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Às vezes, eu passava a madrugada toda lendo, sabe? E cheirando cocaína, até aí tudo bem...
Aí... eu ficava acompanhando aquela programação que passava na televisão, que Deus falava
com uma pessoa e a pessoa dando o testemunho, né? Ah... Deus falou para mim fazer, assim,
assim, assim, e eu fiz, aí a minha vida aconteceu isso, isso e aquilo... E tal, tal, tal... Aí, eu
falei assim: “poxa...”. Aí... beleza... num questionei nada e ficava com aquilo na cabeça, né?
Que estranho... Deus falar com a pessoa assim e tal. Aí teve um dia que... eu nunca fui
traficante de droga, nunca matei ninguém. Já roubei para comer... né? Mas, nunca cometi um
roubo, essas coisas assim e tal. Então o que é que aconteceu? Eu trabalhei a semana toda e
minha mãe não estava em casa. Os meus dois irmãos estavam... na panha de café, entendeu?
Então, eu tava sozinho em casa. Aí, eu peguei meu dinheiro que eu trabalhei a semana toda e
usei droga. Fui para o bar. Aí, lá eu cheirei cocaína, bebi, sabe? Eu acho que eu até tive
relacionamento sexual com uma mulher lá perto desse bar, lá e tal, sabe? Uma amiga minha, e
tal... A gente é amigo ainda, mas tem muito tempo que eu não vejo ela, sabe? Aí, então, tudo
bem. Eu gastei todo o meu dinheiro e fui embora para a casa. Aí eu fui embora para casa era
umas seis horas da manhã. Cheguei em casa, deitei e dormi. Quando eu acordei, aí eu
arrependi de tudo aquilo que eu fiz, sabe, assim. De ter bebido, de ter cheirado cocaína, de ter
fumado maconha, sabe? Eu arrependi de tudo aquilo, você entendeu? Aí o que é que
aconteceu? Eu me sentei sozinho. Sozinho no mundo. Parecia que eu era só, que eu estava só
eu na terra, sabe? Senti sozinho. Aquela solidão, assim...Olhei para um lado, olhei para o
outro, assim. Não tinha nada para comer porque eu não organizei as coisas para dentro de
casa, né? Comprar as coisas para comer. Aí eu olhei para aquela pilha de livro e tal. Aí vi uma
Bíblia. Eu tinha ganhado muitas bíblias. O pessoal tinha falado: “você é muito inteligente e
tal. Lê a Bíblia e tal. Deus tem uma obra na sua vida e tal, aquele negócio todo e tal. Beleza”.
Aí eu fui e... peguei uma Bíblia. Aí, abri a Bíblia, virei para um lado, para o outro e não sabia
o que lê porque eu não conhecia o evangelho, não sabia nada. Aí, eu fui e comecei a chorar e
andar em circulo dentro de casa e gritando. “Deus fala comigo!... Deus fala comigo!...” e
fiquei assim mais de uma hora, mais ou menos assim, naquele desespero imenso dentro de
casa, sabe. Com a Bíblia na mão e tal. Aí, quando foi de repente uma voz falou assim: “Oi
Gabriel”. Uma voz suave assim, sabe, bonita. Uma voz, sabe? Aí, eu olhei para um lado, para
o outro e não vi ninguém. Aí falou de novo: “Oi Gabriel”. Dentro do meu subconsciente. Aí,
tudo bem. Aí, depois eu fui no terreiro, olhei e não tinha ninguém. Aí, eu entrei para dentro de
casa de novo. Aí falou: “Oi Gabriel”. Aí eu fiquei meio com raiva e eu era muito rebelde na
época, porque era adolescente, e tal. Aí, então, eu falei: “quem que é, porra?” Falou assim:
“somos nós, os anjos do senhor e nós viemos te atender...”. Aí, a gente teve uma conversa
muito longa e tal, e tudo e tal. Aí eles perguntavam se eu queria partir... né? Deixar a terra e ir
para o céu, né? Descansar com Cristo e tudo. Aí quando falou isso comigo eu entrei em
desespero e saí correndo dentro de casa com a Bíblia na mão. A Bíblia não soltava da minha
mão de jeito nenhum. Aí, na hora que eu corri, parecia que escureceu tudo. Parecia que eu
estava indo para as trevas, sabe? E a voz falou assim: “volta”, uma vez. E a voz tinha poder.
Eu senti uma força me puxando para a janela de novo. Aí ela falou: “então tá Gabriel, a
partir de hoje você vai ter mais uma chance, você vai viver. Só que você vai carregar três
enigmas com você e parte da sua memória vai ser apagada”. Parte da minha memória foi
apagada do diálogo. Porque eu queria saber demais e responderam muito e eu não podia saber
demais, né? Talvez eram informações que ainda não é autorizado que a humanidade venha a
conhecer ainda. Eu creio isso, assim. E me entregou três enigmas. Disse o seguinte: se eu
quiser escrever livros eu posso escrever, mas é para eu ter cuidado para não me perder entre
os livros. E o segundo: eu sei o que eu sei, e não o que o ser humano sabe. E o terceiro: para
mim ter cuidado com mulher, para eu não me entregar minha força para mulher. Aí foi... eu
fui em Igrejas, fui... Contei a história para vários pastores e tal de várias igrejas, eles não teve
o discernimento que eu tive, você entendeu? Então, assim, tinha gente que falava assim: “isso
ai é de Deus... Isso aí é o demônio que te enganou... Isso é não sei o que, e tal”. E ninguém
sabia me explicar. Então, eu resolvi procurar um psicólogo” (Gabriel, grifos nossos)
Espontaneamente, Gabriel sentiu-se confortável em relatar este fragmento histórico de
vida, apresentando-nos uma outra razão (primordial) de existência dos CAPS: a continuidade
do tratamento de um paciente que, não raro, persiste numa mesma atividade delirante (de
construção de sentido de vida). Sob nossa compreensão do trabalho real dos CAPS, os
pacientes e os familiares mais procuram pelo médico psiquiatra do que outro trabalhador, mas
Gabriel o fez diferente - à sua forma, segundo ele -, procurando por um psicólogo. Porém,