pelo apoio institucional.
Aos bolsistas de Iniciação Científica do curso de Cinema e Vídeo da FTC/FAPESB, Fábio Espírito
Santo e André Macedo, pela ajuda no levantamento de dados sobre o objeto. Aos funcionários da TV
FTC, alunos egressos do curso de Cinema e Vídeo, Júlia Centurião, Luciano Santana e Luana
Mellado; e aos estagiários da TV FTC, Rafael Jardim, André Macedo, Daniel Carvalho e Filipe
Mateus Duarte, pela produção, edição das entrevistas e finalização do vídeo.
Aos professores André França, Guilherme Maia e Cristina Zebral, pelo apoio à condução dos cursos
de Cinema e Vídeo, Moda e da TV FTC, neste semestre de reta final. Agradeço, ainda, à Cristina
Zebral pelo apoio hipermidiático.
Aos professores Guido Araújo (UFBA), Juarez Paraíso (UFBA) e José Tavares de Barros (UFMG)
pelos depoimentos clarificados pela emoção e materiais disponibilizados, importantes peças de
composição do jogo de armar proposto neste trabalho.
Aos professores do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense, Tunico Amâncio, José
Marinho e Hilda Machado (in memoriam), pela disponibilidade de materiais e informações.
Ao professor Umbelino Brasil (UFBA), pela interlocução da primeira leitura.
A Fernando Birri, Orlando Senna, Rudá de Andrade, Arnaldo Carrilho, Emanuel Cavalcanti, Geraldo
Moraes, Maria do Rosário Caetano e Braulio Tavares pelos depoimentos e lembranças.
A Dona Lúcia Rocha, sempre Mãe.
A Luís Orlando (in memoriam), por generosamente abrir o baú das suas relíquias.
Ao amigo Vital Péricles Amorim, arquiteto das emoções, pelo empenho fiel com que apoiou a
consolidação do trabalho nas traduções, pesquisa, texto e revisão.
Ao professor Marcos Bulhões pela energia e pistas fundamentais em um momento de falta de fé.
A Marcos Pierry, pela presteza na primeira remessa de teses da ECA/USP e a Inês Figueiró, pela
continuidade na remessa e mensagens de estímulo.
A Carlinhos Cor das Águas e Ângela Franco, pela amizade, zelo fraterno e pela possibilidade de
dividir as angústias da criação de uma tese em condições especiais de temperatura e pressão.
A Eneas Guerra e Valéria Pergentino, pela afetuosa torcida.
A Braulio Tavares, pela inspiração do ABC.
À profa. Adriana Telles, pela disponibilidade e afeto com que aceitou a tarefa de revisar os textos.
RESUMO
Esta tese, escrita na forma de um ABC, busca estabelecer a relação entre os filmes, os textos e
a performance de Nelson Pereira dos Santos na cena político-cultural de seu tempo, de modo
a demonstrar a sua atuação e a posição estratégica que ocupa na constituição do moderno
cinema brasileiro, conformando a figura do artista-intelectual em diálogo com as questões
nacionais no âmbito da política e da cultura. A investigação se especialmente pela
abordagem de sua relação com a Bahia e pelo estudo dos três filmes que realizou no Estado:
Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos Milagres (1975/1977) e Jubiabá (1985/1987),
tomados como síntese da sua autoria cinematográfica.
Palavras-chave: Nelson Pereira dos Santos; Cinema Brasileiro; Criação; Autoria.
RESUMÉE
Cette étude, écrite sous la forme d’un abecedaire, cherche a établir des rapports entre les
filmes, les textes et la performance de Nelson Pereira dos Santos dans la scène politique-
culturel de son temps, démontrant ainsi la force de son action et la position stratégique que le
cinéaste occupe dans la constitution du moderne cinéma brésilien. Tout en plaçant la personne
de l’artiste-intelectuel en dialogue avec les questions nationalles emergentes dans le cadre de
la politique et de la culture, la présente investigation se concrétise surtout par l’approche des
rapport du réalisateur avec l’État de Bahia. Ceci est particulièrement frappant lors que l’on
analyse les trois filmes réalisés à Bahia: Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos
Milagres (1975/1977) et Jubiabá (1985/1987), pris ici comme une sorte de synthèse de son
investigation en tant qu’auteur cinématographique.
Mots Clés: Nelson Pereira dos Santos; Cinéma Brésilien; Création, Auteur.
ABSTRACT
This thesis, written in the form of an ABC, searchs to establish the relation between the films,
the texts and the performance of Nelson Pereira dos Santos in the politician-cultural scene of
his time, in order to demonstrate the way he works and the strategical position that he
occupies in the constitution of the modern Brazilian cinema, bringing about the figure of the
artist-intellectual in dialogue with the national questions in the scope of the politics and the
culture. The research is carried through especially by the approach of his relationship with the
State of Bahia and according to the study of the three films accomplished by him at Bahia:
Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos Milagres (1975/1977) and Jubiabá
(1985/1987), taken as synthesis of his inquiry as cinematographic author.
Key Words: Nelson Pereira dos Santos; Brazilian Movie; Criation; Author.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................
10
AUTOR .............................................................................................. 12
BAHIA ............................................................................................... 24
CINEMA NOVO ...............................................................................
41
DRAMA ............................................................................................. 53
ENSINO ............................................................................................. 61
FORMAÇÃO .................................................................................... 70
GUIDO ...............................................................................................
79
HISTÓRIA ...................................................................................... 90
INVENÇÃO .................................................................................... 96
JORGE/JUBIABÁ ............................................................................ 105
LITERATURA ..................................................................................
118
MANDACARU VERMELHO .........................................................
125
NACIONAL-POPULAR .................................................................. 138
OBRA ................................................................................................ 149
PARAISO JUAREZ ........................................................................ 186
QUADRO DE PRODUÇÃO ........................................................... 194
REALISMO ...................................................................................... 202
SINCRETISMO ................................................................................ 213
TENDA DOS MILAGRES .............................................................. 221
UTOPIA .............................................................................................
235
VIDA .................................................................................................. 248
X DA QUESTÃO .............................................................................. 262
ZOOM ............................................................................................... 267
REFERÊNCIAS ................................................................................
269
FILMOGRAFIA DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS ..........
281
APÊNDICE: Apontamentos para o ABC de Nelson Pereira dos
Santos (vídeo-documentário) ...........................................................
290
INTRODUÇÃO
PARA A LEITURA DOS MILAGRES
A tese de doutoramento O ABC de Nelson do sertão ao mar da Bahia ou quem é
ateu e viu milagres como eu busca estudar o percurso de Nelson Pereira dos Santos na cena
político-cultural do cinema brasileiro, percorrendo o grande espectro formado por sua
filmografia, tomando-se como contraponto os filmes que realizou na Bahia.
Este projeto constitui-se em um processo de continuidade na minha trajetória
profissional, tanto de realização audiovisual como de pesquisa. No curso que realizei no
Mestrado em Artes Visuais da EBA/UFBA
1
, estabeleci a minha primeira aproximação com o
autor e sua obra, dentro do projeto delineado na pesquisa que investigou as representações de
identidade no moderno cinema brasileiro.
Assim, esta tese é um desdobramento desse estudo preliminar e se configura como
uma oportunidade de aprofundamento das questões substanciais que resultaram no seu recorte
final.
Quanto ao seu formato, trata-se de uma resposta às questões discutidas durante o
exame qualificação, quando foi sugerido que o material levantado na pesquisa fosse
aproveitado criativamente, inclusive sendo mencionada a possibilidade de uma configuração
hipertextual e um espírito rizomático. Foi nessa perspectiva que, tentando dar conta dos
requisitos acadêmicos e do processo criativo, a tese foi estruturada sob a forma de um
abecedário.
O ABC é um poema pico da literatura de cordel nordestina, composto de estrofes
que se iniciam sucessivamente pelas letras do alfabeto. Na literatura de cordel, o ABC
geralmente homenageia uma personalidade relevante ou trata de feitos extraordinários. Castro
Alves foi glosado em um ABC pela prosa de Jorge Amado, que, em recorrência
metanarrativa, usa do recurso no romance Jubiabá, em que faz o “ABC de Antônio
Balduíno”, que, por sua fez, enquanto personagem, faz o “ABC de Zumbi dos Palmares”.
Recentemente, Ariano Suassuna teve o seu perfil biográfico traçado sob a forma de um ABC,
por Bráulio Tavares. Deleuze deixou suas imagens perenizadas em um vídeo no qual as idéias
1
Marise Berta de SOUZA. Quando o cinema virou samba – a identidade no moderno cinema brasileiro.
Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes Visuais da EBA/UFBA. Salvador, 1999
centrais do seu pensamento filosófico são organizadas sob a forma de um ABC. Glauber
Rocha também expôs o seu pensamento cinematográfico através do filme O ABC de Glauber.
Dessa forma, o universo formal dos ABCs pareceu-me uma bela peleja a ser travada
em uma tese que discute as recorrências e temas principais, da obra de Nelson Pereira dos
Santos em sua relação com a Bahia. Com oito décadas de vida e uma intensa produção, o
cineasta tem sua história imbricada com a própria história do cinema brasileiro e com a
insistência em colocar o povo brasileiro no primeiro plano da sua cena narrativa.
Este ABC, em sua síntese, faz com que cada letra leve a uma palavra, cada palavra a
uma idéia e cada idéia abra para uma janela que se revela e se exprime por meio da prosa e
das idéias em torno da obra de Nelson Pereira dos Santos. Pela mediação dessas idéias,
pretendeu-se compreender as concepções do cineasta e do seu processo de criação,
envolvendo as diversas dimensões que lhe são subjacentes.
Assim, na escolha das letras, levou-se em consideração o contexto de inserção social
do autor, tomado como significativo para a compreensão de sua produção cultural, em que a
sua potência criativa é exposta através das linhas de força essenciais que conformam as idéias,
as sensibilidades, as permanências, as mudanças, as utopias, os limites e os avanços do artista
no seu tempo.
Em que pese o seu formato, os procedimentos metodológicos do estudo foram
acionados para a sua realização e obedeceram a convenção: leitura de bibliografia existente,
entrevistas e análise dos filmes mencionados.
A bibliografia utilizada guardou, por conseqüência, grande proximidade com os
procedimentos metodológicos utilizados e referiu-se às áreas temáticas dos materiais e dos
temas estudados: textos dedicados ao cinema, suas teorias, sua linguagem, seu
desenvolvimento, com destaque para a vida e criação cinematográfica de Nelson Pereira dos
Santos; trabalhos de artes, história, literatura e cultura, que auxiliam na compreensão de
contextos socioculturais nos quais estão instalados seus autores e suas obras e, por fim, os
estudos teórico-metodológicos voltados para a interpretação da imagem e do filme de diversas
orientações teóricas, assim como várias incursões em estudos de história e de sociologia geral
e da cultura em diversas de suas ramificações.
de
dede
de
Autor
AutorAutor
Autor
O autor no cinema brasileiro se define em Nelson Pereira dos Santos.
Glauber Rocha
2
No caso brasileiro, o autor de filme é quem tem dado estrutura a todo o
cinema brasileiro ao longo dos anos. Tendo nascido do projeto cultural, o
cinema não nasceu com o objetivo de ganhar dinheiro, os grandes autores do
passado como Mário Peixoto, Humberto Mauro, Gonzaga, outros, eles
tinham realmente a visão de autores de filmes, embora na época não
estivesse em voga esta expressão.
Nelson Pereira dos Santos
3
A noção de autor em cinema não é matéria pacífica; sempre esteve envolta em
esferas de questionamentos. O mesmo não ocorre em outros campos artísticos, nos quais
conceituar a noção de autoria é tarefa menos complexa, sendo o autor aquele que assina uma
tela, escreve um livro, compõe uma partitura. O cinema confere complexidade e problematiza
a noção de autor ao interpô-la no arco de possibilidades demandadas por um tipo de arte de
expressão coletiva.
Essa especificidade própria do cinema fez com que a noção de autor passasse a se
constituir a partir da marcha histórica das cinematografias e apresenta alternâncias de acordo
com o desenvolvimento e os modos de produção de cada país. Conforme observa Jacques
Aumont e Michel Marie, “o status do autor no cinema está sempre ameaçado pela relação de
forças entre o cineasta e as instâncias de produção e difusão”
4
.
2
Glauber ROCHA. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p.104.
3
Apud Giselle GUBERNIKOFF. O cinema Brasileiro de Nelson Pereira dos Santos Uma contribuição ao
estudo de uma personalidade artística. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo/ECA.
São Paulo, 1985, vol II, p.43.
4
Jacques AUMONT e Michel MARIE. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 26.
No Brasil, a noção de autor ganha inflexão ao ser vinculada aos novos rumos
assumidos pelo cinema brasileiro, ao se fazer moderno, isto é, quando reivindicou uma forma
própria, endógena, de produzir filmes que fotografassem, sem retoques, a realidade do País,
assumindo um papel de sujeito na produção cultural. É nesse contexto que deve ser entendida
a argumentação que fundamenta o moderno cinema brasileiro.
A identificação da produção desse nosso moderno cinema foi indicada por Paulo
Emílio Salles Gomes
5
, em sua defesa da necessidade de se construir uma “cara própria” nos
filmes brasileiros:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura
original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós
mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro
6
.
Acatando-se os argumentos de fundamentação do cinema moderno brasileiro, a
trajetória crítica pavimentada por Paulo Emílio remete, necessariamente, à obra de Nelson
Pereira dos Santos, por entender ser ele o autor que, com meio século de produção, é o mais
representativo da aventura do cinema brasileiro e que, em seu caminho pessoal, expôs as suas
mazelas e os seus acertos com mais intensidade. Fundindo-se à historiografia do nosso
cinema, coloca-se em simbiose com as suas experiências: presenciou o surgimento da Vera
Cruz, assistiu ao apogeu das chanchadas, participou do Cinema Novo, mergulhou na
contracultura, adaptou Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Jorge Amado,
buscando encontrar um cinema popular autêntico nas representações do povo brasileiro.
Outro aspecto fundamental para qualquer abordagem que se faça à cinematografia
deste cineasta, principalmente se a tentativa é progressiva, indicando o início da sua atuação, é
extraído também do texto de Paulo Emílio: o sentido de independência do nosso cinema que
na cronologia demarcadora do seu desenvolvimento é apresentado como antecessor e pista
luminosa da noção de autoria. Chamou-se “independente” o movimento cinematográfico
surgido no Rio de Janeiro e em São Paulo, na década de 1950.
Para compreender a configuração que o termo “independente” suscita, e como Nelson
Pereira dos Santos
7
vincula-se a ele, é necessário recuperar, com a brevidade própria de um
atalho, a trilha percorrida pelo cinema brasileiro.
5
Crítico, ensaísta e professor de Cinema da USP que teve intensa atuação em defesa do cinema brasileiro.
6
Paulo Emílio Salles GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980,
p.88.
7
Cf. Marília da Silva FRANCO. Rio, 40 Graus e o Cinema Independente. Dissertação de Mestrado apresentada
à Universidade de São Paulo/ECA. São Paulo, 1979, 145p.
O cinema chegou ao Brasil no fim dos oitocentos, imediatamente após a sua
instauração nos centros de maior progresso, perdurando até hoje o seu esquema de
sustentação baseado na dinâmica da relação entre produção, distribuição e exibição. Apenas
na primeira década do século passado houve uma certa integração desses pontos e a
triangulação faz-se equilibrada. A partir de 1912, com a instalação, em maior escala e
definitiva, de distribuidoras e exibidoras estrangeiras, os vértices desse triângulo sofrem uma
rachadura, nunca mais corrigida, descaracterizando a imagem triangular perfeita. A produção,
sem conexão com a distribuição e exibição, que, paralelamente, progridem e se fortalecem,
tenta a sua afirmação sem a sustentação dos outros dois vértices e é entregue a sua própria
sorte.
À margem do circuito comercial, a produção cinematográfica continuou, seguindo
duas tendências na sua forma de consolidação, estruturando-se em pequenas e grandes
empresas. A pequena é decorrência da atomização que resulta da ocupação do mercado pelo
filme estrangeiro e é perpetuada até hoje. O outro modelo é o da grande empresa e teve na
Vera Cruz
8
o seu ponto de inflexão dessa tendência. Diferentemente da pequena empresa,
cujo formato resulta da situação do mercado, esse empreendimento não está colado à
realidade brasileira e volta-se para um modelo de importação fundado na mimese, em que o
modelo ideal vem de fora e o padrão é fornecido pelo cinema internacional.
Jean Claude Bernardet promove umantese, contribuindo para entender o fenômeno:
A Vera Cruz, estudada por Maria Rita Galvão, é o ponto máximo dessa
trajetória. Ela chega a produzir 17 filmes, mas para acabar o primeiro, ela
precisa de auxílio financeiro do Banco do Estado de São Paulo, pois suas
disponibilidades foram gastas na infra-estrutura, na contratação de técnicos
estrangeiros (para dar o tal padrão internacional). E os filmes prontos, ela
não tem outra saída senão entregá-los às distribuidoras que dominam o
mercado, quer dizer, às americanas
9
.
Com esses problemas, a Vera Cruz e as outras grandes empresas exaurem seus
modelos no início dos anos 1950. É nesse contexto que emerge o Cinema Independente, um
movimento de ruptura, que se insurge contra a glorificação do cinema de estúdio e tem como
8
A C
OMPANHIA
C
INEMATOGRÁFICA
V
ERA
C
RUZ
(1949-1954), empresa que tinha como propósito fazer de São
Paulo o maior centro de cinema da América Latina, dirigida por Alberto Cavalcanti, foi a principal tentativa de
implantar uma indústria cinematográfica no Brasil, baseada no sistema dos estúdios. Há tentativas anteriores,
como a C
INÉDIA
e a A
TLÂNTIDA
, mas a V
ERA
C
RUZ
é a empresa mais ambiciosa e moderna que conta com os
recursos da burguesia paulista. Cf. Maria Rita GALVÃO. Burguesia e cinema: o Caso Vera Cruz. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
9
Jean Claude BERNARDET. Cinema Brasileiro; proposta para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979,
p. 89.
seus grandes articuladores Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos. É Viany quem esclarece
as diretrizes desse movimento:
Os primeiros vagidos desse movimento de renovação começaram a ser
entreouvidos no início da década de 1950, quando um grupo de cineastas
jovens desfechou uma ofensiva em duas frentes: numa contra o
cosmopolitismo oco das produções mais pretensiosas, que procuravam
tardiamente importar os padrões de uma Hollywood em decadência; noutra,
contra o populismo falso das desleixadas comédias musicais a que se deu o
nome de Chanchadas
10
.
É a partir da compreensão do quadro do cinema brasileiro da época, naquele momento
em que a aplicação do padrão importado desmorona, que se chega a um entendimento acerca
do Cinema Independente. Fundamentalmente, é o cinema feito pelos pequenos produtores, em
oposição ao cinema das grandes empresas. Porém, cabe uma ressalva: nem todo pequeno
produtor é, necessariamente, independente. Para adquirir o estatuto de independente, um filme
deve ser qualificado por um conjunto de características que, via de regra, não têm a ver com o
seu modelo de produção. Essas características que lhe conferem tal distinção são,
basicamente, temática brasileira, visão crítica da sociedade e aproximação da realidade
cotidiana do homem brasileiro.
Quem oferece a versão mais resumida da definição de Cinema Independente é Nelson
Pereira dos Santos, em entrevista concedida a Maria Rita Galvão, publicada em Burguesia e
Cinema: o caso Vera Cruz:
No fundo, resumindo, o que a gente propunha era um cinema livre das
limitações do estúdio, um cinema das ruas que tivesse um contato com o
povo e seus problemas
11
.
Ele é tomado como encarnação do próprio Cinema Independente, na ocasião em que
Roberto Santos complementa o seu conceito, em entrevista no livro acima citado, na qual
atribui a Rio, 40 Graus as características que lhe confere a condição de filme emblemático do
movimento:
Falar em cinema independente é falar em Rio, Quarenta Graus. Porque foi o
primeiro filme daquela fase que teve na sua origem mais um componente
fundamental do que seja a independência na produção cinematográfica: o
fato de se achar a pena correr o risco de concretizar uma idéia sem que a
10
Alex VIANY. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra: Embrafilme, 1987, p.149.
11
Cf. Maria Rita GALVÃO. Op. Cit. p.205.
coisa esteja de algum modo assegurada [...] O Nelson o tinha dinheiro,
nem estúdio, nem equipamento, nem financiador, não tinha nada [...] O
equipamento foi cedido [...] Os atores foram contratados para receberem
quotas de participação no hipotético rendimento que o filme desse [...] isso é
o cinema independente em estado puro
12
.
Distinguem-se, nessas citações, diferentes eixos de definições cabíveis ao Cinema
Independente. São eles de ordem econômica, política e estética. Na esfera econômica, a
realização de filmes liberta-se do esquema tradicional da grande indústria, buscando a solução
alternativa na pequena produção.
Esse pensamento reflete-se em um trecho da tese apresentada por Nelson Pereira dos
Santos no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, em 1952:
Mas que quer dizer cinema brasileiro livre e independente? Significa,
principalmente, a superação dos problemas de ordem econômica, originados
pela situação de dependência da economia brasileira; significa o rompimento
desses liames; significa a liberdade de produção, a remoção de todos os
obstáculos que impedem a indústria cinematográfica brasileira de solidificar-
se; significa, enfim, que a maior produção para o mercado interno seja a
produção nacional. O cinema brasileiro tornar-se-á livre e independente no
dia em que, ao invés de um filme brasileiro para oito programas de fitas
estrangeiras, se faça a colocação, em mercado, da proporção inversa
13
.
Pode-se extrair da fala de Nelson o sentido da necessidade de superação da limitação
econômica para se chegar à conquista do mercado, criado e voltado para o filme estrangeiro.
As afirmações de ordem política e estéticao imbricadas, justapõem-se e dão conta da
ânsia de se ver na tela a realidade do País, numa abordagem artística crítica e original,
12
Id, ibid., p.214.
13
Desde a década de 1930, congressos, mesas-redondas, encontros se constituíram importantes fóruns de
discussão e reivindicação no cinema brasileiro. O I
C
ONGRESSO
P
AULISTA DO
C
INEMA
B
RASILEIRO
teve sua
sessão de abertura em 15/04/1952, motivado pela movimentação no âmbito do ambiente cinematográfico que
ocorre naquele período, principalmente pela encomenda feita pelo Estado ao cineasta Alberto Cavalcanti para o
estudo e redação de uma proposta de criação de um Instituto Nacional de Cinema (INC). Foram apresentadas
36 teses no segundo dia do Congresso. Desse conjunto, algumas delas trataram da distribuição e financiamento
do filme brasileiro. Um segundo bloco reuniu teses variadas sobre o trabalho do ator, o argumento no cinema
brasileiro, a formação de mão-de-obra técnica nacional e a criação de escolas de cinema. Num terceiro grupo
estavam as propostas de definição de filme brasileiro, obtenção de medidas protecionistas e sindicalização. A
tese vitoriosa sobre a definição do filme brasileiro afirmava que ele deveria ter 100% de capital nacional,
respeito à lei dos dois terços dos trabalhadores nacionais em cada produção, diálogos, roteiro, estúdios e
processamento em laboratórios brasileiros. A discussão da sindicalização fez surgir imediatamente a
A
SSOCIAÇÃO
B
RASILEIRA DE
C
INEMA
, de vida efêmera. O conteúdo do filme brasileiro deveria ser
eminentemente nacional, com a criação de histórias que tocassem de perto o espectador, sendo a parte técnica
menos importante nesse setor” (RAMOS e MIRANDA, 2000, p.151-152). Sobre o assunto, conferir também
Fernão RAMOS. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p.278-280.
perseguindo a tentativa de aproximação do autor cinematográfico ao cotidiano do homem
brasileiro.
O termo “autor” originalmente foi introduzido no Brasil pelo teórico francês Henri
Agel, através do artigo intitulado Qual é o autor do filme? publicado na Cena Muda n°40, Rio
de Janeiro, 04/10/1949, no qual ele afirma: “um filme é feito para ser visto, como um livro é
feito para ser lido [...] O autor só pode ser aquele que faz as imagens”.
A idéia de autoria fora difundida no Brasil a partir dessa época, mas não houve
nenhuma discussão a respeito das posições lançadas por Agel. O assunto não interessou a
críticos nem a cineastas. A palavra autor era empregada para designar o roteirista e muito
raramente surgia como sinônimo de diretor, realizador ou cineasta
14
.
Na ambiência desta temática, não se permite esquecer que a conceituação de autor
15
foi revigorada pelos jovens críticos da revista francesa Cahiers du Cinema
16
que conferiram
ao conceito uma conotação política que resultou na expressão “política de autor”
17
. Através
dos Cahiers du Cinema, essa proposição torna-se célebre nos anos 1950, provocando uma
imensa repercussão mundial, pela primeira vez, alguns diretores foram considerados os
responsáveis absolutos pelos seus filmes. Esses críticos, que em seguida assumem a condição
de realizadores, disseminam por diversos países, a partir da matriz francesa, um debate acerca
do cinema, no qual postulam para o autor cinematográfico um lugar diferenciado dentre as
atividades que edificam a construção fílmica. Sobrepondo-se aos demais membros da equipe,
o autor conformava-se na figura do diretor e conferia ao cinema a condição de arte.
Na França, onde foi desenvolvida a conceão contida na expressão “política de
autor”, o autor é um cineasta que se expressa, que expressa o que tem dentro dele”
18
. No
entanto, o é somente no âmbito da subjetividade que se a definição desse termo. Os
14
Ver Jean Claude BERNARDET. O autor no cinema a política dos autores: França, Brasil anos 50/60. São
Paulo: Brasiliense; Edusp, 1994, p.68.
15
Na fase anterior, nos anos 1940, a palavra “autor” era relativamente encontrada em revistas e jornais franceses
especializados em cinema, e ainda estava em busca de si mesma. O crítico Marcel L´Herbier, no artigo O papel
essencial do autor de filme (1943), tenta esclarecer que o autor não é quem escreve a história (argumento e
roteiro do filme), mas sim quem realiza: o diretor. Segundo o crítico, o roteiro não passava de uma bússola, pois
se o realizador não inventar a imagem, a palavra fica palavra e o filme não nasce. Era o prenúncio do conceito de
mise-en-scéne, que se tornaria um dos pilares da política dos autores nos anos 1950.
16
A mais influente publicação crítica do cinema. Lançada por André Bazin e Jacques Doniel-Valcroze em 1951,
deu a Bazin a base que ele precisava para criar uma corrente crítica do cinema. Agrupou ao seu redor os jovens
críticos responsáveis, a seguir, pela criação da Nouvelle-Vague: Truffaut, Godard, Pierre Kast, Eric Rohmer,
Claude Chabrol, entre outros.
17
Os “Jovens Turcos”, como eram chamados por André Bazin, movimentaram a área cinematográfica ao
difundirem o polêmico manifesto sobre a “política de autores”.
18
Jean Claude BERNARDET. Op.cit. p.23.
adeptos dessa política, apadrinhados pelo teórico And Bazin
19
, o buscar também a
expressão pessoal em filmes de produtores, usando o conceito de autor como uma forma de
apoio partidário aos realizadores americanos, num claro mecanismo de oposição ao tradicional
cinema europeu.
No Brasil, este debate chegou pouco tempo depois e o conceito de política de autor
será adicionado ao de Cinema Independente, complementando-o, com maior ou menor
clareza. Mais uma vez, Nelson Pereira dos Santos está à frente dessa empreitada. É o que se
pode inferir na colocação de Roberto Santos quando acrescenta um componente fundamental
à equação do Cinema Independente, componente esse também fundamental para a expressão
cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, a autoria:
Produção independente, não mais em estado puro, mas associada a diferentes
esquemas de produção que garantissem a sua viabilidade econômica e no
mesmo tempo a autonomia autoral num grau suficientemente grande para
que se pudesse falar em cinema de autor
20
.
Autonomia autoral que é imediatamente confirmada por Glauber Rocha, que afirma:
Muitos jovens se libertaram do complexo de inferioridade e resolveram que
seriam diretores de cinema brasileiro com dignidade, descobriram também,
naquele tempo, que podiam fazer cinema com uma câmera e uma idéia
21
.
Com essa afirmação, Glauber pretendia que fosse inaugurado um novo momento
para o filme brasileiro que não poderia estar atrelado a outros modelos de cinematografias,
pois não precisávamos permanecer no patamar inferior, sendo necessária uma tentativa de
prática contrária a tudo o que se processou em outros países. Essa era a sua preconização para
que saíssemos o mais breve possível da trágica condição colonial em que estávamos, e que
nos fragilizava no embate com outras cinematografias.
Dois artigos publicados no espaço do exercício crítico, em jornais em 1961, com
intervalos de um mês entre eles, respectivamente, por Paulo Emílio Salles Gomes
22
e por
Glauber Rocha
23
, contextualizam a discussão no âmbito da cinematografia brasileira.
19
AndBazin (1918-1958), teórico mais importante do cinema francês foi o primeiro a questionar a tradição
formativa do cinema e a defender uma teoria e uma tradição cinematográfica baseadas na crença e no poder das
imagens mecanicamente registradas e não no poder aprendido do controle artístico de tais idéias. Não um
livro seu sistemático sobre teoria. As idéias de Bazin, sob forma de ensaios, biografias, ocorreram in loco, ou
seja, da experiência junto aos realizadores e críticos como parte de um diálogo implícito com este cineasta ou
crítico.
20
Maria Rita GALVÃO. Op.cit. p.215.
21
Glauber ROCHA. Op. Cit., 2003, p.106.
Paulo Emílio Salles Gomes, em Artesãos e autores, usa como exemplo dois cineastas
brasileiros: Carlos Coimbra (A morte Comanda o Cangaço, 1960) e Trigueirinho Neto (Bahia
de Todos os Santos, 1960) para ilustrar as suas considerações sobre as possíveis diferenças
entre os conceitos, mostrando a existência de um distanciamento no sentido de cada
expressão. A partir do reconhecimento da arbitrariedade contida na classificação, mas que
oferece certas vantagens expositivas, apesar de extremamente simplificadoras, e se usadas
com devidas precauções, poderiam instaurar uma ordem hierárquica nas funções
cinematográficas. Quais seriam, então, as diferenças entre autor e artesão? Segundo Paulo
Emílio,
O artesão mesmo quando possui autoridade no esquema de produção –, é
um homem com profundo espírito de equipe, modesto participante de uma
obra de expressão coletiva, ao contrário do autor, que procura dar relevo a
sua personalidade. Este último é mais moderno, pois participa da concepção
individualista, relativamente recente, da obra de arte. O artesão aproxima-se
mais dos fabricantes de epopéias e catedrais
24
.
Nesse sentido, seria o artesão mais próximo do consenso coletivo da criação
cinematográfica, enquanto o autor conservaria a sua privacidade criativa construindo
isoladamente: a idéia, o argumento, o roteiro e a direção, e concluiria o produto montando o
seu filme.
Ainda é Paulo Emílio quem fortalece o entendimento sobre a noção de artesão, ao
clarificar que essa denominação não se restringe somente aos que exercem, no cinema, a
função de diretor, mas tem um sentido mais abrangente e elástico; esse termo é perfeitamente
aplicável a produtores, roteiristas, fotógrafos e montadores, entre outros encarregados de
tarefas técnicas, e, nesse caso, “a associação automática entre o filme e o nome do diretor
significaria apenas uma convenção”, embora ressalte que “em qualquer caso, certo tom do
filme depende da predominância do artesão e do autor”. Dessa forma, a distinção, entre o
artesão e o autor, transparece muito mais na forma e no conteúdo do produto fílmico:
A obra de artesão tende a ser social, não no sentido de crítica revolucionária
ou reivindicadora, mas como expressão de idéias coletivas já estruturadas. A
22
Artesãos e autores, publicado originalmente no Suplemento Literário do Estado de o Paulo em 14 de abril
de 1961 e posteriormente em Crítica de cinema no suplemento literário, vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982, p.333-340.
23
O processo cinema, publicado originalmente no Diário de Notícias, em 6 de maio de 1961, e posteriormente
reeditado em Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p. 43-50.
24
Op. cit. p. 333.
autoral tem uma inclinação psicológica e sugere uma natureza humana de
conflito. O filme artesanal coaduna-se melhor nos moldes clássicos, ou
acadêmicos, o de autoria é romântico ou vanguardista
25
.
Segundo Glauber, o artesão encarregado de elaborar a mercadoria visual no modelo
clássico ou acadêmico seria o indivíduo dotado da possibilidade de manusear um rol de
elementos capazes de imprimir diferentes graus de valores às criações artísticas, pelo emprego
dos meios apropriados de expressão, tendo em vista determinados padrões estéticos. Esse
“artesão é um objeto de atração pública”, e quando ligado diretamente à indústria
cinematográfica, em que produtores investem milhões, há necessidade deconvertê-lo em
monstro sagrado”.
No trânsito das operações próprio ao cinema, o sistema de produção incorporou não
somente artesões, mas, também, autores, mesmo os ligados as correntes de vanguarda. Na
França os jovens cineastas atrelados a Nouvelle Vague passaram a ser os astros. Na Itália, os
neo-realistas Federico Fellini. Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Vitório De Sica e
Luchino Visconti ascenderam à fama e alcançaram prestígio e popularidade, antes concedidos
somente aos atores. Os diretores americanos Hitchcock, Ford, Welles, Wyler, entre outros,
foram elevados à categoria de autores, causando muitas controvérsias e conferindo estatuto à
“política de autores”, que se tornou uma corrente do pensamento cinematográfico dos anos
1960, traduzindo um “novo modo de fazer os filmes e, simultaneamente, uma nova atitude de
fazer frente ao cinema”, afirma o historiador Antonio Costa
26
.
Diante da plêiade de nomes tão díspares ordenados pelo sistema de produção,
desfigurando, em parte, o conceito de autor Glauber se contrapôs a “política dos autores”
proposta pelos teóricos franceses através do Cahiers du Cinéma, afirmando:
Desde o Neo-Realismo, e mesmo antes, o cinema francês [...] vem
substituindo a vedete do programa publicitário. Com o advento da Nouvelle-
Vague, todo um plano tradicional foi subvertido [...] Estava oficialmente
estabelecida à corrupção social do criador de filmes, artesão que se antes era
obscuro, agora passava ao exagero do compromisso com as bilheterias.
27
De acordo com Glauber a industrialização cinematográfica era fator de impedimento à
criação e a liberdade poética que fora proposta de início, agora o que se via era o sistema
25
Id. p. 334.
26
Cf. Antonio COSTA. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: 1987, p.116.
27
Glauber ROCHA. O processo cinema. In: Op. Cit., p.44.
produtivo, segundo a sua ótica, corrompendo os autores e seriam poucos os que lutavam para
manter a completa independência.
Hitchcock, Samuel Fuller, Richard Brooks, Nicholas Ray, Martin Ritt,
Richard Quine e quase todos os diretores americanos da moda, diretores que
a exceção de Hitchcock, não possuem o menor sentido criativo (ou não
podem demonstrá-lo). São apenas artesões contratados sem idéias, mas,
lucrativamente, portadores de certas características pessoais capazes de
servir para melhor faturar novos padrões. Este mínimo de dignidade
permitido significa muito dentro do complexo industrial. Qual o autor
moderno americano livre do pecado, se mesmo a esperança Stanley Kubrick
mergulhou numa superprodução como Spartacus?
28
Qual seria então o conceito de autor moderno, se o crítico Glauber considerava a
atitude como a de Stanley Kubrick de realizar uma superprodução uma ação totalmente
negativa. Essa indagação aponta para a inegável modificação que a política de autor sofreu, a
partir da sua origem francesa ao ser inserida por Glauber Rocha, no contexto contemporâneo
do cinema brasileiro.
Passado alguns anos do calor da discussão inaugural, Glauber Rocha metodiza o
conceito de autor para situar o “cinema brasileiro como expressão cultural transformadora”,
tendo o intuito de evidenciar os seus impasses e incorporações:
Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A
política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de
hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário,
porque a condição de autor é um substantivo totalizante
29
.
Sustenta-se nesta proposição o fato de que a “política de autores” não foi elaborada
de forma pragmática nem programática, não apresentando um manifesto ou uma declaração
coletiva dos seus criadores e pode ser perfeitamente reapropriada, acrescida ou reciclada por
contextos e linhas de pensamentos, diversos dos seus heterogêneos formuladores. Glauber ao
perceber a estrutura porosa e fluida do conceito estabelece a sua própria construção da política
de autor, não se limitando à fácil aclamação do realizador como autor principal de um filme,
implica, antes de tudo numa operação de decifrar e revelar esse autor quando ele exerce,
principalmente, um papel antagônico ao sistema produtivo tradicional.
28
Id. ibid., p. 45.
29
Id. ibid., p.36.
Dentro do quadro de formação de um cinema que se pretende moderno
30
, uma
diversidade de ações ocorre simultaneamente, no mais completo espelhamento da montagem
proposta por Eisenstein
31
, resultando no movimento do Cinema Novo, elaborado sob o sopro
da bruma dos novos cinemas que indicam uma pluralidade de tendências na sua base e a
filiação primeira, presente na manifestação inicial do Cinema Independente, o remete ao
neo-realismo
32
.
O Cinema Novo, que será objeto de um verbete nesta tese, ficou reconhecido como o
movimento de renovação do cinema brasileiro que surgiu no início dos anos 1960, quando
estavam em vigor as promessas de transformações sociais e de construção democrática
geradas com o fim da Segunda Guerra. Naquele momento, não no Brasil, estava em pauta
uma agenda que contemplava uma diversidade de questões, impulsionando a investigação
cinematográfica acerca de todo um universo antes praticamente excluído das telas. Trata-se do
momento em que a história do cinema demandava o estabelecimento de uma modalidade de
representação na qual começam a ser definidos diferentes encaixes, para demarcar os termos
de uma cinematografia que acolhe tanto o neo-realismo italiano quanto os cinemas
emergentes dos países periféricos, todos ligados por um fio condutor da pedagogia de uma
nova percepção, em constituição, disposta a reelaborar os pressupostos da imagem
cinematográfica nas suas repercussões com o mundo contemporâneo.
É nesse cenário que se reivindica para Nelson Pereira dos Santos uma noção de autoria
alinhada com a precisa definição de Bazin, segundo a qual:
A política dos autores consiste, resumidamente, em eleger dentro da criação
artística o fator pessoal como critério de referência para em seguida postular
sua permanência e incluir o progresso de uma obra à seguinte
33
.
30
Posteriormente, Ismail Xavier irá balizar o conceito do cinema brasileiro moderno, em que, a partir de uma
reflexão feita em 1995, no Festival do Cinema Jovem em Turim, tendo como referência três textos formulados
anteriormente, imprime a visão do conjunto do cinema brasileiro pautado pela experiência do Cinema Novo. Cf.
Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
31
Serguei Eisenstein (1898-1948), cineasta-teórico. No fim do período mudo do cinema, desenvolve um tipo de
montagem que acesso na forma sensível, visual, a idéias abstratas, tornando-as complexas e carregadas de
sentido evocativo.
32
“Movimento cinematográfico italiano surgido durante a Guerra e oriundo, a um só tempo, das escolas realistas
francesa (Renoir, Clair, Grémillon) e, de modo mais amplo, européia (Pabst), e da reflexão crítica, na própria
Itália, notadamente em torno de Pasinetti, Bárbaro, De Sanctis, do Centro Sperimentale e da revista Cinema”. Cf.
Jacques AUMONT e Michel MARIE. Op. Cit. p.212.
33
“La politica de los autores consiste, em resumidas cuentas, em eleger dentro de la creación artística el factor
personal como critério de referencia, para después postular su permanência e incluso su progreso de uma obra a
la siguiente”. Cf. Antoine de BAECQUE, (org). La política de los autores - Manifestos de una generación de
cinéfilos. Barcelona: Buenos Aires: Paidós, 2003, p.101.
Essa definão confere a marca da autoria que aponta para um estilo e uma linha de
atuão que rompem com injunções impostas, justaem-se à dimica da história e acatam a
interveão do cineasta enquanto parte atuante dessa história, em sua alimentação e
transformação.
Enfatiza-se que a sua atuação precede a agenda do Cinema Novo, vindo desde o
início dos anos 1950 quando assumiu a bandeira da independência e denúncia da invasão
indiscriminada do nosso mercado pelo produto estrangeiro.
Em consonância com a bruma anunciadora das mudanças, Nelson Pereira dos Santos
afirmou-se como autor propondo duas frentes inovadoras no cinema brasileiro: a luta contra a
presença do mimetismo em nossas películas e o compromisso expresso com a realidade do
País, com a “verdade brasileira” em estado de revelação. Transformando o cinema em campo
de luta ideológico e estético, apropriou-se da história e exerceu a política de autor com uma
“visão livre, não-conformista”, com a pretensão de criar “mundos próprios e originais”
34
.
34
Glauber ROCHA. O processo cinema. In: Op. Cit.
de Bahia
de Bahiade Bahia
de Bahia
Do comecinho, do comecinho?... Eu conheci a Bahia com Jorge Amado. É
bom lembrar que eu era paulistinha. Do Brasil, o máximo que eu conhecia
era o rio Tietê, onde eu aprendi a nadar. E você veja tive um excelente
professor de português, que abriu a minha cabeça para a literatura brasileira,
a literatura de língua portuguesa. Mas, o Jorge Amado é que tinha uma coisa
especial, que era o seguinte. O Jorge Amado era proibido na família, porque
tinha cenas de sexo, as maravilhosas cenas de amor. Muito liberal o livro.
Vamos lembrar que isso é nos anos 40. Seus pais ainda não tinham nascido...
E, além disso, ele era proibido pela polícia, porque os heróis do Jorge
Amado e o happy-end do livro de Jorge Amado eram do Partido Comunista.
Os jovens iam parar no Partido Comunista e tava tudo resolvido, todo mundo
feliz. Então, a Bahia que eu conheci primeiro foi essa, a Bahia de Jorge
Amado. Uma vez eu disse isso pra ele aqui, caminhando pelo Mercado
Modelo, que ele era meio dono, né? Ficava fiscalizando se as coisas estavam
no lugar, se tava tudo certinho... Como é Jorge, você inventou tudo isso?
ele disse – a minha Bahia nunca existiu. A Bahia que o Jorge Amado
escreveu, ele idealizou [...] mas enfim.
Agora, essa Bahia eu fui conhecer diretamente com os meus próprios olhos
na campanha nacional pela liberação do Rio 40 Graus.
Nelson Pereira dos Santos
35
.
Ao ser indagado sobre como se deu a sua aproximação com a Bahia, Nelson revelou
que o seu primeiro contato se deu pela via da literatura de Jorge Amado. Esse é o registro
simbólico do seu imaginário. No entanto, seu primeiro contato efetivo com a cena cultural
baiana ocorre na campanha de liberação de Rio, 40 Graus. O filme foi liberado em agosto de
1955 pela Censura Federal e interditado por ato arbitrário do Coronel Geraldo de Menezes
Cortes, Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, sob a acusação de que, em
razão de sua técnica perfeita, havia sido feito por comunistas tchecos
36
. A técnica, a ausência
de trabalhadores, a temperatura alta, a organização espacial do Rio de Janeiro, foram
questionadas e resultaram na censura do filme.
35
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
36
Helena SALEM, em Nelson Pereira dos Santos, o sonho possível do cinema brasileiro, relata com detalhes o
episódio em que Nelson, sem a presença de seus advogados, apresenta o filme a Cortes.
O processo do filme acompanhava a movimentação e o agravamento da situação
política do País (eleição de Juscelino e a tentativa de golpe da direita). A censura ao filme
provocou uma campanha em sua defesa, capitaneada pelo jornalista Pompeu de Sousa, líder
da comissão de defesa composta por jornalistas, escritores, artistas e intelectuais. A campanha
para liberar o filme se constituiu numa das mais amplas e importantes mobilizações da
intelectualidade realizados no Brasil. Saindo do Rio de Janeiro, sua maior caixa de
ressonância, após ato organizado por Pompeu de Sousa na Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), o movimento resultou em um memorial endereçado ao Chefe de Censura e Diversões
Públicas e se estendeu a outros estados. A defesa de Rio, 40 Graus tornou-se uma bandeira da
frente antigolpista. Sobre a atuação de Pompeu de Souza e o momento político, Nelson
esclarece:
Ele tava empenhado na campanha eleitoral do Juscelino. 1955 é um ano
político por excelência, muitos acontecimentos em pouco tempo. [...] essa
campanha que o Pompeu de Souza começou foi contra o chefe de polícia, foi
ele que foi repreender o filme. O Pompeu organizava praticamente todos os
dias, um dia sim, um dia não, uma sessão do filme. E convidava intelectuais,
políticos, pessoas com poder de comunicação grande, pra dar opino sobre o
filme. Saía na primeira página do Diário Carioca. [...] Além disso, os
governadores do PSB, que era o partido que apoiava o Juscelino, convidaram
o filme
37
.
No jornal Imprensa Popular, editado pelo PCB, Jorge Amado publicou um artigo
contundente intitulado O caso de Rio, 40 Graus”, onde debatia a situação política do País,
inserindo a proibição do filme em um quadro mais amplo, apontando “o desejo de liquidar
definitivamente nosso cinema”. Em seu argumento, Amado chamava a atenção para a falta de
filmes nacionais, o que permitia aos produtores americanos “pôr abaixo” a lei que obrigava a
exibição de “uma película nacional para oito estrangeiras”, assim como reiterava o propósito
de “reduzir ao silêncio os homens da cultura”, a fim de impedir que eles fossem “os
intérpretes da vida do país”.
Na Bahia, a circulação do filme censurado foi articulada por Guido Araújo
38
, que
compunha a equipe de produção, e pelo Clube de Cinema da Bahia, sob a liderança de Walter
da Silveira
39
, resultando em sua exibição no final de novembro de 1955, nos dias que se
seguiram ao contragolpe liderado pelo General Lott, que abortou, naquele momento, o golpe
37
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
38
Guido Araújo, cineasta e professor universitário, a quem é dedicada a letra G deste trabalho.
39
Advogado, crítico de cinema, fundador do Clube de Cinema da Bahia.
de direita que, no entanto, se efetivaria em 1964. A memória de Nelson nos ajuda a compor
esse quadro:
Então eu vim pra Bahia a pedido do governador da Bahia. E era o filme
proibido pelo chefe de Polícia Federal. Aqui teve uma sessão organizada pelo
Walter da Silveira, com a presença do governador, de deputados,
desembargadores [...] Teve a tentativa de golpe, teve o contragolpe, aquelas
tentativas todas e o Rio 40 Graus misturado a essas histórias. Tanto assim que
quando veio o contragolpe do general Lott, um jornal do Rio botou em
primeira página assim: ‘Cortes a 40 graus’. O Cortes era o chefe de pocia que
proibiu. Mas enfim, eu conheci a Bahia, aqui, nessa época. Guido Araújo,
que era assistente no filme, articulou muito. O filme foi também exibido no
Distrito Naval. É muito curioso isso, o filme sendo exibido ali. Era uma coisa
curiosa.
E eu me lembro do cineclube do Walter da Silveira. Aliás, eu conhecia o
Walter dos Congressos de Cinema Brasileiro, em 52, no Rio; depois em 53,
em São Paulo [...] trabalhamos juntos nos Congressos. Era ele e Alex Viany,
os dois motores, as duas pessoas que mais faziam intervenções, que mais
propostas apresentavam. E aqui, o Walter, eu nunca me esqueço do primeiro
vatapá que eu comi na casa do Walter. Se eu não me engano foi o primeiro
vatapá de verdade que eu comi. Nossa Senhora, inesquecível aquilo
40
.
O fato de Guido Araújo ser baiano, ter atuação na cena cinematográfica e
freqüentado as sessões do Clube de Cinema da Bahia favoreceu a movimentação em torno das
exibições do filme em Salvador. Nelson não conseguiu chegar a tempo da primeira exibição
devido à interdição dos aeroportos ele viajaria exatamente no dia em que o contragolpe foi
dado. Essa é a informação colhida em depoimento de Guido Araújo. Nelson reforça, em seu
depoimento, que naquele dia, sob a expectativa de a direita assumir o comando político do
País, que ele estava mobilizado para garantir a própria segurança e a de sua família, pois havia
recebido uma ligação telefônica informando que a sua prisão seria imediata.
Afastada a ameaça golpista, as sessões ocorreram sob a euforia da distensão. O filme
foi exibido em várias sessões, para os diversos segmentos da sociedade baiana. A Câmara de
Vereadores de Salvador e o Clube de Cinema da Bahia pronunciaram-se em favor da
liberação do filme.
Em matéria de 19/11/55, o Diário Carioca estampou a seguinte manchete: “Confirma
sucesso em Salvador o Rio, 40°”, em que se relata a repercussão da campanha de
solidariedade em protesto contra a proibição e em prol da liberação do filme na cidade:
O filme foi apresentado, em quatro sessões seguidas, a “representantes dos
três ramos das Forças Armadas, deputados, vereadores e intelectuais baianos
40
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
[...], confirmando todo o sucesso anterior”. O Sr. Lafaiete Coutinho,
Secretário de Segurança da Bahia, ficou tão entusiasmado que decidiu
estudar as leis da censura, chegando à conclusão preliminar de que elas são
inconstitucionais”. A Câmara de Vereadores de Salvador “votou moção
solicitando a liberação do filme para as telas baianas, e o Clube de Cinema
lançou um manifesto com o mesmo fim”. Um debate entre os críticos,
intelectuais e deputados, realizado na Rádio Cultura da Bahia, resultou na
fundação da ADCB baiana
41
.
O envolvimento da intelectualidade e da crítica especializada de Salvador na
campanha é reiterado por Orlando Senna
42
, ao relatar como se deu a sua aproximação com
Nelson Pereira dos Santos:
Devido à proibição do Rio, 40 Graus. Porque todo mundo se envolveu nisso
e etc... Eu estava metido nessa época em jornalismo, já era jornalista, um
jovem jornalista. E essa foi a primeira aproximação
43
.
Seguindo a cronologia imposta pelos fatos e relembrada pelo próprio autor, após a
realização de Rio, 40 Graus, produzido entre 1954-55 e lançado em 1956, e Rio, Zona Norte,
produzido e lançado em 1957, ele envolveu-se em atividades jornalísticas no Jornal do Brasil
e na realização de filmes documentais de caráter institucional. Documentou a construção da
estrada Rio-Bahia, ocasião em que conhece a cidade de Milagres, seus beatos e suas crianças
famélicas, cobertas de poeira, que irá reconhecer, posteriormente, na representação fílmica de
Glauber em Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Documentou, também, a seca
nordestina na região do São Francisco:
Fiz muita coisa, muitos documentários, e fiz um também que foi sobre a
pavimentação da Rio-Bahia. Veja só, eu e o Hélio Silva descemos a estrada,
parando em todas as obras de pavimentação. Era tudo igual, mas que
mudava o empreiteiro, tinha que filmar tudo de novo. E foi aí que nós
descobrimos Milagres, tivemos a primeira visão de Milagres. As cavernas
habitadas por pobres, aleijadinhos, cegos... Uma coisa incrível. Eles desciam
pra pedir esmola. Era um ponto de parada naquela época. Hoje você
imagina? A Rio-Bahia era sem asfalto. De Vitória da Conquista até Milagres
não tinha nada. Era tudo terra. Milagres era uma parada de beber água, as
pessoas desciam dos ônibus, sem falar nos paus-de-arara. Era terra pura.
Você via os olhinhos, quando sorria apareciam os dentes, tanta terra que
era. Foi quando nasceu a idéia do Vidas Secas...
44
41
Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 95.
42
Orlando Senna, Secretário do Audiovisual, cineasta e crítico de cinema.
43
Entrevista concedida em 10/07/2007.
44
Cf. Entrevista, Op. Cit.
Circulando no Estado, mobilizado pela forte movimentação que alterava o ambiente
da região, vivencia o seu projeto de atualização histórica. Documentando a seca, constatava
que o Nordeste não poderia viver eternamente à mercê da formação de nuvens mais densas e
que uma intervenção estatal se fazia necessária. Documentando a construção da Rio-Bahia,
experimentava o vento anunciador das mudanças que alterariam o panorama do Estado e o
ritmo do seu crescimento.
A Bahia, a partir da década de 1950, está ingressando de forma “– progressiva, mas
decisivamente na dança do capitalismo moderno”
45
. Pesquisadores
46
têm dito que o Estado
afastou-se, de forma considerável, dos processos dinâmicos da economia nacional e mundial
no período que compreende o último quartel dos oitocentos até os meados do século passado.
Esse quadro começaria a ser revertido, afastando-se a ambiência depressiva e estagnada da
economia e indústria baianas, quando o movimento industrial brasileiro alcança o nordeste do
Brasil. Antônio Risério oferece a síntese da mudança na região indicando os seus vetores:
Resumindo, a expansão do capitalismo brasileiro para a região nordestina
engendrou uma nova realidade baiana. A Petrobrás, a BR-324 (estrada Rio-
Bahia), a construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e a Sudene foram
as peças fundamentais dessa transformação
47
.
Nessa travessia, vivendo experiências que o instigam a desvendar uma realidade
diferente da sua, Nelson Pereira dos Santos retorna à Bahia em 1959, dessa vez para filmar
Vidas Secas, baseado na obra de Graciliano Ramos. Inicia-se, então, a sua relação mais
efetiva com o contexto cultural baiano.
Nesse momento, não se pode deixar de levar em conta o movimento de renovação
cultural que a Bahia atravessava, destacando-se a existência de um surto de cinema, que ficou
conhecido como Ciclo do Cinema Baiano (1959-1962).
Esse movimento de agitação cultural, que fez com que a então província da Bahia
fosse transformada em um pólo de vanguarda modernista na cena cultural do país, foi
abordado em estudos de diversos autores
48
cada um a partir da sua perspectiva e recorte.
45
Cf. Antônio RISÉRIO. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004, p.513.
46
Cf. Paulo Fábio DANTAS NETO. Espelhos na penumbra: o enigma soteropolitano. Dissertação de mestrado
apresentada à Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, 1996. Em seu
trabalho, o autor pontua a discussão através de um rico levantamento bibliográfico sobre a questão.
47
Apud Antônio RISÉRIO, Op. Cit., p.518.
48
Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004; Antônio RISÉRIO. Avant-
garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1995; Maria do Socorro SILVA CARVALHO.
Imagem de um tempo em movimento: Cinema e Cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA,
1999 e Nova onda baiana:
cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: Edufba, 2003; e Walter da SILVEIRA.
“Avant-garde”, “Renascença Baiana”, “Nova Onda” são algumas das definições extraídas
desses estudos para nomear o período que temporalmente é situado entre os anos cinqüenta e
sessenta na “Cidade da Bahia”, antiga capital do Brasil.
Salvador se estabeleceu na década de 1950 como um dos extratos mais significantes
da vida cultural do País, vivendo um momento transformador. Foi ponto estratégico de novas
proposições culturais, a cidade como a quer Giulio Carlo Argan
49
, revelando o lócus
modelado pelo espírito daqueles que nela vivem.
Os elementos mais predominantes na concretização da afirmação dessa
sensibilização cultural baiana foram marcados por algumas frentes que se constituíram em
variados campos da cultura. Nessa perspectiva, destacam-se a atuação do Clube de Cinema da
Bahia, tendo à frente Walter da Silveira, e o papel assumido pela Universidade Federal da
Bahia como “abrigo e celeiro do ideário de uma cultura cosmopolita”
50
; referendada pela
presença de ilustres visitantes como, por exemplo, o filósofo Jean-Paul Sartre, o cineasta
italiano Roberto Rossellini
51
, entre outros.
Marco de entrada para a compreensão do peodo contemporâneo da Cidade da Bahia é
a agitação modernizante e modernista promovida pela Universidade da Bahia, no reitorado de
Edgar Santos. De modo destacado no cenário universitário brasileiro, a Universidade da Bahia,
entre os anos 1950 e 60, abre-se a um representativo fluxo de informões, processando uma
fina sintonia entre os movimentos culturais nacionais e internacionais que irão repercutir
vigorosamente sobre a sociedade e desembocarão, adiante, em movimentos que alterariam de
forma definitiva o panorama cultural brasileiro, a exemplo do Cinema Novo e da Tropicália.
O reitor Edgard Santos engendrou a criação da Universidade da Bahia a partir de
uma articulação entre os poderes econômico e cultural. Suas ações, imantadas por uma
concepção de vanguarda, apontam para o reposicionamento da Bahia no cenário brasileiro.
Era preciso revigorar a Bahia, instância primeira da nacionalidade, alimentá-la material e
espiritualmente através de uma ambiência universitária inovadora e criativa que se
História do cinema vista da província. Coleção Walter da Silveira, Vol. 1. Salvador: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1978.
49
Argan concebe a cidade como um organismo que concentra em sua dinâmica diferentes esferas que
possibilitam o seu desenvolvimento e que em meio às modificações conservam a sua essência. Cf. Giulio Carlo
ARGAN. História da arte como história da cidade. Martins Fontes: São Paulo, 1998, p. 73/74.
50
Cf. Lindinalva Silva Oliveira RUBIM. O feminino no cinema de Glauber Rocha. Tese de doutorado
apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999, p.25.
51
“A Bahia recebe, nesse período, visitantes ilustres. Em agosto de 1958, Roberto Rossellini, acompanhado pelo
pintor Di Cavalcanti, vem conhecer a cidade do Salvador, para decidir se poderia incluí-la em filme que
preparava sobre o Brasil. Seria um documentário ‘em cores’, baseado na obra de Josué de Castro, Geografia da
fome, [...] Segundo o Estado da Bahia, Rossellini ficou ‘maravilhadocom o que viu em suas visitas ao Sul e
Nordeste do País. E mais: afirmava que o cineasta italiano confessara’ seu desejo de morar e morrer na Bahia’
”. Cf. Maria do Socorro SILVA CARVALHO. Op. Cit. 1999, p.204-205.
incorporasse ao desenvolvimento econômico regional em curso. No seu processo de
reinvenção, era bem-vinda a retomada da posição avançada da Bahia no horizonte da
sociedade brasileira.
Atuando como dínamo, abrindo caminho para o acesso da informação cosmopolita, a
Universidade da Bahia, através da atuação do seu reitor, abre suas portas e acolhe a avant-
garde européia em um franco diálogo com as linguagens artísticas. Promove experiências
singulares e únicas como a primeira Escola de Dança de nível superior no Brasil, importando
o talento da dançarina polonesa Yanka Rudzka, que orienta o curso sob a perspectiva da
dança moderna; projeta os Seminários de Música da Bahia, tendo convidado o músico
austríaco Koellreutter para organizá-lo e inaugura uma das primeiras escolas de Teatro de
nível universitário, para a qual convida Martim Gonçalves para assumir a direção. “As três
pupilas do senhor reitor, como se tornam conhecidas as escolas de arte, realizam uma grande
agitação artística na cidade”
52
. A bruma modernizante também sopra na direção das estruturas
acadêmicas consolidadas no seio da Universidade Federal da Bahia, promovendo a
mudança e quebrando o rigor da prática acadêmica clássica. Esta é a situação que ocorre, por
exemplo, na Escola de Belas Artes, segundo o relato de Juarez Paraíso
53
: “A
internacionalização da arte moderna ocorre no final dos anos 1950 e início de 1960 na Bahia e
foi fundamental para a mudança da mentalidade na área artística”.
Corroborava para a consolidação da paisagem modernista no Estado a presença da
arquiteta italiana Lina Bo Bardi, convidada pelo governador Juracy Magalhães para dirigir o
Museu de Arte Moderna da Bahia. Dando as costas para o fascismo italiano, Lina Bo Bardi
vislumbrou naquele ambiente a possibilidade de processar a dialética entre a informação
cosmopolita e a realidade local, tendo como inspiração a utopia socialista.
A discussão cinematográfica foi capitaneada pelo Clube de Cinema da Bahia
54
,
fundado 1950. Seguindo o modelo francês, sua receita era gerada a partir de cota estipulada
entre associados. Sua agenda contemplava projeção de filmes artísticos, instalação de uma
biblioteca especializada, filmoteca, publicação de um periódico, promoção de cursos, debates
e conferências. Walter da Silveira atuava como provocador cultural para ele a crítica era
uma forma de acesso ao cinema, e, em geral, antes de cada sessão, em princípio nas manhãs
de domingo, às vezes também sábado à noite, fazia um comentário sobre o filme exibido,
52
Cf. Antonio Albino Canelas RUBIM. Comunicação, mídia e cultura na Bahia contemporânea. Bahia Análise
& Dados, v. 9, nº. 4. Salvador, BA: SEI, 2000, p.76.
53
Entrevista concedida a Marise Berta em 11 de ago./2007.
54
Para maior aprofundamento ver Walter da SILVEIRA. Repensar o Cinema. In: José Humberto DIAS (org.).
História do cinema vista da província. Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1978, p. 4.
informando a platéia e alimentando o debate. Seu desempenho era respaldado pelo exercício
constante com que se dedicava à crítica cinematográfica em periódicos locais e nacionais.
Sobre a atuação de Walter da Silveira, Orlando Senna se pronuncia oferecendo o
testemunho de sua geração:
Walter da Silveira, um ensaísta e crítico de cinema, que organizou e manteve
durante anos o Clube de Cinema da Bahia e mostrou para a minha geração
tudo que alguém interessado por cinema naquela época deveria ver,
analisando, discutindo e polemizando cada estilo, cada corrente, cada filme.
No Clube de Cinema vimos toda a filmografia francesa, toda a filmografia
soviética dos anos 1920 e 1930, toda a filmografia espanhola, a filmografia
americana dos anos 1940 e 1950, o melhor que se fez de cinema nos Estados
Unidos. O neo-realismo italiano, o cinema japonês, Ingmar Bergman. Um
banho cascateante de cultura cinematográfica, um privilégio que não me
canso de agradecer a Oxumaré, o orixá das artes
55
.
Esses aportes, entre outras manifestações culturais soteropolitanas, são alguns dos
pilares de sustentação do cinema moderno brasileiro. No contexto soteropolitano dos anos 1950,
o engendrados vários movimentos essenciais que articulam cineclubismo, crítica e realização,
em busca de um desenvolvimento cinematográfico local e nacional, que se projeta cosmopolita
no sentido de compreender o cinema como instrumento da vida moderna contemporânea.
Entender o significado desse agente mecânico que modificava a realidade, influindo no
comportamento das pessoas, alterando o cotidiano das cidades, materializando a civilização das
imagens através de filmes, é compreender o cinema como resultado direto da cultura da
modernidade
56
.
O cinema foi um fator determinante na expansão da modernidade ao se instalar, a
partir do final do século XIX, nos grandes centros, França, Inglaterra, Alemanha, Estados
Unidos, e nos países periféricos da Ásia e da América Latina. A sua disposição como
elemento emblemático do mundo moderno nos núcleos urbanos proporcionou amplas
transformações sociais, econômicas, culturais, e os efeitos dessas alterações são aferidos no
surgimento e na consolidação de uma cultura cinematográfica.
55
Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. Organização Geral: Walter LIMA;
coordenação Diana GURGEL; coordenação editorial Zilah AZEVEDO. Salvador: EDUFBA; VPC, 2006, p.116-
117.
56
Leo CHARNEY, Vanessa R. SCHWARTZ. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac &
Naify, 2001, p.20.
Salvador, a primeira capital do Brasil, foi inserida no quadro da globalização
visual
57
, apesar da principal urbe baiana ter sido considerada por quase todos os pensadores
do passado e até pelos mais contemporâneos como uma mera província
58
. Embora periférica,
a base econômica baiana contradizia a sua própria definição, já que não era totalmente
excluída do cenário econômico nacional e internacional, como afirmava a sua
intelectualidade, uma vez que havia uma tradição no manejo do capital financeiro e as
condições proporcionadas pelo seu acúmulo eram suficientes para enfrentar os obstáculos do
chamado “enigma baiano”
59
.
A circulação do capital possibilitou, entre outros processos, o da modernização
60
,
trazendo conseqüências práticas, que aos poucos se fizeram vigentes na chamada expansão
moderna. Tal processo pode ser demonstrado com exatidão na implantação dos equipamentos
de exibições e na produção dos filmes que redundaram, de certa forma, num cinema que não
forneceu simplesmente um original elemento no qual os dados da modernidade podiam
apenas abrir espaços, mas,
57
O cinema chegou à Cidade da Bahia no final do século XIX, precisamente no dia 4 de dezembro de 1897. As
fitas ocuparam a tela do Teatro Polytheamma, um ano e meio depois da histórica exibição de 8 de julho de
1896, que acontecera na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro; o evento baiano não ficou o distante da primeira
apresentação cinematográfica de 25 de dezembro de 1895, ocorrida na França, organizada pelos irmãos Lumière.
Por essa descrição, observa-se a quase simultaneidade entre as capitais mundiais e a capital da Bahia. A
apresentação cinematográfica baiana é descrita desta maneira por Walter da Silveira: “Havia terminado a guerra
de Canudos, os soldados baianos desembarcavam naquele dia, na estrada de ferro, entre flores, confetes e
foguetes. Os bondes na Cidade Alta eram puxados por burros. A eletricidade entrara, unicamente, em poucas
casas, apesar da escassa energia elétrica, temos sala de projeção. A escassez de energia elétrica não foi
empecilho no surgimento das salas de projeções, que os teatros existentes na época foram adaptados ao
cinematógrafo. O Teatro Polytheamma era palco da primeira exibição e o Diário de Notícias divulgou, A convite
do Sr. D. Costa e do Sr. Feliciano Batista, fomos ontem à noite, no Polytheamma, assistir ao funcionamento
desses aparelhos trazidos de Paris [...] O cinematógrafo, que produz efeitos, geralmente conhecidos, das
lanternas gicas, tem sobre estas a grande novidade do aperfeiçoamento de serem fotografias ou desenhos
projetados que reproduzem cenas da vida, representadas como seus personagens fossem pessoas vivas e em
movimento.” Cf. Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. 8.
58
Segundo Antonio Risério, a denominação de província teve a sua origem ligada à inércia ou à paralisação do
desenvolvimento da cidade da Bahia, e teria sido incluída no vocabulário baiano desde a época em que o Rei D.
João VI cruzou a cidade com a sua corte e transferiu a capital para o centro-sul do país, deixando Salvador
relegada a estado periférico. Afirma Risério: “a mudança da capital colonial para o Rio de Janeiro, bem como a
instalação ali da sede da monarquia lusitana e, a partir de 1822, da do ‘império’ –, atestam a significância
progressivamente secundária da velha cidade da Bahia. A província assistirá marginalmente a meridionalização
da economia e da política brasileiras”. Mas esse isolamento político e econômico da cidade da Bahia são vistos,
também, por Antonio Risério de maneira produtiva, pois, de acordo com o poeta e antropólogo a cidade teria
sido levada a ter uma maturidade que pode ser traduzida como uma nova forma de cultura, procedente da vida
orgânica e oriunda das experiências vividas por gente lusa, banto e ioruba, o que hoje chamamos de ‘cultura
baiana’. Antonio RISÉRIO. Uma teoria da cultura baiana. In: Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo;
Salvador: Editora Perspectiva; Copene, 1993, p.158.
59
Expressão usada por Pinto de Aguiar para justificar as condições de desenvolvimento econômico na Bahia. Cf.
Pinto de AGUIAR. Notas sobre o enigma bahiano. Salvador: CPE e Livraria Progresso, 1958.
60
Sobre a superação dos obstáculos econômicos na Bahia, ver Francisco de OLIVEIRA. O elo perdido – classe e
identidade de classe na Bahia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003, p.32-33.
ao contrário, ele foi produto e parte componente das variáveis
interconectadas da modernidade: tecnologia mediada por estimulação visual
e cognitiva; a representação da realidade possibilitada pela tecnologia; e um
procedimento urbano, comercial, produzido em massa e definido como a
captura do movimento contínuo.[...] Ele deve ser repensado como um
componente vital de uma cultura mais ampla da vida moderna que abrangeu
transformações políticas, sociais, econômicas e culturais
61
.
O aparato cinematográfico em Salvador, ou seja, o conjunto de instrumentos e
equipamentos necessários à sua efetivação começou a ser formado num processo de trocas
comerciais entre as matérias-primas produzidas e os manufaturados. A troca economicamente
desvantajosa, segundo a compreensão de teóricos econômicos, dava a estruturação do que se
pode chamar de formação de um mecanismo cinematográfico endógeno
62
.
Desse modo, foram significativos os contatos imediatos, ocorridos logo a partir dos
primórdios do cinema, entre os detentores do capital baiano e produtores europeus,
particularmente os franceses. Nas trocas, ocorreram a fomentação e a criação de um sistema
proveniente da transformação da tecnologia exógena em fator produtivo endógeno, portanto,
não se desenvolveu somente um mercado exibidor de filmes, mas, particularmente, uma
produção esporádica de películas
63
.
Por outro lado, a permanente exibição de filmes caracterizou uma apropriação dos
comportamentos estrangeiros por parte dos públicos baiano e brasileiro, que sem nenhum
estranhamento adotaram a conduta e a moda estrangeira como se fossem costumes próprios.
Essas foram as peculiaridades trazidas através do acesso ao cinematógrafo, “o fato de o
ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste
último, até certo ponto, o seu semelhante”
64
.
Com essa digressão em que o cinema é colocado como decorrente da modernidade
demonstra-se a preocupação de mapear o ambiente de constituição da história social do
cinema na Bahia. Walter da Silveira, responsável pela introdução em Salvador das mais
diversas escolas da cinematografia mundial, condutor do debate cultural provocado por essa
assistência, que não apenas embasou a formação cosmopolita, mas levou ao nascimento da
61
Leo CHARNEY e Vanessa R. SCHWARTZ. Op. Cit., p.31-32.
62
A respeito desse processo de troca de matéria-prima por tecnologia cinematográfica, ver Jean-Claude
BERNARDET. Cinema brasileiro propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
63
Sobre a produção de filmes na Bahia nesse período ver Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. 26-28; e Angeluccia
Bernardes HABERT. A Bahia de outr’ora, agora leitura de ‘Artes & Artistas’, Revista de Cinema da década
de 20. Salvador: Academia de Letras da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2002, p.190.
64
Paulo Emílio SALLES GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2. ed. São Paulo: Editora Terra e
Paz, 1986, p. 88.
produção cinematográfica, traduz essa atmosfera cultural cinematográfica moderna e
universalizante ao afirmar:
Aqui uma atmosfera propícia para o cinema, talvez a mais propícia do
universo. Não acontece por acaso desembarcarem, em nossos portos,
estrangeiros e nacionais para a realização de filmes Se vêm de longe é
porque em nossas ruas e ladeiras, em nossos sertões e praias, deve existir um
ambiente favorável. Havendo indústria cinematográfica baiana, cineastas
baianos, incorporação da Bahia, à história universal do cinema, iremos ter
filmes da Bahia e não filme na Bahia
65
.
Em um contexto de intenso trânsito, onde a cultura cinematográfica é potencializada,
Nelson Pereira dos Santos no final de 1959, chega à Bahia para filmar Vidas Secas, em
Juazeiro, no sertão baiano. Em Salvador, hospedou-se na pensão de Lúcia Rocha
66
, onde
afirmou nunca ter visto “gente tão bonita”. O contato com os jovens realizadores e o
engajamento desses na produção se concretiza.
Nesse período, integra-se à equipe como assistente de direção Luís Paulino dos
Santos, que pertencia ao grupo de jovens cineastas baianos. Será Paulino, também jornalista,
quem reforça os contatos da pré-produção feitos por Guido Araújo, fazendo a ponte para que
a produção consiga apoio oficial, efetivado com a liberação de um jeep da Companhia de
Navegação Baiana, bem como garantia de hospedagem e alimentação. Paulino, ainda seria
ator, escalado para interpretar o soldado Amarelo. Uma vez levantada a produção, a equipe
parte para Juazeiro, é um domingo de carnaval, em 1960, com toda a estrutura pronta para
rodar o primeiro fotograma. As forças da natureza conspiram: em Juazeiro/Petrolina, em
pleno perímetro da seca, chove durante dias. A paisagem nordestina assume nova
configuração. A caatinga muda de cor e Nelson Pereira dos Santos acaba por transformar a
história que iria contar. Mandacaru Vermelho é o projeto que emerge da mudança. Nele, a
pesquisa social cede lugar à imposição dramática de contar a história de uma luta fratricida e
o próprio diretor interpreta o mocinho de seu filme.
Em Mandacaru Vermelho, com exceção de Hélio Silva, responsável pela fotografia –
que a partir desse momento cria fortes vínculos com o cinema baiano estendidos até os anos
1990, quando fotografa Heteros, de Fernando Belens e Leonardo Bartucci, seu assistente, a
equipe é local. Confirma-se a participação de Luís Paulino, de José Telles de Magalhães e
65
Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. X.
66
Mãe de Glauber, Lúcia Rocha era proprietária de uma pensão na Rua General Labatut, Barris, que acolhia os
jovens que vinham estudar na capital. A pensão tornou-se uma espécie de embaixada do cinema brasileiro na
Bahia, hospedando os que aqui chegavam ou que lá passavam para fazer uma simples refeição.
Olney Alberto São Paulo. Sônia Pereira e Jurema Penna são atrizes que vêm da Escola de
Teatro da UFBA. A música e orquestração também estão a cargo de Clodoaldo Brito e do
jovem regente Carlos Lacerda.
Duas matérias assinadas por Glauber Rocha
67
ajudam a contextualizar a produção. A
primeira refere-se às produções realizadas por Nelson (Vidas Secas e Mandacaru Vermelho) e
Trigueirinho Neto (Bahia de Todos os Santos) que inauguram na Bahia nova fase para o
cinema brasileiro: “Como não existe mesmo cinema no Brasil, como são mínimas as
possibilidades, tanto faz se filmar no sul como no norte” “os planos de ambos são fabulosos e
muito valerá para a seqüência de produções”.
Glauber ressalta ainda o fato de Juracy Magalhães, então governador da Bahia,
incentivar a atividade cinematográfica no Estado: “através da disposição positiva de ajuda do
secretário e escritor Ruy Santos, um homem de cultura que tem sabido da importância de uma
expressão fílmica nacional”. Termina o artigo asseverando o compromisso de Nelson e de
Trigueirinho com a construção dessa nova ordem cinematográfica e do papel da Bahia nesse
processo: “Nelson e Trigueirinho têm trabalhado no pensamento de se construir uma
produção normal e progressiva. A Bahia deve colaborar com isto. Vamos lutar”.
Na segunda matéria, Glauber qualifica Mandacaru Vermelho “como um romance
segundo sua raiz popular: prólogo e epílogo, epopéia com o máximo de ação e o mínimo de
psicologia, mas ao mesmo tempo retrato violento do nordeste, vertical e sem retoques”.
Mandacaru Vermelho, junto às demais produções do Ciclo Baiano de Cinema, ajuda
a projetar nacionalmente os atores baianos e a promover a troca de informação em torno do
ambiente cinematográfico.
Outra ação de Nelson que pontua a sua relação com a produção baiana é a sua
disposição para montar Barravento
68
, quando Glauber chega ao Rio de Janeiro trazendo o
copião, em uma ação de reconhecimento da importância do filme e esforço de vencer os
entraves que marcaram essa produção.
Nesse período, Nelson retoma o projeto de Vidas Secas, de extrema significação no
conjunto de sua obra, com a decisão de realizar as locações em Palmeira dos Índios, terra de
Graciliano Ramos e de seus personagens. Mandacaru Vermelho havia sido um croqui, um
primeiro contato com o Nordeste.
67
Glauber ROCHA. Trigueirinho e Nelson abrem novos caminhos. Diário de Notícias, Salvador, 1961;
Mandacaru Vermelho. Jornal do Brasil, 1961. A esse respeito, ver Umbelino BRASIL. As críticas do jovem
Glauber: Bahia 1956/1963. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
Contemporâneas da UFBA, 2007.
68
Primeiro filme em longa-metragem dirigido por Glauber Rocha. Inicialmente dirigido por Luís Paulino dos
Santos que, após desentendimentos com o produtor, abandona o projeto.
Entre Mandacaru Vermelho (1960-61) e o seu próximo filme a ser realizado na
Bahia, Tenda dos Milagres (1975-77), Nelson apresenta uma intensa produção e transita por
vários universos: Boca de Ouro (1963), Vidas Secas (1962-63), El Justiceiro (1966-67), Fome
de Amor (1967-68), Azyllo Muito Louco (1969-71), Como era Gostoso o meu francês (1970-
72), Quem é Beta (1972-73) e Amuleto de Ogum (1973-75).
Esse último, apesar de não estar circunscrito em território baiano, pode ser indicado
aqui por outras aproximações. Primeiro, o argumento, inicialmente intitulado Amuleto da
Morte, partiu de Chico Santos, baiano do sul do estado, motorista e amigo de Tenório
Cavalcanti
69
. Baseado em sua experiência de vida, a história tratava dos nordestinos que
migram para o Sul. Segundo, as seqüências de iniciação e fechamento do corpo são sugeridas
e ambientadas como ocorridas na Bahia. E, finalmente, por apresentar uma recusa ao processo
linear de fazer evoluir do relato cinematográfico, que o diretor iampliar no filme seguinte,
Tenda dos Milagres, realizado na Bahia. O Amuleto de Ogum opera em dois tempos: o do
contador (no prólogo e no final) e o da trajetória de Gabriel, tempos que podem ser
justapostos e fundidos pelo espectador.
Nelson credencia o mergulho no imaginário religioso da umbanda da Baixada
Fluminense, presente na realização de O Amuleto de Ogum, à indicação dada por Laurita, sua
esposa, que chamou a sua atenção para o fato. Ele também revela que o seu método de
pesquisa não foi o didático preconizado pelos padrões sociológicos e acadêmicos, e sim os do
caminho da vivência:
Eu não posso esquecer também a contribuição da minha mulher, a Laurita.
Ela estava estudando exatamente as religiões de conversão. E mais a leitura
do Tenda dos Milagres... é um novo caminho e é riquíssimo. E lembrava do
Barravento de Glauber, do candomblé. O Glauber tinha outra postura, né?
Era exatamente o oposto. Ela acreditava na inclusão do pensamento místico
na realidade. Eu via a relação entre as classes. Mas eu evitei o caminho
acadêmico, de procurar especialistas. Fui buscar o pai de santo e ele que me
conduziu com as explicações, com os contatos todos, andando pela área da
Umbanda.
70
Para pesquisar a religião afro-brasileira, ele se cercou das suas fontes primeiras, os
pais e mães de santo. Em O Amuleto de Ogum seguiu a rota de pai Erley. Em Tenda dos
Milagres, o Bogun, o Terreiro do Gantois e o de Mirinha de Portão são suas referências.
69
Tenório Cavalcanti, alagoano radicado na Baixada Fluminense, onde exerce liderança política com base na sua
herança nordestina.
70
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
Verifica-se em O Amuleto de Ogum a superação do que Nelson deixou em
Mandacaru Vermelho, em que o autor, como ator, coloca-se à margem para dizer que não
acredita naquela história. Não acredita no mito. Em O Amuleto de Ogum é o violeiro cego
quem diz: “Vou contar uma história que aconteceu de verdade e que eu inventei agorinha”. O
mito encarna a verdade da sociedade.
A partir desse enunciado, O Amuleto de Ogum promove o rito de passagem e aponta
para elementos de um cinema de abertura popular, que Tenda dos Milagres, o seu segundo
filme feito na Bahia, dará continuidade. Em Tenda dos Milagres, adaptação do romance de
1969 de Jorge Amado, tal como no livro, no filme os tempos se interpenetram numa narrativa
não-linear, aproximando-se da fragmentação da tradição de nossos espetáculos populares.
Nelson introduz novos elementos, funde personagem e enfatiza outros, além de ter a
chancela de Jorge Amado para isso. O escritor declara, em Jorjamado no cinema, filme de
Glauber Rocha (1977), que em Tenda dos Milagres tudo está correto e lhe agrada. A
colaboração de Jorge Amado também será decisiva no andamento da produção.
Torna-se importante referenciar que a Bahia após o golpe militar entrou em
movimento de refluxo. A sua exuberância cultural foi deprimida, desfazendo-se o momento
de invenção de sua renascença. O centro sul assumiu a posição privilegiada promovendo o
desenvolvimento de uma cultura midiatizada, organizada em padrões de indústria cultural
71
. É
no final dos anos 1970 que a Bahia vai iniciar o seu processo de reinvenção a partir de uma
“participação negromestiça fundada na afirmação enfática da negritude”, como afirma
Antônio Risério
72
. Também se faz necessário referenciar e apontar as reflexões dos estudos
73
que tratam da entrada de Salvador no circuito da produção e consumo das mídias,
recuperando a combinação de duas forças, a força do passado e a emergência da novidade,
forjadas através de uma longa história de resistência e dos sinais de consciência da
comunidade negromestiça, que tece uma rede de relações sócio-culturais e religiosas, cuja
capilaridade perpassa toda a “Cidade da Bahia”.
Para compreender melhor esse cenário, não se pode deixar de fora a atuação do
Estado da Bahia no período. O estudo de Jocélio Teles dos Santos
74
esclarece que, dos anos
71
Cf. Antônio Albino Canelas RUBIM. Comunicação, mídia e cultura na Bahia contemporânea. Bahia Análise
& Dados. Salvador, BA: SEI, v.9, n.4. Mar./2000, p.74-89.
72
Antonio RISÉRIO. Op. Cit.,2004, p.568.
73
Cf. Antônio Albino CANELAS RUBIM. Op. Cit.; Milton MOURA. Quem quer comprar a cara desta cidade?
Bahia Análise & Dados. Salvador, BA: SEI, v.8, n.1. jun./1998, p.25-32; Goli GUERREIRO. Um mapa em
preto e branco da música na bahia: territorialização e mestiçagem no meio musical de Salvador. Bahia Análise &
Dados. Salvador, BA: SEI, v.8, n.1. jun./1998, p. 33-49.
74
Jocélio Teles dos SANTOS. Nação corretamente política? As políticas oficiais e os afro-brasileiros. Relatório
para exame de qualificação. São Paulo: Departamento de Antropologia Social da USP, agosto de 1997 apud
1970 até meados dos anos 1980, houve um revival da década de 1930: o regime militar
consolidou sua hegemonia simbólica através do controle da produção cultural. O fato novo
residia na conciliação de valores tradicionais com o desenvolvimento econômico das regiões
através do turismo. Na Bahia, essa posição resultou em uma apropriação dos elementos
presentes no cotidiano da cultura afro-baiana para construir uma imagem de baianidade que
passou a ser acionada na publicidade como modo de “viver baiano”.
É com esse espírito que mais uma vez Salvador acolhe Nelson Pereira dos Santos
que, sensível à história das relações sócio-raciais no Brasil, acompanha o fluxo do movimento
da cidade. Em Tenda dos Milagres, investe no diálogo e na atualização da questão: França
Teixeira e o poder da mídia, Mestre Curió e a capoeira, o emergente e a tradição cenas do
cotidiano da cidade integram-se às personagens da ficção.
As filmagens de Tenda dos Milagres foram iniciadas no dia 27 de setembro de 1975
e encerradas em 2 de fevereiro de 1976, seguindo assim o calendário de festas populares da
cidade. É a festa de Nelson. Os ritos foram seguidos e D. Minininha referenciou Exu, indicado
por ela como orixá protetor do cinema, para abrir os caminhos do filme. Ao rememorar os
ritos e as festas Nelson afirma:
No dia 27 de setembro nós começamos com o primeiro dia de filmagem.
Fizemos uma festa com caruru, como manda o regulamento baiano. A
aceitação foi boa, mas infelizmente não rodamos nenhum plano, porque a
equipe fez muitas homenagens aos santos, e não teve condições. Enfim, era
um filme totalmente protegido
75
.
Há um grande envolvimento das camadas intelectuais baianas, conclamadas por
Jorge Amado a participarem da produção. Atores do teatro e da Escola de Teatro da UFBA,
cineastas como Guido Araújo e Tuna Espinheira, marcam presença. O professor e diretor da
Escola de Artes Plásticas da UFBA, Juarez Paraíso, faz o papel de Pedro Arcanjo. Ele afirma:
Eu encarnei um pouco de Pedro Arcanjo. Tinha uma coincidência grande
entre a minha vida em muita coisa que ele faz. Senti facilidade por eu ter
costume de ler, ser professor, não tinha que interpretar nada, era mais um
lado de tecnologia de cinema que o Nelson resolvia
76
.
Ilana Seltzer GODSTEIN. O Brasil Best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo:
Editora Senac São Paulo, 2003. p.74-75.
75
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
76
Apud Helena SALEM. Op. Cit., p 313.
Na produção há uma mistura de técnicos vindos com Nelson e a presença dos
baianos Agnaldo Azevedo (assistente de direção) e Rino Marconi (fotografia de cena), Arnold
da Conceição (eletricista). A música é composta por Gilberto Gil.
É novamente Jorge Amado quem traz Nelson à Bahia, em 1985, para filmar Jubiabá,
após ter feito um especial sobre a Bahia para a TV Manchete. Em Jubiabá as recorrências
temáticas se apresentam: representações da realidade social, representações da cultura
negromestiça, luta de classes, relação de puro amor, relação inter-racial, política e sexo como
extensões da vida.
A realização deste filme irá apresentar uma situação bastante diferenciada de
produção. Produção franco-brasileira, a demora da Embrafilme em liberar o dinheiro retardou
o começo das filmagens. Nelson chega a Salvador em outubro. As filmagens começam em
dezembro, em plena vigência do verão baiano. No final de dezembro decide pela mudança da
locação para Cachoeira, cidade histórica a uma hora de Salvador, visando a continuidade do
filme. ele consegue dar prosseguimento às filmagens: “Pressenti o abismo, que não ia ser
possível. E aí resolvi mudar”
77
.
Na ficha cnica a composição feita anteriormente, presenças vindas com ele,
acrescidas das presenças locais. A singularidade de sua relação com a cultura baiana
apresenta-se na opção de incluir Batatinha no elenco do filme, resgatando o samba como valor
do território negro.
O Jubiabá de Nelson resulta na história de amor entre a jovem branca Lindinalva e o
negro Antonio Balduíno. Dessa vez, Jorge Amado não participou da adaptação nem das
filmagens.
Ao finalizar a montagem de Jubiabá, em maio de 1986, Nelson retoma uma idéia
antiga
78
e começa a pensar na produção de Castro Alves, um de seus possíveis projetos ainda
hoje
79
, e mais uma vez apresenta vínculos com a Bahia. Dessa vez o movimento é inverso, é a
ação do jovem poeta baiano na cidade de São Paulo que desperta o interesse do diretor:
77
Apud, Helena Salem, p. 347.
78
registro (cópia do arquivo de Guido Araújo, sem data e sem referência) de nota com o seguinte teor:
Enquanto aguarda o pronunciamento da justiça a equipe de Nelson Pereira dos Santos pensa em duas coisas:
(a) descansar quando o filme for realmente lançado) e (b) preparar a produção de seu segundo trabalho, “Rio,
Zona Norte”. Eufóricos diante do entusiasmo que seu primeiro filme vem provocando entre as sumidades que o
têm visto, os rapazes às vezes até avançam mais pelo futuro, falando num Castro Alves que nada teria a ver com
a lamentável obra de Leitão de Barros. Dizem mesmo que Jece Valadão, a grande revelação de “Rio, 40 Graus”,
estuda desde já a vida e as obras do poeta baiano: sua candidatura ao papel é das mais fortes.
