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MARILZA BORGES ARANTES
A ARGUMENTAÇÃO NOS GÊNEROS FÁBULA,
PARÁBOLA E APÓLOGO
Universidade Federal de Uberlândia
Instituto de Letras e Lingüística
Uberlândia
2006
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1
MARILZA BORGES ARANTES
A ARGUMENTAÇÃO NOS GÊNEROS FÁBULA,
PARÁBOLA E APÓLOGO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Lingüística (Área de Concentração:
Estudos em Lingüística e Lingüística
Aplicada) do Instituto de Letras e Lingüística
da Universidade Federal de Uberlândia, em
Uberlândia – MG, no ano de 2006, como
requisito parcial para obtenção de título de
Mestre em Lingüística.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia
Uberlândia
Universidade Federal de Uberlândia
Instituto de Letras e Lingüística
2006
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2
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e
Classificação / mg / 07/06
A662a
Arantes, Marilza Borges, 1961-
A argumentação nos gêneros fábula, parábola e apólogo / Marilza
Borges Arantes. – Uberlândia, 2006.
171 f.
Orientador: Luiz Carlos Travaglia.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Pro-
grama de Pós-Graduação em Lingüística.
Inclui bibliografia.
1. Lingüística – Teses. 2. Fábulas – Teses. 3. Parábola – Teses. 4.
Apólogo – Teses. I. Travaglia, Luiz Carlos. II. Universidade Federal
de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Lingüística. III. Título.
CDU: 801
3
Marilza Borges Arantes
A argumentação nos gêneros fábula, parábola e apólogo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Lingüística (Linha de pesquisa:
Estudos sobre texto e discurso) do Instituto de
Letras e Lingüística da Universidade Federal
de Uberlândia, em Uberlândia – MG, no ano
de 2006, como requisito parcial para obtenção
de título de Mestre em Lingüística.
Área de concentração: Estudos em Lingüística
e Lingüística Aplicada.
Dissertação defendida e aprovada, em ___de __________________de _____, pela Banca
Examinadora constituída pelos professores:
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Jane Quintiliano Guimarães Silva (PUC – MG)
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Luísa Helena Borges Finotti (UFU)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia – Orientador (UFU)
Uberlândia – Minas Gerais
4
A meus pais, Lindolfo e Edna, que
sempre me deram exemplo de
perseverança, dedicação para alcançar os
ideais.
A meu esposo, meu amor, meu amigo e
companheiro, que sempre está ao meu
lado.
Aos meus filhos, motivo das minhas
maiores alegrias.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me concedido forças para realizar este trabalho.
À minha amiga Arlete, pela arte irradiante de lidar com a linguagem, capaz de
despertar e contagiar quem está ao seu lado. A você, meu especial carinho e gratidão pelas
horas de estudo, em que tanto me ensinou, pelo papo amigo e caloroso que sempre me
ofereceu, pelo incentivo imprescindível para que eu fizesse o Mestrado.
Ao meu orientador professor Dr. Luiz Carlos Travaglia, pelo carinho e atenção que
sempre me dispensou. Pelo exemplo de ordem, determinação e dedicação à pesquisa,
servindo-me de luz para seguir em frente. Pelo conhecimento, que humildemente me
transmitiu, uma arte que só os sábios sabem fazer.
Ao meu esposo e a meus filhos pela compreensão pelos constantes momentos que
deixei de lhes dar a atenção que merecem. Pelo carinho e amor com que me acolhem todos
dias.
Às professoras Doutoras Carmen Lúcia Hernandes Agustini e Vânia Maria Bernardes
Arruda Fernandes pelas enriquecedoras sugestões e observações prestadas para o
aprimoramento deste trabalho.
À Pauliana Duarte, amiga e colega de Mestrado, que quer nas estradas, na sala de aula
ou nos estudos que fizemos enquanto cursamos as disciplinas, sempre esteve ao meu lado.
À Selma Zago da Silva Borges, pela solicitude com que sempre me serviu.
À Cristina Resende Oliveira, Cris, grande amiga, por quem tenho carinho especial,
pois me ensinou a “chegar mais perto e descobrir a beleza das palavras.”
A todas as pessoas, amigos e familiares, que direta ou indiretamente, incentivaram-me
para a realização deste trabalho e deram sua contribuição.
6
SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................... 9
ABSTRACT .................................................................................................. 10
1- INTRODUÇÃO ............................................................................................ 11
1.1-
Preliminares ................................................................................................. 11
1.2-
Justificativa .................................................................................................. 13
1.3-
Metodologia de trabalho ............................................................................. 14
1.4-
Corpus .......................................................................................................... 15
1.5-
Objetivos ...................................................................................................... 16
1.5.1- Objetivos gerais ............................................................................................ 16
1.5.2- Objetivos específicos .................................................................................... 16
1.6-
Hipóteses ...................................................................................................... 17
1.7-
Caracterização dos capítulos ..................................................................... 18
2- BASES TEÓRICAS E SUA APLICAÇÃO A APÓLOGOS, FÁBULAS E
PARÁBOLAS ...............................................................................................
19
2.1-
Texto e discurso ........................................................................................... 19
2.2-
Tipologia textual .......................................................................................... 21
2.2.1- Tipo ............................................................................................................... 22
2.2.2- Gênero ........................................................................................................... 28
2.2.3- Espécie .......................................................................................................... 33
2.3-
Narração ...................................................................................................... 35
2.4-
Argumentação e texto argumentativo ....................................................... 41
2.5-
Caracterização do texto literário ............................................................... 44
7
2.5.1- Origem e conceituação dos gêneros apólogo, fábula e parábola.................. 46
2.5.1.1- Apólogo ............................................................... ......................................... 46
2.5.1.2- Fábula ............................................................... ............................................ 47
2.5.1.3- Parábola ............................................................... ......................................... 50
2.5.2- Peculiaridades dos gêneros apólogo, fábula e parábola ................................ 54
2.6-
Argumentação sob bases retóricas ............................................................ 57
2.6.1- O auditório – elemento importante na argumentação ................................... 58
2.6.2- O acordo – outro importante elemento na argumentação ............................. 64
2.6.2.1- Objetos de acordo pertencentes à categoria relativa ao real ......................... 64
2.6.2.1.1- Os fatos e verdades ....................................................................................... 64
2.6.2.1.2- Presunções ..................................................................................................... 66
2.6.2.2- Os objetos de acordo pertencentes à categoria relativa ao preferível ........... 67
2.6.2.2.1- Os valores ...................................................................................................... 67
2.6.2.2.2- As hierarquias ............................................................................................... 70
2.6.2.2.3- Os lugares ...................................................................................................... 73
2.6.2.2.3.1- Os lugares da quantidade .............................................................................. 74
2.6.2.2.3.2- Lugares da qualidade .................................................................................... 74
2.6.2.2.3.3- Lugares do existente ..................................................................................... 75
2.6.2.2.3.4- Lugares da essência ....................................................................................... 76
2.6.2.2.3.5- Lugares da pessoa ......................................................................................... 77
2.6.2.2.3.6- Lugares da ordem .......................................................................................... 77
2.6.3- Técnicas argumentativas ............................................................................... 78
2.6.3.1- Os argumentos quase-lógicos ....................................................................... 79
2.6.3.1.1- Contradição e incompatibilidade .................................................................. 79
2.6.3.1.2- O ridículo ...................................................................................................... 80
2.6.3.1.3- Identificação e definição ............................................................................... 81
2.6.3.1.4- Analiticidade, análise e tautologia ................................................................ 82
2.6.3.1.5- Regra da justiça ............................................................................................. 84
2.6.3.1.6- Argumentos da reciprocidade ....................................................................... 85
2.6.3.1.7- Argumentos de transitividade ....................................................................... 86
2.6.3.1.8- Argumentos de comparação .......................................................................... 87
2.6.3.1.9- Argumentos pelo sacrifício ........................................................................... 88
2.6.3.2- Argumentos baseados na estrutura do real .................................................... 89
2.6.3.2.1- Argumentos que se aplicam a ligações de sucessão ..................................... 90
8
2.6.3.2.1.1- O argumento pragmático ............................................................................... 90
2.6.3.2.1.2- O argumento do desperdício ......................................................................... 91
2.6.3.2.1.3- O argumento da direção ................................................................................ 92
2.6.3.2.1.4- O argumento da superação ............................................................................ 92
2.6.3.2.2- Argumento que se aplica às ligações de coexistência ................................... 93
2.6.3.2.2.1- Argumento de autoridade .............................................................................. 94
2.6.3.3- Ligações que fundamentam a estrutura do real.............................................. 94
2.6.3.3.1- Argumentação pelo exemplo ........................................................................ 94
2.6.3.3.2- Argumentação pela ilustração ....................................................................... 95
2.6.3.3.3- Argumentação pelo modelo e pelo antimodelo ............................................ 96
2.6.3.3.4- O raciocínio por analogia .............................................................................. 97
2.6.3.3.5- Argumentação por metáfora ......................................................................... 98
3- APÓLOGOS, FÁBULAS E PARÁBOLAS: CONFLUÊNCIAS E
DIVERGÊNCIAS .........................................................................................
101
3.1-
Caracterização dos gêneros apólogo, fábula e parábola ......................... 101
3.2-
A superestrutura narrativa dos gêneros – apólogo, fábula e parábola .. 104
3.3- A superestrutura argumentativa dos gêneros apólogo, fábula e
parábola .......................................................................................................
111
3.3.1- Objeto de acordo – base para a argumentação .............................................. 112
3.3.2- Técnicas argumentativas ............................................................................... 117
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 123
5- BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 128
6- ANEXOS ...................................................................................................... 133
9
RESUMO
Este estudo busca verificar a possibilidade de uma caracterização de tipo argumentativo para
os textos dos gêneros: parábola, fábula e apólogo, geralmente considerados narrativos.
Investiga-se como ocorre nesses gêneros o processo de argumentação e em que esses textos
com a mesma função, a argumentação, distinguem-se e/ou assemelham-se. Para isso,
inicialmente, é verificada a conceituação dada a esses três gêneros e a investigação dos tipos
de personagens até então tomados como critério de distinção entre eles. Em seguida, é feito o
estudo dos elementos da estrutura do tipo narrativo com base na teoria de Travaglia (2001 e
2002) e dos elementos da estrutura argumentativa com base na retórica de Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2002). Durante esse estudo, são usados textos do corpus, previamente
analisado, identificando assim elementos da teoria abordada. A partir desses estudos de
natureza analítico-descritiva e quantitativa, conclui-se que os gêneros apólogo, fábula e
parábola apresentam um cruzamento de tipos em que a narração é um elemento que age em
função do discurso responsável pela instauração do tipo argumentativo. Enquanto tipos
narrativos, os três gêneros se aproximam nas categorias orientação, trama e moral, estando
essa, quase sempre implícita na trama, nos resultados ou nos comentários, sendo a
responsável pelo caráter doutrinário dado a esses gêneros desde as suas origens. Ainda na
estrutura narrativa há a presença de elementos das categorias resultado e comentários que
diferenciam significantemente esses gêneros. Dentro da estrutura argumentativa os elementos
distintivos que atuam na macroestrutura dos apólogos, das fábulas e das parábolas dizem
respeito aos tipos de acordos em que se apóiam os interlocutores e aos tipos de argumentos
usados, considerando a função discursivo-pragmática predominantemente argumentativa, uma
vez que esses gêneros são usados em esferas sociais e em situações específicas. Tendo em
vista os resultados encontrados, julgamos que este trabalho acrescenta dados importantes para
caracterização e diferenciação dos gêneros apólogo, fábula e parábola, configurando-se-lhes
uma estrutura argumentativa em que a narração é um elemento estruturador, servindo de pano
de fundo para a argumentação.
Palavras-chave: Argumentação. Narrativa. Apólogo. Fábula. Parábola.
10
ABSTRACT
The aim of this research is to find out a possibility of a characterization of the argumentative
kind for the texts: parable, fable and apologue, generally considered to be narratives, looking
into how the process of argumentation take place at theses genres, as to say, how these texts
with the same function, the argumentation would come out different or look alike. Therefore,
at the beginning, the definition given to these three genres is analyzed and an investigation on
the sort of characters taken so far, as a criterion way to tell them apart. Afterwards, a study of
the elements of the structure of the narrative type is done based on the Travaglia’s theory
(2001 and 2002) and the elements of the argumentative structure also based on the rhetoric of
the Perelman and Olbrechts-Tyteca’s (2002). All along the study, texts of the corpus are used
and previously analyzed to identify the elements of the theory approached. From these
studies of nature analytic-descriptive and quantitative, a conclusion that the genres apologue,
fable and parable presents a crossing of types at which the narrative is an element that acts in
function of the discourse responsible for the setting of the argumentative type. As narrative
types, the three genres get close in the categories direction, plot and ethics, being that, almost
always implicit in the plot, in the outcome or in the remarks, being responsible to give a
doctrinal character to these genres since their origins. Up to now, at the structure of the
narrative you can find the presence of elements of the categories and remarks that tell apart
these genres significantly. Inside the argumentative structure, the distinctive elements that act
in the macroestructure of the apologues, of the fables and the parables show respect to the sort
of the agreements with which the speakers stand by and the types of arguments used,
considering the pragmatic discourse function predominantly argumentative, once these genres
are used at social circles and specific situations. Having in mind these finding results, we can
judge that this study adds important data and make a difference among the genres: apologue,
fable and parable, giving to them a configuration of the argumentative form in which the
narrative is an element of the structure, which can be used as a background for argumentation.
Key words: Argumentation. Narrative. Apologue. Parable. Fable.
11
1- INTRODUÇÃO
1.1- Preliminares
A partir de 1960, os estudiosos da Lingüística textual tomam “como objeto de
investigação, não mais a palavra ou a frase, mas sim o texto, por serem os textos a forma
específica da manifestação da linguagem” (FÁVERO; KOCH, 1988, p. 11).
Nesta pesquisa assumiremos texto “na concepção interacional (dialógica) da língua, na
qual os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o
próprio lugar da interação e os interlocutores, são sujeitos ativos que – dialogicamente – nele
se constroem e são construídos” (KOCH, 2002, p. 17)
1
. Sob essa ótica analisaremos nosso
objeto de estudo, os gêneros apólogo, fábula e parábola, por considerarmos que, dentro do
processo de emissão/recepção desses textos, são envolvidos diferentes fatores lingüísticos e
sociocognitivos dos participantes da interação, assim expressa por Bakhtin:
Toda palavra serve de expressão de um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise em relação à coletividade.
A palavra é uma espécie de ponte entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim
em uma extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o
território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 1988, p. 113).
1
Além da concepção interacional, Koch (2002), ao definir o que é texto, estabelece uma estreita ligação deste
com sujeito e língua para outras concepções de linguagem. “Na concepção de língua como representação do
pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto –
lógico – do pensamento do autor.” (KOCH, 2002, p. 16). Assim, o recebedor, o leitor exerce um papel passivo
perante o produtor. “Na concepção de língua como código – mero instrumento de comunicação – e de sujeito
como (pré) determinado pelo sistema (assujeitado), o texto é visto como simples produto da codificação de um
emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte.” (KOCH, 2002, p. 16). Também, nessa situação, o leitor/ouvinte é
passivo, enquanto o produtor é inconsciente, “não é dono de seu discurso e de sua vontade” (POSSENTI, 1993
apud KOCH, 2002, p. 13).
12
Conte (1977 apud Fávero; Koch, 1988) distingue três momentos fundamentais na
passagem da teoria da frase à teoria do texto – análise transfrástica; gramáticas textuais;
construção da teoria do texto
2
. A autora explica que “não se trata de uma distinção de ordem
cronológica, e sim tipológica, por não haver, entre eles, uma sucessão temporal, constituindo-
se cada um deles em um tipo diferente de desenvolvimento teórico” (CONTE, 1977 apud
FÁVERO; KOCH, 1988, p. 13). Os três aspectos apresentados por Conte são igualmente
relevantes neste trabalho, mas, sobretudo, estaremos, em nossa pesquisa, voltados para o
último, ou seja, a construção da caracterização tipológica dos gêneros apólogo, fábula e
parábola.
Também dentro dessa perspectiva, Schmidt (1969 apud FÁVERO; KOCH, 1988,
p.15-16) afirma que “a competência que constitui a base empírica da teoria de texto deixa de
ser a competência textual, passando a ser a competência comunicativa” (capacidade de o
falante empregar adequadamente a linguagem nas diversas situações de comunicação), ou
seja, sua capacidade discursiva. Tal afirmação é pertinente à compreensão da diversidade de
textos criados e usados pelos falantes/ouvintes de uma língua. Sob esse aspecto, encontra-se a
tipologização dos textos. Assim, novas concepções em relação ao texto podem explicitar e
caracterizar o mesmo, apontando para uma Lingüística como ciência do texto e do discurso.
Com isso surge a preocupação em estabelecer uma classificação dos textos capaz de agrupá-
los segundo características lingüísticas, formais e funcionais específicas, fazendo sua
tipologização.
Dentro dessa perspectiva, a narrativa, até então a categoria textual mais investigada,
pode apresentar, enquanto tipo textual, diferentes funções, como: contar algo, informar sobre
algo, servir de argumento. Essa característica é dada à narrativa por ter a propriedade de
conduzir, quer na superestrutura textual , quer nos implícitos, um todo comunicativo
situacional, criando uma estreita relação com um gênero discursivo. Por esse viés,
investigamos a estrutura textual que abarca os gêneros narrativos apólogo, fábula e parábola.
2
Análise transfrástica – diz respeito a enunciados ou seqüências de enunciados que partem em direção ao texto,
que segundo Isenberg, defini-se como “seqüência coerente de enunciados”. Esse estudo objetiva estudar os tipos
de relações possíveis entre os diversos enunciados que compõem uma seqüência significativa (relações
referenciais).
Gramáticas textuais – têm como finalidade refletir sobre os fenômenos lingüísticos inexplicáveis por meio de
uma gramática do enunciado. A gramática textual tem como tarefas básicas acerca do texto: a) determinar os
princípios de constituição, os fatores responsáveis pela coerência, as condições em que se manifesta a
textualidade; b) critérios para delimitação dos textos, já que a completude é uma das características essenciais do
texto; c) diferenciar as várias espécies de textos.
Construção da teoria do texto – adquire particular importância o tratamento dos textos no seu contexto
pragmático: o âmbito da investigação se estende do texto ao contexto, entendido em geral, como conjunto de
condições externas ao texto – da produção, da recepção e da interpretação (FÁVERO; KOCH, 1988, p. 13-15).
13
Considerando a função desses textos em situações específicas de uso, nós os classificamos
como gêneros e, enquanto tipos, que instauram um modo de interação, segundo Travaglia
(1991), temos como proposta caracterizar uma estrutura argumentativa “stricto sensu” para
eles, distinguindo-os das classificações literárias de tipos narrativos, didaticamente
estabelecidas. Dessa forma, temos como objetivo, verificar se os gêneros apólogo, fábula e
parábola são textos do tipo argumentativo “strito sensu”, cuja estrutura resulta de um
cruzamento” de tipos narrativo e dissertativo.
Para Travaglia (1991), um texto é argumentativo “stricto sensu” quando apresenta a
argumentação de forma explícita, porque o produtor do texto vê o interlocutor como alguém
que não concorda com ele, levando à tomada de posição e ao debate, buscando com isso, a
argumentação máxima em que o objetivo é convencer, persuadir. Embora os gêneros que
estudamos não apresentem uma estrutura composicional argumentativa na superfície textual,
julgamos serem argumentativos “stricto sensu”, trazendo toda a carga argumentativa implícita
no enredo narrativo por meio dos acordos propostos pelo locutário como enunciador,
estabelecendo o ponto de apoio para a argumentação. Assim, entendemos que a base
estrutural de constituição dessas narrativas é argumentativa, porque direcionam o leitor para
uma conclusão: a moral da história, quer explícita ou implícita. Sendo assim, também será
nosso objetivo investigar que elementos são responsáveis pelo caráter argumentativo desses
gêneros, quais desses elementos são comuns ou incomuns, recorrentes ou não em cada um
desses gêneros, possibilitando a construção de uma caracterização argumentativa para eles. A
narração é um desses elementos que atua como técnica no discurso argumentativo desses
gêneros, no entanto, buscamos verificar se há nas categorias que estruturam esses três gêneros
elementos que os aproximam ou os distinguem.
1.2- Justificativa
Esta pesquisa surgiu diante da dificuldade em aceitar as tradicionais classificações
dadas pela comunidade discursiva aos gêneros apólogo, fábula e parábola apenas como tipos
narrativos, sendo que esses textos suportam uma organização estrutural em torno de um modo
de enunciação argumentativo, o qual sobrepõe-se ao aspecto narrativo. Com isso, buscamos
identificar e expor uma caracterização de tipo argumentativo para esses gêneros, em que a
narração age como uma estratégia, um elemento que encaminha o processo de argumentação.
14
Desse modo, o estudo se justifica primeiro por buscar esclarecer o que causa uma inquietação
subjacente às tipologias existentes e consagradas há muito tempo e segundo por buscar
estabelecer de modo mais sistemático o que distingue os três gêneros em foco.
1.3- Metodologia de trabalho
Inicialmente, fazemos um estudo teórico acerca dos tipos e gêneros sob a ótica de
alguns autores com o intuito de caracterizar os textos de nossa pesquisa no quadro das
tipologias. Para isso, estudamos a origem, bem como os aspectos sócio-histórico-culturais que
envolvem o aparecimento dos gêneros apólogo, fábula e parábola, buscando estabelecer a
relação pragmática com a linguagem que veiculam; analisamos a superestrutura dos tipos que
compõem esses gêneros: narração e, predominantemente, argumentação; descrevemos as
ocorrências dos pontos de acordos marcantes como fatores reguladores dentro do processo
argumentativo; confrontamos as três categorias de textos em estudo para delimitar os pontos
comuns, bem como as especificidades que as caracterizam e/ou diferenciam dentro dessa
perspectiva de tipos argumentativos. Tomando o estudo feito, o texto é visto como gênero
discursivo socialmente construído (Bakhtin, 1988), com traços intencionais de um interlocutor
para produzir um efeito ao comunicar uma mensagem – discurso (SCHMIDT, 1969 apud
FÁVERO; KOCH, 1988), ressaltando também, o texto na concepção interacional, como o
próprio lugar de interação (KOCH, 2002).
Ao investigar o tipo narrativo que compõe a base da superfície textual dos gêneros
apólogo, fábula e parábola, assumimos: a) a idéia bakhtiniana de que os gêneros são uma
classe de enunciados, relativamente estáveis; b) a concepção dessas narrativas enquanto
gêneros literários, segundo Todorov (1980) e c) os estudos de Travaglia (1991), para quem
“todo gênero é sempre composto por um ou mais tipos” e será “de um tipo ou do outro por
dominância, em termos de forma/modo de interação que o tipo estabelece e não em termos de
“espaço” do texto ocupado por um ou outro tipo” (TRAVAGLIA, 2002, p. 14), sendo o modo
de interação o ponto em que apoiamos nosso estudo.
Para investigar e, sobretudo, caracterizar uma estrutura argumentativa para os gêneros
apólogo, fábula e parábola sob propriedades discursivas com base em elementos ligados à
exterioridade sócio-histórico-cultural dos interlocutores, tomamos como base teórica
fundamental os estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), conceituando e
15
exemplificando como ponto de partida para a argumentação os objetos de acordo implícitos
no discurso e a presença do auditório, e, por outro lado, os tipos de argumentos explícitos ou
implícitos no processo de argumentação. Como elemento estruturador da argumentação,
fundamentamos a superestrutura narrativa dos gêneros apólogo, fábula e apólogo, segundo
Travaglia (1991), abrangendo também os estudos de Van Dijk (1990 apud TRAVAGLIA,
1991) e Adam (1985 apud TRAVAGLIA, 1991). Após esse estudo teórico, analisamos os
textos de cada categoria, identificando, isolando e/ou comparando elementos da
superestrutura narrativa exposta na superfície textual e da estrutura argumentativa implícita
nos acordos e técnicas argumentativas, com o intuito de levantar regularidades para
formulação de uma possível caracterização argumentativa, bem como para confirmar ou
refutar as hipóteses levantadas acerca dos gêneros apólogo, fábula e parábola.
1.4- Corpus
O corpus desta pesquisa compõe-se de textos escritos, assim distribuídos:
1) Para a análise dos tipos de personagens, foram utilizados 20 apólogos, 100 fábulas,
100 parábolas;
2) Para a análise da superestrutura (introdução, trama, resultado, comentário e
conclusão), foi utilizado um corpus menor, composto por 20 apólogos, 30 fábulas
e 30 parábolas. O corpus foi menor nesta parte da análise para evitar uma extensão
desnecessária da mesma;
3) Para a análise dos elementos do texto argumentativo (auditório, acordos, tipos de
argumentos) foram utilizados 20 apólogos, 30 fábulas e 30 parábolas (os mesmos
do item 2).
Os textos do gênero apólogo foram analisados em menor quantidade devido à
dificuldade de serem encontrados, e, principalmente, pelo caráter flutuante da classificação de
alguns que aparecem ora como apólogos, ora como fábulas ou como parábolas.
Os textos coletados são da literatura mais antiga e da mais atual, tirados de
compilações, autoria própria, internet, livro didático. Entre os autores das fábulas, temos,
Esopo, Fedro La Fontaine, e Millôr Fernandes. Entre as parábolas temos as que são bíblicas,
as de autores desconhecidos, retiradas de compilações ou encontradas na internet e as de
Afrânio Peixoto. Os apólogos foram encontrados, em sua maioria, na internet, alguns com
16
registro de autoria, outros não, e, às vezes dentro de compilações intituladas como de fábulas
ou de parábolas, fato que dificultou o processo de seleção do corpus, tornando-se aspecto
relevante em nossas análises.
Esta pesquisa é de natureza analítico-descritiva e quantitativa, uma vez que se propõe
a descrever e analisar a superestrutura narrativa, os pontos de acordo semelhantes e/ou
diferentes, os elementos argumentativos implícitos na estrutura profunda dos gêneros
apólogo, fábula e parábola. Para isso, propomos uma comparação com dados quantitativos
desses elementos, buscando encontrar semelhanças e/ou diferenças que os aproximam ou os
distinguem.
Com base nos pressupostos brevemente relacionados, elencamos a seguir nossos
objetivos e hipóteses de pesquisa.
1.5- Objetivos
1.5.1- Objetivos gerais
1) Propor uma caracterização de tipo argumentativo para os gêneros apólogo, fábula e
parábola, considerados geralmente, como narrativos;
2) Analisar os elementos responsáveis pelo caráter argumentativo desses gêneros,
quais desses elementos são comuns ou não-comuns, recorrentes ou não em cada
um desses gêneros, possibilitando a construção de uma caracterização
argumentativa para eles.
3) Tendo em vista a proximidade da função sócio-comunicativa dos gêneros apólogo,
fábula e parábola, verificar em que aspectos eles poderiam ser distintos;
1.5.2- Objetivos específicos
1) Estudar a origem, bem como os aspectos sócio-culturais que envolvem o
aparecimento dos gêneros apólogo, fábula e parábola, buscando estabelecer sua
17
função sócio-comunicativa nos meios em que são veiculados, dando-lhes uma
classificação única enquanto tipos argumentativos;
2) Estudar a estrutura dos gêneros fábula, parábola, apólogo, verificando os tipos que
as compõem no processo de cruzamento entre narração e, predominantemente,
argumentação;
3) Verificar o uso dos gêneros apólogo, fábula e parábola enquanto discursos
argumentativos;
4) Analisar os gêneros apólogo, fábula e parábola, verificando a ocorrência de
regularidades dos pontos de acordos, estratégias argumentativas, tipos de
argumento possíveis dentro de um processo argumentativo;
5) Confrontar as três categorias de textos em estudo para caracterizar os pontos
comuns, bem como as especificidades que as caracterizam e distinguem dentro
dessa perspectiva de gêneros argumentativos.
1.6- Hipóteses
1) Os gêneros apólogo, fábula e parábola são narrativas, mas têm uma função
discursivo-pragmática predominantemente argumentativa, uma vez que são usados
em esferas sociais específicas, para fins educativo-doutrinários.
2) Enquanto discursos argumentativos, esses gêneros terão características comuns
que parecem referir-se a sua narratividade e características que os distinguem e
que se refeririam ao seu caráter argumentativo e que podem ser detectadas nos
seguintes aspectos:
a) auditório a que se destinam;
b) acordos que têm como ponto de partida;
c) tipos de argumentos e estratégias que utilizam.
18
1.7- Caracterização dos capítulos
Antecipamos aqui o conteúdo de cada um dos capítulos de nossa dissertação e das
considerações finais.
No capítulo 2, fizemos o estudo teórico dos tipos narrativo e argumentativo e,
simultaneamente, adiantamos elementos da análise por meio de textos do corpus com a
finalidade de tornar mais claros os fatos teóricos expostos, bem como dar consistência à
análise.
Para fundamentar o tipo narrativo, fizemos um estudo sobre tipologia textual com base
na teoria de Travaglia (1991). Dentro dos estudos do tipo narrativo, conceituamos os gêneros
apólogo, fábula e parábola, confrontando definições dadas a esses gêneros por diferentes
autores. Também fundamentamos e analisamos a superestrutura narrativa, averiguando nos
três gêneros as categorias do texto narrativo propostas por Travaglia (1991).
Para fundamentar o tipo argumentativo, usamos a teoria de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (2002). Conceituamos e analisamos, inicialmente, a base da argumentação, ou seja, os
elementos: o auditório e os objetos de acordo. Em seguida, apresentamos as técnicas
argumentativas, compostas por argumentos quase-lógicos e por argumentos baseados na
estrutura do real.
No capítulo 3, apresentamos os resultados da pesquisa sobre os elementos estudados
no capítulo 2 acerca do tipo narrativo e do tipo argumentativo, apresentando-os por meio de
tabelas, com as respectivas análises e exemplificações, apontando então, elementos comuns e
não-comuns aos gêneros apólogo, fábula e parábola.
Por último, nas considerações finais, pontuamos os elementos semelhantes e/ou
diferentes encontrados nos gêneros apólogo, fábula e parábola, os quais consideramos serem
aspectos relevantes para a caracterização desses gêneros como tipos argumentativos, como
também para uma distinção entre eles.
19
2- BASES TEÓRICAS E SUA APLICAÇÃO A APÓLOGOS,
FÁBULAS E PARÁBOLAS
Neste capítulo vamos expor as bases teóricas que sustentam e direcionam nosso estudo
e ao mesmo tempo já vamos inserindo dados de nossa análise, com o intuito de deixar claro
como as opções teóricas aqui apresentadas aparecem em nosso corpus. Como nosso trabalho é
sobre gêneros de texto em seu funcionamento discursivo, vamos começar dizendo o que
estamos entendendo por texto e discurso.
2.1- Texto e discurso
Para a atividade sócio-comunicativa por meio da língua há muitas decisões a serem
tomadas. Como diz Bronckart:
[...] uma ação de linguagem exige do produtor uma série de decisões, que ele
necessita ter competência para executar. Tais decisões referem-se, em primeiro
lugar, à escolha do gênero mais adequado, além de outras relativas à constituição
dos mundos discursivos, à organização seqüencial ou linear do conteúdo temático, à
seleção de mecanismos de textualização e de mecanismos enunciativos
(BRONCKART, 1999 apud KOCH, 2002, p. 7).
Segundo Bronckart (1999) toda ação de linguagem exige que o enunciador tenha
competência para escolher o gênero adequado, para situar-se mediante diferentes discursos,
para selecionar mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos. De acordo com esse
20
autor, além de um modelo textual (uma superestrutura), um texto tem como base em sua
composição os conhecimentos sobre a inter-relação entre texto e discurso. Vejamos a
concepção de Fávero e Koch sobre essas duas categorias:
o termo texto pode ser tomado em duas acepções: texto, em sentido lato, designa
toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de
um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é,
qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. Em se
tratando da linguagem verbal, temos o discurso, atividade comunicativa de um
falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados
produzidos pelo locutor (ou por este e seu interlocutor, no caso do diálogo) e o
evento de sua enunciação. O discurso é manifestado, lingüisticamente, por meio de
textos (em sentido estrito). Nesse sentido, o texto consiste em qualquer passagem,
falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão.
Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo contextual
que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto –
os critérios ou padrões de textualidade (FÁVERO; KOCH, 1988, p. 25).
De acordo com essa visão, entendemos que o texto materializa o discurso, cumprindo
a função de ser o instrumento responsável por sua veiculação. Mas, ao mesmo tempo, o
discurso mantém uma relação de confiabilidade com o texto, uma vez que este lhe fornece
condições e possibilidades para que seja processado.
Segundo Foucault,
é o modo de existência do enunciado no discurso, dentro das formações discursivas,
que faz com que as regras de formação, frases, palavras sejam como são, ou seja, é o
modo de existência do enunciado que determina a forma e seus sentidos, valores,
funções, usos possíveis, estabelecendo as regularidades lingüísticas (FOUCAULT,
1986 apud TRAVAGLIA, 1991, p. 48).
Portanto, para Foucault, a forma como o enunciado se estrutura no discurso é
responsável pelas regularidades lingüísticas.
Orlandi (1987a), assim como Foucault, afirma que no discurso os enunciados
determinam o que pode e deve ser dito, configurando regularidades lingüísticas de acordo
com cada formação discursiva, sendo elas determinadas pelas condições de produção. No
entanto, acrescenta que o discurso considera tanto o contexto de situação como o contexto
sócio-histórico e ideológico. Assim, para atingir os vários níveis de interação, é necessário ir
além dos sentidos da língua, ou seja, o texto ultrapassa as marcas formais, pois as marcas
formais, segundo Orlandi (1986), podem afetar o processo de enunciação. Exemplificando
21
essa idéia, um dos exemplos citados por ela é o discurso científico, em que as marcas formais
produzem o efeito de objetividade, havendo o apagamento do sujeito e, assim, o que prevalece
é a voz do saber. Orlandi, então, propõe outro elemento na constituição do discurso; as
propriedades. Enquanto as marcas dizem respeito à organização interna do discurso, as
propriedades focalizam a totalidade do discurso em relação às condições de produção
3
,
estando estas, portanto, relacionadas com a exterioridade.
Neste trabalho, o estudo que fazemos sobre nosso objeto de conhecimento, os gêneros
apólogo, fábula e parábola, está mais voltado para a análise do discurso e suas propriedades,
como define Orlandi, tendo em vista que nesses gêneros o discurso é objeto abstrato,
composto pela interação verbal entre o enunciador e interlocutor mediante os acordos
estabelecidos na exterioridade do texto, quase sempre mantidos por técnicas argumentativas
implícitas na macroestrutura textual.
Diante das posições vistas, entendemos que não é uma hierarquização das funções
entre texto e discurso que levará à compreensão de um texto, o que ocorre é uma inter-relação
recíproca deles. Tanto o gênero quanto o tipo a que o texto pertence, tomados numa
conjugação de textos, constituem uma medida com intenções determinadas para o
processamento do enunciado e atuam como elementos importantes para codificação do
discurso que o texto pretende divulgar.
Como vimos, texto e discurso são conceitos diferentes, mas interligados e
interdependentes, quando temos como proposta explicar o funcionamento da língua, ou seja,
quando queremos explicar como a ação comunicativa se concretiza no texto, segundo um
ponto de vista, dependendo de fatores socioculturais e interpessoais (KOCH; TRAVAGLIA,
1991).
2.2- Tipologia textual
A tipologização dos textos em todos os planos e níveis, segundo Chiss (1987 apud
TRAVAGLIA, 2001) é um dos elementos que faz da lingüística uma ciência. Os estudos até
então, por meio de abordagens literárias, lingüísticas, antropológicas, psicológicas,
pedagógicas, estabelecem teorias, parâmetros e critérios ao propor as diferentes tipologias.
3
Sobre condições de produção, ver BRANDÃO, 1998, p. 35-37.
22
Segundo Travaglia (2001), todas essas tentativas apresentam dificuldades e causam uma certa
confusão classificatória devido a dois fatores: a) “da inexistência de uma teoria tipológica
geral que organize todo esse ‘furor’ tipológico; b) do encontro das diferentes abordagens e
conseqüentes metalinguagens que muitas vezes se utilizam dos mesmos termos para referir
conceitos tipológicos diversos” (p. 2). Na tentativa de propor parâmetros que atendam à nossa
proposta de averiguar o discurso e/ou texto que compõem os gêneros narrativos apólogo,
fábula e parábola, tomamos como referência o estudo de alguns autores.
Adam (1993), cita os estudos de Molino (1990) que define a tipologização dos textos,
como:
a) “manejáveis – aquelas, por exemplo, que distinguem descrição, narração,
exposição, argumentação, instrução – não são distintas e fornecem um quadro vago
sem garantia de homogeneidade nem de regularidade”; b) “as classificações que
visam ser homogêneas, rigorosas, monotípicas e exaustivas são forçadas a se perder
em uma ramificação sem limites que as tornam inutilizáveis sem que elas sejam
mais seguras” (MOLINO, 1990 apud ADAM, 1993, p. 7).
Partindo desses conceitos, os autores defendem que não existem textos totalmente
genuínos que dêem conta de um ato enunciativo, e sim, uma mescla de tipos, ou uma
“conjugação” de tipos, assim denominada por Travaglia (1991) na composição de um texto.
Travaglia (1991, 2002) desenvolve o estudo da tipologia de textos, procurando abarcar
categorias de natureza tipológica dos textos que circulam em nossa sociedade através de um
critério teórico consistente, envolvendo três tipelementos: tipo, gênero e espécie. Para ele, o
termo tipelemento designa “elementos tipológicos de naturezas distintas que se definem por
parâmetros e critérios de natureza também diferente” (TRAVAGLIA, 2002, p. 4), dentro de
um ponto de vista teórico-epistemológico. A partir dessa proposta, o autor toma como base
para tipificar cada categoria textual, critérios de naturezas diversas. Assim estabelece três
tipelementos: o tipo, o gênero e a espécie.
A seguir, definimos tipo, gênero e espécie de acordo com a proposta de Travaglia
(2001 e 2002).
2.2.1- Tipo
O tipo “é identificado e caracterizado por instaurar um modo de interação, uma
maneira de interlocução, segundo perspectivas que podem variar constituindo critérios para o
23
estabelecimento de tipologias diferentes” (TRAVAGLIA, 1991, p. 48). Definidos dentro
dessa perspectiva, Travaglia exemplifica com tipos organizados em cinco tipologias distintas:
1- Textos descritivos, dissertativos, narrativos, injuntivos – mediante perspectivas do
produtor em relação ao objeto do dizer quanto ao fazer / acontecer ou conhecer /
saber e sua inserção no tempo e / ou no espaço ou não.
2- Textos argumentativos “stricto sensu” (o interlocutor não concorda com o
produtor) e argumentativos não “stricto-sensu” (o interlocutor concorda com o
produtor). A perspectiva então é da imagem que o produtor do texto faz do seu
interlocutor como alguém que concorda com ele ou não.
3- Textos preditivos – a perspectiva é a de que o produtor faz uma antecipação no
dizer – e textos não-preditivos – em que o produtor não faz uma antecipação no
dizer.
4- Texto do mundo narrado e do mundo comentado – na perspectiva dada pela atitude
comunicativa de comprometimento (mundo comentado) ou não (mundo narrado)
do produtor do texto com o que diz. Esta tipologia foi proposta por Weinrich
(1968).
5- Texto lírico, épico, dramático – o lírico estabelece um modo de interação em que o
produtor se caracteriza pela perspectiva de voltar-se para si mesmo para refletir-se
como numa confissão (pouco se importa com o alocutário); no épico, o produtor
caracteriza-se pela perspectiva de busca do mundo exterior pela admiração do
acontecido (nele o que importa é a complicação); no dramático, o produtor visa a
interação na perspectiva do mundo exterior em relação à instância das relações
entre os seres.
Para Travaglia (1991, 2002 e 2004), os tipos estão presentes na construção dos
gêneros que circulam em nossa sociedade, podendo ocorrer nessa construção os processos por
ele denominados como: conjugação, cruzamento e intercâmbio dos tipos. A conjugação
consiste numa mescla de tipos. O cruzamento ocorre quando um texto se encaixa em mais de
uma tipologia. Já o intercâmbio ocorre quando uma categoria de texto é usada no lugar de
outra que seria de esperar em uma dada situação de interação. Vejamos, a seguir,
respectivamente, a ocorrência desses três processos definidos através dos exemplos
4
(1), (2) e
(3).
4
Sobre os exemplos dados ao longo deste trabalho, informamos que sempre que possível, usaremos textos do
corpus, desde a exposição teórica à analise. No entanto, quanto não encontrarmos exemplos no próprio corpus,
usaremos outros textos com a intenção de evidenciarmos a teoria exposta.
24
(1) “COMPLEXO SENNA – 46
Forma Farmacêutica e Apresentação:
Comprimidos – Frasco com 60 comprimidos
USO ADULTO – USO ORAL / INTERNO
Cada comprimido contém: Cássia senna 1DH 0,020g, Collinsonia canadensis
1CH 0,015g, Polygonum punctatum [...]
INFORMAÇÃO AO PACIENTE:
Ação esperada do medicamento: Laxativo de contato, indicado como
auxiliar no tratamento da constipação intestinal.
Cuidados do armazenamento: Conservar o produto em temperatura
ambiente (entre 15 e 30º C). Proteger da luz e da umidade.
Prazo de validade: Observada a correta forma de armazenagem, a validade é
de 24 meses, a partir da data de fabricação. Não use [...]
Gravidez e lactação: Informe seu médico na ocorrência de gravidez na
vigência do tratamento ou após o seu término. Informar ao médico se está
amamentando.
[...]
INFORMAÇÃO TÉCNICA:
Características químicas e farmacológicas do medicamento:
Cassia senna: promove excitação motora das fibras musculares do intestino
grosso. O princípio ativo é a emodina que é um catártico de ação relativamente
suave. As emodinas são excretadas [...]
Collinsonia canadensis: Auxiliar no tratamento de constipação,
acompanhada de grande flatulência, cólicas abdominais e hemorróidas.
Polygonum punctatum: Auxilia no tratamento de hemorróidas,
especialmente quando há hemorragia e em hemorróidas pruriginosa.
Picossulfato de sódio: É um laxativo de contato que pertence ao grupo
triarilmetano. [...]
Indicações: Laxativo de contato, indicado como auxiliar no tratamento da
constipação intestinal.
Contra-Indicações: Não deve ser [...]. Não utilizar o produto durante a
gravidez e amamentação sem orientação médica. [...].
Posologia: USO INTERNO – USO ORAL
Adultos: 1 ou 2 comprimidos à noite, ao deitar ou à critério médico.
OBS – Dose máxima diária: 4 comprimidos.
Recomenda-se a ingestão de líquidos.
Superdosagem: No caso de administração de altas doses do produto, podem
ocorrer diarréias, espasmos, cólicas abdominais e uma significante perda de
potássio. [...]”
(2) “A tartaruga fez um dia um pedido aos pássaros. Se um deles quisesse, depois
de passeá-la pelos ares, trazê-la de volta à terra, iria de imediato buscar ostras no
fundo do Mar Vermelho e uma pérola recompensaria o serviço prestado. É que a
tartaruga se indignava com a sua marcha lenta que não lhe permitia agir e a
forçava a passar dias inteiros, parada. Mas depois de ter feito mil promessas
enganosas à águia, viu-se vítima de uma perfídia igual à de seus discursos:
querendo alcançar os astros com asas de empresário, a infeliz morreu nas garras da
ave. Então, bem alto nos céus e já agonizante, ela deplora demasiado tarde a
25
realização de seus temerários desejos e diz: que meu funesto destino ensine aos
que se entendiam com uma existência sossegada que não se atinge a grandeza sem
sofrer terríveis privações.
Assim é que seduzido por uma glória inédita que lhe acarinha a vaidade,
quem aspira a uma posição mais brilhante carrega consigo o castigo de sua
ambição.” (Texto 23)
(3) “ESTIMULANTE PEDAGÓGICO
Leia com atenção antes de usar.
COMPOSIÇÃO
Os comprimidos contêm todas as virtudes que formam o Estimulante
Pedagógico: amor, humildade, sinceridade, alegria, criatividade, inspiração,
energia, visão, garra, paixão, persistência, dedicação e integração.
