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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Bruno Lima Oliveira
A autoficção no campo da escrita de si: a construção do mito do escritor em
Nove noites, de Bernardo Carvalho, e outros procedimentos autoficcionais
na prosa brasileira contemporânea
Rio de Janeiro
2010
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Bruno Lima Oliveira
A autoficção no campo da escrita de si: a construção do mito do escritor em
Nove noites, de Bernardo Carvalho, e outros procedimentos autoficcionais
na prosa brasileira contemporânea
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Cláudia Viegas
Rio de Janeiro
2010
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
C331 Oliveira, Bruno Lima.
A autoficção no campo da escrita de si: a construção do mito do
escritor em Nove noites, de Bernardo Carvalho, e outros
procedimentos autoficcionais na prosa brasileira contemporânea /
Bruno Lima Oliveira . – 2010.
107 f.
Orientadora: Ana Cláudia Coutinho Viegas.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Carvalho, Bernardo, 1960- . Nove noites Teses. 2.
Autobiografia na literatura – Teses. 3. Autobiografia – História e
crítica – Teses. 4. Ficção brasileira – Teses. I. Viegas, Ana Cláudia
Coutinho. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-312.6
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
Bruno Lima Oliveira
A autoficção no campo da escrita de si: a construção do mito do escritor em
Nove noites, de Bernardo Carvalho, e outros procedimentos autoficcionais
na prosa brasileira contemporânea
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Aprovada em 29 de março de 2010
Banca examinadora:
_______________________________________________
Profª. Drª. Ana Cláudia Viegas (Orientadora)
Instituto de Letras da UERJ
_______________________________________________
Prof. Dr. Italo Moriconi
Instituto de Letras da UERJ
_______________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Diana Irene Klinger
Instituto de Letras da UFF
Rio de Janeiro
2010
À Maria Eugênia
e à Maria Antônia,
minhas princesinhas
AGRADECIMENTOS:
À Prof.ª Dr.ª Ana Cláudia Viegas, pela orientação de todos os momentos e por me
apresentar à autoficção;
Ao Prof. Dr. Italo Moriconi, pela convivência prazerosa e pelo aprendizado;
Aos Profs. Drs. Flávio Carneiro, Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, Carlinda
Fragale Pate Nuñez, Fátima Cristina Dias Rocha, Ana Cláudia Viegas e Francisco Venceslau
dos Santos, por nossos diálogos;
Ao Prof. Dr. Júlio França, pela leitura atenta do meu pré-projeto;
Aos colegas Carlos Eduardo Louzada, Renan Ji, Tiago Barros, Rafaella Lemos,
Adriana Lunardi, Ana Amélia e Lúcio Branco, por tornarem a pesquisa mais prazerosa;
Aos surpreendentes e talentosos orientandos de Iniciação Científica do Prof. Dr. Italo
Moriconi, Mauro Siqueira, Bruna Mitrano e José Alexandre Oliveira, por ampliarem minhas
leituras da literatura brasileira contemporânea;
Aos queridos amigos Léo Davino, Josi Marinho e Marcela Nascimento, sempre
presentes;
Ao Jorge Fernando, amigo dos tempos da UFF, e à Jaque Leal, amiga e escritora
talentosa;
A meus pais e a meu irmão, pelo apoio;
À Elisa, pelo amor, incentivo e compreensão;
À Maria Eugênia e à Maria Antônia, agradeço, também, me desculpando pelas horas
infindas que eu me privei das brincadeiras para poder concluir esta dissertação.
RESUMO
OLIVEIRA, Bruno Lima. A autoficção no campo da escrita de si: a construção do mito do
escritor em Nove noites, de Bernardo Carvalho, e outros procedimentos autoficcionais na
prosa brasileira contemporânea. 2010. 107 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira)
– Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
A literatura brasileira contemporânea apresenta como uma de suas características o
“retorno do autor”, explicado pela participação do escritor, no século XXI, no circuito
midiático. A presença assídua de escritores em programas de rádio e televisão, em
lançamentos de livros, em feiras literárias, em palestras e congressos etc. confere-lhes uma
identidade imagética suficientemente forte para despertar nos leitores o desejo por conhecer
mais amiúde o que eles têm a dizer para além do texto literário. Sua participação como
personagem literário, no entanto, apesar de conter referências autobiográficas, está longe de
representar uma “verdade” biográfica, mas, ao contrário, cria uma aura de indecisão a respeito
das referências narradas. A autoficção, desse modo, seria uma crítica à noção de sujeito e ao
demasiado apelo do real em nossos dias. Bernardo Carvalho é um autor exemplar de uma
escrita autoficcional. Nove noites é um romance que, além de fornecer signos extratextuais
importantes para a construção de uma identidade autoficcional, textualmente baralha os
conceitos de verdade e mentira, ficção e realidade, resultando num texto híbrido,
característico da mitificação a que se submete o autor contemporâneo. O presente trabalho,
preocupado em ofertar uma novidade para os estudos literários, amplia o corpus analisado e
não se limita à análise do já canônico Bernardo Carvalho. Sete outros autores somam-se a este
para uma maior abrangência do panorama da literatura brasileira contemporânea. Clarah
Averbuck, Milton Hatoum, Ivana Arruda Leite, Marcelo Mirisola, Cíntia Moscovich, João
Gilberto Noll e Silviano Santiago completam a pesquisa em torno da autoficção.
Palavras-chave: Autoficção. Autor. Autobiografia. Realidade. Ficção.
ABSTRACT
The contemporary Brazilian literature presents as one of its features the “return of the
author”, explained by the participation of the writer, in the twenty-first century, in the media
circuit. The constant presence of writers in radio and television programs, book launches,
literary fairs, lectures and conferences etc. gives them an imagery identity strong enough to
awaken in readers the desire to know in a more detailed way what they have to say beyond the
literary text. His participation as a literary character, however, although it contains
autobiographical references, it is far from being a "true" biography, but, instead, it creates an
aura of indecision about the narrated references. The autofiction thus would be a criticism of
the notion of subject and the exaggerated appeal of the real today. Bernardo Carvalho is an
example of an author writing autofiction. Nove noites is a novel that, in addition to providing
important extratextual signs to build an autofictional identity, literally shuffles the concepts of
truth and lie, fiction and reality, resulting in a hybrid text, characteristic of myth-making
submitted by the contemporary author. This work, concerned about offering something new to
literary studies, extends the corpus analysis and it is not limited to the analysis of the already
canonical Bernardo Carvalho. Seven other authors are added to him for a more
comprehensive panorama of the contemporary Brazilian literature. Clarah Averbuck, Milton
Hatoum, Ivana Arruda Leite, Marcelo Mirisola, Cíntia Moscovich, João Gilberto Noll and
Silviano Santiago complete the search about the autofiction.
Keywords: Autofiction. Author. Autobiography. Reality. Fiction.
SUMÁRIO
EU NO ESTUDO DA ESCRITA DE SI....................................................................09
1 A ESCRITA DE SI: GENEALOGIA .......................................................................15
2 BREVE PANORAMA DA PRIMEIRA PESSOA EM NOSSA LITERATURA..25
3 A MORTE E O RETORNO DO AUTOR – A AUTOFICÇÃO.............................38
4 A AUTOFICÇÃO NO CAMPO DA ESCRITA DE SI: NOVE NOITES...............55
4.1 Para a produção da ficção a matéria-prima é a verdade.........................................55
4.2 O autor e seu duplo: o narrador autoficcional.........................................................64
4.2.1 O narrador autoficcional: tipologia...............................................................................72
4.3 A estética autoficcional...............................................................................................76
5 A AUTOFICÇÃO PARA ALÉM DE NOVE NOITES............................................82
5.1 Do blog para a obra impressa: o percurso autoficcional de Clarah Averbuck.....82
5.2 O mito de Milton Hatoum..........................................................................................86
5.3 O universo multimidiático de Ivana Arruda Leite...................................................88
5.4 A fusão autoficcional de Marcelo Mirisola...............................................................90
5.5 A redenção autoficcional de Cíntia Moscovich.........................................................92
5.6 O autor e seu duplo: o work in progress de João Gilberto Noll...............................94
5.7 As histórias mal contadas de Silviano Santiago........................................................96
6 ÚLTIMAS PALAVRAS...........................................................................................100
REFERÊNCIAS........................................................................................................102
9
EU NO ESTUDO DA ESCRITA DE SI
Nada mais apropriado para uma pesquisa sobre as escritas de si – em especial a
autoficção – do que dedicar um espaço para que a minha primeira pessoa se manifeste.
Aproveito as próximas linhas para confessar os motivos que me levaram a me debruçar sobre
a autoficção e a literatura brasileira contemporânea.
Graduado em Letras pela UFF em 1998, obtive uma formação essencialmente
formalista. Para mim, nenhuma informação extratextual merecia destaque, pois o texto
literário fornecia todas as respostas de que precisássemos. Desse modo, para o então iniciante
na vida acadêmica, uma obra era lida e reconhecida do título ao ponto final. Dados
biográficos do autor que pudessem servir como auxílio para o entendimento textual eram
rechaçados sob a justificativa da literatura ser uma arte autônoma, inauguradora de uma nova
realidade, plena e definitiva. Era admitida, apenas, a contextualização histórica da obra, de
maneira a se reconhecer nela suas características que a situassem nesta ou naquela corrente
filosófica e seu respectivo ismo. Em todo caso, a identificação de uma obra a uma escola de
época não substituía a análise que se deveria fazer do texto, recurso indelével. Com essa
certeza recebi meu diploma e me distanciei da academia por longos nove anos.
Apenas em 2007 retomei um estudo mais sistemático da literatura, numa pós-
graduação latu sensu na UERJ. A ementa do curso era Figurações do eu: escritas em
primeira pessoa dos oitocentos à atualidade. Logo no primeiro dia de aula, fiquei surpreso
com a insistência da professora em correlacionar referências autobiográficas no texto literário.
Fiquei confuso sobre a necessidade, para se entender o texto, de se saber da vida empírica do
autor. A literatura já não mais formava uma nova realidade, transcendendo a realidade
estabelecida? Aula após aula, insistíamos em detectar referências autobiográficas no texto de
ficção, como se elas fossem imprescindíveis para a elaboração de significados. Eu estava,
enfim, apresentado à autoficção.
O primeiro contato que travei com uma obra autoficcional, entretanto, antecedeu a
apresentação teórica da mesma. Eu lera Nove noites, de Bernardo Carvalho, ignorando se
tratar de uma autoficção. Eu não conhecia o autor, não dispunha de quaisquer informações
biográficas suas, e o li como sempre lera: formalisticamente
1
. Nem mesmo as fotografias no
interior da narrativa me fizeram suspeitar da forte presença realista e referencial no romance.
1
Ao longo deste trabalho, o que se entende por leitura formalista é uma leitura imanente do texto, ou seja, não me refiro,
necessariamente, aos formalistas russos, que apresentam diferentes tendências para a compreensão do texto literário. Aqui, o
termo “formalismo” refere-se à imanência da obra literária.
10
Devo acrescentar, para justificar minha leitura formalista, que a minha edição do romance era
uma edição de bolso, sem a famosa fotografia do autor ao lado de um índio na orelha do
livro
2
. Quando finalmente reli o romance, livre da minha ignorância, constatei se tratar de
uma outra leitura completamente diferente da primeira, e me interessei em buscar algumas
respostas para a minha constante inquietação. Ou eu não sabia mais o que era literatura, ou
havia alguma coisa de muito suspeito na produção contemporânea. Ainda era difícil aceitar a
ideia de que, para o texto ser inteligível, fazia-se necessário recorrer ao extratexto.
Do alto de minha arrogância, decidi desenvolver uma pesquisa mais aprofundada
sobre a autoficção para provar que ela proporciona um prejuízo estético à literatura (?!).
Arregacei as mangas e iniciei leituras obsessivas de textos autoficcionais para ratificar minha
nova teoria: se o texto não mais se bastava, esteticamente a prejudicada era a literatura. Por
que deveríamos abrir a porta da ficção
3
para a realidade
4
? Esta era já conhecida de todos,
devendo permanecer maculada longe dos territórios ficcionais.
À medida que fazia minhas leituras da produção brasileira contemporânea, prosseguia
a pós-graduação. No decorrer das aulas, reli várias obras sob uma nova luz teórica. A sempre
prazerosa literatura de Machado de Assis foi relida, mas agora a presença do bruxo no
universo ficcional parecia ser inconteste. Nomes conceituados da crítica literária afirmavam
ser possível reconhecer, no velho Aires, a persona de Machado de Assis. Comecei a olhar
com mais carinho e menos preconceito para a figura autoral no seio ficcional. Se por um lado
sentia-me com mais boa vontade em relação à autoficção e às demais formas de escrita de si,
por outro ainda pesava sobre mim anos e mais anos de formação formalista.
Foi no momento que organizei minha pesquisa em capítulos, agora já no curso de
mestrado, que pude dar-lhe consistência e minhas respostas começaram a ser respondidas.
Após a releitura de escritores oitocentistas como Machado, Alencar e outros, perguntei-me
como nunca havia atentado para a importância da escrita em primeira pessoa nestes autores.
Isso ainda não equivalia a falar em autoficção, mas me causava espanto não ter dado atenção a
essa característica. As perguntas que eu me fazia eram: “Desde quando podemos falar numa
escrita de si?” “Desde quando a primeira pessoa recebeu destaque na produção textual?” Com
a finalidade de responder a estas questões, recorri, inicialmente, a Foucault [1992] e dei início
a meu primeiro capítulo: A escrita de si: genealogia.
2
No capítulo referente à análise do romance, comentarei a dupla leitura que se pode fazer de um texto autoficcional,
dependendo do pacto que se estabelecer com o leitor. Os signos extratextuais do romance assumem importância capital para a
formação de significados do leitor.
3
Ficção deve ser compreendida, aqui, como fabulação, criação, invenção, um texto desvinculado dos fatos empíricos.
4
Não tenho a intensão de me aprofundar teoricamente no conceito de realidade, portanto o termo “realidade” será aplicado,
ao longo deste trabalho, como antônimo de ficção, isto é, como alguma coisa que de fato aconteceu, verificável.
11
O estudioso francês dizia, em O que é um autor?, que na cultura greco-romana os
escritos espirituais, os hypomnemata e as correspondências já anunciavam o eu textual.
Porém, em nenhum destes três casos ainda era possível falar em escrita de si, por mais que se
guardassem afinidades. A explicação é fornecida por Costa Lima [1986], que esclarece que
não se pode falar em autobiografia ou em qualquer outra forma de escrita do eu sem os
conceitos de indivíduo e de literatura, ausentes na cultura greco-romana, sob o risco de
anacronismo. Para o crítico, apenas com as Confissões de Rousseau é possível falarmos em
autobiografia e em escrita do eu, pois o homem do século XVIII já havia adquirido a noção de
individualidade. Uma vez delimitado o texto fundador de uma escrita de si como a
entendemos hoje, convidei as reflexões de Philippe Lejeune [2008], especialista em
autobiografia e que dedicou toda a sua carreira aos estudos da primeira pessoa. Eu acreditava
que, para se estudar a contento a autoficção, era necessário um domínio razoável do conceito
de autobiografia, gênero com o qual a autoficção dialoga, ultrapassando-o.
Concluída a pesquisa da gênese da escrita de si, julguei oportuno empreender a mesma
investigação, mas agora restrito à literatura brasileira. Desse modo, eu, em um só golpe,
atingiria dois coelhos. Primeiro eu corrigiria minha displicência em não dar atenção para o
grande número de textos em primeira pessoa em nossas letras; segundo, me concentraria na
literatura brasileira, de maneira a dar sustentação para a produção contemporânea. Como
nosso universo ficcional é muito amplo, rico e complexo, limitei seu alcance selecionando três
momentos a serem analisados. O primeiro foi a retomada de Machado de Assis, nosso maior
nome literário. De seus cinco romances da sua fase madura, quatro são escritos em primeira
pessoa, sem falar na sua intensa produção cronística; em seguida elegi o Modernismo, devido
a sua importância como movimento de vanguarda. O autor escolhido foi Graciliano Ramos,
que, de dezenove livros publicados, escreveu apenas quatro de ficção – e três em primeira
pessoa –, e o restante são livros memorialísticos; finalmente, escolhi a geração de 70, os ex-
exilados, para integrar a pesquisa, pois, mais do que escreverem sobre si, autores como
Fernando Gabeira escreviam sobre toda uma geração.
Este segundo capítulo, intitulado Breve panorama da primeira pessoa em nossa
literatura, foi muito importante para a minha pesquisa porque pude verificar quão descabida
era a minha implicância com a presença autoral em nossas letras. Paulatinamente ia me
rendendo à autoficção e a minha tese sobre prejuízo estético cedia lugar para uma simples
nova figuração estética, nem melhor, nem pior, apenas diferente.
Eu me encontrava num ponto da pesquisa já reconciliado com a autoficção. Não mais
buscava provar, infantilmente, como as referências autobiográficas e demais alusões à
12
realidade maculavam a ficção. Começava a nascer em mim o desejo de me aprofundar mais
na pesquisa, agora como leitor entusiasta. Para isso, urgia compreender por que a autoficção
se tornou uma modalidade tão em voga na contemporaneidade. Quais seriam as causas do
retorno do autor, morto há tanto pelos estruturalistas e formalistas? E que autor seria este que
retorna?
O terceiro capítulo – A morte e o retorno do autor – a autoficção – surgiu de maneira
a suprir o arcabouço teórico necessário para a pesquisa. Para pensar por que Bernardo
Carvalho declarou, em entrevista, que o que o motivara a escrever Nove noites foi a demanda
do público, o anseio de seus leitores por histórias baseadas em fatos reais, precisei entender
como funciona a nossa sociedade midiática, de forte apelo imagético, de modo a espelhar, na
literatura, a realidade.
Constatei que vivemos num tempo em que predomina o interesse pela intimidade
alheia. Na literatura, cresce o número de autobiografias, entrevistas, memórias, cartas
editadas; na mídia televisiva, programas como reality shows recebem muita audiência, num
processo de espetacularização da intimidade jamais visto. A realidade, desse modo, mesmo
que em alguns casos relativizada e encenada, recebe cada vez mais a apreensão do público.
Caminhando pelas ruas, o indivíduo pós-moderno, sob a justificativa da segurança, é filmado
a todo o momento; no espaço doméstico, local outrora reservado ao recato e à intimidade,
webcams oferecem a um interlocutor virtual uma imagem real, eliminando qualquer dúvida
sobre a identidade de quem se comunica pela internet. Essa “invasão” da realidade em várias
frentes, inevitável no século XXI, chega também à literatura.
É a literatura, inclusive, a primeira incentivadora dessa irrupção realista. Com o
romance burguês, enquanto gênero, a vida da burguesia passou a ser mimetizada e transferida
do ambiente doméstico e público para as páginas da ficção. Para que fosse outorgada à
literatura verossimilhança, mister era que ela se aproximasse o máximo possível da realidade.
Anos mais tarde, o cinema, como poderosa engrenagem da Indústria Cultural, reforça o apelo
do real, que adquire, com a televisão, uma configuração inapelável. A velocidade dos meios
de comunicação atuais e seus aparatos tecnológicos garantem ao telespectador a notícia em
tempo real, precisa, inquestionável e verdadeira.
É nesse cenário que o autor, agora indissociável da cultura midiática, retorna para a
literatura. Mas seu retorno não pretende transferir a realidade tout court para as páginas da
ficção. O autor que retorna é antes uma provocação e uma crítica do imediatismo realista, sem
qualquer autoridade sobre o texto, sendo apenas mais um personagem ficcional.
Diferentemente do eu da autobiografia, o narrador autoficcional não pretende revelar uma
13
verdade biográfica a seus leitores. É completamente impossível saber se as situações narradas
na autoficção, por mais que tenham respaldo autobiográfico, realmente aconteceram ou são
pura invenção. Ao fazer de si um personagem autoficcional, o autor está construindo um mito
de si próprio, que não é verdadeiro nem falso. Para Diana Klinger [2007], essa
indecidibilidade em torno da biografia autoral é uma crítica à noção de sujeito. Este não é
mais linear, único e total, passando a ser híbrido, fragmentado e indefinível.
Após fundamentar teoricamente minhas argumentações, pude dar início à parte mais
prazerosa da pesquisa: a análise do romance. Nove noites foi lido e relido de maneira a que eu
pudesse analisar os fatos reais presentes na ficção. São inúmeras as referências a personagens
e acontecimentos históricos. Achei mais conveniente, antes de analisar o narrador
autoficcional, falar sobre a realidade no romance porque, de acordo com Hal Foster [1996], o
retorno do autor é uma das facetas do retorno do real. Sedimentada a realidade no espaço
ficcional e suas consequências, brinquei de detetive para tentar descobrir o que correspondia à
verdade biográfica no romance. Investigação impossível de lograr êxito. Para finalizar, refleti
sobre a estética autoficcional, apaziguando-me com minha formação acadêmica.
Neste ponto, a pesquisa estaria concluída não fosse por uma questão fundamental, para
mim, pelo menos. Eu desejava apresentar, ao fim do curso de mestrado, uma pesquisa
original, que oferecesse certo ineditismo, alguma novidade para a Academia. Durante os dois
anos do curso, me dei conta de que Bernardo Carvalho é um autor demasiadamente estudado
pela Academia. São inúmeras as teses de doutorado e as dissertações de mestrado, sem falar
nos incontáveis artigos publicados em revistas especializadas, que abordam o autor e Nove
noites. Desse modo, minha dissertação, por melhor que estivesse, seria apenas mais uma que
se somaria ao manancial bibliográfico sobre o autor. A saída para esse impasse foi dada pelo
Prof. Dr. Italo Moriconi, a quem agradeço muitíssimo, ao me sugerir que eu dedicasse um
capítulo para outros escritores, menos conhecidos, mas que também fazem autoficção. Assim,
eu poderia analisar que novos rumos o gênero estaria tomando, me distanciando do já
canônico Bernardo Carvalho e alcançando um quê de novidade para a pesquisa.
Meu quinto capítulo nasceu como uma corruptela da sugestão inicial do professor. Ao
invés de selecionar apenas autores de ainda não muita expressão na Academia, incorporei
também autores consagrados, por pura afinidade e deleite, como Silviano Santiago e suas
Histórias mal contadas, preferindo deixar para uma pesquisa futura, no doutorado, uma
pesquisa mais pormenorizada sobre blogs e autoficção. A geração blogueira (sem querer
entrar em polêmica com o termo) merece um estudo mais sistemático, ao produzir textos
inicialmente na internet para posterior publicação impressa, e todas as consequências dessa
14
nova prática de labor literário. Os autores selecionados que se uniram ao Silviano Santiago
foram Clarah Averbuck (nome indispensável ao se estudarem blogs), Milton Hatoum, Ivana
Arruda Leite, Marcelo Mirisola, Cíntia Moscovich e João Gilberto Noll. Sete autores para
assegurar a cabala.
Para finalizar minha confissão, gostaria de agradecer aos professores de quem fui
aluno ao cumprir os créditos necessários. Os Prof. Drs. Flávio Carneiro, Carmem Lúcia
Negreiros de Figueiredo, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Fátima Cristina Dias Rocha, Ana
Cláudia Viegas e Francisco Venceslau dos Santos ofereceram cursos que enriqueceram muito
minha pesquisa, apresentando-me leituras essenciais para que eu construísse minha
dissertação de maneira cristalina, e a enriquecesse a partir de nossos diálogos.
Um agradecimento muito especial ao Prof. Dr. Italo Moriconi, pelo aprendizado em
nossas reuniões no grupo de pesquisa de iniciação científica, onde eu fiz meu estágio de
prática docente; e à Profa. Dra. Ana Cláudia Viegas, pela orientação precisa e respeitosa com
as minhas escolhas e os meus direcionamentos, sem a qual eu não teria chegado até aqui.
Boa leitura!
15
1 A ESCRITA DE SI: GENEALOGIA
As narrativas em primeira pessoa ocupam grande espaço em nossas letras.
Autobiografias – ficcionais ou não – memórias, cartas, diários, autorretratos e, mais
recentemente, autoficções constituem um universo em que o eu é a voz que fala, é o narrador
que conta a sua própria experiência. Cada uma dessas modalidades de uma escrita de si tem
suas particularidades que as distinguem umas das outras, sendo a primeira pessoa seu ponto
comum. Antes, contudo, de se analisarem suas peculiaridades, em especial as da autoficção,
objeto deste estudo, convém que se faça uma digressão para que se verifique, historicamente,
como a primeira pessoa se configura nas letras.
Michel Foucault oferece um estudo esclarecedor sobre as primeiras aparições textuais
do eu. Em um primeiro momento, na cultura greco-romana, a importância de uma escrita de si
tinha relação com a vida ascética. As anotações das atividades do eu objetivavam inibir o
pecado, pois, se nos déssemos a conhecer, se expuséssemos as ações de nossa alma e esta
estivesse em desacordo com um modo de vida desejável para um asceta, este, ao tornar
pública sua conduta, se envergonharia. Se uma atitude impura não era cometida em público,
em respeito ao recato, sua confissão através da escrita também seria motivo de vergonha, por
isso ela era importante como defesa de uma vida disciplinada e servil.
A escrita também ocupava o lugar dos colegas de anacorese, atenuando a solidão. Ao
se escrever sobre si mesmo, a escrita desempenhava o papel de um companheiro, pois ela
suscitava o respeito humano e a vergonha. Foucault, a partir daí, propõe uma primeira
analogia entre “aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade” e “o caderno de
notas para o solitário” [FOUCAULT, 1992: 130-1]. Constata-se que, através da escrita, tanto
o asceta quanto o solitário conseguiam preencher uma lacuna presencial, isto é,
“materializavam” alguém que não estava presente. Outra analogia, segundo o autor, ocorre
simultaneamente a essa, que é a da “ascese como trabalho não apenas sobre os actos mas,
mais precisamente, sobre o pensamento” [ibid, p. 131]. Aqui, a escrita atuaria como uma
espécie de censor, que constrangeria pensamentos indesejosos de uma alma devota, uma vez
que estaria tornando público o propósito não condizente com a ascese. Foucault ainda se
refere a uma terceira e última analogia, que seria a escrita como combatente espiritual, isto é,
na medida em que o demônio tem o poder de enganar e de fazer com que nos enganemos a
nosso próprio respeito, “a escrita constitui uma prova e como que uma pedra de toque: ao
trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas
16
do inimigo” [FOUCAULT, 1992: 131]. A escrita de si em seus primórdios está associada,
portanto, a uma escrita espiritual, numa época anterior ao cristianismo.
Prosseguindo seu estudo sobre as artes de si mesmo, Foucault diz que, dentre as
formas de um adestramento de si, só tardiamente a escrita desempenhou um papel
considerável e é a partir de textos de Epicteto, que insistia na importância da escrita como
exercício pessoal, que Foucault chega a duas maneiras distintas dela como exercício do
pensamento: a primeira seria linear, ou seja, vai da meditação ao ato de escrever
propriamente; a segunda seria circular, isto é, a meditação antecede a escrita que, por sua vez,
evoca novamente a meditação. Mas seja qual for o ciclo em que ocorre o exercício do
pensamento,
a escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis: a saber, a
elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais
de acção. Como elemento do treino de si, a escrita tem, para utilizar uma expressão que se
encontra em Plutarco, uma função etopoiética: é um operador da transformação da verdade
em ethos [ibdi, p. 134].
Duas são as formas da escrita etopoiética: os hypomnemata e a correspondência.
Os hypomnemata, apesar de figurarem como parte de uma escrita etopoiética, não
eram uma narrativa de si mesmo, por mais pessoais que fossem. Eles eram antes uma espécie
de caderneta, de agenda, onde eram anotados citações, fragmentos de obras, exemplos e ações
presenciados, discussões, etc. com a intenção de registrar cada uma dessas anotações, de
modo a não permitir que elas caíssem no esquecimento; em suma, tinham como finalidade ser
uma memória que servisse para posterior consulta. Desse modo, eles não podem ser
considerados como uma escrita de si, uma vez que não visavam à confissão ou revelação do
indizível, do que está presente na subjetividade do sujeito que escreve, mas sim “reunir aquilo
que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição
de si” [ibdi, p. 137, grifo meu].
A constituição de si diferiria de uma escrita de si no sentido de que a primeira é fruto
de uma cultura e de um tempo marcados pela tradicionalidade, pela autoridade do já dito, pelo
exercício da razão, pela ausência de uma subjetividade como a conhecemos a partir do século
XVIII, conforme veremos adiante, embasados pelas reflexões de Luiz Costa Lima; os
hypomnemata tinham estreita relação, pois, com o ensino, a audição ou a leitura, sem que se
permitisse que algo novo – no caso, a individualidade, a subjetividade de quem escreve –
fosse adicionado à escrita. A escrita de si, por seu turno, empresta ao texto características do
escrevente, fornece subsídios para que se possa associar o homem à obra, ou melhor,
17
possibilita que se reconheça no texto atributos inerentes ao seu autor, pessoa única e
individual.
Mas se, por um lado, os hypomnemata não oferecem vestígios de uma individualidade,
por outro, “a escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade
contrastiva” [FOUCAULT, 1992: 141], ou seja, adiciona-se à tradição que é perpetuada nas
cadernetas a peculiaridade de seu uso, de suas rememorações, pois o olhar para o passado
implica motivo e aprendizado próprios de quem olha, de maneira a, finalmente, através da
escrita e da leitura da mesma, formar a si próprio. Foucault conclui dizendo que “o papel da
escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’ (...) o próprio corpo
daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a
escrita transforma a coisa vista ou ouvida ‘em forças e em sangue’” [ibdi, p. 143]. Assim,
mesmo que os hypomnemata não sejam, estrito senso, uma escrita de si, eles têm assegurada a
sua importância numa linha evolutiva para a compreensão da primeira pessoa na literatura.
A segunda forma de uma escrita etopoiética é a correspondência. Esta se aproxima dos
hypomnemata no sentido de que ambos oferecem exercício pessoal. No caso das cartas, o
exercício se dá porque, quando as escrevemos, as lemos concomitantemente, do mesmo modo
que ouvimos alguma coisa ao mesmo tempo em que a dizemos. Desse modo, a carta enviada
atua sobre o emissor, pelo ato da escrita e sua respectiva leitura, e sobre o remetente, pelo ato
da leitura. “Esta dupla função faz com que a correspondência muito se aproxime dos
hypomnemata e com que a sua forma frequentemente lhes seja muito vizinha” [ibdi, p. 145].
Foucault lembra que as cartas de Sêneca tinham como objetivo o contínuo exercício de
si mesmo, através do ininterrupto aperfeiçoamento de si, e também que elas recorriam à ajuda
alheia para o trabalho sobre si próprio. Dessa maneira, os conselhos dados numa carta serviam
como treinamento para uma situação similar que porventura o escritor viesse a viver no
futuro. Se nas anotações feitas nas cadernetas de alguma maneira estava-se assegurando uma
memória para que, quando oportuno, o escritor pudesse recorrer a elas e não perdesse a lição,
agora, com a troca de correspondências, os conselhos escritos mutuamente desempenhavam a
função educacional de aproveitar a experiência alheia para si próprio.
A correspondência, no entanto, a despeito das semelhanças que tem com os
hypomnemata, não deve ser confundida como um prolongamento destes. Mais do que dar
conselhos a outrem, e aprender e se educar com estes conselhos de modo a se adestrar com a
prática da escrita, a carta “constitui também uma certa maneira de cada um se manifestar a si
próprio e aos outros. A carta faz o escritor ‘presente’ àquele a quem dirige” [ibdi, p. 149], de
uma presença quase física. Quem escreve mostra-se, presentifica-se, materializa-se –
18
lembremos que o asceta escrevia sobre seus pecados para que, à luz da exposição, não se
sentisse envergonhado, e que ele, analogamente ao solitário, presentificava companheiros de
ascese. Do mesmo modo que quem escreve está se corporificando pelo que de si mesmo é
dito, quem lê também, na medida em que a carta é a priori um texto escrito para outrem.