79
Quando indaguei a Nelson sobre os seus projetos futuros, ele me falou longamente sobre Castro Alves e de
como esse projeto foi se atualizando ao longo de muitos anos de pesquisa e de desejo latente de realização
como você vai filmar um filme sobre o Castro Alves e não tem cena na
Bahia? O Castro Alves não era baiano. O Castro Alves é brasileiro, é
nacional. E eu sou paulista. Eu entrei na Faculdade de Direito de São Paulo e
a primeira coisa que eu vi assim foi Castro Alves. Depois tinha Fagundes
Varela, depois Álvares de Azevedo. Não tinha nome de nenhum juris
consulto, nenhum sábio do direito, tinha o nome de três poetas. E o
primeiro e mais querido, Castro Alves. O que tem mais história pra contar. A
relação dele com São Paulo, os poemas, a sua história de amor. É uma linha
do filme
80
.
A
realização deste filme marcará o seu retorno a várias origens: à cidade de São
Paulo, onde nasceu; à Faculdade de Direito do largo de São Francisco, onde estudou e militou
pelo Partido Comunista; e à literatura e à história, suas permanentes e declaradas fontes de
inspiração.
80
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
de
dede
de
Cine
CineCine
Cinema Novo
ma Novoma Novo
ma Novo
entrei no cinema novo, não fiz o cinema novo. O cinema novo foi
mostrado diferentemente por vários criadores, cada um com o seu potencial
de linguagem de influência. Foi um cinema muito misturado, de muitas
tendências, muito rico.
Nelson Pereira dos Santos
81
Nelson precede Godard, cujo À bout de souffle é de 58, o neo-realismo e
Rolyud fundidos na vangardismo francês do estruturalismo leninista num
barato joyceano popista. Nelson e Godard criaram o cinema novo. As
contradições européias montadas às contradições brasileiras.
Glauber Rocha
82
quem diga, jocosamente, que o Cinema Novo é o Glauber Rocha no Rio
de Janeiro. Quando o Glauber aparece no Rio, fala-se, discute-se, combate-
se, funda-se, liqüida-se o Cinema Nôvo.
Nelson Pereira dos Santos
83
É um grupo heterogêneo em formação. E todo o mundo pergunta: a
ideologia do Cinema Novo? Não existia a ideologia do Cinema Novo, cada
um tinha a sua formação [...] Não era uma coisa sólida, um pensamento só. E
ninguém tinha obrigação de fazer cinema com visão social. Isso não existia.
A idéia era fazer filmes, os melhores.
Nelson Pereira dos Santos
84
O esboço de uma manifestação opositora ao modelo dominante de projeto
cinematográfico vai encontrar a sua demarcação por volta da década de 1960, quando passou
a ser constatado o aparecimento de agrupamentos em torno do cinema com o registro da
81
Entrevista concedida a JoGeraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!. São
Paulo, 21/03/99.
82
Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.308.
83
Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Alex Viany
Revista Civilização Brasileira, nº1. Março 1965. p.185.
84
Entrevista editada por Tunico Amâncio no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson Pereira
dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999, Centro Cultural Banco do Brasil, p.34.
novidade, os chamados “jovens”, ou “novos”
85
. Essa constelação de cinemas novos se
engendrou dentro de um quadro marcado pela afirmação de cinematografias nacionais e
formou escolas que tiveram destinos diversos. Não tendo as mesmas condições de
desenvolvimento, umas logo se desviaram do seu presumido percurso, outras resistiram
melhor às dificuldades no seu estabelecimento.
O aparecimento dos cinemas novos flagrou o desenvolvimento de uma expressão
cinematográfica autônoma e flexível, que não se descolava da cultura de cada país em
conexão com a experiência social vivida. Ao contrário, quanto mais a linguagem do filme se
definia, mais o cinema se voltava para a tradição da cultura dos diferentes povos. Essa é a tese
que os cinemas novos vão demonstrar. A ideologia dominante nos novos cinemas é
progressista, visava expressar uma nova subjetividade individual ou coletiva e instaurar uma
nova linguagem que assimilasse as mudanças, produzindo ou acelerando processos de
transformação estético, social e político, tomando-se o cinema como meio canalizador da
representação sensível de uma geração, que com motivações existenciais e políticas variadas,
assumiu-o como expressão plasmadora de sua sensibilidade e relação com o mundo.
A imagem de unidade do movimento de renovação dos anos 1960, apesar das
significativas diferenças de culturas nacionais, de tradições cinematográficas, de ambiências
políticas, torna-se possível através da determinação de características comuns entre os
diversos movimentos
86
.
Seguindo a ordem dessa conjunção de fatores que propiciaram manifestações
vigorosas da arte cinematográfica reativa ao modelo dominante, surgiu no Brasil, com formas
particulares de evidência, o movimento Cinema Novo:
Inspirados pelo despojamento do neo-realismo italiano, pelas inovações da
Nouvelle Vague francesa e, mais proximamente, pelo cinema independente
brasileiro dos anos 1950, os cinemanovistas não queriam nem poderiam
fazer filmes nos padrões do tradicional cinema narrativo de ‘qualidade’,
americano em sua maioria, que oblico brasileiro estava acostumado a ver
87
.
85
Guy Henebelle coteja as novas correntes que surgiram no cinema mundial a partir da década de 60. Cf. Os
cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
86
Cf. Antonio COSTA. Compreender o cinema. São Paulo: Globo, 1989. O autor cita Miccichè, crítico italiano
dedicado ao conhecimento e à difusão do novo cinema, que sintetiza em quatro pontos as inovações do movimento,
que em graus variados incidiu sobre o cinema do mundo inteiro: a) estrutura narrativa abandono do enredo
tradicional e adoção de rmulas mais próximas das novas tendências literárias, b) – linguagem fílmica – abandono
de formas sintáticas tendentes a ocultar o procedimento de encenação e adoção de técnicas antinaturalistas e
destinadas a evidenciar a subjetividade do autor, c) ideologia em vez de evidenciar uma mensagem ideológica
unívoca, surgiram formas mais fluidas e indiretas, baseadas em procedimentos metafóricos ou alegóricos, d)
estruturas de produção manifesta-se sempre uma exigência de mudança variando de um circuito de distribuição
radicalmente alternativo à conquista de um mínimo controle sobre o sistema de produção e distribuição.
87
Id. Ibid.
Em franca oposição ao cinema vigente, e partindo em busca de uma expressão
própria, Glauber Rocha expõe as bases desse cinema, libertador da linguagem
cinematográfica, vigoroso e original, que se anuncia como novo no conteúdo e na forma e que
se identifica com o próprio jeito de ser de uma cultura híbrida, miscigenada, cuja principal
característica é reelaborar os influxos sobrevindos de campos diferentes da expressão artística,
produzindo um contínuo movimento de deslocamento e de renovação, pois seus temas
impõem uma nova postura, um novo modo de filmar:
A partir deste conceito de imitação e de cinema original que se criou no
Brasil o termo Cinema Novo. Mas sobre o Cinema Novo, que fez uma opção
de enfrentar a verdade brasileira, surge um segundo desafio: que linguagem
original usar desde que já se recusou a linguagem de imitação
?
88
.
As questões apontadas por Glauber Rocha constituíram o desafio deste movimento e
razão do seu desenvolvimento. Como afirmar-se enquanto expressão própria quando o padrão
é dado de fora para dentro, seguindo a um modelo de imitação? Como propor um novo
modelo? É nessa aventura que se lançaram os ideólogos desse novo cinema, que ajustou o seu
foco direcionando-o para as entranhas do Brasil por meio de uma linguagem de ruptura em
que imprimiu no celulóide e projetou na tela a nossa paisagem física e humana.
Jean Claude Bernardet também responde às indagações de Glauber Rocha ao referir-
se à Aruanda, filme de Linduarte Noronha, cineasta paraibano, realizado em 1961:
No caso, a insuficiência técnica tornou-se poderoso fator dramático e dotou a
fita de grande agressividade. Aruanda é a melhor prova da validade, para o
Brasil, das idéias que prega Glauber Rocha: um trabalho feito fora dos
monumentais estúdios que resultam num cinema industrial e falso, nada de
equipamento pesado, de rebatedores, de luz, de refletores, um corpo a corpo
com uma realidade que nada venha a deformar, uma câmara na mão e uma
idéia na cabeça, apenas
89
.
Dessa forma, o professor, crítico e teórico do cinema brasileiro infere que a
insuficiência técnica presente na produção inicial do Cinema Novo poderia resultar em função
dramática e até mesmo em expressão estética, respondendo às questões vitais do cinema
brasileiro daquele momento: o que deveria dizer o cinema do Brasil e como fazê-lo com
88
Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra e Embrafilme, 1981, p.99.
89
Jean Claude BERNARDET. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1976, p.27.
insuficiência de recursos. O status e o papel assumido por esse movimento emergente é o de
ser o outro, o avesso ao instituído.
Alguns estudiosos do cinema antecipam o surgimento do Cinema Novo à produção
de Rio, 40 Graus. Esta é a opinião defendida por Luís Carlos Borges que credencia a Nelson
Pereira dos Santos a origem imediata de toda uma nova concepção sobre como fazer cinema
no Brasil:
Tudo, na verdade, começou com Nelson Pereira dos Santos, que em 1955
realiza Rio Quarenta Graus, o deflagrador, sem dúvida, de um cinema no
Brasil, e que em seguida ainda produz, em São Paulo, O Grande Momento
(1958), estréia na direção de Roberto Santos
90
.
Outros fazem a opção por destacá-lo nos fins dos anos 1950, início dos 1960 quando
é realizado um conjunto de filmes com marcas distintas do espetáculo até então apresentado
em nossas telas.
É ainda Jean-Claude Bernardet que, optando por não mencionar uma data para o
nascimento do movimento, o distingue através de suas características constitutivas, dispostas
na seguinte ordem: “primeiro, os jovens diretores ascendem à direção, segundo, a rejeição de
conceitos estilísticos dos anos 1950 e terceiro, a posição diante da sociedade”
91
.
No detalhe dessas características constata-se que, na primeira, a ascensão dos jovens
diretores representava a primeira ruptura, ou seja, o jovem realizador não percorria mais os
procedimentos necessários dos anos 1950, quando era preciso praticar outras funções antes da
direção. Em muitos casos, ele partia da crítica ensaiada por quase todos os jovens que se
transformaram em autores para a autoria de seus filmes, situação semelhante à dos
realizadores da Nouvelle-Vague francesa referência obrigatória para todos eles esboçando
uma Politique des Auteurs. A segunda característica diz respeito diretamente à construção de
uma nova linguagem e a terceira à abrangência e alcance do Cinema Novo, deixando para trás
a representação do cotidiano das comédias de costumes das chanchadas existente no cinema
brasileiro. Mais do que algum problema social isoladamente, é visto o conjunto da sociedade.
Tratava-se de fazer emergir algo diferente daquilo que nos representava como cópia
canhestra, banalizada pela reprodução mal feita e estereotipada de outros modelos industriais
de cinema. Procurava-se encontrar o equivalente em imagens, do que estava sendo
esboçado na literatura, na música e nas artes plásticas, mas que ainda não tinha encontrado
90
Luís Carlos BORGES. O cinema à margem 1960-1980. Campinas, SP: Papirus, 1984, p.24.
91
Jean Claude BERNARDET. Entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, 7 de março de 1993.
forma cinematográfica, com exceção de poucos e desconhecidos pioneiros do cinema
brasileiro, de quem os cinemanovistas tiraram suas primeiras lições
92
.
Outras indagações somaram-se àquelas iniciais colocadas por Glauber. O que deve
dizer o cinema brasileiro? Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuito
de exibição? E as respostas vieram em forma de filmes que conformavam o Cinema Novo,
movimento dotado de uma peculiar unidade, que apesar de conter momentos distintos, teve
discursos e obras marcantes mantendo traços estruturais comuns entre si.
O Cinema Novo foi estética e intelectualmente um período de extrema consistência.
As idéias que gerou, as polêmicas que suscitou, formaram um movimento plural e diverso de
estilos e pensamentos com algumas aproximações e similaridades ao visto anteriormente nos
outros movimentos de renovação. Aqui, o movimento de renovação o Cinema Novo
realizou a convergência entre a “política de autores”, a feitura de filmes de baixo orçamento, a
opção pela temática social e a inovação da linguagem, prova do seu distanciamento com o
cinema acadêmico tradicional.
Essas aproximações com os cinemas modernos vão demonstrar a sintonia e a
contemporaneidade do Cinema Novo que, inserido na ordem do moderno, traçou percursos
paralelos à experiência desses cinemas.
No final dos 1950, as experiências de Rio, 40 Graus (1954-56) e Rio, Zona Norte
(1957), processadas no bojo do debate político e do nacionalismo crítico cultivados pelo clima
intelectual do momento, deram pistas do caminho a seguir, direcionando-o para a
compreensão sociológica e política da sociedade brasileira ao estampar a sua realidade. O
diálogo maior desses filmes travava-se com a problemática do realismo, o que nos remete ao
contexto italiano, filiação primeira de Nelson Pereira dos Santos. Se o neo-realismo
93
italiano
preconizava como recurso uma apropriação direta do real, onde a paisagem e a vida se
qualificavam na matéria fílmica, apresentando ao espectador o aviltamento do humano, nessa
situação o aprendizado brasileiro do neo-realismo começava com a recusa aos estúdios,
filmava-se em locação, com a câmera sem filtros, sem tripé, livre para capturar a nova
realidade que se oferecia para ela.
92
A referência aqui diz respeito a Humberto Mauro, Mário Peixoto, Carmem Santos, entre outros, que indicaram
as possibilidades inventivas do cinema.
93
Movimento cinematográfico italiano, surgido durante a Guerra e oriundo, a um tempo, da influência das
escolas realistas francesas (Renoir, Clair, Grémillon) e, de modo mais amplo, européia (Pabst), e da reflexão crítica,
na própria Itália, notadamente em torno de Pasinetti, Barbaro, De Santis, do Centro Sperimentale e da revista
Cinema. O prinpio foi, incialmente, “filmar com estilo uma realidade não estilizada” (Panofsky). Jacques Aumont
e Michel Marie. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003, p. 212.
Ao longo da década de 1960, outros traços estilísticos dos cinemas vão estar
presentes na produção de idéias do cinema novo brasileiro junto à idéia de câmara na mão e
apropriação do “cinema de autor” oriundo da Nouvelle Vague francesa que assumiu a
condição de elemento característico que permeará todo o discurso cinemanovista. Ismail
Xavier assim comentará a opção pelo autor e os seus efeitos:
Com a perspectiva autoral, houve espaço para a expressão pessoal e a
invenção de soluções que, embora problema para a comunicação mais
imediata, conferiram aos filmes uma densidade poética e uma dimensão de
ambigüidade, interrogação, responsável por sua maior consistência
94
.
Se na França a “política de autor” correspondeu a uma vontade de expressão do
realizador cinematográfico, no Brasil, Glauber Rocha considerou que o cinema de autor era
necessariamente revolucionário, por ser de autor. Não restrição, não tema que seja
proibido ao cinema que, naquele momento, tornou-se vigoroso, deixando de ser um veículo
exclusivo de contar histórias para se tornar um campo de pensamento político, estético, ético e
social, revelador da experiência humana. O cinema, como elemento da história, é vivenciado
por uma geração que não aceitava separações impermeáveis. A vida, a arte, a poesia e a
intervenção no debate político transcorriam veloz e simultaneamente.
Ao introduzirem novas formas de apreensão sensível do mundo pela imagem e som,
os cineastas do Cinema Novo alteraram a relação entre temas de ponderação e potencialidades
estéticas através do aspecto libertador da linguagem cinematográfica, fio condutor para a
emergência de um pensamento audiovisual vigoroso e original. No anseio de entender o
quadro de afirmação desse cinema Glauber observa: “O cinema novo deu contribuição afetiva
para o conhecimento do Brasil, pois discutiu ao vivo da imagem e do som o que antes era
apenas estatística”
95
.
O cinema assim entendido resultaria em uma linguagem própria que se identificava
com a cultura híbrida produzida no país, cuja característica principal é reelaborar as
influências que a definem, advindas dos mais diferentes campos de expressão, produzindo um
movimento de mudança e renovação.
Raquel Gerber compreende o Cinema Novo como um momento de busca das origens
nacionais e irá relacionar o cinema de autor com a manifestação de seu inconsciente:
94
Cf. Ismail XAVIER. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O desafio do cinema A
política do Estado e a Política dos Autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.15.
95
Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.147.
E neste caminho o Cinema Novo faz aquilo que chamo de uma arqueologia
do sujeito, na tentativa de abordar o “ser colonizado” culturalmente. Essa é a
essência do cinema de autor, manifestação do inconsciente do autor. Não
submetido aos esquemas limitadores da grande produção industrial, o autor
poderia mergulhar em si e em sua cultura e tentar criar uma poesia
liberadora do inconsciente
96
.
Busca, dessa forma, a pesquisadora do cinema brasileiro, verificar o entrelaçamento
da busca da identidade pessoal com a busca da identidade nacional, relacionando a liberdade
de criação autoral com objetivos coletivos. Para Raquel Gerber, os diretores dos filmes do
Cinema Novo partiram da premissa de que o cinema é uma ciência do conhecimento do
homem e da história que com a sua alta capacidade de condensação simbólica pode traduzir a
cultura de um país em seus “processos cumulativos e multifacetados, cambiantes a todo
instante”.
É certo que os filmes do Cinema Novo mobilizaram seu público pela temática que
apresentaram na tela sobre os mais variados assuntos da realidade brasileira e pela linguagem
a que recorreram, diferenciando-os, nitidamente, do espetáculo convencional que o cinema
brasileiro vinha apresentando. Cenários exteriores, configuração de novos espaços, uso de
planos longos, câmera na mão, estouro de luz, intensa luminosidade – essa é a luz dos
trópicos
97
–, atores naturais, tudo isso é experimentado até as últimas conseqüências no
Cinema Novo, fazendo parte da inscrição de sua linguagem.
Regina Mota em artigo em que reflete sobre alguns aspectos do registro do
pensamento brasileiro impresso nos filmes, artigos e manifestos do movimento, afirmará:
No processo de reelaboração era necessário olhar para dentro de si para fazer
emergir algo distinto daquilo que nos representava classicamente em clichês
e estereótipos de uma nação exótica, paradisíaca e tropical...Ali começamos
a difícil tarefa de vermos a nós mesmos no pequeno, pobre e limitado mundo
do dia a dia do brasileiro: como vestimos, como divertimos, como comemos
e trabalhamos, sem o folclore amenizador das chanchadas da Atlântida
98
.
Marcado pela multiplicidade de seus temas e diferentes visões, o Cinema Novo
agregou os mais significativos autores cinematográficos brasileiros. De Nelson Pereira dos
96
Cf. Raquel GERBER. O mito da civilização atlântica -Glauber Rocha, Cinema, política e estética do
inconsciente. Petrópolis. RJ: 1982, p.25.
97
A experiência do uso da luz natural é inaugurada em Vidas Secas, e se estende a outros filmes como Deus e
diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os fuzis (Ruy Guerra, 1964).
98
Regina MOTA. Cinema e Pensamento Brasileiro. Eptic on line. Revista de Economia Política de las
Tecnologias de La Información y Comunicación. Dossiê Especial Cultura e Pensamento, Vol. II Dinâmicas
Culturais, Dec. 2006, p.51-52.
Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro, Leon Hirzsman, Cacá Diegues, Paulo
Cesar Saraceni, Arnaldo Jabor, Walter Lima, Luís Carlos Barreto, Zelito Viana a David
Neves, entre outros. Estes autores cinematográficos, apesar da diferenças de estilos, fundiram
experiências estéticas com novidades técnicas, característica que faz a mediação entre o
técnico e o estilístico, fundamental para a constituição da moderna dramaturgia do cinema
brasileiro. Começaram a realizar a desafiadora tarefa de nos projetar através de lentes que nos
configuram e ampliam, revelando nosso cotidiano com paisagens, pessoas e cenários que
ilustram a existência de diversos brasis e o mosaico que o constitui – da favela ao sertão. Cacá
Diegues de dentro do movimento promove a sua síntese:
O que caracteriza essa geração da qual me orgulho de ter feito parte, que foi
a geração que fundou o cinema moderno no Brasil, são duas coisas muito
simples: a primeira foi a modernização da linguagem tanto na forma de
fazer, produção barata, equipamento leve, etc.– quanto na abordagem de
problemas brasileiros. O outro aspecto, que eu chamaria de a única unidade
ideológica do grupo, da geração, era a idéia de fazer um cinema brasileiro no
Brasil
99
.
Seguindo diferentes percursos, o cinema brasileiro partiu para a sua prática narrativa,
exuberante em plasticidade na conformação de suas imagens diversas, posicionando a sua
câmera com a coerência apropriada a um cinema que indaga a composição da forma e do
equilíbrio clássicos.
Com essa atitude, o Cinema Novo ocupou papel de destaque tanto no Brasil como
fora dele, repercutindo internacionalmente. Movimento seminal, reposicionou o nosso
cinema, colocando-o em uma rede de estratégia precisa, que lhe conferiu novo estatuto,
passando a ser observado pelas elites, que começaram a ver o cinema como força cultural
expressiva de suas inquietações políticas e estéticas. Essa situação lhe conferiu visibilidade e
legitimou os seus valores. Isto se deu em razão do trabalho em sincronia articulado pelos seus
pares, seguido de um enorme empenho que resultou na ampliação do seu reconhecimento. O
Cinema Novo teve destacada repercussão internacional, ganhando prêmios significativos em
festivais internacionais, o que motivou a produção de artigos e teses, gerando uma fortuna
crítica a seu respeito, em todo o mundo
100
.
99
Carlos DIEGUES. Cinema Brasileiro: Idéias e imagens. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS;
MEC/SESU/PROED, 1988, p.31.
100
Cf. Alexandre FIGUEIRÔA. Cinema Novo. A onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas,
SP: Papirus, 2004.
Jean-Jacques Camelin
101
, ao tratar da repercussão do Cinema Novo visto pela crítica
francesa, no momento de sua descoberta na Europa, mais particularmente em Cannes, afirma:
Foi no século passado, quatro décadas desse ano 2004, no Festival de
Cannes de maio de 1964, que o jovem cinema brasileiro, chamado de “novo”
marcava época, propondo quatro filmes: Vidas Secas de Nelson Pereira dos
Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, em competição;
Ganga Zumba de Carlos Diegues, que quase fora escolhido para a Semaine
de la Critique: e, para completar, Os Fuzis de Rui Guerra, que havia recebido
o Urso de Prata no Festival de Berlim, em fevereiro.
Outro aspecto a ser destacado no Cinema Novo diz respeito à logística que adotou:
poucas pessoas em colocações essenciais, revezando-se nas funções (produção, direção,
distribuição, agitação e articulação teórica) formaram uma rede que potencializou esforços
isolados. Refletindo sobre o alcance do movimento Nelson enfatiza a dimensão do trabalho
coletivo:
Por que o Cinema Novo foi um avanço de cem anos na história do cinema e
provavelmente da cultura brasileira? Porque era um grupo aguerrido, era
uma tropa de choque. Com individualidades completamente diferentes entre
si, mas havia um trabalho coletivo, de dentro para fora, internamente
102
.
A partir da perspectiva de Nelson Pereira dos Santos de que não fez o Cinema Novo
o encontrou, constata-se a sua presença e atuação nos mais significativos momentos do
cinema brasileiro. Rio, 40 Graus mostrava que o cineasta devia se voltar para uma
compreensão sociológica e política da sociedade brasileira e contém os germes do Cinema
Novo, movimento que se afirmaria alguns anos mais tarde, de que Vidas Secas seria uma
tradução emblemática e a trilogia El Justicero, Fome de Amor e Azyllo Muito Louco,
sinalização para a mudança de seu rumo e exaustão.
Da posição assumida por Nelson pode-se deduzir também sobre o caráter
polissêmico presente no cinema brasileiro: a constatação de que são muitas as suas referências
e que derivam de vários estilos e perspectivas. Na sua firme declaração é reiterada a
permanente defesa que faz à liberdade do autor para criar e experimentar linguagens,
arriscando-se sempre a novos e imprevistos resultados, sem no entanto abrir mão do diálogo
permanente com o outro, com o seu público, traço que o persegue durante toda a sua trajetória
artística.
101
Jean-Jacques CAMELIN. Fragments pour un anniversaire. Cinémas d’Amerique Latine 12, p. 52-66,
Presses Universitaires du Mirail Toulouse, 2004. p.52
102
Apud Giselle GABERNIKOFF. Op. Cit., vol II, p.340.
Cacá Diegues posiciona com acuidade o papel de Nelson na cena do movimento:
O Cinema Novo tem como característica: nós sempre nos influenciamos muito
uns aos outros, mesmo que isso não apareça nitidamente. Como de certo modo
os próprios filmes de Nelson estão presentes em Barravento. Agora, não
acontece o mesmo com os filmes do Nelson. Eles são nitidamente anteriores a
essa espécie de interpretação que se faz no cinema brasileiro na década de 60.
Como são anteriores, vêm sempre por um caminho inesperado
103
.
Da mesma forma, Glauber reforça o entendimento de Cacá alargando a importância
de Nelson:
Ele é a consciência do nosso grupo. Foi ele que fez o primeiro filme
independente do ponto de vista de produção, Rio, 40 graus, e encontramos
as primeiras posições políticas frente à situação colonial do Brasil. Ele
tornou-se um líder, uma espécie de inspirador e, ainda hoje, mediador entre
os contrários
104
.
Compete, ainda, a Glauber resumir a posição de Nelson no Cinema Novo ao mesmo
tempo em que situa historicamente o movimento:
No caso de Nelson, naturalmente, o movimento muito mais se aproveitou
dêle do que êle do movimento. Mas, de qualquer modo, veio a integrar-se no
Cinema Nôvo, como o próprio Alex e outros. Se se procurasse situar o
Cinema Nôvo històricamente, poder-se-ia dizer que é mais um problema de
geração: os novos diretores que surgiam queriam fazer filmes, e, por uma
contingência tôda especial, que ocorria pela primeira vez, puderam
estabelecer algo assim como um programa comum
105
.
David Neves
106
em um dos seus textos mais conhecidos detalha a poética do Cinema
Novo entendendo-a como um “universo específico em seus diversos setores”, referindo-se
assim à unidade encontrada pelo movimento a partir da diversidade de estilos e posiciona
Nelson na base do movimento ao indicar suas correntes:
Nelson Pereira dos Santos, usando recursos de todo um cinema que lhe
antecedeu, traça as bases de uma nova escola: a da autenticidade...Assim,
Nelson Pereira dos Santos influencia Glauber Rocha que influencia Carlos
Diegues, que se exercita. O universo de Nelson, seus conceitos dramáticos
103
Helena SALEM. Op. Cit., p.160.
104
Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.111.
105
Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Op. Cit., p.186.
106
Crítico e cineasta carioca falecido em 1994, exercitou a militância pelo cinema brasileiro informando,
comentando e argumentando em torno dos filmes realizados no País.
agem sobre Joaquim Pedro, que também se estimula com a retórica de
Glauber
107
.
Nessa perspectiva, cabe a Nelson Pereira dos Santos a tintura de inspirador do
movimento e anunciador do debate sobre autenticidade, dependência e colonialismo cultural,
o caro ao ideário do Cinema Novo, uma vez que ocupou o centro do debate no Brasil nos anos
1950-1970. Seus filmes tanto indicavam as marcas da invenção como a da materialidade da
produção, demonstrando a viabilidade de um cinema esboçado nas franjas do
subdesenvolvimento, descolado do modelo da matriz industrial. Tal preocupação, traduzida no
duplo esforço de criação artística e posicionamento político, definiu a prática de Nelson e se
estendeu como marca do Cinema Novo, momento em que se registrou uma posição de extremo
avanço no cinema brasileiro, tanto no arranjo e composição dos filmes como na política
cinematográfica.
Será de Nelson Pereira dos Santos o local da fala mais autorizado para situar e
sintetizar o movimento a partir de suas inscrições contextuais e históricas:
O que eu acho é que os diretores do cinema novo e eu, todos bebemos na
mesma fonte. O cinema não vive só do cinema, vive de um contexto cultural
mais amplo. Nós todos estávamos embebidos daquela geração anterior dos
escritores, dos romancistas, da Semana de Arte Moderna, dos grandes
pintores, Di Cavalcanti, Pancetti, de Villa-Lobos, tudo isso estava na cabeça
da gente, sem falar em Euclides da cunha, Gilberto Freyre etc. Era a
permanente busca dessa identidade brasileira.
O cinema novo cumpriu uma função histórica, que foi a de juntar essa herança
cultural com o domínio da linguagem universal do cinema. Quer dizer, de um
jeito ou de outro, cada um de nós sabia usar a linguagem, de uma forma
moderna, original [...]. O cinema novo é o modernismo no cinema. Em outras
palavras também significa descolonização em todos os sentidos
108
.
Se na árvore genealógica do Cinema Novo Nelson Pereira dos Santos recusa o local
reservado à paternidade, e se declara cooptado e acolhido pelo movimento, na genealogia de
todo o cinema brasileiro Glauber Rocha, ao rastrear o seu DNA, indica a sua procedência
genética a partir da metodologia do Cinema Novo e insiste em perfilar Nelson na base do
grande tronco da sua matriz:
O cinema novo fez a pesquisa, descobrimos o Pai, a semente, a raiz, o tronco
que se nutre das raízes de Mário Peixoto, Alberto Cavalcanti, Lima Barreto:
107
David E. Neves. Telégrafo Visual: crítica amável de cinema. Organização e introdução de Carlos Augusto
Calil. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 214-215.
108
Nelson Pereira dos SANTOS. Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Op. Cit.
são os três que parem Nelson, nossos queridos avós de uma Mãe/Avó:
CARMEM SANTOS A MÂE E O CINEMA BRAZYLEYRO MAURO /
PEIXOTO / BARRETO OS PAIS DO CINEMA BRAZYLEYRO.
NELSON O FILHO DO CINEMA BRAZYLEYRO
109
.
109
Glauber ROCHA. Santos dos Pereira Nelson 80. In: Op. Cit., 2004, p.426.
de
dede
de
Drama
DramaDrama
Drama
Para mim, o cinema tinha que mostrar uma realidade e encontrar uma
solução, que fosse uma solução jogada para o futuro. O cara fodido que mora
na favela, explorado, deve ter uma perspectiva. O happy end é a solução, o
que se precisa fazer para sair daquilo. Afinal, o cinema americano também
fazia o condicionamento do comportamento humano dentro da sociedade
americana. E, se formos mais atrás, no teatro grego, por exemplo, toda
representação organizada do comportamento social, a tragédia, ou a
comédia, tem uma moral, uma solução. O que eu propunha era uma solução
a favor da libertação do homem, do povo brasileiro.
Nelson Pereira dos Santos
110
A expressão drama carrega uma carga semântica muito forte e apresenta, em certos
contextos, usos ambíguos ou zonas limítrofes, podendo ser tomada em vários sentidos. Dessa
forma, ao empregá-la se faz necessária uma reflexão preliminar sobre as suas possibilidades
de significação e contextualização.
No teatro, a expressão drama perpassa fronteiras tênues entre o “dramático”, ao ser
empregada no campo de pertencimento do “jogo dramático”, e o “literário”, ao ser empregada
em referência à “literatura escrita”.
Cleise Mendes, ao abrir as janelas que o termo projeta, irá ampliar o seu arco de
cobertura e relações, incluindo a arte cinematográfica:
Existe uma arte do drama e uma arte do teatro. Se durante séculos o palco foi
o lugar privilegiado para uma leitura produtiva dos textos dramáticos, no
presente o drama tem íntimas e inquietantes relações com outras linguagens,
entre as quais, a grande arte cinematográfica
111
.
110
Cf. Helena SALEM. Op. Cit. p.77.
111
Cleise Furtado MENDES. As estratégias do drama. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1995,
p.30.
Ainda no âmbito do teatro, pode-se inferir que a teoria do drama moderno
112
ao
efetuar a reflexão sobre as transformações da estética teatral, admite a diversidade de
contextos e propósitos das novas formas teatrais, apontando para a dissolução de suas normas,
conciliando novos conteúdos e acatando a mescla e a interseção dos gêneros.
No cinema, quando se fala em drama, convenciona-se a aceitação de um gênero
narrativo que serve para qualificar os temas não-cômicos e não-documentários. Designa-se
uma ação, na qual se enfrentam personagens construídas em um espaço crível. Tanto a
palavra quanto o gênero atravessam toda a história do cinema, adquirindo múltiplas
aplicações, conforme o termo foi se qualificando.
Assim, como ocorreu na literatura e no teatro, linguagens que o precedem, o drama no
cinema comportou subdivisões. As conotações dadas ao termo acompanham, ao longo da
formação da teoria dos gêneros, o desenvolvimento das diversas tendências e rumos que a arte
assume na sua relação com o corpo social. Ao amadurecer com o próprio cinema, o drama talvez
tenha sido o nero que mais tenha incorporado e refletido o estado de coisas de cada época.
Para se impor como arte, num período em que o conceito de arte é questionado, o
cinema teve que atingir tal estatuto para reivindicar seu pertencimento a uma derivação das
artes – a um sistema das artes. Antes de se tornar o que nós conhecemos hoje, o cinema reunia
em sua base de celulóide várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares
de cultura, quando ele se misturava as outras formas de diversão
113
. Os primeiros críticos se
assim é possível denominar aqueles que inicialmente escreveram sobre cinema, quase todos
oriundos da base literária tratavam-no com dureza, classificando-o como divertimento sem
futuro, raso, rebaixado, perigoso para a inteligência e para a moralidade. No entanto, toda
uma vertente de experiências na sociedade moderna originadas da perspectiva do olhar, da
cena e da teatralização do cotidiano, que incorporam na dinâmica do cinema formas que
encontram uma expressão técnica, material e comercial no seu dispositivo, instância não
exclusiva do consumo de imagem, mas que pode ser considerada como a mais paradigmática,
ao tempo em que abriu espaço para idéias, técnicas e estratégias de representação presentes
em outros campos
114
.
112
Peter SZONDI. Teoria do Drama Moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac & Naif, 2001; e Teoria do Drama
Burguês. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.
113
Flávia Cesarino Costa situa esse momento histórico ao tratar do surgimento do cinema como nova forma de
percepção e expressão visual. Cf. O primeiro cinema espetáculo, narração, domesticação. São Paulo: Scritta,
1995.
114
O livro O cinema e a invenção da vida moderna, organizado por Leo Charney e Vanessa Schwartz, evidencia
como no final do século XIX se instituiu socialmente uma forma de olhar que encontrou no cinema sua vigência
normativa. Cf. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
Entre a pluralidade de elementos, expectativas, projeções, negações e resgates que o
advento do cinema mobilizou destacam-se dois tipos de reação para essa novidade. Na
primeira, o cinema é entendido como um êxito derivado da tradição na esfera da
representação; na segunda, observa-se o cinema enquanto evento inaugural, detentor de
possibilidades expressivas ainda não identificadas, destinado a provocar uma ruptura na esfera
da representação. Aqueles que o exaltam conferem-lhe em enorme poder na composição do
drama como experiência visual, inserindo-o na tradição do espetáculo dramático mais
popular, responsável pelo vigor das artes, pois concede maior dimensão aos recursos da
representação, fazendo o espectador mergulhar no drama com profundidade.
Ao apresentar uma história, constituindo-se assim enquanto narrativa, o cinema
movimenta a ação no espaço e no tempo; e a diegese, a autonomia da história na sua
representação do mundo, materializa-se aos olhos da platéia com uma força ainda não
postulada em outras formas de representação. Ao conferir visibilidade, a mediação do olhar
cinematográfico potencializa o efeito da ficção. O “olho sem corpo” cerca a encenação, torna
tudo mais claro, enfático e expressivo
115
.
As teorias do cinema, como todas as escrituras, exibem traços de teorias que as
precedem e o impacto dos discursos das áreas vizinhas. Dessa forma, devem ser vistas como
parte de uma longa tradição de reflexão teórica sobre as artes em geral
116
.
Certas afinidades entre o cinema, o teatro e a literatura permitem trabalhar uma
noção clássica de representação válida nesses domínios artísticos para subsidiar e estabelecer
relações sobre o papel social do espetáculo cinematográfico. A “impressão de realidade” ou
da “cena montada”, que se disponibiliza para o olhar como uma fatia “da vida como ela é”,
cristaliza-se no cinema, tomando empréstimos da visualidade do espetáculo teatral, assim
como do mundo imaginário que é convocado pela construção literária. Isso ocorre,
particularmente, quando deixa de ser uma expressão pessoal, como era no Renascimento e no
Barroco, e passa a privilegiar o “ponto de vista” como a categoria central na descrição da
forma literária. Dessa maneira, o processo de representação literária vai promovendo
adaptações nas suas expressões, valorizando o poder da cena; a idéia de autonomia da cena
confere ao “ponto de vista” uma aproximação entre narração e olhar, inserindo a literatura no
115
Ismail Xavier trata da potência do olhar cinematográfico como um momento de aposta no cinema,
assegurando na exaltação desse momento em que o cinema se mostra eficiente dentro da continuidade de
princípios e funções que se definiu originalmente na representação teatral. Cf. O olhar e a cena Melodrama,
Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p.37-44.
116
Henri Agel assevera que Bela Balazs e Eisenstein consideram o cinema o corolário de todos os meios de
expressão anteriores a ele. Cf. A estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1982, p.49.
domínio da representação visual clássica, estabelecendo um liame entre o texto e a
materialidade de um quadro ou da cena teatral
117
.
No que diz respeito às relações entre cinema e teatro, é possível destacar
continuidades e não só rupturas. Isso foi feito por alguns teóricos que estabeleceram o
balizamento das diferenças e os possíveis pontos de convergência no sentido de garantir e
marcar as especificidades. Essas especificidades são asseguradas, mas é possível explorar os
seus pontos de intersecção, pois o cinema narrativo quase sempre traz o teatro dentro de si,
atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scène
118
. Até mesmo a experiência dos diretores
que se possam considerar indeléveis reafirma a convergência e similaridade entre palco e tela.
É considerável o rol de artistas que atuaram nos dois campos, além de ser possível a
constatação da mestiçagem dos elementos desses dois domínios artísticos.
Nesse sentido, Edgar Morin afirmará:
Há, pois, um cinema secreto no teatro, e, de igual modo, uma grande
teatralidade a envolver qualquer plano de cinema. No primeiro caso, a visão
psicológica cinematomorfiza o teatro; no segundo caso, racionalização e
objectivação teatralizam o cinema
119
.
Com essa formulação, Morin constata a influência das convenções teatrais no cinema
e a absorção, por parte do teatro, de novos recursos adquiridos mediante inspiração subtraída
do cinema. Entende o filósofo que os quadros racionais e objetivos são fornecidos pelo teatro,
por meio das unidades de lugar e de tempo, e a visão psicológica advém do cinema.
Roland Barthes, em artigo intitulado Diderot, Brecht, Eisenstein
120
, trata do sentido
de representação em que a oposição cena-espectador oferece o eixo que permite ressaltar uma
continuidade cuja caracterização envolve um conjunto de elementos que atestam a inscrição
do cinema numa tradição bem definida de espetáculo, em que o jogo instituído pelo binômio –
o olhar e a cena supõe regras que se recriam e invenções que admitem permanências, pelo
menos como este é entendido a partir do Barroco e, de forma mais específica, desde os
postulados do drama sério burguês que Denis Diderot elaborou no séc. XVIII, diluindo o
formato de teatro para ser notado, exibicionista e escancarado, substituindo-o pela autonomia
117
Em relação ao posicionamento do narrador, Ronaldo Costa Fernandes explicita a questão da narração e do seu
contexto de produção. Cf. O narrador do romance: e outras considerações sobre o romance. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1996, p.13-21.
118
André Bazin, crítico de cinema francês, criador da revista Cahiers du Cinéma, dedica um capítulo à relação
entre cinema e teatro, no qual trata do sistema de convenções a que está subordinado o teatro, estabelecendo as
relações com o cinema. Cf. O Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.123-139.
119
Edgar MORIN. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970, p. 150.
120
In: Roland BARTHES. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1990.
da representação. A quarta-parede, como queria Diderot implica uma cena auto-suficiente,
delimitada em seu próprio universo, em franca oposição aos golpes de teatro” que
denunciam a condição de espetáculo. Nesse mundo autônomo, os elementos do teatro clássico
em que a palavra era hierarquicamente superior ao gesto iam se diluindo e a dimensão
visual da representação convocava outros princípios segundo os quais a reprodução dos
detalhes ganhava destaque. Se no teatro a quarta-parede estancava a ficção da realidade,
aprisionando-a, no cinema esse distanciamento torna aguda essa situação, pois a
imaterialidade da sua composição declara essa separação. No entanto, outros dispositivos são
acionados e o espectador, pelo efeito psicológico das emoções, pelo dinamismo da imagem e
pelos mecanismos de identificação, é mobilizado a colocar-se dentro da cena cinematográfica.
Ao preconizar um teatro em que o mundo se dava a ver por emoções e gestos,
Diderot instituía o ilusionismo como forma de identificação e entendimento da experiência
humana. No andamento da roda da história, essa demanda vai resultar no teatro popular s-
revolução francesa, quando se consolida o gênero dramático destinado às massas: o
melodrama. Altamente impregnado pela abundância, é o gênero por excelência das grandes
revelações, desvendamentos, pistas falsas e vilania; as fronteiras do bem e do mal são bem
demarcadas e o espectador é chamado a um posicionamento imediato.
Nada mais natural do que a emergente técnica cinematográfica passar a ocupar o
lugar do melodrama teatral no atendimento da solicitação de representação ficcional da
sociedade, passando a se desenvolver na perspectiva de criar ilusão e assim atingir a
sensibilidade do espectador através do seu “realismo espiritual”
121
.
Divididos pelo falso problema de que a arte imagética nova e muda insurgia-se
contra a cena teatral dominada pela palavra os defensores da autonomia cinematográfica
ajudaram a montar um quadro que defendia a perspectiva da supremacia do cinema com o
argumento de que a nova arte continha formas mais completas de representação, mostrando-se
mais apta ao enfrentamento dos desafios da modernidade.
Peter Szondi concebe o cinema como uma mera descoberta da técnica. O professor,
nascido em Budapeste, com carreira acadêmica na Alemanha, enfatiza que o cinema como
representação mecânica de uma representação teatral podia ser chamado de dramático e que,
ao adquirir independência, obteve possibilidades expressivas específicas, a partir das
descobertas ocorridas entre 1900 e 1920, nas quais ele destaca: 1) a mobilidade da câmera,
121
Henri Agel cunha essa expressão ao tentar caracterizar a essência do cinema e colocá-lo no campo de
pertencimento de “tudo que desmaterializa o mundo”. Cf. O cinema tem alma? Belo Horizonte: Itatiaia, 1963,
p.93.
isto é, a da mudança de plano; 2) o close; e 3) a montagem, a composição das imagens. O
cinema, com a criação desses recursos, deixa de ser teatro filmado, passando a ter
configuração independente, com narrativa imagética própria: “Ele não é mais a reprodução
técnica de um drama, mas uma forma artística épica autônoma”
122
.
Pode-se inferir, da afirmação de Szondi, o fato de que o cinema, assim como o
personagem épico que não morre no final da trama e dessa forma não realiza o seu destino
trágico, perpetua-se para além do horizonte do palco. O cinema entendido como “forma
artística épica autônoma” se coaduna com as determinações que lhe conferem estrutura, forma
e linguagem próprias, atingindo o patamar que o teatro tinha conquistado de admitir a
existência de algo a ser mostrado além daquilo que está ao seu redor, além daquilo que a
platéia acredita ver ou escutar. O cinema assim entendido deixa a passividade que lhe é
conferida a priori e opera também na esfera da produção da ilusão de sentidos,
desestabilizando o real, sendo capaz também de estabelecer um acordo cúmplice com a
platéia assegurando-lhe a liberdade de criar ilações. Os laços que atam o filme a seu
espectador impõem-se no âmbito da experiência comunicacional. A fruição estética permite
ao espectador, imerso na experiência cinematográfica, dialogar com o filme. A condição de
participante do jogo faz o espectador acatar os apelos narrativos, visuais e sonoros do filme,
aderindo ao seu universo diegético, admitindo a ilusão, consciente da supressão da realidade.
Outra interpretação possível a partir da afirmação de Szondi é a de que, além da
técnica, que coloca o cinema e o teatro em dois blocos homogêneos de expressão que às
vezes se tocam, noutras se distanciam , estão as formas de se conceber o espetáculo, seja no
palco, seja na tela, que definem a relação do espetáculo com o teor da experiência social e
com o seu tempo. Para além do aparato técnico que lhe deu base, o que define a inscrição de
uma peça ou de um filme dentro de um movimento estético é o que constitui. Sendo meios de
expressões diferentes, só podem exprimir diferentemente as mesmas coisas. Em síntese, de
se tomar cinema e teatro no plural para tratar com pertinência as suas relações, admitindo-se
também demarcações, atentando-se às especificidades, tanto de um quanto de outro, e à
perspectiva histórica em que estão inseridos.
Para resgatar essas observações que tratam da trajetória do cinema a partir de um
delineamento do conceito de drama, em que as suas relações com o teatro e a literatura foram
apontadas, opera-se um corte seco e as considerações de Szondi indicam o percurso a ser
122
Peter SZONDI. Op. Cit., 2001, p.131.
seguido: o cinema como expressão autônoma, detentor de linguagem própria dentro de uma
perspectiva histórica que o configure.
É nesse sentido que a discussão levantada torna-se necessária para expor o quadro
constitutivo do cinema de Nelson Pereira dos Santos, como referência para abordar a
fundação de uma cinedramaturgia, no contexto do cinema moderno brasileiro, tomando-o
como um dos mais caros representantes de uma linhagem de artistas que assumiu uma atitude
combativa e posicionada na luta pelo direito exclusivo de representar um povo e uma
realidade, sufocados pelos condicionamentos impostos por uma situação histórica de
dependência e exploração.
Seu cinema se propunha a mostrar uma realidade e encontrar uma
solução, a partir da observação de que “toda representação organizada do comportamento
social, a tragédia, ou a comédia, tem uma moral, uma solução. O que eu propunha era uma
solução a favor da libertação do homem, do povo brasileiro”.
Quando se fala em povo, no âmbito do cinema, é possível imaginar a conotação
empregada nos termos definidos por Gilles Deleuze para caracterizar o papel político do
cinema do Terceiro Mundo: “Terceiro Mundo e minorias faziam surgir autores que teriam
condições de dizer em relação a sua nação: o povo é o que está faltando”
123
.
Com esta afirmação, Deleuze convoca o intelectual do Terceiro Mundo a fundar uma
nova base para o cinema político, não mais voltada para o que se supõe ser povo, o que já está
presente. A tarefa para a qual Deleuze quer o compromisso do artista é a que requer a sua
contribuição para a invenção de um povo.
Corrobora com esse entendimento a formulação de Benedict Anderson, autor que
hoje corresponde a uma das referências mais recorrentes nos estudos sobre a nacionalidade.
Em Nação e consciência nacional, Anderson conceitua a nação como uma comunidade
política imaginada:
Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais
conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer
ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de
sua comunhão
124
.
A idéia de nação como “comunidade política imaginada” é a que mais se afina com a
concepção da nação como imagem, como invenção política. Pontua-se que esse entendimento
123
Gilles DELEUZE. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.259.
124
Benedict ANDERSON. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p.14.
ratifica a afirmação deleuziana sobre a necessidade de invenção do povo em uma perspectiva
de resistência política:
É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa
tarefa: não se dirigir a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a
invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador
proclama ”nunca houve povo aqui”, o povo que falta é um devir, ele se
inventa nas favelas e nos campos, com novas condições de luta, para as quais
uma arte necessariamente política tem de contribuir
125
.
A construção da imagem de um povo, “a invenção de um povo”, convoca a
construção de um cinema nacional libertário. Esse foi o projeto dos cineastas do Cinema
Novo
126
, projeto prospectado por Nelson Pereira dos Santos, que surge diretamente vinculado
à preocupação de transformar o cinema em instrumento de descoberta e local de exercício de
pensamento crítico sobre a realidade nacional, cujas realizações, em grande parte, revisitaram
as tradições artísticas e culturais do País, ajudando a moldar as feições de uma nação e de um
povo.
Nelson Pereira dos Santos percebe que para a fundação de imagens da nação
brasileira é necessário um cinema fecundado pelos signos que traduzem a cultura do País,
alimentando-se não apenas da cultura popular, mas também do imaginário que participa da
formação da cultura do País. Cultura designando todas as práticas de saber e conhecimento,
como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante
os campos econômico, político e social, e que com freqüência configuram-se sob formas
estéticas conformadoras do reservatório do melhor de cada sociedade.
Com tal atitude, o cineasta visa o desmonte da hierarquia imposta pelo colonialismo
cultural, afinando-se com a “leitura em contraponto” proposta por Edward Said, ao tratar dos
textos literários dos impérios ocidentais modernos dos séculos XIX e XX que legitimaram a
supremacia européia sobre os povos colonizados:
Devemos, pois, ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo o
arquivo da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos por
extrair, entender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente
presente ou ideologicamente representado
127
.
125
Cf. DELEUZE. Op. Cit., p.259-260.
126
“No Brasil, o cinema novo é uma questão de verdade e não fotografismo. Para nós, a câmera é um olho sobre
o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso
ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil” (ROCHA, Op. Cit., 1981, p.17).
127
Edward SAID. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.104.
Dessa forma, as imagens dos seus filmes, ao agenciarem demandas e forças
existentes na sociedade, encarnam o espírito das diversas representações de identidade e
materializam a criação desse espírito. Forja-se, assim, a imagem de uma nação para que um
povo reconheça-se no espelho da tela, protagonizando a sua história e espraiando-se para o
resto do mundo, indo à procura dos complexos fenômenos que dão corpo ao fato humano, e o
seu exame torna-se constante indagação, torna-se drama.
de
dede
de
Ensino
EnsinoEnsino
Ensino
Minha relação sempre foi muito fácil com os jovens alunos. Estabeleci uma
forma diversa de relacionamento: ser amigo do aluno. De vez em quando
encontro alguns nos festivais em que passo
Nelson Pereira dos Santos
128
Em 1965, Nelson afastou-se do jornalismo, desligando-se do Jornal do Brasil, após a
realização de dois curtas-metragens feitos sob encomenda para a empresa: Um moço de 74
anos, documentário comemorativo do aniversário do jornal, e O Rio de Machado de Assis,
que recupera, através de rico material iconográfico, a trajetória do escritor. O motivo que
leva Nelson a abandonar o JB deve-se ao atendimento do convite feito por Pompeu de Sousa
para ensinar cinema na recém-criada Universidade de Brasília (UnB). Foi o mesmo Pompeu
que, após o episódio da liberação de Rio, 40 Graus, ligou-se afetiva e profissionalmente a
Nelson e o inseriu no universo jornalístico:
[...] eu verifiquei que, além de fazer cinema, ele sabia escrever e fiz dele um
jornalista. Em função de participar desse trabalho de liberação do filme,
passei a conviver com ele e saber dos problemas dele. Então o admiti como
copy-desk do Diário Carioca, que era um jornal pequeno, pobre e boêmio, e
ele trabalhou com tanto êxito que acabou sendo roubado pelo Jornal do
Brasil depois. [...] Eu adotei o Nelson quase como filho [...] Quando eu fui
fundar a Universidade de Brasília chamei o Nelson para fazer justamente a
parte prática do curso de cinema, e o Paulo Emílio para a parte teórica
129
.
O ensino de cinema no Brasil está pautado, pelo menos, desde o início dos anos
1950. Com os primeiros Congressos de Cinema, constatava-se a importância de estudos
128
Cf. Rodrigo FONSECA. Meu compadre cinema sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos.
Brasília: M. Farani Editora, 2005, p.32.
129
Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.255-257.
sistematizados em cinema, pensados primeiramente para atender a necessidade de quadros
para uma produção que se mostrava então em ascensão, como indicava a existência, entre
outras, da companhia cinematográfica Vera Cruz
130
. Seminários e cursos livres organizados
por Museus, cinematecas, cineclubes e instituições afins demonstravam que o problema da
formação constituía uma lacuna sócio-cultural que os diversos setores da sociedade
procuravam supri-la da melhor maneira possível
131
. Nelson, nesse período, acompanhou como
protagonista essa discussão. Nada mais natural e legítimo do que a sua presença na fundação
da experiência pioneira de ensino de cinema na universidade pública brasileira
132
.
Brasília tinha apenas dois anos quando ganhou oficialmente sua universidade federal.
Inaugurada em 21 de abril de 1962, a UnB abrigou um projeto inovador e revolucionário que
teve como principais idealizadores o educador baiano Anísio Teixeira e o antropólogo mineiro
Darcy Ribeiro, ambos partidários de uma concepção de educação que priorizava a pedagogia
crítica inserida no contexto econômico, social e cultural de seu tempo. Entendiam que boa parte
dos problemas do sistema educacional brasileiro se devia ao modelo de universidade vigente,
tradicional, conservador e descomprometido com a sociedade.
Assim, o projeto da UnB constitui-se em uma experiência singular na história da
universidade brasileira a oportunidade de se experimentar um modelo alternativo para a
educação superior brasileira, voltado para as transformações, procurando eliminar ao máximo
os formalismos e investir na criação de uma instituição livre, na qual o ensino, a pesquisa e a
extensão se voltassem para a resolução dos problemas nacionais, acompanhando as mudanças
de valores e as novas perspectivas que se colocavam para a sociedade brasileira. Se o País
passava por mudanças, era preciso que a escola preparasse o novo homem, o homem
moderno, para integrar-se à nova sociedade, que deveria ser essencialmente democrática.
A UnB foi a primeira no Brasil a ser dividida em institutos centrais, faculdades com
cursos integrados e formação interdisciplinar. E, nessa perspectiva, foram criados os cursos-
troncos, nos quais os alunos tinham a formação básica e, depois de dois anos, seguiam para os
institutos e faculdades.
Pompeu de Sousa coordenava o curso de Jornalismo e passou a conduzir a
formatação da Faculdade de Comunicação de Massas, que abrigava também o curso de
Cinema. Atendendo ao convite, portanto, Nelson tornou-se professor de técnica e prática
130
É importante salientar que, desde os anos 1940, figuras como Vinícius de Moraes e B. J. Duarte apontavam o
ensino formal de cinema como a única maneira de superar o atraso estético e econômico da produção brasileira.
131
Cf. Luciana Rodrigues SILVA. A Formação em Cinema em Instituições de Ensino Superior Brasileiras.
Dissertação de Mestrado apresentada à USP/ ECA, 2004, p. 41-74.
132
Torna-se necessário o registro das experiências até então conhecidas: Escola Superior de Cinema da
Universidade Católica de Minas Gerais e a Escola Superior de Cinema São Luiz, em São Paulo.
cinematográfica do curso de cinema da UnB. Sobre a concepção do curso de Cinema, Pompeu
de Sousa esclarece:
Quando nós criamos a Universidade [...] a idéia era essa [...], fundar uma
produtora cinematográfica para produzir filmes de todos os tipos,
documentários, ficção, produzir filmes para o mercado cinematográfico.
Criamos o núcleo da Escola de cinema, que era uma das escolas que
compunham a Faculdade de Comunicação de Massas, para construir o
embrião em torno do qual se formariam alunos, não só a nível de graduação,
mas a nível de pós-graduação, se formaria, inclusive, toda a equipe da escola
de cinema
133
.
A composição inicial do quadro de professores foi minimalista. Respondendo pela
parte teórica, Paulo Emílio Salles Gomes, que levou dois jovens assistentes: Jean Claude
Bernardet e Lucila Bernardet. A demanda prática foi atendida por Nelson Pereira dos Santos.
Como proposta pioneira, o curso de Cinema atraiu alunos de vários estados do País.
Djalma Limongi Batista, diretor de Asa Branca, um sonho brasileiro (1980), Brasa
Adormecida (1987) e Bocage, o triunfo do amor (1998) relembra sua vivência na UnB:
Brasília, 1965. Curso de Cinema da PEV Práticas Educativas Vocacionais
do CIEM Centro Integrado de Ensino Médio da UnB Universidade de
Brasília. Eu tinha então dezesseis anos, vindo de Manaus para Brasília para
terminar o ano clássico, visando depois cursar cinema no seu primeiro
curso oficial ao nível universitário do Brasil. A universidade idealizada por
Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro permitia que os alunos do secundário do
CIEM já pudessem fazer matérias dentro da Universidade, sem vestibular, e
contando pontuações depois de nela se ingressar. Não se pagava. Nós
inauguramos suas instalações, as salas de aula abriam para jardins internos
perfumados tudo cheirava a novo, como a própria cidade ainda em
construção
134
.
A implantação do projeto contou com as dificuldades e os desafios inerentes ao
novo, mas a organicidade da proposta, que vinculava a Universidade à vida, fazia o projeto
avançar. A instituição nascia praticamente com a cidade e se espalhava sobre ela. Filmes eram
exibidos para a comunidade, palestras e seminários aconteciam com periodicidade. Os
professores assumiam a tarefa especificamente universitária, mas não exclusivamente
universitária davam aula para o nível médio, contribuindo para a formação de uma cultura
mais ampla do estudante.
133
Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.257.
134
Cf. Maria Dora MOURÃO, Maria do Rosário CAETANO e Laure BACQUÉ (Org.). Jean-Claude Bernardet:
uma homenagem. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cinemateca Brasiliera, 2007, p.90.
Havia, assim, uma circulação e um movimento em torno do cinema. Nelson
acompanhava essa dinâmica, mas não rompia seus vínculos com outros projetos, não
efetivando sua mudança para Brasília. Jean Claude Bernardet relata que:
Ele não conseguia se fixar lá. Dava umas aulas, ia embora para voltar daí a
uns dois dias e, em realidade, voltava três semanas depois. Eu me lembro do
meu desespero, do Pompeu, do Paulo Emílio, para não deixar que o reitor
soubesse [...] Tínhamos alguns momentos de irritação, inclusive por parte do
Paulo, quando o Nelson não voltava e a gente nem sabia se estava no Rio,
Belo Horizonte ou São Paulo. [...] Mas como ele era uma pessoa, o de
prestígio, também muito amada, assim que regressava todas essas tensões
ficavam diluídas, os estudantes não se queixavam, achavam tudo
maravilhoso
135
.
O depoimento de um ex-aluno, Luís Carlos Ripper, que terá seu nome associado a
vários filmes de Nelson, confirma a afirmação de Jean Claude Bernardet em relação à diluição
das tensões ocasionadas pela sua ausência e indica o estabelecimento dos laços de cooperação
e aprendizado entre aluno e professor:
Para um estudante de cinema, um diretor importante como ele era sempre uma
incógnita. Mas Nelson não entrou muito como um professor. Era um pouco o
irmão mais velho da turma. O desempenho dele como professor era idêntico
ao de diretor: a integridade com o cotidiano, as relações de afeto. Ele é
extrema e constantemente didático. Você senta com ele num bar, na conversa
aprende bastante, uma relação bem fora dos parâmetros, direta. Mas ele
também é muito curioso, então é uma convivência boa, porque a troca
136
.
Na instalação do curso, a escassez de recursos e a precariedade de equipamentos para
as aulas práticas instigaram Nelson e seus alunos a encontrarem saídas com grau zero de
ortodoxia e potência máxima de imaginação. A partir de um argumento do poeta francês
Jacques Prévert, desenvolveu com os alunos um roteiro, filmou um filme sem película, sem
estúdio e sem atores Cinema Imaginário. Impossível pensar essa situação em outro cenário
que não seja o de instauração de um projeto inovador.
Seguindo as proposições do projeto da UnB, o de gerar conteúdos interdisciplinares,
foi produzido o Fala Brasília, documentário que utiliza a técnica de som direto para registrar
as várias maneiras de se falar português na cidade. O curta-metragem teve como base a
pesquisa feita por Nelson Rossi, professor de filologia portuguesa, especialista em
dialectologia, que procurava demonstrar que Brasília, povoada por migrantes de todas as
135
Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.192-193.
136
Apud SALEM, Ibid. p.193-194.
regiões do País, era o receptáculo de todas as fonéticas, constituindo uma síntese dos modos
de falar do Brasil. O filme foi realizado nas favelas, sons e imagens foram captados com
muita intensidade, seguindo a ordem apregoada por Nelson em outras produções que realizou,
em que a aplicação das idéias se afirmaram num campo de conhecimento e experimentação de
linguagem. A finalização ocorreu posteriormente no Rio de Janeiro, pois mudanças
institucionais desviaram a rota do projeto da UnB.
A experiência do curso de cinema foi breve, abortada ainda na fase de implantação.
A ditadura instalada com o golpe militar de 1964 atingiu o projeto que se vislumbrava. Na
verdade, a instituição brasiliense era tida por setores extra-universitários como um foco do
pensamento esquerdista, visão que só se acirrou com os militares.
Em 1965, o campus foi invadido e cercado por policiais militares e do Exército,
várias vezes durante o ano. No dia 18 de outubro, depois da demissão de 15 docentes,
acusados de subversão, 209 professores e instrutores assinaram demissão coletiva, em
protesto contra a repressão sofrida na Universidade. De uma vez, a instituição perdeu 79%
de seu corpo docente. Sobreveio a crise. A Universidade se desagregou. Alunos e mestres
retornaram aos seus estados.
Nelson sintetiza a sua participação no projeto fundador da escola de cinema na
Universidade de Brasília, dimensionando-a numa perspectiva de resistência:
O Paulo Emílio já fazia extensão cultural lá em Brasília. Numa apresentação
de Vidas Secas, ele me convidou: você não quer vir para Brasília? Era uma
proposta tentadora no momento. E havia também uma certa missão política:
precisávamos salvar a universidade do Darcy Ribeiro dos militares. Em
1964, o Darcy e mais três professores foram demitidos. Darcy foi embora
com o Jango. A idéia era preservar aquela universidade, que era bastante
inovadora. Então fui fazer o curso de cinema. Mas, em junho, o Pompeu
acabou demitido. Daí, mudou o reitor. Com a saída do Pompeu, pedimos
demissão em solidariedade
137
.
A aurora que se entrevira para os estudos de cinema na UnB fez com que Nelson, em
1968, apresentasse uma proposta ao reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Manoel Barreto Netto, para a criação de um Curso de Comunicação Social, a partir da
experiência de Brasília. O reitor havia adquirido o antigo cassino Icaraí para sediar as
instalações da UFF, enfrentando a resistência de setores que achavam o local inadequado – no
entanto venceu os seus opositores e deu prosseguimento à iniciativa.
137
Cf. Rodrigo FONSECA.Op. Cit., p.62.
Tunico Amâncio, pesquisador e professor da habilitação em Cinema da UFF,
relembra a participação de Nelson na fundação do curso:
O Nelson foi o fundador do curso de cinema da UFF, a partir da utilização da
Sala de Cinema que foi incorporada pela Universidade e que virou o Cine Arte
UFF, em 1968. Nelson fez todas as demarches políticas e foi o aval do
desenvolvimento do curso, com incursões periódicas ao INC e depois à
Embrafilme para contatos e projetos
138
.
Helena Salem com exatidão informa sobre as novas atribuições de Nelson na UFF:
Em maio de 1968, Nelson é designado responsável pelo setor de arte
cinematográfica da UFF e, junto com outros professores, recebe a tarefa de
estudar as diretrizes para o funcionamento do Instituto de Arte e
Comunicação. Entre seus futuros alunos, os futuros cineastas Lael Rodrigues e
Tizuka Yamasaki, fotógrafo Antônio Luís Soares, produtor Cacá Diniz
139
.
Na UFF, Nelson detalha o projeto, leva adiante o seu método e mantém o tom no
relacionamento com os alunos. Como atividade inicial forma equipe e delega tarefas para a
realização de um filme sobre a Universidade, enfocando a reforma universitária, seu alcance e
repercussão na UFF. Precavido, o primeiro entrevistado é o reitor, mecanismo utilizado como
passaporte para assegurar o livre trânsito e a continuidade do projeto.
Em função de sua atividade profissional, entretanto, Nelson nem sempre foi o
professor-padrão, ao menos em sala de aula. Ele encontrava sempre os alunos, os levava para
acompanhar filmagens, foi durante muito tempo o responsável pelo clima profissional da
escola, que nunca foi escola nem curso, tendo sido sempre uma habilitação da Comunicação
Social:
Mas, Nelson sempre foi a figura de respeito que ditava as linhas políticas a
serem seguidas por todos. Quando ele não estava em produção, seus contatos
com alunos eram mais frequentes, mas nem sempre regulares. O mundo do
cinema era parte das aulas, fôsse na produtora dele no Humaitá, fôsse nas
instituições cariocas de fomento, fôsse até no botequim
140
.
Partilha a mesma compreensão José Marinho, ator e professor Emérito da UFF, título
que recebeu pela implantação do curso de Comunicação Social com habilitação em Cinema.
138
Entrevista concedida a Marise Berta em 11/07/2007.
139
Cf. Helena SALEM. Op. Cit., p. 241.
140
Tunico AMÂNCIO. Entrevista concedida em 11/07/2007.
Segundo Marinho, Nelson esteve presente em todas as frentes que se fizeram necessárias para
a consolidação do projeto de ensino de cinema na UFF:
Nelson sempre emprestou o seu prestígio para lutar por equipamentos,
recursos e condições de funcionamento do curso. Batia em todas as portas
MEC, Embrafilme, INC...
141
.
A trajetória de Nelson Pereira dos Santos na UFF é marcada por acontecimentos
tanto de ventura como de provação acadêmica. Alguns episódios são significativos. Merece
menção o concurso que faz para professor titular da cadeira Introdução à Técnica da
Comunicação, em 1970, “no momento em que chegaram os professores que foram dar
consistência ao “curso”, quase todos vindos da filosofia”
142
. Nelson não sistematizou seus
títulos nem a rica experiência de realização cinematográfica, conforme prescreve as
determinações da academia. Essa inobservância aos princípios da tradição acadêmica o coloca
no limiar de uma reprovação, levando Zuenir Ventura, membro da banca, a advertir Emanuel
Carneiro Leão, que também compunha a banca, das conseqüências de sua reprovação:
Esse é o Nelson Pereira dos Santos, com um filme já teria o suficiente
para ele ganhar dez em títulos. A gente corre o risco, se o reprovar, de ficar
na história como a banca que conseguiu reprovar por títulos o Nelson Pereira
dos Santos!
143
.
Na aula expositiva seu desempenho garantiu-lhe a vaga. Nelson respondeu
assertivamente aos seus argüidores. Mais uma vez, e não mais pela via da expressão
cinematográfica, declara seus princípios e esteia suas posições a partir de referências críticas e
políticas sobre o Brasil. Prossegue Zuenir Ventura no seu relato:
Fez uma aula brilhantíssima, falando muito da experiência de Brasília.
Lembro-me que colocava as coisas com muita simplicidade, sem retórica,
falava da alienação dos estudos de comunicação, da importação de teorias.
Ele propunha uma visão de comunicação ligada à realidade brasileira, em
termos de teoria e prática
144
.
Nos anos que se seguem, Nelson compatibiliza suas atividades de criação
cinematográfica às de ensino. O período é marcado na história do Brasil pela supressão da
liberdade política, quando ocorre o golpe dentro do golpe, caracterizado pelo endurecimento
141
José MARINHO, entrevista concedida em 10 /09/2007.
142
Tunico AMÂNCIO, entrevista concedida em 11/07/2007.
143
Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.242.
144
Id. Ibid., p.242.
da ditadura, que resulta em prisões, exílio e clandestinidade de políticos, artistas e intelectuais.
Em Parati, cidade cenário de suas produções do fim dos anos 1960 e início dos 1970, Nelson
vive seu produtivo auto-exílio em que realiza três filmes
145
. Esses filmes contam com a
participação de alunos, uma mistura de egressos do curso de Brasília que seguiram os passos
de Nelson e outros da UFF. Alguns deles, a partir da experiência direta com a produção
cinematográfica e seu mercado, passam a atender as suas demandas, engajam-se na cadeia
produtiva e não concluem a graduação.
Outro episódio que merece registro na sua relação com a academia, se quando
Nelson sai do Rio de Janeiro para filmar Tenda dos Milagres na Bahia e o Diretor da
Faculdade rompe acordo feito e encaminha para a Reitoria sua folha constando de 30 faltas
junto à portaria que o nomeia para atuar em uma comissão da Embrafilme, que o liberava da
sala de aula. A atitude do Diretor resulta em processo administrativo e no seu afastamento
temporário da UFF. A conciliação se deu sob a forma de uma licença sem vencimentos e
Nelson prosseguiu na atividade acadêmica, com a qual mantém vínculos até hoje, seja como
professor aposentado da UFF, seja como professor convidado por instituições nacionais e
internacionais
146
.
Como foi exposto, o desenvolvimento da cultura acamica no que se refere à arte
cinematográfica é recente no País e teve em Nelson Pereira dos Santos um de seus pilares, uma
vez que esteve presente na fundação dos primeiros cursos de cinema, dos quais recebeu os
títulos de Notório Saber (Universidade de Brasília) e Professor Emérito por Alta Qualificação
Científica (Universidade Federal Fluminense), Doutor Honoris Causa pela Universidade
Federal da Bahia, além de inúmeros outros títulos acadêmicos em diversas universidades
estrangeiras, como por exemplo, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris X
(Nanterre).
Dando continuidade ao seu percurso acadêmico e confirmando a sua importância no
panorama do cinema internacional, Nelson atuou como professor convidado na Columbia
University, no início da década de 1990, durante um semestre, lecionando a disciplina de
Direção Cinematográfica:
145
Azyllo muito louco (realização 1969 / lançamento 1971), Como era gostoso o meu francês (realização 1970 /
lançamento 1972) e Quem é beta? s de violence entre nous (realização 1972 / lançamento 1973). Integram as
equipes desses filmes seus ex-alunos Luiz Carlos Ripper, Antonio Luiz Soares e Carlos Alberto Diniz.
146
Essa situação foi narrada por José Marinho, em entrevista concedida em 10/09/2007.
O tema era o cinema no Terceiro Mundo. Eu passava filmes, passava a
minha experiência. Era simples, era falar sobre o meu trabalho. Era o tempo
de Collor, eu fui embora
147
.
A tradição americana é a de aliar teoria e prática. Lá, Nelson além de acompanhar
duas turmas de direção, em regime de dedicação integral, tanto na formulação como na
execução do projeto audiovisual, conviveu com rios professores que atuam na indústria,
travando contato com a produção intelectual da universidade americana:
Se um cara deu certo no mercado, ele tem uma espécie de obrigação de
voltar para a universidade, pelo menos por um semestre, para transferir a
experiência que acumulou
148
.
No Brasil,
mantém seus laços com o ensino, eventualmente realiza um curso especial,
como o ministrado a um grupo privilegiado de alunos na UnB em 1995 e “ainda ‘protege’ o
curso de cinema e é a quem se recorre quando se tem problemas institucionais a resolver”,
afirma Tunico Amancio
149
a respeito do vínculo atávico de Nelson com a habilitação em
cinema da Universidade Federal Fluminense, vínculo que também é denotado pelo anúncio da
sua presença na abertura do seminário em que alunos e professores da UFF, na primeira
semana de dezembro de 2007, discutirão a mudança das diretrizes do curso que se desvincula
da área de comunicação passando a ser um curso especificamente de cinema e audiovisual.
147
Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p. 32.
148
Apud Rodrigo FONSECA, Ibid., p.28.
149
Entrevista concedida em 11/07/2007.
de Formação
de Formaçãode Formação
de Formação
Eu recebi uma porção de influência italiana de minha mãe, que tinha uma
maneira clara de pensar, na qual religião não existia. Na vida diária não
havia pensamento religioso. Nem pelo lado de meu pai. Meu pai era um
homem solitário, de uma família muito pequena; ele era órfão e foi criado
por Maçons. Por causa disso, meus irmãos e eu sempre tivemos grande
liberdade de pensamento. Não havia códigos no plano do pensamento, mas
havia no plano do comportamento digamos que havia uma visão
pragmática do comportamento; o havia explicação religiosa para o
comportamento. O único modelo de comportamento que se podia seguir era
aquele dado por eles próprios, de tal forma que desde o meu primeiro
contato com a literatura na escola e durante o tempo de faculdade, o
pensamento político que pôde influenciar os jovens foi sempre a livre
escolha. Eu era livre para receber influências e para aceitá-las ou não. O
exemplo de meu pai é o de um belo pensador.
Nelson Pereira dos Santos
150
Foram os dez anos de minha formação, do ginásio á Faculdade de Direito,
uma viagem a Paris, o casamento, serviço militar, cineclubes, Juventude
Comunista, primeiro emprego em jornal, primeiro filme, primeiro filho, que
nasceu em 1950. Estava impregnado da certeza de que o Brasil encontraria o
bom caminho para ter uma sociedade mais rica e mais justa, porque assistia ao
fim da ditadura ninguém imaginava que poderia acontecer outra no futuro.
E, no mundo, acabavam para sempre – dizia-se – o fascismo e o nazismo.
Nelson Pereira dos Santos
151
150
“I received a lot of Italian influence from my mother, who had a rather clear way of thinking in which
religion didn`t exist. In everyday life, there was no religious thought. Nor on my father`s side. My father was a
solitary man, from a very small family: he was an orphan and raised by the Masons. Because of this, my
brothers and I always had freedom of thought. There was no code on the level of thought, but there was a code
on the level of behavior-let`s say there was a pragmatic view of behavior; there was no religious explanation for
behavior. The only standard of behavior you would follow was that which they themselves gave, in such a way
that from my first contacts with literature in school and throughout high school, the political thought that could
influence young people was always a free choice. I was open to receiving influences and to accepting them or
not. My father’s example is of a beautiful thinker”. Cf. Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J.
SADLIER. Nelson Pereira dos Santos. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2003 , p. 132
151
Entrevista concedida a Paulo Roberto RAMOS. Estudos Avançados, 21 (59), 2007.
Nelson Pereira dos Santos foi introduzido na mágica dos filmes pelas mãos dos pais,
cinéfilos declarados, que em um ritual de iniciação levavam a família aos domingos para
assistir a uma maratona de filmes. No programa: um documentário, seguido de comédias O
Gordo e o Magro, Harold Lloyd, Charlie Chaplin, Buster Keaton e de ficções
protagonizadas por heróis e estrelas de Hollywood. O Brasil era um grande consumidor de
filmes estrangeiros
152
, assistia-se, sem limites, a toda a produção americana.
Seu irmão mais velho, Saturnino (Nino), lembra da entrada do cinema na vida do
caçula da família:
Papai alugava um camarote no Cine Teatro Colombo, no Brás, um cinema
com ares de Teatro municipal, decorado com arabescos, flores-de-lis, pintura
dourada, sensacional. O Nelson ia desde bebê, mamãe levava até a
mamadeira dele para o cinema.
153
.
Nelson confirma as palavras do irmão, credita aos pais o estatuto de cinéfilos
orgânicos
154
, responsáveis pelo despertar do seu interesse pelo cinema:
Foi toda uma educação que a gente teve [...] Mas tudo é uma construção
quando na realidade, o que aconteceu é que meus pais eram cinéfilos. [...]
Eles eram espectadores, consumidores, não eram cinéfilos eruditos não.
Eram daqueles que vão ao cinema por prazer, que reconhecem os seus
ídolos, os atores
155
.
No seu aprendizado tanto as matinês, assistidas aos domingos com a família, como
os estudos formais, inicialmente no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, posteriormente,
na Faculdade de Direito do Largo do Machado, propiciaram sua aproximação com grupos de
estudantes que se preocupavam com os problemas sociais e econômicos do País. Esse seu
comprometimento levou-o a filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro em 1945, ano em que o
PCB retornava legalmente à cena política e eleitoral brasileira.
O clima advindo do s-guerra e a pressão das forças democráticas criaram um
ambiente propício ao posicionamento e reorganização do Partido Comunista Brasileiro na
152
Em contraponto, o resumo estatístico da produção cinematográfica brasileira do final dos anos 1920 até 1940
é oferecido por Walter da Silveira: “Em 1929, fazíamos cinco filmes; em 1931, avançávamos a dez; em 1932,
descíamos a um filme sob o esmagamento do cinema falado, porque o Brasil não tinha condições técnicas de
realizar um filme sonoro. conseguimos restabelecer dez filmes, em 1944”. Cf. Walter da Silveira. O eterno e
o efêmero. José Umberto DIAS (org.). Op. Cit., p.270.
153
Apud SALEM. Op. Cit., p.29.
154
A idéia, aqui, se filia ao conceito de “intelectual orgânico”, formulado por Antonio Gramsci, para quem este
tipo de intelectual é aquele criado no interior de sua classe, a partir do seu processo de formação e
desenvolvimento. Cf. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
1979.
155
Apud SALEM. Op. Cit., p. 29.
cena política do País. A eleição para a Assembléia Constituinte em 2 de dezembro de 1945,
sentenciou o final da ditadura de Vargas e demonstrou a possibilidade de soerguimento do
PCB, após o partido ter sofrido acirrada perseguição e perda de quadros. Em um universo de 6
milhões de eleitores, o candidato à Presidência, Yedo Fiúza, conquistou 10% dos votos. No
Rio de Janeiro, o PCB formou uma expressiva bancada de 18 vereadores, a maior da Câmara
municipal. Como saldo das eleições ainda contabilizou a eleição de 14 Deputados Federais e
Luís Carlos Prestes, secretário geral do PCB, ganhou uma cadeira no Senado, sendo o senador
mais votado.
Com a ocupação do espaço político o Partido Comunista Brasileiro galvanizou
significativa parcela da intelectualidade brasileira
156
, atraindo simpatias e adesões em um
cenário de grande movimentação política e cultural. Os comunistas haviam vivido curtos
períodos de legalidade. No ambiente de promessas do pós-Guerra, de oxigenação da
atmosfera política do País pela vigência das liberdades democráticas, o PCB aparecia aos
olhos de muitos como a possibilidade de realização do desejo de mudança, a única coisa
realmente nova, eivada de promessas e não comprometida com o ordenamento político
anterior.
Luís Israel Febrot, advogado e crítico teatral, ex-colega de Nelson no Colégio do
Estado Presidente Roosevelt, responsável por atraí-lo para as hostes do Partido Comunista,
recupera a ecologia do curso clássico, local em que se conhecem e começam a tecer os laços
de amizade que atravessará décadas:
O Colégio do estado era a grande escola do período, propiciava uma
excelente formação intelectual, cultural brasileira em geral. [...] Estudava-se
muito, lia-se mais ainda. E fazia-se muita política
157
.
É nessa atmosfera que Nelson adquire discernimento político e segue formatando a
estrutura intelectual que embasa todo o seu desenvolvimento artístico posterior. Febrot
recorda:
Quando ele entrou no colégio, era de direita, reacionário mesmo. Acho que o
colégio foi a pedra de toque do Nelson, como foi de muita gente. O Colégio
do estado naquela época era um celeiro de politização e de formação cultural
das pessoas. Foi onde ele se fez homem, abriu os olhos para a sociedade,
156
Nesse período, os comunistas brasileiros chegam a 200.000, constituindo o maior PC da América Latina. O
partido atrai a nata da intelectualidade brasileira, edita um órgão central, A classe operária, e outros diários em
vários estados, além de contar com uma importante editora, a Vitória. Cf. Moisés VINHAS. O partidão: a luta
por um partido de massas, 1922-1974. São Paulo: Hucitec, 1982.
157
Apud SALEM. Op. Cit., p.36.
entendeu a estrutura social, compreendeu os seus mecanismos, e fez uma
opção. O que ele fez depois é conseqüência e coerência
158
.
Nelson rememora o tempo de aprendizado na juventude comunista:
Entrei no partido em 45, 46, com cerca de 17 anos. Pertencia à juventude
comunista e, em decorrência da convivência com os grupos culturais dentro
do partido, fui desenvolvendo afinidades coma as artes, sobretudo o cinema.
Logo cinema e comunismo se imbricaram
159
.
Se na política esse era um tempo de oxigenação no cinema, com o fim da guerra,
começaram a entrar em circulação filmes que quebravam a hegemonia do cinema americano e
do cinema político sobre a guerra, majoritariamente presente nas telas do País. Os cineclubes
também tiveram o seu funcionamento facilitado pela queda da obrigatoriedade de submeter a
programação à censura. A história do cinema conhecida através dos livros começa a se
materializar através dos filmes. Nelson acompanha essa movimentação cinematográfica com
especial interesse:
Era o ano de 1945 ou 1946, acabava a guerra, começaram a aparecer uns
filmes diferentes [...] eu vi algumas histórias de amor, mas subordinadas a
um princípio político, [...] era um cinema maniqueísta, fechado em uma ética
[...]. Havia também alguns filmes de aventura, filmes de western, havia
alguns atores, como John Ford [...] Havia um cinema meio escondido que os
franceses foram descobrir depois, que era o filme noir. Eram filmes policiais,
filmes considerados de segunda categoria do ponto de vista industrial,
comercial, mas que revelavam, um pouco as questões políticas da sociedade
americana [...] Havia uma outra corrente que era o cinema mexicano e o
argentino com uma presença muito forte, especialmente em São Paulo [...]
Era realmente isso que se podia ver
160
.
Febrot, compondo o quadro de formação intelectual de Nelson, assinala ainda que:
A literatura era uma grande paixão de Nelson, que devorava tudo:
Dostoievski, José de Alencar, Oswald de Andrade, Shakespeare, Euclides da
Cunha (Os Sertões o impressionou muitíssimo), Jorge Amado, José Lins do
Rego, livros e aventura, poesias, uma lista interminável
161
.
158
Apud SALEM. Op. Cit. p.37; e Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Op. Cit., p.185.
159
Cf. Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino Leite NETO. Op. Cit. Na entrevista, Nelson relata
também que sai do Partido Comunista em 1956, quando toma conhecimento do relatório Krushev.
160
Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. Op. Cit., p.50.
161
Apud SALEM. Op. Cit., p.37.
Nelson complementa Febrot e revela que a sua imagem de Brasil foi vislumbrada por
meio da literatura:
Muito da minha descoberta do mundo, nos anos de juventude, passou pela
literatura. O Brasil, para um paulista como eu, era um mundo muito
pequeno, fechado, de relações familiares, amizades...Era por meio da
literatura que a gente tinha uma visão do Brasil
162
.
Essas afirmações somam-se a outras indicativas de que, no período de formação,
momento em que o amálgama do seu pensamento estético e político se corporificou, Nelson
foi um ávido leitor, incluindo-se na sua seleção os romances de Jorge Amado e Graciliano
Ramos. Escritores, ambos nordestinos, o primeiro baiano e o segundo alagoano, que
contribuíram para a construção do romance regionalista seguindo a tendência modernista de
construir um discurso da identidade nacional e fazem vir à tona, em forte tom de denúncia, a
extensão dos problemas sociais da região, ao tematizarem as mazelas do nordeste do Brasil.
O modernismo nas artes brasileiras, ao decorrer do século passado, desenrolou-se
atrelado ao processo de consolidação da racionalidade capitalista moderna no Brasil
163
. O
olhar direcionado à nação e ao povo brasileiro foi característica dos mais diferentes
movimentos estéticos a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. O exame da realidade
brasileira, ligado ao enaltecimento do caráter nacional do povo brasileiro, apareceria por volta
de 1930 e 1940 nos romances regionalistas. Alfredo Bosi ao periodizar a história da literatura
brasileira constata a abertura oferecida pelo Modernismo acerca dos problemas da nossa
realidade e aponta para o momento da maturação desse debate:
a compreensão viril dos velhos e novos problemas estaria reservada aos
escritores que amadureceram depois de 1930: Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, Carlos Drummond de Andrade... O Modernismo foi para eles uma
porta aberta
164
.
Bosi entende que o sistema cultural posterior a 1930 não corta os seus liames com o
Modernismo, resulta apenas em admitir novas configurações históricas que demandaram
novas estruturas artísticas.
Jorge Amado e Graciliano Ramos são autores recorrentes no percurso fílmico de
Nelson, que mais tarde viria a se consagrar através de adaptação das obras literárias desses
162
Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Op. Cit.
163
Florestan Fernandes trata o período e suas implicações sociais, políticas e culturais. Cf. A revolução burguesa
no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
164
Alfredo BOSI. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980, p.432.
dois escritores também vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, sendo que Jorge Amado
chegou a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados.
Sobre a leitura necessária de Jorge Amado nos seu período de formação, Nelson
afirma:
Para a minha geração paulista, naquela vidinha medíocre de classe média
da escola, do bairro, a chuva, a imitação da Europa ler Jorge Amado
significava descobrir o Brasil. De repente, era o nosso avesso. O grande
libertário. No Estado Novo, era proibido pela polícia e pela família. Ele
mostrava as lutas de classe e também tinha uma proposta de educação
sexual, o sexo livre
165
.
Também é fundamental para consolidar a sua formação a leitura dos formuladores
que pensaram o Brasil e dissecaram a fisiologia do homem brasileiro: Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Candido, entre outros.
É o próprio Nelson Pereira dos Santos que, ao fazer um balanço fundindo as
determinações do momento histórico em que se deu a sua formação e o desenvolvimento do
pensamento intelectual e político do País, reivindica as suas filiações ao afirmar que os seus
filmes contêm influências dos intelectuais que renderam matéria-prima para a cultura
brasileira:
Meus filmes prestam algum tipo de tributo àqueles que fizeram minha
cabeça, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, os modernistas... O mais
importante é que todos esses autores chamavam a atenção para o que
significava ser brasileiro. Evidentemente, isso não foi tudo na minha
formação intelectual. Eu vivi a juventude muito esperançosa, a juventude do
pós-guerra. Acabava a guerra, chegava ao fim o fascismo no mundo,
terminava o Estado Novo no Brasil... Diante desse cenário, o pensamento
tinha espaço. E a presença dos partidos marxistas apontava um caminho bem
luminoso... Então, aquele era um momento de se perguntar. Era um
momento de tirarmos da cabeça todas as dúvidas que tínhamos. Por
exemplo, era a hora de saber o que aconteceu nos anos 30 para propiciar a
revolução liberal do Getúlio. Eu acabei despertando essa curiosidade pela
vida brasileira. E aí apareceram respostas na forma das palavras e teorias do
Gilberto Freyre, do Sérgio Buarque... Antônio Cândido vinha para nos
defrontar com o futuro. Deixar em nossas cabeças a questão mais
importante: mas o que é que somos nós, os brasileiros? Não sei se eles
tinham as respostas. Mas foram eles que responderam primeiro... Para mim é
isto: o pioneirismo. Eles foram nossos grandes mestres que me explicaram o
que é ser brasileiro...
166
165
Apud SALEM. Op. Cit, p. 40.
166
Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p.17-18.
