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ÓPERA- AÇÃO
TRANSCONTEXTUAL:
UMA ABORDAGEM DA
ÓPERA DO MALANDRO DE
CHICO BUARQUE
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
graduação em Letras da Universidade Federal de
Santa Catarina, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Literatura Brasileira.
FLORIANÓPOLIS, ABRIL DE 2005
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2
AGRADEÇO
(Agradecendo) A Tereza Virgínia de Almeida pelos
ensinamentos, paciência e incentivo acadêmico a esse
(muitas vezes) mau orientando
(Plenamente) Ao curso de Pós-graduação em Literatura
da UFSC e à CAPES, pela confiança em meu trabalho
de pesquisa manifesta através da
(importantíssima) bolsa de mestrado
(Dividindo) A Diego Teles, pela amizade e paciência de
ouvir reclamações de ordem diversa desse
(certamente) chato de galocha
(Lembrando) A Michel Marques pela amizade e ensino
quanto a esse “cão que só não late” chamado
(sempre) computador
(Destacando) A Gabriela Machado, Jaciana Melquíades,
Liliane Machado, Tulani Silva por ajudar a adquirir
(nos pontos mais longínquos) bibliografia crucial
(Desculpando-me) A todos que me ouviram falar
quase desesperado desse processo de mestrado
(com certeza) conturbado e “orgulhante”
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4
ABSTRACT
This paper is focused on an investigation of possible trans-contextualization in the
play Opera do Malandro, which can be translated as “Hustler Opera”. Chico Buarque de
Holanda wrote this play. A hybrid approach is dealt with; it mixes parady with formality
and uses terms, songs and speech of the present play. This play is in itself a parody web
which rebuilds since the XVIII century. It goes by innumerous esthetics transformations till
it finally can, at a point, be called “Brazilian”. The Action-Opera tries to analyze some of
the possible resources of the Chico’s play, which is dated in 1978. “Hustler Opera” sets
beside the critical Brazilian dramaturgy of the 60s and 70s. The concept of the parody and
irony are presented, and the way in which they melt in order to develop the term “trans-
contextualization” which is one of the pillars of the play. The fictional time of the play
lies in the 40s, however, as it was said before, the play was written in the late 70s. In both
of the decades, a longing for a full democratic political system marks. The discussion of the
“hustler” figure is opened as a development of a search of a Brazilian Identity. The myths
that are built around this character in literature are also observed. Beside these themes, the
possible connection between the phenomenon “review Theater” in Brazil and the “Hustler
Opera” presented.
Key-words: transcontextualization national identity musical theater (opera).
5
PRÓLOGO
Este trabalho tem como foco a investigação de possíveis fontes
transcontextualizadas presentes na peça Ópera do malandro, escrita por Chico Buarque. A
abordagem que faço é hibrida, misturando paródia com formalidade e se utilizando de
termos, canções e falas da peça apresentada. Esta peça se insere numa rede paródica que
remonta ao século XVIII e vem passando por diversas transformações estéticas até o ponto
de poder ser dita “brasileira”. A “Ópera-ação” busca analisar algumas das possíveis fontes
da peça escrita em 1978 por Chico Buarque de Holanda, em consonância com a
dramaturgia de crítica social dos anos 60 e 70. Apresento na dissertação o conceito de
paródia e ironia e como eles se fundem para dar origem ao termo “transcontextualização”,
um dos pilares da abordagem da peça. A década de 40 é o período ficcional da Ópera
escrita por Chico Buarque nos anos 70. Duas épocas, os 40 e os 70, vivem a ânsia por um
regime plenamente democrático. O trabalho discute a figura do malandro enquanto
construção da identidade brasileira e os mitos reproduzidos na literatura acerca dessa
personagem. Além desses temas, as possíveis ligações entre o fenômeno do Teatro de
Revista no Brasil e a Ópera do Malandro são apresentadas.
Palavras-chave: transcontextualização identidade nacional teatro musicado (ópera)
6
SUMÁRIO
ABSTRACT 4
PRÓLOGO 5
1.GÊNESE E O FIM 8
1.1 A PEÇA 12
1.2 POR QUE ÓPERA? 20
1.3 CONCEITO DE PARÓDIA, IRONIA E
TRANSCONTEXTUALIZAÇÃO 24
1.4 CHICO BUARQUE, 40 ANOS DE CARREIRA 25
E BUDAPESTE
1.5 ATUALIDADE DA PEÇA 32
1.6 OBJETO DE ESTUDO 37
1.7 FILME (1986) E MONTAGEM (2003) 39
1.8 CAPÍTULOS 43
2. TRANSCONTEXTUAZINHA 45
2.1PARÓDIA EM CADEIA 47
2.2 TÍTULOS 51
2.3 ESTRUTURAS 52
2.4 ABERTURAS E PEIMEIRAS CENAS 59
2.5 CENAS SEMELHANTES 61
2.6 CANÇÕES E INTÉRPRETES 66
2.7 PECULIARIDADES DAS TRÊS VERSÕES 71
3. TROCENTOS ANOS 77
7
3.1 POSSÍVEIS ANTECEDENTES DO MALANDRO 78
CARIOCA
3.2 DIALÉTICA DA MALANDRAGEM 83
3.3 ORDEM E DESORDEM, REDUÇÃO ESTRUTURAL 87
3.4 PRESSUPOSTOS, SALVO ENGANO, DE “DIALÉTICA
DA MALANDRAGEM” 94
3.5 SURGIMENTO DO MALANDRO CARIOCA 98
3.6 POPULAR ELEVADO A NACIONAL 103
3.7 A ÓPERA E A DECADÊNCIA DO MALANDRO 106
4. UMA REVISTA DESNATURADA 111
4.1HISTÓRIA DO TEATRO DE REVISTA 113
4.2 ESTRUTURA 116
4.3 TEMAS E PERSONAGENS-TIPO 123
4.4 CARICATURA VIVA E O ESTILO BRASILEIRO 125
4.5 ÓPERA DO MALANDRO COMO RE-VISÃO 130
5. HOMENAGEM AO EPÍLOGO 141
5.1 CONTEMPORANEIDADE DA PEÇA
5.2 RESGATANDO CAPÍTULOS E PERSONAGENS 144
5.3 JOÃO ALEGRE, O MALANDRO AUTOR E A
BRASILIDADE RECORRENTE 147
6. BIBLIOGRAFIA 148
7. ANEXOS 156
- Anexo I: Letras das canções da Ópera do Malandro 157
- Anexo II: Cd com as canções do disco gravado em 1979 188
8
1. GÊNESE E O FIM
1
DE TUDO QUE É TEXTO TORTO
NO BRASIL , ESPANHA OU PORTO
ELA JÁ REMEMORADA
O SEU CORPO NÃO É ESTANQUE
SE TRANSFORMA A CADA INSTANTE
E SEMPRE É UTILIZADA
EM GERAL SEM VERSO OU RIMA
A PESQUISA A DETERMINA
É IMPORTANTE DE FATO
ESTUDANTES DESATENTOS
FAZEM DELAS SEUS TORMENTOS
SÃO MOLEQUES INSENSATOS
MAS TAMBÉM VAI AMIÚDE
CO’OS DOUTORES SEM SAÚDE
E OS MESTRANDOS SEM DORMIR
UM POÇO DE ATROCIDADES
POR ISSO A UNIVERSIDADE
VIVE SEMPRE A REPETIR
JOGA NA INTRODUÇÃO
FOCA NA INTRODUÇÃO
ELA DEVE CONTEMPLAR
TODA E QUALQUER INTENÇÃO
EXPLICAR O TEXTO INTEIRO
NA INTRODUÇÃO
1
Paródia da letra da canção Geni e o Zepelim Anexo I, p. 177
9
UM DIA SURGIU PULSANTE
DIPLOMA DETERMINANTE
QUE FAZER? PERGUNTA ENFIM
TENDO NA ARTE SEU OFÍCIO
TODOS SABEM O SACRIFÍCIO
PRA SE SUSTENTAR ASSIM
E O GAROTO APAVORADO
SE ENXERGOU PETRIFICADO
COM BAGAGEM NA BOLÉIA
SER UM ETERNO ESTUDANTE
PONDEROU SER IMPORTANTE
UMA DOUTORA ACEITA A IDÉIA
QUANDO VIU NESSA IDADE
TANTA CRIATIVIDADE
RESOLVEU O ADMITIR
MAS PARA ALCANÇAR A FAMA
TEM QUE LER E NÃO RECLAMA
VAI RALAR! VAI TER QUE OUVIR
PENSA NA INTRODUÇÃO
DISCIPLINA É INTRODUÇÃO
SER ALUNO ESPECIAL
CONHECE A INSTITUIÇÃO
PREPARAR O PRÉ-PROJETO
DA INTRODUÇÃO
10
ESTUDANTE SE REVELA
DISCIPLINA COMO AQUELA
O CATIVA POR INTEIRO
PARA SER VITORIOSO
TEM QUE ENTREGAR ORGULHOSO
UM TRABALHO VERDADEIRO
E A FÓRMULA ERA BELA
BRINCA COM PALAVRAS, ZELA
É MAIS UM DENTRO DOS NICHOS
OSTENTAR ESTRUTURA NOBRE
TEM QUE DEIXAR DE SER POBRE
BOLSA JÁ NÃO É CAPRICHO
VIAGEM LONGA QUERIA
ESCREVENDO VIAJARIA
UM PROJETO TEM NA MÃO
TEM QUE SEGUIR OS CONSELHOS
BONS ESCRITOS SÃO ESPELHOS
DE UMA CLASSIFICAÇÃO
PROJETA UMA INTRODUÇÃO
RECORTA ESSA INTRODUÇÃO
PROFICIÊNCIA PASSAR
CONQUISTAR TITULAÇÃO
LER E COMENTAR COM CLASSE
NA INTRODUÇÃO
11
E RENOVA-SE O SENTIDO
É BOLSISTA CONSENTIDO
NAS DISCIPLINAS CRIA CASCO
NESSA TRILHA EMOCIONANTE
COM O PASSADO CONFLITANTE
CANCELOU FESTA E CHURRASCO
E ELE FEZ TANTA BOBEIRA
PERDEU TEMPO COM BESTEIRA
ATÉ ACORDAR ATROPELADO
MAS ENQUANTO A DOR SENTIA
PERCEBEU QUE ALI HAVIA
UM ESTUDANTE DE MESTRADO
NUM RETIRO ENTÃO FORÇADO
RECORREU AO SEU PASSADO
PARA UM SÁBIO RESSURGIR
CÁ ESTÁ NA ACADEMIA
VAI FAZER DE CADA DIA
UM MOTIVO PRA SORRIR
ESSA É SÓ A INTRODUÇÃO
MUTANTE INTRODUÇÃO
TEVE MUITO A DESPERTAR
PARA QUALIFICAÇÃO
APAGAR E REFAZER
É A INTRODUÇÃO
12
Edição capa dura da peça (1978) Capa do disco (1979) Cartaz do filme (1985) Capa do cd da montagem (2003)
1.1 A Peça
Está aberta a sessão. Bem vindos, leitora ou leitor, para essa ópera-ação que visa
mergulhar nos fecundos campos transcontextuais através de uma história recontada. Não se
sabe ao certo quem a contou pela primeira vez, dada a gama de referências externas que
essa história nos traz. É uma história de avesso, de desnaturalização, de anti herói, de
crítica social, de redução estrutural de sociedades em períodos conturbados. Meu foco aqui
é um pedaço dessa história, publicado em 1728 por um sujeito chamado John Gay
2
. E eis
que um autor alemão pega o mesmo pedaço, inclui alguns outros e republica em 1928
3
. Em
2
A Ópera do mendigo foi escrita em 1728 e foi apresentada pela primeira vez em janeiro de 1729.
A peça de John Gay procura discutir o “sofrimento” imposto às pessoas de menor condição
financeira (pobres), pelos ricos numa sociedade corrupta. É um texto que também discute
corrupção, de várias formas. Em 1727, John Gay adquiriu uma coleção de textos com fábulas “à la
Esopo”, com lições de moral e conteúdo satírico. Esse fato parece haver inspirado o autor a escrever
sua obra moralizante e satírica, segundo Richard Bear. O espetáculo, em suas primeiras temporadas,
alcança um sucesso muito grande, chega a ser a primeira comédia musical apresentada na colônia
americana (Nova York). O texto é editado (e pirateado) diversas vezes, e as músicas são cantadas
em todos os lugares. Richard Bear, no prefácio de The beggar’s opera John Gay, University of
Oregon, 1992.
3
Bertolt Brecht, que havia servido o exército num hospital em pleno campo de batalha
(1918), pode ser considerado o maior expoente do Teatro Político, inaugurado por Erwin
Piscator. Este chegou a montar espetáculos para entreter os feridos durante a Primeira
Guerra, e depois dela tentou formular a idéia de um teatro que rompesse com o aparato
realista que invadia os palcos do século XX. Bertolt Brecht e Erwin Piscator chegaram a
trabalhar juntos. Brecht, como diretor, e dramaturgo, potencializa os princípios formulados
13
1978, cá com os tupiniquins, Chico Buarque de Holanda publica sua Ópera do malandro,
um pedaço bem digerido do discurso transcontextualizado sob a forma de texto dramático.
Esse é o mosaico que estudo aqui: a peça lançada no Brasil na década de 70, em sua
comunicação com os textos estrangeiros e com a história do teatro e da música brasileira.
Como se pôde perceber no “Prólogo”, esse texto é um misto de paródia e
formalidade, com personagens e letras de canções saltando para explicitar, (quase)
didaticamente, um ponto de vista sobre a Ópera do malandro. Os títulos das seções desse
trabalho trazem expressões utilizadas na peça (como “Prólogo” e “Epílogo”), e recriações
paródicas de alguns títulos de canções (também do texto dramático). O título da presente
Introdução, “Gênese e o fim”, faz referência ao título da canção Geni e o Zepelim, de Chico
Buarque. Cada seção ainda contém uma paródia da letra de canções inclusas na Ópera.
Solange Ribeiro, um dos referenciais de minha abordagem, afirma que no texto de Chico
Buarque há “malandros e malandros”
4
. Praticamente todas as personagens têm um
comportamento que pode ser encarado como “malandragem”. Sejam elas burguesas,
miseráveis, exploradas, ingênuas, espertas, todas (e são mais de 20) são malandras, vivem
num entrelugar. Não têm ethos fixo, são personagens cambiantes entre a ordem e a
desordem, entre o “cá e o lá”. Aceito essa teoria e o que busco é desenvolver minha
apresentação com foco em algumas personagens da peça, diferentes por detalhes, mas
essencialmente malandras. Impregno esse texto com referências a falas e canções de
algumas personagens.
As canções parodiadas no início de cada seção denunciam a personagem/entidade
que irá “baixar” a cada capítulo. “Gênese e o fim”, por exemplo, indica que este capítulo
servirá como “cavalo” para Genival, o travesti malandro da peça de Chico Buarque, que
por Piscator, e deixa uma obra que influencia o teatro até hoje. Em 1928, cerca de dois
séculos após a estréia do texto de John Gay, é escrita uma paródia da Ópera do Mendigo,
chamada Ópera dos três Vinténs, uma das peças mais conhecidas de Bertolt Brecht. A peça
estréia em 31 de agosto do ano em que foi escrita, em Berlim.
4
Solange Ribeiro, faz diveras referências à malandragem multifacetada da peça de Chico Buarque.
Ela afirma que o autor desdobra a figura irisada do malandro em feixes de personagens,
correspondentes às diferentes conotações da palavra; diz ainda que não há um, mas diferentes tipos
de malandros na ópera brasileira; e que, na peça de Chico, todas as personagens são malandras, num
ou noutro sentido da palavra, sugerindo o encontro de grupos sociais antagônicos, comun às três
óperas. Mas as personagens são malandras em acepções e intensidades diferentes. Solange Ribeiro
de Oliveira, De mendigos e malandros: Chico Buarque Bertolt Brecht e John Gay uma
leitura transcultural, 1999, p.16,38,144
14
nos canta essa história trágica em que “ela é feita pra apanhar/ ela é boa de cuspir”. Por que
Geni para essa introdução? A personagem na Ópera pode ser lida como um verdadeiro
coringa, pois freqüenta a casa dos Duran, faz parte do bando de malandros, é próxima de
Max Overseas, está junto às prostitutas, enfim, interfere em todos os espaços
5
. Assim deve
ser a introdução, deve contemplar toda e qualquer intencionalidade. Como a personagem,
ela é multifacetada. Como na canção , ela “dá pra qualquer um”. É certo que a personagem
cria outra personagem na canção, contando detalhes próximos de sua trajetória,
metaforicamente. Da mesma maneira que na canção, a personagem Max não dá muita
atenção para o que a personagem tem a dizer. Ela tenta avisar que a personagem Tigrão está
chegando ao casamento, mas Max ignora, até porque já espera o policial. Geni tenta avisar
Max que suas atitudes levariam a uma traição que acaba ocorrendo, mas mesmo assim Max
não lhe dá crédito. As personagens em geral dependem de Geni, que tem informações sobre
o paradeiro de Max e cobra caro para fornecê-las. A relação de descrença (por parte de
Max) e de dependência (por parte de Duran, Chaves e Vitória principalmente) pode ser
observada na canção. São duas personagens que fundem-se. A cena em que Geni canta a
canção é o momento de sua cartada maior como malandra. Vitória, Duran e Chaves, estão
afoitos para saber onde estaria o malandro Max Overseas, e Geni afirma que só diz se eles
escutarem uma canção. O travesti Genival pede alguns conhaques para o casal Duran e o
inspetor Chaves, e enquanto a aflição dos três aumenta, Geni vai subindo seu preço, pela
informação que vai de trinta e um contos para noventa contos. Quando todos pagam a
personagem começa a cantar
6
.
Geni e o Zepelim talvez seja a canção da peça que mais encarna a teoria de Bertolt
Brecht, em relação à música no espetáculo. O autor alemão diz que a música não deve
embalar o público, as quebras e rupturas são mais interessantes. A platéia tem que ser
provocada. A canção começa com melodia suave e longa, e no seu refrão surgem gritos de
protesto ou falsidade em relação à personagem-título da música. Uma quebra evidente, que
5
Geni ocupa inclusive um espaço impreciso entre os gêneros masculino e feminino, aproximando-
se da idéia de travestismo. A personagem é tratada na peça com a mistura de simpatia e reserva
sempre latente enquanto representação da malandragem. Na letra da canção por ela cantada Geni
e o Zepelim a personagem parece incorporar algo do magnetismo ambíguo do malandro. O
travestismo de Geni pode ser visto, assim, como uma oscilação entre dois contrários enfim, como
uma manifestação de malandragem sexual. Solange Ribeiro, op. cit., p.16, 165, 171.
6
Chico Buarque, Ópera do malandro, p. 152-159.
15
retorna para a calmaria e que volta para o andamento acelerado até sua finalização. Outro
detalhe interessante que essa canção condensa é o efeito de contraste. Brecht também
defende que a letra não deve acompanhar a melodia. A lírica de “Geni e o Zepelim” é forte,
carregada de tensão, de dramaticidade, mas a melodia nos conduz a uma leveza
transcendental. Além de transcontextual, pois há evidências de que essa canção seja
inspirada numa canção de Brecht e num conto. Conto? Não vou contar, ainda é muito cedo.
Discorro brevemente sobre a canção rememorando o mesmo efeito tenso que Geni
imprime em seus espectadores antes de cantar Geni e o Zepelim. Sei que estão interessados
em saber o que especificamente analiso nesse texto, que viés, que referências, como,
porquês, etc. É bem provável que os títulos das seções tenham provocado curiosidade. Que
personagem para cada seção? Qual a próxima paródia? Qual o porquê das personagens e
canções? Infelizmente, ou felizmente, leitora ou leitor, terá que esperar um pouco para
sanar suas curiosidades, ou dar a sorte de abrir na página certa para desvendar qualquer
dúvida. Não recomendo, pois há, nesse entremeio, algumas questões interessantes. É
importante explicar que muitas vezes as notas de rodapé contêm explicações
pormenorizadas de alguns conceitos e informações, por isso a utilização de fonte Times
New Roman 11 e não 10, como se costuma. As notas são uma espécie de texto paralelo em
muitos capítulos dessa dissertação e aumentar o tamanho da fonte me parece uma maneira
de facilitar para a leitora ou o leitor a apropriação de toda a dissertação. Paulatinamente
desenvolvo meu pensamento, acompanhado pela personagem Genival e pela canção que
canta.
Daqui a alguns parágrafos, por exemplo, estou sanando as dúvidas sobre a
localização, no discurso histórico, das três versões desse “pedaço da história”. Falo do autor
da versão brasileira e de algumas “embalagens” que a peça recebeu com o passar dos anos.
Da mesma maneira que disserto sobre a fábula da peça brasileira e sobre que posição
ocupam essas personagens que cito anteriomente.
- Então eu vou atrás.
A frase acima é uma das falas de Geni na página 112 da Ópera do malandro, e a
única em todo o corpo desse trabalho que conterá uma explicação, apenas por ser a
primeira. As falas dessa entidade contaminam muitos pontos dessa seção e, por vezes, nessa
ou em outras seções, dialogo com personagens, às vezes respondendo perguntas ou
16
retrucando provocações. Quero deixar claro que as falas são retiradas da peça de Chico
Buarque sem que lhe sejam inclusas sequer uma vírgula. As falas estão dispostas sem aspas
e em negrito. Caso não acredite em mim, leitora ou leitor, leia o texto inteiro à procura das
falas, pois também não indico as páginas.
A Ópera do Malandro, escrita por Chico Buarque entre 1977 e o ano seguinte,
estreou no Teatro Ginástico em julho de 78. A primeira montagem foi realizada no Rio de
Janeiro. Um ano depois, a peça foi montada em São Paulo. 1979 foi também o ano em que
foi lançado o primeiro LP com a maioria das composições presentes no texto. A Ópera do
malandro é uma comédia musical em que Chico Buarque demarca com fatos concretos a
época em que se passa a trama, assim como faz John Gay. Apesar da aparente centralidade
do bandido Max (que conduz mais a ação que Macheath, na peça de Brecht), pode-se dizer
que nesse texto não há, de fato, um protagonista, mas uma disputa constante entre diversos
malandros, diferente das outras peças
7
.
Max é um contrabandista burguês, mais próximo da tipificação do bandido
Macheath do que do malandro carioca que teria existido nos anos 30 e 40 do século
passado. É burguês porque é conformista, porque quer “status”, e possui hábitos constantes,
como o fato de sempre ir ao cabaré às sextas feiras
8
. Esse bandido possui um código de
honra complexo, cobrando de seus 6 comparsas ajuda nos momentos difíceis em virtude de
“palavras dadas” ou amizades de longa data. A personagem impõe, ordena, e em geral não
dá muita liberdade para os seus empregados Barrabás, Johnny Walker, Philip Morris, Big
Ben, General Eletric e Genival.
- O meu patrão é o Max e o que ele ordena eu obedeço.
Sei, Geni, mas é interessante observar que ele próprio, no entanto, é falso,
mentiroso, explorador, e durante todo o tempo representa para as outras personagens o tipo
7
Bernard Dort estabelece uma relação entre as duas primeiras óperas afirmando que, em Gay, são
as peripécias do bandido Macheath e seu bando que constituem a ação, enquanto que na peça de
Brecht, o comerciante explorador Peachum e seus mendigos “lhe disputam a primazia” . Uma outra
consideração feita por Dort é a de que as personagens da Ópera do mendigo remetem o público da
época (séc. XVIII) diretamente a seus modelos, esse público não tem dificuldades em identificar a
sociedade que é questionada como sendo sua. Na Ópera dos três vinténs, a identificação da
sociedade de 1928 não se dá numa relação direta. A peça procede por alusões e por ecos filtrados
através da espessura de duas ou três épocas. Bernard Dort, O teatro e sua realidade 1977, p. 331-
333.
8
Chico Buarque, op. cit., p. 117.
18
nem o próprio Max não parecem ter muita ligação com a capoeira, e em vez da navalha,
parecem preferir o revólver. Para o chefe da gangue, o casamento com Teresinha é um
meio de consolidar seus negócios, pois prevendo que precisa se ausentar muitas vezes,
duvida que possa confiar em seus comparsas, de quem cobra confiança. Teresinha, por sua
vez, é evidentemente burguesa, filha do dono de uma rede de bordéis. Foge do lar para se
casar com o malandro Max Overseas, como suas “fac símiles” Polly Peachum fogem para
casar com Macheath. Em relação às personagens Polly Peachum, das outras óperas, a figura
de Teresinha indica um vigor em suas atitudes e “tino comercial” que rompe com a idéia
patriarcal que recobre as fábulas anteriores.
- Pra mim ela tá naqueles dias.
A personagem de vinte e três anos indica ter consciência de que seu casamento é
uma afronta para seu pai. Mas mesmo assim, quando Duran ameaça liquidar Max, ela se
refere à atitude como sendo um péssimo negócio e é ela quem se oferece para cuidar dos
negócios do marido enquanto foge
16
. Na família de Teresinha, a estrutura patriarcal se
mantém. Fernandes de Duran, pai da futura esposa de Max Overseas, aparece inicialmente
na peça como o Produtor do espetáculo. A proposta de Chico Buarque é a de que um
mesmo ator faça os dois papéis. O Produtor dá explicações sobre o espetáculo que o
público irá ver e apresenta tanto o autor quanto a “patronesse” do espetáculo. O autor,
vestido de malandro carioca, é a personagem João Alegre. A “patronesse” é uma socialite
chamada Vitória Fernandes de Duran, que preside a entidade que vai receber integralmente
a bilheteria da encenação
17
. A imagem da “presidente da Morada da Mãe Solteira”, nessa
cena, parece sobrepor-se, em grau de importância, à imagem do Produtor, que indica ser
subserviente à personagem que vincula o nome de sua entidade beneficente ao espetáculo.
A personagem “Produtor” faz elogios rasgados à “patronesse”, cuja organização tem
prestado serviços inestimáveis à sociedade
18
. A personagem Produtor antecipa para o
público que a personagem Vitória interpreta um papel da peça naquela noite. A personagem
“patronesse” representa a mulher de Duran com o mesmo nome anterior: Vitória Fernandes
de Duran. Aí os valores se invertem. O Produtor, depois da Introdução e do Prólogo, vira
Fernandes de Duran, um patriarca dominador que submete e humilha sua esposa Vitória.
16
Idem, p. 37, 49, 87,107.
17
Idem, p.20.
18
Idem, ibidem.
19
- Ótario!
Duran, junto com sua esposa, sonha em fazer parte da alta sociedade. Vitória, mãe
de Teresinha, lamenta-se por ninguém a convidar para “festas de alta patente” e, referindo-
se a uma cerimônia de que teve notícia, afirma que só ficaram de fora o “sapo”, “o time de
futebol” e o casal Duran. Assim como muitas personagens da peça, Vitória tem uma
adoração pelo estrangeiro e afirma que sua mãe era “francesa legítima”
19
.
Além desses personagens, a peça conta ainda com um policial corrupto (sócio do
contrabandista Max e do comerciante Duran), chamado Chaves. Há todo um bando de
malandros, comparsas de Max, do qual se destaca a personagem homossexual Geni que,
como disse, possui trânsito livre na casa dos Duran.
- É isso mesmo.
Para completar a estirpe de miseráveis, a peça conta com as prostitutas, funcionárias
de Duran. Há também outras personagens secundárias como o juiz e o oficial Jarbas,
totalizando 24 personagens.
A peça, que possui 16 músicas, encontra-se dividida em dois atos. Antes do
primeiro ato, há uma “Introdução” e um “Prólogo”, que são seguidos de 3 cenas. Antes do
segundo ato, temos outro “Prólogo”, 7 cenas, um “Intermezzo” e dois epílogos (um
“Epílogo ditoso” e o “Epílogo do epílogo”). A peça possui uma estrutura incomum no
teatro brasileiro, e algumas diferenças em relação a suas obras matrizes nesse processo de
transcontextualização.
- Estou vendo uma coisa! Ah, uma mulher muito importante na sua vida.
Bem lembrado, Geni, acho que esse momento é interessante para destacar que o
conceito de transcontextualização
20
que utilizo é proveniente dos estudos de Linda
Hutcheon, principalmente os condensados em Uma teoria da paródia. A autora afirma que
19
Idem, p. 70, 80.
20
Para Linda Hutcheon, a transcontextualização, ou mudança de contexto que possibilita mudança
de interpretação, compõe a essência da paródia. A autora afirma que até a citação mais literal passa
a ser uma espécie de paródia por causa da transcontextualização. Essa aproximação entre citação e
paródia se dá porque a repetição transcontextualizada é uma das características da paródia, embora
a citação não contenha toda a carga crítica presente no segundo termo. O tipo de paródia que deseja
analisar em seus estudos é um processo integrado de modelação estrutural, de revisão, de
reexecução, de inversão e de transcontextualização de obras anteriores. Linda Hutcheon conceitua
paródia como um canal importante para que os artistas modernos cheguem a acordo com o passado
através da recodificação irônica ou da transcontextualização. Linda Hutcheon, Uma teoria da
paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX, p.22,59,128.
20
“a transcontextualização paródica pode tomar forma de incorporação literal de reproduções
na nova obra (...) ou de um refazer dos elementos formais”
21
.
Investigo os conceitos de paródia e ironia presentes na obra de Linda Hutcheon. O
presente conceito de transcontextualização parece estar em ressonância também com a
“leitura transcultural” proposta no título da obra de Solange Ribeiro. Uma similar condição
de transformação, em que uma obra original e criativa irrompe, apesar de ser calcada numa
base familiar e estruturada. Uma teoria da paródia, entretanto, não parece ter sido utilizada
por Solange Ribeiro.
- Olha, eu não conheço a moça, mas parece que ela é louça fina.
1.2 Por que ópera?
Certamente, e a análise que faço é iluminada por diversas questões propostas por ela.
Alguns questionamentos que Solange Ribeiro não faz são centrais para mim. Parece,
inclusive, que a autora aceita sem muita discussão que as três peças sejam chamadas de
ópera. Por que “ópera”?Para entender o porquê dessa peça de Chico Buarque ser chamada
de “ópera”, é preciso remontar a uma característica essencial desse gênero artístico
22
.
Ópera é “música escrita para ser encenada”, para ser executada durante uma representação
teatral, são partituras que pressupõem e determinam, em diversos níveis, concepções que as
transfiguram. Essa transfiguração se dá pela posição que as partituras ocupam na ópera,
pois muitas vezes a melodia reforça o sentido dramático presente no enredo. Segundo
Fernando Peixoto, a ópera materializada, seja em espaço e imagem ou em espetáculo
singular e fascinante, é contraditória e complexa, justamente porque integra numa unidade
concreta diversos elementos, aparentemente conflitantes
23
. A ópera pode ser lida como uma
recodificação do fazer teatral, que já contém em si elementos plásticos, cênico-corporais e
21
Idem, p. 20.
22
A tradição de óperas vem da Europa, mais especificamente da Itália, e o peso histórico que esse
gênero possui, por vezes se contrapõa a visões contemporâneas do fazer operístico. Na
contemporaneidade, os mais jovens pensam a ópera como um sinônimo de velhice e chatice ou
como uma celebração repetitiva de um ritual do passado e para o passado. Concomitante a esse fato,
“os arautos da pureza” e da tradição, quando se encontram diante de um espetáculo de ópera,
comportam-se muitas vezes como vítimas talvez inconscientes de um feitiço. Parece que os mais
conservadores em relação à estrutura do gênero buscam a música como se buscassem um narcótico.
As gerações mais novas costumam ser preconceituosas em relação às óperas clássicas e os amantes
da ópera tentam fixá-la numa forma que resiste aos séculos. Essa discussão a respeito de ópera, de
Fernando Peixoto, é exposta em Ópera e encenação. 1986, p.15.
23
Idem, ibidem.
21
musicais. Através da ópera, a música é elevada a um patamar diferenciado em relação aos
outros adventos artísticos, sem negá-los.
O que se percebe na contemporaneidade é um processo de re-teatralização do
espetáculo de ópera, sem significar a diminuição do papel hegemônico da música
24
. O
significado dessa re-teatralização se assenelha ao que se tem observado, há alguns anos,
com o teatro dramático. Este liberta-se de uma série de preconceitos que sacralizam a
dramaturgia tradicional e intentam controlar a emergência de uma nova expressão. A ópera
permanece prisioneira dessa falsa concepção de tradição e respeito até quase os anos 60
25
.
Mas, enquanto gênero teatral executado a partir da música, ou enquanto gênero musical que
se realiza através da encenação, o fazer operístico não deve ser confundido eternamente por
uma discutível poética coberta pela poeira de séculos
26
. A ópera é inesgotável em suas
possibilidades de expressão e certamente liberta-se hoje dos limites impostos pela
tradição
27
.
Fernando Peixoto cita Brecht ao afirmar que o diretor alemão relaciona o desejo de
transformação e inovação com uma problemática que muitos preferem adiar: o significado
social da mutável necessidade da ópera. Primordialmente, o gênero surge com o requinte da
burguesia renascentista, que quer, através de um processo de identificação, ver seus dramas
reproduzidos no palco. Na contemporaneidade, essa mesma classe burguesa passa por
inúmeras transformações e ainda há os que continuam pregando uma concepção de
espetáculo operístico tradicional. Brecht discute politicamente o sentido de ópera na
sociedade e seus princípios fundamentais, que são históricos e transitórios
28
. O esforço de
re-teatralização da ópera é coincidente com a sua emancipação. Como o teatro falado, a
ópera enquanto espetáculo só adquire um significado expressivo melhor elaborado quando
assume e aprofunda sua teatralidade, inclusive questionando-a
29
. Esse questionamento
metateatral/metaoperístico é um dos caminhos seguidos por Bertolt Brecht, dramaturgo e
24
Idem,p.16
25
Idem,p.20
26
Idem,p. 24
27
Idem, p. 25
28
A análise do discurso brechtiano sobre a ópera é uma das citações feitas por Fernando Peixoto em
seu livro Ópera e encenação. Fernando Peixoto, op.cit., p.25
29
Idem,p.28
22
diretor que procura aplicar a crítica interna do fazer artístico em suas peças, esquetes e
óperas.
Mas, apesar de toda essa discussão sobre re-teatralização, questionamento interno e
transitoriedade da forma operística, a Ópera do malandro não poderia, formalmente, ser
chamada de “ópera”, está claro?
- É claro que não tá.
A Ópera do Malandro é um “singspiel”
30
, como suas matrizes, mesclando gêneros
musicais brasileiros com cenas faladas. É possível que John Gay tenha mantido o nome
“ópera” num jogo irônico com as obras de Händell. Aqui, apesar de saber que se trata de
um gênero herdado do teatro medieval, continuo a me referir à peça de Chico Buarque
como “ópera”, respeitando seu título e a escolha irônica reproduzida pelo autor na edição
do livro.
Nesse momento talvez eu possa começar a definir ironia e paródia, termos já
bastante citados nesse trabalho. Ou é melhor informar aos leitores por que indico que Geni
e o Zepelim é um conto transcontextualizado?
- Shhhhhhhhh!
Não adianta Geni, eles precisam saber de onde sua personagem vem, ou parece vir.
Enfim, a canção Geni e o Zepelim de Chico Buarque relê a música Jenny-Pirata de Brecht,
com a diferença de que na letra alemã, o eu lírico se vinga de todos os que a humilham. Há
alguns indícios de que a versão de Chico Buarque também se comunica intertextualmente
com um conto de Guy de Maupassant chamado Bola de Sebo
31
. No conto, um grupo de
30
O texto de John Gay, cuja música (algumas vezes) é atribuída ao alemão John Christopher
Pepusch, é uma paródia das óperas de Handell, cujas composições tratavam da vida de nobres e
ricos. John Gay, ridicularizando as figuras das classes dominantes, coloca, em sua peça, poderosos,
ladrões, capitalistas, emergentes e marginais. O escritor inglês alterna partes faladas e baladas
populares, tendo como personagens centrais mendigos, prostitutas, assaltantes e policiais. A forma
da peça, com a alternância entre cenas faladas e cantadas, insere o texto não na tradição das óperas,
mas na do “singspiel”. “Singspiel” é uma peça teatral com interlúdios vocais ligados por diálogos
falados, com origem no teatro medieval. Assim como a experiência da ópera-cômica ou Bufa, é esta
uma das antecessoras das operetas, ou mesmo da comédia musical moderna. A Ópera dos três
vinténs também assume o formato de “singspiel”, incorporando o jazz e transformando as árias em
canções de grande força melódica.
31
No conto de Guy de Maupassant,, há uma prostituta que é descrita como miúda, redondinha,
gordinha com dedos rechonchudos estrangulados nas falanges. Outras características são o fato dela
ser “apetitosa e desejada” e que “agradava à vista o teu frescor”, com inapreciáveis qualidades.
Cobiçada como a “rainha dos detentos”, da composição de Chico Buarque. Um grupo de pessoas
23
franceses têm que fazer uma longa viagem durante a guerra, quando são capturados pelo
exercito prussiano.
- Cala a boca!
O oficial prussiano ordena que o cocheiro não os leve do acampamento a não ser
que Mme. Elisabeth Rousset fosse falar com ele imediatamente. Ela se recusa, todos a
convencem e descobrem posteriormente que ele queria dormir com a prostituta apelidada
de Bola de Sebo. Elisabeth se nega a dormir com um oficial prussiano, e todos são
obrigados a passar dias no acampamento. Finalmente ela cede à pressão e se entrega ao
oficial e no retorno à viagem, todos voltam a tratá-la mal. Afirmam friamente, quando a
personagem começa a chorar que seu choro é de vergonha. Como em Geni e o Zepelim, não
há espaço para a vingança, a multidão sufoca o lado mais frágil e o discurso retórico expõe
mais uma faceta, exibe mais uma “malandrice” de Geni.
- Olá, todo mundo.
É Geni quem diz aos Duran que sua filha se casa com Max Overseas mas, antes
disso, faz rodeios e muda o foco da conversa, não é, Genival? Essa personagem suspende a
tensão dramática, concentra momentos importantes e os estende no tempo. Da mesma
maneira, a canção que canta indica um “embalar”, antes de uma explosão de pedra, bosta,
apanhar e cuspir. “E ao deitar com homem tão nobre / tão cheirando a brilho e a cobre /
preferia amar / com os bichos”. A Geni da canção e Mme. Rousset do conto se entregam
aos seus carrascos depois de aumentar taquicardicamente o medo de seus conterrâneos.
A personagem da Ópera do malandro dá pistas para os pais de Teresinha até que
depois de muita discussão, diz o que queriam saber. A paródia é uma maneira de imitação
fala mal de Bola de Sebo numa longa viagem, onde todos estão temerosos. Ninguém, além dela,
lembrou de levar mantimentos. Ela divide sua comida com todos. Parece com a canção, “ela é um
poço de bondade”. São presos e não sairiam, a não ser que ela (Bola de Sebo Mme. Rousset)
dormisse com um oficial prussiano. Ela o faz, atendendo a diversos pedidos e pressões. Sente-se ao
mesmo tempo indignada com seus companheiros e humilhada por haver cedido, “maculando-se
com os beijos daquele prussiano, em cujos braços a tinham hipocritamente lançado”. Quando o
exército os deixa partir ninguém a olha, ninguém se importa com ela. Bola de Sebo sente-se afogada
no desprezo daqueles “honestos crápulas”, que primeiro a sacrificam, e a rejeitam depois, como
uma coisa indecente e inútil. Além disso, os que antes comeram suas provisões, negam-lhe a
comida que trazem ao se livrar dos prussianos. Guy de Maupassant, em Bola de sebo e outros
contos,1987 , p.15, 18-21,42-43.
24
caracterizada por inversão irônica
32
, nem sempre às custas do texto parodiado e na
modernidade, é notável seu âmbito intencional que vai do irônico e jocoso ao desdenhoso
ridicularizador.
- Eu não disse isso...
1.3 Conceito de paródia, ironia, transcontextualização
Eu sei, Genival, essas palavras são de Linda Hutcheon, que diz ainda que a paródia
é “repetição com diferença crítica”. Muitos historiadores da paródia são da opinião de que a
utilização desse recurso “prospera em períodos de sofisticação cultural que permitem para
os parodistas confiar na competência do leitor (espectador, ouvinte) da paródia”. O termo é
fundamentalmente, duplo e dividido; a ambivalência paródica “brota nos impulsos duais de
forças conservadoras e revolucionárias que são inerentes à sua natureza, como transgressão
autorizada”. Apesar da raiz etimológica do termo ser frenqüentemente atribuído ao
substantivo grego parodia, que quer dizer “contra-canto”, Linda Hutcheon, desfocando o
ethos da paródia destaca o fato de que para, em grego, também pode significar “ao longo
de”, o que sugere uma relação de intimidade/acordo maior que a de contraste
33
.
32
A ironia vem sendo amplamente utilizada no discurso contemporâneo, aliás, é um conceito que
atravessa a obra de muitos pensadores e cada vez mais tem chamado a atenção de pesquisadores.
Beth Brait traça um histórico do conceito de ironia, observando inclusive a maneira como os
filósofos chamam a atenção para o termo durante os séculos. A autora afirma que é possível
apreender na diversidade das abordagens filosóficas sua contribuição para um estudo discursivo
contemporâneo. A ironia está ligada ao cômico muitas vezes, começando pela sua presença na obra
de Aristóteles. Brait atenta para o fato de que, se na Ética a Nicômano e na Poética a ironia pode ser
localizada no quadro de uma análise sistemática de atitudes humanas fundamentais, sua abordagem
na Retórica reflete sobre o cômico. Este integrado, por assim dizer, numa teoria da degradação. A
autora cita Aristóteles dizendo que “a ironia tem alguma coisa mais elevada que a bufonaria”, pois
segundo o filósofo grego, através da ironia faz-se uma brincadeira em vista de si mesmo, quando o
bufão se ocupa de um outro. Beth Brait ainda questiona o surgimento do conceito de ironia, que
pode ser atribuído a Sócrates. Se Platão é o autor dos textos-fonte da ironia socrática, não se torna o
procedimento uma criação platônica, ou um traço de seu estilo? A autora faz também uma distinção
entre “ironia como atitude” e “ironia como linguagem”, e afirma que a interrogação colocada acima
distancia a ironia socrática da idéia de atitude e focaliza-a como construção de discurso. Dessa
maneira, o conceito de ironia pode ser entendido por irônico/ironicizado em sua origem. As
afirmações socráticas só chegam à nossa cultura através das leituras de Platão e Aristóteles,
tornando dúbia a postura irônica de Sócrates enquanto atitude, para colocá-la a serviço do
discurso/estilo de seus seguidores. Beth Brait, em Ironia em perspectiva polifônica p.21,23.
33
Linda Hutcheon afirma que o mundo moderno indica estar fascinado pela capacidade que os
nossos sistemas têm para se referir a si mesmos num processo incessante de reflexividade e que e as
formas de arte têm mostrado cada vez mais que desconfiam da crítica externa ao ponto de
procurarem inserir o comentário crítico dentro das suas estruturas. Linda Hutcheon afirma que a
paródia existe em muitas culturas, mas aparentemente, não em todas e que sua onipresença hoje
25
O que ela faz é colocar em discussão o ethos da paródia, que normalmente é lido
como desdenhoso, ridicularizador. Ela ressalta a importância da inversão irônica, que nem
sempre ridiculariza. A paródia tem a vantagem de ser simultaneamente uma recriação e
uma criação, o que faz da crítica uma espécie de exploração ativa da forma. Assim, passa a
poder ser lida como homenagem. Contém em si a ironia
34
, o que a autora chama de
“transcontextualização”. E ao deslocar o conceito de paródia do que normalmente se atribui
ao termo, não estaria Linda Hutcheon chamando atenção para uma paródia “malandra”?
Malandra por que pode homenagear, ridicularizar ou quem sabe julgar, não possui um ethos
fixo. É essa uma razão pela qual acredito que essa perspectiva de paródia serve para esta
abordagem, pois como já havia dito, esse complexo “malandrístico” em forma de peça que
analiso está recheado de transcontextualização
35
, como no caso do conto e da letra alemã
que dão origem à canção Geni e o Zepelim.