A partir das considerações de Foucault acerca dos hypomnemata e da correspondência,
percebe-se claramente que esta está mais próxima de uma escrita de si porque o discurso é o
do escritor, ao contrário do que ocorria naqueles, cuja constituição de si se dava através do
discurso dos outros. Na correspondência, temos a “narrativa de si próprio como sujeito da
acção (ou de deliberação com vista a uma possível acção) relativamente aos amigos e aos
inimigos, aos acontecimentos felizes ou funestos” [FOUCAULT, 1992: 152].
Ainda que não se possa falar de uma escrita de si na antiguidade, indubitavelmente
tem-se na escrita espiritual, nos hypomnemata e na correspondência um ponto de partida para
a pesquisa histórica da escrita em primeira pessoa. Mas se há um escritor que dá conselhos a
partir de sua própria experiência para seu correspondente e o faz num discurso em primeira
pessoa, por que não é possível consignar às cartas a gênese das escritas de si?
A resposta é dada por Luiz Costa Lima. De acordo com o crítico, para o homem
moderno, a autobiografia
5
não causa estranhamento porque há em nós fortemente enraizado o
conceito de indivíduo, sem o qual não seria possível um texto que se definisse como o relato
de vida de um eu. Desse modo, mesmo que se reconheçam nos hypomnemata e na
correspondência características afins com a escrita autobiográfica, esta não ocorre por causa
da ausência da matéria-prima para esse tipo de texto: o indivíduo que narra a sua própria
existência.
O boom dos relatos em primeira pessoa da atualidade adquire, precisamente,
relevância e interesse com a conversão do conceito de individualidade em valor. A partir do
momento que o sujeito se percebeu senhor de si, que era capaz de ter algo a dizer que fugia
das convenções e dos dogmas ditados pela Igreja na Idade Média ou que escapasse da
obediência de um modus vivendi da antiguidade clássica, a sua narrativa se tornou “mais
confiável que o enredo de romances e novelas” [LIMA, 1986: 243]. A explicação pode ser
encontrada no caráter de verdade
6
que a experiência pessoal denota ao fato narrado e que,
desde então, é mais e mais explorada, haja vista, por exemplo, a captação de testemunhas para
legitimar a informação veiculada pelos meios de comunicação contemporâneos. Um repórter
5
O autor refere-se à autobiografia, mas podemos estender a sua teorização para quaisquer outras escritas de si.
6
“Verdade” tem, neste trabalho, correlação com “realidade”, isto é, com algo verificável, sem um maior aprofundamento
teórico e conceitual.
19
poderia estar equivocado sobre a notícia anunciada, mas o testemunho de um indivíduo que
participou direta ou indiretamente do ocorrido dissiparia dúvidas e conferiria legitimidade à
informação.
Detendo-se nos textos autobiográficos, Costa Lima compara-os a espelhos,
implacáveis quanto à imagem reproduzida, que não deixarão impunes quaisquer sinais
indesejados da passagem do tempo ou de uma deformidade física. Mas, diferentemente dos
espelhos, as autobiografias permitem que o autobiógrafo corrija as imperfeições que
certamente seriam explicitadas pelo reflexo. A distância temporal que existe entre o ato da
escrita e o ato narrado facilita que o escritor seja condescendente consigo e repare a ação do
tempo e/ou emende os acontecimentos de modo a torná-los consortes a sua vontade. Desse
modo, o eu da autobiografia seria antes um eu estilizado do que um eu “real”, o que
problematizaria, justamente, a noção de verdade contida no relato de uma vida.
Nessa direção, cabe o questionamento do crítico sobre a tendência de se confundir
autobiografia com literatura, como se aquela pertencesse ao campo da ficção. Para Costa
Lima,
uma explicação plausível parece ser a seguinte: a concepção normal e mais extensa de
literatura combina duas determinações de origem e sentido diversos. A primeira, proveniente
do Renascimento, a segunda, do romantismo. A camada historicamente mais antiga identifica
a literatura com uma forma nobre de eloqüência, com uma certa exploração da combinação
das palavras, visando o deleite do receptor [LIMA, 1986: 248].
O Renascimento, que cultuava a Antiguidade, inspirou-se num discurso de forma
eloquente, comum nos escritos destinados à privacidade, como o eram as cartas. Já o
romantismo tencionava comover o leitor mais através dos sentimentos do que por frases bem
encadeadas. Assim, o Romantismo confere ao indivíduo dotado de sentimentos o status de
“verdadeiro sujeito do mundo” [ibdi, p. 249]. A união da forma como os renascentistas e os
românticos compreendiam a literatura possibilita que a autobiografia seja incorporada à
literatura, que, canonicamente, é um texto verbalmente bem acabado de um eu que se
confessa. Se essa união traz para o terreno da literatura as escritas de si, ela afasta mais os
hypomnemata e a correspondência, pois considerar as cadernetas de anotações e as cartas de
Sêneca, por exemplo, como obras literárias seria um duplo anacronismo, uma vez que não
havia nem o conceito de indivíduo nem o de literatura na cultura greco-romana.
Atualmente, o mercado editorial encontra respaldo no público para a publicação de
relatos pessoais, de narrativas que tematizem experiências próprias, individuais, uma vez que,
como vimos, estas conferem credibilidade. Por outro lado, pensando essas possíveis
publicações na Antiguidade,
20
a experiência pessoal não era encarada como razão suficiente para levantar o stilus. O motivo
não estava simplesmente na suposição segura de que fins práticos eram visados na escrita de
qualquer autobiografia, mas na desvalorização dos fatos verdadeiros de uma carreira como
assunto de obra literária, desvalorização reencontrada na atitude quanto às pessoas históricas
em geral. Não parecia haver uma clara linha divisória entre o verdadeiro e o inventado, desde
que o último permanecesse nos limites do possível [MUSH apud LIMA, 1986: 251].
Esta citação evidencia duas preocupações de Costa Lima. A primeira diz respeito
justamente a uma leitura anacrônica dos escritos em primeira pessoa. Com a proliferação das
escritas de si em nossa sociedade, pode-se perguntar por que a vida privada não despertava
fascínio outrora. Neste início de século XXI, vivemos sob o domínio de uma cultura
midiatizada que assiste à espetacuralização do sujeito em várias frentes e, nesse paradigma,
poder-se-ia transferir para o passado as peculiaridades do tempo presente. Mas, alertados por
Costa Lima, é preciso que se entenda a sociedade antiga para se evitarem equívocos.
Antigamente o homem era educado para ser um homem público, um homem da polis. Nesse
sentido, “ele não tinha a liberdade de escolher entre uma vida confiada ao bem público e uma
vida decente privada. Uma vida privada satisfatória derivava da vida satisfatória obtida apenas
como cidadão” [WEINTRAUB apud LIMA, 1986: 252]. Talvez seja acertado dizer,
finalmente, que a individualidade inexistia porque cada cidadão buscava alcançar um modelo
de vida que se amalgamasse a um modelo social pré-estabelecido, o que implicaria numa
conduta individual igual para todos os cidadãos, que tinham o seu eu recalcado em favor do
papel público.
A segunda refere-se à impossibilidade de uma autobiografia como documento que
declara uma verdade. Como dito acima, a distância que há entre o tempo da enunciação e o
tempo do enunciado é suficiente para impedir que o autobiógrafo consiga, através do discurso,
se aproximar da exatidão factual narrada. Equívocos, distrações, lapsos e a natural seleção
empreendida no momento da escrita, consciente ou inconscientemente, distanciam o escritor
de sua prévia intenção de fidedignidade aos fatos ocorridos. A autobiografia pode ser
comparada a um espelho, mas a um espelho corretivo. Não significa dizer, porém, que o
autobiógrafo tem premeditadamente o propósito de mentir deliberadamente, assemelhando-se
a um romancista, que trabalha com ficção. Ele é bem-intencionado e, a priori, realmente está
disposto a narrar o que de fato ocorreu, mas essa é uma tarefa filosoficamente impossível.
Seus leitores, no entanto, acreditam que se trata de um relato de “boa-fé”, e assumirão papel
importante na teoria de Philippe Lejeune sobre o pacto autobiográfico que veremos mais à
frente.
Luiz Costa Lima prova-nos que não ocorreu uma escrita de si, ao menos como se
entende hoje, na Antiguidade. Prosseguindo a sua pesquisa sobre os júbilos e misérias do
21
pequeno eu, o autor questiona-se se ela ocorreu na Idade Média, e a resposta é igualmente
negativa, mas por motivos diversos. Segundo o teórico, é indispensável para a autobiografia a
relação entre o eu empírico e o mundo, como aquele atua neste e como este modifica aquele.
Na Idade Média não há registro deste intercâmbio e, quando há referência a um eu, este não
tem dimensões psicológicas, isto é, sua aparição é “quase totalmente ‘objetivada’: quero dizer,
cujo sujeito nos escapa” [ZUMTHOR apud LIMA, 1986: 255]. Tal como ocorre na
Antiguidade, o homem medievo não tem escolhas pessoais a fazer e está condenado a seguir o
fluxo pré-determinado socialmente. Agostinho, que muitos consideram o precursor da
autobiografia com suas Confissões, apesar de demonstrar consciência de uma idiossincrasia
pessoal, “não a via como algo de valor em si mesmo ou merecedora de cultivo. Muito ao
contrário, as indicações são de que via na história de uma alma cristã, aquela que melhor
conhecia, a história típica de todos os cristãos” [WEINTRAUB apud LIMA, 1986: 257, grifo
do original]. A citação é cristalina. Agostinho moldava-se de acordo com o modo de vida
cristão, que era um modo de vida a ser adotado por todos, sem que houvesse liberdade pessoal
para isso, como ocorria com o homem público da polis antiga.
Depois do salto temporal da Antiguidade para a Idade Média, outro é dado pelo autor
até o Renascimento, quando, enfim, se pode falar pela primeira vez de uma literatura da
interioridade. O homem renascentista não está preso a nenhum modelo paradigmático que
precisa seguir, seja político ou religioso, e tem um leque de direções possíveis e diferentes que
pode escolher trilhar. Nas palavras de Costa Lima, “a complexidade da vida renascentista, ou
seja, das relações de trabalho e de poder, já impede a permanência de um ideal de conduta
una, coletivamente orientada e previamente ensinável” [LIMA, 1986: 257]. O sujeito
renascentista, pois, é capaz de ser individual e, por conseguinte, está apto a escrever uma
história de si, mas, em virtude das contrariedades de seu tempo, como a dependência da
vontade dos donos do poder e do monismo que impedia o livre-arbítrio, esse sujeito ainda não
é o indivíduo moderno, que só aparecerá, na autobiografia, com Rousseau.
É com o filósofo genebrino que a autobiografia adquire o formato que conhecemos
hoje. Rousseau, homem já maduro, para buscar o conhecimento de si, recorre a sua infância e
estabelece uma relação cronológica no texto autobiográfico – a criança que ele fora ajudará a
explicar o homem que ele é no momento da escrita. É claro que essa reminiscência textual é
construção discursiva, como vimos anteriormente, sem necessariamente condizer fielmente à
verdade da história, mas interessa notar aqui mais o paradigma de autobiografia que se criou a
partir das Confissões de Rousseau do que a relativização da autenticidade dos fatos narrados.
Uma vez que Costa Lima nos conduziu pelas trajetórias da escrita de si até a forma como a
22
entendemos hoje, deve-se convidar outro estudioso para refletir sobre seu estatuto na
contemporaneidade.
Philippe Lejeune, que dedicou sua carreira aos estudos da primeira pessoa,
principalmente da autobiografia, concorda com Costa Lima que não é possível falar de
autobiografia antes de 1770 sob o risco de anacronismo, e adota a publicação das Confissões
de Rousseau como o marco zero do gênero. Para o teórico francês, o papel do leitor será
decisivo para a noção de pacto autobiográfico com a qual ele formulará sua teoria. Lejeune
parte da definição de que autobiografia é uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma
pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em
particular a história de sua personalidade” [LEJEUNE, 2008: 14]. É essa uma definição
bastante hermética, como o próprio Lejeune reconheceu posteriormente, pois ela exclui do rol
dos textos autobiográficos a poesia, mas, apesar dos problemas, comuns a qualquer definição,
esta é capaz de abranger um leque amplo e satisfatório para o gênero.
O texto autobiográfico deverá, portanto, tratar da vida pessoal do autor em sua
plenitude, mesmo que para isso apresente também crônica e história social, uma vez que todo
indivíduo faz parte do mundo. Lejeune afirma nesse sentido que é preciso que haja proporção,
hierarquia, de modo que a vida do autobiógrafo receba atenção devida. A pluralidade e
complexidade da vida humana farão com que o texto autobiográfico transite com outras
modalidades de escrita do eu, como as memórias, por exemplo. Mas, se por um lado o teórico
admite que haja, por vezes, interseções da escrita autobiográfica com outros gêneros da
literatura íntima, por outro ele é taxativo e não admite gradações em dois dos elementos que
constituem, a seu ver, a autobiografia: i) a situação do autor, que necessariamente apresenta
uma identidade com o narrador, e ii) a posição do narrador, que deve ser o personagem
principal. Para ele, é essa uma questão de tudo ou nada. Em suas palavras, “para que haja
autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja identidade
entre o autor, o narrador e o personagem” [ibdi, p. 15, grifo do original].
Como dito, o leitor desempenha função primordial na teoria lejeuniana. É ele que
formulará a pergunta “quem é eu?”, isto é, quem diz eu na autobiografia, quem é o autor por
quem eu deveria me interessar em ler a história? Como a linguística nos ensinou, os pronomes
pessoais (eu/tu) só têm serventia dentro do discurso, isto é, eles não remetem a um conceito,
fora do discurso o eu não existe, e é dentro do discurso que os pronomes pessoais determinam
a identidade do sujeito tanto da enunciação quanto do enunciado. É natural que em um
diálogo oral ambas as pessoas do discurso tenham suas identidades reveladas, uma vez que
elas são o próprio referente e, mesmo em situações onde isso não fica tão explícito, como em
23
uma conversa por telefone ou numa sala escura, há meios de se descobrir quem é que fala,
seja por dados extralinguísticos, seja pelo próprio discurso. Mas, no caso de um texto escrito,
o autobiógrafo deve dar-se a conhecer, permitir a sua identificação no próprio discurso. O
nome próprio é a articulação entre pessoa e discurso antes mesmo da utilização da primeira
pessoa. A criança, quando inicia sua fala, refere-se a si mesma na terceira pessoa, através do
nome próprio, sem utilizar o eu. O nome próprio, na teoria de Philippe Lejeune, tem
importância capital, pois é ele o responsável por atribuir ao autor, produtor do discurso, uma
existência real, isto é, o nome do autor na capa do livro é o nome de uma pessoa que nasceu,
teve seu registro em algum cartório e é uma pessoa de carne e osso, que está apta para narrar a
sua existência. Muitas vezes, segundo Lejeune, o nome do autor é o único dado
extralinguístico do texto, suficiente para a personificação do escritor. Para o francês,
um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no
texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo
simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para
o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define
como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que ele
produz [LEJEUNE, 2008: 23].
É, então, a partir da identidade de nomes entre autor, narrador e personagem, que
Lejeune postula o seu pacto autobiográfico. Este é um contrato de leitura firmado pelo autor e
pelo leitor. Antes de iniciar a leitura de um texto autobiográfico, o leitor, observando a
concordância onomástica, lerá a obra ciente de que se trata de um texto referencial, que o
autor conta a sua vida empírica, verificável, verdadeira, real. As objeções feitas a esse respeito
diante da impossibilidade de se narrar a verdade, conforme observamos em Costa Lima, não
ecoam em Lejeune, que acredita que “o fato de a identidade individual, na escrita como na
vida, passar pela narrativa não significa de modo algum que ela seja uma ficção” [ibdi, p.
104]. Para ele, a autobiografia é sim um relato verdadeiro, a despeito das escolhas do escritor
e dos possíveis equívocos da memória.
Entusiasta declarado da autobiografia, Lejeune compara-a a outros discursos
referenciais, como o científico ou histórico. Dessa maneira, ele afirma ser o pacto referencial
coextensivo ao pacto autobiográfico. Mas, se a verificabilidade de um texto historiográfico ou
científico é facilmente comprovada, o mesmo não ocorre com as autobiografias. Nelas, a
crença do leitor na palavra do autor é suficiente, portanto os fatos narrados não são verdade
porque foram narrados numa autobiografia, mas sim porque o autor diz que são verdade.
Diferentemente da historiografia ou do jornalismo, enfim, mesmo que o pacto referencial seja
24
mal cumprido, ele não será invalidado, ou seja, o autobiógrafo, segundo Lejeune, tem a
supremacia da verdade, mesmo que esteja longe dela. O pacto autobiográfico, portanto,
engendra no leitor uma crença insuspeita sobre a narrativa.
Como dito acima, a definição de Lejeune de autobiografia apresentou problemas que
foram revistos ao longo de sua carreira nas diversas retomadas ao tema. Em um dos quadros
propostos por ele, havia permanecido em branco a casa que combinava o pacto romanesco
com uma escrita em primeira pessoa. Para Lejeune, não havia registro de um romance que
apresentasse identidade de nomes entre autor, narrador e personagem principal. Como vimos,
quando isso ocorria, o pacto era o autobiográfico. Serge Doubrovsky, no entanto, estimulado
pela lacuna no quadro de Lejeune, resolveu escrever um romance que apresentasse esta
concordância onomástica, mas que não fosse uma autobiografia. Doubrovsky disse tratar-se
de uma autoficção. Mediante a nova forma de escrita de si que ainda não havia sido
contemplada pela sua teorização, o autor de O pacto autobiográfico afirma que
nos últimos dez anos, da “mentira verdadeira” à “autoficção”, o romance autobiográfico
literário aproximou-se da autobiografia a ponto de tornar mais indecisa do que nunca a
fronteira entre esses dois campos. Essa indecisão é estimulante para a reflexão teórica: em que
condições o nome próprio do autor pode ser percebido por um leitor como “fictício” ou
ambíguo? Como se articulam, nesses textos, o uso referencial da linguagem, no qual as
categorias de verdade (que se opõe à mentira) e realidade (que se opõe à ficção) permanecem
pertinentes, e a prática da escrita literária, na qual essas categorias se esvanecem? [LEJEUNE,
2008: 59]
De fato, a autoficção revoluciona as escritas de si e problematiza os conceitos de
ficção e realidade, que desde a Antiguidade eram noções estanques. Se no mundo antigo não
havia o conceito de ficção, na atualidade esse conceito adquire uma nova configuração.
Observou-se, nessa breve genealogia da escrita de si, que nos primórdios o homem da
polis não fora educado para ter uma individualidade, preferindo o modo de conduta público,
comum a todos os cidadãos. Passando pela Idade Média, que tampouco propiciou que
surgisse o conceito de indivíduo com o qual seria possível falar em autobiografia, de acordo
com Costa Lima, até chegar ao Renascimento e, enfim, ao nascimento do sujeito moderno, no
século XVIII, chegamos ao século XXI, que subverte a escrita de si e mescla ficção com
realidade.
25
2 BREVE PANORAMA DA PRIMEIRA PESSOA EM NOSSA
LITERATURA
Após a genealogia da escrita de si proposta no capítulo anterior, julguei ser oportuno
restringir o foco e perceber como a primeira pessoa aparece na literatura brasileira, de maneira
a verificarmos que as figurações do eu não se limitam à autoficção ou à chamada geração 00.
Para tanto, três foram os momentos do eu selecionados em nossas letras. O primeiro é
justamente o de nossa maturidade literária
7
, com Machado de Assis; o segundo reside no
Modernismo, que repensou a forma como se praticava literatura, estabelecendo um novo
paradigma literário no Brasil. O autor que servirá de corpus será Graciliano Ramos, que, após
curta e intensa produção ficcional, se dedicou a escrever textos memorialísticos; e o terceiro e
último momento deste breve mapeamento da primeira pessoa na literatura brasileira encontra
respaldo na geração dos anos 1970, entre os chamados ex-exilados, que, de volta ao Brasil
após a anistia do regime militar, sentem necessidade de partilhar suas experiências pessoais
em textos como O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira.
Dos cinco romances da fase dita madura de Machado de Assis, apenas Quincas Borba
(1891) é escrito em terceira pessoa, o que mostra claramente a importância do eu na produção
romanesca de nosso maior nome literário. Machado escreveu duas autobiografias ficcionais –
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899) – e duas obras que
comporiam o Memorial do Conselheiro Aires, a segunda em forma de diário – Esaú e Jacó
(1904) e Memorial de Aires (1908). Evidencia-se, dessa forma, o destaque à primeira pessoa
dado pelo escritor.
Acerca de seus últimos cinco romances, a crítica parece ser unânime sobre a
necessidade de entendê-los mediante a leitura conjunta de sua obra. Dessa forma, Costa Lima,
em “Sob a face de um bruxo”, oferece-nos uma rica interpretação de temas recorrentes em
Machado, como, por exemplo, a loucura, a morte, a música. É justamente essa recorrência,
segundo Costa Lima, que fez com que machadianos como Astrogildo Pereira e Barreto Filho,
equivocadamente, dessem preferência a uma análise particularizada dos romances ou de
alguns de seus aspectos, negligenciando o que era considerada mera “semelhança de suas
problemáticas” [LIMA, 1981:57]. Privilegiando o conjunto da obra, portanto, é possível
detectar que, tanto nas Memórias... como em Quincas Borba e em Dom Casmurro, a loucura
está presente; os dois últimos romances apresentam, por sua vez, de acordo com o crítico, um
7
A nossa maturidade literária, de acordo com Antonio Candido [1981], se dá justamente com Machado, que não figura entre
os autores abordados pelo crítico na Formação da literatura brasileira.
26
realce maior da música, já presente nas obras anteriores, mas ainda não de forma completa.
Não é de meu interesse aqui, contudo, analisar pormenorizadamente cada um destes
romances, mas verificar um aspecto não abordado por Costa Lima, qual seja, de que maneira
a primeira pessoa ganhou relevo em Machado de Assis.
Para empreender uma reflexão sobre os narradores em primeira pessoa na obra do
bruxo, creio ser necessário o entendimento da mesma na sua totalidade, como aferiu Costa
Lima, mas acrescentando ao todo sua produção cronística. Contra um possível preconceito
que esta possa suscitar, seja por ser ainda considerada por muitos como um gênero menor,
seja por não conter a genialidade de seus romances, Júlio França lembra que
inserida no conjunto de sua obra, a produção cronística de Machado de Assis pode ser,
obviamente, encarada sob diversos prismas. O que não é concebível, entretanto, é considerar a
crônica apenas uma contingência na carreira do escritor, um apêndice desimportante em meio
à grandiosidade dos seus contos e romances. Não é escusado lembrar que, por cerca de
quarenta anos, Machado exerceu regularmente a função de cronista em diversos periódicos
fluminenses. Permitindo-me um arroubo estatístico, diria que ele foi cronista durante mais
tempo do que romancista... [FRANÇA, 2001: 52]
A crônica, enquanto gênero, é considerada por muitos como a expressão do
pensamento de seu autor, sem qualquer mediação de um narrador. Essa crença possivelmente
se dá em função do estigma que a crônica sofre de ser subliteratura, escrita descartável,
cotidiana, fugaz, sem primor estético e para ser lida no calor da hora, dado o seu aspecto
referencial. Desse modo, inexistiria um narrador que se interporia entre o autor e o leitor, e
este assumiria o texto como sendo a voz daquele. Júlio França, a esse respeito, esclarece que
um escritor (pessoa física contratada por um jornal) forma um cronista (persona ficcional que
tem a responsabilidade de escrever regularmente uma coluna, sob pseudônimo ou não), que se
manifestará através de narradores vários, um para cada crônica. Após este esclarecimento, não
mais se confundiriam as vozes do narrador da crônica com seu autor, não fosse a consideração
de Lourenço Diaféria, citado por França, de que é “inevitável que o escritor, mesmo à revelia,
acabe por se desnudar perante o público, dado o grau de envolvimento pessoal que há na
escrita cronística. O leitor, pelo hábito de leitura de determinado cronista, acabaria por
reconhecer o estilo da escrita como marca de autoria” [ibid, p. 31]. Diante do impasse que o
gênero apresenta, França conclui que apenas um estudo individual de cada texto “permitiria
entender o mecanismo de revelação e ocultamento dessas instâncias discursivas” [ibdi, ibden].
Corroborando a consideração de Lourenço Diaféria, em carta de 7 de dezembro de 1902,
Mario de Alencar escreve a Machado adivinhando-lhe a autoria de um artigo publicado na
Gazeta de Notícias; em carta resposta datada de 11 de dezembro do mesmo ano, Machado
27
escreve: “Meu querido Mario. – Cá recebi a sua carta, e vejo que adivinhou a auctoria da
notícia da Gazeta. Sim, é minha; disse em poucas palavras o que sinto dos Versos e do
auctor” [ASSIS, 1946: 243]. Fica claro que, mesmo sem ter assinado a crônica, sua autoria
não escapa a um leitor atento ao estilo machadiano. Não é meu objetivo, porém, empreender
uma análise particular de cada crônica de Machado de Assis para constatar ou não que o autor
dá-se a ver na imprensa fluminense do século XIX, mas simplesmente rastrear a importância
de sua atividade jornalística para os seus narradores em primeira pessoa.
Após intensa produção nos periódicos do Rio de Janeiro, em 1897 Machado para de
escrever para os jornais sem uma razão aparente. Muitas são as hipóteses que buscaram
responder à abdicação do autor da sua escrita cronística, mas nenhuma delas definitiva, apesar
de encontrarem respaldo na própria biografia do autor. A alternativa proposta por Júlio França
e que a meu ver é a que mais se fundamenta é a de que “o abandono da produção cronística
pode ter sido um desvio deliberado em direção à narrativa ficcional. O escritor teria avistado,
no romance, condições de ação ética e de experimentação estética que a crônica não mais
propiciava” [FRANÇA, 2001: 4]. A escrita em primeira pessoa, porém, não seria a única
afinidade entre suas crônicas e seus últimos romances. Ela vai além, uma vez que o cronista
se confunde com os narradores dos romances posteriores ao encerramento de seu trabalho na
imprensa. Segundo Júlio França,
os romances escritos por Machado após 1897 — especialmente Memorial de Aires (1908) —
apresentam, contudo, uma estrutura narrativa com traços fortes da técnica da crônica
desenvolvida pelo autor. Também a escrita memorialística de Bentinho e a estrutura
fragmentada do diário do Conselheiro Aires guardam afinidades com a escrita cronística. No
caso de Esaú e Jacó, John Gledson já apontou, em Machado de Assis: Ficção e História,
como passagens do romance surgem de forma embrionária nas colunas da Gazeta de Notícias
[ibdi, ibden].
Parece finalmente acertado afirmar que, se por um lado Machado abandonou a
crônica, por outro seus romances acolheram o cronista. As quatro décadas dedicadas ao ato de
escrever crônicas possibilitaram que Machado transpusesse para seus romances as vantagens
de uma escrita em primeira pessoa, como o dialogismo com o leitor e a simulação de uma
intimidade que se justificaria pelos encontros semanais nas páginas dos periódicos; esta
familiaridade com seu leitor permite-lhe uma flexibilidade de por vezes distanciar-se do
enredo para tecer comentários paralelos à trama principal. A própria escolha do autor em
desenvolver capítulos curtos proporciona que o narrador, tal como o cronista, tire lições de
pequenos eventos ou mais amiúde se entregue a reflexões alheias à narrativa. Júlio França
comenta que, em Esaú e Jacó, ocorrem algumas variações de temas anteriormente trabalhados
28
nos jornais, como os episódios do irmão de almas, do ladrão preso pela polícia na rua e o
consequente protesto dos transeuntes, o monólogo do burro e as teorias espíritas de Plácido.
Não é apenas pelas digressões a que se permite o Conselheiro Aires, no entanto, que
ele se aproxima do cronista Machado. Lúcia Miguel Pereira, em estudo crítico e biográfico,
aponta no Conselheiro o alter ego de Machado. Para a ensaísta, criador e criatura se
confundem a tal ponto que “em 1892, quem escreve os folhetins da Semana, sob o
pseudônimo de Machado de Assis, é o velho Aires” [PEREIRA, 1955: 244-5]. Várias são as
características comuns entre ambos e não as enumerarei aqui, bastando lembrar, a título de
exemplo, que ambos tinham “tédio à controvérsia”. Em crônica de 31 de julho de 1892,
Machado escreve: “Duas coisas contrárias podem ser verdadeiras e até legítimas conforme a
zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarrão; os nossos irmãos do Rio Grande do Sul
acham que não há bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre
uma ou outra coisa? Não; segue-se o meio; o meio é tudo” [ASSIS, 1996:98]. Em Esaú e
Jacó, assim é descrito o velho Aires: “Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima
exatamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à
harmonia, senão por tédio à controvérsia” [ASSIS, 1997: 29].
A similitude entre autor e personagem apontada pela crítica especializada serve de
alicerce para solidificar a hipótese de Júlio França de que “Machado teria descoberto que a
ficção era uma maneira muito mais vigorosa e eficaz de se dizer o que se pensa” [FRANÇA,
2001: 64]. A solução encontrada pelo bruxo foi a de reportar-se da crônica para a ficção, sem
prejuízo do diálogo com seu leitor e dos comentários sobre eventos cotidianos e políticos,
como a Proclamação da República e a abolição da escravatura, presentes respectivamente em
Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
Esta equivalência anotada entre Machado e Aires pode despertar no leitor o desejo
traiçoeiro de perseguir um viés biográfico na literatura do romancista-cronista. Poder-se-ia
recorrer, por exemplo, mais uma vez, a sua correspondência – que, mais do que as crônicas, se
define pelo discurso do autor, sem qualquer “mascaramento” de um narrador ficcional – e
constatar que Carolina, sua finada esposa, serviu de modelo para D. Carmo, personagem de
Memorial de Aires. Mario de Alencar confessou-lhe ter ficado comovido com o
reconhecimento de Carolina no romance, ao que Machado respondeu-lhe, em carta de 8 de
fevereiro de 1908, solicitando a discrição do amigo. O leitor que enveredar por uma leitura
que busque unicamente suprir curiosidades biográficas, contudo, incorrerá num
empobrecimento dos aspectos estéticos e formais de qualquer obra, seja esta qual for, uma vez
que todo escritor empresta sua própria experiência de mundo para a criação de sua literatura e
29
também porque esta está para além de uma mera referencialidade à vida empírica do autor.
Saber que Carolina serviu de inspiração para D. Carmo serviria quando muito como
informação anedótica, sem que ela explique a personagem ou o romance. A tentativa de
estabelecer conexão entre literatura e vida biográfica, portanto, não deve servir como meio de
explicação literária. A percepção de que Aires tem muito de Machado de Assis e que o
narrador machadiano se equipara ao narrador-cronista ajuda-nos a compreender os meandros
estéticos do bruxo do Cosme Velho, sempre com o texto como horizonte de significados e não
com uma demonstração causal da obra pela biografia, como quando a crítica do início do
século XX afirmou que a escrita fragmentada de Machado se devia a sua epilepsia e a sua
gagueira. Contra esse “biografismo” improfícuo, o estruturalismo e o formalismo russo
decretaram a morte do autor, isto é, este era admitido apenas como um ser de papel, de
maneira a que o texto recebesse a primazia das atenções, sem correlações extratextuais, como
veremos no capítulo seguinte. Finalmente, a equivalência entre Machado e Aires não restringe
a leitura de Esaú e Jacó, por exemplo, a aspectos biográficos.
