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realidade empírica tout court. Não é mais a vida do autor, enfim, que interessa na autoficção.
Os dados referenciais impressos no texto, antes de procurarem estabelecer uma conexão entre
a vida e o autor, servem como a construção do mito do escritor, de uma persona. Se o autor
constrói um mito, ele não está nem dizendo a verdade nem faltando com ela. A realidade que
se apresenta na autoficção difere da narrada na autobiografia porque ela não é uma realidade
prévia ao discurso, mas, ao contrário, ela se constrói concomitante ao discurso. Nesse sentido,
pode-se pensar o autor da autoficção como performático, ou seja, o autor estaria construindo a
si e ao seu texto ao mesmo tempo. Essa construção de um mito, de uma invenção de si,
aproxima a autoficção do discurso psicanalítico, pois “o sentido de uma vida não se descobre
e depois se narra, mas se constrói na própria narração: o sujeito da psicanálise cria uma ficção
de si. E essa ficção não é verdadeira nem falsa, é apenas a ficção que o sujeito cria para si
próprio” [KLINGER, 2007: 51-2, grifo do original]. É a partir dessa percepção psicanalítica
da subjetividade que Doubrovsky formula o seu conceito de autoficção.
A participação midiática do autor, sua exposição pública, faz com que ele esteja
performando um papel em várias frentes, não apenas em sua literatura, ou seja, a construção
de um mito se dá na interseção das várias falas de si, seja a ficção, as entrevistas, as crônicas,
os blogs, as entrevistas, as palestras, etc. Dessa maneira, o autor que se inventa na autoficção
não independe de seus outros discursos e de suas demais atuações. A sua construção deve
obedecer, portanto, ao mosaico de aparições que fragmentam o sujeito, inviabilizando uma
única verdade. Nessa direção, Ana Cláudia Viegas afirma que
nas “escritas de si” contemporâneas, como os auto-retratos que circulam na web e as
autoficções dos romances em primeira pessoa, o sujeito se cria ficcionalmente e encena sua
dimensão empírica. A criação de auto-imagens aproxima vida e arte, ficção e realidade,
estabelecendo com o leitor, em vez de um “pacto autobiográfico”, um “pacto fantasmático”,
cujo contrato de leitura não promete a revelação de verdades, mas o desdobramento do autor
em diversos personagens [VIEGAS, 2006: 21-2].
O retorno do autor, nessa perspectiva, é uma continuação à crítica do sujeito no
sentido de que é impossível definir o sujeito da autoficção. Sabe-se que o narrador de Nove
noites, por exemplo, possui algumas características do autor Bernardo Carvalho, mas é
impossível, a partir de algumas coincidências biográficas, saber se as demais referências do
romance são verdadeiras ou são ficção. Talvez fosse mais acertado dizer que são autoficção.
Textualmente o leitor não encontra respostas, apenas dúvidas, pois, como interroga Fokkema,
no pós-modernismo, “de que modo poderia um código que questiona as distinções correntes
entre verdade e ficção, entre espírito e matéria, entre o agora e o depois, o aqui e o ali,
convidar a qualquer tipo de explicação textual?” [FOKKEMA, s/d: 74]