INFORMAÇÃO AO PACIENTE
Por todas as experiências pelas quais passamos e por tudo o que temos
estudado e comprovado, não há dúvida de que o Estimulante Pedagógico é o
remédio ideal para qualquer tipo de crise. Para que o tratamento atinja seus
objetivos, é indispensável dedicação do corpo e espírito para quem quer curar a
causa e não os sintomas da doença. Destina-se a quem está disposto a sofrer uma
transformação interior e jamais se arrepender disso.
EFEITOS COLATERAIS
O paciente, logo de imediato, consegue encontrar o equilíbrio necessário para
identificar e encarar seu problema. A continuidade do tratamento traz mudanças
profundas no paciente, que desenvolve uma fé consciente, além da certeza de ser
peça fundamental de sua própria vida.
INDICAÇÕES
Nos estados de depressão, apatia, desinteresse, pessimismo, falta de
motivação, baixa de auto-estima, descontrole emocional; recomendado
especialmente para pessoas que desistiram de sonhar ou para as que desistiram de
si próprias.
CONTRA-INDICAÇÕES
Nem a mais avançada ciência é capaz de apontar uma contra-indicação para o
amor, a positividade e a energia.
PRECAUÇÕES
Mantenha este medicamento ao alcance de todas as pessoas para que possam
ser contagiadas. Mantenha também ao alcance de todas as crianças. Não há prazo
determinado de validade, pode ser utilizado por toda a vida sem o conhecimento
do seu médico.
POSOLOGIA
Adultos – 01 drágea por dia ao acordar ou, se preferir, tomar todas as drágeas
em doses únicas. O resultado será surpreendente.
Crianças – o tratamento deverá ser iniciado pelos pais. Muito sorriso, muito
carinho, estímulo constante aos sonhos e criatividade fazem parte do tratamento.”
(Autor desconhecido)
26
No exemplo (1), temos a estrutura de uma bula em que se conjugam os tipos:
descrição (Forma farmacêutica e apresentação – Informações técnicas); injunção (Contra-
indicações; Posologia); dissertação (Informações técnicas; Informações ao paciente;
Indicações, Superdosagem); não havendo uma caracterização por dominância de nenhum dos
tipos que compõem esse gênero, tratando-se assim de uma conjugação de tipos, sem
dominância de nenhum deles.
No exemplo (2), a estrutura narrativa, enquanto superfície textual, encaminha para
uma moral explícita no final, tornando o texto argumentativo, uma vez que em determinada
situação de uso, tem função de levar o alocutário a acreditar em algo. Assim, pode ser
classificado enquanto estrutura, uma narração e, enquanto função comunicacional, uma
argumentação “stricto sensu”, resultando assim num cruzamento de tipos.
No exemplo (3) o texto “Estimulante pedagógico” tem a estrutura de uma bula, mas
com a função de falar, expor os elementos necessários para uma relação harmoniosa e
produtiva do professor com o aluno; sendo assim, temos um gênero (bula), sendo usado em
função de outro de natureza argumentativa.
Segundo Travaglia (2004, p. 5), as duas linhas teóricas – Tipologia Textual Literária e
Tipologia Textual Lingüística – “admitem a não pureza dos textos / obras empíricas em
relação a elementos tipológicos, o que significa dizer que diferentes elementos tipológicos
podem entrar na constituição dos textos”. Isso significa que os tipos textuais diferentes são
usados numa mesma produção textual de forma a se combinar, conforme também afirma
Orlandi: “o texto todo pode ser de um tipo, as seqüências podem se alternar, um tipo pode ser
usado em função do outro ou eles podem se combinar” (ORLANDI, 1987a, p. 156). Tal
ocorrência chama a atenção das duas correntes de estudos que já contemplam “a idéia de
dominância na realização de cada obra/texto empírico” (TRAVAGLIA, 2004, p. 5). Quando
fala em dominância do tipo, nessa visão, o autor refere-se às características próprias de cada
tipo em termos de forma / modo de interação que cada tipo estabelece e não em termos de
“espaço” ocupado no texto por um ou por outro tipo.
Segundo Orlandi (1986), “a atividade do dizer é tipificante”, uma vez que o
enunciador ao dizer algo a alguém tem a intenção de dar uma configuração a seu discurso.
Enquanto Orlandi caracteriza o tipo apenas na intenção do enunciador, Travaglia (1991)
acrescenta que o tipo se caracteriza como uma forma de ação, de interação, um tipo de
interlocução. Dessa forma, os tipos: narrativo, descritivo, dissertativo, injuntivo na
enunciação, o enunciador/locutor, em relação ao objeto do dizer (ao referente ou assunto)
coloca-se sob perspectivas diferentes de forma a configurar uma atitude enunciativa distinta,
27
tendo em vista o enunciado. A partir dessa perspectiva do locutor, o texto se caracteriza
enquanto tipo, tendo em vista algumas propriedades definidoras para diferenciá-los em cada
tipologia. Vejamos a seguir, como o autor estrutura as duas tipologias mais pertinentes aos
nossos estudos.
Os critérios usados por Travaglia para definir os tipos, além das relações entre
enunciador e enunciatário já expostas neste capítulo, também consideram as relações do
tempo com o enunciador, diferenciando de Fávero e Koch (1987), que estabelecem como
critérios de comparação e diferenciação de textos as dimensões: a) pragmática – diz respeito
aos macroatos de fala; b) esquemática global – são os modelos cognitivos e esquemas globais;
c) as características lingüísticas de superfície (estrutura sintático-semântica).
Vejamos primeiramente, os aspectos e propriedades dos tipos que compõe a tipologia
1, definida por Travaglia (1991, 2002). Na descrição, o enunciador
5
se posiciona na
perspectiva do conhecer inserido no espaço, cujo objetivo é caracterizar, dizer como é;
enquanto o interlocutor mantém-se como um “voyeur
6
. Na narração, o enunciador se coloca
na perspectiva do fazer / acontecer inserido no tempo, tendo como objetivo, contar, dizer os
fatos; enquanto o interlocutor é apenas espectador. Na dissertação, o enunciador se mantém
na perspectiva do conhecer, abstraindo-se do tempo e do espaço e seu objetivo é refletir,
explicar, conceituar, avaliar, expor idéias para dar a conhecer, para fazer saber, associando-
se à análise e à síntese de representações; enquanto o interlocutor é um ser pensante. Na
injunção, o enunciador se posiciona na perspectiva do fazer posterior ao tempo da
enunciação, cuja intenção é dizer a ação requerida; enquanto o interlocutor é aquele que
realiza a ação proposta.
Na tipologia 2, Travaglia organiza os textos em duas categorias definindo-os pelo
discurso da transformação e pelo discurso da cumplicidade. Enquanto discurso da
transformação, partindo do que diz ORLANDI (1987a), de que “o locutor experimenta o lugar
5
Nagamine Brandão (1998), retoma os estudos de Ducrot sobre polifonia, distinguindo e conceituando locutor/
narrador, autor/produtor e locutor/enunciador. Primeiramente, apresenta o locutor como figura correspondente
ao narrador da teoria de Genette, “o ser apresentado como responsável pelo dizer, mas não é um ser no mundo,
pois trata de uma ficção discursiva. É aquele que fala, que é tido como fonte do discurso” (BRANDÃO, 1998, p.
58). Sobre a distinção autor/produtor, Brandão coloca que assim como em Genette o narrador se distingue do
autor, o que ele chama de pessoa do mundo, em Ducrot, “o locutor se distingue do sujeito falante empírico – o
produtor efetivo do enunciado e exterior ao seu sentido (o autor – grifo nosso)” (BRANDÃO, 1998, p. 59). Por
último, “o enunciador se distingue tanto do locutor quanto do sujeito falante. É a figura da enunciação que
representa a pessoa de cujo ponto de vista os acontecimentos são apresentados”. Assim, Brandão coloca que “Se
o locutor é aquele que fala, que conta, o enunciador é aquele que vê, é o lugar de onde se olha sem que lhe sejam
atribuídas palavras precisas.” (BRANDÃO, 1998, p. 59-60).
Obs.: Nos estudos realizados verificamos o uso dos termos locutor/ narrador, autor/produtor e enunciador. Como
nossa proposta de análise se fundamenta na perspectiva discursiva, usaremos sempre o termo enunciador.
6
Um observador à espreita.
28
de seu ouvinte a partir de seu próprio lugar”, Travaglia distingue duas imagens básicas do
alocutário: a) o locutor encontra no alocutário um adversário, alguém que não concorda com
ele e assim, assume a posição de transformar esse alocutário, tentando persuadi-lo, convencê-
lo, fazendo-o ou crer em algo, ou realizar algo ou agir de um certo modo, aderindo, portanto,
ao seu discurso; b) o locutor encontra no alocutário um cúmplice, ou seja, alguém que
concorda com ele, como um adepto do seu discurso. A primeira categoria definida, o autor
denomina de texto argumentativo “stricto sensu” porque nele se toma uma posição e se
propõe a debater; a segunda, ele denomina de texto argumentativo não “stricto sensu”.
2.2.2- Gênero
A primeira concepção de gênero em que nos apoiamos é a de Bakhtin. Para ele o
aparecimento dos gêneros está estreitamente ligado ao uso da linguagem nas diferentes
esferas da atividade humana, justificando assim uma diversidade de enunciados com
características próprias. Segundo Bakhtin:
O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas
esferas não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela
seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três
elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se
indissocialvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela
especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado
isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso (BAKHTIN 1997, p. 279).
Quando partimos dessa noção de gêneros discursivos dada por Bakhtin para
caracterizarmos como gêneros o apólogo, a fábula e a parábola, estamos identificando-os
como enunciados que refletem as condições específicas e as finalidades que uma determinada
esfera social assumiu na construção composicional deles. Essas unidades composicionais
dizem respeito ao “tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o
locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, com o leitor, com
o interlocutor, com o discurso do outro, etc.)” (BAKHTIN, 1997, p. 284). Além disso,
29
estamos também considerando o apólogo, a fábula e a parábola como gêneros discursivos,
dada à estabilidade desde suas origens até a contemporaneidade, como enunciados que
cumprem uma função social e comunicativa de cunho didático, doutrinária e uma intenção
crítica, cujos discursos veiculam princípios éticos e/ou morais em esferas como a escola, a
família, a igreja.
Sobre o discurso, Orlandi diz que “cada tipo de discurso não se define em sua
essência, mas como tendência para uma propriedade” (ORLANDI, 1987a, p. 155). De acordo
com Travaglia (1991), o fator tendência não é definido em termos de quantidade, mas de
tendência em função de uma intenção ou finalidade comunicativa que dá o modo de interação,
retomando assim a mesma concepção de Bakhtin, exposta anteriormente. Como intenção ou
finalidade comunicativa, entendemos que o autor se refere à função discursiva do texto.
Assim, juntamente à forma/estrutura, elementos que organizadamente definem os tipos
(microestrutura), está o conteúdo semântico (macroestrutura) que estabelece, em relação com
os tipos, os gêneros textuais, uma vez que estes são constituídos para atender uma intenção
comunicativa, conforme afirma Koch:
O conhecimento superestrutural, isto é, sobre gêneros textuais, permite reconhecer
textos como exemplares adequados aos diversos eventos da vida social; envolve,
também, conhecimentos sobre as macrocategorias ou unidades globais que
distinguem os vários tipos de textos, sobre a sua ordenação ou seqüenciação, bem
como sobre a conexão entre objetivos e estruturas textuais globais (KOCH, 2002, p.
49).
Para Travaglia (2001), as funções sociais que cada gênero busca atender, mesmo que
sejam pressentidas e vivenciadas, não são de fácil explicitação. Ele caracteriza o gênero
enquanto texto como “uma função social estabelecida dentro de quadros sociais institucionais
ou de outra natureza, claramente definidos e que dão as condições de felicidade
7
para
ocorrência, inclusive quem são os seus produtores esperados ou mesmo ‘autorizados’ pela
sociedade” (TRAVAGLIA, 2002b).
Vejamos três exemplos de gêneros citados e explicados por Travaglia (2001): a)
correspondência – cumpre uma função social de permitir a troca de informações entre pessoas
7
Entendemos por condições de felicidade o conjunto de critérios que envolvem a criação e, conseqüentemente, o
uso de um determinado gênero. Uma vez que a característica principal do gênero é a função social, mediada por
uma intenção quer comunicativa, crítica e/ou informacional, é necessário que algumas condições sejam previstas
em sua produção, como: o grupo, a esfera social, os participantes envolvidos; a situação, o momento específico
de uso; os elementos lingüísticos específicos e adequados para que haja interação verbal; o discurso (didático,
científico, filosófico) responsável pelo caráter ideológico dos envolvidos na interação verbal.
30
e / ou instituições e a interação por meio de um veículo específico que sobrepuja limitações de
tempo e espaço; b) notícia ou reportagemtêm função social de manter o interlocutor
atualizado com os fatos acontecidos numa região, país ou no mundo e também tem veículos
próprios; c) gênero didático – tem função específica de ensinar, de servir ao ensino /
aprendizagem do conteúdo do texto.
Dolz e Schneuwly, retomando Bakhtin, assim como Travaglia, afirmam sobre o
gênero que
Uma das particularidades desse tipo de instrumento é que ele é constitutivo da
situação. [...] A mestria de um gênero aparece, portanto, como co-constitutiva da
mestria de situações de comunicação. Situando-se na perspectiva bakhtiniana,
consideramos que todo gênero se define por três dimensões essenciais: 1) os
conteúdos e acontecimentos que são (que se tornam) dizíveis através dele; 2) os
elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos
reconhecidos como pertencentes a determinado gênero; 3) as configurações
específicas das unidades de linguagem, que são, sobretudo, traços da posição
enunciativa do enunciador, e os conjuntos particulares de seqüências textuais e de
tipos discursivos que formam sua estrutura (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 52).
Com essa base bakhtiniana, além da função social a ser cumprida pelo gênero em
diferentes situações comunicativas, Dolz e Schneuwly reconhecem a inter-relação entre texto,
gênero e discurso, relação esta que também averiguamos nos gêneros apólogo, fábula e
parábola.
Os estudos teóricos da obra de Bakhtin apontam características do gênero que são
retomadas por vários autores, entre elas a regularidade no uso de certos textos,
proporcionando-lhes estabilidade; no entanto, devido ao uso que a sociedade faz desses textos
em cada época, de acordo com as necessidades de comunicação, o gênero pode evoluir,
mudar. Verificamos tal fato no gênero fábula, que na sua origem era estruturado em versos,
pois, como a escrita não era uma atividade usada para registro, os versos eram uma forma
mais indicada para a memorização. Com o advento da escrita, as fábulas passaram a ser
escritas em prosa. Também muda o conteúdo argumentativo (a moral explícita ou implícita)
encaminhado pela narração, tendo em vista o contexto (tempo, época, situação) em que o
texto é usado. Tomemos como exemplo desse fato a fábula “A raposa e as uvas”. Em Fedro, a
moral dada para essa fábula é “Quem desdenha, com palavras, o que não logra realizar, há de
aplicar para si este exemplo.” (FEDRO, 2006, p. 84). No texto de Esopo, traduzido por
Fernanda Lopes de Almeida, a moral diz que “Também é assim com as pessoas: quando não
31
podem ter o que desejam, fingem que não o desejam.” (ALMEIDA, 1994 apud CEREJA;
MAGALHÃES, 2002, p. 114). Já Millôr Fernandes recria essa fábula com a moral “A
frustração é uma forma de julgamento como qualquer outra” (FERNANDES, 1991, p. 118).
A noção de gênero textual / discursivo, nos tempos atuais advém do pensamento de
Bakhtin em Marxismo e Filosofia da linguagem que afirma que “cada época e cada grupo
social possuem seu repertório de formas de discurso na comunicação “sócio-ideológico”
(BAKHTIN, 1988, p. 43). Assim, para esse autor, a linguagem se atualiza na materialidade
do signo ideológico nas formas concretas de comunicação (textos) oral ou escrita a que ele
denomina de gênero do discurso. Já em A Estética da criação verbal (1997), Bakhtin
acrescenta que é necessário levar em consideração a diferença entre gênero do discurso
primário (textos simples ou da oralidade) e gênero do discurso secundário (textos
complexos). Como gênero do discurso primário estão interações verbais espontâneas que
ocorrem em atividades cotidianas e/ou íntimas em variados níveis, como na família, na roda
de amigos, na carta particular, entre outros, tendo como marca lingüística a oralidade. Dentre
os gêneros secundários, que aparecem em circunstâncias de comunicação cultural mais
elaborada, principalmente escrita, e que figuram em instâncias públicas mais formais, estão o
discurso ideológico, o discurso científico, o romance, o teatro etc. Para Bakhtin, quando um
gênero absorve o outro, ocorre a transmutação. Como exemplo desse processo, temos o
diálogo inserido no romance, perdendo a categoria de gênero da oralidade, da realidade,
passando a integrar a realidade do romance concebido como fenômeno da vida literário-
artístico e não da vida cotidiana. Dessa forma, os gêneros secundários correspondem a uma
interface do gênero primário.
Segundo Bakhtin (1997, p. 281), “o rico repertório dos gêneros do discurso oral (e
escrito) nos é dado como nos é dada a língua materna, que dominamos antes mesmo de ser
estudada a gramática”. Por essa visão, Bakhtin expõe o caráter natural que dá origem aos
gêneros e considera-os como os responsáveis pela organização da nossa fala, assim como as
formas gramaticais a organizam sintaticamente. Bakhtin afirma também que os gêneros são
tipos estáveis, evitando que estejamos, a todo momento, criando novas maneiras de nos
comunicarmos. No entanto, esta estabilidade é relativa, pois os textos variam conforme as
circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos interlocutores que elaboram o
enunciado em função da eventual reação-resposta que é o objetivo preciso de sua elaboração.
(conforme o exemplo que reportamos há pouco). Assim, a vida dos gêneros depende das
formas particulares de ver o mundo, conforme a época e a história.
32
Voltando a Travaglia (2002 e 2004), quanto à relação entre os tipos e os gêneros, o
autor afirma que os tipos têm existência independente dos gêneros, mas só se realizam nestes,
portanto os tipos atualizam-se nos gêneros, quando postos em funcionamento, ou seja, quando
são tomados para algum fim.
Marcuschi (2002), também reconhece que os gêneros textuais se definem por aspectos
sócio-comunicativos e funcionais, mas chama a atenção para que os aspectos formais não
sejam desprezados. Segundo ele, há “casos em que determina o gênero presente”, e
exemplifica tal fato, dizendo que um texto quando aparece em uma revista científica é
denominado “artigo científico”, enquanto que ao ser publicado num “jornal diário” torna-se
um “artigo de divulgação científica”. Nessa perspectiva, o aspecto funcional do gênero é
responsável pela sua criação e passa a depender do instrumento que o veicula, definido por
Marcuschi como suporte. No entanto, nesse exemplo apresentado, entendemos que ao mudar
de suporte, o texto muda apenas o alvo que se quer alcançar, tendo em vista o seu interlocutor,
mas as perspectivas enunciativas são as mesmas, logo o gênero é o mesmo.
8
Acreditamos
então que o uso de diferentes suportes para sustentar os gêneros, como afirma o próprio
Marcuschi (2002, p. 20), revela “o fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se e se
integram funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem”; logo eles “caracterizam-se
muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas
peculiaridades lingüísticas e estruturais”, ou seja, formais, e muito menos pelo instrumento
que os sustentam (grifo nosso).
Somando-se à posição defendida por Bakhtin (1997), por Bronckart (1999) e pela
maioria dos autores, Marcuschi reconhece que a comunicação verbal só é possível usando
algum gênero textual, sendo a língua assim tratada em seus aspectos discursivos e
enunciativos, definida como atividade social, histórica e cognitiva. Segundo esse autor, é
neste “contexto, que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discusivas para agir
sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-se de algum modo” (MARCUSCHI, 2002, p.
22).
Vejamos a seguir um quadro sinóptico traçado por Marcuschi para distinguir tipo
textual de gênero textual:
8
Não concordamos com o exemplo apresentado por Marcuschi, pois acreditamos que o simples fato de um
artigo científico (publicado em uma revista científica) ser publicado em outro veículo (um jornal), sendo o
mesmo texto, o tornaria outro gênero. Acreditamos que para que se formate outro gênero, é necessário que as
perspectivas enunciativas mudem em relação à proposta do enunciador frente ao seu alocutário, mudando,
conseqüentemente os elementos lingüísticos e discursivos responsáveis pela tessitura do texto, o que não
acontece no exemplo dado, uma vez que nas duas publicações a intenção, a função comunicativa é a mesma,
divulgar um estudo científico por meio de um mesmo texto.
33
Tipos textuais Gêneros textuais
1. constructos teóricos definidos por
propriedades lingüísticas intrínsecas;
1. realizações lingüísticas concretas
definidas por propriedades sócio-
comunicativas;
2. constituem seqüências lingüísticas ou
seqüências de enunciados e não são textos
empíricos;
2. constituem textos empiricamente
realizados cumprindo funções em
situações comunicativas;
Tipos textuais Gêneros textuais
3. sua nomeação abrange um conjunto limitado
de categorias teóricas determinadas por
aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas,
tempo verbal;
3. sua nomeação abrange um conjunto
aberto e praticamente ilimitado de
designações concretas determinadas pelo
canal, estilo, conteúdo, composição e
função;
4. designações teóricas dos tipos: narração,
argumentação, descrição, injunção e
exposição.
4. exemplos de gêneros: telefonema, sermão,
carta comercial, carta pessoal, romance,
bilhete, aula expositiva, reunião de
condomínio, horóscopo, receita culinária,
bula de remédio, lista de compras,
cardápio, instruções de uso, outdoor,
inquérito policial, resenha, edital de
concurso, piada, conversação espontânea,
conferência, carta eletrônica, bate-papo
virtual, aulas virtuais etc.
Fonte: Marcuschi (2002, p. 23).
De acordo com as características apontadas pelo autor, um tipo se define em torno de
um construto teórico, que envolve propriedades lingüísticas no nível das relações sintáticas,
lógicas internas no texto; enquanto o gênero, por uma identificação empírica, ou seja, por uma
freqüência de uso, sendo o conteúdo e a forma moldados pela função em dada esfera
comunicativa. Enquanto que para Travaglia, o tipo se define como uma forma de ação, um
tipo de interação entre locutor e alocutário; e o gênero, por uma função sócio-comunicativa
específica.
2.2.3- Espécie
O terceiro e último tipelemento proposto por Travaglia (2002, 2002a) é a espécie,
definida por aspectos formais (inclusive de estrutura) e/ou de conteúdos.
Ela está sempre vinculada a um tipo de texto ou a um gênero, não se realiza sozinha.
Vinculadas ao tipo narrativo temos as espécieshistória” e “não-história”, sendo
caracterizadas por aspectos de conteúdo. A primeira ocorre quando na narração os episódios
se encadeiam, caminhando em direção a uma solução e a um resultado. A segunda ocorre
34
quando os episódios narrados estão lado a lado no texto, mas não se encadeiam rumo a um
resultado.
O conteúdo dos textos narrativa história pode ser formulado com informações
verossímeis ou não, mas não precisam ser verdadeiras no mundo real. São exemplos de
narrativa história os gêneros: fábula, novela, romance, parábola, apólogo, conto, piada etc.
Enquanto que na narrativa não-história é necessário que as informações sejam verdadeiras ou
presumivelmente verdadeiras no mundo real. São exemplos de narrativa não-história os
gêneros: ata, reportagem, biografia, autos jurídicos etc.
Como exemplo de narrativa história, temos o gênero romance que comporta diferentes
espécies caracterizadas pelo conteúdo, sendo elas: romances históricos, regionalistas,
policiais, de capa espada, de ficção científica, eróticos etc.
Por aspectos formais, a estrutura narrativa pode-se apresentar em duas espécies: a
narrativa em prosa e a narrativa em verso. Essas espécies, prosa e verso, não são
necessariamente vinculadas ao tipo narrativo.
Para o tipo descritivo distinguem-se espécies como: objetiva x subjetiva; estática x
dinâmica; comentadora x narradora; sendo estas definidas por aspectos de conteúdo,
apresentando também características formais.
Ao tipo lírico se vincula uma grande quantidade de espécies. Definidas pela forma,
temos como exemplo as espécies: acróstico, balada, soneto,haicai. Definidas pelo conteúdo,
temos como exemplo as espécies: ditirambo, elegia, epitalâmio, poemas bucólicos.
Ao tipo argumentativo stricto sensu”, se vinculam vários textos que são do gênero
oratório, definidos como espécies quase sempre pelo conteúdo, tais como: sermão, prédica,
homilia, conferência (temática sagrada ou religiosa); oratória judiciária ou forense em júris
populares feitas por advogados de defesa e acusação; conferência (temática acadêmico-
científica); discurso parlamentar (natureza política deliberativa).
Ao caracterizar e identificar o tipelemento espécie, aderimos a hipótese travagliana de
que “os gêneros realizam os tipos e as espécies” (TRAVAGLIA, 2002, p. 14), ou seja, eles
são compostos de tipos e espécies e são, portanto, a forma de realização desses, concluindo-se
assim, que tipos e espécies tomam vida nos gêneros. Mas, mesmo com essa autonomia do
gênero, o autor chama a atenção para a necessidade de se estabelecer proposições teóricas a
cerca do tipo e da espécie. Entre outras razões, citamos três delas que, julgamos mais
pertinentes aos nossos estudos: a) Tipos, gêneros e espécies poderem mudar de
caracterização; b) Cruzamento de tipos (um texto ser, a um só tempo, narrativo e
argumentativo); c) Um tipo pode ser tomado com função de outro (uma narração com função
argumentativa).
35
A seguir vamos nos deter um pouco mais nos dois tipos (a narração e a
argumentação) que compõem os textos de nossa investigação, tomando como base alguns
autores, entre eles Van Dijk (1982, 1983) que propõe uma análise centrada na relação entre
macroestrutura textual (conteúdo semântico global do texto) e superestruturas ou esquemas
textuais. Esse autor, assim como Bakhtin, afirma que alguns textos produzidos na e pela
sociedade (gêneros discursivos) possuem esquemas globais relativamente convencionais que
organizam a macroestrutura do texto e que esses esquemas contribuem para caracterizar o tipo
textual.
2.3- Narração
Os textos narrativos do tipo história são os mais estudados até então, sobretudo no
aspecto de suas superestruturas. A superestrutura canônica presente em textos dos gêneros
como lendas, romances, fábulas é composta basicamente das seguintes categorias: situação
inicial, complicação / clímax, resolução, situação final, e, em alguns textos, aparece por
último a moral, às vezes denominada coda por alguns autores. Vejamos o esquema
composicional da superestrutura narrativa proposta por Travaglia (1991), e a seguir, a
caracterização de cada categoria que a compõe.
NARRATIVA
INTRODUÇÃO ORIENTAÇÃO TRAMA COMENTÁRIOS CONCLUSÃO
EPÍLOGO /
Anún- Resu- Cenário/ + Orienta- Complicação Resolução Resultado Avalia- Expec- Expli Fecho ou
cio mo Contexto/ ção pro- ção tativa cação Coda ou
Situação priamen- Moral
te dita Episódios Climax Conseqüências
Orientação Aconteci- Estados Eventos/ Reações verbais
mentos Atos/
Aconteci-
mentos
Fonte: Travaglia (1991).
Legenda:
obrigatória
quase sempre
facultativa
pode ser recorrente
36
Na narrativa pode aparecer uma introdução
9
que pode ser composta por um anúncio,
quase sempre seguido por um resumo, podendo este também aparecer sem o anúncio. Tanto o
resumo como o anúncio, são facultativos numa narrativa, o que fará com que apareça ou não,
será a intenção do produtor juntamente com as exigências do gênero, como nos parece
acontecer na superestrutura narrativa para notícias de jornais, proposta por Van Dijk (1990
apud TRAVAGLIA, 1991) em que essas categorias são informações relevantes para situar os
fatos narrados, divididas em duas categorias: a manchete e texto introdutório.
A categoria denominada orientação é composta pelo cenário, contexto ou situação,
responsáveis por mostrar o tempo, o lugar, os participantes e personagens e a orientação
propriamente dita, especificando quem fazia o que, quando fazia, no momento em que a
ação da trama ocorreu ou se iniciou, sendo esses elementos responsáveis por formar o quadro
de referência para a ação narrativa. O cenário muitas vezes é tomado como a própria
orientação, pode ser recursivo a cada novo episódio. Vejamos nos exemplos abaixo:
(4)
Após o café da tarde, sobre a mesa da varanda, a Xícara disse para o velho
Bule:” (Texto 1)
(5)
Ia o califa Harum-Al-Raschid por um campo, aonde andava a folgar à caça,
quando sucedeu de passar por pé de um homem já mui velho
, que estava a plantar
uma nogueirinha.” (Texto 56)
(6) “Um lenhador acordava
às 6 da manhã e trabalhava o dia inteiro cortando
lenha, só parando tarde da noite. Ele tinha um filho lindo de poucos meses e uma
raposa, sua amiga, tratada como bicho de estimação e de sua total confiança.
Todos os dias o lenhador ia trabalhar e deixava a raposa cuidando do bebê. Ao
anoitecer, a raposa ficava feliz com a sua chegada.” (Texto 78)
Nos três fragmentos, respectivamente de um apólogo, uma fábula e uma parábola,
aparecem os elementos que compõem a orientação: a) tempo – “Após o café da tarde”, “às 6
da manhã”, “o dia inteiro”, “tarde da noite”, “Todos os dias”; b) lugar – “sobre a mesa da
varanda”, “por um campo, aonde andava a folgar à caça”, “e trabalhava o dia inteiro cortando
lenha” (supõe-se ser no campo); c) personagens – xícara e o bule, o califa e o homem velho, o
9
Essa categoria não foi encontrada no corpus analisado, confirmando assim, o seu caráter facultativo.
37
lenhador; d) contexto ou situação – um diálogo; num encontro inesperado, num bate papo;
uma situação cotidiana.
Da trama fazem parte: a complicação, a resolução e o resultado. A complicação
compreende a sucessão de acontecimentos, formando os episódios, podendo ou não ser
acompanhados de uma nova orientação. Os acontecimentos podem ser primários ou
secundários, evoluírem para o clímax (momento máximo) que muitas vezes precede a
resolução. Essa resolução é também composta por acontecimentos como a complicação. A
complicação e a resolução são as duas partes essenciais na narrativa. Nos resultados temos as
conseqüências da complicação e da resolução que podem ser mostradas por meio de: estados;
eventos /acontecimentos / atos e reações verbais. Para exemplificar o elemento complicação,
vejamos novamente a fábula “A águia e a tartaruga”
10
:
(2) “A tartaruga fez um dia um pedido aos pássaros. Se um deles quisesse,
depois de passeá-la pelos ares, trazê-la de volta à terra, iria de imediato buscar
ostras no fundo do Mar Vermelho e uma pérola recompensaria o serviço prestado.
É que a tartaruga se indignava com a sua marcha lenta que não lhe permitia agir e
a forçava a passar dias inteiros, parada. Mas depois de ter feito mil promessas
enganosas à águia, viu-se vítima de uma perfídia igual à de seus discursos:
querendo alcançar os astros com asas de empresário, a infeliz morreu nas garras da
ave. Então, bem alto nos céus e já agonizante, ela deplora demasiado tarde a
realização de seus temerários desejos e diz: que meu funesto destino ensine aos
que se entendiam com uma existência sossegada que não se atinge a grandeza sem
sofrer terríveis privações.
Assim é que seduzido por uma glória inédita que lhe acarinha a vaidade,
quem aspira a uma posição mais brilhante carrega consigo o castigo de sua
ambição.” (Texto 23)
A complicação é composta por uma sucessão de acontecimentos marcada nos trechos:
“A tartaruga fez um dia um pedido aos pássaros” / “Mas depois de enganada [...]” / “Então,
depois de [...] privações”. O clímax está em “à águia, viu-se vítima de uma perfídia igual à de
seus discursos:”, logo após esse momento, aparece a resolução “a infeliz morreu nas garras da
ave” (por meio de um acontecimento). Como resultado, aparece uma reação verbal da
personagem tartaruga “ela deplora demasiado tarde [...] privações.”
Ainda sobre a trama, vejamos as duas outras formas de resultados em (7) e (8):
10
Sempre que usarmos como exemplo um texto ou trecho de um texto já citado anteriormente, manteremos o
mesmo número dado a esse exemplo na primeira vez que foi empregado.
38
(7) “O Interesse Material manteve seu olhar resoluto e seu silêncio inalterado.
Para evitar conflitos continuou o Princípio Moral, com certo
desconforto, – eu me abaixarei e deixarei que você passe em cima de mim.
Então o Interesse Material achou a língua, que por estranha coincidência era
a sua própria língua.
– Não acho que você seja uma boa calçada – disse. – Tenho certas reservas
quanto àquilo que está debaixo de meus pés. Que tal se você pulasse na água [...]
Assim sucedeu.” (Texto 11)
(8) “A assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força,
a lixa era especial para limar e afinar asperezas, e o metro era preciso e exato.
Sentiram-se então como uma equipe capaz de produzir móveis de qualidade.”
(Texto 6)
Em (7), o resultado aparece em forma de evento, o Interesse Material induz o Princípio
Moral à ação de pular na água “Que tal se você pulasse na água [...] Assim sucedeu.”, esse
acontecimento encerra o enredo. Já em (8), após evidenciar as características de cada
personagem, o resultado aparece em forma de estado “Sentiram-se então como uma equipe
capaz e produzir móveis de qualidade”.
A outra categoria, os comentários, podem ser de três tipos: a) avaliação; b)
expectativas e c) explicação. No primeiro tipo, o narrador expõe seu ponto de vista e seus
sentimentos em relação ao que narra; no segundo tipo, segundo Van Dijk (1986, apud
TRAVAGLIA, 1991), o narrador faz referências a acontecimentos futuros possíveis, assim
assumindo um caráter preditivo
11
; já no terceiro tipo, ele comenta o significado e a razão dos
acontecimentos e atitudes dos personagens. Vejamos um exemplo de comentário do tipo
avaliação e um do tipo explicação:
(9) “Um mimoso passarinho” / “Coitadinho, estremeceu” (Texto 47)
(10) “Ocorre o mesmo com os seres humanos. Basta observar e comprovar. Quando
uma pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa; ao
contrário, quando se busca com sinceridade os pontos fortes dos outros, florescem,
as melhores conquistas humanas.” (Texto 6)
11
Esse tipo de comentário só foi encontrado no corpus desta pesquisa em texto do gênero fábula.
39
Em (9), avaliação do narrador quando atribui características ao personagem
(mimoso) e quando expressa dó dele “Coitadinho”. Já em (10), o narrador dá uma explicação
dos fatos transcritos, fazendo uma comparação com os seres humanos.
Por último, no epílogo ou conclusão, Travaglia faz uma distinção que não
encontramos nem em Van Dijk nem em Adam. Para ele, essa categoria pode ser realizada de
três formas diferentes: a coda, a moral e o fecho
12
. A coda, de caráter dissertativo, encerra o
discurso narrativo, fazendo com que se volte ao momento da enunciação. A moral explicita
uma “lição” de vida, sendo também de caráter dissertativo. Enquanto o fecho, sempre
narrativo, tem a função de declarar, explicitamente, encerrada a narração. Desses três
elementos, vejamos um exemplo de moral:
(11) “Moral: a frustração é uma forma de julgamento como qualquer outra.”
(Texto 50)
A configuração estrutural da narrativa dada por Travaglia vem confirmar a sua teoria
tipológica quanto ao processo de composição, evidenciando a não pureza dos textos, podendo
este ser composto por um ou mais tipos, ou seja, por trechos descritivos (cenário/orientação),
narrativos (complicação/resolução/fecho), dissertativos (comentários/resultados/moral/coda).
Assim, a estrutura narrativa compõe-se por meio de uma conjugação de tipos. Sobre essa
característica estrutural, também afirma Adam que “o texto é uma estrutura de seqüências
heterogêneas, complexas, na qual podem figurar seqüências de tipos diversos, ou uma
seqüência de tipo dominante” (ADAM, 1991, p. 11).
A superestrutura narrativa proposta por Van Dijk (1990 apud TRAVAGLIA, 1991)
para as notícias de jornais e a proposta por Adam (1985 apud TRAVAGLIA, 1991)
apresentam elementos comuns e/ou semelhantes à superestrutura proposta por Travaglia. Para
melhor visualização da organização e hierarquia entre essas categorias, expomos, a seguir, os
esquemas apresentados por Travaglia (1991) das superestruturas propostas por Van Dijk e
Adam:
12
Desses três tipos de epílogo, apenas o tipo moral foi encontrado no corpus desta pesquisa.
40
Discurso da notícia
Sumário Relato noticioso
ou Resumo
Manchete Texto introdutório
Episódio Comentários
Eventos ou Conseqüências Expectativa Avaliação
Acontecimentos Reações
Eventos / Atos
Evento (s) ou “background” Reações
Acontecimentos(s) verbais
Principal (pais)
Circunstâncias História
Contexto Eventos ou
Acontecimentos
prévios
Fonte: Van Dijk (1990 apud TRAVAGLIA, 1991).
Texto Narrativo
Antes Depois
ação ou avaliação
Resumo orientação complicação resolução moral ou moral
estado final
Fonte: Adam (1985 apud TRAVAGLIA, 1991).
Legenda
__________ partes no interior de um mesmo tipo textual
relações entre partes diferentes
Uma vez que conceituamos os elementos que compõem a superestrutura da
narrativa proposta por Travaglia, julgamos desnecessário fazer o mesmo com as categorias
das superestruturas proposta por Van Dijk (1990 apud TRAVAGLIA, 1991) e Adam (1985
apud TRAVAGLIA, 1991), pois a terminologia usada por esses autores é a mesma usada por
aquele. Chamamos a atenção para a categoria que Travaglia denomina trama, a qual Van Dijk
(1990 apud TRAVAGLIA, 1991) chama de relato das notícias, isso devido aos aspectos
particulares do gênero, incluindo nela os comentários, separados em outra categoria por
41
Travaglia. Dessa forma, podemos perceber que a diferença entre as duas superestruturas se
restringe à hierarquia entre categorias.
A teoria de tipologização dos textos proposta por Travaglia admite, por um lado, uma
estrutura formal na composição dos textos, e por outro, a presença de marcas do enunciador
no discurso, podendo assim dizer que seu modelo teórico busca na Lingüística Textual e no
discurso os fundamentos para a classificação tipológica ou tipologização, dado que “texto e
discurso não existem um sem o outro” (TRAVAGLIA, 1991, p. 42). Assim, além das
categorias formais da superfície textual que compõem a estrutura narrativa, já apresentada
anteriormente, averiguamos também os elementos que compõem o discurso narrativo,
segundo Travaglia (1991 e 2002). Esses elementos estão assim definidos:
a) Perspectiva do enunciador – do fazer / acontecer inserido no tempo;
b) Objetivo do enunciador – contar, dizer os fatos, os acontecimentos, entendidos
como episódios, a ação / o fato em sua ocorrência;
c) Forma como se instaura o interlocutor – como assistente, espectador não
participante, que apenas toma conhecimento do(s) episódio(s) ocorrido(s);
d) Tempo referencial – não simultaneidade das situações, portanto, sucessão;
e) Relações entre o tempo da enunciação e o referencial – o da enunciação pode ser
posterior, simultâneo ou anterior ao tempo referencial.
Assim como nas outras tipologias propostas por Travaglia, o discurso é visto na
narração como “a própria atividade comunicativa, a própria atividade produtora de sentidos
para a interação comunicativa” (2002, p. 3), em que os elementos descritos, anteriormente,
são a base para a composição do texto. Sendo essa composição discursiva dominante, capaz
de se sobrepor aos aspectos de organização estrutural formal, caracterizando o texto enquanto
tipo narrativo ou não.
2.4- Argumentação e texto argumentativo
A todo texto, de certa forma, subjaz um discurso argumentativo que pode ser
ressaltado ou não, dependendo da intenção do locutor. Em alguns gêneros textuais a
42
argumentação está explicitada na superfície lingüística do texto com uma estrutura assim
orientada por um jogo persuasivo. Enquanto em outros gêneros, a argumentatividade pode ser
construída não pelos aspectos formais, mas sim pela intenção comunicativa do locutor e/ou
enunciador
13
do texto. Encontramos essa visão em Fávero e Koch (1987):
Num continnum argumentativo, pode-se localizar textos dotados de maior ou menor
argumentatividade, a qual, porém, não é jamais inexistente: na narrativa é feita a
partir de um ponto de vista, na descrição, selecionam-se os aspectos a serem
representados de acordo com os adjetivos que se têm em mente; a exposição de
idéias envolve tomadas de posição (nunca se tem a coisa em si, mas como ela é vista
por alguém) e assim por diante (FÁVERO; KOCH, 1987, p. 7).
Assim, segundo as autoras, não texto que não carregue um certo grau de
argumentatividade. Aos textos que atingem o grau máximo de argumentatividade, assim como
outros autores, Fávero e Koch (1987) denominam de argumentativos “stricto sensu”. Para
esses textos, elas propõem uma superestrutura com as seguintes categorias: (tese anterior) –
premissasargumentos – (contra argumentos) – (síntese) – conclusão (nova tese), sendo
facultativas as categorias que estão entre parênteses.
Van Dijk (1983) estabelece três categorias para a superestrutura argumentativa: a
hipótese, os argumentos e a conclusão, as quais podem ser subdivididas hierarquicamente
como mostra o esquema a seguir:
Argumentação
Justificativa Conclusão
Marco ou situação Circunstância
Pontos de partida Fatos
Legitimidade ou garantia Reforço
Fonte: Van Dijk (1983, p. 158).
13
Além das informações apresentadas na nota 5, acrescentamos que “Por locutor entende-se um ser que no
enunciado é representado como seu responsável. Trata-se de uma ficção discursiva que não coincide
necessariamente com um o produtor do enunciado.
O enunciador representa, de certa forma, frente ao ‘locutor’ o que o personagem representa para o autor da
ficção. Os ‘enunciadores’ são seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa, entretanto,
atribuir palavras precisas, efetivamente, eles não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista.”
(MAINGUENEAU, 1997, p. 76-77).
43
A legitimidade compõe-se de regras que autorizam as conclusões (podem ser
formadas por conhecimento de mundo e não serem explicitadas). O reforço é uma explicação
da legitimidade e o marco é a situação em que eles valem. Vejamos o anúncio publicitário
transcrito em Travaglia (1991) para elucidar essa teoria:
( I ) Compre gasolina Shell (conclusão)
( II ) A gasolina Shell contém ADS (fato)
( III ) ADS limpa o motor (justificativa / argumento 1)
( IV ) Um motor limpo consome menos gasolina (reforço)
( V ) ( III e IV ) Demonstrado mediante experimentos ( argumento 2 / fato ).
( VI ) Menos gasolina é mais barato (reforço 2)
( VII ) Você quer dirigir com pouco dinheiro (motivação = justificativa 2)
( VII) Você não quer gastar mais por gastar (justificativa 3)
( IX ) Você dirige um carro (marco ou situação).
(TRAVAGLIA, 1991, p. 289-290).
Apenas II, III, IV e V aparecem explicitamente no anúncio os demais são inferidos.
Como observa Travaglia, o anúncio é composto por uma conjugação de tipos assim
estruturada: nas categorias dos argumentos/justificativa podemos ter descrição, dissertação ou
narração. A conclusão, quando explícita, pode ser de caráter dissertativo e/ ou injuntivo,
podendo também ficar implícita, sob a responsabilidade do interlocutor
14
. Essa possível
conjugação de tipos corresponde também ao parecer de Koch e Fávero (1987) já apresentado
anteriormente.
Considerando o texto argumentativo composto enquanto a intenção comunicativa do
enunciador, temos a teoria travagliana organizada em torno de dois elementos: o enunciador e
seus objetivos, e o posicionamento do interlocutor. De acordo com a atitude desses dois
elementos, compõe-se dois tipos argumentativos: o argumentativo “stricto-sensu” e o
argumentativo não-“stricto-sensu”.
No texto argumentativo “stricto sensu”, o enunciador vê seu interlocutor como alguém
que não concorda com ele, ou seja, como seu adversário, logo o seu discurso é de
transformação, mobilizando, para isso, argumentos apropriados ao convencimento/persuasão
do interlocutor. Esses argumentos podem ser recursos lingüísticos organizados explicitamente
na superestrutura em forma de categorias, como as apresentadas por Koch e Fávero e por Van
Dijk ou situados na macroestrutura do texto (discurso regulado por uma exterioridade sócio-
histórica-ideológica), ficando implícitos, sendo recuperados mediante acordos entre
enunciador e interlocutor.
