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“B’lém, B’lém”, já vestido, pronto para desembarcar. Mas esperava a
mãe. Seguro nos cabos do barco “São Pedro”, murmurou:
– Oh, mas esta mamãe custa...
E sentia com a própria impaciência o encanto daquela demora. Tudo
custava. Custou a manobra do barco para entrar no Ver-o-Peso, o cais
das embarcações, as velas que vinham do Guamá, Ilhas, Salgado,
Marajó, Tocantins, Contra-costa... Até vestir aquele fato novo, feito na
loja, custou. A meia custou a entrar, as ligas de borracha apertavam nas
pernas onde as marcas de feridas pareciam doer. O sapato, ao calçar,
doeu-lhe. Agora, o barco descansava naquele abrigo, ao lado do
Necrotério, liberto do mau tempo. Preferia que houvesse atracado
defronte das quatro torrinhas do Mercado de Ferro que davam a Alfredo
a impressão de casas turcas vistas no Dicionário Ilustrado. Ou perto das
canoas de peixe, ou na escada junto às embarcações de mel,
alguidares, jarros e urinóis de barro? Vermelhos urinóis de barro
cozendo ao sol. Mas o “São Pedro”, como todas as embarcações do
Arari, encostavam sempre ao lado do Necrotério, a proa olhando os
velhos sobrados comerciais que se inclinavam para a pequena praça
para saudar, à maneira antiga, as canoas que entravam e saíam. Mais
alto, queixo roçando os telhados, era o morrinho do Castelo, os canhões
sob a erva de são-caetano e um muro em ruína e negror que uma
espessa folhagem tentava disfarçar.
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A maré vazava, escoando a doca. O “São Pedro” chocava-se com os
vizinhos, confundido entre mastreação, cordagens, toldos e proas que
enchiam o Ver-o-peso e arfavam na vazante como se estivessem
fatigados da viagem.
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Alfredo, então, avançou pela proa e saltou na calçada, pisando o chão
da cidade. Viu que andava sobre paralelepípedos (...) Por entre as
pedras do chão da cidade grelava capim. Que luz a do seu olhar cheio
de uma cidade que era só sua, não daqueles barqueiros, nem de sua
mãe nem daquela gente alheia e indiferente que passava. Sua. Mas no
ruído, nas vozes do Ver-o-Peso e no íntimo rumor de suas emoções,
caía como água de fonte a voz de Andreza: “B’lém”... (BGP: 30, 31-2).
Percebe-se que as referências a elementos aquáticos, embora
importantes, de certo modo, dissolvem-se no jogo da enunciação
que demarca um rito de passagem do “desmergulhar” das
entranhas aquáticas da Amazônia interiorana para a “capital-
superfície”. Significantes como cais [do porto], desembarcar,
Tocantins, Ilhas, barco, [rio] Arari (ênfase às reminiscências
marajoaras), maré vazada e vazante (estas duas, note-se, que
denotam a escassez das águas) incorporam-se à escrita na qual
enunciar a dureza da cidade agora se faz importante também.