Costa Lima, irrestrito à equiparação entre autor e personagem, interpreta a divergência
entre Pedro e Paulo como a necessidade da sobrevivência individual de cada um em uma
sociedade que privilegia sobremaneira o eu, o sujeito. Como vimos no capítulo anterior, só a
partir do século XVIII podemos falar em autobiografia, porque é depois desta data que o
indivíduo se constitui e toma consciência de sua subjetividade, não se limitando a um modus
vivendi comum a todos os homens. As disputas entre os gêmeos são então necessárias porque
é latente em ambos a noção de que são sujeitos únicos e, se aparentemente são os mesmos,
ideologicamente é mister que se distingam um do outro para que suas identidades sejam
preservadas. Para Costa Lima, “o critério básico de uma sociedade fundada na individuação
de seus membros não poderia tolerar que Pedro diferisse de Paulo apenas pelo nome. (...) uma
sociedade que realça o indivíduo, e não sua identificação grupal, cria sobre ele uma pressão
constante e não declarada – forçar sua individuação” [LIMA, 1981: 104-5]. Obedecendo,
portanto, à expectativa de que cada cidadão seja singular, o autor tratou de fazer com que os
gêmeos discordassem entre si desde o ventre materno e que mantivessem a peleja por toda a
sua vida, um favorável à monarquia, outro entusiasta pelas mudanças operadas pela república.
É claro que o embate ideológico entre os irmãos é um excelente pretexto para o olhar do
cronista atento – para Costa Lima, Aires é uma hipérbole de Machado –, que não se furta de
tratar dos assuntos políticos do Rio de Janeiro de então. Não à toa Esaú e Jacó é o mais
político dentre os romances de Machado, que tem no caso da tabuleta do Custódio um
momento emblemático da mudança de regime.
30
Percebe-se, enfim, que no final do século XIX e início do XX a primeira pessoa está
presente em nossas letras, seja em autobiografias ficcionais, seja na equiparação do
Conselheiro Aires ao autor Machado de Assis, seja ainda na temática individualizante
envolvendo os gêmeos Pedro e Paulo. Podemos agora prosseguir e passar para o segundo
momento do eu selecionado na literatura brasileira.
O Modernismo é outro momento exemplar da prática da escrita de si em nossas letras.
De acordo com Silviano Santiago, percebe-se no melhor da prosa modernista uma veia
memorialística. Para ele, pode-se associar a escrita modernista às memórias porque “a
ambição era a de recapturar uma experiência não só pessoal como também do clã senhorial
em que se inseria o indivíduo” [SANTIAGO, 2002: 38]. Desse modo, nos textos modernistas
nota-se um maior interesse pela infância dos escritores, em que suas relações familiares
recebiam primazia. É o caso, por exemplo, de Infância (1945), de Graciliano Ramos. Aqui, os
anos infantis do menino Graciliano são abordados, mas sempre numa perspectiva
“proustiana”, que “tende a apresentar uma visão conservadora da sociedade patriarcal
brasileira, relatada através da inércia do principal protagonista (cujo protótipo é o funcionário
público)” [ibid, ibiden].
Mesmo não se considerando modernista e tecendo críticas agudas ao movimento,
Graciliano Ramos é um exemplo importante e bastante rico para minhas investigações,
porque, de um universo de dezenove livros publicados, apenas os quatro primeiros são de
ficção, e, destes, três narrados em primeira pessoa. Antes mesmo da publicação de suas obras
memorialísticas, o autor já se apresentava como personagem de ficção, ou melhor, emprestava
características suas a seus personagens e ambientava cenas de seus romances com as cores de
sua infância, como se percebe em Angústia (1936). A respeito de Vidas Secas (1938), único
romance escrito em terceira pessoa, em entrevista a Homero Senna, o autor afirma que “se
fosse analfabeto, por exemplo, seria tal qual Fabiano...” [apud SENNA, 1977: 55], uma vez
que só poderia escrever o que ele era e conclui dizendo que, se há diferenças entre seus
personagens, é porque ele, autor, não é um só. Até em um texto que a priori não apresentaria
traço autobiográfico algum, como o romance que trata dos retirantes nordestinos,
surpreendemo-nos com a presença autoral na pele do protagonista; se a primeira pessoa não
figura em Vidas secas, como ocorre em seus outros romances, ela é compensada, em certa
medida, pelas características do próprio autor emprestadas a Fabiano, de acordo com
declaração de Graciliano.
É importante destacar, contudo, que a percepção autobiográfica na ficção de Graciliano
ocorre a posteriori, isto é, só após a publicação de seus textos assumidamente
31
autobiográficos, é possível uma releitura de sua ficção de maneira a constatar que o autor já
nela figurava. Dito de outro modo, o leitor não tinha subsídios para, unicamente através do
texto, detectar dados biográficos de Graciliano e não havia nenhum dado extratextual que
despertasse a desconfiança do leitor de se tratar de um texto com premissas autobiográficas. O
pacto ficcional inviabilizava que seus leitores empreendessem uma leitura capaz de aproximar
autor e personagem, pois seria necessária a publicação de suas memórias para que estas,
enfim, lançassem nova luz sobre sua ficção. Não pretendo afirmar, em hipótese alguma, que
os quatro primeiros livros de Graciliano são memórias nem mesmo colocar sob suspeita seu
estatuto ficcional, mas apenas alertar que no seio de seus quatro romances a figura autoral já
estava presente, de modo a evidenciar, mais uma vez, a presença do eu transcendendo a
primeira pessoa gramatical.
Esse comportamento memorialista que se apresenta no Modernismo põe em xeque a
tradição do romance como fingimento e causa um problema para o crítico. Com o
deslocamento do fingimento para a memória afetiva, parece que não é mais possível
considerar apenas o texto na leitura, pois signos extratextuais e a própria vida do autor
assumem importância. Paulatinamente, dados alheios ao texto são convocados para o
entendimento da obra, o que poderia ser uma espécie de prenúncio do que atualmente se
chama autoficção, respeitando-se, evidentemente, suas particularidades, que veremos
detalhadamente no capítulo seguinte.
A presença das memórias do autor dentro da obra de ficção não é suficiente, entretanto,
para descaracterizá-la, mas agora se acresce, de forma ainda ingênua, a experiência empírica
do escritor num universo até então restrito à imaginação, à criação, enfim, à ficção. Se se
quiser compartimentar em conceitos estanques os textos ficcionais e os textos autobiográficos,
encontrar-se-á certa dificuldade, pois o próprio Lejeune afirmara que a “boa fé” do
autobiógrafo não garantiria a verdade de sua narrativa, mas esta era considerada verdadeira
mais por ele dizer sê-la do que pelo que tinha sido dito propriamente, ou seja, a autobiografia
não encerraria em si a verdade última dos fatos narrados, tampouco a ficção excluiria de suas
páginas possível referencialidade – autobiográfica ou não – ao mundo empírico, que
asseguraria a verossimilhança da narrativa. A esse respeito, Pierre Bourdieu afirmou que
produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente
de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com
uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária
não deixou e não deixa de reforçar [BOURDIEU, 1996: 185, grifo meu].
32
A colocação de Bourdieu sugere que a impossibilidade das memórias de Graciliano
Ramos representarem um relato verídico sobre seu passado as aproximaria da ficção, uma vez
que não haveria qualquer testemunho documental que atestasse sua referencialidade e que sua
narrativa, desse modo, seria fruto mnemônico e, portanto, criação sua. São inúmeras as
marcações textuais em Infância que explicitam o distanciamento do tempo da narração do
tempo da narrativa, como, por exemplo, essa passagem do conto “Um cinturão”: “Não
consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois,
imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui
sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos” [RAMOS, 2003: 35].
Este trecho é autoexplicativo. Os pontos oblíquos da memória do narrador foram preenchidos
de que forma? Como confiar em suas “vagas lembranças”? Se por um lado pode-se aproximar
um texto memorialístico da ficção por ele trabalhar com a inventividade de seu autor e com
seu descompromisso com a realidade factual e verificável, por outro é factível afirmar que
todo discurso é uma construção, até mesmo o historiográfico e o jornalístico, sem, por isso,
serem considerados também como ficção. A discussão teórica acerca do caráter ficcional de
um texto autobiográfico é extensa e não interessa aqui, portanto valho-me da intervenção de
Arfuch, citada por Klinger, que “cuida de não sugerir uma indiferenciação entre autobiografia
e ficção. Uma e outra se distinguem pelos horizontes de expectativas que geram” [KLINGER,
2007: 44, grifo do original]. Em síntese, lemos Infância como um livro de memórias porque
assim seu autor o designou, bem como Angústia é um romance, mesmo que consigamos
apontar características de seu autor em Luís da Silva, como fizemos com Aires e Machado.
Antonio Candido dedicou um ensaio bastante elucidativo sobre esse ponto de contato
entre a obra de Graciliano Ramos e a vida empírica do autor, e como esta pode ser lida em
seus romances. Para ele, existe uma divisória bastante tênue entre a obra ficcional de
Graciliano e seus textos memorialísticos, que possibilita um baralhamento das instâncias
discursivas, pois o que é ficção apresenta confissão e as memórias recebem tratamento
literário. Candido diz que
Luís é personagem criado com premissas autobiográficas; e Angústia, autobiografia potencial,
a partir do eu recôndito. Mas no processo criador tais premissas (...) receberam destino
próprio e deram resultado novo – o personagem –, no qual só pela análise baseada nos dois
livros autobiográficos podemos discernir virtualidades do autor [CANDIDO, 2006: 59, grifo
do autor].
Anos depois da publicação de Angústia, é possível uma releitura da obra, agora
consciente de que o autor se utilizara como inspiração para o seu romance. A infância de Luís
33
da Silva, narrada em Angústia, reaparece em seus contos de Infância, assim como alguns
personagens comuns às duas obras, como José Baía, por exemplo. As memórias infantis de
Graciliano causam um fenômeno curioso, uma vez que, para Diana Klinger, “o núcleo do
narrável na autobiografia e nas memórias – a experiência – equivale à transformação do
indivíduo” [KLINGER, 2007: 19]. Essa transformação narrada e publicada em Infância
ocasiona outra, que é a conversão de um texto até então puramente ficcional para uma
narrativa com indícios autobiográficos, que obriga os críticos a olharem com mais atenção
para o conjunto da obra do autor.
Os contos de Infância, a despeito de sua configuração memorialística, referencial,
possuem um acabamento e um rigor estéticos dignos da pena ramosiana. Para Candido,
talvez seja errado dizer que Vidas Secas é o último livro de ficção de Graciliano Ramos.
Infância pode ser lido como tal, pois a sua fatura convém tanto à exposição da verdade quanto
da vida imaginária; nele as pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas por
meio da interpretação literária, situando-as como criações [CANDIDO, 2006: 70].
Se Costa Lima exclui da literatura os textos autobiográficos por eles não serem ficção,
com a confissão de Graciliano Ramos parece surgir um problema quanto à classificação de
Infância como literatura. É certo que não se trata de um livro ficcional e desse modo não seria
literário, de acordo com o conceito de Costa Lima, mas o tratamento dispensado pelo autor e
o rigor estilístico com o qual ele foi escrito foram capazes de “confundir” até mesmo um
crítico do gabarito de Antonio Candido. Arriscaria a dizer que Graciliano eleva as memórias,
a escrita de si, de um texto “pobre” por estar preso à referencialidade, ao verificável, à
categoria de arte, de literatura, sem dever esteticamente nada à ficção, mesmo porque em
Infância o que temos não é uma mimese sem transformação, que para Marcuse [1977] seria
uma antiarte, mas sim a recriação de seu passado, respaldado por sua memória, por sua
lembrança.
Considerando o conjunto de sua obra, percebe-se que muito da literatura ficcional de
Graciliano poderá ser compreendida a partir de como o autor incorporou as vivências de sua
infância. Adepto da experiência como condição de escrita, Graciliano Ramos emprestará a
seus personagens suas práticas e visões de mundo. Mas carregá-los com suas próprias
experiências não estava mais sendo satisfatório para o autor. Parece que ele se sente
constrangido com a ficção – daí ter publicado apenas quatro romances –, como se o estatuto
ficcional impingisse uma desonestidade a seu público – ou a ele mesmo? –, da qual ele
quisesse se livrar. Resolve então confessar a matéria-prima de seu trabalho e recorre aos
34
textos autobiográficos. Ele não deixa, contudo, de atribuir-lhes aspectos literários, pois
Infância é autobiografia tratada literariamente; a sua técnica expositiva, a própria língua
parecem indicar o desejo de lhe dar consistência de ficção” [CANDIDO, 2006: 90]. A
confissão da qual se vale o escritor depois da publicação de Vidas secas é resultado do
“desejo de sinceridade [que] vai doravante levá-lo a retratar-se no mundo real em que se
articulam suas ações” [ibdi, p. 91].
A mescla entre realidade e ficção operada por Graciliano atingirá contornos mais
explícitos e menos artísticos no terceiro momento desse breve panorama da primeira pessoa
em nossas letras. A literatura escrita na década de 1970, devido à forte repressão imposta pela
ditadura militar, encontrou nos romances-reportagem uma alternativa contra a censura. Os
romances-reportagem eram, de acordo com Flora Süssekind, a retomada de casos policiais
que tiveram destaque na imprensa brasileira e que eram tratados como uma “reportagem mais
extensa que a de jornal” [SÜSSEKIND, 1984: 175]. Assim, as publicações que compunham a
literatura dessa década, via de regra, não apresentavam rigor estético tampouco
ficcionalização, sendo a semelhança com as notícias de jornal uma das causas da autora
afirmar ser esse o terceiro momento do naturalismo no Brasil. Depois das ciências biológicas
no fim do século XIX e das ciências sociais na década de 30, os anos 70, através das ciências
da comunicação, manifestam uma radiografia do país, de modo a se distanciar da ficção e se
aproximar da realidade.
A transformação da realidade em romance, do fato noticiado pela imprensa em texto
literário, exercia a função de desficcionalizar a literatura para que fosse criada a ilusão de que
as informações, censuradas pelo regime militar, tinham livre trânsito. O problema é que as
notícias fornecidas e esmiuçadas pelos romances-reportagem eram desimportantes para uma
sociedade oprimida politicamente. A ditadura via com bons olhos, inclusive, a publicação e o
sucesso desse tipo de texto porque dava a falsa impressão de haver liberdade de informação,
pois casos individuais e comuns eram divulgados, mas o que seria de interesse coletivo, como
a violência praticada contra quem se opusesse aos militares, permanecia censurado. Desse
modo, publicavam-se reportagens que comunicavam crimes praticados por pessoas que
estavam longe da vida política do país, como aconteceu com o assassinato de Leila Diniz,
noticiado pelo romance de Aguinaldo Silva, O crime antes da festa (1977), e a repressão
continuava a perseguir a esquerda brasileira, que lutava por um país democrático. Se os
romances-reportagem, por um lado, ofereciam uma ilusão de liberdade de imprensa, tão cara à
sociedade de então, por outro, de acordo com Flora Süssekind, silenciavam uma voz
35
discordante e dessa forma a ditadura permanecia com seus mandos e desmandos sem uma
oposição mais sistemática no âmbito das letras.
Apenas depois da anistia, com o retorno dos jovens políticos que haviam sido exilados
devido a sua atuação guerrilheira, é que textos como O que é isso, companheiro? (1978), de
Fernando Gabeira, começam a ser publicados. Heloísa Buarque de Hollanda aborda o sucesso
editorial dos romances que narram a história recente do país. O interesse do público pelas
narrativas autobiográficas dos ex-exilados devia-se à voz que é dada para quem sempre
precisou, forçosamente, se calar. As memórias de Gabeira, em certo sentido, são a memória
de toda uma geração que viveu e sofreu com os anos negros da ditadura militar. A sua
narrativa é já conhecida por todos, uma vez que ela fala do ontem, de um passado comum
recente que, até então calado, ganhava voz. Em suma, a autobiografia de Gabeira não é a
história de sua vida, e sim a história de vida de toda uma geração, que, se não viveu,
diretamente, os mesmos acontecimentos, indiretamente, sob a sombra do medo, os
considerava velhos conhecidos. Nas palavras da autora: “O leitor se identifica com o relato e
atualiza uma memória que também é a sua. Saber o que já se sabia. Vivenciar aquilo que não
nos permitíamos vivenciar” [HOLLANDA, 2000: 183].
Para que as narrativas dos ex-exilados alcançassem seu objetivo, ou seja, retratassem
fidedignamente os fatos acontecidos e outrora censurados, levando o público leitor a uma
identificação com a sua memória pessoal, era necessário que estes textos autobiográficos se
aproximassem dos romances-reportagem no sentido de uma desficcionalização do enredo, de
modo a fazer do texto uma radiografia precisa daquela sociedade, o mais próximo possível da
realidade. Em O que é isso, companheiro? não há, na ficha catalográfica, a indicação de se
tratar de literatura, mas sim história. A historiografia, todos sabemos, tem o compromisso de
ser factual, com fontes que atestam a veracidade do discurso, que é, inexoravelmente,
construção.
Eis como o narrador do romance procura assegurar ao leitor a veracidade de sua
narração: “Saí pelo Flamengo e creio que se estivesse num romance chutaria uma pedra e
atravessaria a rua de mão no bolso. Mas aquilo era o Brasil, eu não era um personagem e
havia muito o que fazer para estar à altura dos amigos que partiam” [GABEIRA, 1982: 46]. O
narrador é taxativo quanto à distinção de seu relato e o de um romance, entre sua participação
nos fatos (verídicos) narrados e o que se esperaria de um personagem de ficção, não apenas
para garantir ao leitor a realidade da narrativa como também para respeitar as demais pessoas
que vivenciaram os horrores cometidos pela ditadura militar. Mais à frente, outro trecho
36
exemplar da preocupação em dissociar o seu texto de uma ficção, ou ao menos de um texto
mais bem trabalhado:
Chega um momento em que o narrador precisa ajustar melhor suas linhas, tensionar melhor o
seu arco, tirar alguns efeitos técnicos. Todos esperam isto dele, sobretudo na hora da emoção.
Mas o narrador já aprendeu, com o tempo, que um livro, um longo relato, não é apenas uma
sucessão de histórias que se contam num punhado de páginas brancas. Um livro não se
controla. A notícia mais simples sobre o assunto foi esta:
AP161
URGENTE
RIO DE JANEIRO, 4 (AP) – O EMBAIXADOR
DOS ESTADOS UNIDOS NO BRASIL, CHAR-
LES BURKE ELBRICK, FOI SEQÜESTRADO
HOJE NO RIO DE JANEIRO.
UM PORTA-VOZ DA EMBAIXADA CONFIR-
MOU A NOTÍCIA À ASSOCIATED PRESS [GABEIRA, 1982: 137].
O início do capítulo que abordará o momento mais tenso do romance, o sequestro do
embaixador norte-americano, não deve sofrer qualquer intervenção do discurso, a ficção é
convidada a se manter à distância para que o narrador não perca o controle do livro. Um
momento de forte emoção como este, ao invés de propiciar ao narrador a utilização de “alguns
efeitos técnicos”, o leva a recorrer à simplicidade e objetividade de uma notícia, curta e
precisa, evitando que o texto se perca pela subjetividade do narrador, o que ocasionaria o
afastamento da realidade factual. Como Gabeira se propôs a escrever uma “autobiografia
coletiva”, qualquer dessemelhança com a situação empírica implicaria em pronta acusação
por parte dos demais participantes, testemunhas do fato, o que não ocorreria numa
autobiografia nos moldes clássicos, uma vez que ela se presta a contar a vida de um indivíduo
e não a de uma geração.
Silviano Santiago faz algumas considerações sobre as narrativas de tipo autobiográfico
dos ex-exilados em oposição às dos modernistas. Ele comenta que os textos autobiográficos já
eram uma herança dos velhos modernistas, como se observou na obra de Graciliano Ramos.
Há, porém, algumas distinções entre eles. Vimos que Graciliano não estava interessado em
contar apenas a sua história, mas ambientá-la no seio familiar. Isso não acontece com Gabeira,
que tinha o objetivo de narrar sua experiência guerrilheira, portanto um período de sua vida
adulta que prescinde de um contato mais estreito com sua família. No autor modernista, seu
primeiro livro memorialístico é inteiramente dedicado a sua infância; no jovem político,
esparsas referências a seus pais e a sua meninice em Minas Gerais. De acordo com Silviano, o
primeiro seria um texto memorialista, enquanto o segundo seria mais autobiográfico.
Outra distinção apontada por Silviano e relacionada diretamente à diferença entre os
modernistas e os ex-exilados é o conservadorismo. Os primeiros, ao recuperarem a memória
37
de uma sociedade patriarcal, não se apresentam como personagens interessados em mudar o
status quo, mas unicamente em dele fazer parte de forma inerte, passiva; os segundos, ao
contrário, excluem de seus relatos a família e os textos narram justamente as mudanças que
eles, autores, ansiaram em operar na sociedade. A memória de Graciliano remonta a sua
infância, de maneira a denotar uma compreensão mais conservadora da sociedade brasileira,
ao passo que a de Gabeira evoca experiências recentes que se chocaram com a situação
política do país através da luta armada, longe de querer conservar o que quer que fosse.
Se os romances-reportagem operaram uma desficcionalização da literatura assumindo
a função informativa dos jornais sob censura, em O que é isso, companheiro? o afastamento
da ficção ocorre para que fique registrada na história brasileira uma versão dos fatos que não
era a oficial, pois o autor fazia parte da oposição silenciada pelo governo. A necessidade de
uma proximidade factual o mais exata possível empobreceu esteticamente a literatura da
década de 1970. A esse respeito, Silviano Santiago diz que os romances dos ex-exilados
tinham mais interesse para a história do que para a história literária, pois, com sua publicação,
o historiador, que teria no futuro apenas a versão da história oficial, adquire o conhecimento
de outro discurso, capaz de apresentar nova interpretação para o período recoberto pelo
governo militar no Brasil. O que é isso, companheiro?, mais do que escrita de um indivíduo, é
testemunho geracional, seria uma “escrita de si coletiva”, justificando figurar nesse panorama
da primeira pessoa na literatura brasileira como exemplar dos textos dos ex-exilados.
Vimos uma pequena amostra de textos que privilegiam o eu – ficcional ou não – no
final do século XIX e durante todo o século XX. A presença autoral nessas obras não é
suficiente, no entanto, para se falar em autoficção, embora se possam verificar pontos de
contato. Antes, porém, de se refletir como e por que o autor se apresenta na autoficção,
convém observar o motivo que o eliminou dos estudos literários e como se processou a sua
morte.
38
3 A MORTE E O RETORNO DO AUTOR – A AUTOFICÇÃO
No capítulo anterior mencionei muito rapidamente a importância do estruturalismo e
do formalismo russo contra uma leitura meramente biográfica do texto literário. Vejamos
como e por que isso se deu, de maneira a justificar o tão citado retorno do autor na literatura
contemporânea.
De acordo com Diana Klinger, a morte do autor é o prosseguimento da crise do sujeito
postulada por Nietzsche, que desconstruiu a categoria cartesiana de sujeito. Para o filósofo
alemão, o eu não é causa do pensamento, pois este aparece quando quer, autonomamente, e
não quando “eu” quero. Desta maneira, o axioma cartesiano é posto em xeque, pois o
pensamento agora prescinde do eu. O século XX irá continuar a desconstrução do sujeito com
a morte do autor na literatura, que é o que interessa aqui. Para Foucault, “na escrita, não se
trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem fixação de um sujeito numa
linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está sempre a
desaparecer” [FOUCAULT, 1992: 35, grifo meu]. O estruturalismo justifica, pois, a morte do
autor na literatura suplantando a ideia de indivíduo e trabalhando primordialmente com
sistemas, pois “não há factos humanos que não sejam estruturados nem estrutura que não seja
significativa, isto é, que enquanto qualidade do psiquismo e do comportamento de um sujeito,
não preencha uma função” [ibdi, p. 75].
Pensando em literatura, pensamos também em língua, linguagem, e sob a ótica
estruturalista percebemos que o autor não faz parte da estrutura linguística e termina por ficar
à parte dos estudos literários, pois “é a linguagem que fala, não o autor” [BARTHES, 1988:
66], ou seja, é ela também um sistema e, desse modo,
a lingüística acaba de fornecer para a destruição do Autor um argumento analítico precioso,
mostrando que a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente
sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: lingüisticamente, o
autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa é senão aquele
que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito fora da
enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la [ibdi, p.
67].
Para Barthes, portanto, não há razão que justifique falar em autor quando da leitura de
um texto literário, uma vez que ele não passa de um “ser de papel”. Mesmo para os
estruturalistas, entretanto, a exclusão dessa categoria não é simples e desprovida de
problemas. Foucault percebeu que o banimento do autor em favor do discurso deixou
39
descobertas algumas propriedades que não podiam ser ignoradas. De modo a equacionar essa
lacuna e a melhor situar a produção textual na cultura europeia posterior ao século XVII,
Foucault substitui o autor pela função autor, que é “característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”
[FOUCAULT, 1992: 46]. Quatro são as particularidades da função autor enumeradas por
Foucault: a primeira é a função de propriedade, ou seja, com a possibilidade de punição de
quem escreveu algum texto que merecesse repreensão por seu conteúdo impróprio, era
necessário saber seu responsável, que teria também garantidos os bônus de sua produção; a
segunda seria uma espécie de genealogia do texto literário, pois um texto anônimo suscita
questões de autoria, sem as quais muitas vezes sentimo-nos incapazes de atribuir-lhe valor; a
terceira função é a de construção de um ser chamado autor, “seria no indivíduo uma instância
‘profunda’, um poder ‘criador’, um ‘projecto’, o lugar originário da escrita” [ibdi, pp. 50-1]; a
quarta e última é a alusão a um alter-ego, pois seria ingenuidade acreditar que as referências
presentes na narrativa são do e para o escritor. A partir do estruturalismo, portanto,
substituímos o autor pela função autor proposta por Foucault, pois
o autor, quando se crê nele, é sempre concebido como o passado de seu livro (...) Bem ao
contrário, o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma,
dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que
o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto é escrito
eternamente aqui e agora [BARTHES, 1988:68, grifo do autor].
O formalismo russo
8
também suspeitará de qualquer signo extratextual e considerará
os gêneros que trabalham com uma referencialidade explícita gêneros menores.
Autobiografias, crônicas, diários, memórias, confissões são todos textos que operam numa
zona limítrofe entre ficção e não-ficção, daí o estigma que ainda carregam de não serem
literatura. Seguindo os preceitos formalistas, os textos relacionados ao eu são marginalizados,
pois os formalistas, descartando qualquer informação alheia ao texto, atêm-se ao enunciado
para as possibilidades de significação. Considerando que o autor é o passado do livro, como
disse Barthes, e que este é escrito sempre no presente, momento em que nascem juntos o
escritor moderno e seu texto, a existência do escritor empírico não tem espaço. Pode-se
pensar, inclusive, para ratificar a morte do autor, que a literatura cria uma nova realidade, um
motivo a mais para que a referencialidade, se encontrada na ficção, impinja-lhe um status de
literatura menor. Segundo Herbert Marcuse, “a verdade da arte reside no seu poder de cindir o
8
Não discutirei as várias tendências do formalismo russo. Para o objetivo presente, como dito em nota anterior, o formalismo
restringe-se a uma leitura imanente da obra literária, desprezando informações extratextuais.
40
monopólio da realidade estabelecida (i. e., dos que a estabeleceram) para definir o que é real.
Nesta ruptura, que é a realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como
verdadeira realidade” [MARCUSE, 1977, p. 22, grifo do original]. Essa transformação, para
Marcuse, é a essência da arte, e classifica como antiarte a mimese sem transformação, a cópia
pura e simples do real. A ficção, de acordo com a estética marcuseana, contém mais verdade
do que a realidade de todos os dias. Essas breves reflexões ajudam a entender as ressalvas
feitas aos textos que recorrem a elementos extratextuais, uma vez que retirariam da literatura a
sua realidade intrínseca e a substituiriam por uma referencialidade “cronística”. A realidade
empírica nas autoficções, no entanto, sugerirá não uma arte menor, mas antes um novo
conceito estético, como veremos no capítulo seguinte.
É certo que, tanto com o estruturalismo como com o formalismo russo, a crítica
literária alijou-se da figura autoral, detendo-se unicamente ao texto. Mas mesmo Foucault
reconheceu que o espaço deixado pelo autor carecia de preenchimento e propôs a função autor
como sua substituta. Assim, o autor empírico permaneceria distante dos estudos literários,
obedecendo ao apagamento do sujeito e à crítica à noção de verdade postulada por Nietzsche.
Por outro lado, Barthes, mesmo defendendo a sua morte, reconhece a presença do autor “nos
manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na
própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a
obra” [BARTHES, 1988: 66]. Percebemos que a preocupação estruturalista não era
simplesmente a de matar o autor, mas a de impedir que ele fosse elevado como fim último do
texto literário, outorgando à obra sua autonomia necessária. Para isso, portanto, tratou de
eliminá-lo do circuito literário, ou melhor, de ignorar aspectos biográficos na análise textual.
Mas seria válida, ainda hoje, uma leitura essencialmente textual da literatura,
desprezando quaisquer signos extratextuais, entre os quais se encontra o autor? Diana Klinger
assim formula sua questão: “será que a destruição ‘da identidade do corpo que escreve’ não é
menos um produto da ‘escritura’ do que de uma concepção modernista da escritura?”
[KLINGER, 2007: 35, grifo do original]. E prossegue suspeitando que isso se deu em função
da autonomia da obra de arte, que recusaria a realidade externa, uma vez que a arte criaria a
sua própria. Resta saber se a literatura do início do século XXI admitiria a morte do autor e a
consequente exclusão da referencialidade nos limites da ficção. A admissão de Barthes da
presença do autor, entre outros, “nas entrevistas de periódicos” serve-me como ponto de
partida para a investigação da presença autoral na literatura deste início de século. Ana
Cláudia Viegas, nessa direção, afirma que “assistimos hoje a um ‘retorno do autor’, não como
origem e explicação última da obra, mas como personagem do espaço público midiático”
41
[VIEGAS, 2007: 15]. A professora lembra-nos que, a despeito da orientação formalista, nós,
leitores, não nos convencemos facilmente de sua morte, ansiando por sua presença física e
desejando contato com provas materiais de sua existência, como máquinas de escrever, livros,
objetos pessoais, fotos, correspondências trocadas sobre seu processo criativo, exemplares
autografados, etc. A participação de escritores, cada vez mais assídua, em programas de
televisão, em lançamentos de livros, em noites de autógrafos, nas feiras literárias ou mesmo
em congressos e palestras promovidos pelas universidades, dá voz e rosto aos até então
incógnitos autores. A imagem de escritores de gerações passadas, como Machado de Assis e
Graciliano Ramos, não tinha o alcance nem a penetração no grande público como a de
Bernardo Carvalho, por exemplo, que, ao mesmo tempo em que tem seu nome impresso nas
capas de seus livros, possui sua fotografia em revistas e jornais literários, impressos ou
digitais, além de ser facilmente encontrado em eventos cuja cobertura midiática é ampla e
irrestrita. Assim, torna-se quase impossível acreditar que o autor está morto, posto que temos
acesso a sua figura, a sua pessoa. Situar o autor no século XXI, isto é, no contexto da cultura
midiática, equivale a dizer que, “ao lermos um texto, não temos apenas o nome do autor como
referência, mas sua voz, seu corpo, sua imagem veiculada nos jornais, na televisão, na
internet. A obsessão contemporânea pela presença nos afasta da concepção barthesiana desse
autor como ‘um ser de papel’” [VIEGAS, 2007: 18, grifo do original].