14
Estamos considerando por interlocutor (alocutário) o leitor ou o ouvinte dos gêneros em estudo.
44
Para Travaglia (1991), no texto argumentativo não “stricto-sensu”, o enunciador vê o
interlocutor como um cúmplice, ou seja, alguém que concorda com ele, logo seu discurso se
caracteriza como discurso da cumplicidade. Koch e Fávero (1987) denominam o texto dessa
natureza como dissertativo expositivo, pois julgam que nele a orientação argumentativa não é
construída, necessariamente, pelo jogo persuasivo.
Em nossos estudos dos textos dos gêneros apólogos, fábulas e parábolas estamos
propondo uma tipologização argumentativa sob bases do discurso retórico, dessa forma,
caracterizamos, brevemente duas vertentes sobre essa categoria argumentativa na estrutura
superficial do texto.
2.5- Caracterização do texto literário
Teoricamente, desde a Antiguidade até a metade do século XVIII, a literatura é vista
como uma ficção, numa visão estrutural. Essa noção levou alguns estudiosos a considerar o
literário uma “mentira”, isso devido à ambigüidade com os termos “fábula, ficção, mito”. No
entanto, os primeiros lógicos modernos, como Frege, defendiam que o texto literário não
impõe uma condição de “verdadeiro” ou “falso”, mas precisamente, ficcional. Ao tomar essa
característica dos textos literários, a ficção, o sentido que se estabelece a priori é o de imitação
“do exterior”, sobretudo aos gêneros que contam fatos. Nessa perspectiva, gêneros poéticos
como também os de curta extensão como provérbios, adivinhações, entre outros, ficariam de
fora dessa característica do que é literário. Diante dessa dificuldade, outra característica
evidencia-se para os textos que é a “realização em si”, um caráter autotélico, uma valorização
enquanto arte. Moritz ressalta esse fator: “Se uma obra de arte tivesse que indicar algo que lhe
é exterior como única razão de ser, tornar-se-ia com isso um acessório; ao passo que, no caso
do belo, trata-se sempre de ser ele mesmo o principal” (MORITZ apud TODOROV, 1980, p.
15). Assim, a literatura é vista enquanto linguagem com valor nela mesma, no belo.
Esse caráter científico defendido pelos românticos alemães e transmitido aos
simbolistas e pós-simbolistas na Europa tornou-se a base para as tentativas de se criar uma
ciência da literatura. Esse fator tornou-se preponderante no formalismo russo e New Criticism
americano e ainda hoje é a noção dominante de literatura. Esse aspecto, apenas funcional, foi
complementado pelo caráter sistemático da poética formalista com uma definição mais
45
abrangente na qual diz que “A literatura é, portanto, um sistema, uma linguagem sistemática
que chama a atenção sobre si própria, que se torna autotélica” (TODOROV, 1980, p. 16).
Por essa concepção de literatura entendemos que todo texto literário é “fechado” em si
mesmo, carrega significados construídos somente na sua estrutura interior. Diante disso, o que
dizer das narrativas tais como os romances, os contos, fábulas, parábolas, crônicas e outros
que representam fatos, objetos, personagens da vida e até mesmo das poesias que embora
vistas como sistemas autotélicos, intransitivos, opacos, também podem nos proporcionar
reflexões sobre diferentes aspectos do mundo?
Wellek (apud TODOROV, 1980) procura conciliar as características atribuídas, até
então, à literatura, observando o uso que ela faz da linguagem por meio da classificação dos
textos em literário, corrente e científico. Considera assim que o primeiro é de linguagem
conotativa, ambígua, opaca, opondo-se ao segundo que é claro e transparente, enquanto o
terceiro, o científico, é sistemático uma vez que organiza e concentra a linguagem corrente.
Assim, Wellek percebe o texto literário sob uma função quer referencial, expressiva ou
pragmática, em que ele “vale por si mesmo”. Dessa forma, volta à primeira noção acerca da
literatura. No entanto, prolonga-se a oposição entre corrente e literário quando ao perceber
que é no plano referencial que a natureza da literatura mais se revela, ou seja, é quando as
asserções de um texto não são proposições nem falsas nem verdadeiras, lógicas, concluindo-
se assim a ficcionalidade da literatura. Também, com essa perspectiva, afirma Frye que “Em
literatura, as questões de realidade ou de verdade são subordinadas ao objeto literário
essencial que é o de produzir uma estrutura verbal que encontre justificativa em si mesma; e o
valor designativo dos símbolos é inferior à sua importância enquanto estrutura de motivos
ligados” (FRYE apud TODOROV, 1980, p. 19). Frye mostra-nos, com isso, o valor
polissêmico que o sentido “interno” ocupa no conceito de literatura à medida que se
estabelece uma construção simétrica entre capacidade e ficção. Entendemos, assim, que o
texto literário constrói, por meio de uma linguagem própria (interna), uma ficção (uma
verdade construída) acerca da realidade. Mas, nem sempre um texto vê-se na proposta
funcional de prestar-se à condição de contextualizador de uma realidade, podendo, em sua
própria estrutura, conduzir a uma simples lógica por meio da sucessão e da causalidade
proporcionada pela trama verbal como, por exemplo, em uma conjuntura política.
Dando continuidade à linearidade dos estudos de Todorov expostos até aqui, aparece
como forma de explicar a diversidade de textos que ora se evidenciam com os conceitos de
Frye quanto à escrita descritiva, ora com o uso corrente de Wellek, de linguagem cotidiana, o
discurso que perpassa essas diferentes unidades. O discurso é assim visto como o elemento
46
estruturador da linguagem em funcionamento, sendo um fim a ser construído pela estrutura
verbal, que assim tem como responsabilidade “ser o ponto de partida para o funcionamento
discursivo” (TODOROV, 1980, p. 21). Uma vez os discursos sendo variados em suas
enunciações, levam por meio de convenções sociais à criação do sistema de gêneros
15
sistema
esse que se prende, enquanto gêneros discursivos em que se conforma, “tanto à matéria
lingüística quanto à ideologia historicamente circunscrita da sociedade” (TODOROV, 1980,
p. 21).
Seguindo esses estudos de Todorov, dadas as suas perspectivas iniciais, a primeira do
texto literário estar ligado à narrativa e a segunda, dele estar ligado à poesia, foram
caracterizados assim dois grandes gêneros literários: a prosa e o lírico, não tendo em vista
unificá-los como um só, mas sim formular por eles uma tipologia dos discursos.
2.5.1- Origem e conceituação dos gêneros apólogo, fábula e parábola
O estudo que fizemos da origem e conceituação dos gêneros apólogo, fábula e
parábola é bastante restrito devido ao limitado material bibliográfico encontrado, sobretudo
sobre o apólogo. Assim, apresentaremos um conjunto de definições a partir das quais
analisaremos aspectos comuns para caracterizá-los.
2.5.1.1- Apólogo
De origem remota e obscura, provavelmente oriental, o apólogo é comum em
diferentes culturas. Em Moisés (1999), apólogo, do grego apólogos, narração, é definido
como “narrativa curta, não raro identificada com a fábula e a parábola, graças à moral
explícita ou implícita, e à estrutura dramática que se fundamenta” (MOISÉS, 1999, p. 34).
Segundo esse autor, o gênero apólogo normalmente é distinto da fábula e da parábola pelas
personagens: “o apólogo é protagonizado por seres inanimados (plantas, pedras, rios, agulha,
relógio, moedas, estátuas, etc.), ao passo que a fábula conteria de preferência animais, e a
15
Sistema de gênero – aqui lembramos o gênero construído na interatividade de um grupo social para atender um
determinado fim, remetendo assim à funcionalidade, ou seja, algo criado para uma determinada função.
47
parábola, seres humanos” (MOISÉS, 1999, p. 34). Em Larousse, apólogo é definido como
“Narrativa alegórica e moral, cujos personagens são seres inanimados.” (LAROUSSE, 2001,
p. 58). Silveira Bueno (1986, p. 113) define esse gênero como “alegoria moral em que
figuram a falar, animais ou coisas inanimadas; fábula.”
Vejamos em (12) as características comumente citadas pelos autores:
(12) “O boi velho e o boi jovem, no alto do morro – lá embaixo uma porção de
vacas pastando. O boizinho, incontido:
– Vamos descer correndo e pegar umas dez.
E o boizão, tranqüilamente:
– Não, vamos devagar e pegar todas.” (Texto 20)
Em (12), no texto intitulado “O apólogo Mineiro”, há a presença de personagens
animais, sendo essa característica mais peculiar às fábulas, no entanto, alguns autores, como
vimos em algumas definições citadas, também colocam a possibilidade da presença de
animais como personagens desse gênero, isso nos revela a estreita ligação entre o apólogo e
fábula, como também mostraremos ao conceituar, mais adiante, o gênero fábula. Quanto à
forma alegórica, podemos identificar na representatividade dos personagens de uma situação
que nos conduz à moral implícita que, embora não apareça proverbialmente definida, diz
respeito a “que mais vale ir devagar e conquistar mais coisas do que ir correndo e conquistar
menos”, sendo esse fundamento, posteriormente estudado, como o lugar da quantidade no
processo argumentativo.
2.5.1.2- Fábula
As primeiras fábulas encontram-se em sânscrito na obra Pantichatantra, de Vichnum
Sarma e também na Bíblia, Livros dos Reis, embora os Gregos apontem Esopo como o
criador da fábula. Esopo, foi um escravo nascido na Frígia e viveu até meados do século VI a.
C. Sua obra marcou traços distintivos com a intenção de expor uma moral. Mas antes dele,
outros são citados, entre eles Hesíodo, séc. VIII a.C.. Depois de Esopo, já no século II a. C.,
temos Babrios e Fedro, sendo este, o maior fabulista antigo, romano, filho de escravos, e que
48
por volta do ano 15 a. C., renovou as dimensões estéticas da fábula, compondo novas fábulas
ou re-escrevendo as de Esopo. No século XVII (1612/1692) aparece o seu parafraseador, La
Fontaine. Segundo Nelly Coelho, “a La Fontaine coube o mérito de dar [à fábula] a forma
definitiva, na literatura ocidental” (COELHO, 1991b, p. 80). A autora afirma também que a
ele “coube a tarefa não só de restituir à fábula em verso todo o seu relevo literário, mas
também a de elevá-la ao nível da poesia, alimentada por um novo pensamento filosófico”
(COELHO,1991b, p. 81).
O sentido primitivo do vocábulo fábula é de “conversação”, “invenção”, decorrendo
daí conceitos como “objeto de conversa”, “narração”, “aquilo que se inventa”, chegando a
“historieta”, “narração fictícia ou mentirosa”. Tomando essa perspectiva semântica, justifica-
se o fato de não raro o gênero apólogo ser caracterizado como fábula, pois também apresenta
em comum com estas algumas das características citadas anteriormente.
Milliet (1957) define fábula como uma “narrativa alegórica de que se terá uma
moralidade”, “quase uma forma de linguagem como a metáfora e a comparação”
(LAROUSSE apud MILLIET, 1957, p. 27). Milliet complementa dizendo que a fábula “é
afinal, uma maneira agradável de explicar uma verdade, que de outro modo poderia chocar. A
fábula nunca deve desviar de seu objeto moral. Deve ser sempre a ilustração de um código de
ética” (MILLIET, 1957, p. 27). Silveira Bueno (1986, p. 475) diz que fábula é uma “narração
alegórica, cujos personagens são geralmente animais, e que encerra uma lição moral” e
também a considera texto da “mitologia; ficção” chegando até ao termo “mentira”, noção essa
que retoma as origens, a Antigüidade literária combatida por Frege.
Em Moisés (1999), o gênero fábula é definido como:
Latim – fábula, narração. Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a
parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua
estrutura dramática. No geral, é protagonizada por animais irracionais, cujo
comportamento, preservando as características próprias, deixa transparecer uma
alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos seres humanos (MOISÉS, 1999, p.
226).
Numa visão enciclopédica, a fábula é definida como uma “narrativa alegórica cujos
personagens são geralmente animais, e que conclui uma lição moral. [...] O espírito geral é
realista e irônico” (BARSA, 1975, p. 121).
49
Em Nelly Coelho, “fábula (lat. fari = falar e gr. phaó = dizer, contar algo) é a narrativa
(de natureza simbólica) de uma situação vivida por animais, que alude a uma situação humana
e tem por objetivo transmitir certa moralidade” (COELHO, 1991a., p.146-147).
Vejamos, como exemplo, a fábula “A cigarra e a formiga”, de La Fontaine, traduzida
por Bocage:
(13) “Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.
“Amiga, – diz a cigarra –
prometo, à fé d’ animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
noite e dia, a toda hora.”
“– Oh! Bravo! – torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”” (Texto 46)
Embora o texto de La Fontaine seja escrito em versos, é uma narrativa, pois há um
narrador contando fatos com o concurso de discurso direto: “Tendo a cigarra em cantigas /
Folgado todo o verão, / Achou-se em penúria extrema / Na tormentosa estação” (diz o
narrador), enquanto os personagens falam: a formiga “No verão em que lidavas?” e a cigarra
:
“Eu cantava / Noite e dia, a toda hora.” Por meio desses elementos, quase todas as categorias
50
de um texto narrativo se fazem presentes: orientação (as duas primeiras estrofes), trama (o
conflito, a resolução dada pela formiga, o resultado – a conseqüência sofrida pela cigarra),
comentários (por meio de explicação do narrador) e conclusão (uma moral implícita). Esses
elementos foram mostrados anteriormente no item 2.3. O caráter alegórico do gênero está na
representação que as personagens fazem do homem. A formiga simboliza as virtudes do
trabalho, da responsabilidade; a cigarra, o vício da ociosidade, da vida levada sem
compromisso e sem responsabilidade. Assim, a situação retratada tem como finalidade
exemplificar comportamentos do homem, pregando valores sociais. Outra característica que
nesta fábula está explícita é o tom satírico apresentado no final “– Oh! Bravo! – torna a
formiga; / Cantavas? Pois dança agora!”.
2.5.1.3- Parábola
As parábolas são originadas da Grécia, onde não passavam de simples ilustrações ou
notas explicativas, evoluindo para um relato fictício de cunho moralista.
A parábola, segundo Larrouse (2001, p. 733), “do grego parabole é uma narrativa
curta, de estrutura dramática que encerra um conteúdo moral explícito ou implícito; alegoria
que encobre de véu uma verdade”. Enquanto Silveira Bueno (1986, p. 825), define esse
gênero como “narração alegórica que encerra uma doutrina moral”.
Em Moisés, (1999), parábola é assim definida:
narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a fábula, em razão da moral,
explícita ou implícita, que encerra sua estrutura diamétrica. Distingue-se das outras
duas formas literárias pelo fato de ser protagonizada por seres humanos . Vizinha da
alegoria, a parábola comunica uma lição ética por vias indiretas ou simbólicas: numa
prosa altamente metafórica e hermética, veicula um saber apenas acessível aos
iniciados. Com quanto se possam arrolar exemplos profanos, a parábola semelha
exclusivo da Bíblia, onde são encontradas em abundância: O Filho Pródigo, A
Ovelha Perdida, O bom samaritano, O Lázaro e o Rico [...] (MOISÉS, 1999, p.
385).
Na definição da enciclopédia Barsa, parábola é
uma composição semelhante à fabula e ao apólogo, constituindo estas três de
finalidade moralista. É uma narrativa curta, na qual os personagens são seres
51
humanos, diferentemente da fábula, em que se costumam usar animais
personificados, e no apólogo em que tomam vida os objetos inanimados (BARSA,
1975, p. 256-D).
Afrânio Coutinho, na enciclopédia da Literatura Brasileira (1989), define parábola
como
narrativa curta, destinada a veicular princípios morais, religiosos ou verdades gerais,
mediante comparação com acontecimentos correntes, ilustrativos, usando seres
humanos. É assim relacionada à fábula e à alegoria
16
. Exemplos clássicos estão na
Bíblia, como a Parábola do Filho Pródigo e a do Bom Samaritano (COUTINHO,
1989, p. 72).
Tavares (1974), apresenta também sua definição:
parábola é uma narrativa curta de sentido alegórico e moral. Nas parábolas não se
encontram os animais, essencialmente falando, como nas fábulas, nem os seres
inanimados, como nos apólogos. Entram apenas acidentalmente, pois a medida
direta da parábola é o homem e sua destinação transcendente. Nas fábulas e
apólogos os bichos e as coisas referem-se indiretamente aos homens contendo lições
quase sempre críticas e satíricas. Nas parábolas, os ensinamentos procuram ser mais
profundos e menos pragmáticos como nas duas outras espécies alegóricas. Melhores
exemplos de parábolas não encontramos do que as que deixou Jesus no Novo
Testamento, como a do Filho Pródigo, a do bom Samaritano, a do Semeador etc. [...]
(TAVARES, 1974, p. 178).
Numa abordagem mais literária, Wolfang Kayser (1958) observa que:
fala-se de parábolas quando todos os elementos de uma ação, exposta ao
leitor,refere-se, ao mesmo tempo, a uma outra série de objetos e processos. A clara
compreensão da ação do primeiro plano elucida, por comparação, sobre a maneira
de ser da outra. A rigidez na construção duma parábola provém da intenção didática.
Os exemplos mais conhecidos são as parábolas da Bíblia (“O reino dos céus é como
um semeador [...]”). Como parábola num sentido mais restrito, entende-se uma
forma literária que, no todo, contém uma comparação (KAYSER, 1958, p. 131).
Confrontando os conceitos apresentados, encontramos alguns aspectos comuns que
caracterizam a parábola que são: a) narrativa curta de sentido alegórico; b) protagonizada por
16
(do gr. allegorie, outro discurso) consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta
outra. Pode-se considerar alegoria toda concretização por meio de imagens, figuras e pessoas, de idéias,
qualidades ou entidades abstratas.
52
seres humanos; c) construída por meio de uma comparação; d) tem a finalidade de veicular
um ensinamento moral de caráter profundo e transcendente; e) os textos mais clássicos são de
origem bíblica. No corpus analisado, observamos que dessas características a terceira e a
quarta estão sempre presentes, sendo assim fundamentais na estrutura do gênero parábola.
Vejamos, pois, tais características em (14) e (15):
(14) “Naquele dia saindo Jesus de casa, sentou-se à borda do mar. E vieram para
ele muitas gentes, de tal sorte que entrando em uma barca se assentou: e toda gente
estava de pé na ribeira. E lhe falou muitas coisas por parábolas, dizendo:
Eis aí que saiu o que semeia, a semear. E quando semeava, uma parte da
semente caiu junto da estrada, e vieram as aves do céu, e comeram-na. Outra,
porém caiu em pedregulho, onde não tinha muita terra: e logo nasceu, porque não
tinha altura de terra: mas saindo o sol se queimou: e porque não tinha raiz se
secou. Outra igualmente caiu sobre os espinhos: e cresceram os espinhos, e estes a
afogaram. Outra, enfim, caiu em boa terra: e dava fruto, havendo grãos que
rendiam a cento por um, outros a sessenta, outros a trinta. O que tem ouvidos de
ouvir ouça.” (Texto 63)
(15) “Era uma vez, branca e rija, soerguida na cumiada de uma serrania, a perder
de vista a planície mesquinha, uma ponta de pedra. Parecia exaltação de orgulho
da terra, que, depois de se levantar com ênfase de ímpetos sucessivos, culminara
em desafio ao céu, arrogante e insolente, arrastando meteoros efêmeros,
inacessível, dominadora, como simulacro da divindade, absoluta e, portanto,
solitária, como a imagem mesma do ideal. Mas um dia, o raio do céu, provocado
pela força oposta que sobe do chão, como ameaça, e se acumula nas postas,
chispou-lhe uma faísca de fogo, e a pedra decepada rolou pelos flancos da
montanha, logo envolvida pela neve das alturas, como consolo, nesse breve trajeto,
da mágoa da primeira decadência. [...]
E na vasa mole e infecta do fundo o pedacinho de pedra, já sem arestas nem
pontas, foi arrastado no bojo túmido da corrente, até o mar, último refúgio, imenso
cálice de amargura que esgota o martírio milenar da terra, trabalhada por tantas
dores obscuras, e submersa, finalmente, sobre a mortalha fria da onda.
Atirado na praia, entre algas e sargaços, lá ficou, poído e roliço, uniforme e
indistinto, na multidão anônima de outros seixos rolados, que talvez foram
também, um dia, outras tantas pontas de rocha, soerguidas e incessíveis,
desafiando o próprio céu, no orgulho de um ideal, e agora, de degradação,
aparadas as saliências, roídas as arestas, redondos e iguais, passivos e dóceis,
rolam no refluxo, constante e invariável, da maré morna, da salsugem amarga [...]
Somos todos, na vida, seixos rolados.” (Texto 74)
53
Em (14), temos a parábola “O semeador”, um exemplo clássico do gênero parábola,
pois apresenta todas as características destacadas comumente pelos autores pesquisados. É
uma narrativa curta, de origem bíblica, narrada por Jesus durante uma pregação como mostra
o primeiro parágrafo “Naquele dia saindo Jesus de casa, sentou-se à borda do mar. E vieram
para ele muitas gentes, [...] lhe falou muitas coisas por parábolas, dizendo”. O discurso é
indireto, narra ações de um personagem humano, mostrado no início da narrativa em “Eis aí
que saiu o que semeia”, uma vez que o pronome oblíquo “o” faz referência a um semeador. O
caráter alegórico do texto é estabelecido por meio da comparação. Essa comparação, em
muitas parábolas é comentada pelo narrador como se fosse uma segunda parte do texto. Nas
pregações de Jesus, sempre que falava por meio de parábolas, em seguida ele explicava a
comparação estabelecida entre os elementos do texto e os elementos do real. Vejamos a
explicação dada por ele sobre a parábola do semeador:
Todo aquele que ouve a palavra do reino, e não a entende, vem o mau, e arrebata o
que se semeou no seu coração: este é o que recebeu a semente junto da estrada. Mas
o que recebeu a semente no pedregulho, este é o que ouve a palavra, e logo recebe
com gosto: porém ele não tem em si raiz, antes é o de pouca duração: e quando lhe
sobrevém tribulação e perseguição por amor da palavra, logo se escandaliza. E o que
recebeu a semente entre espinhos, este é o que ouve a palavra, porém os cuidados
deste mundo, e o engano das riquezas sufocam a palavra e fica infrutuosa. E o que
recebeu a semente em boa terra, este é o que ouve a palavra, e a entende, e dá fruto,
e assim um dá a cento, e o outro a sessenta, e outro a trinta por um (MATEUS, 13:
19-23).
Pelo texto acima, podemos ver que Jesus compara a semente com a palavra de Deus e
a pessoa que a recebe é comparada a uma planta de acordo com o lugar em que a semente foi
lançada “o que recebeu a semente em boa terra, este é o que ouve a palavra, e a entende”.
Podemos assim, por meio dessa comparação comprovar outra importante característica do
gênero parábola, que é a finalidade do texto de veicular um ensinamento moral de caráter
profundo, que vai além do ser humano, transcendente.
Já em (15), temos uma parábola contada por um narrador por meio de discurso
indireto. Diferentemente da parábola apresentada anteriormente e dos tipos de personagens
dados como os mais comuns para esse gênero, o homem, o personagem protagonista em 15 é
um ser inanimado, um seixo (fragmento de pedra). O caráter alegórico do texto é percebido no
final, no comentário feito pelo narrador por meio da metáfora “Somos todos, na vida, seixos
rolados”, que como é característica dessa figura, ter uma comparação implícita. Essa
comparação com o ser humano, embora não esteja explicitada na superfície textual, voltando
ao texto, pode ser percebida em várias passagens quando são enumeradas características e
54
ações do seixo que também podem ser atribuídas ao ser homem como em “arrogante e
insolente, arrastando meteoros efêmeros, inacessível, dominadora, como simulacro da
divindade, absoluta e, portanto, solitária, como a imagem mesma do ideal”. De acordo com as
características ressaltadas pelo trecho anterior e pelas outras usadas no texto, percebemos uma
diferenciação do caráter moral do texto em 15 e este em 16, pois, enquanto no primeiro o
discurso veiculado tem por finalidade passar um ensinamento, no último o tom é de crítica ao
homem.
Como vimos, pelas duas parábolas, as mensagens (os discursos) são construídas por
meio de uma comparação entre seres de espécies diferentes, o que mais adiante, em 2.6.3.3.4,
veremos ser um processo argumentativo por “analogia”. Assim, confirmamos a “alegoria”
como característica do texto parabólico, uma vez que nele ocorre uma representação por meio
de símbolos, de imagens. Vimos que o discurso hermético das parábolas é de caráter
pedagógico e doutrinário, exigindo reflexão para compreender a simbologia expressa.
Pelas definições e exemplos analisados anteriormente, vimos que há uma estreita
relação entre os gêneros apólogo, fábula e parábola, pois se identificam por apresentar em
comum as características de serem narrativas, alegóricas e encerrarem uma moral explícita
ou implícita. Enquanto narrativas, são textos que relatam fatos por meio de um narrador e de
seus personagens. São alegóricos, pois representam conceitos abstratos por meio de figuras
simbólicas, os personagens, sendo esses, até então, os elementos responsáveis pela distinção
desses gêneros. A fábula contém de preferência animais irracionais, enquanto a parábola,
seres humanos, e o apólogo, quase sempre é protagonizado por objetos inanimados. A moral
se encontra nos valores implícitos na estrutura profunda das três categorias de textos,
construída pelos possíveis argumentos que estudaremos mais adiante.
Embora, sem dúvida, haja, na estrutura dos três gêneros, essa coincidência dos
elementos: serem narrativa, serem alegóricas e encerrarem uma moral, julgamos haver
diferenças acerca do auditório a quem eles se destinam e nos acordos e argumentos que estão
na estrutura profunda de cada um, sendo pertinente verificarmos tal hipótese.
2.5.2- Peculiaridades dos gêneros apólogo, fábula e parábola
Todorov (1980), ao estudar a poiética
17
, define um gênero por meio de uma forma
binária, opondo um gênero a outro, estando nessa visão o narrativo opondo-se ao simbólico.
17
Segundo René Passeron, “o objeto da poiética é a ‘instauração’, a criação das obras, uma estética em sentido
estrito que se ocupa das obras sob o ângulo de sua recepção”, enquanto a poética, “trata da estrutura específica
da obra” (PASSERON apud TODOROV, 1980, p. 25).
55
Enquanto a fábula descreveria casos particulares que realmente ocorreram, configurando o
narrativo, a parábola descreveria casos gerais, possíveis de ocorrer, configurando o simbólico.
Wirklich afirma sobre isso “O caso singular que constitui a fábula deve ser representado como
sendo real. Se eu me apegasse sobre a simples possibilidade, só seria um exemplo, uma
parábola” (WIRKLICH apud TODOROV, 1980, p. 32). Para nós, dois fatores importantes a
serem considerados nos gêneros apólogo, fábula e parábola são o auditório e os argumentos
que permeiam esses textos. A fábula teria um auditório particular e seu discurso construir-se-
ia pelo passado e por um sujeito individual. Já a parábola e o apólogo teriam um auditório
mais geral e se construiriam pelo exemplo, para o futuro.
É necessário ressaltar a afirmação feita por Lessing (apud TODOROV, 1980) de que a
fábula é uma narrativa de fatos passados sem destacar na parábola essa característica, uma vez
que as duas pertencem à mesma tipologia, a narração. Essas características peculiares a cada
um dos dois gêneros são expostas, segundo o autor, na própria estrutura superficial dos textos:
“O comentador introduz a parábola com um ‘como se’ e conta as fábulas como algo que
efetivamente ocorreu” (LESSING apud TODOROV, 1980, p. 32).
Mas apenas esses elementos explícitos não são capazes de estabelecer a diferença
entre esses gêneros, principalmente no que se refere à parábola, pois nem sempre esse
elemento “como se” aparece no texto escrito, sendo necessário verificar então, como ocorrem,
efetivamente, os elementos responsáveis pelo caráter narrativo da fábula, opondo-se ao
simbólico (descritivo) da parábola e do apólogo, segundo Lessing. Sobre isso, ele afirma que
enquanto ação no narrativo, é necessário haver “uma seqüência de mudanças que, juntas,
constituem um todo. A unidade do todo repousa no acordo das partes em vista de um objetivo
final” (LESSING apud TODOROV, 1980, p. 32). Enquanto no simbólico, percebemos que as
ações ocorrem para um fim, mas com o objetivo de descrever uma situação que serve como
exemplo.
Tomemos para análise fragmentos de uma fábula (exemplo 16), de uma parábola
(exemplo 5) e de um apólogo (exemplo 17):
(16) “Tendo um elefante, ao passar pelas veredas da floresta, esmagado, sem ver
uma fila de formigas, estas ficaram muito tristes. Mandaram-lhe as mais argutas
do formigueiro em embaixada, para pedir-lhe que, quando andasse por aqueles
lados, prestasse um pouco de atenção aos seus passos, evitando matar bichos que
lhe não faziam o menor mal.
As formigas embaixadoras treparam a um tronco [...] / Todo formigueiro ficou
furioso [...] / Contudo, à noite, enquanto dormia, as formigas, em aluvião, vieram
[...] E as formigas ajudaram a devorar-lhe o corpo inteiro.” (Texto 48)
56
(5)
Ia o califa Harum-Al-Rachid por um campo, aonde andava a folgar a caça,
quando sucedeu de passar por pé de um homem já mui velho, que estava a plantar
uma nogueirinha.
Então, disse o califa ao seu séqüito:
– Em verdade, bem louco deve ser este homem em estar a plantar agora esta
nogueira como estivesse no vigor da mocidade e contasse como certo vir a gastar
dos frutos dessa planta [...]
Assim como nossos pais trabalharam para nos legar árvores que nós hoje
desfrutamos, assim é justo que deixemos outras novas, com que nossos filhos e
netos venham a utilizar-se e a enriquecer.” (Texto 56)
(17) “Finalmente o Vento acalmou-se e desistiu de soprar.
Então o Sol saiu de trás da nuvem e sorriu bondosamente para o velho.
Imediatamente ele esfregou o rosto e tirou o capote. O Sol disse então ao Vento
que a gentileza e a amizade eram sempre mais fortes que a fúria e a força.” (Texto
19)
No exemplo (16), há uma sucessão de ações passadas que se encadeiam para um final
cujo objetivo é o fato em si, usado para ressaltar um valor abstrato, a solidariedade do grupo
“Todo o formigueiro ficou [...] inteiro”, logo tem um valor teleológico.
No exemplo (5), há uma sucessão de ações passadas também com um valor
teleológico, no entanto, percebemos a presença de um elemento que não ocorreu no primeiro
exemplo, a comparação, explícita no terceiro e no último parágrafo expostos, a qual constrói
uma imagem, um símbolo. Assim também a comparação entre valores aparece no final do
exemplo (17), por meio de discurso indireto, relatando a fala do personagem.
A partir das perspectivas levantadas quanto às narrativas do gênero apólogo, fábula e
parábola, propomos que elas se constituem como discursos argumentativos, cuja finalidade é
a persuasão, é “reforçar uma disposição para a ação ao aumentar a adesão aos valores que
exalta” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 55-56), logo são tipos
argumentativos. Esse discurso de tom oratório é praticado, sobretudo, por pessoas que
defendem, numa sociedade, os valores tradicionais, os valores aceitos, que têm função
educacional, e não os valores novos que suscitam polêmicas e controvérsias. Logo, estes
apelam a uma ordem universal cujos valoreso incontestáveis. Assim, com uma estrutura
composicional narrativa, esses gêneros teriam, sobretudo, uma função pragmática de
argumentação, resultante de um cruzamento, em que a estrutura narrativa é usada em função
da argumentação.
57
Desse modo, nosso objetivo será verificar como ocorre na fábula, na parábola e no
apólogo a argumentação, ou melhor, em que esses textos com a mesma função – a
argumentação, distinguem-se nesse processo.
2.6- Argumentação sob bases retóricas
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), a retórica é a arte de argumentar de que
se servem oradores jurídicos, políticos e filosóficos cujo fim é convencer. Enquanto para
Genette (1972), a retórica constitui-se no estilo, mais particularmente das figuras, tornando o
texto literário. As duas perspectivas dadas por esses autores se fundem num elemento comum
da retórica clássica que se inicia em Aristóteles e se prolonga até o século XIX, sendo, pois
esse elemento a articulação dos argumentos e do estilo. Assim posto, a retórica é definida
como “a arte de persuadir pelo discurso” (REBOUL, 2000, p. XIV). Discurso, nesses termos,
é definido por Reboul como “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase
ou por uma seqüência de frases, que tenha começo, meio e fim e apresente certa unidade de
sentido” (2000, p. XIV). Relacionando esse conceito aos estudos que fizemos em 3.2, o
discurso diz respeito às marcas enquanto organização interna (frase ou seqüência de frases) e
às propriedades enquanto unidade de sentido.
Desde a antiguidade clássica estudos sobre a seqüência argumentativa, sendo de
maior relevância a retórica Aristotélica que se preocupou em descrever os meios para atingir
os objetivos persuasivos do locutor. Segundo essa vertente, a seqüência argumentativa é
dividida em quatro partes: o exórdio (introdução), a narração (argumentação propriamente
dita) as provas (sustentação através de comprovação) e a peroração (conclusão).
Uma das vertentes mais recentes que sustentam a argumentatividade no discurso oral é
a das interações que fundamentam a estruturação da seqüência discursiva. Sobre esse modelo,
afirma Schiffrin (1987 apud GRYNER, 2000, p. 98) que “a argumentação é um discurso
através do qual o falante sustenta uma posição controvertida”. Para ela, a argumentação é
constituída essencialmente pela posição a ser defendida e pela sustentação dessa posição,
podendo esta última ser composta por: explanação, justificação, defesa e modo de
apresentação.
Em uma versão mais recente com bases na Retórica Aristotélica, sobretudo no quinto
capítulo do Organon, denominado Tópicos, cujos estudos se fundamentaram nos paralelos
58
entre o silogismo analítico e o dialético
18
, temos os estudos de Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2002). Voltada para a perspectiva dialética, essa teoria defende a argumentação como
processos que visam “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes
apresentam ao assentimento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 4). Nessa
visão, a função argumentativa passa a ser definida como o efeito produzido sobre o auditório
e não mais como ação do locutor. O locutor, na verdade, busca uma interação com o auditório
para defender seu ponto de vista. Sob essa proposta teórica, os autores consideram três
elementos básicos para sustentar um processo argumentativo: o auditório, os acordos e os
argumentos.
2.6.1- O auditório – elemento importante na argumentação
O primeiro aspecto a ser visto é a questão do auditório, ou seja, a quem se destina o
discurso argumentativo, lembrando que a argumentação visa a obtenção de adesão daqueles a
quem se dirige, sendo assim relativa ao auditório que quer influenciar. A escolha dos
argumentos presume as origens psicológicas e sociológicas do auditório, sendo necessário de
antemão situá-lo, inicialmente, como particular ou geral, o que nem sempre é fácil
principalmente com o nosso objeto, o texto, uma vez que, embora canalizado para
determinados leitores, o acesso a ele é imprevisível.
Quando falamos em auditório, precisamos lembrar que sobre ele há duas intenções:
convencer e persuadir. Quando buscamos o caráter racional da adesão, convencer é mais que
persuadir. A argumentação convincente concebe a adesão de todo ser racional, considerando
para isso a crença num conjunto de fatos, de verdades que todo homem deve aceitar, por
serem válidos para todos. Temos, assim, a ação de caráter objetivo para um auditório
universal que nos “parece” estar mais próximo ao público alvo das parábolas, em cujo
discurso há a presença de ensinamentos a um público mais geral, ou seja, que visam todas as
pessoas, independente de idade, cultura ou época. Nas parábolas que compõem o nosso
corpus, quer nas de cunho religioso (bíblicas), quanto nas de cunho social, como as de
Afrânio Coutinho, os valores, as virtudes são de ordem universal, pois são atemporais e a-
18
Silogismo é um argumento formado por três proposições (a maior, a menor e a conclusão), de tal modo que a
conclusão é deduzida, da maior por intermédio da menor. Será analítico quando for via análise e, dialético,
através da arte do diálogo para atingir a verdade.
59
históricas, ou seja, transpõem o tempo, sobrepõem diferentes culturas e épocas sem se
modificarem.
Quando buscamos o caráter emocional, quando entendemos, segundo Pascal, que “o
autômato que é persuadido”, entendendo com isso “o corpo, a imaginação, o sentimento, em
suma, tudo quanto não é razão” (PASCAL apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 30), temos a persuasão, que será considerada uma transposição da demonstração
“injustiçada”, de proposições lógicas em que, segundo Dumas, “o indivíduo se contenta com
razões afetivas e pessoais” (DUMAS apud PERELMAN, 2002, p. 30). Temos, assim, a ação
de caráter subjetivo a um auditório particular que nos parece estar mais próximo ao público-
alvo das fábulas. Confirmando esse caráter particular, voltado a um grupo, não é raro o uso de
fábulas em obras infantis ou obras voltadas para fins didáticos nas escolas.
O gênero fábula sempre esteve presente na literatura de todos os tempos com especial
emprego em Bestiários da Idade Média e a personagem-narrador, como afirma Nelly Coelho,
“hoje é das mais encontradiças na Literatura Infantil” (COELHO, 1991, p. 148).
Segundo Couso Cadahya (1991), as fábulas surgiram como uma modalidade da poesia
satírica, cujo cunho é denunciar de forma sarcástica algum desvio moral, sendo assim, o seu
discurso é dirigido a alguém ou a uma situação específica. Nelly Coelho confirma esse
auditório particular a quem a fábula é dirigida em seus estudos sobre La Fontaine:
A julgar pelo testemunho de seus contemporâneos, as Fábulas de La Fontaine são
verdadeiros textos cifrados que denunciam misérias, desequilíbrios ou injustiças de
épocas. Segundo consta, foi sua dedicação e amizade a Fouquet (Superintendente
das Finanças de Luís XIV, afastado do cargo e aprisionado injustamente por seu
implacável inimigo Colbert, novo ministro do Rei) que levou La Fontaine não só a
intervir publicamente em favor do inimigo e protetor, como a escrever as fábulas “O
Lobo e o Cordeiro” e a “Raposa e o Esquilo”, lidas na ocasião para o público seleto
dos “salões” (COELHO, 1991b, p. 82-83).
Como nos mostra Coelho, as fábulas “O Cordeiro e o Lobo” e “a Raposa e o esquilo”
foram destinadas a um auditório específico: “o público seleto dos salões” e estas se servem
das ações e das características dos personagens animais para retratar defeitos humanos, fato a
que se propõe, pelo exemplo, denunciar a injustiça. Vejamos, no exemplo (18), um trecho de
“O lobo e o Cordeiro”:
60
(18) “Por que motivo me turvas
A água que estou bebendo?
E o cordeirinho inocente
Assim respondeu, tremendo:
“Qual seja a razão que tenhas
D’enfadar-te, não percebo!
Tu não vês que de ti corre
A mim esta água que bebo?”
Rebatida da verdade,
Tornou-lhe a fera cerval;
“Aqui haverá seis meses,
Sei de mim disseste mal.”
Respondeu-lhe o cordeirinho,
De frio medo oprimido:
“Nesse tempo, certamente,
Inda eu não tinha nascido!”
“– Que importa? Se tu não foste,
Disse o lobo carniceiro,
Foi teu pai.” E, por aleives,
Lacera o pobre cordeiro!
Esta fábula dá brados
Contra aqueles insolentes,
Que por delitos fingidos
Oprimem os inocentes.” (Texto 37)
La Fontaine, alegoricamente, usa o cordeiro, cuja simbologia é a submissão, sendo
esta retratada nas palavras: “inocente”, “oprimido”, no diminutivo “cordeirinho" para
representar Coubert. Como representante de Fouquet, o autor usa o lobo, cuja simbologia é a
voracidade que o torna superior, mostrada pelas palavras: “cerval”, “delitos fingidos”,
“oprimem” e pela ação do personagem “lacera o pobre cordeiro”. Assim, por meio do
vocabulário e da trama narrativa, o discurso argumentativo a favor do amigo Fouquet é
alegoricamente construído na fábula.
Ainda que as histórias narradas no gênero fábula adquiram um caráter universal, “a
exemplaridade e a pintura dos animais, que além de ter sua personalidade própria, vêm a ser
espelho e símbolo da sociedade em que estão inseridos” (COUSO CADAHYA, 1991, p. 8),
dão a cada texto um caráter particular, destinado assim a um auditório particular, uma vez que
estão vinculados a uma cultura e a uma sociedade específicas. Sobre isso, Coelho (1991b),
afirma:
61
A grande maioria das versões [...] apresentam bastante adulterada a escrita original,
bem como o argumento ou moralidade. Portanto, o que venceu o tempo, entre o
grande público, não foi propriamente a forma literária de La Fontaine [- responsável
pela popularização e difusão do gênero -], mas as situações humanas ali
transfiguradas, e que nasceram, com certeza, com uma intenção que o leitor de hoje
lhes possa atribuir (COELHO, 1991b, p. 82).
Além de caracterizar um auditório particular para o gênero fábula ao dizer que esse
“transfigura situações humanas”, a autora confirma a característica principal atribuída à fabula
enquanto gênero que é a sua funcionalidade, ou seja, criado para cumprir uma função
doutrinária ao expor uma moral, tendo em vista uma intenção, noção esta já vista no item
2.5.1.2.
O apólogo, gênero que mantém com a fábula uma estreita relação, sendo por vez
denominado fábula, também apresenta, ao que nos parece, um auditório particular. Também
construído por meio de uma alegoria, esse gênero também busca adesão de espíritos de um
público específico, embora os valores veiculados sejam de ordem universal. No clássico
apólogo machadiano “A agulha e a linha”, o discurso quer mostrar, por meio dos seres
inanimados, que cada um, em sua singularidade, tem o seu valor. Esse texto é encontrado com
freqüência em livros didáticos destinados a um público de jovens adolescentes, ou seja, a um
auditório particular, cumprindo uma função específica ao transmitir um discurso para essa
faixa de idade.
O apólogo “Assembléia na carpintaria” foi encontrado em meio a textos usados para
treinamentos de operários de empresas, sendo, portanto, destinado a um auditório particular,
embora o discurso desse texto seja de caráter universal. Vejamos em (19), um trecho desse
texto:
(19) “Contam que na carpintaria houve uma vez uma estranha assembléia. Foi uma
reunião de ferramentas para acertar suas diferenças.
Um martelo exerceu a presidência, mas os participantes lhe notificaram que
teria que renunciar. A causa? Fazia demasiado barulho; e além do mais, passava
todo o tempo golpeando.
O martelo aceitou sua culpa, mas pediu que também fosse expulso o parafuso,
dizendo que ele dava muitas voltas para conseguir algo.
Diante do ataque, o parafuso concordou, mas por sua vez, pediu a expulsão da
lixa. Dizia que ela era muito áspera no tratamento com os demais, entrando sempre
em atritos. [...]
A assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força, a
lixa era especial para limar e afinar asperezas, e o metro, era preciso e exato.
62
Sentiram-se então como uma equipe capaz de produzir móveis de qualidade.
Sentiram alegria pela oportunidade de trabalhar juntos.
Ocorre o mesmo com os seres humanos. Basta observar e comprovar. Quando
uma pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa; ao
contrário, quando se busca com sinceridade os pontos fortes dos outros, florescem
as melhores conquistas humanas.
É fácil encontrar defeitos, qualquer um pode fazê-lo. Mas encontrar
qualidades [...] isto é para os sábios!!!” (Texto 6)
Enquanto na fábula “O lobo e o cordeiro”, as características dos animais, o lobo e o
cordeiro, são usadas para representar, por exemplo, o comportamento do homem, em (19),
“Assembléia na carpintaria”, as características dos objetos: o “martelo” (barulhento), o
“parafuso (prolixo demais – dava muitas voltas para conseguir algo) e a “lixa” (áspera) vão
estabelecendo uma comparação entre eles. Essa comparação é responsável, ao longo da trama,
pela construção do discurso argumentativo que culmina no resultado marcado em “A
assembléia entendeu que [...] qualidade”, também no comentário feito pelo narrador por meio
de uma explicação “Ocorre o mesmo [...] humanas”, e, por último, na conclusão, por meio de
uma moral que serve como ensinamento “É fácil encontrar defeitos [...] é para os sábios!”
Tanto na representatividade dos personagens da fábula como do apólogo analisados,
percebemos traços simbólicos, quer dos animais ou dos seres inanimados, que os identificam
com seres humanos em situações específicas, logo se destinam a um auditório particular.