Em 1947, Nelson entra para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
tradicional vanguarda política do movimento estudantil, prosseguimento ao seu ativismo
político e é eleito presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, um dos principais núcleos
em torno do qual a vida política universitária paulistana se aglutinava. Apesar de não ter a
hegemonia do Centro Acadêmico a esquerda articulou uma composição política que lhe
assegurou o cargo de Procurador, sempre ocupado por um calouro. Nelson foi eleito
representando o Partido Renovador. Sobre a sua escolha pela Faculdade de Direito afirmará:
Eu não queria ser médico nem engenheiro. A Faculdade de Direito era a
escola que tinha o mito da luta pelas liberdades. Ser estudante de direito
significava, para mim, estar participando da vida do País, defender as
liberdades
167
.
No ano seguinte fez vestibular para a Escola de Sociologia e Política, que logo
abandonaria. Àquela altura estava envolvido em muitas atividades relacionadas ao cinema,
às artes e à política. Militância artística e política se imiscuíam imprimindo uma marca
fundamental em sua trajetória em um período de profunda agitação na cidade de São Paulo,
que se industrializava e acelerava a sua expansão. De alguma forma, a substituição de
importações forçada pela guerra fortaleceu o desenvolvimento da indústria nacional. Essa
situação repercute no movimento social. A nova ordem ao priorizar a redemocratização e
reduzir o papel intervencionista do estado fez com que a burguesia paulista emergente, forjada
no meio de prósperos industriais, geralmente imigrantes, seguisse a tendência indicada pela
burguesia de países capitalistas desenvolvidos. Assim, a burguesia local reorientou a
aplicação de sua energia e empenho, direcionando-os para investimentos culturais
168
.
Esse novo andamento alimentou a vida cultural da cidade. Nelson vivencia com
intensidade o momento e passa a transitar pelos círculos culturais dinamizados. Participa das
sessões do Clube de Cinema de São Paulo
169
e das atividades de grupos de teatro amador e
experimental
170
, integra o Clube de Artistas e Amigos da Arte com os seus amigos artistas
167
Apud SALEM. Op. Cit., p.40.
168
Nos anos imediatos ao pós-Guerra, são criados em São Paulo o Museu de Arte de São Paulo (1947), por Assis
Chateaubriand; o Museu de Arte Moderna (1949), por Francisco Matarazzo Sobrinho, que também participaria
da criação de outros empreendimentos culturais, como o Teatro Brasileiro de Comédia (1948); e a Companhia
Cinematográfica Vera Cruz (1949).
169
O Clube de Cinema de São Paulo foi criado em 1946, por Almeida Salles, Benedito Duarte, Lourival Gomes
e Paulo Emílio Salles Gomes, entre outros. Em 1948, Francisco Matarazzo Sobrinho convida a diretoria do
Clube para compor o departamento de cinema do futuro Museu de Arte Moderna, e, um ano depois, realiza-se
um grande seminário sobre cinema no MASP. Cf. Maria Rita GALVÃO. Op. Cit., 1981, p. 28-39.
170
Sobre o relacionamento entre teatro e cinema em São Paulo, estabelecido a partir das sociedades teatrais de
amadores italianos, ver Maria Rita GALVÃO. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática, 1975, p.29-35.
plásticos, Luís Ventura e Otávio Araújo. Articulando as diversas linguagens artísticas atuava
em várias frentes e sentia-se cada vez mais atraído pelo espaço de discussão estética:
A grande atividade cultural da época era o clube de Cinema de São
Paulo...Eu tinha também uma relação com o teatro. Participei do Grupo de
Artistas Amadores, dirigido por Madalena Nicol, que revelou o Paulo
Autran, e também do Grupo Experimental de Teatro, de Décio Almeida
Prado. Essas eram atividades não ligadas ao partido
171
.
No final dos anos de 1940, em um ambiente em que a atividade cinematográfica é
ativada
172
, mas em que a democracia é mais uma vez atingida
173
Nelson, motivado pelos ecos
do I Congresso Mundial da Paz
174
e pela perspectiva de estudar cinema no IDHEC
175
,
convence os amigos Otávio Araújo e Luís Ventura a realizarem uma viagem à Europa para
participarem do I Congresso Mundial da Paz. Após muito trabalho e umaação entre amigos”
juntaram o necessário para embarcarem em um cargueiro em direção ao destino traçado.
Chegam atrasados, a viagem de mais de um mês não permitiu a participação no Festival, mas
decidem permanecer em Paris, onde são recebidos por Carlos Scliar que apresenta os circuitos
culturais da cidade aos jovens artistas ávidos para aproveitarem as ofertas que Paris poderia
lhes proporcionar
176
. Sobre o propósito da viagem e seus resultados Nelson esclarece:
Fui para França, em 1949. Na ocasião o Institute d`Hautes Etudes
Cinámatographique, o Idhec, havia fechado as matrículas, pois corria já o
mês de agosto. eu fiquei uns meses em Paris freqüentando a
cinemateca...foi o grande curso de cinema que eu fiz. O meu professor era um
pintor brasileiro residente lá. Era o Carlos Scliar...Conhecia cinema muito
bem...O Carlito é que me botou para ver cinema lá. Falava sempre: “Vai na
cinemateca, os filmes tais e tais”. Com isso, eu acabei fazendo um curso
intensivo de cinema francês, com o melhor do realismo francês nos anos 30:
Jean Renoir, René Clair, Marcel Carné, Jeacques Becker...enfim, aquele
cinema francês realista que assolou o país
177
.
171
Apud entrevista José Geraldo COUTO e Alcino Leite NETO. Op. Cit.
172
A instalação da Vera Cruz, com a presença de Alberto Cavalcanti (cineasta brasileiro com uma brilhante
carreira na França e na Inglaterra) à frente da iniciativa, é indicativa da promessa em torno da atividade
cinematográfica.
173
Em 1948 ocorre a cassação dos parlamentares comunistas.
174
Congresso realizado em Paris, organizado pelos comunistas, que contou com a adesão de personalidades
artísticas mundiais. Do Brasil registra-se a presença de Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Arnaldo Estrela, Carlos
Scliar, Vasco Prado, Cláudio Santoro, Israel Pedrosa, Jacques Danon, Zélia Gattai e Branca Fialho. Cf. Zélia
Gattai. Senhora dona do baile. Rio de Janeiro: Record, 1985. p, 231-232.
175
Institute dês Hautes Etudes Cinématografique.
176
Apud SALEM. Op. Cit., p.55-60.
177
Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p. 26.
A viagem é curta, mas fundamental para definir o horizonte de um jovem de 21 anos
que decide fazer cinema em um país ao sul do equador. Ao retornar ao Brasil Nelson refaz
seus vínculos com a política, volta à faculdade de Direito e realiza o seu primeiro filme,
primeiro de muitos que se seguiriam e revelaram uma vocação profissional para toda uma
vida.
Helena Salem apropria-se de uma metáfora usada por Nelson para comentar a
dimensão da sua formação e a permanência das referências obtidas nesse período ao longo da
sua trajetória:
Para usar os mesmos termos de uma comparação que ele próprio faz muito – o
cinema e a música – , essa sua formação da juventude seria como um conjunto
de acordes, com os quais ele desenvolveria futuramente inúmeros temas, em
múltiplos arranjos. Mudam as peças musicais, porém aqueles acordes iniciais
permitem sempre identificar o som original
178
.
Da citação acima é possível concluir que o ambiente político e cultural que
consubstanciou a sua formação deu esteio ao seu percurso. A intensidade desse momento em
que formulou a sua cosmovisão, tendo como referente o País, será sempre reelaborada e
revisitada em sua obra nos anos que se seguiram. Novas visadas e outros caminhos também
são percorridos, mas a militância, a cinefilia, a leitura compulsiva são pistas indeléveis para o
jovem inquieto que segue indagando a partir do axioma apresentado pelos seus mestres: O
que é ser brasileiro?
178
Apud SALEM. Op. Cit., p. 46.
de Guido
de Guidode Guido
de Guido
Mais tarde, já no Rio de Janeiro, tive a sorte de contar com a companhia
de um jovem baiano na aventura de fazer Rio, 40 Graus. Aprendi com
ele o jeito baiano, aquele modo de ser que facilita a convivência e faz da
amizade uma relação humana imperecível. Refiro-me a Guido Araújo,
colega e companheiro de muitas jornadas, além da Jornada
cinematográfica que reúne nesta cidade cineastas de todas as partes do
mundo, em evento integrante do calendário cultural desta Universidade.
Nelson Pereira dos Santos
179
Esse trabalho de Rio, 40° foi uma coisa importantíssima para mim (...)
Havia um relacionamento, o de amizade, mas de confiança no
trabalho, naquele projeto muito grande, uma identificação total. Foi
muito bom isso, e o Nelson, apesar das diferenças de idade não serem
grandes, era um cara assim de fato mais maduro, com maior consciência
dos problemas, e então realmente foi uma experiência muito positiva.
Guido Araújo
180
Guido Antonio Sampaio de Arjo nasceu em julho de 1933 na pequena cidade de
Castro Alves, sertão da Bahia, antiga fazenda Curralinho, onde também nasceu o poeta que
mais tarde daria nome à cidade. Órfão de pai aos quatro anos. Vem para Salvador adolescente,
envolvido pela bruma mágica do cinema e passa a estudar no internato do Colégio Maristas.
Antes disso, na pré-adolescência, se interessa pelas artes em geral, especialmente,
pela literatura. Junto com um pequeno grupo de amigos moradores de Castro Alves, entre os
quais Fernando Cony Campos que mais tarde se tornaria cineasta por influência de Guido
cria em 1951 o primeiro núcleo de atividades culturais, chamado Clube Cultural Pedro Barros,
em homenagem àquele que era também um poeta da cidade de Castro Alves e que, como o
poeta famoso, havia morrido ainda jovem, porém, praticamente incógnito.
A casa da família de Guido Araújo ficava em frente ao cinema da cidade. A
freqüência assídua aos filmes que eram exibidos criou no jovem Guido o gosto pelo cinema:
179
Trecho do discurso proferido por Nelson Pereira dos Santos na Reitoria da UFBA, em 2006, ao receber o
Título de Doutor Honoris Causa.
180
Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 262.
“Foi o filme Ivan o Terrível, de Eisenstein, que acendeu a chama definitiva no meu interesse
pelo cinema
181
.
A aproximação maior com o cinema se aos 17 anos de idade, estudante do
Colégio Central, na ocasião em que passa a participar do Clube de Cinema da Bahia, que
ficava no Corredor da Vitória, onde hoje funciona o Museu de Arte da Bahia. Ali, assistiu a
célebre sessão inaugural da sua fundação, quando foi exibido o filme “Os visitantes da Noite”,
do francês Marcel Carné. A partir desse momento o cinema categoricamente se impunha em
definitivo na sua vida.
A paixão despertada então pelo cinema o leva imediatamente a decidir-se pela
carreira de cineasta aos dezenove anos. Entretanto, Salvador não oferecia as condições
necessárias para isso, e Guido resolve mudar-se para o Rio de Janeiro, aonde chega em 1953 e
logo faz contato com Alex Viany que estava rodando o filme Balança Mas Não Cai num
pequeno estúdio no bairro de Jacarezinho.
Foi nesse estúdio que se encontrou pela primeira vez com Nelson Pereira dos Santos,
que tinha deixado a família em São Paulo e vindo para o Rio de Janeiro a convite de Alex
Viany para trabalhar como diretor-assistente nesse filme de Paulo Vanderlei.
Guido logo passou a fazer movimento estudantil, militando na Federação da
Juventude Democrática, onde havia um setor de cinema que ele começou a coordenar,
fazendo parte também de um Clube da Crítica. Praticamente a cada semana ele convidava um
cineasta ou um crítico que passava a conhecer, para discutir com os jovens estudantes
interessados em cinema.
Numa dessas noites convidou Nelson Pereira e o ouviu pela primeira vez falar sobre
seu projeto do Rio, 40 Graus que estava com todo o roteiro elaborado, faltando, porém, o
mais importante, reunir as condições para produzi-lo. Tudo isso era muito difícil naquela
época, mas Nelson era um batalhador nato que não desistia facilmente de suas empreitadas.
Contextualizando o período Guido afirmará:
[...] isso coincidiu exatamente com aquele período da bancarrota da Vera Cruz
e de todos os estúdios de São Paulo. Havia uma certa atmosfera de desânimo
no cinema brasileiro; continuava a existir apenas uma produção precária
porém permanente, na base daqueles filmes que eram chanchadas...
182
O interesse de Guido pelo filme levou Nelson Pereira a convidá-lo, junto com outros
jovens, a participar das reuniões, nas quais o cineasta maturava e desenvolvia a estratégia de
181
Apud entrevista concedida a Marise Berta.
182
Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.260.
realização do filme, uma vez não havia recursos e que o filme se viabilizaria pela via da
adesão e do engajamento na proposta. Naquelas reuniões no bar Vermelhinho e no escritório
de um amigo na rua Graça Aranha foi que se estreitou a relação entre Nelson Pereira, Guido
Araújo e os outros colaboradores, dentre os quais o compositor Kéti, autor da música “Eu
sou o samba”, escolhida por Nelson para fazer parte da trilha sonora do filme.
O ator Jece Valadão também se incorporou ao grupo e Nelson resolveu alugar um
apartamento na Lapa onde foram todos morar juntos. O fotógrafo Helio Silva, um jovem
chamado Ronaldo Lucas Ribeiro (assistente de câmara) e Roberto Santos, que teve de retornar
para São Paulo por problemas familiares também foram convidados. No início, as finanças
garantiram a contratação de uma pessoa para os cuidados com a casa, porém, devido à
escassez de recursos, as tarefas domésticas passaram a ser divididas por todos. Uns limpavam
a casa, outros arrumavam e alguns cozinhavam.
Jânio de Freitas, no Diário Carioca de 23/10/1955, relata o dia a dia da república:
A república, “minúsculo apartamento de dois quartos, no qual se
encontravam os dez habitantes republicanos, foi a “solução encontrada (...)
pela equipe técnica de Rio, 40° para os problemas de ordem econômica”. É
“regulada” por uma constituição própria”, com três ministérios: Educação,
Higiene e Fazenda”
183
.
O fato de morarem juntos criou uma forte relação de amizade, cumplicidade e
confiança, uma identificação marcante com aquele projeto dirigido pelo também jovem
Nelson Pereira, que já era, porém, bastante consciente a respeito dos problemas relacionados à
filmagem e maduro o suficiente para extrair resultados positivos daquela situação de grandes
restrições em que a prioridade era a realização do filme, precarizando-se inclusive as
condições de sobrevivência. A respeito da importância da experiência Guido assim se
posiciona:
[...] eu acho que esse filme teve uma importância fundamental. Não pelo
significado do próprio filme, mas particularmente porque abriu uma
perspectiva para os jovens – que atingiu, inclusive, o próprio Glauber Rocha
de se fazer cinema com toda a precariedade de recursos. Esta eu acho que
foi a contribuição mais importante de Rio, 40°.
184
Naquele apartamento eram realizadas constantes reuniões onde se discutia tanto as
tendências estéticas quanto as questões políticas relacionadas ao cinema. De acordo com
183
Id. Ibid, p.84.
184
Id. Ibid., p.262-263.
Guido, aquela foi a melhor escola de cinema que ele teve. Aquele espaço, diz ele, funcionava
quase como uma “célula”. Guido esclarece que não era filiado ao Partido Comunista
185
, ao
mesmo tempo em que admite o emprego do conceito dado à palavra célula como um foco de
estudo marxista - com divisão de tarefas e orientação política - o que também é feito nas
reuniões mencionadas:
O que ocorre é o seguinte: Eu na realidade nunca fui de nenhum partido,
nem do partido comunista. Nunca fui militante de carteirinha de partido
algum. Mas, na época da realização de Rio, 40 Graus, de vez em quando, a
gente tinha umas tarefas, e o cara que era digamos uma espécie de
responsável pela gente, era uma espécie de nosso orientador político ainda
está vivo e é um grande jornalista e escritor Moacyr Werneck de Castro,
adorava a gente e compreendia certas resistências que a gente fazia. Ele
compreendia porque vinha aquela ordem de cima de querer que a gente
fosse fazer panfletagem e distribuir o jornal do partido nas favelas e esse tipo
de coisa. Então, nós protestávamos, achávamos um absurdo a gente com cara
de pequeno burguês subir a favela para distribuir jornal comunista.
186
As filmagens de Rio, 40 Graus terminaram e a equipe resolveu trocar de moradia.
Nelson Pereira, que já tinha dois filhos, Nelsinho e Ney, morando com a mãe, Laurita, em São
Paulo, trouxe todos para o Rio de Janeiro. Hélio Silva e Kéti, também, levaram as suas
famílias para o novo endereço: uma ampla casa em Botafogo na esquina da Rua Real
Grandeza com a Mena Barreto.
Foi nesse período em que se deu a proibição do filme e o Hélio Silva passou a manter
a todos praticamente sozinho, pois, como fotógrafo, era o único a quem não faltava emprego.
Guido Araújo e Nelson Pereira tinham uma atuação mais política. Nelson, se
deslocando e viajando para apresentar o filme, mobilizar pessoas em todo o Brasil, e Guido
substituindo-o quando Nelson não podia ir, ou acompanhando-o.
No início de novembro de 1955, Nelson e Guido foram convidados pelo governo do
Estado da Bahia e pela Assembléia Legislativa para mostrar no dia 12, o filme que havia sido
proibido. A exibição foi preparada pelo Clube de Cinema da Bahia, e se deveu, sobretudo, ao
esforço de Walter da Silveira
187
.
185
O Partido Comunista rotulou a iniciativa de Nelson, ao realizar Rio, 40 Graus, como “aventureirismo”, com o
argumento de que filme popular poderia ser feito após a revolução. A desobediência de Nelson lhe custou o
rebaixamento da Comissão de Cultura do Partido para a célula da Lapa e Santa Teresa. Cf. Helena SALEM. Op.
Cit., p.86.
186
Apud entrevista a Marise Berta
187
As condições em que ocorreu a campanha de liberação e a exibição do filme na Bahia já foram relatadas nesta
tese. Cf. p.14-16.
Logo após a campanha da liberação do filme Guido, assim como Hélio Silva,
conseguiu engajar-se em uma produção como assistente de direção para ajudar nas despesas
da casa. Tratava-se da comédia Sai de Baixo, as locações aconteciam em Marechal Hermes,
no subúrbio carioca e ele saía de casa para trabalhar todos os dias às 5 da manhã, porque tinha
que pegar o trem. Ele rememora as comemorações:
Foram três dias de altas comemorações na chamada mansão, e eu ficava p da
vida, porque eu não podia (participar) e os amigos varavam (a noite) até de
manhã; os amigos traziam bebidas, ficavam cantando aquelas músicas do
Kety até altas horas e quando se aproximava da meia-noite eu tinha que ir
dormir. [...] Quando eu acordava, cansava de encontrar o pessoal ainda na
farra e eles ficavam me gozando: vai operário,vai trabalhar...
188
Guido Araújo, e os que moravam na “mansão”, foram despejados após nove meses
sem pagar o aluguel. Nelson foi morar na praia de Icaraí, em Niterói, levando Guido como
agregado. Helio Silva mudou-se para Copacabana, onde residiu até o final da sua vida, e o
magistral Zé Kéti retornou a Zona Norte do Rio de Janeiro. Mas essa diáspora não desagregou
o grupo, que logo se agregou no mesmo caminho, trabalhando no outro filme de Nelson, Rio,
Zona Norte.
Foram diversas as moradias que Guido teve no Rio de Janeiro. Habitou o mesmo
teto com o ator Jece Valadão e voltou a morar com Nelson, no período em que este foi
convidado a ir a Paris, representando o Brasil junto com Alberto Cavalcanti no I Encontro
Mundial de Cineastas.
Guido não concluiu o seu trabalho em Rio, Zona Norte, pois contraiu uma
tuberculose, doença diagnosticada por uma namorada que era enfermeira, voltando à Bahia
para se tratar. Pelo mesmo motivo, não integrou a equipe de O Grande Momento (Roberto
Santos, 1957), outro filme produzido pela mesma equipe em que Nelson assumiu a produção.
Em 1956, Nelson Pereira foi convidado para mostrar Rio, 40 Graus na
Tchecoslováquia, onde o filme foi premiado no Festival de Karlov Vary como Jovem
Realizador. Essa viagem de Nelson a República Socialista seria um embrião da ligação de
Guido Araújo com aquele país.
Em 1958, Rio, Zona Norte estava pronto, quando Nelson recebeu outro convite
para o Festival de Karlovy Vary e determinou que, desta vez quem iria era Guido Araújo. Não
havia dinheiro para bancar essa viagem, mas vários amigos e atores se prontificaram a ajudar,
e até os colegas da Faculdade deram a sua contribuição.
188
Apud entrevista Marise Berta.
Em seu retorno ao Brasil, Guido vem à Bahia, para o lançamento e divulgação na
imprensa local do filme Rio, Zona Norte, também, premiado no Festival de Karlovy Vary.
Vim à Bahia para, na qualidade de ser o elemento baiano da Produtora
Nelson Pereira dos Santos assistir o lançamento do filme Rio, Zona Norte em
Salvador. [...] Pessoalmente estou suspeito para julgar, pois também sou
interessado direto nos resultados que se obtiver. No entanto, dando um
parecer sobre o trabalho realizado, sinto que houve um progresso técnico e
artístico de Rio, Zona Norte em relação ao anterior Rio, Quarenta Graus
189
.
Nesta ocasião reforça a sua crença no cinema brasileiro:
Guido Araujo é um entusiasta do cinema brasileiro... Fala das possibilidades
de um cinema sério no Brasil com tanta segurança que faz qualquer
descrente como nós ter esperança de um melhor futuro para nosso cinema,
no qual, por sua presteza nos trabalhos anteriores, continuará como
assistente de direção do talentoso cineasta Nelson Pereira dos Santos
190
.
Contrariando a previsão do crítico Humberto Correia, a moira reservara outros
planos para Guido, que aproveitou a estadia na Europa para tentar uma bolsa de estudos por lá
e seis meses depois de voltar ao Brasil, recebia a confirmação de uma bolsa na
Tchecoslováquia, para onde partiu pela segunda vez em 1959, conseguindo, além dos estudos
na Faculdade Cinematográfica da Academia de Artes Musicais de Praga, trabalhar como
assistente de direção nos estúdios Barrandov, em Praga, e como repórter e redator da Rádio
Praga, entre 1962 e 1967. No intervalo entre essas duas viagens, a equipe da qual Guido fazia
parte começou a preparar as filmagens de Vidas Secas.
Guido trabalhou na preparação da produção apenas na primeira tentativa de filmar
Vidas Secas, a que resultou em Mandacaru Vermelho, fazendo contatos entre Nelson e
Idelzildo, que havia sido colega seu no Colégio Central, e era naquela época funcionário do
DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Depois disso, Guido viajou para a
Tchecoslováquia, retornando ao Brasil a passeio e, definitivamente, oito anos depois. O
contato entre Guido e Nelson, entretanto, nunca foi interrompido.
Guido questiona se Nelson teria feito um filme tão bom como é Vidas Secas se as
condições adversas, sobretudo climáticas, não o tivessem obrigado a fazer Mandacaru
Vermelho em seu lugar, e considera que essa postergação permitiu a Nelson um maior
amadurecimento, um conhecimento mais aprofundado dos problemas da região do Nordeste e
189
Glauber ROCHA. Jornal da Bahia, 23.12.1958, Coluna Jornal de Cinema.
190
Hamilton CORREIA. Diário de Notícias, 24.12.1958, Coluna Cinema.
de seu povo, possibilitando-lhe mostrar a realidade de sofrimento e abandono do nordestino
como em Vidas Secas está retratado de forma tão extraordinária.
A ditadura não havia ainda arrefecido muito pelo contrário, pois o AI-5 ainda não
havia sido baixado quando Guido decidiu voltar à Bahia no final do segundo semestre de
1967, julgando considerar-se mais seguro neste Estado onde havia nascido e que, ao contrário
do Rio de Janeiro onde havia sido líder estudantil com reconhecida participação política,
poderia lhe permitir retomar com menos apreensão sua vida ao lado da família que havia
formado na Tchecoslováquia
191
.
Apesar de haver começado sua carreira de cineasta trabalhando em longas metragens
de ficção, Guido ao retomá-la passa a produzir documentários, sendo o primeiro deles
Maragojipinho, realizado em 1969
192
.
Na sua volta à Bahia, antes mesmo de se engajar na produção de documentários, foi
contatado, juntamente com Walter da Silveira
193
, por Romélio Aquino e Nelson Araújo,
professores da Universidade Federal da Bahia, com o intuito de fundarem uma área de
cinema. Naquela época, a UFBA tinha um Departamento Cultural e no interior dessa estrutura
foi criado, em 1968, o Grupo Experimental de Cinema. Este grupo abrigou o Curso Livre de
Cinema com duração de um ano e uma carga horária de quatro horas semanais. Guido Araújo
assumiu as aulas práticas e Walter da Silveira as de teoria e história.
Esse grupo despertou grande interesse. A primeira turma foi enorme,
demonstrando o desejo da juventude baiana e dos artistas, de um modo geral
de realizar algo nesse sentido. Foi extremamente agradável aquele convívio
no ano atípico e transitório
194
.
Guido e Walter conseguiram do Reitor da UFBA, o entusiasta professor Roberto
Santos, que o salão nobre da reitoria fosse destinado, aos sábados, à exibição de filmes
escolhidos, objetos de observação prévia, sendo distribuídos, na entrada, folhetos contendo
uma análise escrita do filme exibido
195
. Os filmes exibidos eram na bitola de 16mm com
projetores emprestados pelo Instituto Cultural Brasil-Alemanha. As cópias das películas eram
191
Nesse país, Guido conhece Bohumila, a Mila, com quem se casa e tem dois filhos, Guido André e Milena.
192
Entre as suas variadas produções cinematográficas merecem destaque Feira da Banana, A morte das velas do
recôncavo, Festa de São João no interior da Bahia, Exilados em sua própria terra, Ilhas de esperança e Raso da
Catarina: reserva ecológica.
193
O crítico e ensaísta sempre desejou que a Universidade Federal da Bahia tivesse um curso de Cinema.
194
Entrevista de Guido ARAÚJO. O Olho da história. Revista da História Contemporânea, V.1, n. 1, (1995).
Salvador, Bahia, nov. 1995, p.196-199.
195
Este feito ganha significado especial por traduzir o reconhecimento, por parte da Universidade, da natureza
artística do cinema, defendida por Walter da Silveira ao longo de sua vida.
cedidas pela Cinemateca do Rio de Janeiro, pela Cinemateca Brasileira de São Paulo, ou
ainda, alugados na distribuidora PoliFilmes de São Paulo. As projeções contavam com um
público fiel de cerca de seiscentas a setecentas pessoas. Guido relembra que numa das últimas
projeções, no mês de outubro de 1967, foi apresentado o filme italiano Os companheiros de
Mário Monicelli, ocorrendo uma manifestação durante a exibição. Esse evento trouxe
resultado desagradável na conturbadas relação com a polícia num prenúncio dos anos de
chumbo que se seguiriam no Brasil:
Durante a exibição de Os companheiros, com a Reitoria superlotada, ocorreu
uma manifestação dentro. Tive que me esconder porque disseram que a
polícia estava a minha procura. Como era final de ano, período de férias,
suspendemos as atividades
196
.
Com a implantação do AI-5, torna-se impossível a realização de eventos na
Universidade e as exibições de filmes são suspensas:
Em dezembro de 1968, veio o fatídico AI-5. Mesmo antes, numa das últimas
exibições que realizamos já havíamos tido problemas...No ano seguinte,
quando nos preparamos para reiniciá-las, sentimos que havia uma grande
resistência. Realizamos apenas duas ou três sessões
197
..
O enfrentamento da questão se dará por meio de uma estratégia de resistência
baseada no lema, recuar para avançar. É quando Guido resolve criar eventos de caráter anual,
com premissas generalistas que não acarretassem em problemas, como a Mostra
Retrospectiva do Cinema Baiano que completava dez anos. Esta Mostra, apesar de ter sido
realizada no turno matutino no Cine Bahia, conseguiu aglutinar o grupo que fazia cinema na
Bahia e que se encontrava disperso. Este foi o primeiro embrião para o surgimento da Jornada
de Cinema
198
.
Da Bahia, onde se estabelece desde o seu retorno definitivo ao Brasil em 1967,
envolvido com as tarefas demandadas pelo seu ingresso na Universidade Federal da Bahia
199
,
Guido acompanha a trajetória de Nelson e mantém permanente contato com o amigo.
196
Entrevista de Guido ARAÚJO Op. Cit., p. 196-199.
197
Id. Ibid.
198
Principal evento cinematográfico realizado anualmente em Salvador, seja pela longevidade, pelas
características de fomento à produção baiana e nacional ou pelo acesso a filmografias emergentes e produções
qualificadas. Criada em janeiro de 1972, por Guido Araújo, com o nome de Jornada Baiana de Curta-Metragem,
ascendeu a Nordestina em 1973, a Brasileira em 1974, e transformou-se em evento internacional em 1985.
Atualmente, é reconhecida como um dos festivais de cinema mais antigos e independentes do Brasil.
199
Na UFBA, esteve à frente do setor de Cinema e Vídeo e fez parte do corpo docente da Faculdade de
Comunicação. Em 15 de setembro de 2003, durante a 30ª Jornada Internacional de Cinema da Bahia, recebeu o
título de Professor Emérito da UFBA, em reconhecimento “pela sua dedicação à formação de novas gerações de
apaixonados pelo cinema e pela sua atividade de intensa pedagogia cultural e política”.
O nculo entre os dois novamente irá se estreitar quando Nelson decide filmar
Tenda dos Milagres em Salvador no ano de 1975
200
, filme em que Guido não chegou a
trabalhar, mas que acompanhou a produção como o “homem de cinema da Bahia” e fez uma
breve aparição (uma ponta, como ele diz) como um “professor progressista que tinha orgulho
do sangue negro que corria em suas veias”.
Guido testemunho de como era grande o investimento de Nelson em viver com
vigor a cidade e impregnar-se do seu clima: “Toda a equipe começou a viver intensamente
aquela loucura e cada vez mais tem aquele ambiente baiano dentro do filme”
201
.
Guido ajuda também a compor a quadro de referências de Tenda ao lembrar como
Nelson relacionava-se com os atores
:
O relacionamento de Nelson com os atores era muito bom, sempre
espontâneo, sem dar ordens a ninguém, deixando o ator de certa forma bem à
vontade, mas por outro lado, com jeito, com habilidade, com a simpatia dele
ele levava (as coisas) para onde ele queria
202
.
Na verdade, Nelson conseguia criar um clima de camaradagem e confiança entre
todo o pessoal de sua equipe, mesmo com todas as dificuldades. E foram muitas durante a
realização do filme, como por exemplo, a crise deflagrada pela saída de Jards Macalé do
elenco e a decisão de optar pela dublagem sem imagem que contemplasse o elenco,
basicamente baiano
203
. Guido prossegue relatando:
Por uma questão econômica, quer dizer, aqui (na Bahia) não tinha estúdio de
som, então deslocar esse pessoal para o Rio de Janeiro ia custar uma nota,
não é? Aí, ele (Nelson) partiu para aquela solução de Nagra no Nagra, ou
seja, a gravação que foi feita nas filmagens serviu apenas como se fosse um
som guia para posteriormente colocar o som definitivo, e isso é uma coisa
muito delicada, além, é lógico, de ser mais trabalhoso para os próprios
atores. É muito diferente você estar no set de filmagens onde você adquire
uma certa naturalidade inerente ao próprio processo de filmagem, [...] mas
ali no fundo do palco do Teatro Castro Alves, de maneira totalmente
200
Neste período, mais duas adaptações de livros de Jorge Amado foram filmadas na Bahia, uma brasileira e
outra francesa: Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, e Pastores da Noite, de Marcel Camus.
201
Apud entrevista Marise Berta.
202
Id. Ibid.
203
Sistema aprendido por Juarez Dagoberto da Costa com os ingleses no tempo da Vera Cruz, muito utilizado
em todo o cinema internacional o wild track, son-seul, o som separado. Juarez Dagoberto da Costa esclarece:
eu peguei o som-guia um tanto precário, que ele tinha feito durante a filmagem, fiz um levantamento em moviola
e transcrevi da moviola para o Nagra. Fizemos toda a gravação de Tenda dos Milagres nesse sistema de Nagra
para Nagra, dublagem sem imagem, toda no Teatro Castro Alves, e com os atores da Bahia, isto é,
conservando o modus falanti do baiano, o jeito, todo aquele troço, e o filme tem esse sabor. Apud Giselle
GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 319.
improvisada, você escutava o que tinha dito durante a filmagem pra tentar
repetir aquilo com aquela (mesma) emão.
204
Nesse mesmo depoimento revela que, inúmeras vezes, Jorge Amado esteve presente
no set de filmagens de Tenda dos Milagres, da mesma forma que Nelson Pereira por diversas
vezes ia à casa de Jorge Amado, para fazer anotações, correções, trocar opiniões sobre um ou
outro aspecto dos personagens. Esta informação confirma o espírito de troca e interação com a
paisagem física e humana de Salvador presente na produção que mobilizou o cenário
cinematográfico baiano em um período em que a produção local
205
seguia o seu movimento
interno, no qual predominava a realização de filmes em curta-metragem:
No Tenda teve todo um envolvimento, a participação da mocidade, das
pessoas daqui, todo mundo numa boa realmente. O Tenda foi dividido
praticamente em duas partes. Houve uma primeira fase, que foi aquela das
filmagens pelo Pelourinho; o Nelson ficou com a equipe morando por ali
mesmo, num pardieiro daqueles, um casarão em cima da Galeria Treze, ali
na Zona do Meretrício porque todo o cenário era ali mesmo, então em
termos de produção era mais prático. Depois, a segunda fase da purificação,
ou seja, a produção transou um lugar genial que tem na Cidade Baixa, O
orfanato da Ordem 3º de São Joaquim...Eles ficaram por lá filmando a
região, e esse próprio orfanato, que no fundo é uma imensidão, passando a
ser quase um estúdio, tem muita coisa filmada dentro. Então foi uma
produção muito legal
206
.
Quanto à Jubiabá, declara que a sua participação se deu em menor escala, devido ao
deslocamento da produção para a cidade de Cachoeira e de sua posição de direção, à frente da
Jornada de Cinema que a cada ano ampliava o seu escopo e demandava um árduo trabalho:
De Jubiabá Nelson apenas me falava de suas complicações. Fui apenas um
dia nas filmagens em Cachoeira e atendi alguns pedidos de Nelson para
fazer alguns contactos aqui em Salvador. Sei que foi um filme problemático.
O problema com os franceses acabou afetando o filme
207
.
204
Apud entrevista Marise Berta.
205
Ao longo da década de 1970, na Bahia, uma intensa produção de curtas-metragens na bitola Super-8. Essa
produção gerou mais de 200 curtas-metragens e foi o primeiro momento na carreira de muitos realizadores que
se firmaram na prática do cinema e do audiovisual, a exemplo de Edgard Navarro, Pola Ribeiro, Fernando
Belens, José Araripe e outros. A pequena bitola dividiu a cena com trabalhos em 16mm e 35mm, como O Boca
do Inferno (Agnaldo Siri Azevedo, 1974), Comunidade do Maciel (Tuna Espinheira, 1974) e o longa-metragem
O Anjo Negro (José Umberto Dias, 1972). É importante ressaltar que a Jornada de Cinema foi uma vitrine para a
produção do filme curto local. Foi fundamental não apenas como plataforma para a exibição dos filmes, mas
como um fórum para a discussão das questões relacionadas à produção do filme de curta-metragem.
206
Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.267.
207
Apud entrevista Marise Berta.
Nelson não voltou a filmar mais na Bahia nem Guido no Rio, entretanto Nelson e
Guido mantêm um estreito relacionamento, além de grande identificação, tanto em relação à
visão política quanto à preocupação de ambos em relação ao destino do País e defesa
incessante do cinema brasileiro. Essa convergência de interesses fez com que Nelson
participasse ativamente da Jornada ao longo dos seus 35 anos de existência, estreitando cada
vez mais o seu vínculo afetivo e a parceria cinematográfica com Guido.
de História
de Históriade História
de História
A história, na realidade, já está pronta [...]. vários pensamentos também
que iluminam a História.
Nelson Pereira dos Santos
208
Meu projeto não se prende ao rótulo de filme histórico. Aliás, a Literatura e
a História brasileiras são minhas paixões.
Nelson Pereira dos Santos
209
A forma orgânica que a sensibilidade humana toma o meio no qual ela se
realiza – não depende somente da natureza, mas também da história.
Walter Benjamin
210
Outros tipos de pensamento precisam substituir o ato de ver por outra coisa,
apenas a história, entretanto, pode imitar o aprofundamento ou dissolução do
olhar.
Fredric Jameson
211
O capitalismo transnacional e o empobrecimento do Terceiro Mundo criam
as cadeias de circunstâncias que encarceram os/as salvadorenhos ou
filipino/as. Em sua passagem cultural, aqui e ali, como trabalhadores
migrantes, eles encarnam o “presente” benjaminiano: aquele momento que
explode para fora do contínuo da história
Homi K. Bhabha
212
Nelson Pereira dos Santos faz parte de uma facção de artistas brasileiros atentos às
interseções entre os universos da cultura e da política, extremamente marcada por uma
consciência histórica aguda que traduz o seu tempo. Nunca é demais acentuar que o momento
de sua inscrição na autoria cinematográfica, em que os parâmetros de sua criação são
208
Entrevista publicada em O Pasquim, n° 106, 10/04/2004, p.13-16.
209
Maria do Rosário CAETANO. Cineastas latino americanos: entrevistas e filmes. São Paulo: Estação
Liberdade, 1997, p. 92.
210
Walter BENJAMIN. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Sociologia da Arte, IV,
organização e introdução de Gilberto Velho. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 20.
211
Fredric JAMESON. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 1.
212
Homi K. BHABA. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.28.
enunciados, ocorre em um período em que a vida política e cultural do País estava sendo
movida pela perspectiva das mudanças advindas do desenvolvimentismo e que se imaginava
desaguar na ampla reforma dos projetos nacionais. Este é o horizonte que circunscreve o
clima político e ideológico do País e que molda o contexto histórico de instauração da sua
trajetória artística.
De Rio, 40 Graus a Brasília 18%, o cinema de Nelson cobre um arco extenso que
abriga os mais variados temas: religião, literatura, política, luta de classes, hibridismo e
descolonização. Do sertão ao litoral o artista cobre o País de imagens balizando a sua história,
virando o cinema brasileiro pelo avesso, indicando a sua vocação. A atmosfera é definida na
obra inaugural em que o povo brasileiro era revelado em primeiro plano, numa terna e
contundente história, evidenciando na tela com extrema dignidade e lirismo a sua realidade
social.
Não se pode desconhecer que nos anos 1960, no Brasil e no mundo, muitos passam a
compreender que, em uma experiência coletiva com vocação revolucionária, a representação
do povo não é mais traduzida por uma multidão sem nome e sem rosto ou caricatura
distorcida. Ao invés disso, um novo nível de existência se configura, no qual a
individualidade não é apagada, se completa pela coletividade e se afirma como sujeito da
história.
A partir daí, cada filme que realiza reitera seu foco sobre as questões coletivas em
que a ação e a consciência presentes na construção de seus personagens aproximam-se das
experiências de grupos, de classes, de segmentos que compõem a malha humana e social do
País, em um universo sempre apoiado no eixo do tempo, tende, numa perspectiva libertadora,
para o inevitável acolhimento do mais fraco, do oprimido. Refletir sobre o seu cinema é
perscrutar sua maneira de abarcar a história, pois Nelson é sinônimo de uma busca
ininterrupta e contínua direcionada para o nosso tempo e para o nosso lugar de instalação, um
país abaixo da linha do equador. Assim, sua propulsão à história se cristaliza na construção de
imagens da experiência social do Brasil.
Para a compreensão dos filmes de Nelson Pereira dos Santos como produtos de
determinações históricas são de extrema valia as reflexões do crítico americano Fredric
Jameson formuladas em As marcas do visível, em que defende a idéia de que a única maneira
de pensar a matéria visual é pela via da compreensão da sua emergência histórica.
A primeira linha do texto de Jameson contém uma provocação: “o visual é
essencialmente pornográfico...sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento”
213
.
Esta transposição faz com que o autor considere que uma das funções precípuas do
filme é convocar o espectador a:
contemplar o mundo como se fosse um corpo nu...produto de nossa própria
criação, algo que pode ser possuído pelos olhos e de que se podem
colecionar as imagens
214
”.
O cinema como um dos mais importantes textos culturais do século XX invade o
século XXI, ganha complexidade, materializa-se nos filmes, que em uma abordagem
jamesiana, são imbuídos e perpassados por contradições. Nessa perspectiva, os filmes
assumem a condição de produtos históricos através do poder de representar o mundo em
imagens que direcionam o nosso olhar. Para o autor, com a ascensão das artes visuais torna-se
indispensável:
uma antologia do visual, do ser como algo acima de tudo visível, com os
outros sentidos derivando dele; todas as lutas de poder e de desejo têm de
acontecer aqui, entre o domínio do olhar e a riqueza ilimitada do objeto
visual
215
.
Esta formulação é para chegar à afirmação de que filmes como produto da cultura
são:
Experiência física e como tal são lembrados, armazenados em sinapses
corpóreas que escapam à mente racional. Baudelaire e Proust mostraram-nos
como as memórias são na verdade parte do corpo, mais próximas do odor ou
do paladar ...ou talvez fosse melhor dizer que memórias são, acima de tudo,
recordações dos sentidos, pois são os sentidos que lembram, e não a ‘pessoa”
ou a identidade pessoal
216
Jameson ao nos remeter para a zona sem fronteiras dos sentidos, que implode o
tempo, o espaço e a própria identidade pessoal, reforça o poder da imagem visual, pois para
ele a experiência cinematográfica é tão intensa que permite diversas analogias e
aproximações, que vão dos odores do jardim da minha avó, que me trazem prazerosas
213
Apud JAMESON, p. 1.
214
Id. Ibid., p. 1.
215
Ibid., p.1.
216
Ibid., p.1-2.
recordações da infância ao sabor das madeleines, biscoitos amanteigados, sorvidos por Proust,
que também o levavam a afetivas recordações infantis.
O autor, que revisita o marxismo na pós-modernidade, acredita tanto no poder das
imagens que identifica na natureza do cinema em simetria com um vício que deixa suas
marcas no próprio corpo. Ao identificar o cinema como importante recurso cognitivo,
Jameson oferece uma chave não só de tradução do mundo, mas passível de estabelecer
estratégias de conhecimento e nele interferir, por meio dessa linguagem, justificando assim as
imagens cinematográficas como parte do processo social que nos integra. Para isso, situa
historicamente o cinema tanto na sua dimensão estética quanto tecnológica
217
.
A dimensão estética do cinema é perpetrada, segundo Jameson, em toda a sua
extensão, pelos acontecimentos históricos e sociais:
Uma estética do cinema seria não apenas indistinguível de sua ontologia;
seria também social e histórica do começo ao fim, exatamente através da
mediação da própria forma, desde que se leve em conta a historicidade da
percepção (e dos mecanismos em que é registrada, bem como dos
registros)
218
.
Jameson localiza historicamente o cinema no seio de uma civilização tecnológica,
ambiente em que adquiriu o caráter de cultura de massa, situação sublinhada anteriormente
por Walter Benjamin e seus pares da Escola de Frankfurt.
No decorrer do século passado o cinema floresceu como cultura de massa, em um
dado estágio das economias capitalistas, no qual a cultura passa a ser uma força que opera a
mediação simbólica na sociedade, inclusive nos níveis de representação política e ideológica.
No momento em que “tudo que é sólido desmancha no ar”
219
, tudo perde
continuidade e se estilhaça, esta é a dimensão dada pelo moderno mundo capitalista que faz
217
Parece-me apropriado fazer uma menção a Walter Benjamin, ao tratar da estética e técnica cinematográficas
em um a perspectiva histórica, por algumas razões. A primeira delas prende-se ao fato de que seu pensamento
lança luz sobre uma nova compreensão da história humana. A segunda, por ser Benjamin inspirador da Escola de
Frankfurt grupo de filósofos e cientistas sociais de tendência marxista, que se encontraram no final dos anos
1920 e cunharam as expressões Indústria Cultural e Cultura de Massas. Uma terceira razão diz respeito ao seu
ensaio, publicado em 1936, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Nesse texto, Benjamin discute
as novas potencialidades artísticas e políticas decorrentes da reprodutibilidade técnica. A cópia seriada faz
desaparecer a aura da peça única, e por isso sagrada. A reprodutibilidade libera a arte para novas possibilidades,
tornando o seu acesso mais democrático e permitindo-lhe contribuir para uma politização da estética, ao
contrário da estetização política, característica dos movimentos totalitários e fascistas que aconteciam
simultaneamente ao período em que o texto foi produzido. Ainda neste texto, Benjamin destaca um importante
aspecto, ocorrido nos domínios da percepção, que passa a atender novas demandas e que teve no cinema o seu
melhor campo de experiência.
218
Apud JAMESON. Op. Cit., p. 3.
219
Referência à obra do professor norte-americano e ensaísta, Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha
no ar: A aventura da modernidade. São Paulo Companhia das Letras, 1987.
com que os produtos culturais, transformados em mercadorias, circulem no mercado e,
conseqüentemente, sejam consumidos em contextos culturais diversos e estranhos ao que deu
ensejo a sua produção.
Neste contexto, em que ocorre um andamento vivo do processo de reificação
220
,
Jameson aponta para importantes mudanças que atingem os sentidos e irão refletir na forma
de ver o mundo através de uma nova percepção: a cinematográfica. Essas mudanças atingem
o aparelho sensorial do homem e promovem um novo ordenamento dos sentidos. Assim, a
percepção cinematográfica ganha uma dimensão histórica porque vem à tona em um contexto
no qual as novas tecnologias alimentam e são retro-alimentadas por esse tipo de percepção.
Com isso, o autor nos leva para além do conteúdo e da forma, remetendo-nos às condições
históricas que permitiram o surgimento do cinema e das tecnologias que sustentaram a sua
produção.
Da lavra dos dispositivos teóricos propostos por Jameson para entender a dimensão
histórica do cinema pode-se extrair que a sua aplicação no debate que se substancializa no
cinema brasileiro encontra ressonância ao se referir à reação dos países que não dispõem de
tecnologia arrojada e passam a considerar suas imperfeições como traço característico da
afirmação da sua cinematografia, alimentando a discussão que existe acerca da qualidade e da
expressão da imagem, dessa forma acata a carga de sentido que impregna o termo imperfeição
a partir do contexto que o gerou, colocando-o no âmbito do problema da estética terceiro-
mundista:
Um certo modelo de sobredeterminação é de fato proposto pelos teóricos do
cinema terceiro-mundista... A perfeição técnica da imagem(que se tem a
tentação de identificar ao pós-modernismo do Primeiro Mundo) é vista
explicitamente como um conotador de economias capitalistas avançadas,
sugerindo que uma política estética terceiro-mundista alternativa tratará de
transformar seu próprio cinema imperfeito em uma força e uma opção, um
sinal de sua origem e conteúdos diferentes
221
.
Essa afirmação nos ajuda a compreender a experiência de estéticas, como a
identificada na obra de Nelson Pereira dos Santos, que apresentam propostas que privilegiam
a construção do Homem e da História em meios híbridos, enfrentando as contradições e
ambivalências que constituem a própria estrutura da subjetividade humana e seus sistemas de
representação cultural.
220
Expressão empregada nas ciências sociais para designar a fragmentação ocorrida no seio da sociedade
moderna capitalista.
221
Apud JAMESON. Op. Cit., p.147.
Assim, Jameson acrescenta mais um dado para o estabelecimento das condições
advindas do rebatimento histórico na compreensão das diferentes possibilidades da produção
cinematográfica: o sujeito, o autor cinematográfico.
É através de suas escolhas que o cineasta produz sentidos e cria significados para o
mundo, por meio de uma linguagem pessoal.
Estendendo-se a noção de escritura, utilizada na literatura, ao campo cinematográfico
pode-se falar na escritura fílmica de determinado escritor, tal como foi definido por Roland
Barthes, como um ato de solidariedade histórica, uma manifestação do criador com a
sociedade:
Não é dado ao escritor escolher sua escritura numa espécie de arsenal
intemporal das formas literárias. É sob a pressão da História e da Tradição
que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor [...] A
escritura é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma
lembrança
222
.
Da mesma forma o cineasta, assim como o escritor, ao manipular a matéria bruta do
seu trabalho, realiza um movimento de escolhas que extrapolam ao domínio da linguagem e
ambos estão sujeitos a influências de outras ordens, como as sociais, econômicas, políticas e
culturais. Essas variáveis agem dentro de um discurso e evidenciam a visão de mundo do
cineasta e fazem com que o ato de criação, portanto, nunca se encontre apartado do resto do
mundo e se aproxime das suas identificações mais imediatas.
Neste ponto, retoma-se a colocação de Nelson na abertura da letra H: “A história, na
realidade, já está pronta, e com vários pensamentos que a iluminam”. E, especula-se sobre o
seu sentido em um momento em que o fenômeno da cultura e, por conseqüência da produção
da imagem, sofre abalo nas suas noções de sujeito, autoria, produção e discurso. Essas
questões levantadas são inseridas na problemática de um país da periferia, que foi alvo de um
processo colonial e enfrenta as determinantes do seu diálogo com a globalização. Colocando-
se a questão nesses termos, e levando-se em conta a estratégia do posicionamento da borda,
do interstício da criação do entre-lugar
223
como resistência e negação da autoridade instituída,
222
Roland BARTHES. Novos Ensaios críticos/O Grau Zero da Escritura. São Paulo: Cultrix, p. 125.
223
Homi K. BHABA. Op. Cit. A partir do conceito de hibridismo, o crítico indo-britânico propõe o lugar da
cultura como o entre-lugar que, por resultar do confronto de dois ou mais sistemas culturais, é capaz de
estabelecer uma mediação entre o pensamento crítico e a prática política. Utilizando noções como
“deslizamento” e “fluidez”, Bhabha expõe a incapacidade colonialista de produzir identidades fixas, chamando a
atenção para o que, se à primeira vista parece ser reprodução/imitação, termina por revelar-se uma forma de
resistência.
compreende-se o ponto de vista de Nelson e a história no seu devir, como fonte modeladora
das percepções do mundo, promovendo a mediação formal do jogo dialético em terreno de
diferenças onde os signos da cultura passam a ser apropriados e re-historicizados traduzindo
as identidades culturais na própria diferença cultural, produzindo releituras e discussões,
oportunidade de revisitação da história social, cultural e política do País.
de Invenção
de Invençãode Invenção
de Invenção
Minha forma de fazer filmes é tentar comunicar o que está se passando
dentro do personagem [...]. seu pensamento, seu sentimento.[...]
Também
filmo pensando sobre possíveis alterações na estrutura e narrativa. Ou seja,
eu filmo com grande liberdade.
Nelson Pereira dos Santos
224
A liberdade é uma possibilidade de escolha.
Edgar Morin
225
Eu gostava de quase todo mundo que me fazia perceber quem diabos estava
fazendo o filme...Porque diretor é quem conta a história, e deve ter o seu
próprio método de contá-la.
Howard Hawks
226
A maior parte das boas coisas no cinema acontece por acidente.
John Ford
227
Nelson Pereira dos Santos, um inventor humanista, com uma maneira
sincera, doce, sensível de ver a realidade e de criar personagens verossímeis,
que passam ao espectador a sensação de que está diante de uma pessoa viva
e nesse sentido realiza a plenitude do cinema
.
José Tavares de Barros
228
224
“My way of making movies is to try to communicate what`s going in inside the character […] the thought, the
feeling […] I also film by thinking about possible alterations in structure and plot. So I film with great freedom”.
Cf. Interview Gerald O’GRADY (1995). Op. Cit., p.122-144.
225
“Una libertad es una posibilidad de elección”. Edgard MORIN. Especial Avizora. Antropologia de la libertad,
p.1.
226
Peter BOGDANOVICH. Afinal, quem faz os filmes. São Paulo: Companhia das Letras 2000. p. 22-23.
227
Apud Peter BOGDANOVICH. Epígrafe.
228
Apud Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
O que é invenção? Como ela se manifesta? Qual a sua substância?
No seu sentido etimológico a invenção é a imaginação produtiva ou criadora, uma
espécie de ordem interna à qual não se pode insurgir, capaz de engendrar a concepção de algo
novo, inusitado. Aptidão especial para conceber. O seu reconhecimento se quando ela se
torna uma condição existencial absoluta, quando é genuína e não deixa espaço para
considerações de oportunidade e conveniência. A invenção é imiscuída em um terreno
complexo, uma mistura que sintetiza todas as experiências vividas, memórias, intuições,
eventos casuais e circunstâncias concretas. É impossível estabelecer com precisão o momento
do seu florescimento, assim como é impossível analisá-la na variedade de seus componentes.
Enquanto substantivo feminino singular sua acepção é ligada à faculdade de dar
existência ao que não existe, dar nova forma ao existente ou aperfeiçoar o que existe. A
sua acepção é estendida no plural quando assume importância e significação mais amplas,
passando a dizer respeito às grandes descobertas da humanidade.
O cinema tem como matéria recorrente na sua historiografia a ontológica divisão, na
sua origem, entre a fidelidade ao real e a magia da invenção. Na divisão de apostas dos seus
pioneiros, em Lumière, a realidade e em Méliès, a invenção. O cinema trilhou, relativamente,
um rápido caminho, se o comparamos à maturação de outras manifestações artísticas, para
implantar-se no imaginário contemporâneo, sendo, talvez o gerador deste imaginário.
Herdeiro direto da fotografia, o novo meio de expressão, trouxe consigo a marca do
real como sinal de nascença:
Todo filme é uma sucessão de reproduções fotográficas, e uma foto (não
importa o que você faça com ela) é sempre algo que já existiu, que, em certo
momento específico, foi real
229
.
A marca do real , possibilidade de captar o mundo tal qual ele nos apresentava, trazia
ainda o movimento do mundo. O cinema como fotografia que se realizava no tempo, arrastava
consigo uma indicialidade até então procurada, mas não encontrada no universo das imagens.
Nem o Renascimento
230
, no auge da sua perfeição representativa, trazia em si as marcas do
mundo, os sinais de uma realidade que aderiam como pegadas ao olho da câmara.
229
Jean-Claude CARRIÈRE. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 57.
230
Pierre Francastel traça um panorama da arte no século passado, abordando o seu percurso. Para ele, torna-se
importante definir o espaço plástico que pretendeu ser o espaço, ou a forma correta de representar o mundo, que
foi do Renascimento até o início da sua destruição, passando do Romantismo ao Impressionismo, e os caminhos
que levaram à criação de uma nova dimensão espacial, inaugurada no princípio do século passado com as
vanguardas artísticas. Cf. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
Inscrever a relação de pertença do real no surgimento do cinema é entendê-lo
também na sua dualidade inicial e que esse caráter de verdade foi um dos fatores que menos
contribuíram para a transformação dessa autenticidade em instrumento de cognição, ou seja,
na sua transformação em arte.
O cinema foi rapidamente mostrando como transformava a realidade em imagens
particulares. Foi aprendendo a caminhar com seus próprios meios que se afirmou como arte e
desenvolveu padrões narrativos. O cinema narrativo clássico seguiu a linearidade a partir da
sua afinidade com a literatura. Este cinema transformou-se em eficiente diversão de massa,
dominando os mercados pela sua facilidade de penetração e leitura. No entanto, para além da
representação da realidade, desenvolveu-se outro tipo de cinema, disposto a subverter o
realismo com as invenções do imaginário expresso através da poética do realizador.
Recorrer ao passado do cinema para abordar um cineasta contemporâneo, moderno, é
isolar um fragmento embrionário constitutivo da tríade imagem/linguagem/tempo, como
forma de reconhecer e não desconsiderar o desenvolvimento de toda a discussão produzida
tanto pela história quanto pela teoria do cinema neste extenso período. Constituindo-se assim
uma moldura para apresentar os meios de expressão cinematográfica disponibilizados pelo
artista na sua criação cinematográfica.
Nesse sentido, a acepção invenção abrange a práxis de cineastas que ajudaram a
construir um inventário imagético acumulado no primeiro século das imagens em movimento.
Entender o cinema como uma linguagem complexa com laços intrincados entre a poética do
criador cinematográfico e os seus processos de produção, torna possível traçar princípios que
admitem uma marca pessoal na realização cinematográfica que permite que se coloque a
discussão para além da sua tradicional dicotomia entre arte e indústria e possa se extrair do
cinema sua essência enquanto linguagem poética, capaz de conjugar características de
expressividade e comunicabilidade.
No moderno cinema brasileiro, a expressão “invenção” foi empregada por Jairo
Ferreira
231
, ao indicar os momentos de maior ousadia a partir do ponto de vista de sua
margem, para quem:
A fase mais rica do cinema brasileiro não é a do Cinema Novo, mas essa que
veio em seguida e perdura até hoje. Essa é a fase mais interessante porque
está baseada na invenção, na poesia, na metáfora, no trabalho de criação
avançada, peculiaridades do cinema nacional que, justamente por não ter
uma infra-estrutura, possibilita esse descompromisso com e em relação à
231
Jairo FERREIRA. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad: Embrafilme, 1986.
indústria. Em lugar de experimental, eu prefiro falar em invenção e
aventura
232
.
Jairo Ferreira inclui Nelson Pereira dos Santos na sua “pequena galeria de talentos”,
ou seja, no rol de artistas em que ele destaca o “processo criativo” e a “sintonia visionária”:
NELSON PEREIRA DOS SANTOS – João Luiz Vieira interpretou o que eu
achava & não expressava: Fome de Amor(1968) é que é o melhor deste
grande cineasta mais famoso por Rio, 40 Graus (1955), Boca de Ouro (62),
Vidas Secas (63), Memórias do Cárcere (84)
233
.
Esta colocação conta de um viés da obra de Nelson, pois o rótulo de underground
não lhe caberia no conjunto de sua obra, seja pelos procedimentos narrativos adotados seja
pelos mecanismos de produção percorridos. No entanto, é sintoma do seu processo criativo.
Justamente a partir do exemplo de Fome de Amor, filme em que excluiu tudo que parecesse
característico, abandonando a relação dinâmica “personagens típicos vivendo situações
típicas”, permitindo a presença do inesperado, que Nelson, em entrevista dada a Gerald
O`Grady, responde às indagações sobre os elementos de composição de seus filmes, do seu
processo de invenção/criação, que associa aos conceitos de improviso, imaginação e
liberdade:
Todos os meus filmes são cerca de 50 por cento um roteiro que encontrei,
escrevi, imaginei, roteirizei, etc., e os outros 50 por cento são improvisação.
Eu acho que a improvisação sempre acontece em meus filmes, mesmo desde
o primeiro que tinha um roteiro muito rigoroso, onde tudo era muito bem
definido, como o roteiro de ferro de René Clair. Mesmo com aquele roteiro,
eu ainda conseguia improvisar. A improvisação está presente em meu
trabalho devido à minha educação; isso inclui os documentários, onde se
deve inventar um bocado tamm. O documentário não tinha um roteiro,
assim eu tinha muita liberdade, e também tinha bastante espontaneidade na
localização da câmera. Essa foi a experiência que adquiri do documentário e
de Rio, 40 graus, meu primeiro filme, que tinha um forte aspecto de
documentário e que foi basicamente filmado na locação, com poucas
exceções. Muitas vezes a filmagem demandava soluções rápidas por causa
da luz, assim eu era sempre obrigado a improvisar.
Fome de amor (1967) é um exemplo de improvisação total, o exagero da
improvisação. Na verdade, não tem roteiro.... Quando iniciei o primeiro dia
de filmagem, eu não sabia o que ia filmar. Fiz uma tomada com um piano
em cima de um ferry no meio do mar. Eu não poderia deixar de registrar essa
imagem. Durante Fome de amor, fiz minha primeira viagem aos Estados
Unidos e entrei em contato com a produção underground. O ano era 1966.
Tudo estava em grande tumulto a guerra no Vietnam, jovens queimando
232
Carlos Alberto MATTOS. Walter Lima Júnior, Viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 225.
233
Apud Jairo FERREIRA. Op. Cit., p. 207.
seus registros de alistamento, drogas, protestos nas universidades, e jovens
prontos para lutar. Era um momento em que era necessário quebrar
convenções e efetuar um determinado rompimento. Assim, Fome de amor é
o filme mais livre que eu já fiz.
O que eu tinha de fazer todo dia era escrever para os atores. Eu não tinha um
roteiro para o filme inteiro. Eu tinha de construir a história enquanto estava
sendo filmada. [Alexandre] Astruc
234
disse que a câmera é como uma pena.
Escrever com a câmera é o que fiz em Fome de amor. Havia várias
condições que eu tinha que respeitar, entre elas, os atores Leila [Diniz],
Arduíno [Colasanti], Irene Stefânia, Paulo Porto que estavam
contratados – e também a locação – Angra dos Reis, o mar, as ilhas. Eu tinha
de combinar não importa o que viesse à minha imaginação com esses
elementos fixos. As variáveis vieram de minha imaginação; as constantes
eram os atores.
235
.
Nelson inicia o seu longo depoimento definindo em percentuais igualitários, meio a
meio, os ingredientes da receita de seus filmes, destinando: cinqüenta por cento para
elaboração e a outra metade para o improviso. Essa precisão aritmética, de princípio
salomônico, é logo abandonada e, ainda no primeiro parágrafo, admite a mescla que acata o
improviso, mesmo nas experiências mais rigorosas em que utiliza práticas narrativas
234
O romancista e cineasta Alexandre Astruc preparou o terreno para a concepção de autor no cinema, com o seu
ensaio Birth of a new avant-garde: The camara-pen, originalmente publicado em Écran Français, n.144, 1948,
incluído posteriormente em Peter GRAHAM (Org.). The new wave. Londres: Secker and Warburg, 1969, p.17-
23. Nesse ensaio, sustentou que o cinema estava se transformando em um novo meio de expressão análogo à
pintura ou o romance. O cineasta, afirmava Astruc, deveria ser capaz de dizer “eu” como o romancista ou o
poeta. A fórmula da camera stylo (“camera-caneta”) valorizava o ato de filmar. O diretor não era mais um mero
serviçal de um texto preexistente (romance, peça), mas um artista criativo de pleno direito. Cf. Robert STAM.
Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p.103.
235
“All my films are about 50 percent a script which I came up with, wrote, imagined, scripeted, etc., and the
other 50 percent The Road of Life is improvisation. I think that improvisation always happens in my films, ever
since the first one that had a very rigorous script, where everything was very well defined, like René Clair iron
script. Even with that script, I still managed to improvise. Improvisation is present in my work because of my
education; this includes the documentaries, where one must invent a lot as well. The documentary didn`t have a
script so I had a lot of liberty, and it also a lot of spontaneity in the placement of the camera. This was the
training that: I got from the documentary and from Rio, 100 Degrees, my first film, wich had a strong
documentary aspect to it and which was basically filmed on location, with a few exceptions. Many times the
filming demands rapid solutions because of the light, so I was always obliged to improvise.
Hunger for Love (Fome de Amor, 1967) is an example of total improvisation, the exaggeration of improvisation.
Really, there was no script. When I began the first day of shooting, I didn`t know what I was going to shoot. I
shot a take with a piano on top of a ferry in the middle of the ocean. I couldn`t not shoot this image. During
Hunger of Love, I made my first trip of the united States and I came in contact with underground production. The
year was 1966. Everything was in the great turmoil-the war in Vietnam, young people burning their draft cards,
drugs, protests at the universities, and the young people ready for a fight. It was a moment in which it was
necessary to break with convention and to bring about a definite break. So Hunger of Love is the freest film I
ever made.
What I would do every day was write for the actors. I didn´t have a script for the whole film. I would make up a
story as it was filmed.(Alexandre) Astruc said that camera is like a pen. To write with the camera is what I did
with Hunger of Love. There were several conditions I had to respect, among them, the actors Leila (Diniz),
Arduíno (Colasanti), Irene Stefânia, Paulo Porto-who were already under contract-and also the location-Angra
dos Reis, the sea, the islands. I had to combine whatever came into my imagination with these fixed elements.
The variables came from my imagination; the constants were actors”. Cf. Interview Gerald O’GRADY. Op.
Cit., p.124-125.
esquemáticas, como as do início de sua carreira, em que se realiza como um narrador de
histórias e seu cinema é um cinema de roteiro. Isso se evidencia no traquejo com o
enquadramento dos planos, na tranqüilidade na colocação da câmara e na manipulação fácil
do plano ao contraplano que instrumentalizam uma estrutura profundamente sofisticada
construída desde o roteiro e que a montagem transparente, eficientemente disfarçada pelo
corte em movimento, completa.
É nessa fricção entre o realismo, que marca as suas duas primeiras realizações e que
retomará em outros filmes, a narrativa convencional e experiências radicais com a linguagem,
que Nelson segue constituindo seu processo criativo, captando ou criando mundos.
Martin Scorsese, em uma entrevista concedida a Laurent Tirard, publicada em um
livro que tem como objetivo clarificar o modo como os filmes são feitos a partir da
experiência dos diretores, afirma que no cinema de hoje cada plano é uma experiência em si;
recorre ainda a Godard para fincar os dois pilares de sustentação da linguagem
cinematográfica (Griffith para o cinema mudo e Welles para o cinema falado), reconhecendo
a necessidade da sua (re) invenção:
Hoje os cineastas sentem que precisam se renovar e fazem o que podem para
descobrir uma nova linguagem. Utilizam sempre os planos próximos, os
panos abertos etc., mas não necessariamente da mesma maneira. E às vezes é
a maneira como eles associam os planos uns aos outros que lhes permite
criar novas emoções, ou pelo menos novas maneiras de comunicar essas
emoções
236
.
Afirmando-se como cineasta que comunica emoções com propriedade, essa
faculdade é aqui entendida pela sua capacidade de encontrar soluções e formas de sustentação
renovadas que lhe permitiram atravessar a uma sucessão de conjunturas duramente adversas
com soluções originais e vontade de produzir. Isso se torna possível pelo conhecimento da
tradição em que está inserido, que o leva a formular um projeto de cinema que tem espaço
aberto, incondicionalmente, para novas possibilidades de experimentação. Essa sua
disponibilidade para criar com liberdade imprime sua assinatura, sua marca pessoal,
conferindo aos seus filmes atributos artísticos, que os levam a sobreviver mais longamente à
prova do tempo.
O crítico e professor da UFMG José Tavares de Barros
237
recorre ao conceito de
mise en scène
238
e de montagem para tratar da especificidade criativa cinematográfica de
236
Laurent TIRARD. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 22.
237
Cf. José Tavares de Barros. O Código e o texto (Da teoria do cinema à análise do filme Tenda dos Milagres,
de Nelson Pereira dos Santos). Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
Nelson, enfatizando o seu pleno domínio da estrutura dramática, manejo da linguagem e
liberdade para criar:
O forte em Nelson é o domínio do que os franceses chamam de mise em
scène e da montagem... Nelson vai sair do realismo, como em Fome de
Amor, por não querer se prender a um gênero e por ser uma pessoa ciosa de
liberdade
239
.
A posição de Barros é preciosa, demonstra a concepção de um pesquisador da obra
do cineasta, e encontra correspondência no que o cineasta afirma sobre o seu método de
trabalho. A designação cineasta é utilizada em simetria com o entendimento de Jacques
Aumont: como cidadão reconhecido por uma instituição, por um projeto pessoal ou porque
inventa formas
240
.
Nelson condensa o seu processo de trabalho, reiterando o espaço sem limites para a
sua criação, demonstrando reagir bem à tensão a que o diretor é constantemente submetido
entre, de um lado, o fato de saber precisamente o que quer e de fazer tudo para obter o
resultado pretendido e, de outro, o fato de estar pronto para mudar tudo de acordo com as
circunstâncias:
O que precede meu trabalho com a câmera é a edição. Quando estou
escrevendo é comum eu pensar na edição e quando estou filmando, também
estou trabalhando, paralelamente, em meu projeto de edição. Todo o meu
trabalho de câmera é estruturado pensando sobre o que será possível fazer na
edição e quais as mudanças em linguagem, expressão e narrativa que irei
executar.Também filmo pensando sobre possíveis alterações na estrutura e
na narrativa que possam ser incorporadas na edição. Não há imposição,
determinação. E eu filmo com grande liberdade. Minha câmera é muito livre;
eu filmo um movimento, e então na minha cabeça eu apago aquele
movimento. Não vai ser aquilo quando editado. Eu trabalho com uma
estrutura muito bem planejada para cada seqüência, mas estou sempre
pensando em outras soluções possíveis. Não estou fechado para outras
possibilidades fora das que foram planejadas
241
.
Quanto às escolhas que faz em relação ao posicionamento da câmera, da sua
alternância entre objetividade e subjetividade, Nelson responde à questão fundamental de todo
Belo Horizonte, 1980; e José Tavares de BARROS. A imagem da palavra, texto literário e texto fílmico. Tese
apresentada à Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte, 1990.
238
Andrei Tarkovski define e dá sentido à mise-em-scène cinematográfica, afirmando: “No cinema como
sabemos, mise em scéne significa a disposição e o movimento de objetos escolhidos em relação à área de
enquadramento. Para que serve? A resposta dificilmente será outra: serve para expressar o significado do que
está acontecendo”. Cf. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.84-85
239
Entrevista concedida a Marise Berta, em 12 set./2007.
240
Jacques AUMONT. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004, p.9.
241
Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.
autor cinematográfico, exemplificando com os filmes o papel destacado que a câmera ocupa
no tipo de informação que quer transmitir – onde é preciso colocar a câmera para permitir que
o plano mostre o que deve ser mostrado, o que o diretor deseja mostrar para dar ao plano uma
perfeita potência dramática:
Eu crio uma realidade com meus atores e minha câmera filma aquilo como
se fosse a verdade, como se toda a ação fosse realidade. A câmera adquire
uma distância quase documental. Esse foi o caso em Como era gostoso o
meu francês (1972). Muita gente acha que os índios eram reais, que a oca e
tudo mais era real, porque a câmera tinha aquele distanciamento de um
estrangeiro, de alguém que chega para observar, um antropólogo, um
etnólogo, ou um repórter, um jornalista, um espectador
.
Rio, Zona Norte não
é assim. Ele tem essa dualidade de documentário quando a polícia chega e o
cara cai do trem; estes são os intervalos entre as lembranças do herói, que
está em coma.... Quando o filme segue o personagem central, é uma câmera
íntima; está vivendo seu completo universo psicológico.
Em O amuleto de Ogum (1975), a câmera é crente. Ela acredita; não é uma
câmera documental. Está em concordância com todo o universo da religião
popular, do herói, do corpo fechado. É cúmplice. Ela acredita naquilo, ela
acredita em tudo, ela não tem uma visão distanciada. A estrada da vida
(1981) é bastante distanciada, mas muito delicada isto é, tem um ponto de
vista muito delicado. É muito simpática; aceita o que acontece, mas o
chega ao ponto de ser cúmplice. Mas tem um ponto de vista que é muito
importante. A estrada da vida não tem nada de documentário, mas a mera
está num lugar que os personagens gostam, ou onde eu imagino que os
personagens gostariam que estivesse. Eu forneci o chão para os personagens,
eu os servi nesse sentido, assim eles puderam contar suas próprias histórias.
Em [Memórias], a câmera está ligada à inteligência dos personagens, situada
em relação a eles. Ela é sempre muito ágil, muito interessada, curiosa,
observando muitos personagens, gestos que são simbólicos do personagem
principal. A posição da câmera é determinada pelo que o personagem está
pensando... Poucos filmes foram feitos inteiramente com uma câmera
subjetiva
242
242
“I create a reality with the actors and my camera films that as if it were the truth, as if all the action were
reality.The camera has a quasi-documentary distance. This was the case in How Tasty Was My Little Frenchman
(Como era gostoso o meu francês, 1972). So many people thought that the Indians were real, because the camera
had that distance of a foreigner, of someone who arrived to observe, an antroplogist, an ethnologist, or a reporter,
a journalist, an onlooker. Rio, Northern Zone is not like this. It has this duality of a documentary when the police
arrive and the guy falls of the train; these are the intervals between the flashbacks of the hero, who`s in a coma.
When the film follows the central character, it`s an intimate camera; it`s living his whole psychological universe.
In The Amulet of Ogum (O amulet de Ogum, 1975) the camera is a believer.It believes; it`s not documentary
camera. It is in agreement with the whole universe of popular religion, of the hero, of the closed body. It`s an
accomplice. It believes in that, it believes in everything, it doesn`t have a distanced view.The Road of Life
(Estrada da Vida, 1981) is also very distanced but very tender-I mean, it has a very tender point of view. It is
very sympathetic; it accepts what happens, but it doesn`t get to the point of being an accomplice. But it has a
point of view that is very important. The Road of Life has nothing documentary-like about it, but the camera is in
a place that the characters like, or that I imagine the characters would like it to be. It gave the floor to the
characters, I served them in this sense, so they could tell their own story. In (Memoirs), the camera is linked to
the intelligence of the character(s), placed in relation to (then). It`s always very agile, very interested, curious,
observing many characters, occurrences that are symbolic of the main character. The position of the camera is
determined by what the character is thinking. Few films have been made entirely with a subjective camera”.
Ao definir a sua câmera Nelson estabelece o lugar da sua fala, o seu campo de
pertencimento, ou seja, fala do que conhece ou quer conhecer. Seus filmes são feitos a partir
de temas ou de assuntos em relação aos quais se sente implicado por lhe concernir
diretamente. Esse conhecimento o ajuda nas escolhas dos vários níveis e ordens que a feitura
de um filme demanda.
A opção de manter os extensos depoimentos de Nelson Pereira dos Santos é uma
tentativa de situar a invenção criadora a partir do ponto de vista do autor, da sua busca, das
tomadas de posição que conformam o seu processo. Este processo é verificado nas apostas
feitas por Nelson na constituição da sua criação em que compatibiliza os acontecimentos
inerentes aos terrenos da invenção, do improviso, do improvável, da imaginação, da
inspiração e do intelecto.
Assim, o deslumbramento de Nelson faz com que a invenção, o improviso, o
improvável, a imaginação e a inspiração sejam instrumentos para imersão no intelecto, na
razão, pois tudo é produto do seu imaginário social
243
, terreno em que não cabe dicotomia
entre imaginar e racionalizar.
Esta não é uma “receita” prescrita, como me respondeu sorrindo quando lhe indaguei
sobre seu processo de invenção criativa: você quer saber a minha receita? Porém, para
Nelson, os acontecimentos imprevistos servem como elementos de inspiração, fazem parte da
sua dinâmica, que é processual. A realidade transfigura-se a si própria pela ocorrência do
improvável, o qual, quando se dá, expande os limites do possível e atinge a vida que está ao
redor da câmera, levando-a para dentro do filme, e que no final, torna um plano ou uma cena
completamente fantástico, validando a magia do cinema.
243
Cf. Gilbert DURAND. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, Editora da USP, 1998. Nessa obra, o
autor aborda a dimensão do simbólico e aponta para um caminho de conciliação entre a razão e a imaginação.
de Jorge
de Jorgede Jorge
de Jorge Amado e Jubiabá
Amado e Jubiabá Amado e Jubiabá
Amado e Jubiabá
O que é admirável na obra de Nelson é que ele se aprofunda cada vez mais
no sentido da realidade brasileira, da evolução da consciência brasileira. [...]
Desde o seu primeiro filme ele manteve uma consciência política, ao mesmo
tempo em que foi ficando mais amplo. Um paulista que se fez carioca, e
depois perdeu qualquer estreiteza regional.
Jorge Amado
244
[Jubiabá] tem aquela coisa romântica, ao mesmo tempo é Brasil, fala das
lutas de classe entre os homens. A outra coisa importante é o sexo, a relação
de puro amor, a cabeça livre para fazer o sexo. E também a política como
extensão da vida, como uma forma sadia de viver, igual ao sexo, a aventura.
Qualquer um pode exercer a política.
Nelson Pereira dos Santos
245
Escolhi Tenda porque há uma relação com a literatura brasileira dos anos 30,
que apresentava uma visão crítica da realidade, tomando como herói o povo.
[...] Desde a década de 40 [...] Jorge vem influenciando o cinema brasileiro
[...] não só como autor, mas como intelectual circulando idéias no meio do
cinema. [...] Tenda é um grande depoimento sobre a cultura brasileira. A
história se passa na Bahia, mas ao tratar da questão da formação da
sociedade brasileira, trata da realidade de todo o país. O que ele mostra é
uma sociedade gerada pelo povo em termos culturais, éticos, que vai ser a
sociedade dominante. Na verdade, essa sociedade já é dominante, mesmo
sem ter força econômica, jurídica. É o poder do futuro.
Nelson Pereira dos Santos
246
Se alguém seguisse a trajetória de vida do escritor Jorge Amado, desde seu
nascimento numa fazenda do sul da Bahia, em 1912, até o ano de 1946, quando o diretor de
cinema Nelson Pereira dos Santos estava completando 18 anos de idade, dificilmente
imaginaria que seus caminhos pudessem um dia convergir para se encontrar e seguir juntos ao
244
Cf. Helena SALEM. Op. Cit., p.12-13.
245
Id., p.345.
246
Jornal Diário de Notícias. Salvador, 12 e 13/10/1975. In: Gisele GUBERNIKOFF. Op. Cit.
longo de um trecho considerável. Como dois afluentes de rio que se juntam para formar
caudaloso manancial, esses dois artistas brasileiros trilharam cada qual seu destino
independente, porém, prenunciando com suas escolhas político-culturais, um possível
cruzamento em algum momento de seus itinerários. A escolha do ano de 1946 para se fazer
essa introdução não foi, entretanto, fortuita.
Os vínculos entre Jorge e Nelson se explicitam pelas várias interfaces comuns entre
um e outro. Ambos escreveram em periódicos nos grêmios de suas escolas e, ainda jovens,
trabalharam em jornais e militaram na Juventude Comunista. Enquanto Nelson acabava de se
filiar ao Partido Comunista, Jorge se elegia deputado federal por essa mesma legenda, em
1946. Os dois se afastariam do PC por volta de 1955, ao tomarem ciência das atrocidades
perpetradas por Stalin, sem, entretanto, abandonar as convicções de esquerda. Jorge queria
mais tempo livre para escrever e Nelson para se dedicar por inteiro ao cinema. Em 1928,
Jorge se aproxima pela primeira vez do candomblé e conhece o pai-de-santo Procópio, com
quem fará amizade e que o nomeará ogã. Nelson, embora bem mais tarde, também se
aproximará do pai-de-santo Erley, e também terá, como Jorge Amado, uma relação muito
intensa com as crenças e os costumes populares. As conexões entre Jorge e Nelson se
estendem também até a Academia Brasileira de Letras onde ambos foram imortalizados e
se consolidam quando Nelson adapta para o cinema dois romances de Jorge: Tenda dos
Milagres e Jubiabá.
Sigamos agora um pouco apenas pela trilha de Jorge Amado para tentarmos
compreender como acontece essa evolução em sua vida, que vai de seu nascimento em uma
fazenda, passa pela alfabetização em casa com sua mãe, pela rígida escola primária, primeiro
em Ilhéus e em seguida em Salvador como interno no Colégio Antonio Vieira, de padres
jesuítas, depois o curso secundário no Ginásio Ipiranga também como interno, o curso de
Direito no Rio, as amizades com Vinícius de Moraes, Otávio de Faria, Raul Bopp, José
Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz que o aproxima dos comunistas
e outras importantes figuras da literatura. Ou seja, esse caminho da Bahia para o Brasil, e mais
tarde para o mundo, talvez possa melhor ser compreendido se considerarmos que essa
trajetória foi alicerçada, primeiro, por essa formação de base formalmente rigorosa, e depois,
por seu espírito ao mesmo tempo visionário e crítico da sociedade, seu inconformismo diante
das desigualdades, ditado por seu apego e fidelidade às idéias socialistas.
Desde cedo, Jorge traça e tece para si um projeto estreitamente vinculado à literatura
mais próxima do povo, uma literatura que pudesse retratar a realidade do nordestino, do
pescador, das prostitutas, do homem comum.
Seu projeto está calcado, antes de tudo, na busca da aceitação popular. Como
comunista, seu objetivo é, desde cedo, escrever para um grande número de
leitores e libertar a literatura, assim, do domínio das elites. Para isso, ele se
impõe um programa estético preciso, ancorado primeiro na tradição popular
nordestina - a literatura de cordel, os cantadores - e, depois, na estética do
realismo crítico e da denúncia. Ele vai temperar esse realismo social com
todo o arsenal heróico desenvolvido pela tradição romanesca do século 19,
isto é, o folhetim e também com a estética teatral do melodrama, que
representava no palco o mesmo papel que o folhetim desempenhava nos
jornais. Estratégia que, na televisão, desaguou nas telenovelas.
247
Ao lançar Jubiabá, em 1935, Jorge avança consideravelmente em qualidade, o que já
se apresentava quase como um imperativo diante de uma recepção muitas vezes acerba por
parte da crítica em relação aos seus trabalhos anteriores.
O contexto político vivido naquele momento exigia um posicionamento do autor, que
fizera sua opção por uma literatura engajada, comprometida com uma abordagem crítica, de
viés socialista – avessa, portanto, aos modelos hegemônicos de manifestação cultural
embasada principalmente no ideário de Marx, Engels, Lênin e Trotski.
Jorge assimila de forma orgânica e natural a linguagem épica e a representação
simbólica da literatura dos trovadores e poetas das feiras livres do Nordeste, assim como os
elementos pitorescos das narrativas orais sobre façanhas de personagens dotados de traços
facilmente reconhecidos pelas camadas compostas majoritariamente de pessoas simples e
proletárias, e os combina de forma cenográfica e fantástica, como nos folhetos de cordel, para
dar cor a um enredo bastante peculiar que ultrapassa os limites de uma literatura circunscrita,
ao incorporar e refletir sem conflitos, tanto o saber erudito quanto o saber popular.
O escritor anima seus heróis e personagens com uma carga de humanismo,
espontaneidade e realismo, de tal forma natural e convincente explicitados em seus gestos,
palavras, atitudes e características individuais sui generis e marcantes, que os aproximam
com familiaridade, tornando-os íntimos de seus leitores, como acontece, entre dezenas de
outros, com Gabriela, Guma, Tereza Batista, Quincas Berro D’Água, Tieta, Pedro Bala, Dona
Flor, Pedro Arcanjo e Antonio Balduíno, por exemplo.
Em Jorge Amado, a aprendizagem do herói em vez de depender de livros,
sustenta-se na experiência vivida, nos “causos” que ouve no morro e no
saber prático, nascido das dificuldades cotidianas. Antonio Balduíno é
247
Eduardo Assis DUARTE. Livro resgata pioneirismo da obra de Jorge Amado. Entrevista concedida a José
CASTELLO. Jornal de Poesia. 30/08/2005. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/catel02.html>.
Acesso em: ago. 2007.
guiado por seu ideal de liberdade, e não quer ser escravo do capitalismo:
primeiro refugia-se na malandragem e depois na militância operária. O
amadurecimento do herói se paralelamente à crescente mobilização das
camadas subalternas. Pode-se dizer que Antonio Balduíno é um dos
primeiros heróis negros da literatura brasileira.
248
O teor de compromisso social presente tanto na obra de Jorge quanto na de Nelson,
emerge do sonho revolucionário da sociedade livre e igualitária, conformando em Jorge um
engajamento inicial à “literatura do oprimido”
249
(e, posteriormente, uma adesão à narrativa
de registro, denúncia, reflexão e crítica da nossa formação cultural estratificada) e em Nelson,
“a proposta de cinema militante, nacional, à procura do povo, do Brasil, valorizando o
conteúdo e não o aparato técnico”
250
.
Em Tenda dos Milagres, através de Pedro Arcanjo, Jorge Amado investe contra as
teorias racistas baseadas no conceito de “raças puras” pregadas por Arthur de Gobineau, ataca
os preconceitos, e exalta a miscigenação como fator de afirmação da nacionalidade brasileira,
o que representa uma atualização de seus conceitos, adaptados aos fatos contemporâneos em
relação à sociedade que retratava em Jubiabá, no início de sua carreira.
Em 1935, quando lança Jubiabá, Jorge reveste seu personagem principal, Antonio
Balduíno (Baldo) de um forte sentimento de negritude e de uma conscientização política de
militante, que se rebela contra a exploração econômica, faz greve, e imerge nas tradições
africanas ancestrais para resgatar seus deuses e associá-los aos santos católicos, fazendo surgir
pela primeira vez em sua obra a idéia do sincretismo.
O tema do sincretismo havia sido abordado em O Amuleto de Ogum e Nelson
Pereira dos Santos continua a explorá-lo, mas subvertendo a ordem de publicação das obras:
primeiro adapta Tenda dos Milagres e, depois, Jubiabá.
O Jubiabá de NPS é a história de um grande amor entre uma jovem branca e
loura, Lindinalva [...] e o negro Antônio Balduíno. A política passa de
raspão, apenas no final. Mas no livro de Jorge Amado, a parte das lutas
políticas é igualmente importante à amorosa. E a questão racial, que anos
depois o escritor voltaria a discutir mais profundamente em Tenda dos
Milagres, está bastante presente também. Por necessidade de adaptação,
Nelson se concentrou na relação de amor. Ou, talvez, em função do próprio
momento dele, tenha preferido privilegiar o prazer estético do cinema
248
Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo:
Editora Senac, 2003, p. 136-137.
249
Eduardo de Assis DUARTE. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal, RN:
UFRN, 1996, p.18.
250
Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.71.
através do amor – à discussão ideológica. Porque na adaptação de Tenda, ele
percorreu justo o caminho inverso.
251
Jubiabá, romance que narra a história de Baldo, herói proletário criado por Jorge
Amado no início dos anos 1930, foi reconstruído por Nelson Pereira dos Santos em
1985/1987. O filme encerra o ciclo cinematográfico de Nelson na Bahia antes o cineasta
havia realizado Mandacaru Vermelho (1961) e, depois, Tenda dos Milagres (1975/1977).
Esse trajeto percorrido pelo cineasta teve o seu começo na aventura que resultou na criação de
um western nordestino, em que o amor marcava uma vitória contra a violência feudal; passou
pela primeira adaptação do mundo jorgeamadiano, uma imersão na discutida conceituação da
miscigenação, tratada por Arcanjo; até chegar à busca da identidade do afro-brasileiro Baldo.
Nesse caminho, Nelson demarcou o território do seu perfil de baianidade: a construção de
uma feição com a ginga própria dos sambistas baianos-cariocas. Nelson, ao criar os seus
filmes, na Bahia e noutros lugares, parece gingar cinematograficamente, com a sutileza e a
destreza musical de um Zé Kéti ou a expressiva delicadeza plástica sonora de um Batatinha.