Philippe Lejeune traça, em “A imagem do autor na mídia”, uma pequena e breve
historicização do crescente espaço ocupado pelo autor nos meios de comunicação. Segundo o
teórico, o texto literário suscitava o desejo do leitor em conhecer a pessoa responsável pelas
aventuras do livro e pelo prazer propiciado pela leitura. Como forma de suprir a ausência do
autor, o leitor podia recorrer a correspondências, biografias e depoimentos, no caso de
escritores já falecidos, e a perfis literários e caricaturas, no caso dos vivos. A partir do fim do
século XIX, Lejeune acrescenta as entrevistas às formas do leitor saciar o desejo de conhecer
o autor. No entanto,
de 30 anos para cá, a nova mídia tornou de fato possível organizar sistematicamente esse tipo
de encontro ou, antes, seu simulacro. Simulacro cujo fascínio é difícil evitar hoje em dia: se
cruzo na rua, com um autor que vi recentemente em “Apostrophes”, não só o reconheço, mas
tenho a impressão de que ele também vai me reconhecer... [LEJEUNE, 2008: 194]
Lejeune ainda comenta que no século XIX os periódicos literários forneciam poucas
ilustrações e que a fotografia do autor, quando aparecia, era nas edições das obras completas
e/ou em alguma biografia que fosse publicada. A pessoa do autor, normalmente, era
desconhecida do público, e dessa maneira o contato entre escritores e leitores não ultrapassava
42
as páginas do livro, gerando uma aura de mistério que rondava a figura sagrada do autor.
Atualmente não é isso o que ocorre. É corriqueiro deparar-se com a fotografia do escritor na
orelha do livro, mesmo que não seja uma edição comemorativa. Lejeune, inclusive, lembra
que as fotografias servem também como publicidade, trabalhando com a imagem do não mais
incógnito autor. Paulatinamente, o escritor, que era oculto sob os caracteres das páginas de
sua obra e anônimo no espaço público, recebe os holofotes da exposição midiática. “Na
televisão, enfim, voz e imagem se reuniram. Nada mais a ser imaginado: o autor do livro que
lemos ou, com mais freqüência, do livro que não lemos e que não leremos está ali, em carne e
osso e ao vivo” [LEJEUNE, 2008: 194]. Desse modo, o escritor torna-se conhecido a despeito
de seu trabalho, pois sabemos quem ele é, o vemos e o ouvimos na televisão, mas muitas
vezes não o lemos. Com a presença do autor frequentemente na mídia, aceitar a sua morte,
ignorá-lo, torna-se tarefa difícil, uma vez que ele se impõe presencialmente. Dessa forma, o
interesse pela figura autoral é crescente e a leitura formalista, pretérita. Italo Moriconi assim
ratifica a participação do autor na mídia:
No nível da sobredeterminação sistêmica, hegemonizada pelo circuito midiático, observamos
que no mercado de celebridades o autor empírico é hoje personagem com direito a poltrona e
copo d’água no estúdio de TV. A discussão da obra hoje é uma triangulação entre o autor
protagonista do espaço público midiático (autor, ator: máscara), o texto de referência por ele
escrito e o público em geral [MORICONI, 2006: 161].
A participação midiática do escritor, segundo Philippe Lejeune, subverte o interesse
original do leitor, no sentido de que era a leitura da obra que suscitava o desejo de conhecer o
autor, ao passo que agora é a sua presença midiática que desperta a curiosidade do leitor pelo
texto. Nesse sentido, é perfeitamente aceitável dizer que o escritor pós-moderno tem papel
ativo no mercado editorial, sendo também responsável pela vendagem de sua obra. O teórico
francês, nessa direção, diz que o autor “deve induzir o desejo de ler seus textos, ao passo que,
antes, era o texto que despertava a vontade de se aproximar dele” [LEJEUNE, 2008: 199].
Essa nova participação do escritor no mercado editorial, no entanto, demanda alguns
cuidados a serem tomados, como refletiu Silviano Santiago em “Prosa literária atual no
Brasil”. Para o crítico, o romancista brasileiro está em condições de se dedicar integralmente a
sua carreira de escritor, desde que, para não incorrer no erro crasso de subtrair a sua arte ao
mercado, ele se previna. É certo que o livro é uma mercadoria que tem normalmente seu valor
ditado pelo público, mas o fato do escritor brasileiro pertencer ao mercado editorial e se ver
“preso” à ciranda mercadológica, obriga-o a ter consciência do seu ofício, de maneira a não
colocar sob suspeita o valor literário de seu trabalho. Para Silviano Santiago, o escritor
43
brasileiro precisa se profissionalizar, mas isso não implica que ele abrace o viés
mercadológico e tenha como objetivo apenas o lucro, ao contrário, o romancista deve assumir
a função de crítico da atual sociedade de consumo. Em síntese, é necessário que haja “um
diuturno exercício de autocrítica que visa a impedir o romancista de ser o falso ou passar o
falso como verdadeiro” [SANTIAGO, 2002: 30].
Em entrevista ao jornal Rascunho, Bernardo Carvalho demonstra ter ciência da
importância das vendas para a literatura e discorre sobre o nivelamento operado pelo mercado
em transformar tudo em bens de consumo numa sociedade capitalista. Para ele, “o problema é
quando os escritores começam a funcionar nessa lógica de mercado. Se a literatura gira em
torno do mercado, ela sai empobrecida” [CARVALHO, 2007]. Estas declarações de Carvalho
vão de encontro às reflexões de Silviano Santiago e de Philippe Lejeune acerca da
participação do romancista como marchand de sua literatura. Mas, como Silviano já alertara,
a comercialização não deve ser o principal objetivo do escritor e Carvalho concorda com essa
premissa. Adepto de uma literatura de resistência, como se autodefine, ele escreveu Nove
noites baseado numa história real – o suicídio do antropólogo norte-americano Buell Quain.
Carvalho recorreu a este artifício depois do insucesso de público de seus livros anteriores e,
irritado, inseriu-se num nicho editorial mais seguro, mas sem abrir mão de seu compromisso
literário e, de certa forma, de uma crítica social. Assim ele explica sua motivação para Nove
noites:
Entendi o que as pessoas queriam: história real, livro baseado em história real. Pensei: "se é
isso que eles querem, é isso que eu vou fazer". Mas resolvi fazer algo perverso para enganar o
leitor, criar uma armadilha. O leitor acha que está lendo uma história real, mas é tudo mentira.
Tinha foto, autobiografia, etc. E não é que funcionou. O pior é que a minha intenção de criar
uma armadilha, de brincar, de ser irônico, foi lida em primeiro grau, não foi lida em segundo
grau. A maioria não percebeu que eu estava fazendo um jogo com aquilo [ibdi, ibden].
Nove noites obedeceu, portanto, à necessidade de Carvalho prender o interesse de seu
público, mas não se ateve ao verificável, ao vivencial, ao autobiográfico, enfim, à história real
reclamada pelos leitores, mas a mesclou com a ficção, tornando indecidíveis os pactos
autobiográfico e ficcional. Antes de aprofundar o que vem a ser a autoficção, contudo, resta-
me investigar o que motivaria o público a se interessar tanto por histórias baseadas em fatos
reais, se distanciando da ficção, ou melhor, reconfigurando o limite estanque entre ficção e
realidade. Para entender a autoficção, portanto, é mister que se faça uma digressão de modo a
localizar a literatura no seio da indústria cultural, da cultura de massas e da sociedade
midiática contemporânea, e como esta baralhou o estatuto ficcional com a realidade empírica.
44
Um estudo paradigmático sobre a indústria cultural é o de Adorno e Horkheimer,
pensadores alemães da escola de Frankfurt. Em “A indústria cultural: o Esclarecimento como
mistificação das massas”, os autores apresentam uma interpretação bastante pessimista da
cultura de massas, como se esta fosse responsável pelo desaparecimento da arte em favor do
capital, mas não é esse o meu interesse aqui. A discussão de que a arte sofreu um déficit
qualitativo com as novas formas de produção artística, sobretudo o cinema, é desimportante
para a minha pesquisa, que objetiva rastrear como se deu o crescente interesse do público por
fatos reais. Portanto, de modo a utilizar as reflexões dos pensadores alemães para a
investigação a que me propus, restringirei seu ensaio a um de seus enfoques, a saber: a
necessidade da indústria cultural da homogeneização do público, de formar uma grande e
compacta massa consumidora. Dessa maneira a arte perderia muito da sua subjetividade, de
seu caráter questionador, de reflexão social, de alteração do mundo; ela seria, como vimos
com Marcuse, cópia simples e pura do real.
O cinema surgiu como um meio de comunicação capaz de conjugar algumas
características importantes para os desígnios da indústria cultural. Por um lado, reunia, de
uma única vez, um grande número de espectadores, de modo a operar a massificação e a
homogeneização que ela pretendia; por outro, privilegiou, na construção da obra, o detalhe
técnico, o efeito, a performance, que é o que me interessa aqui. O espectador é antes
arrebatado pelo acabamento técnico apresentado do que por qualquer conteúdo que o filme
pudesse oferecer. Segundo Adorno e Horkheimer, a Ideia, a mensagem, o conteúdo, outrora
interesses da obra de arte, agora foram substituídos pelo acabamento operacional da indústria
cultural, pelo modo de verificabilidade do real, de maneira a não permitir o exercício da
subjetividade do público. Ainda segundo os autores, no cinema, a sobreposição de imagens é
de tal ordem que o espectador, se quiser permanecer atento ao filme, não pode se dar o luxo
de exercitar seu intelecto. A sucessão de imagens cinematográficas oferece ao espectador
contato e identificação direta com a realidade, velha conhecida sua. Pela primeira vez na
história, o público tem a oportunidade de ver o real tal qual o conhece e está habituado nas
telas sem qualquer intermediação. Para apreensão da realidade, o espectador não mais recorre
a sua imaginação, outrora motivada pela literatura, por exemplo; agora ele de fato a ,
objetivamente, “e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para
se identificar imediatamente com a realidade” [HORKHEIMER & ADORNO, 1985: 119].
Outra característica importante da indústria cultural para Adorno e Horkheimer é a sua
relação intrínseca com a diversão. Pensar o cinema como diversão no contexto proposto pelos
autores equivaleria à relação que o homem do final do século XX e início do XXI estabelece
45
com a televisão. Cansado de um dia produtivo de trabalho, tanto o espectador de cinema da
década de 30 quanto o de televisão do início deste século necessitam se refazer para a mesma
jornada de trabalho do dia seguinte. Para tanto, a programação exibida não deve oferecer-lhe
qualquer esforço intelectual, pois
divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em
seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo
da mais insignificante, de refletir em sua limitação o todo. Divertir significa sempre: não ter
de pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado [HORKHEIMER &
ADORNO, 1985: 135].
A indústria cultural fará das agruras do homem moderno o seu divertimento, para que
desta forma ele possa rir de si mesmo e adquirir forças para continuar sua jornada de trabalho.
Rir de uma situação semelhante a que ocorreu consigo na sua vida cotidiana, na sua vida real,
serviria para que ele se sinta vingado das humilhações por que passa diariamente e tenha
ânimo de enfrentá-las novamente no dia seguinte. Identificar as situações desagradáveis do
seu dia-a-dia como diversão no cinema/ televisão ajuda também que elas não sejam encaradas
como problema, de modo a facilitar a aceitação de sua realidade. O exemplo oferecido por
Adorno e Horkheimer é o dos desenhos animados: “Assim como o Pato Donald nos cartoons,
assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores
possam se acostumar com a que eles próprios recebem” [ibdi, p. 130]. A discussão política a
qual os autores propõem não será aprofundada, mas mencioná-la serve como mais um ponto
de contato oferecido pela indústria cultural entre o homem e a realidade.
Walter Benjamin, outro filósofo da escola de Frankfurt e contemporâneo de Adorno e
Horkheimer, dedicou-se a estudar as mudanças operadas nas artes no momento em que elas
começaram a se reproduzir tecnicamente. Diferentemente dos primeiros, Benjamin não se
preocupou em defender a tradição e a desmerecer a arte popular, mas esforçou-se por
compreender as inovações no campo das artes na era de sua reprodutibilidade técnica, despido
de purismos e de juízos de valor, mesmo porque “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a
reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida” [BENJAMIN, 1994: 171]. Ele
não estava preocupado, portanto, em tecer comparações qualitativas entre a arte que se
reproduzia manualmente e a arte que se reproduzia tecnicamente, de maneira a privilegiar a
primeira em nome da tradição, mas em estudar as particularidades desta última.
Em relação ao cinema, Benjamin aponta que sua dependência de um vasto mercado
consumidor pode também ser a causa para a recorrência em se mostrar a realidade, que seria a
forma encontrada de seduzir um maior número de pessoas, pois “se o filme não exterioriza o
46
tempo e o gosto contemporâneos e não mantém um diálogo imediato e eficaz com os
espectadores, está fadado ao fracasso ou à inexistência” [SANTIAGO, 2004: 113, grifo do
original]. Para Adorno e Horkheimer, a realidade era um artifício para um apagamento da
subjetividade do público; para Benjamin é tão somente o subterfúgio encontrado pelo cinema
para que ele possa cobrir seus custos. Num e noutro caso, todavia, a realidade está presente na
formação de um público.
Benjamin, entretanto, critica a tendência estéril do cinema de copiar a realidade
exterior, de modo a se transformar numa reprodução vazia de significados, uma vez que
anularia a diferença entre essência e aparência. Seria esse o erro cometido pelo cinema que o
impediria de ser considerado como arte. “O cinema ainda não compreendeu seu verdadeiro
sentido, suas verdadeiras possibilidades... Seu sentido está na faculdade característica de
exprimir, por meios naturais e com uma incomparável força de persuasão, a dimensão do
fantástico, do miraculoso e do sobrenatural” [WERFEL apud, BENJAMIN, 1994:177]. Há
aqui uma crítica notória à transposição simples e imediata da realidade, mas, mais do que
discutir a estética cinematográfica, para nós interessou constatar de que modo a indústria
cultural aproximou o público e a realidade na sociedade midiática do século XX.
É clara a tendência do cinema em ressaltar a realidade empírica dos espectadores de
maneira a massificar e homogeneizar o público, como refletiram Adorno e Horkheimer, ou de
tão somente encontrar um meio de não esmorecer diante da grandiosidade de sua reprodução
técnica, de uma verdadeira indústria, como apontou Benjamin. Mas a força da realidade
editada e copiada nas telas de cinemas em todo o mundo pela indústria cultural tem sua
antecessora igualmente poderosa na formação de um anseio do público por fatos reais: a
literatura. Antes do cinema e dos demais veículos de comunicação destinados à massa, a
literatura, depois da invenção da tipografia, já atingira um número de leitores significativo,
justificando a sua inclusão numa discussão sobre cultura de massa, antes mesmo do
surgimento do cinema, do rádio e da televisão. Mas a literatura, particularmente o romance
burguês, ofereceu outros ingredientes para o interesse crescente na realidade, como veremos a
seguir.
O vínculo existente entre o autor literário e a imprensa possibilita falar-se em cultura
de massa no século XIX, uma vez que o autor, normalmente entendido como artista, adquire a
responsabilidade de produção por demanda, a despeito de inspiração, de tempo ou de rigor
artístico. A produção em série, as colunas diárias ou semanais que o escritor assina, além do
alcance do jornal são razões óbvias do pertencimento da literatura como arte para as massas,
ou, de acordo com Edgar Morin, páleo-cultura de massa. Meu interesse está para além da
47
constatação de que, com o advento da tipografia e da imprensa, a literatura abrangeu um
número de leitores até então inalcançável. Minha hipótese é a de que a literatura, notadamente
o romance burguês, é a precursora da exposição pública e da figuração do eu comumente vista
no século XXI.
Um ponto importante para a proximidade em relação ao real, ocorrida com o
surgimento do gênero romance, é que a experiência privada adquire contornos públicos. Se
antes do romance os poemas épicos tematizavam conquistas de todo um povo, agora o herói
não é mais um mito e sim um burguês, do mesmo modo que o são também autor e leitor. Há,
portanto, uma identificação entre ambos, e a vida burguesa passará a ser mimetizada, o que
propiciará a publicação da intimidade dos personagens. Nas palavras de Ian Watt, há “a
transição da orientação objetiva, social e pública do mundo clássico para a orientação
subjetiva, individualista e privada da vida e da literatura dos últimos duzentos anos” [WATT,
1990: 154]. Agora, portanto, a vida burguesa será alvo mimético da literatura, de modo que os
leitores dos romances estarão diante da sua própria intimidade como jamais havia acontecido.
Até a vida burguesa aparecer nas páginas dos livros, ela estava segura e indevassável no
ambiente doméstico, mas, com o aparecimento do personagem burguês, a intimidade familiar
torna-se pública e flagrante, e desperta no leitor a curiosidade de acompanhar o enredo que, de
certo modo, é o seu, o de seu vizinho, etc.
Madame Bovary é exemplar da nova relação estabelecida entre a realidade e a fantasia.
Façamos uma análise rápida e concisa dessa permutação no romance de Flaubert. Nas
palavras de Morin,
a corrente bovarizante que é integrar o real no imaginário, o imaginário no real, se ramificará
de maneira múltipla: o “eu” do autor e o “eu” do herói poder-se-ão confundir e, finalmente, o
romancista procurará continuamente transformar o real na lembrança, transformar a si mesmo
por sua obra e na sua obra. Os romances burgueses, sob diversas formas, se tornam os tu e eu,
tu leitor que sou eu autor, eu autor que sou tu, leitor, tu personagem de romance que sou eu,
eu personagem de romance que sou tu, um jogo de perseguição, passos cruzados incessantes
entre a vida e o conto [MORIN, 1997: 58].
No romance, Ema é uma jovem campesina que entra em contato com uma realidade
que não é a sua, mas que a seduz. Seu comportamento passa a ser ditado pela forma como as
personagens dos romances que ela lê se comportam, e para ela torna-se sua realidade. Se
Adorno e Horkheimer condenavam a homogeneização do público que passaria a se comportar
como uma mesma e única massa sem subjetividade, aceitando qualquer imposição da
indústria cultural sem questionamentos, Ema Bovary acatava todo o modus vivendi da ficção
que lia como sendo uma verdade a seguir, e passava então a adotar a mesma forma de vida e
de comportamento dos romances.
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A identificação da personagem entre o romanesco e o real é tão intensa que, onde quer
que se encontre esse tipo de “confusão” entre realidade e imaginário, dá-se o nome de
bovarismo. Ema permite que suas leituras conduzam totalmente a sua compreensão de mundo
e a literatura é o que proverá a sua realidade, num processo de estetização similar ao
desempenhado pela televisão atualmente, mas, para o nosso fim aqui, deixarei em suspenso
essa discussão.
O romance enquanto gênero recebeu colaboração das alterações por que a sociedade
do século XIX passava para uma tematização mais sistemática da realidade. A crescente
modernidade oitocentista propiciava que a cidade dia a dia se tornasse mais visível. Benjamin
apontou que “a crescente falta de cor do vidro transparente atrai o mundo exterior para dentro
do mundo interior, o revestimento de espelhos das paredes conduz a imagem do mundo
interior para o mundo exterior” [BENJAMIN, 2006: 583], isto é, foi a própria modificação
por que passava a cidade que possivelmente iniciou o processo de voyeurismo, de
exibicionismo e da quebra de limite entre público e privado que temos demasiadamente
reforçado no século XXI.
A cidade, em 1857, testemunhou a primeira iluminação elétrica, de modo a tornar mais
visível o espaço público e de modo também a facilitar o aparecimento de um personagem
disposto a ver o espaço urbano, o flâneur. Com a iluminação, “a rua se torna moradia para o
flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas
quatro paredes” [BENJAMIN, 1989: 35]. Espaços público e particular paulatinamente
confundem-se. Gradativamente, o limite entre interior e exterior, entre público e privado vai
tornando-se mais tênue, principalmente se lembrarmos que as próprias janelas das residências,
em Flaubert, eram consideradas como o teatro da província, isto é, o próprio espaço privado
servia também de contemplação do espaço e da vida públicos. Basta recordarmos que Ema
punha-se frequentemente à janela para divertir-se com a “confusão dos campônios”. Se ela
divertia-se com a vida alheia, é a sua vida também, por outro lado, que irá entreter os leitores
de romances, num jogo en abîme entre observador e observado, entre público e privado.
Posso, portanto, aproximar a tematização da vida privada no romance burguês da
verificabilidade do real no cinema. Em um e outro caso há uma identidade entre a realidade
do público e a realidade mimetizada, mas não é possível dizer que em Madame Bovary haja
mimese sem transformação, cópia pura e simples do real. Como a literatura é, concordando
com Morin, páleo-cultura de massa, pode-se aproximar o realismo de Madame Bovary ao
retorno do real comum na literatura do século XXI, ou melhor, é perceptível que, desde o
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surgimento do gênero até os dias atuais, o real está presente literariamente, motivado pela
cultura de massas, pela indústria cultural. É esta
que mantém e amplifica esse “voyeurismo”, fornecendo-lhe, além disso, mexericos,
confidências, revelações sobre a vida das celebridades. O espectador tipicamente moderno é
aquele que se devota à televisão, isto é, aquele que sempre vê tudo em plano aproximado,
como na teleobjetiva, mas, ao mesmo tempo, numa impalpável distância; mesmo o que está
próximo está infinitamente distante da imagem, sempre presente, é verdade, nunca
materializada. Ele participa do espetáculo mas a sua participação é sempre pelo intermédio do
corifeu, mediador, jornalista, locutor, fotógrafo, cameraman, vedete, herói imaginário
[MORIN, 1997:70, grifo do original].
Percebe-se, enfim, que a literatura do século XIX apresentava ao leitor uma espécie de
espelho da sociedade, uma forma de tornar pública a intimidade burguesa. Os pudores da
sociedade oitocentista paulatinamente são postos à mostra e dessa forma atiçam a curiosidade
dos leitores, sequiosos por penetrar no até então indevassável – o recato preservado da
família. Assim, a literatura passa a ser uma forma de desnudamento do comportamento
humano na sua intimidade e, mimetizando a vida burguesa, oferece ao público a
verossimilhança realista. O cinema, como vimos, poucas décadas depois, também se valerá de
um realismo imediato, referente, facilmente perceptível e verificável como prolongamento do
que se observa nas ruas. Essa tendência de mostrar a realidade persiste até os dias atuais
graças aos avanços tecnológicos. Do mesmo modo que a técnica do cinema oferecia a
oportunidade de apreensão do real, a televisão e demais tecnologias aperfeiçoam e midiatizam
a realidade.
Chega-se, enfim, à atual sociedade midiatizada, que tem na televisão seu mais
importante e persuasivo formador de opinião, a maneira mais eficaz de atingir a massa. As
imagens oferecidas antes pelo cinema e agora pela televisão são o convite irrecusável para o
espectador estar em contato com a realidade. Seja pelas imagens em movimento ou pelas
fotografias, a invocação do real é inesgotável e inapelável. Não há como a celebridade, por
exemplo, negar o escândalo, pois uma fotografia publicada na revista atesta a veracidade da
notícia, do mesmo modo que o leitor não pode ignorar o autor, presente nos media; câmeras
de segurança espalhadas nas ruas e em lojas vigiam-nos e gravam-nos a todo instante; em
nossas próprias residências somos seduzidos pelo fascínio das webcams que possibilitam que
vejamos nosso interlocutor virtual, colocando-nos igualmente à mostra; reality shows
espetacularizam a vida privada que teve no romance burguês sua primeira aparição.
Desse modo encerro minha digressão retrospectiva para compreender o fascínio das
histórias reais nos leitores de Bernardo Carvalho e para justificar a autoficção como uma
modalidade em voga no cenário literário atual. A visibilidade que a iluminação elétrica e as
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vitrines conferiram à cidade no século XIX, o espaço privado burguês mimetizado em obras
de grande alcance proporcionando identificação entre leitores e autores, a realidade direta e
imediata mostrada nas telas de cinema e, finalmente, a participação de escritores no circuito
midiático legitimam o interesse flagrante pela referencialidade e provam o retorno do autor,
outrora morto pelos estruturalistas e formalistas.
Antes de prosseguir, porém, um breve parêntese. Não pretendo, em minha digressão,
afirmar que o “real” de Madame Bovary é o mesmo oferecido pelo cinema tampouco igual ao
da contemporaneidade. Meu objetivo foi tão somente mostrar que ele, a partir da cultura de
massa, está presente no imaginário do público, sem me preocupar em diferençar o realismo
literário do século XIX, que descrevia minuciosamente um detalhe aparentemente
insignificante para aumentar a verossimilhança do relato; do realismo cinematográfico, que
apreendia o real imageticamente e o devolvia para o espectador reconhecer a sua realidade; do
retorno do real contemporâneo, onde situo a autoficção.
Retomando a idéia de H. Foster de que o “retorno do autor” coincide com o “retorno do real”,
acrescentamos que, na autoficção, o real não retorna em termos de trauma e sim de “efeito”. O
“efeito de tempo real” produzido na escrita de si se revela agora como a função de um desejo
– uma “fome de real” –; o suplemento de uma falta que é o próprio real. A autoficção opera
(mais ou menos criticamente em cada caso) com essa economia dos desejos e dos discursos
operados pela mídia [KLINGER, 2007: 45].
Com o auxílio de Diana Klinger, fecho o parêntese.
Agora que se verificou como a cultura de massa despertou no público o anseio pela
realidade, pelo interesse em histórias baseadas em fatos reais, podemos nos deter num dos
aspectos do retorno do real – o retorno do autor e a autoficção.
Como se viu, o escritor hoje tem sua cadeira cativa em estúdios de televisão, valendo-
se da sua exposição midiática para seduzir leitores. Mas, não bastasse a sua participação na
mídia, ele também faz de si personagem de ficção, baralhando os conceitos de realidade e
ficção. Serge Doubrovsky foi o precursor do gênero. Como vimos no primeiro capítulo,
depois de ler o “pacto autobiográfico” de Lejeune e se deparar com a “caixa vazia” em sua
teoria, que desconhecia um exemplo de romance que apresentasse concordância onomástica
entre autor, narrador e personagem, Doubrovsky motivou-se a escrever Fils, romance em
primeira pessoa, cujo narrador também se chama Serge Doubrovsky, mas que é totalmente
ficcional. Para Lejeune, a coincidência de nomes remeteria para sua definição de
autobiografia, mas a esse romance Doubrovsky denominou autoficção. Em suas palavras, ele
não é “nem autobiografia nem romance, e sim, no sentido estrito do termo, funciona entre os
dois, em um re-envio incessante, em um lugar impossível e inacessível fora da operação do
51
texto” [DOUBROVSKY apud KLINGER, 2007: 47]. O autor estaria, a partir da autoficção,
portanto, transcendendo o espaço midiático e adentrando o terreno da ficção, isto é, divisaria o
limite entre a realidade, facilmente verificável, e a fantasia. O autor agora retorna
irrevogavelmente, uma vez que retorna extra e textualmente.
É importante que se distinga, porém, o autor que “retorna” do autor morto pelos
estruturalistas. Para Diana Klinger, “o autor retorna não como garantia última da verdade
empírica e sim apenas como provocação, na forma de um jogo que brinca com a noção do
sujeito real” [KLINGER, 2007: 44, grifo do original]. Desse modo, o autor contemporâneo é
responsável pela autoria do texto, sem, contudo, deter a autoridade pelo texto. Ele não será
mais o detentor da verdade textual, mas retorna, recuperando Barthes, “a título de convidado”,
“como uma das personagens, desenhada no tapete” [BARTHES, 1988: 76]. Assim, o pacto
autobiográfico de Lejeune, para esse autor que retorna, é improfícuo, uma vez que o referente,
a começar pelo próprio autor, não tem a garantia de uma narrativa pautada pela “boa fé” do
autobiógrafo. As alusões extratextuais da autoficção são mais ficcionais do que referenciais,
de modo a impossibilitar que o leitor consiga discernir a “verdade” da narrativa. Se se quiser
falar em pacto, Luciene Azevedo substitui o pacto autobiográfico de Lejeune pelo pacto
autoficcional, que “pressupõe sempre a ambigüidade da referência, a sutileza da imbricação
entre vida e obra, um leitor sempre em falso, driblado pela desestabilização de uma escrita de
si em outros” [AZEVEDO, 2007: 48]. O leitor já não pode mais confiar nem no narrador nem
no autor.
Como situar, então, essa nova modalidade de escrita de si? Para Lejeune, lembremos,
a autobiografia, gênero assumidamente referencial, é considerada literatura; para Costa Lima,
ao contrário, literatura é ficção, excluindo os textos referenciais do rol literário. A autoficção
é, concomitantemente, referencial e ficcional e, assim, como classificá-la? A distinção teórica
entre Lejeune e Costa Lima é conceitual e nenhuma das duas contempla a autoficção, que
residiria no indefinível, no inclassificável, pois abarca no mesmo espaço realidade e ficção,
resultando num texto híbrido. Leonor Arfuch [2002], entretanto, oferece uma saída para esse
impasse. Ao invés de pensar essa questão sob o prisma adotado por Lejeune e Costa Lima, ela
opta por deslocar este problema para o “espaço biográfico”. Para ela, “é neste espaço que o
leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes do registro referencial e ficcional
num sistema compatível de crenças” [KLINGER, 2007: 44, grifo do original], isto é, o leitor
poderá, sem impeditivos, transitar entre realidade e ficção acerca da identidade autoral e a
distinção entre ambas será fornecida pelos horizontes de expectativas que causar. Por um
lado, Arfuch aproxima-se de Lejeune ao dar ao leitor a responsabilidade de conferir ao texto o
52
real, sem, no entanto, nenhum pacto prévio de leitura; por outro, dele se distancia ao retomar
as considerações de Bakhtin, de que é impossível que coincidam vida e narrativa. O termo
“espaço biográfico” é postulado por Arfuch
não como uma enumeração de tipos de relatos, mas como confluência de múltiplas formas,
gêneros e horizontes de expectativa. Mais do que uma especificação particular de cada
gênero, importaria a interatividade entre eles, tanto quanto à circulação de modelos de vida
como a aspectos formais dos discursos [VIEGAS, 2007: 4].
Desse modo, a discussão se um texto autobiográfico pode também ser um texto
literário ou vice-versa perde o sentido, uma vez que a realidade que residiria na autobiografia
não é mais uma realidade inquestionável, única, total. Pensar quem é o sujeito que retorna na
contemporaneidade, quem é o autor da autoficção, implica sabê-lo como um sujeito híbrido,
fragmentado, disperso nos vários discursos midiáticos de que faz parte, pois esse autor não se
mostra apenas textualmente, mas também e em igual medida na televisão, em blogs, em
entrevistas, talk shows, congressos. A qual “verdade” discursiva, portanto, deve-se associar o
autor contemporâneo? À de seus romances? À de sua fala em um periódico acadêmico? À de
um bate-papo informal em um programa de variedades? A todas essas “verdades”,
responderia eu, uma vez que Arfuch “não considera esses espaços como dissociados, mas
numa permanente dinâmica de interação. O biográfico se definiria, assim, justamente como
um espaço intermediário, de mediação ou indecidibilidade entre o público e o privado” [ibdi,
ibden].
Para Diana Klinger, a autoficção, nesse cenário, surge relacionada com a exposição
midiática, com um certo narcisismo, mas de forma a refletir criticamente sobre ele, como o
fez Bernardo Carvalho ao escrever Nove noites. Para ela, a autoficção implica “um
questionamento das noções de verdade e de sujeito” [KLINGER, 2007: 47, grifo do original]
e, assim, tece algumas considerações sobre o sujeito e a crise da representação.
É a partir da crítica à noção de representação, de Derrida, e de sujeito, de Nietzsche,
que ela formulará o seu conceito de autoficção, que será também o adotado aqui. Com o
pensamento de ambos como norte, é possível afirmar que o sujeito que retorna nessa nova
modalidade de escrita de si não é o que outrora embasava a autobiografia. Nesta, o narrador-
autor contava a sua vida linearmente e em momento algum o seu relato era posto em xeque; o
leitor, diante de uma autobiografia, deveria acreditar ler a verdade dos fatos. Agora não é mais
isso o que ocorre. A verdade desapareceu, está perdida entre todas as contradições e os
disparates. Não se trata mais de disputar conceitualmente, como fizeram Costa Lima e
Lejeune, se um relato de vida é ficção por ser construção discursiva ou se corresponde à
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realidade empírica tout court. Não é mais a vida do autor, enfim, que interessa na autoficção.