1.4 Chico Buarque, 40 Anos de carreira e Budapeste
Muito se tem escrito sobre a obra desse autor que firma uma carreira de cerca de 40
anos. Em 2004, Chico completa 60 anos e diversas são as tentativas de homenagear esse
compositor de quem muitos brasileiros acham saber um pouco. O assédio dos meios de
pede que se reconsidere a definição formal do termo. A paródia, como o pastiche que acentua a
semelhança e é monotextual é um empréstimo confessado, mas se diferencia por ser uma síntese
bitextual. Ela partilha com a citação, a alusão e o pastiche uma restrição de foco: a sua repetição é
sempre de outro texto dicursivo. O ethos desse ato de repetição varia, mas o seu alvo é sempre
voltado para outra instância textual. A sátira, pela sua conotação social e moral corretiva, indica
saltar os muros entre textos para fixar seu alvo na correção da sociedade. Para Linda Hucheon,
ethos, é a principal resposta intencionada conseguida por um texto literário. É a intenção inferida
pelo decodificador, a partir do texto. A autora afirma que seu conceito de ethos não se assemelha ao
de Aristóteles, mas está relacionada com o conceito de pathos do filósofo grego. Dessa forma, o
ethos geralmente aceito para a ironia é o “escarnecedor”; para a sátira, um ethos “desdenhoso”; e o
ethos que normalmente se atribui à paródia é negativamente marcado pelo “rídiculo”. Linda
Hutcheon, em Uma teoria da paródia, p.11-12, 30-48, 50, 56, 61, 76-77.
34
O contraste entre o que se afirma e o que significa não é a única função da ironia. A ironia julga e
funciona, pois, quer, como antifrase, quer como estratégia avaliadora. Segundo Linda Hutcheon, a
ironia pode ser vista em operação a um nível microcósmico semântico da mesma forma que a
paródia a um nível macrocósmico textual. A ironia sobrepõe contextos semânticos, enquanto a
paródia sobrepõe contextos textuais, transcontextualiza. Linda Hutcheon, op. cit., p.73-74.
35
Daisy Aparecida Nogueira afirma em sua dissertação de mestrado que a paródia é um dos traços
unificadores entre Calabar, Gota d’Água e a Ópera do Malandro. Chico Buarque, em seu teatro,
utiliza a paródia como um dos procedimentos desarmantes e eficientes, para a instauração da sátira
político-social. As peças se caracterizam por um espaço teatral dialógico, que exige a cumplicidade
do leitor/espectador. Este, por sua vez, deve alcançar a intertextualidade estrutural e assim,
participar, ludicamente, da rebeldia inventiva da paródia. Daisy Aparecida, A figura feminina no
teatro de Chico Buarque & Cia, 1995, p.24,29.
26
comunicação se torna mais insistente, apesar do autor tentar manter sua imagem protegida.
Em geral, Chico Buarque procura evitar a mídia, dando poucas entrevistas, trancando-se
por alguns anos sem dar shows ou gravar Cds. Esses fatos parecem circundar a imagem do
autor, que às vezes é percebido como inacessível, intocado e misterioso. O que Chico
Buarque estaria tramando de novo? É uma pergunta recorrente para alguns brasileiros. O
compositor carioca não aparenta se preocupar com as imagens freqüentemente ligadas à sua
pessoa. Chico Buarque possui suas músicas gravadas por diversos intérpretes ao redor do
mundo. A Ópera do Malandro, por exemplo, ganhou uma versão em Portugal 18 anos após
a primeira montagem no Rio, com “palavrões amenizados” e mudanças no “calão (gíria)
brasileiro”
36
. Chico Buarque é um versionista, parodista, que parece estabelecer pontes
entre sua criação e a realidade discursiva de que faz parte; e, como enunciador de si mesmo,
indica um jogo de imagens sobrepostas (“bom moço”, “militante político”, “romântico”,
“ídolo”, “unanimidade”, “tímido”, etc.) em sua obra, ficcional e musical. O autor compõe
canções com temas líricos, violentos, políticos, inclusive nos processos de recriação. Como
Chico Buarque faz músicas, antes do teatro (algumas com forte carga dramática), suas
letras abrem caminho para seus textos teatrais. Como “versionista” de teatro, ou seja,
adaptador de obras consagradas, Chico começa com a tradução do texto Man of La Mancha
(Mitch Leigh/Joe Darion), juntamente com Ruy Guerra. Essa tradução foi mais “um desafio
que uma experiência”, pois os tradutores não fazem uma tradução literal. Chico Buarque
recria as letras desse musical da Broadway de 1966 dentro do sentido que a peça exigia,
mas com sua poesia. A última experiência de Chico Buarque como versionista encontra-se
exatamente na Ópera do Malandro
37
.
Os meios de comunicação de massa constróem um Chico Buarque ora comportado,
ora politizado, que é inculcado na cabeça das pessoas sem que o próprio artista, muitas
vezes, se pronuncie a respeito. Mistério, ícone e referência podem ser lidos como fachadas
de marketing estimuladas pelas gravadoras que veiculam a obra do autor, bem como as
distribuidoras de seus filmes, redes de televisão, emissoras de rádio, jornais, que podem
estar construindo coletivamente um “outro” Chico Buarque de Holanda.
36
Cristina R. Durán possui um artigo curto sobre a montagem na “Fortuna Crítica”, que se encontra
no site oficial de Chico Buarque.
37
João Máximo. Quarenta anos sem sair de Cena. Segundo Caderno, O Globo, 18/jun/2004.
27
Esse fato pode ser observado desde o início de sua carreira. A luta do autor contra a
opressão, o “alinhamento a uma poética de resistência”, personificada pelos seus
“malandros, prostitutas, marginalizados de toda ordem, poetas delirantes, pivetes e
operários que ganham voz em sua obra”, constrói uma imagem do Chico junto à opinião
pública como “unanimidade nacional”. É destacado ainda o fato de que a condição de
“unanimidade” é tão “imobilizante” quanto “burra” (a última expressão retirada de Nelson
Rodrigues). Chico é colocado como um “mito” que, “perigosamente circulava na cena
política e cultural”. “Uma imagem capturada pela câmara clara da mídia e pela câmara
obscura da ideologia”. E Chico, muitas vezes, nega essa imagem
38
.
Quando da estréia de Roda Viva, Chico Buarque brinca com a sua própria imagem
de ídolo nacional, que àquela altura já é vendida ao grande público. Nesse momento, Chico
já havia se tornado “estrela” através da participação em programas de televisão e nos
festivais de música
39
. Chico Buarque deve ao teatro, entre outras coisas, o fato de ter
rompido com sua imagem inicial de “bom moço”. Sua unanimidade é “efêmera” e Chico
rompe com sua imagem comportada devido à força da encenação de Roda Viva
40
, talvez
não exatamente pelo texto, mas pela linha seguida pela montagem.
Chico Buarque, indicando parodiar outros textos, expõe elementos autorais que se
desviam quase que inteiramente do texto “parodiado”. Tendo a acreditar que a obra desse
compositor/dramaturgo, mais especificamente a Ópera do Malandro, é composta por um
caráter híbrido vasto. Assim, o entrecruzamento de vários discursos (o ficcional, o poético,
o historiográfico), desloca o contexto da paródia e instaura a obra no campo da ironia. A
Ópera do Malandro é uma colcha de pequenas paródias, das obras-tronco (peças de Gay e
Brecht), bem como de contos, músicas, personagens do imaginário brasileiro, ficando
difícil abordar toda a gama de recursos paródicos.
38
As citações desse parágrafo são de Julio Cesar Valadão Diniz, que escreve A voz e seu dono:
poética e metapoética na canção de Chico Buarque de Holanda, presente no livro Chico Buarque
do Brasil, 2004, p.261-262.
39
Para ler mais sobre o assunto, Diógenes André Vieira Maciel, O Teatro de Chico Buarque. In:
Chico Buarque do Brasil, p.232.
40
Tárik de Souza descreve esse momento da vida de Chico Buarque no seu ensaio Chico Buarque:
o que não tem censura nem nunca terá. In: Chico Buarque do Brasil, 2004, p. 123-124.
28
Dois elementos são importantes: a “intertextualidade”
41
e o “espaço dialógico” do
teatro de Chico Buarque. A comunicação entre discursos e a quebra da ilusão são passíveis
de serem percebidos na Ópera do Malandro. Beth Brait afirma que o nascimento da
situação irônica como um deslocamento entre real e imaginário, além da lúcida
intencionalidade do ironista que se torna um observador crítico são componentes de uma
postura poética em que a ruptura da ilusão constitui o tronco das relações estabelecidas
entre o produtor, a obra e o receptor
42
. O poeta ironista, distinto do mentiroso ou do
hipócrita, quer que suas “inverdades/inversões”, sejam percebidas pelo leitor. Sobre isso
nos fala Beth Brait: o enunciador, ao mesmo tempo que simula, aponta para essa simulação.
Um dos argumentos básicos desse fato está na compreensão da ironia como uma simulação
ou uma dissimulação que é arquitetada para ser desmascarada. Na mentira, Brait afirma
que essa simulação “pretende se passar por verdade”
43
.
41
Intertextualidade é um dos cinco tipos de relações transtextuais para Gerárd Genette. É
considerada a presença efetiva de um texto em outro texto. É a copresença entre dois ou vários
textos, como no caso da citação, do plágio e da alusão. Estudar a intertextualidade é analisar os
elementos que se realizam dentro do texto (inter). Genette esclarece que seu conceito de
transtextualidade alcança “tudo o que coloca (um texto) em relação, manifesta ou secreta, com
outros textos”. São assim as relações transtextuais. Não se pode considerar que as várias formas de
transtextualidade apareçam como classes estanques, sem comunicação. Elas atuam de forma
conjunta e complementar, sendo essas relações numerosas e decisivas na construção textual. As
várias formas de transtextualidade são aspectos da textualidade. A textualidade é a característica
que identifica o texto um texto só existe por sua textualidade, ou seja, pelas características que o
tornam um texto. Dessas características, fazem parte os recursos transtextuais. Mesmo transtextuais,
os textos podem ser relacionados aos gêneros a que pertencem. Por exemplo, embora seja um
recurso transtextual, o prefácio é um gênero reconhecido em si mesmo. Essas idéias estão contidas
no livro de Gérard Genette, Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982 e a tradução utilizada nesta nota pode
ser encontrada no site http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/transtextualidade.htm#_ftn2.
42
Beth Brait, op. cit., p.27.
43
Idem, p.81.
29
Intertextualidade
44
e interdiscursividade são elementos presentes na paródia. E a
multiplicidade de discursos que Chico Buarque resgata na peça enriquecem sobremaneira o
material pesquisado, que se revela enquanto componente de um discurso marcado pelo
humor pela ambigüidade
45
. Apesar de alguns críticos, inclusive no site oficial de Chico
Buarque, argumentarem no sentido de que a versão brasileira das óperas é tímida, vimos
que a obra, na transcontextualização realizada, sofre drásticas transformações. Não é uma
simples paródia, mas capta elementos diversos e estabelece, através da ironia, um
interdiscurso mais amplo. Essas convenções reatualizadas na Ópera do Malandro não
podem ser ignoradas, e há que se definir como o corpo de músicas dialoga com as cenas e
como tira partido da paródia.
A referência à ironia como arte de persuadir e como elemento estruturador de uma
conversação, ou ainda como componente do discurso musical parece apontar para certos
fatores que extrapolam a reflexão puramente filosófica e fornecem indicadores para o
conceito de ironia numa dimensão discursiva, característica também de discursos não-
verbais
46
. Aí podem ser inseridas as melodias das músicas da peça, que, acopladas às suas
letras, ampliam ainda mais a dimensão paródica/irônica, contrapondo, por exemplo, um
poema que trata de temas violentos a uma melodia lenta e suave.
44
Solange Ribeiro de Oliveira afirma que as relações intertextuais enfatizadas em sua análise da
Ópera são a paródia e a tradução lato sensu , já que Chico Buarque, compondo uma versão das
outras peças, transpõe alguns nomes como John Gay-João Alegre, homenageando o autor do
primeiro texto através de uma personagem. A autora diz ainda que a peça brasileira concilia o
humorismo da paródia com o lirismo da melhor música popular brasileira outro aspecto da
representação de nossa identidade nacional enquanto comunidade imaginária. Considera a peça um
exercício de intertextualidade cumulativa no qual as múltiplas referências intensificam os efeitos
dramáticos e teatrais, além do fato de que a confluência de instrumentos paródicos construídos
sobre paródias anteriores resulta numa carga semântica poderosa, que se amplia dependendo do
quão familiares são para o leitor as ligações intertextuais. A autora cita Linda Hucheon quando
afirma que a paródia constitui uma eficaz estratégia de denúncia contra a marginalização das
minorias grupos excêntricos como negros, grupos étnicos minoritários, homossexuais, classes
subalternas , feministas, dado que confirma serem aspectos dominantes da obra,a crítica social e a
representação das contradições do malandro no imaginário nacional. A intertextualidade se dá
através do cruzamento de paródia, tradução, música popular brasileira, crítica social, e construção
de discurso/identidade nacional. p.39, 47, 172.
45
Beth Brait, op.cit., p.20.
46
Essa discussão é trazida por Beth Brait que, falando dos trabalhos dedicados ao estudo da ironia
com base em uma postura filosófica, utiliza a idéia de que a ironia pode ser encontrada numa
estrutura não verbal dada sua dimensão discursiva. Essa hipotése, entretanto, é lançada por
Wladimir Jankélevitch em seu livro intitulado L’ironie, citado pela autora. Beth Brait, op.cit., p. 43.
30
São inseridas, também, a intertextualidade, a menção, a citação, a alusão, a
referência, a interdiscursividade e outras formas de reinstauração da fala de outrem, além
da forma especial de interação enunciador/enunciatário aí circunscrita
47
. A peça, como toda
obra de Chico Buarque, torna-se dessa forma um artefato artístico de extrema
complexidade e hibridismo.
- Mas enfim, ele é tão novidadeiro!
E é talvez pelo caráter híbrido de sua produção musical e de sua trajetória como
ficcionista, aliada à dificuldade de enquadrar o autor numa “escola”, “tendência” ou
“sistema”, que a imagem do autor ganha um peso iconográfico excessivo. O compositor é
visto como uma referência eclética de brasilidade, um signo brasileiro passível de ser
exportado. Chico Buarque transita entre as posições de dramaturgo, ficcionista e
compositor. Suas composições são responsáveis por grande parte do seu sucesso. É
interessante notar que muitas de suas canções possuem um caráter cênico. Algumas
músicas de Chico Buarque trazem pequenas histórias, personagens com ânsias internas que
as fazem agir. Além de personagens com motivações interiores, as canções desse
compositor possuem um carregado referencial físico, remetendo a corpos em movimento. É
como se o autor propusesse uma dramaturgia musical
48
e corporal, onde muitas palavras
nos remetem a imagens e cenas, contando situações que aproximam as letras de pequenos
contos. É o que acontece na canção Geni e o Zepelim, cuja letra contém uma história com
começo, meio e finalização. A letra da canção Casamento dos pequenos Burgueses conta
diversas situações hilárias de um casal decadente de classe média e Doze anos relata as
peripécias de dois jovens “malandros”.
47
Idem, p.76.
48
O vínculo entre as músicas de Chico Buarque e seu teor teatral é indicado através de um artigo
escrito para uma edição do “Segundo Caderno” do jornal O Globo em homenagem aos 60 anos de
Chico Buarque de Holanda. João Máximo afirma que canções como “Olhos no olhos”, “Trocando
em miúdos”, “Meu Guri”, entre outras, “não foram feitas para o teatro”, mas possuem “o
movimento, a força visual, o conteúdo dramático, o começo-meio-e-fim de breve texto teatral, só
que vestido de música”. Com algumas composições da Ópera, o fato se repete, como “O malandro”,
“Geni e o Zepelim”, “Teresinha”, etc.. Cláudio Botelho, diretor da montagem carioca da Ópera do
Malandro em 2003, é citado por João Máximo ressaltando o fato de que a “partir do Chico nosso
teatro rompeu com as formas antigas de versão, que (...) não atentavam para o fato de que, em letra
de música para o teatro, a forma está a serviço do conteúdo”
48
. Algumas composições parecem
verdadeiras cenas, paralelas aos diálogos propostos por Chico Buarque. João Maximo. Quarenta
anos sem sair de Cena. Segundo Caderno, O Globo, 18/jun/2004.
31
Da mesma maneira que consegue inserir a idéia de cenas e corpo em suas músicas,
Chico Buarque consegue nos remeter a efeitos melódicos, arranjos metafóricos de palavras,
nos seus textos em prosa, como é o caso do romance Budapeste. Este é um livro que traz o
confronto entre aparecer (fazer sucesso) ou “progredir na sombra”. O protagonista do
romance, José Costa, é um ghostwriter, que às vezes parece encantar-se com o fato de
poder ser famoso. Em seu contato com a língua húngara, o protagonista chega a falar de
“perder a embocadura” para falar (ou tocar) o português, quando muito tempo longe do
Brasil. Com um bom ouvido, José Costa tentava, antes de entender o húngaro, decifrar a
“letra” da língua pela melodia (musicalidade) que ela tinha.
Esse romance parece fortalecer o efeito camaleônico
49
atribuído a Chico Buarque,
efeito este, da troca de pele, que aparece na relação especular de José Costa com seus
clientes e com as possibilidades de autoria que o texto propõe. O livro possui um imbricado
jogo de espelhos e diversas instâncias narrativas. A narrativa de Budapeste não é linear, há
muitas idas e vindas, Brasis e Hungrias, o jogo de espelhos, recursos de linguagem que
tendem a dificultar uma análise da transformação de José Costa em cidadão budapestino.
Chico Buarque coloca o protagonista de seu último romance como um possível autor de
uma autobiografia. No fim do livro, percebe-se a possibilidade de haver um terceiro autor
assinando a obra, que não seria nem Chico Buarque nem José Costa. Há um efeito de
simultaneidade entre escrita e acontecimento da fábula, presente no jogo proposto ao final
do texto, que lembra a idéia de presente onipresente, de Hans Ulrich Gumbrecht. Esse
efeito, entretanto, não é exatamente novo
50
, pois já aponta caminhos na assunção do
trabalho versionista de Chico na composição da Ópera do Malandro. Na peça, escrita mais
49
Essa capacidade poética de escrever reinventando é destacada por Davi Arrigucci Jr., em sua
análise da poesia de Manuel Bandeira. O autor afirma que “o poeta parece forçado a reinventar-se a
cada instante, na busca de si mesmo, do poema e da poesia. É por essa experiência que toma rumo e
passa sua vida”. Chico Buarque parece adaptar-se a essa imagem de poeta. Autor situado num
entrelugar, que recria de maneiras, estilos e gêneros diferentes. Podemos compará-lo a um
camaleão, que troca de pele, de forma de expressão, sem abdicar de sua assinatura, única e plural,
mesmo quando reinventa. É como se o poeta Chico tivesse de “viver da incerteza e da paixão da
procura, a passagem de uma indeterminação máxima à extrema determinação”, seguro apenas da
“própria incerteza e de uma entrega apaixonada à busca”. Os trechos citados aqui são de Davi
Arrigucci Jr. em seu Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira, 1990, p.46.
50
Tanto o efeito de simultaneidade não é novo, quanto parece não ser novo o fascínio e curiosidade
de Chico Buarque pelo tema “Hungria”. No Capítulo III do presente trabalho, investigaremos a
influência de um músico húngaro numa música da Ópera do Malandro, escrita cerca de 25 anos
antes de Budapeste.
32
de duas décadas antes de Budapeste, Chico Buarque escreve que o texto/espetáculo que
seria visto, é escrito por uma personagem, João Alegre. Esta personagem parece possuir
uma semelhança, pelo menos na tradução irônica do seu nome, com o autor da Ópera do
Mendigo (base da peça de Chico), John Gay. Chico Buarque, João Alegre, John Gay, três
instâncias narrativas com efeito semelhante ao formato de Budapeste.
-Engraçado, né? Que coincidência.
Assim, parece que o “camaleão” Chico Buarque, apesar de mudar muito de pele
(em sua obra, por vezes na vida), possui pontos de apoio recorrentes, peles que retornam,
em sua trajetória artística. Um bom exemplo de instrumento, de recurso reiteradamente
utilizado por Chico Buarque pode ser configurado pela presença (onipresente?) da paródia
em sua obra. É um recurso que tem dado certo, como no caso da Ópera do malandro, que
alcança uma notoriedade cada vez maior.
1.5 Atualidade da peça
Com o transcorrer do tempo, o texto, mesmo passando por leituras diversas
51
e
mudanças consideráveis, tornou-se extremamente popular graças ao sucesso alcançado
pelas músicas que compõem a peça teatral. Intérpretes como Elba Ramalho (montagem do
Rio) e Tânia Alves (montagem de São Paulo) alcançaram notoriedade como cantoras
através de suas participações nas montagens do espetáculo. O elenco original contava com
nomes como Ary Fontoura, Maria Alice Vergueiro, Marieta Severo, Ótavio Augusto,
Cláudia Jiménez, entre outros atores.
Uma grande montagem no séc. XXI ocorre em 2003, novamente no Rio de Janeiro.
Em contato com a Axion Produtores Associados, empresa responsável pela produção dessa
montagem, fui informado de que, além de seis meses de pré-produção, a preparação dos
atores e os ensaios duraram dois meses e meio. Nesse período de montagem foram
arrecadados e gastos R$ 1.300.000,00. O espetáculo contou com parceiros como a
Prefeitura do Rio, a Rede Globo, o canal Multi Show, entre outros. Estima-se que 150 mil
pessoas assistiram o espetáculo em sua última turnê carioca. Com o apoio da prefeitura do
51
As diversas leituras que cito passam por pequenas montagens isoladas, trechos da peça
reproduzidos, músicas gravadas por diversos intérpretes e principalmente a transformação do texto
em filme, dirigido por Ruy Guerra em 1986, e a última montagem no Rio, que esteve em cartaz
entre agosto de 2003 e julho de 2004, realizando uma turnê nacional no segundo semestre do ano
em que Chico Buarque completa 60 anos. A peça é encenada (no Rio) no teatro Carlos Gomes.
33
Rio, os ingressos cariocas custaram R$15,00 na bilheteria e eram vendidos por até R$50,00
ou R$60,00 reais pelos cambistas
52
, que tentavam comprar o maior número de ingressos a
preços populares, cerca de um mês antes das apresentações. Um projeto da prefeitura do
Rio disponibiliza entrada franca em espetáculos cariocas no último domingo de cada mês.
As filas para retirar a senha para assistir a Ópera do Malandro iniciavam antes das 8:00 da
manhã. As senhas eram distribuídas uma hora e meia antes do espetáculo, apresentado
(nesses domingos) sempre às 18:00.
Esses dados parecem indicar que a procura pela peça foi muito grande,
principalmente quando se observa a realidade teatral brasileira, sob o viés do público,
produção ou temporada de espetáculos. Óperas são estruturas cênicas caras, que demandam
recursos de cenário e figurino para contextualização da época; preparação vocal e
interpretativa; um espaço com boa acústica; músicos de competência inegável, e muitos
outros recursos. São raras as megaproduções nacionais desse quilate, e com essa
receptividade alcançada. É interessante notar que, segundo a Axion Produtores Associados,
Chico Buarque deu “carta branca” aos diretores e produtores da peça e inclusive abriu mão
de qualquer pagamento relativo a direitos autorais.
- Pois é, foi uma decisão repentina. Ninguém esperava mesmo...
A notoriedade alcançada por Chico Buarque e suas composições é inconteste,
parecendo ser a razão pela grande procura da peça. Mas o texto escrito parece conservar
informações atuais sobre a conjuntura social do Brasil. A dramaturgia para o teatro no
Brasil, no século XX, sofreu grandes transformações após a década de 40, com a
inauguração do Teatro Moderno Brasileiro e os efeitos da Declaração dos Direitos
Humanos. Com a modernidade teatral brasileira, enredos mais elaborados eram
incentivados, personagens com nuances e complexo arcabouço emotivo vêm à tona. E sob
influencia do fim da Segunda Guerra, os temas socias assumem a ordem do dia. As peças
deixavam de se restringir às comédias de costume do início do século, fofocas sobre a vida
de uns poucos, para dialogar com a vida de muitos. Os autores buscaram refletir um novo
Brasil em formação, uma nação com graves problemas estruturais e esperança de
52
No site oficial de Chico Buarque, numa seção chamada “Fortuna Crítica”, relativa às notas e
artigos sobre as peças, a jornalista Fernanda Ezabella afirma que nos primeiros 3 meses de peça
foram gastos R$1.200.000,00 e que os ingressos nas bilheterias de São Paulo custaram entre
R$30,00 e R$80,00.
34
transformação. É exatamente a década de 40 o tempo ficcional da Ópera do Malandro,
escrita por Chico em 1978, em consonância com a dramaturgia de crítica social, surgida na
década de 50 e firmada nas duas décadas seguintes. Nessas décadas, os autores procuram
colocar em cena diversas situações referentes às desigualdades brasileiras, dedicando-se
aos períodos mais intrigantes/conflituosos de nossa formação histórica. Guarnieri discorre
sobre o movimento grevista em Eles não usam Black-Tie (1957); Dias Gomes trata da falta
de moradia e formação de favelas em sua peça Invasão (1962); Chico Buarque mergulha na
história do século XIX com Calabar (1973), reconta um mito grego com Gota D`Água
(1975), e investiga o Brasil getulista com a Ópera do Malandro (1978). Duas épocas, os 40
(de Getúlio e da fábula da ópera) e os 70 (da nova ditadura e da militância de Chico), vivem
a ânsia por um regime plenamente democrático, ou seja, é como se cada peça de Chico
Buarque se apresentasse como “um mosaico de uma totalidade histórica, do ponto de vista
da sua mensagem política e da sua construção imanente”
53
. Chico Buarque, apesar de negar
o engajamento político de sua obra, consegue reproduzir/recontextualizar momentos
importantes de nossa história. Para tanto, o autor retira instrumentos de diversas fontes,
compondo textos/canções híbridos que levam sua marca autoral, como é o caso da Ópera
do malandro. É em Casamento do pequenos burgueses, por exemplo, que são
recontextualizadas as relações ambiguas e muitas vezes machista de uma casal de classe
média. “Ele” é funcionário, discreto, macho, tem um caso, enquanto “Ela”, faz crianças de
monte, diz que não sai dos trilhos, tem um monte de estrias, compõem um casamento de
fachada, talvez para agradar a sociedade
54
. A instituição família é colocada em discussão
também na letra de Ai, se eles me pegam agora, em que as prostitutas cantam o que pode
acontecer se são vistas na sua profissão por seus pais. As prostitutas perguntam se os pais
as levam embora, ou se vão dar razão, se vão dar-lhes surras ou se abrem um cabaré na
Lapa para contratá-las
55
. Nessa música é questionada a falsa moral de uma sociedade
capitalista em que a família é uma instituição protetora da mesma forma que pode
repreender severamante, a depender das situações. Toda a peça de Chico é permeada pelo
questionamento de instituições repressoras e muitas vezes falidas, como é o caso da justiça
no Brasil e da família.
53
Arturo Gouveia em A malandragem estrutural. In: Chico Buarque do Brasil, 2004,p.187
54
Chico Buarque, op.cit., p. 76-77.
55
Idem, 123, 124.
35
Alguns críticos vinculam essa obra de Chico Buarque com os musicais da
Broadway
56
. Lembro que o Brasil possui uma tradição de teatro musicado, composto por
gêneros cômicos, desde os fins do século XIX
57
. Além de uma possível discussão sobre o
servilismo ou não de autores brasileiros, e principalmente de Chico Buarque, chamo a
atenção para a “condição paratópica” do escritor. A literatura, diferente de outras
atividades, não define um “espaço estável no âmbito da sociedade”. O exercício da
atividade literária não é “uma atividade como outra qualquer, tal como é a atividade dos
comerciantes ou dos funcionários públicos”
58
. A personagem Produtor, que abre a peça de
Chico Buarque, parece falar dessa condição paratópica ao afirmar que a companhia está
encenando a peça de um autor nacional por esta profissão estar “sempre às voltas com
imbricados problemas” que a impede de se “comunicar mais amiúde com seus
56
Apesar de Chico Buarque ter começado como versionista de um musical da Broadway, Diógenes
André Vieira Maciel discute essa postura crítica. A nossa cena teatral é submersa numa onda
musical vinda da França. A atitude de passar em revista um assunto, um fato político, é o mote das
revistas de fim de ano. O autor complementa que há operetas parodiando “óperas sérias” e que a
invasão dos musicais da Broadway só se verifica nas décadas de 1960/1970. Chico Buarque, assim,
recria os motes de suas duas fontes. O uso da música e a perspectiva de abordagem dos temas estão
próximas às propostas do teatro épico de Brecht. Os palcos brasileiros já abrem espaço para peças
que intercalam à ação números de canto e dança, sem que nossos autores assumam uma atitude
servil. Essa discussão sobre um possível servilismo de autores de óperas no Brasil é polêmico.
Diógenes André Vieira Maciel, O teatro de Chico Buarque. In: Chico Buarque do Brasil. 2003,
p.238-239.
57
Em 1854 surge a primeira ópera escrita em português no Brasil, já antecipada por óperas e
cantatas escritas em italiano. Esta ópera, Marília de Itamaracá (Adolfo Maersch/Simoni) não
chegou a ser encenada. 1860 marca a primeira estréia de uma ópera brasileira cantada em
português: A noite de São João (Elias Álvares Lobo/ José de Alencar). Antônio Carlos Gomes
compõe algumas óperas em italiano na segunda metade do século XIX, entre elas O Guarani,
visivelmente influenciada por Verdi. Fernando Peixoto afirma que Otto Maria Carpeaux pergunta
“por que não?” utilizar-se de Verdi, já que este é a expressão mais rigorosa da época. E isto em
nada diminui o vigor criativo de Carlos Gomes. A própria ópera nasceu na Itália, não sendo
estranho que o Brasil possua influências européias no momento nascente de seu teatro musicado. É
importante notar que desde o príncipio, os versionistas brasileiros imprimiram marcas autorais (e
nacionais) em suas óperas, não parecendo, em momento algum, uma prática servil de nossos
autores. Fernando Peixoto, op. cit., p.104.
58
. Nelson da Costa extrai o conceito de “paratopia” de Dominique Maingueneau e afirma ainda que
um posicionamento paratópico não é aquele que descreve uma trajetória oscilante, mas sim
tangencial, incapaz de se estabelecer em qualquer posicionamento definido. Essa incapacidade de
fixação é o motor do trabalho artístico. Esse conceito parece pôr em discussão o hibridismo da
trajetória de Chico Buarque que, em suas canções, peças e romances, dificilmente pode ser
enquadrado numa escola, ramo ou tendência artística. Nelson Barros da Costa, Um artista
Brasileiro: paratopias buarqueanas. In: Chico Buarque do Brasil. 2003, p. 327, 335.
36
conterrâneos” e também de “viver dignamente do ofício que um dia resolveu abraçar”
59
. A
recepção da literatura no mercado brasileiro não costuma ser vigorosa, sem contar que a
produção teatral no Brasil sempre encontrou dificuldades de patrocínio e circulação. Os
autores, muitas vezes, precisam desenvolver estratégias para colocar seus livros em
prateleiras, ou peças escritas em cartaz.
- Que tumulto, hein?
Esse fato é uma característica de certos textos de Chico Buarque, que reescreve
obras já consagradas em outros contextos, como é o caso de Gota d’água (releitura de
Medéia), Os Saltimbancos (releitura de Os músicos de Bremen), Chapeuzinho Amarelo
(releitura de Chapeuzinho Vermelho) e a própria Ópera do Malandro (versão de obras
citadas anteriormente). A tendência do compositor de escrever versões de textos, que
alcançam sucesso em outras épocas e países indica um hibridismo reiterado e possíveis
pontos de apoio para sua obra ficcional. Chico Buarque abrasileiriza obras clássicas, muitas
vezes colocando-as num contexto urbano e musical. Ele cruza o tempo ficcional das peças
com momentos dramáticos da história do Brasil. Boa parte de sua produção dramatúrgica
surge durante a ditadura pós-64, em um contexto em que busca meios de burlar a censura e
criticar o sistema vigente. Assim, em algumas obras citadas acima, Chico Buarque, apesar
de aparentemente aproveitar-se do sucesso de textos clássicos para compor sua trajetória,
recria e artificializa passados sob o olhar renovado de um presente constante.
- Porque ele é insaciável.
É assim que, para além de degenerar o material parodiado, o autor evidencia, em
Gota d’Água, por exemplo, uma mobilidade produtiva, através da inversão irônica,
acentuada, especialmente, no confronto entre Joana e Médeia
60
. Em Calabar, o autor põe
em diálogo os desmandos do tempo da invasão holandesa com as atrocidades recorrentes
que o regime militar teima em recalcar
61
.
O teatro de Chico Buarque “se alinha num trágico contemporâneo”, pondo em
relevância o esforço e o medo do ser humano, frente ao potencial de anulamento, produzido
59
Chico Buarque, op. cit., p. 19.
60
Daisy Aparecida Nogueira. A figura feminina no teatro de Chico Buarque & Cia. Dissertação de
Mestrado. Orientação: Carolina Maia Gouveia, UFF, 1995, p.25.
61
Idem, p.47.
37
por uma sociedade gerida pela genialidade técnica e alicerçada em fatores econômicos
62
.
Dessa maneira, a produção dramatúrgica de Chico Buarque escrita entre 1968 (Roda Viva)
e 1978 (Ópera do Malandro) parece propor uma negação de valores e uma inversão de
papéis, de regras e de hierarquias
63
sob um viés, desde a década referida (e ao que tudo
indica, até hoje), contemporâneo.
1.6 Objeto de estudo
Há vários campos de enunciação e de recepção da Ópera da Malandro
64
. Brecht, ao
discorrer sobre a função do público de teatro, afirma que prefere um espectador ativo e
atento do que o público passivo exigido em outras estéticas. Uma das formas de estimular a
não-passividade do público pode ser conseguida através das canções, ou de melodias, que
não embalem a platéia, mas proponham choques, rupturas. O receptor e sua reflexão sobre
a obra de arte, são o grande foco do trabalho brechtiano, que Chico parece reproduzir em
sua peça. A obra se encontra reproduzida em diversos campos artísticos, como a Literatura,
o Teatro, o Cinema, a indústria fonográfica. O presente trabalho procura se fixar no texto
escrito por Chico Buarque de Holanda (1978) e no LP, com a maioria das músicas da peça
(1979). Partiremos, assim, de um texto dramático (literatura escrita para ser vista), mais
especificamente, de uma “ópera” (modalidade cênica que reúne teatro, dança, música e
artes plásticas).
Tomada apenas como livro essa peça de Chico abre possibilidade para várias
leituras, se formos considerar o “paratexto”
65
em questão: como a capa, a orelha do livro, o
prefácio, as notas podem questionar, também ironicamente, a autonomia da peça escrita.
Hans Ulrich Gumbrecht discute que o aparecimento do papel de autor surgiu como
62
Idem, p.89.
63
Idem, p.93.
64
Autores pós-modernos como Raymond Federman, segundo Linda Hutcheon, num esforço para
desmistificar o nome sacrossanto do autor e para dessacralizar a origem do texto, defendem a
complementaridade entre os atos da produção/recepção de textos. Linda Hutcheon, op. cit, p.16.
65
Paratexto é outro dos cinco tipos de relações transtextuais para Gerárd Genette Paratextualidade é
representada pelo título pelo subtítulo, pelo prefácio, pelo posfácio, pelas epígrafes, pelas
ilustrações, etc. Este campo de relações é muito vasto e inclui as notas marginais, as notas de
rodapé, as notas finais, advertências, e tantos outros sinais que cercam o texto, como a própria
formação da palavra está a indicar. Gérard Genette, Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982 e a tradução
utilizada nesta nota pode ser encontrada no site
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/transtextualidade.htm#_ftn2.
38
necessidade decorrente da invenção da imprensa. Antes do livro impresso, era situação
normal da comunicação humana a enunciação e a recepção ocorrerem simultaneamente, em
estado de “copresença física” dos participantes
66
.
- Isso faz muito tempo, meu anjo.
Pois é, e com o tempo, o ato performático foi sendo recalcado e o foco no livro
impresso passou a determinar os caminhos da historiografia literária. O menestrel e sua
oralidade, substituído pelo conceito de autoria, existe apenas numa “situação de execução”,
performance
67
. Com a imprensa, o autor situa-se a uma “distância suficientemente marcada
tanto do texto como de sua encenação para fazer crer na existência de um sentido
estável”
68
.
Esse sentido, por muito tempo estudado como anterior ao texto (intenção), hoje
avança na análise da multiplicidade que cada objeto possui. Um texto, para poder ser
inserido e compartilhado pela historiografia, tem que ser lido por, pelo menos, um grupo, e
a Ópera do Malandro já extrapola essa dimensão receptiva, por ter passado por várias
transformações no decorrer do tempo. Há múltiplas possibilidades de olhares sobre a peça.
Uma análise que “tenha a pretensão de desnudar a totalidade composicional” da Ópera do
Malandro é, “no mínimo, matéria para um doutorado”
69
.
66
Hans Ulrich Gumbrecht, O campo não hermenêutico ou a Materialidade da comunicação.
Modernização dos sentidos, 1998, p.104.
67
Um fato parecido acontece com a evolução do espetáculo na Grécia, executado em semiarena, na
Idade Média, em espaço aberto (com o público em vários locais), e na Commedia del’Arte, com o
início da frontalidade no teatro. Os atores da Commedia del’Arte fazem suas exibições em praças
públicas, nos feudos, e depois nas cidades emergentes. A condição de miserabilidade em que vivem
concomitante com o surgimento do capitalismo comercial, faz com que Carlo Goldoni construa uma
caixa cênica (palco à italiana) para cobrar ingressos. A partir daí os roteiros que são improvisados
pelos “commediantes” passam a ser escritos e o advento da performance se distancia cada vez mais
do público popular. Com o tempo, os teatros absorvem mais e mais a insegurança trazida pela
burguesia e os palcos vão se distanciando da platéia, além do surgimento das cortinas. Ainda assim,
mantém-se a relação de co-presença, num outro sentido. Cada apresentação continua a ser única.
Diferente da imprensa que, ao registrar os livros, pressupõe que eles possuem um sentido (intenção)
anterior à sua escrita.
68
Hans Ulrich Gumbrecht, op. cit., 1998, p.101.
69
. Segundo Arturo Gouveia, no momento em que tomamos a Ópera do Malandro como literatura
dramática, privilegiando o sistema de signos em si, o texto é elevado à categoria central da obra,
independentemente das representações cênicas. Evidentemente, os elementos cênicos e todo o
aparato físico e tridimensional inerente ao teatro, tendem a se perder numa abordagem focada no
texto. O texto adquire autonomia e realiza sua função artística sem a exteriorização sob a forma de
atos, gestos, jogo de luz e outros constituintes da encenação. Centrar uma análise no texto propõe o
39
- Justamente.
Tendo em vista que, se consideramos que há um ato intencional de confrontar
discursos paródicos, a peça de Chico Buarque pode possuir alguns significados. Uma
possível escolha de um tema para parodiar pode ser lida como a motivação significativa.
Assim como na ironia, uma paródia que quer ser revelada indica uma significação anterior.
E se atentarmos ainda para o fato de que há complementaridade entre enunciador e
enunciatário, cada leitor/ouvinte pode contruir outros sentidos. A “leitura”
70
que faço aqui é
apenas mais um olhar sobre a obra. Posso ver coisas não vistas antes (no sentido de
transcontextualização), como também sei que ficarão obscurecidas algumas reflexões que
outras pessoas têm quando confrontadas à Ópera do Malandro.
1.7 Filme (1986) e montagem (2003)
O filme gravado em 1986 e a montagem carioca de 2003 são olhares bem distintos
sobre o texto em questão. Seus diretores intentaram reformatar o que Chico Buarque
escreveu em 1979, muitas vezes alterando significativamente o texto. Charles Möeller, um
dos diretores da montagem carioca, escreve no programa do espetáculo que alguém sempre
sabe alguma coisa a respeito da Ópera. As pessoas, segundo ele, misturam o filme com a
peça
71
. O outro diretor do espetáculo, Claudio Botelho, esclarece algumas dúvidas sobre as
pequenas transformações que a obra sofreu. Ele destaca que a canção Hino de Duran foi
escrita para a primeira montagem, mas foi cortada. Houve uma versão da mesma música,
Hino da Repressão (essa canção se encontra na montagem de 2003, havendo mudanças
consideráveis na letra), que foi escrita para o filme e não foi utilizada. Mas a canção Hino
mergulho num sistema sígnico de leitura e a decifração exclusivamente mental e irredutível às
interpretações vivenciadas no palco. Por isso a complementaridade do disco (o disco referido aqui
não é o LP gravado em 1979, mas sua remasterização, em CD, datada de 1993), um outro meio de
produção da mesma obra. Essa estratégia possibilita um cruzamento maior de leituras, e amplia o
campo de enunciação. Alguns elementos/fatores certamente se perdem, mas assumir que a música
tem função crucial na transcontextualização da peça parece uma forma honesta de analisar uma obra
de Chico Buarque. Arturo Gouveia, em A malandragem estrutural. In: Chico Buarque do Brasil,
2004, p.188
70
Um processo de leitura em que uma “série de sentidos” vem “do objeto e apenas do objeto”, é
uma “descrição”, segundo Daniel Link. Num processo em que os sentidos são impostos pelo
sujeito, estamos diante de uma “interpretação”. A “leitura” de um artefato faz fronteira com a
descrição e com a interpretação e não deve ser confundida nem com uma nem com outra
70
. Daniel
Link, Como se lê outras intervenções críticas, 2002, p.19.
71
Charles Möeller, programa do espetáculo Ópera do malandro, cuja estréia é no Teatro Carlos
Gomes em agosto de 2003.
40
de Duran, no filme, não é cantada pela personagem Duran, mas pelo policial Chaves e no
disco da trilha sonora tem o nome Hino da Repressão. Uma canção desnaturada, presente
no disco de 1979, foi escrita apenas para a montagem paulista, não estando no livro
(1978)
72
. Todas as músicas citadas por Botelho encontram-se na versão de 2003 da peça. A
versão original da canção O meu amor é censurada na primeira montagem, e a canção Viver
do Amor sofreu alterações quando a peça virou filme
73
.
O filme foi dirigido por Ruy Guerra em 1986, numa produção da Embrafilme em
co-participação do Ministério da Cultura Francesa. Apesar de um renomado elenco, o filme
não alcança o desejado êxito de bilheteria
74
. Assim como as primeiras montagens, o filme é
bombardeado pela crítica especializada. Mas, depois da realização cinematográfica, a peça
sofre mudanças radicais. Foram escritas para o filme as canções Palavra de Mulher, Las
Muchachas de Copacabana, Hino da repressão, Aquela Mulher, Sentimental, O último
blues, Rio 42, Desafio do Malandro e A volta do Malandro (que abre o filme).
Há algumas cenas, nessa versão, que se utilizam de recursos teatrais, como no jogo
de espelhos realizado por Max e Chaves durante a canção Aquela Mulher; e na execução da
canção Sentimental, que marca a chegada da filha de Strüdell numa estação de trem, na
qual as pessoas parecem caminhar normalmente e, de repente, fazem movimentos
extracotidianos. A versão cinematográfica possui um enredo bastante distinto da peça.
Duran se chama Strüdell, Teresinha tem 16 anos e não 23, o filme acaba num casamento
festivo, e Geni é morto por Chaves.
- Arranja um conhaque rápido, senão eu tenho uma síncope.
Calma Genival, eu nem disse ainda que a música de sua personagem foi reduzida a
uma pequena chamada numa de suas entradas em cena.
- Aceito desculpas.
Infelizmente, não posso fazer muito por você. O diretor Ruy Guerra fez diversas
alterações no texto. O roteiro, por exemplo, em detrimento das novas cenas e composições,
72
Claudio Botelho, programa da montagem de 2003.
73
As citações presentes nesse parágrafo se encontram na seção “Fortuna Crítica”, site oficial de
Chico Buarque de Holanda.
74
Daisy Aparecida Nogueira, op. cit. p.22.
41
não contém a personagem João Alegre
75
, nem as canções que a personagem canta: O
malandro, Homenagem ao Malandro, O malandro n° 2.
- Quem é esse cara mesmo, hein?