Já não é preciso explicar nada. Trinta anos depois, ‘esta cama é minha’. Pode
fazer o filme como quem faz música. ‘Porque um bom filme deve ser igual à
música. Uma supracódigo. O importante é passar a emoção, ser bonito, ter
um olhar original’. Na realidade, é esse o olhar que o interessa, e ele está
livre para isso
252
.
Nelson estava numa das suas mais produtivas fases quando se dedicou a fazer
Jubiabá. Acabara de filmar um dos clássicos do cinema moderno brasileiro, Memórias do
Cárcere, adaptado da obra de Graciliano Ramos. O insight que o fez se aproximar do universo
de Jorge Amado foi a cena em que Gaúcho lê, na prisão, o livro Jubiabácena originalmente
descrita, também, por Graciliano Ramos
253
. Conforme Maria Ângela Pavan e Dennis de
Oliveira:
251
Id. Ibid., p. 348.
252
Apud Helena SALEM. Op. Cit., p. 346.
253
A concretização de filmar Jubiabá aconteceu porque houve uma proposta de co-produção entre um canal
Antenne 2, da TV francesa, a produtora Regina Filmes, de Nelson Pereira dos Santos, e a Empresa Brasileira de
Filme. Em abril de 1985, Nelson esteve em Paris para escrever o roteiro, no mês de agosto do mesmo ano, o
contrato era assinado entre a Société Française de Production e a Embrafilme, prevendo que 50% do custo da
produção seriam bancados pelos franceses e 50% pela empresa brasileira. A produção tem, também, a
participação do extinto Banco Econômico da Bahia. Devido à demora da Embrafilme em liberar a sua
participação financeira conforme o contrato, as filmagens que estavam marcadas para setembro tiveram início
em dezembro. Nelson, diante dos impasses criados, não por falta de recursos já que os produtores franceses
cumpriram o prazo do contrato, depositando a partes deles (Hum milhão de dólares, os problemas com os
O livro Jubiabá apresenta a diferença de linguagem já nos primeiros
capítulos. Por exemplo, Jorge Amado ressalta a luta política e social dos
negros e Nelson Pereira dos Santos coloca em evidência em seu roteiro a
busca de identidade de Baldo (personagem central) e o plot do amor
impossível entre brancos e negros. Outro ponto em destaque é o tema
eugenista da época retratada. Este tema foi colocado de maneira brilhante
por Nelson Pereira dos Santos em Tenda dos Milagres (1975/77), um filme
forte onde ele se apropria da metalinguagem, um cineasta desenvolvendo a
história social e política da Bahia em relação aos negros, a ficção que cria no
decorrer do roteiro. A ficção de Tenda dos Milagres se passa no início do
século XX. No ano de 1975, Nelson Pereira dos Santos coloca no filme o
debate sobre as teorias eugenistas tão difundidas no Brasil através da
medicina e educação. Jubiabá é um filme que parece denotar a preocupação
da impregnação do racismo na vida dos seus personagens. Destes, Baldo é o
único que percebe este desafeto na pele e referencia sua angústia apenas no
final, quando no momento de uma assembléia sindical prestes a decretar uma
greve, ele demonstra seus sentimentos até então selados. A construção do
personagem Baldo marca a narrativa do filme. Na infância, começa a
perceber as diferenças e na adolescência começa a desenvolver um olhar
crítico que se concretiza na fase adulta como boxeador. Este é outro
momento em que o filme difere do livro porque no livro de Jorge Amado,
Baldo começa como boxeador. Já no filme, ele se constrói como boxeador
na idade adulta. Jorge Amado deu total liberdade para Nelson Pereira dos
Santos; o escritor não acompanhou o roteiro e nem mesmo as filmagens
254
.
Ao se dedicar à analise de Jubiabá, Eduardo de Assis Duarte
255
o define como um
romance da formação do proletariado, situando o processo de criação da obra em paralelo às
lutas socialistas brasileiras que surgiram concomitantemente à história da Aliança Libertadora
Nacional e aos conflitos revolucionários influenciados pela revolução bolchevista de 1917, os
quais, em seu percurso de expansão internacional, marcaram o País no ano de 1935.
Para Jorge Amado, que experimentara uma recepção crítica polêmica em
torno de seus primeiros livros, impunha-se um salto de qualidade, visando
não apenas uma obra estruturada e duradoura, mas sobretudo com alcance
social ampliado, dentro do propósito de ‘falar às massas’ e intervir no
processo cultural Para cumprir tais exigências, que no momento político a
opção pela literatura engajada lhe determinavam o autor envereda pelos
franceses surgiram na finalização do filme), mas das questões não resolvidas com a Embrafilme, e outras a
respeito da cenografia –resolveu parar as filmagens iniciadas em Salvador, e, no final de dezembro, mudou o set
para Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo baiano. Cachoeira era o cenário perfeito para um filme de época,
pois Salvador, com uma paisagem urbana já bastante modificada, não era mais o espaço cenográfico que serviu a
Tenda dos Milagres. As filmagens de Jubiabá duraram três meses. O filme foi lançando no Brasil e na França
(com o título Bahia de tous les saints pelo canal Antenne 2). Participou do Festival de Veneza, exibido hors
concours, em setembro de 1986. Sobre o processo de produção de Jubiabá, ver Helena SALEM. Op. Cit.
254
Ver Maria Ângela PAVAN e Dennis de OLIVEIRA. A construção da identidade negra em Jubiabá.
Disponível em: <http://www.usp.br/nce>. Acesso em: ago. 2007.
255
Cf. Eduardo de Assis DUARTE. Jorge Amado: Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, UFRN, 1996, p. 75-119.
ramos ancestrais da narrativa e tempera o intuito realista de mostrar a
evolução do oprimido na direção da consciência de classe com toda uma
gama de recursos construtivos de grande repercussão popular [...] Em
Jubiabá, vemos materializar esse encontro com o popular não apenas
enquanto matéria ficcional, mas igualmente na direção das formas
consagradas de sua expressão: causos da tradição oral, os folhetos de cordel,
os ABC dos sertanejos. [...] A própria concepção do romance, fundada na
narração dos feitos do herói, inspira-se no cordel, e mesmo na mais
longínqua herança narrativa. Por outro lado, o autor incorpora também a
herança narrativa burguesa que se difundiu e arraigou entre nós e constrói
um romance de aprendizagem em que se evidenciam as relações com os
motivos e tratamentos folhetinescos [...]. O resultado dessa mistura de
formas e linguagens é o romance romanesco, fruto da combinação do
popular com o popularizado [...] O objetivo dessa combinação de formas e
difundir a mensagem partidária de elevação do oprimido, materializada em
Jubiabá no processo de formação do herói proletário
256
.
No romance, a história de Baldo herói negro, proletário, que andou de ponta a
ponta nos extratos sociais brasileiros, sendo sucessivamente órfão, mendigo, malandro,
capoeirista, boxeador, sambista, artista de circo, até tornar-se um poeta do ABC é dividida
em três partes, com características narrativas cinematográficas: “Bahia de Todos os Santos e
Do Pai-de-Santo Jubiabá” abrange da infância de Baldo no morro Capa-Negro à adolescência
como serviçal, e ao mesmo tempo rebelde, que vive agregado na casa dos brancos, sonhando
com o impossível amor branco e negro; “Diário de um negro em fuga” espelha a juventude
transfigurada pela transgressão dos valores; “ABC de Antonio Balduíno” narra a fase em que
o personagem se transforma de herói do boxe a líder sindicalista. Nelson Pereira dos Santos
expandiu livremente o seu pensamento sobre a narrativa traçada por Jorge Amado, e,
refazendo Jubiabá ao seu modo, deu destaque à história de amor.
Projetado Jubiabá, o olhar do espectador se depara, logo no início do filme, com as
silhuetas de um bando de crianças que, em disparada, descem do topo do morro em
desabalada fuga, à medida que o grupo se desloca, em outras cenas, por ladeiras tortas e
estreitas, tendo lado a lado velhas e surradas casas. As crianças aproximam-se de uma
determinada plataforma; vê-se, a seguir, um grupo de músicos que entoam uma canção
identifica-se um samba; os meninos vão se posicionado em torno desses músicos, formando
quase um círculo e, em silêncio, prestam atenção à música:
homem pobre nunca roubei pois não tinha o que roubar/ mas, um rico de
carteira a nenhum deixa escapar/Adeus caldeirão da feira, adeus, também,
mais alguém/Zombei de moços e de velhos, também, zombei de
meninos/Chegou o meu dia, vou cumprindo o meu destino/Mulata de bom
256
Ver Eduardo de Assis DUARTE. Op. Cit., p. 75-77.
cabelo, cabrinha de boa cor/Criolinha no repique, branquinha nunca me
escapou...
257
Fim da música, todos os personagens da roda de samba caem na risada. Corte. Uma
figura vestida num impecável terno azul vai se chegando é Pai Jubiabá (vivido por Grande
Otelo); ele passa por duas senhoras, ultrapassa a fila de homens e crianças, recebe a
reverência de todos, que lhe pedem a bênção, e penetra numa casa. A tela escurece e
aparecem os créditos do filme conduzidos pela música tema, composta por Gilberto Gil.
A primeira observação a fazer sobre o prólogo do filme Jubiabá é que nele existe
uma sutil semelhança com cenas dos filmes Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte. A analogia está
nas crianças descendo o morro, nas casas enfileiradas em ruas íngremes e estreitas, na
fisionomia dos moradores e na sonoridade musical. Enquanto em Rio, Zona Norte,
presenciamos a vida do sambista Espírito, uma ficção da história real do compositor Kéti
(também interpretado por Grande Otelo), agora assistimos e ouvimos, na abertura do filme
Jubiabá, um samba interpretado pelo compositor baiano Batatinha. A canção será um
leitmotiv dramático da vida de Baldo que busca a sua identidade.
Subjetivamente, esses espaços geograficamente distantes se ligam e se interligam
diegeticamente no cinema de Nelson
258
. O morro em que viveu Espírito/Zé Kéti em Rio, Zona
Norte (Rio de Janeiro) e o morro do Capa-Negro (Bahia) onde vivia Baldo, pai Jubiabá e
tantos outros afro-brasileiros têm raízes em comum únicas, estruturas orgânicas identificadas
na religiosidade, na música, nos traços comuns dos moradores que sofrem das mesmas
mazelas: da discriminação à exclusão. São morros, são pontos, são espaços periféricos que
possuem a mesma origem, neles as populações de ex-escravos inventaram na medida da
possibilidade de cada um o seu habitat em cima do que lhes restara dos detentores do poder.
Nesses núcleos cultivaram a sua cultura, assentaram os seus terreiros, criaram as suas escolas
de samba, os seus pagodes e os seus sambas de roda.
Jubiabá retoma a cena inicial do mesmo ponto de vista, muda os detalhes: chove. Pai
Jubiabá aparece na mesma porta, vista no plano anterior, está quase todo encharcado, e diz:
“obrigado mamãe Oxum”, mostrando a sua devoção aos orixás. Os meninos, entre eles Baldo,
brincam: “quem se molhar vira mulher”, a brincadeira é interrompida com os gritos da tia
Luiza que o chama, esse vendo que vai se molhar de todo jeito, afirma: “Agora não vale”.
Conhece-se o pequeno mundo do menino Baldo. Nas cenas seguintes, a tia Luiza no misto de
257
Letra da canção ABC de Batatinha e Jorge Amado.
258
Segundo Nelson, Jubiabá lembra Rio, 40 Graus, como alguma coisa de Tenda dos Milagres e de O Amuleto
de Ogum. Ver Helena SALEM, Op. Cit.
transe e loucura não reconhece mais o menino que criava, Baldo. Esse corre para chamar pai
Jubiabá, que socorre a velha tia e faz orações aos orixás. Morre a tia, Baldo agora se despede
dos seus amigos e é levado por Dona Augusta para viver noutro mundo: o dos brancos.
Baldo saiu do seu lugar carregando uma guia, traço de identidade religiosa usada por
adeptos do candomblé, oferecida pelo pai Jubiabá que lhe pediu: “Quando crescer, volte”. O
seu olhar é carregado de medo e insegurança, não sabe para onde vai. Mas, parece ter o
pressentimento de qual algo errado está para acontecer, em que pese a sua acompanhante,
Dona Augusta, dizer da família do comendador Ferreira: “são ricos, mas são boa gente”.
A câmera percorre a fachada da casa, mostrando a sua dimensão de grandeza, que
marca a distância da casa onde Baldo vivia com a sua tia e as outras casas dos amigos,
parentes, e do seu protetor, pai Jubiabá. Em plano médio, os visitantes são introduzidos na
sala. A família Ferreira faz a sua refeição, a dona da casa, Dona Maria, pede para Augusta que
acompanhe Baldo a se sentar, perguntando se eles já haviam almoçado. Dona Augusta,
responde: Não se preocupe, a gente almoça na cozinha”. O Comendador Ferreira chama a
governanta: “Amélia”. Pede a sobremesa. A pequena Lindinalva já havia lançado um olhar na
direção de menino Baldo. Nessa cena, o posicionamento da câmara se modifica colocando a
mesa em primeiro plano e ao fundo estão posicionados D. Augusta e Baldo. Atravessando a
porta Amélia retorna a sala, trazendo o pedido do patrão.
Dona Augusta fala ao comendador que trouxera o menino. Antes dele se apresentar,
o comendador Ferreira vai perguntando: “Como é o seu nome Benedito?”, este lhe responde
“Antonio Balduíno”; o comendador retruca: “É muito grande, vou lhe chamar de Baldo”.
Ferreira manda Baldo andar (sair da sala), Amélia continua servindo, ao lado de Dona Maria,
mulher do comendador Ferreira, fazendo a seguinte pergunta: “E a senhora vai aceitar esse
menino”? Ela não responde e se limita a olhar para o marido; Ferreira, se dirigindo à Amélia,
recomenda “Você vai cuidar desse garoto, creia ele, é um bom negrinho”. Corta. D. Augusta,
enquanto almoça junto a Baldo, conta a Amélia que, em pose passiva, escuta a história da
morte da tia de Baldo. Na cena seguinte, Baldo e Lindinalva correm para o quintal e vão
brincar numa árvore, distante. Posta de bruços na janela, a governanta Amélia que vai se
transformar na principal antagonista a Baldo, no seu convívio com os Ferreira, fala: Isso não
vai dar boa coisa, um negro aqui dentro”.
A tela escurece, escuta-se a música, e numa elipse a cena é retomada do mesmo
ponto de vista anterior. Na árvore do quintal da casa, Lindinalva deitada num dos galhos, pede
a Baldo, que chegava da cidade, carregando de compras, que a leve nos braços para dentro da
casa. Baldo com ar debochado, fumando um charuto, não é mais o menino lúdico, chegara
à adolescência. Amélia não é nada afetiva com Baldo, muito menos tolera a sua intimidade
com a menina Lindinalva, e havia expressado o seu racismo, desde a sua chegada na casa
dos Ferreira. Amélia o ameaça com uma colher de pau, e este finge que vai lhe dar um golpe
de capoeira, fica nítido que entre eles há um conflito.
Noutra cena, Amélia faz queixas do comportamento de Baldo ao comendador, que
pergunta se ele sabe ler e escrever; Baldo responde que sim. Ganha um emprego e vai
acompanhar Lindinalva ao cinema. Na volta a casa, eles vão contemplar as estrelas, Amélia
carregada de ódio diz ao patrão que Baldo só vive a olhar para as coxas de Lindinalva e espiá-
la através das fechas das paredes. O Comendador enfurecido parte para cima de Baldo,
agredindo-o violentamente, e grita: “E então seu sujo eu lhe trata como um filho e assim que
você me paga, venha aqui seu negro sujo, cachorro, miserável”. Baldo foge todo
ensangüentado, a música toma todo o espaço do filme, parte da letra diz: Como príncipe
encantado, bem preto como um carvão/Anjo negro iluminado”. Primeiro plano o rosto de
Baldo, ele se masturba e projetado o rosto de Lindinalva, em primeiro plano. A música
finaliza a seqüência com a frase: “Cupido era cuspida”. A partir dessa seqüência e em todas as
cenas que Baldo se envolve em conflitos, aparecerá o rosto de Lindinalva como um fantasma
ou um anjo lhe perseguindo, substituído os seus amores ou aliviando a dor da violência
sofrida.
Nelson carrega Jubiabá de um caldeirão de significados a respeito do embate entre
negros e brancos, são confrontos que vão sendo resolvidos por via da violência, física ou
simbólica, prevalecendo, até certo ponto, a hegemonia do poder branco. Como contraponto a
essa suposta superioridade, Nelson exibe o outro lado da luta contra essa condição autoritária:
o negro, simbolicamente, representado por Baldo, por sua vez, fundamentado nos princípios
do pai Jubiabá. Caberá a Baldo assumir a liderança, mesmo cometendo atos de violência, mas
sua atitude sempre será exercida na sua defesa e na defesa dos seus pares, representando uma
reação contra o poder estabelecido.
Expulso da casa do comendador Ferreira, Baldo vai perambular pelas ruas e a
mendigar junto com o seu inseparável amigo, Gordo. Insultado pelos transeuntes, fumando
restos de charutos. Baldo, no final do dia, faz a partilha do montante de dinheiro recolhido;
questionado por Gordo, porque vai repartir a grana com as meninas, responde: “Elas
trabalharam, vão receber, também”. Em que pesem as circunstancias adversas da vida, Baldo
mostra-se solidário. A vida segue, entre Baldo e seus amigos de rua. Eles formam rodas de
capoeiras para ganhar alguns trocados, até se esbarrar em Lindinalva caminhando com seu
noivo, Baldo sente na pele o desprezo. Chama-os de “brancos de merda”. Revoltado, Baldo
toma outra atitude ao invés de pedir, assalta um pedestre, diante do desespero do seu amigo
Gordo. Surpreendidos pela polícia, Baldo e seus companheiros são levados à prisão e
espancados. Solto, Baldo é ameaçado por um policial: “Se voltar pra cá, não sai nunca mais”.
Desesperado procurando um amparo corre e retorna para o morro do Capa-Negro, vai a casa
de pai Jubiabá em busca de conforto e apoio. É o fim da transição entre a adolescência e fase
adulta.
Nas cenas seguintes, -se Baldo adulto, tocando atabaque numa festa do terreiro
de candomblé. O filme demonstra que nas fases da infância à adolescência, Baldo teve o seu
aprendizado das diferenças, às vezes demonstradas sutilmente, noutras com bastante agressão
física. Retrato de como o mundo branco o encarava preconceituosamente, por ser negro, por
ser pobre, por ser um desvalido, um sem-família. Entende Baldo, que o discurso da boa
convivência é uma farsa que somente se mantém diante da sua postura servil frente ao
dominante. A vivência dessas constantes situações conduz Baldo, na sua fase adulta, a ter uma
visão extremamente crítica da sociedade em que vive.
Aos poucos, Baldo vai construindo a sua identidade, assumindo gradativamente o
papel de líder. No percurso, vai se aproximar da jovem branca Da Cruz, filha de santo, noiva
do soldado da polícia Osório Da Cruz, repreendida pela sua mãe, que não concorda com o
casamento com Osório, não resiste às investidas de Baldo. O conflito está armado, entre
Baldo e Osório. Desafiado pelo noivo da moça, entre em luta corporal que vai lhe credenciar
junto a Luigi, empresário do boxe, para ser lutador e campeão da Bahia. À noite, no silêncio
do seu quarto, Da Cruz recebe a visita de Baldo e tem uma noite amor. No olhar de Baldo, Da
Cruz se transforma em Lindinalva.
Baldo vence a primeira luta, é manchete dos jornais. Comemora com os amigos, o
seu empresário Luigi, o inseparável Gordo, e o pai Jubiabá na Lanterna dos Afogados, ao som
do samba cantado por Batatinha: “Oi Nazaré que saudades eu tenho daí/ Essa terra
abençoada/[...]”. Durante a festa, onde todos dançam e comem, Baldo conta a sua proeza.
Outro empresário de boxe, Xavier, lhe oferece dinheiro para ele perder a próxima luta, um
suborno no valor de 100 mil réis; Baldo finge que aceita e denuncia o corrupto aos presentes:
“Fingi em aceitar para ele ver que homem não se compra”. Corte. Baldo está comendo com
amigos e recebe um jornal com as notícias a respeito da sua vitória, mas vê, também, a notícia
do noivado da jovem Lindinalva com Gustavo, em cuja manchete se lê: “Noivado entre
ilustres famílias bahianas”. Flashback; vê-se a mesma cena de Baldo lendo a manchete, mas,
ao invés do Baldo adulto, um Baldo adolescente é quem fala: “Brancos de merda, filhos da
puta”. Baldo se embriaga e, transtornado, é derrotado pelo adversário, o Alemão. A platéia
grita: “Baldo você é traíra” [...] “Baldo, você é sujo”. Vaias, gritos, rostos desolados de Luigi
e Gordo, Baldo, no chão do ringue; aos pouco se escuta uma voz: “É doce morrer no mar, nas
águas verdes do mar”. Fusão, aparece o rosto de uma mulher negra em primeiro plano, segue
outro rosto de um homem; a mulher, interpretada pela cantora Eliana Pittman, continua a
cantar a música de Dorival Caymmi. Plano Médio. Baldo está deitado em um saveiro. Sua
fala se repete: “Brancos de merda, filhos da puta”. A mulher que cantava pergunta ao
barqueiro com quem ele fala, o barqueiro responde “Com a Bahia”. A fama foi efêmera;
Baldo segue outros caminhos.
O filme volta-se para o mundo dos brancos, da vida de Lindinalva, do seu noivo
Gustavo, do comendador Ferreira e da governanta Amélia, que continua na família após a
morte de Dona Maria, mulher do comendador Ferreira. Este passara a freqüentar bordéis e a
gastar desvairadamente o seu dinheiro, a ponto de hipotecar sua vistosa casa na cidade.
Falido, o comendador morre de infarto dentro do quarto do Bordel da Zaíra, em companhia de
sua prostituta predileta, Tetê. Enterrado o comendador Ferreira. Gustavo, o noivo, que se
recusara a ir ao velório, diz a Lindinalva, em sua nova moradia, que o seu pai havia arruinado
a sua carreira, por isso não haverá mais casamento. Entrega certa quantia de dinheiro à
governanta Amélia, prometendo mandar um pouco mais a cada mês. Lindinalva chora deitada
na cama, descobre-se grávida da noite de amor que teve com seu noivo. Nas cenas desse
encontro, Lindinalva, em sua imaginação, substitui Gustavo por Baldo. Com o passar dos
tempos, sem dinheiro para sobreviver, vai para o bordel, onde se prostitui. A saga de
Lindinalva é triste, vai da opulência dos primeiros dias bebendo champanhe até ir viver num
prostíbulo dos mais decadentes, e à sua morte.
Baldo havia retornado e reencontrou o seu empresário Luigi, que o convida para
integrar a sua trupe circense; conhece a cantora e dançarina Roselda, com quem tem um caso
de amor; outra vez, nas cenas de sexo, reaparece a figura de Lindinalva. Luigi, alcoolizado,
morre de uma queda do trapézio, o circo acaba. Baldo volta e encontra Gordo que lhe avisa
que Amélia havia lhe procurado. Sabendo da situação de Lindinalva, vai a sua procura,
encontra-a bêbada e implorando por um cigarro. A sua situação é deprimente. Baldo volta ao
pai Jubiabá, que lhe cobra: “Tu não achas que está na hora de trabalhar?” No mundo do
trabalho, Baldo vai ser operário nas docas. Amélia o procura, levando o filho de Lindinalva,
que está à beira da morte e quer vê-lo. Ela lhe pede perdão e implora para Baldo cuidar do seu
filho. Baldo volta às docas na assembléia da greve; as cenas são intercaladas com cenas de um
ritual do candomblé. Baldo surpreendendo a todos com um discurso:
Eu sou um negro burro, não tenho palavras bonitas, mas sei que aqui tem
homem com filhos, com fome mulher com fome. Vocês não sabem de nada.
Que adianta negro vir cantar, vir rezar pra Oxossi. Um dia policiais fecharam
a festa de Oxalá quando ele era Oxafulan, o velho. Pai Jubiabá foi com eles
pra cadeia, o que é que negro pode fazer por negro. Cadê luz? tem as
estrelas. Negro é a luz. Branco e negro pobres tudo são escravos, mas tem
tudo nas mãos. É não querer mais ser escravo. Vamos votar, eu sou pela
greve.
Com o braço levantado, Baldo chama os seus companheiros para a luta e, juntos,
saem caminhando. A câmera de José Medeiros, com a clareza marcada pelo uso do contraste
entre o claro e o escuro, passeia pelos rostos negros com intensa liberdade poética. Pai
Jubiabá levanta os braços e grita “Baldo!”; este se vira e escuta da boca do pai Jubiabá: “Os
ricos secaram os olhos da bondade, mas qualquer hora eles podem secar os olhos da maldade,
se ajoelha aos pés de Baldo que segue o seu caminho ao som da música cantada por Gilberto
Gil: Negro Balduíno/ belo negro o Baldo/ filho malcriado de um velha tia/com os olhos de
menino esperto/via luzes onde ninguém via. A câmera se desloca dos homens e foca o céu
estrelado. Fim.
de Literatura
de Literaturade Literatura
de Literatura
Ao passar os olhos pela literatura (eureka!), o cinema descobriu que a
imagem não é o que aparece à flor da pele: é também texto, palavra que
nos falta, invenção da palavra. A imagem não ilustra o que imaginamos
enquanto pensamos com palavras: a imagem pensa, imagina de outra forma.
José Carlos Avellar
259
Eu gosto dos dois filmes, que são uma conseqüência do meu relacionamento
com a literatura. É como se eu tivesse feito uma apropriação autoral. Era
como se aquele que escreveu Memórias do Cárcere ou Vidas Secas não
fosse Graciliano. Eu me apropriei daqueles livros por causa de minha
admiração pelo escritor; através de minha profunda conexão com eles,
descobri que era o dono da história. Acho que isso é o que acontece em
qualquer adaptação. [...] Queríamos fazer a mesma coisa com o cinema. Isto
seria possível criando uma forma própria de expressão, não usando uma
pré-existente. [...] Havia momentos em que recebia muitas propostas para
fazer filmes baseados em trabalhos literários, mas eu não me sentia à
vontade e recusava várias daquelas propostas porque, antes de mais nada,
deve existir um forte relacionamento entre o que eu vivo e penso e aquilo
que me proponho a fazer com um livro e um autor.
Nelson Pereira dos Santos
260
Prá mim, esse problema de reencontro com a cultura nacional não tinha
ponto de apoio nenhum no cinema brasileiro anterior. [...] o cinema existente
não expressava a nossa realidade, não tinha representatividade cultural. Pra
que tivesse, era preciso que houvesse um cinema que fosse como a literatura
dos anos 30 Graciliano, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, sobretudo, estes
eram os nossos papas.
Nelson Pereira dos Santos
261
259
Marinyse Prates de OLIVEIRA. Olhares Roubados: cinema, literatura e nacionalidade. Salvador: Quarteto,
2004, p. 59.
260
“I like both films, which are a consequence of my relationship with literature. It,s like I managed to make an
appropriation of the author.It was like the one who wrote either(Memoirs) of Prison or Barren Lives wasn`t
Graciliano I appropriated those books because of my admiration for the work of the writer; by way of my
profound connection with them [...] There was a time when I received many proposals to make films based on
literary works but I didn´t feel right and I refused many of them, because there must be a strong relationship
beforehand between what I live and think I propose to do with a book an author”. Interview GERALD
O’GRADY. In: Darlene J. Sadlier. Op. Cit., p. 125-126.
261
Maria Rita GALVÃO.Op. Cit., p.207-208.
Para criar um cinema endógeno, de matéria e expressão próprios, Nelson toma como
referência o percurso da literatura brasileira ao afirmar que as experiências vivenciadas no
moderno cinema brasileiro haviam sido experimentadas, de diferentes modos e graduações,
por esse meio de expressão artística. Cotejar e estabelecer um paralelo entre o percurso da
literatura e do cinema brasileiro parece ser uma maneira razoável de acompanhar
entendimento desse cineasta que manifesta, em várias oportunidades, ser tributário ao
pensamento proveniente da moderna literatura brasileira. Essa escolha também encontra apoio
na sugestão oferecida por Flora Süssekind que se reporta à contigüidade entre a literatura e o
cinema para revelar a intensidade dos seus relacionamentos ao propor uma:
história da literatura que leva em conta suas relações com uma história dos
meios de comunicação, cujas inovações e transformações afetam tanto a
consciência de autores e leitores quanto as formas de representação literária
propriamente ditas
262
.
As diversas teorias circunscritas no interior dos estudos lingüísticos e literários
forneceram importantes subsídios à análise fílmica, em geral, e especificamente à adaptação.
Neste sentido, destaca-se a noção de Roman Jakobson
263
sobre a “transposição criativa”, que
alargou os horizontes interpretativos verificando que além das diferenças de nguas na
tradução coexistem diferentes territórios de expressão, no qual se inclui a adaptação de textos
literários para cinema. Ao defender o aspecto original da transposição Jakobson
264
retira do
262
Flora SÜSSEKIND. Cinematográfo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 26.
263
Para Roman Jakobson três tipos de tradução: a intralingual, que consiste na interpretação dos signos
verbais por outros da mesma língua; a interlingual, em que a interpretação dos signos verbais é feita através de
uma ngua diversa; e a intersemiótica, que corresponde á interpretação dos signos verbais por meio de sistemas
de signos não verbais, ou seja, a transposição “de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal
para a dança, o cinema, a pintura. Roman JAKOBSON apud Júlio PLAZZA. Tradução intersemiótica. São
Paulo: Perspectiva, 1987, p.26.
264
A título de observação destaca-se a influência e a presença de lingüista russo no Brasil pelas conferências
realizadas em sua visita ao Brasil em setembro de 1968, publicadas em 1970, pela Editora Perspectiva com o
título Lingüística. Poética. Cinema, e em particular pelo conceito que desenvolveu sobre poética sincrônica que
aqui foi estudado por Haroldo de Campos. Sobre a leitura pragmática-poética do corte sincrônico proposto por
Roman Jakobson, ver Haroldo de CAMPOS. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p.15-16.
Observa o crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar alto e bom som aquilo que
nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas
da literatura universal, na, por assim dizer, ‘enciclopédia imaginária’ dessa literatura. Haroldo de Campos
reivindica a dimensão sincrônica para rever a história da literatura brasileira, em que o critério de focalização se
centra no diálogo dos procedimentos estéticos. Assim, o empenho de Jakobson em priorizar os estudos
interdisciplinares e promover a vinculação entre poética e lingüística, são observados pelo estudioso brasileiro
que não ignorou tais preceitos e no ensaio que escreveu quando da vinda de Jakobson ao Brasil nos anos de
1970, Haroldo de Campos com conhecimento o chamou "o poeta da lingüística".
processo da adaptação seu liame mais redutor: a fidelidade ao original, preocupação central
dos teóricos pioneiros que estudaram a questão.
Aquece também o debate, as colocações mais recentes sobre as adaptações passarem
de um discurso valorativo sobre fidelidade ou traição para um discurso tocado pelas
possibilidades intertextuais.
A expressão “intertextualidade” foi introduzida na argumentação lingüística por Julia
Kristeva
265
na década de 1960 a partir do dialogismo” criado por Mikhail Bakthin
266
nos
anos de 1930. O conceito de dialogismo implica no entendimento de que todo texto constitui
um ponto de encontro de exterioridades textuais. Linguagem para Bakthin se constitui pelo
contraditório, está sempre em movimento operando o diálogo entre as várias camadas
superpostas que a integram.
Assim, a intertextualidade torna-se um conceito teórico valioso, por relacionar o
texto na sua propriedade a outros sistemas de representações, chamando a atenção para todas
as operações transformadoras que um texto possa produzir sobre outro texto. Compreende-se,
assim, que os textos são tecidos por citações, conscientes e inconscientes, combinações e
inversões de outros textos.
As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao corte superposto da
transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de
reciclagem, transformação e transmutação. Dessa forma, o trânsito intertextual se faz presente
nas relações entre cinema e literatura. As possibilidades de inter-relacionamento dos dois
meios de expressão artística são inúmeras, apesar de o aspecto dominante recair nas questões
relacionadas à fidelidade das adaptações, sendo menosprezadas as particularidades e
substâncias desses modos de expressão artísticas.
Um olhar mais compreensivo sobre a questão terá de contemplar outras dimensões
que o tirem dessa insistência permanente, que deriva da expectativa gerada pelo conhecimento
do livro que o espectador projeta no filme, levando a um juízo crítico, geralmente superficial,
que com freqüência valoriza a obra literária sobre a adaptação a partir da alegação do o
cumprimento das determinações contidas nos livros: a “traição” à obra que lhe deu origem,
ancorada na postura do espectador que espera encontrar projetada uma versão “fiel” da obra
265
Julia Kristeva nasceu na Bulgária e passou a morar na capital francesa desde 1966. Psicanalista, professora de
lingüística na Universidade de Paris e autora de livros de sucesso no mundo acadêmico. Seu pensamento conjuga
várias disciplinas: filosofia, semiologia, teoria literária e psicologia.
266
Mikhail Bakthin, lingüísta russso. Seu trabalho concentra-se na área de teoria literária, crítica literária,
sociolingüística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é na verdade um filósofo da linguagem e sua
lingüística é considerada uma "trans-lingüística" porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Para
Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise lingüística deve incluir fatores extra-
lingüisticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte e o momento histórico.
lida, e dos que defendem a supremacia da linguagem literária em detrimento da linguagem
audiovisual,
267
, credenciando às adaptações a fragilidade de sua condição de cópia, e como tal
canhestra. Na contemporaneidade este posicionamento está sendo amenizado, diante da
tendência em se considerar as derivações e as múltiplas possibilidades de leitura que uma obra
possa ter.
Marinyse Prates Correia ao tratar da noção de “fidelidade a um original” no universo
complexo da adaptação recorre ao pensamento de Gilles Deleuze desenvolvido em Platão e o
simulacro
268
, concernente ao seu reconhecimento da diferença como potência libertadora do
simulacro da opressão representada pelo original, flexibilizando o campo de análise crítica
para a adaptação da obra literária:
Deleuze, a seu turno, ao retomar o abalo que Nietzsche produz no esquema
hierárquico construído por Platão, propõe-se a resgatar o simulacro da
posição subalterna a que foi relegado, chamando a atenção para o fato de que
enquanto a ‘cópia é uma imagem dotada de semelhança [...] o simulacro é
construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma
dissimilitude’
269
.
Tais observações alteram a hierarquia de valores e a fidelidade ao original deixa de
ser o critério maior de juízo crítico, levando-se em conta mais a apreciação do filme como
nova experiência que deve ter seu formato, e os sentidos nele enredados, avaliados em seu
benefício. Constata-se enfim que livro e filme sofrem a distância do tempo; escritor e cineasta
são sujeitos distintos, cada um com a sua subjetividade circunscrita a partir da sensibilidade e
expectativa próprias; além dos dois meios estarem inseridos em campos de produção cultural
distintos com dinâmicas e demandas específicas. O escritor instaura para a prática do seu
ofício o arsenal disponibilizado pela linguagem verbal, com toda a sua consistência figurativa
e preciosismo metafórico. Um cineasta maneja diferentes tipos de materiais de expressão e
recursos variados na captação das imagens e sons para intentar uma tonalidade, um clima, um
ritmo na sua narrativa. Não se pode cair no reducionismo que apenas limita a diferença entre
essas expressões artísticas. Há de se reconhecer seus empenhos: ao escritor o que é do
escritor, ao cineasta o que é do cineasta, tomando-se as analogias entre livro e filme mais
como ponto de partida, não de chegada.
267
Uso a expressão audiovisual por não desprezar a adaptação literária comumente assumida pela televisão, não
sendo a sua prática exclusiva do cinema.
268
Gilles DELEUZE. Platão e o simulacro. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1982.
269
Marinyse Prates CORREIA. No livro ou na tela: dois modos de ser Amado. In Colóquio Jorge Amado: 70
anos de Jubiabá. Salvador: FCJA/FJA, 2006, p. 120.
Randal Johnson
270
entende como falso problema a fidelidade à obra-modelo pelo
cineasta, porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e credencia a insistência no
estabelecimento de uma hierarquia normativa entre a literatura e o cinema a uma concepção
kantiana que defende a “inviolabilidade da obra literária e a especificidade estética”
271
Para
sustentar esse argumento recorre ao pensamento de José Carlos Avellar
272
como chave para a
compreensão mais eficaz da relação entre cinema e literatura:
A relação dinâmica que existe entre livros e filmes quase nem se percebe se
estabelecemos uma hierarquia entre as formas de expressão e a partir daí
examinamos uma possível fidelidade de tradução: uma perfeita obediência
aos fatos narrados ou uma invenção de soluções visuais equivalentes aos
recursos estilísticos do texto. O que tem levado o cinema à literatura não é a
impressão de que é possível apanhar uma certa coisa que está num livro
uma história, um diálogo, uma cena e inseri-la num filme, mas ao
contrário, uma quase certeza de que tal operação é impossível. A relação se
através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde cada
poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer
exatamente o que acha que deve fazer
273
.
A analogia proposta por Avellar encontra coro na posição de Nelson ao declarar o
seu sentimento de apropriação às suas adaptações de Memórias do Cárcere ou Vidas Secas.
Nelson vai mais além, relacionando essa idéia de pertencimento como derivada de uma
profunda conexão com o escritor. Essa posição o conduz na direção de assunto tratado
neste trabalho: o reconhecimento da literatura social brasileira como vanguarda da discussão
da realidade do país, que servisse tanto de exemplo como de instrumento para a leitura
cinematográfica que propõe uma intervenção na conjuntura política contemporânea. Em Vidas
Secas a discussão vigente traz à tona a reforma agrária e a estrutura social brasileira. Em
Memórias do Cárcere a incursão no passado é mediação para falar no presente, onde a
liberdade é tematizada em um momento em que se encontra ameaçada no país, servindo de
parábola para se pensar que aspirá-la não é crime e que o direito precede a força. A questão
270
Professor de literatura e cinema brasileiros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA),
pesquisador de literaturae cinema brasileiros. Autor de Literatura e Cinema. Macunaíma: do Modernismo na
literatura ao Cinema Novo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982; Cinema Novo X 5: Masters of Contemporary
Brazilian Film.Austin: University of Texas, 1984; The Film Industry in Brazil: Culture and the State. Pittsburgh:
University of Pittsburgh, 1987 e Antônio das Mortes. Wiltshire: Flicks Books, 1998. Disponível em:
<htpp://www.humnet.ucla.edu/spanport/faculty/randalj/>.
271
Randal JOHNSON. Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Tânia PELLEGRINI
(org.). Literatura, cinema e televisão São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003, p.40.
272
Crítico e ensaísta brasileiro, exerce papel determinante tanto na reflexão crítica como na ação do cinema
brasileiro. Administrador cultural com passagens na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro,
Embrafilme, Riofilme e Conselho do Programa Petrobras Cultural.
273
José Carlos AVELLAR apud Randal JOHNSON. Op. Cit., p. 39-40.
social é atualizada e a prisão, como espelho da sociedade brasileira, desdobra-se nas prisões
do egoísmo, da fome, do racismo, do preconceito, reproduzindo a sociedade que encarcera.
No confronto do diálogo de Nelson com a literatura e com os escritores, em que foi
usado o exemplo de dois filmes, identifica-se mais um retorno ao ponto de origem: a busca de
uma forma própria de expressão cinematográfica.
José Carlos Avellar trará munição à discussão ao afirmar que “o gosto pela invenção
e a vontade de escrever brasileiro” estavam presentes na literatura de 22, não tendo
correspondência no cinema brasileiro realizado no período. Para sustentar esse argumento ele
recorre a Mário de Andrade, ao escrever Amar Verbo Intransitivo e Carlos Drummond de
Andrade em Alguma Poesia e Poema de Sete Faces, como exemplos de escritura em imagens,
de cinema feito sem se servir da câmera de filmar:
Drummond e Mário estavam fazendo cinema, e filmando melhor do que as
pessoas que entre s neste mesmo período estavam diretamente envolvidas
com o cinema.
274
Resguardadas as generalizações e apoiando-se no fato de que muito pouco do cinema
brasileiro do período foi preservado, poucos exemplos podem ser encontrados para se
estabelecer um paralelo, acata-se o posicionamento de Avellar:
Um juízo absoluto pode ser injusto. Mas, sem qualquer dúvida, se em algum
momento nossos filmes foram tão cinematográficos quanto o texto de Mário,
este exemplo logo se perdeu, e o que predominou até um tempo
relativamente próximo foi uma forma bem pouco cinematográfica,
determinada pelos padrões impostos pela grande indústria
cinematográfica.
275
Nessa linha de desenvolvimento pode-se vincular a experiência da literatura
modernista em associação a outro contexto, o cinematográfico, e localizá-lo na marca dos
anos 1960, quando o cinema brasileiro retomou aquilo que a literatura modernista tinha
vislumbrado em duas instâncias: a da forma, ao estruturar as palavras em cortes
cinematográficos e a do conteúdo, ao discutir o país e fazê-lo em língua brasileira.
Assim, o cinema moderno brasileiro liga-se à literatura num programa comum em
que o autor cinematográfico via no autor literário uma extensão do seu desejo numa relação
dinâmica e viva em que a adaptação passa a ser uma troca de informações, uma conversa
274
José Carlos AVELLAR. O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986, p.209.
275
Apud AVELLAR, p. 209.
íntima, partilhada, entre dois diferentes modos de criação e prazer: escrever e filmar. Um
texto pode conter inclinações cinematográficas e um filme pode se servir de informações
literárias, sem que com isto essas formas de expressão imponham subordinação uma à outra.
Ainda que essas áreas não sejam estanques, se imiscuam e se contaminem, os sistemas e as
técnicas convocadas para dar forma ao imaginário tanto pelo cinema como pela literatura têm
seus modos próprios de manifestação.
Nelson, no conjunto de sua obra, experimentou essa relação de diferentes formas e
muito proveito tirou disso. Essa conversa, tocada por um sentimento de identidade com o
autor literário, que toma o texto como um roteiro vivo, que ao ser lido conduz a uma forte
emoção e impulsiona para a criação do filme, foi mantida entre Nelson e seus autores
preferenciais: Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de Assis. Esses contadores de
Histórias do Brasil, em uma conversa fraterna, desvendaram seus segredos, suas tramas e
enredos para ser independentes, se organizarem e ganharem vida própria na fabulação e na
narrativa de Nelson.
de
dede
de
Mandac
Mandac Mandac
Mandacaru Vermelho
aru Vermelhoaru Vermelho
aru Vermelho
Mandacaru Vermelho é um croquis. Um filme-rascunho para o exercício de
Vidas Secas.
Nelson Pereira dos Santos
276
.
Acho que o primeiro filme que vi, ou pelo menos aquele que mais me
marcou, foi western. Lembro-me apenas da parte final, quando o herói, um
jovem caubói, atravessa o deserto, última etapa para voltar à sua cidade e aos
braços da amada. Está faminto e sedento. Encontra uma casa em ruínas e,
nela, um poço com terrível aviso: "Quem beber dessa água, morrerá em uma
hora". O herói despreza a advertência, mata a sede e continua a cavalgar.
Consegue chegar à cidade, que se encontra em plena celebração de um
casamento. O casamento de sua amada com outro.
Nelson Pereira dos Santos
277
A décima segunda letra do alfabeto pode, simbolicamente, trazer à memória o
sentido da maturidade. Porém em vez do significado do substantivo feminino, aqui ela se
relaciona, no trajeto de Nelson Pereira dos Santos, com o verbo maturar, ou seja, tornar-se
ainda melhor, aprimorar-se. Definido dessa maneira, o EME, também, é a procura do
amadurecimento, do se desenvolver completamente em busca do aperfeiçoamento e de chegar
à condição de plenitude na arte, demonstrando a representação da habilidade adquirida. A
letra M de Mandacaru
278
Vermelho adquire neste alfabeto cinematográfico a diversidade
desses vários significados.
M de Mandacaru, adjetivado de Vermelho, é o princípio da exposição visual do
percurso multifacetado fílmico de Nelson Pereira dos Santos, que se constitui de
276
Entrevista concedida a Marise BERTA. Op. Cit.
277
Entrevista concedida a Paulo Roberto RAMOS. In: Estudos Avançados, vol. 21, 59, São Paulo, Jan./Abril
2007.
278
Ñamandaka´ru ou Yamandaka’ru palavra de origem tupi-guarani que designa a planta arborescente nativa do
Brasil de ramos lenhosos, flores brancas, róseas e de bagas púrpuras comestíveis.
características variadas e peculiares. Por isso, cabe a definição de que se trata do seu estágio
de transição, da sua passagem de um lugar a outro. Visto nesse sentido, o filme corresponde
ao conceito do ato de transitar de um estado de coisa ou de uma condição a outra. Mandacaru
Vermelho havia sido o seu terceiro experimento cinematográfico, após as renovadoras
experiências de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, trabalhos que deram ao jovem produtor e
realizador a condição in utero do moderno cinema brasileiro.
Mandacaru Vermelho precede a Vidas Secas, uma de suas obras de grande porte, e
de uma inédita dúplice autoral, ou seja, a criação por dois autores: Graciliano Ramos o seu
primeiro original construtor na forma de literatura e Nelson Pereira dos Santos o inventivo
autor-poeta da transposição do imaginário literário ao cinematográfico.
Por causa da proximidade temporal entre os filmes Mandacaru Vermelho e Vidas
Secas –, e devido à grande repercussão da adaptação do clássico da literatura brasileira,
Mandacaru a lenda popular da saga entre duas famílias que se antagonizam e se exterminam
em pleno sertão baiano, traduzida como se fosse um western brasileiro é considerado por uma
parte de teóricos e críticos que despedaçam um conjunto fílmico em partes desiguais num
trabalho de menor porte no percurso cinematográfico de Nelson.
Em oposição a essa visão da crítica monolíngüe contemporânea e num intuito de
redimensionar o olhar da crítica, uma das opções alternativas é penetrar em Mandacaru
Vermelho através da receptividade dada ao filme por parte das resenhas e das apreciações
cinematográficas escritas por articulistas em exercício na época da sua realização e do seu
lançamento (1960/1961). Observa-se de imediato que o acolhimento dado foi a do
arrebatamento e o da exaltação:
Apenas 5 milhões de cruzeiros (aproximadamente) foram gastos em
MANDACARU VERMELHO, o que incluída as copias, é custo baixíssimo, a
exigir milagres em esforços de seus realizadores. Apesar disso, o filme tem
um bom acabamento técnico. O trabalho fotográfico é muito bom. Remo
Usai é um dos dois ou três compositores que dispomos (em cinema). A
montagem confiada ao argentino Nelo Nelli [...] tem um desenvolvimento
enxuto, onde, consideradas as diretrizes narrativas, nada falta, nada sobra.
[...] Nota-se em MANDACARU VERMELHO progressos extraordinários do
cineasta que constrói um filme. [...] MANDACARU VERMELHO é um
processo de maturação. (grifos meus)
279
MANDACARU VERMELHO de Nelson Pereira dos Santos é seguramente,
uma das primeiras tentativas válidas de descobrir o Brasil, no que ele oferece
de melhor [...] em termos de cultura popular autêntica. Não é mais o
279
Ely AZEREDO e Sérgio AUGUSTO. Brasil Violento em MANDACARU VEMELHO. Tribuna da
Imprensa, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1961. Apud Gisellle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.200-201.
nacionalismo infantil e tedioso nem uma visão contaminada de exotismo é
uma realidade primitiva e trágica, às vezes grotesca. A história de
MANDACARU VERMELHO obedece ao mesmo sistema narrativo, à forma
tradicional de nossa literatura de cordel, no qual os maus são punidos e os
bons recompensados e redimidos. Esta é a mais encantadora virtude do
filme: inspirar-se no que a tradição consagrou e elevou a uma dimensão
mítica. [...] A total ausência de glamour, de cavalos de fogosos, de mocinhos
justos e ideais e de heroínas empoadas [...] MANDACARU VERMELHO é
rodado com roupas pobres e rudes, tal qual é a região, cujos caminhos
selvagens são enfrentados em jumentos e burros. É a verdade que algumas
dessas caracterizações do filme, mais ingênuo que a estória e os atores mais
desajeitados do que desejariam os personagens. O filme foi feito em regime
de urgência [...] e as seqüências obedecem às formas tradicionais dos filmes
de aventura. A fotografia é de qualidade, mas as composições sofrem e
acentuado academismo, de forma e de espírito
280
.
Extraído de uma lenda colhida por Nelson Pereira dos Santos,
MANDACARU VERMELHO estréia em avant-première internacional, dia 15
na Bahia. A história de violência e vingança é baseada na saga famosa do
folclore nordestino. Uma espécie de Romeu e Julieta [...] Como qualidade,
além do tratamento singelo e sem prosaísmo, a fita tem um acabamento bem
cuidado. Foto e montagem são pontos altos. [...] Ator e ao mesmo tempo
diretor e autor do enredo, NPS encontra um estilo próprio para narrar uma
estória pica, sem qualquer concessão ao cinema internacional. A fita
inaugura no Brasil o tratamento machadiano no cinema brasileiro. A
apresentação de Lygia Pape o tom do bom gosto ao bom gosto geral da
fita
281
Mandacaru Vermelho
é um dos primeiros resultados do Ciclo Baiano de Cinema
282
.
A presença de Nelson Pereira dos Santos realizando Mandacaru Vermelho (1961) e fazendo a
montagem de Barravento de Glauber Rocha (1962), veio dar ímpeto ao movimento baiano,
que se tornou reconhecido, internacionalmente, na aprovação dada pelos franceses Georges
280
Claudio MELLO E SOUZ. MANDACARU VERMELHO (uma obra do acaso). Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 1 de dezembro de 1961. Apud Gisellle GUBERNIKOFF. Op. Cit. p.203.
281
Décio Vieira OTTONI. MANDACARU VERMELHO é um Romeu e Julieta do Nordeste. Apud Gisellle
GUBERNIKOFF. Op. Cit. p.194.
282
O encontro do produtor Rex Schindler com Glauber Rocha, no escritório do fotógrafo Leão Rosemberg, faz
eclodir o Ciclo Baiano de Cinema, que, a rigor, tem início com Barravento (1960-1961), de Glauber Rocha
(apesar da filmagem anterior de Luís Paulino dos Santos, autor de um curta importante: Um dia na rampa,
1955). Dentro de um projeto de se criar uma infra-estrutura cinematográfica com Rex, Braga Neto e David
Singer (produtores), Roberto Pires e Glauber, como mentor intelectual, entre outros, o ciclo prossegue com A
grande feira (1961) e Tocaia no asfalto (1962), filmes que podem ser enquadrados dentro dos postulados
cinemanovistas [...]. No entusiasmo geral, cineastas do sul do País e do exterior, aproveitando o cenário da
paisagem natural, realizam os filmes Bahia de Todos os Santos (1959-1960), de Trigueirinho Neto; Mandacaru
vermelho (1961), de Nelson Pereira dos Santos; O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte; e Três
cabras de Lampião (1962), de Aurélio Teixeira. No Ciclo Baiano de Cinema, incluem-se os filmes entre os anos
1960 e 1963, mas é preciso separar e distinguir os oriundos do grupo gerador inicial (Rex Schindler, Glauber,
Pires, etc.) que querem criar uma escola baiana de cinema, seguindo uma linha programática –, daqueles
realizados fora do grupo, embora genuinamente baianos, como O caipora (1963), de Oscar Santana; Sol sobre a
lama (1962-1963), de Alex Viany e O grito da terra (1964) de Olney São Paulo. em todos, entretanto, uma
preocupação no enfoque do drama do povo brasileiro sofrido e faminto. Cf. Fernão RAMOS e Luiz Felipe
MIRANDA (org.) Op. Cit., 2000, p.135-136.
Sadoul e Pierre Furter. Sadoul escreveu, em julho de 1962, sobre o cinema brasileiro e baiano
publicando na Lettres Françaises o artigo Bouillonante Bahia, e Furter no texto Bahia, la
nouvelle capital du cinèma brésilien, editado na Gazzette de Lausanne
283
.
A crítica cinematográfica baiana incorporou os elogios dos críticos franceses a
respeito do cinema feito na Bahia, elevada ao patamar de nova capital do cinema brasileiro. A
absorção de críticas benignas foi uma das contribuições externas para a superação do enigma
provinciano e serviu de válvula de inserção ao cinema produzido na província elevado ao
cenário internacional. Enfim, era um apoio à transição cosmopolita da província, erguida,
naquele instante, ao status de metrópole da vanguarda cinematográfica brasileira.
Outro fator para o qual o crítico Glauber chamava a atenção referia-se ao “resultado
das pesquisas sobre o cinema na Bahia; hoje este trabalho se valoriza porque se torna
introdução indispensável aos estudos futuros sobre o cinema baiano”
284
. Glauber apelava para
a formulação teórica, pois a Bahia havia ficado de fora dos chamados ciclos regionais do
cinema brasileiro, ocorridos entre os anos de 1912 e 1930, quando foram produzidos filmes
no Amazonas, na Paraíba, em Pernambuco, Minas Gerais, e no Rio Grande do Sul. Entre
esses ciclos se destacou o de Cataguases produzido por Humberto Mauro, a primeira
personalidade revelada pelo cinema brasileiro
285
.
A única experiência cinematográfica baiana ininterrupta antes do ciclo era a
documental processada pelo pioneiro Alexandre Robatto
286
. Além disso, o exercício do
imaginário cinematográfico limitava-se às atividades do Clube de Cinema da Bahia e à crítica
283
Ver Glauber ROCHA. “Esboço de uma escola baiana”, in: Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003, p. 154 e 155.
284
Glauber ROCHA, “Esboço de uma escola baiana”in Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac &
Naif, 2003. p.153.
285
Cf. Ana Lúcia LOBATO. Os ciclos regionais de Minas Gerais, Norte e Nordeste (1912-1930); e Rubens
MACHADO. O cinema paulistano e os ciclos regionais do Sul-Sudeste. In: Fernão RAMOS (org.). História do
cinema brasileiro, São Paulo: Art Editora, 1987. p.63-97. Sobre Humberto Mauro, ver Paulo E. SALLES
GOMES. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.
286
Muito antes de acontecer o boom cinematográfico dos anos 1950, a produção baiana foi dominada pela ão
isolada do documentarista Alexandre Robatto Filho, que realizou entre os anos 1930 e 50, aproximadamente
cinqüenta e quatro filmes de curta metragem, nas bitolas de 16mm e 35mm. Entre os seus trabalhos, na sua
grande maioria institucionais, há filmes considerados importantes como, por exemplo, Vadiação, Entre o mar e o
tendal e Xareú. Segundo os críticos André Setaro e José Umberto Dias, “se a princípio Alexandre Robatto, Filho
restringiu-se ao registro bruto da matéria histórica, no entanto, procurou, no transcurso de sua filmologia,
imprimir o gesto gerador, a dosar com funcionalidade e expressão elementos do cinema em permanente evolução
técnica [...] Era um realizador que, ciente de seu ofício, procurava cerzi-lo artesanalmente da melhor maneira
possível, imbuído do espírito flahertyano na captação das imagens de sua terra e de sua gente. Um apaixonado
imperturbável das paisagens humana e geográfica. Acreditando na revolucionária mensagem estética da escola
documentária britânica, teorizada por John Grierson (1898/1972) na elaboração e transfiguração criadora da
realidade. Robatto é um cineasta de domingo (conciliando cinema com as profissões de cirurgião-dentista e
professor universitário até a sua aposentadoria em 1977), conseguiu filmar, documentar, até mesmo realizar
copiagens manuais na bitola 35mm e fazer-se equiparaaos significativos documentaristas do Sul”. Cf. André
SETARO e JoUmberto DIAS. Alexandre Robatto, Filho pioneiro do cinema baiano. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1992.
exercida nos periódicos da cidade. Glauber Rocha indica as causas da estagnação da prática
cinematográfica:
a tradição literária da Bahia é a retórica. As novas gerações de escritores e
artistas surgidos, inicialmente, em 1945, no grupo Caderno da Bahia, e mais
tarde em Ângulos e Mapa sempre foram violentamente combativas ao
passado de Castro Alves e Rui Barbosa; contudo, o improviso, o romantismo
e o discurso descritivo continuaram marcando, e mal, a expressão artística da
Bahia [...] A Bahia é – na síntese – o barroco português, o misticismo erótico
da África e a tragédia desposada dos sertões: sua expressão artística até
então inferior às expressões de Minas e Pernambuco, tende, para muito cedo,
a inserir uma corrente nova nas artes brasileiras. Os que primeiro
compreenderam este clima complexo e rico foram Martim Gonçalves e Lina
Bardi, que, em quatro anos, instalaram raízes significativas no ambiente
cultural da província
287
·.
Glauber Rocha, exercendo a função de crítico de cinema
288
, expõe as causas da falta
de progresso, e ao mesmo tempo os motivos da ruptura em “derrotar a província na própria
província”
289
. O jovem crítico rasga elogios enaltecendo o autor Nelson Pereira dos Santos,
colocando-o como um dos elementos deflagradores do cinema moderno e novo brasileiro,
assim como do Ciclo Baiano de Cinema. Adotado baiano, não seria Nelson um estrangeiro
que não existia nenhuma reação xenófoba a sua integração a Bahia.
Glauber, no seu exercício crítico definiu Mandacaru Vermelho como um drama
rural, um western
290
nordestino:
parece muito mais um romanceiro do sertão: um romance que segue a raiz
popular, prólogo e epílogo, epopéia com o máximo de ação e o mínimo de
psicologia, mas ao mesmo tempo retrato violento do Nordeste, vertical e sem
retoques como nunca antes foi realizado no cinema brasileiro [...] jovem
produtor cabeça de ponte da independência industrial & ideológica do nosso
cinema, figura surgida no polêmico Rio Quarenta Graus (1955), volta ao seu
287
Glauber ROCHA. Esboço de uma escola baiana, Op.Cit, p.154.
288
Glauber Rocha exerceu o papel de crítico de cinema entre os anos de 1956 a 1963, antes de se tornar
conhecido como cineasta. Escreveu nos periódicos baianos O Conquistense, O Momento, Afirmação, Jornal da
Semana, Jornal da Bahia, Sete Dias e Diário de Notícias e nas revistas: Mapa e Ângulos. Nos jornais do Rio de
Janeiro: Jornal do Brasil, O Globo e O Metropolitano.
289
Glauber ROCHA. Inconsciência & Inconseqüência da atual cultura baiana. Diário de Notícias. Salvador,
05/02/61.
290
Fernando Simão VUFMAN. In: Fernando MASCARELLO (org.). História do Cinema Mundial. Campinas,
São Paulo: Papirus, 2006. p.159. “Para muitos, o Western é considerado o gênero cinematográfico norte-
americano por excelência. Com os primeiros filmes em que aparecem cowboys datando da virada do século XIX
para o século XX, o Western inclui-se entre os primeiros gêneros de filmes narrativos da história. (...) Mas o
sucesso do gênero não se limitou ao público; sua influência sobre a cinematografia de outros países pode ser
observada em filmes de samurai japoneses, cangaceiros indianos, russos e mexicanos, além, é claro, das francas
imitações na Alemanha e na Itália”.
quarto filme, após Rio, Zona Norte (1957) e o Grande Momento (1957)
produção que foi dirigida por Roberto Santos provando que os melhores
destinos de nossa colonial cinematografia surgem a todo custo como
frutos da produção independente e livre dos compromissos vulgares do
pseudocomércio nativos dos filmes
291
.
Falar de cinema nacional era, especialmente, pensar na produção, porém, nunca
como indústria pesada. Mandacaru Vermelho se contrapõe ao processo industrializado da
realização do cinema propondo o processo do improviso, técnica que passou a ser adotada por
cineastas periféricos que não tinham acesso aos sofisticados recursos tecnológicos próprios do
aparato do cinema industrial. A proposição vestida foi a de usar a câmera na mão, frase por
Glauber pronunciada, sentença que não queria dizer arranjo daquele que ainda não domina ou
não consegue dominar a atividade a qual se dedicou, revelando-se inábil, incompetente,
inexperiente; era um posicionamento estratégico, daqueles que optaram em fazer o cinema
moderno dentro das possibilidades tecnológicas possíveis, pois:
o problema da câmara na mão (que virou lema do cinema novo e não quer
dizer improviso amador, como alguns profissionais comentam entre risos)
não é apenas resultado da ausência de capital básico, mas é também fruto
de uma nova visão cinematográfica do mundo inteiro, quando o cineasta
deixa de ser o artesão que maneja atores na cenografia de estudo e, num
passe histórico, transforma a técnica em poética: Antonioni, Godard, o hindu
Ray, John Cassavetes – eis os exemplos que começam a derrubar a estirpe de
William Wyler o conformismo do filme certinho, com estória narrada para
um clima romântico, de fusão explicativa e luz desenhada no close da
estrela. [...] Hoje, o filme comercial não é o melhor filme. O filme de autor –
o cineasta é ficcionista ou poeta, cria, depõe, divaga denúncia e luta com a
câmara. Não podia existir para o cinema brasileiro melhor oportunidade na
história acidentada do cinema – história pela qual os cineastas pagam preços
violentos na hora exata em que a idéia é implacavelmente sangrada pela
indústria
292
.
Dessa maneira, a transposição da posição de artesão era condição indispensável para
o realizador conseguir a adulteração do estado material da tecnologia para o imaterial da
poética e, por conseguinte, torna-se um autor, ou seja, o indivíduo com a capacidade de
inventar. Era chegada à hora da transformação da condição do estado de pré-indústria
cinematográfica artesanal numa mutação autoral. Por isso Glauber, dizia que no Brasil:
Nelson Pereira dos Santos foi a primeira consciência individual do fenômeno
que surgiu nas mãos de Rossellini naquele tempo dourado de Vera Cruz,
291
Ver Glauber ROCHA. Mandacaru Vermelho. Suplemento Dominical Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de
novembro de 1961.
292
Ver: Id. Ibid.
de subdesenvolvimento cultural paulista, fabricando melodramas da tirania,
crítica de produtos inflamados e perniciosos do cinema de imitação do rei
(Rubem) Biáfora e sua cultura suicida. Hoje, sabendo tardiamente que o
cinema não é estúdio, não é luz, não é travelling macio, não é partitura
musical, não é nada de nada que os conformistas pregam sabendo que o
cinema marcha para outros caminhos e estes caminhos abertos pela
produção livre do artista que está dizendo não – surge (mas surge também na
hora exata) a primeira arrancada do cinema novo
293
.
Na defesa do movimento de renovação a opção de fazer cinema não seria a artificial,
ou seja, a criação feita em estúdio, assim o Ciclo Baiano de Cinema e o Cinema Novo foram
promotores da modernidade, pois esses dois movimentos compõem o cinema do
conhecimento em oposição ao do divertimento, o da linguagem e não o do espetáculo, o do
método e não da ilustração, por fim, o cinema da revelação e não o da descrição do óbvio.
Nesta perspectiva Mandacaru Vermelho tornava-se um paradigma, filme realizado
em regime magro dos independentes, nem mesmo por isso, o autor e o seu fotógrafo haviam
perdido as rédeas da disciplina formal da linguagem, da luz e do som que moldaram a cara do
cinema brasileiro:
poema, filme contado, linguagem de ação, dos cantadores de violências
sertanejas fixação do homem social na paisagem sem o deslize para o
exótico: disciplina, concisão, ritmo, luz, poema corrido com as variantes de
lirismo que revelam NPS de hoje poeta
294
.
Mandacaru Vermelho justifica-se como exemplo e modelo, por se tratar de um filme
poético popular, cujo resultado junto ao público da capital da Bahia foi surpreendente,
chegando a entusiasmar os mais absolutos inimigos do cinema brasileiro, além de ser recorde
de bilheteria. Na sua exibição, no interior, nas cidades de Juazeiro (Bahia) e Petrolina
(Pernambuco) foi aplaudido por uma platéia constituída, principalmente, de vaqueiros rústicos
que nunca tinham visto cinema em suas vidas e que chegaram de longe para ver e viver este
começo do Cinema Novo
295
.
Nelson concretizou o futuro do cinema moderno brasileiro, pois o resultado do
processo iniciado naquele momento eclipsaria o cinema conservador e resultaria num cinema
brasileiro autêntico. Mandacaru Vermelho, assim, torna-se uma das fontes iniciais do cinema
293
Id. ibid.
294
Glauber ROCHA. Mandacaru Vermelho. Op. Cit.
295
Essas Informações sobre a presença de público nas estréias do filme na Bahia estão relatadas no ensaio de
Glauber, ver Glauber ROCHA, Mandacaru Vermelho. Op. Cit.
que se desloca do universo urbano para o mundo rural, abrindo caminho para um inesgotável
veio desse tipo de filme
296
.
A abordagem a propósito do que é cinema moderno remete a uma heterogênea
pluralidade de tendências, seja estética, política ou técnica. Quando se observa a modernidade
cinematográfica alocada nas inovações tecnológicas, por exemplo, verifica-se que o cinema
deu elevados saltos quando da ultrapassagem do filme mudo para o sonoro, modificando
rigorosamente o estatuto da narrativa; daria ainda outros passos significativos com a invenção
da cor, do negativo dotado de maior sensibilidade, do uso de câmeras leves e de fácil manobra
e, especialmente, com a adoção do som direto, enfim, com a adoção de novas tecnologias o
cinema passou a ser reprocessado por outros meios. Tudo isso proporcionou novas
configurações na sua linguagem, tornando-o cada vez mais associado ao mundo que se fazia
moderno a cada momento.
Comentar a modernidade no cinema expõe o investigador ao plano estético, o qual
pode perfeitamente ser avaliado, através de estilos e movimentos como: o estudo da avant-
garde francesa de Jean Renoir, do surrealismo produzido pelo espanhol Luís Buñuel, do Neo-
Realismo de Roberto Rossellini e outros autores; da nouvelle vague de Truffaut e chegar até
as confluências de um cinema de rupturas dos italianos como, por exemplo, Michelangelo
Antonioni, Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, dos franceses Alain Resnais e Jean-Luc
Godard, do americano John Cassavetes, do cubano Tomás Gutierrez Alea e,
indiscutivelmente, da obra de Nelson Pereira dos Santos
O cinema moderno pode ser visto também na ótica da política de produção. Nesse
caso, o estudioso pode se deparar com a confrontação entre o que representa o aparato
produtivo do cinema clássico e o que significou a ruptura vanguardista cinematográfica, cuja
base ideológica foi alicerçada na política de autores, antítese ao cinema industrial e proposta
posta em voga nos anos de 1950 a 60, através das novas ondas do cinema: o neo-realismo, a
Nouvelle Vague e o Cinema Novo. Para esse movimento se concretizar, entretanto, era
necessário se fazer rupturas com os modelos anteriormente estabelecidos, por isso:
a maneira de vencer a chanchada é fazer a antichanchada e conquistar o
público. Mas conquistá-lo sem às concessões tradicionais da indústria
americana. O público não anda mais tão dopado quando ele mesmo começa
a recusar fitas como Sócio de Alcova ou Dono da Bola. Se Mandacaru
Vermelho também conquistar o público do Rio a experiência de Nelson
Pereira dos Santos assume assim, de fato a marginal e espinhosa e amarga
posição que conquistou desde Rio Quarenta Graus: a voz contra a indústria
296
Id., ibid.
de fitas coloridas em regime de entrega servil a estrangeiros; às fantasias
convencionais de melodrama e sentimento radiofônico; às fitas pseudo-sérias
de psicologia barata em apartamentos e salões do século passado apoteose
da escola Biáfora; as fitas ridículas de delírios formais, bebidos das
cinematecas nos arquivos dos anos 30. Mandacaru Vermelho feito com a
câmara na mão e com a idéia é resposta à inconseqüência e mediocridade
do cinema brasileiro. É um começo do novo cinema escom seus erros,
mas resiste às críticas mais violentas, topa qualquer parada, está na tela para
se ver e ouvir
297
.
É notório o contraponto entre os filmes de Nelson Pereira dos Santos e as produções
das chanchadas, bem como o prenúncio da visão utópica de um novo começo para o cinema
brasileiro. A verdade é que todos os produtos fílmicos feitos na perspectiva de renovação
eram absorvidos como resultado de uma esperança futura da confirmação do novíssimo
cinema.
Por ter sido um projeto improvisado, é possível que a obstinação do filme
Mandacaru Vermelho esteja na estória simples do vaqueiro que não acreditava na lenda para
negar o misticismo alienado do povo sertanejo. Mandacaru Vermelho é o filme que, nesse
sentido, precede ao clássico Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), também
considerado como um western nordestino brasileiro. O filme tem similitude com o gênero
americano, porém, não foi procurado o exotismo da paisagem, mas o drama que habita neste
deserto de sol e árvores torcidas. Segundo o brasilianista Randall Johnson “Nelson partira de
uma forma codificada do cinema, isto é, de um gênero: no caso western”
298
.
É importante observar que numa recente revisão da obra de Nelson, o crítico
Eduardo Valente da revista eletrônica de cinema Contracampo fez a seguinte observação a
respeito da questão do gênero no cinema brasileiro:
o cinema brasileiro sempre teve como um dos seus principais problemas a
dificuldade de fazer um cinema de gêneros, tornando-se com o tempo um
gênero em si mesmo na imaginação do espectador. Não se uma comédia,
uma aventura, um drama, se um "filme brasileiro". Parte disso tem a ver
com a herança do Cinema Novo (seguida da pornochanchada) no imaginário
recente do nosso cinema, parte disso tem a ver com as expectativas formadas
pelo cinema americano e seu trabalho invariavelmente em gêneros, parte
disso tem a ver com o que citamos no início da falta de trabalho de diretores
em um projeto não pessoal. Mas o fato é que, exceção à chanchada (ainda
assim, devido à sua permanência "fechada" no tempo, acabe sendo mais um
297
Glauber ROCHA, Mandacaru Vermelho. Op. Cit.
298
Randall JONHSON. Cinema novo X 5: master of contempory brazilian film. Austin, University of Texas,
1984 apud Hilda MACHADO. Rio 40 graus, Rio, Zona Norte: o jovem Nelson Pereira dos Santos, São Paulo:
Escola de Comunicação e Artes da USP, 1987 (Dissertação de Mestrado), p.127.
momento que um gênero), nenhum gênero de cinema, no sentido clássico da
expressão, conseguiu estabelecer uma tradição no Brasil
299
.
O filme representava, naquele espaço de tempo, um avanço no processo da cadeia
produtiva fílmica nacional, e as diversas críticas apontaram as inúmeras qualidades vistas na
ótica de que a falta da perfeição técnica era transformada em gosto estético. Os significados
extraídos da observação analítica de Mandacaru Vermelho levam a tratá-lo como um trabalho
que espelha a invenção cinematográfica terceiro-mundista. Retrato romântico do nordeste
brasileiro, traçado através da saga da cultura popular nordestina; é a adequação do gênero
western em um drama romanesco que se distanciou substancialmente dos dois primeiros
projetos urbanos feitos por Nelson.
Segundo o crítico Orlando Senna, “parte da crítica baiana revelou-se surpresa pelo
fato de Mandacaru Vermelho ter se desligado da corrente de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte
para juntar-se a outra que surgiu paralela à sua com o advento de Lima Barreto ao realizar o
clássico O cangaceiro
300
.
Nelson Pereira dos Santos disse que ao realizar Mandacaru Vermelho “não mudou a
sua preocupação de usar o cinema como veículos de polêmica social”
301
e “não mudou a
solidariedade com os explorados”
302
. Nelson fez Mandacaru Vermelho como ele mesmo
afirma com a “precariedade técnica absoluta, tudo feito às pressas, em circunstâncias
desagradáveis”
303
. Considerava o filme como um teste, como uma experiência, uma prova
profissional muito severa.
eu tinha que fazer um filme, era um problema de sobrevivência.
MANDACARU é mais uma afirmação de ordem profissional. Ao lado disso,
tentei atingir uma linguagem popular. [...] Nos outros filmes me preocupava
com o QUE tinha a dizer em primeiro lugar, para depois pensar COMO.
Nesse eu pensei as duas coisas ao mesmo tempo. [...] Queríamos enfrentar a
realidade brasileira com nossos próprios olhos, com nossa maneira de ver o
mundo, como se isso fosse original. Mas daí até fazer cinema existe uma
grande distância [...] Queremos filmes comunicáveis. Todo cineasta do
mundo deseja isto e mais outra coisa: originalidade no modo de o
mundo
304
.
299
Ver Eduardo VALENTE. Por um cinema ocasionalmente impessoal Mandacaru Vermelho e Cinema de
Lagrimas. Revista Contracampo, n. 29. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br>.
300
Ver Orlando SENNA. “Nelson Pereira dos Santos fala ao DN”, Diário de Notícias, Salvador, 24 e25 de
setembro de 1961, p.2, 3º.Caderno.
301
Idem, idem.
302
Idem, idem.
303
Idem, idem.
304
Idem, idem.
Uma revisão crítica em Mandacaru Vermelho permite que se faça uma análise por
diversos ângulos e pontos de vista. É possível observá-lo conforme o pensamento do seu
autor, entendendo como um filme popular com evidente propósito de atingir o público;
enxergá-lo como parte do processo inventivo do cinema brasileiro e latino-americano;
embrenha-se na sua lenda romanesca nordestina de inspiração shakespeariana traduzida em
teatro popular por meio da representação simbólica de repentistas e cordelistas; ancorar-se no
filme e na sua principal influência narrativa: o western, incorporado e transformado como
gênero endógeno.
Outro caminho analítico a ser percorrido é se deter no filme Mandacaru Vermelho
com atenção e minúcia através do viés da sua construção cinematográfica que se caracteriza
por meio da inovação, da originalidade e das possibilidades de renovação estética implantada
contra os padrões vigentes da cadeia narrativa dos filmes brasileiro.
Mandacaru Vermelho açambarca um dos ciclos fundamentais da moderna história do
nordeste brasileiro: o cangaço. É prenúncio do ciclo de cinema baiano que antecede ao cinema
novo e moderno brasileiro, pela simples razão do seu autor, Nelson Pereira dos Santos,
incorporar o papel de representante da expressão máxima da intelectualidade cinemática
nacional, e de ter estabelecido um novo padrão para a feitura dos filmes brasileiros, que
consistia em transformar a imperfeição na perfeição, com a máxima assertiva de que uma
nação subdesenvolvida necessariamente não teria de ter uma arte subdesenvolvida, uma vez
que a vanguarda no Terceiro Mundo, certamente não era a mesma do mundo desenvolvido.
Na abertura de Mandacaru Vermelho o espectador se depara com letreiros um
projeto gráfico desenhado por Lygia Pape – onde se lê:
muitos anos atrás, a proprietária da fazenda Pedra Furada preparou uma
emboscada para liquidar os homens que não se sujeitavam ao seu domínio.
Correu tanto sangue que ali nasceu um mandacaru vermelho. Conta a lenda
que ninguém mais passou pela pedreira, por medo às almas penadas. Até que
um dia...
A trama do filme pode ser reduzida a uma história de amor, uma encenação teatral
dos amores impossíveis, um Romeu e Julieta transfigurado em personagens populares do
nordeste brasileiro. Uma jovem mulher criada por sua tia é prometida para um homem da
categoria social dos latifundiários, mas se apaixona por um vaqueiro e com ele decide fugir,
depois de descobrir que a sua tutora havia matado os seus pais. O jovem casal tem a ajuda do
irmão do vaqueiro que procura levá-los a um lugarejo para os fugitivos se casarem, mas o
plano é descoberto pela tia-vilã que persegue os jovens amantes, estes conseguem escapar e
acabam chegando ao mítico lugar conhecido como Mandacaru Vermelho local aonde
aconteceu a morte dos pais da jovem virgem. eles se deparam com religioso solitário que
decide realizar o casamento, a cerimônia é interrompida e tem início o grande conflito; o casal
sobrevive ao tiroteio e continua a fuga até chegar a uma pequena cidade onde um padre
realiza uma cerimônia de casamento coletivo.
Ao analisar Mandacaru Vermelho Glauber propôs um esquema para se interpretar o
argumento do filme:
um vaqueiro ama a moça que é filha de um latifundiário, o desnível social é
o impedimento para concretização do amor. Moral do sertão: a honra da
moça tem que ser lavada com sangue. Mito: na pedreira havia um
mandacaru, vermelho de tanto sangue que foi derramado. Moral divina: a
punição dos pecadores, o mal tem que ser extinto da face seca da terra.
Moral do povo: quem não sossego acaba lá, no pé do mandacaru
305
.
Mandacaru Vermelho visto de um plano geral é o resultado de uma aglomeração de
apropriações, assimilações e adaptações estéticas, a começar pelo gênero western, em muito
da sua medida épico-dramática, uma das características do gênero norte-americano. Essa
dramaticidade é muita bem exercida pela paisagem, por exemplo, onde a aridez da terra
sertaneja é ressaltada, se apresentado como um cenário de espessura dramática expressiva e
dentro dele vai se desenrolar o drama lenda-épica das personagens, que se movem numa
estrutura de ópera popular, estreitando as suas encenações suntuosas e cheias de conflitos, os
personagens cumprem os seus destinos de equilíbrio da história, com o Bem aniquilando o
Mal que aparece de forma rígida, incrustado na geografia-física de um mundo que se pretende
tornar real através da construção simbólica do yamandaka’ru.
Mandacaru Vermelho capta com densidade a luz natural do sertão brasileiro, não usa
de artifícios comuns a iluminação do cinema de transparência existe no máximo o uso de
rebatedores convencionais –, as suas composições e tonalidades acentuam por momentos o
clima documental, por outro o realismo barroco das suas cenas, que é ponto culminante do
filme. Há uma beleza indescritível nas tonalidades claras e escuras, sejam as vistas em
grandes planos ou em planos aproximados, e a câmera se desloca com uma desenvoltura
semelhante ao olhar humano, às vezes fixa, às vezes caminhando em panorâmicas, carrinhos,
e é especialmente conduzida na mão.
305
Ver Glauber ROCHA. Mandacaru Vemelho. Op. Cit.
Por isso, a fotografia
306
do filme é uma composição plástica que age como um
reforço a mise-en-scène de tempo e espaço. Entendidos, aqui, como parte do jogo dramático
atmosférico que marca a ruptura entre a mobilidade e a imobilidade das personagens nos seus
movimentos geométricos. Por exemplo, o filme usa o tradicional campo e contracampo, do
cinema clássico, opta pela ousadia da câmera que caminha e entrelaça as personagens dentro
da narrativa convencional, mas se afasta desse convencionalismo por uma simples razão a
construção parece tosca pelo simples fato de que o aparato tecnológico utilizado faz com que
o olhar do espectador mantenha a distância visual de observador do espetáculo.
A partitura sinfônica é usada com o propósito de colocar harmonicamente os
elementos fílmicos em destaque, funciona com vida própria, que em determinados
momentos da ação dramática, ela precede à imagem e ao seu dinamismo, e na construção do
drama é conduzida, rigorosamente, numa cadência visual e auditiva de extrema coerência.
Por sua vez, os diálogos funcionam como uma síntese que reforça a ação, não só pela
natureza gramatical, mas, sobretudo, pela relação emocional proporcionada às personagens, e
mais, ainda, por funcionar no sentido de ajustar a condição realista e não-realista contida no
filme. Enfim, a estrutura rítmica e arrítmica do filme põe todos seus movimentos em
constante choque, seja jogando a imobilidade contra o movimento geométrico, ou vice-versa,
reinando um “caos” controlado e descontrolado do debate imagético.
Mandacaru Vermelho é um filme que quebrou, definitivamente, a forma do fazer do
cinema brasileiro, pois tornou a imperfeição estética em perfeição. Isso porque o seu autor,
Nelson Pereira dos Santos, conseguiu atingir a correspondência entre a teoria e a prática, e fez
de seu trabalho uma fusão do pensamento proposto de sua vida e o resultado almejado por um
artista com o propósito de chegar à arte em sua plenitude.
306
O filme foi realizado em preto e branco.
de
dede
de
Nacional Popular
Nacional Popular Nacional Popular
Nacional Popular
Vamos por o Cinema Novo na mesa para ver qual foi o seu resultado
principal. O que a gente pode ver hoje é que esse resultado principal foi a
afirmação cultural do cinema brasileiro.
Nelson Pereira dos Santos
307
estavam porém agindo os jovens desconhecidos que iriam provocar uma
reviravolta no cinema brasileiro, sintonizando-o com o tempo nacional e
conferindo-lhe, pela primeira vez, um papel pioneiro no quadro da nossa
cultura
Paulo Emílio Salles Gomes
308
Não aconteceu ao acaso: está ligado não às próprias tentativas do cinema
como também a todo esse paralelismo da cultura, os movimentos de cultura
popular, tudo isso[...]. Para mim, se tudo isso não houvesse acontecido no
Brasil, não haveria esse sentido grupal de cinema, de pensamento conjunto,
pois foi justamente nessa época que o Brasil passou a pensar em termos
mais definidos: os problemas do nacionalismo foram encarados quase numa
tentativa de sistematização, os problemas da cultura brasileira, de cultura
popular, e os problemas da arte em geral.
Glauber Rocha
309
Então existe uma opção. Saber um pouco mais a respeito do nosso ser
cultural, se ligar mais a ele, praticar uma observação mais aberta, menos
facciosa. Creio que isso também é realizar o projeto de cinema brasileiro, ter
para o cinema um público permanente que é nosso povo.
307
Revista Civilização Brasileira, n° 1, março de 1965, p. 189.
308
Paulo Emílio Salles GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980,
p. 34.
309
Revista Civilização Brasileira, Op. Cit., p.194.
Nelson Pereira dos Santos
310
O cinema moderno brasileiro é coetâneo a um período de mudanças significativas
nas relações de poder e no estado brasileiro. Esse poder passava a apresentar mais elementos
na sua composição, ao mesmo tempo em que aumentava a sua concentração, em um quadro
em que a economia definia-se pela internacionalização, mantendo, ainda, sob alguns aspectos
uma perspectiva nacionalista, o que lhe conferia certa fisionomia populista. Esse traço
acompanhava a idéia de afirmação de um caráter próprio da cultura brasileira desde o retorno
de Getúlio Vargas ao poder em 1950, ocasião em que as condições para que a sociedade
brasileira assumisse as questões do desenvolvimento nacional foram fortalecidas.
Marilena Chauí destaca as linhas gerais do período:
Parte dos anos 50 a 60 são considerados pelos estudiosos anos do
nacionalismo desenvolvimentista e populista. A tônica é dada por projetos
econômicos e sociais de desenvolvimento capitalista, o combate ao
subdesenvolvimento sendo deflagrado por bandeiras de mobilização
nacionalista, sob os auspícios do Estado, ou de sua tomada por
representantes dos “verdadeiros interesses populares e nacionais
311
O nacionalismo e a internacionalização, movimentos contraditórios, que
expressavam a tensão nas forças da sociedade brasileira, tiveram a sua convivência
assegurada pelo pacto populista que garantia, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão,
valorização positiva das posições nacionalistas e a legitimação da internacionalização da
economia, na medida em que esta possibilitou maior acesso de massas urbanas ao mercado de
trabalho e ao consumo.
Apesar das indagações em torno da “autonomia nacional” se formularem antes,
naquele período, o problema apareceu como uma estratégia vinculada ao populismo, criando-
se oportunidade para que certas posições fossem assumidas na área cultural.
Até os anos de 1950, o pensamento cinematográfico não se destaca na reflexão geral
sobre a cultura brasileira. Esta situação ira se modificar a partir dos anos 1950-1960,
quando o cinema assume a posição de vanguarda
312
e entra em sintonia com as outras áreas da
cultura.
310
Entrevista concedida a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião em 14/02/75.
311
Marilena Chauí. Seminários. Coleção: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense,
1983, p. 66.
312
Caetano Veloso, um dos principais articuladores do Tropicalismo, movimento que surgiu na música brasileira
na segunda metade da década dos 1960 propondo uma nova linguagem para a canção conjugando a tradição da
música popular brasileira aos elementos oferecidos pela modernização, em diversas oportunidades declarou que
No início dos anos 1950, as questões relativas ao desenvolvimento do país refletiam-
se com intensidade, na discussão em torno do cinema brasileiro, provocando uma forte
repercussão no que era projetado e discutido neste ambiente. Nos primeiros Congressos
Nacionais do Cinema Brasileiro realizados em 1951, 1952 e 1953 (em São Paulo e no Rio de
Janeiro) defendeu-se, com entusiasmo, o desenvolvimento industrial apoiado no mercado
interno. Sem nenhuma possibilidade de erro, a defesa de um mercado dentro de seu território
e do seu complexo cultural era um dos dados mais importantes para a cinematografia do
país.
313
. Nelson Pereira dos Santos apresentava como alternativa para o domínio do mercado
pela produção estrangeira, uma tese intitulada O problema do conteúdo no cinema brasileiro
em que defende que o público, quando vai ao cinema, vai à busca de assuntos, dando a
largada rumo ao uso da temática brasileira para viabilizar a conquista do mercado
314
, o que
vai experimentar na prática ao realizar Rio, 40 Graus.
Nelson Pereira dos Santos ampliará a questão do uso da temática para além do
mercado, apresentando-a como decorrência do processo cultural em decantação no país que
procurava a sua identidade e aponta para um dado novo no campo cultural no período: a
afirmação da cultura, que assume um papel transformador na sociedade:
Na época do Cinema Novo havia, realmente, uma procura da identidade do
homem brasileiro por aqueles que fizeram a descolonização da cultura
brasileira. Esse processo de descolonização da cultura se baseou na cultura
do homem brasileiro. [...] uns dando mais ênfase à questão racial, outros à
questão cultural e outros à questão econômica na procura de sabermos quem
é o homem brasileiro buscar o homem brasileiro na sua simplicidade –,
seja ele o homem do campo- o camponês –, o homem da cidade – o favelado
–, a condição feminina, essa foi a busca empreendida na nossa identidade
pelo cinema.
o movimento musical foi provocado pelas imagens plasmadas pelo Cinema Novo: “Se o tropicalismo se deveu
em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o
impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7”.
Caetano Veloso. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 99.
313
A defesa do mercado nacional ocupado em 90% do seu tempo de projeção pelo cinema estrangeiro era feita
por Alex Viany, então principal teórico da descolonização cultural do cinema brasileiro e por Nelson Pereira dos
Santos.
314
Tese apresentada no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, em São Paulo, em 15 de março de 1952.
Nesta tese sustenta que o conteúdo é fator preponderante para a aceitação do filme pelo público e afirma que o
povo brasileiro tem ânsia de ver na tela assuntos ligados ao país. Assim, conteúdo nacional é fator decisivo para
a conquista do mercado.
A construção de um pensamento nacionalista brasileiro, na época, era fortemente
alicerçada no que se discutia no ISEB
315
. As teses ali desenvolvidas refletiam o mais
avançado pensamento produzido em termos sociais no Brasil e formavam uma espécie de
consciência nacional com bases no tripé: desenvolvimentismo, nacionalismo e populismo.