Os dados referenciais impressos no texto, antes de procurarem estabelecer uma conexão entre
a vida e o autor, servem como a construção do mito do escritor, de uma persona. Se o autor
constrói um mito, ele não está nem dizendo a verdade nem faltando com ela. A realidade que
se apresenta na autoficção difere da narrada na autobiografia porque ela não é uma realidade
prévia ao discurso, mas, ao contrário, ela se constrói concomitante ao discurso. Nesse sentido,
pode-se pensar o autor da autoficção como performático, ou seja, o autor estaria construindo a
si e ao seu texto ao mesmo tempo. Essa construção de um mito, de uma invenção de si,
aproxima a autoficção do discurso psicanalítico, pois “o sentido de uma vida não se descobre
e depois se narra, mas se constrói na própria narração: o sujeito da psicanálise cria uma ficção
de si. E essa ficção não é verdadeira nem falsa, é apenas a ficção que o sujeito cria para si
próprio” [KLINGER, 2007: 51-2, grifo do original]. É a partir dessa percepção psicanalítica
da subjetividade que Doubrovsky formula o seu conceito de autoficção.
A participação midiática do autor, sua exposição pública, faz com que ele esteja
performando um papel em várias frentes, não apenas em sua literatura, ou seja, a construção
de um mito se dá na interseção das várias falas de si, seja a ficção, as entrevistas, as crônicas,
os blogs, as entrevistas, as palestras, etc. Dessa maneira, o autor que se inventa na autoficção
não independe de seus outros discursos e de suas demais atuações. A sua construção deve
obedecer, portanto, ao mosaico de aparições que fragmentam o sujeito, inviabilizando uma
única verdade. Nessa direção, Ana Cláudia Viegas afirma que
nas “escritas de si” contemporâneas, como os auto-retratos que circulam na web e as
autoficções dos romances em primeira pessoa, o sujeito se cria ficcionalmente e encena sua
dimensão empírica. A criação de auto-imagens aproxima vida e arte, ficção e realidade,
estabelecendo com o leitor, em vez de um “pacto autobiográfico”, um “pacto fantasmático”,
cujo contrato de leitura não promete a revelação de verdades, mas o desdobramento do autor
em diversos personagens [VIEGAS, 2006: 21-2].
O retorno do autor, nessa perspectiva, é uma continuação à crítica do sujeito no
sentido de que é impossível definir o sujeito da autoficção. Sabe-se que o narrador de Nove
noites, por exemplo, possui algumas características do autor Bernardo Carvalho, mas é
impossível, a partir de algumas coincidências biográficas, saber se as demais referências do
romance são verdadeiras ou são ficção. Talvez fosse mais acertado dizer que são autoficção.
Textualmente o leitor não encontra respostas, apenas dúvidas, pois, como interroga Fokkema,
no pós-modernismo, “de que modo poderia um código que questiona as distinções correntes
entre verdade e ficção, entre espírito e matéria, entre o agora e o depois, o aqui e o ali,
convidar a qualquer tipo de explicação textual?” [FOKKEMA, s/d: 74]
54
Para finalizar, a autoficção define-se
como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem como referente o autor, mas
não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente.
Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de construção do discurso, ao mesmo
tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os seus
modos de representação [KLINGER, 2007: 62, grifo do original].
Depois dessas considerações sobre a impossibilidade de se definir o sujeito que se
apresenta na autoficção e de verificar como o eu linear, empírico e referencial da
autobiografia cedeu espaço para o eu híbrido e fragmentado da autoficção, podemos avaliá-lo
no romance Nove noites e analisar a construção conjunta do autor e do texto.
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4 A AUTOFICÇÃO NO CAMPO DA ESCRITA DE SI: NOVE NOITES
4.1 Para a produção da ficção a matéria-prima é a verdade
O leitor que se interessar em adquirir Nove noites o encontrará na seção de literatura
ou de ficção das livrarias; dentro do livro, na ficha catalográfica, há a indicação de ser um
romance brasileiro. Esses são dois indicativos de se tratar de um título de ficção, sem alusões
diretas, portanto, à realidade. Com essas informações, o leitor teria garantido o estatuto
ficcional da obra e sua leitura obedeceria ao limite pré-estabelecido entre ficção e realidade,
ciente de que se encontraria no espaço destinado à imaginação, à criação, ao onírico. Mas se o
pacto ficcional é tão confiável, por que razão o texto se inicia com um aviso ao leitor? Manoel
Perna dá o alerta: “Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que
preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que
o trouxeram até aqui” [CARVALHO, 2002: 7, grifo do original]. Estas são as primeiras
linhas da narrativa e sugeririam ao leitor ingênuo se tratar tão somente da introdução de
elementos constitutivos para o desenvolvimento do enredo, sem qualquer alusão a sua
ficcionalidade ou veracidade. Não é isso, porém, o que ocorre.
O leitmotiv do romance é o desejo despertado no narrador-jornalista
9
de descobrir o
que motivara Buell Quain a se suicidar no Brasil durante sua estada entre os índios Krahôs,
em 1939. Depois de travar contato pela primeira vez com o antropólogo através de um artigo
de jornal, obsedou-se em desvendar o real motivo do suicídio, empreendendo uma
investigação detetivesca com entrevistas, viagens e consultas a arquivos e documentos.
Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor
idéia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, na
manhã de 12 de maio de 2001, um sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às
vésperas da Segunda Guerra. O artigo saiu meses antes de outra guerra ser deflagrada [ibdi, p.
13].
É, portanto, um fato real que dá suporte para a criação do romance. A esse primeiro
fato verídico somam-se outros, autobiográficos
10
ou não, como, por exemplo, a referência ao
atentado às torres gêmeas, nos Estados Unidos, e a inclusão de fotografias no interior do
romance. Desse modo, fica mais confuso o limite que se deve estabelecer entre ficção e
realidade. É claro que a inserção de um episódio histórico não é suficiente para desestabilizar
9
Como se verá no próximo tópico, são dois os narradores de Nove noites, que alternam seus relatos: o primeiro é Manoel
Perna, contemporâneo de Buell Quain, e o segundo é um narrador inominado, que, como o autor, também é jornalista.
10
A construção do narrador com características autobiográficas será analisada no próximo tópico.
56
uma leitura ficcional, basta recordarmos mais uma vez Machado de Assis, que em sua ficção
tratou de temas como a Proclamação da República, entre outros, sem com isso colocar em
suspenso o caráter ficcional de sua obra. Em Nove noites, no entanto, há uma constelação de
dados empíricos que concorrem para tornar ambíguo o romance. As fotografias servem como
a ratificação da existência real dos personagens, agora pertencentes também à ficção. A
própria fotografia do autor quando criança, ao lado de um índio no Xingu, na orelha do livro,
é um signo extratextual importantíssimo, uma vez que o narrador-jornalista também esteve
entre os índios na sua meninice e, quando adulto, voltou a ter contato com os indígenas.
“Ninguém nunca me perguntou, e por isso nunca precisei responder que a representação do
inferno, tal como a imagino, também fica, ou ficava, no Xingu da minha infância”
[CARVALHO, 2002: 60]. Sobre esta fotografia, poderíamos objetar que se trata tão somente
de uma fotografia usualmente utilizada para divulgação da obra, mas as coincidências entre
autor e narrador não mais permitem essa afirmação ingênua.
Buell Quain, por outro lado, morto em 1939, não é um nome conhecido do grande
público, que poderia então iniciar uma leitura formalista
11
e considerá-lo apenas um
personagem dentro da ficção, ignorando sua existência real, mas as suas fotografias no
interior do livro inviabilizariam a compreensão do etnólogo como figura unicamente
ficcional. A indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso, entre a história e a ficção
acompanhará o leitor ao longo de todo o romance.
Na pesquisa realizada para descobrir o motivo do suicídio, o narrador-jornalista não
mediu esforços para chegar a uma solução que satisfizesse sua busca frenética pela verdade,
mas a concluiu com algumas lacunas impossíveis de serem preenchidas e, para supri-las,
valeu-se de sua imaginação. A ficção, então, serviria como um complemento para a realidade,
no sentido de que ela possibilitaria uma conclusão para a pesquisa que, se dependesse das
informações empíricas, terminaria inconclusa. A solução encontrada pelo autor foi fazer de
Manoel Perna um dos narradores da trama, como afirmou em entrevista a Flávio Moura: “esse
personagem, o Manoel Perna, é uma espécie de desejo do autor de resolver as lacunas que
não são resolvidas pela pesquisa. Várias pistas me induziam a certas conclusões, mas eu não
tinha certeza. Precisava de um negócio que fechasse. E a única pessoa que pudesse ter visto
era ele” [CARVALHO, 2002a, grifo meu]. Mas, para que houvesse verossimilhança, esse
personagem, que também é um personagem real, passou por uma espécie de “correção
literária”, no sentido de que o seu estilo “empolado” não se harmonizaria na voz de um
11
A respeito de uma possível leitura formalista de Nove noites, falarei com mais acuidade quando tratarmos da estética
autoficcional, em outro tópico.
57
barbeiro (sua verdadeira profissão), portanto o autor o ascendeu a engenheiro, de acordo com
entrevista a Flávio Moura. Segundo Carvalho, essa foi a única alteração que Manoel Perna
sofreu. E é justamente ele – um personagem real que precisou se adequar à ficção – o
responsável por guiar um futuro pesquisador da vida de Quain pelos caminhos incertos da
verdade. O testamento de Manoel Perna é fundamental para o romance porque será através
dele que o leitor receberá instruções de como chegar à verdade.
Mas resta questionar o que motivaria narrador e leitor a irem em busca da verdade tão
obsessivamente dentro do ambiente ficcional. Como vimos no capítulo anterior, desde o
surgimento do romance burguês, a realidade ocupa as páginas da literatura. Mas, se em
Madame Bovary, por exemplo, era possível que a leitura do romance despertasse no leitor o
reconhecimento da sua realidade empírica, em momento algum essa realidade era tida como
“real”, ou seja, ainda que ela servisse como recurso mimético, seu estatuto ficcional
mantinha-se seguro. Em uma palavra, o realismo do romance era uma chave para se obter
verossimilhança, sem, com isso, colocar em xeque o fingimento, a ficção. Em Nove noites, a
realidade assume nova importância e invade o terreno da ficção de modo a ganhar força e
reivindicar posição de status. Mas, em Bernardo Carvalho, o convívio entre realidade e ficção
se baralha a tal ponto que fica impossível delimitar onde uma termina e inicia a outra. O
próprio autor, questionado sobre o que é ficção no romance, responde que
a indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido
em dizer o que é real e o que não é. Isso tem a ver com meus outros livros. Também neles há
um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso
isso fica mais nítido porque há referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas
aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, é tudo ficção [CARVALHO,
2002a].
É preciso relativizar e entender a afirmação de Carvalho. Na condição de romancista, é
natural que ele declare que tudo em seu romance seja ficção, mesmo porque não cabe a ele
explicar a obra. Distinguir os fatos verdadeiros dos fictícios caberia à crítica e aos leitores;
estes encontram terreno fértil para uma investigação particular, uma vez que o romance é
também metalinguagem, permitindo que, concomitantemente à pesquisa do narrador-
jornalista pela verdade a respeito do suicídio, o leitor também inicie a sua em busca dos dados
reais no ambiente ficcional; aquela, por sua vez, se limita a questionar por que é
imprescindível saber o que é verdade, ou melhor, mune-se teoricamente para assegurar que a
Verdade é relativa, ou que em Nove noites, de acordo com Diana Klinger, “o romance
desestabiliza os próprios conceitos de ‘realidade’ e ‘ficção’” [KLINGER, 2007: 148].
58
Como vimos, o romance inicia com o alerta de Manoel Perna. Desde as primeiras
linhas da narrativa o leitor está ciente de que se encontra em um entrelugar em que “a verdade
está perdida entre todas as contradições e os disparates” [CARVALHO, 2002: 7, grifo do
original]. As cartas de Manoel Perna possibilitam um jogo metalinguístico, pois as pistas
fornecidas sobre a verdade subjacente ao suicídio são também endereçadas ao leitor. O
narrador-jornalista, por um lado, quer alcançar o verdadeiro motivo do suicídio do
antropólogo; o leitor, por outro, diante de uma leitura repleta de fatos verídicos, tentará seguir
as mesmas pistas para saber o que é realidade e o que é ficção. A esse respeito, Flávio
Carneiro afirma que “em várias passagens, o testamento do engenheiro é de certa forma
metalinguagem, podendo ser lido como uma espécie de testamento que o próprio autor
endereça a seus futuros leitores, num sinal da cumplicidade que se pretende estabelecer desde
o início” [CARNEIRO, 2005: 142].
O autor estaria usando a voz de Manoel Perna para passar orientações ao leitor? Se o
engenheiro é “o desejo do autor de resolver as lacunas que não são resolvidas pela pesquisa”,
é aceitável que ele sirva como uma ponte entre a realidade inacessível em 1939 e a construção
de uma nova verdade no ano de 2002, resultando num texto híbrido. Se o leitor tem o objetivo
de decifrar o mistério do suicídio, é necessário ter a consciência de que ele não está diante de
uma biografia de Quain, que buscaria relatar os fatos históricos o mais próximo possível do
ocorrido, mas sim diante de um romance, cujo horizonte de expectativa é outro. Nessa
direção, não importa mais a qual verdade o romance vai remeter, mas sim que o romance
oferece a sua verdade sobre o fato. Manoel Perna, ainda na primeira carta, diz que o leitor
terá que contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim
como tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa.
As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de
interpretá-las” [CARVALHO, 2002: 8, grifo do original]. A confiança cega nesse narrador,
por ele ter convivido com Quain e desse modo ter a possibilidade de se aproximar da verdade,
contrariaria seus próprios lembretes, que estão sempre a flertar com a ficção, como na carta
seguinte: “Falou dos Trumai, e eu os imaginei. Tudo o que ele contou daí em diante eu
procurei imaginar” ou nesse trecho, pouco mais à frente: “O que agora lhe conto é a
combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim
que imaginei o seu sonho e o seu pesadelo” [ibdi, pp. 46-7, grifo do original]. O aviso está
dado. A quem se interessar apenas pela realidade estrito senso não diga que não foi prevenido,
afinal “o sonho de uns é a realidade dos outros” [ibdi, p. 48, grifo do original]. O suicídio de
Buell Quain, finalmente, fato histórico que causou comoção no meio científico de então,
59
adquire uma configuração ficcional, cujo resultado é um texto híbrido, de limites indecisos e
de possibilidades outras, pois Perna deixa-nos imaginar o que nunca poderá nos contar ou
escrever.
Manoel Perna, no entanto, não é o único a tematizar a problemática entre ficção e
história. O narrador-jornalista, depois de tomar conhecimento do antropólogo num artigo de
jornal, que é um meio que prima pela veracidade de suas notícias, tratou de aprofundar seus
conhecimentos sobre o ocorrido, e, logo de início, a suposição era a de que seu interesse fosse
literário. Foi o que primeiro deduziu a antropóloga que escrevera o artigo, não sendo
contrariada pelo narrador-jornalista. Segue-se a inclusão de vários personagens reais no
romance, a começar por Buell Quain, a autora do artigo, Claude Lévi-Strauss, Heloísa Alberto
Torres, Ruth Landes, Luiz de Castro Faria, entre outros. A participação desses personagens dá
mais credibilidade à narrativa, pois são pessoas reconhecidas em seus campos de atuação
profissional. Castro Faria, em conversa com o narrador-jornalista, a respeito de Buell Quain,
disse-lhe que “ele sempre viveu essa obsessão: não parecer e na realidade ser. Ele tentava
preservar a vida privada de todo contato exterior” [CARVALHO, 2002: 37]. Numa sociedade
que preza bastante a divulgação da intimidade, como a sociedade midiática do século XXI,
esse tipo de recato é interessante, principalmente num romance que tematiza o interesse pela
vida alheia. Do mesmo modo que o narrador-jornalista quer descortinar o passado e tornar
pública a história de Quain, ele em igual medida oferece a sua própria intimidade,
autoficcionalmente.
Sobre a intimidade autoficcional, vale a pena destacar que, para Bernardo Carvalho,
Nove noites é o livro em que ele menos se sente exposto. A princípio, isso seria um
contrassenso no sentido de que, se o livro é autoficcional, é porque está recheado de
referências autobiográficas, isto é, com mais presença autoral. No entanto, o eu do romance
encena um mito, uma persona e, nesse sentido, se distancia da pessoa do autor. Nas palavras
de Carvalho, “de todos que escrevi, talvez esse seja o livro em que eu me sinto menos
constrangido. Como se nesse tivesse menos verdade que nos outros. Os outros são mais eu do
que ‘Nove noites’” [CARVALHO, 2002a]. Essa declaração nos remete para a ideia corrente
de que, para se chegar ao verdadeiro eu do autor, se faz necessário lermos sua ficção. Em
última análise, a ficção apresentaria mais verdade do que a verdade expressa
intencionalmente.
Se o leitor aceitar o desafio e começar a brincar de detetive, perceberá semelhanças
entre o antropólogo e o narrador-jornalista. Este, depois de narrar suas aventuras com seu pai
pelo interior de Goiás em viagens à fazenda que ele adquirira, diz que “Buell Quain também
60
havia acompanhado o pai em viagens de negócios” [CARVALHO, 2002: 64]. Mais à frente,
em outra cena, novamente se assemelha ao antropólogo suicida: “Não consegui entender nem
os laços de sangue nem o parentesco simbólico entre os membros da tribo. Era muito
complicado, e meus objetivos não eram antropológicos. O próprio Quain teve dificuldades em
entender essas relações” [ibdi, p. 98]. O jogo começa a ficar mais interessante aqui, pois, se
Buell Quain é o objeto da pesquisa, metalinguisticamente oferece subsídios para que o leitor
entenda que ele pode ser a senha para se chegar ao autor. Mas, se a forma de se chegar à
verdade sobre o suicídio é lançar mão da imaginação, da ficção, da oitava carta, a maneira de
se chegar ao autor fica perdida no labirinto autoficcional. No primeiro caso a realidade
possibilita a ficção; no segundo, a vida empírica se dilui em mito.
Não à toa o narrador-jornalista mantém a justificativa do seu interesse ser a escritura
de um romance. Sua obsessão por Quain só se explicaria literariamente, como se a única
função da realidade fosse servir como matéria-prima para a criação de uma realidade outra.
Desde a Grécia clássica já se pensava sobre a imitação da realidade. Com Aristóteles [1989]
aprendemos o que é mimese e como o poeta se distingue do historiador por escrever não o que
aconteceu, mas o que poderia acontecer. Platão, por sua vez, anos antes de Aristóteles tecer
suas considerações estéticas sobre a representação da realidade nas artes, já expulsara o poeta
de sua república por rejeitar a poesia imitativa, pois esta, por ser cópia da cópia, criaria
“aparências inteiramente desligadas da verdade” [PLATÃO, 1966: 394]. Em Carvalho, a
realidade não é imitada no romance, ela é o romance. Assim, não haveria a preocupação
antiga de se definir o que é real e o que é imitação. Por que o narrador-jornalista se
preocuparia em desenterrar o passado se não fosse para escrever um romance? Que outra
utilidade a verdade sobre Buell Quain teria? O romance, como uma crítica social à
visibilidade que o eu se dá no século XXI, procura refletir sobre o desejo pelo real e sobre a
espetacularização da intimidade.
Uma cena de particular significação é a cena em que o narrador-jornalista tenta, em
vão, explicar para um índio qual é o seu interesse em desvendar o suicídio de Quain. Diante
da preocupação dos anciãos da tribo em se remexer no passado, o narrador-jornalista
empenha-se em tranquilizá-los. Mais do que uma incompreensão em função de diferenças
culturais, essa cena pode ser interpretada como uma sátira ao apelo do real em nossa
sociedade.
As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos
que não acreditam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos
índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia
61
nada a não ser: “O que você quer com o passado?”. Repetia. E, diante da sua insistência
bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua pergunta. Não
conseguia fazê-lo entender o que era ficção (no fundo, ele não estava interessado), nem
convencê-lo de que o meu interesse pelo passado não teria conseqüências reais, no final seria
tudo inventado [CARVALHO, 2002: 96].
Na era da cultura midiatizada, da televisão como meio de comunicação poderoso, das
webcams que dão rosto a um sujeito virtual, das câmeras de segurança espalhadas pelas ruas,
seria espantoso que a ficção ainda suscitasse interesse. Diante da possibilidade de apreensão
do real, a ficção perderia seu fascínio, como se o homem do século XXI se sentisse iludido
por uma espécie de trapaça pela “cópia” da realidade. Se ele pode obter o real, se este nunca
esteve tão próximo de ser captado em sua totalidade pela alta tecnologia, o vilipêndio pela
ficção seria justificável. Nessa direção, são perfeitamente cabíveis as críticas que sofrem as
telenovelas – espaço remanescente da ficção para a massa – de apresentarem
inverossimilhança com a realidade justamente por serem ficção. É como se esta precisasse
cada vez mais assemelhar-se com a realidade. Nesse contexto, Nove noites surge como uma
crítica aguda ao apelo do real, à demanda do público por histórias baseadas em fatos reais.
Mais do que não entender o que é ficção, que poderia ser uma incompreensão natural de uma
cultura iletrada, o índio do romance simplesmente não estava interessado na explicação do
narrador-jornalista.
A realidade, porém, não dispõe de todas as respostas e, para a conclusão da pesquisa,
foi necessária a recorrência à oitava carta, à imaginação. Manoel Perna teria escrito sete cartas
endereçadas a um futuro pesquisador da vida de Quain, mas elas não permitiam que se
chegasse a uma conclusão satisfatória acerca da verdade. O narrador-jornalista precisaria,
então, imaginar uma oitava e última carta. Na segunda metade do livro, no entanto, o leitor é
surpreendido com a revelação de que o engenheiro morrera afogado no rio Tocantis, em 1946.
O narrador-jornalista então revela que “Manoel Perna não deixou nenhum testamento” [ibdi,
p. 135] e que, mesmo assim, a imaginação da oitava carta foi o que lhe restou. Numa narrativa
que se constrói com base na realidade, haveria um “problema” aqui. Não havia nenhuma das
sete cartas anteriores deixadas por Perna, diria o surpreso leitor. Eu diria, no entanto, que as
cartas existem sim, mas dentro do espaço ficcional, responsável por uma nova realidade,
muito mais interessante e muito menos limitada.
A construção labiríntica da narrativa, de ditos e desditos, de inverossimilhanças, de
“detetives demais e verdades de menos” [CARNEIRO, 2005: 143], colabora para o clima de
instabilidade e indecidibilidade a respeito do que é ou não verdadeiro, como se o leitor não
dispusesse de uma fonte segura que lhe permitisse assenhorear-se da verdade, restando-lhe a
62
incerteza, isto é, a ficção. Sobre a distinção entre realidade e ficção, Karlheinz Stierle comenta
que, com o surgimento do cristianismo, o conceito de ficção adquire um novo paradigma, pois
o nascimento de Cristo requereu que se distinguisse, rigorosamente, a verdade – a palavra de
Deus – da ficção. Para Stierle, somente com Boccaccio “a ficção de novo se libera do ódio à
mentira, e a poesia e a ficção estabelecem uma aliança indissolúvel” [STIERLE, 2006: 37].
Esta aliança indissolúvel, porém, sempre procurou limitar o discurso ficcional e o não
ficcional; Nove noites, mais do que aproximá-los, confunde-os, apresentando um discurso
híbrido e indefinível. Diante da impossibilidade de distinção dos discursos, o narrador-
jornalista, após meses dedicados a uma pesquisa inglória, sente-se compelido a escrever,
finalmente, um romance,
porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me restava, à
falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da
noite para o dia, gente que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca tivesse
visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a história, o motivo real do suicídio, o
óbvio que faria do meu livro um artifício risível [CARVALHO, 2002: 157].
O que poderia fazer de seu livro um artifício risível? A realidade sob um acabamento
ficcional? A nossa sociedade está tão associada ao empirismo das relações que rejeitaria e
escarneceria de um romance que fosse desdito pela realidade, como temia o narrador-
jornalista? Seja qual for a resposta, a pesquisa para se chegar à motivação de Buell Quain em
se suicidar levou o narrador-jornalista ao desejo de encontrar alguém que o retirasse da
impossibilidade diante da realidade e desse outro curso para sua investigação: a ficção. Mais
uma vez a ficção aparece no romance como uma alternativa ao real, de todo inalcançável.
Mesmo porque, aceitando a hipótese da pesquisa lograr êxito, seria através da língua, da
linguagem, que o narrador-jornalista comunicaria a que resultado chegou, e ela não é
suficiente para tal empresa, como vimos no primeiro capítulo. A linguagem verbal é
construção discursiva, logo seria uma recriação do real. Nietzsche, em Acerca da verdade e
da mentira, ao se questionar sobre o que é a verdade, assim a define:
Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias, de
antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e
retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso, parecem
a um povo fixas, canônicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram esquecidas
enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas
que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como moedas, mas como
metal [NIETZSCHE, 2005: 13].
63
A verdade é, pois, inalcançável. Mesmo se a considerarmos, menos filosofica e mais
empiricamente, de acordo com Italo Moriconi, como simplesmente “algo que de fato
aconteceu” (sic), ainda assim permaneceria questionável seu caráter ontológico. Disposto,
enfim, a transformar sua pesquisa em um romance, o narrador-jornalista confessa que “a
ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos” [CARVALHO, 2002: 158].
Ele embarca para os Estados Unidos com o objetivo de encontrar-se com um possível filho do
fotógrafo Andrew Parsons, que teria sido amigo de Quain. O autor, questionado se
inicialmente sua intenção era escrever uma biografia do antropólogo, responde:
Eu queria fazer um romance, não queria fazer um livro de jornalismo. Foi como se,
retrospectivamente, a história de Buell Quain desse sentido ao que eu já tinha na cabeça. As
coisas se encaixam. Conforme eu ia fazendo, percebia que talvez a história já estivesse pronta.
Mas só tive certeza de que seria ficção quando percebi que não encontraria a família dele. Ao
longo do processo, porém, muitas cartas que eu tinha enviado começaram a ser respondidas.
Então fiquei morrendo de medo: se a família aparecesse, ferrava com a minha história. Eu
nunca tinha feito pesquisa desse jeito [CARVALHO, 2002a].
A partir dessa resposta de Carvalho, podemos dizer que seu romance poderia ser
risível não pela crítica em se ancorar em dados reais, mas porque nasceria de sua
incompetência investigativa. Nove noites seria risível em função de sua autocrítica, arrisco a
dizer. Devemos, no entanto, tomar um certo cuidado com seu discurso não ficcional, pois,
como vimos, o retorno do autor na cultura midiatizada se dá também pela combinação das
vozes autorais em vários media. Nesse sentido, a sua fala em uma entrevista deve ser
relativizada e compreendida apenas como mais um discurso, que não tem nenhuma autoridade
sobre a ficção.
E é em ficção que o autor decidiu transformar sua pesquisa. Depois do momento que o
narrador-jornalista assume sua inclinação pela ficção, ele repete que “só não podia dizer a
verdade. Só a verdade poria tudo a perder” [CARVALHO, 2002: 161]. O final do romance
apresenta uma inversão de valores, pois agora a verdade é indesejada. Mas a despeito do
romance desistir de descobrir o real motivo do suicídio do antropólogo e partir para o terreno
da ficção, é por ser ficção que, paradoxalmente, revelará a verdade. A ficção seria a única
realidade possível de ser revelada.
Ao final da narrativa, o autor, nos agradecimentos, explicita que o romance é ficção,
talvez receoso de algum possível processo, como declarou a Flávio Moura. Segundo
Carvalho, quando ele mostrou o livro à editora, houve o receio de que algum personagem
pudesse entrar na justiça contra ele. Um advogado foi consultado e, após ler o romance,
afirmou que, de todos os personagens, apenas um poderia processá-lo. Carvalho, no entanto,
64
tranquilizou-se porque era justamente o único personagem que havia sido inventado. Em todo
caso, seguem-se essas palavras ao final do romance: “Este é um livro de ficção, embora esteja
baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação
– como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta
[CARVALHO, 2002: 169]. Mais uma vez, aqui, a necessidade de diferençar realidade de
ficção surge premente. Parece incômoda a dúvida que a sobreposição de discursos pode
causar, como se não pudesse pairar dúvida sobre o real, como se ele não pudesse ou não
devesse ser burlado. Essa seria uma preocupação tola, pois, como já explicara Iser,
Se o texto ficcional se refere portanto à realidade sem se esgotar nesta referência, então a
repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade
repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então emerge um
imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim, o ato de fingir ganha
a sua marca própria, que é de provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo, por meio
desta repetição, uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma
em signo e o imaginário em efeito (Vorstellbarkeit) do que é assim referido [ISER, 1996: 14].
Devemos, pois, dar asas ao imaginário e nos preocupar menos com a utilização da
realidade no espaço ficcional. Nove noites é um romance que indubitavelmente utiliza muitas
referências na sua construção, mas que estão a serviço da imaginação, da criação, da ficção. A
forma como o autor brinca com a realidade não permite que ela seja vista como tal, pois
ficção e realidade se entrelaçam de tal forma que, mais do que se sobrepor uma à outra, há a
formação de uma nova verdade. Essa é a crítica ao apelo do real de nossa sociedade e a
resposta aos leitores que ansiavam por uma literatura baseada em fatos reais.
4.2 O autor e seu duplo: o narrador autoficcional
De todas as informações que o romance toma emprestado à realidade, a do próprio
Bernardo Carvalho é a mais emblemática, inserindo-se, assim, no grande número de textos
literários que apresentam atributos autoficcionais
12
na atualidade. Vejamos como o mito do
autor se constrói na voz dos narradores de Nove noites.
São dois os narradores do romance. O primeiro é o contemporâneo de Quain, Manoel
Perna, que conviveu com o antropólogo em sua estada aqui no Brasil. Personagem real, sofreu
alguns ajustes de modo a se adequar à verossimilhança exigida pela ficção, passando de
barbeiro a engenheiro. O contato deste com o leitor se dá através de sete cartas que ele teria
12
O próximo capítulo reunirá alguns comentários sobre outras obras que também mesclam características autobiográficas e
ficção.
65
escrito a um futuro e possível investigador da morte de Quain. Seria ele um narrador-
missivista. Recuperando os ensinamentos de Foucault, uma propriedade da correspondência é
a de presentificar o emissor. Desse modo, as cartas de Manoel Perna “materializam” o agora
engenheiro no romance, transferindo-o da realidade para a ficção. Mas, como vimos, Manoel
Perna é também criação literária, as cartas escritas não existiram de fato, e é a partir delas que
podemos verificar um primeiro ponto de contato entre narrador e autor. A primeira e mais
óbvia aproximação entre Perna e Carvalho é que ambos são autores de seus textos, aquele, das
cartas, e este, do romance. Seria muita ingenuidade, porém, restringir à autoria a semelhança
entre eles, ou melhor, seria leviandade, a partir apenas dessa autoria, procurar provar que o
narrador-missivista possui características do autor Bernardo Carvalho.
Uma tentativa de situar a voz de Carvalho na do primeiro narrador requer um
cruzamento de seu discurso ficcional com suas entrevistas. O autor sempre explicitou que a
temática de Nove noites obedecia a critérios mercadológicos. Não fosse o interesse do público
por histórias baseadas em fatos reais, possivelmente o romance não teria sido escrito,
principalmente porque o autor acredita que “a literatura que serve para alguma coisa é a que o
mercado quer” [CARVALHO, 2007]. Carvalho nunca negou, entretanto, sua crítica a essa
demanda do público, a uma literatura que se preocupa apenas com o mercado, afirmando,
inclusive, que seus leitores não conseguiram perceber o jogo estabelecido entre realidade e
ficção. A linha interpretativa que eu proponho é a de que o autor utilizou-se do narrador-
missivista para, subliminarmente, dar seu recado. Não à toa o romance inicia com o alerta de
Perna ao leitor, que precisa estar preparado para entrar numa terra em que a verdade e a
mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Se o leitor anseia tanto por
histórias baseadas em fatos reais, o autor dispõe-se a satisfazer seu desejo, mas cria uma
armadilha, como afirmou em entrevista ao jornal Rascunho.