Não precisa se exaltar Genival, o que está feito já está feito, é só mais um olhar
sobre a peça, calma. A montagem de 2003 também não possui a personagem à qual é
atribuída autoria do espetáculo. O diretor ressalta que não há, nessa montagem, uma só
palavra que não tenha sido escrita por Chico Buarque e que corta-se apenas o necessário
para que o espetáculo dure o tempo justo do prazer. Os diretores afirmam também que
procuram olhar mais para as personagens do que para as circunstâncias. Charles Möeller
escreve no programa do espetáculo que lê a peça como “uma festa de bárbaros” e que o
cenário, inspirado na arquitetura da Lapa, possui “semelhança com o Coliseu”, “forte
indicadora” do caminho dramático do espetáculo. Möeller afirma também que Max,
personagem da peça, seria o “elo perdido brasileiro”, do terno branco com sapato bicolor e
do chapéu panamá. O diretor também afirma que este “figurino”, estaria posto no varal da
memória de uma malandragem camarada, cheia de contrabando, de cinema, de cassino e de
romance
76
.
Tive oportunidade de assistir o espetáculo em novembro de 2003, quando entro em
contato com a equipe de produção para sanar dúvidas a respeito do processo de montagem.
Considero o cenário exagerado, como o espetáculo, em geral. A versão de 2003 utiliza
muitos elementos presentes no filme (como algumas canções). O trabalho de interpretação
dos atores é bastante heterogêneo. Apesar de exagerado, o cenário é bem utilizado em
algumas cenas, os figurinos são glamourosos, o espaço possui boa acústica, a orquestra
executa bem seus atributos.
- Fica um pouquinho mais caro, mas vale a pena.
75
Solange Ribeiro afirma que o desaparecimento de João Alegre no filme tem implicações
ideológicas decisivas. A personagem, além de ser um instrumento de comentário metalinguístico,
subverte a passeata final ,transformando-a em desfile popular. A eliminação de João descarta a
possibilidade desse final emblemático. E o casamento de Max com a filha de Strüdell remete ao
fortalecimento da ordem capitalista, em nível nacional e internacional. A ausência de João sugere
ceticismo quanto à possibilidade de uma revolução popular, admitida na peça teatral. Solange
Ribeiro de Oliveira, op. cit., p.181, p.185.
76
As citações escritas nesse parágrafo até esse momento estão disponibilizadas no programa da
montagem carioca de 2003.
42
Os atores são bons intérpretes das canções, algumas destas colocadas na peça com
entonações diferentes das propostas por Chico Buarque. O autor assistiu apenas um ensaio
geral do espetáculo e uma de suas execuções. Ele pediu poucas mudanças, principalmente
uma redução nos palavrões ditos pela personagem “Duran”, feita por Mauro Mendonça.
Houve momentos dúbios em relação à utilização (ou não) do conceito de “distanciamento”
proposto por Brecht. Em muitos momentos, os atores parecem se utilizar de elementos
provenientes de uma estética televisiva.
A Ópera do malandro, como vemos, tem sofrido alterações constantes e, apesar
disso pode ser lembrada e conhecida por diversas gerações brasileiras. Acredito que esse
fato se deve à indústria fonográfica e midiática, que veicula as canções escritas para as
distintas “Óperas do malandro” e constróem uma imagem do Chico Buarque genial
77
.
Analisar o texto e o disco torna mais objetiva a reflexão. A falta de registros das primeiras
montagens, a má qualidade do filme, e as limitações da montagem de 2003, não me
instigam a sair desses instrumentos (livro/disco) que já possuem uma amplitude bastante
grande. As novas mídias (cinema, indústria fonográfica, internet, teatro comercial) são
responsáveis por sombras de uma ópera que tem se perdido no tempo.
Chico Buarque nunca foi facilmente enquadrado numa escola, num sistema, num
grupo de compositores, dado o hibridismo de sua obra. Será que as gravadoras de CD e a
mídia criaram esse “autor camaleão” ou sua própria obra dá ao compositor liberdade para
transitar inteligentemente entre os meandros de publicidade e recepção? Que peça da
77
Diógenes André Vieira Maciel numa defesa romântica do autor, coloca que alguns críticos de
teatro torcem o nariz para as obras de Chico Buarque, mas suas peças são testemunhas e marcos de
uma época em que os artistas ainda acreditam que só a partir de uma aliança revolucionária com o
povo algumas mudanças poderiam ser alcançadas. Diógenes André Vieira Maciel, op. cit, p.239.
Nem acredito que Chico Buarque realiza qualquer aliança com o “povo”, nem que sua peça é
“revolucionária”. Expresso minha opinião nesse trabalho, voltando à hipótese de que a Ópera do
Malandro é um pedaço da história que alcança sucesso em outros contextos e que é recriada de
forma inteligente no Brasil. Mais interessante que conclamar o “povo” para a reflexão é perceber
como a peça pode ser inclusa num período ditatorial (sem ser censurada), sendo que trata, em sua
fábula, de outra ditadura. Como a paródia é aplicada no texto e nas canções para dissimular fatos
que alguns poucos não necessariamente “povo” podem desmascarar, é um elemento dessa
análise. Julio Diniz expõe que os “mecanismos que regulam os direitos autorais”, além da “relação
comercial entre as gravadoras e seus contratados dão às empresas todo o poder de manipulação do
produto final”. Será que com Chico Buarque é diferente? O ensaísta ainda afirma que “assim como
o escritor, o compositor representa a parte mais frágil da cadeia produtiva, ficando à mercê de um
processo que o vê como peça de uma engrenagem”. Julio Diniz, op. cit., p.265.
43
engrenagem comercial pode ser “lida” para Chico Buarque através de sua Ópera do
Malandro?
Não quero analisar por que Chico Buarque tentou fazer uma versão brasileira de
uma ópera de crítica-social escrita na Inglaterra no século XVIII. Quero investigar, pela
paródia, que recursos formais podem ser extraídos, na contemporaneidade, dessa obra
escrita em 1978. É como voltar o olhar para os poderes interativos envolvidos na produção
e recepção do texto
78
.
1.8 Capítulos
Este capítulo introdutório trata de situar a Ópera do Malandro, em termos gerais,
bem como indicar que caminhos são seguidos nesta abordagem. O próximo capítulo,
“Transcontextuazinha”, regido pela personagem Teresinha, trata da transcontextualização,
de como se deu a passagem da Ópera do Mendigo e da Ópera dos três vinténs, para sua
versão brasileira.
- Ah, que emocionante!
O capítulo “Trocentos anos” faz uma discussão teórica da posição do malandro na
literatura, tendo como foco dois artigos. Um deles é escrito por Antônio Cândido e outro,
por Roberto Schwarz, analisando a malandragem na literatura brasileira a partir de
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
- De onde é que eu conheço esses caras mesmo?
Manuel Antônio de Almeida é um romancista famoso, Genival, Antônio Cândido e
Roberto Schwatz são dois grandes expoentes da crítica literária brasileira. Nesse capítulo
analiso como Chico Buarque aborda os temas relativos ao mito (híbrido) do malandro,
surgido após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, elevado à categoria
de símbolo na década de 40, destacando a maneira através da qual nossa sociedade nos faz
vestir a máscara da malandragem para disfarçar e justificar os desmandos, as falcatruas, e o
falso progresso pregado pelas elites. E acho que vai gostar do fato de um tal Max Overseas
ser o mestre de cerimônias do capítulo.
- Oh, oh, oh, que lindo!
Em “Uma revista desnaturada” recorro a Fernandes de Duran para rastrear a Ópera
do malandro no Teatro de Revista brasileiro.
78
Linda Hutcheon, op.cit.,p.109.
44
- E eu não quero perder.
“Homenagem ao epílogo” é dedicado à personagem João Alegre, através do qual se
dá o jogo paródico-especular que amplia a noção de autoria. Vou focar na condição dos
miseráveis, dos ludibriados, dos malandros secundários e das prostitutas. O que acha Geni?
- Eu não tenho nada com isso.
Será este o último capítulo desse trabalho, que também oferece um apanhado geral
das conclusões obtidas nas análises anteriores, destacando a presença da
transcontextualização na Ópera do Malandro.
- Bem, gente, eu vou andando.
Muito obrigado por me acompanhar nessa introdução, Genival, seus comentários
foram muito proveitosos e pertinentes, pena que tenhamos que nos despedir.
- Não vai pedir bis?
Bem, talvez o leitor ainda tenha paciência para que sua personagem e eu
introduzamos outros trabalhos, com outros temas, gostei tanto de nossa parceria que posso
continuar escrevendo indefinidamente.
- É, mas hoje eu tô muito cansada pra dar bis.
Tudo bem, Geni, mas faço questão de lembrar que o texto já está escrito, e não sei
se a leitora ou leitor, vai lê-lo num dia só. Talvez, pare a leitura aqui, leia o final dessa
introdução amanhã, o que pode representar um bis... enfim pode ser que nem leia mais. Mas
é algo que não recomendo, porque essa dissertação apenas começa.
45
2. TRANSCONTEXTUAZINHA
79
O PRIMEIRO INTENTOU
CRITICAR ARTE ELITISTA
MUDA O FOCO COM ASTÚCIA
FAZ DO CRIME UMA CONQUISTA
REALIZOU VÁRIAS VIAGENS
SOB O CRIVO DA RAINHA
NA COLÔNIA FEZ NEGÓCIO
ENCANTAVA QUEM O VIA
ME ENCONTROU ESTUPEFATO
BEM ALÉM DE SUA NAÇÃO
FEZ REVOLUÇÃO DE FATO
TRANSCONTEXTUALIZAÇÃO
O SEGUNDO ME CHEGOU
COMO QUEM VEM PRA FICAR
COM UM TEXTO CONTUNDENTE
SEM ESTRUTURA LINEAR
POR SEU CUNHO MARXISTA
TEM A FAMA GARANTIDA
SOBRE O FURTO SE COMPLETA
OBRA DE ARTE ADVERTIDA
ME DEIXOU ESTUPEFATO
ESSE ARTEFATO ALEMÃO
UM FINAL A CADA ATO
TRANSCONTEXTUALIZAÇÃO
79
Paródia da letra da canção Teresinha Anexo I, p. 167
46
O TERCEIRO ME TOCOU
COM CANÇÃO IMORTALIZADA
COM A LETRA BEM CUIDADA
E ESTRUTURA QUE INSPIROU
RELEITURAS, UMA GAMA
INTERTEXTO O PÕE DE PÉ
ALÇA VÔO QUANDO PROCLAMA
TEXTO MUSICAL QUE É
TOTALMENTE BRASILEIRO
COM CERTEIRA INSPIRAÇÃO
SEU DIÁLOGO É LIGEIRO
TRANSCONTEXTUALIZAÇÃO
47
John Gay Bertolt Brecht Chico Buarque
2.1Paródia em cadeia
- Meu bem, eu trago grandes novidades.
Teresinha Fernandes de Duran Overseas, desculpe decepcioná-la, mas quem traz
novidades aqui sou eu. E novidades que devem te interessar, até mais que para algumas
leitoras ou leitores.
- Você?
Exatamente. As três óperas possuem muitas cenas semelhantes e algumas
peculiaridades que merecem atenção especial. John Gay, por exemplo, parodia óperas de
Handel
80
através da música e até de referências a canções/títulos do compositor.
- E eu, como é que fico?
Quieta, Teresinha! Além disso, a peça conta com caricaturas vivas, párodias cênicas
de personagens que realmente existiram. Robin of Bagshot, comparsa de Mac, é descrito
como possuidor de vários nomes, como o primeiro ministro inglês Robert Walpole, cuja
administração foi bastante corrupta.
- Quem é essa pessoa?
Minha senhora, por favor não me encha a paciência! Isso aqui é uma dissertação de
mestrado, e não uma diálogo dramático. A senhora realmente está atrapalhando. Ou você
pára ou eu acabo com essa palhaçada de “personagens ilustrando a ciência”. Ponha-se no
seu lugar.
- Que indelicadeza...
80
Parodicamente, John Gay redimensiona o próprio sentido de ópera. As óperas vão desde
composições trágicas (grandiosas, heróicas) até o ligeiro cômico, denominado ópera-bufa. Esse
texto (“singspiel”), se aproxima da opereta, pelo fato de colocar em seu enredo cantos e danças
“popularescos”. Daisy Aparecida Nogueira, op. cit., p. 29
48
Não gostaria de ser indelicado, mas a personagem Teresinha, herdeira revoltada da
personagem Polly Peachum das outras peças possui um ímpeto de comando e controle que
precisa ser domado. Mas eu estava falando de caricaturas vivas, não? Na peça inglesa, a
personagem Peachum parece ser uma caricatura do bandido Jonathan Wild, que tinha uma
gangue com 1500 ladrões e é indiscutivelmente o mestre do submundo inglês na década de
1720
81
. São recursos de paródia que fogem do viés literário e fixam raiz nos discursos
acerca do contexto histórico. Esse fato parece ser reproduzido também nas versões que
seguem. “As três óperas prolongam seu entrelaçamento numa descendência profílica”. Os
frutos da intertextualidade transcontextual “divergem tanto quanto se aproximam uns dos
outros, inter-relacionando-se de formas váriáveis, complexas e distanciadas”, segundo
Solange Ribeiro de Oliveira
82
.
- Mas depois a gente precisa ter uma conversinha sobre o seu futuro.
Sem problemas, senhora Overseas. Bem, essa apropriação de elementos aos quais
vai ser dado um novo sentido é inaugurada, nessa linhagem de óperas, por John Gay. Sua
peça pode ser considerada o maior sucesso teatral do século XVIII. Situando-se em
botequins e prisões, ao invés de palácios, a anti-ópera de Gay foi representada em “todo
lugar onde se falasse inglês e se pudesse armar um palco”. Gay critica a estrutura clássica
de óperas ao mesmo tempo que confessa sua paixão. O que ocorre é uma fusão de dois
mundos, um “distanciamento irônico”, que contrapõe o submundo à atração pela elegância
de postura, linguagem e traje da aristocracia. Por isso Gay recorre à “comédia francesa en
vaudeville, à comédia realista isabelina, à tradição italiana de Arlequim e Colombina”,
canções populares e inclusive tendências dominantes na ópera da época, como alguns
elementos das masques italianas
83
.
- Ah, ele é uma pessoa encantadora! Tão fino!
Mas é importante lembrar que a peça inglesa traz elementos que seriam
sistematizados séculos depois por Bertolt Brecht. Falo aqui do efeito de distanciamento. A
81
Algumas indicações presentes no enredo e especificamente nesse parágrafo foram traduzidas das
notas presentes ao final de The Beggar’s opera (1728). University of Oregon, 1992, de John Gay.
82
Solange Ribeiro de Oliveira afirma também que “as relações entre textos literários, além de
inevitáveis, mais realçam que enfraquecem a força literária”. Dessa maneira, “toda literatura pode
ser vista como uma contínua atividade de tradução, uma infinita recriação textual Solange Ribeiro
de Oliveira, op. cit., p. 23, 27.
83
Para ler mais sobre o sucesso alcançado pela Ópera do mendigo, bem como seus possíveis
referenciais, ler Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p. 31-45.
49
Ópera do Mendigo possui trechos em que as personagens falam diretamente com o público,
como no distanciamento proposto por Brecht.
Esse elemento é antigo no teatro, na comédia latina já era utilizado e inclusive os
atores de peças shakespeareanas já dispunham do recurso. Não podia haver uma quarta
parede
84
num espetáculo em que era dada ao público a opção de arremessar tomates e ovos
se os atores não agradassem.
“The Globe Theatre”, onde eram representadas as peças de Shakeaspeare, ficava ao
lado de uma feira popular. Muitos espectadores compravam tomates, ovos, frutas e
verduras em geral, antes dos espetáculos. Caso o ator não agradasse a platéia, o público
tinha a opção de jogar o que tivesse comprado nos atores. Não havia como negar o público
presente na cena. Muitas vezes as representações de Shakespeare são reproduzidas com a
impostação declamatória recorrente no melodrama, por ser o gênero estético mais próximo
dos nossos dias, mas o distanciamento brechtiano já estava presente nas peças de
Shakespeare. O próprio Brecht parodia Shakespeare, como na cena que escreve para ser um
intermezzo de Romeu e Julieta
85
. Algumas de suas paródias são realizadas sobre textos de
pessoas que antes dele aplicaram, em textos dramáticos, conceitos importantes de sua
teoria, como numa idéia de homenagem aos instauradores de uma tradição. E é esse
84
A quarta parede é um conceito surgido no final do século XIX e sistematizado por Stanislavisk
(séc. XX), em que os atores representam cercados pelo fundo e lados da caixa cênica (palco) e
estabelecem uma relação com o público como se houvesse uma quarta parede entre eles. O público
não é assumido na cena, os atores representam como se as cenas se passassem em espaços fictícios
onde não há pessoas olhando. Esse procedimento, aceito e patrocinado pelo governo russo após sua
sistematização, pode ser explicado pelo contexto social em que surge Stanislavisk. O teórico/diretor
potencializa seu trabalho prático e livros no período pós-revolução russa. O país, como um todo, é
motivo de boicotes e retaliações que permanecem durante toda a “Guerra Fria”. Precisa se isolar,
estar fechado e se afirmar autônomo. Como se houvesse uma quarta parede entre a União Soviética
e os outros países. O teatro de Stanislavisk parece trazer esse fato para uma abordagem estética,
como nas paródias que recontam “realidades”.
85
Nessa cena, Brecht traz Romeu conversando com um criado de uma de suas fazendas. Romeu
intenta vender a fazenda para comprar um presente para a garota com que flertava antes de conhecer
Julieta. O criado, sua esposa e seus filhos sempre viveram naquela fazenda, e não teriam outro lugar
para morar. Romeu, aristocrata orgulhoso, compara como o criado podia argumentar sobre sua
condição de vida diante do posicionamento de seu patrão, que precisava resolver uma possível “dor
de cotovelo”. Brecht, por sinal, parodia diversos autores como Sófocles e o próprio John Gay.
Parece que o autor buscava parodiar autores que se aproximavam de aspectos estéticos que ele
sistematizaria depois, numa aplicação “real” de gestus. Esse conceito brechtiano significa que a
personagem representada carrega a experiência de vida do ator, a do tipo que representa na peça, e a
da estirpe representada por esse tipo. Um operário feito por João tem um pouco de João, um pouco
do operário na peça e traços comuns a toda a tradição do operariado na história. Bertolt Brecht,
Pequeno Organom para o teatro. In: Teatro dialético: ensaios. 1967, p.181-219.
50
processo de transcontextualização que se observa nas personagens da Ópera dos três
vinténs.
- E vai demorar meio século pra essa gente se juntar de novo e levantar a voz.
Obrigado, Teresinha, percebo que começamos a nos entender. E é apenas meio
século depois, que Chico Buarque escreve sua versão brasileira dessa história contada
muitas vezes. E para cada uma das versões, os autores incluem cenas, canções, trocam o
nome de personagens, mantendo a estrutura da história, da crítica social, em contextos
diferentes. A progressão desse espetáculo no tempo funciona como uma “paródia em
cadeia”, em que cada nova versão faz um cruzamento de discursos das mais diversas fontes.
Se, primeiro, John Gay parodia Handel e tipos da sociedade inglesa, Brecht e Chico
Buarque repetem esse foco parodístico incluindo uma multiplicidade de outros. Cada
paródia operística, quando pensada, escrita e sedenta de cena, passa a carregar um gestus
paródico, ou seja, a tradição de paródias (musicais ou não), pensadas através dos tempos. E,
ainda, os recursos/caminhos paródicos extravasam o campo da literatura para invadir os
discursos sobre o cotidiano.
Não pode ser completamente negado que os autores são estimulados a
escrever/reproduzir/parodiar um objeto que possa revelá-los. É como o ator que representa
o operário, que é visto num momento de cena representando um papel, mas que tem outros
papéis sociais. Apenas gostar do tema da Ópera do mendigo poderia estimular um autor a
escrever uma nova versão. E, quando escrita a obra, ela pode ser analisada como unida à
conjuntura de vida de seu autor. Volto a dizer, essa ligação obra-vida não é direta, nem
obrigatória, mas passível de ser lida. É um caminho paródico, daí Johnatam Wild ser
chamado de Peachum, com características parecidas às do bandido.
Quando repito que as fábulas de Esopo podem ter estimulado John Gay; ou que o
contato de Brecht com a guerra impulsione a reprodução de temas correlatos em sua obra;
ou que as músicas “teatrais” de Chico Buarque podem ter aberto caminho para sua atenção
à cena; não faço afirmações categóricas, mas abro possibilidades de leitura. Cada peça é
lida como um motivo, para o tema dessa dissertação, a Ópera do malandro. Por ser a última
das obras, pode ser que a peça de Chico tenha um número maior de cruzamentos
intertextuais. Proponho alguns e reitero que esta obra me permite maiores conexões
também por estar mais próxima de meu contexto.
51
- Mas é claro, querido, é claro.
2.2 Títulos
A peça de John Gay parece ter em seu título uma referência direta a uma
personagem da peça, “the Beggar” (o Mendigo). No enredo, o texto teria sido escrito por
um mendigo, que aparece como autor da história
86
. Essa personagem aparece apenas no
início e no final da peça, para salvar a personagem que pode ser lida como “protagonista”.
Comumente, esse título é traduzido como “Ópera dos mendigos”, inclusive numa nota de
Chico Buarque inclusa na Ópera do Malandro. Mas a peça inglesa só possui um mendigo,
esse a quem é atribuída a autoria da peça. John Gay (pequeno funcionário da corte da
Rainha Ana e de George I) durante sua vida, com constante frustração, teve que buscar
postos lucrativos numa sociedade londrina setecentista, regida em grande parte por um
imenso sistema de clientelismo
87
. Esse fato pode ser comparado ao ato de pedir/mendigar?
Para Brecht, a história se chama Ópera dos três vinténs
88
. Se pensarmos pelo
mesmo caminho que elejo para o título anterior, “três vinténs” teriam escrito a peça, seriam
donos da história. Seriam três personagens? A leitura mais óbvia indica ser a de que essa
história é contada pelo dinheiro, pelas relações de poder. Essa peça possui muitos
mendigos, e a relação com o dinheiro e a desarticulação da mendicância como fator natural
é presente em todo o espetáculo. Brecht possui uma vertente política muito próxima do
86
Na “Introdução” da peça de John Gay, há uma personagem chamada “Beggar” (mendigo) e outra
chamada “Player” (músico ou ator). A personagem “mendigo” conta para o “ator/músico” que a
peça trata de um trabalho escrito pelo mendigo em virtude da celebração do casamento de James
Chanter e Moll Lay, dois excelentes cantores de “ballads”. A discussão não se aprofunda, sendo as
intervenções do “ator/músico” apenas para estimular as falas do mendigo autor, que fala num
determinado trecho , que os atores estão prontos para começar. John Gay não define o espaço onde
essas personagens conversam e o mendigo se vangloria de seu texto. Eles saem e a peça começa.
87
Solange Ribeiro de Oliveira, O poeta e o sambista: tradução e intertextualidade na “Ópera do
malandro”, de Chico Buarque.
88
A Ópera dos três vinténs se inicia com um prólogo, onde é cantada uma “moritat”, uma canção
em homenagem a Macheath, que possui uma grande aproximação, principalmente melódica, à
canção O malandro, de Chico Buarque. O espaço é definido como uma feira, onde os “mendigos
mendigam, assaltantes assaltam, prostitutas se prostituem”, um cantor de feira canta uma “moritat”
(“Cantor de Moritat” é o nome dado à personagem). Nessa cena, Peachum, sua esposa e sua filha
passam, cruzam o espaço cênico durante a canção. Num determinado momento, Macheath, surge
entre as prostitutas, e é a prostituta Jenny-Espelunca que termina essa canção. A canção fala das
aventuras, assassinatos e artimanhas secretas de Mac Navalha. Quando essa personagem surge, a
peça inicia. Não é possível falar numa abertura da Ópera dos três vinténs sem destacar um recurso
do teatro brechtiano, que consistia em colocar cartazes, antes das cenas, com o nome de cada cena.
Este prólogo é chamado “A MORITAT DE MAC NAVALHA”. Praticamente todas as cenas da
peça contam com um cartaz.
52
marxismo, e explicar a sociedade (reproduzida na peça), como sendo regida por uma
estrutura monetária, parece ser bastante aceitável.
- Que bobagem!
Senhora Overseas, não comece de novo. Ópera do malandro. Novamente uma
personagem conta a história. Dessa vez João Alegre, um malandro carioca
89
. Esse título
parece se referir à personagem Max, o malandro/marginal com mais destaque na peça. Mas
a história é contada por João, que volta, como o mendigo inglês, para resolver o final da
peça. O tipo malandro é muito recorrente na obra de Chico Buarque e sua própria condição
paratópica durante o período ditatorial indica que esteve num entrelugar para escrever seus
textos driblando a censura. O fato de ter recorrido a um pseudônimo (Julinho da Adelaide)
para escrever algumas músicas também aproxima a postura do autor da malandragem.
A obra dos autores, nesse caso seus títulos, são mais importantes que as possíveis
relações com sua vida.
2.3 Estruturas
A Ópera do mendigo inaugura um novo gênero teatral, a ballad opera. John Gay
retira o formato clássico de cinco atos dos “singspiel”, e escreve sua peça com apenas três
atos. São quarenta e seis cenas divididas em três atos (há uma introdução) num espetáculo
com alto teor de crítica moral, apesar de aparente glamourização da vida criminosa. John
Gay cria em seu texto uma paródia de óperas sérias de Handle, destinadas às classes mais
abastadas. Como foi dito, é um mendigo, e não um burguês que conta a história. A peça
ainda possui uma linha aparentemente contínua, as cenas têm pouca autonomia, e entre os
89
Para Chico Buarque há uma fusão entre as duas aberturas. Não é “Introdução” (Gay) nem
“Prólogo” (Brecht), mas uma introdução seguida de um prólogo. Na introdução, o produtor do
espetáculo comenta com o público o que eles iriam ver. Como disse no capítulo anterior, esse
produtor é a personagem Duran (facsímile de Peachum) e chama para cena a patronese Vitória, que
representa sua esposa na peça. O que se percebe é que enquanto na peça de Bertolt Brecht o casal
Peachum cruza o espaço cênico, na peça de Chico eles assumem essa cena no lugar do mendigo e
do músico (versão inglesa). A primeira fala do Produtor possui um tom de ironia muito forte:
“Prezados espectadores, boa noite. Alguém já disse que, quando o artista sente necessidade de
explicar sua arte ao público, um dos dois é burro”. Esse texto parece remeter às duas peças
anteriores, que de forma metateatral, explicam o que iria acontecer. John Gay, buscando um motivo
(casamento dos cantores) para que a peça fosse escrita. Brecht, com seu recurso de cartazes, que
contam a cena em uma frase, antes dela acontecer. Mas a peça ironiza a si própria ao mesmo tempo.
Produtor e Patronese assumem a Introdução, mas não a autoria da peça. Na cena seguinte, num
prólogo, João Alegre, malandro autor, é chamado para abrir a peça cantando. O espaço aqui é um
teatro, com essa introdução e esse prólogo, acontecendo no proscênio, com a cortina fechada.
53
atos, é como se as cenas ficassem em suspenso, sem finalização, com uma idéia a ser
completada no ato seguinte.
A versão brechtiana da Ópera do mendigo possui também um prólogo e três atos,
contendo cerca de quatro cenas cada ato. Uma diferença em relação à peça de John Gay é
que as cenas não são contadas isoladamente em cada ato (a primeira cena do segundo ato é
descrita como a quarta da peça); e também algumas entradas e saídas de personagens não
são consideradas novas cenas, mas variações na mesma cena. Por isso, a diminuição de 46
cenas da peça inglesa para 13 na peça alemã. Há também um “intermezzo” (entreato) no
meio do segundo ato. Como proposta estética, Brecht buscava cenas independentes, com
total autonomia entre si. Ele propõe um final (cena final, com aspecto de finalização) para
cada um dos atos.
- Ele já arruinou a carreira de muita gente.
Teresinha, por favor, agora não!
- Ah, não, de jeito nenhum!
Eu sei do que você quer falar, mas decididamente não quero tocar nesse assunto, é
no mínimo indelicado. Talvez seja melhor tocar no assunto quando estiver conversando
com o ladrão do seu marido.
- Pode chamar de ladrão o quanto quiser que não ligo. Ninguém liga pra essas
coisas. Aquele alemão que escreve pra teatro, como é mesmo o nome dele?
Você sabe muito bem o nome dele, tenho repetido seguidas vezes. Mas é que...
- Ele também não é ladrão? Me disseram que esse Brecht rouba tudo dos
outros e faz coisas maravilhosas. Então, ninguém quer saber de onde vem a riqueza
das pessoas. Importa é o que essas pessoas vão fazer com essa riqueza.
Tá, vamos fazer a vontade dessa personagem tempestuosa. O autor alemão é
acusado sim: de ser um ladrão, de se utilizar de falsidade ideológica na Ópera dos três
vinténs. Bertolt Brecht é acusado de roubar idéias de peças de suas amantes
90
. Mas esse fato
não é novo na literatura. Diz-se que não foi Shakespeare quem escreveu todas as peças
atribuídas a ele.
90
Solange Ribeiro de Oliveira faz uma longa disscussão sobre a apropriação indébita realizada por
Brecht das páginas 25-30 de sua obra já citada De mendigos e malandros: Chico Buarque Bertolt
Brecht e John Gay uma leitura transcultural.
54
Walter Benjamim, falando de Baudelaire, reconstrói o ambiente francês no qual
teria havido um surto de procura e conseqüente produção do folhetim. Nesse ambiente,
Benjamim expõe que muitos escritores ganharam fortunas escrevendo seus romances em
folhetins para os grandes jornais e afirma que havia um boato de que Alexandre Dumas
teria em seus porões uma companhia de literatos pobres, que garantiam que ele produzisse
todos os folhetins com que se comprometeu
91
. Exponho os fatos sobre falsidade ideológica
envolvendo grandes escritores para reforçar o fato de que Chico conseguiu captar a
metáfora perfeita para a o caráter comercial que as óperas criticam. Se a literatura já foi
utilizada como forma de enriquecimento ilícito, se a miséria do pedinte já foi posta à venda
(a contemporaneidade continua vendendo sua miserabilidade, agora em filmes como
Cidade de Deus), é na prostituta, que é ao mesmo tempo vendedora e mercadoria, que essa
situação se potencializa.
- Você fala grosso mas não é de nada.
Chico Buarque consegue estabelecer um elo interessante entre os escritores do
século XIX e suas prostitutas ao colocar na ópera a música chamada Folhetim. Na música,
uma meretriz condensa a atitude dos prostituídos, que “só dizem sim”, fazem concessões ao
sistema; que dizem “meias verdades”, perpetuando a falsidade ideológica e a falcatrua; e
que, num devaneio absurdo, imaginam “descartar” seus amantes/pagantes na manhã
seguinte, quando na verdade os prostituídos é que são descartáveis.
- Que foi isso?
É que não dá pra falar mal do Brecht, tripudiar, ele é um gênio.
- Ah, também não exagera!
Tudo bem senhora Overseas, vou polemizar a questão. Pesquisas revelam que para
futuras traduções e edições, a Ópera dos três vinténs deveria conter os nomes de diversos
de seus autores, caso a intenção fosse fazer justiça aos colaboradores diretos de Bertolt
Brecht. O autor parece ter se apropriado de uma série de manuscritos completos, textos
inteiros, literalmente roubando e explorando amigos e algumas de suas amantes. Figura,
assim, mais como um empresário da produção cultural de sua própria vida e não como
criador de obras originais. Brecht lucra de forma exorbitante sobre sua produção literária,
91
Walter Benjamim, em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 1989. p.26
55
sem repassar um “vintém” para atrizes colaboradoras como Elisabeth Hauptmann e Ruth
Berlau.
Para o autor, a obra dos outros é considerada patrimônio comum, enquanto a sua
obra, propriedade exclusiva, não poderia ser utilizada de forma gratuita nem em espetáculos
de caridade. Brecht teria afirmado para um jornal, em virtude de acusações de omissão de
co-autoria de um de seus textos, ter “esquecido” de citar o nome dos tradutores que lhe dão
base para sua recriação e diz, ainda, que “a propriedade literária deveria ser classificada
juntamente com lotes e terrenos para jardins”
92
. O autor prega, em seu Pequeno Organon,
que as personagens não devem ser unilaterais, devem ter seu lado bom e ruim e, ao que
parece, seu comportamento autoral absorve o que sitematiza em teoria. Como já havia
afirmado, a vida/atitude pessoal dos autores não compromete a obra que aqui estudamos,
mas as informações sobre as vicissitudes quanto à tecitura da Ópera dos três vinténs, muito
bem esmiuçadas por Solange Ribeiro de Oliveira, abrem possibilidade para “fazer justiça”,
mesmo que timidamente, a outros autores/colaboradores da obra em questão.
- Você esteve ótimo.
Obrigado, senhora Overseas, mas estávamos falando da estrutura das peças. A
estrutura da Ópera do malandro já foi colocada no capítulo anterior, mas é interessante
destacar que a peça parece possuir três finais condensados (um entreato no segundo ato,
seguido de dois epílogos). A estrutura de cenas está mais próxima à proposta brechtiana, as
cenas dessa peça de Chico Buarque possuem uma autonomia relativamente grande,
começo-meio-e-fim. Um elemento que aproxima essa peça do texto de John Gay é o fato de
que a abertura da peça não é chamada de “Prólogo”, mas de “Introdução”.
92
Solange Ribeiro indica inclusive que as acusações sobre a colaboração de Elisabeth Hauptmann
foram feitas três anos após a estréia da peça por Margarete Steffin, que teria afirmado que Brecht
era um “oportunista, enriquecido pela Ópera dos três vinténs, furtada de a a z”. A autora se utiliza
de diversas informações contidas numa biografia do autor alemão escrita por John Fuegi, que
destaca, entre outros elementos, a postura reacionária do texto de Brecht ao colocar em cena
aleijados e cegos que caminham e enxergam perfeitamente frente à gama de desabrigados da Berlim
em que vive. Entre outras canções, a letra de Jenny Pirata teria sido escrita por Elisabeth
Hauptmann, que parece ter dado vazão, na letra, à revolta da mulher contra a violência masculina, e
ao que tudo indica , Brecht, cujo comportamento com muitas mulheres esteve longe de exemplar
(marcado por deslealdade e exploração), parece admirar personagens violentos e misóginos, como o
próprio Mac Knife. Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit. p. 29, 30,167.
56
A estrutura da peça inglesa conta com 26 personagens
93
. Entre as principais estão: o
casal Peachum, sua filha Polly, o capitão Macheath, o policial Lockit e sua filha Lucy.
Quase todos esses personagens possuem o mesmo nome na Ópera dos três vinténs, apenas
o policial Lockit é chamado de Tiger Brown. Na Ópera do mendigo, Peachum é um
agenciador de ladrões, que fazem pequenos assaltos, contrabandeiam, roubam casas,
bancos.
Além de agenciador, Peachum é uma espécie de dedo-duro/informante oficial,
denunciando aqueles que por acaso tentam enganá-lo. “A própria palavra impeachment
funciona como um lembrete de Peachum, de Gay e Brecht. O nome Peachum deriva do
verbo impeach, ‘denunciar’ ”, segundo Solange Ribeiro
94
. Chico Buarque parece resgatar a
utilização do termo com o nome Fernandes “de Duran”, que lembra dedurar. Duran, além
de agenciar prostitutas, possui um acordo com Chaves, para tirá-las ou colocá-las na prisão.
Filch é um de seus empregados/agenciados, que trabalhava com ele há muito
tempo. Filch, cuja tradução do nome pode ser lida como “furto”, “pequeno roubo” também
está presente na ópera brechtiana, mas se trata de um mendigo, que quer ser agenciado por
Peachum. Na peça de Brecht, essa personagem agencia mendigos e não ladrões, e é
chamada Jonathan Jeremiah Peachum, assumindo a possível representação de Jonathan
Wild proposta por John Gay.
- Caiu como uma luva...
Na versão inglesa, Lockit e Mac se conhecem, mas a relação entre os dois é
extremamente fria, relação de policial/bandido, o que contrasta com a relação entre as
facsímiles das personagens nas outras obras (Tiger Brown e Tigrão), em que o policial e o
bandido são amigos de infância. Lockit, inclusive, canta para Peachum uma canção sobre
amizade.
93
Solange Ribeiro chama atenção para o fato de que mesmo que as personagens de John Gay
estejam inseridas no submundo, elas parodiam o linguajar de damas e cavalheiros. A gíria do
segmento marginal aparece apenas ocasionalmente, em nomes próprios e apelidos. A autora ainda
afirma que a disposição das personagens, nas três peças, difere do que ocorre na opereta, em que as
personagens são meros suportes para a melodia. “Sem prejuízo de seu caráter ligeiro, voltado para o
entretenimento, os textos incorporam associações históricas e culturais importantes”. Distante de
apenas contribuirem como pano de fundo para destacar o perfil de cada obra, as referências
históricas feitas através das personagens tornam mais denso o sentido das três peças. Solange
Ribeiro, op. cit., p.34, 143
94
Solange Ribeiro, op.cit., p.78.
57
A Ópera dos três vinténs possui mais de vinte personagens, sendo onze
identificados individualmente e quatro grupos de personagens sem distinção na lista de
caracteres: o bando, mendigos, prostitutas e policiais. Em algumas de suas peças, Brecht
traz grupos representativos (mãe, pai, sem nome específico), mas nessa esses nomes
aparecem nas cenas, omitidas apenas na lista de caracteres.
A amizade relacionada a Peachum na Ópera do mendigo
95
é voltada, nessa peça,
para Macheath. O policial e o bandido são amigos de infância, serviram juntos no exército e
cantam juntos a Canção dos canhões, possível inspiração de Doze anos (Chico Buarque).
Lockit é traduzido no Brasil como Chaves, ou Tigrão.
Polly Peachum, das duas óperas estrangeiras, vira Teresinha no Brasil. E esse parece
um momento propício pra falar um pouco mais da personagem que rege esse capítulo.
- O quê?
Exatamente, distinta senhora. Daisy Aparecida Nogueira faz uma análise
interessante de sua posição na Ópera. Ela afirma que você é a malandra maior de todo o
texto, entre outros fatores, por não se submeter à dominação masculina.
- Pode falar à vontade.
Sua face malandra se revela pela falsidade, por fingir-se de boa filha e esposa
amantíssima. Essa simulação da obediência esconde do leitor uma máscara, outra persona.
Certamente, não sofre as injunções que pesam sobre a mulher pobre. A personagem
Teresinha Fernandes de Duran e seus pais representam a “derrocada da moral familiar, em
favor dos bens materiais”. A esposa de Max Overseas conhece como ninguém as
artimanhas do colarinho branco e muito cedo descobre a importância do nome para
reconhecimento social. É por esse motivo que se desenrola a discussão quando a
personagem descobre o sobrenome verdadeiro de seu marido
96
. A personagem fala inglês e
inclusive se dispõe a ensinar os comparsas de Max a pronunciar uma senha em língua
estrangeira que usam para receptação de produtos contrabandeados
97
. No momento em que
Max é preso e está prestes a morrer, a personagem Teresinha de Jesus consegue convencer
95
Sobre a relação entre o chefe do crime organizado e o inspetor de polícia há uma cena em que
Peachum e Lockit dialogam. As personagens demonstram se conhecer há bastante tempo, tratando
um ao outro como “Brother Peachum” ou “Brother Lockit”.
96
Chico Buarque, op. cit., p. 71
97
Idem, p. 111.
58
seu marido assinar diversos documentos, inclusive assinando um papel em branco para o
caso de alguma negociata futura
98
.
- Uma semana, no máximo, e a coisa esfria.
Não estou necessariamente destacando seus defeitos, mas qualidades. Você põe em
xeque a submissão da mulher ao casamento, “engana habilmente seus pais e também seu
próprio cônjuge”, livrando-se, quase simultaneamente, da tutela do pai, quando casa, e do
marido, encarcerado por denúncia de Fernandes de Duran. E como está claro, Teresinha
não se casa por amor
99
.
- Eu sou uma senhora de respeito, caralho!
Mas voltemos às personagens. A Lucy européia é chamada Lúcia. A prostituta
Jenny é transformada no travesti Genival (Geni). O empregado Filch passa a ser Fichinha,
prostituta que quer ser agenciada por Duran, nome de Peachum na Ópera do malandro. A
esposa, Célia Peachum, é descrita como Vitória
100
Fernandes de Duran, patronese e esposa
do agenciador de prostitutas.
- É tão digno quanto contrabando e não oferece perigo.
Há dois grupos, comparsas de Macheath, e prostitutas, que possuem nomes bastante
semelhantes nas versões inglesa e alemã. Na peça brasileira, há uma diferenciação entre as
prostitutas, que possuem nome abrasileirados (Fichinha, Dorinha Tubão) e os malandros
que assumem alcunhas estrangeiras (quase todas em inglês) e irônicas (Johnny Walker,
General Eletrick, Big Ben). Entre eles, o ídolo Max Overseas que, na verdade, se chama
Sebastião Pinto.
- Sebastião Pinto? Quem é Sebastião Pinto?
Seu digníssimo esposo, senhora.
- Teresinha Pinto, jamais!
98
Idem, p.169.
99
Daisy Aparecida Nogueira, em A figura feminina no teatro de Chico Buarque & CIA faz essa
discussão exposta acima das páginas 57-60 do texto citado. É interessante destacar as atitudes
malandras das personagens para reforçar a teoria de Solange Ribeiro, de que todas são malandras,
por aspectos diferentes. Daisy Aparecida confirma essa teoria ao afirmar que a “malandragem
transita por toda a obra” e que as falas de Teresinha revelam ao leitor/espectador um jogo de
verdade/mentira levando-o a participar da intenção verbal do autor implícito (p.73). O autor da
Ópera busca de diversas maneiras a suspensão de valores instituídos em sua transcontextualização.
100
Um dado intertextual interessante é que a peça de Brecht se passa “no contexto específico do
capitalismo vitoriano”, fazendo referência à Rainha Vitória. Solange Ribeiro, op. cit., p.18.
59
Sem mais discussões, senhora Overseas, permita-me continuar. Grande parte das
personagens possuem nomes parecidos nas três peças como o do policial Lockit - Jackie
Tiger Brown Chaves Tigrão; ou sua filha, Lucy Lúcia. Mas Chico Buarque parece
traduzir mais alguns nomes da versão inglesa. João Alegre, por exemplo, pode ser lido
como uma tradução, essa literal, de John Gay. Alguns nomes de personagem não possuem
tradução literal, mas, algumas vezes, provêm de outros cruzamentos intertextuais, como é o
caso da possível ligação entre Teresinha e a Santa Teresinha
101
, cultuada no Brasil.
- Exatamente.
Apesar das traduções de nomes partirem mais da versão inglesa
102
(Ben Budge,
comparsa de Mac, é traduzido como Big Ben, por exemplo), as relações entre as
personagens estão mais conectadas com as da peça de Bertolt Brecht. Amizade entre
Chaves e Max é um exemplo, o agenciamento de Filch e Fichinha é outro, e isso se repete
também em relação às cenas em comum nas duas peças. Chico parece cruzar as duas o
tempo inteiro, mas estabelece mais relações, de cena e entre personagens, com Brecht. O
autor chega a citar Brecht numa cena e muitas traduções vêm da obra de Gay.
2.4 Aberturas e primeiras cenas
A primeira cena do primeiro ato da Ópera do mendigo começa com Peachum
cantando
103
. Na primeira música e nas falas subseqüentes, Peachum compara sua profissão
a de um advogado, afirmando que ambas são passíveis de serem ditas “honestas”. Essa
101
Sérgio Buarque de Holanda fala da relação que se estabelece com o catolicismo no Brasil. É
caractrística de nosso catolicismo a permissividade de tratar nossos santos com intimidade quase
desrespeitosa, o que deve parecer estranho às “almas verdadeiramente religiosas”. O autor cita que a
popularidade entre nós, de uma santa Teresa de Lisieux, aqui chamada santa Teresinha, resulta
muito do caráter intimista que pode adquirir seu culto. Este por sua vez é um culto amável e quase
fraterno, que se acomoda mal às cerimônias e suprime as distâncias. É o que também acontece com
o nosso Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos
evangelhos canônicos do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do
Evangelho da Infância. Aqui, os brasileiros de todas as classes sociais querem estar em intimidade
com as sagradas criaturas, de modo que até Deus é amigo familiar. Sérgio Buarque de Holanda,
Raízes do Brasil, 26 ed., 2002, p. 149.
102
“As correspondências entre os nomes ingleses e os brasileiros, bem como as transposições de
lugares e de momentos históricos, criam extraordinárias ressônancias de sentido”. Solange ribeiro,
op. cit., p.37.