Após a análise do auditório esperado para cada um dos gêneros apólogo, fábula e
parábola, vimos que o elemento comum e diferenciador dos respectivos auditórios é o caráter
pragmático desses gêneros, responsável por determinar-lhes o uso. Enquanto as parábolas são
usadas em situações em que o público é geral, um auditório universal, como em discursos
religiosos, filosóficos, os apólogos e as fábulas são usados em situações pedagógicas para
ensinar algo, conduzir a um determinado comportamento como em escolas, empresas, tendo,
portanto, como alvo um auditório particular ou criticar uma situação específica.
Outra consideração importante a ser feita, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2002), entre persuasão e convicção é que a primeira, vincula-se à ação e a segunda, à
inteligência. Sob essa perspectiva, analisamos o apólogo, a fábula e a parábola percebemos
que, na fábula, as ações do personagem servem para evidenciar atitudes que ferem valores do
ser humano, servindo, pois, para conduzir o leitor, persuadi-lo à ação, a uma mudança de
comportamento. A parábola, ligada aos exemplos, e o apólogo, a uma comparação entre seres,
63
por meio da ilustração de comportamentos, agem com o intuito da convicção, de convencer
para uma ação.
Assim, ao entendermos as ações de convencer e persuadir, percebemos com qual
auditório cada um dos gêneros (apólogo, fábula e parábola) se relaciona. No entanto, é
importante explicitarmos cada um deles. Um auditório é universal à medida que há um acordo
unânime em torno de um objeto, ou seja, quando a argumentação não gira em torno “de um
fato experimentalmente provado, mas de uma universalidade e de uma unanimidade que o
orador imagina do acordo de um auditório que deverá ser universal, pois aqueles que não
participam dele podem, por razões legítimas, não serem levados em consideração”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 35). Dessa forma, num auditório assim,
“todos que compreenderem suas razões terão de aderir às suas conclusões. O acordo de um
auditório universal não é, portanto, uma questão de fato, mas de direito” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 35) Entendemos, com isso, o caráter coercivo, da validade
intemporal e absoluta do que se enuncia nas parábolas, independente das eventualidades
locais ou históricas. Como nos diz Kant “A verdade repousa no acordo com o objeto e, por
conseguinte, com relação a tal objeto, os juízes de qualquer entendimento devem estar de
acordo” (KANT apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 35).
Opondo-se ao caráter retórico dispensado ao auditório universal, temos a primazia da
dialética do auditório particular. Sendo aqui, dialética considerada do ponto de vista heurístico
como a preocupação dos interlocutores em mostrar e provar argumentos, conduzindo uma
discussão. Discussão, aqui, é vista não como um debate, em que os participantes só aventam
argumentos favoráveis à sua tese, e sim como uma ação que tem como intenção levar “a uma
conclusão inevitável e unanimemente admitida” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 42), sendo necessário que os argumentos tenham o mesmo peso para todos. Segundo
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), tanto o diálogo heurístico, que busca uma resolução
através de perguntas e respostas, como o erístico, que é um mero exercício filosófico, são
raros, sendo que o que mais ocorre é o diálogo habitual em que os participantes “tendem, pura
e simplesmente, a persuadir seu auditório com o intuito de determinar uma ação imediata e
futura” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 43), tendo para tal um auditório
particular. Por tais razões, consideramos ter o apólogo e a fábula um auditório particular uma
vez que o discurso veiculado nesses gêneros se direciona a um determinado público,
caracterizado por uma individualidade cultural, com o qual mantém-se uma dialética no
desenrolar dos fatos, responsável pelo hermetismo do texto.
64
2.6.2- O acordo – outro importante elemento na argumentação
Todo processo argumentativo pressupõe um auditório universal ou um auditório
particular e todo auditório apóia-se em um ponto de acordo como base para que se estabeleça
a argumentação. Assim, nesse processo, o acordo diz respeito àquilo que é presumidamente
admitido pelos interlocutores, tendo como objeto ora o conteúdo das premissas, ora as
ligações particulares utilizadas, ora a forma de se servir delas.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002) os objetos de acordo podem ser
agrupados em duas categorias: a) categoria relativa ao real, que comportaria os fatos,
verdades e presunções; b) categoria relativa ao preferível, que conteria os valores, as
hierarquias e os lugares do preferível. É conveniente ressaltar que, no processo argumentativo,
tudo o que se acredita discorrer sobre o real diz respeito ao auditório universal; enquanto que
tudo que se acredita discorrer sobre o preferível, diz respeito ao auditório particular. No
entanto, a fronteira entre esses dois universos não tem limites tão distintos ao ponto de torná-
los inflexíveis e constantes.
2.6.2.1- Objetos de acordo pertencentes à categoria relativa ao real
2.6.2.1.1- Os fatos e verdades
Do ponto de vista argumentativo, a noção de fatos está ligada aos dados que se
referem a uma realidade objetiva e designariam “o que é comum a vários entes pensantes e
poderia ser comum a todos” (POINCARÉ, 1946 apud PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 75). Nessa perspectiva, a adesão a um fato será para o indivíduo a
aceitação de algo comum ao grupo social a que pertence. Assim, os fatos são sustentados por
um acordo universal, não controverso. Eles podem ser observáveis, supostos, convencionais,
fatos prováveis ou improváveis.
Nas parábolas bíblicas, temos a palavra de Jesus como fato que se presta à
argumentação veemente, incontestável pelos cristãos, pois sua imagem de pregador da
sabedoria divina tornou-se uma realidade incontestável, servindo assim, como objeto de
65
acordo para se estabelecer o discurso que tais textos carregam. Vejamos em (18), um trecho
da “Parábola do joio e do trigo”:
(20) “O Reino dos Céus é semelhante a um homem, que semeou boa semente no
seu campo. E enquanto dormiam os homens, veio o seu inimigo, e semeou
depois cizânia no meio do trigo e foi-se. [...]. Deixai crescer uma e outra até à
ceifa; e no tempo da ceifa, direi aos segadores: Colhei primeiro a cizânia, e atai-a
em molhos para a queimar; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro.” (Texto 62)
Toda relação de interpretação da parábola acima está no discurso construído por meio
do processo por analogia, recurso fundamentado mais adiante em 2.6.3.3.4. O campo é a
humanidade; o semeador é Jesus; a Semente de trigo é o Evangelho; a cizânia são as
interpretações capciosas de seus textos, e o inimigo são aqueles que as têm lançado no meio
da pura doutrina cristã. Já no final da parábola, Jesus afirma que é possível separar, na Terra,
as coisas boas das coisas ruins que nela se alastraram: “Deixai crescer [...] celeiro”. Por meio
desse processo da analogia, sempre explicada por Jesus aos discípulos e ao povo em suas
pregações, fez seu discurso doutrinário tornar-se fato, sendo tomado, desde então, como
objeto de acordo em discursos argumentativos.
Enquanto os fatos designam objetos de acordo precisos, limitados, as verdades
designam “sistemas mais complexos, relativos a ligações entre fatos, quer se trate de teorias
científicas ou de concepções filosóficas ou religiosas que transcendem a experiência”, como
afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 77). Segundo esses autores, a estreita relação
entre fatos e verdades está em um fato poder opor-se a uma verdade teórica, como também
um enunciado de um fato poder ser uma verdade e toda verdade enunciar um fato. No entanto,
quando um desses objetos tem primazia como ponto de partida para a argumentação, apenas
um deles estará apoiado no acordo do auditório universal.
As parábolas veiculam ensinamentos de ordem filosófica, pois vão além da
experiência, apoiando-se em concepções universais, sendo fundamentados, portanto, em
verdades. Vejamos no desfecho da parábola “Seixo rolado” (19) e da fábula “A velha e o
médico” (20), o valor de verdade em que o acordo se fundamenta:
(15) “Somos todos na vida seixos rolados.” (Texto 74)
66
(21) “As pessoas desonestas não pensam que sua cobiça depõe contra elas.” (Texto
21)
Em (15), a verdade se estabelece por meio de uma concepção filosófica de que o ser
humano, ao longo da sua vida, é moldado pelas dificuldades pelas quais passa na vida, sendo
tal concepção de caráter universal.
Em (21), a verdade se estabelece por meio do valor “a cobiça”, que leva o médico à
desonestidade. A cobiça e a desonestidade são valores universais de cunho negativo.
No exemplo (21), a cobiça é um valor negativo, desprezado naquela situação, no
entanto, pode vir a não ser em outra. Por exemplo, dentro de uma empresa em que cobiça
signifique ambição, ascensão, esse valor pode ser considerado positivo. Assim, é necessário
observar que embora as pessoas digam que a verdade se presta a um auditório universal, é
preciso considerar que esse universal pode ser para um grupo, ou seja, para as pessoas que
crêem num determinado valor ou concepção.
Segundo Kneebone (1950 apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002) os
fatos e verdades estão vinculados ao domínio das probabilidades, ou seja, a uma relação
numérica entre duas proposições aplicáveis a dados empíricos específicos, bem definidos,
simples; enquanto que a verossimilhança se aplica às conclusões indutivas.
2.6.2.1.2- Presunções
As presunções são crenças com base em fatos não conclusivos, são conjecturas que se
apóiam no acordo universal. Embora as presunções necessitem de elementos para reforçá-las,
são, na maioria das vezes, tomadas como ponto de partida para a argumentação, sendo
algumas impostas, de imediato, a auditórios ligados a convenções. Elas se originam de
situações cuja verossimilhança não resulta de dados de fato calculáveis, estando assim
vinculadas, em cada caso particular, ao normal e ao verossímil. É necessário, no entanto,
verificar que a noção de normal, tomando uma linguagem estatística, varia entre diferentes
aspectos, abrangendo as idéias de média, de modo e, também de parte mais ou menos extensa
de uma distribuição. Enquanto a média diz respeito ao ponto central, ao ponto de equilíbrio, a
distribuição trata da capacidade, tendo como referência o mínimo ou o máximo, já o modo,
67
diz respeito às presunções baseadas no habitual, estando, assim, na base de todos os
raciocínios sobre o comportamento. Existe para cada categoria de comportamentos um
aspecto considerado normal que pode servir de base aos raciocínios. Embora as presunções
raramente baseadas no normal tomem por base estatísticas de distribuição e de freqüência
(média), é necessário implicarem um acordo acerca do grupo de referência, assim como as
que se baseiam no aspecto de modo, mais comumente utilizadas. O grupo de referência é um
elemento de apoio importante para as presunções num enunciado argumentativo. Como
presunção ligada a um comportamento tido como normal num determinado grupo, citamos
exemplos dados por Reboul (2000, p. 165): “Para um liberal, o que não compete justificar é a
liberdade, mas sim a coerção. Para um socialista, a igualdade é de direito, cumprindo
justificar a desigualdade”. Um exemplo bastante comum de presunção que torna claro esse
ponto de acordo é de que a qualidade de um ato manifesta a qualidade (o caráter) da pessoa
que o praticou.
2.6.2.2- Objetos de acordo pertencentes à categoria relativa ao preferível
2.6.2.2.1- Os valores
Valor é “o conjunto de princípios, idéias e julgamentos morais” (LAROUSSE, 2001,
p. 1013), sendo este um objeto de acordo que tem como ponto de apoio auditórios particulares
numa argumentação. Assim considerando o auditório, acredita-se que um valor possa exercer
sobre a ação e à disposição à ação uma influência determinada uma vez que não se impõe a
todos. Isso se dá em decorrência da multiplicidade dos grupos sociais, que, por fatores
culturais, sociais, econômicos, entre outros, constroem suas opiniões, distanciando-se assim
de verdades absolutas, indiscutíveis. Segundo Descartes, tais opiniões são vistas como
prováveis:
E assim, como as ações da vida freqüentemente não suportam nenhuma delonga, é
uma verdade muita certa que, quando não está em nosso poder discernir as opiniões
mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis [...] e considerá-las depois, não
mais como duvidosas, no que diz respeito à prática, mas como muito verdadeiras e
muito certas, porque a razão que a isso nos determinou o é (DESCARTES apud
PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 84).
68
Às opiniões prováveis a que se refere Descartes, chamaríamos hoje de valores e o que
ele qualifica de razão muito verdadeira e muito certa, chamaríamos de valor aparentemente
incontestável.
A esse grupo de valores incontestáveis estariam incluídos valores ditos universais e
absolutos como o Verdadeiro, o Bem, o Belo, o Absoluto, tomados unicamente da
generalidade que lhes é concebida, servindo de força de persuasão, pois à medida que lhes
especificamos um conteúdo, um determinado objeto, deixam de servir a um auditório
universal para atender a um auditório particular. Sobre isso Dupréel diz:
meios de persuasão que, do ponto de vista do sociólogo, são apenas isso, puros,
espécie de ferramentas espirituais totalmente separáveis da matéria que permitem
moldar, anteriores ao momento de serem utilizadas e que permanecem intactas
depois de serem utilizadas, disponíveis, como antes, para outras ocasiões
(DUPRÉEL apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 86).
Sempre que utilizarmos um determinado valor, esse estará se contrapondo a outro,
estando sujeito a ser aceito, desqualificado ou até tornar-se subordinado a outro.
Os valores são também classificados em concretos e abstratos. O valor concreto é
aquele que se vincula a um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular, quando
tomado pelo seu caráter único. Deus, em seu caráter único, assim como o ser humano, é
exemplo de valor concreto muito usado como objeto de argumentação. O valor abstrato é
aquele que diz respeito às regras válidas para todos em todas as circunstâncias,
fundamentando-se na razão. São exemplos de valor abstrato: fidelidade, lealdade,
solidariedade, disciplina. Embora possam ser distintos, há entre o valor concreto e o abstrato
uma estreita relação. Deus é por excelência um valor concreto, pois nele encontramos todas as
virtudes que lhe concedem um caráter único. Destacar num amigo o seu valor único é
ressaltar nele determinados valores como lealdade, bondade, reciprocidade, entre outros
valores abstratos.
Enquanto, numa argumentação, os valores concretos transmitem uma imagem de
certeza, de harmonia, de estaticidade, os valores abstratos requerem uma visão revolucionária,
uma mudança. Enquanto os primeiros dão à argumentação um status conservador, os últimos
lhe dão um status de renovação. Como exemplo, vejamos:
69
(22) “Dito e feito, o chefe do bando perguntou: “Quem és e de onde vens?” “Eu
sou o coelho, respondeu ele, enviado para ti pela venerável lua” (*) “Declara o
objeto da tua missão”, acudiu o chefe do bando. Vijaya pensou: Embora seja
ameaçado com armas, o embaixador não deixava de falar como deve; graças à sua
inviolabilidade, fala sempre a verdade tal qual é.” (Texto 24)
Em (22), o acordo está no valor concreto representado pela Lua, uma deusa, valor este
construído pelo grupo em torno dessa entidade. Esse acordo fundamenta-se, portanto, no
argumento de autoridade, que veremos posteriormente em 2.6.3.2.2.1, representado “pela
venerável lua”, uma divindade da mitologia hindu, representante do Deus desse povo.
Outro aspecto importante a ser lembrado no gênero fábula é que os valores vão sendo
implicitamente mostrados pela narrativa, que age como elemento de argumentação, cuja força
está nas ações dos personagens, que quando animais, representam a simbologia dada pela
cultura do grupo social, servindo para motivar, persuadir o interlocutor a aderir à moral que o
texto visa conquistar, tendo em vista os valores concebidos pelo auditório. Vejamos os valores
presentes na fábula “A cigarra e a formiga”, retomando o exemplo (13):
(13) “Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.
“Amiga, – diz a cigarra –
prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
70
Responde a outra: “Eu cantava
noite e dia, a toda hora.”
“– Oh! Bravo! – torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”” (Texto 46)
Em (13), há alguns valores em jogo, a dedicação, a responsabilidade da formiga para
com o trabalho, o qual para determinados grupos sociais tem como filosofia que “o trabalho
dignifica o homem” e o valor negativo da ociosidade, da vida sem responsabilidade com o
amanhã. No entanto, vale lembrar que pode haver grupos que valorizem a ociosidade em
oposição ao trabalho que faz do homem um escravo.
2.6.2.2.2- As hierarquias
As hierarquias dizem respeito à ordem e à subordinação dos valores e são
fundamentadas apenas quando se tratar de defendê-las, sendo comumente, implícitas no
contexto argumentativo. Elas se apresentam sob dois aspectos: as hierarquias concretas que se
referem a classes de objetos como, por exemplo, os homens são superiores aos animais, cada
um em sua unicidade; enquanto que as hierarquias abstratas, referem-se a valores abstratos
como a superioridade do justo ao útil.
As hierarquias podem ser estabelecidas sem nenhum fundamento a favor de uma
superioridade. Mas, quando ligadas a princípios absolutos, nas relações entre coisas, elas
transformam a simples superioridade do preferível em hierarquias sistematizadas, estando
essas ligadas aos princípios que as regem. Todos os elementos do real formam uma hierarquia
sistematizada como, por exemplo, o que é causa e princípio ser superior ao que é efeito ou
conseqüência. Nessa perspectiva, vejamos em (23) um trecho da fábula “A mona e o filho”:
(23) “Cegamente empregava o maternal desvelo;
E era a sua ternura, o seu amor tão fino,
Que nunca dentre as mãos largava o pequenino.
Se alguma sua amiga ia fazer-lhe festa,
Dizia-lhe: “Não, não, deixe-mo, que o molesta! [...]
E um dia o abraço com tal contentamento,
Que no apertão fagueiro ele exalou o alento.
Tal (me diz experiência) é o zeloso amante;
71
Por amor importuna, enfada a cada instante;
O que quer pra si do mesmo sol recata,
Por amor atormenta, e até às vezes mata.” (Texto 22)
Em (23), temos o excesso de “desvelo” da mãe, a mona, para com o “pequenino”, o
filho, que um dia mata-o ao abraçá-lo com total “contentamento”. Assim, a causa da morte, o
amor maternal, torna-se superior à conseqüência que é a morte. Isso nos é mostrado na
explicação pelo narrador nos últimos quatro versos do texto.
Um dos princípios hierarquizantes mais usado é a quantidade maior ou menor de
alguma coisa. No entanto, a uma hierarquia quantitativa em que a superioridade estaria na
maior ou menor quantidade de certo caráter (um só aspecto é observado), opor-se-ia uma
hierarquia heterogênea, em que diferentes valores ou manteriam uma subordinação ou
recorreriam a um esquema de subordinação. Esse princípio pode ser observado no “Apólogo
mineiro”, citado em (12), vejamos:
(12) “O boi velho e o boi jovem, no alto do morro – lá embaixo uma porção de
vacas pastando. O boizinho, incontido:
– Vamos descer correndo e pegar umas dez.
E o boizão, tranqüilamente:
– Não, vamos devagar e pegar todas.” (Texto 20)
A hierarquia de superioridade da maior quantidade sobre a menor quantidade está
nitidamente expressa em “todas”, que mesmo obtida mais devagar, é superior a “dez” vacas,
embora fossem pegas mais rapidamente. Assim, o esquema de subordinação se apóia em
devagar / maior quantidade é superior a depressa / menor quantidade.
Numa argumentação a hierarquização dos valores é mais importante para a sua
estrutura do que os próprios valores, pois assim também o é para um auditório. Assim, é
necessário salientar que a adesão de intensidade diferente não se encontra nos valores em si,
mas nos princípios que permitem hierarquizá-los. “[...] é melhor emitir sobre assuntos úteis
uma opinião razoável do que, sobre inutilidades, conhecimentos exatos” (ISÓCRATES, 1928
apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 93) a relação entre a certeza de um
conhecimento e a importância ou o interesse que ele pode apresentar apóia-se na hierarquia: o
pragmático é superior ao conhecimento.
72
Outro fator que julgamos ser hierarquizante, não apontado por Pereman e Olbrechts-
Tyteca, diz respeito à situação em que um fato ocorre, ou seja, ao contexto em que um valor
torna-se superior a outro, até então considerado superior. Observamos tal ocorrência em “O
leão e o rato”, vejamos:
(24) “Dorme o bravo leão no bosque a tempo
Que uns rusticanos ratos se divertem; [...]
O leão, que desperta em sobressalto,
Com bem presteza agarra este infeliz
Que o perdão para logo lhe suplica, [...]
Generoso perdoa, e o deixa ir.
Poucos dias depois a mesma fera
A campanha batendo em noite escura,
Descuidado caiu num grande fosso.
E vendo-se ali preso na esparrela,
Entrou logo a rugir com grande força.
A tão terrível voz o rato acode,
E mui compadecido assim lhe diz:
“– Não temas, ó leão, porque eu vos quero
Um serviço fazer, que corresponda
Ao grande beneficio, que eu de vós
Há pouco recebi, que não me esquece”. [...]
Principia a roê-los de tal sorte,
Que em mui breve tempo fez mui largas
As malhas engenhosas desta rede.
Por este meio deu ao leão preso
Ao mesmo tempo o poder e a liberdade.” (Texto 32)
Em (24), observamos primeiramente o acordo estabelecido pelo valor da generosidade
do leão ao perdoar e deixar ir o rato que o havia acordado quando se divertia com os outros
ratos. Temos também o valor da gratidão estabelecido pela ação do ratinho ao salvar o leão,
roendo as redes da armadilha em que havia caído. Mas, além do acordo estabelecido pelos
valores de generosidade e de gratidão, também podemos verificar uma mudança hierárquica
de valores abstratos esperteza x força, pois a força do leão, a qual lhe concede um status de
superioridade no mundo animal, nada lhe valeu, sendo superior a ela, naquele momento, a
habilidade, a esperteza do ratinho.
Optar por uma hierarquia de valores, numa dada situação,é perceber as
incompatibilidades deles, portanto a necessidade de uma escolha como ponto de acordo
argumentativo.
73
2.6.2.2.3- Os lugares
Ao fundamentar os valores e hierarquias, como pontos de acordo argumentativo, além
da relação entre eles, pode-se também recorrer a premissas de ordem muito geral qualificadas
de lugares, os τóπoι, dos quais derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocínio
dialético. Para os antigos, os lugares designam rubricas com as quais é possível classificar os
argumentos. Numa classificação aristotélica, os lugares distinguem-se “em lugares comuns,
que podem servir indiferentemente em qualquer ciência e não dependem de nenhuma, e os
lugares específicos, que são próprios, quer de uma ciência particular, quer de um gênero
oratório bem definido” (ARISTÓTELES, 1932 apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 94).
No passado, os lugares comuns eram utilizáveis em todas as circunstâncias devido à
imensa generalidade com que eram caracterizados. Atualmente, os lugares comuns
caracterizam por uma banalidade, o caráter generalizado visto já no passado, mas que não
exclui de modo algum a especificidade, referindo-se assim, a lugares-comuns, na visão
aristotélica, a temas particulares.
Dos cinco lugares comuns estudados por Aristóteles: do acidente, do gênero, do
próprio, da definição e da identidade, interessa-nos os lugares do acidente
19
que dizem
respeito às premissas de ordem geral que permitem fundar valores e hierarquias, elementos
esses que são pontos de acordo para a argumentação nos gêneros apólogo, fábula e parábola.
Esses lugares são agrupados por Perelman e Olbrechts-Tyteca, inicialmente, sob alguns itens
bem gerais como lugares da quantidade, da qualidade. Embora estes lugares sejam mais
evidentes, por chamarem mais a atenção, por serem mais expressivos, é importante o estudo
dos lugares mais particulares como: o do existente, o da essência, o da pessoa, o da ordem, os
quais podem assumir posição de destaque em determinadas situações particulares de
argumentação. Vejamos, a seguir, esses lugares.
19
Em Os Tópicos, Aristóteles estuda toda espécie de lugares que podem servir de premissa para silogismos
dialéticos ou retóricos e os classifica em lugares do acidente, do gênero, da definição e da identificação.
74
2.6.2.2.3.1- Os lugares da quantidade
Dizem respeito aos lugares que afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por
razões quantitativas, tais lugares constituem premissas maiores subentendidas responsáveis
por uma conclusão.
Por quantidade, nessa perspectiva, são exemplos as seguintes relações: uma proporção
numérica superior a uma inferior; o todo é melhor que a parte; o democrático ao autoritário; o
senso-comum ao particular; o duradouro (eterno) ao instável (passageiro); o útil em todas as
ocasiões ao útil só em certos momentos; o provável sob o improvável; a passagem do normal
(freqüente) à norma. “A maior parte dos lugares que tendem a mostrar a eficácia de um meio
será lugar da quantidade” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 99). Para esses
autores, ao lugar da quantidade se enquadra tudo que é universal e eterno, racional e
comumente válido, estável, duradouro, essencial, o que interessa ao maior número, sendo
essas características, fundamento de valor entre os clássicos. Retomamos novamente o
exemplo (12) para verificar esse lugar:
(12) “– Vamos descer correndo e pegar umas dez.
E o boizão, tranqüilamente:
– Não, vamos devagar e pegar todas.” (Texto 20)
O lugar da quantidade está explicitamente posto em “descer correndo e pegar umas
dez” em oposição a “vamos devagar, e pegar todas”, servindo assim, a última proposição de
argumento superior à primeira, fundamentado no maior número.
2.6.2.2.3.2- Lugares da qualidade
Os lugares da qualidade aparecem na argumentação quando se contesta a virtude do
número. Isso acontece quando ao número se opõe a qualidade da verdade que é um valor de
ordem superior, incomparável. Tomando por esse aspecto, o lugar da qualidade redunda na
valorização do único que é ligado a um valor concreto, que dada a sua unicidade, torna-se
precioso.
75
Diferentes valores podem evidenciar o caráter do único, caracterizando os lugares da
qualidade, como: a) o único pode exprimir-se por sua oposição ao comum, ao corriqueiro, ao
vulgar, tomando-se assim a propriedade de ser original; b) a precariedade pode ser
considerada o valor qualitativo oposto ao valor quantitativo da duração; é correlativa ao
único, ao original; c) o irreparável se apresenta como um limite, que vem acentuar o lugar do
precário, estando vinculado à qualidade quando a unicidade é conferida ao acontecimento que
se qualifica de irreparável. Para que uma ação seja irreparável, é preciso que não possa ser
repetida; d) o único como oposto ao diverso em que o único pode servir de norma: esta
adquire um valor qualitativo em relação à multiplicidade do diverso.
O que é único beneficia-se de um prestígio inegável, uma vez é usado como base para
adesão numa situação argumentativa sem precisar ser fundamentado. Vejamos isso na fábula
“Os coelhos e os elefantes”, já apresentado em (22)
(22) “Quem és e de onde vens?” / “Eu sou o coelho, respondeu ele, enviado para ti
pela venerável lua” (*) “Declara o objeto da tua missão”, acudiu o chefe do
bando. Vijaya pensou: Embora seja ameaçado com armas, o embaixador não
deixava de falar como deve; graças à sua inviolabilidade, fala sempre a verdade
tal qual é. [...] Quando acabou de falar o mensageiro, o chefe do bando disse com
medo: “Ouve, fiz isto por ignorância; não o farei mais.” / “Se é assim, respondeu
o mensageiro, saúda e sossega a venerável lua, que está a tremer de cólera neste
lago, e vai-te embora.” (Texto 24)
A Lua, dado ao seu caráter único, representa um forte argumento do coelho – “enviado
para ti pela venerável lua” – tendo em vista o seu propósito de defender as margens do lago
onde ele e o seu grupo vinham sendo amedrontados pelos elefantes que ali iam beber água.
Devido ao seu prestígio e imagem mítica “saúda e sossega a venerável lua, que está a tremer
de cólera”, o chefe dos elefantes aceita o pedido feito pelo coelho.
2.6.2.2.3.3- Lugares do existente
Os lugares do existente têm como princípio a superioridade do que existe, do que é
atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível, pressupondo dessa forma,
76
um acordo sobre a forma do real ao qual são aplicados. Vejamos esse argumento “O rato do
campo e o rato da cidade”:
(25) “Adeus, amigo, comes à saciedade por certo e levas grande vida, mas à custa
de riscos e temores. Eu, pobrezinho, vou viver roendo meu centeio, mas sem
medo nem desconfiança.” (Texto 44)
Em (25), o rato do campo, contenta-se com o alimento do qual dispõe, o centeio, sem
ter que se submeter a nenhuma condição para consegui-lo. Ao contrário, o rato da cidade só se
farta com grandes banquetes de variadas sobras de comidas, se enfrentar riscos para que seja
recompensado com esse alimento. Assim, aplica-se nesse contexto o lugar superior do
existente, do que é real (o centeio) sobre o que é possível ou impossível (as variadas sobras de
comida).
2.6.2.2.3.4- Lugares da essência
Os lugares da essência concedem ao indivíduo um valor superior não por seu valor
absoluto, transcendental, mas sim por ser um representante bem caracterizado, ou seja, por ser
aquele que representa melhor um padrão, uma função, uma essência, sendo assim valorizado
por si mesmo. Esse lugar pode ser observado no trecho, a seguir, da parábola “O monge
mordido”:
(26) “Mestre deve estar muito doente! Porque foi salvar esse bicho ruim e venenoso?
Que se afogasse! Seria um a menos! Veja como ele respondeu à sua ajuda, picou
a mão que o salvara! Não merecia sua compaixão! O monge ouviu
tranqüilamente os comentários e respondeu: “Ele agiu conforme sua natureza, e
eu de acordo com a minha”.” (Texto 80)
No desfecho dessa parábola, o objeto de acordo fundamenta-se no valor da aceitação
de que cada ser age de acordo com sua natureza, com os seus princípios. O escorpião tem
como instinto defender-se com a picada venenosa, enquanto o monge, sendo humano e
seguidor de uma filosofia pacifista, vive para ajudar e para praticar o bem e não para revidar o
77
mal que lhe tenham, por ventura, causado. O monge rebate o argumento de que devia deixar o
escorpião morrer porque era mau, dizendo que se o fizesse abdicaria de sua essência positiva:
solidária, pacífica.
2.6.2.2.3.5- Lugares da pessoa
Esses lugares estão vinculados à dignidade, ao mérito, à autonomia da pessoa. É muito
usado nos textos publicitários. Vejamos a propaganda do SBT:
(27) “SERIEDADE, CREDIBILIDADE E SIMPATIA. ONDE VOCÊ VAI
ENCONTRAR NOTÍCIA MELHOR QUE ESTA?
Ana Paula Padrão comanda o novo jornalismo do SBT. Jornalismo sério e
imparcial, com o equilíbrio e credibilidade que você merece, e a simpatia que só
o SBT tem. De segunda a sábado, às 19h 15, Ana Paula Padrão apresenta os
fatos, as notícias mais importantes do dia. Você não pode perder.
SBT Brasil.
Estréia 15 de agosto.” (VEJA, 17 ago. 2005, p. 100).
Em (27) a imagem da jornalista, construída pela sua competência e pelo lugar ocupado
outrora, na Globo, é usada como argumento para convencer os telespectadores a assistirem ao
novo programa “SBT Brasil”.
Dos textos em estudo, encontramos esse lugar sendo tomado como ponto de acordo na
fábula Os coelhos e os elefantes, embora a lua não seja pessoa, julgamos assim representar,
uma vez que é considerada, pelo grupo, um valor absoluto
20
, digna de ser respeitada, servindo
de argumento de autoridade
21
.
2.6.2.2.3.6- Lugares da ordem
Esses lugares dizem respeito à superioridade do anterior sobre o posterior, sendo essa
superioridade marcada pelos elementos: causa ou princípio, fim ou objetivo. Numa visão não-
20
Rever 2.6.2.2.1.
21
Ver em 2.6.3.2.2.1.
78
empirista, a causa ou princípio é superior aos fatos ao serem considerados a razão destes
existirem, ou seja, os fatos são efeitos da causa ou princípios. Nessa perspectiva, nas teorias
finalistas, o objetivo é transformado em causa, tornando-se superior, valorizando assim a
origem de um processo. Vejamos tal ocorrência na fábula “Os animais saúdam o sol”:
(28) “Milhões de vozes se erguiam, à madrugada, numa melodia única, suave,
harmoniosa, saudando o astro rei. Uma única voz desafinou e chamou a atenção
de todos, e atraiu os olhares furibundos do leão, do tigre e do leopardo.
Terminado o coro, o rouxinol, de cima de uma árvore, disse à raposa:
– Comadre raposa, que lástima! Por que você desafinou daquele modo?
– Ora, meu amigo, se não desafinasse, como é que chamaria a atenção para
mim?” (Texto 49)
No final dessa narrativa, a fala da raposa evidencia o lugar da ordem em que a raposa
se fundamenta para conseguir a atenção de todos “se não desafinasse, como é que chamaria a
atenção para mim?”, em que a finalidade de chamar a atenção é superior à causa à alternativa
que teria (não desafinar), justificando-se assim o desafinar.
Após essa breve definição dos lugares do acidente, é necessário ressaltar que a
utilização de um ou outro está vinculada à situação argumentativa particular em que se está,
tendo em vista dois elementos fundamentais: os objetivos a que se visa e os argumentos com
os quais há risco de se chocar. Esses dois elementos estão intrínsecos numa argumentação,
uma vez que ao ter-se em vista os objetivos, buscando desencadear uma ação, tem-se a um
tempo a transformação e a réplica a certos argumentos, sendo importante, nesse momento, a
escolha entre os diferentes lugares como ponto de acordo argumentativo.
2.6.3- Técnicas argumentativas
Propomo-nos a partir desse momento, verificar os elementos argumentativos explícitos
e/ou implícitos na estrutura dos gêneros em estudo, tomando para isso dois grupos de
raciocínios: os argumentos quase-lógicos e os argumentos baseados na estrutura do real,
caracterizados pelos processos de ligação e dissociação.
79
Enquanto que pelo processo de ligação entendemos que são “esquemas que
aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre estes uma solidariedade”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 43), pelo processo de dissociação
entendemos que são “técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar elementos
considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de
pensamento” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 216). Esses processos, em
certas situações, operam conjuntamente, um implica o outro ou até atuam simultaneamente.
2.6.3.1- Os argumentos quase-lógicos
Os argumentos quase-lógicos são convencionados a certa força de convicção ao se
apresentarem como comparáveis a raciocínios formais, lógicos, mas tal aparência
demonstrativa é conseguida devido ao esforço de precisão e redução, de natureza não-formal,
daí justificando o nome recebido, serem processos quase-lógicos. A seguir, vemos alguns dos
principais tipos de argumentos quase-lógicos.
2.6.3.1.1- Contradição e incompatibilidade
A contradição consiste na negação de uma asserção dentro de um mesmo sistema, de
forma explícita, tornando-o incoerente. Mas no campo da argumentação, em que as premissas
quase nunca são explícitas inteiramente, depende-se das circunstâncias para que se evidencie
a contradição. Sendo assim, elas serão normalmente concebidas como formas de
incompatibilidades em que há de se escolher entre as duas asserções ou renunciar às duas.
Quanto à forma de se apresentar, as incompatibilidades relacionam-se à razão ou à lógica,
dependendo assim da natureza das coisas ou de uma decisão humana. Ao aproximar a
incompatibilidade da contradição, faz-se uso do sistema formal da redução por meio de uma
assimilação. Normalmente, quando ocorre a incompatibilidade, para fugir dela, o sujeito
recorre à mentira, à ficção ou à hipocrisia.
Vejamos o desfecho da parábola Dois mercadores e o tarro de azeitonas, cujo
contexto conta que um comerciante, tendo a incumbência de guardar por sete anos um tarro
80
com azeitonas e moedas de ouro no fundo, ao descobri-las, roubou-as e, para isso, teve que
substituir as azeitonas velhas por novas, afirmando depois não ter tocado nelas. Vejamos, a
seguir:
(29) “O califa olhou as azeitonas, tomou uma e deu outra ao menino, e, depois de
haver provado, perguntou:
– Que te parecem?
– Excelentes, senhor – respondeu o menino.
Em seguida passaram o tarro aos azeitoneiros citados como peritos, os quais
declaram que aquelas azeitonas eram frescas e daquele mesmo ano.
Estais enganados disse-lhes o menino – porque estas azeitonas foram
postas neste mesmo tarro por Ali Cógia há sete anos.
Senhor exclamaram os azeitoneiros – que as reconheçam todos os
mercadores deste artigo, e se não dizem o mesmo que nós, mandai que nos
cortem a cabeça. Não há azeitonas, por boas que sejam, e por melhor preparadas
que estejam, que se conservem sem apodrecer no fim de dois anos.” (Texto 51)
Em (29), a incompatibilidade é verificada no fato de as azeitonas estarem boas após
sete anos de conservação, baseando-se assim na lógica, a mentira é descoberta, ficando a
moral, implicitamente demonstrada pelas ações das personagens e pelo ponto de acordo de
que a verdade, mais cedo ou mais tarde, sempre aparece, ainda mais quando tem a lógica a
seu favor “Não há azeitonas, por boas que sejam, e por melhor preparadas que estejam, que se
conservem sem apodrecer no fim de dois anos.”
2.6.3.1.2- O ridículo
O ridículo, segundo Dupréel (apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.
233), é o “risco de exclusão”, é a forma de desaprovar algo que transgride uma regra já aceita,
é a condenação de um comportamento excêntrico, que não se julga grave. Sendo, assim, será
ridículo aquele que peque contra a lógica ou se engana no próprio enunciado dos fatos de
modo inconsciente, por ignorância seja da própria regra ou por conseqüências desastrosas de
uma tese ou de um comportamento. A oposição à lógica ou experiência ou às concepções
naturais, numa dada sociedade, leva ao ridículo. Normalmente, ele é evidenciado
indiretamente pela figura ironia que supõe conhecimentos complementares acerca de fatos, de
81
normas, necessitando então para empregá-la, com o efeito desejado, um mínimo de acordo
22
entre as partes. Tendo essa característica, a ironia tem caráter mais social que humano, isso
quer dizer que depende da convicção que temos de certos meios, levando-nos a considerar
determinados contextos irônicos ou não.
Na fábula A velha e o médico em que uma velha, sofrendo dos olhos manda chamar
um médico e este, a cada visita, surrupiava-lhe um móvel. Ao terminar o tratamento, ele
solicitou-lhe o pagamento, mas ela recusou pagar-lhe, afirmando ironicamente, de forma sutil,
que havia sido roubada. Vejamos:
(21) “Aos magistrados que a iam julgar disse, entretanto, a velha que,
efetivamente, prometera o salário reclamado se ele a curasse; mas seu estado,
após o tratamento, piorara deveras. Sim, afirmava, antes eu via todos os móveis
da casa e agora não os posso mais ver.” (Texto 21)
Nessa fábula, o comportamento do médico é ridicularizado, tendo a velha como
argumento o fato de que com o tratamento, ao invés de ela melhorar, piorara, apoiando-se,
assim para argumentar, em regras de prestação de serviços, como mostra o narrador no trecho
“prometera o salário reclamado se ele a curasse”; e o argumento pelo ridículo se conclui com
a ironia “antes eu via todos os móveis da casa e agora não os posso mais ver”.
2.6.3.1.3- Identificação e definição
A identificação é uma técnica que ocorre por meio do uso de conceitos, de aplicação
de uma classificação, de um recurso de indução, implicando para isso a redução de certos
elementos, o que neles há de idêntico ou intercambiável; mas para ser classificada como
quase-lógica não pode ser nem de forma arbitrária nem evidente. Assim, serão
“procedimentos de identificação aqueles que visam identificação completa e outros que não
pretendem mais do que uma identidade parcial dos elementos confrontados” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 238). Normalmente, a técnica da identificação é feita com
o uso de definições, sem fazer parte de um sistema formal e nem se preocupar em identificar o
definiens com o definiendum.
22
Elemento fundamentado em 2.6.2.
82
O caráter argumentativo das definições fica claro quando ocorrem definições variadas
de um mesmo termo e essa argumentatividade pode se apresentar de acordo com duas fases de
raciocínio: ser justificadas, ser valorizadas, com a ajuda de argumentação ou serem elas
próprias, os argumentos.
Vejamos a parábola Felicidade em que ocorre por indução a identificação de um termo
por meio de uma definição implicitamente extraída, ou seja, o conceito não surge de real, de
forma clara e evidente, ele é construído pela estrutura narrativa, na interação entre os
personagens. Vejamos:
(30) “Um homem perguntou a um sábio:
– Senhor, tu, que és sábio, podes dizer-me o que é a felicidade?
– Nunca poderia dizer-te. Posso indicar-te apenas o caminho que leva até ela.
– Senhor, ficaria eternamente agradecido se me fizesses este favor...
– Pois bem: olha para frente. Que vês?
– Vejo o mundo, senhor [...]
– Olha, mais! [...]
– Vejo campos, vejo serras, vejo nuvens nos céus, bois pastando nos campos
[...]
– Olha mais!
– Nada mais vejo, senhor!
– Olha bem [...] bem!
– Senhor, palavra. Nada mais vejo, senão o que te disse.
– Como queres que te mostre o caminho da felicidade, se é isso apenas o que
vêem os teus olhos?” (Texto 57)
Em (30), fica implícita a definição “A felicidade é tudo que podemos alcançar com
nossos olhos”. Nessa definição de caráter metafórico, há uma identidade entre o que é
definido “a felicidade” e o termo definidor “tudo que podemos alcançar com nossos olhos”.
Essa definição expõe um valor de verdade, tornando-se um argumento, pois impõe um ponto
de vista.
2.6.3.1.4- Analiticidade, análise e tautologia
Analiticidade – numa definição, será considerada analítica a igualdade estabelecida
entre expressões sinônimas, sendo que essa igualdade terá o mesmo valor da definição de que
83
depende. Isso ocorrerá quando uma expressão puder substituir a outra sem que o valor de
verdade das proposições seja modificado. Tal uso só é possível em uma língua consolidada,
ou seja, sem a perspectiva de que novos valores lingüísticos sejam introduzidos, sendo tal
fator um elemento complexo de ser verificado uma vez que a língua não é estável, ou seja,
está em constante processo de mudança devido a fatores socioculturais.
Análise – a análise das proposições constitui a principal tarefa numa definição.
Segundo Wisdom (1931 apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 243), há três
tipos de análise: a análise material em que “A é descendente de B, significa que A é filho de
B”; a análise formal como em “O rei da França é calvo” que equivale a “há um ser, e um
que é calvo, que é rei da França” e que é calvo; estando estas duas num mesmo nível do
discurso; enquanto a terceira, a análise filosófica, estaria para um certo sentido, como por
exemplo, quando dizemos A floresta é muito densa, estabelece-se um tipo de análise chamada
direcional, uma vez que busca uma adesão para o sentido da identidade construída – um
conjunto de árvores muito próximas, que numa situação como uma possível aventura, alerta
para a dificuldade em adentrá-la. Assim, vemos que toda análise que foge puramente ao
“convencional, pode ser considerada uma argumentação quase-lógica, utilizando quer
definições” (como no exemplo apresentado) “quer um procedimento por enumeração, que
limita a extensão aos elementos relacionados” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002,
p. 244).
Tautologia – fugindo ao caráter argumentativo, uma definição analítica pode ser
criticada como asserção fraca, chegando a ser considerada uma tautologia; de acordo com
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), como uma convenção lingüística que nada nos ensina
enquanto uso empírico, mas que à medida que ligadas a uma teoria, pode proporcionar visões
originais. Assim, o caráter tautológico assume outra perspectiva em que a “afirmação se
integra a um sistema dedutivo, pode ser considerada analítica e necessária e já não parece
ligada à eventualidades de uma generalização empírica” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 244).
Há casos em que a tautologia pode aparecer informalmente de forma evidente e
voluntária tornando-se uma figura
23
, dependendo da capacidade do locutor para interpretá-la.
A definição Pai é sempre pai (adjetivo) é um exemplo de figura tautológica chamada silepse
oratória (uma das palavras está no sentido próprio e a outra, no sentido figurado). Identidades
23
Modo de expressar-se que se afasta do uso comum para obter mais força e adequação (REBOUL, 2000, p.
248).
84
como esta definição, anteriormente citada, só pode ter significado argumentativo quando
aplicada numa situação concreta para que receba o significado que lhe convém.
Vejamos alguns exemplos de proposições tautológicas:
(31) “Um tostão é um tostão.”
(32) “Entramos e não entramos no mesmo rio.”
(33) “É-me caro ser amado, contanto que não me custe caro.”
(34) “Quando vejo tudo o que vejo, penso o que penso.” (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, p. 246-247).