Uma leitura atenta das cartas do engenheiro nos permite constatar a preocupação
metalinguística em prevenir o leitor de que ele está no ambiente ficcional, de que no espaço
da ficção a realidade é outra, não é mais a realidade palpável e apreensível oferecida pela
cultura midiática em que vivemos. Assim, se faz necessária a repetição constante de que a
verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates, e que o narrador-missivista
está à espera do leitor, sem o qual o que é dito nas cartas não fará sentido. Em entrevista a
Matheus Dias, Carvalho afirma que “é importante que o leitor participe de forma ativa da
leitura, que seja empurrado para dentro do texto não de maneira meramente passiva, queria
deixar isso claro. Então, o jogo em meus livros é importante. Tem a função de cooptar o
leitor, de fazê-lo ter uma função ativa no livro” [ibdi ibden]. O autor convida o leitor, então, a
66
desempenhar a mesma investigação que o segundo narrador do romance, de que tratarei
pouco adiante, executa. Este, em busca do motivo do suicídio do antropólogo; aquele, na
distinção dos dados empíricos da ficção, das referências autobiográficas da invenção de si. A
citação abaixo ilustra bem o convite ao leitor em participar ativamente do enredo ao mesmo
tempo em que problematiza a ânsia por se saber o que é verdade ou não:
Isto é para quando você vier. O que eu sei é o que ele me contou e o que imaginei. Você sabe
de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei saber. É por isso que me dou o trabalho de
contar o pouco que sei. Se as coisas que tenho a dizer estão todas pela metade, e podem soar
insignificantes aos ouvidos de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido.
Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a
outra parte da história. Esperei por alguns anos, mas já não posso contar com a sorte. O que
eu tenho a dizer só pode fazer sentido junto com o que você já sabe. Também teria muito a
lhe perguntar [CARVALHO, 2002: 122, itálico do original, negrito meu].
Manoel Perna, que seria o responsável por dar informações sobre uma possível
verdade a respeito do suicídio de Quain, clama para que o leitor
13
se empenhe em ajudá-lo a
descobrir essa verdade, pois, como vimos, ela só será possível graças à ficção. Essa aparente
contradição vai de encontro à afirmação de Carvalho de que Manoel Perna tem a função de
encontrar respostas que a pesquisa não esclareceu. Nessa direção, é possível afirmar que, por
trás do narrador-missivista, encontra-se a voz autoral pronta para suprir as insuficiências da
realidade e para também pontuar, criticamente, a ansiedade por fatos reais.
Na carta seguinte, assim Perna problematiza a verdade final por trás do romance:
Tudo me levava a crer que a carta que ele lhe deixou ao morrer podia revelar a verdade,
qualquer que ela fosse. A verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até
aqui” [ibdi, p. 131, itálico do original, negrito meu]. O autor parece dizer, sob a máscara do
narrador-missivista, que é improcedente o desejo do público por histórias baseadas em fatos
reais, porque, em última instância, são elas duvidosas, múltiplas, abertas, deléveis. Não há,
portanto, uma Verdade a ser descoberta, mas verdades que dependem do olhar que lhes é
lançado. Para finalizar as considerações em torno do primeiro narrador, desenvolvo a reflexão
de que Manoel Perna, ao se comunicar por cartas, presentifica-se a seus leitores; o autor, por
sua vez, ao utilizar as cartas do personagem real para dar o seu recado, mesmo sendo elas
ficção, ou por isso mesmo, “materializa-se” igualmente, pois arrisco dizer que quem fala nas
cartas não é o engenheiro, e sim o autor. Para dar suporte a essa interpretação é necessário
recorrer a informações que não estão no texto ficcional, como as entrevistas. A possível
polêmica que o extratexto poderia causar é desfeita por Arfuch, que desloca para o espaço
13
Veremos, no próximo tópico, a importância do leitor para a autoficção.
67
biográfico as várias vozes autorais, no sentido de que não é possível pensar a literatura
contemporânea sem a confluência e a interação dos vários discursos do autor midiático do
século XXI.
Mesmo respaldado pelas ponderações da autora argentina, no entanto, a afirmativa de
que Bernardo Carvalho valeu-se de seu narrador-missivista como intermediário para seu
próprio pensamento crítico acerca da demanda do público pode encontrar rejeição da crítica
especializada, no sentido de que o autor, naturalmente, sempre empresta o seu pensamento e a
sua visão de mundo para seus personagens. Machado de Assis, nosso maior nome literário,
não fugiu dessa premissa, como apontei anteriormente, ao mostrar que ele teria abandonado a
crônica para dizer o que pensa na ficção. A fala de Bernardo Carvalho nas cartas de Manoel
Perna poderia ser interpretada mais como a presença inconteste do autor implícito em
qualquer obra literária e menos como autoficção, apesar de, para mim, ser evidente suas
opiniões expressas em entrevistas – que não podem ser desprezadas – em acordo com as
cartas de Manoel Perna. Para fugir de qualquer possível polêmica em torno do narrador-
missivista como duplo do autor Bernardo Carvalho, o narrador-jornalista desempenha essa
função mais explicitamente.
O segundo narrador do romance é extemporâneo ao suicídio aproximadamente seis
décadas. Com um olhar retrospectivo sobre o fato, procurará explicá-lo embasado por sua
pesquisa investigativa. Do mesmo modo que o autor Bernardo Carvalho, este narrador
também é jornalista, coincidência ainda insuficiente para se falar em autoficção. Essa primeira
referência autobiográfica poderia ser mais contundente caso o autor lhe desse o seu próprio
nome. Nesse caso, haveria uma aproximação da definição de autobiografia de Lejeune, cuja
concordância onomástica entre autor, narrador e personagem é essencial para um texto
autobiográfico. Mas do mesmo modo que o narrador-jornalista estava disposto a escrever um
romance, pista fornecida ainda no início da narrativa, quando a antropóloga autora do artigo
sobre o suicídio de Buell Quain suspeitou da iniciativa do narrador-jornalista e não foi
contrariada por ele, o autor também estava disposto a fazer de sua pesquisa um texto ficcional,
de acordo com declaração a Flávio Moura: “Eu queria fazer ficção, não queria fazer um livro
de jornalismo” [CARVALHO, 2002a]. Vale a pena registrar que a concordância onomástica
não é garantia da autobiografia, pois Doubrovsky inaugurou o gênero autoficcional com um
romance que apresentava coincidência de nome tripartite. Penso que, se o narrador-jornalista
se chamasse Bernardo Carvalho, o romance perderia muito de seu suspense e da sua
qualidade, uma vez que o autor estaria sendo muito óbvio e, assim, eliminaria a dúvida e a
inquietação que acompanham o leitor do início ao fim da narrativa.
68
O narrador-jornalista é, pois, inominado. O pronome eu seria, inicialmente, a única
referência ao emissor do discurso dentro do texto. Sem o nome próprio que pudesse servir de
alusão ao autor, os dados autobiográficos poderiam se desviar de Carvalho e serem
interpretados como constituintes de qualquer outro sujeito, de qualquer eu. A dificuldade que
a ausência do nome próprio imprime é explicada por Bourdieu desta forma:
O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos
espaços sociais, o fundamento da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade
socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações em registros oficiais, curriculum
vitae, cursus honorum, ficha judicial, necrologia ou biografia, que constituem a vida na
totalidade finita, pelo veredicto dado sobre um balanço provisório ou definitivo [BOURDIEU,
1996: 187].
Como ter um “atestado visível da identidade” numa obra em que o eu que fala é
inominado? O narrador-jornalista, no entanto, não está no mundo social de que trata
Bourdieu, e não necessita reconhecer-se em registros oficiais. O seu reconhecimento se dá em
outros termos, em outro mundo, e é no mundo da representação que se conseguirá somar
pistas que comporão o quebra-cabeça capaz de constituir o sujeito que fala e, ainda que de
forma vacilante, associar o narrador-jornalista ao autor-jornalista.
A primeira e mais importante pista é extratextual, trata-se da fotografia do autor ainda
criança, de mãos dadas com um índio no Xingu, na orelha do livro. Essa fotografia poderia ser
interpretada como mais uma foto ilustrativa, comum em várias edições de diferentes
romancistas. Mas, além de ser uma fotografia inusitada para a divulgação da obra, o narrador-
jornalista também vivenciou uma experiência entre os índios na sua infância, como vimos
anteriormente. O retrato do autor ao lado do índio adquire uma forte conotação autoficcional
no momento que une sob a mesma vivência o autor Bernardo Carvalho e o narrador-jornalista.
Para Flávio Carneiro, “ao colocar na orelha do livro uma foto sua, aos seis anos de idade, de
mãos dadas com um índio no Xingu, e ao montar o narrador com alguns dados
autobiográficos, Bernardo Carvalho recria sua própria imagem, agora espelhada”
[CARNEIRO, 2005: 143].
Romance extremamente metalinguístico, apresenta outras fotografias no interior do
livro. E é sobre uma delas que o narrador-jornalista afirma que “há em toda fotografia um
elemento fantasmagórico” [CARVALHO, 2002: 32]. Por quê?, caberia perguntar, uma vez
que a fotografia é um registro de vida de uma pessoa, atestando que ela realmente existiu,
eliminando a possível dúvida acerca de sua ficcionalidade ou não. A resposta é dada pelo
próprio autor:
69
[a foto] tem um sentido ilustrativo, de dar mais veracidade para algo totalmente inverossímil.
Serve para aumentar a ambigüidade. E me deu prazer usar aquela foto ali, achei engraçado.
Tudo funciona para aumentar a ambigüidade. É meio clichê falar isso, mas todos os meus
livros têm esse problema com a identidade, com o que significa ser um sujeito [apud
KLINGER, 2007: 152].
Carvalho não está interessado, com a utilização das fotografias, em certificar o leitor
da equivalência entre si e o narrador-jornalista, mas, “pelo contrário, no romance de Carvalho,
as fotografias tendem a confundir os planos da ficção e da realidade, ironizando a crença na
veracidade representativa da fotografia, como ‘evidência’ ou ‘prova’” [KLINGER, 2007:
154]. O retrato na orelha do livro, paradoxalmente, mais do que elucidar a identidade entre
autor e narrador, colabora para tornar indecidível até onde vai a semelhança entre ambos, pois
não é possível saber se o que é narrado corresponde ou não à vida empírica do autor.
Esse jogo de esconde apresentado na autoficção, que de início se mostra para em
seguida camuflar-se, pode ser interpretado à luz do pensamento de Nietzsche [1992]. A
fotografia na orelha do livro é, indubitavelmente, a do autor. Do mesmo modo, textualmente
somos apresentados a dados que coincidem com a biografia de Carvalho, como, por exemplo,
sua profissão e sua descendência do Marechal Rondon. A participação do autor
contemporâneo nos meios de comunicação nos permite saber que ele é jornalista da Folha de
São Paulo e que é bisneto do indigenista Candido Mariano da Silva Rondon. Questionado a
respeito da abordagem dada aos índios em Nove noites, ele responde que “não tinha nada
previsto em relação à antropologia. Até porque a relação com os índios faz parte do meu
passado. Tem até uma espécie de mito na família ligado ao assunto, que é o Rondon, meu
bisavô” [CARVALHO, 2002a]. A foto, a profissão e a descendência são três informações
autobiográficas que ligam o autor ao narrador-jornalista, oferecendo uma imagem refletida do
escritor, facilmente reconhecida. Nesse sentido, podemos pensar esse primeiro
reconhecimento do autor apolineamente, uma vez que Apolo é o deus do brilho, da aparência
e da ilusão, simbolizando o mundo da representação, da forma, da individuação. Bernardo
Carvalho inventa-se a si mesmo no romance, serve de molde para o narrador-jornalista, mas
apenas no nível da aparência, pois não é ele, autor biográfico, quem se apresenta. Quando a
autoficção espelha o autor, transformando-o em um duplo, em um personagem, está jogando
apenas com a forma, com a imagem, sem nenhum aprofundamento psicológico capaz de
asseverar ser a pessoa Bernardo Carvalho no espaço ficcional. Assim, o leitor que desconhece
intimamente Bernardo Carvalho não será capaz de conhecê-lo através da imagem construída
pelo narrador, ou melhor, esta imagem é antes ficcional, incapaz de assegurar a “verdade
autobiográfica” sob os caracteres da obra. O romance não é, enfim, um reflexo da
70
subjetividade e interioridade do autor, utiliza apenas a sua figura como forma de
personificação do narrador. Nesse sentido, é possível afirmar a presença do conceito
nietzschiano de apolíneo, pois, nas palavras de Roberto Machado, “a pulsão apolínea
diferenciadora cria formas e, assim, individualidades. O povo de Apolo é o povo das
individualidades” [MACHADO, 2006: 206].
Ora, mas afirmei que o autor presente em Nove noites não é o indivíduo Bernardo
Carvalho, não possui seu RG nem seu CPF. É aqui que entra, portanto, a antítese ao apolíneo
pensada por Nietzsche. O pensador alemão vê no diosiníaco uma alternativa para o limite que
o apolíneo apresentava, pois “ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na
maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas”
[NIETZSCHE, 1992: 27]. Se para Nietzsche o apolíneo e o dionisíaco caminham lado a lado e
se é possível apontar o apolíneo em Nove noites, deve ser possível, também, verificar o
dionisíaco.
Se Apolo é o deus da luminosidade, da forma, da aparência, Dioniso, ao contrário, é o
deus do caos. O leitor que aceitar o convite de iniciar uma investigação de modo a descobrir o
que é ou não verdadeiro no romance, o que corresponde ou não à autobiografia de Carvalho,
se perceberá num terreno labiríntico onde é impossível encontrar essas respostas. A forma do
autor atribuída ao narrador-jornalista pela fotografia e pela coincidência da profissão e da
descendência do Marechal Rondon paulatinamente torna-se turva e caótica, impossibilitando
qualquer certeza a respeito das referências autobiográficas.
Sabe-se que Carvalho esteve entre os índios em sua infância – a fotografia é
inequívoca, além de suas declarações em entrevistas que ratificam o signo extratextual –, mas
as aventuras pelas quais o narrador-jornalista passa em companhia de seu pai nas desastrosas
viagens de avião pelo centro-oeste brasileiro podem ser entendidas como reais? O leitor, com
o conhecimento que a cultura midiática lhe permite ter sobre Carvalho, é capaz de saber se
sua avó contava 107 anos de vida no momento do lançamento do livro? Pois a avó do
narrador-jornalista tinha essa idade, como ele nos diz quando se prepara para ir embora da
aldeia indígena onde estivera para colher informações sobre o suicídio do antropólogo. É
possível saber se as pesquisas foram realmente realizadas e que todos os informes narrados no
romance são verdadeiros? Manoel Perna realmente morreu afogado em 1946, de acordo com
seus filhos? O pai de Carvalho de fato faleceu de uma doença rara, como o pai do narrador-
jornalista? E ele foi enganado pela libanesa com quem se envolveu? Seria ela a única
personagem inventada que poderia processar Carvalho? O autor, enquanto seu pai terminava
seus dias no hospital, aceitou uma oferta de trabalho em Paris, como aconteceu com seu
71
duplo? A essas perguntas poderiam se juntar outras, todas sem resposta. A incessante tentativa
de decifrar a verdade por trás do texto encaminha o leitor para uma zona caótica em que todas
as respostas passam a ser duvidosas. À certeza apolínea que a fotografia dava da figura do
autor, soma-se a indecisão em se confiar ou não no narrador-jornalista, ou melhor, o leitor crê
na sua narração enquanto instância discursiva, mas permanece a dúvida quanto ao aspecto
autoficcional. É inviável saber se o que o narrador-jornalista relata corresponde à vida
empírica do autor Bernardo Carvalho; para o narrador-jornalista, a ficção começou quando
botou os pés nos Estados Unidos, para o leitor, essa informação ajuda a desestabilizá-lo.
Do mesmo modo que o narrador-jornalista não alcançou a verdade a respeito da
motivação do suicídio de Buell Quain, recorrendo para isso à ficção, o leitor que
metalinguisticamente se predispuser a investigar o que é autobiográfico no romance também
falhará, e recorrerá então à autoficção. Nesta, mais do que certezas a respeito da vida
biográfica do autor, temos a criação do mito do escritor, que não é verdadeiro nem falso,
afinal, como o próprio romance avisa, “a realidade é o que se compartilha” [CARVALHO,
2002:167].
O leitor que obsessivamente se interessar em distinguir ficção e biografia acabará por
sair da literatura e adentrará numa leitura jornalística, historicista ou biográfica, e perderá o
prazer do texto literário. É este que viabilizará a equivalência identitária entre autor e
narrador, mas não de forma inequívoca, pois o autor que se presentifica na autoficção não é o
autor biográfico, mas sua persona, seu alter-ego, enfim, seu mito. O autor autoficcional é
também ficção, em última instância, talvez por isso Bernardo Carvalho tenha afirmado que
não se sentiu exposto ao escrever Nove noites. Contra uma leitura “presa” aos dados
autobiográficos, há uma cena que critica exemplarmente a busca desenfreada pela realidade e
a intimidade narcísica e voyeurista de um tempo que assiste aos reality shows com interesse
voraz: é o momento em que o narrador-jornalista, na sua obsessão incansável, chega ao asilo
onde estivera o fotógrafo Andrew Parsons. Este foi quem teria dito pela primeira vez o nome
de Buell Quain para o narrador-jornalista, no hospital onde esteve hospitalizado à espera da
morte. Mavis Lowell, a responsável pelo asilo onde viveu o fotógrafo, assim despede o
narrador-jornalista da entrevista recém-começada:
Vocês no Brasil são muito mal-acostumados. A vida das pessoas deve ser respeitada, é de
foro íntimo. É assunto delas, e só cabe a elas ou a seus familiares decidir torná-la pública. Não
temos dinheiro, mas não é por nos faltar recursos que vamos desrespeitar a privacidade dos
nossos velhos. Não precisamos nos rebaixar por um espaço na mídia [ibdi, p. 148].
72
A investigação obsessiva e fracassada do narrador-jornalista em saber o motivo do
suicídio de Buell Quain é, em última análise, uma crítica a nossa sociedade midiática, ávida
por conhecer a vida das celebridades e interessada sobremaneira pela exposição pública.
Lembremos que Bernardo Carvalho se queixou, surpreso, de que muitos leitores o leram sem
se dar conta da grande brincadeira proposta no romance. Como veremos no próximo tópico,
“a arte tem mais valor do que a verdade” [NIETZSCHE, 1974: 36, grifo do original], isto é,
reduzir a compreensão de um texto literário as suas convergências com o real é limitar o
alcance da arte. Por isso, Carvalho preocupou-se em produzir um texto híbrido, mesclando a
realidade reclamada pelos leitores com ficção, sem, contudo, discernir seus limites. Para Ana
Cláudia Viegas, “a novidade aqui pressentida se nutre justamente de uma reconfiguração das
relações entre ficção e real. Neste caso, mais do que evidenciar ‘o quanto é fictício o texto
ficcional’, a narrativa insiste em nos dar pistas a respeito da ficcionalidade do que aprendemos
a chamar de mundo real” [VIEGAS, 2004:138]. Finalmente, há em Nove noites o retorno do
autor, mas quem é ele? Não é Bernardo Carvalho enquanto pessoa física, mas sim o
complemento do escritor biográfico com seu ofício: a literatura.
4.2.1 O narrador autoficcional: tipologia
Após analisar de que maneira o autor utiliza os narradores de Nove noites para a
construção de seu duplo, para a sua autoficcionalização, vale a pena dedicar algumas poucas
linhas para situá-lo no horizonte dos narradores já devidamente estudados e conceituados.
Walter Benjamin oferece um primeiro, esclarecedor e paradigmático ensaio sobre o narrador.
Para ele, o narrador clássico é aquele que se vale da oralidade para passar a sua experiência.
Seriam dois os modelos de narrador, de acordo com o pensador alemão. O primeiro é o
marinheiro, que, viajando para outras localidades, adquire novas vivências e é capaz então de,
ao incorporá-las a sua própria experiência, passá-las adiante; o segundo é o camponês,
responsável por manter a tradição. Ambos os modelos têm na faculdade de intercambiar
experiências o seu modo de narrar por excelência. Como estamos cada vez mais privados
dessa faculdade, segundo Benjamin, a arte de narrar estaria em vias de extinção. O autor
enumera vários motivos que concorrem para o fim do narrador clássico, dentre eles a
informação e o romance.
Em linhas gerais, a informação é nociva à arte de narrar porque traz consigo
explicações detalhadas sobre o fato noticiado, isto é, elimina a possibilidade do ouvinte
atribuir significação à narrativa, que já é dada pronta; já o romance, porque a forma como o
73
romancista trabalha é solitária, segregada do mundo exterior, e, principalmente, porque é
distante da tradição oral – o romancista, ao trabalhar com a palavra escrita, ajuda a matar o
narrador clássico de que trata Benjamin. Nas palavras do autor,
o narrador [clássico] retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O
romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar
exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem
sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o
incomensurável a seus últimos limites [BENJAMIN, 1994: 201].
Paradoxalmente, o romance contribuiu para a extinção do narrador. É preciso que se
distinga com clareza, porém, o narrador clássico de que trata Benjamin, calcado na tradição
oral, do narrador do romance, que em nada se assemelha ao primeiro. Silviano Santiago,
aproximadamente 50 anos após a escritura do texto do alemão, procura clarear as questões
levantadas em torno do narrador a partir dos contos de Edilberto Coutinho. Silviano trabalha
com duas hipóteses iniciais: i) o narrador pós-moderno retira-se da ação narrada,
semelhantemente a um repórter ou espectador. A sua narrativa se dá a partir do ponto de vista
do observador, de quem adquire uma vivência não por sua própria atuação, mas pela
observação do fato; e ii) tal como o narrador clássico, o narrador pós-moderno também
transmite uma sabedoria, mas que é adquirida da observação, não de sua própria experiência.
Nesse sentido, de acordo com Silviano Santiago, “ele é o puro ficcionista, pois tem de dar
‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter respaldo da vivência, estaria desprovida de
autenticidade. Esta advém da verossimilhança, que é produto da lógica interna do relato. O
narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem”
[SANTIAGO, 2002: 46-7]. Num primeiro momento, poderíamos aproximar o narrador
autoficcional do pós-moderno, pois, como vimos, a verdade contida em Nove noites é tamm
construção discursiva. O rastreamento da verdade no romance, seja a partir das cartas do
narrador-missivista, seja através da experiência do narrador-jornalista, se dá no texto. Mas,
para Silviano, o narrador pós-moderno é espectador de uma vivência alheia, e em Nove noites
ambos os narradores falam de sua própria vivência, razão suficiente para distanciá-los do
narrador pós-moderno.
Para Benjamin, são três estágios na evolução do narrador: i) o narrador clássico, que
intercambia com seu ouvinte a experiência; ii) o narrador do romance, que se segrega e não
mais fala exemplarmente de sua experiência; e iii) o narrador jornalista, que narra não a sua
experiência, mas a de outrem a partir da observação. Nas palavras de Silviano, “Benjamin
desvaloriza (o pós-moderno valoriza) o último narrador” [ibdi, p. 46]. A valorização deste
74
último narrador poderia ser mais um indício de estarmos nos aproximando do narrador-
jornalista do romance, mas creio tratar-se tão somente de uma coincidência, pois, repito, a
pesquisa narrada no romance pelo narrador-jornalista é fruto de sua relação empírica com a
investigação – que se mistura com a memória de vivências do próprio narrador –, não se trata
da simples observação distanciada do narrador.
Se por um lado, porém, o narrador-jornalista narra a sua vivência investigativa, por
outro, o próprio caráter investigativo de sua pesquisa revela seu interesse pela observação da
vida alheia, a vida de Buell Quain. Mas, como vimos, Bernardo Carvalho não escreveu uma
biografia sobre o antropólogo, e sim um romance. E a construção do narrador com dados
autobiográficos permitiu que Nove noites apresentasse uma característica que transcende o
narrador pós-moderno defendido por Silviano: o narrador-jornalista, de observador-
pesquisador da vida de Quain, adiciona a sua própria vivência para essa observação. Diria
mais: ele convida o leitor para atuar como espectador também, mas não somente da vida do
antropólogo suicida, mas, principalmente, de sua própria vida autoficcional. E a participação
do leitor é ativa, conforme vimos anteriormente, ou seja, o leitor entra no jogo proposto pelo
autor de maneira a também descobrir uma verdade por trás da narrativa. Para além do
narrador pós-moderno pensado pelo crítico brasileiro, temos um narrador que se junta ao
objeto observado e que, a partir de sua qualidade jornalística, mescla vivência e vitrine, isto é,
permite que o leitor se interesse por ele enquanto personagem que vive uma vivência que não
é só sua.
Silviano Santiago, na retomada que faz do ensaio de Benjamin, deixa claro que o
filósofo alemão, ao defender o narrador clássico, não pretendia uma defesa anacrônica do
mesmo, ao contrário, procurava realçar a beleza da narrativa clássica. Mas, com o surgimento
do narrador do romance, foi preciso que se olhasse com atenção para essa novidade e que se
apontassem os “problemas” advindos com ele. O narrador pós-moderno de Silviano surge
como uma tentativa de adequação desse narrador aos novos tempos. Vinte e três anos se
passaram da publicação do texto de Silviano e, como estamos sempre em processo de
mudança e de evolução, foi preciso que um novo olhar acerca do narrador fosse proposto. Ana
Cláudia Viegas oferece uma nova tipologia para o narrador na contemporaneidade, na era da
velocidade, da informação, da internet. A autora procurará situar o narrador no cerne da
escrita blogueira do século XXI
14
.
14
Ana Cláudia Viegas não limita sua análise do narrador contemporâneo em primeira pessoa aos blogs. Para ela, a
autoficcionalização que se observa nos diários virtuais também é encontrada em romances, contos, crônicas, etc. Os blogs,
porém, por suas próprias características de um novo espaço de labor literário na atualidade, merece uma atenção mais
cuidadosa da parte da crítica.
75
O narrador dos blogs difere do da ficção da década de 80 porque, nas palavras da Ana
Cláudia, “está no centro da ação narrada e constrói seus relatos breves, efêmeros a partir de
acontecimentos banais, precários de seu cotidiano, mesclando experiência e ficcionalidade
(...) sem esquecer os procedimentos de autoficcionalização que contribuem para a formação
da persona do autor” [VIEGAS, 2008: 139]. Há aqui pontos de contato e de distanciamento
entre os narradores de Nove noites e o narrador dos blogs. O mais óbvio é a mistura de
experiência empírica e ficção no romance de Carvalho, resultando num texto autoficcional
exemplar. O estilo cronístico comum nos blogs, no entanto, não se encontra no romance. Os
blogs, normalmente, apresentam-se como textos curtos, procurando relatar acontecimentos
ordinários da vida do autor. Via de regra, o narrador do blog é sempre em primeira pessoa, o
que facilita a relação estabelecida entre narrador e autor, mas de forma indecidível, tal qual
verificamos em Nove noites. Essa seria mais uma proximidade entre os narradores do
romance e os dos blogs, principalmente porque, no blog, “embora registre acontecimentos,
opiniões, pensamentos, como num diário, o blogueiro não afirma seu relato como
‘verdadeiro’” [ibdi, p. 141].
É claro que Nove noites não é um blog e não utilizou fragmentos inicialmente
trabalhados na rede mundial de computadores. O que nos leva, então, a procurar evidências do
narrador blogueiro no romance de Carvalho? A razão é simples. Os blogs são um novo espaço
de prática literária, na atualidade, com forte manifestação autoficcional. É, portanto, natural
que encontremos semelhanças entre os narradores autoficcionais de Carvalho e os inúmeros
narradores em primeira pessoa na internet. Uma nova característica da literatura praticada na
internet e que merece um estudo mais sistemático é a participação do leitor na construção da
identidade desse eu que se autoficcionaliza. A oportunidade que os blogs dão dos leitores
emitirem suas opiniões sobre o texto recém postado gera um fenômeno curioso. O blogueiro
poderia, a partir dos comentários de seus leitores, alterar o texto inicial, o que nos levaria a
questionar de quem é, de fato, a autoria do texto. Do mesmo modo que Bernardo Carvalho
convida seu leitor a participar ativamente do romance, nos blogs “o caráter ativo e criador de
toda leitura se atualiza nos comentários trocados nos posts, nos links que levam de um blog a
outro, numa escrita interativa, a diversas mãos, em espiral” [ibdi ibden]. Tanto no romance
quanto no blog, o narrador necessita do complemento de seu trabalho pelo leitor, como se a
narração só se tornasse completa com a participação deste.
Para finalizar essas breves considerações em torno do narrador, é possível afirmar que
os narradores de Nove noites apresentam características afins com o narrador pós-moderno
pensado por Silviano. O narrador-jornalista do romance não se retira da ação narrada, pois é a
76
sua própria vivência que embasa a narrativa, mas, ao mesmo tempo, a sua vivência só existiu
em função da sua observação inicial da vida de Buell Quain. O narrador pós-moderno, para
dar autenticidade à sua falta de experiência, recorre à verossimilhança, afinal ele sabe que o
real é construção discursiva, tal como acontece em Nove noites.
Já o narrador blogueiro é similar aos de Carvalho por sua autoficcionalização. Nove
noites se aproximaria dos blogs não formalmente, é evidente, mas tanto no romance como nos
diários virtuais tem-se uma acentuada tendência para a autoficção. Os narradores desse
romance, enfim, têm pontos de contato com os blogueiros no processo de invenção de si, na
mitificação da figura do autor, que retorna definitivamente.
4.3 A estética autoficcional
Herbert Marcuse, em A dimensão estética, defende que a arte é completamente
autônoma perante as relações sociais vigentes, ou seja, ela não está limitada pela realidade
estabelecida, mas a contesta e, ao mesmo tempo, a transcende. A obra de arte, assim, “desafia
o monopólio da realidade estabelecida em determinar o que é ‘real’ e fá-lo criando um mundo
fictício que, no entanto, é ‘mais real que a própria realidade’” [MARCUSE, 1977: 33]. A arte
e a literatura, de acordo com Marcuse, criam uma nova realidade e é a partir dessa criação que
elas alcançarão o status de arte, isto é, para que uma obra de arte (literária ou não) seja
considerada como tal, ela precisa criar a sua própria realidade que, uma vez criada, mesmo
posteriormente negada pela realidade estabelecida, tem força suficiente para permanecer
válida.
Durante muito tempo a literatura foi estudada sob a luz de um pensamento que lhe
conferia autonomia perante a realidade estabelecida, criando uma realidade própria e,
portanto, independente e autônoma em relação a quaisquer signos referenciais, o que
justificaria o estigma dos gêneros referenciais, como as crônicas, as autobiografias, as
memórias, etc. Se a arte é capaz de criar a sua própria realidade, recorrer à realidade empírica
seria uma desqualificação para a obra, incapaz de criar algo que deveria ser intrínseco a sua
natureza. Vimos anteriormente que os formalistas desprezaram quaisquer informações
extratextuais e mantiveram seu interesse apenas no que estivesse restrito ao texto,
concordando com a ideia de que a literatura apresenta uma realidade própria, a única
merecedora de atenção. Nesse sentido, a oferta de um texto rico em referências extratextuais
seria a antítese do que se espera de um texto literário, artístico. A partir dessas reflexões,
77
julguei oportuno refletir sobre como a autoficção deve ser pensada esteticamente, no sentido
de que, como vimos, ela é um texto, tamm, referencial.
Em Nove noites, um dos principais signos do romance é extratextual, trata-se da
fotografia do autor na orelha do livro. A fotografia do autor de mãos dadas com um índio no
Xingu afasta qualquer possível dúvida do leitor quanto à identidade do narrador-jornalista. Se
a profissão e a descendência não foram suficientes para interligar Bernardo Carvalho ao
narrador-jornalista, a coincidência da vivência entre os índios é demasiadamente forte para
que o leitor desvende o enigma.