103
O início da peça de John Gay é uma referência objetiva ao metateatro. Além de haver uma
personagem a quem é atribuída a autoria da peça, é colocado em evidência que o público se
encontra num espetáculo e que os atores, depois de arrumados e maquiados, estão prontos para
apresentar. Depois disso, a personagem Peachum começa cantando.
60
comparação com o Direito marca o início desse enredo satírico e crítico. A cena seguinte é
vivida por Peachum e seu empregado Filch. É uma conversa sobre negócios (ilícitos),
compartilhados pelos dois.
Esta cena, em sua versão alemã, traz Peachum cantando seu “coral matinal”, no qual
a personagem não compara sua atividade a de um advogado, mas descreve a si mesmo
como um “mesquinho cristão”, dá ordens para que acorde e comece a pecar e diz, ainda,
que esse “cristão” verá os resultados de sua ação no juízo final. A própria personagem se
julga através da canção. Após a música, Peachum destaca que sempre retira da Bíblia
citações para sua empresa e que precisa inventar algo novo. “Será da bíblia que vamos tirá-
la (a novidade), mas por quanto tempo ainda?”, diz Peachum. Ainda nessa cena, entra
Filch, não mais um empregado conhecido, mas alguém procurando emprego com Peachum.
Jonathan Jeremiah Peachum agencia mendigos, qualquer um que quisesse pedir esmolas,
precisaria tirar licença coma personagem. Filch vai em busca disso, licença para “esmolar”.
A peça de Chico segue a mesma linha da de Brecht, Fichinha vai ser agenciada por
Duran, com a diferença de que este não canta, mas fala ao telefone. Em relação à Ópera dos
três vinténs, uma cena que Chico Buarque não recupera traz Peachum mostrando para Filch
alguns equipamentos/acessórios para que se possa comover o ser humano a dar esmolas. Os
equipamentos representam homens aleijados, sobreviventes de guerras, doentes, etc. Filch
conta sua história pessoal e Peachum coloca a história dele como “Equipamento E”.
Quando Filch pergunta porque ele não poderia usar sua própria história, Peachum o
repreende dizendo que ninguém acredita na nossa história verdadeira. Duran apenas fala
dos acessórios que estão à disposição de Fichinha, entre os quais estão seios de paina,
bunda de borracha avental de babá, hormônio, vibradores, consoladores e diafragmas
laminados
104
.
A conversa ao telefone é entre Duran e Chaves, inspetor de polícia, sobre uma
dívida e sobre a prisão de algumas de suas prostitutas agenciadas. Numa das falas, a
personagem Duran diz para Chaves que não deixaria sua imagem comprometida “nem por
três vinténs”, numa alusão direta à ópera de Brecht.
Essa conversa pelo telefone parece remeter ao primeiro samba oficial do Brasil,
Pelo Telefone, composto por Donga e Mauro Almeida em 1916. Essa conversa de Duran
104
Chico Buarque, op. cit., p. 32.
61
com Chaves, o inspetor de polícia (chefe de polícia), e além de reclamar sobre uma dívida
de Chaves, argumenta que o inspetor estava prendendo algumas de suas prostitutas
agenciadas. Na música, há versos como “Ai, ai, ai / É deixar mágoas pra trás, ó rapaz/ (...)
Tomara que tu apanhe / Pra não tornar fazer isso / Tirar amores dos outros”. Pouco depois,
entra Fichinha e a primeira música da peça é exatamente Viver do amor, onde a relação
amor/prostituição é realçada. Dessa maneira, a conversa “pelo telefone” de Duran, pode ser
a tradução de Chico Buarque para o canto matinal, das personagens facsímiles.
2.5 Cenas semelhantes
Há um bloco de cenas, na peça inglesa, em que são trazidos alguns indícios de que
Polly, filha dos Peachum, havia se casado com o Capitão Macheath, um dos agenciados de
Peachum, uma espécie de líder do bando que trabalhava para o delator oficial. A atitude de
Polly no momento em que fala com seu pai parece ser extremamente decidida. Ela fala que
está certa de que ama o referido marido e parece não se deixar abalar pela pressão e
decepção de seu pai. Polly argumenta com segurança.
Partindo do fato de que Macheath era empregado de Peachum, antes de casar com
sua filha, há algumas cenas curiosas quando cruzadas com as situações das outras peças.
Uma delas é marcada por um elogio de Peachum ao Capitão Macheath, que seria uma
pessoa inteligente que já havia conseguido muito para o negócio de ambos e que poderia
conseguir mais. Peachum afirma que parece ser difícil achar algo no coração para justificar
sua participação na morte desse homem. Apesar dos elogios repetidos em outros momentos
da peça, Peachum expõe ironicamente que, apesar de Macheath ter talentos enquanto
ladrão/contrabandista, não serviria para ser seu genro, desposar sua filha. Macheath, em
outra cena, aconselha os bandidos a continuarem com Peachum, confiarem nesse agente útil
para negócios ilícitos, mesmo se Mac se afasta. Ele afirma que Peachum é um homem que
conhece o mundo, agente necessário, e que Mac estava saindo do caminho dele por causa
de pequenas diferenças. Macheath afirma que, sem Peachum, a gangue estaria arruinada.
Um dos ladrões, Mat of the mint, concorda com Mac, falando que Peachum, como um
cafetão para uma prostituta, é de grande conveniência. Nessa cena também parece ficar
evidente uma paródia das óperas de Handel. Mat of the mint, comparsa de Macheath, canta
uma música chamada March in Rinaldo, uma canção de nome igual a uma das músicas da
ópera Rinaldo, de Handel.
62
A cena seguinte é dividida pelo casal Peachum e sua filha, onde Polly canta uma
música que parece ser a gênese de Teresinha (composta para a Ópera do malandro). A filha
do casal canta por que escolheu aquele homem para se casar.
- A sangue frio! À queima-roupa.
Na peça alemã, Peachum pergunta o que Polly tem feito e sua mãe fala que ela tem
se envolvido com um homem chamado de “capitão”. Jonathan Jeremiah nota que esse
homem é o Capitão Macheath, um notório bandido. O pai fica furioso. Mãe e pai cantam a
Canção do em-vez-de, possível germe de Uma canção desnaturada (Chico Buarque). Na
terceira cena do primeiro ato Polly revela para seus pais que se casou com Macheath (ou
Mac Navalha). O pai e Polly se comunicam através de Célia, a mãe. Cada uma das duas
personagens utiliza expressões como “diga para seu marido” ou “diga para sua filha”. Essa
cena é bem diferente daquela em que Peachum e Polly conversam sozinhos e abertamente
na Ópera do mendigo. Mas Polly Peachum canta uma canção com um tema bem parecido,
novamente, com a canção Teresinha (Chico Buarque).
Uma cena que não é encontrada na peça inglesa, mas está nas duas seguintes é o
casamento de Mac/Max e Polly/Teresinha. Nessa cena os comparsas de Mac são
apresentados, dando nomes às personagens que antes compunham “o bando”, segundo
Brecht. Nesta cena, também, os bandidos cantam uma música em homenagem ao
casamento. A letra discorre sobre diferenças entre marido e mulher, e talvez seja um
possível mote para a composição de Casamento dos Pequenos Burgueses (Chico Buarque).
Polly, a noiva, também canta nessa cena. A música que canta é Jenny-pirata, versão da qual
foi retirada Geni e o Zepelim (Chico Buarque), na versão brasileira cantada por Genival
noutra cena. A cena do casamento é longa, e Brown, personagem facsímile de Lockit, chefe
supremo da polícia de Londres, vai ao galpão onde Macheath desposa Polly Peachum.
Brown, ou Tiger Brown, é o padrinho do casamento, da mesma forma que Chaves é o
padrinho de Max e Teresinha. Quando Polly fala para os pais que Jackie Brown, o tigre, foi
seu padrinho de casamento, os Peachum resolvem utilizar esse fato como um escândalo
para, através da imagem pública de Brown, forçar a captura de Macheath. Depois dessa
cena, Brecht propõe um “primeiro final para a ópera”. Nesse final, a família Peachum canta
uma música com um tema semelhante à canção Hino de Duran.
63
Na peça brasileira, mais especificamente na cena em que é cantada Teresinha, a
garota discute com seu pais, sobre seu casamento, com bastante segurança. Discute com os
dois ao mesmo tempo, de maneira direta, sem os recursos da cena da Ópera do Mendigo.
Há nessa cena uma crítica às rádionovelas (“Teresinha, duas pessoas podem até se amar
que nem nas novelas. Só que na vida real, (...) é lógico que não vai casar com ela” fala de
Vitória, mãe de Teresinha), e a filha reafirma que casou por amor.
-O amor não tem fronteiras. O amor destrói barreiras. Só o amor constrói.
Sei, Teresinha, talvez com essa conversa você convença seus pais, mas a mim não.
Há no texto, das três cenas, falas que se repetem, como quando mãe e filha discutem sobre
como a garota pretendia viver e Polly/Teresinha fala que “da empresa/emprego de seu
marido”. Esse recurso de falas que se assemelham é recorrente.
Uma outra cena presente nas três peças é aquela em que Polly/ Teresinha tenta
advertir seu marido de que seus pais iriam denunciá-lo à polícia. Na Ópera do malandro
essa cena conta com uma Teresinha que chega, avisa do perigo e se oferece para cuidar dos
negócios. Polly, nas outras duas peças, recebe essa incubência de Max com muita
resistência. Teresinha é mais prática do que as garotas “frágeis” das outras peças.
- Era tão mais fácil!
O encontro de Mac/Max e sua gangue, num prostíbulo, o flerte com as prostitutas,
as perguntas do protagonista sobre o quão honroso ele é, aparecem também nas três
versões. Para Polly/Teresinha, o discurso do amor, que pode até suspeitar da honra; para os
comparsas, o discurso da confiança, onde honra e coragem não estão colocados em
discussão. É nessa cena que Mac/Max é traído por Jenny/Geni
105
. Na Ópera do mendigo,
Jenny e a prostituta Suky Tawdry apontam pistolas para Mac, segurando-o até os guardas
chegarem. Nas outras peças, Jenny/Geni pede para ler a mão de Mac/Max e diz que ele
seria traído por uma pessoa cuja inicial é “j/g”, e facilita a entrada dos policiais.
Há uma cena, nas três peças, em que as prostitutas lamentam o que fizeram com
Mac/Max. E, na prisão, esta personagem conversa com Lockit/Tiger/Tigrão sobre o fato
105
Após a quarta cena (primeira do segundo ato) há um intermezzo. Célia Peachum oferece uma
recompensa para Jenny-Espelunca caso ela entregasse Macheath. Nessa cena as duas cantam uma
música sobre os hábitos de Mac e sua necessidade do sexo, a Balada da servidão sexual, um pouco
pelo tema e também pela posição que se encontra na peça, indica ser a base de Homenagem ao
Malandro. Esta música, entretanto, está num entreato entre o primeiro e o segundo ato de peça de
Chico Buarque.
64
dela ser prisioneira. A diferença é que entre Mac Lockit, essa relação é fria, e as demais
são lembranças de um passado agradável e amistoso
106
. Na prisão, Mac/Max recebe a visita
de Lucy/Lucia, que questiona o marido sobre o casamento com Polly/Teresinha e o bandido
diz que até freqüentava a casa, beijava Polly, mas isso não significa nada, não tem nada a
ver com casamento.
- Tem sim.
Teresinha, isso você resolve com ele, estou só descrevendo a cena. Essa cena, por
sinal, é quase uma tradução literal nas três peças, poucas expressões são alteradas. Entra
Polly/Teresinha. Mac/Max tenta demonstrar para Polly/Teresinha que Lucy/Lúcia poderia
ajudá-lo a fugir. Na Ópera do malandro a personagem Lúcia é descrita pelo seu pai como
cleptomaníaca, que adora música e doce
107
. Enquanto discute com Max ela afirma que vai
criar seu filho sozinha, pede os trinta contos que emprestou para Max, certamente
surrupiados de Chaves, mas o contrabandista a convence a distrair Barrabás para fazê-lo
fugir
108
.
Antes de Max ser solto por Lúcia, as duas personagens femininas brigam sobre o
fato de quem seria a mulher do bandido. Polly/Teresinha argumenta que casaram,
Lucy/Lúcia que está grávida há cinco meses. Ambas dizem que se ele estivesse preso há
cinco meses seria melhor para elas. Essa cena aparece na Ópera dos três vinténs e na Ópera
do Malandro e é, na versão brasileira, a cena anterior à canção O meu amor. Na Ópera do
mendigo, as personagens femininas também cantam uma canção com tema parecido.
Depois da discussão/canção, um dos pais de Polly/Teresinha vai buscá-la na prisão. Na
Ópera do mendigo é o pai, Peachum, enquanto que nas outras duas é a mãe. É Lucy, nas
três óperas, quem ajuda Mac/Max a fugir
109
.
106
Na prisão, há uma cena em que Brown está envergonhado por ter preso seu amigo. Macheath
não fala diretamente com Brown, demonstra mágoa. Mac, sozinho, canta A balada da boa vida,
antes da entrada de Lucy, na mesma cena. Macheath escapa da prisão, mas volta no “segundo final”
da ópera e canta com Jenny a canção Pois de que vive o homem?, semelhante ao tema de Pedaço de
mim. Há também uma cena em que Brown se esconde de vergonha por ter prendido Macheath pela
segunda vez. Mac canta o Clamor da tumba, cuja idéia se parece com O malandro 2 de Chico
Buarque.
107
Chico Buarque, op. cit., p. 66, 69.
108
Idem, p. 135, 136, 146.
109
Outra cena que não foi transcontextualizada da Ópera do mendigo é aquela em que Lucy tenta
convencer seu pai a soltar Mac. Ela canta uma música apaixonada para o pai e ele canta uma música
aconselhando-a a esquecer o bandido. A tentativa de Lucy não convence o pai, mas ela encontra
65
- Deus me livre! Isso é humilhação!
Mac/Max foge, mas é preso novamente, através de uma informação que
Peachum/Duran recebe sobre seu paradeiro. Na peça inglesa, essa informação é dada pela
personagem Diana Trapes, e nas outras peças quem delata Mac/Max é Jenny/Geni. Nessa
segunda prisão, Mac/Max recebe várias visitas, nas três peças. Ele tenta convencer seus
comparsas e Polly/Teresinha a subornar os guardas, mas essas personagens expressam que,
apesar de gostarem muito dele, não conseguiriam uma soma de dinheiro muito grande para
Mac/Max.
Três finais, que parecem conectados.
Ópera do mendigo: Mendigo e Músico/Ator voltam à cena, o segundo afirma que
uma ópera não pode terminar com uma execução, tem de haver um final feliz. O Mendigo
argumenta que numa obra “desse tipo de drama” (ópera), não é problema o quão absurdas
as coisas são. A personagem diz, ainda, que no decorrer da peça já ficam evidentes as
semelhanças entre os “homens ricos” e os “marginais” (“fine gentlemen x gentlemen of the
road”). A lição de moral estava dada: as pessoas possuem os mesmos vícios, o mesmo
comportamento imoral e até ali parecia que alguém seria punido. Mas isso não acontece...
Ópera dos três vinténs: o bandido está prestes a morrer, e Peachum informa que tem
de haver um final diferente por ser uma ópera. É a personagem que mais queria que
Macheath fosse preso, mas anuncia sua salvação. É um efeito visível do distanciamento
brechtiano. Essa personagem, aqui, parece antecipar a figura do Produtor, que Chico
Buarque põe na Ópera do malandro. Chega um arauto e o final se transforma...
Ópera do malandro: Max preso, uma passeata prestes a acontecer, mas Vitória tenta
acabar com o manifesto. João Alegre volta à cena, argumenta que a peça é dele e que em
“peça de fudido, fudido é que tem vez”. O Produtor convida esse malandro autor para uma
conversa, e o final muda de rumo...
Na peça inglesa, Macheath chama todos os prisioneiros à revolta e todas
personagens cantam e dançam
110
. Na versão alemã, chega um arauto informando que Mac
outros meios de soltar Macheath. Sempre que a personagem Lucy entra na prisão , Macheath canta
uma música diferente para ela, o que não acontece nos outro textos.
110
Lucy, Polly, Lockit, Peachum e Macheath cantam pequenas canções, após falas curtas em uma
das cenas. Essa cena é uma possível germe da canção Ópera, de Chico Buarque. Na cena seguinte,
fazendo um fundo musical, todos os prisioneiros que seriam executados cantam, e as personagens
em cena percebem esse “coro”, comentando-o. Essa cena também não foi transcrita nas obras
66
Navalha foi perdoado pela rainha, em virtude do tumulto que sua prisão estava causando no
dia da coroação
111
. No texto de Chico Buarque, João Alegre retorna, dirigindo um
conversível anos 40 e informa, cantando, que chegou um “telegrama do Alabama pro
senhor Max Overseas”. A sequência dessa cena é uma paródia a diversas óperas clássicas
européias, praticamente todas as personagens cantam, numa simulação real de ópera.
Depois João Alegre volta, sozinho e canta O Malandro Nº 2, canção em que fala da morte
de um malandro, “na greta”, na “sarjeta” do país.
- Que coisa mais vulgar!
2.6 Canções e intérpretes
Um detalhe interessante em relação às músicas da Ópera do mendigo é que suas
letras das canções parecem ser menores, mais curtas do que nas outras óperas, algumas
delas contendo apenas uma estrofe. Parecem ser mensagens curtas entre as falas. Esse fato
pode ser lido como uma tentativa de aproximar mais o “singspiel” da ópera clássica,
passando rapidamente da música para a fala. As óperas seguem a linha sistematizada por
Brecht, onde as canções revelam detalhes sobre a postura das personagens, às vezes
contrastando com o que é colocado na cena, outras vezes realçando características.
Enquanto tema, esse fato pode ser observado na versão inglesa, mas é como se as
personagens não parassem para cantar, falassem e cantassem num curto espaço de tempo.
Na peça alemã, antes das músicas, é indicada uma iluminação para cada canção,
uma proposta de órgão iluminado, três refletores que descem e o título da música em
letreiros. Ou seja, as canções são elevadas a um efeito ritual, e suas letras são mais longas
seguintes. Há uma cena, não repoduzida nas outras peças, em que Mac, Lucy e Polly conversam. O
marido/futuro pai aconselha as personagens femininas a se mudarem para “West-Indies”, onde
poderiam arrumar uns dois ou três maridos, se quisessem. No final da cena, chegam quatro esposas
de Macheath com seus filhos querendo ver o marido/pai, que estava na prisão. Na cena final da peça
Macheath convoca “the rabble” (personagens que aparecem somente na última cena, pessoas de
“baixo calão”) para uma dança. Todos dançam e Macheath elege Polly como sua parceira/esposa. O
“sinspiel” termina aqui. Segundo Solange Ribeiro de Oliveira, John Gay era dependente de patronos
aristocráticos e estava sempre à caça de cargos na corte. Dessa maneira, o happy ending da Ópera
do mendigo reflete as preferências do público aristocrático e nã osimpatia por aspirações populares.
111
No “terceiro final da Ópera dos três vinténs”, entra um arauto a cavalo e fala que Macheath foi
libertado pela rainha em virtude do possível tumulto que sua morte causaria na coroação da
majestade. Peachum convoca os atores para cantar no final, destacando que na realidade, tipos
pobres foram representados ali e o final deles quase nunca conta com arautos. As personagens
cantam essa mensagem política, juntas, indicando outra possível fonte para a canção Ópera de
Chico Buarque.
67
que as de John Gay. Chico Buarque dá indicações apenas do gênero musical de cada canção
e do momento em que a orquestra começa a atacar
112
, os títulos estão no texto, mas o autor
não propõe que letreiros os destaquem. As letras possuem um tamanho aproximado das
letras de Brecht, algumas são bem maiores (Geni e o Zepelim e Ópera, por exemplo).
- Deixa eu ver?
Senhora Overseas, as letras se encontram no Anexo I desta trabalho. Apesar do
tamanho das letras da peça de Chico Buarque serem próximas das de Brecht, e do fato de
poder-se perceber que nenhuma das três peças se encaixa como ópera séria, Solange
Ribeiro chama atenção para um elemento que desarticula a primeira percepção das peças,
dada pela relação entre cenas e personagens. A autora foca uma parte do seu estudo na
relação de tensão entre melodia e letra nas três obras. Sabemos que Chico Buarque é um
exímio poeta/compositor, que se reporta com facilidade à música popular e à erudita. Na
Ópera do malandro, a interdependência entre música e verso se assemelha mais com as
músicas de Gay do que com as de Brecht. Embora Chico Buarque molde Geni e o Zepelim
com muito da influência brechtiana, mantendo a tensão melodia suave/ letra de peso, a
maioria das músicas, como as de John Gay, escapam ao desencontro entre melodia e letra.
Esse desencontro, para alguns, desmerece a Ópera dos três vinténs e, para outros, é
propositado e funcional
113
. Na música da peça de Chico Buarque, letra e melodia são
“gêmeos siameses” e, mesmo que a referência mútua entre verso e música nem sempre
corram paralelamente, “letra e melodia podem conter ‘citações’ de canções e poemas
conhecidos, acrescentando-lhes nuances humorísticas”. Brecht, apesar de propor um
aspecto ritual para a execução das músicas, frisa que devia haver no palco “atores
cantando”. Tanto John Gay quanto Chico Buarque dão às canções um caráter menos
fragmentado que Brecht. Outro aspecto que aproxima as canções de John Gay e Chico
Buarque é a recorrente utilização do cancioneiro popular nas duas peças. O autor inglês
112
Durante o texto, o autor se utiliza (para a orquestra) de expressões como “ataca introdução em
ritmo de tango”; “ataca em ritmo de valsa”. Chico Buarque, Ópera do malandro, 1979
113
Segundo Solange Ribeiro de Oliveira, “Brecht temia que a poderosa sedução da música
favorecesse a identificação com personagens”, por isso procura se afastar do teatro aristotélico, para
realçar o espiríto crítico e a contínua consciência por parte da platéia, que está diante de um
espetáculo teatral e não de uma pretensa realidade. A autora cita ainda T. W. Adorno, que afirma
que a guerra entre texto e música era tão intensa que Brecht teria aconselhado os atores a não seguir
a música cegamente, “eles deveriam, não apenas cantar, mas demonstrar que representavam
homens cantando”. Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p.115,116.
68
explorava a familiaridade da platéia com as melodias, da mesma maneira que Chico
Buarque não receia evocar uma singela cantiga de roda para compor Teresinha
114
.
- Ah, que gracinha! Quero ouvir.
Receio que não tenhamos tempo agora Teresinha, e duvido que não conheças a
cantiga de roda de que falo. Afinal, é você quem canta a única música gravada antes da
estréia da peça, por Maria Betânia. Todas as outras eram inéditas. Após a estréia, foi
lançado o LP com arranjos de Francis Hime, em que são misturados iniciantes e nomes
consagrados da música brasileira: o disco contém músicas cantadas por Chico Buarque, Gal
Costa Alcione, Moreira da Silva, Nara Leão, As Frenéticas, João Nogueira, MPB-4, Zizi
Possi, Cor do Som, Turma do Funil, além de cantores líricos. As únicas atrizes da primeira
montagem que fizeram parte desse “registro de continuação” da Ópera foram Elba
Ramalho e Marieta Severo. Tendo em vista a gama de referências musicais que Chico
Buarque nos traz, é importante destacar alguns aspectos relevantes da intertextualidade
presente em certas canções inseridas na Ópera do malandro.
Como afirma Solange Ribeiro de Oliveira, Chico Buarque privilegia a música
nacional utilizando-se também de estímulos musicais estrangeiros (latino-americanos em
geral) popularizados no Brasil. A peça começa com um samba, O malandro; a música Viver
do amor é um bolero, de origem espanhola e cubana; o tango, popularizado na Espanha e
na América Central está presente em Tango do covil; a composição Doze anos é um choro;
o mambo, originário da América Central, marca o ritmo de Casamento do pequenos
burgueses; Teresinha é uma valsa, de origem francesa, mas que, “segundo Mário de
Andrade, ‘(...) amaneirou-se no Brasil, ficou sestrosa’ ”; Sempre em frente é uma marcha
militar; o samba retorna em Homenagem ao malandro; Se eles me pegam agora é um
foxtrote, aparentado com o jazz americano; o xaxado se manifesta em Se eu fosse teu
114
Quase todas as canções da Ópera do mendigo são britânicas. “Gay se apropria de formas
estrangeiras com a mesma sem-crimônia, mas privilegia o nacional como Chico faz com o samba e
o choro”. Solange Ribeiro lembra que não foi intenção de Kurt Weill, fazer apenas um re-arranjo de
melodias existentes. “Weil toma emprestada de Gay uma melodia para O coral matinal de
Peachum”, além disso incorpora “ecos de Bach, reminiscências de uma chanson francesa e de uma
marcha fúnebre, foxtrotes, composições sul e norte americanas, como blues e jazz”. A maioria das
influências/referências de Weill não é alemã. Segundo Solange Ribeiro, “o ecletismo dos três
autores não elimina a originalidade musical das óperas, e, na de Chico, seu caráter nacional. A
aproximação das canções de John Gay e Chico Buarque, bem como a distinção das canções de
Brecht é feita por Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p. 98-119.
69
patrão; e o béguin, originário da Martinica, está em O meu amor; Chico realiza uma
“impagável colagem” de árias operísticas em Ópera; e o samba encerra a peça com O
malandro nº 2
115
.
É certo que todas as músicas possuem diversos aspectos relevantes sob o ponto de
vista da transcontextualização e do intertexto, mas analisar todas as músicas presentes na
Ópera certamente não cabe numa dissertação de mestrado, fica difícil inclusive escolher
por onde começar...
- Vai por mim, vai por mim!
Teresinha, é preciso que algo fique claro, você é uma personagem e a música tem
uma outra conotação, outro eu lírico, que nem só porque se manifesta através de sua fala
pode ser lida como um facsímile. Mas como essa estrutura de dissertação me permite
analisar as músicas diluídas nos capítulos, posso começar por Teresinha. Já é sabido que a
canção possui influência, inclusive melódica de uma cantiga de roda chamada Teresinha
de Jesus. A cantiga remete à vivência da mulher na sociedade patriarcal, cercada das três
figuras masculinas que marcam a trajetória de vida de muitas mulheres: o pai, o irmão, o
noivo. A canção de Chico Buarque parodiando a cantiga, “mantém o verso heptassílabo da
letra original, com rimas geralmente alternadas”. Os compassos iniciais fazem claras
“citações” melódicas da cantiga popular. Teresinha possui uma ternura pueril, que envolve
o ouvinte e é um bom exemplo da composição que se distancia do ideal brechtiano de
canção teatral. As canções do texto de Chico Buarque possuem um “irreprimível lirismo”,
como em Teresinha, o que suaviza as canções associadas ao amor malandro. Em muitas
persiste a impressão de emoção sincera, apesar de sórdidas circunstâncias
116
.
- É lindo!
Em Viver do amor, cantada pela mãe da personagem Teresinha, a paródia é
duplicada pela melodia. Dessa vez a relação intertextual se estabelece com uma canção de
Franz Liszt, compositor húngaro, autor de Sonho de amor (Liebstraum), canção da qual
coincidem breves compassos. Liszt é considerado um dos compositores mais românticos do
século XIX, e sua composição, que é uma “epítome musical do amor idealizado”, é
contraposta à perfídia do amor prostituído. Essa paródia musical possui versos que
115
Para ler mais sobre o assunto, Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p102.
116
Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p.150-156.
70
antagonizam o próprio título da composiçaõ húngara: “Ai, o amor/ Jamais foi um sonho”. A
letra possui três estrofes com número irregular de versos. Eles possuem um estrutura
intercalada entre heptassílabos iniciais e finais, com versos internos mais curtos, geralmente
trissílabos. Apesar de algumas variações, mantêm o esquema de duas rimas básicas em
cada estrofe
117
. Em O meu Amor, duelo cantado travado entre Teresinha e Lúcia diante da
cela de Max, o lirismo presente em muitas músicas dá lugar ao erotismo passional. “O
ritmo langoroso realça o duelo de bravatas eróticas das duas rivais”. A personagem
Teresinha “desfivela a máscara de moça ingênua para desafiar Lúcia, “comentando as artes
eróticas do sedutor disputado”
118
.
- Viu no que é que deu?
Uma canção que celebra a “união além da carne”, possuindo um “erotismo
sublimado” é Pedaço de mim, onde a dupla de amantes, diante da morte iminente, executa,
em ritmo lento, uma dilaceração do conceito de saudade
119
. Doze anos parece ter sido
inspirada no poema Aurora da minha vida, de Casimiro de Abreu, e relembra a infância
galhofeira que tiveram o policial Chaves e o contrabandista Max Overseas
120
. Um detalhe
interessante do Hino de Duran é que a composição tem suas primeiras três estrofes
regulares, com rimas aabb, e a partir de então, as estrofes deixam de ter unidade, e alguns
versos passam a ser falados, até que ao final da canção a voz vai diminuindo,
aparentemente causando a sensação de que o cantor teria sido capturado pelos tentáculos da
lei.
E em relação às personagens que interpretam as músicas, na peça de John Gay e de
Bertolt Brecht, geralmente as personagens principais cantam. Esse fato pode ser observado
com mais clareza na peça alemã. Entendo por personagens principais o núcleo dos
Peachum (Jonathan, Célia e Polly), a famíla Lockit (o policial e sua filha), Macheath e
Jenny. Na Ópera do mendigo, a figura do mendigo-autor também pode ser levada em conta.
O que quero dizer é que, nessas peças, as prostitutas (com exceção de Jenny) e os bandidos,
em geral, não cantam
121
. Chico Buarque traz um diferencial: Tango do Covil, Folhetim, Ai,
117
Idem, p.147, 148.
118
Idem, p. 156
119
Idem, p.162.
120
Idem, p.102
121
Aqui coloco o termo “em geral” por três razões: há em algumas músicas a proposta de um coro,
que seria feito inclusive pelas atrizes/atores que representam esses dois grupos; a outra razão é por
71
se eles me pegam agora, Se eu fosse teu patrão, e trechos de Ópera são cantadas pelas
prostitutas e/ou malandros.
- Tá na cara que tem que mudar tudo e já.
2.7 Peculiaridades das três versões
O terceiro ato alemão começa com os mendigos de Peachum escrevendo cartazes
sobre o envolvimento de Brown e Mac. Peachum, Célia e Jenny cantam a Balada da
servidão sexual. Tiger Brown tenta prender todo mundo, mas os mendigos são instigados à
revolta e o pressionam. Peachum canta a Canção da Ineficácia do Empenho Humano, que é
semelhante à Sempre em frente (Chico Buarque). Peachum e Célia, através de Jenny,
descobrem que Mac pode estar com a prostituta Suky Tawdry. Depois dessa canção, Jenny
canta, na mesma cena, a Canção de Salomão. Essa música é interessante porque cita
algumas personalidades em comparação a Mac Navalha. São citados Cleópatra, César,
Salomão e o próprio Brecht. É uma critica interna ao seu trabalho, em forma de cena.
São evidentes as diferenças da peça de Brecht para a de John Gay, e as ligações de
cena mais fáceis de serem decodificadas entre a versão alemã e a brasileira. Além do
conteúdo diferenciado da versão inglesa, Brecht propõe na peça recursos estéticos
sistematizados em seu Pequeno Organon. Antes de cada cena, o texto contém frases
explicando o que se passa em seguida. Essas frases eram expostas no palco através de
letreiros, contando a cena, ou a idéia geral dela antes de acontecer. Brecht acreditava
também que uma forma de romper com a ilusão do teatro era expor todos os elementos de
cena, daí a possibilidade de os atores se trocarem em cena.
Como foi dito, a peça de Chico Buarque começa com o produtor dizendo que
“quando o artista sente a necessidade de explicar sua arte ao público, um dos dois é burro”.
Apesar disso, o autor dessa peça parece indicar, anunciar, cenicamente, alguns
recursos/elementos que seriam colocados em cena depois. Um dado curisoso sobre a ópera
é que a personagem Produtor diz que João Alegre “abre mão dos direitos autorais relativos
ao espetáculo”, atitude tomada por Chico Buarque na montagem de 2003.
que na peça de John Gay, há uma prostituta e um malandro que cantam, separados, músicas curtas
em cenas que aparecem; a terceira razão é que numa única cena os comparsas de Mac Navalha
cantam juntos uma canção na peça de Brecht. Daí a expressão “esse fato pode ser observado com
mais clareza na peça alemã”. Na peça de Brecht, as prostitutas e os do “bando” (com exceção de
uma música curta numa cena), só fazem parte do coro.
72
- É um péssimo negócio.
A peça possui muitas referências ao modo de ser americano, com diversas palavras
em inglês e inclusive nomes americanizados, mas a empresa de Duran se chama “Agência
de Empregos ‘A Brasileira’ ”. Quem diz o nome da empresa é Fichinha, que chega ao
escritório de Duran após ter sido fichada como comunista, porque estava muito mal vestida
para ser prostituta. Numa das falas de Duran, a personagem fala das mulheres, que
enquanto têm saúde e beleza, ficam “se entregando a qualquer um, no mato, atrás do
tanque”. Essa frase pode ser vista como uma antecipação de alguns versos da canção Geni e
o Zepelim. Na mesma fala, o agenciador diz que possui 1432 prostitutas sob sua regência,
são funcionárias com “carteira assinada, salário-mínimo, assistência médica e oito horas de
trabalho”. 1432 é o número de mendigos agenciados por Peachum na peça de Brecht e um
número aproximado de comparsas do bandido Jonathan Wild (1500 ladrões), certamente
inspiração para a personagem. Os dados quanto aos direitos assegurados às funcionárias faz
referência direta ao período getulista e às mudanças na legislação sobre o trabalho.
Enquanto Peachum busca algo que “comova” o ser humano, Duran quer algo que
“desperte o sexo exausto da humanidade!”. A miséria como tema é trocada pelo sexo. A
peça está repleta de palvrões e alusões ao corpo tanto em canções como em falas de
personagens. A prostituta Fichinha, antes de ser agenciada, fala que transa com o Nordeste
inteiro, com o padre, com o “baitolo” até com o “boi do bumba-meu-boi”; Duran descreve
os sujeitos que frequentam seus prostíbulos como sendo homens que voltam do trabalho
cansados e não querem fazer “papai e mamãe” e noutra cena chama a sua filha de “galinha”
e a sua mulher “vaca”; Max se pergunta pela “galinha” da irmã de Chaves, esta “daria a
bunda” regularmente, é o contrabandista que “apalpa os seios” de uma das prostitutas e
indica um caso homosexual com o travesti Genival, além de falar quando pensa que vai
morrer que “a boca quer chupar mais manga” e o “pau quer foder”; a prostituta Mimi
Bibelô questiona se o Itamaraty permite uma “embaixadora sem cabaço”; Vitória fala que
está “todo mundo brocha no Rio” e que há muito tempo não se ouve falar num “pau duro”;
na briga entre Teresinha e Lúcia antes da canção O meu amor, Max é descrito como alguém
que “dá cinco sem sair de cima”, “chora de prazer” e “rola no tapete”
122
.
122
Chico Buarque, op. cit., p. 30, 32, 64, 91, 95, 119, 124, 142, 170.
73
São falas de baixo calão, muitas expressões vulgares que reforçam a comicidade da
peça, já que muitos dos termos são risíveis num sistema marcado pelo preconceito ao corpo
e ao sexo. Com essas expressões, Chico Buarque parece apostar no caráter transgressor da
sexualidade em uma sociedade repressora e dessa maneira retira muito da carga marxista
colocada por Brecht em sua peça. A crítica continua, mas de forma mais sutil e menos
panfletária. O sexo é elevado sobre a miserabilidade em diversos momentos da peça, ainda
assim, Chico Buarque faz constantes pontes com a peça brechtiana. Na mesma cena em que
Duran conversa com Fichinha, Vitória confunde a prostituta com uma mendiga,
perguntando “esmola de novo?”, numa aparente alusão à figura de Filch.
Conversando sobre Teresinha, Vitória começa a dar indícios de que ela está saindo
com um capitão. Duran pergunta se não é “aquele bêbado” e a esposa diz que ele está
desatualizado. Ou seja, Teresinha aparentemente teria se relacionado com um bêbado.
- Deus me livre e guarde!
É só uma suposição, pois parece que novamente Chico Buarque antecipa uma
música, pois, em Teresinha, alguns versos dizem “o segundo me chegou / como quem
chega do bar / trouxe um litro de aguardente / tão amargo de tragar”.
O sobrenome de Vitória é Régia, numa alusão direta à planta símbolo da Amazônia
e de uma possível brasilidade. Mas Vitória é também o nome de uma rainha inglesa
bastante conhecida por seu puritanismo e moral exacerbada. Ela governou a Inglaterra entre
1837 e 1901, período em que se passa a trama brechtiana, e há indícios de que ela teve um
relacionamento quase secreto com um de seus cavalariços chamado Brown, mesmo nome
da personagem policial da versão alemã dessa peça. Não há nenhum indício de que Vitória
tenha um caso com Chaves (facsímile de Tiger Brown), mas esta é apenas mais uma
curiosidade que pode ser retirada do texto.
Algumas cenas depois, Vitória afirma que Max não “se satisfaz com apenas uma
mulher”, idéia que consta na Balada da Servidão Sexual cantada por Célia na Ópera dos
três vinténs. Vitória, depois que tem notícia do casamento de sua filha, diz que quer ver “o
corpo desse homem crivado de chumbo, num barranco do rio da Guarda”. Essa idéia é
trazida por João Alegre no final da peça em O malandro Nº 2, outra antecipação.
Os nomes dos comparsas de Max fazem alusões a personalidades históricas ou
empresas estrangeiras; eles são chamados: General Electric (empresa de eletrodomésticos),
74
Philip Morris (empresa de cigarros), Johnny Walker (fábrica de bebidas), Big Ben (relógio
clássico inglês) e Barrabás (personagem biblíco). Cada malandro/contrabandista, atua de
acordo com seu nome, contrabandeando relógios (Big Ben), ou cigarros (Philip Morris),
por exemplo. Barrabás é escafandrista.
- Eles são tão engraçados.
Chaves, padrinho do casamento, canta a noiva Teresinha. Ele chama Duran de
sócio, da mesma forma que se relaciona com Max. Esse policial teria então dois sócios,
remetendo à amizade entre Lockit e Peachum na peça de John Gay; e à relação Brown
Mac na versão alemã.
O nome completo da filha dos Duran é Teresinha de Jesus Fernandes de Duran,
conexão concreta com a santa católica e uma personagem de música popular. Teresinha cita
Brecht na peça.
- Aliás, foi o que acabei de fazer.
Terezinha, como já disse, possui um tino comercial e um sentido de praticidade
maior que a Polly Peachum das outras obras. Ela se oferece para controlar os negócios do
marido, tenta pensar na empresa com grandes proporções e dentro dos trâmites legais.
Possui visão empresarial. Tenta ensinar inglês para os comparsas de Max, e demite vários
deles por incompetência.
- Você sabe que lugar da esposa é ao lado do marido.
Quando as prostitutas estão fazendo os cartazes para a passeata, Max volta ao
prostíbulo, mantendo seu hábito de bom burguês. Numa fala da personagem, parece haver
uma crítica à Semana de Arte Moderna: “Assim você borra todo o seu cartaz. Não dá pra
ler nada, parece a Semana de Arte Moderna”. Na sua segunda prisão, Max percebe que
Barrabás, após ser despedido vira policial, agora chamado Chagas. Tentando subornar o
policial, a personagem Max critica Cuba, dizendo que poderia levar Barrabás para Cuba,
onde “ninguém precisa trabalhar”. Essa relação pode não ser totalmente casual, pois Chico
Buarque pode estar fazendo uma relação entre “Barrabás em Cuba” e Brás Cubas, uma
famosa personagem de Machado de Assis que passou a vida sem trabalhar, como um
parasita.
75
Muitas críticas de ordem diversa são colocadas na peça. Críticas à instituição
familiar, à justiça, à migração de nordestinos para a capital do país
123
. Numa outra possível
alusão de Vitória a um aspecto da Ópera dos três vinténs, a personagem fala que dá esmola
a um mendigo que estava estrebuchando, este “fica bom e vai pro botequim”
124
. Chico
Buarque aproveita o mote da guerra para colocar em sua peça uma “lenda” em que os
alemães teriam invadido as fábricas de perfume francês para produzi gases venenosos
125
. O
autor coloca nas falas de sua personagem Duran uma crítica a radio novelas, que parecem
iludir as pessoas; Teresinha, quando pede para Max deixar os negócios sobre seu comando
explica que a empresa precisa de um nome legal e que um “esse-a” ou “ele---a”, já são
suficientes para constituir uma firma de importações
126
, numa clara alusão a como a
nomenclatura dada às empresas consegue disfarçar suas atribuições concretas. Max
pergunta de que “Cultura Inglesa” seus comparsas vêm
127
, possivelmente ironizando uma
grande escola de inglês do Brasil. Há a ironia envolvendo a Semana de Arte Moderna, Max
ainda fala que a fachada do Ministério da Educação, todo envidraçado, serve de inspiração
para um bordel que pretende reformar
128
. O juiz que celebra o casamento de Max é preso e
confessa diversos crimes; Duran compara sua passeata planejada para não acontecer à
travessia do Mar Vermelho por Moisés
129
. A presença da transcontextualização é constante,
pois parece que a cada cena Chico Buarque ironiza ou exagera alguns aspectos do discurso
sobre brasilidade compondo na peça uma ausência de culpabilidade que muitos insistem em
atribuir ao Brasil.
São estas referências apenas alguns detalhes das possíveis intertextualidades feitas
por Chico Buarque nessa transcontextualização. Destaco aqui referências gerais e algumas
possíveis conexões entre essa peça e as outras duas. As canções trazem muitas outras
manifestações de interdiscursividade. Além disso, Chico Buarque contrapõe/cruza, nesse
processo de “paródia em cadeia” ou “paródia gestus”, muitos elementos presentes num
discurso de “brasilidade”.
123
Idem, p. 31.
124
Idem, p. 33.
125
Idem, p.41.
126
Idem, p. 82, 109.
127
Idem, p.111.
128
Idem, p.118, 122.
129
Idem, p. 132, 147.
76
- E nessa eu caio fora.
77
3. TROCENTOS ANOS
130
A MALANDRAGEM É UM TEMA
DE TROCENTOS ANOS
SOCIEDADE ACATA
DEU BANDA POR AÍ
NOS MAIS DIVERSOS PLANOS
TEM INTRIGADO A NATA
ENTRELUGAR JÁ TINHA
A PICARESCA É O NINHO
LITERATURA SUA OCA
E EXPANDE SEU QUINHÃO
É VISTA EM TUDO QUE É CHÃO
NO “MODO DE SER”, TOCA
A MALANDRAGEM É UM DILEMA
SEMPRE OBSCURA
TÁ ENTRE CASA E RUA
O BRASILEIRO IMPURO
CAPTA A ESTRUTURA
E ASSUME COMO SUA
“JEITINHO” VEM DESDE O PÉ
NESSA REDUÇÃO QUE É
O LÁ E O CÁ DA FOFOCA
ASSIM CAUSA ESCARCÉU
O HOMEM LIVRE QUE É RÉU
DIALÉTICO E PROVOCA
130
Paródia da letra da canção Doze anos- Anexo I, p. 164
78
Capa da edição brochura (1978) Contracapa do disco (1979)
3.1 Possíveis antecedentes do malandro carioca
Como é história continuo recontando. A fatia que pego emprestada e na qual cada
um coloca outra cobertura, já pode ser lida num sistema de vasos comunicantes. Sabemos
que o mendigo pede, porque adora um vintém, e que se transfigura malandro por mais
insistir em pedir, em conseguir sorrateiramente, do que empregar sua força de trabalho no
sistema. Falo também de diversos tipos de malandragem
131
, mas a que nos remete esse
termo? Os três pedaços de história possuem anti-heróis, personagens que agem na tangente
da ordem, e driblam o sistema estabelecido. São chamados Macheath, Mac the Knife, e
Max Overseas. Mas o que diferencia a malandragem desses tipos, das estratégias de
sobrevivência de um dito mendigo-autor ou até de um assumido malandro-autor? De onde
vem o aparato ideológico que infla de nuances personagens de um discurso ficcional
transcontextualizado? Busquemos argumentos.
- Mostra o teu talento, anda!