Em (31) temos uma tautologia aparente, considerada uma figura, requer do ouvinte
uma boa vontade para interpretá-la mediante um contexto. Em (32), há a negação de um
termo por si próprio, logo, estabelece-se uma contradição. No exemplo (33), emprega-se uma
figura chamada antanáclase, que consiste em tomar um mesmo termo em dois sentidos um
pouco diferentes (homonímia). Por último, em (34), usa-se um pleonasmo para valorizar algo.
2.6.3.1.5- Regra da justiça
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), a regra da justiça diz respeito à
aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados numa mesma
categoria, sendo possível reduzir parcialmente a identidade de seus elementos de modo a
tratá-los como intercambiáveis segundo um ponto de vista, ou seja, esses elementos podem
ser trocados de lugar para confirmar a retidão do julgamento. Sobre isso, Perelman e
Olbrechts Tyteca afirmam que “A regra de justiça reconhece o valor argumentativo daquilo a
que um de nós chamou justiça formal, segundo a qual, os “seres de uma mesma categoria
essencial devem ser tratados do mesmo modo” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 248). Vejamos como isso ocorre na parábola bíblica O filho pródigo:
(35) “Há tantos anos que te sirvo, sem nunca transgredir mandamento algum teu e
tu nunca me deste um cabrito, para me regalar com os meus amigos. Mas tanto que
veio este teu filho, que gastou tudo quanto tinha com prostitutas, logo lhe
mandaste matar o novilho gordo!”
85
“Então lhe disse o pai: ‘Filho, tu sempre estás comigo, e tudo que é meu é
teu. Era, porém, necessário que houvesse banquete, e festim, pois que este teu
irmão era morto, e reviveu: tinha-se perdido e achou-se’.” (Texto 64)
Em (35), verificamos na atitude do pai, quando o filho que nunca se afastou do lar
reclama justiça, a aplicação da regra da justiça ao considerar que o filho pródigo por ter
demonstrado ser de personalidade instável, enquanto o irmão mais centrado, precisava de
maior atenção, perdoando-o ao recebê-lo de volta com festas. Ao tomar essa atitude, o pai
procura mostrar ao irmão contrariado que agiu conforme a necessidade de cada filho e caso
fosse ele o filho pródigo, por ele também faria o mesmo. Dessa forma, vimos que é necessário
considerar os precedentes dos objetos a serem julgados para estabelecer coerência na conduta,
não ignorando a individualização do ser humano, alertando para o difícil critério de julgá-los
intercambiáveis.
2.6.3.1.6- Argumentos de reciprocidade
Os argumentos de reciprocidade são usados no tratamento de duas situações
correspondentes, mas aqui ocorre diferente das situações em que é aplicável a regra da justiça,
pois requer a noção de simetria por assimilação. Essa simetria facilita a identificação entre
atos, acontecimentos e seres, enfatizando um determinado aspecto essencial na argumentação.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, esses argumentos são “baseados nas relações
entre o antecedente e o conseqüente de uma mesma relação, parecem, mais do que quaisquer
outros argumentos quase-lógicos, ser ao mesmo tempo formais e fundamentados na natureza
das coisas” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 251). Segundo esses autores, a
simetria é presumida pela própria qualificação das situações.
Na parábola O monge mordido, um monge salva do afogamento um escorpião que lhe
pica, argumentando que assim como o escorpião, ele agiu de acordo com a sua natureza.
(26) “– Mestre, deve estar muito doente! Por que foi salvar esse bicho ruim e
venenoso? Que se afogasse! Seria um a menos! Veja como ele respondeu à sua
ajuda, picou a mão que o salvara! Não merecia sua compaixão!
O monge ouviu tranqüilamente os comentários e respondeu:
– Ele agiu conforme a sua natureza, e eu conforme a minha.” (Texto 80)
86
Em (26), pela explicação do monge verifica-se duas situações correspondentes: o
escorpião pica por instinto, assim como o monge também o salva por instinto. Essa
argumentação com base no lugar da essência, visto em 2.6.2.2.3.4, explicita-se no texto, no
resultado, por meio da fala do personagem “Ele agiu conforme a sua natureza, e eu conforme
a minha” (uma reação verbal).
2.6.3.1.7- Argumentos de transitividade
A transitividade é uma propriedade formal que permite passar da afirmação de que se
existe a mesma relação entre a e b e entre b e c, à conclusão de que tal relação existe entre a e
c e, implicando relações de igualdade, de superioridade, de inclusão, de ascendência. Quando
essa transitividade é contestável ou quando a sua afirmação exige adaptações, precisões, o
argumento de transitividade fica com estrutura quase-lógica. A máxima Os amigos de nossos
amigos são nossos amigos é um exemplo que demonstra a inclusão na transitividade, uma vez
que inclui os amigos de nossos amigos noutro grupo de amigos, ou seja, no nosso.
A transitividade pode sugerir diferentes esquemas argumentativos como no exemplo
anterior, podendo ser uma relação de igualdade, de pertencer a uma mesma classe, de uma
simetria.
A implicação por meio do silogismo em que há conseqüência lógica é uma relação de
transitividade bastante atrativa para a argumentação quase-lógica, podendo também o
silogismo usar relações de igualdade e da parte como todo.
Na parábola, O califa acontece a transitividade numa relação de implicação em que há
um encadeamento numa relação de igualdade na argumentação de um pobre tecelão, tentando
não perder sua choupana para um rei que mandara demoli-la.
(36)
Foram procurar o tecelão, em nome do vizir, e ofereceram-lhe ouro:
“– Não, guardai o vosso dinheiro – respondeu mansamente o pobre homem; –
com a minha oficina não tenho necessidade de nada mais; e quanto à minha casa,
não posso desfazer-me dela. Foi nela que nasci, foi nela que morreu meu pai.
Nela pretendo morrer também.” (Texto 60)
87
Em (36), na fala do tecelão “Foi nela que nasci, foi nela que morreu meu pai. Nela
pretendo morrer também”, embora não apareça uma construção por meio de um silogismo
formal, em que o elemento a “Foi nela que nasci”, não mantém uma relação de simetria com b
“nela morreu meu pai”, mas b mantém com c “nela pretendo morrer também”, julgamos
assim haver transitividade. Além disso, há uma relação de inclusão em que o personagem se
coloca no direito de morrer no mesmo lugar que morreu o pai, fazendo desse desejo um
argumento contra a imposição do vizir.
2.6.3.1.8- Os argumentos de comparação
A comparação é um dos caminhos mais usados pela argumentação, ela ocorre quando
se cotejam vários objetos para avaliá-los um em relação ao outro, sendo necessário não
confundi-la com os argumentos de identificação quanto ao raciocínio por analogia. A
comparação pode se dar por oposição (o pesado e o leve), por ordenamento (mais pesado do
que) e por ordenação quantitativa (pesagem por unidade de peso).
“Sempre que há comparação entre termos não-integrados num sistema, os termos da
comparação, seja ela qual for, interagem um sobre o outro” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 276). Isso pode ocorrer no nível absoluto do termo padrão, influindo sobre
o valor dos termos pertencentes à mesma série e que lhe são comparados. Também a
comparação pode aproximar dois termos considerados imensuráveis.
É importante observar que são “as características do termo de referência que conferem
a uma série de argumentos o seu aspecto particular” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 278).
A parábola Os três grãos de milho relata a história de um mancebo que herdara dos
pais um sítio e um paiol abarrotado de milho, mas não soube conservá-los devido à preguiça.
Um dia, de forma desdenhosa, concede a um pobre três grãos de milho. Porém o tempo passa
e esse vai até o rapaz para pagá-lo. Vejamos:
(37) “Vede agora o que fiz com três grãos de milho e perseverança, no trabalho, e
comparai com o que vos acontece, não obstante haverdes possuído terras vastas e
um grande paiol atestado de cereal.
88
Não soubestes aproveitar os bens que herdastes e, mais uma vez, com a vossa
desgraça, fica confirmado que a fortuna, seja embora incontável, cede à miséria
quando é mal dirigida.
O ouro foge por entre os dedos como a água, e a terra é um cofre, seguro, e
maravilhoso, e restitui centuplicado o benefício que se lhe faz.” (Texto 52)
Nessa parábola há o cotejo entre uma situação passada, quando o rapaz herdou a
fortuna do pai “Não soubeste aproveitar os bens que herdaste”, com a situação atual “à
miséria”, envolvendo, para isso, uma comparação entre os dois momentos, sendo que o atual é
resultado do comportamento dele no passado. Mas também, compara-se, sobretudo, as
atitudes do herdeiro, que foi de negligência, que não valorizou a herança recebida com a do
rapaz que foi perseverante, que deu valor ao pouco que tinha. Há assim, uma avaliação entre o
comportamento dos dois personagens que fundamenta o ensinamento para o qual o texto
argumenta na moral explícita na conclusão.
2.6.3.1.9- Argumento pelo sacrifício
O argumento pelo sacrifício pertence à argumentação por comparação, freqüentemente
usada para alegar o sacrifício a que se está disposto a sujeitar para obter certo resultado. Ao
usar esse argumento, deve-se colocar em questão o valor atribuído àquilo por que se faz o
sacrifício para que tal argumento adquira o status desejado, pois se o objeto do sacrifício e seu
valor é fraco, o prestígio daqueles que se sacrificaram será diminuído. Assim, a força dos
sacrifícios aceitos, no decorrer de uma ação, é responsável pela obtenção dos efeitos
desejados.
Ao usar o argumento do sacrifício como forma hipotética, numa dada situação, o
locutor estará evidenciando o valor dado a alguma coisa ou a algum fato. No entanto, é
necessário verificar se tal sacrifício não é supérfluo, porque a situação não o exige, ou
ineficaz, porque não permitiria chegar ao objeto almejado.
Para avaliar o sacrifício a ser utilizado deve-se ter como parâmetro uma relação de
pesagem através de técnicas de avaliação pelo sacrifício acarretado, tais como: do erro pela
sansão, pela réplica ou pelo remorso; do mérito pela glória ou pela recompensa; da perda pelo
desgosto.
O argumento do sacrifício pode ser também aplicado nas relações de meio com o fim,
sendo o meio um sacrifício, um esforço, um sofrimento justificado por esse fim. Também esse
89
argumento é transparente quando se demonstrar forças solicitadas para que se consiga realizar
algo.
Concluindo, vemos que a argumentação pelo sacrifício permite avaliar como em
qualquer argumento de comparação, um dos termos pelo outro, aproximando e estabelecendo
uma interação entre eles.
Na fábula “O passarinho preso” o argumento pelo sacrifício conclui-se no final da
narrativa.Veja:
(9) “Na gaiola empoleirado
Um mimoso passarinho
Trinava brandos queixumes
Com saudades do seu ninho.
[...]
Da minha sorte j’agora
Queixas não torno a fazer:
Antes gaiola que um tiro,
Antes penar que morrer.” (Texto 47)
Após uma comparação entre sua vida, preso a uma gaiola e à vida dos demais pássaros
que vivem livres, o pássaro protagonista, diante do fato – aves mortas, julga valer a pena o
sofrimento (o sacrifício) de ficar preso, sendo que assim a sua vida é preservada. Esse
argumento fundamenta-se no princípio de que o meio justifica o fim, ou seja, ficar preso,
garante-lhe a vida.
2.6.3.2- Argumentos baseados na estrutura do real
Segundo Perelman Olbrechts-Tyteca, “os argumentos fundamentados na estrutura do
real valem-se dessa estrutura para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e
outros que se procura promover” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 297).
Normalmente esses juízos são suficientes para que a argumentação se estabeleça no uso
comum da linguagem.
O estudo que propomos sobre esses argumentos não visa uma descrição objetiva do
real, mas sim identificar aspectos ligados ao real que podem ser tratados quer como fatos,
90
quer como verdades, quer como presunções. Eles serão vistos em duas perspectivas: os
argumentos que se aplicam a ligações de sucessão e os que se aplicam a ligações de
coexistência.
2.6.3.2.1- Argumentos que se aplicam a ligações de sucessão: esses argumentos têm por
função unir um fenômeno às suas conseqüências ou a suas causas.
2.6.3.2.1.1- O argumento pragmático
O argumento pragmático é aquele que possibilita verificar um ato ou um
acontecimento conforme as conseqüências favoráveis ou desfavoráveis que ele provoca, ou
seja, os seus efeitos. Nele a transferência para a causa, do valor das conseqüências, ocorre
mesmo sem ser pretendido. Mas, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, “quem é acusado de
ter cometido uma má ação pode esforçar-se por romper o vínculo causal e por lançar a
culpabilidade em outra pessoa ou nas circunstâncias” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 303). Assim transferirá o juízo desfavorável para a causa da ação.
Na fábula A mona e o filho, verificamos claramente esse argumento. Vejamos:
(23) “E um dia o abraçou com tal contentamento
Que no apertão fagueiro ele exalou alento.
Tal (me diz a experiência) é o zeloso amante;
Por amor importuna, enfada a cada instante;
O que quer para si do mesmo sol recata,
Por amor atormenta, e até às vezes mata.” (Texto 22)
O argumento pragmático ilustrado em (23) é utilizado para desqualificar o
comportamento da mãe, em que a causa da ação, a excentricidade da mãe mona em querer
proteger o filho de tudo e de todos, é uma atenuante para justificar o juízo dado a ela no final
da narrativa, como alguém que age errado por ter matado o próprio filho por amor.
Em geral, o argumento pragmático só pode se desenvolver a partir do acordo sobre o
valor das conseqüências. Mas ele não se atém a transferir uma dada qualidade de
91
conseqüência para a causa. Ele possibilita passar de uma ordem de valores a outra, permite
concluir pela superioridade de uma conduta, partindo da utilidade de suas conseqüências ou
do mesmo modo que ela não deve ocorrer ou é inferior.
2.6.3.2.1.2- O argumento do desperdício
O argumento do desperdício aplica-se a ações já iniciadas e que não gozam de sucesso,
no entanto, sugere-se que sejam continuadas para que não se perca o que já está feito,
enfatizando assim a sucessão dos acontecimentos, desprezando a causa do fracasso. Consiste,
então, na idéia de não só perder o que já está concluído, mas, sobretudo, servir-se dele.
Segundo Perelman e Olbrechts-Tyeca, “Numa concepção otimista do universo, a idéia
do desperdício incentiva a completar estruturas, integrando nelas aquilo cuja ausência é
sentida como algo que se deixou escapar” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.
319). Mesmo que não se saiba exatamente o que foi desperdiçado, isso aguça a questão da
ignorância e desperta para a importância do conhecimento, incentivando assim a curiosidade,
o estudo, a pesquisa, tratando-se de questões mais racionais. Eis assim o valor deste
argumento.
A fábula O cavaleiro envolve uma situação particular em que um cavaleiro romano
que, para esconder sua calvície, usa uma cabeleira, mas ao ser pego de surpresa por um vento,
vê-se como motivo de zombaria, vejamos:
(38) “O cavaleiro, que não carecia de espírito, vendo rirem dele milhares de
espectadores, soube atalhar a zombaria, com uma piada muito hábil. “Não é de
espantar, disse, que esses falsos cabelos não tenham querido ficar numa cabeça
de há muito desdenhada pelos cabelos naturais”.
Quando alguém rir de ti, trata de destruir a impressão provocada pondo de
teu lado a razão.” (Texto 35)
Como vimos, já que não teve sucesso com o uso da cabeleira, o cavaleiro, ao ser
ridicularizado, não desperdiça esse momento para sair daquela situação quase irremediável.
Assim, ele não despreza a causa da zombaria, a cabeleira que usava, ao contrário, vale-se
dela, como argumento para sair daquela situação.
92
2.6.3.2.1.3- O argumento da direção
Este procedimento difere do anteriormente analisado no que diz respeito à ligação
causal que se estabelece entre o fim e os meios em que esses, os meios, devem ser
considerados como procedimento das etapas. Perelman e Olbrechts-Tyteca colocam que “cada
vez que uma meta pode ser apresentada como um ponto de referência, uma etapa numa certa
direção” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 321), esse argumento pode ser
utilizado. Essa perspectiva leva a uma divisão do problema para buscar uma certa solução,
que pode parecer, à primeira vista, inadequada, mas, ao mesmo tempo pode aplicar a conduta
do argumento do desperdício, dando assim ênfase à primeira etapa. Nessa seqüência de
etapas, uma decisão anterior suscita a posterior, logo há a preocupação com uma etapa
precedente, uma vez que desta anterior parte a ação. Há, dessa forma, uma relação de
dependência entre as etapas. Assim conclui-se que “o argumento de direção visa sempre
tornar uma etapa solidária de desenvolvimentos posteriores” (PERELMAN; OLBRECHTS-
TYTECA, 2002, p. 323). Esse argumento implica por um lado “a existência de uma série de
etapas direcionadas a certo objetivo, o mais das vezes temido, e de outro, a dificuldade, se não
a impossibilidade, de deter-se, uma vez que tomamos o caminho que leva a ele”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 324). Veja um trecho usado por Perelman
para ilustrar o argumento da direção:
(39) “Cada concessão feita pelo inimigo e ao espírito de facilidade acarretava uma
outra. Esta não era mais grave do que a primeira, mas as duas, lado a lado,
formavam uma covardia. Duas covardias reunidas formavam a desonra.”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 327).
Em (39), há uma seqüência de ações (concessões feitas ao inimigo) que causam um
juízo final (a desonra).
2.6.3.2.1.4- O argumento da superação
Esse argumento baseia-se no mesmo fundamento do argumento da direção
diferenciando-se em dois aspectos fundamentais: “insiste na possibilidade de ir sempre mais
93
longe num certo sentido, sem que se entreveja um limite nessa direção, e isso com o
acréscimo contínuo de valor” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 327). Assim
uma característica contrária ao argumento de direção é peculiar no argumento da superação
que é ir ao cabo de uma ação sem temer as conseqüências. Normalmente essa força
argumentativa é conseguida por meio das figuras hipérbole e litote, sendo que a primeira
consiste em lançar brutalmente um juízo, enquanto a outra, de forma contrária, consiste em
enfraquecer expressivamente um pensamento.
Veja na fábula abaixo a ocorrência desse argumento à medida que o camundongo não
mede a conseqüência de suas ações – a morte.
(40) “Um camundongo caiu numa marmita aberta e cheia de sopa; sufocado pela
banha, e já no ponto de morrer, disse ‘comi bem, bebi, fartei-me de delícias, é
tempo de morrer’.
Homem, acabarás como esse camundongo glutão, se não souberes renunciar a
doçuras funestas.” (Texto 27)
Nesse texto, as ações do camundongo: “comi”, “bebi” e “fartei-me” não visam à
morte, como seria se indicassem uma direção, e sim são ações que, para ele, são mais
importantes (têm um valor maior) do que a conseqüência, ou seja, esse valor (comer
fartamente) supera a conseqüência que é a morte. Esse valor estabelecido pela trama narrativa
é revertido em outro (a gula, um defeito humano, até mesmo considerado um pecado) tomado
pelo narrador, na categoria comentário, como exemplo a não ser seguido, ou seja, um
antimodelo
24
.
2.6.3.2.2- Argumento que se aplica às ligações de coexistência
Esses argumentos têm por função unir uma pessoa a seus atos, um grupo aos seus
indivíduos que dele fazem parte e, em geral, uma essência a suas manifestações. Essas
ligações unem duas realidades desiguais, sendo uma mais fundamental, mais explicativa do
24
Ver em 2.6.3.3.3.
94
que a outra. Um dos tipos de argumento de coexistência mais usado na argumentação é o
argumento por autoridade.
2.6.3.2.2.1- Argumento de autoridade
Esse argumento consiste em utilizar atos ou juízos de alguém ou de um grupo como
meio de provar uma tese. Assim esse argumento, valendo-se da reputação da autoridade
inscrita, obterá sucesso em prol de seu prestígio, sendo assim necessário os valores asseridos
estarem de acordo com os princípios do auditório envolvido.
A fábula indiana Os coelhos e os elefantes, já usada antes como exemplo
25
, narra a
história de um grupo de coelhos que foi esmagado pelas patas de elefantes que foram tomar
banho no lago onde os pequenos bichos viviam às margens. O sábio coelho mais velho usou a
imagem da lua para resolver o problema por ser ela uma divindade para os seres daquele
reino, considerada assim, uma autoridade.
2.6.3.3- Ligações que fundamentam a estrutura do real
A estrutura do real fundamenta casos particulares por meio do argumento pelo
exemplo, pela ilustração, pelo modelo ou antimodelo e casos mais gerais por meio do
raciocínio por analogia e pela metáfora. Vejamos, a seguir, essas bases de argumentação.
2.6.3.3.1- Argumentação pelo exemplo
A argumentação pelo exemplo aplica-se a situações em que se quer fundamentar um
ponto de vista tomando para isso alguém ou algum acontecimento como exemplo, buscando
25
Reveja 2.6.2.2.1 (valor absoluto), fundamentado pelo lugar de pessoa em 2.6.2.2.3.5.
95
assim, chegar à conclusão do que se alega. Ela tende a mostrar uma situação particular dentro
de outra situação particular, sendo que nesse processo, o caso particular tomado assume a
concepção de estatuto de fato, fortalecendo a argumentação. Enquanto tomado como
exemplo, poderá sofrer variações, sendo considerado uma figura e um modelo, em que o
primeiro apóia-se numa regularidade já estabelecida e o último numa imitação.
Na fábula A águia e a tartaruga, a moral acerca da vaidade e da ambição é construída
por meio da ação da tartaruga, que vivia prometendo aos pássaros dar-lhes como recompensa
uma pérola em troca de levarem-na para passear pelos ares. Depois de ter feito mil promessas
enganosas à águia, a tartaruga acabou morta nas garras da ave, servindo esse exemplo
particular àqueles que usarem dos mesmos artifícios para conseguirem algo.
(2) “Então, bem alto nos céus e já agonizante, ela deplora demasiado tarde a
realidade de seus temerários desejos e diz: que meu funesto destino ensine aos que
se entendiam com uma existência sossegada que não se atinge a grandeza sem
sofrer terríveis punições.” (Texto 23)
Nessa fábula, o argumento por exemplo está explícito na estrutura superficial da
narrativa, na categoria resultado, em forma de reação verbal, na fala da personagem tartaruga
“Que meu funesto destino ensine aos que se...punições”. Mas, normalmente as fábulas não
trazem explícita essa finalidade de serem tomadas como exemplo. Essa finalidade é,
implicitamente posta ao usar o texto em situações específicas, havendo assim, uma
aproximação entre a trama narrada e a moral (ensinamento) desejada.
2.6.3.3.2- Argumento pela ilustração
A ilustração difere do exemplo por ter como fundamento reforçar a adesão a uma regra
por meio de casos particulares, enquanto que ele, o exemplo, é usado para fundamentar uma
regra. Dessa forma entendemos que a ilustração eleva o valor de uma regra, enquanto o
exemplo é a base de uma regra.
Com relação à aproximação da ilustração com a comparação, vimos que “assim como
o exemplo, permite passar de um caso particular a outro, a comparação, quando não é uma
96
avaliação, costuma ser uma ilustração de um caso por meio de outro, sendo ambos
considerados aplicações de uma mesma regra” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 412).
(41) “São as dificuldades que revelam os homens. Assim, quando sobrevém uma
dificuldade, lembra-te de que Deus, como um professor de ginásio, fez-te
enfrentar um jovem e rude parceiro.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 412).
A regra implícita em (41) é a relação de provação que as dificuldades têm com Deus e
que o jovem tem com o mestre, podendo ser confundida com uma analogia; no entanto, por
serem de uma mesma natureza, provação pedagógica, assume o caráter de ilustração.
2.6.3.3.3- Argumentação pelo modelo e pelo antimodelo
O modelo é um argumento na medida em que se torna uma norma, ele é mais que um
exemplo, é algo digno de imitação. São Paulo, ao dizer “Sede meus imitadores como eu sou
do Cristo”, coloca-se como modelo. Já na máxima “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu
faço”, temos um antimodelo. Ao contrário do modelo, o antimodelo indica o que não se deve
imitar.
Como exemplo de antimodelo, encontramos a argumentação explícita na fábula “O
camundongo”. Vejamos novamente esse texto:
(40) “Um camundongo caiu numa marmita aberta e cheia de sopa; sufocado pela
banha, e já no ponto de morrer, disse ‘comi bem, bebi, fartei-me de delícias, é
tempo de morrer’.
Homem, acabarás como esse camundongo glutão, se não souberes renunciar
a doçuras funestas.” (Texto 27)
97
O antimodelo tomado como técnica argumentativa está explícito no comentário do
narrador por meio de uma expectativa “Homem, acabarás como esse camundongo glutão [...]
funestas”. Por essa fala, o narrador quer dizer para não seguirmos o exemplo do camundongo,
ou melhor, não imitemos o camundongo para não termos o mesmo fim que ele teve, a morte
em conseqüência da gula.
2.6.3.3.4 O raciocínio por analogia
O raciocínio por analogia ocorre quando há ponto de semelhança entre coisas de
naturezas diferentes, fazendo parte “de uma série, identidade-semelhança-analogia, da qual
constitui o elemento menos significativo. Seu único valor seria possibilitar a formulação de
uma hipótese que seria verificada por indução” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2002, p. 423). Assim a analogia é vista, enquanto argumentação, como uma similitude de
estruturas, tendo como fórmula A está para B assim como C está para D, em que os termos A
e B são chamados de tema, sobre os quais repousa uma conclusão e os termos C e D são
chamados de foro e servem para assentar, determinar o raciocínio. Vejamos em:
(42) “Assim como os olhos dos morcegos são ofuscados pela luz do dia, a
inteligência de nossa alma é ofuscada pelas coisas mais naturalmente evidentes.”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 424).
Em (42), o foro é “olhos do morcego, a luz do dia”, do domínio do concreto (físico),
usado para provar, o tema “a inteligência de nossa alma, as coisas mais naturalmente
evidentes”, é abstrato, é o que se quer provar. Observa-se que o tema, referente a realidades
espirituais, é heterogêneo em relação ao foro, mas a relação que se quer provar entre A e B é
semelhante à relação conhecida entre C e D, a relação é de ofuscamento. Assim, essas
relações são semelhantes, não idênticas, relação esta chamada de analogia.
Esse tipo de argumento aproxima-se muito do exemplo, sendo necessário alertar para o
que os distingue: a analogia se estabelece na relação de semelhança entre coisas e valores de
naturezas diferentes, como mostra o exemplo acima; enquanto o exemplo busca ilustrar
comportamentos, valores ligados às mesmas regras em situações que se aproximam.
98
Nas parábolas, a técnica de argumentação por analogia se estabelece por meio de
elementos presentes na estrutura superficial do texto com elementos da exterioridade, de
forma indutiva. Podemos perceber isso de forma um pouco menos complexa nas parábolas
bíblicas, pois essas foram explicadas por Jesus aos discípulos. Vejamos um trecho da parábola
do semeador, e a respectiva explicação:
(14) “Eis aí que saiu o que semeia a semear. E quando semeava, uma parte da
semente caiu junto da estrada, e vieram as aves do céu, e comeram-na. Outra,
porém, caiu em pedregulho, onde não tinha muita terra: e logo nasceu porque
não tinha altura de terra; mas saindo o sol se queimou e porque não tinha raiz se
secou. [...] Outra, enfim caiu em terra boa e dava fruto, havendo grãos que
rendiam a cento por um, outros, a sessenta, outros a trinta.” (Texto 63)
Jesus, ao explicar essa parábola aos seus discípulos, disse que:
Todo aquele que ouve a palavra do reino, e não a entende, vem o mau, e arrebata o
que se semeou no seu coração: este é o que semeou a semente junto da estrada. Mas
o que recebeu a semente no pedregulho, este é o que ouve a palavra, e logo a recebe
com gosto: porém, ele não tem em si raiz, antes é de pouca duração [...] E o que
recebeu a semente em boa terra, este é o que ouve a palavra e a entende, e dá fruto
[...] (MATEUS, 13. 19-23).
Pela explicação, entendemos que a semente é a palavra de Deus, o pedregulho é a
pessoa de coração fechado, o que ouve a palavra de Deus, mas não a entende, não a acolhe;
enquanto a boa terra é a pessoa de coração aberto, que ouve a palavra de Deus, a compreende
e age de acordo com ela. Assim, podemos construir, implicitamente, construções como:
Assim como a semente cai em terra boa e dá muitos frutos, a palavra de Deus numa pessoa de
coração aberto, lhe fará ter boas ações, divulgar o bem; ou Assim como a semente, quando cai
em pedregulho e não dá bons frutos, a palavra de Deus não entra no coração de uma pessoa
fechada, logo essa pessoa não fará coisas boas, não divulgará o bem.
2.6.3.3.5- Argumentação por metáfora
Em seus estudos Perelman e Olbrechts-Tyteca definem, segundo os mestres da
retórica, a metáfora como um tropo, ou seja, “uma mudança bem sucedida de significação de
99
uma palavra ou de uma locução” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 453) e
acrescentam, segundo Dumarsais, que pela metáfora “transforma-se, por assim dizer, a
significação própria de um nome para outra significação, que só lhe convém em virtude de
uma comparação que existe na mente” (DUMARSAIS, 1824 apud PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 453). Mas, contrapondo-se a essa idéia de comparação
mental, Perelman e Olbrechts-Tyteca apresentam a concepção de Richards sobre a metáfora, a
qual rejeita a idéia de ela ser uma comparação mental, insistindo com veemência “no caráter
vivo, matizado, variado, das relações entre conceitos expressos de uma só vez pela metáfora,
a qual seria muito mais interação do que substituição” (RICHARDS, 1948 apud
PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002 , p. 443).
Partindo dessa concepção de interação entre os termos, a metáfora é então concebida
na argumentação como uma analogia condensada, resultante da fusão de um elemento do foro
com o elemento do tema. Explicando essa concepção, vejamos o exemplo de metáfora abaixo
em que a relação por analogia é completamente explicitada:
(43) “O que a velhice é para a vida, a noite é para o dia. Logo, diremos a noite
velhice do dia e a velhice noite da vida” (ARISTÓTELES, 1944 apud
PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 453).
Vemos, por esse exemplo, a construção da metáfora através de uma analogia explicita
“a noite velhice do dia e a velhice noite da vida” através da condensação da analogia A está
para B (foro – a noite do dia), em que A é a noite e B é o dia, assim como C está para D (tema
– A velhice da vida),em que velhice é C e vida é D de uma expressão “A de D” para designar
C. Esse é apenas um exemplo de realizar a fusão entre tema e foro que numa argumentação, a
metáfora pode surgir como forma de tornar aceitável a analogia e, raramente, o tema e o foro
são expostos independentemente um do outro. No entanto, as metáforas mais ricas são aquelas
que apresentam desde o início, a união dos termos superiores do tema e do foro (A e C),
deixando não-expressos os termos inferiores (B e D) como poderia ocorrer formando a
metáfora “A velhice é a noite”.
Vejamos um exemplo de metáfora apresentada na parábola “O seixo rolado”.
100
(15) “Atirado na praia, entre algas e sargaços, lá se ficou, puído e roliço, uniforme
e indistinto, na multidão anônima de outros seixos rolados, que talvez foram
também, um dia, outras tantas pontas de rocha, soerguidas e inacessíveis,
desafiando o próprio céu, no orgulho de um ideal, e agora, de degradação em
degradação, aparadas as saliências, roídas as arestas, redondos e iguais, passivos e
dóceis, rolam no fluxo e refluxo, constante e invariável, da maré morna, da
salsugem amarga [...] Somos todos, na vida, seixos rolados.” (Texto 74)
Para explicar a metáfora explicitada no final da parábola, podemos recorrer a uma
hipótese de analogia, cujos termos superiores estão presentes nessa metáfora: Assim como
somos moldados, na vida real, pelas dificuldades, o seixo rolado é moldado pelas águas.
Sendo, nessa analogia, A e B o tema (somos – o homem – moldados pelas dificuldades), em
que A é somos – o homem – e B é dificuldades; enquanto C e D é o foro (o seixo rolado é
moldado pelas águas, em que o C é seixo rolado e o D é águas. Desprezando os elementos B e
D, julgados inferiores, temos a metáfora formada pelos elementos A e C – “somos, na vida,
seixos rolados”.
101
3- APÓLOGOS, FÁBULAS E PARÁBOLAS: CONFLUÊNCIAS
E DIVERGÊNCIAS
3.1- Caracterização dos gêneros apólogo, fábula e parábola
Os gêneros apólogo, fábula e parábola enquanto textos literários atendem às
características dadas por Frege e Wellek que são o caráter ficcional e a função expressiva ou
pragmática que eles apresentam. Enquanto ficção, eles procuram retratar uma realidade e não
simplesmente impor uma condição de verdade. Esse caráter ficcional é construído de forma
alegórica nos três gêneros, uma vez que expressam uma idéia por meio de imagens
metafóricas ou simbólicas, usando para isso o sentido translado figurado, cuja interpretação é
feita pelo público leitor (auditório), tendo em vista os acordos supostos pelo locutor (produtor
do texto).
Ao mesmo tempo em que são ficcionais, os gêneros apólogo, fábula e parábola
também “valem por si mesmos” enquanto estruturas verbais compostas por uma linguagem
ambígua, opaca, servindo a uma determinada função. Assim, concluímos que enquanto texto
literários, esses gêneros se constroem internamente por meio de uma ficção descritiva da
realidade (Frege), tomando para isso uma linguagem própria com base no uso corrente
cotidiano (Wellek). No entanto, como elemento estruturador dessa linguagem em
funcionamento está o discurso, construído pela estrutura verbal, a narração, que nesses
gêneros é o “ponto de partida para o funcionamento discursivo” (TODOROV, 1980, p. 39)
que se encerra com uma moral explícita ou implícita, caracterizando um tipo argumentativo.
Assim, temos, na perspectiva travagliana, um cruzamento de tipos, ou seja, narração com
102
função argumentativa, texto narrativo por uma tipologia e texto argumentativo “stricto sensu
por outra.
Um dos elementos importantes na distinção entre os gêneros apólogo, fábula e
parábola, segundo os diferentes autores, é o tipo de personagem. Alguns deles afirmam de
forma categórica que os apólogos são protagonizados por objetos, as fábulas por animais e as
parábolas por seres humanos. Outros já dizem que “quase sempre são [...]” ou
“principalmente são [...]” assim definidos os personagens nesses gêneros. Essa aparente
tranqüilidade na classificação desses gêneros se desfez inteiramente quando montamos o
corpus, porque achávamos que encontraríamos números que justificassem a classificação feita
pelas teorias de natureza didática, no entanto, isso não se confirmou. Ao investigarmos tal
fato, usamos uma classificação mais criteriosa sobre os tipos de personagens mais comuns em
cada um desses gêneros. Apresentamos a seguir, o quadro com os resultados encontrados. Em
seres fictícios incluímos personagens tais como: fada, anjo, valores (bem, mal, princípio
moral, interesse material), sentimentos (demência, amor, bondade, fio da caridade).
Tabela 1 – Tipos de personagens
Tipos de Personagens
Seres animados
Seres inanimados
Gêneros
Pessoas
Nº %
Animais
Nº %
Total
Nº %
Plantas
Nº %
Objetos
Nº %
Seres fictícios
Nº %
Total
Nº %
Apólogos
Total: 20
4 20
4 20
8 40
3 15
6 30
3 15
12 60
Fábulas
Total: 100
22 22
71 71
93 93
3 3
1 1
3 3
7 7
Parábolas
Total: 100
72 72
15 15
87 87
3 3
2 2
8 8
13 13
Inicialmente, queremos pontuar que para classificar os textos do corpus como apólogo,
fábula ou parábola utilizamos a classificação a priori dada pela comunidade discursiva, pela
sociedade, pela cultura.
De acordo com os resultados apresentados, não há unanimidade nos tipos de
personagens em cada gênero, há sim uma tendência para os tipos de personagens usados em
cada um deles, o que não nos parece suficiente para afirmar, como faz a maioria dos autores,
que a distinção entre esses gêneros é devida aos tipos de personagens. Mesmo nas fábulas em
103
que 71% dos personagens são animais e nas parábolas 72% são pessoas, não é possível uma
distinção do gênero, tomando como referência somente esse elemento. Nos apólogos, os
dados obtidos (30% dos personagens são objetos) deixam ainda mais instável esse fator
distintivo, normalmente usado para esse gênero. Isso ficou marcante ao encontrarmos um
mesmo texto sendo classificado ora como um gênero, ora como outro. Como exemplo temos
os textos “A Panela de Ferro e a Panela de Barro”, “O Carvalho e a cana”, classificados como
apólogos por alguns autores e como fábulas (MILLET, 1957) por outros. Dois outros textos
nos chamaram a atenção, a “Fábula das cotovias” e o “Apólogo dos chapéus”. O primeiro,
embora no título traga o nome fábula, inicia-se com “Mui judicioso é o apólogo que se conta
das cotovias [...]”, encontramo-lo como apólogo, em um site, o que nos levou a incluí-lo no
corpus dos apólogos. Já o segundo, Apólogo dos chapéus, encontramo-lo num livro de
parábolas do autor Afrânio Peixoto, mas que devido à classificação já estabelecida no título,
achamos pertinente colocá-lo também no corpus dos apólogos. Outro exemplo de texto
encontrado que nos chamou a atenção foi “O Soldadinho de chumbo”, também denominado
como apólogo. Mas esse texto não faz parte do nosso corpus devido à classificação que lhe é
atribuída, tradicionalmente, como conto de fadas.
Talvez a explicação para esse caráter “flutuante” do gênero apólogo, principalmente
com a fábula, esteja em sua origem. La Fontaine, ao reinventar a fábula também apresentou
dificuldades para denominá-la. Assim, também ele tinha uma preocupação com a definição
desse gênero, demonstrando isso no prefácio da coletânea de 1668: “O apólogo é composto de
duas partes [...] o corpo é a fábula, a alma é moralidade” (COELHO, 2000, p. 165). Nesses
termos, segundo Nelly Coelho, La Fontaine inicialmente denomina a espécie literária como
apólogo, dividindo-o em duas partes: narrativa e moral, em que a primeira tem a função
fabular, que etimologicamente significa narrar em forma de fábulas, contar fábulas, falar algo;
enquanto a segunda, tem a função de expressar o significado simbólico da história contada.
No entanto, por tradição, o autor rotula esse gênero como fábula.
Também encontramos, durante a coleta do corpus, um texto, “Árvores” (esse nome foi
dado por nós, para identificá-lo no corpus, pois não apresenta título), cuja origem é o livro dos
Juízes (um dos livros que compõem a Bíblia) numa compilação feita por Sérgio Millet.
Segundo esse autor, o livro dos Juízes contém as histórias do que se passou com o povo de
Israel, no qual, explica Millet: “Entremeiam o texto histórico alguns apólogos cheios de
sabedoria. O que aqui figuram entre as fábulas, em virtude de sua forma característica e
comportar um ensinamento moral” (MILLET, 1957, p. 51). Por esse prefácio colocado antes
do texto, o autor justifica o fato de ter incluído o texto “Árvores” numa compilação de
104
fábulas, quando diz “em virtude de sua forma característica e por comportar um ensinamento
moral”. Ele não explica o que vem a ser a “forma característica”, entendemos se tratar do
caráter narrativo, fabular, também referido por La Fontaine. Todavia este texto devia ser
colocado no corpus das fábulas por se encontrar numa compilação de fábulas, nós o
consideramos como apólogo devido à classificação inicial dada por Millet e pelas
características comuns apresentadas aos demais textos que encontramos classificados como
apólogos. Por mais esse fato apresentado, confirmamos o caráter flutuante do gênero apólogo.
Assim, por essas perspectivas, identificamos duas características comumente dadas ao
apólogo: o caráter moralizante e a estrutura narrativa, o que o aproxima da fábula e da
parábola; quanto aos tipos de personagens, há uma tendência para os seres inanimados, como
vimos no corpus (60%).
3.2- A superestrutura narrativa dos gêneros apólogo, fábula e parábola
Inicialmente analisamos as características que definem os gêneros apólogo, fábula e
parábola como tipos narrativos, levando em consideração as partes ou categorias da
superestrutura da narrativa história proposta por Travaglia (1991). Essa superestrutura, como
verificamos no capítulo sobre a estrutura da narrativa, engloba as categorias das
superestruturas propostas por Van Dijk (1990 apud TRAVAGLIA, 1991) e Adam (1985 apud
TRAVAGLIA, 1991) e também outras que julgamos não ser necessário explicitar. Nossos
estudos revelaram na análise alguns fatos que nos pareceram consistentes e significativos a
respeito das categorias que compõem os textos do nosso estudo. Os resultados obtidos podem
ser observados na tabela 2 (p. 105).
A primeira categoria, a introdução, que pode ser composta pelo resumo e/ou pelo
anúncio não foi encontrada em nenhum dos textos observados. Isto é uma característica dos
três gêneros e, portanto, não os diferencia.
A categoria cenário, contexto ou situação e a categoria orientação estão presentes
nos três gêneros quase que de forma praticamente idêntica. Dos textos do gênero apólogo, 20
(100%) apresentam cenário e orientação. Dos textos fábulas, 29 (96,7%) apresentam cenário
e apenas 1 (3,3%) não apresenta cenário; quanto à orientação, 26 (86,6%) apresentam e 4
(13,4%) não. Dos textos do gênero parábola, 29 (96,7%) têm cenário e orientação e 1 (3,3%)
105
não têm. Vejamos a seguir, exemplos de cenário e orientação nas três categorias: apólogo
(exemplo 34), fábula (exemplo 35) e parábola (exemplo 36).
Tabela 2 – Categorias da superestrutura narrativa
Gêneros
Categorias da
superestrutura
narrativa
Apólogo
X / 20
%
Fábula
X / 30
%
Parábola
X / 30
%
Anúncio
-
-
-
Introdução
Resumo
-
-
-
20 100
29 96,7
29 96,7
Orientação
20 100
26 86,6
30 100
Complicação 20 100 30 100 30 100
Resolução 20 100
30 100 30 100
Estado 10 50 3 10 2 6,7
Evento
6 30 10 33,3 23 76,7
Trama ou ação
Resultado
Reação verbal 4 20 17 56,7 5 16,7
Avaliação
10 50 9 30 19 63,3
Expectativa
- 1 3,3 -
Comentário
Explicação
2 10 17 56,7 4 13,3
Coda
- - -
Moral
2 10 4 13,3 1 3,3
Epílogo
Fecho - - -
Cenário / contexto ou
situação
Orientação propriamente
d
i
ta
(4) “Após o café da tarde, sobre a mesa da varanda.” (Texto 1)
(21) “Uma velha, que sofria dos olhos, mandou chamar um médico mediante
salário.” (Texto 21)
106
(29) “Um mercador de Bagdá, chamado Ali Cógia, chegou à idade madura tão
comprometido com os negócios que não tivera tempo para realizar a peregrinação
à Meca, à qual estão obrigados todos os bons muçulmanos.” (Texto 51)
Observamos que o cenário e a orientação se apresentam, quase sempre, juntos,
justificando o fato de alguns escritores, como MOISÉS (1973 apud TRAVAGLIA, 1991),
colocarem os elementos personagens, tempo, espaço (lugar) dentro da orientação, os quais, na
estrutura proposta por Travaglia (1991), correspondem ao cenário.
A categoria trama ou ação, considerada fundamental nas narrativas do tipo história
foi encontrada nos três gêneros por meio da complicação e resolução, como era de esperar,
com 100% nos três gêneros já que são obrigatórias e pelo elemento resultado com diferenças
de um gênero para o outro. Nessa categoria do resultado, houve maior ocorrência de evento /
acontecimento nas parábolas com 23 textos (76,7%) e reações verbais, nas fábulas, com 17
textos (56,7%); enquanto nos apólogos, o resultado apareceu de forma mais diversificada: em
4 textos (20%) em forma de a reação verbal; em 6 textos (30%), em forma de eventos; e em
10 textos (50%), em forma de estado, porém apresentados por meio de uma reação verbal.
Vejamos um exemplo desse fato:
(4) “E a Xícara, definhando, respondeu num fio de voz:
__
Sem essa, convencido! Se não fosse eu, tu não terias a oportunidade de ficar
aí fazendo pose de sábio! [...]” (Texto 1)
Apesar de em (4) a Xícara reagir verbalmente, o seu estado (“definhando”) é mostrado
no comentário do narrador, e o estado do Bule (“convencido, fazendo posse de sábio”) é
explicitado na fala dela. Esse dado confirma a hipótese de que nos apólogos há uma
competição entre qualidades (estado dos seres). Esse fato também ocorreu nos demais casos
que classificamos como estado.