A característica orientadora do período entre os anos de 1955 e os de 1960 era a de
manter o que se tinha e ampliar os desejos de industrialização do cinema brasileiro de forma
autônoma, seguindo o impulso do desenvolvimento do sistema capitalista no Brasil. Neste
período atravessamos os anos JK
316
, o governo relâmpago de Jânio Quadros e o golpeado
governo de João Goulart. A atualização dos rumos gestados nos anos precedentes acontecia
mediante as ambigüidades ideológicas que esse período traduziu.
As idéias nacionalistas eram transportadas para o cinema pelo viés proposto por esta
conjuntura política, que promovia o desenvolvimento nacional através da sua associação ao
capital internacional. A aglutinação ideológica em torno das formulações nacionalistas não
encontrou correspondência na realidade da estrutura econômica do país
317
. Nesse quadro,
navegava uma indústria cinematográfica quase inexistente, totalmente desamparada,
movimentando-se entre o desinteresse do capital internacional, já detentor do mercado, e a
expectativa no interesse do estado em implementar mais o setor cinematográfico em
decorrência e reforçando o desenvolvimento nacional. Na tentativa de trazer nuances
diferenciadoras às questões que se abrigaram sob a mesma fachada no processo de
industrialização, José Mário Ortiz Ramos vai afirmar:
315
ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1956, para promover estudos sobre a realidade
brasileira. Foi uma frente ampla da intelligentzia brasileira na década de 50, envolvendo intelectuais
independentes das mais variadas linhas de pensamento, também envolveu intelectuais ligados à esquerda.
316
Em 1955, Juscelino Kubitschek de Oliveira vence as eleições presidenciais pela coligação do Partido Social
Democrático (PSD) com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O gaúcho João Goulart é eleito vice-presidente
pela chapa de Kubitschek. Setores militares e políticos da oposição, especialmente da União Democrática
Nacional (UDN ), iniciam um movimento a favor de um golpe militar contra a posse de Kubitschek e de João
Goulart. Estes representariam a continuidade do populismo e do nacionalismo do presidente Getúlio Vargas,
morto em 1954. Mas em novembro de 55, o ex-ministro da guerra, General Teixeira Lott, põe as tropas nas ruas
e garante a posse do presidente eleito. Em janeiro de 56, Kubitschek assume a presidência. O
desenvolvimentismo é a principal política do governo Kubitschek, cujo slogan é "50 anos em 5". Industrializar
aceleradamente o país, fazer da indústria o centro das atividades nacionais e superar definitivamente a
dependência da economia do café são algumas das premissas de Kubitschek. Em 1960 Jânio Quadros é eleito
presidente pelo Partido Democrata Cristão, apoiado pela UDN e João Goulart é eleito novamente Vice-
Presidente. Naquela época, as votações para presidente e vice eram separadas. Jânio Quadros renuncia à
presidência em 25 de agosto de 1961. Os ministros militares tentam impedir a posse de João Goulart, que estava
em viagem fora do país e o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzielli é empossado presidente.
Manifestações populares contra o golpe se formam em todo o país pressionando o congresso que em, 2 de
setembro, aprova uma emenda constitucional que instaura o parlamentarismo como regime de governo. João
Goulart é empossado presidente em 7 de setembro de 1961 e deposto por golpe militar em 31 de março de 1964.
317
Octavio Ianni em Estudos e planejamento no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979, analisará esse momento histórico do desenvolvimento nacional destacando a entrada do capital
internacional no país.
Temos desde o período 55-60 duas correntes se chocando: uma mais
“nacionalista” se articulando de forma tática com o desenvolvimentismo, e
outra mais pragmaticamente “industrialista”, colada ao ideário do governo
JK, oscilando cuidadosamente entre a ferrenha busca de um cinema nacional
e o cuidado em não hostilizar “os nossos fornecedores”.
Estes dois pólos, o “nacionalista” e o “industrialista-universalista”
(“universalista” ou “cosmopolita”, no sentido de absorver, sem críticas,
formas de produção e moldes artísticos estrangeiros), vão assumindo
contornos mais nítidos na virada da década [...], sendo essencial a sua
caracterização não somente para a compreensão de emergência do Cinema
Novo, como das ações dos órgãos governamentais que surgirão
318
.
Com a mudança que ocorrerá posteriormente no processo político, e com a
significação cultural do cinema Novo, a postura nacionalista procurará se descolar do
processo que a identificava com a visão desenvolvimentista. Inserido numa atmosfera
específica de um produto industrial, o cineasta brasileiro fará a sua opção por um Cinema
Novo em meio às expectativas e tensões desse contexto desenvolvimentista que então se
definia. Como foi visto no verbete dedicado ao Cinema Novo
319
, em sua intervenção esse
movimento tinha como premissa ser uma expressão da cultura brasileira, suas preocupações
temáticas, seu envolvimento com o avanço da linguagem serão mediados por uma questão
presente na produção e crítica de cinema – a questão popular nacional.
Nos anos 1960 a idéia de uma cultura nacional foi associada à necessidade de
observá-la a partir do ponto de vista das massas e de uma ótica popular, foi um tempo em que
a declaração expressa de sentimentos pelo país alimentou as artes. Havia uma preocupação
com a identidade nacional e o cinema promoveu uma pesquisa da nacionalidade, no âmbito da
sua linguagem, ao indagar sobre ela, partindo, em seguida, para a complexa tarefa de
conquistar o mercado nacional com os seus produtos.
O entendimento do que continha a expressão “cultura popular” - que, de certa forma,
abrigava as idéias de nacional e popular no cinema brasileiro dos anos 60 - era definido dentro
das linhas do “movimento de cultura popular”, sobretudo nos textos em que discutiam as
propostas e nas ações efetivadas pelo Centro Popular de Cultura.
320
.
318
José Mário Ortiz RAMOS. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983, p.23.
319
Também é feita a ressalva de que resguardadas as distinções entre propostas, pensamentos, estéticas que
conferem a heterogeneidade do movimento eleger a questão do nacional popular como geral deve-se ao fato de
que sua discussão é cara ao Cinema Novo como grupo em função da estratégia que adotou frente à questão como
base de sua constituição.
320
O Centro Popular de Cultura (CPC) era um órgão ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE) que
agregava jovens interessados por arte e cultura, investindo na sua divulgação. Representava a ntese da
No campo concreto experimental da cultura popular, que era desenvolvida no
CPC
321
, o cinema não chegou a ter a importância que tiveram outras artes, como o teatro, a
música ou a literatura, porém os principais integrantes do Cinema Novo reconheceram a sua
importância e influência nas suas formações.
No que nos diz respeito às idéias do nacional e do popular desenvolvidas pelo
Cinema Novo, constata-se que, ao surgir em paralelo aos movimentos de cultura popular, ele
irá sofrer influências dessas idéias, que também eram aplicadas a outras áreas da cultura.
Muitos dos integrantes do movimento Cinema Novo entenderam que essa relação foi vital
para a reflexão sobre “um cinema nacional e popular”. Glauber Rocha, em uma conversa com
Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, dirá:
Realmente, foi sòmente o teatro de nosso século (de 1920 para cá) e foi a
chanchada que começaram a fazer isso, e o Cinema Novo surgiu com sua
fôrça cultural no momento exato em que a chamada cultura popular se definiu
melhor. Embora tenhamos alguns filmes válidos em nosso passado – inclusive
dois filmes cariocas que acho importantes, Agulha no Palheiro e Rio, 40
Graus, um depois do outro: os primeiros filmes a procurar uma visão séria, em
têrmos culturalmente dramáticos, da realidade cotidiana -, antes de surgir o
Cinema Novo surgiu o movimento de renovação do teatro (com o Teatro de
Arena), dentro daquela consciência de nacionalismo que começou a tomar
forma nos últimos anos de Getúlio Vargas e que minha geração conheceu nos
turbulentos governos subseqüentes de Juscelino, Jânio e Jango.
322
Além dos filmes voltados para a temática popular da cada de 1950, citados por
Glauber, verificamos, através do seu depoimento, a presença, já nos anos 1960, dessas
mesmas idéias em outras áreas da cultura, principalmente no movimento teatral. Na
transposição dessas experiências para o cinema podemos localizar uma das filiações do
Cinema Novo. Na mesma entrevista prossegue Glauber Rocha:
Não aconteceu ao acaso: está ligado às próprias tentativas do cinema como
também a todo esse paralelismo da cultura, os movimentos de cultura
popular, tudo isso. O Cinema Nôvo surgiu disso e sofrendo influências disso
e procurando contribuir para isso [...] foi justamente nessa época que o Brasil
radicalização intelectual da época reunindo os pensamentos inquietos. A intenção do CPC era proporcionar
instrumentos para que o espectador passasse a ser sujeito da história.
321
O CPC produziu em 1961/62 o longa-metragem Cinco vezes favela, constituído por cinco filmes de curta
metragem: Um favelado de Marcos Farias, Escola de samba alegria de viver de Carlos Diegues, da cachorra
de Miguel Borges, Couro de Gato de Joaquim Pedro de Andrade e Pedreira de o Diogo de Leon Hirszman. O
CPC também produziu um longa metragem Cabra marcado para morrer que focalizava as ligas camponeses do
Nordeste brasileiro, projeto abortado pelo golpe de 64, retomado em novas bases pelo seu diretor Eduardo
Coutinho em 1981 e concluído em 1984, transformando-se em referência para o filme documental
contemporâneo.
322
Revista Civilização Brasileira, número 1, março, 1965, p. 193.
passou a pensar também em termos mais definidos: os problemas do
nacionalismo foram encarados quase numa tentativa de sistematização, os
problemas da cultura brasileira, de cultura popular, e os problemas da arte
em geral.
323
Esse “paralelismo da cultura” mencionado por Glauber não significava equivalência
de posições entre as escolhas feitas pelo Cinema Novo e outros movimentos culturais. Tanto
isso é certo que não tardaram a ocorrer desentendimentos de ordens estética e ideológica
afastando o Cinema Novo das idéias defendidas pelos “movimentos de cultura popular”. Mas,
no horizonte do que se pleiteia definir um cinema nacional é conveniente a reflexão genérica
o que levará, em conseqüência, a uma reflexão especificamente cinematográfica.
Sebastião Uchoa Leite, na tentativa de ordenar os diferentes conceitos que o termo
cultura popular agrega dirá:
Até a data fixada [...] como sendo a do início, a fase de arranque do
desenvolvimento brasileiro a ano de 1955 [...] o que se chamava de cultura
popular era a cultura vinda do povo [...] Com os governos posteriores de
Jânio Quadros e João Goulart, acelerou-se ainda mais o processo político, e a
necessidade de participação dos intelectuais nesse processo se tornou uma
das questões mais enfatizadas. A partir deste período o termo é que o termo
cultura popular, com significações muito diversas, começou a ter um trânsito
intensificado [...] Foi posta em ação a tese de que a cultura popular não era
apenas a cultura que vinha do povo, mas sim a que se fazia pelo povo. A
cultura popular é então conceituada como um instrumento de educação, que
visa dar às classes economicamente (e ipso facto culturalmente)
desfavorecidas uma consciência social e política
324
.
Nos textos produzidos por Nelson no início dos anos 1950 em que discute o cinema
independente a idéia de cinema popular é esboçada como indicativo da inquietação de dirigir-
se ao povo e não apenas expressar o que vem dele. Tal preocupação se manifesta no exercício
de Rio, 40 Graus, talvez o primeiro filme que se encaixe na definição de Sebastião Uchoa
Leite como cinema popular. Destaca-se, no entanto, que não se encontra na proposta do filme
aspiração didática, mas incondicionalmente trata-se de um filme feito “a favor do povo”,
como o próprio Nelson o define, filiado a uma proposta cinematográfica engajada política e
culturalmente.
Um cinema popular que venha do povo e o cinema popular dos anos 1950 e 1960,
que tem como proposta dirigir-se ao povo, com ou sem intenções didáticas, é de perceptível
323
Apud, p. 194.
324
Revista Civilização Brasileira, n° 4, set, 1965.
distinção. Maria Rita Galvão e Jean Claude Bernardet, a esse respeito, farão o seguinte
comentário:
Não se trata, é claro, de simples transposição: é preciso reelaborar
criticamente os dados brutos da cultura popular que se incorporam aos
filmes
325
.
É exatamente nesta reelaboração que os filmes tanto podem contribuir para a
conscientização do povo como podem se afastar do povo tornando-se elitizados, e esta seria
uma das principais críticas feitas ao Cinema Novo: a de, na tentativa de dirigir-se ao povo,
operar uma transposição que não facilita o seu acesso e embaçar a sua mensagem.
Seguindo a linha argumentativa de Sebastião Uchoa Leite, infere-se que a idéia de
um cinema popular, no sentido que a expressão adquire quando associada aos significados de
“cultura popular” como algo que expressasse a “consciência da defasagem cultural entre as
diversas classes sociais”, surgiu no momento em que a preocupação desse cinema se voltou
para a realidade nacional ocorrendo a identificação do artista com o povo.
O cinema brasileiro partiu para a tentativa de conjugar esses elementos e isso foi
um dos seus aspectos marcantes – utilizando a cultura popular como ponte para atingir o povo
e como matéria-prima popular, que vinha do povo. Com isto, descortinou a identidade, que
passava a ser meta a atingir e ao mesmo tempo meio para encontrar os rumos de afirmação da
cultura brasileira inserido num outro quadro de pensamento, que se abriria para a expressão da
sua diversidade.
Jean-Claude Bernardet em Brasil em tempo de cinema (1967) defende a tese de que
há uma relação estrutural entre cinema e sociedade e mais precisamente o se quadro de análise
se estabelece a partir da interpretação dos filmes feitos entre 1958 e 1966 que se sob a
égide da vanguarda cultural da classe média. Nos seus argumentos Jean-Claude reitera o que
em 1973, Paulo Emílio Salles Gomes irá sublinhar em Cinema: trajetória no
subdesenvolvimento: a frágil situação econômica do cinema brasileiro como um estado
permanente, que resulta da inabalável ocupação da produção estrangeira no mercado
cinematográfico nacional através dos mecanismos viciados de distribuição e exibição.
325
Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet. Cinema repercussões em caixa de eco ideológica (as idéias de
“nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). Coleção: O nacional e o popular na cultura
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.140.
Na conclusão do seu livro, Jean-Claude faz a sua principal defesa: o cinema
brasileiro deve ser popular ao evidenciar seus temas não para o consumo da elite cultural, mas
do grande público.
É com a perspectiva de se dirigir para o grande público que Nelson continua
insistindo na construção de um cinema de visão popular e original. Em entrevista com o título
Nasce um novo Cinema Novo, concedida a Jean-Claude Bernardet no Jornal Opinião em
14/02/75, fala de Amuleto de Ogum avaliando o momento anterior vivido pelo cinema
brasileiro e lançando sua plataforma para além desse modelo:
O principal é que eu queria fazer um filme que fosse popular[...] Fazíamos
filmes numa posição autoral, sem nos preocuparmos com o público. É claro
que entre o autor e o público há vários intermediários, a distribuição, a
posição do cinema estrangeiro no cinema brasileiro. Mas acredito que o
projeto num filme popular tem que levar em consideração todas as questões.
É um projeto global, não apenas o projeto de um filme. Quase o projeto
piloto de uma posição cinematográfica.
Nelson, ao conceituar o projeto de Amuleto de Ogum como global renova as
discussões em torno do cinema brasileiro propondo um novo enfrentamento para a batalha da
afirmação do cinema brasileiro e a conquista do seu público: a luta contra o filme estrangeiro
não pode ser colocada apenas em termos de ocupação de mercado. A luta pela conquista do
mercado, a luta cultural e política são desdobramentos de uma grande frente a ser
empreendida simultaneamente, através de uma proposta em que tema e forma originais
mobilizem o público. Cinema popular que tem seu público pensado enquanto povo, cinema
com ponto de partida estabelecido a partir de uma determinada opção que impele o artista que
reconhece a importância da cultura desenvolvida pelo povo a estruturar o seu discurso através
de elementos fornecidos pela maioria da população. Em paralelo a esse ideário, Nelson não
despreza o contexto institucional e político do momento que lhe dá sustentação e esclarece:
O Amuleto vai junto com a EMBRAFILME. Foi um pacto que foi transado
no cinema via Reis Velloso, Ney Braga, o professor Diegues, pai do Cacá
etc. Foi uma coisa assim, não é um pacto formal, escrito e tal, mas uma
retomada do diálogo por parte do governo militar ou das representantes
desse governo militar com a área intelectual. Começou no primeiro ano de
Geisel. Logo depois da posse do Geisel. Veio a nova EMBRAFILME[...].
Era uma defesa do cinema brasileiro, a obrigatoriedade de exibição foi
aumentando, uma empresa forte para participar da produção, distribuição e
até exibição. E O Amuleto foi um dos primeiros filmes da distribuidora
EMBRAFILME. E a proposta era essa fazer um cinema ligado à nossa
cultura, com toda a experiência do Cinema Novo, e também um cinema que
pudesse ser popular. Minha expressão era: o cinema popular, que vai como
conseqüência daquele mercado, vai ser comercial. Não ser comercial, eu
queria mostrar o contrário. Aliás, alguém escreveu um manifesto
326
, não fui
eu, acho que foi o Marco Aurélio Marcondes, ele era da Federação de
Cineclubes. [...] Eu nunca fiz manifesto na minha vida e esse não é de minha
autoria não [...]. Eu fiz um filme e expliquei por quê
327
.
No seu projeto global Nelson insistia ser impossível sustentar o esquema vigente de
distribuição e exibição, onde o filme brasileiro ocupa um papel subalterno, e convoca o
Estado, entendendo que a participação estatal é fundamental para alterar esse quadro, a
assumir uma nova posição em todo o processo. E como deve ser a atuação do Estado:
Através de uma alteração verdadeira e concreta na comercialização do filme
brasileiro, abrir canais para a exibição criando novas maneiras do filme
chegar aos espectadores
328
.
O que Nelson propunha dizia respeito a se criar condições para a concentração da
economia cinematográfica mediada pela EMBRAFILME, que assumiria os papéis de exibição
e distribuição. Por outro lado, aos produtores seria preservada a liberdade de produção. Em
resumo, a idéia do plano global daria conta do exercício de uma política cinematográfica que
contemplasse a economia e a criação descentralizada.
Ronald Monteiro compõe o conjunto de analistas que faz o balanço do cinema
brasileiro nos anos 1970 na edição de março/abril de 2001 da Revista Cinemais e define o
cinema de perspectiva popular:
Consiste numa operação de baixo para cima dentro da estrutura social em
que vivemos que exige a violentação de fórmulas criadas de cima para
baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema valores e
padrões populares que, afinal são os que melhor poderão definir a cultura
brasileira
329
.
O ponto de vista do professor, crítico e pesquisador do cinema brasileiro aponta para
caminhos seguidos pelo cinema de Nelson Pereira dos Santos em filmes que se seguiram
posteriormente à realização de Amuleto de Ogum, em que se destacam Tenda dos Milagres e
Estrada da Vida. Nestes filmes, Nelson retoma e atualiza as colocações que fez no I
326
Nelson Pereira dos SANTOS. Manifesto por um Cinema Popular. Federação dos Cineclubes do Rio de
Janeiro/Cineclube Macunaíma/Cineclube Glauber Rocha, Rio de Janeiro, 1975.
327
Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson
Pereira dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999, Centro Cultural Banco do Brasil, p.65-66.
328
Nelson Pereira dos SANTOS. Manifesto por um Cinema Popular. Op. Cit., p.6.
329
Revista Cinemais, nº 28, março/ abril de 2001, p.106.
Congresso Paulista do Cinema Brasileiro em 1951
330
, recuperando o espírito do cinema
independente em que os cineastas tinham como proposta que os filmes fossem além da mera
expressão dos seus pontos de vista, atuando com mais profundidade na mentalidade dos
espectadores. Com esse intuito, articula as características populares e a conquista de mercado,
povo e público tendem a coincidir, pois o público se na tela enquanto povo e dessa forma
propõe um relacionamento com a maioria da população através da observação da sua essência
e o projeto se constitui global, sem instituir uma fórmula de atração de público, inclusive
porque essa tendência, cinema de perspectiva popular, não existe em si, é um processo, e
como tal postula um investimento estético e político na aceitação da qualidade dos valores
extraídos da realidade sócio-cultural que aborda declarando expressamente o seu
compromisso que o leva a procurar uma equação entre a sua postura e o diálogo com o
mercado, pois fica claro que a conquista do mercado se dará com filmes em que o público e,
conseqüentemente, o povo esteja presente.
330
Essas colocações foram tratadas na primeira letra deste alfabeto, na discussão em torno da constituição do
cinema independente no Brasil.
de
dede
de
Obra
Obra Obra
Obra
Em Nelson Pereira dos Santos, podemos falar numa diversidade estilística
entre seus filmes, alguns dos quais iremos tratar, mas não é difícil encontrar
temas que unifiquem essa diversidade. Por um lado, Nelson Pereira dos
Santos é sempre fiel aos seus princípios, em toda a sua obra. Mas, por outro,
ele é um verdadeiro camaleão
Helena Salem
331
O JOVEM NELSON: OS PRIMEIROS FILMES
Há todo um caminho percorrido por Nelson Pereira dos Santos antes do seu primeiro
filme de ficção em longa-metragem, o antológico Rio, 40 Graus. A sua iniciação
cinematográfica se dá com a realização de Juventude
332
, documentário de 45’, em 16 mm,
sobre os jovens trabalhadores de São Paulo com roteiro de Nelson e direção dividida com
Mendel Charatz,
333
. Tratava-se de um filme uma tarefa partidária enviado para o Festival
da Juventude de Berlim, cuja cópia nunca mais voltou. Em seguida, realizaria outro
331
Apud SALEM.p. 224.
332
discordância entre Nelson e Mendel em relação ao ano de realização. Nelson afirma que o filme é de
1949, antes de sua viagem para a França e Mendel sustenta que é de 1950, ano em que comprou um copiador.
Ao que parece, o ano é mesmo 1950. Apud SALEM p. 61.
333
Mendel Charatz, parceiro de Nelson nas primeiras descobertas cinematográficas, estudante de engenharia,
aficionado por cinema, tinha uma distribuidora de filmes e um laboratório. É de Mendel o relato que rememora o
filme: Começava dizendo: Você sabe onde fica São Paulo? São Paulo fica no Trópico de Capricórnio. Então
aparecia um mapa-múndi, fixava o trópico, e uma luzinha ia conduzindo o espectador até chegar em praias
tropicais, água batendo na areia, enquanto o locutor prosseguia: Sobe a serra e aí, lá do alto, verás a cidade! Era a
história de um rapaz que mandava uma carta para um amigo alemão, dizendo que ele se solidarizava com o
festival, explicava onde ficava ao Paulo, descrevia a cidade, os seus arredores, e o interior do estado. E as cenas,
quando numa fábrica, mostravam um garotinho de 11 anos trabalhando numa máquina perigosa, que quebrava
dedo. Quando era num bonde estava apinhado de gente. E quando falava na vida do campo, aparecia o enterro de
uma criança. Tudo pro pior. No filme não tinha nada bom. Era uma desgraça, uma tristeza... [...] Gostei do filme,
aprendi a montar com ele – avalia Nelson. Apud SALEM, p.62.
documentário também como missão do partido, em fins de 1950, começo de 1951, dessa vez
para a Campanha da Paz, que não chegou nem a ser editado, resultou inacabado.
Seguindo na direção da profissionalização torna-se assistente de direção de Rodolfo
Nanni em O Saci (1951), durante as filmagens relaciona-se com o assistente de produção Alex
Viany. Em 1952, abandona São Paulo e parte para o Rio de Janeiro onde vai assumir a função
de Assistente de Direção em Agulha no Palheiro, de Alex Viany. Em 1953, após o
afastamento do diretor por motivos de doença, ascende da assistência à direção em Balança
mais não cai, chanchada de ingredientes neo-realista de Paulo Wanderley, baseada em um
programa de rádio com o mesmo nome. Acompanhando o “estado” da produção
cinematográfica brasileira o filme foi suspenso por problemas financeiros:
Então, eu continuei no Rio para fazer esse filme, mas acabou o dinheiro e a
produção foi paralisada. Eu não tinha onde morar. Na verdade, eu morava no
estúdio. Eu tive que ficar algum tempo dormindo no estúdio e os eletricistas,
os maquinistas moravam no morro do jacarezinho. O estúdio era ao do
morro. Era a maior favela do Rio de Janeiro aquela época.
334
Especula-se que essas experiências na assistência e o fato de ir morar em um
subúrbio da Central do Brasil no Rio de janeiro, na entrada de uma favela, levaram-no ao
amadurecimento para a realização de Rio, 40 Graus:
Eu comecei a ter contato, ia filar a bóia na casa do eletricista lá na favela. Eu
fiquei conhecendo a vida deles. Então eu pensei: isso aí é um filme
335
.
Feito com poucos recursos, o que de certa forma repercute no filme, afirma a força
do cinema como construção, que admite a eficácia da convenção do espetáculo inserido na
precariedade de produção. O seu vigor criativo e a presença de novos elementos de linguagem
se contrapõem permanentemente à escassez dos recursos de produção.
Crônica de uma cidade grande, Rio de Janeiro, a então capital do Brasil, Rio, 40
Graus, traz no seu título a declaração da escolha ampla feita pelo autor do seu argumento ao
iniciar os letreiros com: Nelson Pereira dos Santos apresenta A cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus, seguindo-se o resto dos créditos sobre cenas aéreas da
cidade, em estilo de cartão-postal, ao som dos acordes do samba A voz do morro, de Zé Kéti.
334
Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson
Pereira dos Santos. Op. Cit., p.16.
335
Apud entrevista Tunico Amâncio, Ibid., p.16.
Rio, 40 Graus tem uma trama simples, centrada na aventura de cinco garotos negros
que deixam o morro numa manhã de domingo para ganhar dinheiro vendendo amendoins na
cidade. As histórias desses garotos são entrecortadas por episódios envolvendo outros
personagens, de uma maneira sutil, mostrando a disparidade entre os que têm e os que não
têm. O espaço é fragmentado e procura dar conta de uma visão abrangente da cidade. Nessa
ambientação fracionada, o fio da narrativa é tecido pela trajetória dos garotos, conectando as
várias histórias e personagens que dão corpo ao filme. O tratamento do tempo consiste em
concentrar a ação, que ocorre em paralelo, no espaço de um dia. Rio, 40 Graus começa
descortinando um amanhecer e termina com a imagem do céu estrelado que rebate as luzes da
cidade. A praia, a feira e o parque ensolarados na manhã, o futebol à tarde e o samba à noite
localizam esse dia em um domingo em que os personagens se dividem entre os que passeiam
e os que trabalham. Porém, um momento em que as histórias se fundem em um estilo
especialmente dramático: pressionado por uma gangue de garotos que tenta roubá-lo, Jorge,
um dos garotos, corre atrás de um carro em movimento com a esperança de escapar de seus
perseguidores, resultando no seu atropelamento. As cenas da morte de Jorge são entrecortadas
por cenas dos rostos de torcedores no estádio do Maracanã, onde um nervoso jogador
substituto marca um gol. Essa seqüência em que a morte do rapaz é confrontada com as cenas
do estádio, a solidão da morte parece ter pouca ou nenhuma importância para a massa que se
agita e torce nas arquibancadas.
Em Rio, 40 Graus a opção de Nelson pela estrutura de tramas paralelas é um
exercício do domínio e experimentação das potencialidades da narrativa cinematográfica. A
descontinuidade, característica básica da arte moderna, marca a sua construção narrativa para
além do manejo das elipses já estabelecidas para a estruturação do tempo e do espaço
cinematográficos. O Teatro de Revista com a sua multiplicidade de quadros e cenas curtas,
condensando tempo e espaço, já oferecia um painel do Rio de Janeiro, ao qual a chanchada se
reportou. Nelson, em Rio, 40 Graus revisita essa formação e tira a cidade do palco italiano tão
caro à chanchada. Rasgando a cortina, implode a convenção e arrasta a ação para a rua.
Hilda Machado observa que a desenvoltura de Nelson em utilizar as convenções
narrativas escapa a algumas percepções apuradas como a de Jean-Claude Bernardet:
Ao requinte da narrativa nem Jean-Claude conseguiu atribuir sentido. O
fascínio da articulação entre os diversos fragmentos das histórias que
compõem o enredo de Rio 40º sempre o dominou: ‘em nenhum caso estas
ligações acrescentam informações às histórias que se desenvolvem
alternadamente, nem aos personagens, nem criam verdadeiramente relações
mais complexas entre as camadas sociais em que ambientam as histórias.
Poderiam ser todas suprimidas que o enredo não se alteraria, nem se alteraria
o corte vertical praticado na sociedade carioca’.
Lukácsiano na época, Jean-Claude concede: ‘talvez estas ligações sejam
antes um tributo pago à montagem clássica, ao espetáculo...’
336
Ao longo do filme é demonstrada eficiência em se estabelecer contrastes que
mostram a disparidade econômica entre vendedores de amendoim e as pessoas com quem
esses se relacionam, sempre enfocando a solidariedade entre os favelados como uma maneira
de garantir uma vida melhor na favela. Como muito dos filmes de inspiração neo-realista
feitos no período traz uma forte carga sentimental e até mesmo estabelece uma parábola
melodramática sobre o sistema de classes. Nelson assume, declaradamente, uma visão da
cidade que se distancia do previsível no contexto de criação de propaganda sobre o Rio de
Janeiro, colocando-se se em franca oposição ao revelar outro lado da cidade que foge do
senso comum.
Em Rio, Zona Norte segundo filme de uma trilogia inacabada sobre o Rio de
Janeiro que é iniciada com Rio, 40 Graus e terminaria com Rio, Zona Sul
337
o samba e o
morro são apresentados com intensidade dramática. A trilogia sofreria novo arranjo e seria
integralizada, posteriormente, com a realização de Amuleto de Ogum
338
.
A produção não é tão precária nem cooperativada como foi em Rio, 40 Graus.
Tratava-se de uma produção mais profissional. Nelson Pereira dos Santos trabalhava com
esquemas comerciais e atores profissionais, rodando também em estúdio.
Proposta nova como produção é também proposta nova como temática e linguagem.
A filiação ainda é neo-realista quanto à temática e ao sistema de produção, porém com
investimentos expressos na densidade psicológica na reconstrução realista do drama de um
sambista carioca. A negritude do personagem Espírito Santo da Luz, vivido pelo ator Grande
Otelo, também historicamente terá repercussão na história do cinema brasileiro, que rompe
com a tradição burguesa de lugar de negro é na cozinha, a qual a chanchada resistia a
abandonar. Rio, Zona Norte confere a Grande Otelo, depois de Moleque Tião (1943) de José
Carlos Burle, o papel de protagonista.
336
Hilda MACHADO. Rio 40 °, Rio Zona Norte. O jovem Nelson Pereira dos Santos. Dissertação de Mestrado
defendida na. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1987, p. 94-95. Jean-Claude
BERNARDET Notas sobre aves sem ninho. In: Trajetória crítica. São Paulo: Polis, 1978, p. 223.
337
Rio, Zona Norte fazia parte de uma trilogia sonhada por Nelson, espécie de continuação de Rio, 40 Graus e
que teria prosseguimento em Rio, Zona Sul, nunca filmado, mas que deixaria seus traços em El Justicero.
338
Nelson Pereira dos SANTOS. Três vezes Rio. Rio, 40 graus; Rio, Zona Norte; O Amuleto de Ogum. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.
Nelson Pereira dos Santos já tinha provocado um estranhamento com Rio, 40 Graus,
ao enquadrar os morros cariocas na sua câmara. Com Rio, Zona Norte faz um novo traçado do
que é esse “quilombo” urbano, as favelas cariocas nos anos 1950. Embora se mantendo fiel à
perspectiva de um cinema compromissado com o novo, Rio, Zona Norte segue um caminho
que o distingue de Rio, 40 Graus. Se este resulta em uma narrativa requintada perfeitamente
articulada entre os diversos fragmentos das histórias que compõem o enredo do filme,
seccionando a sociedade carioca, oferecendo uma amostragem dos seus segmentos e do
relacionamento entre eles, através do delineamento dos seus numerosos personagens, sem
aprofundá-los ao nível psicológico, Rio Zona Norte tem sua ação dramática concentrada no
sambista Espírito da Luz Soares, compositor do morro que tem a autoria de suas músicas
roubadas ou divididas em supostas parcerias para que sejam gravadas. O afunilamento num
personagem garante-lhe dimensão existencial. A livre inspiração para esse enredo é na vida de
Zé Kéti
339
, sambista carioca, que faz também um pequeno papel no filme:
O filme é o Rio de Janeiro, mas visto em um outro plano, de um outro
ângulo. É a história da relação da cultura popular com a cultura erudita, quer
dizer, o personagem que é vivido pelo Grande Otelo é na realidade o Zé
Kéti, com quem eu convivi durante o Rio, 40 Graus e conheci bem a vida
dele, a vida da escola de samba, a vida da estação de rádio, o roubo da
música
340
.
Rio, Zona Norte é um filme concebido dentro do espírito do Cinema Independente
que, no contexto de formação da imagem do Rio de Janeiro, Nelson assume uma posição que
foge ao lugar instituído, mostrando a luta pela sobrevivência em oposição à idéia de lazer. O
filme tem sua estrutura edificada a partir de dois pólos dicotômicos: o glamour da cultura de
massa emergente e a cultura de raiz excluída. Esse contraste é inserido em uma estrutura
circular. O filme começa como acaba, tendo como fio condutor, a linha dos subúrbios da
Central do Brasil. É contado em flashback e a ão transcorre em um único dia, que sintetiza
toda a vida de Espírito da Luz, que a repassa, inconsciente, ao esperar por socorro num
dormente de trilho, após ter caído do estribilho do trem. A ação do presente, o acidente que
deixa Espírito ferido nos trilhos de trem, tem pouca importância na trama do filme. Ela é
339
“A idéia do Rio, Zona Norte surgiu num fim de semana, num sábado à noite, quando nós fomos num
subúrbio do Rio de Janeiro batizar... quero dizer, o Nelson foi padrinho de um filho de Kety, foi uma
transação com o Kety. Então pegamos aquele trem da Central, e foi a partir daí que o Nelson começou a
pensar o Rio Zona Norte que é muito, realmente, a própria vida do Kety”. Depoimento de Guido ARAÚJO
Apud Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.265.
340
Depoimento de Nelson PEREIRA apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.22.
apenas um artifício para a imersão, através da lembrança do passado, na vida e sentimentos do
personagem, sua luta para gravar um samba e sobreviver da música.
David Neves sublinha que em Rio, Zona Norte Nelson Pereira dos Santos usando dos
recursos de todo um cinema que lhe precedeu confirma uma poética calcada em referências
tanto realista, quanto do espetáculo cinematográfico ilusionista em que disponibiliza o Brasil
e seu cinema para os brasileiros:
O compositor Espírito da Luz Soares é a “voz do povo” e sua vida, a nossa
vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento, quase cinema-
verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização da inteligência,
do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do real, da crueza,
do drama, da pobreza, da infelicidade
341
.
Em Rio, Zona Norte a cultura popular, através da música, liga todos os personagens
da Zona Norte do Rio. O filme discute a criação artística no mercado capitalista e a posição
do artista na sociedade e isso o faz um filme mais pessoal onde Nelson Pereira dos Santos
apresenta suas próprias crenças e a função que ele, seguindo a tendência do pensamento da
época, se reservava: contar/cantar a vida e a obra de um compositor do povo. O filme indica a
possibilidade de identificação entre o compositor popular e o erudito, mas resulta na
demonstração crítica e realista da impossibilidade dessa relação, pois seus mundos são
distintos e inconciliáveis.
Em ensaio em que se propõe analisar o sambista do morro como uma espécie de
personagem mítico da nacionalidade brasileira Ivana Bentes fará a seguinte observação sobre
Rio, Zona Norte:
O filme funciona como uma espécie de anti-chanchada, mas que dialoga
com os elementos da chanchada, com cenas musicais, ensaios de Escola de
Samba, o ambiente nascente das estrelas do rádio e dos auditórios, cenas da
cantora Ângela Maria no auge do sucesso cantando na Rádio Mayrink
Veiga. Mas, simultaneamente relaciona o samba com sua origem nos
morros, descrevendo o ambiente da Central do Brasil e dos subúrbios
cariocas. O ator Grande Otelo, no auge do sucesso das chanchadas, encarna
um personagem dramático. O filme vai combinar, assim, realismo,
melodrama e filme musical
342
.
A anti-chanchada mencionada por Ivana Bentes diz respeito ao reforço dado à trama
na sua composição dramática, o que nas chanchadas não ultrapassava a função de pretexto, e
341
Apud David E. NEVES, Op.; Cit, p.214.
342
Ivana BENTES. Retóricas do nacional e do popular: a redenção da miséria pela arte in Estudos de Cinema:
Socine II e III. Socine. São Paulo: Annablume, 2000, p.67.
no naturalismo com que os números musicais são tratados. Um bom exemplo para sustentar
essa posição encontra-se na seqüência em que Ângela Maria canta o samba Malvadeza
Durão, no balcão do cafezinho da rádio após Espírito da Luz conseguir um minuto dela para
mostrar seu samba. O número musical é diegeticamente justificado e a encenação é a mais
anti-espetacular possível. Dessa forma, o filme dialoga com a tradição da chanchada, mas não
se quer chanchada.
Rio, Zona Norte aponta para o delineamento de um estilo, a separação nue entre o
real e o ficcional que conduz a uma representação naturalista, porém extremamente
sofisticada, pois faz o balanço da vida do compositor apresentado pelo seu viés psicológico.
Espírito da Luz Soares, perde o filho, a casa, a autoria dos sambas, é abandonado pela mulher,
perde a vida no trilho do trem, mas seus sambas continuarão na memória coletiva dos
habitantes dos morros cariocas. Em uma cena magistral, no final do filme, Espírito da Luz
compõe um samba, enquanto o seu olhar atravessa os morros. Em frente ao morro da
Mangueira, no ápice do ato de criação, compõe o refrão “Samba meu que é do meu Brasil
também” e convoca a sonoridade de uma escola de samba existente apenas em potência que
se funde aos ruídos do trem, do morro e da cidade: radiosa sinfonia suburbana. Porém, o
público não foi sensível a esses apelos nem a esse tipo de construção fílmica e o filme
resultou em fracasso de bilheteria, o que deixou Nelson Pereira dos Santos no vermelho, com
um oneroso débito.
Após a realização desse filme, ele voltou ao jornalismo para garantir a sobrevivência
e pagar suas contas, trabalhando inicialmente no Diário Carioca e depois no Jornal do Brasil.
Apesar de estar distante do gênero documentário nesses últimos anos, conseguiu continuar na
ativa, sendo contratado para realizar documentários e filmes institucionais, no que se
familiariza com o gênero, apresentando sempre um plano revelador, um olhar novo sobre a
realidade a ser descortinada, confirmando a sua filiação neo-realista assim como a dos
documentários britânicos dos anos 1930 e 1940 que assistiu nas sessões da Cinemateca
Brasileira em São Paulo.
Durante a realização de um documentário em Juazeiro, na Bahia, em 1958, teve
contato com a seca e suas mazelas, crianças esquálidas e famintas, miséria e fome. Nesse
cenário, inicia uma pesquisa que tem o romance Vidas Secas, clássico de Graciliano Ramos,
como guia, deixando uma indagação no ar: se a opção pela adaptação foi movida pela
ansiedade, por ter um roteiro a seguir, ou mera identificação com o autor literário. Na
dúvida, decide-se pela transposição da linguagem literária para a linguagem cinematográfica.
Adaptação feita, produção levantada, parte para as filmagens de Vidas Secas no interior da
Bahia, adiado para dois anos mais tarde devido à impossibilidade conhecida, e realiza
Mandacaru Vermelho (1961), já analisado neste ABC.
No interregno entre esses dois filmes, realiza uma adaptação de Nelson Rodrigues,
Boca de Ouro (1962-63), que foi porta de entrada do dramaturgo no universo cinematográfico
e exercício para Nelson Pereira dos Santos amadurecer a concisão necessária ao projeto de
Vidas Secas.
Boca de Ouro traz a visão de dois Nelsons, o dramaturgo e o cineasta. Ambos com
contribuições significativas para a renovação do espetáculo em seus campos de pertinência, o
teatral e o cinematográfico. O teatro e o cinema modernos no Brasil são experiências que
se adensaram nos anos 1960. Observando-se a conjuntura desse período verifica-se a
atualização das linguagens teatrais e cinematográficas
343
, embora a observação que sobressai
é a de que a troca entre esses terrenos não foi efetiva, em que pese a atmosfera promotora de
mudanças impulsionar para esse sentido. A dramaturgia brasileira pouco se relacionou com o
Cinema Novo, seja pela opção feita pelo movimento ao cinema de autor seja pelas escolhas
pessoais de cada cineasta. No entanto, a nova cultura teatral brasileira que incorporou os
discursos de Brecht a Artaud, se fez presente no cinema
344
, mas os dramaturgos que
floresciam na cena teatral moderna como Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho, não foram
objetos do interesse cinematográfico imediato.
Dentro desse quadro, outra inversão de perspectiva ocorreu no diálogo entre cinema
e teatro nos anos 1960. Nelson Rodrigues, àquela altura com seu nome consolidado no teatro
brasileiro, politicamente conservador, teve o seu teatro adaptado para o cinema pelas mãos do
cineasta com notória filiação política à esquerda.
Ismail Xavier destaca as características essenciais da dramaturgia de Nelson
Rodrigues, que em um primeiro exame parecem escapar ao interesse de Nelson Pereira:
Vaidades e ressentimentos; desordem amorosa. Ciranda de qüiproquós,
fracassos e autodestruição obsessiva. Desfile de maridos enciumados ou
mulheres insatisfeitas a tramar cenários de vingança. Congresso de filhos da
culpa, habitantes de um mundo à deriva porque separado de um estado de
pureza ideal que nenhuma experiência histórica pode ensejar. No entanto,
343
No decorrer dos anos 1950, companhias teatrais como o TBC fortaleceram a proposta do “grande teatro”, o
que, em certa medida, favoreceu o estabelecimento de laboratórios dramáticos dos quais vieram à tona o Arena e
o Oficina. No mesmo período em que se operava a transformação do teatro também ocorria a renovação no
cinema.
344
A “estética da fome” incorporou o legado de Brecht ao contexto do cinema brasileiro ligando-o a outras
influências presentes sobretudo nos filmes de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman.
pureza que permanece como referência do dramaturgo a alimentar uma
observação inconformada da experiência possível
345
.
Para Ismail Xavier a ficção de Nelson Rodrigues está circunscrita nessa recorrência
em que personagens vivem situações motivadas pelo jogo de ser e aparências que se repõem e
recompõem a cada peça ou romance-folhetim. Essas considerações ajudam a elaboração de
uma segunda crítica, mais apurada, que permite estabelecer uma relação com o universo de
Nelson Pereira e com as suas matérias de importância. Boca de Ouro é uma experiência
completamente diferente do que havia feito antes, porém que se conecta com as anteriores por
mais uma vez ter o Rio de Janeiro como cenário. Outras camadas do subúrbio carioca são
acionadas e fascinam o cineasta que se interessa pelo estudo psicológico das personagens
transpostas para a tela a partir das referências contidas na dramaturgia de Nelson Rodrigues.
“A vida como ela é”
346
é um valor comum aos dois Nelsons.
A questão da permanência da noção do gênero trágico na modernidade, motivo de
intenso debate no âmbito do teatro
347
, perpassa o conjunto da obra dramatúrgica de Nelson
Rodrigues. Esse autor emergiu no momento de sua afirmação, nos anos 1940, destacando-se
como um salto de qualidade na dramaturgia brasileira então apresentada. A expressão teatral
de Nelson Rodrigues redimensionou o teor e o alcance do drama, inserindo-o na continuidade
associada à reflexão sobre as condições-limite do humano, em que o valor estético é
acentuado em detrimento da comédia habitual encenada na época
348
.
É Nelson Pereira dos Santos quem informa e clarifica sobre como se deu a sua
aproximação com a obra de Nelson Rodrigues:
E o Jece veio me procurar para fazer uma proposta: “Quer fazer o Boca de
Ouro, a peça do Nelson Rodrigues?. Nelson Rodrigues não tinha sido
filmado até então. Quer dizer, havia uma versão de um romance de Nelson
Rodrigues para o cinema, que ele assinara com o pseudônimo de Suzana
Flaig. Trata-se de Presença de Anita, que o diretor italiano Ruggero Jaccobi
fez em São Paulo, na Maristela. Mas não era o verdadeiro Nelson Rodrigues,
era outra coisa. Eu fui o primeiro a filmar Nelson Rodrigues. Foi o Jece
Valadão que tomou a iniciativa de fazer o filme. Havia muita oposição,
filmar Nelson Rodrigues era uma espécie de tabu. A história de Boca de
Ouro é muito boa. Nelson Rodrigues retratou com grande acuidade a
realidade do marginal carioca. Essa sociedade ainda é muito instável, as
345
Cf. Ismail XAVIER. O olhar e a cena Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São
Paulo: Cosac & Naif, 2003, p. 161.
346
“A vida como ela é” é o título de uma coluna muito lida assinada por Nelson Rodrigues no jornal Última
Hora.
347
Cf. Raymond Williams. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.
348
Cf. Ângela Leite Lopes. Trágico, então moderno. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/EDUFRJ, 1993 ; Victor
Hugo Adler Pereira. Nelson Rodrigues e a obs-cena contemporânea. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1999.
relações são incertas. Não existe nenhuma estrutura ética, escrita ou apenas
oral, nada. Vale tudo, é uma liberdade plena. E é muito interessante o Nelson
Rodrigues. A esquerda não gostava de Nelson Rodrigues, aliás nunca se
aproximou dele. Quando eu fui fazer o filme, havia uma oposição à idéia de
se filmar Nelson Rodrigues, era algo escandaloso. E a vida do subúrbio, era
muito expressiva. E tem o lado do personagem completamente transgressor,
ao extremo. Ele não aceita nenhum limite. A outra coisa é a construção da
história, que tinha acontecido no Rashomon
349
. Não sei se o Nelson foi
influenciado pelo Rashomon, do Kurosawa. Lembram da história?
350
A história do filme é urdida a partir da morte do personagem-título, Boca de Ouro
(Jece Valadão), famoso bicheiro de Madureira. O título é uma alusão feita à sua decisão de ter
todos os dentes removidos para permitir o uso de uma dentadura de ouro, expressão do seu
desejo de poder e ostentação. A trama é centrada em três diferentes versões da história, a
partir do relato da ex-amante do Boca, Guigui (Odete Lara), a um jornalista, Caveirinha (Ivan
Cândido). O jornalista vai à casa de Guigui, que está casada e tem dois filhos, para ter acesso
a informações sobre o recente assassinato do contraventor. Guigui, sem saber da morte do
Boca, desqualifica o ex-amor e confidencia ao jornalista um dos seus crimes bárbaros. Em
flashback Guigui começa a contar a história: um jovem marido, Leleco (Daniel Filho), expõe
sua mulher Celeste (Maria Lúcia Monteiro), por quem o Boca demonstra interesse, ao
constrangimento de solicitar empréstimo ao bicheiro. A mulher não cede ao assédio do Boca,
que lhe pede favores em troca do dinheiro e que diz ao marido que se sua vontade não for
satisfeita ele semorto. Acuado, o marido pede para a mulher ir para a alcova do Boca,
mesmo assim ele é espancado até a morte. Satisfeita, Guigui imagina o crime estampado nas
páginas dos jornais. No entanto, ao tomar conhecimento que o Boca foi assassinado,
arrepende-se e chorando pede ao jornalista para desconsiderar o seu primeiro depoimento,
dizendo que o boca foi seu único amor, e passa a contar outra versão do fato. Dessa vez,
invertem-se os papéis, o Boca é um benfeitor a quem Celeste, uma vigarista, pede dinheiro e
oferece a visão dos seus seios em troca de um colar de diamantes. Leleco, que havia seguido
Celeste flagra o momento íntimo entre eles e ameaça o bicheiro com uma arma. Celeste
defende o Boca e apunhala Leleco pelas costas. Guigui, ainda oferece uma terceira versão ao
jornalista, motivada pelo ciúme de seu marido que ouviu toda a sua conversa com o jornalista
e ameaça deixá-la. Nesta versão, buscando a reconciliação com o marido, Guigui equilibra as
versões anteriores. Leleco é informado sobre a traição de Celeste e vai até a casa do Boca
349
Rashomon (1950) direção de Akira Kurosawa. No século XV, numa floresta perto de Tóquio, bandido afirma
que matou um samurai, depois de violentar a mulher dele. A mulher diz que foi ela quem matou o marido. A
alma do morto conta que se suicidou, e um açougueiro dá uma quarta versão, antes de adotar um menino
abandonado. Georges SADOUL. Dicionário de Filmes. Porto Alegre: L&PM, 1993. p.334-335.
350
Apud entrevista Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.26.
tentar extrair dinheiro do contraventor, que saca de uma arma, induz Celeste a entrar no jogo e
esta acaba esfaqueando o marido. Boca termina o serviço iniciado por Celeste, em seguida,
corta a garganta de Celeste e passa a cortejar Maria Luíza, uma grã-fina, que no final do filme
revela-se a responsável pela morte do Boca.
As diferentes versões expostas por Guigui oferecem uma gama de possibilidades
sobre o seu caráter e as suas intenções. Sentimentos como ira, carinho, vingança,
ressentimento e arrependimento misturam-se e ficam nivelados reforçando a tese que a
sordidez, a vilania, a corrupção dos personagens prescindem de motivações que orientem as
suas ações. A dúvida, o engano e a falsidade estão em todo o filme, que tem como síntese a
frase escrita no cartaz: O filme de todos os amores e de todos os pecados!
Boca de Ouro é um exemplo anunciador da diversidade de Nelson, apesar de neste
filme ele manter alguns princípios que matizam toda a sua obra. Como novidade uma
referência ao filme noir americano
351
, principalmente no seu ágil e bem montado prólogo: o
filme começa com cenas de vários momentos da vida do Boca mostrando as suas facetas, a
síntese da sua história apostador, assassino cruel, político em ascensão -, sem um único
diálogo as imagens de bandidos, policiais, roubos, tiroteios fundem-se ao som de um nervoso
jazz. Quanto às permanências, o realismo é mantido, seja no recurso de filmar em locação,
seja na escolha do elenco, com o objetivo de flagrar a vida do subúrbio e escapar das
convenções teatrais. Sobre as suas opções Nelson esclarece:
A menina que faz a moca, a Celeste, ela fez esse filme. Ela não era atriz
[...] exatamente para evitar o comportamento teatral. É difícil o ator de teatro
se desvencilhar disso. Na minha cabeça também estava pensando em chegar
mais próximo do comportamento real lá de uma menina suburbana [...]
Tinha medo do comportamento teatral, tudo empostado, podia fazer o filme
escapar do contexto. Eu queria sair do teatro e ir para o subúrbio mesmo para
a vida [...] tem várias cenas na ponte lá do trem de Madureira
352
.
Apesar do êxito comercial, talvez o primeiro sucesso comercial do cineasta, a crítica
não recebeu bem o filme, sendo raras as suas manifestações de entusiasmo:
351
Film noir foi a expressão inventada pelos críticos franceses do período imediatamente posterior à segunda
Guerra Mundial para designar um grupo de filmes criminais americanos, produzidos a partir dos anos 40, com
certas particularidades temáticas e visuais que os distinguiam daqueles feitos antes da guerra. A.C. Gomes de
MATTOS. O outro lado da noite: filme noir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p. 11.
Muitas vezes, porém, o cenário social do filme noir prevalece sobre a simples intriga policial: visão crítica dos
Estados Unidos, de sua sociedade e instituições, o filme noir torna-se então um subgênero do filme social
engajado. Philippe PARAIRE. O cinema de Hollywood. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 63.
352
Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.28.
Octávio Bonfim, de O Globo (5/2/1963), fez alguns poços elogios à parte
técnica [...] E Hugo Barcellos, do Diário de Notícias (6/2/1963) foi
categórico: ‘Nelson com Nelson não deu certo. E não deu, porque Nelson
Pereira dos Santos, fidelíssimo ao texto original de Nelson Rodrigues,
deixou-se embair pelo artificialismo do autor, o eterno homem da eterna
banda podre’. Um dos raros que apreciou foi Luiz Alberto Sanz, do Jornal
do Comércio (2/7/1963). Após elogiar algumas interpretações, a direção de
NPS e a montagem de Rafael Valverde, afirmou: Boca de Ouro merece
uma visão calma e cuidada, onde não caberão os preconceitos com o
nascente Cinema Novo. É um filme adulto.
353
O filme seguinte é Vidas Secas, adaptação do reconhecido romance de Graciliano
Ramos, escrito em 1938.
Vidas Secas integra o rol dos livros e filmes indeléveis da expressão
cultural e artística brasileiras. Tornou-se emblema do romance social, sinônimo do Cinema
Novo e passadas várias décadas de suas realizações a potência dos relatos mantém vigor, é
atual, ainda reflete as disparidades sociais e econômicas do Nordeste do Brasil pelo
tratamento dado ao tema da seca e suas circunstâncias.
O filme Vidas Secas é o resultado da concatenação de diversos aspectos. Como foi
dito, Nelson documentou a seca no Nordeste brasileiro no final dos anos 1950 e o seu
imaginário passou a ser povoado pelas fortes e inolvidáveis imagens que sua memória
registrou. Por outro lado, a questão agrária e as reformas de base, naquele momento,
aqueciam o debate político e atraia a atenção de todo o país. No Nordeste, os camponeses se
organizavam e reivindicavam o direito de permanecer nas terras em que viviam e
trabalhavam. Assim, filmar Vidas Secas constituía-se em uma escolha adequada, pois Nelson
entrava no debate através do filme que apresentaria uma visão contígua à situação real e não
sentimental do nordeste brasileiro e também por ser uma adaptação de uma obra canônica do
romance social brasileiro, assinada por um autor reverenciado por Nelson
354
.
Em Vidas Secas Nelson manteve as indicações do romance quanto à poética,
seguindo a concisão e o minimalismo de Graciliano que elimina tudo que não é essencial,
353
Apud Helena SALEM p. 157-158.
354
Aos 22 anos, após ler São Bernardo, Nelson postulou filmá-lo e escreveu um roteiro em que Madalena não
morria no final do romance. Rui Santos encaminhou uma carta a Graciliano Ramos pedindo sua permissão para
Nelson filmar o romance. A resposta de Graciliano Ramos foi uma lição para o jovem cineasta, inesquecível para
as suas futuras considerações acerca de adaptações, conforme seu relato na entrevista publicada em O Pasquim,
106, 10/04/2004, p.13-16 em que reproduz trechos da carta: “Se vocês quiserem fazer isso, façam, tirem meu
nome dessa história. Inventem o que quiserem inventar [...] Vocês estão pensando na mulher dos dias de hoje,
vivendo na situação social e urbana de agora. Tem que pensar em 1930. Ela é uma mulher frágil, com muitas
idéias de mudanças [...] Essa mulher não tinha outra solução a não ser o suicídio. Prestem atenção: se ela não
tivesse cometido o suicídio, Honório não ia escrever um livro. O livro é contado por ele porque não entendeu
nunca esse suicídio. Contando essa história, poderia ser que chegasse numa explicação. Se ela não tivesse
suicidado, ele não teria escrito o romance. Se ele não tivesse escrito o romance, eu também não teria escrito o
livro. Se eu não tivesse escrito o livro, você não teria nenhuma idéia para fazer um filme”. Posteriormente São
Bernardo foi filmado por Leon Hirszman em 1972, sendo um dos filmes de destaque da década.
porém garantiu espaço para as descobertas oriundas da investigação da linguagem
cinematográfica:
Em Vidas Secas, eu alcancei uma liberdade formal muito grande, mas
respeitei integralmente as duas partes da carta: nunca desvirtuar o
pensamento do autor, respeitar, portanto, a essência do livro, e a segunda
parte, não só referente ao condicionamento histórico, mas fazendo o possível
para não alterar a estrutura narrativa que o autor elaborou. Isso porque a
forma de contar uma história é determinada pela maneira de pensar
355
.
Nelson acompanha o pensamento de Graciliano que narra o livro na terceira pessoa.
Nesta perspectiva não é a personagem que ressalta, mas o narrador que se faz sentir pelo
discurso indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em períodos
simples. A obra configura um gênero intermediário, híbrido, transitando entre o romance e o
livro de contos. Consta de 13 capítulos, até certo ponto autônomos, mas que se ligam pela
repetição de alguns motivos recorrentes: a paisagem árida, a zoomorfização e
antropomorfização das criaturas e os pensamentos fragmentados das personagens. O discurso
de Vidas Secas é altamente subjetivado, no sentido de que grande parte do material escrito é
articulado do ponto de vista das personagens, dentro de uma hierarquia de poder que passa de
Fabiano para Sinhá Vitória, aos dois filhos, chegando até mesmo a cachorra Baleia.Também
as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o afastamento existente entre elas.
Cada uma tem sua vida particular, acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é,
portanto, a dramática descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. A comunicação
não flui, os grupos não interagem. A nota predominante do livro é o desencontro dos seres. Os
diálogos são raros e as palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são
apenas reclamações, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas, sobretudo o
homem é seco. Daí o título Vidas Secas.
No filme, o monólogo interior no estilo indireto livre é substituído por diálogos,
diretos e esparsos, intercalados pelo silêncio. A incomunicabilidade entre Sinhá Vitória e
Fabiano é explicitada por meio de uma “conversa” em que falam simultaneamente sem
escutar um ao outro, cada qual falando “com seus botões”.
Nelson agrupa alguns capítulos que no livro estão separados beneficiando-se da
disposição das narrativas nucleares, que permite certos movimentos e realocações que não
põem em risco o sentido da obra. Desenvolve uma relação dialógica com seu modelo de
355
A arte de recriar. Entrevista concedida a Suzana SCHILD. Revista IBM, 18, setembro de 1984, apud
SALEM. Op. Cit., p.171.
referência e discute aspectos subjacentes ou subentendidos no romance de Graciliano Ramos.
Tal opção resulta em uma leitura crítica e criativa da obra original para dar conta da história
que aborda a saga de uma família de retirantes, composta pela mulher (Sinhá Vitória), pelo
marido (Fabiano), os dois filhos e a cachorra Baleia, que foge da seca e segue errante
atravessando o estéril solo nordestino na defesa da sua sobrevivência. Em busca de trabalho
instalam-se em uma fazenda onde Fabiano convence o dono das terras da sua competência
como vaqueiro. Nesta situação a família acomoda-se por um período até Fabiano se indispor
com o poder instituído, representado pelo avarento proprietário da terra e pelo soldado
discricionário. Essa circunstância o induz a uma situação de opressão em que é preso e
espancado. Quando sai da prisão, sem perspectiva de permanecer no local, sacrifica a
cachorra doente, Baleia, que era como gente em meio de gente que vive como bicho. Sinhá
Vitória indaga:“Um dia a gente vai virar gente. Podemos continuar vivendo que nem bicho?
Escondido no mato? Podemo?” Fabiano responde: “Não podemo não”. E de novo a família
desaparece na estrada em busca de um destino melhor para não ter o mesmo fim que Baleia.
O filme tendo como base a ficção naturalista promove a analogia homem-animal.
Tanto o animal como a criança, presentes no filme, são utilizados como metáforas para recriar
uma das maiores constâncias no discurso do cineasta: o menor, o frágil, o oprimido e o
desassistido.
Desenhando o oprimido toma como parâmetro a figura de Fabiano e investiga
sistematicamente a relação deste com as várias instituições sociais. Fabiano não cabe dentro
da sociedade, está fora de seus mecanismos, e oferece como resposta do seu personagem aos
que o oprimem, a revolta.
Ao definir Fabiano dentro de funções da sociedade Nelson conduz o filme a um
despojamento dramático que irá corresponder a uma economia de meios expressivos,
encaminhando para um nível de abstração que transcende ao universo social do nordestino e
ganha dimensão e ressonância mais amplas. Randal Johnson na análise que faz sublinha, com
exemplos, as escolhas feitas por Nelson no tratamento do filme:
O filme desenvolve um espaço predominantemente social e político
(mostrando o fato da opressão de Fabiano) que é implicitamente psicológico.
A seqüência alterna entre câmera subjetiva (por exemplo, Fabiano olhando
para o outro prisioneiro e vice-versa), câmera objetiva (planos de Vitória na
escadaria da igreja) e trechos semidocumentários (o bumba-meu-boi) como
meio de contrastar a realidade (social) objetiva da situação do drama pessoal
de Fabiano. A justaposição de som e imagem (como o som do festival
acompanhando a imagem de Fabiano ou Sinhá Vitória em frente da igreja)
torna explícita a marginalização dos protagonistas, que são excluídos da
festividade e, por extensão, da sociedade brasileira como um todo.
356
Na sua constituição, Vidas Secas apresenta aspectos de inovação. A fotografia dura
realizada por Luís Carlos Barreto transformou a dificuldade em virtude cinematográfica e
com a câmara na mão acompanha a mobilidade obrigatória da perambulação sertaneja. A
utilização precisa da trilha sonora, exemplo de “uso estrutural do som”
357
retirou o som do
ambiente e o transformou em diegese. Com essa construção imagem e som equilibraram-se e
dão o tom na dramaticidade sóbria do filme, que seguiu a linha do realismo crítico na
condução de situações simples, densamente estruturadas, composta por planos abertos e
enquadramentos seguros, áreas de domínio do espaço cinematográfico claramente definido. O
filme também explora classicamente o campo e o contra/campo, que alterna a pessoa que
com o que a pessoa presumivelmente vê. O ponto de vista das personagens se movimenta para
estruturar a identificação, com o foco se alternando, de forma equilibrada, entre as
personagens. .
Vidas Secas não obteve sucesso de público, mas obteve o reconhecimento da crítica e
ganhou visibilidade internacional na décima sétima edição do Festival de Cannes. Por seu
intermédio o cinema brasileiro conquistou um espaço importante, liderando o recorde da
premiação não-oficial: Prêmio de Cinema de Arte, o de Melhor filme de Juventude e da
OCIC. A trajetória internacional de Vidas Secas foi muita extensa e até hoje o filme repercute,
sendo com freqüência exibido em festivais e mostras que homenageiam o cinema brasileiro
moderno.
AS ALEGORIAS
Na marca do final dos anos 1960, com o panorama já definido pelas mudanças
políticas e institucionais ocorridas no País, a alegoria
358
se instala no cenário cinematográfico
brasileiro, ocorrem mudanças e correção de rumos no seio do Cinema Novo. Glauber Rocha
356
Randal JOHNSON. Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Tânia PELLEGRINI
(org.) Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac; Instituto Itaú Cultural, 2003, p.56.
357
Expressão utilizada por Noel Burch.
358
Alegoria, esquema de representação em que personagens e acontecimentos retratados são usados de forma
figurada, como disfarce, para revelar os elementos da idéia representada. No cinema brasileiro se tem registro
do seu uso no filme Paz e amor (1910) que satiriza um rei fictício Olin,I, anagrama do nome do presidente Nilo
Peçanha.
assimila a crise e a representação alegórica se faz presente em sua imaginária Eldorado
tropical, Terra em transe (1967).
No cinema, a representação desse novo momento vivido pela cultura brasileira se
revestiu de aspectos de descontinuidade, numa nova versão dos esquemas alegóricos
propostos por Walter Benjamin nos seus textos de reflexão sobre as relações entre o mundo
moderno e o barroco. Para Benjamin
359
, o princípio da descontinuidade da interpretação, o
desmonte da ideologia burguesa, ocorre no interior de uma máquina produtora de cultura,
assegurando um novo direcionamento político que irá refletir na obra de arte e no pensamento
histórico. Essa via de reflexão associa a experiência frustrada a outros momentos da história
onde movimentos que apresentavam as condições necessárias para serem bem sucedidos não
prosperaram e ao sofrer solução de continuidade fazem emergir as interrupções e o lado
descontínuo da história aparece, quando esta é contada do ponto de vista dos vencidos, dos
projetos desviados. A visão alegórica, ao tomar uma coisa por outra faz surgir o outro da
história. O que foi reprimido, sufocado vem à tona graças ao deslocamento oferecido pela
alegoria
360
.
Assim como Glauber Nelson também irá processar a crise. El justicero (1966-67) é o
seu primeiro projeto após as mudanças políticas ocorridas no país e marca o seu retorno ao
Rio de Janeiro depois da demissão coletiva dos professores da Universidade de Brasília:
O Beco era também o ponto de encontro. Diariamente havia lá um papo ou
outro[...]Então, eu expulso de Brasília, chego e vou para o Beco [...]
encontro uma figura genial, que era o Mário Falashi [...] Cheguei e o Mário
disse: “Tem uma empresa que quer fazer um filme, você topa fazer? [...]
“Evidente, eu estou aqui desempregado” eu fui e a idéia dele era assim
de fazer um filme que desse dinheiro[...] Eu torci o nariz [...]Meio
desapontado [...] achava que não ia sair nada. encontrei o Leon e contei a
história. Ele falou: “Você leu o livro do João Bethencourt, que se chama
El justicero e seus amores?[...] Isso era 65, quer dizer, era o segundo ano
da ditadura militar, mas que ainda havia uma liberdade de imprensa, que era
exercida muito bem por muitos jornalistas, o Cony, o Sérgio Porto, então o
Stanislaw Ponte Preta, que ficavam sempre fustigando os militares [...] E o
João Bethencourt escreveu o livro[...] nesse caminho [...] Li o livro naquela
noite e no dia seguinte voltei no produtor e disse: “olha , o filme é esse
aqui, dá uma lida”
361
.
359
Cf. Walter BENJAMIN. Origem do drama barroco. São Paulo: Brasiliense, 1984.
360
Cf. Ismail XAVIER. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São
Paulo: Brasiliense, 1993. Neste livro, o autor traça o percurso do cinema brasileiro do final dos anos 1960,
tomando a alegoria como sinal de referência.
361
Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, , p.36.
Trata-se de uma comédia urbana de costumes, baseada no livro As vidas do justiceiro
de João Bethencourt, que aborda a sociedade classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Do último filme da trilogia que Nelson projetou no final dos anos 1950 El justicero carrega
alguns vestígios, nos quais Alex Viany identifica a equivalência ao não-realizado Rio, Zona
Sul: El justicero como que completa a trilogia inacabada: ainda que escrita por outra pessoa,
a história não deixa de ser Rio, Zona Sul”
362
.
Nelson recusa a ligação entre os filmes não vendo nada em comum com o projeto
dos dois filmes da trilogia, que o mais como um filme-escola, uma vez que incorpora à
equipe boa parte dos alunos que migraram com ele para o Rio de Janeiro, após o fechamento
do curso em Brasília. El Justicero serve-se da comédia para retratar a sociedade classe média
alta da Zona Sul, de forma experimental, sem grandes pretensões. Ainda assim, traz como
novidade um filme-dentro-do-filme, um viés auto-reflexivo. El Jus, Jorge, (Arduino
Colassanti), jovem carioca que contrata seu amigo Lenine (Emanuel Cavalcanti) para escrever
sua biografia, mas termina fazendo um filme sobre sua vida. O enredo da história gira em
torno das aventuras de Jorge, El Jus, filho de um general que existe para “ajudar os fracos e
desamparados”. Buscando uma reputação de justiceiro com ações que vão da libertação de um
malandro preso à defesa da ingenuidade de uma jovem comunista. Ao final do filme, que
expôs as peripécias do playboy em meio a conquistas amorosas, Lenine observa que a vida de
El Jus não despertará o interesse de ninguém. El Jus retruca que a ele interessa.
A recepção do público foi desalentadora e ainda em 1968 o filme foi apreendido pela
Polícia Federal ao ser exibido no Pará, em seguida foi decretada a sua apreensão em todo o
território nacional.
Nelson reconhece que El Justicero tem “certa limitação de objetivos”. Quase como
se, caminho necessário para fazer a passsagem entre Vidas Secas e Fome de Amor, seu filme
seguinte
363
. No entanto, na entrevista que deu a Tunico Amâncio, posterior à biografia feita
por Salem, Nelson aponta alguns problemas que a seu ver resultaram na baixa aceitação do
filme e no seu obscurantismo: o título em portunhol e o desconhecimento dos atores
confundiam o público, e revela que o filme, após anos sem ser exibido, vale a pena ser visto
hoje, pois é muito engraçado.
Se em El Jus, filme ligado a uma determinada conjuntura, Nelson perde a
oportunidade de fazer uma sátira apurada da vida social da Zona Sul, a sua realização,
permite, no entanto, a abertura para a leveza e irreverência que dará prosseguimento em
362
Crítica publicada no Jornal do Brasil em 14/10/1967.
363
Apud SALEM. Op. Cit, p.199.
filmes posteriores. E, naqueles tempos de manhãs e noites cinzentas esses atributos também
eram armas de combate e de defesa.
O próximo filme, Fome de amor (1967-68), começaria a ser rodado em julho de
1967, antes do lançamento de El Jus que ocorre em outubro do mesmo ano. Mais uma
adaptação, dessa vez é um conto do livro Histórias para se ouvir de noite, de Guilherme de
Figueiredo. Paulo Porto detinha os direitos da história e convidou Nelson para dirigir o filme.
Com viagem marcada para os Estados Unidos Nelson indica seu ex-aluno, assistente e Diretor
de Arte, Luiz Carlos Ripper, para ficar à frente da produção. Ao retornar ao Brasil assume o
projeto e parte para Angra dos Reis para fazer o filme:
Esse filme na realidade, ele foi feito filmando, quer dizer, não existia
roteiro[...] não tinha transformado aquilo em texto de roteiro, ação, diálogos.
Mas a idéia básica ainda era aquela do conto inicial, que era a história de
uma pianista que vai a um concurso de piano em Paris, que se apaixona por
um grande pianista, um mestre, professor fantástico e tem uma grande
história de amor com ele.[...] Eu tinha conhecido os Estados Unidos naquele
momento. O ano era 66, em plena guerra do Vietnã, protestos, a droga
começando, a marijuana, o Love and peace[...] Era a época da contestação,
do começo do movimento hippie. Então, a idéia foi mudando[...] a idéia
básica era que essa moça vai se apaixonar por alguém que tem uma ilha no
Brasil, pronto. E aí todo o resto vem com os próprios atores, com as próprias
experiências que cada um está vivendo naquele período no Brasil. Essa era a
idéia de Fome de Amor
364
.
Em Fome de Amor (cujo subtítulo é Você nunca tomou banho de sol inteiramente
nua?) quatro personagens se encontram numa ilha. Alfredo (Paulo Porto), o proprietário, é
cego, surdo e mudo devido a um acidente e a ilha é seu refúgio. Sua mulher, Ula (Leila
Diniz), bem mais jovem, casou-se com ele antes do acidente. Mariana (Irene Stefânia), realiza
estudo de música concreta em Nova York onde conhece Felipe (Arduíno Colasanti), pintor
medíocre que trabalha como garçom para sobreviver. Mariana, envolvida com o marxismo-
leninismo, é convencida por Felipe de que ele também é ligado ao processo revolucionário.
Casa-se com ele e vem para o Brasil onde Felipe afirma ser proprietário de uma ilha. Na ilha,
Ula e Felipe se tornam amantes, enquanto Mariana se aproxima de Alfredo.
Nelson, a partir do argumento de Guilherme Figueiredo sobre relacionamentos e
fidelidade, elabora uma alegoria sobre o experimental terreno da contracultura dos anos 1960.
Trata também da frustração e perplexidade da esquerda diante da sua impotência por não
conseguir efetivar as mudanças sociais pretendidas. Encarna a experiência de estar numa
364
Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, p.46.
situação limite e ter que avançar. Outro aspecto a ser destacado no filme diz respeito à
narrativa e ao uso do tempo na montagem, o corte dentro do plano, atribuídos por Nelson ao
contato que teve com o underground americano, com os cineastas Stan Brakhage e Jonas
Mekas. Esses aspectos, a narração em ordem não cronológica, o modo inesperado com que
surge cada plano, o jogo do claro-escuro e os movimentos de câmara fazem da estrutura do
filme uma constante e renovada questão.
A crítica se dividiu na avaliação do filme. O Jornal do Brasil de 15/06/80 traz a
cotação do filme. Alberto Shatovsky, Miriam Alencar e Sérgio Augusto consideram o filme
bom. Ely Azeredo, regular. José Carlos Avelar e Maurício Gomes Leite, ótimo, e apenas
Valério M. Andrade, mau.
Azyllo muito louco (1969-1971) é o próximo filme e primeiro em Parati, cidade
cenário, refúgio onde Nelson em um espaço de quatro anos realiza três filmes:
Ali, na realidade, foi uma espécie de exílio dentro do Brasil, era tão distante,
tão isolada a cidadela, aquele mundo de Parati, que era possível considerar
um lugar de exílio. Olha só, lá em Parati nós fizemos o Azyllo e depois Como
era gostoso o meu francês.
365
Azyllo muito louco atinge o ápice da representação alegórica através da adaptação
subversiva de um clássico. É uma resposta ao golpe dentro do golpe de 1968. A começar pelo
título onde é fundida a idéia de asilo, local de repouso de anciões à expressão contemporânea
“muito louco”. A adaptação do conto O alienista de Machado de Assis conserva o espírito
sarcástico e crítico do autor. A essência do conto é seguida ainda que a interpretação da
história seja livre: O padre Simão (Nildo Parente) chega à província de Serafim, onde vive
uma população muito religiosa, porém sem liderança religiosa. Com idéias novas e mais
preocupado com a saúde mental do que com a salvação das almas do seu rebanho, o padre
com a ajuda de Dona Evarista (Isabel Ribeiro) manda construir um hospital de alienados, a
Casa Verde. Quase toda população da cidade é recolhida no local. Assustados com a situação
instalada na cidade seus representantes legais tentam tirar do padre seus poderes de alienista.
Uma sucessão de eventos acontece. Perde-se referência e subverte-se a ordem. Ninguém mais
sabe quem é louco e quem não é. A solução é internar o padre no asilo.
Primeiro filme colorido de Nelson, com cenografia e figurino de Luís Carlos Ripper,
de destacada inspiração tropicalista, recorre à fantasia, à metáfora e à estilização para fazer
alusões à situação política brasileira. Estabelecendo uma comparação entre Azyllo muito louco
365
Apud entrevista Tunico Amâncio p. 48.
e Fome de amor, o primeiro filme a romper com a tradição realista em sua obra, Nelson
afirma:
Desde Fome de amor eu parti para um discurso, que era colocar em questão
toda a nossa posição ideológica, muito fechada face a uma realidade que nos
trazia sempre surpresas: sempre que pensávamos conhecê-la, nos
apercebíamos do contrário, e ela se revelava nova, diferente.
366
Estes foram os piores anos da ditadura militar, de autoritarismo e opressão, e Nelson
em Azyllo muito louco dá mais um passo na colocação do intelectual frente a essa situação e
passa a questionar as ideologias que aprisionam a realidade: a falsa ciência e a visão
distorcida das coisas, neste sentido compreende o filme como um discurso metafísico, uma
discussão sem fim desse problema. O filme é uma observação de como o Brasil, assim como a
fictícia Serafim, sofre os maus tratos das instâncias políticas cujas curas sociais e econômicas
estão sempre sendo postas em prática através de atitudes e fórmulas de salvação.
uma dose de surrealismo na composição do filme. O gestual dos atores e os
diálogos são também realçados pela condução elíptica do filme. O estranhamento proposital
da atmosfera de Serafim é criado tanto pelas locações como pelas personagens. A adoção da
música atonal colabora para essa estranheza. A música encobre os diálogos tornando-os
incompreensíveis e intencionalmente anacrônicos.
Como Fome de Amor, Azyllo muito louco flagrou tanto cinéfilos como críticos por se
diferenciar dos filmes anteriores de Nelson. O filme teve repercussão em festivais
internacionais e se os prêmios conquistados não chegaram a atrair o grande público, evitou o
fracasso financeiro e abriu as portas para a venda no exterior. Da mesma forma, o filme é tão
sutil em sua crítica que os censores permitiram sua liberação sem restrições.
Como era gostoso o meu francês (1970-72) é o segundo filme realizado em Parati. É
fruto de um projeto acalentado durante alguns anos, inseminado através do contato mantido
com um remanescente de uma tribo indígena nordestina à beira do extermínio cultural na
época das filmagens de Vidas Secas
367
, sugerido pela oferta visual da travessia Rio-Niterói,
que levava Nelson, morador de Niterói a viajar pelo tempo e imaginar aquela paisagem à
época da descoberta. Sua realização é ainda tocada pela sinalização de Lévi-Strauss presente
em Tristes Trópicos para aventura dos franceses no Rio de Janeiro
368
.
366
Salem p. 252 apud Cárdenas e Tessier op. Cit. P. 67
367
Apud SALEM. Op. Cit., p.257.
368
Apud entrevista com Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, p.52.
Sobre o filme, Nelson Pereira dos Santos, em depoimento dado a Helena Salem,
afirma:
A concepção histórica se baseia na recuperação da cultura brasileira
colonizada há séculos. A teoria antropofágica é uma teoria de assimilação da
cultura estrangeira pelo homem brasileiro. E pelo índio. O índio comia o
inimigo para adquirir seus poderes, não para alimentar-se fisicamente. Era
algo ritual. Quanto mais poderoso era o inimigo, mas saboroso ele era
369
.
O filme elabora uma crítica antropofágica
370
ao colonialismo europeu. O canibalismo
é utilizado com ambivalência pelo diretor. Tanto serve para expor as práticas predatórias do
colonialismo quanto para sugerir uma alternativa para o presente, em que as técnicas de
dominação européias deveriam ser assimiladas e devoradas para serem usadas contra os
dominadores. Uma sátira política sobre o capitalismo global e sobre a situação econômica e
política do Brasil, realizada através de uma proposta de restituição do passado, em que se
recorre a esse passado como metáfora referente ao presente.
Como era gostoso o meu francês recorre aos acordos em torno da narrativa brasileira
sobre o período colonial e oferece uma contrapartida valiosa: o encontro entre as culturas,
diferente da tradição romântica não é idealizado. Ao contrário de Iracema, a virgem dos
lábios de mel, do romance de José de Alencar, Seboipep sobrevive ao seu encontro com o
colonizador e com ele não gera filhos.
Na avaliação de Nelson Pereira dos Santos o filme não discute a ideologia, incorpora
a visão antropológica, que é mais aberta. Prossegue Nelson nos seus argumentos:
Tento abordar o problema político sobre o plano de formação da cultura
brasileira, mas mostrando e mantendo uma posição, o que não era o caso dos
meus dois filmes precedentes, onde eu me colocava fora de toda posição,
onde eu ficava distanciado
371
.
Apesar dessa afirmação, o filme conforma um propósito ao redefinir e incorporar à
tradição cultural brasileira as informações desprezadas sobre a memória dos Tupinambás. A
opção pela visão antropológica denota um empenho de reinterpretação da história, fazendo
369
Apud SALEM. Op. Cit., p.261
370
O Manifesto Antropofágico, publicado em 1928 por Oswald de Andrade, em um momento em que os
modernistas decidiram-se por “abrasileirar” o movimento, respondia a uma situação em que as influências
culturais estrangeiras teriam que ser devoradas e, na sua digestão, seriam criticamente reelaboradas, nos termos
do formato e possibilidades locais. Quase meio século depois Como era gostoso o meu francês revisita o
canibalismo, e mantém a suspeita quanto às intenções européias.
371
Apud SALEM. Op. Cit., p.267.
emergir novos meios de denunciar o que ficou de fora. A verdade do colonizado é contraposta
à visão etnocêntrica do colonizador europeu, que não consegue, nem ao menos tenta fazê-lo,
compreender uma cultura nova, desconhecida e diferente da sua.
Parcialmente baseado na exaltada crônica escrita pelo explorador alemão Hans
Staden em 1557, onde ele narra sua convivência com os índios Tupinambás, após ter sido
capturado por estes quando vivia entre os portugueses nas imediações hoje circunscritas como
o Rio de Janeiro. No filme, o prisioneiro francês, Jean, (Arduíno Colasanti) tem sua morte
anunciada. Os índios marcam o dia de sua morte ao fim de oito luas. No tempo que lhe resta
aprende os hábitos da tribo com a ajuda de uma jovem índia, Seboipep (Ana Maria
Magalhães) que se torna sua mulher. Jean procura desenvolver uma estratégia para escapar.
Para isso atrai a ajuda de um velho contrabandista de armas que negocia com os Tupinambás,
negociando pólvora em troca de um tesouro que descobrira. No momento em que escavavam
a terra em busca do tesouro Jean mata o parceiro e enterra-o no buraco aberto. Tentando
escapar da sentença de morte Jean diz ao Cacique que tem poderes para fazer pólvora e luta
ao lado dos Tupinambás contra os Tupiniquins. Mas de nada adianta o seu empenho. Tenta
fugir e Seboipep o impede. O ritual antropofágico é um ato revestido de seriedade. Em
posição frontal é exigido de Jean que encare seu carrasco e pronuncie “quando eu morrer,
meus amigos virão me vingar”, em seguida recebe uma pancada na cabeça. Seu corpo é
servido em um banquete para a tribo. No final a câmara se afasta de Seboipep para mostrar a
aldeia em uma panorâmica. Uma legenda final aparece na tela assinada por Mem de Sá,
Governador Geral do Brasil, que em 1557 escreveu: “Batalhei no mar, de tal forma que
nenhum Tupiniquim permaneceu vivo. Os mortos se espalhavam rígidos por toda a praia,
cobrindo quase uma légua”.
O súbito aparecimento da legenda causa um enorme impacto, gerando um incômodo
ao estampar o extermínio da população indígena. O filme, no seu conjunto, mostrou com
simplicidade e segurança o mundo indígena vigoroso e em harmonia com o seu meio, o que
lhe confere valor estético além do inegável valor etnográfico.
Como era gostoso o meu francês assume uma posição mais elaborada nas relações
com suas fontes do que o caminho tomado usualmente nas adaptações literárias. Ele cruza
uma ampla gama de outras narrativas históricas, ao lado da formulada por Staden, formando
uma densa e sutil interconexão entre elas. No decorrer do filme enxertos de textos de
cronistas franceses e portugueses coetâneos ao relato do alemão, que funcionam como
documento, informação, e também contraponto irônico. Essa prática promove uma fusão de
meios expressivos; mistura o documental, o burlesco a encenações dramáticas, resultando
numa metáfora provocativa de resistência à sociedade moderna do capital global e consumo
estrangeiro.
O filme inaugura um ciclo que aborda o índio no cinema brasileiro: Uirá, um índio
a procura de Deus(1973), de Gustavo Dahl, A lenda de Ubirajara(1975), de AndLuís
de Oliveira e Ajuricaba(1977), de Oswaldo Caldeira, sendo o primeiro a botar na tela os
índios brasileiros na sua singularidade e dimensão cultural. O público acolheu o filme, apesar
da inversão dos propósitos de Nelson na sua leitura:
O público não se identificou com as minhas idéias. Identificou-se, por
exemplo, com o francês, o colonizador. Todo mundo lamentava a morte do
“herói”. Não entenderam que o herói era o índio.
372
Quanto à crítica, as opiniões se dividiram mais uma vez, porém sem grandes
arrebatamentos. O sucesso do público é entendido por um segmento da crítica como a falta de
percepção do público para o filme brasileiro: “O público mal percebe que o filme é
nacional”
373
.
Na leitura do público e na percepção da crítica no Brasil seguem informações sobre o
andamento do cinema brasileiro que apontam para as suas contradições: o brasileiro não se
reconhece na tela, não identifica a sua originalidade e o cinema brasileiro vivencia sua crise.
Vem da crítica estrangeira a preocupação com o momento vivido pelo cinema
brasileiro e o reconhecimento da insistência Nelson em procurar uma saída possível:
Esse filme, [...] torna-se particularmente significativo num momento em que
este movimento atravessa uma grave crise que de certa maneira pode levá-lo
à extinção, em conseqüência da vida política e cultural [...] que o Brasil vive
hoje em dia. NPS marcha ainda na cabeça do movimento a ensaiar um
caminho possível, sem se retardar sobre os caminhos percorridos, sem se
trair [...]. Em ...Francês a fotografia tem uma esplêndida maturidade clássica:
é necessário evitar o folclórico no tratamento dado à exterminação de todo o
vestígio da cultura indígena. A pesquisa histórica foi trabalhada em função
de “um drama individual” e mostra como tema central do filme “o abismo
cultural”
374
.
Uma ficção psicológica
375
é assim que Nelson Pereira dos Santos define Quem é
Beta? (1972-73), que tem como subtítulo Pas de violence entre nous:
372
Entrevista a Isa CAMBARÁ. Folha de S. Paulo, 19/05/1977.
373
Rubens EWALD FILHO. A Tribuna (Santos), 18/04/1972.
374
Frederico de Cadenas. Positif, nº 130, set/71, p. 16 e 17, Cannes 71.
375
Jornal do Brasil, 27/11/71.
Não posso nem quero dizer que estou fazendo algo de novo. O termo é
pretensioso demais. Diria mais que é uma linguagem diferenciada. Não crio
o novo, simplesmente rompo com o anterior e é possível que nesse
rompimento algo de novo surja
376
.
Na abertura do filme a voz de Nelson imprime o caráter de narração de seu filme:
Não procurem mensagem neste filme; se alguma houver será sempre
contribuição de sua parte. Não acreditem no que os atores estão fazendo em
cena. Nunca foi de nossa intenção dar realismo ao comportamento dos
personagens, porque tudo acontece como uma história em quadrinhos: sem
compromisso, absolutamente sem compromisso. Encontrem uma posição
confortável na sua poltrona, desatem os músculos, deixem a cabeça livre e os
olhos também, como aliás deverão fazer em todo e qualquer filme.
O prólogo prepara o espectador para assistir a uma alegoria futurista sobre um casal
que vive uma estranha aventura, com ingredientes de drama e comédia. A ação do filme
transcorre em uma determinada região do mundo, sem identificação de tempo e espaço,
aparentemente após a devastação nuclear, Regina, (Regina Rosemburgo) procura refúgio e
chega no abrigo de Maurice (Fréderic de Pasquale), que o construíra numa perspectiva de
recuperar seu mundo perdido. Regina e Maurice pertencem ao grupo que tem armas,
alimentos e vínculos com o passado, responsável pela eliminação dos contaminados, grupo
dos desvalidos, que vagueiam pedindo alimento. Os dois passam o tempo caçando
contaminados e assistindo ao vídeo-memória, máquina de recordações criada por Maurice.
Surge uma estranha, Beta (Sylvie Fennec), que desestabiliza a vida do casal. Beta decide
partir e Maurice parte à sua procura. Alcançando-a passa a viver com ela, mas não consegue
esquecer Regina. Ao retornar ao abrigo encontra Regina vivendo com outro homem, Gama,
(Dominique Rhule). Os três passam a conviver, mas a presença de Beta é onipresente. Beta
regressa trazendo consigo uma mulher grávida. Um banquete é servido. Os contaminados
assistem olhando pelas janelas. Corte. Regina e Gama entram em um avião, vestindo roupas
normais, fora do quadro da alegoria futurista.