É um prazer tê-lo aqui, Max Overseas, acho que vai ajudar bastante a ilustrar essa
pequena trajetória de alguns dos atributos malandros e do anti-herói no discurso literário e
131
O malandro como uma “criatura intersticial, ambígua e ubíqua, paradigmática de nosso mundo
cultural” é um dos conceitos de Solange Ribeiro de Oliveira, que também afirma, como já foi visto,
que o “malandro não é um, são muitos”. Ela afirma ainda que o termo, por estar contido num leque
semântico muito amplo, pode remeter às figuras de bandido, herói, ou ainda à ameaça representada
pela multidão dos excluídos sociais ou à efusiva e colorida representação do nacional. Solange
Ribeiro de Oliveira, op.cit., p. 9.
79
no discurso social. É Antônio Cândido quem introduz na teoria crítica brasileira, a “linha da
malandragem”. Em seu ensaio Dialética da malandragem questiona se o romance de
Manuel Antônio de Almeida pode ser caracterizado como precursor do realismo,
caracterização usualmente atribuída ao livro pela historiografia (principalmente por José
Veríssimo em 1894); ou se esse texto é um continuador atrasado da tradição ocidental de
pícaros iniciada na Antigüidade (essa questão é levantada por Mário de Andrade em
1941)
132
. O que Antônio Cândido defende é que este livro inaugura no Brasil uma
modalidade particular, considerando que possui diferenças estruturais bastante grandes
quando comparadas ao realismo e à tradição dos pícaros.
- Ah, é?
É sim, e você sabe o que são os pícaros, Max?
- Sei, sei.
Deve saber também que eles possuem características muito próximas das suas
atitudes, algumas diferenças e, enquanto tipo literário, podem ser considerados seus
tataravôs, ou ascendentes mais distantes. Deve saber que são “quase malandros”, e que
possuem uma estratégia de sobrevivência provocada por um choque violento com a
sociedade que os abriga. Quer falar dessa possível linhagem de suas origens, senhor
Overseas? Estou um pouco cansado...
- Quer dizer, pensando bem, eu não sei...
Vai saber em pouco tempo, junto com a leitora (ou leitor), mas o meu cansaço me
inspira falar de outras possíveis vertentes para sua composição enquanto personagem. Faz-
se mister dizer que o mito do malandro brasileiro
133
possui semelhanças com alguns tipos
132
Antônio Cândido em Dialética da malandragem, p. 1, 1970
133
Solange Ribeiro de Oliveira, citando Caio Prado Junior, lembra que o mito da malandragem
remonta aos tempos coloniais, quando, após a abolição da escravatura se forma um enorme
contingente de “desocupados”. Surgem no Rio de Janeiro a figura do “capoeira e seu alter ego, o
bilontra, versão carioca do malandro”. A autora nos indica que nos estudos de José Murilo de
Carvalho, a posição dessas classes populares diante da Proclamação da República não ocupa a
simples posição de testemunha, mas se utiliza da malandragem, e da esperteza, compreendendo que
o novo sistema não lhes trouxera a “cidadania prometida pela propaganda republicana”. Continuam
no entrelugar. O mito do malandro brasileiro tem enfrentado gerações como um dos pilares sobre o
discurso de brasilidade. Solange Ribeiro faz referência a uma crise de identidade cultural brasileira,
em que sofremos da ansiedade de simultaneamente sermos e não sermos malandros, ou abraçamos
incondicionalmente a ética do trabalho ou a relativizamos. Nossa atração pela resistência, pela
astúcia, pela alegria de viver, e pela criatividade artística, quando incorporadas à imagem do
malandro, potencializam essa crise. No período ficcional da Ópera do malandro, a ditadura
80
internacionais, mas é latino-americano e impuro. Aprende, habilmente, a falar a língua da
metrópole para subverter a ordem e melhor combatê-la. O malandro Max, de Chico
Buarque, bastante internacionalizado, ironiza a fraqueza de uma determinada ordem
ditatorial com sua posição ambígua na estratificação social. Transita entre o burguês e o
malandro pobre.
- Na minha cabeça não era assim não.
Talvez você esteja certo, as coisas “podem” não ser bem assim, mas me deixe
argumentar. Recorro agora ao pai de Chico Buarque, Sérgio Buarque de Holanda que, em
seu Raízes do Brasil, descreve um tipo, que contrapõe ao “trabalhador”. Essa figura é
chamada de “aventureiro” e parece com a sua personagem. É conceituado como um tipo
que “ignora as fronteiras”. Transforma em “trampolim” todo e qualquer obstáculo que se
erija sobre seus propósitos ambiciosos. Diferente do “trabalhador”, que só atribuirá valor
moral positivo às ações que sente ânimo de praticar, o “aventureiro”...
- Eu vou continuar trabalhando no que sempre me orgulhei de trabalhar.
Sei, contrabando, Max, você deve estar orgulhoso mesmo. Você possui a audácia, a
imprevidência, a irresponsabilidade, a instabilidade, e a vagabundagem próprias do
“aventureiro”, qualidades detestáveis e imorais para o “trabalhador”, ainda relacionadas
com uma concepção espaçosa, do mundo
134
- características de tipinhos como a
personagem Max Overseas.
- É mesmo? Então tá.
Mas não só de tipinhos, Max. Sérgio Buarque de Holanda destaca ainda que o gosto
pela aventura, “responsável por todas essas fraquezas”, tem influência decisiva na
constituição de nossa vida nacional
135
. Mas estamos falando de arte, não Max? Da Ópera
para ser mais exato. Jacó Guinsburg nos diz que a divisão de trabalho é responsável pelo
surgimento da posição do artista enquanto classe, da arte como detenção de alguns poucos.
E diz, ainda, que a arte cria suas realidades, que são bem distintas dos discursos sobre o
Getulista, esse mito é duramante reprimido pela propaganda oficial, que estimula a celebração do
“malandro trabalhador”. Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p.12-15.
134
Sérgio Buarque de Holanda, op. cit, p. 44.
135
. Sérgio Buarque reforça que a nacionalidade é marcada pelo desejo de aventura e que o “nosso
convívio social é no fundo, justamente o contrário da polidez”. Temos um desejo constante pela
intimidade, segundo o autor, e os conceitos de respeito e educação pregados na Europa, se tornam
muito fragéis em terras brasileiras. Sérgio Buarque de Holanda, op.cit., p. 46, 147,148.
81
cotidiano, como já vimos
136
. Guinsburg, em seu artigo, estabelece as bases para o que
Brecht teria chamado de “arte do futuro”, com a sociedade interferindo no teatro (na
constituição de personagens, por exemplo), daí o artista fruto do capitalismo, mas sem
destruir a possibilidade do teatro de estabelecer um código original passível de ser lido
numa apropriação do Gestus pelos espectadores. Espectadores podem ver situações
humanas no palco e reconhecer nelas traduções de seus costumes, sem que isso interfira na
originalidade do produto artístico.
Brecht, de quem Chico Buarque adapta a Ópera dos Três Vinténs para compor sua
ópera, indica que o malandro de sua peça deve possuir simpatia e ser representado como
um burguês. O dramaturgo alemão dizia que normalmente não representam seu bandido
Mac Navalha como burguês por acharem que um burguês não pode ser bandido
137
.
Essas personagens estão situadas no campo do “nem lá, nem cá”
138
, pois são frutos
da fusão entre mundos muitas vezes opostos. Brecht, com seu conceito de gestus,
exemplifica bem o drama dessas personagens. São milhares, representam milhares, apesar
de no palco aparecerem enquanto pressuposto de individualidade. Um corpo em cena
brechtiana se transforma em mil outros.
- É deste corpo aqui que eu gosto, gosto muito, adoro. Tô acostumado dentro
dele e não quero sair.
Mas não precisa sair de seu corpo Max, essas são indicações para o ator que
representa a você. Ele vai carregar em cena a tradição da malandragem. Na linhagem do
malandro, podemos encontrar, segundo Zenir Campos Reis, um representante francês no
136
A partir do momento em que a arte se liga diretamente à política, nega a si mesma, ela “deve ser
diversa e permanecer em sua diversidade”. J. Guinburg indica também que a arte “é em si mesma o
meio na formação de uma verdadeira liberdade política da humanidade”. A arte funciona como
condutora de uma liberdade coletiva. Essa discussão vem do artigo O teatro da Utopia: Utopia do
Teatro, in: Diálogos sobre teatro, uma coletânea de artigos de Jacó Guinsburg organizada por
Armando Sérgio da Silva, p.142-147.
137
Bertolt Brecht, Notas sobre a “Ópera dos três Vinténs”. in: Teatro dialético:ensaios. 1967,p.70
138
Roberto da Matta, considerando que essa expressão pode ser lida como uma vertente básica do
mundo social brasileiro, traz à tona essa discussão quando analisa a figura malandra de Pedro
Malasartes e suas escolhas. Em seus estudos o autor distingue dois campos bem delineados: a
“casa”, onde nos encontramos sob proteção dos nossos amigos a familiares; e a “rua”, o terreno
próprio da competição, da luta contínua. Uma das razões da figura do malandro não estar “nem lá,
nem cá”, se deve ao fato de que a malandragem procura, através do atributo do favor e do
“jeitinho”, fazer da “rua” uma extensão da “casa”, onde as estruturas de compadrio e ausência de
valores éticos são mantidos. Roberto da Matta em Carnavais, Malandros e Heróis. 1990,p.248
82
século XV, cujo nascimento foi propiciado pela Guerra dos Cem Anos. O “argot” teria
representado a estirpe da malandragem francesa vivendo em bandos fora da sociedade,
lutando contra ela continuamente, estabelecendo suas próprias leis, e exercitando uma
linguagem para seu uso exclusivo. Na Espanha do século XVI, o tipo surgido foi chamado
“pícaro”, que faz o acaso substituir o esforço e que se nega a trabalhar devido ao fato de a
inflação e a administração feudal comerem os frutos do trabalho honesto. Os pequenos
truques do “pícaro” imitam os grandes truques da diplomacia. “O ideal da política
maquiavélica”, quando transportado para o mundo dos mendigos e ladrões, gera o assunto
do romance picaresco
139
. No século XIX, um tipo descoberto por Carlos Eugênio Líbano
Soares é o “fadista” português. Esse tipo era o português de classe baixa, que circula na
marginalidade lisboeta cantando fados e é conhecido pela sua agilidade e o uso da
navalha
140
. Os dois primeiros tipos, o “argot” e o “pícaro”, metamorfoseados, dão origem
tanto a tipos rurais quanto a urbanos. Já o “fadista” - tem-se notícia de muitos portugueses
pobres que imigram para o Brasil no século XIX - está mais diretamente ligado ao
malandro carioca da época em que se passa a Ópera do Malandro. São muitas as possíveis
origens para o tipo que, no Brasil, é relacionado ao capoeirista e ao sambista. O tipo
boêmio, galanteador e de alta periculosidade.
- Eu sei que você não é mulher nem criança pra cair em conversa fiada.
Está se referindo à periculosidade, Max? Estou citando apenas algumas leituras
feitas de certos tipos sociais que acabam desembocando na literatura, sob a forma de
tipinhos e tipões. Zenir Reis ainda estabelece três vertentes básicas para o tipo malandro. A
primeira traz o ladrão com honra de cavaleiro nobre, que é conformista em relação à ordem
aristocrática; a segunda é composta pelos que negam o trabalho, para negar o trabalho
139
Zenir Campos Reis, em O mundo do trabalho e seus avessos:a questão literária. In: Cultura
brasileira: temas e situações, 1987, p. 46
140
Sabe-se que as duas personagens (malandro e fadista) possuem um fundo cultural comum, que
são frutos de uma sociedade violentamente excludente, e que alguns fadistas teriam imigrado para o
Brasil na segunda metade do século XIX. O autor de A negregada instituição encontra
similaridades inclusive no modo de vestir dos dois tipos: “ calças boca-de-sino, cabelos em bandós
(soltos, desalinhados), chapéu desabado, sapatos de salto de prateleira para o fadista lusitano
equivalem às calças largas, paletó saco desabotoado, camisa de cor e chapéu de feltro do capoeira
carioca.” Soares nos traz outro dado interessante: a vinculação entre o malandro carioca e os
capoeiristas. O samba e a capoeira , em demasia reprimidos, já foram considerados sinônimos de
malandragem. Carlos Eugênio Líbano Soares em A negregada instituição:os capoeiras da corte
imperial 1850-1890. 1999,p.176
83
alienado, considerando que o produto do trabalho é apropriado pela burguesia e que a
negação ao esforço seria uma forma de protesto; a terceira e última vertente aponta para um
malandro surgido como necessidade de um sistema que dele se serve para a produção de
excedente econômico e que procura neutralizar suas explosões de revolta
141
. Max Overseas
parece tender à primeira versão, de malandro com a honra de nobre cavaleiro. O próprio
sobrenome da alcunha do malandro confessa suas influências estrangeiras, que teriam vindo
“do outro lado do oceano”.
- Eu sou um lobo do mar, baby...
Max também parece possuir parentesco com o “argot” francês, ou com os tipos
malandros ibéricos, mas indica estar distante da realidade marginal que caracteriza o anti-
herói no estrangeiro. Mantém, entretanto, o caráter de bandido, de fora-da-lei. Troca seu
nome de Sebastião Pinto para Max Overseas para disfarçar sua origem humilde. Conduz a
trama criando suas próprias leis (baseadas no aliciamento, na compra de influências...). Mas
está tão imbuído de caracteres burgueses que se assemelha mais ao diplomata que faz
grandes truques do que ao malandro que teria lutado pela sobrevivência.
- É baby, fui criado no mar.
Talvez essa afirmação seja verdadeira, pois quando a personagem Teresinha passa a
tomar o controle dos negócios de Max, este explica para seus comparsas como devem se
posicionar para receptar a mercadoria que está chegando. Max parece ter um bom domínio
da terminologia marítima, usando expressões como “binóculos prismáticos” para receber
alemães num “navio de porte médio” que “vai despontar nor-nordeste a uma velocidade de
sete nós”
142
. Pelo menos o discurso da personagem convence, aliás quase toda a
malandragem de Max é discursiva.
3.2 Dialética da malandragem
Bem, é interessante, depois de falarmos sobre os pícaros, voltar a Antônio Candido,
que lança na teoria crítica algumas questões relativas ao advento da malandragem e do anti-
herói na literatura brasileira. Aliás, a primeira representação romanesca dessa personagem
141
Zenir Campos Reis, op. cit. p.47-50
142
Chico Buarque, op. cit., p. 109-110.
84
marca o nascimento da literatura brasileira
143
. O autor foca seu estudo no romance
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, indicando a
personagem Leonardo como o primeiro malandro da nossa tradição literária. Cândido
afirma que a literatura brasileira, nascente com o romance de Manuel Antônio de Almeida,
não se restringe a imitações de formas européias, mas indica as bases de algo novo.
Memórias de um sargento de milícias “não endossa qualquer das racionalizações
dominantes na literatura brasileira”. Nem o indianismo, nem o nacionalismo, a estilística
pomposa, nem a crença na grandeza do sofrimento ou na redenção da dor estão presentes na
obra
144
.
- Tá brincando.
Realmente não estou, Max. O romance suprime a figura do escravo e dos
governantes, dois pólos extremos da sociedade brasileira do séc. XIX, e coloca em cena
uma classe intermediária, num entrelugar. O autor de Dialética da malandragem indica que
o malandro, como o pícaro, “é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso,
comum a todos os folclores”. Leonardo, como os pícaros e como Max, pratica “astúcia pela
astúcia” e manifesta um amor pelo “jogo-em-si”. O contrabandista da Ópera, assim como
outras personagens, parece estabelecer a vida como um jogo, de interesses, de alternância
de poder, e de sobrevivência na corda bamba.
- São mesmo uns canibais.
Observando a estrutura do romance de Manuel Antônio de Almeida, Antônio
Cândido afirma que o texto é constituído por “veios descontínuos, mas discerníveis”,
arranjados de tal modo que sua eficácia varia: primeiramente ele cita os fatos narrados, que
envolvem as personagens; depois os usos e costumes que são descritos; e, finalmente, as
observações do narrador e de certos personagens que possuem caráter judicativo. Há de se
considerar que existem grandes diferenças entre a estrutura do romance e de peças teatrais,
mas quando Antônio Cândido, buscando analisar o texto de Manuel Antônio de Almeida
sob o viés da redução estrutural, fala de “veios descontínuos”, percebo que é possível
justapor a estrutura da peça e do romance.
143
Solange Ribeiro destaca que a análise que Antônio Cândido faz “concentra-se num jogo dialético
entre ficção e realidade”, e determina um entrelugar histórico e social não enfocado antes em nossa
literatura. Solange Ribeiro de Oliveira, op.cit., p. 9-12.
144
Solange Ribeiro de Oliveira, op.cit., p. 68-70
85
A peça, como é observado, possui uma estrutura fragmentária (a la Brecht) em que
os “fatos” não são necessariamente narrados, mas ficcionalmente vividos, com certa
autonomia. Os “usos e costumes” descritos nas falas e nas canções, como as jogatinas e
artimanhas do interesse pelo poder ou as atitudes “malandras” da peça, são passíveis de
serem reorganizadas numa sequência lógica, apesar da autonomia das cenas. As
personagens parecem julgar, mas suas atitudes e personalidades circulam por um campo
vasto e frágil de valores, não há certo e errado, ordem ou desordem para as personagens da
Ópera.
- É, pois é.
Na Dialética, é defendida a idéia de que quando o autor do romance organiza esses
três pilares (fatos narrados, usos e costumes e observações judicativas das personagens) de
modo integrado, o resultado é satisfatório e “nós podemos sentir a realidade”
145
. Na falta
dessa integração, é indicado que ocorre uma “justaposição mais ou menos precária de
elementos não suficientemente fundidos” no romance. Observo que na peça de Chico
Buarque essa integração “feliz” se dá nos momentos em que as canções são amalgamadas
às cenas, e não como quadros distintos, como é o caso das músicas cantadas por João
Alegre. São interessantes enquanto quadros isolados, mas não se comunicam diretamente
com as cenas anteriores e posteriores. A canção O meu amor é um bom exemplo de música
que se comunica com as cenas, pois as personagens Teresinha e Lúcia começam a
discussão antes da música, continuam o desafio durante a canção até se atracarem, o que
serve de fio condutor para a cena seguinte
146
. Há diversos pontos de aproximação entre a
leitura que Antônio Cândido faz de Memórias de um Sargento de Milícias e a peça em
questão.
Leonardo, segundo Cândido, vive ao sabor da sorte, sem plano muito menos
reflexão, e ao contràrio dos pícaros, não consegue aprender com a experiência
147
. O
protagonista Max Overseas da Ópera do malandro parece se aproximar dessa
145
Antônio Cândido, op.cit, p.9.
146
Chico Buarque, op. cit., p. 141-144.
147
Antônio Cândido, op.cit, p.3.
86
caracterização pelo seu desprendimento com o trabalho, o sistema, e o fato de ser preso
duas vezes pela sua relação compulsiva com as mulheres
148
.
- O quê?
Exatamente o que lê, sua compulsividade causa, duas vezes seguidas, sua prisão. Na
peça a sua personagem é descrita como um “tipo de homem que não se satisfaz com uma
mulher só” e ainda afirma que “todas as mulheres da sua vida são importantes”
149
. Antônio
Cândido afirma que o pícaro tradicional não possui linha de conduta, não ama e, se vier a
casar, casará por interesse, disposto, inclusive, às acomodações mais rudimentares
150
. Max
e Teresinha casam-se num grande galpão receptor de contrabando, e a peça não parece
indicar que exista amor entre os dois e, além disso, a canção Casamento dos pequenos
burgueses confirma o interesse mútuo.
- Interesse? É só nisso que você pensa?
Eu diria que é só nisso que a personagem Max Overseas pensa. A presença de
palavrões e textos obscenos são uma outra característica apontada nos romances picarescos
e presentes na peça de Chico Buarque.
- Espere aí, assim você me coloca em má situação.
Quando Antônio Cândido deixa de chamar Leonardo apenas de pícaro, para
considerá-lo malandro, ele resgata um tipo historicamente original. E esta figura sintetiza:
uma dimensão folclórica e pré-moderna - o trickster; um clima cômico datado situado na
produção satírica do período regencial; capta ainda uma intuição profunda do movimento
social brasileiro. A análise de Cândido, além de abrir um leque de leituras para um
romance, é justificada por livros que surgiram depois do romance de Manuel Antônio de
Almeida com temática/estrutura parecida, como é o caso de Macunaíma.
Ele deixa de ver Memórias como uma comemoração do nacional, anunciando o
realismo, para analisar o livro como uma possível leitura da sociedade contemporânea.
148
Essa compulsividade por mulheres parece ser uma herança de Mac the Knife, que, segundo
Sábato Magaldi, seria um “infatigável conquistador”. O autor argumenta que a personagem não
possuiria uma “pletora sentimental que o escravizaria às mulheres”, mas como “satã em pessoa,
carniceiro de um mundo convertido em gado, Max não resiste a uma fêmea”. “O invencível
domador da humanidade é derrotado pelo sexo”. Está em a Personagem Mac Navalha,
SábatoMagaldi, in: Texto no Teatro, p.284-289
149
Chico Buarque, op. cit., p. 44, 119.
150
Antônio Cândido, op. cit., p.4.
87
Sociedade esta visivelmente estabelecida há muito tempo no Brasil, mas pouco discutida
até esta Dialética, uma sociedade malandra.
Há nas Memórias de um sargento de milícias dois estratos universalizadores. Um
deles está voltado para a construção de tipos, arquétipos, que podem ser reconhecidos em
qualquer cultura. O outro é universalizador num campo mais restrito, permeado pelo
advento da ordem e da desordem, e passível de ser mais facilmente reconhecido no Brasil,
pois essa relação ambígua entre o “estabelecido” e a “transgressão” constitui um dos pilares
do modo de ser brasileiro. Nesse segundo estrato, estão reunidas “representações da vida
capazes de estimular a imaginação de um universo menor”, o brasileiro
151
.
- Como é que é isso?
3.3 Ordem e desordem, redução estrutural
O sistema de relações das personagens indica a construção de “uma ordem
comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados”. Além disso, é
perceptível que há uma correspondência profunda a “certos aspectos assumidos pela
relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século
XIX”
152
. No romance, as personagens estão organizadas, em conjunto, segundo “intuições
da realidade social”. Há personagens, como é o caso do major Vidigal, que vivem com base
nas normas estabelecidas, há outros que vivem em oposição a essa ordem (ou “integração
duvidosa”). Leonardo se encontra entre eles, ora participando de um “hemisfério” (positivo
ou negativo), ora compondo outro. O fim do livro é marcado pela absorção completa pelo
pólo positivo, o da ordem. Apesar de exercitar durante quase todo o romance seu jeito
malandro de ser, Leonardo Filho é aceito pelo sistema da ordem no final do livro. Na Ópera
do malandro, essa linha divisória entre os hemisférios positivo e negativo (ordem e
desordem), é mais sutil. Os valores estabelecidos são negados por muitas canções e até
falas das personagens. A distância entre o bem e mal praticamente não existe na peça, todas
as personagens estão num entrelugar, transitando entre a ordem burguesa e a transgressão
completa da moral. O inspetor Chaves pode ser considerado um facsímile do Major Vidigal
151
Idem, p. 11.
152
Idem, ibidem.
88
pela posição que ocupa e pelo fato de ter o dever de fazer cumprir a lei, mas essa
personagem perambula com facilidade entre os meandros da lei e da corrupção barata
153
.
- Mas é um grande amigo.
Amigo de infância, não Max? Até canta contigo a canção Doze anos, um choro que
mostra como uma mesma sociedade pode produzir seres aparentemente antagônicos, o
policial e o bandido, que dão um “jeitinho” de continuarem próximos e ilegais. A
personagem Chaves é um policial corrupto perito em confissões e torturas, é um mês mais
moço do que seu amigo Max. Ambos torcem pro Vasco da Gama. Quando crianças, Chaves
troca com Max uma namorada por três bolas de gude. Mas Chaves mente para Max,
dizendo que seu sócio Duran cobra vinte por cento de juros sobre suas dívidas, enquanto o
pai de Teresinha afirma ao telefone que cobra apenas dez por cento. A relação dos dois é
um misto de admiração, inveja e malandragem. Max afirma que o inspetor sempre deu em
cima de suas garotas e Chaves diz para Teresinha que está a disposição se ela quiser
“mudar” de projeto, pois ele é “viúvo e adora uma falsa magra”. Um dos argumentos que
Chaves utiliza para cobrar a dívida acumulada há dois anos por Max é o “drama” que vive
em casa, com sua filha cleptomaníaca que o rouba para comprar doce. Tudo indica que é
para o senhor Overseas que Lúcia repassa o dinheiro. Na hora de escolher entre a amizade
ou a prisão de Max que o livra de um escândalo, Chaves não parece pensar duas vezes.
Quando Max está preso ele afirma que a amizade continua, pois com ele na prisão “quase
morando em sua casa”, eles poderiam se “divertir como nos doze anos”
154
.
Nesse fluxo entre o que é lícito ou ilícito a personagem Barrabás traça um caminho
interessante. A personagem é um bandido extremamente procurado por Chaves. Durante o
jantar de casamento do seu patrão Barrabás afirma que “quem gosta de doce é formiga ou é
veado”, o que ofende Chaves ,pois esse gosta de doce. Barrabás desafia o inspetor dizando
153
Segundo Cândido, ordem e desordem se articulam solidamente, fazendo com que o mundo
hierarquizado na aparência se revele essencialmente subvertido. Ordenação e caos se fundem
rapidamente no romance, levando a duvidar inclusive do major Vidigal, que sai das alturas
sancionadas da lei para acordos e concessões duvidosas com as camadas que ele reprime sem parar.
O inspetor Chaves, por sua vez, escancara a falta de limites entre o sistema ordenado e a falta de
valores absolutos. Para Antônio Cândido, o cunho especial do livro de Manuel Antônio de Almeida
consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do “homem como ele é”, mistura
de cininsmo e bonomia, que indica um equivalência entre o universo da ordem e da desordem.
Antônio Cândido, op.cit, p.13.
154
Chico Buarque, op. cit., p. 62, 65, 132.
89
que ele pode escolher se é formiga ou não, Chaves se irrita, saca a arma e faz o bandido
dizer que ele é “macho”. E justamente esse bandido, no final da peça, vira um dos agentes
de polícia a serviço de Chaves, agora se chamando Chagas. Quando Max é preso, chega a
afirmar que é só olhar para quem está de que lado das grades para observar quem é mais
malandro
155
. Não há valores, os campos da ordem e da desordem são facilmente transpostos
por todas as personagens. Na peça de Chico Buarque não há personagem que viva sob o
crivo da ordem estabelecida, todos são corruptíveis, em escalas distintas. Esse fato parece
indicar uma descrença no “modo de ser brasileiro”, ou até uma apropriação irônica de um
discurso impregnado de preconceito e depreciação diante da brasilidade.
Silviano Santiago, em seu artigo O entre-lugar do discurso latino americano,
propõe um conceito que me agrada na análise que faço. O autor estabelece uma trilha
histórica entre a relação de superioridade existente entre povos e discursos até chegar à
contemporaneidade neocolonialista para investigar a posição e a importância do discurso
latino americano. Silviano Santiago ilustra seu estudo resgatando a imagem que os gregos
tinham dos romanos, que eram bárbaros, mas o seu exército não se comporta como tal; cita
os índios que consideram os europeus deuses enquanto esses os consideram animais; enfim,
busca algumas roupagens para o sentido de superioridade na historiografia. Com o advento
do renascimento colonialista, o autor destaca a relevância da mestiçagem, da mistura entre
europeus e latino-americanos que começa a dar um outro tom para o discurso sobre a
superioridade. A mudança de foco da pureza pregada pelas fontes artísticas européias dá
sentido aos estudos etnológicos e a atenção que se volta para o fazer artístico latino-
americano é uma das responsáveis pela quebra dessa unidade de pureza. O entrelugar que o
discurso latino-americano assume, rompendo com a idéia de imitação das “fontes puras”, é
como uma meditação silenciosa e traiçoeira, uma “escritura sobre outra escritura”. A fonte
estrangeira serve como um pré-texto, sobre o qual a tradução do significante avança outro
significado, sem inocência, num movimento quase imperceptível de conversão. Esse fato se
assemelha com o que Chico Buarque faz em sua Ópera, as personagens podem ser lidas
como “traduções filtradas” de suas versões européias, onde o filtro não as torna puras, mas
hibridamente brasileiras, sem imitação. Santiago, nesse estudo sobre o discurso
contemporâneo e neocolonialista, lembra ainda que é entre a prisão e a trangressão que se
155
Idem, p. 75, 133, 165.
90
realiza o ritual antropofágico do escritor latino-americano. Ou seja, entre a ordem e a
desordem
156
.
Por isso digo que as personagens, tanto do romance quanto da peça, dançam entre o
que é lícito e ilícito, sem que nos seja permitido dizer o que é um e o que é o outro, porque
todos circulam de um para o outro com uma naturalidade que remonta ao modo de
formação das famílias, dos prestígios e das fortunas urbanas, que no Brasil parte do século
XIX. O que resta da relação entre lícito e ilícito é um “ar de jogo” numa “organização
bruxoleante”
157
.
A operação inicial do ficcionista consiste em reduzir os fatos e os indivíduos a
situações e tipos gerais, aproveitando o caráter anedótico e popular desses fatos, que se
comunicam facilmanete com o universo do folclore. Dessa forma se assume a passagem da
anedota para tradição popular sólida
158
. É como capturar a estrutura geral do sistema de
relações brasileiras e reduzí-la a partir de generalizações na obra literária. Aproveitar a
fragilidade entre o que é legal ou ilícito no Brasil pra compor personagens e situções que
reproduzem microcosmicamente elementos de uma relação assumida como nacional.
- Excelente.
Essa retomada de fatos ditos históricos, pode ser compreendida em termos do
movimento da sociedade global. O que acontece no no contexto histórico pode ser
compactado esteticamente para caber num âmbito ficcional. Quando retira o trabalhador
(escravo) e os governantes (elite) da sociedade brasileira que descreve, Manuel Antônio de
Almeida indica tematicamente um fator constitutivo das relações no Brasil, o entrelugar.
Suas personagens estão lá e cá, e em nenhum dos lugares ao mesmo tempo. Eles são
ordenados pelo sistema e negam essa ordenação através do atributo do favor e do
“jeitinho”.
- Ah sei. Você é que bota os pingos nos ii.
Só agora percebeu? Bem, mas segundo o senso comum, os brasileiros são cordiais
pela aceitação do que lhes é imposto e rebeldes pelas atitudes que vão desde um “furar
filas” à sonegação de impostos. A esperteza e o individualismo têm sido elevados à
156
Silviano Santiago, O entre-lugar do discurso latino americano In: Uma literatura nos trópicos,
1978, p. 11-28.
157
Antônio Cândido, op.cit, p. 17.
158
Idem, p.6.
91
categoria de virtude há muito tempo no Brasil
159
. E assim estão dispostos fatos e tipos no
romance de Manuel Antônio de Almeida, bem como na peça de Chico Buarque
160
.
Para alguns outros malandros da peça, nem todas as características são cabíveis,
mas procuro aqui seguir o raciocínio de Antônio Cândido para aproximar o texto de Chico
Buarque da tradição literária da malandragem no Brasil, ao mesmo tempo que distancio a
peça de alguns elementos picarescos.
Normalmente, o pícaro narra a história. Em Memórias, o texto é comunicado em
terceira pessoa, o que marca um outro ponto de diferenciação desse romance da tradição
picaresca. Em relação à peça, a estrutura de diálogos implica numa transformação radical
da narração em primeira pessoa, tendo como foco que diálogos e canções conduzem o
enredo.
- Tá brincando.
Max Overseas, como os pícaros, indíca possuir origem humilde, daí talvez a
decisão de trocar seu nome de Sebastião Pinto para o internacional Max Overseas.
- O quê? Calúnia.
Não se preocupe, Max, todos já sabem seu nome e Teresinha não está aqui para
azucrinar. O passado de Max só nos chega ao conhecimento através da figura de Chaves,
com quem canta Doze anos. A canção trata da vida de dois garotos aparentemente sem
recursos financeiros elevados, o que se pode depreender das brincadeiras que praticavam
(pipa, peão, futebol de rua, travessura, chutar lata).
159
No Brasil, muitos dos maniqueísmos envolvendo o “eu” e os “outros” não são percebidos no
cotidiano. Os grupos e os indivíduos aqui “nunca tiveram a obsessão da ordem, senão como
príncipio abstrato, nem da liberdade senão como capricho”. Os “choques entre a norma e a conduta”
foram abrandados pelas “formas espontâneas de sociabilidade” (atuantes com “desafogo”),
“tornando menos dramáticos os conflitos de consciência”. Antônio Cândido, op.cit., p.20.
160
As duas obras estetizam a idéia de um “mundo sem culpa”, liberto do peso do erro e do pecado.
Esse universo, sem culpabilidade nem repressão, aponta para uma visão muito tolerante, quase
amena, em que pessoas tomam atitudes que podem ser “qualificadas como reprováveis”, mas
executam também outras dignas de louvor, que as “compensam”. Como todas as personagens têm
defeitos, ninguém merece censura. Essa explicação de Antônio Cândido parece explicar o ciclo
quase interminável de corrupção e impunidade que assola o Brasil desde o período colonial. O favor
como moeda corrente foi habilmente destacado por Manuel Antônio de Almeida e Chico Buarque
pode ser lido como um continuador dessa tradição inaugurada pelas Memórias na Literatura
Brasileira. Mas, além dos fatores elementares da dialética da ordem e da desordem, que consolida a
redução estrutural nas obras, há outros elementos que distanciam os malandros dos pícaros. Antônio
Cândido,op.cit., p.18.
92
- Rápido, vai.
Mantendo a tradição desses “quase malandros” ibéricos, as personagens das duas
obras estão submetidos a uma espécie de causalidade externa, de motivação que vem das
circunstâncias e torna a personagem um títere, caracterizado apenas pelos solavancos do
enredo
161
. Não decidem nada, mas se deixam levar pelas situações em que são
apresentados.
- Muito obrigado, você é um anjo.
São seus olhos, senhor Overseas, mas pode ficar calmo, a sua personagem tem
diferenças importantes em relação aos pícaros. O pícaro é ingênuo em sua origem, e é a
brutalidade da vida que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como
defesa
162
. Pela falta de referencial do passado de Max, não se pode determinar se ele teria
nascido ingênuo ou não, mas o momento da peça nos traz um contrabandista formado. A
letra da canção Doze anos também parece apontar para um “malandrinho” desde pequeno.
- Podem continuar, façam de conta que eu não estou aqui.
Isso te ofende? E o discurso de que se orgulha do que faz, páginas atrás? É mesmo
uma personagem charlatã. Mas Antônio Cândido aponta um outro caminho, em seu estudo
de Memórias, que parece ter relação com aspectos presentes na Ópera do Malandro
163
. O
autor afirma que o romance de Manuel Antônio de Almeida possui vínculos com a
161
Algumas afinidades de Leonardo Filho com os pícaros se dão pelo fato de que, como eles o
protagonista de Memórias é de “origem humilde” e ainda como eles, “é largado no mundo”. Além
disso, Leonardo e Max, como vários pícaros, são amáveis, risonhos, espontâneos no atos e
“estreitamente aderentes aos fatos que os vão rolando pela vida”. Antônio Cândido, op. cit.,p.3.
162
Apesar dessas afinidades entre as personagens e os pícaros, nem Leonardo nem Max indicam ter
sofrido o embate áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui,
talvez, a maior desculpa das picardias. No caso de Leonardo, “bem abrigado pelo Padrinho”, nasce
malandro feito, como se fosse uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das
circunstâncias. Antônio Cândido, op. cit.,p.3.
163
O “trickster”, ou malandro, está presente em diversas culturas, as artimanhas para sobrevivência
são atributos discursivos do ser humano há muito tempo, mas o que o romancista do século XIX
recontextualiza é a inserção desse tipo num possível “modo de ser brasileiro”. Esse fato pode ser
lido como um estímulo para uma gama de romances e peças teatrais, inclusive a Ópera. Antônio
Cândido lembra também que Memórias é um “romance que possui traços de ópera bufa”. É um
romance com diversas facetas e intertextos, mas não são as caricaturas, nem a “representação dos
dados concretos particulares” que produzem na ficção o “senso de realidade”. O que aproxima esse
romance do discurso sobre o cotidiano numa escala brasileira e reduzida, é o seu caráter de
generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do contexto
histórico quanto aos dados particulares do mundo assumidamente fictício. Antônio Cândido, op.cit.
p.17
93
caricatura política surgida por volta de 1837 e com traços característicos da obra de Martins
Pena. Estes são reproduzidos em Memórias pela “mesma leveza de mão, o mesmo sentido
penetrante dos traços típicos, e a mesma suspensão de juízo moral”. Cândido situa o autor
de Memórias de um sargento de milícias como um “amador de teatro”, que “não poderia ter
ficado à margem de uma tendência tão bem representada”, refletida ainda na obra
novelística e teatral de Joaquim Manuel de Macedo, “cheia de infra-realismo e
caricatura”
164
. É indicado então que o romance que inaugura a tradição da personagem
“malandro” na literatura brasileira tem influências de textos dramáticos do teatro de
costumes, guardando uma relação próxima do fato da Ópera do malandro conter
características do Teatro de Revista. O fenômeno da revista no Brasil tem como precurssor
a figura de Martins Pena e sofre diversas transformações. A caricatura, paródia de tipos e
de governantes é uma das características mais presentes nesse estilo teatral.
Chico Buarque pode ser lido à luz da Dialética da Malandragem, e parece injetar
energia na tradição instaurada por Memórias de um sargento de milícias, para retratar as
contradições apontadas por Cândido no período de formação do capitalismo moderno
brasileiro. Como a Dialética e a Ópera foram escritas num período conturbado e de
repressão, a década de 70, é possível que as duas obras tenham apontado sua crítica mordaz
ao passado para discutir a sociedade ditatorial em que viviam seus autores. Daí a
transcontextualização de um mundo sem culpa, amoral, presente no romance de Manuel
Antônio de Almeida, analisada por Antônio Cândido e utilizado como tronco da peça de
Chico Buarque.
O que une o contexto histórico ao ficcional no romance de Manuel Antônio de
Almeida e na peça de Chico Buarque é a coerência das relações estabelecidas entre as
personagens e sua área de atuação. Ordem e desordem parecem facsímiles, tanto quanto os
malandros e os pícaros, as personagens das óperas e suas correlatas. Mas há diferenças, por
vezes imperceptíveis nesse processo transcultural de representações. Malandros não são
pícaros e a ficção, ou o discurso ficcionalmente construído, pode ser lido como uma
redução de contextos históricos.
164
Idem, p.7
94
3.4 Pressupostos, salvo engano, de “dialéticada malandragem”
Roberto Schwarz faz, em 1987, um estudo do texto de Cândido. Esse estudo é
chamado Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem” . Roberto Schwarz
destaca o pioneirismo da forma de análise que o autor de Dialética da Malandragem faz do
texto de Manuel Antônio de Almeida, além de chamar atenção para o tratamento dado ao
conceito de dialética
165
que o ensaio observa no romance. O que Cândido faz, segundo
Schwarz, é executar a passagem de uma crítica de edificação nacional a uma crítica
estética. Esse recurso abre uma perspectiva que permite identificar, denominar e colocar em
análise uma linha de força inédita até então para a teoria crítica, que é exatamente a linha da
malandragem. O conceito de “dialética da malandragem”, segundo o autor de Pressupostos,
salvo engano é a suspensão de conflitos ditos históricos através de uma sabedoria genérica
da sobrevivência, que não os interioriza nem conhece convicções ou remorsos. Um modo
geral de ver a sociedade construindo ficcionalmente um mundo sem culpa, fato que se
repete na Ópera do malandro.
- Assim é que tinha que ser.
Roberto Schwarz afirma ainda que a reflexão dialética depende da análise formal,
cujo referente não é o país do coração, mas sim país verdadeiro - o das classes sociais
166
. A
formalização estética de circunstâncias sociais, aliada à redução estrutural de um dado
externo e à função contexto histórico na constituição da estrutura de uma obra são
formulações que interessam a Antônio Cândido em seu ensaio, segundo Roberto Schwarz.
Essas discussões em torno da redução estrutural e a imersão da realidade histórica na
constituição da obra tocam muito proximamente a abordagem que faço da Ópera do
malandro.
165
Roberto Schwarz começa seu ensaio afirmando que a dialética entre forma literária e processo
social é uma premissa fácil de lançar, mas muito difícil de cumprir. Essa premissa surge antes de
1964, com grande difusão, mas sem resultado crítico expressivo. O primeiro estudo literário
propriamente dialético é escrito entre 1964 e o AI-5 e publicado em 1970 por Antônio Cândido.
Roberto Schwarz, em Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem” in: Que horas
são?: ensaios, 1987, p. 129.
166
A distinção entre o país verdadeiro e o país do coração é um contraponto que Schwarz faz de
um Brasil “afirmação-de-identidade”, difundida no nacionalismo romântico a um outro Brasil, de
“processo-social”, que não possui unanimidade possível, e pode ser observado na consciência
moderna. Roberto Schwarz, op. cit., p.136.
95
Memórias de um sargento de milícias é o único livro de nosso século XIX que não
expressa uma visão de classe dominante. O autor do romance suprime a figura do
“trabalhador” e dos “controles de mando”
167
. Roberto Schwarz afirma que Antônio
Cândido reforça o procedimento que a crítica nacionalista tem desde seu surgimento, mas
sem o patriotismo romântico de outrora. Apesar da afirmação de Cândido de que a
literatura brasileira não é a repetição de formas criadas na Europa, mas é algo novo
168
, há
uma mudança no acento nacional por ele destacado. O que surge de novo ou brasileiro no
romance de Manuel Antônio de Almeida não é um motivo de orgulho nacional, como
teriam sido as temáticas indianistas. Esse aspecto da singularidade nacional é um fato da
vida e pede crítica
169
.
Antônio Cândido consegue captar o momento em que uma forma dita “real”, ou
seja, posta pela vida prática, é transformada em forma literária. Estabelece, na teoria, um
princípio de construção de um mundo imaginário. As conexões entre sociedade e literatura
são um assunto antigo
170
, mas a articulação da generalidade de suas estruturas é inaugurada
no Brasil por Antônio Cândido, quando trata da redução estrutural
171
.
167
Idem, p.136-144.
168
Analisando essa afirmação de Antônio Cândido, Roberto Schwarz chama atenção para o fato de
que as várias camadas de influências de onde o romancista busca estruturas para sua obra afastam o
conteúdo europeu do texto, o que faz dele novidade. O folclore, o anedotário corrente, a tradição
portuguesa e brasileira do poema cômico, a imprensa “nanica” da época, e a moda romântica das
physiologies são algumas dessas influências Roberto Schwarz, op. cit., p.149.
169
Idem, p. 134.
170
Roberto Schwarz explica que a conexão sociedade literatura não possui peso original para a
teoria crítica por dificuldades quantitativas ,substantivas e ideológicas. Muitas vezes, autores tentam
estabelecer essa conexão sendo que só um dos dois campos está bem estruturado, o que faz com que
o campo não-estruturado sirva de ilustração para o que é afirmado no campo estruturado. Uma boa
estruturação do discurso social e do discurso literário faz com que a questão da ilustração
desapareça e o que vêm à frente são as particularidades da articulação. Um outro obstáculo citado
pelo autor é a institucionalização moderna do conhecimento, sobretudo na universidade. A divisão
acadêmica do trabalho nos faz historiadores da literatura, lingüistas, sociólogos, filósofos, e
geralmente cada uma dessas especificidades se sente pouco à vontade com a disciplina do outro, e o
que Cândido faz extrapola essas barreiras de estruturação, uma das razões que faz seu estudo
extremamente relevante. Roberto Schwarz, op. cit., p.145,146.