Nas fábulas, verificamos 3 textos (10%) com o resultado por meio do elemento
estado, 10 textos (33,3%) com evento e, em proporção substancial, 17 textos (56, 7%) com
reação verbal. Isso confirma o caráter particular (do preferível) visto nos tipos de argumentos.
Vejamos, este fato em:
107
(44) “É povo separado, eu bem conheço,
Diz a primeira rã, porém receio
Que o boi expulso do reino numeroso
Refugiar-se venha fugitivo
Nos ocultos recantos deste lago
E com seus pés pesados nos esmague
Deste modo o furor raivoso dele
Compreenderá também as nossas vidas.” (Texto 33)
Como vimos em (44), a rã, em sua fala, prevê o final, ou seja, as conseqüências que
sofrerá toda a sua comunidade.
Por último, nas parábolas, 5 (16,7%) apresentam reação verbal, em 2 (6,7%) ocorreu
estado e, de forma expressiva, em 23 (76,7%) dos textos o resultado foi por meio de evento.
(29) “Depois de abraçar o menino, o califa mandou que o conduzissem à casa e
deu-lhe uma bolsa com cem moedas de ouro, e que declarassem aos pais que a
educação do menino corria por sua conta dali por diante.” (Texto 51)
Sobre a categoria comentários descobrimos dados bastante relevantes para os gêneros
em análise, sendo eles observados num quadro geral e também, subdivididos em avaliação,
expectativa, explicação.
Dos textos do gênero apólogo, 12 (60%) apresentam comentários explícitos na fala do
narrador / enunciador e na fala dos personagens divididos em 10 textos (50%) do tipo
avaliação (exemplo 17), e 2 textos (10%) do tipo explicação (exemplo 42). Veja:
(17) “O Sol disse então ao vento que a gentileza e a amizade eram sempre mais
fortes que a fúria e a força.” (Texto 19).
(10) “Ocorre o mesmo com os seres humanos. Basta observar e comprovar.
Quando uma pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa;
ao contrário, quando se busca com sinceridade os pontos fortes dos outros,
florescem as melhores conquistas humanas.” (Texto 6)
108
No exemplo (17), a avaliação é feita por meio do personagem, enquanto que em (10),
há uma explicação, pelo narrador do texto ao comparar as ações dos personagens com as dos
seres humanos, expondo os valores positivos e negativos.
Com relação ao comentário do tipo expectativa, não o encontramos em nenhum texto
do gênero apólogo. Também em 8 textos (40%) não apareceu nenhum dos três tipos de
comentário. Observamos que em 5 textos (56,3 %), não há comentário explícito na fala do
narrador e das personagens, mas, de certa forma, ele aparece na avaliação em forma de moral,
estabelecida pelo produtor do texto. Vejamos tal fato em:
(45) “Cada qual com o seu igual. Desse nosso provérbio parece foi tomado o
doutrinal apólogo das panelas, uma de barro outra de cobre, levadas pelo rio
abaixo pela força da cheia.” (Texto 3)
Nesse texto, a moral está no começo e não no final como é de costume.
Dos textos do gênero fábula, 26 (86,7%) apresentam comentário, sendo 9 (30%) com
avaliação e 17 (56,7%) com explicação. O comentário expectativa apareceu em 1 (3,3) três
fábulas (10%) não apresentam nenhum tipo de comentário.
Enquanto nos apólogos os comentários apareceram mais na fala do narrador e do
personagem, na fábula eles são apresentados, quase sempre, pelo produtor do texto,
substituindo o texto proverbial mais esperado (moral explícita) ou por uma avaliação, ou
explicação ou expectativa (tipo mais raro) com valor de uma moral. Vejamos a seguir,
exemplo de avaliação (21), explicação (18) e expectativa (40):
(21) “As pessoas desonestas em geral não pensam que sua cobiça depõe contra
elas.” (Texto 21)
(18) “Esta fábula dá brados
Contra aqueles insolentes
Que por delitos fingidos
Oprimem os inocentes.” (Texto 37)
109
(40) “Homem, acabarás como esse camundongo glutão, se não souberes renunciar
a doçuras funestas.” (Texto 27)
Dos 3 textos (10%) sem nenhuma espécie de comentário 2 (6,65%) apresentam moral e
1 (3,3%) não apresenta.
Dos textos do gênero parábola, 23 (76,7%) apresentam comentários, sendo 19
(63,3%) do tipo avaliação (exemplo 37), 4 (13,3%) com explicação (exemplo 35) e nenhum
texto com expectativa.
(37) “Não soubeste aproveitar os bens que herdastes e, mais uma vez, com a vossa
desgraça, fica confirmado que a fortuna, seja embora incontável, cede à miséria
quando é mal digerida.” (Texto 52)
(35) “Mas o pai lhe replicou: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo que é meu é
também teu. Cumpria-nos, todavia, rejubilarmo-nos e nos alegramos, porque teu
irmão estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi encontrado.” (Texto 64)
Nos dois textos exemplificados acima o comentário aparece na fala dos personagens,
mas, em geral, nos textos analisados, o comentário é feito mais pelo narrador.
Dos 7 textos sem comentários (23,3%), somente 1 (3,3%) apresenta moral. Isso leva-
nos a entender que ela esta explícita nos comentários quando este aparece, quer por meio da
avaliação, quer por meio da explicação, e, quando também não há comentários, a moral está
diluída na trama, como também ocorreu em algumas fábulas. Vejamos um exemplo desse
fato:
(46) “Já pensei. Em minha juventude, resolvi conhecer a mulher perfeita.
Atravessei o deserto, cheguei a Damasco, e conheci uma mulher espiritualizada e
linda; mas ela não sabia nada das coisas do mundo. Continuei a viagem, e fui a
Isfahan; lá encontrei uma mulher que conhecia o reino da matéria e do espírito,
mas não era uma moça bonita. Então resolvi ir até o Cairo, onde jantei na casa de
uma moça bonita, religiosa e conhecedora da realidade material. E por que não
casaste com ela? – Ah, meu companheiro! Infelizmente ela também procurava
um homem perfeito.” (Texto 79)
110
Da última categoria, o epílogo ou conclusão, realizada em forma ou de coda, ou de
moral ou de fecho, somente encontramos a moral, mesmo assim, com baixa ocorrência. Nos
textos do gênero apólogo, a moral ocorreu em 2 textos (10%); nas fábulas, que se esperava
maior ocorrência, apareceu em 4 textos (13,3 %) e nas parábolas, em um único texto (3,3%).
Como já dissemos na análise da categoria comentários, a moral pode estar implícita na
avaliação, na explicação ou mesmo diluída na trama. Vejamos exemplo da categoria
conclusão por meio de uma moral nos três gêneros: apólogo (47), fábula (44) e parábola (48):
(47) “Moralidade dessa fábula explica-se com o provérbio português: “Quem quer
vai, quem não quer manda”.” (Texto 4)
(44) “Os males públicos recaem sobre o povo.” (Texto 33)
(48) “Em terra de cego, quem tem um olho anda vendo coisas.
Quando algo é percebido como verdade, o que é diferente parece mentira.”
(Texto 76)
Como dissemos anteriormente, quando analisamos a categoria comentários, vimos
que a moral pode estar diluída tanto nos resultados, como nas explicações e até mesmo na
trama, o que justifica termos encontrado uma baixa ocorrência de textos com moral explícita.
Também julgamos que ela ocorre de acordo com a intenção do locutor/usuário do texto,
atendendo assim uma situação específica de uso. Veja isso na fábula “A raposa e as uvas”,
tomada em duas versões:
(49) “Uma raposa estava com muita fome. Foi quando viu uma parreira cheia de
lindos cachos de uva. Imediatamente começou a dar pulos para ver se pegava as
uvas. Mas a latada era muito alta e, por mais que pulasse, a raposa não as
alcançava.
– Estão verdes – disse, com ar de desprezo.
E já ia indo seguindo o seu caminho, quando ouviu um pequeno ruído.
Pensando que era uma uva caindo, deu um pulo para abocanhá-la. Era apenas
uma folha e a raposa foi-se embora, olhando disfarçadamente para os lados.
Precisava ter a certeza de que ninguém percebera que queria as uvas.
Também é assim com as pessoas: quando não podem ter o que desejam,
fingem que não o desejam.” (ALMEIDA, 1994, p. 114).
111
(11) “Com avidez, colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as
uvas estavam muito verdes!”
“Moral: a frustração é uma forma de julgamento como qualquer outra.”
(Texto 50)
De acordo com os resultados encontrados na análise da superestrutura dos gêneros
apólogo, fábula e parábola, comprovamos que eles têm em comum, ou seja, como
semelhança, o fato de estarem sempre necessariamente vinculados ou constituídos pelo tipo
narrativo e pela espécie história (TRAVAGLIA, 2002). Como superestrutura narrativa, eles
não apresentam introdução (anúncio e/ou resumo), apresentam cenário, contexto ou situação
(quase de forma unânime). A trama ou ação aparece em 100% dos casos, sendo esta
fundamental para caracterizá-los como narrativas, na perspectiva de estrutura superficial, a
qual serve como argumento para uma conclusão. Porém, dentro dessa categoria, verificamos
que esses gêneros se distinguem pelo elemento resultados. No apólogo há maior ocorrência
de estado, na fábula, há predominância da reação verbal, enquanto na parábola predomina o
evento.
Os três gêneros também se distinguem, se diferenciam na categoria comentários. No
apólogo predomina a avaliação, às vezes por meio da fala do narrador, às vezes na fala do
personagem; na fábula há maior ocorrência de explicação, quase sempre por meio do
produtor do texto; e na parábola predomina também a avaliação por meio do narrador.
Com relação à conclusão, pelo que observamos na análise, é o elemento em que
culmina o caráter argumentativo “stricto sensu” dos gêneros apólogo, fábula e parábola, e
raramente se apresenta explicitamente em forma de moral, nem mesmo nas fábulas como era
de se esperar, conforme conceitos apresentados para caracterizar esse gênero no item 2.5.1.2.
Percebemos que a conclusão, como já dissemos na análise dos resultados, apresenta-se
implícita quer na trama, nos resultados ou nos comentários, sendo assim necessária a
participação do leitor (público alvo) para recuperá-la, tendo em vista a função sócio-
comunicativa desses gêneros.
3.3- A superestrutura argumentativa dos gêneros apólogo, fábula e parábola
Quando passamos a verificar as propriedades que os gêneros apólogo, fábula e parábola
absorvem em sua composição discursiva, classificamos esses textos como argumentativos,
112
tendo em vista uma intenção comunicativa do locutor enquanto enunciador, considerando
para isso, a proposta de Travaglia (2002) que afirma que esses gêneros são textos
argumentativos, observando, além dos objetivos desse enunciador, também a posição do
alocutário (leitor / recebedor do texto). Esse alocutário na situação de uso dos gêneros em
estudo, é considerado como alguém que não concorda com o locutor, ou pelo menos alguém
que deve aderir a um preceito ou princípio mesmo que, a priori, não discorde dele. Logo esses
gêneros consolidam o tipo argumentativo stricto sensu. Dessa forma, passamos a defender
que esses gêneros não podem ser caracterizados simplesmente como tipos narrativos, pois
nessa perspectiva, o interlocutor se instaura como um mero assistente, espectador não
participante, que apenas toma conhecimento de fatos, enquanto que nesses gêneros, apólogo,
fábula e parábola, o que se busca é sua adesão e, assim, a narrativa funciona como argumento
Sob os moldes da argumentação sustentada pela conduta dialética (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2002), considerando as propriedades (contexto sócio-histórico – e
ideológico), apresentamos nos próximos itens os dados obtidos.
3.3.1- Objeto de acordo – base para a argumentação
Em primeiro lugar analisamos os tipos de acordo (item 2.6.2) de que parte a
argumentação em apólogos, fábulas e parábolas. Os resultados estão consubstanciados na
tabela 3 (p. 113).
Antes de explicitarmos os dados expostos na tabela 3, queremos esclarecer que embora
os lugares da qualidade e os lugares da quantidade sejam distintos do lugar da essência, da
existência, da pessoa e da ordem, não se deve interpretar pelo quadro que esses lugares sejam
subdivisões daqueles. O que queremos evidenciar no quadro é que os lugares da qualidade e o
da quantidade se constroem em conjugação com o da essência, o da existência, o da pessoa e
o da ordem.
Nos apólogos, verificamos que apenas 4 dos textos (20%) têm como acordo a
Categoria Relativa ao Real, tendo todos como ponto de acordo a verdade. Os demais textos,
16 (80%) têm como acordo a Categoria Relativa ao Preferível, sendo 15 textos (75%)
fundamentados nos valores, tendo como base o lugar da qualidade, especificamente, no lugar
da essência; e 1 texto (5%) fundamentado no lugar da quantidade.
113
Vejamos trechos de textos que nos levaram a fundamentá-los, respectivamente na
categoria relativa ao Real (exemplo 50) ou na categoria Relativa ao Preferível (exemplo 51).
Tabela 3 – Tipos de objeto de acordo
Gêneros
Tipos
de acordo
Apólogo
X / 20
Nº %
Fábula
X / 30
Nº %
Parábola
X / 30
Nº %
Fatos - - 6 20
Verdades 4 20 13 43,33 23 76,7
Cat. Relat. Real
Presunção - - -
Essência - 3 10 -
Existente 1 5 1 3,33 -
Ordem - - -
L. Quant.
Pessoa - - -
Essência 15 75 5 16,65 -
Existente - 2 6,65 -
Ordem - - -
Valores
L. Qual.
Pessoa - 1 3,33 -
Essência - - 1 3,3
Existente - - -
Ordem - 2 6,65 -
L. Quant.
Pessoa - - -
Essência - 1 3,33 -
Existente - - -
Ordem - 2 6,65 -
Cat. Relat.ao preferível
H. valores
L. Qual.
Pessoa - - -
Legenda: Cat. = categoria / H. = hierarquia / L. Qual. = Lugar da Qualidade / L. Quant. = Lugar da Qualidade.
(50) “Transcorridos os anos, a primeira árvore, forrada de singelos panos, recebeu
Jesus das mãos de Maria de Nazaré, servindo de berço ao mais alto Dirigente do
Mundo.
A segunda, trabalhando com pescadores, na forma de barca valente e pobre,
foi veículo de que Jesus se utilizou para transmitir sobre as águas muitos dos seus
ensinos.
114
A terceira, por fim, convertida apressadamente numa cruz, seguiu com o
Mestre para o monte, onde fincada, ereta e valorosa, sente o Seu coração repleto de
amor, mesmo que torturado, indicando o verdadeiro caminho do reino dos céus.”
(Texto 5)
(51) “– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que
esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima [...] – Ora, agora, diga-me, quem é
que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância?
Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a
caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.”
(Texto 2)
No exemplo (50) o acordo é fundamentado num acontecimento, até então um fato – as
três árvores são usadas para servir ao menino Jesus “a primeira árvore [...] Mundo” / “A
segunda [...] ensinos” / “A terceira [...] amor”, logo a utilidade de cada uma assume um valor
de verdade, na sociedade cristã.
No exemplo (51), primeiramente mostra a agulha exibindo o seu valor de utilidade e
depois, no outro trecho, a linha é quem faz isso. Assim, percebe-se que o acordo se estabelece
no valor, tendo como base a qualidade de cada ser, delimitando a essência (a função) de cada
um.
Nas fábulas, verificamos que o objeto de acordo fundamenta-se na categoria relativa
do real com 13 textos (43,33%) seus em verdades, como exemplo desse tipo de acordo,
vejamos em (2) um trecho da fábula A Águia e a Tartaruga:
(2) “Então, bem alto nos céus e já agonizante, ela deplora demasiado tarde a
realização de desejos e diz: que meu funesto destino ensine aos que se entendiam
com uma existência sossegada que não se atinge a grandeza sem sofrer terríveis
privações.” (Texto 23)
Nesse texto a argumentação recorre à verdade filosófica de que a ambição pode levar a
caminhos tortuosos, os quais nem sempre valem a pena. De uma verdade resulta a moral do
texto, às vezes explícita, às vezes não.
Na categoria relativa ao preferível, encontramos 17 textos (56,7%) do gênero fábula.
Dentro dessa categoria, 12 textos (40%) fundamentam-se nos valores e 5 (16,7%), na
115
hierarquia de valores. Os textos que se fundamentam nos valores estão assim distribuídos:
com base no lugar da quantidade, temos pelo lugar da essência 3 textos (10%), pelo existente,
1 texto (3,3%), enquanto que pelo lugar da qualidade, temos 5 textos (16,7%), pelo existente
2 textos (6,7%) e 1 texto (3,3%) pelo lugar da pessoa. Os textos fundamentados na hierarquia
de valores distribuem-se da seguinte forma: com base no lugar da quantidade temos 2 textos
(6,65%) pelo lugar da ordem e com base no lugar da qualidade temos 1 texto (3,3%) pelo
lugar da essência e 2 textos (6,65%) pelo lugar da ordem. Embora a fundamentação dos textos
do gênero fábula se divide entre valores e hierarquia de valores, é relevante o ponto de acordo
específico no lugar da essência (29,98%) e da ordem (13,3%). Para ilustrar essa ocorrência do
lugar da essência, vejamos a seguir em (52) trecho da fábula O chacal azul:
(52) “Fazei por isso com que seja descoberto; e para isso eis o que há de fazer:
Quando for sol posto, vós todos soltareis ao mesmo tempo grandes uivos perto
dele; então ele, levado do instinto da sua raça, também uivará ao ouvir aquelas
vozes. Executaram eles assim, e surtiu efeito. Pois: / É sempre difícil superar a
tendência natural que cada qual tem. Se um cão é feito rei, deixará porventura de
roer sapato? / Enfim, sendo reconhecido pela voz foi morto por um tigre.” (Texto
43)
No contexto de (52), um chacal que acidentalmente ficou azul ao cair em uma talha
com anil, quis aproveitar-se disso para tornar-se governador da floresta, no entanto, foi
desmascarado quando posta à prova a sua natureza “[...] vós todos soltareis ao mesmo tempo
grandes uivos perto dele; então ele, levado do instinto da sua raça [...] efeito”. Vimos, nessa
situação o lugar da essência fundamentando a argumentação que é explicitada logo a seguir na
avaliação feita pelo narrador “É sempre difícil superar a tendência natural que cada qual tem”,
sendo essa a moral da fábula.
Nas parábolas, verificamos a predominância de acordos dentro da categoria do real
com 29 textos (96,7%), sendo 23 textos (76,7%) com base em verdades (exemplo 37), 6
textos (20%) com base em fatos (exemplo 35):
(37) “Não soubestes aproveitar os bens que herdastes e, mais uma vez, com a vossa
desgraça, fica confirmado que a fortuna, seja embora incontável, cede à miséria
quando é mal dirigida.” (Texto 52)
116
(35) “Mas o pai lhe replicou: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo que é meu é
também teu. Cumpria-nos, todavia, rejubilarmo-nos e nos alegrarmos, porque teu
irmão estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi encontrado.” (Texto 64)
Em (37), na categoria dos comentários há uma avaliação feita pelo narrador, tomada
como verdade “fica confirmado [...] é mal dirigida”, que estabelece o caráter argumentativo
em forma de uma moral.
Em (35), temos um trecho de uma parábola bíblica, que traz dentro da categoria
comentários uma explicação dada por Cristo como ensinamento, sendo tomada, portanto,
como um fato no mundo cristão, que pela transcendência no tempo, tornou-se uma verdade.
Na Categoria Relativa ao Preferível, encontramos 1 texto (3,3%) com base em valores
fundamentado pelo lugar da qualidade, especificamente na essência. Retomemos (26) para
confirmarmos o lugar da essência:
(26) “O monge ouviu tranqüilamente os comentários e respondeu:
– Ele agiu conforme sua natureza, e eu de acordo com a minha.” (Texto 80)
Confirmamos que em “Ele agiu [...] a minha”, a explicação do personagem diz que
cada ser age de acordo com sua essência, com as características que lhe são natas, ou seja,
cada ser tem o seu valor.
De acordo com os dados analisados, há semelhanças e diferenças significantes entre os
gêneros apólogo, fábula e parábola quanto aos tipos de acordos que fundamentam o processo
argumentativo. Nos apólogos, a base dos acordos está na categoria relativa ao preferível, em
que 16 textos (80%) apesar de veicularem valores de ordem universal, têm como alvo um
auditório particular, uma vez que são usados em situações específicas e/ou para público
específico. Assim como nos apólogos, a base dos acordos nas fábulas também está na
categoria do preferível com 17 textos (56,67%), sobretudo em valores 12 textos (40%), no
lugar da essência com 8 textos (26,7%). Esses dados nos revelam que o acordo com base na
categoria relativa ao preferível fundamentado em valores é um aspecto de semelhança entre
os gêneros apólogo e fábula, responsável por aproximá-los, sendo talvez esse um dos motivos
dos apólogos, às vezes, serem denominados de fábulas. A parábola se distingue do apólogo e
da fábula no tipo de acordo ao apresentar 29 textos (96,7%) fundamentados na categoria
relativa ao real, com base, sobretudo em verdades, tendo como alvo um auditório universal.
117
3.3.2- Técnicas argumentativas
Sabemos que ao discernir um esquema argumentativo, estamos interpretando as
palavras do texto, suprindo as ligações faltantes, logo estamos estabelecendo hipóteses mais
ou menos prováveis. Às vezes, isso nos faz ficar indecisos quanto à forma de algum processo
argumentativo, principalmente considerando que o nosso objeto de estudo são textos
literários, cuja linguagem é opaca e subjetiva. Mas, diante de tal fato, procuramos em nossa
análise, lembrar sempre o caráter pragmático dos gêneros apólogo, fábula e parábola,
visualizando-os em situações de uso, tentando assim, assimilar o processo argumentativo
implícito na trama verbal. Nessa perspectiva, sempre buscamos identificar o discurso que
fundamenta, que dá sustentação e impulsiona o processo argumentativo, margeado “pelas
propriedades”, elementos da exterioridade, estabelecidos pelos grupos sociais.
No capítulo teórico, fundamentamos, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), as
técnicas argumentativas divididas em dois tipos de argumentos: argumentos quase-lógicos e
argumentos baseados na estrutura do real. Vejamos, a seguir, os dados encontrados, por meio
da tabela 4 (p. 119).
Antes de apresentar os dados obtidos, queremos esclarecer que, ao analisarmos os
apólogos, fábulas e parábolas, vimos que a comparação, nestes textos, não ocorre nos moldes
propostos por Perelman e Olbrechts-Tyteca, descrita no item 2.6.3.1.8 cujos fundamentos
estão nos argumentos quase-lógicos. Na teoria desses autores, a comparação se ampara na
lógica, na medida, na pesagem, que acontece quer seja por oposição (o pesado e o leve),
ordenamento (o que é mais pesado que) ou ordenação quantitativa (a pesagem por meio de
unidades de peso). No entanto, durante nossas análises, verificamos que nos gêneros em
estudo, quando ocorre comparação, “o que se mede é sempre empírico”, como afirma Reboul
(1998, p. 183), ou seja, uma construção a partir da observação e não de um postulado. Não é
possível calcular a relação entre dois termos – maior, mais bonito, uma estrutura assim a
realidade não impõe, sendo impossível mensurar. Sendo assim, consideramos o argumento
pela comparação e o argumento do sacrifício, que se fundamenta numa comparação, dentro de
nossas análises, como pertencentes à estrutura do real.
Nos apólogos, a argumentação ocorre de forma unânime na estrutura do real (100%
dos textos) predominando o argumento da comparação, na estrutura interna dos textos.
Encontramos o argumento da comparação em 16 textos (80%), como no exemplo 51, e em 3
textos (15%) há o argumento do sacrifício (exemplo 53) que é um tipo de comparação em que
se estabelece o valor de uma coisa, ou de uma causa, através dos sacrifícios que são ou serão
feitos por ela.
118
No caso de (51) o sacrifício é da agulha que segundo diz o alfinete “Cansa-te em abrir
caminho para ela e ela é que vai gozar da vida”, ela se sacrificando em função da linha.
Vejamos:
(51) “– Anda, tola. Cansa-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da
vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei essa história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a
cabeça:
– Também eu tenho servido de agulha para muita linha ordinária.” (Texto 2)
Em (53) há uma comparação entre o valor das funções desempenhadas por cada ser,
buscando decidir quem é mais importante, mas sem haver o sacrifício nem da caneta nem da
enxada. Vejamos:
(53) “Eu sou a caneta soberba que escreve no tabelião
Eu escrevo pros governos as leis da constituição
Escrevi em papel de linho, pros ricaços e barão
Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição
A enxada respondeu: que bateu vivo no chão,
Pra poder dar o que comer e vestir ao seu patrão
Eu vim no mundo primeiro quase no tempo de adão
Se não fosse o meu sustento não tinha instrução.” (Texto 15)
No apólogo restante, a argumentação ocorre por meio do argumento pragmático: 1
texto (5%).
A predominância dos argumentos por comparação (95%) nos apólogos, considerando
que o argumento pelo sacrifício se fundamenta numa comparação, comprova a característica
de que nesse gênero há sempre uma disputa entre seres, para estabelecer a superioridade de
um em relação ao outro.
Assim como nos apólogos, as técnicas argumentativas verificadas nas fábulas,
predominantemente, se fundamentam na estrutura do real com 27 textos (90%), sendo esse
fato outro aspecto que nos parece aproximar esses dois gêneros.
119
Tabela 4 –Tipos de argumentos
Gêneros
Tipos
de
argumentos
Apólogo
Nº %
Fábula
Nº %
Parábola
Nº %
Contr. e Incomp. - - 1 3,3
Ridículo - 1 3,3 -
Ident. e Def. - - 1 3,3
Analit. Análi. e Taut. - - -
Justiça - 1 3,3 2 6,7
Reciprocidade - 1 3,3 2 6,7
Argumentos
Quase-Lógicos
Transitividade - - 1 3,3
Comparação 16 80 2 6,7 2 6,7
Sacrifício 3 15 1 3,3 -
Pragmático 1 5 8 26,7 -
Desperdício - 1 3,3 -
Direção - - -
Ligações de
Sucessão
Superação - 1 3,3 -
Lig. de
Coexistência
C
Autoridade
-
3 10
-
Exemplo
- 22 73,3 3 10
Ilustração
- - -
Modelo
- - -
Antimodelo
- 1 3,3 -
Analogia
- 1 3,3 17 56,7
Argumentos Baseados na Estrutura do Real
Ligações que fundamentam a
Estrutura do Real
Metáfora - - 1 3,3
Legenda: Contr. e Incomp. = Contradição e incompatibilidade / Ident. e Def. = Identidade e Definição / Analit.
Anali. e Taut = Analiticidade, Análise e Tautologia / Lig. = Ligações.
Obs.: Com relação ao gênero fábula, queremos esclarecer que alguns textos além de apresentarem argumentos
que compõem as Ligações que fundamentam a Estrutura do Real, também apresentaram argumentos das
Ligações de Coexistência e de Sucessão. A presença de mais de um tipo de argumento nas fábulas justifica a
soma das porcentagens ultrapassar 100%.
120
Apoiando-se na experiência, a base da argumentação é o argumento pelo exemplo com
22 textos (73,3%), seguido pela analogia com apenas 1 texto (3,3%) e pelo antimodelo,
também com 1 texto (3,3%). Sob a base do exemplo, os textos fundamentaram-se da seguinte
forma: pelo argumento da autoridade em 3 textos (10%), pelo desperdício em 1 texto (3,3%),
pelo argumento da superação em 1 texto (3,3%), pelo argumento pragmático em 8 textos
(26,7%).
Vejamos uma mostra do argumento pragmático (exemplo 28), o mais recorrente no
gênero fábula:
(28) “Milhões de vozes se erguiam, à madrugada, numa melodia única, suave,
harmoniosa, saudando o astro rei. Uma única voz desafinou e chamou a atenção
de todos, e atraiu os olhares furibundos do leão, do tigre e do leopardo.
Terminado o coro, o rouxinol, de cima de uma árvore, disse à raposa:
– Comadre raposa, que lástima! Por que você desafinou daquele modo?
Ora, meu amigo, se não desafinasse, como é que chamaria a atenção para
mim?” (Texto 49)
Como podemos perceber, em (28) há uma causa (querer chamar a atenção) e uma
conseqüência (desafinar) em que se justifica a ação de desafinar pelo valor que a raposa dá ao
chamar a atenção para si.
Ainda dentro da estrutura do real, 2 textos (6,7%) se fundamentam no argumento de
comparação e 1 texto (3,3%) pelo argumento do sacrifício, o que não representa um fato
expressivo quanto aos tipos de argumentos verificados nesse gênero.
No restante das fábulas, em 3 textos (10%), os argumentos usados são do tipo quase-
lógicos, sendo: 1 (3,3%) pelo ridículo, 1 (3,3%) pela reciprocidade e também 1 (3,3%) pelo
argumento da justiça.
Assim como nos apólogos e nas fábulas, as técnicas argumentativas verificadas no
gênero parábola fundamentaram-se com mais predominância na estrutura do real, sendo
encontrados 23 textos (76,7%) com essa base argumentativa. A analogia foi o tipo de
argumento mais recorrente com 17 textos (56,7%). Mas, esse argumento, como os demais
averiguados, não se encontram na estrutura superficial e interna dos textos, sendo constituído
nos implícitos. Para tal, um dos fatores que nos possibilitou chegar a esse argumento por
analogia e diferenciá-lo do exemplo e da comparação é que quando ela ocorre, são
confrontadas realidades heterogêneas ou, como afirma Greimas (apud REBOUL, 2000, p.
121
186), ela lida com “isotopias” diferentes. Vejamos, um dos raros casos em que a analogia veio
parcialmente explicitada na categoria dos resultados, na fala do personagem:
(54) “Você é como esse anel, uma jóia valiosa e única. E que só pode ser avaliada
por um expert. Pensava que qualquer um podia descobrir seu valor?” (Texto 77)
Nesse trecho da parábola no exemplo (54), a analogia apresenta a seguinte estrutura:
a) foro: Você é como esse anel (termo concreto, do domínio do sensível, o que serve para
provar); b) tema: uma jóia valiosa e única (do domínio espiritual, o que se quer provar).
Normalmente, esses elementos aparecem diluídos na trama, na conclusão, e /ou nos resultados
da estrutura do gênero parabólico, ficando, portanto, na macroestrutura textual.
Ainda na estrutura do real, encontramos 3 textos (10%) fundamentados no argumento
por exemplo (exemplo 55), 2 textos (6,7%) por comparação (exemplo 37) e 1 texto (3,3%)
por metáfora (exemplo 15). Vejamos:
(55) “Evidente exemplo dessa enfermidade humana do juízo é este Brasil. Foi a
maior obra das que Portugal fez no mundo.” (Texto 72)
(37) “Vede agora o que fiz com três grãos de milho e perseverança, no trabalho, e
comparai com que acontece, não obstante haverdes possuído terras vastas e um
grande paiol testado de cereal.” (Texto 52)
(15) “Somos todos, na vida, seixos rolados.” (Texto 74)
Em (55), por via de regra, o Brasil é dado como exemplo de terra desprezível, usando
para isso, a síntese dos interesses de que foi alvo em sua colonização. Em (37) a comparação
se estabelece entre o comportamento do herdeiro e o do pobre homem, cotejando assim,
elementos da mesma espécie. Em (15) temos uma metáfora, sendo ela o resultado de uma
analogia condensada, processo esse explicado no item 2.6.3.3.5.
Nos outros textos do gênero parábola, que foram analisados, a argumentação baseada
nos argumentos quase-lógicos (baixa ocorrência) foi encontrada em 7 textos (23,3%), sendo
122
neles usados os argumentos da incompatibilidade em 1 texto (3,3%), (cf. exemplo 29, página
80); da definição em 1 texto (3,3%), (cf. exemplo 30, página 82); da justiça em 2 textos
(6,7%), (cf. exemplo 35, página 84-85); da reciprocidade em 2 textos (6,7%), (cf. exemplo 26,
página 85) e da transitividade em 1 texto (3,3%), (cf. exemplo 36, na página 86).
Pelos resultados apresentados na tabela 4 e, posteriormente na análise dos resultados,
os gêneros apólogo, fábula e parábola apresentam em comum a argumentação na estrutura do
real. No entanto, dentro dessa estrutura, eles se distinguem pelos argumentos que os
fundamentam. Nos apólogos, a argumentação ocorre, principalmente, por meio da
comparação. Nas fábulas, a argumentação fundamenta-se, principalmente no exemplo, com
argumentos especificados pelas ligações de sucessão e pelas ligações de coexistência,
sobretudo pelo argumento pragmático. Já nas parábolas, há uma ocorrência maior de
argumentos por analogia, argumento esse que também fundamenta a estrutura do real, mas
não ocorre como nas fábulas, uma especificação da argumentação nas ligações de sucessão e
de coexistência, pois não há como nelas uma ligação entre as ações dos personagens na trama
interna, uma vez que a analogia se constrói com elementos da exterioridade.
123
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na perspectiva de cumprir uma função social de natureza comunicativa,
confirmamos a caracterização tradicional dada pela comunidade discursiva de que os gêneros
apólogo, fábula e parábola como textos são de caráter filosófico, didático e doutrinário
geralmente usados para ensinar valores morais (portanto com um fim educativo), seja em
discursos religiosos, (principalmente as parábolas), em discursos didáticos (as fábulas e os
apólogos). Mas, em nossos estudos, verificamos que esses textos cumprem mais que essas
funções tradicionalmente estabelecidas, eles têm, como uma função principal, a
argumentação, pois ao serem usados em situações específicas, o locutor quer ir muito além do
ensinar, ele quer mudar ou estabelecer o comportamento do seu interlocutor.
Dentro dessa perspectiva, verificamos que a estrutura narrativa é um elemento
estruturador, como coloca Orlandi, uma regularidade, mas que sozinha não é capaz de
construir o enunciado, sendo assim, preponderam as propriedades, consideradas por essa
autora como elementos que focalizam a totalidade do discurso em relação às condições de
produção, estando estas, portanto, relacionadas com a exterioridade. Assim, verificamos essas
propriedades como objeto abstrato, composto pela interação verbal entre o enunciador
mediante os acordos estabelecidos na exterioridade do texto, construídos por técnicas
argumentativas, estabelecidas por meio de diferentes argumentos, presentes na macroestrutura
textual.
Verificamos que os acordos na parábola são mantidos na estrutura do real, sobretudo
por verdades, mas que nem sempre visam um auditório universal, são verdades construídas
pela sociedade em um determinado tempo e lugar, baseadas em fatos e de acordo com as
ideologias, podendo assim, também estarem voltadas para um auditório particular. No
apólogo e na fábula, o ponto de acordo se estrutura com base no preferível, sobretudo valores,
124
visando mais especificamente um público particular, ressaltando assim, por meio de virtudes,
valores aceitos por um determinado grupo social, num determinado espaço e/ou época,
enquanto que no apólogo há a oposição entre valores, como o eventual X o duradouro, como
em A agulha e a linha, na fábula há uma explicitação de um único valor, que, para o grupo,
torna-se um valor de verdade, como em O lobo e o cordeiro, cujo valor posto é a justiça.
Quanto às técnicas argumentativas, observamos que os três gêneros são construídos
com base na estrutura do real, estabelecendo com o exterior uma analogia com as virtudes e
com o caráter do ser humano. No entanto, na estrutura interna desses textos eles se
diferenciam nas três técnicas que fundamentam a estrutura do real por meio dos argumentos
pelo exemplo (fábula), pela comparação (apólogo) e pela analogia (parábola).
Nos apólogos, a argumentação é predominantemente sustentada pela comparação
estabelecida na trama, considerando os fatos resultantes de ações observáveis, empíricas dos
personagens. Nas fábulas, predomina o exemplo, sustentado por ações dos personagens que
vão em direção a um fim, e ao longo da trama, essas ações revelam valores negativos como
injustiça, desonestidade criticados pela sociedade; e nas parábolas, há o predomínio da
analogia, embora sempre de difícil percepção, pois essa não se estabelece na estrutura interna
do texto por meio das ações dos personagens, como no apólogo e na fábula e sim com
elementos da exterioridade.
A comparação presente nos apólogos é sempre estabelecida por meio de uma pesagem
entre as virtudes, entre as qualidades de um ser com as do outro, visando determinar quem é
mais importante, melhor que o outro. Essa característica foi encontrada principalmente nas
histórias em que os personagens são seres inanimados, ou seja, em 60% dos textos analisados.
Embora esse percentual não seja tão expressivo, ao colocá-lo junto à base argumentativa
verificada, a comparação, parece-nos poder estabelecer que os textos que se fundamentam
dentro dessas perspectivas são mais genuinamente do gênero apólogo.
Nas fábulas, a base da argumentação é o exemplo e este também é construído por meio
de uma comparação, mas não entre dois seres, como nos apólogos. Essa comparação é
estabelecida por um só ser que se coloca superior a outro(s). A argumentação se edifica na
trama narrativa em que o personagem, visando a um fim, tira proveito do outro, não se
importa com os meios a serem usados. Esse comportamento é tomado como exemplo para
fins argumentativos.
Nas parábolas, a argumentação por analogia é estabelecida por meio da aproximação
das semelhanças entre seres diferentes. A analogia, implicitamente construída, não é de fácil
compreensão, aproximando-se bastante da comparação. Em Afrânio Peixoto pudemos
125
observar com menos dificuldade esse processo argumentativo. Os textos desse autor relatam,
mais nitidamente, uma seqüência de ações cuja função é construir uma descrição de conceitos
abstratos (tema, o que se quer provar – as fraquezas e defeitos humanos) por meio dos
personagens comparados com os seres humanos (que atuam como foro, são fatos concretos).
Diferenciamos da comparação por não haver nas situações retratadas nesses textos uma
relação de medir diferenças, como nos apólogos, ou para tomar como exemplo as diferenças,
como nas fábulas, mas sim uma forma de aproximar semelhanças, sobretudo comportamentais
entre seres diferentes, chegando a uma identificação entre eles.
Como suporte para esses elementos da argumentação, o acordo e as técnicas
argumentativas, como já dissemos no início deste capítulo, estão os elementos da estrutura
narrativa. As semelhanças encontradas entre os gêneros apólogo, fábula e parábola estão nas
categorias cenário, orientação propriamente dita e trama, uma vez que todos as apresentam
basicamente da mesma forma, o que difere é que enquanto nas fábulas e apólogos o discurso é
quase sempre direto, nas parábolas, é quase sempre indireto, o narrador se encarrega de
apresentar os fatos.
Julgamos serem as diferenças encontradas na categoria dos resultados e na dos
comentários, aspectos relevantes na diferenciação desses gêneros. Nos apólogos, verificamos
que os resultados são apresentados mais sob a forma de estado, mesmo sendo por meio de
uma reação verbal (em 50% dos textos), sobretudo nos textos cujos personagens são seres
inanimados, o que mais uma vez nos leva a crer que esse aspecto seja importante para
caracterização do gênero apólogo, o qual nos foi evidenciado tanto pela análise dos acordos e
das técnicas argumentativas como pela análise das categorias narrativas. Nas fábulas, os
resultados são apresentados com maior ocorrência através de uma reação verbal (em 56,7%
dos textos). Já nas parábolas, os resultados são apresentados com uma significante ocorrência
(em 76,7% dos textos) por meio de um evento. Vemos por essa análise que cada um dos
gêneros apresenta uma tendência na categoria dos resultados, sendo esse aspecto uma
peculiaridade que os distingue.
O epílogo ou conclusão também é outro aspecto semelhante, pois, nos três gêneros,
essa categoria fica, normalmente, implícita nos resultados ou nos comentários. Um dado
importante que verificamos é sobre a moral. Normalmente, ao definir as fábulas, diz-se que a
moral aparece explícita na superfície textual. No entanto, verificamos uma baixa ocorrência
de textos com a moral explicitada. Observamos que, normalmente ela ocorre quando o texto é
usado para uma determinada função, podendo haver diferentes morais para um mesmo texto,
como vimos nos textos “A raposa e as uvas”, uma fábula, e em “A verdadeira história dos
126
cegos e o elefante”, uma parábola. Por esse fato, comprovamos o caráter funcional que os
apólogos, as fábulas e as parábolas apresentam, confirmando o estatuto de gêneros, enquanto
discursos argumentativos. Assim, a moral, o principal aspecto argumentativo dos gêneros
apólogo, fábula e parábola, resulta dos acordos e do processo argumentativo. Na fábula, a
argumentação atua mais como uma crítica, apontando para o erro; enquanto que na parábola e
no apólogo, a argumentação atua mais como ensinamentos para a vida, principalmente na
parábola.
Finalizando nossas observações, vimos que um dos elementos que aproxima e/ou
diferencia os três gêneros apólogo, fábula e parábola é o ponto de acordo quando
consideramos o auditório a que se destinam, sendo nessa perspectiva, observado o caráter
pragmático desses gêneros. Enquanto para a parábola está um público mais geral, pois veicula
ensinamentos mais universais, a fábula está para um público mais particular, veiculando um
discurso mais crítico e específico. Já no apólogo, o discurso flutua entre o universal, pois traz
ensinamentos de ordem universal, e o particular, pois normalmente é usado para servir a um
público específico, como vimos na coleta do corpus. Uma vez que o apólogo e a fábula se
aproximam mais, como vimos anteriormente, julgamos ter esses dois gêneros uma afinidade
evidente, sobretudo, tendo em vista a perspectiva de uso. Por ser a fábula entre esses dois
gêneros a que remonta a uma origem mais precisa, e por não raro encontrarmos o apólogo
classificado como fábula, consideramos ser esse uma extensão daquela, mantendo
similarmente uma relação de metonímia e sinédoque. A relação de metonímia seria devido à
aproximação entre os dois gêneros, como vimos em alguns aspectos comuns entre eles, e a
sinédoque, especificamente, estaria no fato de o apólogo conter parte da fábula, a narração e a
moralidade.
Pelos resultados obtidos, confirmamos a caracterização dada, até então, pela
comunidade discursiva aos gêneros apólogo, fábula e parábola como gêneros doutrinários,
caráter esse que os aproxima, podendo ser considerado um critério para distingui-los dos
demais gêneros, no que se refere à regularidade, que diz respeito ao uso. Confirmamos
também nossos objetivos e hipótese de que esses gêneros se aproximam também pelos
aspectos que têm em comum na estrutura narrativa, também vista até então como elemento
que atua na argumentação. No entanto, julgamos que ao estabelecer os aspectos distintivos na
estrutura narrativa desses gêneros, especificamente nos resultados e comentários, encontramos
um critério importante para distingui-los enquanto gêneros narrativos. Com relação ao tipo
argumentativo que nos propomos caracterizar nesses três gêneros, julgamos ter confirmado
que, tendo em vista o caráter doutrinário, eles também são discursos argumentativos, no
127
entanto, podemos considerar que conseguimos ir além desse aspecto até então estabelecido
também pela regularidade, ou seja, pelo fim específico de uso. Assim, confirmamos nossos
objetivos, mediante nossas análises e resultados obtidos, que a argumentação é tão presente
quanto a narração, sendo essa um elemento para que aquela aconteça, e que a moral é o
resultado final do processo argumentativo. Vimos que essa estrutura argumentativa que nos
propomos investigar emerge nos três gêneros por meio dos acordos, estabelecidos pelo
auditório, por meio dos argumentos implícitos na estrutura profunda dos textos, que atuam
como técnicas argumentativas, elementos esses que conseguimos investigar em cada um dos
três gêneros aproximando-os ou diferenciando-os, obtendo assim uma sistematização que
ainda não havíamos encontrado dentro dos estudos sobre esses gêneros, abrindo assim novas
perspectivas para novos estudos acerca dos gêneros apólogo, fábula e parábola enquanto tipos
argumentativos. Nossa contribuição, parece-nos significativa, mesmo que possa ser vista
como modesta por alguns.
128
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133
6- ANEXOS
Anexo A – Listagem do corpus
Anexo B – Listagem do corpus utilizado para levantamento do tipo de personagens
Anexo C – Textos do corpus do anexo 1, usados nos exemplos
134
Anexo A Listagem do corpus
a- Apólogos – texto 1 ao 20
b- Fábulas – texto 21 ao 50
c- Parábolas – texto 51 ao 80
1- A Xícara e o Bule
Disponível em: <http://
www.planeta.terra.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2005.
2- Um Apólogo – A agulha e a linha
ASSIS, Machado. Para gostar de ler: Contos. São Paulo: Ática, v. 9, 1984. p. 59.