No romance, a fotografia é um signo extratextual capital para a formação de
significados. Mas cabe uma ressalva aqui. Se de fato a foto é imprescindível para o romance,
por que ela foi subtraída de sua edição de bolso? A resposta inicial e imediata seria a
displicência do editor, que, preocupado em desonerar a edição, simplesmente retirou a
fotografia. Mas o leitor da edição de bolso que desconhece a fotografia conseguirá associar
com a mesma facilidade o narrador-jornalista ao autor? Mesmo que o romance consiga suprir
textualmente a ausência da fotografia na orelha do livro, há a abertura, aqui, para uma nova
leitura, menos evidente do que a primeira, o que possibilitaria falarmos em um duplo
entendimento estético da obra. Mas, para essa dupla leitura, a participação do leitor é
primordial, no sentido de que, se ele desconhecer os dados autobiográficos de Bernardo
Carvalho, não será capaz de estabelecer uma leitura autoficcional, principalmente com a
edição de bolso, que não contém a fotografia. Lembremos que o narrador-missivista insistia
que as suas cartas só fariam sentido com a bagagem do próprio leitor...
Para que a autoficção tenha êxito na sua tarefa, isto é, na criação do mito do escritor, é
preciso que o leitor contribua com 50 por cento das informações, conforme alertara o
narrador-missivista. Nove noites é um romance traduzido para outras línguas, então, proponho
um exercício imaginativo. Imaginemos que, em um país distante, um leitor que não saiba que
Bernardo Carvalho é jornalista e bisneto do Marechal Rondon tenha em mãos a edição de
bolso do romance. Esse leitor será capaz de efetivar uma leitura autoficcional? Parece-me que
não. Diante da impossibilidade da autoficção se fazer presente para esse leitor, sua leitura
obedecerá, portanto, à estética formalista, isto é, todo o romance será lido, entendido e
interpretado como a mais pura ficção, sem qualquer alusão a referências extratextuais. E essa
leitura formalista não será nem melhor nem pior do que a leitura que percebeu os dados
autobiográficos no romance, ela será apenas diferente. Para que tenhamos uma estética
autoficcional em sua plenitude, é necessária a contribuição do leitor, sem o qual o pacto
autoficcional não será cumprido. Carvalho, em entrevista a Matheus Dias, já falava do papel
78
ativo que seu leitor deve ter, o que reforça o caráter ambíguo da autoficção, dependente da
formação de significados dada pelo leitor.
Pensar a autoficção esteticamente requer que integremos o leitor para a formação de
significados. Se no pacto autobiográfico de Lejeune o leitor tem uma função importante, no
pacto autoficcional também, uma vez que a autoficção é um convite para uma grande
brincadeira que só acontecerá com a pronta aceitação do leitor no jogo de esconde. Caso o
convite não seja aceito, a autoficção cederá espaço para uma leitura formalista, ignorando
todo e qualquer dado referencial, autobiográfico ou não.
Mas a edição de bolso de Nove noites apresenta as demais fotografias no interior do
romance. Seria possível o leitor desconhecedor de Bernardo Carvalho desprezar as fotografias
e manter uma leitura formalista? As fotografias são documentos incontestes da existência das
pessoas retratadas, logo o romance apresentaria no ambiente da ficção provas irrefutáveis da
vida real daqueles personagens. Sim, esse argumento poderia ser definitivo não fosse a força
que a literatura, enquanto arte, possui. Uma leitura que se inicia à luz dos ensinamentos
formalistas entrega-se a uma nova realidade, “mais real que a própria realidade”, isto é, as
fotografias contidas no interior do romance já não provocam a suspeita de se reportarem para
pessoas “fora do texto”, elas assumem sua função dentro mesmo daquela nova realidade e,
nesse sentido, não se chocam com a realidade estabelecida. Arriscaria a dizer que, mesmo que
o leitor conhecesse os personagens reais das fotografias, ele não hesitaria em prosseguir com
uma leitura totalmente ficcional, tamanha é a sua autonomia perante a realidade. Lukács, a
esse respeito, afirma que “surge aqui um velho e difícil problema da estética: a contradição
aparentemente insolúvel pela qual tôda real obra de arte é algo único, incomparável,
individual, e ao mesmo tempo só pode se tornar uma autêntica obra de arte se realizar a sua
lei interna, que é um momento da lei estética universal” [LUKÁCS, 1968: 170-1, grifo meu].
O leitor não tem autonomia para interferir nessa lei interna da obra de arte, ele deve apenas
aceitá-la e usufruí-la, uma vez que essa nova realidade é uma realidade sensível.
Temos, então, que um texto autoficcional oferece duas possibilidades de leituras: a
primeira seria uma leitura ciente da brincadeira proposta pelo autor, obedecendo às
referências extratextuais presentes na narrativa; a segunda seria uma leitura que ignoraria
essas mesmas referências e estabeleceria uma leitura formalista para o texto. Desse modo, um
texto autoficcional apresenta dois fins estéticos, a depender do grau de comprometimento do
leitor.
Mas como responder à possível crítica do romance ser um texto pobre esteticamente
por ser um texto referencial? Para Marcuse, um texto que copia a realidade sem transformá-la
79
recebe a alcunha de antiarte. Vejamos se essa pecha se aplicaria a Nove noites. Bernardo
Carvalho escreveu este romance como uma resposta à demanda do público ansioso por
histórias baseadas em fatos reais. Mas, como ele mesmo declarou, tudo não passou de uma
armadilha para o público, os fatos reais apresentados no romance foram misturados com
ficção de modo a ser impossível saber o que corresponderia à realidade e o que seria ficção.
Como dito acima, essa foi a resposta crítica de Carvalho a nossa sociedade voyeurista e
exibicionista. E, para Lukács, foi seu grande trunfo, pois “tôda obra de valor discute
intensamente a totalidade dos grandes problemas de sua época” [LUKÁCS, 1968: 163]. É
certo que Carvalho trouxe para a ficção o problema de um tempo fortemente marcado pela
cultura midiática, pela sociedade do espetáculo, pela presença maciça, nos meios de
comunicação, da intimidade e da apreensão da realidade graças à tecnologia, mas é
igualmente certo que essa discussão não exime Nove noites da marcante presença de
elementos referenciais no interior da obra. Ora, a realidade presente no romance, porém, não é
uma cópia pura e simples do real, que justificaria a pecha de antiarte, de acordo com Marcuse.
Como dito anteriormente, é completamente impossível distinguir-se o que é ficção e o
que é verdadeiro no romance. Por mais que se reconheçam características assumidamente
autobiográficas em Nove noites, não é possível precisar se elas de fato aconteceram ou não, a
começar pelas aventuras do narrador-jornalista entre os índios, que o assemelharia ao autor na
citada fotografia da orelha do livro. Tentar decifrar o que corresponde à verdade é inviável, na
melhor das hipóteses nos levaria para o reino das (im)probabilidades dionisiacamente
caóticas. Portanto, Nove noites não é somente um romance baseado em histórias reais, mas,
dialeticamente, é um romance que subverte o real e oferece ao público uma realidade outra,
artística. Assim, é correto afirmar que a autoficção se distancia muito da autobiografia, pois o
autor autoficcional não tem a “boa fé” do autobiógrafo
15
, que pretende estar o mais próximo
possível da realidade, produzindo um texto pobre esteticamente se tivermos como parâmetro a
inventividade da ficção. A realidade presente na autoficção é antes uma realidade inventada,
mitificada, fictícia. Portanto, não seria correto classificar Nove noites como antiarte porque,
de acordo com Garaudy, “o real, em arte, é uma criação que transfigura, pela presença
humana, a realidade cotidiana” [apud SODRÉ, 1968: 159], como acontece no romance.
Recapitulando, para que a autoficção alcance seu objetivo estético, ela depende da
bagagem cognoscitiva do leitor, caso contrário será lida “apenas como ficção” e esteticamente
15
Como vimos anteriormente, a “boa fé” do autobiógrafo não o exime de se distanciar dos fatos vividos no sentido de que
seu texto é uma construção discursiva. Além disso, a fidelidade ao empirismo pode variar de um autobiógrafo para outro,
oscilando, dessa forma, o grau de ficcionalização da autobiografia. A “boa fé” do autobiógrafo, aqui, é uma referência clara à
teoria de Lejeune.
80
sua leitura será outra. Mas a contribuição do leitor não implica num texto que mereça o
estigma de baixa literatura por causa das referências extratextuais porque elas não são “fiéis”
à verdade, mas subvertem o conceito de realidade e de ficção. Pode-se dizer, portanto, que o
objetivo estético da autoficção é o de manter a ambiguidade em torno das referências
autobiográficas, sem ser possível, mesmo que o leitor reconheça as referências autorais,
discernir o que é ficção e o que é realidade.
Uma outra questão, entretanto, merece ser investigada. Flávio Carneiro [2005], em seu
ensaio “Das vanguardas ao pós-utópico: a ficção brasileira no século XX”, afirma que, na
década de 70, era muito bem definido o adversário contra quem a literatura brasileira de então
se insurgia: a ditadura militar. Com o fim da ditadura, esse inimigo deixou de existir e
nenhum outro ocupou seu lugar. Desse modo, a literatura deixava de lado um aspecto
combativo e revolucionário, pois politicamente o país parecia encaminhar-se para a
normalidade; também não havia nenhum ismo a ser suplantado, isto é, não tínhamos nenhuma
estética vigente que merecesse ser ultrapassada, como fizeram, por exemplo, os modernistas
em relação ao parnasianismo. Para Carneiro, portanto, o que houve a partir daí foi uma
transgressão silenciosa, sem nenhum projeto literário brasileiro definido. A partir dos anos 80,
aparentemente conviveram em harmonia escritores os mais variados com seus projetos
particulares, mas sem uma unidade nacional. Para o crítico, há espaço para qualquer tipo de
literatura sem que estejam associadas sob um mesmo projeto estético.
Apesar da literatura brasileira pós ditadura militar não se arregimentar sob uma mesma
ideologia estética, como apontou Flávio Carneiro, gostaria de chamar a atenção para o grande
número de textos autoficcionais da atualidade, da chamada geração 00, dos mais variados e
diversificados escritores. Se há de fato a ausência de um projeto comum, o que motivaria
autores de gerações diferentes e de origens diversas a escreverem autoficção?
Arrisco a hipótese de que a autoficcionalização se dá na contemporaneidade porque a
nossa cultura imagética com forte apelo pessoal encaminha os autores para escreverem sobre
si. Benjamin já dizia que o homem está cada vez mais pobre na arte de narrar porque lhe falta
o intercâmbio de experiências. Apesar do homem contemporâneo ter acesso à informação de
todo o mundo em tempo real, seja através da televisão ou da internet, essa informação chega a
ele sem que haja interação, diálogo, enfim, intercâmbio de experiências. Restaria para o
escritor contemporâneo falar sobre si próprio na falta de matéria para sua ficção. Essa
hipótese, no entanto, carece de maior pesquisa e aprofundamento, e deixo aqui a indicação
para uma retomada futura do assunto. Fica, porém, a reflexão da autoficção ser uma
consequência, no âmbito das letras, da cultura contemporânea fortemente marcada pela
81
espetacularização da vida íntima, já não mais restrita ao ambiente doméstico, mas, ao
contrário, invadindo, cada vez mais, o espaço público. Para finalizar, se é possível arriscar a
hipótese de que a autoficção se dá em função da ausência do intercâmbio de experiências,
comum em nossa sociedade midiática de rápido acesso à informação, é possível também
estender a hipótese e conjecturar que o grande número de narrativas em primeira pessoa da
atualidade é o resultado da busca do narrador contemporâneo em narrar e trocar suas
vivências, isto é, através dos relatos pessoais, autoficcionais ou não, o narrador do século XXI
driblaria a dificuldade de intercambiar experiências e conseguiria, enfim, se comunicar e
passar o seu recado.
Escrevendo sobre si em Nove noites, Bernardo Carvalho consegue transformar a sua
biografia e os demais fatos reais em uma nova realidade, não mais limitada aos seus aspectos
referenciais. Ele não apenas criou uma ficção a partir de vivências reais, mas baralhou
realidade e ficção de tal forma que ambas deixaram de existir e formaram, juntas, algo novo,
só reconhecível em sua literatura, que é, afinal, a mais verdadeira de todas as verdades.
Quando o narrador-jornalista diz ao índio que ele não precisa se preocupar com sua pesquisa
porque o passado não traria nenhuma consequência real, seria tudo inventado, esquece-se de
que o romance é uma consequência real importantíssima e que é essa verdade que, no final
das contas, interessa.
82
5 A AUTOFICÇÃO PARA ALÉM DE NOVE NOITES
Dentre os autores brasileiros contemporâneos, Bernardo Carvalho, devido à qualidade
e à consistência de sua prosa de ficção, é um nome muito estudado pela Academia. Cresce o
número de dissertações de mestrado e de teses de doutorado que contemplam o autor, além de
ensaios e artigos publicados em revistas especializadas. Vale destacar, entretanto, que Nove
noites é seu único romance autoficcional, dedicando seus outros títulos para diversificar sua
temática. Carvalho não é o único escritor, porém, que escreve ou já escreveu autoficção,
portanto este capítulo é dedicado à análise de alguns autores que também se
autoficcionalizam. Como Nove noites já é, em certa medida, um romance bastante estudado
pela Academia, abro espaço para refletir como a autoficção se apresenta para além de Nove
noites.
Os autores selecionados, apesar de poucos, procuraram abranger a diversidade de
estilos da literatura brasileira, contemplando escritores de gerações, estados e público
diversos. O objetivo, aqui, não é analisar detalhadamente cada uma das obras escolhidas, mas
deixar claro que a autoficção é uma prática vigente em nossa literatura. Também me
interessou averiguar quais são os métodos de autoficcionalização empregados por esses
autores, pois certamente divergem dos utilizados por Bernardo Carvalho. A entrada de cada
um dos escritores obedeceu a um critério alfabético.
5.1 Do blog para a obra impressa: o percurso autoficcional de Clarah AVERBUCK
Máquina de Pinball, romance de estreia de Clarah Averbuck, oferece procedimentos
de autoficcionalização muito particulares, por requererem uma averiguação inicial em um
outro tipo de mídia. Antes da publicação em livro do romance, ele já circulava na web em
forma de blog. A autora postou na internet trechos de seu romance à medida que o ia
escrevendo e, também, aproveitou os melhores trechos de seu diário virtual e os editou pela
Conrad Editora do Brasil. Seu primeiro romance é, portanto, uma bricolagem de textos
escritos na internet e textos escritos com a finalidade da publicação impressa.
Como Clarah Averbuck é conhecida por fazer parte de uma “geração blogueira”,
apesar de refutar o termo, pois não acredita em literatura de blog – para a autora ele seria
83
apenas um meio de publicação –, vale a pena analisar de que modo o blog favoreceria a
autoficção
16
.
O termo blog é composto da junção de web (página na internet) e log (diário de
bordo). Desse modo, blog seria um diário íntimo na internet. Mas essa definição encerra em si
algumas contradições. Como poderia um diário, que sempre foi entendido como um tipo de
escrita que prima pela confidência, pelo segredo, pela não publicação, ser escrito na internet,
para inúmeros leitores, conhecidos e desconhecidos? Que tipo de intimidade pode ser
encontrado virtualmente, uma vez que o diarista sabe, de antemão, que o seu relato será lido e
a sua intimidade se fará pública?
Diferentemente do diário tradicional, escrito em cadernos ou agendas e guardado com
cuidado e longe de olhares indiscretos que desvendariam segredos inconfessáveis, os blogs
não têm a preocupação de se ocultar de seus possíveis leitores; o diarista virtual,
aprioristicamente, espera ser lido e estabelece com seu público uma interação que era
impensada quando da escritura dos diários manuscritos. Seus leitores podem interagir com o
diarista virtual através dos comentários, ferramenta capaz de transformar uma escrita até então
solitária num texto escrito a quatro mãos ou mais, no sentido de que o blogueiro pode
apropriar-se dos comentários e alterar seu texto inicial. Nos blogs, a participação do leitor é
importante e adquire nova relevância, pois ele abandona a mera receptividade de uma leitura
passiva e assume ares autorais, no momento que deixa o seu texto nos comentários e
estabelece uma relação dialógica com o diarista virtual – e com os demais leitores que
acompanham o blog, que também deixam seus comentários, “inaugurando uma era de
intercomunicação coletiva, simultânea e hipertextual” [LOBO, 2007: 16].
É a partir desse novo tipo de comunicação entre autor e leitor, iniciada com os blogs,
que podemos colocar em xeque a sinceridade do blogueiro, pois é pouco provável que as
situações pessoais narradas sejam de fato tão pessoais assim – elas seriam, antes, uma
intimidade encenada. É claro que podemos atribuir ao componente narcisista e exibicionista
presente em nossa cultura contemporânea, que poderia ser um ingrediente motivador para que
o escritor, ao escrever seu blog, se mostre sem pudor. Mas, acreditando nessa sinceridade a
toda prova, nos distanciaríamos da (auto)ficção e nos aproximaríamos da autobiografia e, a
meu ver, não é isso o que ocorre. Denise Schittine assim considera o caráter intimista dessa
nova forma de escrita de si:
16
Não pretendo encerrar uma discussão teórica em torno dos blogs, mas limitar sua abrangência ao interesse presente, que é a
autoficção encontrada em Máquina de pinball, de Clarah Averbuck.
84
Ao considerar o diário virtual, a primeira pergunta que se faz é: o que aconteceu com o
segredo? É preciso, primeiramente, reconhecer que o blog surge como uma nova forma de
escrita em que a qualificação “íntimo” (ou “secreto”) não se aplica mais em seu sentido
original. Esse paradoxo do íntimo aparece porque, em muitos casos, o caráter do que é escrito
continua sendo o da revelação da intimidade, mas existe também a participação do público.
Na rede, vários leitores podem se manifestar a respeito das angústias e dúvidas do diarista
escrevendo e-mails, mandando cartas ou fazendo comentários [SCHITTINE, 2004: 77].
Pode-se duvidar da sinceridade do blogueiro porque um texto que contém
colaborações de outrem já fugiria de uma verdade autobiográfica que poderia estar subjacente
ao relato. Se o blog admite a participação autoral de seu (s) leitor (es), haveria mais de um eu
se confessando na narrativa, afastando-se, dessa forma, da intimidade, estrito senso, do
blogueiro.
Outro ponto a ser considerado, que também distancia o eu autoral do texto, é
justamente a ciência que o autor tem de que será lido, dando-lhe a possibilidade de criar uma
realidade imaginada, que não corresponde, de fato, a sua verdade. A intimidade presente no
blog seria antes a de um alter-ego, de uma persona, de um mito, tal como vimos em Nove
noites. Assim, por mais que se reconheçam dados facilmente imputados ao autor, o seu
desenvolvimento textual foge da verificabilidade e incute a dúvida no leitor, incapaz de
decidir se o que está sendo lido é ou não verdade. Ao contrário do que se observava nos
diários manuscritos, que, sob a proteção da privacidade e do anonimato, permitiam que os
diaristas se sentissem à vontade para escreverem suas verdades mais íntimas, resultando num
texto essencialmente confessional, os diários virtuais mascaram a intimidade e apresentam
uma realidade que, por mais que seja referencial, é fictícia. O espaço virtual é propício para o
blogueiro exercitar sua criatividade e fazer de si um personagem híbrido, ambíguo,
autoficcional.
Essas são algumas questões observadas no romance de Clarah Averbuck, mescla de
um texto escrito na internet e de um texto pensado para ser publicado em livro. Mesmo que
ele não fosse publicado de forma impressa, não é possível afirmar contundentemente que,
enquanto diário virtual, ele estivesse mais próximo da biografia da autora, apesar do blog
propiciar um tipo de escrita que simula a confissão do autor na voz do narrador.
Em Máquina de pinball, há vários momentos de fácil aproximação entre a narradora,
Camila, e a autora, Clarah. Na dedicatória do livro, a banda de rock The Strokes figura entre
aqueles a quem a autora dedica seu romance; neste, a narradora afirma que “ultimamente só
escuto Strokes, banda que alguns incrédulos pouco visionários duvidavam que fosse estourar.
Pra mim era óbvio, virei fã desde que ouvi o primeiro single, The Modern Age, simplesmente
genial, meses antes que qualquer um por aqui tivesse idéia de quem seriam os rapazes”
85
[AVERBUCK, 2002: 15]. A relação com a música é outra característica afim entre narradora
e autora, pois Clarah Averbuck tem uma atividade musical paralela a sua carreira de escritora.
Como ela mesma declarou, é “50% música e 50% literatura” [AVERBUCK, 2007].
Se se quisesse brincar de detetive e procurar pistas capazes de aproximar Camila de
Clarah, facilmente se reconheceria na narradora um modus vivendi da autora – a participação
midiática de Clarah Averbuck facilita o reconhecimento. Sabe-se que Clarah, como Camila,
adota um comportamento alternativo, inspirado na contracultura; tem predileção por autores
como John Fante e Bukowski; é porto-alegrense; abandonou as faculdades de Letras e de
Jornalismo; adora gatos etc. Como a autora, Camila, seu alter-ego, é reconhecida, no romance,
por seu blog, quando Daniel, um fã, a interpela, dizendo-lhe que adora seus textos e lastima
que são muito difíceis de acessar... Estas são apenas algumas poucas coincidências que
permitiriam ao leitor associar narradora e autora. Mas, como já se verificou em Nove noites, a
similaridade entre autor e narrador é apenas aparente, não sendo possível, a partir do que se
encontra no texto, encontrar respostas cabais acerca da identidade do autor, ou melhor, as
experiências vivenciadas pela narradora são apenas da Camila e em momento algum é
possível afirmar que são também de Clarah Averbuck.
Como em Carvalho, aqui também a indecisão é a tônica para quem se ativer à
referencialidade. Para reforçar a dúvida, ao fim da narrativa a autora revela que o romance “é
mentira, mas é tudo verdade. Qualquer semelhança com a realidade não terá sido mera
coincidência. Dúvidas, consulte um advogado” [AVERBUCK, 2002: 79]. O recado da autora
ao seu público, ao término da narrativa, é intitulado de Máquina de pinball, que, de acordo
com Camila, “tem que apertar os botões certos na hora certa pra ganhar” [ibdi, p. 70]. Trata-
se, então, de um jogo? Como ocorre em Nove noites, parece que Clarah também se diverte
brincando com suas referências autobiográficas num texto de ficção. Mas a única alternativa
que o leitor tem de ganhar esse jogo, de apertar o botão certo na hora certa, é considerar o
romance como sendo totalmente ficcional, mesmo porque é impossível saber o que é verdade
ou não. A própria autora, em entrevista a Ramon Mello, quando questionada se Camila, seu
alter-ego, se infiltra na sua vida, afirma:
Sou eu. Não tem o que se infiltrar. Sou eu e é uma ficção. A partir do momento que está
escrito, não interessa se é verdade ou não. As pessoas se preocupam muito com isso.
Aconteceu ou não? As pessoas sabem o que eu deixo elas saberem. Eu só quero escrever e
não me incomodem muito. Elas deviam ler e não se importar tanto [AVERBUCK, 2007].
Averbuck é taxativa na sua resposta. Sim, a Camila é ela, autora; e sim, o romance é
ficção. O que ela parece querer dizer é que se utilizou como arquétipo para a criação de sua
86
personagem, mas que isso não faz de sua literatura um texto apenas referencial. Ele é, de
acordo com Clarah, ficção, ou, se preferirmos, autoficção; afinal, mesmo que não se consiga
distinguir realidade e ficção no romance, Camila é a persona de Clarah Averbuck.
O processo de autoficcionalização presente em Máquina de pinball passa por uma
teorização sobre o que vem a ser o blog e como ele facilita que o blogueiro simule sua
intimidade para o público. A escrita em primeira pessoa presente na internet requer um olhar
atento para o sujeito que encena sua privacidade e constrói a sua identidade discursivamente,
à espera de leitores que complementem o diálogo antes da publicação em forma impressa.
5.2 O mito de Milton HATOUM
Hatoum nos conta, em Órfãos do Eldorado, a história de Arminto Cordovil, jovem
responsabilizado, pelo pai, pela morte de sua mãe, no parto. Arminto cresceu sem o amor
paternal e, futuramente, quando tem a oportunidade de se vingar, põe a perder a fortuna que
herdara, leva a empresa à falência e se desfaz de todas as propriedades adquiridas, vivendo o
resto de seus dias na miséria.
Narrado em primeira pessoa por Arminto, a novela – escrita sob encomenda para a
série Mitos, da editora escocesa Canongate – se passa no Amazonas e é repleta de um
universo mítico, transformando a narrativa “num misto de história e mitologia em que
memória e imaginação têm a mesma relevância” [JEHA, 2008: 151]. É nessa atmosfera que o
leitor conhece Dinaura, jovem órfã que encanta e apaixona o narrador, desaparecida após uma
primeira e única relação sexual. Teria ela ido para o Eldorado, a cidade encantada? Deixemos
que o leitor responda essa pergunta e se encante com os demais personagens, como a Florita,
empregada de Amando Cordovil e mulher com quem Arminto teve sua primeira experiência
sexual, e Estiliano, amigo e advogado de Amando que, de certa forma, se responsabiliza em
orientar Arminto quando de sua orfandade, pois, o que interessa, aqui, é menos o enredo da
novela e mais o que justificaria a mesma a figurar como exemplar de um texto autoficcional.
O leitor que se dispuser a lê-la atrás de pistas autorais poderá se inquietar, pois a única
semelhança entre o narrador e o autor é a Amazônia como sua terra natal. Muito pouco para
justificar uma autoficção. Apenas ao final da narrativa, no posfácio, o autor afirma que a
história mítica de Arminto fora ouvida, de seu avô, “num domingo de 1965, quando ainda não
havia TV no Amazonas” [HATOUM, 2008: 105]. Hatoum confessa que adorava ouvir as
histórias do avô e esta, em especial, por sua vez fora contada ao avô “por um homem tão
velho que nem sabia sua idade” [ibdi, p. 206].
87
A autoficção em Órfãos do Eldorado é singular porque, diferentemente de Nove noites
e Máquina de pinball, toda a história é narrada sem a participação textual do autor. Não há,
nesta novela de Milton Hatoum, nenhuma referência que remeta diretamente ao autor; em
momento algum da narrativa o leitor suspeita de possível alusão autoral, o que excluiria
Órfãos do Eldorado do rol da prosa autoficcional. O que merece destaque é a necessidade de
Hatoum, no posfácio, se fazer presente, confessando que a história criada não é sua, mas fora
ouvida de seu avô, que, por sua vez, a ouvira de uma terceira pessoa. O que justificaria essa
confissão do autor? Por que, após o ponto final da narrativa, ele se dirige a seus leitores para
se fazer presente e rememorar sua infância, momento em que trava contato com a história dos
órfãos?
Uma resposta satisfatória e decisiva, infelizmente, apenas o autor a poderia fornecer,
mas existe a possibilidade dele buscar participar de alguma forma da trama, prática comum na
literatura brasileira contemporânea. Ele, diferentemente de Carvalho e Averbuck, não faz de si
um personagem de ficção no sentido de que não faz parte do enredo; sua participação é mais
comedida. É claro que todo autor, ao escrever sua obra, se utiliza de sua experiência de
mundo, de suas vivências, suas leituras, etc. Nem por isso, no entanto, é prática usual, entre os
prosadores, ao término da narrativa, explicitar a fonte de seus textos
17
. Uma vez encerrada a
obra, encerra-se com ela a motivação do autor, ou, se persistir a curiosidade de como ele
construiu o texto, cabe ao leitor a tarefa de imaginar e/ou pesquisar qual foi o processo
criativo empregado. Hatoum, fugindo à regra, afirma de onde tirou o mito do Eldorado.
Há, porém, outra possibilidade. É possível que o posfácio tenha sido uma exigência da
editora, de modo a explicitar aos seus leitores a que mito o autor se refere, uma vez que
Hatoum escreveu sob encomenda. Seja qual for a resposta, o fato é que, num e noutro caso, o
autor passa a se fazer presente no texto. Talvez por isso, na folha de rosto, haja um alerta de
que “os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se
referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles” [HATOUM, 2008: 4,
grifo do original]. Se lembrarmos da noção de pacto postulada por Lejeune, não
compreendemos a necessidade desse aviso, uma vez que o leitor, ao se deparar com um texto
de ficção, sabe previamente que não encontrará a “realidade”. Ambas as intervenções – o
aviso na folha de rosto e o posfácio – nos fazem pensar qual o motivo de tanto cuidado em
17
No epílogo de Macunaíma, de Mário de Andrade – obra com a qual Órfãos do Eldorado dialoga –, a figura do autor
também se faz presente para, ficcionalmente, explicitar a fonte de seu texto: “Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa
rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui” [ANDRADE,
1992: 135].
88
torno de uma ficção. Se atinarmos que a novela trata de um mito, podemos desembaraçar o
problema, pois “ele não vive na fronteira da verdade e da mentira, da realidade e da fabulação,
do sono e da vigília?” [PINTO, 2008] Esse é o mito de Milton Hatoum.
Órfãos do Eldorado merece figurar nessa amostra de textos autoficcionais porque,
numa narrativa que prescindiria, para sua verossimilhança, da figura autoral, mesmo assim ela
se faz presente.
5.3 O universo multimidiático de Ivana Arruda LEITE
Dos livros analisados até aqui, apenas Nove noites apresentava signos extratextuais
importantes para a formação de significados. As fotografias no interior da narrativa e a da
orelha do livro ajudaram o leitor a formar uma imagem do autor, ciente de que havia algo a
mais compondo a história além do texto. Verificou-se também que, em Máquina de pinball,
se fez presente a interação da literatura com outra mídia: os blogs e o universo virtual, o que
seria uma novidade na construção de uma identidade autoficcional. Ivana Arruda Leite, no
divertido Eu te darei o céu: e outras promessas dos anos 60, apresenta um procedimento
autoficcional que flerta com vários veículos de comunicação midiática, inserindo-se, assim, a
contento no seio da cultura imagética da atualidade.
A primeira aproximação com uma escrita de si, no entanto, reside na escolha da autora
em apresentar a sua compreensão de mundo dos anos 60 na voz da telemaníaca Titila. Com
um capítulo para cada ano da década e um derradeiro para o ano de 1980, a narradora
rememora os fatos marcantes de sua vida e, de quebra, pincela o que de mais importante
aconteceu no Brasil e no mundo. Formalmente, o livro é, dentre os que integram o corpus
deste estudo, o que mais se assemelha a uma autobiografia, no sentido de que obedece a uma
linearidade temporal; o leitor acompanha o crescimento de Titila e as transformações pelas
quais ela passa, desde sua infância no interior de São Paulo até sua maturidade como repórter
fotográfica na capital.
Acresce-se ao texto, no início de cada capítulo, como uma espécie de epígrafe
representando um fato marcante referente a cada ano que se inicia, um recorte de notícia de
jornal, o primeiro empréstimo midiático utilizado pela autora. É certo que literatura e
imprensa sempre caminharam de mãos dadas, haja vista a publicação em folhetins de nossos
escritores, ainda no século XIX, ou os romances-reportagem, na década de 70, maneira
encontrada pelos romancistas de fugirem da censura militar. A apropriação das notícias por
Ivana, no entanto, ganha muito em originalidade, pois elas conferem ao texto uma alternância
89
entre o ponto de vista particular da narradora e um ponto de vista geral, comum a toda a
população, da qual ela faz parte. Mais do que simples epígrafes para os capítulos, “no seu
conjunto, os recortes funcionam como uma história paralela, iniciada com as festas de
inauguração de Brasília e terminando com a conquista do tricampeonato mundial de futebol
(no epílogo, lembra-se o assassinato de John Lennon)” [CARNEIRO, 2005: 261]. As doze
notícias que compõem a novela podem ser lidas, portanto, como uma narrativa à parte,
evidenciando o que de importante aconteceu nesse intervalo de tempo aos olhos de Titila.