171
Essa articulação constitui um objeto teórico novo, com novas vistas. A dialética da malandragem
surge como possível explicação para muitos textos da tradição literária brasileira, que oscilam entre
a ordem e a desordem. Essa oscilação entre ordem e desordem é um princípio de generalidade que
organiza profundamente tanto os dados da realidade quanto os da ficção, dando-lhes
inteligibilidade. Entende-se por redução estrutural a apropriação de um dado social externo à
literatura e pertencente ao discurso histórico e esta forma pode ser lida como o esqueleto de
sustentação do romance Memórias de um sargento de milícias. Discutindo a redução estrutural,
96
A generalidade está presente nos dois campos e é nela que o ficcional e a realidade
encontram sua dimensão comum. A relação entre os dois não é direta, como a “arte que
imita a vida”, mas depende de uma série de mediações. É como construir o processo social
em discurso literário, o que pode gerar sua descoberta pela teoria. Há três instâncias: a
formação/elaboração de um fato pela sociedade; sua captura, por vezes inconsciente ou
imperceptível na criação ficcional (na peça, por exemplo); e a “descoberta” de princípios de
formação comuns nos dois espaços discurso histórico e ficcional pela teoria.
Roberto Schwarz, além de destacar que o romance é o único na sociedade
oitocentista que não expressa uma visão da classe dominante, afirma que a obra está ligada
a uma atitude muito brasileira, de tolerância corrosiva, que vem da colônia ao século XX, à
qual se prende uma linha determinante de nossa cultura. Trata-se de uma recriação paródica
e reduzida de nossa sociedade, elevando um modo de ser particular - a malandragem, o
jeitinho, a dialética da ordem e da desordem - a um atributo nacional .
- Que azar!
Não sei se posso afirmar que um discurso construído e forçosamente implantado
pode ser lido como azar, mas aceito o que diz. A caracterização da personagem central do
romance como um malandro capta uma dimensão folclórica (o espertalhão da lenda) e um
movimento dinâmico de alcance nacional. A evolução das personagens indica que a
alternância entre ordem e desordem constitui a própria forma do romance. Essas
personagens, que vivem num espaço social intermediário e anômico, em que não é possível
prescindir da ordem nem viver dentro dela, lembram a fragilidade de que muitos países
latino-americanos sofrem, como é o caso do Brasil
172
.
- Porque ele não tem condições de enfrentar uma concorrência.
O sistema atual de concorrências é muito desleal, Max. Nosso país não é nem um
país miserável, nem um país dominador, mas um país no entrelugar. Essa relação é tratada
Roberto Schwarz afirma que os conteúdos de romance não são conteúdos reais e vê-los
esteticamente é vê-los no contexto da forma, a qual por sua vez retoma -elabora ou decalca - uma
forma social. Roberto Schwarz,op.cit., p. 132-143
172
Quando Manuel Antônio de Almeida resume a regra de vida de um setor capital da sociedade
brasileira o dos homens livres ele lança pressupostos de toda condição brasileira, e talvez latino-
americana. Assim, é possível ler o romance com fundo dito real e de estudar a realidade sobre fundo
de romance. É preciso atentar também que a forma que une romance e realidade, é produzida
primeiro pelo processo social, mesmo que ninguém saiba dela, e depois intuída pelo romancista.
Roberto Swarz, op.cit., p.138-141
97
esteticamente em Memórias e na Ópera do Malandro. A malandragem em diversas
camadas, é uma prática comum na sociedade brasileira, a própria história colonial de nosso
país é marcada por uma estrutura de exploração corrupta em que o campo da ordem sempre
foi o mais frágil.
- Não vai dizer que se impressionou com aquele forrobodó, vai?
O que você chama de forrobodó, por sinal uma peça musicada por Chiquinha
Gonzaga
173
e que não possui toda a carga pejorativa que sua pergunta parece indicar, pode
ser lido como uma marca negativa de nossa história social. Essa marca persegue nosso país
como um senso geral, e é responsável por muitas atrocidades. Inicialmente, esse circuito
cambiante da ordem e da desordem é construída enquanto experiência e perspectiva de um
setor social, a classe dos homens livres, para posteriormente ser transformado num modo de
ser do povo brasileiro
174
. Manuel Antônio de Almeida assume ficcionalmente que todos os
brasileiros se encontram no entrelugar, que nosso sistema moral e legislativo possui falhas
graves inclusive porque o modo de agir dos indivíduos exploradores contamina as relações
entre explorados e é retroalimentado por essas relações.
- The show must go on.
173
Luiz Noronha considera que Forrobodó é a consagração do samba amaxixado criado por Sinhô
antes do lançamento da revista. O samba amaxixado, um dos frutos da profissionalização de
músicos e compositores negros, surge da mistura de alguns ritmos nas insipientes casas noturnas
cariocas e é propagado por músicos como Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres e a própria
Chiquinha Gonzaga. O autor ainda destaca o pioneirismo de Chiquinha Gonzaga em inserir
composições em espetáculos de revista, um fato que lhe deu celebridade e a conquista da
posteridade. Luiz Noronha, Malandros: notícias de um submundo distante, 2003, p.76,77. José
Ramos Tinhorão, por sua vez, lembra que foi observando o sucesso alcançado pela execuçao de seu
tango “Não se impressione”, logo conhecido apenas como “Forrobodó”, que Chiquinha Gonzaga
resolveu inserir num espetáculo de revista o seu clássico “Ó abre alas”. O título da canção se torna o
título da revista lançada em 1913, um ano depois do lançamento da burleta Forrobodó, de autoria
Carlos Bitencourt e Luís Peixoto, musicada por Chiquinha Gonzaga. José Ramos Tinhorão,
História Social da música popular brasileira, 1998, p. 240,241.
174
Roberto Schwarz afirma que o texto de Antônio Cândido não se refere a um ou outro ponto
encontradiço em nosso território, mas a um aspecto indescartável, ainda que complementar, dos
bloqueios do país em seu conjunto. Essa transformação do modo de ser de uma classe a uma
perspectiva nacional - é uma das operações de base da ideologia, com a particularidade de não
generalizar os ideais da classe dominante, mas de uma classe oprimida. O autor de Pressupostos,
salvo engano afirma ainda que o argumento de Cândido indica que só no plano dos traços culturais
malandragem e capitalismo se opõem. Dessa forma, a matriz de alguns dos melhores aspectos da
sociedade brasileira está na sociabilidade desenvolvida pelos homens pobres, como alternativa para
sobrevivência. Roberto Schwarz, op.cit., p.144-154
98
O que tinge o artigo de Antônio Cândido de originalidade ideológica, é o fato de
que ele capta o modo de ser da classe baixa para intuir que é composto por atributos
nacionais. Chico Buarque, ao afirmar que um malandro escreve o pedaço da história que
lemos, parece concordar com a lógica da dialética ordem/desordem e com os escritos de seu
pai sobre o “homem cordial” e o “jeitinho” descritos como fatores constituintes do modo de
ser brasileiro. Roberto Schwarz chama atenção para o fato de que o texto de Cândido
certamente foi escrito depois do golpe militar de 64 e publicado em 1970. O que Antônio
Cândido traz sob a égide de um período ditatorial reinvindica um “modo de ser brasileiro”
que vai ao encontro de valores puritanos de que se nutrem as sociedades capitalistas. Além
disso, a proposição de que as classes baixas possuem estratégias de sobrevivência que
influenciam o “ser brasileiro”, pode ser concebido como um trunfo para a hipótese de nos
integrarmos num mundo mais aberto
175
. Portanto, a reinvidicação da dialética da
malandragem contra o espírito do capitalismo talvez seja uma resposta brutal à
modernização que estava em curso. Essa modernização é fruto de um re-investimento
176
ocorrido num outro período ditatorial, a era Vargas, tempo ficcional da Ópera do malandro.
3.5 Surgimento do malandro carioca
Antes de investigar o projeto de modernização reelaborado ficcionalmente pela peça
de Chico Buarque, é interessante analisar quais os primeiros passos dados pela República
no intuito de tornar o Brasil um país moderno. Esses passos foram iniciados no Rio de
Janeiro, capital brasileira à época da Primeira República, o que deu condições para que
surgisse o mito do malandro carioca.
- Isso a gente vê amanhã, baby.
Não Max, o tempo urge e é importante ter noção de como uma cidade suja e
desaparelhada como o Rio de Janeiro, com bairros crescendo ao ritmo de 120% por década,
175
Roberto Schwarz, op. cit., p.152
176
Desde meados do século XIX, houve vários surtos de industrialização que, mesmo
esporadicamente, vinha mudando, antes da Abolição da escravatura, o perfil da mão- de-obra. Essa
afirmação é de Luiz Noronha sobre um processo iniciado no Rio de Janeiro e que cria, nos
primeiros anos do século XX, a figura mitológica do malandro carioca. O Rio de Janeiro, no início
do século XX, ainda possui (e insiste em manter) muitos aspectos dos tempos do imperador, mas já
indica a formação de uma face humana diferente. Luiz Noronha, op.cit., p.36. No período ditatorial
de Getúlio Vargas, o processo de modernização foi acentuado de maneira violenta, fato que se
repete na ditadura pós-64.
99
inicia seu processo de “modernização”
177
. O cenário de reformas e desapropriações iniciado
com o prefeito carioca Pereira Passos abre espaço para o surgimento de um tipo que seria,
em pouco tempo, mitificado e elevado a símbolo nacional, o malandro.
- Parece ioiô.
Idas e vindas são importantes, Max, e em cada uma delas é possível fazer referência
a outros tipos de malandros. O conceito, como já foi visto, é extremamente amplo, e
constitui um elemento discursivo muito forte até os dias de hoje. Mas é interessante notar
que a geografia, aliada à situação política e econômica do Rio de Janeiro no período pós-
escravocrata é uma das únicas conjunções possíveis para o surgimento, no Brasil, desses
tipos reiteradamente citados. A atenção que chamava a capital nacional no início do século,
por suas casas noturnas, possibilidades de empregos e de ascensão, gerou um processo
migratório muito grande. Esse fato, aliado aos surtos de modernização pelos quais passa a
capital produz um número de desocupados de diversas origens e habilidades, todos
rotulados - seja pela marginalidade, seja por profissões exóticas de malandros
178
. Mas daí
177
Em 3 de Janeiro de 1903 o prefeito Pereira Passos assume a prefeitura do Rio de Janeiro e
começa a implantar uma mega-reforma que lhe deu o título de “prefeito bota-abaixo”. Pereira
Passos encontra o Rio de Janeiro “em convulsão” e à beira de um colapso, pedindo para ser
“reinventado”. O prefeito promove uma série de reformas no sentido de re-urbanização,
calçamento, e se torna conhecido também por suas atitudes sanitaristas. A rua passa a significar
fonte de luz, bem-estar, conforto, de modo que o carioca aprende, pela geração do prefeito, a
perceber que as ruas podem “nascer como homens, num espasmo”. Mas todo o projeto de Pereira
Passos é voltado para o bem-estar das elites, o que gera um número absurdo de desabrigados. Nos
dois primeiros anos, estima-se que vinte mil pessoas foram desabrigadas. A fé inconfessa do
“prefeito bota-abaixo” é de que a onda civilizatória, promovida através de construções e
saneamento, por si só serve para expurgar os indesejáveis. Mas na verdade, a questão de moradia da
população de baixa renda foi virtualmente ignorada por esta e por muitas outras reformas pelas
quais passa o Rio de Janeiro. Luiz Noronha, op.,cit., 40-63.
178
Luiz Noronha afirma que no espetáculo cotidiano das ruas do início do século XX, encontram-se
os ciganos ou “proto-malandros”, de fraque e chapéu mole, que vendem artigos furtados ou de
segunda mão. Os malandros verdadeiros são encontrados numa constelação de profissões: há os que
vivem nas margens das grandes fábricas e da pequena indústria artesanal característica da cidade; há
os que sobrevivem das sobras das ruas, como os caçadores, que apanham gatos para esfolar-lhes a
pele e vendê-los aos restaurantes como coelhos; os trapeiros, que catam retalhos e trapos pelas ruas
para repassar a uma pseudo-indústria de reciclagem ou vender para lustradores de móveis; os
selistas, que passam o tempo perto das charutarias procurando nas calçadas selos de maços de
cigarro ou anéis de charutos para repassá-los aos falsificadores; há os ratoeiros, que corriam às ruas
comprando ratos da população para revendê-los aos agentes da diretoria da saúde pública; há
também um tipo curioso de malandro no início do século, o caititu, aquele que faz de tudo para
assinar co-autoria de sambas, inclusive coação, e para divulgar “seus” sambas, é capaz de subornar
discotecários das rádios e chefes de orquestras. São tipos muito diversos, negros, brancos, mestiços,
expulsos da normalidade pelas regras de uma nova sociedade, que os cria e os persegue ao mesmo
100
ao conceito de malandro, que é mutável, passar a definir a expressão de todo um povo
implica em jogadas ideológicas. Estas visam conter os impulsos populares de
individualização para que seja mais fácil ludibriar camadas da população através do
discurso de que “somos todos igualmente malandros”, os de cima e os de baixo. Portanto, e
aí voltamos ao efeito “ioiô”, ninguém tem culpa.
- Cuidado rapaz, vê lá o que você anda lendo.
Todo cuidado é pouco, Max, com o que se lê ou o que se diz, mas admito que
considero vergonhoso um projeto político de modernização do Rio de Janeiro,
completamente autoritário e distante das ruas, que põe o aparelho do Estado inteiro voltado
para o combate das manifestações organizadas pelas classes baixas. Investe, esse e outros
projetos, no isolamento, desistindo da incorporação. Disciplinando o comércio ambulante,
tirando os cães vadios das ruas, o governo carioca do início do século assume a bandeira do
darwinismo social. Elimina as casas populares do Centro da cidade, persegue o candomblé,
o maxixe das gafieiras, os violões e os seresteiros, o jogo, a capoeira e a prostituição.
Perceba-se que todas essas manifestações populares estão ligadas, no discurso
oficial à idéia de malandragem. O prefeito Pereira Passos, como todos os prefeitos e chefes
de polícia do início do século XX, persegue a prática do candomblé e demais cultos
religiosos de origem africana, investe contra as serenatas e a boemia, pessoas podem ser
detidas simplesmente por carregar um violão. Muitos malandros estão associados à
jogatina, espaço onde exercitam o blefe, usam dados viciados, cartas marcadas com goma,
enfim, tudo menos sorte. O jogo do bicho é também um vício entre malandros das classes
mais baixas. Alguns estudiosos afirmam que as classes altas arrefecem o teor que a ameaça
da capoeira representa mais pela absorção que pela repressão. Diz-se que Floriano Peixoto,
o Barão do Rio Branco e o chefe de polícia Sampaio Ferraz fazem parte de um grupo de
jovens endinheirados que se interessa pela capoeira, essa arte de defesa pessoal tipicamente
mestiça. A ligação entre a malandragem e a prostituição também se encontra em destaque.
tempo. O malandro carioca surge na virada do século e transita na zona de sombra entre as luzes
feéricas dos novos tempos - representadas pelas reformas modernizadoras e a escuridão da vida
nas favelas. Geralmente é um marginal assumido, que dá as costas a toda possibilidade de
integração para abraçar um estilo de vida regrado por normas próprias. Se a rua é o palco da
modernidade, o malandro é o protótipo do entertainer, a personagem-espetáculo, o artista do
cotidiano, fazendo do jogo da viração uma autêntica forma de arte. Luiz Noronha, op.cit., p. 64,92
101
É sabido que muitos dos tipos ditos malandros são cafetões e exploram prostitutas para
manter os seus vícios e sua vida boêmia
179
.
Esse projeto de modernização iniciado no Rio de Janeiro, por ser a capital do país, é
repetido em diversas cidades e muitas políticas públicas contemporâneas são baseadas na
operação de afastar os miseráveis da visão das elites. A história política do Brasil, quer
imperial quer republicana, é composta por um artificialismo legal constante, e a postulação
de normas inaplicáveis em nossa sociedade abre espaço para o arbítrio expresso no
caudilhismo e em seus derivados clientelismo e o personalismo. No início da República,
acredita-se que apenas um retorno à centralização política - através de um presidente, não
um imperador pode fortalecer o Estado e minimizar os efeitos nefastos causados pela
série de reformas pelas quais passa o país que estava sendo redescoberto
180
.
- Não faz diferença...
É Max, dessa vez sou obrigado a concordar com você. Não importa o quão
centralizador seja o Estado para que as classes mais baixas sejam alijadas de seus direitos
fundamentais. Mas esse Estado personalizado e forte surge na figura de Getúlio Vargas. A
premissa inicial do presidente era lutar contra a dominação tradicional das oligarquias,
principalmente a aristocracia responsável pela política do “café-com-leite”, que elege
presidentes de Minas Gerais ou de São Paulo, devido à influência que o café paulista e o
gado mineiro possuem na economia nacional. Vargas insiste no início de seu mandato em
fortalecer o mercado interno
181
.
179
Luiz Noronha, op. cit., p.60-117.
180
É entre as décadas de 1920 e 1940 que muitos escritores descobrem e buscam valorizar o homem
e a realidade nacional, embora um tanto quanto descrentes de que o Brasil possa alcançar a
modernidade almejada. As características da formação sócio-política brasileira não são situadas
como alvissareiras para nos conduzir à modernidade, apesar de muitos intelectuais não as
desqualificarem, imaginando que o entendimento de suas origens pode fornecer orientação para a
modernização do país. Em muitos discursos, a defesa de um Estado forte e centralizado é
recorrente. A sociedade brasileira, que é, por formação histórica, insolidária e dominada pelo
confronto entre o público e o privado, precisa de um Estado forte - pelo menos é o que se acredita
capaz de interlocução com a diversidade de poderes privados existentes para a consolidação do
grupo nacional. Angela de Castro Gomes, A política brasileira em busca da modernidade: na
fronteira entre o público e o privado. In: História da vida privada no Brasil: contrastes da
intimidade contemporânea, 2000, p.506-511
181
As primeiras atitudes de Vargas - que recebe o governo em plena crise de superprodução de café
- em vez de deixar o produto apodrecer nas árvores ou baixar os preços do artigo que representa
setenta por cento das exportações do país, tem a idéia de manter os preços e estocar a produção,
controlando sua entrada no mercado. Com esse estoque, o limite de crédito se amplia, a moeda se
102
Destinando seu ataque a uma certa oligarquia dominante, o presidente procura
aumentar sua popularidade conquistando as camadas mais baixas da população e assegura
os direitos de muitos trabalhadores para melhor controlá-los. O discurso oficial prega que a
sociedade brasileira, cada vez mais, precisa de um governo em que não há intermediários
entre o presidente e o povo. Para que se possa dispor de uma nova democracia, na qual a
população tenha suas “vontades atendidas”, é preciso um presidente centralizador, que
pusesse em harmonia os poderes e não os separasse.
- Perfeito, perfeito, assim está bem.
Isso é o que conquistou várias camadas da população, Max, que achava que podia
ter voz com a formação dos sindicatos que algumas décadas depois ganham peso na
conjuntura nacional. Mas naquele momento, estas instituições populares que pela primeira
vez na história do Brasil tinham suas associações respeitadas pelo patronato, escondiam
uma relação de unidade e tutela direcionada aos empregados no sentido de destruir, por
vezes pela força, suas experiências organizacionais anteriores
182
.
A imagem de Getúlio Vargas pode ser justaposta a de um malandro, pois, como
insistia a pilhéria da época, o presidente considerado “pai dos pobres” podia ser visto
também como “mãe dos ricos”. Getúlio Vargas faz lembrar o genial equilibrista entre os
mundos opostos de explorados e exploradores e talvez ninguém como ele tenha ilustrado
melhor o que poderia se chamar de política malandra.
As acrobacias políticas do presidente subjazem ao texto da Ópera do malandro
associadas às suas maiores áreas de atuação: a industrialização e a legislação trabalhista. O
ditador é o proxeneta-mor, o malandro/ explorador aliado da burguesia. É um mau
malandro que, em vez de recorrer à astúcia para defender-se da exploração, recorre à
argúcia para servir ao empresariado local aliado a exploradores estrangeiros
183
.
desvaloriza e as importações são encarecidas, o que aumenta ofluxo interno de capital. A partir de
então, o presidente investe na formação de uma burguesia industrial no campo da iniciativa privada.
José Ramos Tinhorão, op.cit., p.289,290.
182
O incentivo de Vargas aos sindicatos propõe um modelo mais voltado para uma publicização dos
espaços privados de organização do que para a democratização do espaço público de tomada de
decisões, embora pregasse essa contraface. A pluralidade e a liberdade sindicais tornam-se inviáveis
nessa proposta, que se sustenta no monopólio da representação, tão crucial quanto a tutela estatal.
Angela de Castro Gomes, op.cit.,p.519, 520.
183
Solange Ribeiro, op.cit., p. 85, 89.
103
3.6 Popular elevado a nacional
Getúlio Vargas é um gênio, capaz de resolver os complexos problemas de
nacionalidade em clima de segurança e tranquilidade. Com ele, o povo é “valorizado” e
conduzido ao centro do cenário político. O discurso oficial do Estado Novo estimula a
formação de uma “grande família”, o que eleva o próprio presidente a uma categoria
mitológica
184
. É Vargas quem busca elevar o mestiço a atributo básico de nacionalidade,
bem como capta o híbrido samba como música nacional por excelência
185
.
- Aposto que é.
Essa exaltação da mestiçagem é responsável também pela transmissão, em 1936, de
um samba da Mangueira numa edição especial da Hora do Brasil transmitida diretamente
para a Alemanha nazista
186
. Além do samba, o malandro (ou melhor, o sambista malandro)
também vira cartão postal de um Brasil “moderno” estado novista. Personagem
caracterizada por uma simpatia contagiante, o malandro, que representa a recusa de
trabalhos regulares e a prática de expedientes temporários para garantia da boa
sobrevivência, ganha uma versão internacional em 1943 (ano em que se passa a trama da
peça de Chico Buarque), com o lançamento, pela Walt Disney, da personagem Zé Carioca.
184
A obra política de Vargas, com destaque para a social-trabalhista, é apresentada como
testemunho desse equilíbrio perfeito entre razão e emoção, o que faz com que suas leis sejam
ditadas pela sabedoria, mas nascentes do coração. Há várias falsas dicotomias em torno do
presidente, que baila entre uma e outra com extrema genialidade. O “coração” traduz bem as
qualidades de clarividência e generosidade de Vargas. Este é, sem muitas discussões, a primeira
figua da República. Os motivos são dois: por não haver antecedentes que o rivalizem e por se
constituir em mito, modelo exemplar do que é necessário a uma autoridade presidencial, autoridade
máxima do país. O mito Vargas pode ser útil para se analisar algumas características do nosso
sistema presidencial e do modelo de liderança que recobre o imaginário nacional. Angela de Castro
Gomes, op.cit.,p.527-532
185
A mestiçagem é considerada como referente negativo, um dos fatores do atraso brasileiro até o
surgimento dos estudos de Gilberto Freire sobre o sistema de formação de nossa sociedade e
principalmente depois que o governo pós-revolução de 30 tornou semi-oficial a política de
miscigenação, valorizando inclusive alguns símbolos mestiços como o samba. Vargas sempre teve
muita consciência do poder dos meios de comunicação. Ele aproveita o advento, nos anos 30, de
várias gravadoras para utilizar as emissoras de rádio a serviço do governo, realizando,
principalmente através do samba, uma colonização interna que elevaria esse ritmo influenciado pelo
maxixe e pelo lundu à ritmo nacional. O Brasil sai do Estado Novo com o elogio pelo menos
ideológico da mestiçagem nacional e na música popular, o país pode ser considerado o “reino do
samba”. Hermano Viana, O mistério do samba, 2002, p.63,109,127.
186
Hermano Viana, op.cit., 125.
104
Era o olhar vindo de fora que reconhecia no malandro a síntese local da mestiçagem, da
ojeriza ao trabalho regular, da valorização da intimidade nas relações sociais
187
.
- Mulher já não prima pelo intelecto.
Eu não ficaria muito certo disso, Max, os leitores sabem de que maneira fina e
intelectual sua mulher tomou o controle de sua empresa e a inseriu no sistema capitalista
internacional, colocando suas capacidades mentais no chinelo.
- Não exagera, tá?
Tudo bem Max, não continuo a exaltação da inteligência de sua esposa num
capítulo que conta com sua híbrida presença. Mas convém lembrar que mesmo antes da
personagem Teresinha fundar a empresa Maxtertex S.A. ela afirma, diante de um aparente
ataque de ciúme que sua personagem é um “marinheiro de primeira viagem”
188
. Mas quanto
ao hibridismo ou mestiçagem ostentada como símbolo no Governo Vargas, não faltam
exemplos: a feijoada portuguesa passa a ser vista como comida de escravos, para
representar um prato nacional; o feijão e o arroz, metaforicamente, remetem aos dois
grandes segmentos formadores de nossa população; a capoeira, reprimida e associada à
malandragem desde o Código Penal de 1890, é transformada em modalidade esportiva em
1937; e como disse, o samba passa da repressão à exaltação, vai de “dança de preto” a
“canção brasileira para exportação”
189
.
É interessante notar que no plano cultural o aproveitamento das potencialidades
brasileiras lançado pelo governo Vargas encontrava correspondente nos campos da música
erudita com o “nacionalismo de inspiração folclórica” de Villa-Lobos; no da literatura com
187
Lilian Moritz Schwarcz escreve mais adiante que no Brasil é comum confundir-se miscigenação
com ausência de estratificação social, além da construção de uma idealização voltada para o
branqueamento. O mestiço, além de sua identidade paradoxal, foi e é remanejado pelo sistema para
camuflar as violentas desigualdades historicamente constituídas no Brasil. Daí surge a idealização
do malandro, mais uma personagem criada para entreter o povo brasileiro e quiçá sintetizá-lo . A
dimensão alcançada por essa personagem pode ser avaliada com base na ação do Estado Novo que,
em oposição à divulgação de tal imagem, procura alterar a representação do trabalho e do
trabalhador. Getúlio Vargas, a partir de 1938, utiliza o Departamento Nacional de Propaganda
(DNP) para proibir a exaltação da malandragem. No início dos anos 40, achando que muitos sambas
ainda faziam apologia da malandragem, o DNP “aconselha” os compositores a adotar temas de
exaltação do trabalho condenando a boemia. A discussão sobre mestiçagem e o advento do
malandro, de Lilian Moritz Schwarcz, encontra-se em Nem preto nem Branco, muito pelo
contrário: cor e raça na intimidade, in: História da vida privada no Brasil: contrastes na
intimidade contemporânea, 1998, p.174-244
188
Chico Buarque, op. cit., p. 52.
189
Lilian Moritz Schwarcz, op.cit., p.198.
105
o regionalismo pós-modernista; e no da música popular com o acesso de compositores das
camadas mais baixas
190
ao nível da produção do “primeiro gênero de música urbana” aceito
como nacional o samba batucado, herdeiro das chulas e sambas corridos dos baianos
migrados para a capital.
A música popular brasileira domina o mercado durante todo o período de Getúlio
Vargas (1930-1945), em consonância com a política nacionalista de incentivo à produção
brasileira e a ampliação do mercado interno. O papel político do produto “música popular”
não escapa ao governo Vargas, que busca compreender como a música nacional pode
simbolizar vitalidade e otimismo de nossa sociedade em expansão. A criação do programa
informativo oficial - “A Hora do Brasil” - é um dos métodos que o governo tem de
intercalar a propaganda oficial com números musicais dos mais conhecidos cantores,
instrumentistas e orquestras populares da época
191
.
- Que papelão!
É uma estratégia que, para alguns, dá certo, o que a popularidade do presidente
parece destacar. É o próprio Vargas quem determina as diretrizes para o uso de artistas
populares em sua propaganda política, como indicam algumas situações envolvendo
Carmem Miranda e o Bando da Lua
192
. E é esse cerceamento da política Vargas, esse
controle excessivo que o governo procura ter da música popular, da propaganda e do
trabalhador, uma das razões pelas quais a personagem malandra começa a sumir do quadro
nacional enquanto tipo, para sobreviver como lenda.
Esse tipo não existe mais, essa personagem consagrada pela crônica nasce e atinge
seu apogeu como uma espécie de “herói da metrópole moderna”. É um símbolo de
trangressão e modelo de um certo tipo de cidade, tanto que vira ícone da cultura local, a
ponto de sobreviver ao seu desaparecimento. O que resta do malandro é a lenda, do sujeito
190
Há, nessa época, um tipo conhecido por seus dotes de valentia e esperteza, ou da exploração do
jogo e de mulheres. É chamado bam-bam-bam e é a imprensa que traduz a expressão para o termo
malandro. Esse tipo constituía um dos produtos da estrutura econômica incapaz de absorver toda a
mão-de-obra que se acumula na área urbana. Esses jovens, sem condições de emprego condigno em
virtude do pouco estudo regular em geral três ou quatro anos de escola primária e provenientes
de famílias humildes, defrontam-se com três alternativas de inserção no sistema. A primeira é o
trabalho braçal e mal remunerado. A segunda é o aprendizado de alguma atividade artesanal ou
especializada como a marcenaria. A última alternativa é a livre disponibilidade para algum trabalho
eventual, englobado na categoria de pequenos expedientes. José Ramos Tinhorão, op. cit., 290-292.
191
Idem, p.299.
192
Idem, p.300.
106
de andar gingado, paletó grande e desabotoado, sapato de bico fino, que sobrevive sem
emprego fixo ou profissão, na ilegalidade ou no jogo, da prostituição e de pequenos golpes
cotidianos. É a imagem do capoeirista que maneja navalha e freqüenta tanto terreiros de
macumba quanto cabarés que resiste ao tempo.
Quando surge, o tipo malandro é imediatamente absorvido pela arte e essa talvez
seja uma das razões de sua inserção no imaginário popular - aparecendo em crônicas
publicadas nas dezenas de jornais que o Rio tinha na época. A arte reinventa o carioca em
flagrantes do cotidiano da Belle Époque. Aparece na literatura comprometida com os
ditames do realismo e naturalismo; e na nova música popular, talvez a mais completa
tradução cultural do momento em que a cidade vivia. Naquele Rio, os vínculos entre
policiais, políticos e esses tipos é constante. Muitos “malandros” conseguem emprego
através de jornalistas, políticos e favores de policiais. O policial do Rio é uma espécie de
primo/amigo/quase irmão do malandro que arrumou emprego com um político. Muitos
policiais sofrem inquéritos internos e são afastados dos seus cargos em virtude de suas
ligações “perigosas” Essa situação começa a mudar com a progressiva politização da
polícia e a necessidade maior de treinamento e doutrinação, a partir de meados dos anos 30,
sob Getulio Vargas, o que vai ser determinante na decadência da personagem do malandro
carioca
193
.
3.7 A ópera e a decadência do malandro
- Eu estou sentindo medo, muito medo.
Não precisa temer, senhor Overseas, o malandro em decadência do período Vargas
é mais parecido com a caracterização do malandro João Alegre do que com a sua
personagem. Como já disse, você compõe outro tipo de malandro e sei que a relação entre
malandragem e corrupção policial te assusta, mas o malandro que tenho descrito se
193
A trajetória do malandro no cenário carioca entra no crepúsculo a partir dos anos 30. O ambiente
aparentemente permissivo e animado do Rio de Janeiro entre 1910 e 1930 esconde, no fundo, uma
cidade dura, sangrenta, discriminatória e contraditória, com uma série de ambigüidades mal
resolvidas. A mudança de foco da indústria de entretenimento na direção da comunicação de massas
(com o domíno do rádio e depois da televisão) e a vida noturna se deslocando para opções mais
sofisticadas na Zona Sul primeiro os grandes cassinos, depois as boates de Copacabana
desconstrói o ambiente em que se cria o malandro. É um jogo de circunstâncias que uma vez serviu
para dar vida à personagem na cena do submundo e que acabou determinando seu fim, num
processo lento e silencioso. Sobram as lendas, muito poucas ainda vivas, ou o fantasma de algum
malandro, pairando sobre uma Lapa com restos de marcas do passado. Luiz Noronha, op. cit., p.
129-130.
107
assemelha mais à figura do sambista. A nacionalização e a profissionalização dos cafés,
bares e teatros da boemia urbana, ocorrida entre 1920 e 1940, e a cristalização do samba
como gênero musical brasileiro, fez aparecer a figura do músico e artista popular, então
associado ao malandro, que pouco a pouco adquire a capacidade de viver de sua
produção
194
. Os sambistas amam seu trabalho prazeroso porque não tem rotina, nem
obrigação, nem horário, e eles próprios se classificam como malandros, seja por questão de
status ou concordância com o discurso oficial.
Um discurso que homenageia e persegue ao mesmo tempo. Dessa maneira, um tipo
como o malandro carioca não pode sobreviver por muito tempo, a não ser através da arte e
do ideário comum. Chico Buarque tem consciência desse movimento social e a
malandragem que aborda em sua peça é de outra ordem. A época da Ópera do malandro,
1943, já encontra um malandro ingenuamente romântico em decadência e principia a
formação de outros tipos de malandragem.
- Acho que tá na hora.
Calma , Max, logo agora que começo a falar do tipo contrabandista, que é o seu
caso, como uma figura distinta desse malandro historicamente criado? O bando
contrabandista de Max assume nomes que remetem à nova forma de malandragem que
começa a surgir. Johnny Walker, Big Ben, Philip Morris, diferente dos nomes de muitos
malandros cariocas como Miguelzinho, Meia-Noite, Manduca da Praia, trazem nomes de
empresas que dominam o cenário capitalista mundial em suas especificidades. É o inspetor
Chaves quem desmascara essas falsas alcunhas citando os verdadeiros nomes do bando de
Max. Ele chama Johnny Walker de Joãozinho Pedestre; Big Ben de Benê Mesbla; General
Eletric de Geraldino Elétrico; e Philip Morris de Filipino Mata-rato. Mesmo tentando
atribuir a si próprios nomes em inglês, nenhum deles fala a língua da “metrópole”. E
quando Teresinha os despede da empresa que funda, as personagens não titubeiam em trair
194
Lendo as biografias de muitos sambistas, é possível também perceber seja nas relações entre
eles, entre eles e as casas de música, entre os músicos e o governo várias conotações do termo
malandro que são muito pouco exploradas e que indicam erro em generalizar sua definição. O
malandro boêmio cria, aprende música, toca, promove extensos circuitos de de reciprocidade
músicas feitas juntas, exibições em outros bairros, competições e possui peocupações morais.
Alba Zaluar, Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In: História
da vida privada no Brasil: contrastes na intimidade contemporânea, 1998, p.284-286
108
Max se juntando à passeata patrocinada por Duran
195
. Da mesma forma que Max Oveseas
procura esconder seu verdadeiro nome, Sebastião Pinto, toda sua gangue busca no
estrangeiro inspiração para a forma como querem ser conhecidos. A atenção ao estrangeiro
que desemboca num processo de americanização de muitos termos brasileiros depois da
segunda guerra é captada em seu momento nascente pelo autor da Ópera.
- Olha aí, já passou da hora.
Na canção de João Alegre, Homenagem ao malandro, Chico Buarque fala desse
processo de deterioramento da personagem romantizada, que não mais existe. O
“malandro” que substitui esse tipo que busca apenas a sobrevivência, agora tem gravata e
capital, está nas colunas sociais, é candidato e oficial. As duas malandragens uma que
quer sobreviver e outra que explora coexistem desde muito tempo na história do Brasil,
embora o discurso oficial negue a todo momento que as atitudes de políticos, ditadores e
magnatas possam ser relacionadas ao banditismo ou à “malandragem”.
Luiz Werneck Vianna, no prefácio da Ópera do Malandro provoca: “Somos
modernos, e daí?” Vianna fala da modernidade mestiça do Brasil, que não é “um” nem
“outro” e ao mesmo tempo é “um” e “ outro”. Fala do progresso almejado em detrimento
da estagnação nas relações de poder. Fala da aflição inconsciente do mestiço brasileiro que
sempre leva a pior, mesmo quando exaltado como símbolo de identidade nacional.
Nosso Código Penal, até os dias atuais, serve para coagir cidadãos pobres à
execução de tarefas de interresse dos grupos privilegiados. Surpreendentemente, o sujeito
totalmente inativo, mas dotado de propriedades e fortuna, não se enquadra como vadio ou
malandro. O malandro que se recusa ao trabalho socialmente definido como tal, é,
independentemente da cor de sua pele, um continuador da tradição negra da busca de
liberdade. É herdeiro dos capoeiras, dos pobres, que se organizam em maltas para
sobreviver. A industrialização de Vargas prolonga a situação de desemprego e estabelece
uma definição genérica e depreciativa do brasileiro que até hoje veste a fantasia de
malandro. Esse tipo surge como uma reação à República e pode ser considerado maioria no
195
Chico Buarque, op. cit., p. 68-70, 111, 126.
109
Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX, mas sofre transformações drásticas com
as reformas da capital e o período Vargas
196
.
- É melhor eu cair fora logo.
Estou encerrando esse capítulo, Max e não se preocupe que não direciono mais o
meu discurso para suas malandragens elitizadas. A malandragem que mais me interessa
aqui se manifesta na aceitação, quase sem discussão, desse conceito de brasileiro. Usamos
uma máscara social construída por interesses de classes privilegiadas e nossa auto estima
fica comprometida pela dúvida entre o que se deve fazer e o que se deve evitar.
Assumirmos uma malandragem generalizada, sem questionar as políticas públicas e os
efeitos causados por uma corrupção sem tamanho reforça o atraso brasileiro e a
desigualdade entre a aristocracia e as classes mais baixas.
O malandro, agora, existe mais plenamente na arte e no imaginário, não
concretamente, nocontexto social. O Rio de Janeiro em que nasce o malandro carioca já não
vive. Na crônica de costumes, na literatura e no teatro talvez esse tipo circule com mais
propriedade e graça. Chico Buarque, trazendo vários tipos de malandros na peça e também
na canção Homenagem ao malandro parece buscar diluir essa imagem estigmatizada que
tanto tem prejudicado nossa imagem para nós mesmos. Max sintetiza uma tendência
malandra que se americaniza e aceita com facilidade tudo o que vem de fora.
- E nessa eu caio fora.
Até mais Max, vou cumprir o prometido e mudar o foco de minha atenção para um
malandro diferente. O melhor contraponto da personagem Max Overseas se encontra em
João Alegre, um malandro autor, que diz fazer parte dos “fodidos” e representa o sambista
que toca sua caixa de fósforos. Alguns músicos do início do século passado, por questões
de status e insegurança quanto ao mercado de trabalho passam a usar “trajes de malandro”
e navalha, apesar de não saberem manejar a arma e quererem apenas sobreviver de seu
trabalho musical. Esse processo de representação, de se fazer passar por outro para ser
196
Solange Ribeiro de Oliveira discute a questão da malandragem e a pobreza em muitos momentos
de seu livro. Citando Alcir Lenharo, a autora afirma que a boêmia malandra tem sido interpretada
monocordicamente nos últimos anos como rejeição ao mundo do trabalho, como exaltação ao ócio.
Mas deixa-se de observar que o mercado, inclusive o musical, sempre foi avaro e seletivo para com
esses atores sociais. Há muito tempo são criadas barreiras para que o artista possa viver em bases
estáveis e propícias a sua própria atuação profissional. Virar as costas para o trabalho disciplinado
nem sempre corresponde a uma opção. Solange Ribeiro de Oliveira, op.,cit., p. 10-13, 59, 133
110
melhor aceito continua a recobrir as atitudes do brasileiro, mas prefiro pensar, como nos
mostram fenômenos teatrais a exemplo do Teatro de Revista, que lugar de representação é
no palco.
112
FUI LAR, O LEITE E O DELEITE
DO FEITO EM QUE MIRASTE
A EXPRESSÃO QUE CRIATE FAZ LANÇAR
CANÇÕES PRA MIL OUVIDOS
TRANSPARECE TAL VIDRO
QUE PARTES DE MEU VENTRE
CANÇÕES EU LANCEI SEMPRE, OPERAZINHA
SUA RAZÃO SERIA
TER ISSO ASSUMIDO
113
Chico Buarque, em trajes de malandro
4.1 História do teatro de revista
Revistar” com cores , revisitar o humor, rever costumes, revirar o cenário musical
brasileiro. É o que se faz por um século na estrutura do discurso histórico do Brasil, através
do teatro. O nome dado para esse movimento teatral que encanta gerações é Teatro de
Revista. Este gênero de espetáculo musical surgiu no Brasil na segunda metade do século
XIX, e, com o tempo, é considerado o mais importante e expressivo fenômeno teatral da
primeira metade do século XX. O textos da revista estão concentrados na recapitulação dos
principais acontecimentos do país no ano precedente à estréia da peça. Estes
acontecimentos são retratados de forma cômica, política e crítica, ou seja,
transcontextualizada.
- Cuidado com o que diz!
Mais um querendo me mandar tomar cuidado. Bem, o(a) leitor(a) sabe que tenho
tomado cuidado com o que é escrito aqui, não precisa se preocupar. A história indica que a
paródia pode ser considerada um dos gêneros mais apreciados de teatro contemporâneo e o
Teatro de Revista não foge a essa regra
198
. É um gênero teatral paródico por excelência e
portanto, tão malandro quanto a Ópera que estudo.
198
Neyde Veneziano fala da importância da paródia no fenômeno da revista brasileira desde seu
surgimento. Segundo a autora, a paródia define o gosto de toda uma geração. Em 1868, o autor e
ator Vasques escreve Orfeu na Roça, uma paródia da opereta Orfeu nos infernos. Muitas peças
homenageiam outros textos, e as cenas de paródia já fazem parte das revistas francesas e
portuguesas. São cenas metalinguísticas que alcançam grande repercussão na revista brasileira,
apesar da vida curta da paródia enquanto gênero isolado. Até a época de ouro da revista o recurso é
114
- Acredito que é tempo de abrirmos os olhos para a realidade que nos cerca,
que nos toca tão de perto e que às vezes relutamos em reconhecer.
Concordo com o que diz, senhor. Leitores, olhem só quem invade este capítulo: o
famoso Fernandes de Duran. Talvez o representante mais ilustre da Ópera do malandro,
envolvido nas críticas mais inteligentes da peça, realmente uma personagem de peso. E
parece que veio para discursar.
O comerciante Fernandes de Duran, pai de Teresinha, está imbricado numa das
críticas muito bem trabalhadas nas versões inglesa e alemã da peça. Buscando questionar o
advento da pobreza e da exploração como natural, a Ópera do mendigo traz em sua trama o
comerciante Peachum, que cumpre a função de delator oficial e controla uma gangue de
ladrões a seu serviço. Na Ópera dos três vinténs, Peachum tem o controle do ofício de
mendigos. As peças possuem uma verdadeira fábrica de ladrões/mendigos, em que todo e
qualquer sujeito que quisesse exercer essa função ilícita ou mendigar teria que retirar
licença junto à empresa de Peachum. Na peça de Brecht, teriam ainda que pagar pelos
acessórios que estimulariam a piedade humana e ceder parte dos lucros para a empresa.
Chico Buarque utiliza como equivalente para a fábrica de mendigos uma fábrica de
prostitutas, onde mulheres vindas dos pontos mais distintos vêm retirar suas licenças para
exercer a que talvez seja “a profissão mais antiga do mundo”. É interessante perceber
nessas óperas que a idéia de uma marginalidade, de uma mendicância e de uma prostituição
corporativistas, ajuda a redirecionar o nosso olhar para os conceitos de normalidade e
aceitabilidade do normal. Em relação ao crime, é mais aceitável essa idéia de gangue ou
crime organizado. Mas dificilmente se pensa em mendigos organizados. A prostituição
possui agentes/cafetões, mas não em proporções estaduais/nacionais, por exemplo. É como
afirmar que dramas sociais, como a miséria e a prostituição, fazem parte de uma grande
rede de negócios, calcada num capitalismo globalizado.
- É, o que se há de fazer.
utilizado no Brasil. Neyde Veneziano cita Procópio Ferreira, que lembra que a utilização do recurso
pelos comediógrafos não se dá como imitação, mas como aproveitamento do enredo, vivido por
figuras jocosas dentro de situações alegres. A justaposição dos episódios deve lembrar sempre ao
espectador a peça que origina a revista. As peças também contêm paródias de músicas populares e
eruditas. Um exemplo é a paródia que Arthur Azevedo faz em sua revista O Bilontra, da ária La
donna è mobile, da ópera Rigolletto, de Verdi. Neyde Veneziano, O Teatro de Revista no Brasil:
dramaturgia e convenções, 1991, p.179
115
Eu sei bem o que se há de fazer. Argumentar no sentido de que a Ópera do
malandro busca referências de diversas fontes: estrangeiras, como as peças matrizes; e
nacionais, como a redução de uma sociedade descrita pela antropologia e pelo discurso
historiográfico. Entre essas referências ainda estão diversas características de um fenômeno
teatral que tem quase cem anos de existência.
- Puxa!