3- Apólogo das panelas
4- A fábula das cotovias
COELHO, Latino. Encyclopedia das escolas primarias. In: COELHO, José Maria Latino;
CALDAS AULETE, F. Julio. Lisboa: Imp. Nacional, 1869. Disponível em:
<http://purl.pt/439>. Acesso em: 20 fev. 2005.
5- As três árvores
Adaptação feita da narração do Irmão X, contida no livro Cartas e Crônicas. 3. ed. Rio de
Janeiro: FEB, 1974. p. 12-15. Disponível em:
<http://www.annex.com.br/pessoais/confrariahpe/artigos.htm>. Acesso em: 20 fev. 2005.
6- Assembléia na carpintaria
Disponível em: <http://
www.ibb.org.br/vidanet/outras/msg228.htm>. Acesso em: 20 fev.
2005.
7- O fio da caridade
8- O engenhoso patriota
135
9- Os críticos
10- Os dois poetas
11- O princípio moral e o interesse material
12- A máquina voadora
Disponível em: <
http://geocities.yahoo.com.br/rsuttana/bierceapologos.htm>. Acesso em: 20
fev. 2005.
13- Apólogo dos chapéus
PEIXOTO, Afrânio. Parábolas. São Paulo: Gráfica e Editora Brasileira, (s.d.). 350 p.
14- A enxada e a caneta
Disponível em: <http://cifraclub.terra.com.br/cifras/zico-e-zeca/>. Acesso em: 20 fev. 2005.
15- O carvalho e a cana
16- Os membros e o estômago
17- Árvores (título atribuído neste estudo)
MILLIET, Sérgio. Obras primas da fábula universal – seleção, introdução e notas. São
Paulo: Martins Fontes, 1957. 305 p.
18- O sapato ferrado e a sandália de veludo
CORRÊA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia Nacional.
19- O sol e o vento
Fábula de Esopo, recontada por Dale Ganegie. Como desfrutar sua vida e seus trabalhos. São
Paulo: Editora Nacional, 1987. p. 152-153.
20- Apólogo mineiro
Disponível em: <http://www.fogodepalha.weblogger.terra.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2005.
21- A velha e o médico
22- A mona e o filho
23- A águia e a tartaruga
24- Os coelhos e os elefantes
25- O conselho dos ratos
26- O peixe do rio e o peixe do mar
27- O camundongo
28- Os morangos de inverno
29- Os macacos e os pássaros
30- O lobo a um cão
31- O ladrão e a lanterna
32- O leão e o rato
33- A rã prudente
34- O papagaio e a galinha
136
35- O cavaleiro
36- O corvo e a raposa
37- O lobo e o cordeiro
38- A macaca
39- A dama e as borboletas
40- O ser mais poderoso do mundo
41- As fadas prudentes e as insensatas
42- O macaco e o monstro marinho
43- O chacal azul
44- O rato do campo e o rato da cidade
45- A lagosta
46- A cigarra e a formiga
47- O passarinho preso
MILLIET, Sérgio. Obras primas da fábula universal – seleção, introdução e notas. São
Paulo: Martins Fontes, 1957. 305 p.
48- O elefante e as formigas
49- Os animais saúdam o sol
SANTOS, Nádia; SANTOS, Yolanda Lhullier. (Org.). Lendas, fábulas e apólogos
antologia da literatura mundial. São Paulo: Gráfica e Editora Edigraf, (s.d.). 219 p.
50- A raposa e as uvas
CEREJA, Willian Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens, 5ª série.
São Paulo: Atual, 1998.
51- Os mercadores e o tarro de azeitonas
52- Os três grãos de milho
53- A árvore do que cantava
54- O pintarrouxo
55- Parábola
56- O califa e o plantador de árvores
57- Felicidade
58- A caçada da meia noite
59- A parábola do leão cativo
60- O Califa
SANTOS, Nádia; SANTOS, Yolanda Lhullier. (Org.). Lendas, fábulas e apólogos
antologia da literatura mundial. São Paulo: Gráfica e Editora Edigraf, (s.d.). 219 p.
61- O bom samaritano
62- Parábola da cizânia (também conhecida como do joio e do trigo)
63- O semeador
64- O filho pródigo
65- O fermento
66 – O grão de mostarda
A BÍBLIA, Sagrada. Rio de Janeiro: Barsa, 1975.
67- Formiga carregadeira
68- Bondade imoral
137
69- Romeu e Julieta
70- Enterro de formigas
71- Deus proverá
72- Profecia
73- O símbolo do Brasil
PEIXOTO, Afrânio. Parábolas. São Paulo: Gráfica e Editora Brasileira, (s.d.). 350 p.
74- Seixo rolado
75- Esaú e Jacó
76- A verdadeira história dos cegos e o elefante
77- O anel
78- O lenhador e a raposa
79- A mulher perfeita
80- O monge mordido
PARÁBOLAS. Disponível em: <http://www.possibilidades.com.br/parabolas/.asp>. Acesso
em: 20 fev. 2005.
138
Anexo BListagem do corpus utilizado para o levantamento do
tipo de personagem
Além dos textos do Anexo A foram utilizados:
Fábulas
81- Como a língua sobreviveu aos dentes
82- Segredos de formigas
83- O corvo e a raposa
84- O conselho dos ratos
85- O lavrador e seus filhos
86- O leão e o mosquito
87- As rãs pedindo rei
88- A mulher teimosa afogada
89- O leão enamorado
90- A leiteira e a bilha de leite
91- O estatuário e a estátua de Júpiter
92- A Floresta e o lenhador
93- A raposa, as moscas e o ouriço
94- Os animais enfermos da peste
95- O avarento e o macaco
96- O macaco e o golfinho
97- O astrólogo
98- O velho rapaz e o burro
99- O velho e a morte
100- Os médicos
101- A galinha que punha ovos de ouro
102- Os dois Pombos
103- O rato anacoreta
104- O galo e a pérola
105- A lebre e a tartaruga
106- O jumento que levava relíquias
107- O carrão e a mosca
108- Os membros e o estômago
109- A garça
139
110- O horóscopo
111- O pavão queixando-se a juno
112- O leão cruel
113- O leão com o seu exército
114- O cidadão pastor
115- O papagaio desprecavido
116- O grilo queixoso
117- O peixe voador
118- O boi, o cavalo e o burro
119- O elefante
120- O pastor e o mosquito
121- A serpente
122- Os gansos
123- A cascata e a fonte
124- A sorte e o mendigo
125- A espada
126- O homem e a sombra
127- O leão e o lobo
128- A visita da sorte
129- A maçã
130- O médico e a saúde
131- O avarento e seu filho
132- O pato e a serpente
133- A música dos animais
134- O cavalo e o sapo
135- A pulga aventureira
136- Tudo se paga
137- Urubus de cascata
138- Papagaio come milho
139- A aranha e a lagartixa
140- A coruja mestra de canto
141- O concurso
142- O papagaio orador
143- Números
144- Gratidão
145- Injustiças do mundo
146- O cão policial
147- A corte do leão
148- Fifi
149- O porco
150- Modéstia de Onagro
MILLIET, Sérgio. Obras primas da fábula universal – seleção, introdução e notas. São
Paulo: Martins Fontes, 1957. 305 p.
Parábolas
151- O gigante egoísta
152- Os quatro faisões
153- A consoladora
140
154- Apressados
155- O que não se perdoa
156- Nosso prêmio
157- “Brasília sive Papagali Terra”
158- Indecência
159- Domesticação e educação
160- Bicho homem
161- Civilização
162- Vida dolorosa dos tico-ticos
163- Lembra-te de desconfiar
164- O belo sexo
165- Imagens
166- Ironia e civilizados
167- Cigarra e formiga
168- Antecipação
169- Métodos
170- Educação, Instrução
171- Honras
172- Ciências e Letras
173- Carnaval
174- Até o céu
175- Franqueza
176- Desejo e fastio
177- Preferência
178- Menina e moça
179- Quem é que sabe?
180- Homens e bestas
181- As amazonas
182- Aprende a duvidar
183- A ciência e a natureza
184- Relativismo
185- Lógicos
186- Dúvida e certeza
187- Evolução e involução
188- O homem
189- Eros
190- Divórcio
191- O amigo da onça
192- Imposto de renda
193- Antipatia
194- Posição
195- Coitados dos ricos
196- Indecência
197- Bem e mal
198- Mistérios
199- A inveja
200- Uma teoria da linguagem
PEIXOTO, Afrânio. Parábolas. São Paulo: Gráfica e Editora Brasileira, (s.d.). 350 p.
141
201- O caldeireiro
202- O tesouro escondido
203- A pérola
204- A rede
205- A ovelha perdida
206- O credor incompassivo
207- Os trabalhadores da vinha
208- Os dois filhos
209- Os lavradores maus
210- As bodas
211- As dez virgens
212- Os talentos
213- A escolha do casal infeliz
214- A semente
215- Os dois devedores
216- Aprendendo a conversar com Deus Virtude
217- O amigo importuno
218- O rico louco
219- A figueira estéril
220- A grande ceia.
A BÍBLIA, Sagrada. Rio de Janeiro: Barsa, 1975.
142
Anexo C – Textos do corpus usados nos exemplos
Texto 1 – exemplo 4; páginas 36, 105 e 106
A Xícara e o Bule (Eduardo Cândido)
Após o café da tarde, sobre a mesa da varanda, a Xícara disse para o velho Bule:
– Ah... eu sou a mais bela peça da copa!
A qual respondeu o Bule:
– Tu? Ora essa!
– Sim! Sou a mais bela peça, e a mais importante também! – retrucou a xícara
indignada.
– É mesmo?
__
perguntou o Bule, com ironia.
– Podes rir, bule velho!
__
disse a Xícara, fechando a cara.
– Ora, não me leve a mal. Tu sabes que eu gosto muito de ti – disse amigavelmente o
Bule cheio de chá.
Mas dona Xícara, ignorando o senhor Bule, continuou a discorrer amorosamente sobre
as suas qualidades admiráveis:
– Pois então. É a mim que os senhores levam à boca, todos os dias, e me cobrem de
beijos enquanto bebem chá. Sou feita de porcelana delicada, com belas florzinhas pintadas de
dourado, que refletem a luz e brilham como num sonho. Não é qualquer um da casa que pode
me tocar.
O Bule, muito sensato, tentou transmitir uma lição:
– Mas, minha amiga, o que realmente importa é o nosso destino. O que disseste sobre
tuas florzinhas é somente vaidade, mas ir à boca dos senhores é teu dever. E sou eu que fervo
a água e preparo o chá no meu interior, o qual é servido por ti. Tal é o meu destino. Tu
percebes que nos dois, juntos, temos um sentido na vida?
Dona Xícara riu-se, e disse com desprezo:
– Oh, sim! Então não sou diferente dos copos de vidro grosseiro que as crianças usam
para beber? Escuta, filósofo, serei franca contigo: tu tens inveja...
– Inveja? – perguntou o Bule.
– Sim! – respondeu a Xícara – pois eu estou sempre cheirosa e doce, e tu tens cheiro
de bule velho e borra de chá. Levam-me cuidadosamente, e guardam-me do armário de vidro,
junto com as louças finas e os cristais, para embelezar a casa; enquanto te és lavado com
palha de aço e te escondem dentro da pia, para que não te vejam. Sou estimada, e quanto mais
velha eu me torno, mais valiosa fico. E tu? És velho, manchado, cheio de amassadinhos, e és
feito de metal ordinário [...]
143
O Bule ia responder alguma coisa, porém desistiu. Como poderia argumentar com uma
Xícara vaidosa e cabeçuda?
Nesse momento o gato da casa, inesperadamente, pulou em cima da mesa da varanda
tentando caçar um besouro. O gato foi tão rápido e desastrado que nem escutou os gritos do
senhor Bule e da Dona Xícara:
– Cuidado!
Mas era tarde demais, e os dois caíram no chão. O velho Bule, que tinha uma base
pesada, caiu e rodou como um pião, ficando em pé quando parou. E a bela Xícara,
pobrezinha!, espatifou-se nas lajes da varanda.
Uma lágrima de chá deslizou suavemente pela fronte do senhor Bule, enquanto
observava a pequena luz de vida que aos poucos desaparecia dos caminhos de porcelana.
– Minha amiga – disse o Bule, entristecido – escarneceste dos meus amassadinhos.
Pois são as marcas da experiência, dos muitos tombos que levei na vida [...]
E a Xícara, definhando, respondeu num fio de voz:
– Sem essa, convencido! Se não fosse eu, tu não terias a oportunidade de ficar aí,
fazendo pose de sábio! [...]
(http://www.planeta.terra.com.br)
Texto 2 – exemplo 51; páginas 114 e 118
Um Apólogo – A agulha e a linha (Machado de Assis)
– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale
alguma cousa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça.
Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e
deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os
cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou
eu e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição
aos babados [...]
– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que
vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando [...]
– Também os batedores vão adiante do imperador.
– Você é imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai
só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo,
ajunto [...] em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás
dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na
agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a
144
melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a
isto uma cor poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a
eles, furando abaixo e acima [...]
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela,
silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha,
vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na
saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol,
a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que
no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se,
levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto
compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali,
alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte
do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você
volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor
experiência, murmurou à pobre agulha:
– Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da
vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para
ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanado a cabeça:
– Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
(Texto extraído do livro Para gostar de ler. Contos. São Paulo: Ática, v. 9, 1984. p. 59)
Texto – 3, exemplo 45; página 108
Apólogo das panelas (P. M. Benardes)
Cada qual com o seu igual. – deste nosso provérbio parece foi tomado o doutrinal
apólogo das panelas, uma de barro outra de cobre, levadas pelo rio abaixo pela força da cheia.
Rogou a de cobre à de barro que se chegasse para ela, para que juntas resistissem melhor ao
ímpeto das águas. – Não convém, respondeu ela, a nossa amizade e vizinhança, porque suceda
topar eu convosco ou vós comigo, sempre vós ficareis inteira e eu quebrada.
(http://www.annex.com.br/pessoais/confrariahpe/artigos.htm)
Texto 4 – exemplo 47; página 110
Fábula das cotovias (P. M. Benardes)
Mui judicioso é o apólogo que se conta das cotovias, que tinham seus ninhos entre as
searas.
Dissera o dono do campo a seus criados, que tratassem de meter as fouces se vissem
os pães sazonados. E ouvindo esse recado, uma delas foi pelos ares avisar as outras que
145
mudassem do sítio, porque vinham logo os cegadores. Porém, outra mais velha as aquietou do
susto dizendo:
– Deixemo-nos estar, que mandar ele os criados a fazer a ordem vai muito tempo.
Dali a alguns dias que o amo se agastara com os criados porque não tinham feito o
que, e que mandava selar a égua para ele mesmo vir ver o que convinha.
– Agora sim – disse aquela cotovia astuta – agora sim irmanas, levantemos vôo, e
mudemos a casa, que vem que lhe doe a fazenda.
Moralidade dessa fábula explica-se com o provérbio português: Quem quer vai, quem
não quer manda.
(http://www.annex.com.br/pessoais/confrariahpe/artigos.htm)
Texto 5 – exemplo 50; página 114
O pedido das três árvores (Autor desconhecido)
Dizem que, tempos antes do Cristianismo, em grande bosque, três jovens árvores
pediram a Deus destinos gloriosos e diferentes.
A primeira queria ser empregada no trono do maior soberano da Terra.
A segunda ambicionava servir na construção do carro que transportasse os tesouros
desse poderoso soberano.
A terceira almejava se transformar numa torre, nos domínios desse potentado, para
indicar o caminho do céu.
Mensageiro de Deus desceu à mata informando que as petições seriam atendidas.
Decorrido certo tempo, lenhadores reduzem as três árvores a simples troncos.
Mas, mesmo assim despidas, arrancados os seus braços, retiradas de seu ambiente,
elas permaneciam confiantes na promessa do Senhor, deixando-se conduzir com paciência e
humildade.
Depois de muitas viagens, a aflitiva surpresa!
A primeira caiu sob o poder de um criador de animais que mandou convertê-la num
grande cocho, destinado à alimentação de carneiros.
A segunda foi adquirida por velho praiano que construía barcos.
A terceira foi comprada e guardada, para servir oportunamente numa cela de
malfeitores. Mesmo separadas e sofredoras, as árvores amigas não deixaram de acreditar no
Pai eterno, e a tudo obedeciam resignadas.
No bosque, todavia, outras plantas perderam a fé na oração, quando souberam do
acontecido com as três árvores.
Transcorridos os anos, a primeira árvore, forrada de singelos panos, recebeu Jesus das
mãos de Maria de Nazaré, servindo de berço ao mais alto Dirigente do Mundo.
A segunda, trabalhando com pescadores, na forma de barca valente e pobre, foi
veículo de que Jesus se utilizou para transmitir sobre as águas muitos dos seus ensinos.
A terceira, por fim, convertida apressadamente numa cruz, seguiu com o Mestre para o
monte, onde fincada, ereta e valorosa, sente o Seu coração repleto de amor, mesmo que
torturado, indicando o verdadeiro caminho do reino dos céus.
Todos nós podemos endereçar às estações receptoras do Mundo Espiritual, em
qualquer parte e em qualquer tempo, as mais variadas preces.
(http://www.annex.com.br/pessoais/confrariahpe/artigos.htm)
146
Texto 6 – exemplos 8, 10 e 19; páginas 38, 62 e 107
Assembléia na carpintaria
Contam que na carpintaria houve uma vez uma estranha assembléia. Foi uma reunião
de ferramentas para acertar suas diferenças.
Um martelo exerceu a presidência, mas os participantes lhe notificaram que teria que
renunciar. A causa? Fazia demasiado barulho; e além do mais, passava todo o tempo
golpeando.
O martelo aceitou sua culpa, mas pediu que também fosse expulso o parafuso,
dizendo que ele dava muitas voltas para conseguir algo.
Diante do ataque, o parafuso concordou, mas por sua vez, pediu a expulsão da lixa.
Dizia que ela era muito áspera no tratamento com os demais, entrando sempre em atritos.
A lixa acatou, com a condição de que se expulsasse o metro que sempre media os
outros segundo a sua medida, como se fora o único perfeito. Nesse momento entrou o
carpinteiro, juntou o material e iniciou o seu trabalho. Utilizou o martelo, a lixa, o metro e o
parafuso.
Finalmente, a rústica madeira se converteu num fino móvel.
Quando a carpintaria ficou novamente só, a assembléia reativou a discussão. Foi então
que o serrote tomou a palavra e disse:
“Senhores, ficou demonstrado que temos defeitos, mas o carpinteiro trabalha com
nossas qualidades, com nossos pontos valiosos. Assim, não pensemos em nossos pontos
fracos, e concentremo-nos em nossos pontos fortes.”
A assembléia entendeu que o martelo era forte, o parafuso unia e dava força, a lixa era
especial para limar e afinar asperezas, e o metro era preciso e exato. Sentiram-se então como
uma equipe capaz de produzir móveis de qualidade. Sentiram alegria pela oportunidade de
trabalhar juntos.
Ocorre o mesmo com os seres humanos. Basta observar e comprovar. Quando uma
pessoa busca defeitos em outra, a situação torna-se tensa e negativa; ao contrário, quando se
busca com sinceridade os pontos fortes dos outros, florescem, as melhores conquistas
humanas.
É fácil encontrar defeitos, qualquer um pode fazê-lo. Mas encontrar qualidades... isto
é para os sábios!!!
(http://
www.ibb.org.br/vidanet/outras/msg228.htm)
Texto 11 – exemplo 7; página 38
O princípio moral e o interesse material (Tradução de Renato Suttana)
Um Princípio Moral deparou com um Interesse Material sobre uma estreita ponte
que só permitia a passagem de um deles.
– Abaixe-se, coisa do chão! – trovejou o Princípio Moral – e deixe-me passar em
cima de você.
O Interesse Material apenas olhou o outro nos olhos, sem dizer nada.
– Ah! – disse o Princípio Moral, hesitante – vamos tirar a sorte para ver quem se
afastará de modo que o outro passe.
O Interesse Material manteve seu olhar resoluto e seu silêncio inalterado.
– Para evitar conflitos – continuou o Princípio Moral, com certo desconforto –, eu
me abaixarei e deixarei que você passe em cima de mim.
147
Então o Interesse Material achou a língua, que por estranha coincidência era a sua
própria língua.
– Não acho que você seja uma boa calçada – disse. – Tenho certas reservas quanto
àquilo que está debaixo de meus pés. Que tal se você pulasse na água [...]
Assim sucedeu.
(
http://geocities.yahoo.com.br/rsuttana/bierceapologos.htm)
Texto 15 – exemplo 53; página 118
A enxada e caneta (Composição desconhecida)
Certa vez uma caneta foi passear lá no sertão
Encontrou-se com uma enxada, fazendo a plantação.
A enxada muito humilde, foi lhe fazer saudação,
Mas a caneta soberba não quis pegar sua mão.
E ainda por desaforo lhe passou uma repreensão.
Disse a caneta pra enxada não vem perto de mim, não
Você está suja de terra, de terra suja do chão
Sabe com quem está falando, veja sua posição
E não se esqueça à distância da nossa separação.
Eu sou a caneta soberba que escreve nos tabelião
Eu escrevo pros governos as leis da constituição
Escrevi em papel de linho, pros ricaços e barão
Só ando na mão dos mestres, dos homens de posição.
A enxada respondeu: que bateu vivo no chão,
Pra poder dar o que comer e vestir o seu patrão
Eu vim no mundo primeiro quase no tempo de Adão
Se não fosse o meu sustento não tinha instrução.
Vai-te caneta orgulhosa, vergonha da geração
A tua alta nobreza não passa de pretensão
Você diz que escreve tudo, tem uma coisa que não
É a palavra bonita que se chama [...] educação!
(cifraclub.terra.com.br/cifras/zico-e-zeca)
Texto 19 – exemplo 17; páginas 56 e 107
O sol e o vento (Autor desconhecido)
O Sol e o Vento discutiam sobre qual dos dois era mais forte e o Vento disse:
‘Provarei que sou o mais forte. Vê aquele velho que vem lá embaixo com um capote? Aposto
como posso fazer com que ele tire o capote mais depressa do que você.’ Então o Sol recolheu-
se atrás de uma nuvem e o vento soprou até quase se tornar um furacão, mas quanto mais ele
soprava, mais o velho segurava o capote junto a si.
Finalmente o Vento acalmou-se e desistiu de soprar.
148
Então o Sol saiu de trás da nuvem e sorriu bondosamente para o velho. Imediatamente
ele esfregou o rosto e tirou o capote.
O Sol disse então ao Vento que a gentileza e a amizade eram sempre mais fortes que a
fúria e a força.
(GANEGIE, 1987. p. 152-153)
Texto 20 – exemplo 12; páginas 47, 71 e 74
O Apólogo Mineiro (Fernando Sabino)
O boi velho e o boi jovem, no alto do morro embaixo uma porção de vacas
pastando. O boizinho, incontido:
– Vamos descer correndo e pegar umas dez.
E o boizão, tranqüilamente:
– Não, vamos devagar, e pegar todas.
(www.fogodepalha.webogger.terra.com.br)
Texto 21 – exemplo 21; páginas 66, 81, 105 e 108
A velha e o médico (Traduzido da obra de Esopo)
Uma velha que sofria dos olhos mandou chamar um médico mediante salário. Ele foi
visitá-la, mas não se privava nunca de surrupiar-lhe um móvel sempre que lhe aplicava um
unhão. Ao terminar a cura e tendo carregado com tudo, solicitou o pagamento combinado.
Como porém a velha recusasse pagá-lo ele a processou. Aos magistrados que iam julgar disse,
entretanto, a velha que, efetivamente, prometera o salário reclamado se ele a curasse; mas seu
estado, após o tratamento, piorara deveras. Sim, afirmava, antes eu via todos os móveis da
casa e agora não os posso mais ver.
As pessoas desonestas em geral não pensam que sua cobiça depõe contra elas.
(MILLIET, 1957. p. 57)
Texto 22 – exemplo 23; páginas 71 e 90
A Mona e o Filho (Manuel Maria de Bocage)
Mona tão horrorosa, ou mais do que o diabo,
Com calos o traseiro, e sem cabelo o rabo,
Num moninho brincalhão, que tinha dão ao prelo,
Cegamente empregava o maternal desvelo;
E era a sua ternura, o seu amor tão fino,
Que nunca dentre as mãos largava o pequenino.
Se alguma sua amiga ia fazer-lhe festa,
Dizia-lhe: “Não, não, deixe-mo, que o molesta!...”
Se lhe pegava ao colo até o próprio pai,
A mãe gritava logo: “Ai”! Não me esmagues,
[“aí!...”]
E com mimo importuno a rústica entretanto
149
Ao tenrinho animal desafiava o pranto,
Pois em beijo, e mais beijo, abraço, e mais abraço.
Ansiava, oprimia o filho a cada passo,
E um dia o abraço com tal contentamento,
Que no apertão fagueiro ele exalou o alento.
Tal (me diz experiência) é o zeloso amante;
Por amor importuna, enfada a cada instante;
O que quer pra si do mesmo sol recata,
Por amor atormenta, e até às vezes mata.
(MILLIET, 1957. p. 112)
Texto 23 – exemplo 2; páginas 25, 37, 95 e 114
A águia e a tartaruga (Traduzida de Fedro)
A tartaruga fez um dia um pedido aos pássaros. Se um deles quisesse, depois de
passeá-la pelos ares, trazê-la de volta à terra, iria de imediato buscar ostras no fundo do Mar
Vermelho e uma pérola recompensaria o serviço prestado. É que a tartaruga se indignava com
a sua marcha lenta que não lhe permitia agir e a forçava a passar dias inteiros parada. Mas
depois de ter feito mil promessas enganosas à águia, viu-se vítima de uma perfídia igual à de
seus discursos: querendo alcançar os astros com asas de empresário, a infeliz morreu nas
garras da ave. Então, bem alto nos céus e já agonizante, ela deplora demasiado tarde a
realização de seus temerários desejos e diz: que meu funesto destino ensine aos que se
entendiam com uma existência sossegada que não se atinge a grandeza sem sofrer terríveis
privações.
Assim é que seduzido por uma glória inédita que lhe acarinha a vaidade, quem aspira a
uma posição mais brilhante carrega consigo o castigo de sua ambição.
(MILLIET, 1957. p. 103)
Texto 24 – exemplo 22; páginas 69 e 75
Os coelhos e os elefantes (Tradução de Mom Senhor Sebastião Rodolfo Delgado)
Um dia de inverno, um bando de elefantes, atordoados de sede por falta de chuva,
disse ao chefe do bando: “Senhor, que meio temos nós para viver? Não há nem um lugar onde
se banhem os animais pequenos; e nós estamos quase a morrer por não termos onde nos
banhemos. Que faremos? Onde iremos?” O elefante-rei foi então não muito longe e mostrou-
lhes um límpido lago. Depois disto, no decurso de alguns dias, foram esmagados debaixo das
patas dos elefantes os coelhos que viviam na sua borda. Por isso um coelho por nome
Xilimukha, ponderou: “Virá aqui todos os dias este bando de elefantes, perseguidos pela sede,
com o que perecerá a nossa raça.” “Não desespereis, disse então um velho coelho, que se
chamava Vijaya; eu remediarei isto.” Feita a promessa, partiu logo e no caminho fez a
seguinte reflexão: “Como deverei eu falar, quando chegar diante do bando de elefantes? Pois
o elefante mata só com tocar; a serpente, com simples sopro; o rei, ainda quando protege; o
mau até com o sorriso. Subirei por isso ao cimo do monte e falarei ao chefe do bando.
Dito e feito, o chefe do bando perguntou: “Quem és e de onde vens?” “Eu sou coelho,
respondeu ele, enviando para ti pela venerável lua” (*) “Declara o objeto da tua missão”,
150
acudiu o chefe do bando. Vijaya pensou: Embora seja ameaçado com armas, o embaixador
não deixava de falar como deve; graças à sua inviolabilidade, fala sempre a verdade tal qual é.
Falo, pois por ordem da sua escuta: “Fizeste mal em enxotar estes coelhos, que são
guardas do lago da lua. Há longo tempo que protejo estes coelhos; eis por que tenho o epíteto
de Xaxanka.” Quando acabou de falar o mensageiro, o chefe do bando disse com medo:
“Ouve, fiz isto por ignorância; não o farei mais.” “Se é assim, respondeu o mensageiro, saúda
e sossega a venerável lua, que está a tremer cólera neste lago, e vai-te embora.” Quando
chegou a noite, levou consigo o chefe do bando, mostrou-lhe a imagem da lua que se agitava
na água, mandou-lhe fazer vênia, e disse: “Soberano Senhor, é por ignorância que ele cometeu
a ofensa; perdoai-lhe pois, não o fará outra vez.” Com essas palavras o mandou embora. Por
isso digo: Uma ficção pode prevalecer ainda contra o mais poderoso rei: pela ficção da lua os
coelhos viveram felizes.
(*) A lua é divindade na mitologia hindú.
(MILLIET, 1957. p. 47-48)
Texto 27 – exemplo 40; páginas 93, 96 e 109
O camundongo (Babrios. Tradução de S. M.)
Um camundongo caiu numa marmita aberta e cheia de sopa; sufocado pela banha, e já
no ponto de morrer, disse “comi bem, bebi bem, fartei-me de delícias; é tempo de morrer.”
Homem, acabarás como esse camundongo glutão, se não souberes renunciar a doçuras
funestas.
(MILLIET, 1957. p. 61)
Texto 32 – exemplo 24; página 72
O leão e o rato (Traduzida de Fedro por Manoel de Morais Soares)
(Um cabelo produz também a sua sombra)
A fábula presente nos ensina
A não fazermos mal algum àqueles
Que são mais inferiores do que nós.
Dorme o bravo leão no bosque a tempo
Que uns rusticanos ratos se divertem;
Um destes descuidado acaso pisa
O façanhoso corpo deste bruto.
O leão, que desperta em sobressalto,
Com bem presteza agarra este infeliz
Que o perdão para logo lhe suplica,
E a imprudência sua o crime imputa.
O rei dos animais já persuadido
Que não é da sua honra a vil vingança.
Generoso perdoa, e o deixa ir.
Poucos dias depois a mesma fera
A campanha batendo em noite escura,
151
Descuidado caiu num grande fosso.
E vendo-se ali preso na esparrela,
Entrou logo a rugir com grande força.
A tão terrível voz o rato acode,
E mui compadecido assim lhe diz:
“– Não temas, ó leão, porque eu vos quero
Um serviço fazer, que corresponda
Ao grande benefício, que eu de vós
Há pouco recebi, que não me esquece”.
No mesmo instante entrou a examinar
O tecido do laço insidioso,
E depois de ter dado várias voltas
Ao redor dos cordéis, que tinham nós,
Principia a roê-los de tal sorte,
Que e mui breve tempo fez mui largas
As malhas engenhosas desta rede.
Por este meio deu ao leão preso
Ao mesmo tempo o poder e a liberdade.
(MILLIET, 1957. p. 97-98)
Texto 33 – exemplo 44; páginas 107 e 110
A rã prudente (Tradução de Manoel de Morais Soares)
(Os males públicos recaem sobre o povo)
Em havendo desordens entre os grandes,
Os pequenos vêm sempre a padecer.
A rã que do seu charco presencia
Dos armígeros touros um combate
Grita: “– Ai de mim! Que fera desventurada
Nos espera! Quanto insta a ligeireza.”
Outra pois que isto ouviu espavorida
Lhe pergunta o motivo deste medo;
Vendo, que aqueles bois mui longe delas
Brigam sobre primado do rebanho.
“– É povo separado, eu bem conheço,
Diz a primeira rã, porém receio
Que o boi expulso do reino numeroso
Refugiar-se venha fugitivo
Nos ocultos recantos deste lago,
E com seus pés pesados nos esmague.
Deste modo o furor raivoso deles
Compreenderá também as nossas vidas.”
(MILLIET, 1957. p. 99)
152
Texto 35 – exemplo 38; página 91
O cavaleiro (Traduzido de Fedro)
Um cavaleiro romano, que era calvo e usava cabeleira para esconder a desgraça,
chegou um dia ao campo de Marte, atraindo todos os olhares pelo brilho de sua armadura e a
docilidade de seu fogoso corcel. Subitamente um golpe de vento arrancou-lhe a cabeleira e
revelou ao povo a cabeça risível. O cavaleiro, que não carecia de espírito, vendo rirem dele
milhares de espectadores, soube atalhar a zombaria com uma piada muito hábil. “Não é de
espantar, disse, que esses falsos cabelos não tenham querido ficar numa cabeça de há muito
desdenhada pelos cabelos naturais” [...]
Quando alguém rir de ti, trata de destruir a impressão provocada pondo de teu lado a
razão.
(MILLIET, 1957. p. 104)
Texto 37 – exemplo 18; páginas 60 e 108
O lobo e o cordeiro (La Fontaine. Tradução de Malhão)
De ardente sede obrigados
Foram ao mesmo ribeiro
A beber das águas frescas
Um lobo e mais um cordeiro
O lobo pôs-se da parte
Donde o regato nascia;
O cordeiro, mais abaixo,
Na veia d’água bebia.
A fera, que desavi-se
Com a mansa rês desejava,
Num tom severo e medonho,
Desta sorte lhe falava:
“Por que motivo me turvas
A água que estou bebendo?”
E o cordeirinho inocente
Assim respondeu, tremendo:
“Qual seja a razão que tenhas
D’enfadar-te, não percebo!
Tu não vês que de ti corre
A mim esta água que bebo?”
Rebatida da verdade,
Tornou-lhe a fera cerval;
“Aqui haverá seis meses,
Sei de mim disseste mal.”
153
Respondeu-lhe o cordeirinho,
De frio medo oprimido:
“Nesse tempo, certamente,
Inda eu não tinha nascido!”
“– Que importa? Se tu não foste,
Disse o lobo carniceiro,
Foi teu pai”. E, por aleives,
Lacera o pobre cordeiro!
Esta fábula dá brados
Contra aqueles insolentes,
Que por delitos fingidos
Oprimem os inocentes.
(MILLIET, 1957. p. 126)
Texto 43 – exemplo 52; página 115
O chacal azul (Tradução de Monsenhor Sebastião Rodolfo Delgado)
Era uma vez um chacal de uma certa serra, que, enquanto errava a seu capricho nos
arrabaldes de uma cidade, caiu em uma talha de anil, de onde não podendo depois sair, fingiu-
se morto ao despontar do dia e assim ficou. Então o dono da talha de anil, pensando que
estava morto, tirou-o dali e foi deitá-lo para longe; de onde ele fugiu. Quando chegou à serra e
viu o seu corpo corado de azul, disse consigo: “Tenho eu agora a mais bela cor: como pois
não tratarei do meu engrandecimento?”. Feita essa reflexão, chamou os chacais e lhes disse:
“A santa deusa do bosque ungiu-me rei desta serra por sua própria mão com a essência de
todas as plantas, pela qual razão, a partir de hoje, é por minha ordem que se deve dirigir o
governo da floresta.” E os chacais, vendo-o de cor tão distinta, saudaram-no com uma
reverente prostração e responderam: “Como Vossa Majestade manda.” E deste modo que ele
teve a soberania sobre todos os habitantes da floresta. Rodeado pois da sua espécie, alcançou
ele o supremo domínio. Mas depois que teve para seus altos dignitários os tigres, os leões e
outros, e olhou para os chacais que estavam na corte, ficou envergonhado e afastou com
desprezo todos os da sua espécie.
Em seguida um velho chacal, vendo os outros chacais consternados, propôs-lhes o
seguinte: “Não vos aflijais, porque este ignorante nos apartou do seu lado a nós que somos
hábeis na política e conhecemos os segredos. Trabalhemos então para dar cabo dele, pois que
os tigres e outros, não conhecendo que é chacal, iludidos unicamente pela sua cor, julgam-no
rei. Fazei por isso com que esteja descoberto; e para isso eis o que se há de fazer: Quando for
sol posto, vós todos soltareis ao mesmo tempo grandes uivos perto dele; então ele, levado do
instinto da sua raça, também uivará ao ouvir aquelas vozes.” Executaram eles assim, e surtiu o
efeito. Pois:
É sempre difícil superar a tendência natural que cada qual tem. Se um cão é feito rei,
deixará porventura de roer o sapato:
Enfim sendo reconhecido por sua voz, foi morto por um tigre. E assim está dito:
O inimigo doméstico conhece tudo: o nosso fraco, o nosso íntimo e o nosso forte; e
quando se introduz, consome-nos, como o fogo à árvore.
Por isso digo: O louco que larga o seu partido e se bandeia para o lado do inimigo, é
morto pelos inimigos, como o chacal de cor azul.
(MILLIET, 1957. p. 49-50)
154
Texto – 44, exemplo 25; página 76
O rato do campo e o rato da cidade (Traduzida de Esopo)
Um rato do campo tinha por amigo um rato da cidade. Este convidado pelo outro foi
de uma feita jantar no campo. Como só houvesse porém uva e trigo para comer disse ao
companheiro: Sabes, amigo, que levas uma vida de formiga? Eu, ao contrario, possuo bens
em abundância. Vem comigo, ponho tudo à tua disposição.
Partiram os dois. O rato da cidade mostrou a seu camarada legumes e cereais, e figos,
e queijos, e mel, e frutas. Maravilhado com o que via o rato do campo abençoava-o de todo
coração e maldizia a sua própria sina. Como se aprontassem para o festim repentinamente
abriu-se a porta. Apavorados com o ruído os ratos precipitaram-se nas fendas das paredes.
Mais tarde quando retornavam para pegar alguns figos secos, outra pessoa entrou na sala à
procura de alguma coisa. Ao vê-la precipitaram-se, eles de novo no primeiro buraco que
encontraram.
Esquecendo, então, a fome, o rato do campo disse ao outro; Adeus, amigo, comes à
saciedade por certo e levas grandes vida, mas à custa de riscos e temores. Eu, pobrezinho, vou
viver roendo meu trigo e meu centeio, mas sem medo nem desconfiança de ninguém.
(MILLIET, 1957. p. 58)
Texto – 46, exemplo 13; páginas 49 e 70
A cigarra e a formiga (De La Fontaine. Tradução de Bocage)
Tendo a cigarra em cantigas
Fogado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
“Amiga, – diz a cigarra –
prometo, à fé d’ animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
155
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda hora.”
“– Oh! Bravo! – torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”
(MILLIET, 1957. p. 123-124)
Texto 47 – exemplo 9; páginas 38 e 89
O passarinho preso (Manuel Maria Barbosa de Bocage)
Na gaiola empoleirado,
Um mimoso passarinho
Trinava brandos queixumes
Com saudades do seu ninho.
“Nasci para ser escravo,
(Carpia o cantor plumoso)
Não há ninguém neste mundo,
Que seja tão desditoso.
“Que é do tempo, que eu passava,
Ora descantando amores,
Ora brincando nos ares.
Ora pousando nas flores?
“Mal haja a minha imprudência,
Mal haja o visco traidor:
Um raio, um raio abrase,
Fraudulento caçador!
“Em que pequei? Porventura
Fiz-te à seara algum mal?
Encetei, mordi teus frutos,
Como daninho pardal?
“Agrestes, incultas plantas
Produziam meu sustento,
Inútil aos que se prezam
Do alto dom do entendimento [...]
“Do entendimento! Ah malignos!
Vós possuindo a razão,
Tendes de vícios sem conto
Recheado o coração.
“Ah! Se a vossa liberdade
Zelosamente guardais,
Como sois usurpadores
Da liberdade dos mais?
156
“O que em vós é um tesouro,
Nos outros perde o valor?
Destrói-se o jus do oprimido
Pela força do opressor?
“Não tem por base a justiça,
Funda-se em nossa franqueza
A lei, que a vós nos submete,
Tiranos da Natureza.
“Em ofensa das deidades,
Em nosso dano abusais
Da primazia, que tendes
Entre os outros animais.
“Mas ah triste! Ah malfadado!
Para que me queixo em vão?
Que espero, se contra a força
De nada serve a razão?’
Aqui parou de cansado
O volátil carpidor;
Eis que vê chegar da caça
O seu bárbaro senhor.
Trazia encostado ao ombro
O arcabuz fatal e horrendo,
E alguns pássaros no cinto,
Uns mortos, outros morrendo.
Das penetrantes feridas
Ainda o sangue pingava,
E do cruento verdugo
As curtas vestes manchava.
O preso vendo a tragédia,
Coitadinho, estremeceu,
E de susto, e de piedade
Quase os sentidos perdeu.
Mas apenas do soçobro
Repentino a si tornou,
C’os olhos nos seus finados
Estas palavras soltou:
“Entendi que dos viventes
Eu era o mais infeliz:
Que outros têm pior destino
Aquele exemplo me diz.
157
“Da minha sorte j’agora
Queixas não torno a fazer:
Antes gaiola que um tiro,
Antes penar que morrer.”
(MILLIET, 1957. p. 115-117)
Texto 48 – exemplo 16; página 55
O elefante e as formigas (Gustavo Barro)
Tendo um elefante, ao passar pelas veredas da floresta, esmagado sem ver uma fila de
formigas, estas ficaram muito tristes, mandaram-lhe as mais argustas do formigueiro em
embaixada, para pedir-lhe que, quando andasse por aqueles lados, prestasse um pouco de
atenção aos seus passos, evitando matar bichos que lhe não faziam o menor mal.
As formigas embaixadoras treparam a um tronco de árvore, a fim de falar ao elefante;
porém, quando viu o seu pequeno tamanho e a sua fraqueza, encheu-se de desprezo e,
metendo a tromba num charco, aspirou água, que sobre elas soprou num fato, matando-as
todas.
Todo o formigueiro ficou furioso com a morte das suas embaixadoras e declarou
guerra ao elefante, que recebeu essa notícia às gargalhadas.
Contudo, à noite, enquanto dormia, as formigas, em aluvião, vieram roer-lhe a planta
dos pés. Pela manhã, mal começou a andar, o elefante sentiu dores nas solas das patas, não
agüentou a aspereza do saibro e correu para a lagoa.
As formigas tinham cavado túneis subterrâneos nas duas margens. Ao peso do
paquiderme, o terreno abateu e ele despejou-se da ribanceira nas águas fundas, onde pereceu
afogado. As formigas ajudaram a devorar-lhe o corpo imenso.
(SANTOS; SANTOS, (s.d.). p. 200)
Texto 49 – exemplo 28; páginas 78 e 120
Os animais saúdam o Sol (Mahdi Fezzan)
Agradecido pelos favores que o sol oferece a todos os animais que vivem sobre a terra,
o cão propôs, e foi aceito, que se lhe prestasse, ao amanhecer, uma grande homenagem.
Combinaram a organização de um grande coro de animais sob a regência do rouxinol.
Milhões de vozes se erguiam, à madrugada, numa melodia única, suave, harmoniosa,
saudando o astro rei. Uma única voz desafinou e chamou a atenção de todos, e atraiu os
olhares furibundos do leão, do tigre e do leopardo. Terminado o coro, o rouxinol, de cima de
uma árvore, disse à raposa:
– Comadre raposa, que lástima! Por que você desafinou daquele modo?
– Ora, meu amigo, se não desafinasse, como é que chamaria a atenção para mim?
(SANTOS; SANTOS, (s.d.). p. 216)
158
Texto 50 – exemplo 11; páginas 39 e 111
A raposa e as uvas (Millôr Fernandes)
De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os
tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um
precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas
maravilhosas, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho
passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais
o corpo, deu tudo o que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas. Desistiu,
dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também não tem importância. Estão muito verdes.” E
foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pêra enorme. Com esforço empurrou
a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o
terreno era irregular, e havia o risco de despencar, esticou a pata e [...] conseguiu! Com
avidez, colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito
verdes! Moral: a frustração é uma forma de julgamento como qualquer outra.
(FERNANDES, 1991 apud CEREJA; MAGALHÃES, 1998. p. 115)
Texto 51 – exemplo 29; páginas 80, 106 e 107
Os mercadores e o tarro de azeitonas (Das “Mil e uma noites”)
Um mercador de Bagdá, chamado Ali Cógia, chegou à idade madura tão
comprometido com os negócios que não tivera tempo para realizar a peregrinação a Meca, à
qual estão obrigados todos os bons muçulmanos.
Uma noite, em sonhos, apareceu-lhe um ancião de aspecto severo e repreendeu-o por
não haver cumprido aquela obrigação. A aparição repetiu-se várias vezes e Ali Cógia,
atemorizado, resolveu empreender a viagem sagrada. Depois de pôr em ordem todos os
negócios, viu que lhe sobravam umas mil moedas de ouro.