Sonho em quadrinhos, utópica visão, Quem é Beta?, trata da sobrevivência, sem
psicologismo, nem dicotomias moralizantes, através de uma vaga estrutura narrativa.
Como os demais filmes da safra alegórica de Nelson, é possível compreender Quem
é Beta,? a partir do ponto de vista de que a representação simbólica é uma forma de abordar
os males e os problemas do Brasil. Se não moral que defina o bem e o mal no filme, a
376
Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 8/6/1973.
separação dicotômica entre os que têm e os que não têm: aqueles que têm armas, comida e
abrigo e aqueles que sem nada ter perambulam implorando por alimentos.
O filme resultou em fracasso de bilheteria e público. A seu favor apenas a voz firme
de Carlos Diegues que em artigo intitulado Who´s better? Publicado na coluna de Tarso de
Castro, no jornal carioca Última Hora em 27/06/1973:
Beta é a segunda letra, a que está no meio, a ponte, a passagem, a travessia
[...] digamos para simplificar que Quem é Beta? É um filme experimental
[...] Acontece eu o experimental de hoje pode ser o clássico de amanhã. E
nem sempre o clássico de hoje resiste à memória do tempo.
Quem é Beta? encerra uma fase e conduz o autor a uma revisão enquanto criador. É
tempo de desarmar a tenda em Parati, locação dos filmes dessa sua fase, e renovar a tribo. É
necessário repensar o Brasil.
O CINEMA DE PERSPECTIVA POPULAR
O amuleto de Ogum (1973-75); Tenda dos Milagres
377
(1975-77), Estrada da vida
(1979-81) e Jubiabá (1985-87). Esses filmes, que compõem a nova fase do artista, fincados
em ambientes diversos: Caxias, baixada fluminense no Rio de Janeiro, Salvador e a periferia
paulistana, irão confirmar uma tendência apontada por Nelson, na ocasião da realização de
Como era gostoso o meu francês, o seu investimento no contexto antropológico na
instauração da obra, definido a partir do ponto de vista do espaço de representação para a voz
dos muitos outros.
Amuleto de Ogum é ambientado em Caxias, núcleo de imigração nordestina na
baixada fluminense. Sua trama se passa entre bicheiros, operários, mendigos, pistoleiros,
pivetes, contraventores, umbandistas. A contradição se estabelece a partir da própria trajetória
que forma o perfil de cada personagem, trajetórias dinâmicas fugindo ao maniqueísmo das
características definitivas. A cultura do povo é vivida na sua dimensão real, numa observação
em plano aberto sem aproximações reducionistas ou preconceituosas. Amuleto de Ogum foi
feito a partir do argumento original de Francisco dos Santos, O Amuleto da Morte, um roteiro
sobre o mitológico Tenório Cavalcanti em que Nelson cruza três ordens de coisas: as religiões
de conversão, representadas pela Umbanda; o ambiente da Baixada Fluminense, campo
propício para a exploração do caldeirão religioso-popular, e o momento de distensão que
377
Tenda dos Milagres e Jubiabá são verbetes deste ABC.
passava o cinema brasileiro com a Embrafilme pela primeira vez sob a direção de um
cineasta
378
.
Nesse filme é possível constatar a prática de citações nos filmes de Nelson Pereira
dos Santos. Assim, ele citaria Rio, 40 Graus em O amuleto de Ogum para explicitar melhor a
retomada de suas primeiras obsessões: Gabriel, o jovem pistoleiro da baixada fluminense, ao
entrar no elevador onde matará o funcionário da ONU, assovia A voz do morro, tema de Rio,
40 Graus. Amuleto de Ogum também retoma Vidas Secas
379
. É possível atribuir ao segundo
filme uma continuação do primeiro, que termina com um plano da família nordestina indo
para a cidade grande. Amuleto de Ogum abre com a morte do pai e de um dos filhos.
Para produzir Amuleto de Ogum Nelson concentrou a equipe em locação em Caxias,
vivendo para o filme, ambientando-se na atmosfera do trabalho, sob a regência do diretor que
assim se definia:
É o regente da orquestra. Tem lá um solista de violino, o regente sabe que
nunca vai tocar como aquele solista. Então cabe ao maestro não ensinar ao
solista como ele deve tocar, mas extrair do solista o máximo que ele sabe
dar, o máximo do seu potencial. Ser diretor, lidar com os seres humanos é
um trabalho muito mais psicológico
380
.
Com esse pressuposto Nelson partiu para retratar a vida de uma população à margem
da cultura oficial, mas que mantém vivos seus mitos e suas crenças. O objetivo não é novo e
sim a forma de abordagem que busca usar a linguagem da emoção na tradução dos valores
essenciais do nosso ser cultural popular, visando dialogar com o grande público.
Mas, a proposta de O Amuleto de Ogum não se encerrava no filme. É com esse filme
que Nelson reafirma a necessidade de uma descolonização cultural
381
, e para isso não basta
uma proposição teórica: “a única possibilidade de termos uma cultura é a de nós mesmos
toparmos inventá-la”
382
.
Apesar do esforço de Nelson de fazer um filme de extremo apelo popular, e sendo
popular, seria por conseqüência comercial e estaria inserido no bojo de um projeto global que
378
Nesse período, a nova Embrafilme estruturava-se com a distensão promovida pelo Governo Geisel e pelo
interesse cinéfilo do ministro João Paulo dos Reis Velloso que nomeou Roberto Farias como presidente desse
organismo estatal responsável pela política cinematográfica brasileira.
379
Randall Johnson, professor americano, pesquisador do cinema brasileiro, em Cinema Novo x 5: Masters of
Contemporary Brazilian Film, Austin, Texas, 1984, observa as recorrências nos filmes de Nelson Pereira dos
Santos.
380
Apud SALEM. Op. Cit., p.298.
381
É pertinente ressaltar a emergência das idéias em torno da descolonização cultural em nosso cinema nesse
período.
382
Entrevista a Cláudio BOJUNGA. Jornal da Tarde, 31/10/1974, São Paulo.
levasse em conta todas as questões relativas à produção e distribuição do filme, O Amuleto de
Ogum não teve sucesso comercial e sua distribuição ficou restrita a pequenas salas. No
entanto, circulou em diversos festivais, recebendo prêmios expressivos.
Quanto à crítica, a recepção foi majoritariamente favorável. Jean-Claude Bernardet
ao entrevistar Nelson Pereira dos Santos no Jornal Opinião irá afirmar que com O Amuleto de
Ogum nasceu um novo Cinema Novo:
O Amuleto de Ogum está certamente destinado a dar enorme impulso ao
atual cinema brasileiro, modificar profundamente as posições existentes,
relançar discussões de há longo tempo omitidas
383
.
Dos filmes agrupados como de perspectiva popular. Estrada da vida é o mais
simples. História ficcionada com base na biografia da dupla de música sertaneja Rico e
Milionário. Nelson fala sobre a sua concepção:
A idéia inicial era realmente ter um distanciamento sociológico. Mas, depois
de conversar com eles, percebi que queria não só conservar o conteúdo mas
fundamentalmente a forma pela qual contam a própria história. Na forma,
uma relação com a tradição de espírito circense, de espetáculos populares.
Um filme mais para Méliès, pela concepção de interpretações plástica do
mundo e universo imaginário das pessoas – do que para Lumière
384
.
A escolha por Georges Méliès, pioneiro que enxergou no cinema a possibilidade de
invenção, rende tributo ao cinema como forma de espetáculo e remete à magia, ao lúdico e ao
ilusionismo. Nelson sustenta essa opção e realiza um filme alegre e leve, sem deixar de tocar
na política, mesmo que de forma indireta, pois a ação das personagens leva à evidência os
mecanismos sociais em desordem e ao exercício crítico. Romeu e José chegam a São Paulo,
sem dinheiro e sem documentos, para trabalhar como pintor de paredes com o sonho de um
dia cantar para o povo. Hospedam-se no Hotel dos Artistas e decidem formar a dupla
Milionário e José Rico. No hotel começam a ensaiar e são contratados por Malaquias,
empresário sem caráter. Continuam trabalhando na construção civil enquanto o sucesso não
chega, mas são despedidos porque cantavam durante o trabalho e distraiam os operários que
paravam para ouvi-los. Gravam o primeiro disco e nada acontece. Fazem uma promessa
deixando um disco no altar de Nossa Senhora Aparecida. O LP chega à rádio local que toca
Estrada da Vida. Ocorre o milagre e o início de uma promissora carreira.
383
Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião n° 119, 14/02/1975, Rio de Janeiro.
384
Entrevista a Suzana Schild, Jornal do Brasil, 15/02/1981, Rio de Janeiro.
Como outros filmes de Nelson Pereira dos Santos, Estrada da Vida trata dos
migrantes rurais que saem em busca de uma vida melhor na cidade. Neste filme, a música é o
elemento de ligação que evoca a solidariedade entre os trabalhadores. O maniqueísmo
presente no início do filme para definir as caracterizações entre o rural e o urbano vai
desaparecendo à medida que a dupla ganha fama.
Alguns detalhes transfiguram o naturalismo, que é amparado em um sistema
narrativo, conferindo-lhe uma dimensão poética e bem humorada. Um momento que indica
essa situação: José Rico e Milionário estão pintando um prédio em um andaime no alto de um
edifício em construção. Cantam rememorando sua terra natal enquanto trabalham. A paisagem
urbana de São Paulo, com seus matizes plúmbeos, é subitamente transformada, como num
passe de mágica, em um verde campo. Outra instante que merece registro pela sua construção
ocorre na pensão, quando Rico e Milionário iniciam um solo musical que num crescendo
se transforma em uma reluzente orquestra popular. Também apresenta forte carga expressiva,
uma longa seqüência documental em que é mostrado o despertar de uma grande cidade.
Estrada da Vida mostra a ascensão do músico popular sertanejo em um ambiente de
entretenimento que não soa falso, pois a opção de Nelson não foi a de fazer um filme com
Rico e Milionário, foi a de fazer um filme para eles. É a abertura total do artista que sem
preconceito se abre para o exercício cada vez maior de sua liberdade:
Amo o povo e não renuncio a esta paixão. Eu quero fazer cinema assim
como essa dupla canta. Com o coração na jogada, senão nada vale a pena.
Agora, se o meu filme tiver um conteúdo crítico, tudo bem. É a minha
formação que está falando. [...] O negócio é não ter preconceito. Todos
temos que restituir ao artista sua verdadeira função que é a de criar com
amor e prazer
385
.
O filme fez grande sucesso não só no Brasil como no exterior. Na China, seu sucesso
foi tamanho que provocou uma excursão da dupla naquele país. Enquanto a crítica era
impiedosa ao dizer, entre outras coisas, que Nelson fizera um filme comercial para promover
a venda de discos da dupla, o público, talvez movido pela popularidade já alcançada pelos
músicos, acorria às salas para assistir à história de suas vidas. Calcula-se que mais de um
milhão de pessoas tenham visto o filme em apenas um ano. Para os padrões habituais de
freqüência de espectadores aos filmes brasileiros, esse número se constituía em verdadeiro e
inesperado sucesso de bilheteria.
385
Entrevista a Laura GREENHALD, Jornal da Tarde, 20/08/1979, São Paulo.
Tenda dos Milagres é talvez o mais ambicioso desses filmes. O próprio romance
de Jorge Amado oferece um universo extremamente plural e uma larga possibilidade de linhas
de força que se cruzam na narrativa do filme: resistência e afirmação religiosa do povo negro,
submissão da burguesia ao colonialismo cultural do mundo desenvolvido, solidariedade dos
oprimidos e conflitos conceituais entre a inteligência progressista e o povo.
Em Jubiabá, outro romance de Jorge Amado, a estrutura narrativa é mais simples.
Mais uma vez, Nelson Pereira dos Santos reafirma o estilo que vem desenvolvendo mantendo
a vocação popular do autor literário nos mesmos moldes de uma dramaturgia que se rebela
contra os modelos, não recorre aos mitos, o filme submete a força religiosa à ação popular.
MEMÓRIAS DE UM CINEASTA
Entre Estrada da Vida e Jubiaba, Nelson Pereira dos Santos realiza Memórias do
Cárcere (1984), uma mudança inesperada, abrindo um parêntese na classificação apresentada
na fase anterior que se referia a busca de um cinema de dimensão popular. Memórias do
Cárcere é mais uma adaptação de Graciliano Ramos e se reveste de um rigor formal que o
autor havia se distanciado nos últimos anos. A cada imagem corresponde uma intenção, os
ângulos escolhidos para expressar o seu desejo, sendo evitado o didatismo, aproximando-se
do virtuoso. Memórias do Cárcere tem a capacidade de sintetizar o que tem de melhor nas
suas experiências anteriores. Neste filme, Nelson Pereira dos Santos concentra a tradição
popular no estilo narrativo, guardando uma distância que impede a identificação do
espectador com o espetáculo, visando à reflexão, das imagens oferecidas. Na reestruturação
do plano original proposto por Graciliano Ramos atinge um resultado dramaticamente
eficiente e identificado aos seus pressupostos: dignificar o povo.
Memórias do Cárcere, a segunda adaptação literária de Graciliano Ramos em que
Nelson Pereira dos Santos irá comprovar que o cinema pode reivindicar a profundidade
atribuída à literatura tanto na narrativa concisa como através do domínio de sua linguagem.
Dessa forma, a adaptação dialoga não com o texto de origem, mas com o seu próprio
contexto, inclusive atualizando a pauta do livro. Mais uma vez, a incursão no passado é
mediação para falar no presente.
Em entrevista concedida a Suzana Schild
386
Nelson Pereira dos Santos comenta o
processo de elaboração do roteiro:
O roteiro é um trabalho desligado do livro. É a sua parte que começa -
escrever o filme.[...] É a fase de visualizar uma idéia. Eu tenho que ver para
escrever, e eu só registro o que estou vendo. Deito, fecho os olhos, e começo
a ver Memórias do cárcere.
A tarefa principal de Memórias do cárcere foi efetuar a síntese do livro, não dos
episódios, como dos personagens e a sua transposição para a linguagem cinematográfica,
onde a câmera narra e não apenas mostra:
Memórias é interminável. A adaptação do livro, essa condensação. O
trabalho de síntese, o livro tem não sei quantos personagens , eu acho que
tem uns seiscentos personagens, e eu consegui reduzir para cento e pouco
personagens. [...] Mas foi um trabalho grande, muito tempo de pesquisa, de
resumo. Agora, o curioso é que o texto mesmo eu escrevi em vinte dias [...]
porque eu já tinha lido tanto, tanto trabalho, que ficou fluente depois. Depois
de me apropriar da história do Graciliano, eu escrevi uma história como se
fosse minha mesmo
387
.
Nelson percebe a necessidade de estabelecer sua narrativa extraída do próprio texto.
Sublinhar algumas ações, inventar outras, recortar, fundir personagens, de modo a manter
sempre no epicentro a questão da resistência, por meio da sobrevivência da memória, tendo
como horizonte a liberdade. Memórias do Cárcere se constitui a partir dos manuscritos de
Graciliano Ramos ao passar dez meses na Colônia Correcional de Ilha Grande, em 1936,
preso pela polícia política de Getúlio Vargas, sob a acusação de pertencer a Aliança Nacional
Libertadora. Suas memórias, elaboradas em meio às ameaças de confisco e à carência dos
meios de produção, aparecem no filme como materialmente arrancadas das mãos da repressão
por diferentes estratagemas envolvendo a participação ativa do povo.
No encontro entre o escritor e o cineasta, como o que havia ocorrido em Vidas
Secas, uma equivalência de estilos, reitera-se um procedimento narrativo fundamental: a
gradação do ponto de vista na disposição das cenas para transpor a visão expressa na escrita.
No filme, esse procedimento resulta em recorrer aos recursos narrativos usuais de
campo/contra-campo, da escolha das prerrogativas da câmera, que narra e não apenas mostra
ao se definir o ângulo, a distância e o enquadramento que irão situar as personagens no
desenvolvimento da trama. Vidas Secas é sempre mencionado como filme-modelo da
386
Publicada na “Revista IBM”, ano VI, n° 18, setembro de 1984.
387
Apud entrevista Tunico AMÂNCIO p. 78.
modulação do ponto de vista no cinema brasileiro. Memórias do Cárcere mesmo sem assumir
a narração em primeira pessoa do texto original, procura essa equivalência ao colocar a
câmera na linha dos olhos de Graciliano Ramos (Carlos Vereza) e, devolver, por meio do
corte, a sua imagem que exprime a reação diante do observado. Nos dois filmes percebe-se a
opção por um padrão apoiado na narração que utiliza procedimentos clássicos de continuidade
na busca de identificação entre personagem-platéia. Nelson maneja uma matéria já
sedimentada sob seu inteiro domínio para se comunicar com o público.
Essa indicação da presença reiterada do olhar de Graciliano Ramos estende-se à
fotografia do filme, dividida entre José Medeiros e Antonio Luís Soares, que segue a linha da
estrutura de narração e simples, sem efeitos, sensível e íntima ao se aproximar dos
personagens, ajuda a desenhar o painel de experiências que envolvem a coletividade no
cárcere. A câmera segue as personagens discretamente, todas elas transitam livremente.
Delimitados os estilos de câmera e de encenação, o filme tem sua narrativa estabelecida no
cruzamento do tom reflexivo, próprio a Graciliano, e a expansão da intensidade emocional
que o espetáculo do cinema estimula. A opção é a sutileza, as cenas de amor insinuadas, a
tortura sugerida pela imagem de um machucado, o óbvio é descartado assim como o
didatismo. A elaboração é sofisticada e cada personagem no filme o anarquista, o
comunista, o militar, o trotskista é apresentado na sua complexidade, o maniqueísmo fácil é
recusado. O comentário de Ismail Xavier exposto no artigo Graciliano herói, atesta o domínio
da matéria fílmica, executada com maestria por Nelson:
Escritor e cineasta estão do mesmo lado no plano político-ideológico –
comungam no antifascismo, na crítica à exploração do trabalho, no repúdio a
ditaduras a serviço do capital. Mas uma diferença radical na atitude com
que representam tudo isso. Se o escritor é intransigente ao avaliar a
experiência, o cineasta se põe à vontade na composição do espetáculo com
instância de consagração e, deste modo, oferece às platéias a catarse. Dentro
desses parâmetros, o filme se realiza e é admirável a maestria de Nelson
388
.
Em relação à repercussão do filme, o público e a crítica são unânimes na sua
aceitação. As premiações nacionais e internacionais se sucedem. Não recomendações nem
retoques a serem feitos, em Memórias do Cárcere tudo está em sintonia.
O CINEMA POSSÍVEL DOS ANOS 90
388
Filme Cultura, nº 44, abril-agosto, 1984. p.18.
Na década que se inicia com o fechamento da Embrafilme, marcada por um grande
período de abstinência no cinema brasileiro
389
, Nelson Pereira dos Santos é um dos primeiros
cineastas a quebrar o jejum imposto pelas mudanças na política cinematográfica no País e
realiza A terceira margem do rio (1993-94). O filme é baseado nos contos A terceira margem
do rio, A menina de , Os irmãos Dagobé, Fatalidade e Seqüência do livro Primeiras
Estórias, de João Guimarães Rosa, um dos mais conhecidos escritores brasileiros. A terceira
margem do rio é a estrutura dorsal da trama na qual são abrigados os outros contos, dispostos
como episódios se parados e não relacionados. Nelson consegue a proeza de colocar grandes
trechos do texto de Guimarães Rosa na boca das personagens, representados por atores quase
desconhecidos, sem que as falas pareçam artificiais, criando um ambiente psicológico bem
afinado com o clima dos contos do autor literário. No entanto, não foi muito bem recebido
nem pela crítica e muito menos pelo público. Ao agregar num mesmo roteiro cinco contos
diferentes, transformando-os numa história abre horizontes narrativos muito diversos entre
si. A partir da sua metade, quando passa a ser ambientado na periferia de Brasília com a
intenção de promover uma grande alegoria da sociedade brasileira, ocorre um desnível na
condução da narrativa. O questionamento feito é sobre o uso da alegoria: a alegoria só
funciona com o que está em concordância com o que se pretende dizer, e se esse acordo não é
estabelecido a sua eficácia dramática é comprometida.
A terceira margem do rio retoma alguns pontos abordados nos filmes anteriores de
Nelson formando uma cadeia de citações que reforçam certas posições do autor. A presença
de Maria Ribeiro no elenco é uma referência à Vidas Secas. Faz uma alusão à seca para que
os poderes de Nhinhinha sejam referidos e remetam aos poderes religiosos evocados em O
Amuleto de Ogum para proteger Gabriel. A migração também acontece, como em Vidas Secas
e O Amuleto de Ogum, ressignificada reflete as mudanças ocorridas nos mundos urbano e
rural, testemunho das conseqüências do progresso e da modernização. A cidade não é a terra
prometida ao migrante, Nelson seguindo Rosa privilegia o interior, e suas personagens
transpõem a árida realidade sócio-econômica através da construção de uma atmosfera de
sonho e magia em que se debatem entre as forças do bem e do mal.
389
Na década de 1990 o cinema brasileiro foi dado como estagnado. Mas, como aconteceu outras vezes em sua
história, ele sobreviveu. A esse processo ocorrido nos anos 90, em que o cinema brasileiro ressurgiu e atingiu
certa estabilidade deu-se o nome de “retomada”. Cf. Lúcia NAGIB. O cinema da retomada. São Paulo: editora
34, 2002; Luiz Zanin ORICCHIO. Cinema de novo um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
Pouco depois de finalizar A terceira margem do rio, Nelson Pereira começou a
trabalhar num projeto do Instituto do Filme Britânico para comemorar o centenário do
cinema. O BFI (British Film Institute) encomendou filmes a diretores de várias
nacionalidades que retratassem a história do cinema em seus respectivos países. Em
depoimento prestado a Lúcia Nagib, ele esclarece:
Eles escolheram como tema o cinema da América Latina, pois, como
sempre, eles o vêem o Brasil, a Argentina ou o México, vêem a América
Latina,[...] Eu aceitei fazer e, em lugar de um documentário, preferi fazer
uma ficção. E escolhi um momento expressivo da história do cinema na
América latina, que foi o momento do melodrama, quando dispunha-se de
uma estrutura econômica para a produção e distribuição
390
.
Em lugar de filmar um documentário, como foi a abordagem adotada pela maioria
dos diretores, ele decidiu fazer um drama sobre a idade de ouro do melodrama Latino
Americano
391
:
Cinema de Lágrimas (1995). O projeto foi inspirado no livro Melodrama: Um
cinema de lágrimas da América Latina (1992) da professora e pesquisadora de cinema Sílvia
Oroz, que detalhou a história e sucesso do que freqüentemente eram chamados filmes para
chorar.
Nelson Pereira dos Santos utilizou o livro como base de referência para seu filme
ficcional sobre um ator-roteirista homossexual brasileiro maduro chamado Rodrigo (Raul
Cortez) obcecado pelo sonho recorrente sobre um trauma de infância o suicídio de sua mãe.
Para compreender o ato materno, ele decide encontrar o filme que ela viu pouco antes de
matar-se. A pesquisa o levou, e a um jovem assistente (André Barros), do Rio para a Cidade
do México, onde despenderam vários dias assistindo clipes de melodramas Mexicanos e
Argentinos na cinemateca da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Talvez
como resultado do romance e paixão melodramáticos que ele na tela, Rodrigo termina
apaixonando-se por seu jovem assistente.
Como nos papéis dos melodramas que assistem, o ator e seu assistente são
aprisionados num enredo de amor tumultuado, tragédia e perda. Após recusar as ofertas
amorosas de Rodrigo, o jovem finalmente separa-se dele. Mais tarde, do seu leito de morte no
hospital, escreve contando que é doente terminal, fugitivo de traficantes de drogas e da
390
Lucia NAGIB. O Cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34,
2002, p.435.
391
Entre os anos 1930 e 1950 ocorre a Idade de Ouro do melodrama Latino-Americano, esteio dramático que
tornou possível a associação, no cinema, de atitudes épicas ao drama íntimo.
polícia, e avisa que no momento em que Rodrigo receber sua carta ele estará morto. Também
relata que finalmente localizou o tão procurado melodrama, o qual copiou e enviou para
Rodrigo em deo, o filme argentino, Armiño negro (1953) de Carlos Hugo Christensen. Um
filme trágico sobre um garoto que se suicida após ficar sabendo que sua mãe é uma prostituta.
Após assistir ao vídeo, Rodrigo compreende que sua mãe decidiu não arriscar na possibilidade
de desfecho semelhante, suprimindo a própria vida.
A busca de Rodrigo pelos arquivos de cinema é o verdadeiro móvel do melodrama,
pleno de segredos de família, um suicídio, um caso de amor não correspondido, uma carta
premonitória contendo a resposta de um enigma, e a morte por interesse amoroso.
A pesquisa pelos arquivos também é um instrumento ficcional que permite que sejam
mostrados breves clipes, a maioria no original, de filmes em preto-e-branco, evocativos da era
do estúdio. Com isso, Nelson Pereira dos Santos presta tributo a uma geração de diretores,
cinegrafistas, e estrelas que se tornaram famosos internacionalmente em função de seus
trabalhos em melodramas e adota uma posição revisionista em relação ao gênero que, como a
chanchada brasileira, foi freqüentemente criticado pelos autores dos novos cinemas por sua
associação a Hollywood.
Mas, Cinema de lágrimas também contém muitas referências ao Cinema Novo, as
quais freqüentemente se justapõem aos melodramas. No filme, Nelson Pereira dos Santos
aponta para a coexistência entre essas tendências. Usando de recursos de elementos de
arquivo em dois momentos ele incorpora pequenos pedaços e trechos de leituras sobre
Glauber Rocha e sobre o “cinema imperfeito” cubano. Essas referências são introduzidas
através da discussão em sala de aula de um professor da UNAM; nos planos que mostram os
corredores decorados com posters de produções do Cinema Novo e nos banners fora da
cinemateca que fazem alusão a esse movimento. Na cena final do filme, Rodrigo sai de uma
projeção de Armiño negro, o filme associado a sua mãe, para uma projeção do Deus e o diabo
na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, que assiste com estudantes num grande auditório.
Pode-se inferir que o filme de Nelson Pereira dos Santos é uma tentativa de
compreender o cinema Latino Americano enquanto dialética entre dois momentos diferentes
na história do cinema de dois diferentes tipos de filme, um dos quais (melodrama) obteve
grande sucesso com platéias nacionais enquanto o outro (Cinema Novo), foi menos popular e
melhor recebido em platéias estrangeiras. Ele não demonstra privilegiar nem um nem outro, e
até sugere existirem afinidades entre eles. Aponta para um espaço de conciliação, que
alguns pesquisadores, a esta linhagem Sílvia Oroz se integra, entendem que o distanciamento
do público ao Cinema Novo ocorreu devido à forma hegemônica adotada pelo movimento,
em que se excluíram outras formas de representação que não fossem a relacionada à “Estética
da Fome”, e que não tivesse a ver com as estruturas intrínsecas do subdesenvolvimento. Sílvia
Oroz sustenta a posição de que o povo deixou de ir ao cinema a partir do dia em os cineastas
passaram a analisar de forma realista a tragédia do povo brasileiro e explica essa situação pelo
viés da emoção: “O povo foi considerado tema mais desconsiderado como beneficiário, foi
privado da emoção”.
392
Cinema de lágrimas, no contexto da filmografia do autor, destaca-se como um
trabalho de menor expressão, mas, em perspectiva, indica uma complexa evolução do seu
pensamento sobre o cinema. Sintetiza as qualidades opostas constituintes de seus filmes -
diversão e experiência auto-reflexiva, emoção e crítica social -, reconciliando o conflito entre
eles. Servindo como uma espécie de resgate do que não foi contemplado anteriormente,
revisão do que sofreu alteração e também como retrospectiva de sua obra, a qual, como já foi
anteriormente mencionado neste texto, envolve muito da história do filme brasileiro.
NOVO MILÊNIO: TELEVISÃO, DOCUMENTÁRIOS E DE NOVO CINEMA
Na virada do milênio, comemora-se o centenário de Gilberto Freyre, sociólogo
brasileiro de reconhecimento internacional devido aos estudos que fez sobre a cultura e a raça
brasileira.
A rede de televisão GNT propõe a Nelson Pereira dos Santos para comemorar o
centenário do sociólogo a realização de uma série de documentários baseada no clássico da
sociologia brasileira: Casa grande e senzala (1933).
A série é estruturada seguindo as determinações de um filme educativo, ancora-se na
pesquisa, usando uma narrativa derivada da cultura nordestina onde um contador de histórias,
o especialista em Gilberto Freyre Edson Nery Fonseca, conversa com sua jovem assistente,
dando ênfase na cultura oral e levando para o gênero documentário elementos ficcionais. As
locações acontecem em Recife e Olinda, cidades em que Gilberto Freyre viveu, na
Universidade de Columbia, onde estudou como aluno de graduação e em Lisboa e Coimbra,
onde deu prosseguimento à sua pesquisa sobre o Brasil.
392
Esta frase foi retirada da entrevista concedida à pesquisadora em agosto de 1977, na ocasião da realização da
pesquisa para a dissertação do mestrado “Quando o cinema virou samba representações de identidade no
moderno cinema brasileiro”.
Ainda sob a égide das efemérides, após assistirem à série da GNT, os filhos de outro
ilustre pensador do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, convidam Nelson Pereira
dos Santos para realizar um filme a partir da obra do pai. Raízes do Brasil (1936), ontológico
tratado sobre a constituição do ser brasileiro, que comemorava o seu centenário no ano de
2002. Assim, Raízes do Brasil uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda (2004) é
realizado. Constituído em duas partes, cada uma delas convocando à sua completude, compõe
uma tese curiosa e ousada, que dialoga com certa facilidade com a espinha dorsal do conjunto
da obra de Nelson Pereira dos Santos, uma obra que quer mostrar um Brasil, que por algum
motivo não está clarificado, e que é importante em si mesmo, não por seu valor de exotismo,
mas por seu valor oculto e subjacente, o valor a ser desvendado pelo espectador.
Na primeira parte o documentário mostra uma série de descrições intimistas feitas
pelos filhos, netos, esposa e amigos, discursos de descrição subjetiva. A segunda parte é
dedicada ao discurso de objetividade científica espelhando trechos de Raízes do Brasil,
estruturado como filme educativo aos moldes de Casa Grande e Senzala, entrecortados com
narrações da biografia de Sérgio Buarque de Holanda, feita por ele mesmo, e lida por filhos e
netos. Em paralelo a essas leituras, imagens da época. Resulta desse filme, a síntese
promovida pelo conjunto das duas partes, o discurso afetivo e o da intelligentsia sobre o
mundo, confirmando elementos recorrentes na obra de Nelson Pereira dos Santos: o mundo se
forma entre a descrição sentimental e a descrição sistemática.
Brasília 18%, (2006) marca a sua volta ao cinema de ficção após 11 anos, período
em que se dedicou a realização de documentários. Brasília 18% tem seu título composto por
número, tal qual a sua obra inaugural Rio 40 Graus, a história se passa durante três dias entre
os meses de julho e agosto, quando o clima em Brasília é muito seco atingindo os 18° na
umidade relativa do ar. Ao mesmo tempo, o título do filme é sugestivo de algumas referências
e comemorações: este é o seu décimo oitavo filme de ficção em longa-metragem e a ação do
filme se desenrola na Capital Federal, Brasília. É neste ano também que se comemoram os 50
anos de Rio, 40 Graus, cuja ação acontece na então Capital Federal do País, o Rio de Janeiro.
Os títulos desses filmes remetem à condição atmosférica do ar (temperatura e umidade) e
trazem números e nomes cidades nos seus títulos. Associações podem ser feitas com relação a
esses números. 18 não poderia ser um percentual a ser pago a alguém? 40 graus não remeteria
ao caldeirão político que esquentava o Rio de Janeiro em meados dos anos 1950?
Na verdade, o clima do planalto central é estranhamente semi-árido, 18%. É dito que
na cidade-capital, no inverno, desovam-se os cadáveres no planalto, acobertados pelas chuvas.
No verão, devido à seca, a polícia começa a encontrar os corpos. É esse o mote inicial de
Brasília 18% - um corpo de uma moça, uma assessora parlamentar é encontrada morta. Na
trama, Olavo Bilac (Riccelli) é um médico legista chamado de Los Angeles para elaborar o
laudo de um corpo encontrado. Morte que pode ocultar um crime político para acobertar
escândalos de corrupção. Suspeita-se que o corpo seja de Eugênia Câmara (Karine Carvalho),
uma jovem assessora parlamentar desaparecida e que estaria prestes a denunciar fraudes
envolvendo políticos poderosos. A intenção dos políticos é aliciar o médico para que ele
assine logo o laudo implicando a culpa no namorado da moça, Augusto dos Anjos (Michel
Melamed), um jovem cineasta, que a teria matado depois de ter visto um vídeo em que ela
fazia sexo com dez homens num inferninho. Enquanto isso, Olavo Bilac tem alucinações com
sua falecida esposa (Bruna Lombardi) e com a moça assassinada.
Para se compreender Brasília 18% é necessário ser complacente com o protagonista
da história, que não tem as características do herói romântico, assim como é preciso entender
o lócus Brasília como pano de fundo, sem pretender reduzir o filme à corrupção em Brasília
No decorrer do filme Olavo Bilac percorre os meandros de Brasília e não se mistura
a nenhum deles. Afirma que seu trabalho não é político, é meramente técnico. Essa atitude
asséptica de não tomar conhecimento de não se imiscuir acaba-o por levá-lo á uma
encruzilhada e conseqüentemente ao fracasso da sua missão, sob chantagem assina o laudo e
torna-se cúmplice de toda a situação que o enredou. Bilac que se pretendia fora da estrutura de
poder, mas a sua omissão coloca-o na base dessa estrutura, sente-se vítima ao ceder à pressão.
O filme expõe a sua covardia, mas não o julga. Brasília 18% é um filme de gênero de
mistério, de regras narrativas clássicas, com forte componente onírico, que é trazido ao filme
para ilustrar o distanciamento abismal da realidade de Brasília com o seu projeto modelo do
racionalismo e da funcionalidade. Seus enigmas não são solucionados, não há teses ou
certezas a serem comprovadas, há somente versões a serem contrapostas.
O filme não foi bem com o público e não despertou muito o interesse da crítica, em
que pesem as expectativas colocadas sobre ele. Na revista Contracampo Daniel Caetano
assina uma crítica sobre o filme, em que afirma:
O filme conseguiu um fato incomum: a grandeza e a integridade de Brasília
18% são inversamente proporcionais às do universo retratado. Conseguiu
isso do seu modo: bem humarado e amargo; sendo ao mesmo tempo a
narração de um pesadelo de um personagem em confronto com a realidade
racional e um filme de mistério que não se decifra; com seus personagens de
nomes bem conhecidos[...]; com uma fotografia criada sem medo do
escuro[...]; fazendo, ao mesmo tempo, uma profissão de fé na importância do
cinema buscar a realidade [...] e, ao mesmo tempo, um alerta à
impossibilidade desse objetivo; mostrando com uma emoção notável os
movimentos e os corpos com beleza incomum no olhar; descobrindo o
ambiente tipicamente brasiliense dos interiores de carros e escritórios; a
partir do seu modo de olhar experiente, tranqüilo, sem firulas; a partir das
atuações irretocáveis do elenco, é assim que o filme mais recente de Nelson
Pereira dos Santos se mostra raro, impressionante
393
.
de
dede
de
Paraiso Juarez
Paraiso Juarez Paraiso Juarez
Paraiso Juarez
394
Nós temos uma tarefa a cumprir: a de vivermos no mundo em que nascemos
e de expressá-lo no que realizarmos; tanto faz se o amamos, ou se o
sofremos. Em se tratando de um mundo bárbaro, como parece ser este nosso,
indiferente aos valores espirituais e estéticos, como afirma Herbert Read, a
arte contemporânea valerá como protesto.
Juarez Paraiso
A rigor, não foi o menino nascido em 1934 em Arapiranga, município de Minas de Rio
de Contas, quem escolheu a arte como caminho, para trilhar na vida. Foi a própria Arte quem o
escolheu para representar, junto com outros grandes mestres, o espírito do nosso século.
Que outra razão, senão a conjunção dos astros com as forças telúricas, - Virgem,
como signo do zodíaco e Oxossi, como santo - aliada à educação rigorosa e formação ética
exemplar, poderia determinar que Juarez Marialva Tito Martins Paraiso, o terceiro filho (entre
quatorze) do professor Isaltino Concécio Paraíso, saísse das barrancas do Rio de Contas para,
vencendo as maiores dificuldades, se tornar um mestre respeitado e um grande artista na
capital, e para muito além dela?
393
Contracampo Revista de Cinema n° 70
394
Paraíso Juarez é o título de um documentário feito pelo fotógrafo e documentarista nascido em Budapeste,
Hungria, Thomaz Jorge Farkas, no qual o artista plástico Juarez Paraíso conta como realizou sua obra magistral
de decoração da sala de espera do Cine Tupy, em 1968. Tempos depois, o Cine Tupy foi vendido e o comprador,
incapaz de reconhecer no trabalho uma obra de arte a qual faz alusão à evolução da comunicação de massa, à
cultura (em especial, ao cinema) e à tecnologia - mandou destruir tudo ao invés de desmontá-la, como era
possível fazer, e entregá-la ao autor, ou a tantos que admiram e respeitam o artista e sua arte, e que se sentiriam
honrados em preservá-la.
395
Entrevista concedida a Marise BERTA em 11/08/2007.
Felizmente, a arte não faz distinções, não recruta ninguém por critérios de classe,
raça ou etnia. Por outro lado, exige do verdadeiro artista que a ela se alia, dedicação
exclusiva, coerência, espírito aberto e solidário, sensibilidade social e desapego aos
modismos, “tendências” e apelos comerciais. Tudo isso a Arte encontrou em Juarez e, talvez
por isso, ele pôde como ninguém, experimentar de todas as suas vertentes do acadêmico-
realista clássico ao desenho digital - e dominá-las, sem a preocupação de criar um estilo ou
especializar-se apenas em uma delas. Seu estilo é ditado pela liberdade de exercitar-se em
todas as técnicas – pintura, fotografia, escultura, desenho, litogravura, xilogravura, instalação,
murais, arte digital, etc. com igual desenvoltura e, não raro, superpondo essas técnicas ou
recombinando-as.
Primeiro, ainda menino, começou a copiar, ampliando, os heróis fantásticos das
histórias em quadrinhos das revistas: Gibi, Globo Juvenil e Guri. Este contato inicial deixaria
para sempre sua marca, visível nas linhas sinuosas e sensuais de suas esculturas e entalhes, e
mesmo nas fotografias e desenhos eróticos de figuras humanas. Nesses trabalhos - posteriores
ao seu período clássico na EBA - a influência do quadrinho torna-se explícita pela utilização
da perspectiva exagerada, pela valorização do primeiro plano, pelo enquadramento do detalhe.
Estes termos, tão familiares ao fotograma da arte cinematográfica, são perfeitamente
aplicáveis a grande parte da obra de Juarez Paraíso.
É curioso como, no final dos anos 40 e início da cada de 1950, enquanto Juarez
apenas acabava de entrar na Escola de Belas Artes, Nelson Pereira dos Santos, em São Paulo,
esteve inclinado, ou pelo menos manifestou ao amigo Luís Ventura o desejo de trabalhar com
a pintura e o desenho. Além de Ls Ventura, Nelson era amigo do artista plástico Otávio
Araújo e faziam parte de um grupo capitaneado pelo pintor Bonadei. Todos se reuniam uma
vez por semana numa sala do MASP, cedida por Pietro Maria Bardi para, sem compromisso
profissional, discutir sobre teatro. Participavam também do Clube dos Artistas e Amigos da
Arte que realizava trabalhos voltados à pintura, à literatura e à poesia. Anos depois, Otávio
Araújo diria que o desejo que Nelson tinha de aprender pintura e desenho talvez viesse de sua
necessidade de compreender aquilo, lembrando que também “o Eisenstein desenhava”.
Aos dezesseis anos Juarez Paraíso vai estudar na Escola de Belas Artes, onde passa
doze anos, envolvido com o realismo clássico, única concepção de arte aceita pela Escola. É
obrigado a abandonar, muito a contragosto, - o professor Raimundo Aguiar recomenda a seu
pai, que o faça desistir de copiá-los - seus heróis do quadrinho, com suas cores vibrantes, seus
movimentos excessivos, sua composição assimétrica, opostos à tradição acadêmica. Seus
primeiros mestres, adotados, sobretudo por afinidades estilísticas menos ortodoxas: Alex
Raymond, Hogarth e Will Eisner são substituídos na EBA por outros, fiéis ao academicismo,
porém de grande importância em sua vida: Presciliano Silva, Alberto Valença, Mendonça
Filho que Juarez considera um verdadeiro pai espiritual Raimundo Aguiar e sua filha
Nilza, Ismael de Barros e Emídio de Magalhães. Esse convívio lhe deu o domínio da técnica,
rigor e disciplina de trabalho, mas não a satisfação da criação livre, a espontaneidade do
gesto, que ele só viria a encontrar com o modernismo que, fora do alcance da Escola,
fervilhava então por toda parte.
Pela minha habilidade, cheguei a ser convidado para ser presidente do
Patrimônio acadêmico-realista da EBA. descobri um cara chamado
Jacques Vion, outro chamado Picasso, Georges Braque e Hieronymus
Bosch, por quem fiquei realmente fascinado e cujo trabalho não tinha nada a
ver com o que eu fazia. Eu me perguntei: estou aqui fazendo o que, em meio
a toda essa pinacoteca meio romântica, essa herança realista neoclássica?
Havia rumores na cidade a respeito de um cara chamado Mário Cravo,
afrontando a todos com seus Exus de pênis imensos. Comecei a me acercar
disso e assim fui me aproximando da arte moderna
396
.
Ao invés de dar continuidade ao trabalho acadêmico redutor, vigente na Escola de
Belas Artes, como era a vontade de seus mestres, Juarez se rebela - ao lado de Riolan
Coutinho, Maria Célia, Mário Cravo Jr., Adam Finerkaes, Henrique e Jacyra Oswald,
Mercedes Kruschewsky e João José Rescala, nessa época o diretor - contra aquela concepção
neoclássica e restritiva, e incorpora os princípios da arte moderna às disciplinas da EBA.
O neo-realismo, extensão natural do realismo francês, era amplamente difundido e
cultuado em todo o mundo desde 1949, e constituiu-se numa revelação - quase revolução - de
que era possível, tanto no cinema como nas artes plásticas, obter produtos de grande
qualidade sem copiar modelos datados e sem precisar de grandes aparatos, equipamentos
caros, tecnologias inacessíveis. O cinema e as artes plásticas buscam inspiração nas ruas, se
espelham no próprio povo e podem ser feitos com o material disponível e utilizando-se de
todas as técnicas possíveis. Este legado do neo-realismo francês chega à Bahia com algum
atraso, mas é logo absorvido avidamente pelos artistas descontentes com o statu quo.
O rompimento do isolamento cultural da Bahia em relação ao que acontecia no
mundo em termos de artes plásticas, poderia acontecer com a assimilação do arcabouço
modernista, que repudiava a cópia em favor de uma interpretação livre e autônoma, onde o
próprio processo criativo demandava uma percepção mais abrangente e uma ênfase maior nos
estudos da composição, que possibilitavam um espectro muito amplo de novas experiências.
396
Entrevista concedida a Marise BERTA em 11/08/2007.
Picasso fez (de) tudo. Contrariei os artistas profissionais. Fazer uma só coisa
é uma divisão falsa, coisa de mercado. Um artista tem de dominar todas as
linguagens, todos os recursos, pois cada técnica é uma expressão. Teve um
crítico que disse que meu maior pecado é fazer tudo bem
397
.
A década de 60 é particularmente favorável à disseminação de novos ares na arte
baiana pela sucessão de fatos que impulsionaram o reconhecimento de Juarez na cena artística
nacional. Lina Bo Bardi inaugura o Museu de Arte Moderna da Bahia; Juarez organiza aqui,
duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas; também comanda a Galeria Convivium e é diretor
artístico da Revista da Bahia
398
. Todas essas atividades, além de participações em feiras de
arte, simpósios, debates e exposições, fornecem a Juarez a oportunidade de relacionar-se
diretamente com os mais importantes artistas e críticos de arte da Bahia e do Brasil e lhe
permitem reciclar e consolidar seus conhecimentos teóricos e sua habilidade prática. Seu
belíssimo e revolucionário trabalho de ambientação da sala de espera do Cinema Tupy é de
1968. Mistura de mural e tratamento espacial arquitetônico, Juarez combina influências da
arte barroca pela utilização das silhuetas sinuosas, a uma estrutura cênica que surpreende e
envolve os espectadores com sua temática de evolução da comunicação e tecnologia, que
ocupa todo o espaço e se reflete ampliada pelos espelhos recortados, de forma a multiplicar os
sentidos.
É provável que o recrudescimento dos atos de exceção da ditadura tenha levado o
artista de volta ao figurativismo, no final dos anos 60 e início da década de 1970, para
representar com vigor surrealista e erótico suas inquietações políticas e sociais, e explicitar
sua luta contra os preconceitos sexuais e religiosos.
Foi na década de 70, mais precisamente em 1976 que, quase acidentalmente, Juarez
conhece pessoalmente Nelson Pereira dos Santos.
Nelson havia filmado alguns artistas, e Jorge Amado lhe pediu que fotografasse
Juarez ao lado de um mural que este havia executado no Centro Administrativo
399
. O
397
Claudius PORTUGAL (org.). Juarez Paraíso Desenhos e Gravuras. Salvador: Fundação Casa de Jorge
Amado; COPENE, 2001. p. 69-70. (Casa de Palavras, Série Desenhos, 5)
398
Rebelando-se contra a manipulação de dados históricos, Juarez afirma que na Bienal recebeu ordens de um
dos responsáveis para censurar quadros. Desobedeceu e foi preso por trinta dias. Na outra, recebeu do próprio
governador, ordem para retirar obras, e a Bienal deixou de existir. Quanto à Revista da Bahia, diz, quem a
fechou “não foram os militares, mas a administração”. E termina se queixando da indelicadeza da Universidade
em não explicitar que o acervo (mais de quarenta obras) da galeria Convivium lhe foi doado por ele. In: Claudius
PORTUGAL (org.). Juarez Paraíso Desenhos e Gravuras. Op. Cit., p.70.
399
Jorge AMADO. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei.
Rio de Janeiro: Record, 1993, p.459. Em Navegação de cabotagem, espécie de livro de memórias, Jorge Amado
narra o seu empenho, telefonando pessoalmente ao governador Antônio Carlos Magalhães, para incluir Juarez
problema da saída de Jards Macalé do filme Tenda dos Milagres, que Nelson estava rodando
em Salvador, onde ele fazia o papel de Pedro Arcanjo, era recente. O filme estava órfão de
seu ator central e era urgente que se encontrasse alguém para substituí-lo. Depois, revendo o
filme na residência de Jorge, ao ver a imagem de Juarez na tela, como num estalo, Nelson e
Jorge percebem imediatamente sua semelhança com o personagem e o convidam a fazer parte
do elenco do filme, baseado no livro de Jorge Amado.
Juarez aceitou a proposta, apreensivo por não possuir nenhum atributo especial de
ator, e externou essa preocupação. Nelson lhe garantira que “não queria um ator que
carregasse os cacoetes de um ator profissional”. Ele seria Pedro Arcanjo e ponto final.
A simpatia que emanava de Nelson, e a atenção que ele dedicava a todos
indistintamente, aplacaram de vez todas as apreensões e minimizaram a timidez de Juarez
diante das lentes.
Eu participei do filme com envolvência (sic) afetiva, com envolvência
emocional. Porque eu nunca fui ator
400
... então, teria que ser eu mesmo e,
justamente, o bom pra mim foi isso, nessa experiência. O Nelson disse para
mim: você não precisa atuar, seja você mesmo. Pedro Arcanjo se parece
muito com você, com sua vida! Jorge Amado me contou como foi sua vida
aqui na Bahia, sobre essa coisa do preconceito que existe muito aqui, às
vezes difícil de ser identificado porque está camuflado, portanto, seja você
mesmo. E eu tentei ser eu mesmo
401
.
Essa história parece coroar a ligação que Juarez sempre teve desde a infância,
desde o tempo dos quadrinhos ainda que intuitivamente, com o fotograma, e se concretizou
meio por acaso, pois nunca passou por sua cabeça a idéia de atuar no cinema.
Tudo começou, como foi dito, quando o músico e compositor Jards Macalé, que
fazia o papel de Pedro Arcanjo no filme, se desligou do elenco por questões pessoais e Nelson
foi obrigado a improvisar, fazendo dois personagens. Um Pedro Arcanjo jovem (Jards
Macalé), e outro mais maduro que seria interpretado por Juarez Paraíso.
Com o afastamento de Jards Macalé do elenco, surgiu o impasse sobre o que deveria
ser feito em tal situação. Como substituir um ator por outro, sem ter que refazer todas as cenas
filmadas pelo primeiro? Assim surgiu a idéia de dividir a vida de Pedro Arcanjo em dois
tempos distintos, artifício esse que não ocasionaria grandes prejuízos na continuidade e
compreensão do roteiro.
Paraíso, militante de esquerda, à lista de artistas que tiveram seus trabalhos compondo os novos edifícios
públicos no Centro Administrativo.
400
Nikita Paula menciona a participação do não ator no cinema. Cf. Vôo cego do ator no cinema brasileiro:
experiências e inexperiências especializadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2001.
401
Apud depoimento a Marise BERTA.
Na quase totalidade das tomadas utilizou-se como cenário as ruas e casas do
Pelourinho, Terreiro do Bogum e Cidade Baixa (Órfãos São Joaquim).
Juarez diz que sentia alguma dificuldade em decorar os textos porque muitas vezes
Nelson não os entregava com antecedência suficiente, e ainda os modificava na hora de gravar
as cenas. Sua experiência como professor lhe permitiu sair-se razoavelmente bem da tarefa.
Segundo Juarez, todas as noites Nelson se encontrava com Jorge Amado, na casa deste, para
discutirem os detalhes de alguma cena, anotava tudo e levava o calhamaço para construir e
adaptar os textos que eram distribuídos aos atores. Muitas vezes, o próprio Jorge Amado
estava presente no set de filmagens
402
.
Nelson tinha um comportamento sempre afável e cortês, “uma pessoa simples”,
como o define Juarez, sempre respondendo com tranqüilidade e precisão às questões
colocadas pelo elenco, como a formulada por Juarez a respeito do fato dele utilizar sempre a
mesma roupa em todas as cenas. Nelson lhe disse para não se preocupar, pois Pedro Arcanjo
era pobre.
O personagem, portanto, foi construído a partir da própria experiência de vida de
Juarez, que, como Pedro Arcanjo, também tinha sido pobre e sofrera com preconceitos por ser
mulato, e das conversas com Jorge Amado sobre Manoel Quirino, que parece ter inspirado
Jorge para a criação de Pedro Arcanjo.
Fazer um personagem do espaço sagrado do candomblé não foi um problema para
Juarez porque, apesar de não ser um seguidor ou de professar qualquer religião, ele sempre
considerou a importância de todas elas.
O que eu sempre fiz foi respeitar (o candomblé). Para mim, todas as religiões
são iguais. Professar, eu professei por condicionamento ditatorial da região e
da família. Não acredito que haja uma religião. Há uma, no sentido da
convergência. Todas são compatíveis. Então, pra mim foi fácil (fazer Pedro
Arcanjo), eu sempre respeitei, sempre aceitei. Não sou de candomblé, mas
respeito o pessoal de candomblé e sei que merece respeito
403
.
Para fazer o filme de Nelson Pereira, Juarez além de ler o livro de Jorge Amado,
vivenciou a ambiência do romance, pois ele mesmo morou no Pelourinho, anos antes, numa
sala alugada na Rua 28 de Setembro, zona do meretrício apelidada de “mangue”, convivendo
em suas ladeiras e ruas estreitas com a comunidade negra do Pelourinho e da Barroquinha, no
final da Baixa dos Sapateiros. Tinha amigos e alunos moradores da área que eram adeptos e
402
Ibid.
403
Ibid.
freqüentavam os terreiros de candomblé. Ao representar Pedro Arcanjo, Juarez não sentia
representar alguém estranho ao seu mundo.
Era um ambiente muito conhecido meu [sic]. Convivi com a comunidade
negra do Pelourinho que era 90%. Hoje o Pelourinho não tem nada a ver
com o que era. O que houve ali, eu acho que foi uma irresponsabilidade,
porque no fim não existe mais a comunidade original, não sobreviveu
ninguém [...] porque é assim que se faz, se expulsa para a periferia. [...] Era
uma comunidade íntegra, espetacular. Para desmanchar aquilo, você deve
entender que houve uma violência muito grande do ponto de vista social, não
é? Não se desapropria ninguém assim do seu habitat. Quando se faz isso, se
está matando as pessoas, não é? Em função de um turismo cultural que não
existe
404
.
Juarez contribuiria ainda não mais como ator, mas como artista plástico em outro
filme de Nelson, Jubiabá, envolvendo-se com os cenários da primeira etapa da produção,
ainda quando esta estava sediada em Salvador, antes do deslocamento para a cidade de
Cachoeira. Seu envolvimento no filme também se deu pela via do companheirismo, ajudando
na finalização dos desenhos dos figurinos criados pela companheira de vida e de arte, Márcia
Magno.
Depois disso, a sua intervenção no cinema, se através do seu incondicional apoio
à Jornada de Cinema da Bahia, participando como jurado, através de doação de obras para a
premiação e na montagem das exposições temáticas promovidas pelo evento.
Nos anos 1990, com o retorno de Roland Shaffner
405
à direção do Instituto Goethe,
Guido Araújo preparou um grande evento rememorando os anos 1970 em Salvador,
enfocando a vida política e cultural da cidade e a germinação da Jornada de Cinema, Juarez
fez os cartazes e a curadoria da exposição.
Hoje, seu tempo é dividido entre os afazeres de artista e professor, aprofundando
suas pesquisas sobre gravura em metal e em lâminas de linóleo, inovando ao utilizar o clichê
fotográfico, e reintroduzindo a água-forte e a água-tinta. Dedica-se a ampliar suas pesquisas
sobre escultura e criação de objetos utilizando cabaças e sementes, iniciando a seguir seus
trabalhos de desenho digital, sem deixar de produzir ao mesmo tempo suas pinturas,
esculturas e murais monumentais.
No passo a passo da vida, Paraíso Juarez, senhor do perfeito manejo de transformar a
natureza em arte e professor por vocação, participou de centenas de exposições, recebeu
404
Apud entrevista a Marise BERTA
405
Roland Shaffner dirigiu o Instituto Goethe (ICBA), entre 1970 e 1977, exerceu o papel de agitador cultural
em Salvador, incentivando jovens artistas, promovendo a cultura local, além de divulgar o melhor da cultura
alemã.
incontáveis prêmios, somando mais de uma dezena de títulos acadêmicos que lhe conferem
reconhecimento, dos quais se destaca o diploma de Professor Emérito da Universidade
Federal da Bahia, recebido em 1996. Com paixão e poesia recupera a sua trajetória:
Vivi a Bahia dos mil mistérios, a Bahia de Rubem Valentim,
Helio Oliveira e de Procópio, cheia de Orixá e revelações.
Foi quando convivi com Cosme e Damo
e me perfumava com o incenso dos santos.
Vivi a Bahia de José Maria, de Cosme de Farias
e de Cuica de Santo Amaro,
quando conheci as almas penadas da madrugada,
os eternos mendigos da carne e do espírito, a violência policial,
as prostitutas e os prostíbulos, a Bahia da madrugada,
escura e infindável.
Vivi a Bahia da boemia, a Bahia de Sandoval, do Tabaris
e do Rumba Dancing, do Pigalle e do 63,
uma Bahia de prazeres e de perigos sedutores.
Vivi a Bahia da antiga Água de Meninos
E da Universidade de Edgard Santos.
Vivi a Bahia de Jorge Amado e convivi com o seu Pedro Arcanjo.
Vivi a Bahia envelhecendo, desgastada, cedendo lugar ao novo,
ao pseudo novo e ao novo velho.
Hoje vivo a Bahia sobrevivente, ainda mais bela e majestosa,
a mais natural capital do Brasil, a mais africana e a mais brasileira.
Eterna fonte de inspiração.
406
406
Juarez PARAISO. In: Claudius PORTUGAL (org.). Juarez Paraiso Desenhos. Op. Cit., p.98.
de Quadro de Produção
de Quadro de Produçãode Quadro de Produção
de Quadro de Produção
Rio, 40° é uma luta comigo mesmo. Descolei a grana, inventei a história, não
tinha produtor, não tinha nada. Foi uma invenção de moleque de rua, a
vontade de fazer. Tem um momento que você tem que decidir. Decidir pelo
fazer é sempre uma boa; a boa é fazer. Você queria dez, tem cinco, tudo
bem. Porque, nós de cinema, herdamos também aquele mito de Hollywood
de riqueza, o produtor brigando com o diretor...(no Brasil), o produtor é tão
pobre quanto o diretor.
Nelson Pereira dos Santos
407
Dos dezesseis longas que eu fiz, existe muita diferença no tipo de produção
de um para o outro.
Nelson Pereira dos Santos
408
É preciso não esquecer o papel do indivíduo-realizador na produção do
cinema brasileiro. O Cinema Novo esteve nesse processo, foi feito na base
de autores que se sacrificam como produtores, e assim o cinema brasileiro
pôde se afirmar no plano cultural, e foi na base dessa experiência que
também foram desvendados os mistérios da comercialização, da distribuição,
da importação.
Nelson Pereira dos Santos
409
Ao lado da busca de uma expressão própria para o cinema brasileiro Nelson Pereira
dos Santos não se descuidou dos seus mecanismos de produção, procurando, no decorrer de
sua trajetória, viabilizar dispositivos compatíveis com a lógica que propunha para o cinema
moderno no Brasil.
Rio, 40 Graus, o seu primeiro filme em longa metragem é feito com um grande
esforço pessoal e uma vontade inquebrantável, o que viabilizou uma forma alternativa de
produção:
407
Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.344.
408
Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J. SADLIER. Nelson Pereira dos Santos. Urbana and
Chicago: University of Illinois Press, 2003, p.130. Of the sixteen feature length-films Ive made, there’s a lot of
differences in the type of production from one to the next.
409
Apud Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.43.
Escrevi o roteiro de Rio, 40 Graus, mas o consegui produção, pois
ninguém queria fazer um filme com personagens negros na sua maioria.
Havia um grande preconceito contra o negro no cinema carioca, preconceito
que foi engrossado quando os dois primeiros filmes da Atlântida foram
lançados e não tiveram boa bilheteria. O primeiro contava a vida do Grande
Otelo e se chamava Moleque Tião. Foi destruído no incêndio da Atlântida e
não há cópias do filme. O segundo – Também somos irmãos (1949) –
continuou insistindo no tema da discriminação racial. O roteiro era de Alinor
Azevedo e direção de Zeca Burle (José Carlos Burle). Desse ainda uma
cópia. Permaneceu também a idéia de que filme que tem a presença de
negros não tem sucesso
410
.
Ninguém aceitava o meu argumento, nenhum produtor existente achava que
aquilo era cinematográfico, eu inventei uma empresa para fazer o filme.
Como? A proposta é fazer uma cooperativa, mediante a venda de cotas de
5.000 a 100.000 cruzeiros, num esquema de produção independente
411
.
Após a recusa dos produtores cinematográficos, bater à porta dos produtores seria o
percurso usual para quem queria fazer cinema, Nelson parte para montar um esquema próprio
de produção
.
Para isso, contou com a preciosa colaboração de Ciro Freire Cury, um colega do
Colégio do Estado, que se mudou para o Rio de Janeiro para trabalhar no Banco do Brasil.
Ciro era considerado um economista brilhante e foi ele quem ajudou a elaborar o esquema
financeiro e econômico do filme. Além de Nelson e Ciro, a produção teve a colaboração de
Luiz Jardim, Louis Henri Guitton e Pedro Kosinski.
Nelson seguiu a fórmula de cooperativa que na época era utilizada no Rio de Janeiro.
Os ganhos oriundos da comercialização do filme são proporcionalmente partilhados entre
atores e técnicos, de acordo com o trabalho executado, cabendo uma porcentagem a cada um,
em relação ao custo médio do filme. Em geral, o diretor recebia dez por cento da renda, e o
resto era para cobrir as despesas trabalhistas e todos os gastos adicionais. O capital de giro era
coberto por cotas que eram vendidas a amigos, parentes, e a alguns investidores interessados.
Não existia nenhum aporte financeiro formal, principalmente originário, como hoje, de
incentivos governamentais:
É importante lembrar que o cinema não tinha um tostão de dinheiro público,
não existia ajuda do Estado. Caso exemplar da iniciativa privada no cinema
foi o de Ademar Gonzaga, que investiu tudo o que tinha no estúdio e nos
filmes da Cinédia. Aqui em São Paulo, tivemos o Franco Zampari, que
fundou a Vera Cruz, e que não tinha nada de dinheiro público, todo feito
com investimento próprio
412
.
410
Entrevista para Estudos Avançados 21 (59), 2007.
411
Apud SALEM, Op. Cit., p.86.
412
Entrevista para Estudos Avançados. Op. Cit.
Procurava-se economizar o máximo possível. Hélio Silva, o fotógrafo da equipe de
Nelson, contou a Humberto Mauro, que era na época o diretor do Instituto Nacional do
Cinema Educacional, que eles o tinham equipamento para filmar, e este emprestou uma
velha câmera do Instituto, que foi recuperada e utilizada durante todo o filme.
Aproveitando-se de uma lei recente que não cobrava imposto de importação nem
taxas sobre o preço de custo para filmes virgens, vários rolos foram adquiridos fora do Brasil,
diretamente do fabricante. Após a conclusão do trabalho o filme ficou pronto e foi
providenciada uma apresentação dele para a Columbia, distribuidora americana, que se
decidiu por comprá-lo.
Dois anos depois, em 1957, estava pronto Rio, Zona Norte, o segundo longa-
metragem de Nelson, concretizado nos mesmos moldes do anterior. Também em Rio, Zona
Norte não havia dinheiro nem do governo nem de patrocínios e quem estava à frente da
produção com Nelson era ainda Ciro Freire Cury. O mesmo sistema de cotas foi oferecido a
investidores que apostavam no filme. A grande diferença entre um e outro é que, em Rio,
Zona Norte, Nelson recebeu uma ajuda importante referente ao dinheiro dos prêmios ganhos
por Rio, 40 Graus e contou com um financiamento. Com parte desse dinheiro Nelson
produziu o filme de Roberto Santos, O Grande Momento.
Ao responder à indagação se as condições de produção de Rio, Zona Norte foram
mais confortáveis do que as de Rio, 40 Graus Nelson esclarece:
Em relação a Rio, 40 Graus, sim. O Rio, 40 Graus ganhou muitos prêmios
em dinheiro, eu tive também um financiamento, porque eu fiz dois filmes,
Rio, Zona Norte e O Grande Momento. Nós produzimos dois filmes, a
mesma equipe que fez o Rio, Zona Norte foi para São Paulo e fez O Grande
Momento. Mudou o diretor, eu fiz aqui, fiquei montando e lá em São Paulo o
Roberto Santos dirigiu O Grande Momento. Então, nesse bolo eu fiz um
negócio com a Maristela, que tinha o equipamento de filmagem, câmera, luz,
tudo isso para os dois filmes, foi assim. Tinha o financiamento do Banco do
Estado. Não era dinheiro a fundo perdido não, era financiamento, que tinha
que pagar depois
413
.
Contudo, tanto Rio, Zona Norte quanto O Grande Momento não tiveram retorno de
bilheteria suficiente que justificasse a continuidade do processo de venda de cotas.
Em 1961, após quase três anos preparando o roteiro e ultimando as providências para
rodar Vidas Secas, quando estava tudo pronto para rodar o filme, a locação se tornou inviável.
413
Apud Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO, Op. Cit., p.25.
Nelson adia o projeto Vidas Secas realiza Mandacaru Vermelho. Em apenas dois meses, todas
as tomadas de Mandacaru Vermelho estavam prontas.
No terceiro filme, que deveria ter sido Vidas Secas e terminou sendo Mandacaru
Vermelho (1961), o ponto de partida foi o chamado dinheiro privado. Tudo o que Nelson
tinha era simplesmente sua vontade férrea, a disposição sem limites de sua equipe, de cada
técnico e de cada ator. E ele não ficou parado esperando por incentivos oficiais. Foi buscar, e
encontrou apoio no setor privado. Uma grande parte do dinheiro foi investida por Danilo
Trelles, um produtor uruguaio, que aplicou algum dinheiro na produção de filmes. Nelson
tinha ações de filmes da companhia alemã DEFA, e em troca tinha que lhes dar alguma coisa
filmada sobre o Brasil para integrar um documentário internacional sobre a fome.
Em 1962, Nelson foi chamado para ser o diretor de Boca de Ouro não tendo que
enfrentar o desgaste da maratona que é correr para conseguir incentivos, apoios e
financiamentos:
A experiência seguinte foi Boca de Ouro (1963), que foi uma produção de
Herbert Richers, um produtor e distribuidor do Rio muito bem sucedido.
Herbert decidiu produzir esse filme e me convidou para dirigir
414
.
Todos os equipamentos, a contratação do elenco, o fornecimento prévio dos meios
necessários para definir locação, conseguir estúdios, disponibilizar iluminação e outros
detalhes técnicos, tudo enfim, foi providenciado pela produção que ficou nas mãos de Jarbas
Barbosa, Gilberto Perrone e da distribuidora Copacabana Filmes Ltda.
Entre 1962 e 1963, a idéia de adaptar para o cinema o romance, Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, finalmente seria realizada. O filme teria como locação a cidade de
Palmeiras dos Índios, em Alagoas, mesma cidade que havia tido como prefeito o próprio
Graciliano, e onde ele começou a escrever seus romances. Nelson Pereira e Luís Carlos
Barreto produtor do filme, junto com Herbert Richers e Danilo Trelles –, foram ao Banco
Nacional, um dos poucos que financiavam projetos desse tipo, e pediram um empréstimo para
realizar o filme:
Eu e Luiz Carlos Barreto pedimos dinheiro emprestado ao Banco Nacional,
um banco privado que ainda hoje investe em produção de filmes. O Banco
414
Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J. SADLIER. Op. Cit., p. 131.The next experience was Gold
Mouth (Boca de Ouro, 1963), which was a production by Herbert Richers, a producer and distributor from Rio
who is very well established. Herbert decided to produce this film and invited me to direct.
Nacional financiou dois terços do filme e Herbert um terço. Esta foi a
economia em Vidas Secas
415
.
O filme foi noticiado antes do seu lançamento com expectativa favorável, entretanto,
teve uma distribuição restrita da Metro Goldwin Mayer, e foi exibido por pouco tempo nas
salas porque, segundo aventado na época pelo jornalista e crítico de cinema Ely Azeredo, a
MGM teve receio de que o grande sucesso a que estava destinado Vidas Secas, pudesse abalar
a hegemonia dos filmes norte-americanos, criando as condições favoráveis ao fortalecimento
de uma indústria cinematográfica nacional. Não fosse o dinheiro ganho com o prêmio
concedido pelo governador Carlos Lacerda, e o filme talvez não tivesse conseguido cobrir os
custos de produção apenas com a receita de público.
Até fazer seu próximo longa-metragem, Nelson dirigiria quatro curtas: dois em 1965
Um moço de 74 anos e O Rio de Machado de Assis ambos produzidos pelo Jornal do
Brasil, e dois em 1966 Fala Brasília, produzido pelo MEC e pelo INCE e, Cruzada ABC,
encomendado pela Aliança para o Progresso - órgão criado pelo Presidente dos Estados
Unidos John F. Kennedy - e produzido pela Usis.
Em 1966, Nelson faria o longa-metragem El Justicero, lançado em 1967, utilizando o
dinheiro de um imposto que era cobrado no Brasil sobre o lucro das empresas que distribuíam
filmes aqui, e que tinha uma parte destinada a financiar filmes nacionais. Quase nenhuma
distribuidora, sobretudo americana, queria financiar - por motivos óbvios - filmes brasileiros,
e esse imposto servia para amenizar um pouco essa lacuna. El Justicero, além de dinheiro
governamental oriundo desse imposto, foi financiado pela Condor Filmes, uma distribuidora
de filmes europeus no Brasil.
Após El Justicero, Nelson realizou em 1967 e lançou em 1968, outro longa-
metragem sem ajuda financeira do governo: Fome de Amor: Você nunca tomou banho de sol
inteiramente nua?,filme independente, de baixo custo, produzido conjuntamente por Herbert
Richers e Paulo Porto.
Nelson realizaria logo em seguida, em1969, um curta-metragem intitulado
Alfabetização e, realizaria, ainda, Azyllo Muito Louco, uma produção independente dele, de
Luiz Carlos Barreto e Roberto Farias. Os exibidores e proprietários de cinema se recusam a
mostrar filmes em preto-e-branco que, alegam, não atraem espectadores e, conseqüentemente,
415
Ibid. p.131. Luiz Carlos Barreto and I borrowed money from the National Bank, a private bank which even
today invests in film productions. So the National Bank financed two-thirds of the film and Herbert one-third.
This was the economics of Barren Lives.
diminuem a renda, o que praticamente determinou Nelson a realizar o seu primeiro filme a
cores.
Entre 1970 e 1973 Nelson concretiza Como era gostoso o meu francês, outro filme
independente, feito com dinheiro resultante de impostos cobrados pelo governo. A produção
foi feita por Luiz Carlos Barreto e César Thedim e a Condor Filmes entrou como co-
produtora. Após fazer sucesso no Festival de Cinema de Cannes, os direitos do filme foram
vendidos aos franceses.
Entre 1972 e 1973 viria Quem é Beta? Pas de violence entre nous, que contou com
uma co-produção francesa. Não do governo, mas de um produtor francês, Gérard Léclery
através da Dhalia Film que entrou em contato com Nelson logo após a exibição de Como
Era Gostoso o Meu Francês em Cannes, para acertar essa parceria em que a Regina Filmes
416
também se engajou.
O próximo filme será O Amuleto de Ogum, realizado entre 1973 e 1974, com
lançamento em 1975. Primeiro filme que Nelson faz utilizando o apoio financeiro da
distribuidora criada pela Embrafilme. A política de investimento dessa distribuidora era
baseada na presunção de lucro dos filmes. Isto é, ela emprestava parte do dinheiro necessário
para realizar o filme, e recebia depois que o filme era lançado. Foi assim que Nelson
conseguiu financiar 40% dos custos de O Amuleto de Ogum. O restante ficou a cargo da
Regina Filmes.
Para constituir o próximo filme, três anos depois de o Amuleto de Ogum, Nelson não
foi buscar o financiamento nos cofres públicos. Tenda dos Milagres foi integralmente feito
com recursos privados, oriundos de um banqueiro, Ronald Levinson que, como um
verdadeiro patrono das artes, produziu todo o filme.
Em 1979, foi a vez do longa Na Estrada da Vida, lançado em 1981, sobre a dupla de
cantores regionais Milionário e José Rico. O filme foi produzido pela iniciativa privada, mais
precisamente pela Vilafilmes Produções C. Ltda., uma empresa de São Paulo, e a distribuição
ficou a cargo da Embrafilme.
Dirigiu ainda em 1980 um curta-metragem intitulado Um Ladrão (parte do filme
Insônia), produzido pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio. De 1980 a 1984 Nelson
dirigiu também, antes de fazer Memórias do Cárcere, um média-metragem intitulado Missa
416
Criada em 1972 por Regina Rosemburg Léclery e Nelson Pereira dos Santos, a empresa absorveu as obras
anteriormente pertencentes a Nelson Pereira dos Santos e passou a dedicar-se à realização de longas para cinema
e programas e séries para TV. Além dos filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, a Regina Filmes tem
entre seus títulos sucessos de público e de crítica como O Grande Momento (Roberto Santos, 1958), Aventuras
Amorosas de Um Padeiro (Waldir Onofre, 1975), A Dama do Lotação (Neville d´Almeida, 1978), e Sonhei com
Você (Ney Sant´anna, 1989).
do Galo, e um curta, que se chamou A Arte Fantástica de Mário Gruber
417
homenagem de
Nelson Pereira ao pintor – ambos em 1982, produzidos pela Regina Filmes.
A seguir faria três documentários para a Rede Manchete: um em 1983, chamado O
Mundo Mágico, e dois outros em 1984. O primeiro intitulado Capiba
418
, em homenagem ao
compositor, e o segundo também uma homenagem a outro grande músico e maestro, o
pianista e compositor Tom Jobim, e que se chamou A Música Segundo Tom Jobim. então,
Nelson filma seu 14º longa-metragem, Memórias do Cárcere. Este filme foi inteiramente
bancado pela Embrafilme.
Em 1985, dois documentários para a televisão foram dirigidos por Nelson: Eu sou o
samba, para a Rede Manchete e Bahia de Todos os Santos, para a TV Bahia. La Drôle de
Guerre, um curta-metragem produzido pelo Centre Georges Pompidou da França, seria
realizado em 1986. Enquanto filmava Memórias do Cárcere, foi sondado pelo Ministro da
Cultura da França, Jacques Lang, sobre a possibilidade de seu país participar de uma co-
produção num filme a ser dirigido por Nelson. Pouco mais de um ano depois, um acordo foi
selado entre Nelson, Louis Moillon que dirigia a Sociedade Francesa de Produção a
Televisão Francesa e a Embrafilme, para filmar uma adaptação de Jubiabá, romance de Jorge
Amado. Houve alguns contratempos entre a produção francesa e a brasileira, mas sanadas as
divergências, o filme chegou a seu termo. Sete anos se passariam até que surgisse outro longa-
metragem dirigido por Nelson.
Entre 1993 e 1994, seria rodado A Terceira Margem do Rio, mais um fruto da co-
produção entre brasileiros, através da Embrafilme, e franceses, com ajuda do Ministério da
Cultura e o das Relações Exteriores da França, além da Televisão Francesa. A produção foi
executada pela Regina Filmes.
417
Mário Gruber Correia (Santos SP 1927), autodidata em pintura, inicia seus trabalhos em 1943. Três anos mais
tarde, em São Paulo, estuda com o escultor Nicola Rollo na Escola de Belas Artes de São Paulo, e passa a pintar
em praça pública, quando trava contato com Mario Zanini e Bonadei. Trabalha com Di Cavalcanti e estuda
gravura com Poty, em 1948. Com bolsa de estudos do governo francês viaja, em 1949, para Paris, onde estuda na
École Nationale Supérieure des Beaux-Arts com Édouard Goerg. Ao retornar para o Brasil, funda o Clube de
Arte, em Santos, e leciona gravura na Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 1951
e 1953. Neste ano, trava contato, em Santiago do Chile, com o muralista Diego Rivera, que lhe transmite
ensinamentos sobre materiais e técnicas da pintura mural. Funda a União dos Artistas Plásticos de São Paulo em
1956. Entre 1961 e 1964, leciona gravura em metal na Fundação Armando Álvarez Penteado. Na década de 70,
monta oficina onde trabalham vários artistas, entre eles Wesley Duke Lee e Frederico Nasser. Dedica-se em
especial à calcografia e produz edições de gravura em metal na Impremérie Georges Leblanc, Paris. A partir de
1979, monta ateliê em Nova York, quando divide suas atividades entre esta cidade, Paris e São Paulo. Fonte: Itaú
Cultural.
418
Lourenço da Fonseca Barbosa, conhecido como Capiba, é um importante compositor nascido em Surubim,
Pernambuco, em outubro de 1904 e falecido em dezembro de 1997 em Recife. É autor de mais de 200 canções,
em sua maioria frevos, mas também marchas, sambas, valsas e até música erudita. Muitas de suas composições
são sempre lembradas nos carnavais pernambucanos, entre elas: É de amargar, de 1934; Olinda cidade eterna,
de 1950; Madeira que cupim não rói, de 1963 e, São do Norte os que vêm, de 1967.
No ano seguinte, Nelson faz Cinema de Lágrimas, um longa-metragem preparado
para o British Film Institute, que iria juntar-se a filmes de dezenove outros diretores, para
homenagear os cem anos do Cinema.
Cinco anos se passam e, em 2000, Nelson volta a filmar, desta vez uma mini-série
documental para a TV, canal GNT, Casa Grande & Senzala. Em 2004, realiza o
documentário Raízes do Brasil, produzido pela Regina Filmes, VídeoFilmes
419
e Rio Filme.
Finalmente, em 2006, Nelson dirige o seu mais recente longa-metragem, Brasília 18%,
produzido pela Regina Filmes em colaboração com a Videofilmes.
Esses dois últimos filmes indicam como Nelson vem se relacionando com as
transformações que estão ocorrendo no mercado cinematográfico brasileiro, iniciadas nos
anos de 1990, quando os mecanismos de financiamento passaram a se dar de forma indireta
por intermédio de mecanismos de renúncia fiscal. Nos créditos de Raízes do Brasil a presença
da Petrobras e BNDES. Em Brasília 18% a participação estatal é mais ampla, Petrobrás,
BNDES, Eletrobrás, ANCINE, Fundo Nacional de Cultura e aparecem os nomes de
investidores, Nelson Totsheim Parente e Agenor Parente.
419
Criada em 1987 por Walter Salles e por seu irmão João Moreira Salles, a VideoFilmes é uma produtora de
cinema e vídeo voltada para a realização de filmes de ficção de longa-metragem e documentários reconhecidos
pela alta qualidade técnica e artística.
de
dede
de
Realismo
Realismo Realismo
Realismo
Chamaremos, portanto, realista todo sistema de expressão, todo
procedimento de relato propenso a fazer aparecer mais realidade na tela.
“Realidade” não deve ser naturalmente entendida quantitativamente. Um
mesmo acontecimento, um mesmo objeto é passível de várias representações
diferentes. Cada uma delas abandona e salva algumas das qualidades que
fazem com que reconheçamos o objeto na tela, cada uma delas introduz com
fins didáticos ou estéticos abstrações mais ou menos corrosivas que não
deixam subsistir tudo do original.
André Bazin
420
Nelson teve cultura marxista na juventude quando estudou Direito. Fizera a
crítica gramsciana do modernismo, do realismo socialista [...] Lucidez sobre
os conflitos psicológicos provocados pela luta de classes. E por uma poética
da brasilidade. Realismo. Crítica social. Uma crítica realista da realidade
social porque econômica, política, cultural, etc.
Glauber Rocha
421
Nosso Herói deverá ser este múltiplo homem brasileiro vivendo cada crise
em seus respectivos estágios. A instabilidade deste personagem ativo e
reflexivo não está em nosso cinema – antes já vem de nossa ficção e teatro e
está ligado ao próprio conhecimento que os autores possam ter de realidade.
E não se desliga também das precariedades de um conceito de realismo.
Glauber Rocha
422
O apego à representação realista é recorrente na história do cinema. Desde o início
do cinema, buscou-se uma reprodução fiel e completa da realidade. O espectador na sala
escura do cinema vê-se tomado pela força da “impressão da realidade”
423
.
420
André BAZIN. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.244.
421
Glauber ROCHA. Op. Cit., p.314.
422
Id. Op. Cit. p.139.
423
Jacques Aumont e Michel Marie nos autorizam a falar em impressão de realidade. Segundo esses autores, a
realidade corresponde à experiência vivida que o sujeito tem do real, ou seja, o que existe por si mesmo. Dessa
forma, a realidade está inteiramente no campo do imaginário. Op. Cit., p.252.
O cinema desenvolveu seus próprios códigos, suas convenções e mecanismos para
estabelecer significados. Essa relação de credibilidade que se estabelece entre o filme e o
espectador sustenta-se na reivindicação do que é aceito como real. Observa Christiam Metz:
A impressão de realidade [...] é sempre um fenômeno de duas faces: pode-se
procurar a explicação no aspecto do objeto percebido ou no aspecto da
percepção; por um lado a duplicação é mais ou menos “parecida”, mais ou
menos fiel a seu modelo, ela carrega em si uma maior ou menor quantidade
de indícios de realidade; por outro lado, esta construção ativa, que a
percepção é sempre, os manipula de modo mais ou menos atualizante
424
.
Dessa forma, a fidelidade da cópia em relação ao seu modelo depende da quantidade
de indícios de realidade que ela mantém. É tributária também da recepção em seus aspectos
cognitivo-perceptivo e afetivo-participativo. A questão central não é o que é real, mas o que o
espectador acata como real. A imagem fílmica suscita um sentimento de realidade no
espectador, pois é dotada de todas as aparências de realidade.
Gérard Betton adverte para o sentido amplo que o conceito de realismo possa conter
frente à impossibilidade do real ser captado na sua totalidade, incorporando formas e verdades
que possam ser inventadas pelo artista criador:
O que aparece na tela não é a realidade suprema, resultado de inúmeros
fatores ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, imbricação de ações e
interações de ordem ao mesmo tempo física (integração e parâmetros
“sensoriais” e, principalmente, do continuum espaço-tempo) e psíquica (com
todos os sentimentos e reflexos pessoais); o que aparece é um simples
aspecto (relativo e transitório) da realidade, de uma realidade estética que
resulta da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador
425
.
A colocação de Betton ajuda a pensar sobre o paradoxo que o termo realismo
engendra. A simultaneidade da presença do real com a experiência de vivê-lo remete ao
recurso da representação. Assim, o real é mediado pela sua construção social. A compreensão
direta do real torna-se impossível e solicita a intermediação da linguagem. O seu processo
perceptivo passa invariavelmente pelo auxílio das representações sujeitas às opções próprias
ao crivo da consciência. O real é filtrado pela representação da realidade. O realismo tenciona
atingir a condição de real, embora por definição esta seja uma meta impossível de ser
cumprida, pois o real existe por si mesmo e o realismo estará sempre condicionado ao
distanciamento do real experenciado.
424
Christian METZ. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.19.
425
Gérard BETTON. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 9.
A questão do realismo se coloca, entretanto, para além da compreensão de que o
termo está situado em terreno de extensa e ampla discussão, que se refaz permanentemente no
território de intensa mobilidade da representação e da anti-representação que definem e
prescrevem as características estéticas relativas ao cinema. Assim, o cinema torna-se
expressivo ao servir-se do mundo real para “elaborar um enunciado”, produzir um discurso. A
esse respeito Graeme Turner lembrará que:
As discussões que dominam os textos mais tradicionais sobre a teoria do
cinema giram em torno do debate sobre formalismo/realismo (isto é, falar ou
não sobre cinema a partir de sua unidade artística ‘formal’ ou a partir de
sua relação específica que ele está tentando capturar em seus quadros seu
‘realismo’)
426
.
O formalismo no cinema tem como expoente emblemático, Serguei Eisenstein,
geralmente um dos pontos de partida nas histórias da técnica e da teoria do cinema. Na sua
iniciativa de entender e formular questões que desenvolvessem o cinema usou, no início dos
anos 1920, a montagem como meio expressivo para transformar o filme em discurso e para
produzir sentido. Eisenstein considerava a montagem como o ponto em torno do qual girava a
linguagem cinematográfica. Pensando assim, foi aos poucos desenvolvendo uma teoria que
vai levá-lo a conceituar os vários tipos de montagem e, através desta tipologia, criar um
cinema que ele acreditava verdadeiramente revolucionário
427
. O cinema para ele era um meio
de comunicação eficiente de transformar a realidade, através de linguagem específica e seu
próprio modo de fazer sentido. Ressalvado o uso didático dado à montagem como
instrumento pedagógico de educação soviética, Eisenstein não estava só na recusa a uma
concepção de cinema como simples agente de registro, resguardada a potência do esteticismo
extremo, inseria-se no bojo de um pensamento que determinava o vigor artístico do cinema
dissociado da perspectiva realista e que via na sua incapacidade do reproduzir som e cor um
distintivo estético. A partir dessa concepção, realismo e arte opunham-se, o filme mudo
adquiria o patamar das artes e o incipiente filme falado rotulado de vulgar.
No entanto, a introdução do som veio reforçar a uma tendência de se procurar um
maior realismo tanto na forma como na estrutura narrativa cinematográfica. Essa tendência
faz o realismo emergir na cena do cinema europeu após a Segunda Guerra Mundial,
prenunciado pelo surto de realismo social nos filmes de Hollywood no início dos anos
426
Graeme TURNER. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997, p.12.
427
Convém ressaltar a importância de outros formalistas russos, como Pudovkin e Vertov.
1930
428
.Cabe registro também como outro fator concorrente ao crescente interesse pelo filme
realista no pós-guerra o sucesso e o respeito adquirido pelo filme documentário capitaneado
por John Grierson na Inglaterra nos anos de 1930-40 e a sua expansão para outros países,
fruto das unidades montadas no Canadá e na Austrália sob a supervisão do diretor. Ao
impacto resultante da disseminação do filme documentário soma-se o surgimento do
movimento cinematográfico de extrema significação no período, o Neo-realismo
429
.
O Neo-realismo tornou-se um influente movimento que teve a Itália do pós-guerra
como cenário, redescobrindo a sua paisagem e nela reintegrando o seu povo. Há quem
defenda ser Obsessão (Ossessione, 1942) de Luchino Visconti, realizado ainda durante a
guerra, o primeiro filme ligado a essa corrente. Esse ponto de vista é coerente na medida em
que, ao adaptar o romance do norte-americano James Cain, The Postman Always Rings Twice,
Visconti apontava para outra possibilidade de se fazer cinema no seu país ao se afastar dos
épicos e farsas sofisticadas que davam o tom à estética dominante da era fascista, do chamado
“cinema dos telefones brancos”, distante da realidade. Ao ambientar seu drama entre gente do
povo Visconti abria o caminho para o movimento e anunciava um estilo. Mas, o núcleo duro
do Neo-realismo é erigido a partir dos “filmes de guerra” de Rossellini, em que os contornos
do movimento são mais reconhecíveis: produção fora do estúdio, ambientada na rua, mais ágil
e barata, valendo-se muitas vezes de atores não-profissionais, com uma visão progressista,
que questionava a forma de participação da Itália na guerra e o preço pago por isso. Roma,
Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1944-1945), aborda a questão; Paisá, (Paisá, 1946), com
seus seis episódios segue a libertação italiana do Norte ao Sul do país e Alemanha, Ano Zero
(Germania Anno Zero, 1948), desloca seu olhar para outro país derrotado e lá também
encontra uma população rendida. Outros filmes somam-se a esses e formam um conjunto de
linhas formais e sociais semelhantes, em que se destacam A Terra Treme (La terra Trema,
1948) de Luchino Visconti; Vítimas da Tormenta (Sciuscià, 1946); Ladrões de Bicicleta
(Ladri de Biciclette, 1948) e Umberto D, 1952, os três de Vittorio De Sica. Esses filmes
apresentam uma visão generosa em relação ao povo, assumindo a sua maneira de falar e
sentir. Com um ponto de vista social definido, levava seus temas e assuntos para a tela,
convocando a crítica e o público a adotarem uma atitude não evasiva e distanciada em relação
à sociedade. Esses temas e assuntos dão base ao enredo de quase todos os filmes deste
movimento e cobrem alguns pontos da seguinte pauta: denúncia do fascismo, exaltação da
428
Exemplo clássico do realismo social hollywoodiano está contido em Scarface: A vergonha de uma nação,
1932, de Howard Hawks.