Em quase todas as páginas do livro, há fotografias e gravuras que ilustram a narrativa,
segunda apropriação da autora de um outro tipo de informação midiática. As imagens são bem
representativas do universo televisivo que fascina a narradora, pois, como ela mesma admite:
“A televisão era o meu mundo encantado. Não tinha diversão, passeio ou brincadeira que me
divertisse mais” [LEITE, 2004: 15]. A respeito da fascinação que a televisão desperta na
jovem Titila, temática constante em toda a novela, Ana Cláudia Viegas afirma que “a cultura
do livro, paradigma da modernidade, vai-se hibridizando com outros suportes, de modo que a
literatura do presente se mescla às linguagens cinematográfica, televisiva, da publicidade, do
videoclip e ainda à circulação de textos via internet” [VIEGAS, 2009]. Os textos literários, na
medida em que os vários media se intercomunicam, importam para as páginas impressas suas
características.
Dentre todos os meios de comunicação, a televisão é, seguramente, a mais
influenciadora, dado o seu alcance e a sua acessibilidade. Sobre a rapidez da sucessão de
imagens televisivas, Viegas lembra que, com a invenção do controle remoto, os
telespectadores se adaptaram a uma nova forma de audiência, capaz de acompanhar mais de
um programa ao mesmo tempo, de modo a tornar a já rápida troca de imagens muito mais
veloz e mais superficial, pois fica quase impossível reter todas as informações veiculadas na
telinha. Eu te darei o céu: e outras promessas dos anos 60 reflete a rapidez presente na
televisão, não só porque Titila é uma telemaníaca inveterada, mas, principalmente, porque
a indiferenciação e o nivelamento das imagens veiculadas pela televisão fazem com que o
interesse de Titila se desloque rapidamente de Hebe Camargo a Yuri Gagarin, de Che
Guevara a Dana de Teffé (uma milionária carioca assassinada misteriosamente), de modo que
seu texto zapeie entre realidade e ficção, público e privado, geral e particular, tornando esses
limites indistinguíveis no universo mítico das celebridades [VIEGAS, 2004: 3].
Os interesses e a maneira pela qual Titila pula de um assunto a outro assemelham-se
ao zapping de um telespectador diante da televisão, importando para a literatura o hábito
adquirido em outro veículo midiático. No caso dessa novela, procedimento muito feliz e bem
90
realizado, pois quem melhor do que Titila para nortear sua visão de mundo de acordo com a
rapidez das imagens trocadas diante do aparelho televisor?
Dentre as várias fotografias que compõem a novela, há uma em especial que merece
destaque: a foto da autora fantasiada com a mesma fantasia utilizada por Titila, aproximando
autora e narradora, procedimento similar ao encontrado em Nove noites. Como o livro trata
das memórias de Titila, antes mesmo dessa fotografia já seria possível identificar algumas
coincidências entre autora e narradora, mas um leitor que desconhecesse a biografia de Ivana
Arruda Leite não perceberia as referências. A foto, porém, não deixa mais dúvidas. Titila e
Ivana são a mesma pessoa, o que não significa, claro, que todo o relato de Titila é verídico e
se refere à autobiografia da escritora. É possível aproximá-las apenas apolineamente, sem
qualquer certeza sobre o que é narrado. Se quiser averiguar com mais profundidade a vida da
autora, o leitor saberá que ela nasceu em Araçatuba, em 1951 (dados fornecidos no próprio
livro, ao término da narrativa), do mesmo modo que Titila. Isso, no entanto, é tudo, salvo uma
pesquisa mais detalhada a que se submeta o curioso leitor. A mesma idade e as memórias de
Titila são suficientes para incutir a dúvida no leitor, indeciso se deve acreditar se tratar de uma
autobiografia ou de memórias ficcionais, pois “as lembranças de Titila são também as da
geração de Ivana, o que coloca a narrativa no entrelugar da autobiografia e da ficção”
[VIEGAS, 2004: 3, grifo do original].
Para finalizar, a grande novidade de Eu te darei o céu: e outras promessas dos anos 60
é apresentar o eu autoficcional inserido na cultura multimidiática da qual fazemos parte.
Vimos no terceiro capítulo que a participação midiática do escritor contemporâneo é decisiva
para o retorno do autor; logo, nada mais apropriado para uma autoficção do que uma
narradora tiete e uma novela subdividida em três narrativas: a textual, a jornalística e a
imagética.
5.4 A fusão autoficcional de Marcelo MIRISOLA
Marcelo Mirisola reuniu, em O homem da quitinete de marfim, as crônicas que
publicou no site da AOL em 2004. As crônicas são um gênero que, normalmente, refletem a
voz do próprio cronista, sem um mascaramento deste por trás de um narrador. Desse modo,
nos mais de quarenta títulos componentes da seleção de Mirisola, temos a sua opinião a
respeito dos temas tratados. O autor aproveita o espaço para reclamar das injustas exclusões
de prêmios literários, da falta de convite para participar da FLIP, da mediocridade, a seu ver,
inconteste da nossa produção ficcional, dentre outros protestos, atirados em todas as direções.
91
O que se percebe, no conjunto das crônicas, é uma unidade temático-estilística, que
permite o reconhecimento de todas sob uma mesma assinatura. Do mesmo modo que Mário
de Alencar foi capaz de adivinhar a autoria de uma crônica de Machado devido ao seu estilo,
qualquer uma das crônicas publicadas em O homem da quitinete de marfim é também
facilmente imputada a Mirisola. Seu estilo escrachado e iconoclasta faz-se presente, inclusive,
na orelha do livro, assinado pelo próprio “mestre do insuportável”.
Mas, se as crônicas são a expressão do pensamento do cronista, em que medida é
possível falar em autoficção na sua produção cronística? A minha hipótese é a de que o autor
cria uma persona tão acentuada, forjando para si uma identidade que se mistura
indissociavelmente a sua ficção, que mesmo nas crônicas não sabemos se quem fala é o autor
ou seu alter-ego. Dito de outro modo, os narradores de seus contos e de seus romances
assumem um travestimento tão intenso de suas referências autobiográficas, que, mesmo num
texto que a priori seria a tradução dos pontos de vista do autor, fica-se sem saber se são de
fato de Marcelo Mirisola ou se trata do prolongamento de seus narradores ficcionais. Mirisola
autoficcionaliza-se a tal ponto que parece perder a sua identidade enquanto pessoa física,
deixando seus leitores sempre na dúvida sobre quem fala, seja na sua ficção, nas crônicas, ou
ainda em entrevistas.
Tanto na sua prosa de ficção como em suas crônicas, sua postura se repete. Um
exemplo é sua conta bancária publicada com a finalidade de corrigir a injustiça de sua não
premiação em concursos literários. Em “Crônica para Antônia”, ele escreve: “Anotem, todos
vocês, o número da minha conta: Itaú, ag. 0189 c/c 48227-6. Nem vou cobrar do Fabrício
Carpinejar porque ele escreveu a orelha do meu Bangalô. De qualquer forma, a conta está aí.
Na próxima coluna digo quem teve vergonha na cara e me devolveu o dinheiro” [MIRISOLA,
2007: 148]. Em Joana a contragosto, sua conta bancária reaparece. Inúmeros outros exemplos
poderiam ser arrolados aqui de modo a evidenciar o jogo proposto pelo autor em se confundir
com seus personagens. Luciene Azevedo, a esse respeito, assinala que “a confusão entre o
autor, pessoa física, e a persona fictícia é estimulada todo o tempo, desde cartas publicadas
como contos e assinadas com o nome do autor, até a introdução de vários componentes
biográficos, repetidos em textos diversos e mesclados à parafernália ficcional” [AZEVEDO,
2004: 77].
A dúvida poderia ser desfeita com a participação midiática de Mirisola. Nesse caso,
seus leitores veriam quem realmente é o autor. Porém, não é isso o que ocorre. Ele parece
saber muito bem como iludir o público e, assim, mesmo em entrevistas, mantém a máscara e
desestabiliza qualquer possível tentativa de clareamento sobre sua identidade. Do mesmo
92
modo que o autor se inventa em sua ficção, em entrevistas ele também se desdiz, afirmando
que suas respostas eram, na verdade, mentiras. Cria, assim, uma aura de mistério em torno de
si próprio, impossibilitando que o leitor saiba ao certo quem é Marcelo Mirisola. Sobre uma
pergunta feita a respeito da adaptação de seu livro O herói devolvido para o teatro, por Mário
Bortolotto, se o Marcelo da cena corresponderia ao seu alter-ego, ele responde: “Claro que
sim! Não existe ficção. Eu parto da minha realidade. Ali, tem a realidade do Mário quando ele
se defrontou com meu texto surgindo: a realidade da cena; a realidade dos atores. Mas o ponto
de partida foi meu: minha vida” [MIRISOLA, 2002].
É certo que a sua biografia é a matéria-prima para a sua ficção, mas, a meu ver,
Mirisola autoficcionalizou-se tão incisivamente, em todos os seus textos, que não sabemos
mais quem é ele, ou melhor, ele é o que sua obra revela. Para Luciene, “no caso de Marcelo
Mirisola essa tarefa foi tomada a pulso por ele mesmo. A preocupação em criar um perfil de
autor tão polêmico quanto seus próprios textos é evidente em várias entrevistas. (...) Mirisola
dedicou-se com afinco a criar lendas sobre si próprio” [AZEVEDO, 2004: 81].
Essa autoficcionalização desmedida pode indicar um empobrecimento de sua
literatura, no sentido de que o conjunto de sua obra não apresentaria novidade entre um texto
e outro, ou, ao contrário, evidencia a sua genialidade, como o nada modesto autor costuma
afirmar.
5.5 A redenção autoficcional de Cíntia MOSCOVICH
Por que sou gorda, mamãe? é um romance autoficcional típico: sua narradora em
primeira pessoa guarda inúmeras semelhanças biográficas com a autora – a começar pela
profissão – e estas não fornecem nenhuma certeza a respeito da veracidade dos fatos. O leitor
permaneceria indeciso, ao longo de toda a narrativa, se à voz da narradora poderia ser
atribuída a própria autora, ou melhor, mesmo que se estabeleça uma equivalência entre
ambas, o que é narrado fugiria do diapasão da verdade autobiográfica, de acordo com a
estética autoficcional, interessada em criar e manter a ambiguidade.
Livro sem nenhum recurso extratextual
18
para complementar a narrativa e confundir
mais o público, como foi o caso de Nove noites e Eu te darei o céu: e outras promessas dos
18
Por que sou gorda, mamãe? não contém fotografias, ilustrações ou recortes de jornal, signos que aumentariam a
ambiguidade textual, porém o romance apresenta dedicatória e agradecimentos, que ajudam a despertar a mesma “confusão”
no leitor.
93
anos 60, Por que sou gorda, mamãe? brinca com as referências autobiográficas apenas
textualmente. Na primeira página do livro, no prólogo, a narradora diz:
Depois, trato de purificar a memória em invenção. Mas só depois daquele ponto final. Porque
meu ofício é exclusivamente escrever – o que significa erro em cima de erro –, há um livro
para ser escrito. Usar-me como matéria de ficção: aí está a única forma de saber o que foi,
porque preciso saber o que foi para o novo começo [MOSCOVICH, 2006: 13].
A primeira pista autoficcional do romance serve para apontar o motivo de sua inclusão
dentre os sete livros analisados neste capítulo. Cíntia Moscovich, inicialmente, inspirou-se na
Carta ao pai
19
, de Kafka, para escrever a sua “carta à mãe”. Seria um diálogo aberto com sua
mãe, de maneira a expurgar seus ressentimentos e exorcizar seus demônios numa tentativa de
superar, psicanaliticamente, possíveis diferenças.
Todavia, a autora não conseguiu escrever sobre si, sentia uma espécie de bloqueio que
a impedia de realizar a sua tarefa de escrever uma carta a sua mãe do mesmo modo que Kafka
escrevera a seu pai. A solução encontrada por Cíntia Moscovich para esse impasse foi recorrer
à ficção. A partir do momento que a mãe de seu romance não fosse mais a sua mãe, ela
conseguiria finalizar a obra. Ainda no prólogo, encontramos a justificativa: “Talvez por isso
tenha me dedicado à ficção, que é a última possibilidade de juntar um fato a outro e tornar
íntegro o partido e o faltante. A ficção é cimento de unir as partes. De casar o avulso e o
desconexo. Cinza e poeira, a ficção talvez as transforme no sólido da pedra” [ibdi, p. 18].
Por que sou gorda, mamãe? é exemplar de um texto que, para falar sobre a verdade,
recorreu à (auto)ficção – este é mais um caso em que a ficção supera a realidade. Após as
páginas do prólogo, encontram-se várias coincidências autobiográficas (faculdade de Letras e
de Jornalismo, o ofício como escritora, o judaísmo, etc.), mas a “liga” entre essas
coincidências é que se torna incerta. À mãe destinatária da narradora corresponde Geni
Moscovich, mãe da autora? Se o leitor não pode ter certeza sobre a personagem a quem a
narradora se dirige em toda a obra, como confiar nas referências do romance? Os irmãos de
Cíntia chamam-se Henrique Moscovich e Jairo Moscovich, mas os irmãos da narradora
chamam-se Hersh e Yacov e não têm sobrenomes. Do mesmo modo que é possível apontar
várias semelhanças entre autora e narradora, são também encontradas disparidades no tocante
à autobiografia de Cíntia Moscovich, caracterizando, assim, a autoficção.
No epílogo, há uma recuperação do que fora anunciado no prólogo. Diz a narradora:
19
O site da autora (http://www.cintiamoscovich.com/site/index.htm) contém resenhas que abordam a inspiração em Kakfa.
Vide “Carta à mãe”, de Berta Waldman, e “Viver engorda”, de Manuel da Costa Pinto.
94
Até aqui, tratei de purificar a memória em invenção; a única forma de saber o que
foi, porque precisei saber o que foi para um novo começo – até que o mesmo fim derradeiro,
universal e inescapável seja a única verdade que reste e que faça nada mais restar.
Um epílogo. Truque narrativo. Truques narrativos não devem ser aparentes. Truques
narrativos são mentiras esfumaçadas a ponto de parecer verdade.
Um epílogo, portanto. [MOSCOVICH, 2006: 241].
A ficção, na obra de Cíntia Moscovich, estaria entre o prólogo e o epílogo? Estes
teriam sido reservados para que a própria autora se justificasse da ficção utilizada como
redenção para sua carta à mãe? Ou é tudo mentira, truque narrativo? Na falta de respostas
definitivas, o leitor entrega-se à divertida batalha da narradora em perder vinte e dois quilos
adquiridos,
pois pouco importa que consiga ou não exumar a verdade dessa massa pretérita. Importa
muito menos que o livro seja bom. Importa é saber: na passagem do tempo, o branco e o
límpido do bom e da verdade vão se matizando até alcançar a nódoa cinzenta e baça e informe
do que não significa absoluta e rigorosamente nada [ibdi, p. 13].
5.6 O autor e seu duplo: o work in progress de João Gilberto NOLL
Berkeley em Bellagio é o nono romance de Noll e o primeiro em que seu protagonista
é nomeado. Em seus romances anteriores, ele era sempre anônimo, apesar de guardar
características próprias, o que, de acordo com Flávio Carneiro [2005], não era motivo de
monotonia, mas de expectativa, pois o leitor aguardaria qual seria a sua novidade em relação
aos livros anteriores. Nesta obra de Noll, uma das novidades é justamente seu nome – João. O
nome próprio não é, entretanto, a única coincidência entre autor e narrador. Inúmeras outras
surgem ao longo da narrativa, como a cidade de Porto Alegre, o magistério, o convite para
lecionar literatura brasileira na universidade de Berkeley e o recebimento de uma bolsa para
escrever um livro em Bellagio, dentre outras. Assim o narrador se refere à “séria tarefa a que
se propôs”, ao aceitar a bolsa: “um livro que se produz quase sozinho – é só sentar à frente do
meu laptop e pronto, lá vem a história que eu não conhecia ainda, é isso, a história que eles
querem que eu faça (...)” [NOLL, 2003: 70].
Este romance se desenvolve à medida que Noll vivencia sua experiência como bolsista
em Bellagio, isto é, o livro seria escrito concomitantemente aos fatos narrados; a cada nova
experiência do autor na Itália, o narrador prossegue com sua narrativa, com seu “livro in
progress que teimava em não avançar, temendo talvez que o autor tivesse de dizer ao fim e ao
cabo o que nunca conseguira revelar antes nem nos livros nem na vida (...)” [ibdi, p. 25].
Como vimos no terceiro capítulo, para Barthes o escritor moderno e seu texto nascem ao
95
mesmo tempo, mais uma razão para justificar a morte do autor sobre a qual falava o francês.
Aqui, autor autoficcional e texto nascem juntos, uma vez que a experiência autoral é narrada
in loco, ou melhor, a escrita de Noll encena uma concomitância entre escritura e vida, entre
texto e experiência, semelhante a um diário.
Essa simultaneidade representada em Berkeley em Bellagio ajuda a entender a
alternância das vozes em primeira e em terceira pessoa no romance. Para Diana Klinger,
a escrita do romance não é senão a indagação do sujeito da escrita. O narrador se refere a si
próprio ora em primeira pessoa ora em terceira pessoa, deslocamento que parece traçar o
movimento de aproximação e afastamento entre a(u)tor e personagem, construindo um sujeito
que oscila entre “atuar” e o “representar” [KLINGER, 2007: 59].
Qualquer possível aproximação com uma autobiografia é desfeita não apenas pela
constante substituição das vozes do narrador, mas principalmente porque uma escrita
autobiográfica é retrospectiva, isto é, primeiro se vive para depois se narrar, ao passo que
neste romance de Noll vivência e escritura são conjuntas – o texto que se constrói para o leitor
não é senão o próprio livro que estamos lendo, aquele que o autor (e não o narrador) escreve
em Bellagio, de maneira que assistiríamos a um (ilusório, é claro) work in progress, numa
estrutura recursiva e paradoxal, na qual uma parte (o projeto do narrador) contém o todo (o
romance que estamos lendo)” [ibdi, p. 58, grifo do original].
Dessa maneira, é o próprio autor – João – o personagem que nos conta como o livro se
escreve. Sua dificuldade em começar a escritura do romance, tarefa adiada a todo o momento,
desconstrói, de acordo com Diana Klinger, o mito do gênio romântico, mas, por outro lado,
cria um novo mito, o do escritor autoficcional. Como em todos os livros analisados neste
estudo, por mais evidências que se apresentem entre autor e narrador, é impossível saber se o
que João narra correspondeu de fato a sua vivência em Bellagio. E isso não é o mais
importante. A incerteza gerada pela autoficção é a evidência de que não se pode mais, na
contemporaneidade, falar em sujeito pleno. Ele agora é fragmentado, sem a unidade
presumível que a autobiografia conferia, por exemplo.
Berkeley em Bellagio, dentre os textos autoficcionais componentes deste estudo,
exemplifica como o autor autoficcional está intimamente atrelado a sua obra; neste romance
de Noll, temos uma interação en abîme na qual o autor se presentifica porque escreve seu
livro, que, por sua vez, só pode ser escrito graças à presença autoral.
96
5.7 As histórias mal contadas de Silviano SANTIAGO
Escrever uma análise concisa sobre Histórias mal contadas é uma tarefa difícil,
porque cada conto, além de ser autônomo em relação aos demais, fornece material para muita
discussão. Para uma leitura autoficcional, porém, objeto deste estudo, poderia assinalar a
obviedade das características autobiográficas dos narradores dos cinco primeiros contos, que
compõem a primeira parte do livro, como exemplos suficientes para se falar em autoficção.
São narradores que, como o autor, iniciaram um doutorado em literatura francesa na França,
começaram a vida acadêmica lecionando nos Estados Unidos, tamm exercem a atividade de
escritor, dentre outras semelhanças. A respeito da utilização de dados empíricos como matéria
para a literatura, o narrador de “Bom-dia, simpatia” regozija-se de “como é gostoso poder
trabalhar a experiência de vida com a liberdade do oleiro que molda o barro com as mãos. As
palavras se deslocam do fato real, ganham as asas da imaginação e, como os aviões da
esquadrilha da fumaça, fazem piruetas caligráficas pelo céu azul da glória” [SANTIAGO,
2005: 94]. Esse ponto, ao mesmo tempo próximo e deslocado dos fatos reais, é comum a
todos os textos autoficcionais que verificamos até aqui.
Todavia, a inclusão de Histórias mal contadas neste estudo foge das referências
patentes do escritor. Na segunda parte do livro, as sete histórias apropriadas que completam a
coletânea apresentam uma novidade no que diz respeito aos procedimentos autoficcionais
analisados até o momento.
Em “Todas as coisas à sua vez”, conto escrito em homenagem aos 50 anos da morte de
Graciliano Ramos, o autor assume a voz do “notável escritor”, num exercício de pastiche
semelhante ao de Em liberdade. É ciente de sua produção bibliográfica anterior que o leitor
conseguirá perceber a recorrência da reverência a Graciliano. É claro que não se pode falar
em autoficção devido à retomada do tema, mesmo que o romance e o conto estejam em
primeira pessoa, mas, como o próprio Silviano declarara, à medida que ele lê um texto, este
passa a ser seu texto, do mesmo modo que ele assume a identidade dos personagens das obras
que lê. Pergunta o autor, em palestra realizada no Departamento de Letras da PUC-Rio:
Os relatos da (minha) experiência de vida não se dariam numa man’s land chamada literatura,
onde montei e toco a fábrica de manequins? Nesta, são manufaturados tantos e muitíssimos
outros manequins de palavras, que se referem à minha imagem especular primeira e dela se
distanciam por me levarem a incorporar rostos e experiências que, parecidos aos meus, não
são iguais a eles? [SANTIAGO, 2004: 246].
97
Se a leitura de uma obra literária é suficientemente intensa para personificar no leitor
as características dos personagens, o que dizer quando o autor faz de um outro escritor seu
próprio personagem? Graciliano, tal como Silviano, criou ummero grande de personagens,
com suas personalidades e subjetividades próprias, cuja criação partiu do mesmo ponto: a
criatividade e a experiência do autor. Ao ler as histórias de Graciliano, Silviano absorve para
si o aprendizado de sua literatura, devolvendo-as ao autor de Infância, agora acrescidas da
experiência do próprio Silviano. Ao escrever um conto em homenagem ao modernista,
assumindo a sua voz, Silviano Santiago confunde-se com seu homenageado, de maneira a
revelar-se no texto, nem que seja sob a experiência literária.
Em “Hello, Dolly!”, a presença autoral ainda é velada. Após endereçar uma carta a
Walter Benjamin, filósofo de quem Silviano é leitor e admirador, reclamando da perda de sua
aura – clara referência ao texto clássico “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” –, o remetente assina como “seu velho amigo”. Dizer que é o autor o responsável
pela escritura da carta é possível e igualmente arriscado. É possível porque a produção
bibliográfica de Silviano, principalmente se nos concentrarmos em seus textos críticos,
dialoga muito com Benjamin, o que justificaria uma carta ao alemão; arriscado porque
textualmente não se observa nenhuma referência direta e explícita ao escritor, salvo ele
também ser benjaminiano e pós-moderno, como o autor da carta.
Mais do que procurar dados biográficos que aproximem o autor do missivista, é mais
producente se verificar a perda da aura da qual este se queixa no contexto contemporâneo,
além da quebra de limites entre o público e o privado, e da espetacularização da intimidade.
Queixa-se o missivista de que, com a perda de sua aura, agora ele é “cara de um, focinho de
muitos” [SANTIAGO, 2005: 154]. Leonor Arfuch [2002] já alertava que o interesse do
público por histórias pessoais, autobiográficas, residia na identificação encontrada entre
pessoas aparentemente tão diferentes e singulares, mas que encontram pontos de interseção
entre si. Os meios de comunicação facilitam essas proximidade e identificação, de maneira a
que seja interessante especular a vida alheia. Pode-se atribuir uma veia crítica, no conto, à
pluralidade de subjetividades que acabam por se igualar. Assim a carta se encaminha para o
fim, à espera de uma resposta de Benjamin para a crise de identidade que a perda da aura teria
provocado:
Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem, depois desse falimento? Não é a minha
própria identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro
que não eu conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises de
angústia, na montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? [ibdi, p. 156].
98
É também em formato epistolar o conto seguinte, “Conversei ontem à tardinha com o
nosso querido Carlos”. A carta, endereçada a Mário de Andrade, é sobre uma outra carta
escrita por Mário para Carlos Drummond de Andrade. Vale lembrar que, via de regra, a
correspondência é um tipo de discurso que “presentifica” o emissor, ou seja, é um veículo de
comunicação direta entre dois sujeitos, sem o mascaramento de um narrador ficcional.
Silviano Santiago ocupou-se da correspondência de ambos, por isso seu narrador pode
afirmar que “[foi] indiscreto, lendo a você por cima dos ombros de Carlos”
20
[SANTIAGO,
2005: 167]. Este conto, entretanto, é mais explícito do que os anteriores, fornecendo em seu
interior dados autobiográficos, como a formação de professor e a cidade natal de Formiga, em
Minas Gerais. Do mesmo modo que Silviano incorpora para si as leituras das obras como
sendo suas, aqui o narrador dirige-se a Mário comunicando que “com o seu sim, com o seu
não (...), a descoberta que fiz pesa, vale, a incorporo, já é minha e vou fazê-la render nos meus
escritos futuros. Ando pensando em escrever um romance que se chamará Uma história de
família. Lá v. virará personagem, sob o nome de tio Mário” [ibdi, p. 169]. A presença autoral
é, pois, explícita.
As atividades docente e literária de Silviano o fazem íntimo de Mário de Andrade, sem
falar que a própria leitura da correspondência andradina – gênero textual bastante particular –
convida Silviano a participar de sua intimidade, motivando-o a também escrever-lhe uma
carta. Já próximo de concluir, o narrador diz que “ao fim desta carta, já não sei se estive
falando de você e do Carlos, ou de mim mesmo todo o tempo” [ibdi, p. 170]. A declaração de
Silviano que vimos acima sobre a incorporação de suas leituras para a formação de sua
experiência pessoal ajuda a se entender a dúvida do narrador. Talvez se possa dizer que, para
falar de Mário e de Drummond, fosse preciso que ele [o autor] falasse também de si.
Diferentemente da carta escrita a Benjamin, nesta ele assina como Silviano. Percebe-se um
diálogo, em sua obra, com vários escritores (Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Walter
Benjamin, Carlos Drummond de Andrade), o que reflete, também, sua interação profissional.
“Caíram as fichas”, último conto do livro e o último selecionado para esses breves
comentários, retoma uma prática usual na literatura de Silviano: o pastiche. Este conto seria a
reunião de dezenove fichas escritas por Mário de Andrade para orientá-lo sobre a conferência
que o papa do modernismo brasileiro faria no aniversário de vinte anos do movimento.
Antecede as fichas um texto introdutório e explicativo com a função de atestar sua
“veracidade”, isto é, uma espécie de preâmbulo com o objetivo de dar uma sustentação
20
Silviano organizou, em livro, a correspondência entre Mário e Drummond, o que justificaria, também, sua intimidade.
99
verossímil às fichas de Mário. O leitor, ao encerrar essa introdução, recebe a seguinte
informação: “Pela cópia e pelas notas de pé de página, Silviano Santiago” [SANTIAGO,
2005: 171]. Essa informação ajuda na confusão provocada por Silviano, porque sua atuação
profissional como pesquisador de literatura brasileira é condizente com a proposta
apresentada no conto.
Além de seu nome como responsável pela cópia e pelas notas de pé de página, a vida
profissional do autor é suficiente para dar credibilidade às fichas de Mário, ou melhor, para
criar a interrogação na cabeça do leitor, indeciso se deve atribuir as fichas ao conferencista ou
ao autor. A linguagem utilizada pelo narrador, a contextualização num cenário muito bem
conhecido pelo professor e crítico de literatura Silviano Santiago, os comentários explicativos
entre colchetes no interior da narrativa e as notas de pé de página colaboram para que os
escritos ficcionais de Silviano confundam-se com as anotações de Mário. O conto encerra-se
com a declaração [do autor?] de que “nunca [foi] tão sincero”.
Histórias mal contadas é um livro dividido em duas partes, na qual à primeira
corresponderia a autoficção “clássica”, recheada de dados autobiográficos que não explicam a
biografia do autor; a segunda contém procedimentos autoficcionais singulares, nos quais
Silviano se vale de sua compreensão e prática de literatura para se mesclar aos contos
indissociavelmente.
100
ÚLTIMAS PALAVRAS
A inclusão da autoficção no rol dos textos sobre a escrita de si requer que a situemos
no contexto da cultura midiática do século XXI. É através da participação do autor em
programas de televisão, em lançamentos de livros, em feiras literárias, em congressos e
palestras, etc. que ele deixará de ser incógnito e adquirirá, aos olhos do público, uma imagem
identitária. Seus leitores, a partir de discursos outros para além do literário – que ajudarão na
formação de um único discurso autoral –, se interessarão em ouvir o que os autores têm a
dizer, de maneira a não mais se sustentar a morte do autor decretada pelos estruturalistas e
formalistas.
O retorno do autor se dá, na atualidade, não como garantia última da verdade textual,
mas como provocação e, principalmente, como crítica à noção de verdade e de sujeito. O
sujeito que retorna, na autoficção, não é mais linear como o era o da autobiografia, e sim
multifacetado, ambíguo e híbrido. Por mais que ele se construa com referências
autobiográficas, estas não são suficientes para assegurar uma verdade inquestionável do
relato; ao contrário, são estas referências as responsáveis pela desestabilização de qualquer
possível verdade autobiográfica – a verdade que se cria seria antes textual, ou seja, o escritor
pós-moderno, ao se inventar na autoficção, funda um mito de si, que, por ser mito, não é
verdadeiro nem falso.
A impossibilidade de se chegar ao sujeito na autoficção é uma crítica à
espetacularização da intimidade em nossos dias. Assistimos hoje a uma proliferação de reality
shows, talk shows, autobiografias, memórias e toda uma vasta gama de lançamentos cujo foco
principal é a primeira pessoa. O crescente avanço tecnológico alimenta o interesse do público
pela realidade íntima da população, motivada em ter acesso ao até então inacessível: a vida
privada burguesa. Essa demanda do público motivou Bernardo Carvalho a escrever Nove
noites, mas ele mesclou, no romance, realidade e ficção, de maneira a enganar,
perversamente, o leitor.
Relatos autoficcionais, entretanto, já são uma prática bastante comum e difundida
entre nossos escritores. Diversos prosadores brasileiros têm se valido da autoficção em sua
literatura, seja em romances, contos ou crônicas. A recorrência do tema sugere uma saída
encontrada, na contemporaneidade, à previsão pessimista benjaminiana de que a arte de narrar
está em vias de extinção. Aparentemente, a ausência de intercâmbio de experiências sobre o
qual falava o filósofo alemão propiciou uma nova maneira dos narradores se comunicarem:
101
ficcionalizando suas experiências pessoais. Desse modo, alia-se à crítica ao anseio por
histórias baseadas em fatos reais a própria narração sobre si – os escritores atuais buscariam
narradores em primeira pessoa capazes de performar uma realidade autoficcional como
estratagema para driblar a crise da narração prevista por Benjamin.
Seja como crítica ao interesse do público por histórias baseadas em fatos reais e pelo
voyeurismo e exibicionismo próprios de nosso tempo, seja como maneira encontrada da arte
de narrar não sucumbir à falta de intercâmbios de experiências, a autoficção deve ser lida, em
toda a sua diversidade de variados escritores com procedimentos autoficcionais específicos,
como um texto que não pretende encerrar em si uma verdade definitiva, mas, ao contrário,
interrogar se existe, de fato, uma verdade a ser alcançada, a começar por problematizar a
noção de sujeito.
102
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