E como não queria levá-las consigo, e não tendo nenhum lugar seguro onde deixá-las,
por haver terminado com sua tenda e sua casa, ocorreu-lhe a idéia de colocá-las no fundo de
uma vasilha, que acabou de encher com azeitonas. Depois foi à casa de um comerciante seu
amigo, que gozava de grande reputação de honradez, para rogar-lhe o favor de guardar aquele
tarro de azeitonas até a volta de sua peregrinação.
– Toma a chave do armazém – disse-lhe o comerciante, seu amigo – e põe o tarro de
azeitonas no lugar que melhor puderes acomodá-lo.
“Ninguém o tocará, e lá o encontrarás quando regressares”.
Assim fez Ali Cógia. E, depois de se despedir dos parentes e amigos, empreendeu a
viagem, e juntou-se a uma numerosa caravana que partia para a Cidade Santa, com dois
camelos carregados de gêneros escolhidos, que pensava vender em Meca, onde chegou sem
maiores incidentes.
Depois de cumpridas as cerimônias da peregrinação e visitado o célebre santuário
muçulmano, desenfardou os gêneros e os expôs num bazar, para vendê-los ou trocá-los. Como
eram mercadorias escolhidas, chamavam logo a atenção, e, entre inúmeras pessoas que
paravam para olhá-las, ouviu duas dizer:
– Se este mercador soubesse o valor que têm estas mercadorias no Cairo, não se
deteria a vendê-las aqui, onde obterá pouco lucro, quando lá poderia quadruplicar o capital.
Estas palavras e outras semelhantes, pronunciadas pelas pessoas que se detinham ante
o bazar, decidiram-no a enfardar as mercadorias e transferi-las para o Cairo. Foi feliz com a
159
decisão tomada, porque, com efeito, apenas chegou e exibiu os gêneros no mercado, vendeu-
os por um preço três vezes maior. Este bom resultado decidiu-o a aproveitar a ocasião de ir
ao Egito para visitar este formoso país; e unindo-se com outros mercadores, passou depois à
Pérsia, a Mosul, e percorreu outros países, sempre traficando. E demorou em todas estas
viagens cerca de sete anos.
Logo que chegou a Bagdá se instalou numa hospedaria, enquanto o inquilino que
estava habitando a sua casa a desocupava. Depois, foi visitar o seu amigo comerciante em
cujo poder havia deixado o tarro de azeitonas com as mil moedas de ouro. O comerciante
felicitou-o por seu feliz regresso, manifestou-se muito contente por tornar a vê-lo, e, ao
entregar a chave do armazém, disse-lhe que encontraria o tarro no mesmo lugar em que havia
deixado.
Ali Cógia, depois de agradecer o amigo, recolheu a vasilha e voltou para a hospedaria.
Logo que chegou, destapou o tarro, tirou as azeitonas, que ainda estavam frescas e comíveis, o
que muito o admirou, mas [...] o que o admirou muito mais, foi verificar que as moedas
haviam desaparecido.
Sucedeu que, pouco antes de Ali Cógia chegar a Bagdá, achava-se o seu amigo
comerciante a cear uma noite com a família, quando a conversa recaiu sobre azeitonas.
– Na verdade – disse a mulher – há muito tempo que não como azeitonas e de boa
vontade comeria algumas.
– Mulher, – respondeu-lhe o marido – teu desejo é fácil de contentar, porque, a
propósito de azeitonas, recordo-me que deve haver um grande tarro de azeitonas que Ali
Cógia deixou no armazém, quando foi viajar. Fiquei de guardá-lo até a sua volta, mas como já
passaram tantos anos, e não tivemos mais notícias dele, a não ser que foi para o Egito, é de
supor que tenha morrido. Assim, olha, dá-me uma vela e um prato para descer ao armazém e
trarei algumas dessas azeitonas, e as comeremos.
– Não toques nas azeitonas –
disse-lhe a mulher – já sabes que devemos conservá-las
até que nos venham reclamar. Ali Cógia poderá chegar de um dia para outro, e, se não
encontrar o tarro como deixou, que pensará de ti? Não, por minha parte já perdi a vontade de
comer azeitonas. Deixa o tarro como está e não toques, porque, do contrário, pode nos
sobrevir alguma desgraça.
Apesar destas e de outras justas razões apresentadas pela mulher, o marido persistia
em sua resolução. E o comerciante, com um prato e a vela nas mãos, foi ao armazém,
destapou o tarro e encontrou as azeitonas apodrecidas, como lhe havia dito a mulher. Com a
intenção de ver se o resto das azeitonas estavam boas, visto ter encontrado algumas em
melhor estado, esvaziou o tarro, quando viu cair as moedas. Ao ver o ouro, os olhos brilharam
de cobiça; voltou a colocar as azeitonas e as moedas no tarro, tapou-o e disse à mulher que,
com efeito, as azeitonas estavam todas apodrecidas e não poderia comê-las.
– Eu te dizia – respondeu – e melhor teria sido se não tivesse tocado no tarro. Deus
queira que não seja isto causa de alguma desgraça.
No dia seguinte, sem dizer nada à mulher, o comerciante foi ao mercado, comprou
azeitonas para encher o tarro. Tirou as mil moedas de ouro e as azeitonas apodrecidas, e
encheu o tarro com as que comprara e tornou a tapá-lo conforme estava antes. Depois o
colocou no mesmo lugar em que Ali Cógia havia deixado, e encheu-se de satisfação por haver
adquirido aquele dinheiro por tão pouco trabalho.
A perda de mil moedas de ouro era demasiado grande para que Ali Cógia se
conformasse e deixasse de reclamar. Assim passado o primeiro momento de assombro que lhe
causou o fato de não tê-las encontrado na vasilha, não tendo mais dúvidas que o comerciante
era quem as havia tirado, e depois de olhar e tornar a olhar o tarro a assegurar-se de que era o
mesmo que havia deixado, voltou a colocar lá dentro as azeitonas.
160
Seguiu para a casa do comerciante desleal. Este, certo do que ia suceder, esperava a
vinda de Ali Cógia, e tinha preparado as respostas.
– Meu amigo – disse-lhe Ali Cógia – não estranhes que depressa nos tornemos a ver;
venho dizer-te que no tarro de azeitonas que confiei à tua amizade e honradez havia posto mil
moedas de ouro, e que embora o tarro seja o mesmo que deixei, as mil moedas
desapareceram. Se, por haveres estado em alguma má situação comercial, lançaste mão delas
para salvar teu crédito, dou por bem empregado, e só te pedirei que, neste caso, faças um
reconhecimento desta quantia para devolvê-la quando as circunstâncias o permitirem.
– Surpreendem-me as tuas palavras – respondeu o mercador. – Quando me trouxeste o
tarro disseste que continha azeitonas, e o colocaste no lugar que melhor te agradou no meu
armazém. Ali ficou durante todo o tempo sem que eu o tivesse tocado, nem tivesse a
curiosidade de olhá-lo sequer. Assim, deixa-me em paz, e não faças parar as pessoas diante de
minha tenda para ouvir umas reclamações tolas.
– Sentiria muito ter de apelar para a intervenção da justiça – replicou-lhe Ali Cógia – e
valer-me de meios que não convêm às pessoas honradas, e, sobretudo mercadores como nós,
que precisamos preservar a nossa boa reputação; meu amigo, pensando bem, resolveremos
este negócio amigavelmente.
O mercador, que não tinha a intenção de devolver o dinheiro e estava decidido a
apropriar-se dele, voltou a repetir a Ali Cógia que o deixasse em paz, e que fizesse o que
quisesse, e ajuntou ainda que tomaria por testemunha da afronta que lhe fazia as pessoas que
passavam e os vizinhos que estavam escutando a discussão.
– Esta afronta és tu que atiraste sobre ti mesmo – exclamou Ali Cógia. – Intimo-te a
comparecer perante o cádi, e veremos se ante a lei de Alá te atreves a negar o fato.
– Vamos, pois – respondeu o mercador – precisamente é isso o que desejo.
Compareceram, com efeito, perante o tribunal do cádi, o qual, depois de ouvir as
partes e em vista de não haver testemunhas presencias, perguntou ao mercador se estava
pronto a prestar o juramento que a lei exige em tais casos, e o mercador disse que estava
disposto a não só jurar que não havia tirado as moedas que lhe reclamava Ali Cógia, como
também não haver tocado, nem visto o tarro. O mercador infiel prestou o juramento e o cádi
absolveu-o da acusação, e Ali Cógia retirou-se depois de haver protestado contra a sentença
absolutória e de ter declarado que levaria sua queixa ao califa, e que este faria melhor justiça.
E o mercador infiel e perjuro voltou para a casa contente de ter ficado dono de uma
fortuna tão grande, e tê-la adquirido tão facilmente.
Ali Cógia voltou também para a casa e escreveu o memorial que deveria entregar ao
Comendador dos Crentes, e expôs o fato com todos os precedentes; no dia seguinte, quando o
califa ia à mesquita, recebeu o memorial das mãos do oficial encarregado de recebê-los.
Ao voltar da oração, o califa, acostumado a ler ou a fazer ler todos os memoriais, leu
pessoalmente o de Ali Cógia.
À tarde saiu, conforme era seu hábito, para percorrer a cidade disfarçado, em
companhia do grão-vizir Giafar e do chefe dos eunucos, Mersur, e quando à noite voltava ao
palácio, ao passar ante uma sala de modesta aparência, ouviu uma gritaria de meninos que
estavam brincando ao luar num pequeno curral. Chamou-lhes a atenção porque já era tarde e
aquela hora já deveriam estar dormindo e, como era naturalmente muito curioso, quis saber o
motivo daquela gritaria.
– Vamos julgar os cavalos – gritavam uns. – Vamos brincar de quatro esquinas, –
diziam outros, e todos vociferaram ao mesmo tempo citando diferentes brinquedos.
– Não, não – exclamou o maior deles – vamos julgar à maneira do cádi, e vereis como
nos divertiremos.
Os outros meninos aproximaram-se; em seguida, colocaram no meio do curral um
tonel desconjuntado sobre o qual se sentou o menino que havia proposto o jogo, e disse-lhes:
161
– Eu farei o cádi, tu farás o mercador ladrão e tu o Ali Cógia.
O califa Harum-Al-Raschid já ia retirar-se. Estava sentado num banco que havia perto
da porta do curral e de onde olhava por uma fenda o que estavam fazendo os meninos.
Quando ouviu o nome de Ali Cógia, lembrou-se do memorial que havia lido aquela manhã e
então deteve-se e continuou olhando; o mesmo fez Giafar.
Distribuídos os papéis para cada menino representar, o que fazia de juiz se dirigiu ao
que representava Ali Cógia e disse:
– O que tens a pedir?
– Senhor, – contestou o menino – há sete anos coloquei mil moedas de ouro num tarro,
cobri-as com azeitonas, e entreguei o tarro a este mercador para que me guardasse em seu
armazém; quando voltei de uma demorada viagem, fui buscar o tarro, e ao esvaziá-lo, não
encontrei as moedas de ouro. Reclamei-as a este mercador, e ele me negou.
– Que respondes a isso? – disse o juiz para o que fazia o papel de mercador.
– Eu respondo que não vi semelhantes moedas, nem toquei o tarro de azeitonas que
Ali Cógia me deixou, e estou pronto a prestar juramento.
– Espera, espera – replicou o falso cádi e, dirigindo-se a outro menino que fazia o
papel de guarda do tribunal disse:
– Tragam o tarro com as azeitonas e que venham dois azeitoneiros.
O menino agarrou uma vasilha velha que havia num canto do curral, colocou dentro
algumas pedras para fingir azeitonas, e o apresentou ao suposto cádi, e outros dois meninos
disseram que eram azeitonas. O menino olhou o tarro, fingiu agarrar uma azeitona e comê-la,
e exclamou:
– São excelentes! – dirigindo-se depois aos supostos azeitoneiros, ordenou que
reconhecessem aquelas azeitonas e declarassem quanto tempo conservar-se-iam perfeitas e
boas para comer. Os dois meninos olharam a vasilha, e disseram que aquelas azeitonas eram
novas.
– Enganai-vos – disse-lhes o cádi – estas azeitonas têm sete anos pelo menos. Aí está
Ali Cógia que pôs no tarro antes de seguir para a sua viagem.
– Isso é impossível, senhor – replicam os meninos que faziam o papel de peritos – por
melhor arrumadas e cuidadas que estivessem, nenhuma poderia conservar-se sã além de dois
anos, e se não acreditais perguntai a outros mercadores, e vereis se dissemos ou não a
verdade.
O menino que fazia o papel de mercador acusado por Ali Cógia quis falar para
contradizer o testemunho dos azeitoneiros, mas o cádi não o permitiu, e exclamou:
– Cala-te! És um ladrão! – e em seguida mandou que o enforcassem.
Então os outros meninos aproximaram-se dele, e em meio de aplausos gerais e de
risadas e de cochichos sem fim, fizeram como se fossem enforcar.
Harum-Al-Raschid levantou-se e disse ao grão-vizir que havia também muito atento
escutando:
– Que te parece o julgamento deste tribunal?
– Senhor – respondeu-lhe Giagar – estou admirado do senso de um menino de tão
pouca idade, e duvido que numa causa semelhante um juiz possa julgar melhor.
– Pois fica sabendo – disse-lhe o califa
– que o verdadeiro Ali Cógia me apresentou
esta manhã um memorial sobre este assunto que terei de julgar. Toma nota do número desta
casa, – ajuntou, – e amanhã traze à hora da audiência este menino que representou de cádi,
para que seja o verdadeiro juiz em minha presença, e resolva este caso! Manda vir o cádi para
que aprenda melhor como administrar justiça e previne a Ali Cógia que se apresente como o
tarro de azeitonas, e a dois ou três mercadores deste gênero.
162
O grão-vizir foi no dia seguinte à casa onde os meninos estiveram a brincar na noite
anterior, e perguntou aos donos se tinham filhos e estes lhes responderam que sim e os
apresentaram.
Quando o grão-vizir reconheceu o que havia representado o papel de cádi, e declarou
que o levaria por ordem do califa, os pais se sobressaltaram, mas Giafar tranqüilizou-os
assegurando-lhes que o comendador dos Crentes desejava ver o menino não era para fazer
nenhum mal.
Então, fizeram-lhe vestir roupas limpas e o menino foi com Giafar.
Naturalmente, ao ver-se no palácio, o menino atemorizou-se, mas Harum-Al-Raschid
disse-lhe:
– Aproxima-te, meu filho, não tenhas medo. Não eras tu que ontem à noite brincavas
com outros meninos e fazias o papel de cádi?
– Sim, senhor – respondeu o menino, mais animado.
– Pois bem, agora vais julgar verdadeiramente o pleito de Ali Cógia e o mercador
desonesto que tirou do tarro de azeitonas as mil moedas de ouro que Ali dera para guardar. À
noite eu te vi e te ouvi, e estou muito contente contigo. Vem sentar-te junto de mim.
O califa levantou o menino pela mão e sentou-o ao seu lado, no trono, e, quando os
interessados se apresentaram, disse-lhes:
– Que cada um exponha suas razões; este menino as escutará, e julgará vossa causa, e
se em algo faltar, eu completarei o que faltar.
Ali Cógia aproximou-se e repetiu o que antes havia exposto ante ao cádi, ao que o
mercador desleal respondeu sustentando o mesmo que anteriormente havia dito, isto é, que
não havia tocado no tarro, e por conseguinte não tinha visto nem azeitonas, nem moedas, e
que estava pronto a renovar o juramento.
– Devagar – disse-lhe o menino – espera: quero ver antes o tarro com as azeitonas, e
que venham também dois azeitoneiros.
Ao ouvir isto, Ali Cógia colocou o tarro aos pés do califa, e destapou. O califa olhou
as azeitonas, tomou uma e deu outra ao menino, e, depois de haver provado, perguntou:
– Que te parecem?
– Excelentes, senhor – respondeu o menino.
Em seguida passaram o tarro aos azeitoneiros citados como peritos, os quais declaram
que eram frescas e daquele mesmo ano.
– Estais enganados – disse-lhes o menino – por que estas azeitonas foram postas neste
mesmo tarro por Ali Cógia há sete anos.
– Senhor – exclamaram os azeitoneiros – que as reconheçam todos os mercadores
deste artigo, e se não dizem o mesmo que não, mandai que nos cortem a cabeça. Não há
azeitonas, por boas que sejam, e por melhor preparadas que estejam, que se conservem sem
apodrecer no fim de dois anos. Assim, sustentamos nossas palavras.
O mercador desonesto começou a alegar algumas razões para desmentir a declaração
dos peritos: mas o menino não o interrompeu, nem mandou que o enforcassem que havia feito
na noite anterior.
Começou a olhar o califa fixamente, como se dissesse:
– Isto só a vós compete fazê-lo.
Harum-Al-Rashid, convencido da má-fé do mercador, mandou que o entregassem aos
executores da justiça. Alguns momentos antes de ser enforcado confessou o roubo, e declarou
o lugar que havia escondido as mil moedas. Estas foram entregues a Ali Cógia, que fez um
magnífico presente ao menino que falara melhor que o cádi. Este último foi severamente
repreendido.
163
Depois de abraçar o menino, o califa mandou que o conduzissem à casa e deu-lhe uma
bolsa com cem moedas de ouro, e que declarassem aos pais que a educação do menino corria
por sua conta dali por diante.
(SANTOS, SANTOS, (s.d.). p. 173-180)
Texto 52 – exemplo 37; páginas 88, 109, 115 e 121
Os três grãos de milho (Coelho Neto)
Certo mancebo, cuja infância venturosa fora o mimo dos pais, perdendo-os, achou-se
no mundo , sem amparo nem conselho, tendo, por haveres, as terras férteis de um sítio, onde
havia um paiol abarrotado de milho.
Julgando que nunca se esgotaria tamanha provisão, deixou-se ficar em casa, a comer e
a dormir, vendendo, a quem o buscava, o milho que herdara.
As terras abandonadas foram perdendo o viço, e o mato crescendo vigoroso, em pouco
sufocou as sementeiras.
Uma manhã, ainda nos dias fartos, estava o soberbo e preguiçoso herdeiro a balançar-
se na rede, quando um pobre homem passou, pedindo esmola.
Era um desgraçado que habitava a vizinhança, tendo apenas uma choça e alguns
palmos de terra.
O herdeiro, ouvindo a voz do pobre, longe de compadecer-se, sorriu e, por esmola,
atirou-lhe, com desprezo, três grãos de milho.
Foi-se o pobre sem dizer palavra e o preguiçoso ficou-se a rir balançando-se na rede.
Correram tempos. Já o mato bravo chegava à casa e o rapaz, fiado sempre no paiol de
milho, vivia descuidadamente, quando, recorrendo ao celeiro, achou-o vazio porque toda a
provisão havia passado às mãos dos compradores.
Só então, compreendendo a sua miséria e sem ânimo de atirar-se ao trabalho,
descorçoado, pôs-se a se lamentar e chorava, quando viu chegar, em formoso cavalo, um
homem forte e bem posto que, ao dar com ele em tão miserável condição, deteve o animal e
perguntou:
– Que tendes? Por que assim vos lamentais?
Morro à míngua! – soluçou o infeliz. Tinha um sítio fértil e as ervas más tomaram-
no. Tinha um paiol abarrotado de milho e esgotou-se. Nada mais possuo.
A culpa é vossa, disse o cavalheiro. Julgando que nunca acabaria a herança que
tivestes de vossos pais, abandonaste a terra que, dantes, não negava frutos. Se vos não sentis
com ânimo para cuidar do sítio, vendei-mo. A mim darão bom prêmio as terras que dizeis
estéreis, e, como pegam com o meu sítio, faz-me conta comprá-las para dilatar minha lavoura.
Entremos em ajuste.
E combinaram.
Justamente no dia em que o rapaz recebia do homem o preço estipulado, perguntou-
lhe, o comprador:
- Sabeis com que dinheiro vos pago? Com o que me deram os três grãos de milho que,
desprezivelmente, me atiraste. Levei-os comigo e, como não tinha ferramentas, com as
próprias mãos, fiz uma cova na terra e a terra devolveu-me o depósito, muitas vezes dobrado.
Tratando os grãos que vieram, consegui um canteiro, deu-me o canteiro uma roça, deu-me a
roça um campo, e fui sempre trocando os lucros por novos benefícios: primeiro em sementes,
depois em gado, depois em máquinas e, hoje, com eles, adquiro as terras de onde saiu o
capital modesto com o que comecei a granjear fortuna.
164
“Vede agora o que fiz com três grãos de milho e perseverança, no trabalho, e comparai
com o que acontece, não obstante haverdes possuído terras vastas e um grande paiol testado
de cereal”.
“Não soubestes aproveitar os bens que herdastes e, mais uma vez, com a vossa
desgraça, fica confirmado que a fortuna, seja embora incontável, cede à miséria quando é mal
dirigida”.
“O ouro foge por entre os dedos como a água, e a terra é um cofre, seguro e
maravilhoso, e restitui centuplicado o benéfico que se lhe faz”.
Sem mais dizer – e dissera o bastante – o lavrador deu as rédeas ao cavalo, e foi-se.
(SANTOS, SANTOS, (s.d.). p.183-184)
Texto 56 – exemplo 5; páginas 36 e 56
O califa e o plantador de árvores (Latino Coelho)
Ia o califa Harum-Al-Raschid por um campo, aonde andava a folgar à caça, quando
sucedeu de passar por pé de um homem já mui velho, que estava a plantar uma nogueirinha.
Então, disse o califa aos do seu séqüito:
Em verdade, bem louco deve ser este homem em estar a plantar agora esta nogueira,
como se estivesse ainda no vigor da mocidade e contasse como certo vir a gastar dos frutos
desta planta.
Indo-se então o califa em direitura ao velho, perguntou-lhe quantos anos tinha.
Para cima oitenta, respondeu o velho; mas, Deus seja louvado, sinto-me ainda tão
robusto e saudável como se tivera apenas trinta.
Sendo assim, redargüiu o califa, quanto pensas tu que ainda hás de viver, pois que,
nessa idade já tão adiantada, estás a plantar uma árvore, que, por natureza, só daqui a largos
anos dará frutos?
Senhor, disse o velho, tenho grande contentamento em estar plantando, sem inquirir
se serei eu ou outros depois de mim quem lhe colherá os frutos.
“Assim como nossos pais trabalharam para nos legar árvores que nós hoje
desfrutamos, assim é justo que deixemos outras novas, com que nossos filhos e netos venham
a utilizar-se e a enriquecer. E se hoje nos sustentamos de frutos de seu trabalho, e se foram
nossos pais tão cuidadosos do futuro, como havemos de retribuir em desamor aos nossos o
que de nossos pais recebemos em carinho e providência? Assim, semeia o pai que o filho
possa vir colher.”
Caíram tão em graça as palavras do ancião no ânimo do generoso califa, que logo ali
foi presenteado com uma bolsa cheia de ouro. Então o velho, depois dos agradecimentos que
ditou a sua piedade, tomou argumento para reforçar o que havia pouco dissera, exclamando:
Quem poderá agora dizer que não foi bem galardoado o meu trabalho de hoje, se
esta arvorezinha que eu plantei há pouco, logo ao primeiro dia, me deu frutos sazonados e
valiosos?
Tomai daqui exemplo, meus meninos, e não vos desgosteis do trabalho que fizerdes,
só porque as nogueiras que plantardes vos não possam lisonjear a gulodice, logo ao segundo
dia de as haverdes enraizado na terra; nem vos tome nunca a tentação de largardes as vossas
tarefas úteis, com dizer que os frutos do vosso esforço e trabalho, outros os hão de colher e
não vós. Aprendei a haver por irmão a todos os homens que deus pôs na terra para servirem e
se amarem e auxiliarem mutuamente. Trazei sempre bem vivo nos vossos corações o amor
próximo, seja daquele que vós vedes, e vive a par de vós, seja do que ainda nascerá, porque o
que está vivo tem direito a que o ajudeis para que vos retribua; e o que ainda há de vir, há de
165
conhecer-vos pela herança que lhe deixardes, e abençoar-vos, se a herança for de bem, e
amaldiçoar-vos, se for de mal.
(SANTOS; SANTOS, (s.d.). p.152-153)
Texto 57 – exemplo 30; página 82
Felicidade (Mahdi Fezzan)
Um homem perguntou a um sábio:
– Senhor, tu, que és sábio, podes dizer-me o que é a felicidade?
– Nunca poderia dizer-te. Posso indicar-te apenas o caminho que leva até ela.
– Senhor, ficaria eternamente agradecido se me fizesses este favor [...]
Pois bem: olha para a frente. Que vês?
– Vejo o mundo, senhor [...]
– Olha, mais! [...]
– Vejo campos, vejo serras, vejo nuvens nos céus, bois pastando nos campos [...]
– Olha mais!
– Nada mais vejo, senhor!
– Olha bem [...] bem!
– Senhor, palavra, nada mais vejo senão o que te disse.
– Como queres que te mostre o caminho da felicidade, se é isso apenas o que vêem os
teus olhos?
(SANTOS; SANTOS, (s.d.). p. 154)
Texto 60 – exemplo 36; página 86
O Califa (Florian)
Outrora, em Bagdá, Harum-al-Raschid construiu um palácio mais belo e mais
magnífico do que os de Salomão. Cem colunas de alabastro formavam o pórtico; o ouro, o
jaspe e o mármore decoravam as peças embelezadas por esculturas. Nele se viam reunidos os
tesouros do luxo e os da natureza, flores, diamante, perfumes, mirtos perfumado, obras-primas
de arte, fontes d’água ao lado dos leitos de brocado.
Perto deste belo palácio, bem defronte, à entrada, uma pequena choupana, velha e
gasta, era o retiro de um pobre tecelão.
Lá, contente do pequeno produto de seu grande trabalho, sem dívidas, e sem
preocupações penosas, o bom velho, livre, esquecido, passava os dias tranqüilo, invejado por
ninguém e a ninguém invejando.
O vizir quis, sem processo, que fosse demolida a choupana. Mas o califa impôs, de
antemão, que ela fosse comprada. Era preciso obedecer. Foram procurar o tecelão, em nome o
vizir, e ofereceram-lhe ouro:
Não, guardai o vosso dinheiro respondeu mansamente o pobre homem; com a
minha oficina não tenho necessidade de nada mais; e, quanto à minha casa, não posso
desfazer-me dela. Foi nela que nasci, foi nela que morreu meu pai. Nela pretendo morrer
também. Se o califa quiser, pode expulsar-me daqui; pode destruir-me a choupana; mas se o
fizer, ele me verá cada manhã sentar sobre a última pedra e chorar a minha miséria. Conheço
Harum e o seu coração sofrerá.
(SANTOS, SANTOS, (s.d.). p. 199).
166
Texto 62 – exemplo 20; página 65
Parábola do joio e do trigo
O Reino dos Céus é semelhante a um homem, que semeou boa semente no seu campo.
E enquanto dormiam os homens, veio o seu inimigo, e semeou depois cizânia no meio do
trigo e foi-se. E tendo crescido a erva e dado fruto, apareceu também então a cizânia. E
chegando os servos do pai de família, lhe disseram: Senhor, porventura não semeaste boa
semente no teu campo? Pois donde veio a cizânia? E ele lhes disse: O homem inimigo é que
fez isto. E os servos lhe tornaram: Queres tu que nós vamos e a arranquemos? E respondeu-
lhes: Não: para que não suceda que, arrancando a cizânia, arranqueis juntamente também o
trigo. Deixai crescer uma e outra até à ceifa; e no tempo da ceifa, direi aos segadores: Colhei
primeiro a cizânia, e atai-a em molhos para a queimar; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro.
(Mateus, 13:24-30).
Texto 63 – exemplo 14; páginas 52 e 98
O semeador
Naquele dia saindo Jesus de casa, sentou-se à borda do mar. E vieram para ele muitas
gentes, de tal sorte que entrando em uma barca se assentou: e toda gente estava de pé na
ribeira.
E lhe falou muitas coisas por parábolas, dizendo:
Eis aí que saiu o que semeia, a semear. E quando semeava, uma parte da semente caiu
junto da estrada, e vieram as aves do céu, e comeram-na. Outra, porém caiu em pedregulho,
onde não tinha muita terra: e logo nasceu, porque não tinha altura de terra: mas saindo o sol se
queimou: e porque não tinha raiz se secou. Outra igualmente caiu sobre os espinhos: e
cresceram os espinhos, e estes a afogaram. Outra, enfim, caiu em boa terra: e dava fruto,
havendo grãos que rendiam a cento por um, outros a sessenta, outros a trinta. O que tem
ouvidos de ouvir ouça.
(Mateus 13. 5-8)
Texto 64 – exemplo 35; páginas 85, 109 e 116
O filho pródigo
Um homem teve dois filhos. E disse o mais moço deles a seu pai: Pai, dá-me a parte da
fazenda que me toca. E ele repartiu entre ambos a fazenda. E passados não muitos dias,
entrouxando tudo o que era seu, partiu o filho mais moço para uma terra muito distante num
país estranho, e lá dissipou toda sua fazenda vivendo dissolutamente. E depois de ter
consumido tudo, sucedeu haver naquele país uma grande fome, e ele começou a necessitar.
Retirou-se pois dali, e acomodou-se com um dos cidadãos para a tal terra. Este porém mandou
para um casal seu a guardar os porcos. Aqui desejava ele a encher a sua barriga de lanches,
das que comiam os porcos: mas ninguém lhas dava. Até que tendo encontrado em si, disse:
Quantos jornaleiros há em casa de meu pai, e dir-lhe-ei: Pai pequei contra o céu, e perante de
ti! Já não sou digno de ser chamado teu filho: faze de mim como de um dos teus jornaleiros.
Levantou-se pois, e foi buscar a seu pai. E quando ele ainda vinha longe, viu o seu pai, que
ficou movido de compaixão, e correndo lançou os braços ao pescoço para abraçar, e o beijou.
167
E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu, diante de ti,; já não sou digno de ser chamado
seu filho. Então disse o pai a seus servos: Tirai depressa o seu primeiro vestido, e vesti-lho, e
metei-lhe um anel no dedo, e os sapatos nos pés! Trazei também um vitelo bem gordo, matai-
o, para comermos e para nos regalarmos! Porque este meu filho era morto,e reviveu! Tinha-se
perdido, e achou-se. E começaram a banquetear-se.
E o seu filho mais velho estava no campo e quando veio, e foi chegando a casa, ouviu
a sinfonia, e o coro: e chamou um dos servos, e perguntou-lhe que era aquilo. E este lhe disse:
É chegado teu irmão, e teu pai mandou matar um novilho cevado, porque veio com saudade.
Ele então se indignou, e não queria entrar. Mas, saindo o pai, começou a rogá-lo que entrasse.
Ele porém deu esta resposta a seu pai: Há tantos anos que te sirvo, sem nunca transgredir
mandamento algum teu e tu nunca me deste um cabrito, para me regalar com os meus amigos.
Mas tanto que veio este teu filho, que gastou tudo quanto tinha com prostitutas, logo lhe
mandaste matar o novilho gordo. Então lhe disse o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e tudo
o que é meu é teu: era porém necessário que houvesse banquete, e festim, pois que este teu
irmão era morto, e reviveu: tinha-se perdido, e achou-se.
(Lucas 15.11-32)
Texto 72 – exemplo 55; página 121
Profecia (Afrânio Peixoto)
De todas as incapacidades humanas a mais certa é a de prever. Tão verificada, que,
uma vez em cem, a quem não acontece, logo se lhe confere a admiração e a santidade, e é
profeta. Todos entretanto amam esse ridículo e por isso nada dá certo. Supersticiosamente,
afirmou até Flaubert que o previsto não acontece. Por isso, tal humorista aconselha que se
profetize só o que já aconteceu; está-se mais seguro.
Evidente exemplo dessa enfermidade humana do juízo é este Brasil. Foi a maior obra
das que Portugal fez no mundo. Pois nem sequer desconfiou disso, trocando missangas por
negros da Costa, trazendo porcelanas e temperos das Índias, e nos esquecendo, décadas e
séculos. Tanto era o desprezo, que o Brasil, depois de África, era o último castigo dos
degredos. O rei de Portugal que se ufanava, no título, de todos os defeitos dos seus
navegantes, omitia o Brasil, e ostentava a Guiné, “por uma caravelinha que lá vai e vem”,
como disse o rei do Congo, e repetiu indignado Frei Vicente do Salvador. Nem tomaram
conta efetiva, nem povoaram como podiam, nem aproveitaram como deviam, e, entretanto,
deu nisto [...] o Brasil!
(PEIXOTO, (s.d.). p. 103-104)
Texto 74 – exemplo 15; páginas 52, 65, 100 e 121
Seixo rolado (Afrânio Peixoto)
Era uma vez, branca e rija, soerguida na cumiada de uma serrania, a perder de vista a
planície mesquinha, uma ponta de pedra. Parecia exaltação de orgulho da terra, que, depois de
se levantar com ênfase de ímpetos sucessivos, culminara em desafio ao céu, arrogante e
insolente, arrastando meteoros efêmeros, inacessível, dominadora, como simulacro da
divindade, absoluta e, portanto, solitária, como a imagem mesma do ideal.
Mas um dia, o raio do céu, provocado pela força oposta que sobe do chão, como
ameaça, e se acumula nas postas, chispou-lhe uma faísca de fogo, e a pedra decepada rolou
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pelos flancos da montanha, logo envolvida pela neve das alturas, como consolo, nesse breve
trajeto, da mágoa da primeira decadência.
Adiante outros raios agora do sol, derreteram a bola de neve e com a água do enxurro
desceu o pedacinho de pedra. Correu a veia líquida e o foi levando, de queda em queda,
através de barrancos e ribanceiras, de cachões e socalcos, até a rechã decomposta, de barro
imundo, no qual descansou, em promiscuidade vil, encardida e desprezível, comidas as
saliências, raladas as quinas, no conflito que o seu bruto orgulho de rocha veio travando as
outras rochas vingadoras do caminho.
Por fim, um outro dia, as águas tumultuosas arrancaram o pedacinho de pedra desse
nojo, para outro maior, obrigando-o a correr nos riachos túrgidos que desciam da serra em
torvelinhos de lama e de detritos, até as aluviões empauladas, até o leito dos rios grossos que
deslizam lustrosos e pesados , como serpentes nojentas, coleando no mangue das baixadas.
E na vasa mole e infecta do fundo o pedacinho de pedra, já sem arestas nem pontas, foi
arrastado no bojo túmido da corrente, até o mar, último refúgio, imenso cálice de amargura
que esgota o martírio milenar da terra, trabalhada por tantas dores obscuras, e submersa,
finalmente, sobre a mortalha fria da onda.
Atirado na praia, entre algas e sargaços, lá ficou, poído e roliço, uniforme e indistinto,
na multidão anônima de outros seixos rolados, que talvez foram também, um dia, outras tantas
pontas de rocha, soerguidas e incessíveis , desafiando o próprio céu, no orgulho de um ideal, e
agora, de degradação, aparadas as saliências, roídas as arestas, redondos e iguais, passivos e
dóceis, rolam no refluxo, constante e invariável, da maré morna, da salsugem amarga [...]
Somos todos, na vida, seixos rolados.
(PEIXOTO, (s.d.). p. 5)
Texto 76 – exemplo 48; página 110
A verdadeira historia dos cegos e o elefante (Autor desconhecido)
A história dos cegos e do elefante está disseminada por aí, em várias versões. Mas
nenhuma conta o que aconteceu depois. Corrigimos isso a tempo, confira.
Era uma vez seis cegos à beira de uma estrada. Um dia, lá do fundo de sua escuridão,
eles ouviram um alvoroço e perguntaram o que era
Era um elefante passando e a multidão tumultuada atrás dele Os cegos não sabiam o
que era um elefante e quiseram conhecê-lo.
Então o guia parou o animal e os cegos começaram a examiná-lo:
Apalparam, apalparam...Terminado o exame, os cegos começaram a conversar:
Puxa! Que animal esquisito! Parece uma coluna coberta de pêlos!
Você está doido? Coluna que nada! Elefante é um enorme abano, isto sim!
Qual abano, colega! Você parece cego! Elefante é uma espada que quase me feriu!
Nada de espada e nem de abano, nem de coluna. Elefante é uma corda, eu até puxei.
De jeito nenhum! Elefante é uma enorme serpente que se enrola.
Mas quanta invencionice! Então eu não vi bem? Elefante é uma grande montanha
que se mexe.
E lá ficaram os seis cegos, à beira da estrada, discutindo partes do elefante. O tom da
discussão foi crescendo, até que começaram a brigar, com tanta eficiência quanto quem não
enxerga pode brigar, cada um querendo convencer os outros que sua percepção era a correta.
Bem, um não participou da briga, porque estava imaginando se podia registrar os direitos da
descoberta e calculando quanto podia ganhar com aquilo.
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A certa altura, um dos cegos levou uma pancada na cabeça, a lente dos seus óculos
escuros se quebrou ferindo seu olho esquerdo e, por algum desses mistérios da vida, ele
recuperou a visão daquele olho. E vendo, olhou, e olhando, viu o elefante, compreendendo
imediatamente tudo.
Dirigiu-se então para os outros para explicar que estavam errados, ele estava vendo e
sabia como era o elefante. Buscou as melhores palavras que pudessem descrever o que vira,
mas não acreditaram, e acabaram unidos para debochar e rir dele.
Em terra de cego, quem tem um olho anda vendo coisas
Quando algo é tido como verdade, o que é diferente parece mentira
Problemas comuns unem
Se você for falar sobre um bicho para uma pessoa que nunca viu um, melhor fazer com
que ela o veja primeiro.
(www.possibilidades.com.br)
Texto 77 – exemplo 54; página 121
O anel (Autor desconhecido)
Venho aqui, professor, porque me sinto tão pouca coisa, que não tenho forças para
fazer nada. Dizem-me que não sirvo para nada, que não faço nada bem, que sou lerdo e muito
idiota. Como posso melhorar? O que posso fazer para que me valorizem mais?
O professor, sem olhá-lo, disse:
Sinto muito meu jovem, mas não posso te ajudar, devo primeiro resolver o meu
próprio problema. Talvez depois.
E fazendo uma pausa, falou:
Se você me ajudasse, eu poderia resolver este problema com mais rapidez e depois
talvez possa te ajudar.
C...claro, professor, gaguejou o jovem, que se sentiu outra vez desvalorizado e
hesitou em ajudar seu professor. O professor tirou um anel que usava no dedo pequeno e deu
ao garoto e disse:
Monte no cavalo e vá até o mercado. Devo vender esse anel porque
tenho que pagar uma dívida. É preciso que obtenhas pelo anel o máximo possível, mas não
aceite menos que uma moeda de ouro. Vá e volte com a moeda o mais rápido possível.
O jovem pegou o anel e partiu. Mal chegou ao mercado, começou a oferecer o anel aos
mercadores. Eles olhavam com algum interesse, até quando o jovem dizia o quanto pretendia
pelo anel. Quando o jovem mencionava uma moeda de ouro, alguns riam, outros saíam sem
ao menos olhar para ele, mas só um velhinho foi amável a ponto de explicar que uma moeda
de ouro era muito valiosa para comprar um anel. Tentando ajudar o jovem, chegaram a
oferecer uma moeda de prata e uma xícara de cobre, mas o jovem seguia as instruções de não
aceitar menos que uma moeda de ouro e recusava as ofertas.
Depois de oferecer a jóia a todos que passaram pelo mercado, abatido pelo fracasso
montou no cavalo e voltou. O jovem desejou ter uma moeda de ouro para que ele mesmo
pudesse comprar o anel, assim livrando a preocupação e seu professor e assim podendo
receber ajuda e conselhos. Entrou na casa e disse:
Professor, sinto muito, mas é impossível conseguir o que me pediu. Talvez pudesse
conseguir 2 ou 3 moedas de prata, mas não acho que se possa enganar ninguém sobre o valor
do anel.
170
Importante o que disse, meu jovem, contestou sorridente o mestre. Devemos saber
primeiro o valor do anel. Volte a montar no cavalo e vá até o joalheiro. Quem melhor para
saber o valor exato do anel? Diga que quer vendê-lo e pergunte quanto ele te dá por ele.
Mas não importa o quanto ele te ofereça, não o venda. Volte aqui com meu anel.
O jovem foi até o joalheiro e lhe deu o anel para examinar. O joalheiro examinou-o
com uma lupa, pesou-o e disse:
Diga ao seu professor, se ele quiser vender agora, não posso dar mais que 58 moedas
de ouro pelo anel.
O jovem, surpreso, exclamou:
58 MOEDAS DE OURO!!!
Sim, replicou o joalheiro, eu sei que com tempo poderia oferecer cerca de 70
moedas, mas se a venda é urgente...
O jovem correu emocionado para a casa do professor para contar o que ocorreu.
Sente-se, disse o professor, e depois de ouvir tudo que o jovem lhe contou, disse:
Você é como esse anel, uma jóia valiosa e única. E que só pode ser avaliada por um
expert.
Pensava que qualquer um podia descobrir o seu verdadeiro valor???
E dizendo isso voltou a colocar o anel no dedo.
Todos somos como esta jóia. Valiosos e únicos e andamos pelos mercados da vida
pretendendo que pessoas inexperientes nos valorizem.
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Texto 78 – exemplo 6; página 36
O lenhador e a raposa (Autor desconhecido)
Um lenhador acordava às 6 da manhã e trabalhava o dia inteiro cortando lenha, só
parando tarde da noite. Ele tinha um filho lindo de poucos meses e uma raposa, sua amiga,
tratada como bicho de estimação e de sua total confiança. Todos os dias o lenhador ia
trabalhar e deixava a raposa cuidando do bebê. Ao anoitecer, a raposa ficava feliz com a sua
chegada.
Os vizinhos do lenhador alertavam que a raposa era um bicho, um animal selvagem, e
portanto não era um animal confiável, e quando sentisse fome comeria a criança. O lenhador
dizia que isso era uma grande bobagem, pois a raposa era sua amiga e jamais faria isso. Os
vizinhos insistiam: “Lenhador, abra os olhos! A raposa vai comer seu filho. Quando ela sentir
fome vai comer seu filho!”
Um dia o lenhador, exausto do trabalho e cansado desses comentários, chegou em casa
e viu a raposa sorrindo como sempre, com sua boca totalmente ensangüentada. O lenhador
suou frio e, sem pensar duas vezes, acertou um machado na cabeça da raposa. Desesperado,
entrou correndo no quarto. Encontrou seu filho no berço, dormindo tranqüilamente, e ao lado
do berço uma cobra morta.
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Texto 79exemplo 46; página 109
A mulher perfeita
Nasrudin conversava com um amigo, que lhe perguntou:
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– Então mullab, nunca pensou em casamento?
Já pensei. Em minha juventude, resolvi conhecer a mulher perfeita. Atravessei o
deserto, cheguei a Damasco, e conheci uma mulher espiritualizada e linda; mas ela não sabia
nada das coisas do mundo. Continuei a viagem, e fui a Isfahan; lá encontrei uma mulher que
conhecia o reino da matéria e do espírito, mas não era uma moça bonita. Então resolvi ir até o
Cairo, onde jantei na casa de uma moça bonita, religiosa e conhecedora da realidade material.
– E por que não casaste com ela?
– Ah, meu companheiro! Infelizmente ela também procurava um homem perfeito.
(http://www.possibilidades.com.br/parabolas/mulherperfeita.asp)
Texto 80exemplo 26; páginas 76, 85 e 116
O monge mordido (autor desconhecido)
Um monge e seus discípulos iam por uma estrada e, quando passavam por uma ponte,
viram um escorpião sendo arrastado pelas águas. O monge correu pela margem do rio, meteu-
se na água e tomou o bichinho na mão. Quando o trazia para fora, o bichinho o picou e,
devido à dor, o homem deixou-o cair novamente no rio. Foi então à margem, tomou um ramo
de árvore, adiantou-se outra vez a correr pela margem, entrou no rio, colheu o escorpião e o
salvou. Voltou o monge e juntou-se aos discípulos na estrada . Eles haviam assistido à cena e
o receberam perplexos e penalizados.
– Mestre deve estar muito doente! Porque foi salvar esse bicho ruim e venenoso? Que
se afogasse! Seria um a menos! Veja como ele respondeu à sua ajuda, picou a mão que o
salvara! Não merecia sua compaixão!
O monge ouviu tranqüilamente os comentários e respondeu:
– Ele agiu conforme sua natureza, e eu de acordo com a minha.
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