429
Este movimento já foi citado em outros momentos nesta tese. No entanto, para efeito da discussão pretendida
a recuperação de sua síntese é oportuna.
resistência, desemprego, indigência, desamparo da do idoso, abandono da infância, a condição
da mulher, a reforma agrária, a emigração, entre outros.
Gilles Deleuze ao tratar do neo-realismo, entende que a produção italiana do pós-
guerra não pode ser pensada “ao nível do real”, pois a visão do protagonista neo-realista, sua
percepção, não é mais prolongada em termos da ação. Ela se relaciona, ao contrário, com o
pensamento e com o tempo. Para essa questão fundamental Deleuze afirma: “o que constitui a
nova imagem é a situação puramente ótica e sonora, que substitui as situações sensório-
motoras enfraquecidas
430
.
Para Deleuze, no âmbito do neo-realismo, ocorre um deslocamento na relação espaço
e tempo: aquilo que o personagem vê não se prolonga mais numa ação. O cinema articula-se a
partir da ótica do vidente, não mais da personagem agente. Os protagonistas direcionam o
olhar para o mundo com investimentos nas coisas e nas pessoas. É um olhar determinado,
fixo, em busca de entender o que não tem definição, assimilando o imprevisto. Na imagem-
ação os objetos e meios tem realidade própria, porém subordinada à funcionalidade
determinada pelas imposições da situação. Na nova imagem os objetos e meios conquistam
uma realidade autônoma que os faz valerem por si mesmos.
Assim, o neo-realismo percorre o caminho do afrouxamento dos vínculos sensório-
motores, em que a montagem assumia o papel de conter o tempo e postula a ascendência das
situações óticas e sonoras para constituir suas imagens liberadoras do tempo. Ao subordinar a
imagem às exigências de novos signos em que o real não é mais representado ou reproduzido,
mas visado, o neo-realismo transfere o pathos da tragédia para os pequenos sentimentos do
dia-a-dia, para a vida, para o inesperado, para o imprevisível.
Tendo o realismo como foco não se pode desprezar, também, a formulação de André
Bazin no pós-guerra francês. Com seus escritos veiculados no periódico que fundou o Cahiers
du Cinéma, Bazin ocupou o centro da abordagem sobre o realismo e exerceu extrema
influência sobre a realização e a reflexão cinematográficas. Concebendo a produção industrial
da imagem em torno da qual o cinema moderno se articulava como uma forma de
conhecimento alimentou o surgimento dos movimentos de renovação cinematográfica.
Considerado um teórico de filiação realista, em oposição aos formalistas, parte do
entendimento que o cinema sustenta-se na revelação do mundo, como em uma epifania.
Assim, torna-se clara a sua insurreição contra um cinema que atingia essa revelação. A um
430
Gilles DELEUZE. Cinema II - A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 12.
cinema de cortes visíveis, ele optava por um cinema da transparência, mais fiel ao mundo que
se apresenta diante dos seus olhos.
Na introdução traduzida para o português de O cinema
431
, assinada por Ismail
Xavier, assim apresenta o contexto que propiciou um estilo de reflexão como a de Bazin:
Na França e na Itália, aquela conjuntura de vitória sobre o fascismo e de
reconstrução do mundo dentro de uma nova ordem encontrou expressão
numa análise de cultura conduzida nos termos do humanismo renovado
432
.
O professor paulista prossegue na sua exposição balizando o território da crítica
militante de Bazin:
Não por acaso, a questão central dessa crítica é a da “vocação realista” do
cinema, não propriamente como veiculação de uma visão correta e fechada
do mundo, mas como forma de olhar que desconfia da retórica (montagem) e
da argumentação excessiva, buscando a voz dos próprios fenômenos e
situações. Realismo, então como produção de imagem que deve se inclinar
diante da experiência, assimilar o imprevisto, suportar a ambigüidade, o
aspecto multifocal dos dramas
433
.
Bazin afasta-se das idéias de Eisenstein, fundadas em fragmentos da realidade”
justapostos, que constroem a arte mediante a montagem. Para ele, a montagem continha alto
grau de manipulação tornando-se uma imposição, uma ordem verticalizada, do cineasta ao
espectador. “A voz dos próprios fenômenos e situações”, aos quais Ismail Xavier se refere,
dizem respeito às escolhas dos procedimentos-chaves adotados pelos construtores do cinema
moderno: o “plano-seqüencia” (apresentação da cena sem cortes, numa única tomada), os
movimentos de câmara, o uso da profundidade de campo visível, o respeito à duração
contínua dos fatos e a minimização dos efeitos de montagem. Estes procedimentos traduzem a
noção formulada por Bazin, que levava em conta a noção de raccord
434
, atentando para o
movimento e para o arranjo de como os elementos no quadro ou na tomada são dispostos a
fim de observar como se podia gerar a significação. O movimento e o posicionamento das
personagens na cena, a escolha do posicionamento da câmara, a luz, o foco, a profundidade,
431
No original Qu´est-ce que le cinema? A pergunta “O que é o cinema?não traz uma asserção definitiva, mas
a coleção de textos compilados por Bazin revela a sua investigação sobre o específico fílmico.
432
André BAZIN. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.9.
433
Op. Cit. p. 10.
434
Tipo de montagem na qual as mudanças de plano, são, tento quanto possível, apagadas como tais, de maneira
que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual. Jacques AUMONT e
Michel MARIE. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: São Paulo, 2003, p, 251.
tudo ganha destaque nesta perspectiva; a mise-en-scène é sintoma da autoria que se constrói
por meio de tomadas realistas.
Ismail Xavier analisa a composição do cinema moderno a partir da ótica de Bazin:
Tal cinema de “situações em bloco”, sem a análise prévia exigida pela
montagem do cinema clássico, traduz o ideal da “compreensão” baziniana:
antes de ser julgado o mundo existe, está aí em processo; há uma riqueza das
coisas em sua interioridade que deve ser observada, insistentemente, até que
se expresse. Para tanto, é preciso que o olhar não fragmente o mundo e saiba
observá-lo de forma global
435
.
Nelson Pereira dos Santos, como foi reiterado em outros momentos deste trabalho,
deu início a uma linha de pensamento em cinema no Brasil não somente fundamentada na
ideologia partidária que acatou, mas também nos princípios ideológicos que pautaram o
cinema europeu no final da Segunda Guerra Mundial. Na viagem que fez à Paris no início dos
anos 1950, em busca de formação cinematográfica, teve contato mais próximo com o realismo
francês e com o neo-realismo italiano e ficou impressionado com aquele novo posicionamento
do cinema frente à realidade. O mundo atingido pela guerra clamava pela exposição das suas
seqüelas. A Itália mostrava essa realidade no cinema, utilizando dos dispositivos que estavam
ao alcance para fazê-lo, essa atitude se espraia por outras cinematografias. Ao beber da fonte
neo-realista Nelson entende que aquela era uma forma de se fazer cinema adequada para o
Brasil que apresentava fortes contradições sociais, em certo sentido muito semelhante àquelas
condições desfavoráveis da Itália que saia da guerra:
O neo-realismo foi uma grande lição de produção para países como o Brasil,
que ainda estavam com uma cinematografia incipiente. O que foi essa lição
de produção? O negócio era o seguinte, não precisava ter grandes estúdios,
nem grandes estrelas. Não precisava de muito dinheiro. Era ter o
equipamento necessário [...]. O resto era nossa vida: não ter vergonha dos
problemas. Pelo fato da Itália ter sofrido as conseqüências da guerra, a
sociedade italiana foi desestabilizada, a família foi “mexida”. As crianças, as
mulheres...todos se viam em uma nova realidade, que se chocava com as
convenções. Era uma realidade que não vinha com as convenções da Itália
tradicional e patriarcal. No Brasil, eu sempre dizia assim “o Brasil sempre
viveu como se estivesse em um pós-guerra”. Sociedade desestabilizada,
família perdida, crianças abandonadas, mulheres também. Portanto, aqui
um laço de grande união entre nossa história e a História deles, e a partir d
a proximidade com o neo-realismo
436
.
435
Op. Cit. p. 10.
436
Nelson Pereira DOS SANTOS. Nelson Pereira dos Santos, o pai do cinema moderno brasileiro. Entrevista
concedida a Claudio Szynkier. Agência Carta Maior - Melhores entrevistas de 2003. Disponível em:
<http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=visualiza_arte&id=1334>. Acesso em: 6 jan. 2004.
De fato, os países periféricos viram no neo-realismo um meio bil e eficiente de
mostrar um cinema que fosse comprometido com a questão social, que atingia esses países
com grande intensidade. A incorporação do neo-realismo, portanto, não foi sentida apenas em
termos de estética, ou mesmo de modo de produção, mas acima de tudo na temática
apresentada. Também é importante salientar, ao se tratar do diálogo do neo-realismo com
outras cinematografias e, em especial com a brasileira que, quando o movimento italiano
eclodiu, na segunda metade da cada de 1940, ele não veio impor-se enquanto modelo -
como foi o caso das produções hollywoodianas - mas surgiu como mais um elemento
deflagrador que veio se somar à tentativa de levar para as telas uma cultura nacional de
marcas próprias.
Alex Viany, em depoimento dado no curta metragem Nelson Filma (1971) de Luís
Carlos Lacerda, afirma que os diretores neo-realistas eram admirados acima de tudo pelo
engajamento social com que colocavam de forma clara os problemas de uma época, de um
país. Ao cinema brasileiro mais do que expor um modelo estético, o neo-realismo
demonstrava uma atitude moral, ao debruçar-se sobre a realidade, focando elementos da vida
do povo, até então encobertos, mal tratados ou não observados. De fato, não se tratou,
simplesmente de se transplantar a experiência italiana, mas de trazê-lo para o centro da
experiência brasileira
437
.
Maria do Rosário Fabris trata da assimilação do ideário neo-realista por parte dos
cineastas brasileiros no contexto dos anos 1950, na publicação que traz no título a indagação
Nelson Pereira dos Santos: Um olhar Neo-Realista?, em que destaca momentos dessa
conversa com o movimento italiano tomando por base Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte:
Em seu filme de estréia (mas, sob muitos aspectos, também em Rio, Zona
Norte), Nelson Pereira dos Santos valia-se dos postulados zavattnianos e
rossellinianos por exemplo, a opção pelos deserdados da sorte que, no seu
caso, passava também pela questão racial; a escolha de uma técnica de
filmagem que permitisse a captação mais imediata da realidade; o próprio
título do filme, composto de três elementos como o de Roma, cidade Aberta
437
Embora a cinematografia carioca fosse identificada principalmente com as chanchadas, entre a segunda
metade dos anos 1930 e a primeira metade dos anos 1950, a Atlântida havia filmado também obras de fundo
social que, à falta de uma definição melhor, foram denominadas pré-neo-realistas (Maria Rita Galvão e Carlos
Roberto de Souza), pré em relação a um neo-realismo brasileiro, que surgiria com o cinema independente:
Favela dos meus amores, de Humberto Mauro; João Ninguém, de Mesquitinha; Moleque Tião, Vidas solidárias,
Luz dos meus olhos, Também somos irmãos e Maior que o ódio, de José Carlos Burle; É proibido sonhar, Gente
honesta, Sob a luz do meu bairro e Tudo azul, de Moacyr Fenelon; Amei um bicheiro, de Jorge Ileli e Paulo
Wanderley, dentre outras. Mariarosario Fabris. O Neo-realismo e o cinema realista brasileiro dos anos 1950. O
primeiro Nelson Pereira dos Santos in Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual.
Organização Geral: Walter Lima; coordenação Diana Gurgel; coordenação editorial Zilah Azevedo. Salvador:
EDUFBA: VPC, 2006, p. 42-42.
etc. para acertar os ponteiros com o cinema nacional. Em Rio, Quarenta
Graus, o aspecto mais turístico da então capital federal, esse grande mito
construído pelo cinema carioca e mesmo por produções estrangeiras,
chocava-se com o olhar neo-realista” que Nelson Pereira dos Santos lhe
lançava. A cidade era ainda a grande protagonista, mas o diretor pretendeu
dar vez e voz a outras personagens: a gente do povo
438
.
Ao responder a indagação sobre o seu processo criativo Nelson expõe a sua visão
sobre a impossibilidade de assimilar a dimensão de produção da épica eisensteiniana,
destacando, no entanto, a influência da sua formulação sobre a teoria da montagem e a
factibilidade advinda com o neo-realismo que iluminou as cinematografias emergentes:
Com toda a sinceridade, o cinema de Eisenstein era castrador. Sabe por quê?
Porque era um cinema poderoso, enorme, feito com muitos recursos [...]
Então, nós pobres brasileiros, quando a gente via os filmes de Eisenstein, a
gente brochava. Se sentia sem condições de fazer esse filme, fazer um filme
parecido [...] O que tem a ver em relação a Eisenstein e depois com as
conseqüências do Eisenstein no cinema, a influência que ele exerceu, foi
toda uma escola de montagem [...] Agora quando veio o neo-realismo, ao
contrário, foi uma grande libertação porque nos ensinava do ponto de vista
da produção, que bastava sair pra rua, não dependia do estado, não dependia
das altas finanças como o cinema de Hollywood, ou do estado como o
cinema soviético. Era um cinema que podia ser feito na rua, o ator era o
semelhante, o equipamento o mais simples possível. [...] Essa relação com o
neo-realismo me pegou e muitos cineastas especialmente dos países como o
Brasil. Aconteceu isso na Índia, na Grécia, no Canadá, na Argentina, no
México. O cinema renasceu assim. [...] A grande síntese do cinema de
montagem com o cinema realista, se deu nas novas cinematografias.
439
.
Glauber Rocha no primeiro texto da compilação que publicou em Revolução do
Cinema Novo ao analisar o filme Rayzes Mexicanas, 1953
440
, de Benito Alazraki, avança na
interpretação de que o Neo-Realismo ao conjugar o ângulo de produção com a eleição
temática legou às cinematografias jovens a possibilidade de triunfar com dignidade. Em sua
análise, Glauber Rocha se vale do filme para discutir a linguagem cinematográfica nos países
da América Latina verificando o quanto Alazraki absorveu Zavattini e Eisenstein, afirmando
que ele contém a ntese de duas tendências altamente antagônicas: o antiformalismo seco do
Neo-Realismo e a ultra-expressão eisensteiniana. Essa síntese/confronto entre os princípios
estéticos preconizados por Eisenstein e Zavattini foi alcançada pelo cineasta mexicano na
438
Mariarosaria FABRIS. Nelson Pereira dos Santos: Um olhar Neo-Realista? São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1994, p. 82.
439
Maria Elisa Silva COELHO. O Rio de Janeiro no cinema de Nelson Pereira dos Santos: Rio 40 graus; Rio
Zona Norte; Boca de ouro e El Justicero. Um estudo sobre o cinema carioca. Dissertação de Mestrado defendida
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ: Rio de Janeiro, 2003, p. 109-110.
440
Este artigo foi inicialmente publicado na imprensa baiana, em 1958.
medida em que ele aplicou ao roteiro as lições do Neo-Realismo zavattiniano e à linguagem o
legado das invenções da teoria da montagem e da composição de Eisenstein. No texto,
Glauber coloca no mesmo diapasão o neo-realismo e o cinema épico eisensteiniano formando
uma “dualidade-unidade”, uma “síntese/choque”, como dois pólos antagônicos, necessários e
complementares para a construção de uma linguagem cinematográfica de expressão nacional
e aponta Nelson Pereira dos Santos como o mais apto cineasta brasileiro a prosseguir no
caminho indicado por Alazraki:
Entre todos os nacionais, pela dupla resistência e pelo terceiro preparo
assim como o estilo que luta por encontrar destacaríamos Nelson Pereira
dos Santos, através das pesquisas formais intrínsecas e extrínsecas em
Cesare Zavattini e Luchino Visconti, como o brasileiro mais em preparação
para realizações na linha de dualidade-unidade, pontificação eisensteiniana e
o resultado de Benito Alazraki.
441
Para Nelson Pereira dos Santos o realismo e a compreensão de que ele é construído
por artifícios de linguagem implica em se pensar a questão da verdade. O realismo subentende
uma realidade única e uma única apreensão dela como verdadeira. A verdade é a grande
preocupação presente no início de sua obra. O jovem Nelson parte do conceito baziniano de
que a essência do cinema é satisfazer a obsessão do espectador pelo realismo e investe no
oferecimento da verdade, sem deixar de sublinhar que era a sua verdade, o seu ponto de vista.
E isso é feito com a verdade da cidade do Rio de Janeiro, a verdade sobre a vida do sambista
Espírito da Luz, a verdade na lenda inventada de Mandacaru Vermelho revelando ao Brasil o
que ele tinha de verdadeiro e autêntico em termos de cultura. As diferentes verdades
confrontadas em Boca de Ouro. A verdade documental objetiva em Vidas Secas. Tudo que se
declare verdadeiro torna-se autoritário em Azyllo muito louco. É falsa a visão da história
oficial, mas é verdadeiro o massacre aos índios tupinambás com o qual Nelson finaliza Como
era gostoso o meu francês.
Mais tarde o próprio Nelson em um ponto de virada advertiria e imporia
desconfiança sobre os perigos do engano pela boca do violeiro cego em O Amuleto de Ogum,
que entoando um repente cantava e contava: “Eu vou contar uma história que aconteceu de
verdade, que eu acabei de inventar agorinha”.
Dessa forma, em 1974, Nelson, ao seu modo, e na condição do “brasileiro mais bem
preparado para realizações na linha de dualidade-unidade” atualiza a representação da
realidade no cinema brasileiro e refaz o caminho canônico do realismo investindo na quebra
441
Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p. 39.
de limites rígidos ao encenar sobre o natural e naturalizar o encenado. O real representado
funde-se ao ficcional, entregando ao espectador o poder de decisão. Verdade ou engano?
Realidade ou fabulação? A resposta não desperta muito interesse. Fato e ficção se hibridizam.
O real impulsiona o ficcional e o ficcional impulsiona o real. Não há desproporcionalidade na
tensão dessas forças que são mobilizadas pelo diretor. Essa atualização na forma de
representação proposta por Nelson vai encontrar respaldo e correspondência na reflexão de
Frederic Jameson sobre o realismo italiano:
[...] se o realismo confirma sua pretensão de ser uma representação do
mundo correta e verdadeira, ele, assim, deixa de ser um modo estético de
representação e fica fora da esfera da arte. Por outro lado, se exploramos,
enfatizamos ou colocamos em primeiro plano os artefatos artísticos com a
captura da verdade do mundo, o realismo” é desmascarado como um mero
efeito-de-realismo ou efeito-de-realidade, e o real que ele pretendeu desvelar
se transforma de imediato na mais completa representação e ilusão
442
.
A propósito, Nelson alinha-se a esse pensamento contemporâneo com o qual tem
encontrado uma maior identidade nas proposições críticas. Levando em consideração esses
pressupostos, ao fazer um balanço da sua obra e do cinema brasileiro recente, declarou:
Sempre que posso vou ao cinema ver filmes de diretores brasileiros. Hoje o
cinema brasileiro é pluralista tem muita vitalidade e todas as tendências
estão nele. Finalmente, há uma superação de obrigatoriedades ideológicas ou
estéticas. O bonito do cinema brasileiro é isso, inclusive com lugar para mim
com quase oitenta anos fazer meus filmes com a preocupação com o social
com a proposta da mudança do que já existe. Vejo todos os filmes com um
olhar de que cada um está traçando o seu caminho o debate está aberto.
Alguns anos, se me chamassem para assistir a um filme, eu perguntava se
existia a famosa luta de classes. Felizmente mudei. Acho importante o
marxismo estético e para mim o pensador mais contemporâneo é o
americano Frederic Jameson
443
.
442
Fredric JAMESON. Op. Cit., p.162.
443
Revista Pesquisa FAPESP. Edição Online. Entrevista – Um cineasta imortal. Abril 2006- Edição 122.
de
dede
de
Sincretismo
Sincretismo Sincretismo
Sincretismo
Ogum, erga a sua espada, levante a sua lança para nos defender. Nos
proteção com seu escudo toda vez que o inimigo nos aborrecer. Nos cubra
com o seu sagrado manto, sua bandeira o gloriosa. Atire as patas do seu
cavalo contra o dragão e a serpente venenosa
444
.
Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge. Para que meus
inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo mãos, não me peguem, tendo
olhos não me enxerguem, e nem pensamentos eles possam ter para me fazer
o mal. Armas de fogo meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem
sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se rebentem, sem o meu corpo
amarrar
445
.
Na Bahia, São Jorge é identificado com Oxóssi, deus dos caçadores, mas, no
Rio de janeiro, é ligado a Ogum, deus da guerra, o que é compreensível em
relação aos dois orixás, pois o Jorge é apresentado nas gravuras como um
valente cavaleiro, vestido em brilhante armadura, montado sobre um cavalo
ricamente ajaezado em ferro, que bate no chão com as patas e caracola.
Armado com uma lança, São Jorge da Capadócia mata um dragão
enfurecido, caça predileta do deus dos caçadores.
Pierre Verger
446
Na verdade, a umbanda é a religião do nosso povo e ela explica o seu
comportamento. Como toda religião, pretende aperfeiçoar o homem. O que
eu tento mostrar no filme é a umbanda tal como ela é: uma visão religiosa,
com raízes profundas, trazendo em si toda a formação do homem brasileiro,
da nossa história, a contribuição da cultura do negro e do índio. Dizem os
antropólogos que a verdade da sociedade pode ser encontrada nos mitos que
ela produz.
Nelson Pereira dos Santos
447
444
Este ponto é um típico produto da Umbanda Popular, distante de qualquer influência africana, apresenta
Ogum na forma sincretizada de santo guerreiro (a bandeira e o manto não são atributos de Ogum, mas de São
Jorge). A letra mostra os sentimentos do povo brasileiro em relação ao seu orixá: ele é o herói mítico, o paladino
que vem em defesa daqueles que enfrentam as forças do mal.
445
Oração a São Jorge.
446
Pierre VERGER. Orixás. São Paulo: Corrupio, 1981, p. 26.
447
Declaração dada ao jornal A Gazeta, ES, em 16/02/75. Na ocasião do lançamento de O Amuleto de Ogum em
Vitória. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit. , p.48.
O sincretismo em Nelson Pereira dos Santos pode associar-se ao seu pluralismo, mas
será em O Amuleto de Ogum que se encontra a sua mais definida e nítida tradução. O filme,
ponto de inflexão na sua trajetória, tornou-se um desafio no exercício empreendido no sentido
de evitar o enfoque crítico e a interpretação estritamente intelectual, ao tratar do mito e, por
conseqüência, da religião popular. Essa atitude, porém não implica abrir mão do espírito
crítico, mas resulta no seu reposicionamento:
A posição crítica está antes, na procura do filme, na procura da expressão, na
parte da realidade que a gente quer analisar, na observação dessa realidade.
A partir do momento em que o filme começa, ele tem que usar a linguagem
da emoção, estar ligado a estes valores populares
448
.
Rito de passagem, imersão em domínios desconhecidos, incitação para além de
flutuações advindas do trânsito e do intercâmbio de práticas e credos. Exercício radical nas
diversas dimensões do sincretismo O Amuleto de Ogum, como é reiterado por analistas e
declarado em várias entrevistas de Nelson, pode ser tomado, inicialmente, como um mergulho
na antropologia em meio a uma convergência de situações, contribuições e influências:
Outra coisa importante é a informação antropológica. A Dona Laurita estava
aqui fazendo curso de Antropologia, o professor Wagner. Então eles estavam
estudando as religiões de conversão. E eu peguei essa carona logo, através
da umbanda, do candomblé etc. E outro dado também para esse filme é o
livro do Jorge Amado, que eu fui fazer depois. É o Tenda dos Milagres.
Acho que o livro do Jorge é de 72, por aí, se eu não me engano, uma coisa
assim. Juntando tudo isso, mais uma história, uma proposta de história, um
pré-roteiro, escrito pelo Chico Santos. O Chico Santos foi motorista do
Tenório Cavalcanti. Ele viveu aquela experiência do Tenório contra o
coronel Barcelos. Os tempos daquela grande guerra na Baixada Fluminense.
Ele conheceu bem aquilo. Ele escreveu uma história, mas era um pouco a
vida do Tenório. Eu misturei as duas coisas, o Tenório, que tinha fama de ter
o corpo fechado. Eu trabalhei em cima disso e fiz o roteiro d’ O Amuleto. A
presença de uma outra parte importante da nossa realidade, como é a nossa
relação com a igreja, como são as religiões populares. Essa era a idéia: juntar
todos esses pedacinhos e fazer o filme
449
.
Entender o sincretismo como mistura de elementos que resulta em um produto misto,
híbrido e eclético é a evidência que a declaração de Nelson ressalta. Tendo o sincretismo
448
Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião, São Paulo, 14/2/1975. In: Giselle GUBERNIKOFF,
Op. Cit., p. 37.
449
Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson
Pereira dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999. Centro Cultural Banco do Brasil, p. 66-67.
religioso como tema amplia o seu investimento nos formas sincréticas e promove a fusão de
vários níveis e linguagens. Juntar e misturar são verbos conjugados na sua declaração.
Ao realizar O Amuleto de Ogum, seu décimo primeiro filme, contava com vinte anos
de exercício cinematográfico, período em que suas crises e soluções perpassaram e se
perfilaram às crises e soluções do cinema brasileiro. Após as alegorias, as metáforas, dos
filmes de pesquisas era o momento do fim do exílio cultural, de voltar ao país sem dele nunca
ter saído.
A sua volta é circunscrita em um “projeto global em que ultrapassa a realização
pessoal, mantém e renova o prazer estético, e se volta para uma discussão relacionando o
cinema ao seu público. Com essa postura renova as discussões em torno do cinema brasileiro a
partir do pressuposto de que a luta pela afirmação da produção nacional nas telas e a luta
cultural e política são aspectos diversos de uma mesma batalha a serem vencidos
simultaneamente:
É um projeto global, não apenas o projeto de um filme. Quase o projeto
piloto de uma posição cinematográfica. Não é pretensão, não quero dar isso
como modelo. É apenas uma solução para a minha própria vida, como
produtor, para sobrevivência de minha posição como diretor de cinema
450
.
Para projeto de tal envergadura Nelson vai contar com os olhos, a percepção e a
cumplicidade intelectual de Laurita, que não lhe indica o tema, mas a nova maneira de
tratá-lo, o que o leva a repensar a sua metodologia:
Quando fiz Rio, 40 ° fiquei quase um ano andando pelo morro, freqüentando
a rapaziada, vendo sessões de umbanda, esbarrando em despachos. Mas a
minha câmara não filmava nada disso. A visão religiosa do povo e a própria
visão de mundo do povo eram totalmente ignoradas por mim. A realidade
que eu procurava não estava diante da câmara, mas no modelo que tinha na
minha cabeça
451
.
Fruto de um pensamento racionalista e cartesiano o método, “modelo que tinha na
cabeça”, ordenava a realidade visível de um conhecimento que o levaria à verdade. A reflexão
feita o faz chegar à constatação de que a idéia de método a priori não funciona mais, que as
dúvidas o universais na produção do conhecimento e que cada prática exige um método
específico para tratar o seu objeto.
450
Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião, São Paulo, 14/2/1975. In: Giselle GUBERNIKOFF,
Op. Cit., p. 36-37.
451
Entrevista dada a Marcelo BERABA. Jornal O Globo em 29/01/75. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit.,
p.24.
Sobre esse aspecto, observa-se que a pesquisa que toma para si campos da etnologia,
da antropologia, da arte, enfim olhares que declarem manifesto interesse pelo estudo das
sociedades, por certo tipo de homem, supõem uma escolha que promove o ajustamento, uma
integração, ao comportamento que o estudo reivindica. Respondendo à indagação formulada
por Georges Charbonnier sobre a convivência, na pesquisa etnológica, da paixão e da ciência,
Claude Lévi-Strauss fala dos percalços da construção do ponto de vista intelectual e
esclarecimentos sobre o sistema de referência de pesquisas que tenham esse propósito:
É preciso, se me permite a expressão, renunciar a conceber uma sociologia
“euclidiana” [...] Quando se estudam diferentes sociedades, pode ser
necessário trocar o sistema de referência e essa é uma ginástica muito
penosa. É uma ginástica, aliás, que somente a experiência de campo pode
ensinar
452
.
Para tratar a religião popular é necessário conhecer e aceitar os valores da realidade
sócio-cultural abordada, desembaraçar-se do sistema de referência até então adotado e ao
mesmo tempo inaugurar um sistema de valores com prerrogativas conceituais, estéticos,
políticos e emocionais que permitam apreender os aspectos da realidade que se descortina.
Nelson parte para a Baixada Fluminense com uma atitude aberta ao novo e em busca de uma
relação de proximidade com o objeto tratado, suas personagens eclodem das ruas e dos
terreiros – o mundo que criou já nasceu criado ou imaginado:
O que acontece é que o tipo de informação deixa de ser apenas teórica, das
pessoas que analisam de fora, ou superficial. A informação que eu precisava
para o filme tinha que vir de um pai de santo. Era preciso uma certa vivência
para eu me situar dentro da coisa toda. [...] Consultei vários terreiros e dentro
do filme existe o próprio Erley, que interpreta o pai de santo que toma conta
de Gabriel. Ele é um babalaô e estava sempre dando as dicas necessárias. A
preparação do filme foi muito desse jeito. A informação teórica dos
estudiosos precedeu a preparação do roteiro. O objetivo era mostrar a
Umbanda sem os equívocos que existam quando ela é vista como uma
crendice popular, como folclore
453
.
Maria Isaura Pereira de Queiroz ao estudar as aproximações entre as formações da
identidade cultural e da identidade nacional no Brasil entende que as pressões da onda da
imigração européia sobre a hegemonia da antiga classe dominante colonial levaram à
valorização da brasilidade e que a criação da umbanda demonstrou a acolhida que a
452
Georges CHARBONNIER. Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss. Campinas, SP:
Papirus, 1989, p. 15.
453
Entrevista publicada no Jornal do Brasil em 23/02/75. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 56-57.
diversidade teve nos anos 1920 nos circuitos característicos da cultura brasileira como um
todo, não de sua elite. A elite mais tradicional reafirmou-se através do modernismo, mas
este significou mais do que isso, a idéia de nação é assimilada como natural e seus princípios
mais racistas e eurocêntricos são eliminados e a mestiçagem torna-se valor cultural, quando
não biológico
454
.
Nessa perspectiva o sincretismo religioso é projetado na sua dimensão cultural
455
como combinação de diferentes crenças e práticas, agregando valor positivo, implicando em
tolerância na assimilação das contradições e dos contrários. A positividade, que garante a
diversidade, afasta-se do sincretismo totalizante, aquele que procura integrar em um único
corpo elementos de variada extração com a finalidade de conseguir uma unanimidade. Essa
tendência totalizante é oposta à proposta da modernidade cultural que privilegia o corpo
heterogêneo e desigual, acatando a diferença. Alguns autores, mais exigentes, sustentam que
nenhum sincretismo suporta a crítica analítica, a crítica que divide um todo em suas partes e
que é condição própria da modernidade.
Outra vertente, que toma como base a cultura emergente
456
, pode ser explorada para
dar conta de uma abordagem posta frente a uma realidade que se desdobra, na medida em que
tenta proceder à síntese entre a experiência concreta e a experiência possível.
A verificação de que a nossa cultura é híbrida é a chave para Nelson aproximar-se da
cultura do povo com a flexibilidade necessária que permite superar as dicotomias estanques e
inelásticas presentes nas oposições da área cultural (cultura erudita ou cultura popular, cultura
nacional ou cultura estrangeira), observando a dinâmica cultural na sua essência, ou seja, em
como ela se de fato, em movimentos cambiantes entre pólos que se atraem e se repelem
sem se excluir:
Nós sabemos, desde Gilberto Freyre, que existem duas culturas no Brasil:
aquela importada, imitação da cultura ocidental, e uma outra natural,
espontânea, de raízes mais fortes, e que é reprimida. É o momento de
começarmos a viver a cultura do povo. [...] Eu tinha essa perspectiva
muito tempo, mesmo quando estava realizando meus filmes anteriores. O
que eu não tinha era a condição pessoal de poder abdicar de uma visão
própria, de um modelo próprio das coisas. Quando eu queria representar o
povo, eu o representava de acordo com a minha imagem. Eu tinha uma
solidariedade hipotética. O meu desejo era o de fazer um cinema ou de que o
454
Cf. Maria Isaura Pereira de QUEIROZ. Identidade Cultural, identidade nacional no Brasil. Tempo Social.
Revista de Sociologia da USP, vol. 1, n° 1, 1° sem. 1989.
455
Em concordância com o conceito de sincretismo cultural formulado por Teixeira COELHO. Dicionário
crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2004, p. 344.
456
Elementos extraídos do conceito de cultura emergente formulado por Teixeira COELHO. Op. Cit., p.112.
cinema brasileiro em geral exercesse uma função liberadora do nosso povo e
que contribuísse para estabelecer uma comunidade cultural no Brasil
457
.
Sobre a cultura brasileira o debate na contemporaneidade é intenso, muita reflexão
foi e continua sendo feita. houve quem quisesse defini-la a partir de uma perspectiva de
unidade, enquadrando-a dentro de um conceito coeso e único. Essa posição foi afastada pela
evidência de que não existe uma cultura brasileira homogênea:
A cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se, em certas
situações, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa.
imbricações de velhas culturas ibéricas, indígenas e africanas, todas elas
também polimorfas, pois traziam um teor considerável de fusão no
momento do contato interétnico. E outros casamentos, mais recentes, de
culturas migrantes, quer externas (italiana, alemã, síria, judaica, japonesa...),
que internas (nordestina, paulista, gaúcha...), que penetraram fundo em nosso
cotidiano material e moral
458
.
Ao se admitir o caráter plural e diverso inerente à cultura brasileira dá-se um passo
para atravessar o mosaico das superfícies e compreender a cultura como resultado de
múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.
Essa situação é ampliada pela sensibilidade do artista que entrevê em meio ao
emaranhado de sons e imagens algumas linhas de força mais límpidas que, seguidas na
sugestão de suas ofertas, remetem a estruturas diferenciadas. Respeitar as diferenças e colocá-
las em equivalência, observando os ritmos que modulam os vários usos do tempo é a marca
da nova posição que adota O Amuleto de Ogum. Ao longo de todo o filme, o mito e o real
estão na mesma linha, não há qualquer diferença de tratamento entre eles:
Para Nelson, a meta era retratar a vida dessa imensa população que vive à
‘margem da cultura oficial, conseqüência de uma marginalização econômica,
mas que ‘mantém vivos seus mitos e suas crenças’
459
. Em outras palavras: ‘O
objetivo não é novo, a abordagem sim’. Porque agora Nelson procura ‘viver
a cultura do povo’, desvendá-la, não com a finalidade de qualquer
julgamento, de adesão ou repúdio. Mas de saber ‘um pouco mais a respeito
de nosso ser cultural, se ligar mais a ela, praticar uma observação mais
aberta, menos facciosa’
460461
.
457
Entrevista publicada na Revista Manchete assinada por Nilton CAPARELLI, em 01/02/75. In: Giselle
GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 29-30.
458
Alfredo BOSI. Plural, mas não caótico. In: Alfredo BOSI (org.). Cultura Brasileira: temas e situações. São
Paulo: Ática, 1987, p. 7-8.
459
Entrevista a Marcelo BERABA, O Globo, 29/01/75, apud Helena SALEM Op.Cit., p. 294.
460
Opinião, 14/2/1975, apud Helena SALEM. Op. Cit., p. 295.
461
Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos. O sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira, 1987. p. 294-295.
Esse “ser cultural” ao qual faz referência vai ser representado, ressignificado por
meio de uma linguagem também híbrida e sincrética. O tratamento cinematográfico adotado
mescla aspectos documentários aos de ficção na busca de um campo novo de experimentação.
Para Nelson, a reaproximação com o público se dará a partir da reflexão que
contempla também uma revisão que resulte em uma proposta dramática esteticamente
original, pois o divórcio entre o cineasta intelectual e seu público teve os mais variados
motivos, sendo um deles a incapacidade de serem elaboradas propostas temáticas e formais
que mobilizassem o público.
Neste sentido O Amuleto de Ogum é um filme experimental, uma inovadora e bem
sucedida tentativa de conjugar tema e forma. Para tornar viável essa posição, Nelson Pereira
dos Santos não precisou optar pelos gêneros cinematográficos tradicionais. Apesar da sua
trama O Amuleto de Ogum não é um filme policial, muito menos pitoresco ou exótico. O
filme segue o princípio observado pelo autor na pesquisa que fez em torno da dinâmica da
sociedade e parte do princípio que assim como a vida o filme não está preso a
compartimentos, pois é construído a partir da observação de que a realidade é mestiça, impura
e carregada de contrários, comprovando que a diversidade rechaça tanto a uniformidade
quanto os compartimentos estéreis e dessa forma o filme se constitui em um processo em que
seu autor faz uma aposta estética bem delineada de acordo com a sua visão política
reposicionada.
O Amuleto de Ogum resulta em um drama em que seu autor serve-se dos recursos
narrativos tanto do documentário como da ficção, ultrapassando a fronteira da pura
espetacularidade e do simples entretenimento, através da potência dos seus meios expressivos.
O equilíbrio com que opera a fusão e a mistura de recursos narrativos o tom ao filme.
equivalência entre os personagens, a expressão fotográfica não se sobressai gratuitamente; a
escolha, o uso da música e da sonoridade que pontua o filme é sugestivo e não condiciona a
emoção; a edição apenas revela, ou seja, a densidade narrativa expressa a realidade do
espetáculo cinematográfico, sem diluir o espírito crítico do espectador.
O próximo passo de Nelson será a realização de Tenda dos Milagres em que entrará
em contato com o candomblé, religião da matriz africana, de iniciação mais complexa e de
extremo vigor, mas que também percorreu os caminhos do sincretismo para garantir a sua
sobrevivência:
É difícil precisar o momento exato em que esse sincretismo se estabeleceu.
Parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre detalhes das estampas
religiosas que poderiam lembrar certas características dos deuses
africanos
462
.
Em Tenda dos Milagres, como se verificará a seguir, Nelson continuará
prosseguindo na investigação em torno da religião popular e da busca de um meio expressivo,
sincrético e original para o cinema de perspectiva popular.
462
Pierre VERGER. Orixás. São Paulo: Corrupio, 1981, p. 26.
de
dede
de
Tenda dos Milagres
Tenda dos Milagres Tenda dos Milagres
Tenda dos Milagres
Tenda dos Milagres é um hino de amor à Bahia [...] Pedro Arcanjo é um
personagem da primeira fase. Ele é uma mistura de duas ou três
personalidades importantes da cidade. Uma delas é o major Cosme de Farias,
figura lendária, conhecida como o pai dos analfabetos, que, com quase 100
anos de idade, ainda desfilava de carro aberto nos festejos de 2 de Julho [...]
Quem quiser lidar com o povo, não pode chegar numa atitude superior de
cineasta genial. Nada disso. Tem que se chegar que nem um jornalista ou um
cientista social, usando a câmera como um instrumento de trabalho, assim
como o repórter usa a caneta e o engraxate usa a cera. É assim que eu vou.
Eu e meus companheiros de equipe. O relacionamento vai ser de irmão para
irmão. A linha, a visão e a inspiração vão ser a mesma de Jorge. Será um
longo caminho a percorrer. Mas, vá lá. Vai ser um filme tão vivo quanto
AMULETO, o mocinho vai voltar vivo
Nelson Pereira dos Santos
463
.
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia Obá
É no xaréu que brilha a prata luz do céu
E o povo negro entendeu que o grande vencedor
Se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Caetano Veloso
464
463
Entrevista concedida a Rosane de SOUZA. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 30/04/75. In: Giselle
GUBERNIKOFF, Vol, II, p. 118.
464
Letra da composição Milagres do Povo.
Ao fazer o retrato do povo como seu próprio modelo em Tenda dos Milagres, adaptado
do romance de Jorge Amado, o seu décimo segundo filme, Nelson Pereira dos Santos definiu de
que maneira se deu o seu processo de construção do cinema de perspectiva popular
465
:
Escolhi Tenda porque há uma relação com a literatura brasileira dos anos 30,
que apresentava uma visão crítica da realidade, tomando como herói o povo.
Além disso, Jorge Amado é muito tentador para o cinema, devido à
repercussão em qualquer mercado e pela forte presença em termos de
imagens. Desde a década de 40, quando a Atlântida filmou TERRA
VIOLENTA (adaptação de Terras do Sem Fim) que Jorge vem
influenciando o cinema brasileiro e o carioca em particular – não só como
autor, mas como intelectual com idéias circulando no meio do cinema. Aliás
a Atlântida é conhecida hoje como produtora de chanchadas, mas começou
com outra perspectiva. Filmes como SOMOS TODOS IRMÃOS,
MOLEQUE TIÃO tratam do problema racial, influenciados pela literatura
da época. Tenda é um grande depoimento sobre a cultura brasileira. A
história se passa na Bahia, mas trata da questão da formação da sociedade
brasileira, trata da realidade de todo país. O que ele mostra é uma sociedade
gerada pelo povo em termos culturais, éticos que vai ser a sociedade
dominante. Na verdade, essa sociedade já é dominante, mesmo sem ter força
econômica e jurídica. É o poder do futuro. A história de Pedro Arcanjo é
uma síntese disso [...]
466
Tenda de Jorge Amado transformada no Milagre de Nelson Pereira dos Santos é o
confronto entre a cultura popular e a cultura acadêmica de gabinete, trata-se da história do
capoeirista, pai-de-santo e escritor afro-descendente Pedro Arcanjo, que encarou o
conservadorismo da elite branca baiana, encarnada na figura do personagem Nilo Argolo,
desmascarando as idéias racistas com uma arma poderosa: o conhecimento.
Essa história romanceada na literatura por Jorge Amado e transposta
cinematograficamente por Nelson Pereira dos Santos mantém a fonte original dos princípios
revolucionários idealizadas por aqueles que, privados da liberdade e submetidos à vontade
absoluta de um senhor, procuravam a todo custo romper as barreiras de uma política que na
sua essência estava calcada no conservadorismo social configurado em grande parte do poder
político dominante.
465
“Por cinema de perspectiva popular entenda-se uma determinada opção que impulsiona o artista sensível à
importância da cultura desenvolvida pela massa popular – e não a mass mediaa estruturar o seu discurso
partindo de dados fornecidos pela maioria. Em outras palavras, o cinema de perspectiva popular consiste numa
operação de baixo para cima – dentro da estrutura social em que vivemos – que exige a violentação de fórmulas
criadas de cima para baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema de valores e padrões
populares que, afinal, são o que melhor poderão definir a cultura brasileira”. Cf. Ronald F. MONTEIRO. O
cinema de perspectiva popular – Brasil Anos 70. Cinemais – Revista de Cinema e outras questões Audiovisuais.
Rio de Janeiro, número 28, março e abril de 2001, p. 106.
466
Entrevista de Nelson Pereira dos Santos. Tribuna da Bahia, 12/13 de outubro de 1975 apub Giselle
Gubernikoff, O cinema brasileiro de Nelson Pereira dos Santos – uma contribuição ao estudo da personalidade
artística. São Paulo, ECA-USP, 1985 (Dissertação de Mestrado, vol. II, p.124).
O personagem principal Pedro Arcanjo, o ojuobá, é a própria representação da
multiplicidade das pessoas de origem africana que nasceram após o trágico tempo da
escravidão. Arcanjo tem formação autodidata, é um intelectual endógeno que se contrapõe aos
doutores da Faculdade de Medicina da Bahia, naquela época um dos grandes centros de
estudos do país. Arcanjo confrontou o pensamento científico predominante na medicina legal,
utilizada como suporte político da elite branqueadora racista e discriminatória que procurava a
todo custo fortalecer o arquétipo prevalecente da sociedade oligarca, arcaica e autoritária.
Arcanjo é o símbolo opositor a essa forma política monolítica porque visualiza uma sociedade
oposta e democrática na qual não existe a superioridade de raças. Por essa atitude, Arcanjo é
“uma síntese do poder futuro, observando que mesmo sem ter ainda a força econômica e
jurídica, já começou a existir uma sociedade dominante gerada pelo povo, em termos culturais
e étnicos
467
”.
O tempo espacial do filme Tenda dos Milagres se compõe de várias épocas: a do
passado distanciado que se localiza no início do começo do século XX, precisamente em 1904
e se prolonga para um segundo espaço do passado próximo, demarcado pelo início da
Segunda Guerra Mundial. São extensões espaciais dramáticas sem limites, nas quais o negro
já liberto do regime escravocrata procurava uma forma de lutar contra a sociedade
configurada pelo padrão europeu, Arcanjo é o condutor das idéias libertárias. Era o começo de
um longo enfrentamento que ainda hoje se alonga com novos conceitos e outros
desdobramentos mais acirrados que só fazem aumentar a não coabitação entre negros e
brancos.
O outro período do filme é mais presente e se situa no ano de 1975 – no romance a
ação se passa no ano de 1968 - trata-se de uma adequação espontânea do autor
cinematográfico Nelson ao seu período de pesquisa, de filmagens e da finalização do filme
468
.
Nessa fase onde se configura a contemporaneidade, o grande enigma a ser descoberto
é: quem teria sido Pedro Arcanjo? O brasilianista Dr. James Dean Livingston após uma
entrevista coletiva provoca o interesse da imprensa sobre o personagem histórico. A partir das
indagações do cientista americano, o personagem Fausto Pena é instigado a saber quem fora
Arcanjo.
O espaço dramático do presente no filme expõe uma sociedade que absorveu a
modernidade conservadora na qual a memória das lutas e das reivindicações políticas e sociais
do passado recente dos afro-descendentes já havia caído no esquecimento ou então já haviam
467
Cf. Jose Tavares de BARROS. O código e o texto. Op. Cit., p.88.
468
O projeto teve início em julho de 1975 e o filme foi lançado oficialmente no Brasil em outubro de 1977.
sido diluídas da sua originalidade. Fausto Pena – poeta e escritor na versão literária, é,
também, transformado em cineasta na versão fílmica –, constrói um filme processando a
metalinguagem em Tenda dos Milagres para reconstituir a vida do herói Pedro Arcanjo.
O filme submetido aos critérios de uma análise fílmica pode ser dividido em quatro
tempos: o primeiro é o presente narrativo, no qual o cineasta Fausto Pena processa a
montagem do filme que está fazendo a respeito da história de vida de Pedro Arcanjo; o
segundo tempo trata do passado recente, onde se busca descobrir quem foi Pedro Arcanjo, e o
espaço dramático é a Bahia dos meados dos anos 1970, provocada pelas declarações do
americano James Dean Livingston; o terceiro tempo é o passado mais distante que trata da
reconstituição da vida do jovem Pedro Arcanjo, e o quarto tempo é o passado menos distante
que abrange a maturidade e a morte do personagem Pedro Arcanjo
469
.
Os tempos dramáticos foram cenograficamente compostos na cidade do Salvador,
Bahia, o que obriga ao olhar do espectador somente perceber a mudança temporal através dos
figurinos das personagens, pois nunca é possível enxergá-lo, localizá-lo ou defini-lo através
do espaço urbano, já que esse espaço confunde-se arquitetonicamente na visão de quem
observa o filme, mistura-se o passado e o presente, o barroco e a modernidade.
Além disso, esses tempos são intercalados em ordem não cronológica, rompendo com
a linearidade, e isso provoca uma fragmentação na narrativa. Embora o filme conserve o
sistemasico do cinema clássico de transparência de início, meio e fim, é necessário ressaltar
que Nelson subverte a narração clássica do cinema convencional com muita sutileza. Assim, na
verdade, existe em Tenda dos Milagres uma composição fílmica circular e fragmentada.
Do ponto de vista da clareza e da organização do discurso observam-se sinais
precisos que orientam o espectador no caminho que o filme vai trilhando, através de seus
planos, cenas e seqüências, embora alguns planos resultem obscuros. A lógica adotada por
Nelson Pereira dos Santos para concatenar os níveis temporais no filme convoca a
participação crítica do espectador. Com declarada intencionalidade ou operando a
transcendência necessária em resposta aos desajustes de produção, Nelson não mascara as
debilidades que se manifestam no filme, principalmente as que surgem no nível da cena. As
coisas não se apresentam como acabadas, não são estáveis, elas surgem, se organizam e se
fragmentam forçando o espectador a procurar a chave de significação entre as camadas
justapostas que só se revelam como um todo através da decodificação de sua estrutura. Tenda
469
Esta proposta de divisão do roteiro do filme Tenda dos Milagres em quatro tempos foi elaborada pelo crítico
Ronald F. MONTEIRO. Cf. O cinema de perspectiva popular Brasil Anos 70. Op. Cit.
dos Milagres mobiliza o espectador em várias instâncias, mas para ser compreendido exige a
apreensão da sua totalidade, o que significa acatar o jogo de armar da sua proposta.
Na primeira seqüência do filme, após o prólogo, assistimos às cenas de montagem do
filme narrando como foi a vida de Pedro Arcanjo, o Ojuobá – os olhos de Xangô –, nascido
no século XIX, exatamente no ano de 1875 e morto no início dos anos 1940, do século XX,
quando a população exigia a adesão do País a Segunda Guerra Mundial. Arcanjo, em que pese
a sua histórica vida, é na contemporaneidade um desconhecido da maioria dos intelectuais
baianos e brasileiros, mas é louvado e agraciado por um detentor do prêmio Nobel, que
quando da sua passagem por Salvador, Bahia insiste em conhecer mais de Pedro Arcanjo em
seu solo natal, mobilizando intelectuais e a mídia para o descobrimento do personagem. Nesse
sentido, o filme tem muita semelhança com o livro Tenda dos Milagres –, porém amplia a
complexa linearidade narrativa, pois o romance tem uma estrutura fracionada ou mesmo
quebrada.
Os níveis temporais expostos no livro estão distribuídos da seguinte maneira: há o
relato do poeta Fausto Pena, sempre na primeira pessoa; existe a descrição do tempo presente,
a partir da chegado do cientista americano e temos o tempo da rememoração da vida e da ação
política de Pedro Arcanjo. Contudo essa estrutura temporal foi bastante modificada na versão
cinematográfica, além disso, o poeta Fausto Pena transformado em cineasta é uma clara
alusão ao cinema autoral:
Mas, por outro lado, se Nelson Pereira dos Santos tinha a intenção de
discutir o processo de fazer cinema no Brasil de 1977, parece evidente que
encontrou um elo entre essa proposta e o romance de Jorge Amado que lhe
serviu de base. O que quer se afirmar é que a escolha do livro “Tenda dos
Milagres” não foi casual ou indiferente; pelo contrário, deu-se o encontro
porque Nelson Pereira dos Santos descobriu situações, personagens e
sobretudo uma estrutura narrativa que continha potencialmente – ainda no
plano literário – o filme que ele pretendia fazer. Se a luta travada pelo
escritor Fausto Pena significava uma extensão da história de Pedro Arcanjo e
de posição contra o colonialismo cultural, esta por sua vez se articularia com
os problemas que Nelson Pereira dos Santos enfrentava para realizar um
filme dentro das condições brasileiras. Assim, não é secundária, mas
primária e essencial, a transformação de Fausto Pena–escritor em Fausto
Pena-cineasta no processo de adaptação do texto literário para o cinema; em
conseqüência, será insuficiente qualquer leitura de TENDA DOS
MILAGRES que não relacionar os elementos da sua ação com essa proposta:
o filme dentro do filme
470
.
470
Cf. José Tavares de BARROS. Op. Cit., p.132.
O número de cenas em Tenda dos Milagres das seqüências do tempo presente, nas
quais o personagem Fausto Pena está editando e comentando o filme com o montador
Severino Dadá, se resumem em apenas cinco aparições. Porém, são fundamentais para o
entendimento da construção do filme. São cenas de curta duração com o propósito de
assegurar a presença de Fausto Pena no presente narrativo do filme, e nas ações dramáticas.
Fausto Pena contracena com o referido montador Severino Dadá e com a personagem Ana
Mercedes. Nota-se a intenção de Nelson de se distanciar do seu objeto original – Tenda
romance –. Já o personagem do montador Severino Dadá é uma pessoa conhecida do mundo
cinematográfico brasileiro, e não faz parte do conjunto de personagens de Jorge Amado, no
entanto não há um distanciamento entre ele e os criados por Amado, uma vez que se trata de
uma figura popular. Severino Dadá é a inserção do autor cinematográfico Nelson, e nas suas
poucas falas questiona Fausto Pena sobre as verdades de Pedro Arcanjo e de qual seria o final
do filme.
Da mesma maneira, a aparição em uma das cenas dessas seqüências do cineasta,
poeta e intelectual Fernando Coni Campos, acompanhado de Ana Mercedes, entregando a
Fausto Pena os escritos de Pedro Arcanjo, é outra liberdade de criação de Nelson Pereira dos
Santos. Ainda, existe, em uma das cenas uma citação em off ao cineasta Roberto Faria, na
época exercendo a presidência da Embrafilme. Essas inserções de personalidades do mundo
cinematográfico, assim como uma rápida alusão a Embrafilme e um cartaz de uma
pornochanchada exposto na sala de montagem fazem parte da estratégia de Nelson de chamar
a atenção para o cinema brasileiro e situar o seu contexto.
Todas essas licenças poéticas cinematográficas feitas por Nelson dentro do conjunto
criado anteriormente por Jorge Amado em Tenda original, funcionam com o propósito de
estabelecer um caráter documental ao próprio filme Tenda. Além do mais se verifica que o
personagem Fausto Pena está a quase todo momento a falar sobre a história que já aconteceu e
a passar para o espectador informações sobre a evolução do relato como um todo. Em outras
falas, Pena trata sobre questões relacionadas com a produção querendo enfatizar junto ao
espectador as dificuldades para concretização do filme, é a reflexão crítica de Nelson Pereira
dos Santos sobre o processo da produção cinematográfica brasileira.
Uma das linhas de força do filme é a constituição do presente recente, 1975. Existe
uma longa sucessão de episódios provocados pela revelação do cientista americano James D.
Livingston, no meio cultural e social da Bahia. Logo no prólogo do filme aparece uma
apresentadora de televisão com uma feição meio caricata, anunciado a presença e a
provocação científica do Dr. Livingston. Em seguida, após as cenas da entrevista, no saguão
do hotel, temos uma grande disputa por parte de veículos de comunicação de quem vai dar o
“furo jornalístico” sobre quem foi Pedro Arcanjo. Fausto Pena é cobrado pelos seus chefes,
especialmente o Dr. Zezinho (diretor do jornal), que ameaça não publicar nenhuma matéria de
cunho cultural em seu jornal até descobrir a verdadeira história de Arcanjo, e Pena é obrigado
a concorrer com Ana Mercedes com quem mantém um affaire, e ao mesmo tempo vai
estabelecer uma cumplicidade na produção do filme e da peça de teatro sobre Arcanjo.
Para seguir a trajetória de Pedro Arcanjo, Pena recorre ao contínuo do jornal,
conhecido pela alcunha de Ligeireza que havia afirmado ter conhecido pessoalmente o mestre
Arcanjo. Então, Ligeireza narra a Fausto Pena como aconteceu a morte de Arcanjo dentro de
um bordel. Assistimos em flashback a primeira morte de Arcanjo, retratada de forma
espalhafatosa. Serão sucessivos flashbacks que vão intercalar o presente recente ao passado
distante em quatro seqüências-chaves, nelas vemos as ações desmistificadoras do racismo e a
vida amorosa do jovem Arcanjo. Da mesma maneira, o presente se relaciona ao passado mais
recente, no qual a maturidade de Arcanjo, a continuidade da sua disputa com academia, a
refrega com a repressão aos terreiros de candomblé, a reflexão política e a sua segunda morte
são mostradas.
No tempo presente, além dos citados personagens Fausto Pena, Ana Mercedes,
James D. Livingston, Dr. Zezinho, temos ainda com maior destaque as personagens da
professora Edelweiss Calazans e do publicitário Gastão Simas. Edelwiess no romance é
Edelweiss Vieira, uma artesã, autodidata cheia de boas intenções e completamente por fora da
realidade do mundo que acerca. Na versão cinematográfica foi transformada em uma
professora que é a fusão dos três únicos personagens que levam a sério a recuperação da
memória de Pedro Arcanjo. Edelwiess aparece com destaque conduzindo a palestra de
Livingston na Faculdade de Medicina, e é escolhida para ser a curadora do seminário sobre
Arcanjo com a participação do publicitário Gastão Simas, mas este aplica um golpe e aborta o
evento alegando uma falsa censura, e conta com apoio nessa falcatrua do Dr. Zezinho, agora
interessado em um lançamento imobiliário que leva o nome de Pedro Arcanjo e na
comemoração do seu centenário que acaba concretizando-se como o retrato oficial de Pedro
Arcanjo visto pela sociedade burguesa e branca, abafando a sua verdadeira face criada no
imaginário popular.
Nessas seqüências Nelson aponta e interliga de forma muito clara a continuidade dos
elementos conservadores da sociedade brasileira com origem no passado que se perpetuaram
e reaparecem travestidos no cinismo e no oportunismo, procurando fazer um desmonte do
personagem Arcanjo, cristalizando a sua massificação como produto de consumo.
Para contrapor a verdade sobre o Arcanjo folclórico e o Arcanjo politizado, Nelson
habilmente utiliza-se da fragmentação da narrativa cinematográfica. Nesse caso, as tensões
provocadas pelas idéias de Arcanjo rompem o tempo e dão possibilidades de várias leituras.
Recordemos a cena em que aparece pela primeira vez o jovem Arcanjo no pátio da Faculdade,
após a aula ministrada pelo professor Nilo Argolo. Os alunos se esbarram em Pedro Arcanjo,
e este na base da galhofa leva um dos estudantes ao ridículo por este defender a sua pureza
racial. Esta cena está localizada, logo depois da cena do desentendimento de Fausto Pena – no
tempo presente – num bar, com um professor negro, que também nega as suas origens e diz
impropérios racistas contra Arcanjo. Esta cena é inusitada porque ao mesmo tempo em que
Pena se digladia com o professor, é assediado por um homossexual. Nesse sentido, o autor
Nelson trabalha com uma complexa situação, em que estabelece um distanciamento de
comportamento entre Fausto Pena e Pedro Arcanjo, pois enquanto Pena reage de forma
agressiva à fala do professor racista, Arcanjo não perde a pose por causa dos desaforos
desferidos pelo estudante a sua pessoa.
Nelson está sempre operando com o confronto e com o contraditório, e trabalhando
com tempos fílmicos distintos uns dos outros. Essa refinada opção de fragmentação e
circulação narrativa provoca no espectador uma necessária compreensão do conteúdo do
filme, e gera uma diversidade de posições políticas a respeito da verdadeira personalidade de
Pedro Arcanjo. Sobre essa alteração da realidade dramatúrgica, o crítico Ronald F. Monteiro
fez a seguinte observação sobre Tenda dos Milagres:
Logo no início do filme Fausto examina seu trabalho na moviola com o
auxiliar Dadá; são mostrados aos espectadores flashes de Arcanjo moço e
velho (rosto dos atores Jards Macalé e Juarez Paraíso caracterizados para o
papel). A suposição é que aquelas são as representações escolhidas por
Fausto para viverem os personagens cuja vida ele pesquisou. Há, ainda,
indicações de que em alguns momentos da pesquisa de Fausto e Ana
Mercedes, na Bahia, estejam no filme. Entretanto, na conclusão, depois que
Fausto sai de cena, quando é descerrado o retrato de Arcanjo na
comemoração do seu centenário, surge a mesma fisionomia do ator Jards
Macalé. As fantasias autorais da realidade dramatúrgica do filme
confundem-se e desafiam qualquer esforço de distinção
471
.
São contínuas as alteridades da realidade dramática em Tenda dos Milagres. A
personagem Ana Mercedes no filme é bem diferente da estruturada no romance, enquanto na
peça escrita ela representa uma mulher sedutora, livre dos preconceitos nos jogos amorosos,
além de ser muito manhosa, utilizando-se dos seus atrativos em proveito próprio que não foge
471
Cf. Ronald F. MONTEIRO. Op. Cit., p. 114.
da submissão, é uma representação de uma mulher de vida licenciosa com volubilidades
artísticas. A cinemática Ana Mercedes exerce no filme um papel mais moderno. É uma
mulher independente que, embora mantenha uma relação amorosa com Fausto Pena, não
deixa de se envolver com amores fugazes, e não se desvincula de Pena, provavelmente por
provocação intelectual, compaixão ou mesmo dó.
A ligação de Ana Mercedes com Fausto Pena é vista em quase todo o tempo presente
do filme. Ela participa ativamente da pesquisa sobre Arcanjo e destaca-se na montagem da
peça teatral inacabada. Nas cenas do ensaio teatral se envolve com Ildásio, uma vez que a
peça desanda, o melhor é uma refrega sexual. Ana Mercedes faz, também, num momento de
idílio amoroso com Fausto, o grande questionamento sobre a personagem Rosa de Oxalá,
atribuindo a ela a razão de ser, o grande amor de Pedro Arcanjo. Rosa se dividia entre Arcanjo
e o seu fraternal amigo Lídio Corró. Arcanjo ganhou Rosa numa disputa musical e corporal,
mas Rosa, tempos depois, preferiu assumir a sua relação com um burguês branco para dar
segurança ao seu filho.
A relação amorosa entre Ana Mercedes e o americano Livingston é narrada por dois
pontos de vista: na carta que o cientista escreve para o jornal e nos comentários feitos pela
própria Ana a Fausto Pena no bar. Ana Mercedes, antes do seu envolvimento com o
americano, havia surpreendido a todos quando incorporou um santo no terreiro de candomblé
– não há essa cena no romance – é uma invenção do autor Nelson Pereira dos Santos. Há um
desencontro nas imagens e nas versões masculina e feminina do encontro entre Ana e
Livingston. Enquanto, ele se recorda da noite de amor e sexo, ela descreve que apenas havia
pousado fotograficamente para satisfazer ao voyeurismo de Livingston. Onde estaria a versão
autêntica? Seria nas primeiras cenas, nas quais Ana Mercedes quer testar a masculinidade do
americano? Ana Mercedes sobe na cama, se despe e diz: “Quero ver se você é bom mesmo ou
é só fachada”, e enlaça o americano com um colar. O filme não define qual teria sido a versão
verdadeira, deixa a dedução na cabeça de cada espectador.
A ambigüidade é recorrente em Tenda dos Milagres, assim como as deduções a
respeito da construção do personagem principal Pedro Arcanjo. Quem melhor conhece o
professor afro-descendente é o próprio povo, que é despertado através do programa de
radialista França Teixeira, um personagem folclórico do radio jornalismo sensacionalista
baiano, Teixeira afirma ao microfone: “Pedro Arcanjo foi o rei do brega da Bahia”, a sua voz
ressoa nos ouvidos dos populares que transitavam nas ruas de Salvador. Ligeireza comentou
com a baiana de acarajé, que estava escutando o programa num rádio de pilha: “Tá todo
mundo falando de velho Arcanjo. Que é que tão querendo?”.
O espectador vai conhecer Arcanjo gradativamente a cada momento que o filme em
flashback reconstrói a história do herói do povo. O jovem Arcanjo é destemido e debochado,
desafia a ordem do chefe de polícia e desfila com o seu bloco afro, e sai ileso junto com os
amigos. De imediato o espectador vai se deparar com o ambiente habitacional de Arcanjo, a
barraca da comadre Terência, a tenda que divide com Lídio Corró, a amizade com o menino
Damião. Vamos conhecer as mulheres de Arcanjo: da finlandesa Kirsi que vai se apaixonar e
engravidar, retornando ao seu país levando o filho na barriga, à Rosa de Oxalá que enciumada
encarna o mito, quebra os preceitos da religião afro-descendente para ter uma longa noite de
amor com o jovem Arcanjo e transformá-lo no velho Arcanjo. Momento de grande
transformação. Rosa e Dorotéia fundem-se na Iaba, encarregada de transmutar, pela
subjugação amorosa, a personalidade de Arcanjo:
Tenda dos Milagres. Lídio e Manoel sugerem a Pedro Arcanjo que escreve o
que sabe sobre a Bahia. [...] Ouve-se um ruído forte de ventania, a imagem é
clareada por fogos de artifícios. Pedro Arcanjo levanta-se, dirigi-se a porta da
rua. Iaba desfila por uma ladeira, achegar à porta da ‘Tenda’: ela é primeiro
Rosa de Oxalá, depois Dorotéia. A porta de Tenda pergunta por Pedro
Arcanjo. Dorotéia: ‘Cadê Pedro Arcanjo, esse pai d’égua’? Rosa: ‘De bode vai
virar capado’. Pedro Arcanjo sobe ao quarto , reza, agita os guizos, enfrenta
primeiro Dorotéia, que vira Rosa. É Rosa que Pedro Arcanjo abraça
furiosamente. Na sala abaixo, Lídio comenta que ‘Pelas minhas contas já
acabou e começou quarenta vezes’, referindo-se a tradição que a Iabao goza
nunca: Pelo que vejo, era uma vez o mestre Arcanjo’, diz Manoel. Primeiro
plano da Iaba Rosa, deitada; ruídos de gotas d’água caindo. A câmara afasta-se
enquadrando apenas o teto do quarto. Surge Pedro Arcanjo agora interpretado
por Juarez Paraíso. Em off, voz da iaba Rosa: ‘Tu me virou mulher. Comeu a
minha força e meu segredo. Tu agora é o cão solto na Bahia’.
472
Nessas seqüências de imagens Nelson Pereira dos Santos vai da verossimilhança,
quando usa adequadamente a história de Arcanjo, à inverossimilhança, quando abre as
possibilidades para a imaginação criativa, ou seja, transita do real à magia cinematográfica.
Embora Tenda dos Milagres não conte com os recursos mirabolantes das novas tecnologias, o
elemento mágico suscitado no próprio do cinema desde a origem dessa fabulosa máquina de
reinventar a realidade se faz presente na densidade das imagens coreograficamente compostas
com certa maestria. Podemos apontar essas soluções nas cenas das transformações das
mulheres e na fusão que resulta no envelhecimento do personagem Pedro Arcanjo, em que o
jovem Arcanjo ao levantar a cabeça após a saudação feita ao orixá apresenta as marcas do
tempo.
472
Cf. Jose Tavares de BARROS. Op. Cit., p.109.
Na fase da maturidade de Arcanjo é que são acirradas as relações políticas contra a
religião afro-descendente. Também, nesse passado recente da diegese do filme é que alguns
personagens se destacam e ganham evidências favorecendo a contextualização da história,
bem como desvendando os mistérios que ainda restam em torno da figura de Pedro Arcanjo,
para isso contribuem as personagens do já citado Professor Nilo Argolo e do professor Fraga
Neto. Entre Pedro Arcanjo e Neto se desenrola o diálogo mais intenso no sentido da definição
política do filme, e conseqüentemente do posicionamento do autor Nelson diante do confronto
política e religião:
O professor Fraga Neto, um marxista convicto, no último encontro com Pedro
Arcanjo, depois da demissão de Arcanjo da Faculdade de Medicina, estranhando a sua
profunda relação com o candomblé, escuta de Arcanjo que depois das suas intensas leituras,
havia ele se distanciado da visão ingênua que tinha das coisas, mas categoricamente afirmava:
“os orixás são um bem do povo. É preciso saber conciliar teoria e vida, amar o povo e, não, o
dogma. Um dia haverá uma cultura brasileira mestiça, e com a ajuda dos orixás”.
Esse breve diálogo extraído do seu contexto, ou seja, do âmbito da história do filme
serve como uma alusão as posições políticas e estéticas assumidas pelos cineastas oriundos do
movimento do Cinema Novo, e transparece uma autocrítica dos compromissos assumidos na
primeira fase do movimento, quando se almejava de forma meio ingênua a transformação do
pensamento político brasileiro das camadas populares. Após a brutal mudança na estrutura
política brasileira e seus maléficos efeitos no campo cultural, os intelectuais que “falavam
pelo povo”, fizeram uma revisão dos posicionamentos políticos e estéticos dos seus filmes, e
Nelson se antecipou, ou melhor, retornou com novas bases, dessa vez sem idéias ortodoxas,
ao cinema que ele próprio já havia realizado na sua primeira fase e que já foi abordado, o
chamado cinema de perspectiva popular como uma saída para uma sociedade que ansiava pela
liberdade e democracia, como, também, para um cinema que continuava em busca do seu
público. Não é efêmera a escolha da adaptação de Tenda dos Milagres. Nesse sentido, Nelson
apontava para caminhos a seguir em que incorporava inevitavelmente o pensamento popular,
e evidentemente, a sua tradição religiosa não católica que perdia o sentido de alienação e
passava a ter sintonia com a idéia de transformação da sociedade pela assimilação e respeito
às diferenças. Observa-se que é logo após Tenda, que já havia sido precedido por O Amuleto
de Ogum, que Glauber Rocha vai realizar o seu último filme A idade da terra, ícone –
manifesto político estético que prioriza o povo e a sua religião afro-descendente. Não restam
dúvidas de que o pai Nelson, assim Glauber
473
o chamava, continuava como uma estrela guia
das imagens do moderno cinema brasileiro.
Em Tenda, o conflito étnico religioso político é um micro universo do que
presenciamos hoje em quase todo o mundo. É claro que sem a dimensão bélica dos conflitos
atuais. No filme, os personagens que comungam do verbo reprimir estão lado a lado do
professor Nilo Argolo, que professa as idéias racistas e a ele se alinha o coronel Gomes,
representante da tradição conservadora da família que embranqueceu e que a todo custo nega
a mistura das etnias tão comum ao brasileiro. À tropa de choque da elite perfila-se o delegado
Pedrito Gordo, o executor que conduz a ação da repressão. Opondo-se a esse conjunto, o
chefe de polícia Fernando Góes, um paradoxo no sistema repressivo que assume a sua
negritude; a falida condessa francesa conhecida como Zabela, que revela, a cada momento, os
traços afro-descendentes das famílias brancas e dos personagens racistas e reacionários; a tia
Eufrásia e sua sobrinha Lu, filha do coronel Gomes, que vai contrair matrimônio com Tadeu
Fonseca, filho de Pedro Arcanjo, causando um reboliço na sua casa; que se estende até o
professor Fraga Neto.
Nesses aparentes e simples embates em torno da religião, sobretudo no
distanciamento entre negros e brancos, enfatizado constantemente pela elite conservadora,
Nelson põe em destaque a religião afro descendente como suporte junto ao povo, sobretudo o
candomblé enquanto fonte de resistência do oprimido à repressão que lhe é imposta pelos
donos do poder. Assim, assiste-se a inúmeros ataques da polícia aos templos sagrados, à
arbitrária prisão do Pai Procópio – protagonizado no filme pelo artista e pai-de-santo
conhecido e reconhecido na Bahia, Luís da Muriçoca. Como contraponto necessário para
professar a defesa da religião afro-descendente, Pedro Arcanjo ridiculariza o delegado Pedrito
Gordo, invocando a ancestralidade de um auxiliar do policial, levando- a incorporação de um
orixá publicamente em meio a uma ação de repressão ao culto religioso. O auxiliar volta-se
contra a autoridade e a tropa policial, guerreiro incorporado defende o povo de santo, e
expulsa os opressores do terreiro.
Aliás, Nelson funde as formas clássicas da ficção e do documentário. Compõem o
filme como atores da dramaturgia natural figuras expoentes da camada mais nobre candomblé
da Bahia, por exemplo, Mãe Mirinha de Portão, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Ruinho do
473
“Depois de conhecer Nelson Pereira dos Santos, encarei a possibilidade de fazer um filme no Brasil. Entre
Pátio e Cruz, fui estagiário de Nelson no Rio de Janeiro. Vim da baia para o rio quando ele filmava Rio, Zona
Norte. Durante a montagem de Barravento ele me influenciou e me formou tecnicamente. Se alguém teve
influência na minha vida cinematográfica e intelectual, este foi Nelson”. Glauber ROCHA. Positif, 67. Entrevista
a Michel Ciment. In: Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004. p. 111.
Bogum. Nelson investe na busca da veracidade, ao mesmo tempo em que recorre à
dramaturgia natural já instituída como um traço do seu repertório fílmico, fortalecendo a
aceitação dos conceitos e do poder originário dos terreiros como fortalezas do pensamento e
das idéias libertárias do povo afro-descendente brasileiro.
Não é à toa que Nilo Argolo, o representante simbólico ficcional da reação, leva às
ultimas conseqüências as suas idéias reacionárias que culminam com a demissão de Pedro
Arcanjo da função de bedel da Faculdade de Medicina. Em seguida, para o aumento do seu
infortúnio, é preso e no fim da vida passa a vender de tudo para sobreviver. Mas, Arcanjo em
nenhum momento abdica dos seus princípios e das suas vigorosas idéias, amparado na sua
crença religiosa que só reforça os conceitos políticos. Nelson ainda mostra Pedro Arcanjo na
sua derradeira investida lutando contra a tentativa do totalitarismo universal provocada pela
ascensão do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália.
Passeata pelas ruas da cidade, à noite. Populares portam faixas. “As armas e
ao trabalho, brasileiros” – “Guerra às potências do eixo”. O Hino Nacional é
tocado pela banda e cantado pelo povo. Pedro Arcanjo caminha sozinho. De
repente sente-se mal, aperta o coração, apóia-se no guarda-chuva, senta-se
no meio-fio
474
.
Segue-se o desfecho do filme, o espectador é levado ao tempo presente, Fausto Pena
explica ao montador Severino Dadá que “o importante é que Pedro Arcanjo sempre foi fiel às
suas idéias”, que então acrescenta: “Eu não preciso terminar o filme todo mundo já viu”.
Corte. O Dr. Zezinho abre as comemorações elitistas do centenário de Pedro Arcanjo, a
professora Edelweiss aplaude sem muito entusiasmo, fecha a imagem. Um registro da festa 2
de Julho, desfile comemorativo da data cívica da independência da Bahia, faz o contraponto à
falta de espontaneidade e mascaramento constantes da seqüência anterior. É esse o momento
preciso em que a ficção transmuda-se em documentário. Os habitantes de Salvador encenam o
drama popular que comemora a vitória, marco de liberdade dos brasileiros que se insurgiram
para destituir o poder português. Caboclos- mestiços -sincréticos desfilam pelas ruas da
histórica Salvador com toda a pujança da conquista, com toda a carga da nacionalidade
fazem-se representantes do País novo que se organiza, ícones alegóricos de uma realidade
histórica construída coletivamente. Viva o povo brasileiro! Fim.
Com o passar do tempo, visto na ótica dos dias atuais Tenda dos Milagres pode ser
considerado um filme que aborda uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira: a
474
Cf. Jose Tavares de BARROS, op.cit. p.122.
miscigenação. Já na época do lançamento do filme críticas contundentes foram feitas ao filme.
O conteúdo dos artigos, especialmente os elaborados por Jean Claude Bernardet
475
, enfatizam
que a tese da miscigenação esteve sempre voltada a favor de uma política que obedecia como
meta a “brancura” da sociedade brasileira, e esse processo só acontecia quando um branco
casava-se ou vivia com uma negra, ou quando um negro se casava com uma branca, a busca
em ambas as ações era clarear a “cor do povo brasileiro”. De maneira muito rigorosa, a idéia
da anti-miscigenação é a de que se trata de “uma forma pacífica de exterminar os negros”.
Assim, o filme Tenda dos Milagres seria uma idéia desmobilizante da luta contra o racismo, e
um convite à inanição diante dos conflitos raciais existentes no país.
De acordo com Jean Claude Bernardet
476
, os conflitos registrados no filme são
solucionados de forma simplista e as ações encaminhadas dentro da narrativa de uma forma
passiva com a convicção de que com o desenrolar da miscigenação entre as gerações de
negros e brancos os conflitos raciais seriam reduzidos. Na opinião do crítico trata-se de um
equivoco, pois a Bahia, e o país convivem e continuarão a conviver com um racismo igual aos
dos séculos passados. Por outro lado, se observa que esse modelo de crítica tem uma
abrangência muito mais ampla do que a que se detém exclusivamente nos elementos
apresentados pelo filme, Bernardet universaliza os conceitos que abarca do universo do
escritor Jorge Amado ao do cinema de Nelson Pereira dos Santos e acrescenta na sua análise
os problemas raciais e do colonialismo cultural que se perpetuaram ao longo dos anos.
Por outro lado, na defesa do filme, a crítica americana Marsha Kinder diz que é bom
lembrar que Tenda dos Milagres é um filme com viés voltado para o humanismo do seu
personagem, além das perspectivas de uma política racial, embora o filme discuta,
evidentemente, as ideologias das classes sociais e seus respectivos embates, ele consegue
envolver o espectador emocionalmente e até certo ponto pode ser considerado um filme
divertido com sátiras desmistificadoras da estrutura social brasileira, pois mistura os
problemas raciais com política sexual, analisa o comportamento feminino e masculino diante
da vitalidade do sexo que sempre aflorou no país, e particularmente na Bahia, vista como um
espaço propício à liberdade sexual, sem as amarras do puritanismo que calçou grande parte do
comportamento cultural em voga em determinados lugares. Essa forma de comportamento
475
Cf. os artigos de Jean Claude BERNARDET: Tenda dos Milagres: a cultura é um fato político, publicado no
jornal Última Hora, São Paulo, 08/02/1978; Estamos ficando brancos. Última Hora, São Paulo, 14/02/1978;
Tenda dos Milagres: um convite à alienação. Última Hora. São Paulo, 16/03/1978.
476
Jean Claude BERNARDET ainda discute sobre a ideologia do filme Tenda dos Milagres de Nelson Pereira
dos Santos em Cinema Brasileiro: Propostas para uma História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
tanto está contida no romance de Jorge Amado quanto no filme de Nelson Pereira dos
Santos
477
.
Dos choques ideológicos, da miscigenação, do encontro de valores, da
mentira e da verdade, do preto e do branco: o filme de Nelson Pereira dos
Santos desdobra-se em elementos contraditórios que tendem a despertar o
espectador do seu comodismo. [...] este filme deve ser visto por todos e que
Arcanjo é uma personalidade digna de ser admirada (embora seu mito inclua
mentiras, distorções e omissões) [...] (Pedro) Arcanjo, (Fausto) Pena e
(Nelson) Pereira dos Santos não são puristas e também nós espectadores, não
somos – este é o ponto central. O filme celebra a miscigenação e as formas
mistas como a melhor solução para o racismo, para democracia e para fazer
filmes
478
.
de
dede
de
Utopia
Utopia Utopia
Utopia
O pensamento que presidiu a primeira fornada do chamado Cinema Novo
não estava nem no cinema. Estava na grande tradição do pensamento
brasileiro. Porque nós somos filhos dos literatos, dos escritores, dos
romancistas, da Semana de Arte moderna, da literatura nordestina do
romance dos anos 30. Nós somos filhos dessa gente, que procurou
conscientizar essa relação.
Nelson Pereira dos Santos
479
Essa riqueza cultural é uma herança enorme e partilhadíssima; ela não tem
dono. Ela se perde nas origens dos tempos. A explicação que se pode
encontrar para ela é mais uma visão antropológica do que uma visão
ideológica, política. Pelo fato de ser partilhada, ela é individualizada. Cada
um de nós é o mais lídimo representante dessa herança, o mais lídimo
herdeiro de tudo isso, que foi construído e legado no decorrer dos tempos.
Nelson Pereira dos Santos
480
477
Marsha KINDER. Tent of Miracles. In: Film Coment. USA, fevereiro/março de 1978, p.45-50. Apud Jose
Tavares de BARROS. Op. Cit., p. 168.
478
Id., Ibid.
479
Depoimento a Giselle GUBERNIKOFF, em São Paulo 16/5/1979 e 5/2/1980 com a participação de Reinaldo
Volpato e Guilherme Lisboa. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 334.
480
Id. Ibid. p. 340.
Falar sobre a obra de Nelson Pereira dos Santos é entrar em acordo a utopia
com a realidade.
Emanuel Cavalcanti
481
A tradição nutre a criação, a criação nutre a tradição: música de Carlos
Chávez e de Heitor Villa-Lobos, arquitetura de Oscar Niemeyer e de Luis
Barragán, pintura de Orozco, Frida Kahlo, Portinari, Soto, cinema de Emilio
Fernández e Nelson Pereira dos Santos.
Carlos Fuentes
482
A Utopia tem a sua definição firmada em um complexo terreno devido à
multiplicidade de aproximações que lhe são possíveis, como as políticas, literárias e
sociológicas, sendo recorrentemente empregada como uma constante da reflexão política em
cada tempo e em cada país.
Norberto Bobbio ao tratar do conceito de utopia menciona que a sua mais célebre
definição é a de Karl Mannheim (Ideologia e utopia, 1929), segundo a qual: “a mentalidade
utópica pressupõe não somente estar em contradição com a realidade presente, mas também
romper os liames da ordem presente”
483
.
Na leitura de Bobbio, feita a partir de Mannheim, a mentalidade utópica não traduz
apenas o pensamento e muito menos a sua projeção sob a forma da fantasia, ou sonho para
sonhar-se acordado, situacionalmente transcendente; é uma ideologia que se realiza na ação
de grupos sociais. Nessa perspectiva, Nelson Pereira dos Santos traz as nítidas inscrições
definidoras da utopia em seu pensamento e obra, pois de diferentes formas enfrentou a
questão tomando-a não com o sentido de “lugar ideal”, “lugar feliz” ou “lugar inexistente”,
mas como um lócus de conflagração da ordem social.
Não é desprovida de razão que em muitos momentos deste trabalho as colocações de
Nelson Pereira dos Santos, no que diz respeito às suas referências e filiações, apontam para a
literatura e para os pensadores que formularam a utopia da brasilidade.
Quando começa a operar a sua expressão fílmica, em meados dos anos 1950, tem fé
na sua imaginação política e acredita que o mundo melhor, não é apenas pensável, mas
possível. Assim, manifesta a preocupação em olhar de frente e de forma próxima os
481
Depoimento colhido em setembro de 2008.
482
Carlos FUENTES. Este é meu credo. São Paulo: Rocco, 2006. Extraído de trechos disponibilizados em Veja
on-line edição 1979– 25 de outubro de 2006.
483
Karl MANNHEIM apud Norberto BOBBIO et al. Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1986, p.1285.
problemas brasileiros, direcionando o seu foco para o homem brasileiro empenhando-se em
conhecer o país a partir das novas bases que o desenvolvimento kubitschekiano propiciava,
voltando-se para a tradição cultural cumulativa que circunscreveu o espaço nacional e que era,
ela mesma, campo e laboratório de invenção do ideário da constituição do ser brasileiro.
Pela proposta deste trabalho não se torna excessivo ressaltar que em todo o percurso
de Nelson Pereira dos Santos a indagação “O que é ser brasileiro?” procura ser respondida,
seja como militante político na fase estudantil, em que criou vínculos profundos e
permanentes com os compromissos sociais, econômicos e políticos do país, seja como autor
cinematográfico que procura enquadrar na sua lente o homem brasileiro na sua totalidade
revelando os cadinhos mais recônditos da sua alma.
No contato com a pesquisa sobre a brasilidade e a formação do seu imaginário crítico
na perspectiva revolucionária dos anos 1960, seguida de sua transformação e inserção
institucional a partir dos anos 1970, toma-se com referência o passado e isso envolveria
refletir com mais acuidade sobre o fato de que a utopia da brasilidade que se reflete nas artes
brasileiras é esquadrinhada no Modernismo e teve dois temas de grande importância na
história intelectual e cultural brasileira: a identidade nacional e a autonomia cultural.
A discussão é extensa e teve seu início por volta de 1870, aqui não se pretende
repassar toda a tradição da discussão, mas pontuá-la para efeito de contextualização.
Para Ilana Seltzer Goldstein, os estudos de Ernest Renan, um dos pioneiros da
investigação sobre as nações, já em 1822 denunciam um equívoco até então recorrente:
definir uma nação pelo território, pela etnia, pela religião ou pela língua, pois as nações são
territórios flutuantes em que podem coexistir várias línguas, várias etnias e vários credos.
Segundo Renan, a nacionalidade continha um lado sentimental, um “princípio espiritual” e
isso explicaria sua coesão:
[...] ter sofrido, ter celebrado, ter esperado junto, eis o que vale mais que
fronteiras. [...] Uma nação é uma grande solidariedade, constituída pelo
sentimento de sacrifícios que se fizeram e de outros que ainda se está
disposto a fazer.
484
Benedict Anderson
485
, em abordagem já citada neste trabalho, um século após os
estudos de Ernest Renan tratou o nacionalismo em perspectiva antropológica, afirmando que o
mesmo traz traços de semelhança com o parentesco e a religião. Assim como a religião, a
484
Ernest RENAN apud Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade.
São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003, p.34.
485
Benedict ANDERSON. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
nação como uma “comunidade política imaginada” teria o papel de apaziguar os sofrimentos
humanos.
O historiador inglês Eric Hobsbawm
486
fortalece o pensamento contemporâneo sobre
a questão ao afirmar que um dos elementos cruciais na criação e perpetuação das nações é a
“invenção das tradições”, que consiste na aceitação tácita ou explícita de um conjunto de
práticas reguladas por normas capazes de inculcar valores e comportamentos pela repetição.
Maria Isaura Pereira de Queiróz observa que a utilização de conceitos definidos no
estrangeiro, geralmente no âmbito da civilização ocidental, para exprimir particularidades de
sua realidade, quando não sofrem uma adaptação perfeita para representar essa realidade,
teriam a tendência de se tornarem deslocados, anacrônicos - “idéias fora do lugar”
487
. Essa
consideração é feita pela pesquisadora ao tratar dos conceitos de identidade cultural e
identidade nacional, utilizados como sinônimos no Brasil, contrariamente ao que ocorre na
Europa. A sinonímia indica as diferenças de definição dos conceitos por parte dos
pesquisadores brasileiros e europeus:
Para os europeus, a identidade nacional une entre si
coletividades culturais que podem ser patrimônios culturais muito
diversos; a união é essencialmente política e se faz através de
sentimentos comuns de adesão e de devotamento a uma sociedade
global. Para os brasileiros, as duas concepções, de identidade cultural
e de identidade nacional, se confundem. Em sua nação, todas as
coletividades étnicas, todos os estratos sociais estão interligados por
um patrimônio cultural semelhante e este fato compõe o nacional
algo que se exprime de forma concreta, independente de uma
conscientização
488
.
À colocação da pesquisadora frente a nossa história, acrescente-se o fato de que na
condição brasileira o nacionalismo traz o emblema da ideologia
489
, no entanto algumas
observações formais sobre o nacionalismo são pertinentes e por aproximação podem ser
aplicadas. Neste sentido, o nacionalismo pressupõe uma representação única para
486
Cf. Eric HOBSBAWN. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 e Nações e nacionalismo
desde 1870: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
487
A expressão “idéias fora do lugar” foi criada por Roberto Schwarz em artigo homônimo, em que tratava a
obra de Machado de Assis, escrito no calor do debate em torno da questão da identidade nos anos 1970,
publicado na revista Estudos Ceprap, n° 3, do Centro de Análise e Planejamento, onde desconstrói o mito da
originalidade da cultura brasileira.