Apesar desse período que, no Brasil, tem cerca de cem anos, as origens do Teatro de
Revista podem ser encontradas na comédia grega, como em Os Pássaros ou As Nuvens de
Aristófanes. Essas peças possuem uma trama muito simples e, aparentemente não há
nenhuma ligação direta entre as cenas, são textos fragmentados. A Comédia Nova romana
acompanha o fluxo das muitas manifestações populares proliferadas nas ruas
199
. O estilo,
aparentemente obscurecido na Idade Média, possui algumas características parecidas com o
fenômeno da Commedia dell’Arte no tocante ao humor e à tipologia das personagens, além
da improvisação presente nos dois gêneros. Os séculos XVII e XVIII marcam o
afrancesamento da Commedia dell’Arte e o surgimento do termo vaudeville, que carrega
muitas características revisteiras. E Gil Vicente pode ser considerado o primeiro grande
dramaturgo a escrever revista em língua portuguesa
200
.
No Brasil a revista sofre alterações, transformando-se num gênero com cara própria,
que possui regras e padrões de realização. Apesar do fato de ser importado, adquire aqui
fisionomia abrasileirada com estruturas e convenções que se modificam com o passar do
tempo. Estruturas e convenções que absorvem a seiva popular, peculiar à sua natureza
201
.
A primeira revista brasileira data de 1859, estréia no Teatro Ginásio, no Rio de
Janeiro e se chama As surpresas do Senhor José da Piedade. Trata-se de uma divertida
recapitulação de fatos acontecidos em 1858, portanto uma revista de ano. As revistas
199
Entre as manifestações populares encontradas nas ruas de Roma estão o fescenino, que possui
elementos recitativos aliados à dança, ao canto e à improvisação; a satura, da qual se origina o
termo sátira, e tem sua composição marcada pela presença de bufonarias, canto, dança e
improvisação executados nas ruas e estalagens; as atelanas, que são sátiras de costumes
representadas por tipos mascarados; e os mimos, oriundos da pantomima grega, com enredo vulgar
e execução feita por atores com rostos enfarinhados. Neyde Veneziano, op. cit. p.22.
200
A utilização de personagens alegóricas e o comentário de fatos sob uma ótica crítica são
algumas das características que aproximam O auto da barca do inferno do fenômeno revisteiro.
Outra característica importante é a dupla de compères, o Anjo e o Diabo, que contemplam o desfile
de figuras e tipos da sociedade lusitana. Neyde Veneziano, op. cit., p.23.
201
Idem, op. cit., p.24.
116
apresentam alegorias como é o caso de personagens como a “Polícia”, a “Censura”, o
“Mercantil”, o “Jornal do Comércio”, o “ano de 1859” e o “ano de 1858” presentes nesse
roteiro pioneiro no Brasil
202
. As apresentações dessa revista não têm muito êxito, são mal
recebidas por um público que não está acostumado às críticas políticas que o texto instiga.
- Olha que isso é um perigo!
A Ópera também apresenta críticas políticas, Duran, inclusive envolvendo sua
personagem. Mas esse é um assunto para daqui a alguns parágrafos. Por hora, é interessante
pensar em como a ópera romântica abre terreno para a opereta e a revista quando envereda
pelo caminho da popularização. Essa popularização se dá através dos ritmos de dança, do
desprezo pelo tipo de voz barroca, do abuso das cenas de conjunto e da simplificação
melódica que se utiliza de temas de fácil assimilação. Estes temas são capazes de levar as
platéias a saírem assobiando as músicas ouvidas
203
.
A reforma no Rio de Janeiro no início do século (1902-1906, Prefeitura de Pereira
Passos) que, como já vimos, produz outro padrão de carioca passa a interferir no gênero
teatral. O novo cenário exige novos figurinos. Cartolas, chapéus baixos, sobrecasacas,
paletós de casemira e chapéu de palha traz o toque chic e art nouveau
204
.
4.2 Estrutura
- Taí, gostei.
Gostou da reforma pseudo-modernizadora ou dos novos figurinos “impostos” ao
Teatro de Revista? Certamente dos dois, não é Duran? Tudo o que remete ao “chique” ou
ao choque drástico sobre a população de baixa renda parece te agradar. Mas a revista,
diferente das reformas de Pereira Passos, agrada bastante a platéia. É o teatro popular que
atravessa os séculos e sobrevive, brilhando através do sublime. O povo reconhece o
202
Idem, p. 26.
203
Algumas dessas composições são curtas e fragmentadas, e servem para apresentar as
personagens. São chamadas árias ou coplas de apresentação. Neyde Veneziano, op. cit, p. 154.
204
É interessante notar que apesar de assumir características e costumes advindos do processo de
modernização, a revista bem acompanhada pelas modalidades restantes de teatro musical como o
vaudeville, a opereta e a ópera-cômica é vítima de um preconceito que leva o gênero a um caráter
marginal, numa trilha em que não circulam historiadores e críticos, pelo menos até pouco tempo. Há
menos de meio século se encontram espetáculos de revista no programa obrigatório de todos os
frequentadores do teatro. A revista dita modismos, mostra os encantos de um país sofrido, critíca a
política, e hoje é matéria desconhecida da maioria. É um gênero sepultado no esquecimento de uma
nação sem memória e sem amor aos arquivos. Neyde Veneziano, op. cit., p.14, 35.
117
material trabalhado pelos atores da revista porque está no seu cotidiano
205
. A linguagem
livre que já está nas ruas e que a literatura só admite depois da Semana de Arte Moderna já
se encontra nessa composição dramatúrgica mestiça que é a revista
206
. Pelas revistas do
ano, enfocando a cidade do Rio de Janeiro, passeavam personagens-tipo que encarnam o
perfil acabado do carioca, por vezes malandro, por vezes cômico. Algumas características
do teatro popular
207
são a tipificação, o não aprofundamento dos temas, a mistura de
gêneros e o desinteresse pelo enredo contínuo
208
.
Apesar do desinteresse pela continuidade, as peças de revista sempre têm um fio
condutor, geralmente frágil, ingênuo, mas serve de pretexto para o desenrolar das cenas,
alternadas entre musicadas, sérias ou pândegas. Há também as personagens alegóricas e
outras naturalistas, com os quais o público começa a se acostumar com o estilo teatral. A
metalinguagem é importante para que a revista se imponha como gênero. É necessário
haver explicações que permitem o espectador a compreensão do funcionamento da revista,
com seus múltiplos quadros, suas mutações, suas sátiras
209
.
205
As artes cênicas brasileiras de inspiração popular, como a opereta e a revista também
influenciam o público. No campo das sugestões musicais, por exemplo, revela-se marcante. Em
1910 com a explosão da opereta portuguesa Viuva Alegre, uma das músicas de Franz Lehar, que se
destina à divulgação do espetáculo em pouco tempo serve de base para uma paródia, em forma de
marchinha e cantada no carnaval. O Teatro de Revista também serve de ponte, muitas vezes, entre o
ritmos negro-americanos que os Estados Unidos começam a explorar. José Ramos Tinhorão, op.
cit., p.242
206
Idem, p.163,182.
207
Aqui, entende-se por teatro popular as diversas formas de espétáculos de variedades que podem
ser separados em compartimentos, seções, sem que haja interferência de informação de uma seção
para outra. Nesses espetáculos, uma esquete pode ser seguida de um quadro de malabarismo, por
uma declaração sentimental ou por um número de dança. Seguem este modelo o circo, a
pantomima, o music-hall, o cabaré, a ópera bufa, e o Teatro de Revista. Em qualquer dessas formas
de expressão podem-se alterar alguns quadros. Neyde Veneziano, op. cit.,p.20.
208
Quanto à idéia de desinteresse pelo enredo contínuo, torna-se evidente que o Teatro de Revista
possui elementos encontrados na poética brechtiana, que diz que cada cena existe pos si só e não em
função das outras. A ação da revista difere da concepção aristotélica de ação dramática. Enquanto
para Asritóteles a ação é desencadeada pelos conflitos internos e externos das personagens e
recheada de emoções até subjetivas, a ação revisteira costuma ser impulsionada pelo movimento
(físico) e mostra, ao narrar e comentar os fatos, um semblante próximo do épico-brechtiano. Neyde
Veneziano, op. cit., p.20, 31, 91.
209
O público da época está acostumado a assistir espetáculos estrangeiros ou suas traduções, por
isso precisa ser informado sobre o mecanismo da revista de ano. Depois de familiarizado com as
convenções do gênero, o espectador pode captar melhor as críticas aí contidas e deixar-se levar pela
fantasia. Neyde Veneziano, op. cit., p.31
118
- Alguém já disse que, quando o artista sente a necessidade de explicar sua arte
ao público, um dos dois é burro.
Acredito que nem sempre essa premissa faz efeito. Nenhum dos dois, nem o público
nem o artista possui intelecto desprivilegiado tanto que, com o tempo, o público não só
entende como gosta dessa estratégia de falar da obra dentro dela. Todo o Teatro de Revista
está baseado na explicação, recapitulação e no momento em que o fenômeno teatral dá seus
primeiros passos, sendo a metalinguagem é de suma importância.
Outro elemento importante nas revistas é a música
210
. Depois da explosão da
Primeira Grande Guerra, a música que, até então, é incidental e reduzida a meras
ilustrações, adquire o mesmo peso que o texto na constituição da obra. As composições
passam a ser melhor cuidadas e esse apuro faz sentir que uma nova fórmula se configura.
Uma fórmula brasileira, já distanciada do modelo luso-francês. A melodia torna-se parte
integrante do conjunto
211
.
Um tema recorrente nas revistas de ano brasileiras é a perseguição. As personagens
centrais caminham, correm, andam, procuram ou fogem. Há, continuamente, alguém que
persegue e outro alguém que escapa por um triz
212
.
- Espera aí.
Não tenho tempo para esperar Duran, mas imagino o que a sua personagem está
pensando. Esqueça por um momento. Esse tema pode ser considerado uma viga para a
revista brasileira, é factual, como também é fato que os textos das revistas, no início, são
divididos em três atos. Mas com o tempo, as peças deixam de fazer recapitulação de um
ano, para re-visitar períodos maiores. E com isso cai a obrigatoriedade de três atos. A partir
da primeira década do século XX começam a chegar revistas portuguesas em dois atos e o
210
José Ramos Tinhorão explica que a partir da primeira década do século XX há uma preocupação
demonstrada pelos compositores em procurar incluir suas músicas em números de revista, pois esse
é o primeiro passo para tornar as canções nacionalmente conhecidas. Com o tempo, passa a haver
uma alternância de relações entre a música popular e o Teatro de Revista. Em alguns momentos a
revista lança músicas para o sucesso em todo o país, ou o sucesso nacional de certas músicas é
aproveitado para atrair público para o teatro. José Ramos Tinhorão, op. cit., p.237
211
Neyde Veneziano, op. cit., p. 42.
212
Idem, p.88.
119
modelo se infiltra entre nós. A estrutura clássica com três atos e um tema central entra em
crise a partir dos anos 40
213
.
- E então?
E, então, coincidentemente no período Vargas
214
, duas presenças muito fortes na
Ópera do malandro, o próprio tipo malandro e as influências do Teatro de Revista
começam a entrar em crise e iniciar o seu processo de desaparecimento. Mas, em breve,
começo a traçar os paralelos entre a Ópera do malandro e o Teatro de Revista, pois acho
que as informações que trago podem chocá-lo em demasia, mas volto a pedir, fique calmo,
estou bem intencionado.
- O que você quer dizer com bem intencionado?
Quero dizer que é mais interessante analisar o movimento do Teatro de Revista
antes de indicar as possíveis influências de seu tipo caricatural e também malandro.
- Já tô perdendo a paciência contigo, viu?
Controle sua ansiedade, Duran, não é nada tão grave assim. São apenas suposições,
que ligam a Ópera do malandro à forma da moderna revista brasileira, que passa a ter
depois de algum tempo, apenas dois atos. As revistas com dois atos possuem a seguinte
estrutura: no primeiro ato há um prólogo ou número de abertura, que pode ser precedido
por uma overture orquestrada e segue uma alternância entre cortina, quadro de comédia,
213
A crise da revista brasileira, que ganha força descomunal a partir dos anos 40, começa com a
chegada do cinema norte-americano em meados dos anos 20. O Teatro de Revista, nessa época,
chega ao estágio de instituição com estrutura tipicamente brasileira e carioca, o que leva os
revistógrafos a buscar fazer frente ao dinamismo do “teatro por sessões”. Esse modelo se torna
responsável por um número sem precedentes de revistas, mágicas e burletas de uma hora e quinze
minutos de duração, para que possam ser apresentadas muitas vezes. Com a dominaçãodo mercado
brasileiro pelo cinema, essa dinamização se potencializa, algumas revistas ficam mais curtas e os
donos dos cine-teatros passam a contratar companhias de revistas e burletas rápidas para montar
espetáculos de cerca de cinquenta minutos. Estes espetáculos servem para atrair público para os
filmes. José Ramos Tinhorão, op. cit., p. 243.
214
Como analiso no capítulo anterior, o próprio presidente pode ser considerado “malandro”.
Solange Ribeiro o chama de “Malandro do Catete” e diz que sua figura se encontra nos bastidores
da peça de Chico. A arguta e sinuosa atuação histórica do presidente explica os possíveis vínculos
com a “malandragem”. A exaltação do tipo malandro pela música popular e o tom crítico e
galhofeiro da revista são fatores que podem comprometer a postura do presidente. Solange Ribeiro,
op. cit., p. 16.
120
quadro de fantasia até a apoteose do primeiro ato; o segundo ato não tem prólogo e é
repetida a estrutura do primeiro de modo mais ligeiro
215
.
Não há como se fazer uma revista sem o prólogo. Essa estrutura acompanha o
fenômeno teatral desde seu período inicial até a revista moderna, de características bem
brasileiras. Há muita atenção e cuidado nesses quadros de abertura por parte dos seus
criadores. Uma das funções do prólogo é desencadear o movimento do fio condutor. Ele é
construído geralmente em mais de um quadro, e costuma ser fechado sob um grande efeito
feérico, como por exemplo um cavalo alado voando em direção à cidade do Rio em meio a
fogos de artifícios. O dialógo no prólogo deve ser ágil, entremeado de música e, se
possível, desenvolver-se em mais de uma fase para dar dinamismo ao espetáculo e não
fazê-lo malograr logo no início. Há os prologos “quentes” e “frios”. O primeiro provém de
uma boa idéia, é variado, engraçado e predispõe o desenvolvimento do primeiro ato, que
deve ser o mais forte. Já o prólogo frio pode derrubar o espetáculo e sobrecarregar todos os
demais quadros, cada qual trazendo consigo a responsabilidade de elevar o clima de agrado
que o prólogo deve condicionar.
216
O teatro que comporta a revista tem sempre um pano de boca que fecha
completamente o palco. Esse pano marca o início e o fim da peça. Atrás dele, há uma
cortina que se abre horizontalmente. Na passagem de um quadro para o outro, essa cortina é
fechada e alguns artistas realizam números curtos para passar o tempo. Podem ser cantores,
cançonetistas, atores cômicos, ou atrações contratadas. É importante frisar que o cenário
dos números de cortina não pode ser de grande importância. Talvez seja essa a única regra
estabelecida que esse quadro obedece, pois esses números têm que caber em qualquer
revista, fazer rir e esperar o tempo passar
217
. A primeira cena da Ópera do malandro, em
que o Produtor conversa sobre o espetáculo com a patronesse acontece diante das cortinas,
da mesma forma que o entreato em que é cantada a canção Homenagem ao malandro
218
.
215
A primeira apoteosa,quando a revista tem três ou dois atos, sempre é a mais grandiosa. Aliás, o
primeiro ato inteiro é mais importante, pois as personagens se apresentam através de suas árias e as
relações entre elas se estabelecem. O segundo ato vem como um complemento, mais breve, ligeiro.
Neyde Veneziano, op. cit, p. 110.
216
Neyde Veneziano, op. cit., p. 95
217
Idem, p.100
218
Chico Buarque, op. cit., p. 19, 101.
121
As técnicas revisteiras no Brasil, principalmente quando a revista busca retratar as
mazelas brasileiras ou faz incursões nacionalistas, apoiam-se em alguns quadros habituais.
Há o quadro político, o quadro dos teatros, o quadro das doenças, o quadro da imprensa. A
denominação quadro de comédia é uma nomenclatura geral de todos esses tipos, pois os
quadros da revista primam pela comicidade. Quadros de fantasia utilizam referências
alegóricas e feéricas. Apesar dessa primazia pela comicidade, a revista brasileira é baseada
na lei do contraste. Se um ator fala pausadamente, um outro ator o contrapõe metralhando o
texto. Na construção dramatúrgica, uma cena muito agitada é antecipada por outra mais
parada. O verdadeiro regente é o público, suas reações determinam a ordem dos quadros.
Dessa maneira, alguns quadros tristes também são inseridos no fenômeno teatral. E pela lei
do contraste, o gênero encanta, faz rir, mas também pode fazer chorar, embora isso não seja
o mais comun
219
.
Um outro componente presente na revista brasileira é o double-sens, expressões ou
cenas de duplo sentido que aparecem em vários momentos do texto, ou seja, em letras de
canções, em esquetes, em quadros diversos ou em números de platéia. O double-sens é
acompanhado de gestos codificados, de olhares insinuantes e de pausas reveladoras. Apesar
de estar previamente escrito, o duplo sentido vai além do próprio texto, completa-se na
interpretação
220
.
- Tá aí, essa eu não entendi.
Não entendeu? A jocosidade e a malícia se completam no corpo, no ato presente da
interpretação, os atores não só têm textos de duplo sentido como estão livres para se utilizar
de diversos outros recursos que pudessem passar ambigüidade para o público. O recurso de
duplo sentido é cada vez mais trabalhado pelos revisteiros e o imaginário da revista se
manifesta e projeta principalmente em dois pólos: o erotismo e o exotismo. Inicialmente, o
corpo da mulher é tratado como objeto exclusivo do prazer, velado e desvelado.
Posteriormente, o erotismo se estende para o corpo masculino e se manifesta através de
elementos visuais, musicais e textuais. Há figurinos que entre plumas, lantejoulas e sedas
219
Neyde Veneziano, op. cit.,p.107,166
220
É habitual no Teatro de Revista que os atores, ao final dos quadros, dêem um “limpada” no
conteúdo de duplo sentido, insinuando que a malícia e a imoralidade se encontram na cabeça dos
espectadores. Neyde Veneziano, op. cit., p.173, 175
122
deixam entrever pernas e seios
221
. As danças têm um ritmo trepidante e sensual, com
alusões carregadas de duplo sentido. Entendeu agora, Fernandes de Duran, como o duplo
sentido se manifesta?
- Deve ter sido duro pra você. Mas eu gostei.
Não se preocupe, não é tão duro assim. E eu sei o quanto você, que vive da
exploração do sexo alheio deve estar gostando dessa discussão. A revista, entretanto,
também abordava assuntos sociais de maneira ferina e irreverente. A malícia é velada e
brejeira, calcada no jogo de palavras e de gestos. A revista é fiel aos assuntos ligados ao
erotismo, e o humor lascivo está tão presente quanto o comentário da atualidade. Com o
tempo, o apelo erótico conquistaum espaço maior, a ponto de se tornar o tema principal, já
tratado sem duplos sentidos, com grosseria e mau gosto nas últimas décadas do fenômeno
teatral no Brasil
222
.
- Bem, assim também fica impraticável.
Que surpresa ler essa sua afirmativa, Duran! Você que prima tanto pela exaltação do
sexo e deprecia as questões sociais. Sua personagem que tem desejo de “despertar o sexo
exausto da humanidade” e fica nervoso só de ouvir falar em manifestação popular
223
. Esse
apelo sexual exacerbado talvez tenha sido um dos motivos para a crise que se abate na
revista brasileira e que culmina em sua extinção quase completa por volta de 1960. As
revistas modernas da era Vargas, por exemplo, vêm carregadas de apelos muito mais
eróticos, combinados a constantes entusiasmos ufanistas de caráter populista e nacionalista.
E as riquezas do Brasil fornecem nesse período o tema de muitas apoteoses. Pedras
preciosas, artes, monumentos, florestas, cidades, grandes homens, grandes mulheres, heróis
e grandes inventos vêm representados pelas girls vedetes e os boys
224
.
221
Em 1922, os conceitos estéticos sofrem transfomações com a chegada no Brasil de algumas
atrizes francesas esbeltas, que retiram a atenção das atrizes nem tão esbeltas que praticam nu
artístico. O nu daquela época, se resumia em colocar atrizes com pernas à mostra. A mesma época é
marcada por uma mudança no conceito estrutural da revista. O texto e a música passam a emoldurar
outro foco de interesse, a mulher. Elas estavam descobertas. Mas, apesar dos apelos eróticos e
sensuais, a revista brasileira continua a manter sua relação com a atualidade. A sátira política, o
humor ferino, a crítica a acontecimentos imediatos, não abandonam ainda os nossos palcos. Neyde
Veneziano, op. cit., p.43,44.
222
Neyde Veneziano, op. cit., p. 178.
223
Chico Buarque, op. cit., p. 32, 148.
224
Neyde Veneziano, op. cit., p. 111.
123
4.3 Temas e personagens-tipo
Em seu conteúdo, a revista se refere à atualidade, o aqui e agora. As revistas
expõem o que se passa no ano ou nos anos anteriores. Esse compromisso fiel com o
momento presente faz dela um teatro em constante mutação, tanto no fundo quanto na
forma
225
. E quando passa a ser cerceada pela política oficial, quando fala mais de sexo do
que das politicagens e assuntos sociais, começa a perder sua característica elementar. E
assim como o tipo malandro, passa e encarnar uma crise que pode ser lida como uma
trajetória para o final do gênero.
- Jura?
Não preciso jurar, gêneros teatrais em constante mutação e tipos em entrelugar
descritos na sociedade brasileira já parecem um indicativo de transitoriedade. E é o que
acontece, ou começa a acontecer no período em que governa Getúlio Vargas
226
. O tipos
encontrados nas revistas brasileiras muitas vezes também se localizam num entrelugar, e o
próprio tipo malandro ajuda a compor a gama de personagens-tipo que o gênero comporta.
Há um tipo interessante, chamado compère ou “compadre”. Essa personagem é uma
espécie de aglutinador, apresentador, comentarista, dançarino, cantor, bufão, contador de
piadas, enfim, um tipo que atravessa a revista de ponta a ponta. Esse tipo costura os
diversos quadros, cristalizando a dinâmica do pacto com a platéia, característica própria do
teatro popular. É certo que essa personagem que marcou presença em nossa primeira revista
foi sepultado pouco antes da era Vargas, mas é um tipo que parece ter sido resgatado na
Ópera do malandro.
O papel de compère é sempre reservado ao primeiro cômico da companhia, que o
deve desmpenhar com brilho, desenvoltura e com muita descontração, pois a necessidade
do improviso é recorrente. Um outro detalhe da figura do compère é que a personagem vem
acompanhada de uma comère e são os dois que apresentam o espetáculo, fornecendo as
primeiras explicações sobre o estilo. Mas os atores que fazem tipo “compadre” e sua
225
Idem, p. 115.
226
Esboça-se uma tentativa de revalorização da desacreditada mão-de obra com o governo de
Getúlio. A Legislação Trabalhista dos anos 30 e a simultânea industrialização reforçam esse
“incentivo”, mas as posturas sociais permanecem idênticas. Continua-se a atribuir aos pobres uma
indisposição para o trabalho disciplinado, quando na verdade é o mercado que não os suporta. As
camadas mais baixas da população passam a ser chamadas de “malandras” e a perseguição realizada
por Vargas ganha, também por essa razão, proporções gigantescas. Solange Ribeiro, op. cit., p. 74.
124
“comadre” podem executar outros papéis na revista
227
. Eles fazem a apresentação e
encarnam outros tipos.
- Não acredito.
Pode acreditar, Duran, e como você mesmo diz, “precisamos abrir os olhos para a
realidade que nos toca”. Entende que essas personagens estão localizadas num entrelugar?
- Não, não me interessa.
Que grosseria, Duran, sinceramente não compreendo o motivo de sua irritação. Os
“compadres” não estão “nem lá nem cá”, como o malandro que estudo e que aparece na
revista com grande freqüência. Sabe-se que a construção desse tipo (o malandro) não nasce
na revista e a história do teatro, desde os gregos, já é marcada pela presença desses tipos
vadios trapaceiros e mulherengos. Na Commedia dell’Arte a figura dos zanni, que exibe
vários traços de personalidade preguiçosa e encantadora, são tipos correlatos ao malandro
revisteiro. Apesar de trazer essa tradição da malandragem, volto a dizer que o malandro
multifacetado brasileiro possui vários nomes, funções diferentes, imagens diversas, e está
dentro da linha do “virador”. O “virador” é um clandestino, um ladrão, um trambiqueiro.
Esse tipo tem um só objetivo: viver na “mamata”
228
.
- Tem que dar um basta nessa malandragem.
De novo irritado? Essa malandragem mais parece a ponta de um iceberg e nem de
longe se compara a muitas outras malandragens como as que faz a sua personagem, Duran.
Você sabe que o malandro revisteiro alcança seu apogeu na época do populismo
227
A dupla compère e comère da revista tem funções parecidas com a dos clowns circenses, onde o
primeiro tende a ser mais bobo e o segundo vivo e esperto. Muitas vezes o tipo masculino é rústico,
popular, grosseiro e sua parceira é requintada e refinada, fala francês e explica certos termos teatrais
ao parceiro. Ele vem do povo, ela vem da alta sociedade para desvendar-lhe os mistérios do teatro.
Neyde Veneziano, op. cit., p.117,118.
228
Artur Azevedo, por exemplo, busca nas ruas do Rio de Janeiro diversos tipos que desfilam em
suas revistas de ano. Há caloteiros, trapaceiros, assaltantes, jogadores e para todos um padrão de
atitude comum: vivem da bilontragem. Bilontra é uma classificação que Artur Azevedo dá para os
seus tipos malandros. Os bilontras são constantes na revista brasileira. Oscarito, Grande Otelo e Zé
Trindade podem ser lidos como os melhores performers da bilontragem. No momento histórico do
Estado Novo, o malandro representa uma necessidade social. Ele desrespeita as duas maiores
instituições do capitalismo: o trabalho e a família. O malandro revisteiro deixa entrever a alegria de
ser marginal. A personagem desencadeia o jogo do mito popular: “nessa terra se virando tudo dá”.
No sistema moral das revistas os trambiques, as malandragens, as marmeladas e os pequenos golpes
nunca são punidos. No fim, tudo é resolvido através do “jeitinho” brasileiro. A malandragem, junto
com a temática da mulher e do carnaval, contitui uma das facetas do Teatro de Revista. Neyde
Veneziano, op. cit., p.123-124.
125
getulista
229
? Como eu disse no capítulo anterior, é no período em que o malandro começa a
entrar em crise que a arte o captura com mais vigor do discurso social para imortalizá-lo.
Dessa maneira a arte, seja no Teatro de Revista, nos sambas, ou na crônica do cotidiano
230
,
assume seu caráter de resistência. E é a necessidade de sobrevivência do artista que o leva a
incorporar no discurso artístico os mitos de formação de um povo, mesmo sabendo muitas
vezes o quanto esse discurso corrobora o sistema de desigualdade em que vivemos. O
artista fala das máscaras impostas ao brasileiro para chamar sua atenção para as injustiças
do sistema, sabia Duran?
- Não, mas já devia ter desconfiado há muito tempo.
Deixe-me aproveitar o ensejo que a palavra “desconfiança” me dá para falar de um
tema sobre o qual sua personagem parece “desconfiado”. Aqui começo a falar sobre
caricatura viva, Fernandes de Duran.
- Que é que tá esperando?
4.4 Caricatura viva e o estilo brasileiro
As caricaturas vivas são uma convenção revisteira que consiste em retratar ao vivo
pessoas conhecidas da política, das artes, das letras, enfim, da sociedade. O texto busca se
aproximar do linguajar da pessoa real enfocada, com o cuidado que se deve ter para obter a
forma adequada de expressão para vestir o conteúdo típico do caricaturado. Na encenação,
copia-se a figura: o mesmo penteado, com a mesma indumentária e talvez os mesmos
gestos. O resultado é hilariante, pois a platéia reconhece com facilidade o ridicularizado
que geralmente aparece camuflado sob outro cognome
231
.
229
Idem, p.123
230
As músicas inseridas na revista brasileiras já assumiam o papel de crônicas do dia-a-dia do país e
principalmente do Rio de Janeiro. Nesse tipo de canção, os versos se dirigem ao público em sua
própria linguagem, preferem simplesmente imitar a fala corrente do povo. O sucesso alcançado
pelas canções compostas para os café-concertos leva ao aparecimento de cantores-compositores que
assumem a veia cômica (alguns sendo mais comediantes que músicos) para usar o formato das
músicas para fazer crônica da época. Luiz Noronha, op. cit.,p. 72.
231
A caricatura viva foi proibida em Portugal pelo excesso de crítica política que incomodou os
poderosos. Depois de muitas reclamações surge uma lei chamada Lei de Lopo Vaz que proibe
definitivamente a caricatura pessoal e as alusões políticas nos palcos. Getúlio Vargas, apesar de não
proibir as representações, é severo contra qualquer tentativa mais ousada de ridicularização. E aos
revisteiros de Portugal e do Brasil resta trocar a política pela malícia. Neyde Veneziano, op. cit.,
p.37,136.
126
É sabido, por exemplo, que Getúlio Vargas se diverte com as caricaturas de sua
pessoa no palco, sabia Duran?
- É assunto de interesse dele.
Que pena que esse fato não interessa a você, mas acho que os leitores podem querer
saber mais desdobramentos desse embate crítico que o presidente Vargas sofria
timidamente com as revistas brasileiras. A figura do político em cena limita-se a sorrir e a
acenar com a mão direita na tradicional postura populista, jargão do presidente do Estado
Novo. O DIP e o período ditatorial de Vargas é severo, pois possui um governo autoritário.
Mas Getúlio Vargas gostava do Teatro de Revista e há diversas histórias que se contam
sobre sua frequência às casas de espetáculo. O presidente permite que o retratem, mas sem
ridicularizações. Os mais ousados compõem sua caricatura citando pequenos trechos da fala
do presidente, como o clichê: “Trabalhadores do Brasil”. Mas mesmo uma expressão
comum dita por Getúlio Vargas não pode ser motivo de chacota, provocações, ou
grosserias. O populismo não permite
232
.
- Bravos, muito bem.
E a personagem Fernandes de Duran mais uma vez defende seus reais interesses.
Pois saibam, Duran e leitores, que apesar de todas as retaliações que sofre durante o
período de governo do contraditório Getúlio Vargas
233
, o movimento do Teatro de Revista
232
O estilo de comicidade é a irreverência. Mesmo embaixo de muitos holofotes, a malandragem e
o escracho comentam fatos do dia-a-dia, ainda que em meio às ameaças do DIP do Estado Novo.
Pedro Dias, geralmente maquilado por Luís Peixoto, faz a caricatura de Getúlio Vargas dentro dos
limites que o sistema permite. Na platéia o governante sorri complacente. A figura do populista
enquanto personagem limita-se, com o charuto aceso, a acenar com a mão direita, ficando
subentendido para o público que o poder resiste. Neyde Veneziano fala da relação de Getúlio
Vargas com as caricaturas vivas e o Teatro de Revista e ainda destaca um episódio em que o autor
Freire Junior põe na revista Que é que há com teu peru?um discussão entre Getúlio Vargas e Carlos
Lacerda. A revista é uma paródia do drama circunstancial O martir do calvário, representado vários
anos na Semana Santa. Oscarito faz Carlos lacerda e Pedro Dias faz Getúlio Vargas, e os dois são
representados como personagens do drama bíblico. Neyde Veneziano, op. cit., p.137-138, 181.
233
Apesar de muitas transformações negativas e retaliações ao Teatro de Revista e ao Brasil como
um todo terem ocorrido no período getulista, Solange Ribeiro supõe que o processo de
industrialização/modernização que abre as portas para o cinema é inevitável. O processo começa
antes do governo de Getúlio e a contemporaneidade neo-liberal e globalizada que se espalha com
velocidade gritante faz parte de um complexo plano internacional que não dá chances para recusas.
Vargas como gestor do desenvolvimentismo nacional acerta pelo menos conduzindo o país a uma
modernização inadiável. Nesse caso, propõe a autora, o presidente pode ser visto como a
encarnação do malandro realista, exímio na arte da sobrevivência. Após a Revolução de 30, Getúlio
Vargas parece ter apoiado duas reivindicações inconciliáveis. Uma delas é a reconstitucionalização
127
persiste comentando a contemporaneidade com bom humor e ironia. São realizadas
diversas transformações, no sentido da carpintaria teatral, desde as revistas da segunda
metade do século XIX até as montagens aparatosas das décadas de 40 e 50. Mas a
resistência persiste durante todo o tempo. Os assuntos políticos resistem quanto à temática,
certamente devido ao constante mau estado da economia no país e do sempre crescente
custo de vida e das onipresentes manobras políticas.
- Também não delira...
Com certeza no Estado Novo essas questões envolvendo a política diminuiram, mas
não é delírio afirmar que o Teatro de Revista pode ser lido como um pólo de crítica e de
resistência capaz de inspirar outros movimentos teatrais que viveram períodos ditatoriais.
Além disso, as revistas brasileiras são um veículo importantíssimo e em determinado tempo
imprescindível e decisivo para a divulgação de uma autêntica música popular brasileira e de
uma linguagem verdadeiramente cotidianal no teatro. O universo brasileiro sempre foi a
principal fonte de motivos inspiradores. As revistas recolhem na farta messe política e na
variedade de costumes, paisagens, usos e ritmos e nos apelos folclóricos, um enorme
repositório de temas e encontros com o público. O caminho das revistas brasileiras pode ser
comparado à trajetória moderna das escolas de samba no Carnaval
234
. Estas evidenciam a
identificação com as constantes homenagens feitas a figuras vistas e aplaudidas no gênero
rápida do país enquanto a outra é calcada numa modernização autoritária, com mudanças radicais
que devem ser introduzidas apenas num regime de exceção. Vargas, de maneira inteligente,
permanece boa parte de seu governo em cima do muro. Durante a segunda guerra, ele faz diversos
discursos pró-eixo, enquanto consegue com o governo americano (representante maior dos
Aliados), empréstimos que trazem desdobramentos decisivos para o nosso crescimento econômico.
A dificuldade de julgamento de Getúlio serve para evidenciar o quanto, mais do que qualquer outro
político, ele encarna a figura do malandro no poder. Ninguém mais contraditório, pois o presidente
é progressista do ponto de vista econômico mas adota uma política ultra-reacionária. Solange
Ribeiro, op. cit., p 90-93.
234
A popularização do entretenimento da revista força os revisteiros a buscar identidade com a
platéia, formada cada vez mais por uma mescla difusa de cores, de etnias e de classes sociais. As
revistas e os espetáculos populares passam a incorporar cada vez mais os tipos das ruas, como o
ambulante, o matuto, a mulata, a baiana, o funcionário público e claro, o malandro. Todos esses
tipos em cena têm que cantar e dançar no embalo do maxixe, do lundu e do samba, o que abre
diálogo entre os espetáculos de revista e o carnaval de rua. Passa a ser possível a profissionalização
dos compositores, por exemplo, dado o trânsito constante que as composições fazem e o sucesso
que alcançam. A marchinha, o primeiro ritmo realmente carnavalesco antes do advento do samba, é
o gênero que melhor precorre o circuito palco-esquina. O Teatro de Revista cresce enquanto
indústria de entretenimento e reina absoluto na cena carioca até a invasão de Hollywood a partir do
fim dos anos 20 e os golpes da ditadura Vargas no pós-30. Luiz Noronha, op. cit., p. 76-77
128
teatral que já se distancia no tempo, mas continuam refletidas em modelos transpostos à
rua
235
.
Num país de miscigenação, com as camadas populares em formação aliado a uma
sociedade pequeno burguesa em ascensão, não é difícil imaginar que haja uma platéia
receptiva para fenômenos como o Teatro de Revista e o próprio carnaval. E os revisteiros
seguem as premissas de muitas formas de teatro popular, em que tudo pode ser
personificado, desde que seja apresentado de maneira correta. O público merece todas as
explicações, pois ele é o “deus”, tem que compreender tudo
236
.
- Tem graça...
E essa compreensão não tem relação apenas com as alegrias que o país pode trazer,
mas com as situações de menosprezo em que o povo brasileiro e sua arte são colocados.
- No dia que todo brasileiro trabalhar o que trabalho, acaba a miséria.
A indústria da exploração sexual feminina e até juvenil deve ser uma atividade
rentosa, mas apenas para os que conseguem uma posição de mando. Durante muito tempo
as artes cênicas em geral são lidas como possuidoras de vínculos com a prostituição e a
revista já destaca esse fato. Uma correta revista de ano, por exemplo, é obrigada a comentar
a situação do pobre teatro brasileiro da época, em seus quadros de teatro. É um quadro que
possui certa ênfase inclusive por interessar mais de perto os autores. E talvez seja possível,
através de alguns quadros de teatro criados por Artur Azevedo traçar um perfil preciso do
teatro brasileiro do final do século XIX
237
.
Mas apesar de se poder imaginar que os textos de revista brasileiros são capazes de
fornecer um perfil seguro do teatro em algumas décadas, não se pode deixar de lembrar que
o compromisso maior desse gênero não é com a posteridade, mas com seu público. Não se
235
Neyde Veneziano aponta que é fundamental que se estude e se enumere os procedimentos mais
constantes deste teatro que, embora tenha se originado fora do país, ganha aqui características
próprias. Suas leis dramatúrgicas que casam com a brasilidade precisam ser eleboradas. A revista
brasileira recebe na sua trajetória duas duras críticas. Uma delas a caracteriza como uma imitação
de segunda classe do musical americano e a outra a acusa de baixa moralidade. Realmente coube à
revista o papel de corromper o musical americano através da sua natureza mais intrínseca que é o
escracho. Refletindo a autêntica gozação brasileira ao colonialismo cultural, é perceptível que a
revista desestrutura-o, critica-o. E nunca é demais dizer que o que seria, à primeira vista, imitação,
transforma as referências alienígenas em humor nacional. Neyde Veneziano, op. cit., p. 17, 49.
236
Idem, p. 25, 157.
237
Neyde Veneziano, op. cit., p.166.
129
pode pensar o texto como uma obra de arte apagada ou isolada
238
. A compreensão do
processo de comunicação pelo teatro leva o revistógrafo a encará-lo como algo cujo fim é o
momento da encenação e não a duração da obra artística. O Teatro de Revista não é
propriamente literatura, mas um gênero teatral que é prolongado pelo espetáculo e que vive
do efêmero.
Pode-se dizer que a revista brasileira é uma das grandes responsáveis pelo
surgimento de um “estilo brasileiro de representar”. A construção dos textos é sempre em
função do espetáculo, do ator e o momento da encenação é dedicado ao público. Nesse
momento, não há introspecção. Um ator da revista não tem apoio apenas no seu
companheiro de palco, mas pode trazer o olhar do público como cúmplice da cena. O ator
dialoga com sua platéia, dominando a técnica de triangulação com naturalidade. São
requisitos indispensáveis saber dançar, cantar e possuir tempo de comédia. Muitos atores
conquistam sua irreverência através do referencial circense, como é o caso de Oscarito e
Grande Otelo. E estes são apenas alguns dentre uma geração inesquecível de atores
brasileiros de Teatro de Revista
239
.
- Isso aí é realmente uma minoria insignificante.
Agora eu recomendo tomar cuidado com o que diz, Duran, pois alguns atores das
revistas estão entre os melhores atores brasileiros, principalmente no sentido de completude
no palco. As diversas habilidades dos atores os tornam mais aptos ao fazer teatral e
fênomeno da revista também funciona como vitrinie para diversos compositores. A revista
brasileira contribui ainda para a descolonização cultural do teatro brasileiro, pois através
dela fixamos nosso tipo, nosso cenário, nossos costumes e através de sua linguagem
238
Texto e encenação caminham juntos nesse gênero teatral, a partir da primeira idéia. As equipes
de produção se organizam com o elenco ao mesmo tempo em que as parcerias de autores e músicos
compõem cenas, diálogos, versos e canções. A criação é voltada para as pessoas que podem vir a
representar os quadros, de modo que é possível valorizar a performance de determinada vedete ou
cômico da companhia. É preciso tirar proveito dos dotes artísticos de cada um dos membros. Os
cenógrafos representam um papel muito importante nos processo de manufatura da revista. Cada
equipe desenvolve, simultaneamente, sua criação. Por isso não é um ato isolado. Neyde Veneziano,
op. cit., p. 183-184.
239
O ritmo alucinante de crescimento das grandes cidades e as gerações que crescem assitindo à
telelevisão modificam o gosto do público. A velocidade dos acontecimentos impossibilita que uma
revista em três atos atraia pessoas. O jornalismo ligeiro sob a fachada lúdica das revistas de ano
passa aos veículos de comunicação de massa, que o fazem, não anualmente, mas diariamente. Não
se está mais disponível para a ingênua invocação à alegria. E o passado de glórias ecoa apenas
melancólico. Neyde Veneziano, op. cit., p. 184-185
130
cotidiana e despojada instala-se um modo peculiar do “falar à brasileira”. Pelas críticas
revisteiras se consegue um preciso relato do país e se os números atestam ter sido esta a
forma teatral mais expressiva brasileira, deve-se questionar o desprezo absurdo e o
obsessivo preconceito de que o gênero é vítima.
- Depois de tanto sacrifício, tanta dedicação pela causa pública, morrer na
praia por tão pouco.
Concordo com você, Duran, formidável. Mas chamo atenção para um fato que sei
que percebe há algum tempo: como falar de um desprezo pela forma da revista que tanto
encanta o Brasil, se Chico Buarque, alguns anos após a extinção do gênero recupera a
forma da moderna revista brasileira em sua Ópera do malandro?
- Como é que você se atreve?
4.5 Ópera Do Malandro como re-visão
Como me atrevo a propor que não são coincidências as séries de semelhanças entre
a Ópera e a revista brasileira? Ora Duran, essa indicação não diminui o valor da obra que
re-infiltra num momento complicado do contexto político-social brasileiro uma tradição
teatral que marca profundamente nosso país.
Solange Ribeiro assume algumas vezes a ligação entre a Ópera e o Teatro de
Revista, mas parece não dar muita atenção para as aproximações entre a peça e o gênero. A
autora aponta como uma transformação na peça de Chico Buarque em relação aos textos
precedentes, com enredo semelhante, o aproveitamento na encenação de experiência
tipicamente brasileira. Ela fala dos microfones da primeira montagem que remetem aos
programas radiofônicos de auditório, que brilharam na década de 40, convivendo com a
chanchada e o Teatro de Revista. Solange Ribeiro diz ainda que a apoteose final da Ópera é
semelhante às do teatro de revista e que Chico Buarque não tem o mesmo problema que
Brecht este quer canções com complexos efeitos para seus textos dramáticos pois
trabalha na tradição da revista brasileira, mais próxima do realismo e com um amálgama
maior entre letra e melodia
240
. O texto de Solange Ribeiro de Oliveira talvez seja uma das
mais completas análises da Ópera do malandro, mas parece ignorar uma série de conecções
entre a peça e o fenômeno da revista brasileira.
240
Solange Ribeiro, op. cit., p. 50, 99, 116.
131
Como eu disse, a revista moderna tem dois atos onde o primeiro é mais importante
inclusive pela presença de árias de apresentação, e o segundo mais ligeiro. Excetuando-se
as árias pois as músicas da peça de Chico Buarque não são exatamente “coplas” de
apresentação a forma da peça publicada em 1979 não lembra o gênero que conquista o
Brasil por praticamente um século? Prólogo em algumas fases, primeiro ato
contextualizando o espetáculo e as personagens, segundo ato com diálogo ligeiro e
apoteótico. Talvez uma diferença seja a presença de um prólogo para cada ato e o segundo
fim de ato apoteótico parecer maior. Um outro fator que chama a atenção é o desinteresse
pelo contínuo que analiso estar presente na obra de Brecht e é um componente importante
do Teatro de Revista brasileiro. A peça de Chico Buarque parece ter captado a estrutura
geral de um gênero marcado pela comicidade.
- Que bomba!