488
Maria Isaura Pereira de QUEIROZ. Identidade cultural, identidade nacional no Brasil. In: Tempo Social -
Revista de Sociologia da USP, vol. 1, n° 1, 1° semestre, 1989, p. 44.
489
Cf. Marilena CHAUÍ. Seminários. Coleção: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
acontecimentos simultâneos e paralelos e a nação é vinculada à idéia de progresso. Nesse
particular, encontra simetria ao pensamento de Robert Nisbet, para quem:
A idéia de progresso acredita que a humanidade avançou do
passado a partir de alguma condição original de primitivismo,
barbárie, ou até nulidade –, continua avançando agora e deverá ainda
avançar no futuro que possa ser previsto. [...] É inseparável de um
sentido do tempo que flui de forma linear
490
.
Essas formulações ajudam a projetar o futuro da nação na utopia progressista. O
conceito de identidade nacional não só neutraliza tendências dispersivas e desagregadoras
como efetiva-se como meio de legitimação do poder político. Nesse sentido Renato Ortiz irá
afirmar:
Falar em cultura brasileira é falar em relações de poder[...] na verdade, a luta
pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma forma de se
limitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima
491
.
É possível entender, então, que no Brasil a ideologia da identidade brasileira é
disposta como autodefesa da elite para garantir a sua hegemonia e referência na discussão
política do futuro do país. Dessa forma, as teorias racistas que vigoraram nos centros
intelectuais do país de 1870 a 1930 partiram de uma perspectiva eurocêntrica e viam como
motivo de inviabilidade do progresso fatores como raça e clima. Lilia Moritz Schwarcz, ao
distinguir a “sciencia” que o País importa no final dos 1800, afirma: “O que aqui se consome
são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados enquanto
justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação”
492
.
Raymundo Nina Rodrigues e Sylvio Romero entre outros, empreenderam grandes
esforços para combinar conceitos racistas necessários para a manutenção do poder branco,
eurocêntrico, com a percepção contraditória de que o país havia sido ocupado pelo outro.
Preocupados em definir uma identidade cultural brasileira, ao se defrontarem com o
patrimônio cultural próprio, adquiriam consciência da heterogeneidade dos traços culturais
existentes no país, mas o faziam baseados em modelos de origem européia. A
heterogeneidade compreendida nos complexos culturais aborígenes, nos de origem européia e
nos de origem africana coexistiam, e os costumes e práticas aborígenes e africanos eram
490
Robert NISBET. História da idéia de progresso. Brasília: UNB, 1985, p.17.
491
Renato ORTIZ. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 8-9.
492
Lilia Moritz SCHWARCZ. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.28.
vistos como obstáculos que impediam o Brasil de um desenvolvimento tanto cultural como
econômico, pois essa situação também embaraçava a eficiência econômica, dificultando a
conquista da glória e do esplendor disponibilizados pela civilização européia.
Nesses estudos, a concepção era a de que a identidade cultural seguia a maneira que
seus realizadores julgavam ser a ocidental: partiam dos padrões ocidentais de raça e de
estabilidade de sua sociedade
493
chegando ao entendimento de que nossas “crises e
desequilíbrios” provinham das misturas raciais e culturais encontradas no país.
A questão fundamental em discussão, apesar de cada estudo apresentar pequenas
variantes, era a da coexistência de elementos culturais de origem tão diversa sem se
destruírem reciprocamente, de como constituir um conjunto homogêneo, e o que isso
representava para o progresso tão necessário ao país. Esses cientistas tinham dificuldade de
conceber o entendimento de que um dia a sociedade brasileira, apesar de suas diferenças
étnicas, culturais e econômicas, pudesse vir a constituir um patrimônio cultural harmonioso
que garantisse a pluralidade de seus traços e, ao darem esse sentido à questão, poderiam
sustentar a crença de que esse estado de coerência seria uma condição para atingir o processo
civilizatório.
O salto estabelecido no conceito de identidade no sentido de ser superada a noção de
igualdade e semelhança pelo seu delineamento a partir da diferença será dado pelos
modernistas, que irão fertilizar o terreno da identidade em um jogo de espelhos que encontrará
rebatimento em diversas reflexões como a de Carlos Rodrigues Brandão, para quem:
As identidades são representações inevitavelmente marcadas
pelo confronto com o outro [...] não apenas o produto inevitável da
oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da
diferença
494
.
Será ainda Maria Isaura Pereira de Queiróz a observar que essa superação começou
no início do século XX, datando essa mudança na ocasião da Semana de Arte Moderna de São
Paulo, em 1922, que promoveu uma reviravolta nas maneiras de ver da intelectualidade
nacional. Nesse quadro destaca a importância de dois nomes que forjaram outra forma de
pensar o problema da identidade nacional – Mário de Andrade e Oswald de Andrade –
intelectuais que revigoraram todo o pensamento intelectual brasileiro da segunda década do
493
A presença do racismo nos estudos era forte, uma vez que na Europa essas teorias eram atuantes e o Conde de
Gobineu, autor do “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, proclamava a superioridade da raça branca.
494
Carlos Rodrigues BRANDÃO. Identidade e etnia. Construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p.42.
século passado. O ideário conservador avivou, pelo movimento inverso, a inquietação dos
modernistas que reagiram fortemente ao eurocentrismo, propondo a troca de referências até
então estabelecidas.
Com a Semana de Arte de 1922, a heterogeneidade passou a ser considerada
referência obrigatória do que constituía a identidade cultural nacional, demonstrando que a
originalidade e a pujança da cultura brasileira provinham justamente da multiplicidade de suas
raízes e de sua capacidade de misturá-las. Essa posição defendida pelos modernistas
confrontava-se radicalmente ao que era proposto anteriormente pelos estudiosos que tomavam
a homogeneização cultural como patamar necessário e única via para a construção de uma
identidade nacional.
Os intelectuais modernistas faziam suas apostas na heterogeneidade como
constitutiva da identidade. Nas suas composições e leituras da arte rejeitaram a mímese e
dimensionaram o estatuto poético na direção de um tempo anterior inscrito fora da própria
modernidade. Esse elemento inovador de pura inauguração é o original que reinventa o
passado como mito de criação e origem. Ana Maria de M. Belluzo sintetiza assim o
ineditismo da vanguarda modernista brasileira:
Da mesma forma pode nascer o símbolo no universo da
representação artística. Tarsila imagina figuras da memória da terra.
Oswald de Andrade procura o nome no dicionário tupi-guarani.
Chama a figura gica de Tarsila de Abaporu, “homem que come”.
Está sendo inventado o Movimento Antropofágico
495
.
Recorrente também na reflexão sobre os elementos de constituição da identidade
considerados pelo modernismo é a filiação de Oswald de Andrade ao ideário antropofágico,
propondo um indianismo” às avessas. Baseada na antropofagia ritual dos nossos índios a
antropologia cultural de Oswald de Andrade tinha como proposta a seleção apurada em
termos de cultura internacional, a fim de que fosse metabolizada em produtos próprios e
originais e devolvidos ao mundo. Jorge Schwartz fazendo um balanço retrospectivo da
trajetória de Oswald destaca a sua fidelidade à antropofagia:
Concebidos nos anos subseqüentes à Semana de 22, os
princípios de sua maior utopia começarão a ser desenvolvidos
inicialmente sob forma de manifestos: Pau Brasil e Antropofagia. O
495
Ana Maria de Moraes BELLUZO. Os surtos modernistas. In: Modernidade: Vanguardas artísticas na América
Latina. São Paulo: Memorial/UNESP, 1990, p. 24.
ideário dos anos 20 é retomado com vigor nos anos 40. Em seus textos
filosóficos, Oswald de Andrade desenvolve a idéia do bárbaro
tecnizado que possibilitaria a libertação do homem submetido ao jugo
do patriarcado capitalista
496
.
Oswald de Andrade, até o fim de seus dias, perseguiu a utopia da redenção
antropofágica e do retorno ao primitivo como via de libertação da América. Mário de Andrade
assumiu a tarefa de contrapor o pensamento eurocêntrico comum às nossas elites ao
desprezado passado nacional, reabilitando este pelo viés da multiplicidade das culturas
populares. Desse modo, fez a revisão das grandes questões da época e, passo a passo, investiu
na caminhada de “abrasileiramento do Brasil”.
Com a lente aberta numa angulação panorâmica, o modernista rechaçou a idealização
e o recalque do passado nacional adotando como estratégia estética a inversão dos valores
hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico, apontando tanto para o resgate da
multiplicidade étnica e cultural nacional como para o vínculo que esta mantém com o
pensamento universal não-eurocêntrico.
Ao operar a inversão dos valores e da hierarquia em circulação, o modernismo
lançou luzes aos objetos culturais periféricos. O intelectual brasileiro, o artista brasileiro,
deveria ocupar a cena, ser protagonista da sua história.
A década de 1930 assistiu à mudança efetuada no pensamento dos intelectuais,
formuladores e produtores da cultura brasileira, que abandonaram os argumentos da
interpretação do primeiro instante do modernismo, de orientação nitidamente cultural,
passando a trilhar os caminhos de uma política universalista radical, nesse momento centrada
no materialismo histórico, influenciada pela análise marxista adotada para a compreensão do
processo histórico brasileiro.
Essa análise será usada tanto para a avaliação do passado nacional quanto para
buscar a utopia, que deve acabar com os desequilíbrios econômicos e injustiças sociais no país
e no mundo. A produção artística e cultural deixou de ser experiência inaugural do
multiculturalismo, a serviço de uma ruptura e subversão estéticas, passando a vincular-se à
crítica da estrutura econômica da sociedade. A inspiração foi dada pelo realismo oriundo dos
congressos de literatura soviéticos.
A formulação de uma autêntica e vigorosa política que tratasse da identidade
brasileira seria possível nos anos 1930 se esta estivesse em favor da praxis marxista,
496
Jorge SCHWARTZ. Vanguardas Latino-Americanas – Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo:
Iluminuras/EDUSP/FAPESP, 1995, p. 168.
através da denúncia do poder oligárquico que inibia as relações de classe do país. A estética
de fundamento marxista aguçava o sentimento do intelectual e do artista para o espetáculo
deplorável da realidade brasileira e as principais obras artísticas produzidas nesse período irão
projetar o país pela lente do subdesenvolvimento.
Nesse quadro de formulação teórica o país era conduzido à fase urbano-intelectual no
momento seguinte à Revolução de 1930, marco histórico que representou um:
[...] movimento de unificação cultural, projetando na escala da nação
fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões [...] houve
alargamento de participação [...] em diversos setores: instrução
pública, vida artística e literária, estudos históricos e sociais, meios de
difusão cultural como o livro e o rádio
497
.
A revolução modernizadora desencadeada em 1930 transformava a face
tradicionalmente rural do país, alterando-lhe não apenas a e estrutura econômica, mas também
as instituições sociais e políticas. No plano cultural ocorria uma notável efervescência:
assimiladas as conquistas estéticas renovadoras buscava-se agora a discussão da realidade
brasileira.
O estabelecimento das bases para o florescimento de uma cultura “genuinamente
nacional” que redescobria o Brasil orientava os processos culturais deflagrados no período,
favorecendo a dinamização que perpassava várias esferas da sociedade brasileira. A ânsia de
reinterpretar o passado nacional e inventar o país nas suas possibilidades enquanto nação
aparece com destacada evidência na cena literária conformando-se àquilo que Antonio
Candido designou como “pré-consciência do subdesenvolvimento”, isto é, uma percepção do
atraso e da miséria e que teve como canal mais forte de expressão o romance. O gênero
literário normalmente voltado para a crônica do social tornou-se a espécie predileta de toda
uma geração. A esse respeito Alfredo Bosi esclarece:
[...] os abalos que sofreu a vida brasileira em torno de 1930 (a
crise cafeeeira, a revolução, o acelerado declínio do Nordeste, as
fendas nas estruturas locais) condicionaram novos estilos
ficcionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos,
enfim por uma retomada do naturalismo, bastante funcional no
plano da narração-documento que então prevaleceria
498
.
497
Antonio CANDIDO. A revolução de 30 e a cultura, em Novos Estudos, n° 4, São Paulo: Cebrap, 1984, p. 1.
498
Alfredo BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 438.
Contudo, se a ficção se fez presente no período, com a exuberância dos talentos de
José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz,
etc., em seu rastro se disseminou outro gênero: o ensaio. Este gênero visava dissecar e refletir
aspectos da realidade brasileira de forma direta, sem a mediação dos instrumentos ficcionais.
Um número expressivo de ensaios marca a década de 1930, sendo produzidos por jovens
autores que intentavam abordagens renovadoras de nossos fenômenos históricos, econômicos,
sociológicos, educacionais, étnicos, etc. É a década onde avultam obras, tais como Casa-
grande e senzala (1933), de Gilberto Freire; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de
Holanda e Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado
Júnior.
Cabe mencionar ainda que, neste período, intelectuais assumiram papéis qualificados
e de poder na construção orgânica da sociedade, estimulando a criação e inserindo-se em
diversas instituições. As representações profissionais também foram institucionalizadas:
Em 1930 foi fundada a Ordem dos Advogados do Brasil, em 1931 a
academia de Medicina, em 1933 a Ordem de Engenheiros e
Arquitetos. Em 1937 foram ainda criados o Serviço Nacional de
Teatro (SNT) e o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), além
do Instituto nacional do Livro (INL)
499
.
Dessa forma, ressalta-se que Getúlio Vargas enquanto esteve na Presidência da
República (1930-1945), junto à edificação do Estado estimulou à atividade intelectual e atraiu
a participação de expressiva camada da intelectualidade trazendo-a para perto de si:
Carlos Drummond de Andrade no Ministério da educação e
Saúde, Lúcio Costa, Oscar Niemayer e Candido Portinari projetando e
decorando para o governo; o crítico Augusto Meyer na chefia do
instituto nacional do livro; Ribeiro Couto e Murilo Mendes no corpo
diplomático; Manuel bandeira como membro consultivo do serviço do
patrimônio Histórico e artístico Nacional (SPHAN), cuja primeira
versão fora idealizada por Mário de Andrade
500
.
Há de se computar os graus de investimentos e apostas dos intelectuais na bolsa do
Estado brasileiro. A crença dos intelectuais foi abalada com a entrada do país na Segunda
guerra em 1942 e constituía-se um paradoxo combater o nazi-fascismo e apoiar um regime
autoritário. Ao intelectual cabia, no entanto, a avaliação permanentemente sobre a atuação do
499
Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2003, p. 47.
500
Id., ibid.
governo e os movimentos em torno da política. Envolto numa atmosfera nacionalista, o
Estado Novo traçou uma estratégia de apropriação do repertório cultural emergente em franco
processo de legitimação elegendo símbolos nacionais oriundos desse processo e fixando-os no
imaginário da nação.
O desenvolvimento dessa discussão conduz ao entendimento de que a utopia da
brasilidade e a construção da nacionalidade é um projeto que tem sua inscrição entre os anos
1930 e 1950, não sendo por acaso que é neste período que a questão nacional se impõe no
esplendor de toda a sua força. Concepções diferentes como as que sedimentavam o ISEB ou
alicerçavam o Estado Novo, ocupavam campos diferenciados, mas tinham como ponto de
partida a constatação de que era necessária a consolidação de uma realidade que ainda estava
em processo no Brasil. Renato Ortiz reconhece ser o Estado o espaço no interior do qual se
realizaria a integração da nação e esclarece sobre o papel do intelectual na sua relação com o
Estado:
Os intelectuais, ao se voltarem para o Estado, seja para fortalecê-lo como o
fizeram durante Vargas, seja para criticá-lo, como os isebianos, o
reconhecem como espaço privilegiado por onde passa a questão cultural
501
.
O Brasil sai da era Vargas, propositora do desenvolvimento nacional com base na
intervenção do Estado, e entra nos anos 1960 e início dos anos 1970
502
em um período em que
o florescimento cultural e político na sociedade brasileira pode ser entendido como romântico
revolucionário
503
. Essa hipótese é sustentada por Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do
Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, em que argumenta:
o romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas
também modernizador. Ele buscava no passado elementos para construção
da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido anticapitalista
prisioneiro do passado, gerador de uma utopia irrealizável na prática.
Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se
resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do
501
Renato ORTIZ. Op. Cit., p. 51.
502
Esse período já foi tratado em passagens anteriores desse trabalho, por isto está sendo, neste momento,
abordado com mais brevidade.
503
Marcelo Ridenti faz essa reflexão a partir da noção de “estrutura de sentimento” formulada por Raymond
Williams, para o qual a estrutura do sentimento não se contrapõe a pensamento, mas procura dar conta “do
pensamento tal como sentido e do sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa
continuidade viva e inter-relacionada”, sendo por isso uma hipótese cultural de relevância especial para a arte e a
literatura. Cf. Raymond WILLIAMS. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.134-135.
povo, cuja essência estaria no homem camponês e no migrante favelado a
trabalhar nas cidades
504
.
Este é o momento, como foi informado anteriormente, em que Nelson inicia o seu
processo de realização fílmica, encarnando o papel romântico revolucionário sendo acolhido e
acolhendo o Cinema Novo. É chegada à hora de assumir a herança dos pensadores,
recorrentemente sublinhados pelo cineasta, que lhe deram esteio, pista e caminho luminoso a
seguir. A absorção, as conexões e os desdobramentos de todo o pensamento e da experiência
cultural, social e política vivenciada torna-se empreendimento necessário.
A formulação evocada pelo intelectual romântico revolucionário postula novas
versões para as representações de brasilidade, não mais no sentido de justificar a ordem social
existente, mas de questioná-la.
O Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças; - o negro Espírito da
Luz, não pode gravar seu samba, produz para outro compositor branco que se apropria e lucra
com sua música; da harmonia e da felicidade do povo brasileiro, Eldorado, o país fictício de
Terra em transe é o éden idealizado pelos conquistadores espanhóis e portugueses; sendo
interditado pelo poder do latifúndio, em que Sinhá Vitória, Fabiano e seus dois meninos em
sofrido desamparo procuram sinal de vida no solo rachado do sertão nordestino-, mas poderia
vir a sê-lo como conseqüência da revolução por chegar, que Glauber anunciava em tom de
profecia “o sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”.
O que estava implícito no ideário do intelectual brasileiro no início dos anos 1960 era
a ação transformadora que levaria à construção de uma sociedade com base em novos
arranjos. Retomando o pensamento de Marcelo Ridenti, observa-se que:
Valorizava-se acima de tudo a vontade de transformação, a ação para mudar
a História e para construir o homem novo, como propunha Che Guevara,
recuperando o jovem Marx. Mas o modelo para esse homem novo estava
paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do
povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente
não contaminado pela modernidade capitalista
505
.
Procurava-se uma via que garantisse a modernização que não implicasse em adesão
ao fetichismo reducionista da mercadoria e do dinheiro, facilitada pela incipiência do mercado
consumidor. Renato Ortiz assevera:
504
Marcelo RIDENTI. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 25.
505
Marcelo RIDENTI. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. In: Tempo Social - Revista de Sociologia da
USP, v.17, nº1, p. 84.
A relação entre cultura e política se expressava como complementariedade
nos anos 50 e até meados de 60, porque vivíamos um clima de utopia
política no interior de uma sociedade de mercado incipiente
506
A questão da identidade nacional e política do povo brasileiro estava recolocada,
movimentos anteriormente em ordens distintas, alinhavam-se. Procurava-se, simultaneamente,
recuperar as raízes da cultura e romper com o subdesenvolvimento crônico da sociedade
brasileira. Tal opção encontra amparo no seio da esquerda. Assim a remissão ao passado não
se separava das utopias de construção do futuro inscritas no horizonte do socialismo. Naquele
contexto brasileiro levar o povo em conta não implicava em criar utopias anticapitalistas de
cunho passadista, mas progressista; resultava na aparente contradição de se voltar para o
passado, onde estavam fincadas as raízes populares nacionais, para projetar as bases do
construto do futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao se consolidar, poderia
implodir as fronteiras opressoras do capitalismo.
Nelson Pereira dos Santos confirmando a vocação de afirmar na sua obra a idéia de
uma consciência nacional apresenta a nação a partir de elementos catalisadores da ampla
utopia do seu povo, empenhando-se na missão de estender e socializar os sentidos de nação e
de povo. Para tanto usa de vários recursos em que opera atualizações permanentes, já
apontados ao tratarmos do cotejamento da sua obra. Esses recursos qualificam a sua
diversidade e fazem com que a sua narrativa dialogue com o destino do país em momentos de
realismo cortante, de pessimismo desconcertante, de ironia apurada, de alegoria poética, de
total liberdade, de experimentação e pedagogia necessárias. Suas imagens, nos vários tempos
do seu exercício, procuram revelar um modo de vida apartado do processo de colonização
sofrido pela cultura brasileira e o faz através das suas representações. As crenças, os hábitos e
jeitos que compõem o mosaico multifacetado da cultura do homem brasileiro são tecidos
como fontes irradiadoras de utopia porque possuem como virtualidade a recusa ao modelo que
a asfixia. Atento às análises e mudanças no seio da cultura e da sociedade brasileira
contemporânea, advindas da emergência da indústria cultural, que reorienta a discussão na sua
relação povo-nação, dando à noção outra abrangência, Nelson prossegue, como vimos em
diversos momentos deste trabalho, atualizando suas informações sobre a sociedade brasileira,
formulando pensamentos e estabelecendo estratégias que imprimem na sua narrativa a
essência do que para ele é permanente: a utopia de um futuro em que o projeto do Brasil
oficial se substancie no projeto do Brasil real.
506
Renato ORTIZ. Op. Cit., p. 164.
de
de de
de
Vida
VidaVida
Vida
A vida de um fazedor de filmes é sempre, também, um filme.
Helena Salem
507
[Ao pensar num filme] eu fico totalmente livre e escrevo à vontade. [Para]
fazer um roteiro, você tem que imaginar a cena por completo. O ambiente,
quem estará na cena, o que vai acontecer. Tenho que descrever já pensando
na coisa concreta. Penso no tipo de móvel. Depois é que vem o diálogo. Mas
na hora de escrever, tenho que ter tudo pronto na cabeça. Então, gosto de
trabalhar na rede, de olhos fechados. A minha esposa é quem vem me
perguntar: vem cá, não vai trabalhar hoje, não? E eu digo: mas já estou
trabalhando!
Nelson Pereira dos Santos
508
Olha, não vou negar: tenho uma grande inveja da juventude. Gostaria de ter
hoje, por exemplo, 50 anos... Mas estou feliz: faço cinema, tenho amigos,
estou bem casado, não fiquei amargo nem ressentido com as adversidades da
vida. Estou aí. É um privilégio estar vivo. Celebro a vida todos os dias.
Nelson Pereira dos Santos
509
Isso é indiscutível. Ninguém pode negar que essa celebração cotidiana da vida esteve
presente em todos os momentos, até aqui vividos intensamente por Nelson Pereira dos Santos.
Sejam naqueles de grande alegria, sejam naqueles em que a tristeza e as decepções vieram
lembrar-lhe que também fazem parte do jogo, Nelson soube sempre fazer prevalecer o que
realmente contava naquele instante, o que de fato valia a pena preservar, inclusive ao
roteirizar e dirigir seus filmes, fazendo com que refletissem invariável e teimosamente a idéia
que trazia em mente.
Nelson Pereira dos Santos exerce, e sempre exerceu como gosta de frisar, com total
liberdade, a sua autonomia autoral. É um dos poucos cineastas que conseguiu manter uma
507
Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1987. p.13.
508
Depoimento. Disponível em: <http://ego.globo.com/ENT/Entrevista/0,,ENN90-5279,00-NELSON+
PEREIRA+DOS+SANTOS.html>. Acesso em: 08/01/2008.
509
Depoimento de Nelson Pereira dos Santos a Penha ROCHA. Um cineasta imortal. In: Revista Pesquisa
Fapesp, edição impressa 122, p. 6, abril 2006.
coerência inatacável ao longo de toda sua carreira, investigando o mundo à sua volta. Quem
sabe se não foi mergulhando nesse inesgotável manancial disponibilizado pela vida que o
gosto pela celebração entranhou-se indelével e definitivamente em sua personalidade?
É bem verdade que a formação recebida desde a infância tem um peso nada
desprezível na determinação de sua maneira de fazer filmes. O ensinamento dos valores,
sobretudo éticos, recebido, aliada a uma “liberdade” estética e consciência política,
adquiridas, moldaram, assim como o ideal modernista e a literatura, sua forma de
compreender e interpretar o Brasil.
[...] todos esses autores chamavam atenção para o que significa ser
brasileiro. Evidentemente, isso não foi tudo na minha formação intelectual.
Eu vivi a juventude muito esperançosa, a juventude do pós-guerra. Acabava
a guerra, chegava ao fim o fascismo no mundo, terminava o Estado Novo no
Brasil... Diante desse cenário, o pensamento tinha espaço. E a presença dos
partidos marxistas apontava um caminho bem luminoso... Então, aquele era
o momento de se perguntar. Era o momento de tirarmos da cabeça todas as
dúvidas que tínhamos. [...] Eu acabei despertando essa curiosidade pela vida
brasileira.
510
A década de 1920 em que Nelson nasce reacende por todo o mundo, após as
ocorrências traumáticas da primeira Guerra Mundial, a vontade de construir sobre bases mais
sólidas uma sociedade mais livre, criativa e renovadora. Acendem-se por toda parte as luzes
de novas mentalidades.
No Brasil, a década começa com o nascimento de João Cabral de Melo Neto. Dois
anos depois, em 1922, ocorre a Semana de Arte Moderna. Em 1928, vários eventos marcarão
a história cultural do país: é fundada a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira;
Tarsila do Amaral pinta o Abaporu e, junto com Oswald de Andrade e Raul Bopp, lança o
Movimento Antropofágico; Mário de Andrade publica Macunaíma; Cassiano Ricardo lança
Martim Cererê; e Heitor Villa-Lobos, o Choro nº. 11 para Piano e Orquestra.
A 14 de maio nascia Ernesto Che Guevara e no dia 22 de outubro de 1928 vem ao
mundo Nelson Pereira dos Santos que poderia hoje ser – como queria sua mãe – Marco
Antônio dos Santos.
510
Rodrigo FONSECA. Meu Compadre Cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos.
Cadernos Cine Academia nº 6: Brasília, 2005 p. 17/18.
Prevaleceu a vontade de seu pai que se encantara com um filme mudo, cujo
personagem principal era o Almirante Nelson, o intrépido marinheiro inglês
que derrotou a esquadra francesa de Napoleão em Trafalgar.
511
Os eventos referentes ao modernismo, descritos hoje como fundamentais para a
formação do pensamento cultural do país fazem, entretanto, parecer ter tido grande
participação popular ou ampla repercussão entre a população, mas na verdade, estavam
restritos a uma minoria e tinham um alcance muito pouco abrangente. Em seu discurso de
posse na Academia Brasileira de Letras, em 2006, Nelson esclarece esse fato, afirmando que:
Os modernistas, que tanto buscavam assimilar a linguagem cinematográfica,
desconheciam o cinema feito no Brasil ou, antes, o desprezavam. Mário de
Andrade, cinéfilo, era vítima de escárnio por parte dos amigos, porque, ávido
de cinema, assistia também aos poucos filmes brasileiros que surgiam
esporadicamente. Por sua vez, os cineastas brasileiros importantes, como
Mário Peixoto e Humberto Mauro, nunca ouviram falar da Semana de Arte
Moderna nem do Movimento Modernista. Humberto Mauro, por exemplo,
vivia em Cataguazes, na mesma cidade onde repercutiu o modernismo na
obra e na atuação de Rosário Fusco com a revista “Verde” e, no entanto,
encontrava-se distanciado do movimento, ignorando-o e ignorado por ele
512
.
Os pais
513
de Nelson, todos os domingos, levavam a família inteira ao Cine Teatro
Colombo, no Brás, onde passavam as tardes em meio a seus heróis, assistindo aos seriados,
documentários, comédias e dramas, quase sempre americanos. Nelson também estava
presente, ainda que no colo da mãe.
E o próprio Nelson é quem reforça o quadro que conseguimos vislumbrar, ao
imaginar aquela família inteira atravessando a rua para comprar ingressos no cinema em
frente à alfaiataria de seu Antonio, onde passavam horas, envolvidos na poalha do cinema.
Esse contato precoce e contínuo com a sala de projeção foi determinante na vida de
Nelson, que desde cedo passou a compreender a importância da arte cinematográfica, a qual
entraria definitivamente em sua vida.
Durante toda a década de 1930 e início da década de 1940, período correspondente a
sua infância e pré-adolescência, a maioria da pequena quantidade de filmes nacionais
511
Cícero Sandroni em discurso de recepção a Nelson Pereira dos Santos, quando de sua posse na Academia
Brasileira de Letras em 2007.
512
Além de Humberto Mauro, que não teve nenhum envolvimento com o movimento modernista, Nelson faz
referência principalmente, ao filme Limite de Mário Peixoto, que a imprensa da época insistiu em associar ao
movimento modernista, mas que estava muito distante das idéias que os paulistas, que encabeçavam esse
movimento, perseguiam.
513
A mãe de Nelson, Angelina Binari dos Santos era natural de Caçapava, interior de São Paulo, e seus pais
eram imigrantes italianos da região de Veneto. O pai, Antonio Pereira dos Santos, era alfaiate de profissão e
havia nascido na cidade de Vargem Grande do Sul, São Paulo. Adquiriu, anos depois, algumas ações da
Companhia de Petróleo fundada por Monteiro Lobato e da Companhia Americana de Filmes, a qual chegou a
construir um estúdio ao lado do Aeroporto de Congonhas.
exibidos, foi produzida pela Cinédia, no Rio de Janeiro, companhia cinematográfica
inaugurada em 1930 por Adhemar Gonzaga. Lábios sem beijo, de Humberto Mauro, é o
primeiro filme produzido pela Cinédia no ano de sua fundação. Três anos depois, em 1933, o
mesmo Humberto Mauro faria Ganga Bruta, também na Cinédia, que se transformaria num
clássico do cinema brasileiro. Era muito difícil para os filmes brasileiros conseguir atrair
público suficiente para fazer frente ao mercado dominado e saturado pela produção americana
que, pretendendo exercer ao máximo sua hegemonia e funcionar mercadologicamente, havia
adotado a estratégia de impor seus filmes no mundo inteiro:
Em fevereiro de 1911 chegava ao Brasil uma embaixada de capitalistas
vinda dos Estados Unidos com a missão de sondar os nossos mercados e
verificar suas possibilidades quanto ao emprego de capital. A economia dos
Estados Unidos, em expansão, voltava os olhos ávidos para os países
industrialmente pouco desenvolvidos na América Latina – e o tradicional
liberalismo brasileiro receberia os americanos de braços abertos
514
.
Essa ação expansionista refletiu diretamente no desenvolvimento do nosso cinema -
recém saído do que se convencionou chamar “bela época do cinema brasileiro
515
” - que viu
suas telas serem majoritariamente ocupadas pelo produto estrangeiro, contribuindo para a
marginalização do nosso cinema, que não conseguiu sustentar seu desenvolvimento. Por volta
de 1920, e nos anos que se seguiram, há indícios de progresso. Ocorrem sinais de vitalidade
na produção do Rio de Janeiro e São Paulo, eclodindo os Ciclos Regionais, ou “surtos
regionais” como prefere Alex Viany
516
, nos mais variados pontos do país. Paulo Emílio Sales
Gomes relata esse progresso e o efeito de seu surgimento tardio:
Paulatinamente, esses diversos grupos estabelecem contato através de
jornalistas do Rio e de São Paulo que se interessam de forma militante por
nossos filmes, delineando-se assim, pela primeira vez, uma consciência
cinematográfica nacional. Um ou outro diretor consegue trabalhar com certa
continuidade. Há uma progressão orgânica de filme para filme e surgem
obras que atestam um incontestável domínio da linguagem e expressão
estilística. Em torno de 1930, nasceram os clássicos do cinema mudo
brasileiro e houve uma incursão válida na vanguarda mais ou menos
hermética. Era tarde, porém. Quando o nosso cinema mudo alcança essa
relativa plenitude, o filme falado já está vitorioso em toda parte
517
.
514
Carlos Roberto de SOUZA. Nossa Aventura na Tela: a trajetória fascinante do cinema brasileiro da primeira
filmagem à Central do Brasil. São Paulo: Cultura editores associados, 1988, p. 64.
515
Período de euforia da produção cinematográfica que ocorreu entre 1908 a 1911, basicamente entre as cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo.
516
Alex VIANY. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra: Embrafilme, 1987.
517
Paulo Emílio Sales GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980,
p.31.
A chegada do cinema falado abre um novo processo, “um longo e penoso reinício”.
Entre os anos de 1930 e 1940 a produção se concentra no Rio de Janeiro, onde são criadas as
condições mais favoráveis ao seu de desenvolvimento.
Em 1937, pouco antes da Segunda Guerra Mundial passar a ser o foco dos interesses
nacionais e da atenção de todos, a Cinédia ainda conseguiu produzir Samba da vida, um filme
de Lulu de Barros que alcançou relativo sucesso de bilheteria, diferentemente da maioria que,
no máximo, conseguia apenas cobrir as despesas. Entretanto, com o início da Guerra, a
Cinédia não consegue mais produzir. Praticamente todo o material, principalmente os rolos de
filme virgem e equipamentos usados por ela, que vinham de fora, só podem agora ser
importados sob severas condições e preços elevadíssimos. Apesar disso, uma outra empresa
cinematográfica é aberta no Rio em 1941. Trata-se da Atlântida, que inaugura sua produção
em 1943 com o longa-metragem O moleque Tião, com roteiro de Alinor Azevedo e dirigido
por José Carlos Burle, baseado na vida de Sebastião Prata, o ator Grande Otelo.
No jornal carioca A Manhã, o poeta Vinícius de Moraes inicia em 1942 um debate
sobre a importância de se desenvolver um cinema nacional, ao mesmo tempo em que a revista
A Scena Muda defende a criação imediata de um cinema genuinamente brasileiro.
Tem início com a Atlântida, em 1943, as chanchadas, um tipo de filme que iria
enfatizar como ponto central de construção dos roteiros, a caricatura social, o humor fácil, a
improvisação.
Nelson Pereira dos Santos esclarece sobre a sua relação inicial com o cinema
brasileiro:
Eu não tinha nenhuma ligação com o cinema brasileiro, nenhuma ligação
histórica. Eu tinha a ver com o cinema como linguagem, numa relação
cineclube, cinemateca, e tinha a ver, num outro plano, com a história do
Brasil. Mas a história do Brasil colocada em termos sociológicos,
antropológicos, políticos. Não era a história do Brasil de Cartier (sic). Eu
tinha duas escolaridades, a do cinema como linguagem e a da nossa
realidade social, numa perspectiva histórica
518
.
É nesse contexto histórico/cultural que se desenvolve e passa da adolescência à vida
adulta, Nelson Pereira dos Santos, agora um cinéfilo contumaz, que assiste ao máximo de
filmes a que tem acesso, com uma paixão que nem mesmo a literatura, que adora, consegue
superar.
518
Depoimento a Gisele GUBERNIKOFF. São Paulo, em 16 de maio de 1979 e 5 de fevereiro de 1980 p. 333.
Conhece Laurita Sant’Ana, então com 15 anos de idade e que viria, 5 anos depois, a
ser sua primeira companheira e mãe de três de seus filhos: Nelson, Ney e Márcia. O quarto
filho, Diogo, nasceria alguns anos depois, em 1972, de uma outra relação. Morando em ruas
contíguas, estudando no mesmo Colégio e pegando o mesmo bonde, era quase inevitável a
aproximação entre Nelson e Laurita, que se tornava mais estreita à medida que descobriam
afinidades e partilhavam interesses. Os olhares trocados no bonde logo se transformaram em
namoro e depois em paixão. Laurita era a companheira inseparável de todos os momentos; os
bons e os ruins. Gostavam de dançar, ouvir música, liam os mesmos livros, conversavam
sobre tudo, inclusive, é claro, sobre política. Diferente do pai de Nelson, que era maçom e
anticomunista, a mãe de Laurita, Ana Andrade, era uma ativa militante comunista.
O início da militância de Nelson foi decerto influenciado pela proximidade de
Laurita e sua mãe, mas principalmente, pela excelente formação intelectual e cultural que o
Colégio do Estado propiciava - e onde o PC era bastante atuante - e pela popularidade que a
esquerda alcançou no mundo por ter sido, no final da Guerra, peça chave na vitória dos
soviéticos sobre os nazistas e através da heróica resistência - dos maquis na França e dos
partigiani na Itália - ao fascismo. Em 1946, Nelson é surpreendido pela polícia pixando
muros com propaganda em favor da Constituinte, e é preso. Mais tarde, já na Faculdade de
Direito, continua a participar de todas as atividades políticas e manifestações que se espalham
por todo o país, defendendo idéias e princípios, como a palavra de ordem “O petróleo é
nosso” dos comunistas, e a Campanha pela Paz, esta de caráter internacional, e que se
levantava contra o recrudescimento da guerra fria e o perigo latente de uma guerra sem
precedentes, desta vez com armas atômicas. A Faculdade de Direito, situada no Largo de São
Francisco, exercia entre os jovens estudantes uma especial atração por tradicionalmente
abrigar um espírito libertário que os seduzia. Para Nelson, o significado de fazer parte daquele
ambiente ia além desse fato, como ele mesmo explica:
O projeto de ingressar na Faculdade continha também uma motivação
pessoal e, por isso, predominante. Desde menino freqüentava a Faculdade
porque o meu padrinho de batismo, José Epaminondas de Oliveira, era o
porteiro das Arcadas e seu filho, Joaquim de Oliveira, bedel da Casa. Sempre
que me dirigia ao Centro da cidade, passava pelo largo de São Francisco
para pedir a benção ao padrinho. De sua sala, bem à entrada do prédio, podia
enquadrar, no alto de uma coluna, as placas que homenageiam até hoje três
ex-alunos: Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Desde
então, sentia-me motivado para seguir um caminho na vida que, mesmo sem
saber ainda qual seria, tinha a certeza de que começaria ali, sob as
Arcadas
519
.
Iniciando o jornalismo, que exerceu em paralelo à atividade cinematográfica e fonte
de receita em momentos em que fazer cinema era uma impossibilidade, edita uma seção
literária no jornalzinho comunista da Faculdade e redige críticas de cinema para o Hoje, que
era o Diário do Partido:
Tinha uma coluna de crítica, editada duas ou três vezes por semana, que era
mais um review dos filmes que qualquer coisa [...] e eu era tão parcial que
não vinguei no cargo. Evidentemente, pelo espírito da época, filme
americano era algo para se esculhambar. Aí, aparece o anúncio de um filme
brasileiro. Era “Estrela da Manhã”, com fotografia de Ruy Santos, roteiro de
Jorge Amado e música de Dorival Caymmi. Lembro que escrevi: “esse filme
vai inaugurar uma nova etapa no cinema brasileiro...” O curioso é que
escrevi sem ter visto o filme. O que choveu de carta na redação, depois do
meu texto não foi brincadeira. [...] Na realidade, filmes como aquele
alimentaram de esperança a cabeça da minha geração. Já estava de cabeça
feita pelo neo-realismo, pelos clubes de cinema, o Cineclube de São Paulo, a
experiência da Vera Cruz. Depois escrevi sobre cinema na revista
Fundamento, que era do Partido. Dessa época tenho até vergonha, uma vez
que eu ataquei o primeiro filme da Vera Cruz que vi. Mas nessa época as
coisas eram mais inflamadas. Havia mais ligação com a crítica. Ela era
levada mais a sério. Mais ainda a opinião dos críticos italianos e franceses. A
Itália possuía algumas das melhores revistas de cinema do mundo, entre as
quais a Cinema Nuovo, que fazia a cabeça da gente. Do lado americano, a
minha formação era o Alex Vianny e a leitura do John Howard Lawson. O
livro dele sobre roteiro era muito bom! E, é claro, todo mundo tinha debaixo
do sovaco o Eisenstein. Tínhamos que ler em espanhol, pois não havia
tradução para o português. Havia ainda um outro livro pertinente, também de
um russo, chamado Lev Kuleshov. Era o “Tratado de la Realización
Cinematografica”, uma leitura obrigatória
520
.
Casa-se com Laurita em 1949. Para pagar as contas, começa a trabalhar em jornais e
faz seu primeiro contato com o cinema ao realizar o documentário, Juventude, um 16 mm,
encomendado pelo Partido Comunista. Em 1950 nasce seu primeiro filho, Nelsinho.
A década de 1940 foi especialmente importante na formação e solidificação do
arcabouço intelectual de Nelson. É ele mesmo quem descreve de forma sintética os
acontecimentos desse período:
Foram os dez anos de minha formação, do ginásio à Faculdade de Direito,
uma viagem a Paris, o casamento, serviço militar, cineclubes, Juventude
Comunista, primeiro emprego em jornal, primeiro filme e primeiro filho, que
519
Discurso proferido na ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, 2006.
520
Rodrigo FONSECA. Meu Compadre Cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos.
Cadernos Cine Academia nº 6: Brasília, 2005 p. 23/24.
nasceu em 1950. Estava impregnado da certeza de que o Brasil encontraria o
bom caminho para ter uma sociedade mais rica e mais justa, porque assistia
ao fim da ditadura – ninguém imaginava que poderia acontecer outra no
futuro. E, no mundo, acabavam para sempre – dizia-se – o fascismo e o
nazismo.
[...] No colégio, nossa célula da Juventude Comunista, que, em homenagem
a Frei Caneca, recebia seu nome, promovia reuniões mais culturais que
políticas, principalmente de celebração cultural da história do Brasil – daí o
Frei Caneca ser nosso patrono. Para dizer a verdade, ingressei na Juventude
Comunista porque, naquele tempo, ser jovem e não ser comunista é o mesmo
que, hoje, ser jovem e não fumar maconha: corre-se o risco de ser
discriminado. Os pais não gostavam, é claro. Tinham medo, pois já sabiam o
que tinha acontecido com os comunistas em 1935
521
.
Em 1946, um grupo de cinéfilos e cineastas – entre os quais, Almeida Salles,
Lourival Gomes, Benedito Duarte e Paulo Emílio Salles Gomes – funda um Clube de Cinema
em São Paulo, o Cineclube São Paulo, para discutir, fazer críticas e desenvolver o pensamento
estético em torno da cinematografia no Brasil. Um ano depois, em 1947, Assis Chateaubriand
inaugura o Museu de Arte de São Paulo (MASP). O industrial Francisco Matarazzo Sobrinho
em 1949 funda o Museu de Arte Moderna (MAM) e convida a diretoria do Cineclube São
Paulo para assumir o departamento de cinema do Museu. Matarazzo faria parte também do
grupo de criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e participaria ativamente na criação
da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, ainda em 1949.
Em 1951, Nelson dá início à sua carreira como profissional do cinema, quando
Rodolfo Nanni o convida para ser assistente de direção em O Saci, filme que teve locação em
Ribeirão Bonito, interior de São Paulo. Após finalizar o filme de Nanni, Nelson está com as
ferramentas necessárias para entrar de vez no mundo do cinema.
Vai morar – no início sem a família – no Rio de Janeiro, para fazer Agulha no
palheiro, como assistente de direção de Alex Viany, por indicação de Rui Santos, o grande
cineasta do Partido Comunista, que de início o havia convidado a trabalhar em Angra dos
Reis, num filme chamado Aglaia, que não chegou a ser finalizado.
Nelson estava morando em Santa Tereza, no apartamento de seu amigo Otávio
Araújo, onde Laurita, grávida pela segunda vez, vinha regularmente de São Paulo passar
alguns dias com ele.
Em 1953 finaliza roteiro de Rio, 40 graus. Laurita foi para São Paulo se preparar
para o nascimento de Ney, o segundo filho de Nelson, enquanto este reunia a equipe que iria
fazer Rio, 40 graus. Em 1956, Nelson se afasta do Partido Comunista - durante todo o período
521
Entrevista para Estudos Avançados 21 (59), 2007.
do regime militar será, entretanto, sempre tratado como membro ativo - após uma viagem que
faz à Tchecoslováquia, para apresentar Rio 40 graus, no festival internacional de Karlovy
Vary, onde o filme recebe o Prêmio ao Talento Jovem. Em seguida o jornal O Estado de São
Paulo lhe concede o Prêmio Saci. Conquista também o Prêmio Governador do Estado de São
Paulo de melhor roteiro e ainda os prêmios de melhor roteiro e direção no Festival do Distrito
Federal.
Em 1958, Rio, Zona Norte estreou sem a mesma repercussão do filme anterior mas
mesmo assim recebeu o prêmio de melhor direção do Festival de Cinema do Distrito Federal.
Em 1964, Vidas Secas é exibido em Cannes e recebe o Prix des Cinémas d’Art, o Prix Du
Meilleur Film pour la Jeunesse, além do Prix de l’Office Catholique du Cinéma. Vidas Secas
está posicionado como um dos cinco melhores filmes da história do cinema brasileiro. O
Cinema Novo vivia então seu apogeu, e Nelson mantém uma relação particular com todas as
vertentes do movimento:
Porque ele precede, influencia, participa como um dos principais
formuladores, ou catalisadores, e ao mesmo tempo passa ao largo do Cinema
Novo. Ele é e não é do movimento. Porque, efetivamente, NPS é sobretudo
ele mesmo, corre em faixa própria, desenvolvendo coerentemente uma
trajetória iniciada anos antes, com uma dinâmica interna muito particular
522
.
Leon Hirszman comenta a atuação de Nelson junto ao grupo:
Ele tinha a tranqüilidade e a confiança de resolver [os problemas] na hora.
Isso tudo foi um valor que frutificou na época da resistência. Pra mim, o
Nelson significou isso: um mestre, grande mestre do cinema
523
.
Referindo-se a essa característica, Cacá Diegues reconhece que:
O Nelson tem uma extraordinária habilidade política de somar os pedaços,
juntar pessoas diferentes. Mas você nunca fica sabendo direito o que ele
pensa. Naquela época, ele estava sempre falando em nome de todos nós, para
nós mesmos. Como se estivesse traduzindo nosso caótico pensamento, às
vezes divergente, contraditório. Tinha tamm essa coisa prática dele, de
fazer tudo em função de um determinado objetivo, o sentimento de que era
preciso fundar um cinema moderno no Brasil
524
.
Nelson é assim: ao mesmo tempo em que não abre mão daquilo que acredita ser o
caminho certo das coisas, ele consegue de forma tranqüila, mas impositiva, impedir que
522
Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro. Op. Cit., p.160.
523
Id. Ibid., p. 185.
524
Ibid.
fatores externos à sua vontade interfiram no seu processo criativo. E é novamente Cacá
Diegues quem confirma esse lado “domesticado” da tenacidade e vontade férrea presentes na
personalidade de Nelson.
Uma coisa é a extrema paciência dele. Mas, embora muitos o vejam como
uma pessoa cândida, acho que o Nelson é também de uma violência terrível.
Ele controla a violência com a paciência. Isso aliás, está nos filmes dele. São
de uma grande violência, subjacente a toda poesia, ao humanismo próprio de
sua formação. Sempre essa contradição. [...] Eu quis muito, mas nunca
consegui ter uma
intimidade
maior com o Nelson. Não sei se algum de nós
conseguiu, talvez o Barreto. Mas, na minha geração de cinema, aconteceu
uma coisa muito bonita. A gente tinha cineastas preferidos no exterior, o
Glauber adorava o Einsenstein, o Paulo César Saraceni o Rossellini, o
Walter Lima Jr. o John Ford. Mas ídolo, realmente, era o Nelson
525
.
Em 1962, uma nova celebração: o nascimento de Márcia, primeira e única filha
mulher, caçula dos seus três filhos com Laurita. Sua relação com os filhos foi definida pela
intensidade afetiva. Ney, seu filho do meio, em depoimento que faz a Salem declara:
Os filhos são que nem filmes para ele. Tudo que ele faz é que tem
importância. E ele sempre foi muito carinhoso prá gente [...] era presente em
qualidade, não em quantidade. A presença física era muito difícil, mas
tínhamos passagens inesquecíveis com ele. Em qualidade, era
impressionante. Por exemplo: Quando a gente era criança, lá em Niterói, eu
e meu irmão juntávamos os amigos, comprávamos latas de salsichas, e íamos
com meu pai de bicicleta pra praia de Adão e Eva [...] Ele ia na frente
comandando a tropa. A gente subia, descia a ladeira, chegávamos lá
fritávamos as salsichas, ele foi escoteiro, então ia ensinando as coisas. Prá
nós era uma aventura mesmo, maravilhosa, excitante [...] estávamos
descobrindo o mundo! No entanto, férias ele nunca tirou. Acho que não. O
cinema é realmente tudo pra ele, não tem outra coisa. [...] lembro de uma
vez[...] que ele pegou nós três para brincar com o visor que havia lá em casa
[...] Ele começou a mostrar prá gente as diferenças da lente do visor [...] A
Márcia subia e descia a escada e, a cada momento, a gente deixava a luz de
cima acesa, ou a de baixo, íamos alternando a iluminação da descida dela,
olhando sempre com uma mesma lente. Então ele falou: Isso que é cinema.
Estão vendo, conforme a iluminação você dá o clima
526
.
Em meio à turbulência gerada pela mudança de rota na vida brasileira advinda com o
regime militar e com o seu recrudescimento, Nelson viaja para os Estados Unidos onde fica
dois meses, a convite do Departamento de Estado Americano, visitando estúdios
cinematográficos, escolas de comunicação, emissoras de televisão e diversas universidades.
Aproveita sua estadia para preparar também uma grande mostra do cinema brasileiro a ser
525
Ibid., p.187.
526
Ibid., p.158-159.
realizada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque no ano seguinte. Em dezembro de 1968
o regime ditatorial instaura o AI-5, suspendendo os direitos individuais. Nelson estréia Fome
de Amor com Leila Diniz no papel principal e recebe o prêmio de melhor diretor no Festival
de Brasília. Dirige mais um curta-metragem, antes de se auto-exilar em Parati junto com sua
equipe, onde os filmes: Azyllo Muito Louco, Como era gostoso o meu francês – o filme mais
interessante dessa década –, e Quem é Beta?, filme que viria a ser o último dos três rodados
em Parati em 1972, no mesmo ano em que nasce Diogo, o filho temporão de Nelson.
Como era gostoso o meu francês é premiado no Festival de Cannes, e na volta ao
Brasil em 1973, Nelson começa a trabalhar em seu novo projeto, O Amuleto de Ogum, que
seria laureado em 1978 com o Kikito de melhor filme no Festival de Gramado, concorrendo
também à Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Em julho de 1974, Ney Braga, que era Ministro da Educação e Cultura, constitui
uma comissão para reformular os órgãos do MEC ligados às atividades cinematográficas e
convida
527
Nelson Pereira dos Santos para representar os interesses da cinematografia
nacional. Surge assim o Conselho Nacional de Cinema (Concine). Cacá Diegues esclarece a
importância da participação de Nelson nessa comissão, naquele momento, para o
fortalecimento do cinema brasileiro.
Em 1974, você tinha mercado que começava a esquentar, mas era totalmente
dominado pelas companhias estrangeiras. Então, só o Estado poderia ter
força econômica e política para enfrentar as companhias estrangeiras e tomar
um pedaço desse mercado. Porque nenhum de nós tinha essa força. O Estado
propôs a abertura democrática, nós acreditamos e instalamos esse projeto.
Deu certo, certíssimo. A Embrafilme se transformou na principal
distribuidora da América Latina
528
.
O Secretário Reis Velloso foi, segundo Nelson, um personagem importante na defesa
do cinema nacional, lutando por financiamentos e garantindo completa liberdade de criação
sem, contudo, subordinar essa criatividade a qualquer condição prévia.
A Embrafilme nasceu e se desenvolveu em plena ditadura. Ela tinha uma
enorme capacidade de produzir, pois agregava os brasileiros que faziam
cinema. Mas entrou em um processo predatório e acabou destruída. O
projeto da Embrafilme foi um projeto bem claro: foi um apoio financeiro
bolado à imagem e semelhança [daquele] da Petrobrás. A Embrafilme era
527
Os demais membros convidados foram: Manuel Diegues Jr. (MEC); Antonio Augusto dos Reis Velloso
(Secretaria de Planejamento da Presidência da República); Octávio de Faria (Conselho Federal de Cultura);
Cláudio Antonio Fontes Diegues (Departamento de Assuntos Culturais) e Leandro Gomes Tocantins (da
Embrafilme). Fonte: Salem, H., O Sonho Possível do Cinema Brasileiro, p. 304.
528
Ibid., p. 305.
uma empresa competitiva dentro do mercado. A única coisa que ela não
podia fazer era produzir sozinha. Ela tinha que co-produzir, distribuir, exibir.
Toda a lei que garantia suporte à Embrafilme nos tempos do presidente
Geisel lhe atribuía poder legal de distribuir e também de importar certos
filmes. Eu diria que aquela era uma empresa altamente competitiva
529
.
Em 1975 é criada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Cineastas (Abraci).
Nelson Pereira dos Santos foi eleito o seu primeiro presidente, e Leon Hirszman, que ocupou
o cargo de secretário-geral, atesta a relevância de Nelson nesse processo:
Nelson Pereira dos Santos teve uma participação muito importante naquele
momento na luta pela liberdade de expressão, para uma mudança mesmo no
processo cultural e político do país, sempre numa visão de obter uma nova
correlação de forças. Nós estávamos dispersos mesmo. E o Nelson não foi só
o primeiro presidente da Abraci como um participante ativíssimo em todo o
processo. Politicamente, muito sábio, muito articulado. Ele sempre
conseguiu transacionar bem com a moeda da dificuldade. Essa coisa de
renascer sempre, desemaranhar-se de qualquer tipo de aprisionamento, seja
político ou afetivo. Acho que ele é muito cônscio de sua força
530
.
Entre 1975 e 1978, Nelson esteve envolvido com atividades de produtor: primeiro
produzindo um filme de Waldyr Onofre, As aventuras amorosas de um padeiro; em seguida,
em 77, A dama do lotação de Neville de Almeida. Em 78 fez um documentário para a TV
Educativa, para terminar a década com a estréia do filme Tenda dos Milagres em 1979, com o
qual receberia os Candangos de melhor filme e melhor diretor no Festival de Brasília. Os anos
seguintes, até meados da década de 1990, são praticamente dedicados a filmes adaptados da
literatura. Mesmo os curtas e médias-metragens que faz, são quase todos baseados em contos
e romances de escritores brasileiros.
Nos últimos anos têm ocorrido muitas homenagens, não apenas à obra - com
premiações aos filmes, e que tem acontecido ao longo da carreira de Nelson desde Rio, 40
graus, - mas à pessoa do próprio Nelson Pereira dos Santos: seu curta-metragem Meu
Compadre Zé Keti, de 2001, é eleito como o melhor do ano; antes disso, em 1985, Memórias
do Cárcere recebe o prêmio de melhor filme no Festival Novo de Cinema Latino Americano
de Havana; é homenageado em 2003, no Festival Internacional de Mar Del Plata; em 2004,
recebe o Troféu Barroco na Mostra de Tiradentes; depois, os títulos de Cidadão do Estado do
Rio e de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se soma ao
de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris X e aos títulos de Notório Saber
529
Rodrigo FONSECA. Meu compadre cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos. Op.
Cit., p.83.
530
Ibid., p. 307.
concedido pela Universidade de Brasília (UNB), Alta Qualificação Científica pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), além de Comendador da Ordem de Rio Branco da
República Federativa do Brasil e Comendador da Ordem de Ciências, Letras e Artes da
República de Portugal; é o primeiro cineasta imortalizado como Acadêmico ao ser eleito
membro da Academia Brasileira de Letras em 2006.
Estou muito feliz de ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras. [...]
Essa iniciativa da ABL de abrir um espaço para o cinema brasileiro é muito
importante. O cinema é uma forma de arte tão importante quanto a
literatura
531
.
Nelson sente-se à vontade tanto com o fardão de imortal quanto com a militância,
que o leva a comparecer a uma série de eventos, palestras e conferências promovidas pela
Academia Brasileira de Letras.
Também é membro de honra do Comitê de Cineastas da América Latina e membro
fundador da Fundação do Novo Cinema Latino-americano, da qual participa atualmente como
integrante do seu Conselho Superior.
Em 2007, recebe na Universidade de Guadalajara o prêmio Mayahuel de Prata no 22º
Festival Internacional de Guadalajara, no México.
É uma satisfação ser homenageado, é algo muito especial para mim, porque
tenho uma relação especial com o cinema mexicano que, com seus autores
jovens, representa muito sua cultura e, por isso, tem uma posição no
mercado
532
.
É homenageado também no Festival de Cinema de Tribeca, criado por Robert De
Niro e Jane Rosenthal, em Nova Iorque, para ajudar na recuperação da economia do bairro
nova-iorquino após os ataques de 11 de setembro de 2001.
É condecorado como Chevalier da Legião de Honra da França e recebe o título de
Comendador da Ordre des Arts et des Lettres do Governo Francês.
Em Cuba, recebe das mãos de Fidel Castro a mais alta condecoração de Estado para
a Cultura: a Ordem Félix Varela. Do Brasil, recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul.
Em 2008, Nelson Pereira dos Santos fará oitenta anos de idade, uma boa
oportunidade para comemorar sua importante contribuição, durante quase sessenta anos, para
a produção cinematográfica mundial. A Federação Internacional de Arquivos de Filmes
531
Depoimento a Lucas Salgado. Cinemacafri.com. em 18/10/2007.
532
http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/03/26/295084409.asp
(FIAF)
533
, responsável pela mais alta distinção conferida a um cineasta, neste ano a outorgará
a Nelson Pereira dos Santos, escolhendo-o como o diretor da cinematografia mais expressiva
do mundo em 2008, por ocasião do Festival de San Sebastián.
Todas as homenagens que se fazem a Nelson, mestre na arte de filmar são, portanto,
um pequeno tributo que se paga a quem dedicou uma vida inteira a construir um cinema
sempre socialmente crítico, formalmente criativo e esteticamente belo.
533
Fundada em Paris, em 1938, a FIAF conta, atualmente, com 120 instituições ligadas a ela, representando um
total de 65 países. No Brasil, apenas a Cinemateca Brasileira e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
(MAM Rio) são ligados à instituição.
X da questão
X da questãoX da questão
X da questão
O filme coloca “um grandemero de questões” no “constante vai e vem
entre a vida de Arcanjo, vivida diante de nossos olhos, e a reconstituão de
Arcanjo feita pelo poeta. [...] a apropriação da imagem de Arcanjo pela
televisão, pela publicidade, pela cultura oficial no seu esvaziamento até
transformá-lo numa peça de promoção da sociedade de consumo”. Sobre a
estrutura narrativa, afirma que “o filme é armado assim como se a platéia
estivesse na sala de montagem” e é também “um filme sobre como se faz
cinema no Brasil [...] E o espectador não estaerrado se sair do cinema com a
impressão de que nossos filmes terminam e dão certo por uma espécie de
Milagre.
José Carlos Avellar
534
Começar pela colocação das questões em torno de Tenda dos Milagres, um dos
pontos altos da argumentação desta tese, em que se procurou responder sobre o percurso de
Nelson Pereira dos Santos através da observação da sedimentação de sua obra, capaz de
atravessar o tempo, evoluir, operar vários trânsitos e não se desviar do cerne da questão
central à qual se propõe: a discussão, valorização da cultura e do cinema brasileiro; sua vida
confundindo-se com a história da cultura do País e do seu cinema – tudo isso é uma
provocação que deve permitir, conforme o caminho aqui percorrido, esboçar em traços gerais
as linhas que buscam estabelecer a relação entre os filmes, os textos e a performance de
Nelson Pereira dos Santos na cena político-cultural de seu tempo. A idéia é demonstrar a sua
atuação e a posição estratégica que ocupa na constituição do moderno cinema brasileiro,
conformando a figura do artista-intelectual em diálogo com as questões nacionais no âmbito
da política e da cultura especialmente pela abordagem de sua relação com a Bahia e pelo
estudo dos três filmes que realizou no Estado: Mandacaru Vermelho, Tenda dos Milagres e
Jubiabá, tomados como síntese da sua incursão como autor cinematográfico.
534
Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 18/06/77, tendo como título Introdução a um filme sobre o
verdadeiro milagre brasileiro, in Giselle Gubernikoff, vol. II, p. 142.
Depois de mapear, traçar e indagar sobre os aspectos constitutivos da atuação de
Nelson Pereira dos Santos no cenário cinematográfico brasileiro, procedeu-se a indagação no
que diz respeito aos princípios recorrentes que perpassaram o seu pensamento e obra,
expondo agora algumas considerações acerca da tessitura desta argumentação.
As interpretações realizadas nesta tese, os estudos aqui citados, as declarações do
autor e as demais declarações apresentadas põem em destaque, ainda que de modo não-linear,
fragmentado e não-homogêneo, o todo que compõe algumas das características marcantes que
cruzam a vida e a alma de Nelson Pereira dos Santos e dos seus personagens, situados no
quadro de formação do cinema brasileiro. Para consubstanciar algumas considerações finais
acerca deste itinerário, é necessário um rápido percurso por estas marcas, insistentemente
presentes nas construções de Nelson Pereira dos Santos e sintetizados nos três filmes
mencionados.
Até Nelson Pereira dos Santos, nas palavras de Glauber Rocha, “no país
subdesenvolvido o cinema existente era ilusão”
535
. A idéia do cineasta e ideólogo do cinema
brasileiro referia-se à imagem da vida construída através do cinema americano, em análise
feita do cinema como possibilidade técnica moderna capaz de influenciar até mesmo quem
nunca tenha ido ao cinema em toda a vida, pois os reflexos e a sedimentação de uma cultura
cinematográfica são reconhecidos como inerentes à vida contemporânea, atingindo as culturas
que não resistiram aos estímulos que o cinema provoca à imaginação. Dessa forma, o nosso
público, por motivos tanto econômicos quanto culturais, formou uma imagem de vida e
passou a se identificar com esta imagem, e reivindicava, em primeira instância, um filme
brasileiro feito aos moldes da mimese, isto é, do modelo de construção e linguagem artística
definidos por padrões que não lhe eram próprios. Mesmo os filmes que tomavam o País como
tema, o faziam através de abordagens técnicas e artísticas a partir da matriz americana.
Qualquer outro modelo de filme que apresente a trama a partir de outros princípios, expondo
outra urdidura do conflito cinematográfico, encontra reação por parte do espectador, que,
desinformado do seu próprio País e de suas formas de representação, não aceita a imagem que
assiste.
Assim, como propósito deste trabalho, procurou-se demonstrar que Nelson Pereira
dos Santos riscou os primeiros traços que se insinuam para a constituição do drama nacional
através de uma forma que contempla a inversão da perspectiva até então seguida, ou seja, de
535
Cf. Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo e Naif, 2004, p. 285.
um cinema que seja constituído pelas motivações próprias suscitadas pelas suas experiências
sociais, culturais, técnicas e econômicas.
Após a realização de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, o croquis que realiza em
Mandacaru Vermelho do que seria posteriormente sua obra de contundência e alcance
reconhecidos, em que disseca e faz reverberar os aspectos da barbárie sertaneja, Vidas Secas,
é exercício de oportunidade, desejo de realização e liberdade. Em Mandacaru Vermelho, estão
presentes elementos que indicam a constituição de alguns pressupostos delineados nos dois
trabalhos iniciais e que irão se manter como constantes na obra de Nelson Pereira de Santos, a
par do improviso, que também passa a ser incorporado como um dos seus elementos de
domínio. O interesse vivo pela pesquisa, pelo fato jornalístico, pela literatura, aliado aos
elementos de fundamentação, constituem as motivações que foram expostas como alicerces
da ideação do filme. A ambientação do filme, o deslocamento para o sertão, era o movimento
indicado, naquele momento, para o homem jovem e inquieto que já havia avistado o mar da
baía de Guanabara do alto dos barracos dos morros da cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro pela impossibilidade de destacar a favela na paisagem horizontal de São Paulo.
Sensível à movimentação da renascença cultural baiana, Nelson Pereira dos Santos aporta na
Cidade da Bahia e mais um traço comum é dado que resulta na sua maneira de conduzir a
produção e se reflete na sua criação. Nelson procura seus pares, forma equipe, dialoga com o
movimento cultural, particularmente com o núcleo que se forma em torno do emergente Ciclo
Baiano de Cinema. Está dado o passo para o rito de passagem que o Cinema Novo irá
promover no cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos havia deflagrado o desafio que o
cineasta brasileiro irá responder de como conquistar o público com formas narrativas próprias
e o seu encontro com os jovens baianos, que tinham em comum a mesma preocupação,
promove a sinergia necessária para a eclosão do movimento.
A colaboração de Nelson Pereira dos Santos ao movimento é o de mostrar os
caminhos e a pedagogia de um cinema novo que fez a opção de enfrentar a verdade brasileira,
outro termo muito caro às convicções de Nelson, ao qual ele conjuga, permanentemente, lado
a lado à outra expressão que lhe é recorrente: liberdade, que num exercício de significação e
edição de discurso resulta em um terceiro traço, aqui destacado, correspondendo a sua
declaração de princípios fundadores da invenção de uma nova proposta de linguagem
cinematográfica. E essa linguagem vem de um acordo que se pretende com o público,
postulando a revisão das questões ambientais da cultura brasileira. Esse diálogo precisa estar
bem posicionado, pois vai exigir um duplo esforço. Do cineasta para se comunicar com o
público com uma linguagem que lhe é nova e do público de assimilar essa linguagem que
apesar de não desprezar os usos e empregos do cinema, mas o quer como elemento de
reflexão crítica.
Na busca empreendida de responder ao axioma “Quem somos nós e qual é o nosso
cinema”, Nelson Pereira dos Santos recusou o simplismo do caminho que forçosamente
poderia conduzi-lo ao populismo fácil e insistiu na iniciativa que cada vez mais o aproximava
a enxergar a complexidade do drama do povo. Assim, tomou o distanciamento necessário a
posturas dogmáticas e rasas, investindo no aprofundamento da questão. Com liberdade, reagiu
à mudança de rumo imposta ao cinema brasileiro pela situação política do país, experimentou
linguagens e obsessivamente insistiu no formato de revolver as fontes populares, interpretá-
las através dos seus filmes e devolvê-las ao povo com a sua significação. E essa
ressignificação implicava em uma averiguação de linguagem que fosse a mais adequada para
dar conta dos vários níveis em que se processam a comunicação da arte. Glauber Rocha, ao
falar do conteúdo informativo processado pelo Cinema Novo na articulação do seu
pensamento, quando o cineasta se propõe a falar com outro enredo, com outro tipo de
imagem, ritmo e poesia, entende que:
Eles se lançam na perigosa aventura revolucionária de aprender enquanto
faz, de colocar, pois, a teoria paralela à prática, de se comportar segundo
uma frase oportuna de Nelson Pereira dos Santos, citando não sei que poeta
português:
‘Não sei por onde vou, mas sei que não vou por ali!’
536
.
Seguindo essa orientação, sem saber para onde ia, mas com a certeza de onde não ir,
Nelson Pereira dos Santos, atento ao que se passa no Brasil e no mundo, ao ambiente que o
cerca, à sociedade e ao cinema, não se isola na sua arte e a condiciona à sua vivência através
do agenciamento dos vários circuitos em que é mobilizado a interferir. Assim, aciona a sua
sensibilidade para verificar as numerosas relações de interdependência e de subordinação de
uma realidade muitas vezes difícil de ser apreendida pelo intelecto. Essa realidade geralmente
apresenta diversos aspectos e o põe constantemente em cheque.
E esse corte vertical na sociedade é alimentado pela pesquisa anterior feita pelos
reiterados formuladores do pensamento brasileiro, aos quais Nelson Pereira dos Santos
recorre para reviver a inteligência do mito e promover uma dramaturgia da vida social em que
opera a sua transcendência, direcionando o seu olhar para o registro em que reescreve a
história social, cultural e política do Brasil, que não o do arquivo oficial, mas por um
536
Id. Ibid., p.133.
movimento avesso, que surge da margem, do que está fora do discurso hegemônico, que está
em processo, latente, e que rejeita as supostas verdades totalitárias.
Dessa forma, após a realização de O Amuleto de Ogum, em que Nelson Pereira dos
Santos reafirma a complexidade do múltiplo ser brasileiro – ativo e reflexivo personagem que
toma a cena do cinema de perspectiva popular formulado pelo cineasta –, chega-se, nesse
ponto, a um novo traço constitutivo e de clara definição no mosaico artístico do cineasta.
Tenda dos Milagres e Jubiabá dão reforço à fecundidade dos investimentos de tema, narrativa
e linguagem, calcados na experiência popular e em acordo com ela, que o cineasta passa a
empreender. O espectador a quem esses filmes se dirigem é convidado não só a ver, mas a
participar desses filmes, tornando-se livre para escolher, pois o discurso de Nelson é
democrático, apoiado na sua verdade; dirige-se às demais versões que os fatos possam conter
para promover o sincretismo, as transposições e as articulações que resultam em experiências
que tão fortemente lhe mobilizam e que reacendem o seu credo no cinema brasileiro, para o
qual se move com o mesmo empenho que descortina e reencena, por pura paixão, para melhor
compreender o homem da terra Brasil e dimensioná-lo no conjunto das nações. Para além do
nacional projeta o ser brasileiro com suas insuficiências e qualidades, elementos flutuantes de
um pensamento em evolução, conclamado para o exercício da criação cinematográfica, que se
inicia na estratégia de sua produção, se constitui na liberdade dialética e se afirma na sua
aceitação pelo público.
abancado à escrivaninha
em são paulo
na minha casa da rua
lopes chaves
de supetão senti um
friúme por dentro
fiquei trêmulo, muito
comovido
com o livro palerma
olhando pra mim
não vê que me lembrei que lá
no norte, meu deus!
muito longe de mim
na escuridão ativa da noite que caiu
um homem pálido magro de
cabelo escorrendo nos olhos,
depois de fazer uma pele com a
borracha do dia,
faz pouco se deitou, está
dormindo.
esse homem é brasileiro que
nem eu.
Mario de Andrade
537
537
Trecho do poema “O descobrimento”, encarte do CD Brasileirinho, de Maria Bethânia editado pela Biscoito
Fino, em 2003.
de Zoom
de Zoomde Zoom
de Zoom
Quem vai escrever um livro sobre Nelson Pereira dos Santos, organizar seus
roteiros segundo a montagem final dos filmes, montar a foto de cada plano
com diálogo, montar suas entrevistas, artigos e estabelecer a cronologia
crítica mundial em torno de sua obra?
Os textos dos filmes de Nelson devem ser estudados ou Vidas Secas com
fotos de Luiz Carlos Barreto montadas por Nelson não é uma linguagem
nova dada ao pensamento de Graciliano?
Cortemos por aqui.
Aparecerão muitos livros sobre o cinema novo mas eu contarei minha versão
sob o título de Da teatralização poética à Montagem Parabólyka ou
Itinerário Hystóryko da Metáfora Dialética à revisão crítica do Cinema
Novo – de Rio, 40 graus a Tenda dos Mylagres.
Glauber ROCHA
538
Acho que um artista, quando verdadeiramente talentoso, inserido no seu
tempo e raízes, ultrapassa as fronteiras de seus limitados instrumentos de
expressão. Torna-se, sim, patrimônio de toda a sociedade. Nelson faz
cinema- poderia compor, escrever ou pintar, não importa. Suas verdades e
sonhos pertencem a todos nós – e não somente aos amantes do cinema.
Então, é pensando em transmitir para qualquer um que ame a vida e a beleza
– isto é, a arte – que me empenho em contar a história desse contador de
histórias. Um brasileiro, lutador incansável, que escolheu o cinema para falar
do ser humano, do amor, do Brasil.
[...] Na realidade, para mim a história está só começando. Porque essa
história ora contada (desse contador de histórias) tinha mesmo de ser
contada. Eu sempre soube que tinha. Não para terminar, mas para iniciar.
Para que a gente possa melhor curtir as próximas histórias dele. E curtir mais
as que ele já contou. Principalmente (tomara), quem sabe valorizar um pouco
mais, só um pouquinho, esse nosso criador brasileiro, filho do povo e a ele
sempre fiel.
Helena SALEM
539
538
Cf. Glauber ROCHA. Op. Cit., p.296.
539
Cf. Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Op. Cit., p.10; p.357.
No fechamento deste ABC, o Z é destinado ao zoom, a lente mais próxima atinge os
textos que o iluminaram.
O livro de Glauber Rocha não teve tempo de ser escrito, mas nesta tese muitos dos
argumentos desenvolvidos em sua curta e intensa produção formativa do cinema, composta
por filmes, críticas e textos, sobre os mais variados temas da composição cinematográfica,
foram utilizados e deram sustentação ajudando o seu desenvolvimento, através do
discernimento e diferenciando o que era qualitativo em termos de apreciação e
aprofundamento analítico. Esta posição encontra apoio em publicação razoavelmente recente
em que o pesquisador francês Jacques Aumont
540
parte da interação com a expressão
conceitual do autor, isto é, não se trata mais de apenas analisar filmes para se encontrar o
pensamento cinematográfico, mas de dialogar com textos e falas dos autores. Descortinam-se
as visões dos autores cinematográficos, não apenas pelo viés analítico dos seus filmes, mas,
para além deles, em conceitos de sua extração.
Nesses termos, por analogia, pode-se entender que o mesmo procedimento foi
seguido no tratamento que se deu ao pensamento formativo de Nelson Pereira dos Santos,
reconhecido pela comunicação que estabeleceu por meio de entrevistas, uma possível herança
da sua condição de jornalista. O certo é que quando Nelson Pereira dos Santos deu forma
escrita ao seu pensamento cinematográfico, além dos roteiros publicados
541
, o fez por meio de
entrevistas nos diversos meios de comunicação, sendo que muitas delas foram editadas,
publicadas em revistas ou transformadas em livros.
A construção desta tese também foi guiada por um saber imprescindível em que
foram encontrados preciosos sinais de conhecimento sobre o objeto disponibilizado na
dedicada e intensa biografia feita por Helena Salem, em tarefa de “escavação”, motivada pela
dimensão do artista.
Outro conjunto de informações de primeira grandeza foram os trabalhos acadêmicos
desenvolvidos em programas de pós-graduação nas universidades brasileiras e estrangeiras
que consistiram em valiosos repositórios de informações que alimentaram este ABC, dando o
mote para esta peleja, que não se esgota, e tem a pretensão de despertar outras poéticas, que
como na poesia popular recorreu ao passado, em um resgate de renovação, se apropriou, como
elemento de mediação, dos seus intertextos para projetá-lo para o futuro.
540
Cf. Jacques AUMONT. Teoria dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2004.
541
Nelson Pereira SANTOS. Três vezes Rio – Rio, 40 graus; Rio, Zona Norte; O amuleto de Ogum. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999.
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Cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: EdUFBA, 1999.
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SILVA, Luciana Rodrigues. A Formação em Cinema em Instituições de Ensino Superior
Brasileiras. Dissertação apresentada à Universidade de São Paulo/ECA. São Paulo, 2004.
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Editora e Produções Culturais Ltda., 2006, 3 v.
SOUZA, Carlos Roberto de. Nossa Aventura na Tela: a trajetória fascinante do cinema
brasileiro da primeira filmagem à Central do Brasil. São Paulo: Cultura Editores Associados,
1988.
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brasileiro. Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes Visuais da EBA/UFBA.
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SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac &Naif, 2001.
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VALENTE, Eduardo. Por um cinema ocasionalmente impessoal Mandacaru Vermelho e
Cinema de Lágrimas. Revista Contracampo, n. 29. Disponível em:
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VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VERGER, Pierre. Orixás. São Paulo: Corrupio, 1981.
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XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
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1985.
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson
Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
FILMOGRAFIA DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS
LONGAS
Rio, 40 graus (1954-1955)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Nelson Pereira dos Santos, Mário Barros, Ciro Freire Cúri, Luiz Jardim, Louis
Henri Guitton e Pedro Kosinski
Assistente de direção: Jece Valadão
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Radamés Gnatalli
Elenco: Jece Valadão, Glauce Rocha, Roberto Bataglin, Kéti, Sady Cabral, Mauro
Mendonça, Renato Consorte.
Rio, Zona Norte (1957)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Nelson Pereira dos Santos e Ciro Freire Cúri
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Alexandre Gnatalli e Zé Kéti
Elenco: Grande Otelo, Jece Valadão, Maria Pétar, Malú, Paulo Goulart, Zé Kéti, Ângela
Maria.
Mandacaru vermelho (1960-61)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Nelson Pereira dos Santos e Danilo Trelles
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Nelo Melli
Música: Remo Usai
Elenco: Nelson Pereira dos Santos, Ivan de Souza, Sônia Pereira, Miguel Torres, Luiz Paulino
dos Santos
Boca de ouro (1962-63)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Jarbas Barbosa, Gilberto Perrone, Copacabana Filmes Ltda.
Fotografia: Amleto Daissé
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Remo Usai
Elenco: Jece Valadão, Odete Lara, Daniel Filho, Maria Lúcia Monteiro, Ivan Cândido, Wilson
Grey.
Vidas secas (1962-1963)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptado da obra de Graciliano Ramos
Produção: Herbert Richers, Danilo Trelles, Luiz Carlos Barreto
Fotografia: Luiz Carlos Barreto e José Rosa
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Remo Usai
Elenco: Átila Iório, Maria Ribeiro,
Orlando Macedo, Jofre Soares, Gilvan Lima, Genivaldo Lima, Baleia.
El justicero (1966-97)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Condor Filmes
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Nelo Melli
Música: Carlos Alberto Monteiro de Souza
Elenco: Arduíno Colasanti, Adriana Prieto, Márcia Rodrigues, Thelma Reston, José Wilker
Fome de amor ou Você nunca tomou banho de sol inteiramente nua (1967-68)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Ripper
Produção: Herbert Richers e Paulo Porto
Fotografia: Dib Lutfi
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Guilherme Magalhães Vazo
Elenco: Leila Diniz, Arduíno Colasanti, Irene Stefânia, Paulo Porto, Márcia Rodrigues
Azyllo muito louco (1969-71)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Adaptação livre de O alienista, de Machado de Assis.
Produção: Nelson Pereira dos Santos,
Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias
Fotografia: Dib Lutfi
Montagem: Rafael Justo Valverde
Música: Guilherme Magalhães Vazo
Elenco: Nildo Parente, Isabel Ribeiro, Arduíno Colasanti, Irene Stefânia, Nelson Dantas, Ana
Maria Magalhães, Leila Diniz.
Como era gostoso o meu francês (1970-72)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Barreto, K. M. Eckstein, César Thedim
Fotografia: Dib Lutfi
Montagem: Carlos Alberto Camuyrano
Música: José Rodrix
Diálogos em tupi: Humberto Mauro
Elenco: Ana Maria Magalhães, Arduíno Colasanti, Eduardo Imbassahy Filho,
Manfredo Colasanti, José Kleber.
Quem é Beta?
Pas de violence entre nous (1972-73)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Regina Filmes e Dhalia Film
Fotografia: Dib Lutfi
Montagem: André Delage
Música: Paulo, Cláudio, Maurício
Elenco: Fréderic de Pasquale, Sylvie Fennec,
Regina Rosemburgo, Isabel Ribeiro, Arduíno Colasanti, Luiz Carlos Lacerda, Ana Maria
Magalhães
O amuleto de Ogum (1973-1975)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Regina Filmes e Embrafilme
Fotografia: Hélio Silva, José Cavalcanti,
Nelson Pereira dos Santos
Montagem: Severino Dada e Paulo Pessoa
Música: Jards Macalé
Elenco: Jofre Soares, Anecy Rocha, Ney Sant’Anna, Maria Ribeiro, Jards Macalé, Olney São
Paulo
Tenda dos milagres (1975-77)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptado do livro Tenda dos milagres, de Jorge Amado
Adaptação e diálogos: Nelson Pereira dos Santos e Jorge Amado
Diretor de Produção: Albertino N. da Fonseca
Fotografia: Hélio Silva
Montagem: Raimundo Higino e Severino Dadá
Música: Gilberto Gil, Jards Macalé
Elenco: Hugo Carvana, Sônia Dias, Anecy Rocha, Jards Macalé, Juarez Paraíso, Severino
Dada, Wilson Mello.
Estrada da vida (1979-81)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Francisco de Assis
Produção: Vilafilmes Produções C. Ltda.
Fotografia: Francisco Botelho
Montagem: Carlos Alberto Camuyrano
Música: Dooby Ghizzi
Elenco: Milionário, José Rico, Nádia Lippi,
Silvia Leblon, Raimundo Silva, José Raimundo
Memórias do cárcere (1983-84)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptação da obra homônima de Graciliano Ramos
Produtora executiva: Maria da Salete
Fotografia: José Medeiros e Antônio Luiz Soares
Montagem: Carlos Alberto Camuyrano
Elenco: Carlos Vereza, Glória Pires, Jofre Soares, José Dumont, Nildo Parente, Wilson Grey,
Tonico Pereira, Arduíno Colasanti, Ney Sant’Anna
Jubiabá (1985-87)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Ripper
Direção de Produção: Tininho Fonseca, Roberto
Petti. Chico Drumond, Walter Schi, José Oliosi
Fotografia: José Medeiros
Montagem: Yvon Lemiere, Yves Charoy, Catherine Gabrielidis, Sylvie Lhermenier, Alain
Fresnot
Música: Gilberto Gil e Serginho
Elenco: Grande Otelo, Zezé Motta, Ruth de Souza, Eliana Pitman, Jofre Soares, Antônio José
Santana
A terceira margem do rio (1993-94)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado nos contos “A terceira margem do rio”, “A
menina de lá”, “Os irmãos Dagoberto”, “Fatalidade e seqüência” do livro Primeiras estórias,
de João Guimarães Rosa
Produção: Regina Filmes
Fotografia: Gilberto Azevedo e Fernando Duarte
Montagem: Carlos Alberto Camuyrano e Luelane Correa
Música: Milton Nascimento
Elenco: Bárbara Brandt, Ilya São Paulo, Sonjia Saurin, Maria Ribeiro, Chico Diaz, Mariane
Vicentine.
Cinema de lágrimas (1995)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Silvia Oroz
Produção: Roberto Feith
Fotografia: Walter Carvalho
Montagem: Luelane Correa
Música: Paulo Jobim
Elenco: Raul Cortez, André Barros, Cristiane Torloni, Patrick Tannus, Cosme Alves Netto,
Silvia Oroz, Ivan Trujillo
Raízes do Brasil (2003)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Miúcha
Produção: Márcia Pereira dos Santos e Maurício
Andrade Ramos
Fotografia: Reynaldo Zangrandi
Montagem: Alexandre Sagese
Elenco: Sérgio Buarque de Hollanda, Maria Amélia,
Chico Buarque, Antonio Candido, Paulo Vanzolini
Brasília 18% (2006)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Regina Filmes e VideoFilmes
Fotografia: Edgar Moura
Montagem: Alexandre Saggese
Música: Paulo Jobim
Elenco: Othon Bastos, Otávio Augusto, Bruna
Lombardi, Carlos Alberto Riccelli, Malu Mader
Documentários, curtas e médias-metragens
Juventude (1950)
Documentário sobre a situação da juventude em São Paulo
Soldados do fogo (1958)
Um moço de 74 anos (1965)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Jornal do Brasil
Fotografia: Luiz Carlos Saldanha e Hans Bantel
Documentário sobre a história do Jornal do Brasil, fundado em 14 de abril de 1891
O Rio de Machado de Assis (1965)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Jornal do Brasil
Fotografia: Hélio Silva e Roberto Mirilli
Fala Brasília (1966)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: MEC e Ince
Fotografia: Dib Lutfi
Cruzada ABC (1966)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Usis
Curta-metragem realizada para a Aliança Para o Progresso, órgão criado pelo ex-presidente
norte-americano John Kennedy.
Alfabetização (1970)
Cidade Laboratório de Humboldt 73 (1973)
Média-metragem sobre a criação de uma base científica e tecnológica na floresta amazônica
Nosso mundo (Repórteres de TV) (1978)
Produzido para a TV Educativa
Um ladrão (Insônia) (1981)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado no conto “Insônia” de Graciliano Ramos.
Produção: Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio
Fotografia: Jorge Monclar
Elenco: Ney Sant’Anna, Wilson Grey, Nádia Lippi
Nota: parte de um filme em três episódios baseado na obra de Graciliano Ramos.
Missa do galo (1982)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado em conto de Machado de Assis.
Produção: Nelson Pereira dos Santos Filho, Regina Filmes.
Fotografia: Hélio Silva e Walter Carvalho
Montagem: Carlos Alberto Camuyrano
Elenco: Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Olney São Paulo, Elza Gomes.
A arte fantástica de Mario Gruber (1982)
La drôle de guerre (1986)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, inspirado no
diário de guerra do escritor Raymond Queneau
Produção: Centre Georges Pompidou
Meu compadre Zé Kéti (2001)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Produção: VideoFilmes
Fotografia: Reinaldo Flávio Zangrandi
Montagem: Júlio Souto
Música: Zé Kéti
Elenco: Monarco, Guilherme de Brito, Walter
Alfaiate, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho,
Noca da Portela e Wilson Moreira
Programas para a televisão
Cinema Rio – TV Educativa (1980)
O mundo mágico – Rede Manchete (1983)
A música segundo Tom Jobim – Rede Manchete (1984)
Capiba
Rede Manchete (1984)
Eu sou o samba – Rede Manchete (1985)
Bahia de Todos os Santos – TV Bahia (1985)
Super Gregório – Rede Manchete (1987)
Casa grande & Senzala – Série em quatro episódios (2000-2001)
Assistente de direção
O saci – direção de Rodolfo Nanni (1951)
Agulha no palheiro – de Alex Viany (1952)
Balança mas não cai – de Paulo Vanderlei (1953)
Montador
Barravento – de Glauber Rocha (1961)
O menino de calça branca – de Sérgio Ricardo (1962)
Pedreira de São Diogo (Cinco vezes favela) – de Leon Hirszman (1964)
Maioria absoluta – de Leon Hirszman (1964)
Cantores e trovadores – de Evandro Moura (1968)
A nova era – de Nilo Sérgio (1985)
Produtor
O grande momento – de Roberto Santos (1958)
A opinião pública – de Arnaldo Jabor (1965)
As aventuras amorosas de um padeiro – de Waldyr Onofre (1975)
A dama do lotação – de Neville d’Almeida (1977)
Sonhei com você – de Ney Sant’Anna (1990)
Ator
Mandacaru vermelho – de Nelson Pereira dos Santos (1961)
Jardim de guerra – Neville d’Almeida (1968)
APÊNDICE
APÊNDICE A: Apontamentos para o ABC de Nelson Pereira dos Santos (vídeo-
documentário)
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