Posso ser mais bombástico e falar do tipo malandro, que compõe o nome da peça. A
trama do espetáculo se passa numa época em que esse tipo social começa sua trajetória
mítica, sendo absorvido pela arte e pelo senso comum e deixando de existir enquanto auto-
denominação de alguns tipos cariocas. Como disse antes, há sambistas e pessoas que
sobrevivem de subempregos que insistem em se auto-denominar malandros para adquirirem
status ou pela carga negativa que o trabalho manual possui em virtude do processo
escravista pelo qual passamos
241
. O malandro é uma representação, cujo maior problema é
que, com o tempo, é aceita como representação do nacional. É uma personagem do
espetáculo da vida que é levado ao Teatro de Revista e transcontextualizado por Chico
Buarque, que indica que a malandragem está em todas as classes, inclusive no lenocida
Fernandes de Duran.
A idéia de vida como espetáculo pode ser lida em Roberto da Matta. O autor afirma
que tal como ocorre com autores teatrais, a sociedade também determina seus atores. Ela
não inventa somente a peça, o enredo, o cenário e o palco, como fazem os teatrólogos. Vai
além disso, criando também os papéis e os atores, bem como as condições em que a peça
deve ser encenada, e como é recebida. De modo que, ao estudarmos a dramatização que é,
241
Os centros urbanos do Rio de Janeiro na década de 40 se encontra repleto de grupos sociais
liminares que buscam encontrar ocupações incertas ou temporárias, sem horário ou remuneração
fixos, mas até certo ponto autônomas e afastadas da rotina fabril. Enrtre esses tipos encontramos o
barbeiro, o alfaiate, o pequeno comerciante, a doceira, o mascate, o biscateiro e o sambista. Solange
Ribeiro, op. cit., p. 13
132
como sabemos, um modo coletivo de expressão estudamos conjuntamente os papéis
sociais e os atores. As regularidades que sujeitam o drama sustentam também as
motivações mais profundas dos atores, uns e outros submetidos às mesmas regras e
trajetórias. Eles se auto- reproduzem em níveis diversos, o que, deve-se também dizer de
modo claro, provoca os desníveis que finalmente conduzem àquilo que percebemos como
mudança social
242
.
Outra característica que a Ópera capta junto à revista brasileira é o tema da
perseguição. É a personagem Fernandes de Duran que assume o papel do perseguidor, e
quer a todo custo colocar o senhor Max Overseas na cadeia pelo fato de ele ter seduzido sua
doce filha.
- Em nossa família não pode caber um sanguessuga.
Como se não fossem todos sanguessugas, a sua personagem, a personagem Vitória
Régia, a personagem Teresinha, representantes de uma burguesia decadente envolvida num
jogo de perseguição cômico em que um malandro, o Max, sempre escapa por um triz.
A esposa Vitória afirma que Duran “se arde em hemorróidas” causadas também
pelo esforço intelectual que tem que fazer em virtude das funcionárias. Vitória Régia parece
ser subserviente ao marido durante boa parteda peça, afirma que teria se enganado casando
com ele, mas fala para a filha que se sente realizada no casamento. Demonstra a mesma
gana capitalista do marido e da filha quando resolve exigir que Fichinha pague setenta e
não os cinqüenta por cento dos lucros propostos por Duran. A personagem parece invejosa,
é atrapalhada, cheira rapé em alguns momentos da peça, indica ser racista quando fala de
um casal de amigos que tem “o pé na cozinha” e quando se refera ao malandro João Alegre
como “crioulo” ou “preto safado”. Seu casamento não tem amor, “nem bate nem alisa”. A
esposa de Duran indica ser bastante religiosa em algumas falas, mas transparece tão
exploradora quanto seu marido em outras
243
.
Este no desenrolar da trama cumpre a função de sanguessuga intentando explorar
comercialmente sua filha e as mil quatrocentas e trinta e duas funcionárias que vendem o
corpo para seu lucro pessoal.
- Já mexe com a minha família! Interfere no meu patrimônio!
242
Roberto da Matta, op.cit., p.210.
243
Chico Buarque, op. cit., p. 33, 37-48, 79-84, 87-91.
133
A personagem Fernandes de Duran afirma que sua filha é o seu naior investimento e
que se tivesse um mínimo de “tino comercial” saberia que “cinqüenta quilos de carne não
são para qualquer um comer de graça”. Sua esposa defende a filha dizendo que Duran a
subestima e que ela gosta de levar vantagem em tudo
244
. Parece ter puxado o pai. Para a
personagem Duran, família e patrimônio são expressões correlatas.
Um patrimônio alicerçado no sexo, ou na exploração do sexo. Este por exemplo é
um tema que passa a ser explorado tardiamente na revista de ano e que Chico Buarque lê de
forma muito inteligente
245
. Há cenas e canções que remetem ao corpo e ao prazer físico e
o vivenciadas por praticamente todas as personagens. A ironia é uma outra constante do
texto, como vimos, e a quantidadede frases de duplo sentido é muito grande, algumas
fazendo referência também ao sexo. As discussões sobre o sobrenome verdadeiro de max
de Max; o sindicato SMOELA feito pelo casal Duran para suas funcionárias são bons
exemplos dessas espressões de duplo sentido
246
.
Numa das falas de Duran o andamento do texto se assemelha a uma narração de
futebol. A personagem começa seu texto descrevendo o desfile que quer organizar no
estádio de São Januário. Fala da discrição de suas funcionárias que trabalham à meia-luz,
na calada da noite e que fazem diferença quando saem com instrumentos de trabalho
durante o dia. A partir desse momento do texto, a personagem utiliza frases curtas para
descrever a passeata, valendo-se de expressões como: “ah, a arquibancada vai se levantar!
Vai ser gol do Diamante Negro”. A frase não tem uma relação direta com a sexualidade,
mas é um bom exemplo de como o duplo sentido pode ser trabalhado de diferentes formas.
Viver do amor, Tango do Covil o Casamento do Pequenos Burgueses, Geni o
Zepelim, Folhetim, Ai, se eles me pegam agora, O meu amor, Se eu fosse teu patrão e
Teresinha, possuem referências diretas ao sexo ou ao prazer corpóreo e muitos quadros da
peça possuem palavras obscenas. Geni fala que nos bons tempos levava “cinco noites de
enfiada” dos marujos com bastante disposição, mas agora uma noite só a deixa podre; Max
244
Idem, p. 38-39.
245
Solange Ribeiro, comparando o erotismo na Ópera do Mendigo, na Ópera dos trêns vinténs e na
Ópera do malandro, afirma que o texto brechtiano distingue-se pelo conteúdo pornográfico,
sombrio e contundente, diverso do alegre erotismo de Gay. A autora aponta que nesse aspecto a
Ópera dos três vinténs diverge ainda mais da Ópera do malandro, onde implicações paródicas e
referências sexuais explícitas se deixam permear por inegável lirismo. Solange Ribeiro, op. cit., p.
149
246
Chico Buarque, op. cit., p. 33, 74.
134
e Chaves, antes da canção Doze anos discutem sobre a posse de uma “punheta” praticada
em função de uma senhora que conheceram na infancia; uma das expressões utilizadas por
Max Overseas quando se encontra preso diante de Lúcia é que ele queria “comê-la com
grade e tudo”, pois “amor de pica é amor que fica”
247
.
A peça parece possuir uma malícia constante e apesar de se inspirar em Brecht,
Chico Buarque retira muito da carga marxista que possui a Ópera dos três vinténs para
investir no sexo e na sensualidade como tema principal. Até uma canção como Doze anos
traz indicativos da descoberta do sexo por adolescentes, que vêem “mulher nua” pela
fechadura, entre uma brincadeira e outra. Mas é notório também que a crítica social
continua, e a sensualidade é um recurso para disfarçar os efeitos que possuem as ferinas
caracterizações feitas por Chico Buarque, seja na figura da prostituta em Folhetim; ou na
expansão do conceito de malandragem em O malandro e Homenagem ao malandro; ou
ainda na quebra do sentido de paternidade e maternidade enfim, família em Uma
canção desnaturada, apenas para citar algumas letras.
- Pois é.
Mas Fernandes de Duran, seu papel como pai de família e lenocida está, como já
disse, envolvido numa das mais inteligentes críticas da peça, mas é interessante que os
leitores possam conhecer mais a outra personagem que representa na peça, a figura não
menos interessante do produtor teatral.
- Pode ser, vou pensar no seu caso, vamos dialogar.
Dialoguemos. Poderia me dizer o que a Ópera do malandro representa?
- Eu, pessoalmente como produtor deste espetáculo, devo dizer que ele
representa uma nova vereda para nossa companhia teatral.
É uma companhia bem sucedida?
- Nunca demos mau exemplo.
E quem trabalha nessa companhia? São pessoas conhecidas, artistas famosos...
- Pra trabalhar comigo, só grandes artistas.
Obrigado, senhor produtor. Leitores, faço questão de dizer que esse breve diálogo
serve para ilustrar outra relação entre a revista e a Ópera, pois acabei de conversar com
meu “compadre” Duran. A peça de Chico Buarque, bem como a revista, se utiliza bastante
247
Idem, p. 40-41, 63, 138.
135
de recursos metalinguísticos para explicar a trama teatral que nos envolve. A personagem
do Produtor e da Patronese que depois se transformam no casal Fernandes e Vitória Régia
de Duran parecem assumir a função do compère e da comère que os revistógrafos
inserem nos primeiros textos de revista. Note-se que no período ficcional em que se passa a
trama da peça a era Vargas esses tipos praticamente somem. São tipos cômicos que
apresentam o espetáculo e depois assumem outros papéis na trama. Suponho com isso, que
Chico Buarque não se utiliza apenas do modelo “moderno” de revista, vigente nas décadas
de 40 e 50 do século XX, mas se comunica com toda a tradição do Teatro de Revista desde
os seus primórdios. Esse fato nos remete a uma possível apropriação consciente do gestus
brechtiano. Perceba-se também que esse processo de buscar uma personagem do início da
tradição revisteira para inseri-lo numa peça com formato de revista moderna é
transcontextual. O Produtor como “compadre” não parece o tipo rústico, camponês que
aparece nas primeiras revistas. A personagem é um produtor teatral e a função da comère,
que nas primeiras revistas explica a terminologia do teatro para o compére e para o público,
passa a ser, através da personagem Vitória Régia, o recebimento da bilhteria do espetáculo
beneficente. Ela, como indica a tradição das “comadres” é fina e requintada. Como se sabe,
as comadres costumam falar francês e Chico Buarque, de maneira inteligente, parece captar
essa nuance da personagem quando a esposa de Fernandes de Duran já não mais a
Patronese, mas a segunda personagem da peça feita por uma mesma atriz fala que sua
mãe é legítima francesa.
- A ligação é muito mais profunda do que a gente imaginava.
Com certeza, Duran, mas a semelhanças não param por aí. E gostaria da sua ajuda
para ilustrar mais uma aproximação.
- Te impressionei, hein?
Confesso que sua personagem sempre me impressionou, mas eu só queria fazer
algumas perguntas rápidas para poupar aos leitores algumas imersões na peça de Chico
Buarque a fim de analisar o seu discurso.
- Bem, eu vou examinar com a maior boa vontade.
Enquanto a sua personagem examina se tem interesse em me responder questões,
continuo as analogias. Uma das características mais “brasileiras” ou “originais” do nosso
Teatro de Revista é colocar a música com o mesmo peso dos diálogos. As falas das
136
personagens e as canções de Chico Buarque indubitavelmente possuem um peso
equivalente. Muitas músicas alcançam grande repercussão no país e como já foi visto,
algumas possuem forte carga de dramaticidade. Na letra da canção O malandro, o processo
de transcontextualização consegue reduzir estruturalmente uma imensa rede de relações
internacional que vai do indivíduo ou tipo malandro à “metrópole representada pelos
ianques. Uma outra argumentação nesse sentido recai sobre o fato de que muitas dessas
músicas são conhecidas por boa parte da população de classe média brasileira e muitas
vezes ninguém liga as canções às tramas para as quais foram compostas. A revista
brasileira também é responsável pelo lançamento de muitas músicas no ideário nacional, e
inclusive de muitos compositores. Há músicas que fazem sucesso nas revistas e são
absorvidas pelo carnaval e o movimento contrário é recíproco. A “unanimidade” atribuída a
Chico Buarque no início de sua carreira é reafirmada com a primeiras montagens da Ópera
do malandro, que lançam no cenário nacional intépretes como Elba Ramalho e Tânia
Alves.
Muito bem, Duran, estou preparado para começar a fazer as perguntas. São curtas e
espero que não ofendam sua personagem, pois vê-lo irritado de novo é algo que não quero.
- Ah, vai ser um espetáculo e tanto!
Como é o seu negócio, Duran?
- É sólido como um banco.
Você se acha um explorador de suas funcionárias?
- De jeito nehum!
Você não compreende a postura malandra que tem e a manipulação que faz de suas
prostitutas agenciadas no intuito de obter ganhos pessoais e desonestos?
- Que é isso? Duvidando da minha honestidade?
De maneira alguma, eu só estou tentando entender a lógica do seu discurso para que
eu possa argumentar com mais segurança. O que comprova para sua personagem que suas
funcionárias estão sendo bem tratadas? Que vantagens elas têm?
- IAPS, SAPS, IAPTEC
248
, salário mínimo, tudo em ordem, conforme a
legislação trabalhista.
248
Getúlio esculpe seu próprio mito através da intensificação da propaganda e cria várias
instituições como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que censurava a mídia. O mito
137
E esses fatores garantem um bom tratamento para suas agenciadas? Você realmente
acredita nisso?
- Minha bíblia é a constituição da república e as leis trabalhistas são o meu
breviário.
Obrigado, Duran, é exatamente isso o que eu quero ler. Leitores, analisando o
discurso da personagem Fernandes de Duran exposto acima, arrisco-me supor que Chico
Buarque tenha feito, em sua Ópera do Malandro, uma caricatura viva do presidente Getúlio
Vargas. Duran representa na peça a figura do “pai”, e compreendo que isso é pouco para
ligar a imagem da personagem à tipificação do “Pai dos Pobres”. Mas o discurso da
personagem sobre as leis trabalhistas e a constituição parecem indicar uma aproximação do
discurso getulista. É Duran, como se pode ler algumas páginas atrás, quem diz que “tem
que dar um basta nessa malandragem”, como Getúlio Vargas se faz pronunciar através do
DIP. Parece que a personagem Fernandes de Duran, além de “compadre”, possui trejeitos
presidenciais.
A personagem faz questão de contratar suas funcionárias e está nas letras miúdas do
contrato o fato de que elas pagam por todo e qualquer ônus causado em seus prostíbulos
249
,
o que pode ser lido como uma metáfora do que acontece com a falsa modernização
se consolida através de certas medidas, , como a medida populista de instituir o Serviço de
Alimentação da Previdência Social SAPS, com sua rede popular de refeitórios. Maria Lucia Vitor
Barbosa, em seu artigo Um novo Estado Novo?, http://www.ternuma.com.br/estado1.htm.O sistema
de saúde brasileiro no século XX segue a trajetória de países latino-americanos, como México,
Chile, Argentina e Uruguai. Com a Lei Eloy Chaves, em 1923, institui-se o sistema de Caixas de
Aposentadorias e Pensões (CAP's), financiadas de forma tripartite, pelos empregados, empresas e
governo. Estas caixas são organizadas por empresas ou categorias profissionais e excluemm muitos
segmentos da população. Embora fosse regulado pelo Estado, o rápido crescimento do sistema de
caixas não permite ao governo monitorar seu funcionamento, especialmente ao longo do fim da
República Velha (anos 20), quando o Estado é desprovido quase totalmente de instâncias de
fiscalização das ações da sociedade civil. Com a crise dos anos 30 e o advento da revolução liderada
por Getúlio Vargas, ocorrem muitas mudanças, aumentando o centralismo estatal. Os setores de
saúde e previdência não fogem a esse movimento. Ao longo dos anos 30, a estrutura das CAP's foi
adicionada pela dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP's) autarquias centralizadas no
governo federal, supervisionadas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Estas
estruturas, organizadas por ramos de atividade, absorveram a maioria das antigas CAP's, embora
algumas tenham sobrevivido até os anos 60. Ao longo dos anos 30 foram criados os institutos de
marítimos (IAPM), comerciários (IAPC), bancários (IAPB), estiva e transporte de cargas (IAPTEC)
e industriários (IAPI). Nos anos 40 foi criado o último desses institutos - o dos servidores do
Estado. André Cezar Medici, Evolução da Estrutura do Sistema de Saúde,
http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/polsoc/saude/estsist/apresent.htm.
249
Chico Buarque, op. cit., p. 93
138
getulista, em que o brasileiro paga pelo ônus das reformas deixadas pela ditadura. Duran
fala do voto feminino, trama e manipula suas funcionárias até o ponto culminante em que
canta com elas a canção Sempre em Frente. A letra da canção possui versos em que “Nós
daremos nossos braços/ Nós daremos nossas pernas (...) / A serviço da cabeça/ Que conduz
o corpo são”, sendo que essa cabeça é o patrão Fernandes de Duran. E quando afirma que
suas funcionárias possuem IAPTEC, vale a pena lembrar que esse instituto de
aposentadoria é destinado a estiva e transporte de cargas
250
.
Solange Ribeiro parece estabelecer pontos em comum entre a figura de Duran e a de
Getúlio Vargas, embora não assuma que possa se tratar de uma caricatura viva do
presidente. A autora lembra que Duran propõe organizar um sindicato para as mulheres por
ele exploradas fazendo referência ao modo como Getúlio co-optou os sindicatos e suprimiu
as organizações operárias espontâneas. O proxeneta equipara a “constituição fascista”
elaborada por Francisco Campos às conquistas trabalhistas, e acena ironicamente para um
substrato religioso “a Constituição da República é minha bíblia”. Solange completa sua
argumentação com o fato de que Duran não esquece o novo plano de classificação do
DASP, que reorganiza o serviço público, as leis de aposentadoria e os desfiles de primeiro
de maio. Quando Duran provoca suas funcionárias para fazer uma passeata denunciando a
amizade entre Chaves e Max, ele se refere a elas como “nossas trabalhadoras do Brasil”,
remetendo ao tradicional vocativo dos discursos de Vargas: “trabalhadores do Brasil”
251
.
- Mas quem sou eu?
Uma personagem, Duran. Uma personagem que parece ter uma série de ascendentes
importantes no discurso artístico e no discurso histórico. E recorro a mais um argumento
para reforçar a idéia de que Duran é uma caricatura de Vargas. Em entrevista para uma
edição especial da revista Caros Amigos, em tributo aos 50 anos do suicídio de Getúlio
Vargas, a atriz revisteira Dercy Gonçalves fala do presidente afirmando que ele é o
primeiro governante que dá atenção aos artistas. Ele dá para os artistas brasileiros uma
posição que não têm, pois antes são tratados como cachorros. Com Vargas, o ator no Brasil
250
Idem, p. 93, 99, 100.
251
Solange Ribeiro, op. cit., p. 87.
139
passa a compor uma classe teatral. Antes dele as atrizes são “putas”, são tratadas como
lixo
252
.
- Puta, é?
Exatamente, “compadre”, prostituta. Sabe-se que no início do século as atrizes
tinham em sua carteira de trabalho a mesma inscrição que as prostitutas, e com Getúlio
Vargas podem assinar sua carteira de trabalho como atrizes. A personagem do produtor
teatral que se transforma num lenocida parece fazer o movimento contrário do que o
executado pelo presidente: Duran transforma as atrizes de sua companhia em personagens
prostitutas. E agora temos uma caricatura viva transcontextualizada, imbuída de forte teor
irônico. A ironia se completa quando Duran e sua esposa induzem as funcionárias da
empresa “A brasileira”, a fundar um sindicato, que Vitória chama de SMOELA: Sindicato
de Mão-de-Obra Especializada da Lapa. Será que Chico Buarque é capaz de
transcontextualizar a formação “imposta” dos sindicatos brasileiros como sendo uma
SMOELA/esmola do governo do Estado Novo?
- A gente está diante de um fato consumado...
Suponho que sim, Duran. Há vários indícios de que Chico Buarque talvez tenha
feito no período ditatorial pós-64 um a re-vista ou re-visão de outra ditadura, a era Vargas.
E daí mais uma aproximação da revista moderna que deixa de ser anual para revisitar
períodos maiores. Chico Buarque revisita toda uma ditadura, importante para a cristalização
de uma série de mazelas contemporâneas.
O autor flagra o momento ditatorial em que se inicia a crise de um mito depreciativo
para o brasileiro, mas que se perpetua: o malandro. O mesmo período marca uma série de
transformações num gênero teatral importante no Brasil que em alguns anos é esquecido. É
interessante imaginar por que o discurso oficial e o senso comum conseguem manter o
estigma social da malandragem como uma característica essencialmente brasileira,
enquanto o tom galhofeiro, irônico e crítico-político da revista não se torna um fio condutor
do modo de ser brasileiro. Ou talvez eu esteja sendo ingênuo ao supor que não é
exatamente esse o nosso “fio condutor”. Talvez fingir que vestimos a máscara da
malandragem seja uma forma de driblar a opressão que nos deprecia.
252
Dercy Gonçalves, na entrevista Dercy, quarenta anos de teatro. In: Caros Amigos Especial:
Getúlio, 50 anos do suicídio, agosto de 2004, p. 27
140
- Então é aí que fica caracterizado um problema de classe.
Eu digo que não é tão simples assim. Há diversas classes vestindo máscaras para
tentar uma sobrevivência mínima. É certo que há algumas classes que têm consciência
desse baile de máscaras e até escolhem as máscaras de outras classes. Enquanto
continuamos comprando as idéias massificantes de uma democracia e de uma
modernização que nunca chega, deixamos de exercer dignamente nossapluraridade. Tudo
aquilo que nos faz brasileiros faz parte de um grande discurso de nação que não nos dá
garantias concretas ou ao menos perspectivas de problemas solucionados.
- Tá pensando que é malandro, rapaz?
Não Duran. E é exatamente isso o que não quero pensar para mim. Chega de inssitir
em fantasias sem questioná-las. Chico Buarque indica compor uma Ópera que questiona
onde estão os mitos que devemos aceitar como brasileiros. Ele critica um processo de
modernização iniciado na Era Vargas e não concluído de forma plena até a
contemporaneidade. Uma parte do país é moderno e consome, enquanto a maioria está na
classificação geral de “malandros” por terem o despeito de não se integrarem ao sistema de
trabalho calcado no capitalismo. São tantos mitos, tantas falácias que não percebemos os
mandos e desmandos de uma estrutura falha e sem horizontes.
- Com um futuro tão promissor...
Não dá pra pensar no futuro. O presente bate insistentemente à nossa porta e temos
que fazer escolhas que, juntamente com uma série de outros fatores nos faz mais felizes ou
mais culpados. A culpabilidade desenvolvida pelo brasileiro e sua baixa-estima não nos
permite observar estratégias possíveis de resistência. Uma resistência talvez silenciosa,
escrita, artística, mas dialética e humana. Um bom começo para isso é enxergar o nosso
círculo de relações de forma diferente e não comprar todas as idéias que nos oferecem. Um
outro passo é, como Chico Buarque faz, fazer da sua história e da sua obra um complexo
autoral tão individual e só seu, que ninguém consegue dizer que o seu teatro não é da sua
nação.
- Afinal, teatro é cultura!
141
5. HOMENAGEM AO EPÍLOGO
253
EU VIM FAZER DISCURSO SOBRE A IMAGEM
DESSA TAL “BRASILEIRAGEM”
COMENTADA EM PEÇAS E JORNAIS
DEI CARA A TAPA PARA LER MENSAGEM
QUE A ÓPERA DEIXA EM PASSAGEM
POR NOSSOS UMBRAIS
É HORA JÁ DE LER O TAL
DISCURSO SOBRE AUTOR, ATUALIDADE E ESTRUTURAL
DISCURSO SOBRE A PARÓDIA TRANSCONTEXTUAL
DISCURSO DE MALANDRO LITERÁRIO E SOCIAL
DISCURSO DE REVISTA E TRADIÇÃO ORIGINAL
DISCURSO CONCLUSIVO SEM BRAVATA NO FINAL
SEM SER LEVADO A MAL
MAS BRASILEIRO A VALER
ENCALHA
POIS SE HÁ UM BRASIL QUE O VALHA
VIVE EM CADA UM DE FORMA IGUAL
CORPOS A MÍNGUA NOSSA PÁTRIA ESPALHA
QUEM MORA LONGE ATRAPALHA
SÓ NO CARNAVAL
253
Paródia da canção Homenagem ao malandro Anexo I, p. 169
142
5.1 Contemporaneidade da peça
Acabada a contagem regressiva. Estamos no ponto zero, signifique isso um fim ou
um recomeço. Não há mais fotos expressivas e o que nos resta é apenas a sombra de um
mito malandro que acompanha cada página dessa história recontada. E o mito reconta junto
com a história, parecendo vivo, parecendo onipresente, mas deixando as dores culposas
para quem não atinge a mitificação. O que dizer de nosso país? O que faz com que sejamos
brasileiros? O que faz da Ópera do Malandro uma peça brasileira? Ter sido escrita num
Brasil é um bom começo. Ser obra de um brasileiro um outro elemento. Mas
principalmente por conseguir captar através de divesas fontes, pontos de vista sobre o “ser
brasileiro”. E é com prazer que chego a esse capítulo para dizer que escrevo mais de cem
páginas para concluir o óbvio: a Ópera do malandro é um texto originalmente arquitetado e
brasileiro.
Brasileiro por ser contemporâneo e atual, gerando filas imensas para uma nova
montagem quase trinta anos depois que foi escrito. As canções (embora seja fato que
poucos conhecem a sua valoração dentro da peça) são cantaroladas pelas ruas, praças,
escolas, universidades, enfim, está na boca de uma classe média heterogênea, mestiça, que
não sabe ao certo que rumos dar para sua vida, mas canta e gosta do Chico. Nacional pelo
fato de ter sido escrita por um intelectual aclamado por muitas gerações que arquiteta para
o país uma arte singular e de incontável valor, a não ser quando se resolve pronunciar as
cifras da indústria fonográfica e do mercado editorial.
A peça é original porque se utiliza de duas fontes estrangeiras com um enredo
semelhante e dá para elas uma cara brasileira, suingada, repleta de trancontextualizações
inteligentes. Parece repetir, mas transcende. Homenageia sem ridicularizar. Capta
referências estéticas que atravessam a história e as faz dançar através de nossos ritmos com
maestria, como se esses referenciais tivessem sido sempre nossos. Vai ao imaginário
143
popular e o insere, sem pedir licença, num fluxo contínuo e estratégico de recriações.
Critica de maneira mordaz, exatamente onde parece reativar uma fórmula que dá certo. E
diverte, os quase pequenos e os grandes que intuem não se poderem realizar mudanças
efetivas e radicais apenas através do discurso ficcional.
A tradição literária possui graças a Chico Buarque mais uma redução estrutural
da conjuntura brasileira, focada na antiga capital nacional e com floreios capazes de serem
expandidos para toda nação, como realmente é feito. Chico Buarque reconstrói em sua obra
um Rio de Janeiro que deixa saudades e ávido por transformações, que não vêm da forma
esperada, mas já minimiza os malefícios que os olhos elitistas sentem em ver a sujeira. O
Rio reconstruído tem a opção de só olhar para a sujeira quando quiser ou quando as
mazelas retiram o fone de seu ouvido, os óculos escuros de sua cara e gritam com alma.
Chico relê os mitos e as muitas falhas em nosso sistema de relações.
O autor da Ópera do malandro rememora toda uma tradição teatral que o discurso
oficial do cinema norte-americano e das redes de comunicação em massa sepultam sem a
devida indenização. A Ópera faz o Brasil cantar suas músicas, torcer por suas personagens,
se imaginar fazendo seus tipos através de uma “revista ditatorial”. A peça e o gênero
possuem diversos pontos em comum que se ligam de maneira sutil, sorrateira e não
assumida. A malandragem aí se revela um personagem, um tipo construído na revista
brasileira, assim como muitos outros. Só que um tipo internacionalizado, com uma história
pregressa recheada de confusões perseguições e aclamações que o elevam à categoria de
símbolo.
A Ópera é um mosaico de citações e de referências. A junção desses pedaços
dispersos da história é original e muitos desses pedaços passam com propriedade como
sendo “brasileiros”. Mas na verdade se é que ela existe a peça é brasileira por ser plural,
mestiçamente composta de uma complexa rede de relações históricas e
“transhistoricizadas”, ou melhor, inseridas como fato onde a fatos não é permitido durar
muito tempo. É brasileira porque questiona um país sem memória que acredita estar
novamente às portas do primeiro mundo quando vive o sufocamento e a violência de uma
outra ditadura que toma remédio controlado doses homeopáticas de modernização. E me
despeço leitora ou leitor, e peço desculpas se esse meu discurso final parece inflado e cheio
144
de utopia ou desesperança ingênua. Peço perdão se prometi na paródia Homenagem a o
epílogo um discurso conclusivo sem bravata. Acabo aqui.
- Não, nunca, de jeito nenhum!
5.2 Resgatando capítulos e personagens
Grande João, o autêntico representante das rodas da malandragem. A única
personagem da peça a qual se referem como sendo negra. Tudo bem que só é chamado por
Vitória Fernandes de Duran de “preto safado” e “crioulo”, mas mesmo assim é um afro-
descendente assumido no discurso da peça. A personagem se auto-denomina representante
dos fodidos, cuja sina ,para Jussara Pé-de-anjo foi inventada dum “jeito batata” pelos
homens. Para os “fodidos” não têm certo ou errado e o corpo do fodido está desarranjado
de maneira tal que “sente com a cabeça, pensa com a barriga e caga pelo coração”.
Acho que a leitora ou leitor sabe que Chico Buarque afirma em algumas cenas que é
exatamente a personagem João Alegre quem escreve a peça.
É esse malandro-autor, segundo Chico Buarque em sua peça, quem focaliza um
momento histórico brasileiro de suma importância para a transição de um país colonizado,
com estrutura agrária ancorada na escravidão, para uma nova ordem capitalista, contraposta
ao modelo agroexportador. O foco é o governo Vargas, que acelera o processo de
industrialização, promulga e, contra a resistência dos patrões, implanta a Legislação
trabalhista. É interessante lembrar que, para muitos, essa tão aclamada legislação é imposta,
autoritária e se destina a suprimir as reinvidicações e os movimentos operários do passado.
É um aparato legislativo que não visa a proteção dos trabalhadores, mas a expansão do
capitalismo
254
.
Mas as personagens da peça, com exceção de Chaves, que possui um cargo público,
e do juiz, que aparece em algumas cenas, não podem ser enquadrados no rol de
“trabalhadores”. Praticamente todos assumem suas atividades ilicítas, inclusive Chaves e o
juiz. São todos companheiros seus de malandragem, não é João?
Converso com alguns deles aqui. Primeiro com o malandro vendedor de produtos de
beleza contrabandeados, Genival. Bem espirituoso ele. Ele sabe tudo, sempre, mas guarda
as informações até o fim até que seja bem pago. Como a sua personagem, João, Geni faz
uma ponte entre os marginalizados e os burgueses da peça. Ele, ou talvez prefira ser
254
Solange Ribeiro de Oliveira, op. cit., p.57
145
chamado de “ela”, transita por todos os espaços da Ópera, como sua personagem deve
saber.
Confesso que me irrito um pouco com Teresinha, que possui um ímpeto exacerbado
pelo controle das situações e exerce uma malandragem de “alta classe”. É ela quem lança a
empresa do marido no mercado internacional e facilita o conchavo entre o dinheiro de seu
pai e Max Overseas. Teresinha é prática e inteligente, difere muito da imagem de boa filha
e boa esposa recatada que distribui entre sorrisos e frases de efeito. Suas últimas falas são
quase proféticas, pois a personagem diz que seu pai, o inspetor Chaves, a Lapa e as
falcatruas, enfim todo esse mundo está morto e caindo aos pedaços. Teresinha ainda apóia a
passeata que não quer calar, dizendo que os “fodidos” estão certos em desabafar porque
ninguém agüenta o clima de sufoco que permanece. A aclamação por um mundo novo vai
mais longe quando a personagem fala que está todo mundo precisando de uma coisa nova,
mais limpa e mais arejada. “Os malandrinhos e os bandidinhos”, segundo Teresinha, os que
acham que “sempre é possivel dar-se um jeitinho, esses vão apodrecer debaixo da ponte
255
.
É realmente um desabafo o que é colocado nas falas dessa personagem e ela contribui
bastante com minha Ópera-ação Transcontextual.
O marido dela é metido a malandro. Diz que sabe coisas que não sabe, diz que faz
coisas que não faz. Sua principal malandragem se dá pelo discurso, pela vangloriação do
que é alheio a suas capacidades. Pelo seu peso na peça pode ser considerado o tipo anti-
herói melhor descrito, pois muito da trama gira em torno dele. Max seduz Teresinha, Max é
perseguido, Max é traído por Geni, Max é preso pelo amigo Chaves, etc. Segundo Chico
Buarque, na história que você escreve já se fala tanto de “Max isso, Max aquilo” que parece
normal que ele utilize a premissa de se vangloriar pelo que não faz. É quase como o
sambista que de tanto ser chamado de malandro passa a andar com navalha sem nem saber
usar o instrumento. Faz o tipo malandro, mas só assusta quem não conhece a peça.
Já Fernandes de Duran é ardiloso, machista, explorador, preconceituoso mas, em
raros momentos, finge comoção por algo. Sua filha herdou dele a inteligência e o tino para
os negócios, com a diferença que Duran, talvez por causa da idade, se deixa abater
facilmente, e se irrita por qualquer motivo. Essa pode ser lida como uma fraqueza do
malandro. Mas dizem por aí que ele leva jeito pra presidente, acredita? É falso também, tem
255
Chico Buarque, op. cit., p.169-170.
146
duas caras e é capaz de trair qualquer um para realizar seus interesses. É um malandro
magnata que tem o lucro exorbitante como foco maior de sua trajetória enquanto
personagem da peça. Nem preciso dizer que tem um poder de persuasão que desbanca
muitos políticos.
Sei que há o malandro Chaves, policial corrupto e covarde. Há uma série de
prostitutas: Dóris Pelanca, Fichinha, Dorinha Tubão, Shirley Paquete, Jussara Pé-de-anjo e
Mimi Bibelô. Elas são, em geral apaixonadas por Max e exploradas pelo sistema encarnado
em Fernandes de Duran. Dóris Pelanca é caracterizada como velha, que não escova os
dentes desde o começo da Segunda Guerra, parece revoltada, questiona o que recebe de
Duran, seu nome verdadeiro é Conceição dos Santos Filha. Dóris é demitida por Duran por
discutir com o magnata e perto do final do espetáculo ela retorna afirmando que havia sido
estuprada e espenacada por cinco moços
256
.
Fichinha é a prostituta que é agenciada por Duran no início da peça. Numa cena ela
afirma que se chama Raimunda, noutra diz que é Margareth. É prostituta há mais ou menos
sete anos, deve ter umas 18 ou 19 doenças venéreas, tem 17 anos de idade. É nordestina e
ignorante
257
.
Dorinha Tubão possui uma posição de liderança entre as funcionárias da empresa
“A brasileira”. É ela quem organiza o borderô para levar ao patrão, é apaixonada confessa
pela personagem Max. Ela tem ginásio e trabalha com Duran há doze anos, talvez por isso a
liderança. Ela questiona os acessórios que usam, mas Duran não se importa. Quando é
fundado o sindicato, é eleita presidente. É extremamente conformada
258
.
Shirley Paquete engravida sete vezes de Max, e o defende no episódio em que ele
faz uma despedida de solteiro no prostíbulo onde trabalha. Como as outras, reclama dos
acessórios e permanece muito tempo indignada com a profissão que tem
259
.
Jussara Pé-de-anjo questiona a autoridade de Duran e a personagem aparenta ter
bastante consciência do espetáculo, pois sabe que as personagens principais ganham dez
vezes mais que as figurantes
260
.
256
Chico Buarque, op. cit., p.94-98, 127.
257
Idem, p. 28-39, 119.
258
Idem, p. 89-99.
259
Idem, p. 89-95.
260
Idem, p. 128, 179.
147
Finalmente descrevo Mimi Bibelô, que é estuprada por policiais, possui um
namorado no Itamaraty, chora compulsivamente e questiona se o governo permite uma
embaixadora sem cabaço
261
.
Essas mulheres parecem reproduzir aspectos de sofrimento e violência que não são
facilmente encontrados em muitas personagens, pelo menos à primeira vista. Elas também
seriam, nesse contexto, representantes dos “fodidos”. Além delas, lembro que há um bando
de contrabandistas que fazem pequenas malandragens. Mas é diferente ter a presença, no
último capítulo, de um autor. Realmente é um prazer poder escrever para e poder ler o
que escreve o “verdadeiro malandro da peça”
262
. Podemos bater um papo rápido sobre a
sua personagem?
- Com todo o prazer, doutor.
A sua personagem parece representar exatamente o músico explorado que, para não
fugir à imagem que dele se construíra, era levado a constituir sua auto marginalização. O
tipo que freqüenta as festas chiques, pois com seu trabalho musical é capaz de atrair
políticos, jornalistas e intelectuais e, ao mesmo tempo, ganha mal, come mal e vive
pessimamente. A personagem João Alegre é uma espécie de mediador entre os
marginalizados e os grupos sociais dominantes
263
.
5.3 João Alegre, o malandro autor e a brasilidade recorrente
Quando repito o óbvio destacando a brasilidade da Ópera do malandro, a sua figura
na peça reforça sobremaneira meu argumento. Nem peça de John Gay, Ópera do mendigo,
nem a Ópera dos três vinténs de Brecht possuem uma personagem única que sintetize as
261
Idem, 89, 117.
262
É Solange Ribeiro de Oliveira quem propõe essa alcunha para a personagem João Alegre. Ela diz
que a terminologia “verdadeiro malandro” não se encontra em acepção pejorativa e que a
personagem representa o artista explorado, o criador incansável e, finalmente, um idealista
revolucionário. João Alegre é uma figura metonímica coroada de alegria e de lirismo e acaba por
representar, através de suas contradições, a própria identidade nacional. Os “falsos malandros” da
Ópera são todos os exploradores aliados à corrupção. Aí se encaixam Duran, Max e seus
comandados, que são representantes, respectivamente, da exploração industrial e comercial.
Teresinha se propõe a modernizar e internacionalizar o exercício da corrupção pela modernidade. O
delegado Chaves representa a institucionalização da corrupção policial. Cabe a João Alegre,
sambista/poeta/compositor, encarnar a “verdadeira” malandragem, lembrando a imagem do artista
antenado nas angústias de uma coletividade. A personagem exibe a criatividade, a vocação para a
liberdade e para a sobrevivência. Solange Ribeiro, op. cit., p. 38, 129-130.
263
Solange Ribeiro, op. cit., p. 14.
148
contradições, esperanças e temores de suas nações ao ponto de ser projetado, como o
malandro no Brasil, como símbolo nacional. E, nesse sentido, a peça de Chico é a mais
abrangente e a que mais claramente demarca um espaço cultural
264
. Por sua causa, João,
uma personagem rica em poderosas ressonâncias históricas, uma figura sem
correspondentes no imáginário inglês ou alemão
265
.
E os sambas de sua personagem são memoráveis. É você quem canta o samba
introdutório do primeiro ato, denuncia a cadeia fechada pelos exploradores em torno dos
oprimidos. É uma espécie de redução estrutural do capitalismo que ganha cada vez mais
força no Brasil depois do período ficcional da peça. O samba-prólogo do segundo ato com
certeza não é menos significativo, pois expõe um pedaço da história da Lapa nos anos 30 e
50. A letra celebra uma Lapa longíqua, perdida no tempo, mas evidentemente não
homenageia o malandro mafioso, explorador. A sua personagem canta, João, o
malandro/artista explorado e sua luta para não ser “otário” e um outro homenageado é o
“malandro pra valer” operário carioca que, para trabalhar, enfrenta os riscos do trem da
Central
266
. Sua última música é bastante instigante e antes de falar dela prefiro refletir sobre
como a peça em questão procede com a ambiguidade do conceito de trabalho e com a auto-
imagem do brasileiro.
- Ah, isso não dá.
Claro que dá, João, não me decepcione, sei que todas as personagens, segundo a
teoria brechtiana, possuem seu lado bom e ruim, mas quase te chamo de herói reproduzindo
as palavras de Solange Ribeiro, precisa demonstrar já essa impaciência?
- Mas não tive a intenção de ofender...
Tá, não vou fazer eu também o papel de impaciente. Vou tentar continuar nossa
conversa amigável, afinal não é sempre que me deparo com um malandro-autor com ares
de “verdadeiro”. Conta para a leitora e o leitor, João, como se dá essa parceria com Chico
Buarque. A sua persoangem escreve as músicas e Chico Buarque os diálogos, como vocês
trabalham?
264
Idem, p.39.
265
Idem, p. 59.
266
Idem, p. 130,134
149
- A gente tá na onda do partido alto. Então, o puxador dá o mote e nego vai
tirando o que pintar na mentalidade. É uma jogada que dá um pé na quadra e eu
achei que no teatro ficava original.
E como ficou João! A peça desse “partideiro” Chico Buarque desempenha um papel
muito maior do que simples entretenimento. A Ópera contribui para desenredar a
ambigüidade da noção de malandro, criando diferentes grupos de personagens e cada um
corresponde a um dos sentidos da palavra. Entre as imagens retratadas, a peça focaliza os
grandes exploradores, passando pelos explorados, até atingir o artista revolucionário
267
.
Quanto à figura do artista como malandro, é interessante pensar no quanto o
conceito de trabalho possui também um efeito camaleônico. Alguns sambistas, além de
outras profissões, possuem dedicação, são persistentes e produtivos, mas suas atividades
não são consideradas trabalho. Isso faz lembrar o momento da Abolição, quando ex-
escravos e homens livres pobres, esquivando-se ao trabalho na fábrica, buscam alternativas
mais criativas e menos massacrantes de sobrevivência. E em termos de criatividade, o
malandro-autor João Alegre, que representa na peça todos os oprimidos acrescenta-lhe um
colorido político, ao revelar-se revolucionário utópico. O corpo martirizado que João
Alegre canta em o Malandro n° 2 parece ressucitar de forma misteriosa, o que faz renascer
a esperança, que sobrevive à derrocada das grandes utopias
268
.
O campo de contraditoriedade em que circulam os conceitos de malandragem e de
trabalho é um dos responsáveis pela imagem que os brasileiros fazem de si mesmos.
Aparentemente, tem havido uma mudança no conceito de arte como trabalho, por exemplo.
O brasileiro tem indicado gostar de trabalalhar, mesmo em atividades antes consideradas
“vadiagem”
269
. A personagem João Alegre pode ser considerada um trabalhador nato e
ainda tem muito o que trabalhar, não é João?
- Pessoal, eu volto já.
Faço essa provocação para João porque sei que ainda é difícil para os que vivem a
ditadura getulista relacionar o conceito de trabalho às atividades que desempenham com
tamanho esforço e dedicação. Ainda hoje é possível encontrar pescadores que levantam às
quatro horas da manhã todos os dias para pescar, gostam de pescar, mas conseguem afirmar
267
Idem, p. 191.
268
Idem, p. 190,191.
269
Idem, p. 191-192.
150
que o que fazem não é trabalho. Mas é bom que João tenha se afastado um pouco para que
eu possa falar de um outro mundo, que a personagem não conhece e que pode chocá-lo.
Falo que o conceito de malandragem tem sido lido como correspondente dos
conceitos de marginalidade e de crime organizado. As cidades atualmente têm suas
imagens tomadas pela deterioração da qualidade de vida urbana, em que o temor da
vitimização, tanto quanto sua experiência direta, desmonta os operadores simbólicos com
os quais se praticam os jogos sociais. As constantes ameaças à segurança destroem o
equilíbrio das tensões em que se monta a paz social, o que vem a alimentar os círculos
viciosos da violência cotidiana em que os pobres se tornam os mais acusados e também os
mais temidos. E o pior é que esse fato parece justificar a violenta e injusta repressão sofrida
pelas camadas mais baixas da população
270
.
Mais uma contradição se instaura quando os que mais padecem enquanto vítimas da
violência difusa e privatizada são também os mais apontados como seus agentes. A pobreza
determina, ora a vitimização, ora a ação violenta. A cidade muda no imaginário da mídia e
das pessoas do nosso vasto território. O Brasil não é mais a terra do samba, modernizador,
vitorioso apresentado em muitos discursos, mas se torna a terra da violência e do crime. A
figura do malandro, antes associada à figura do compositor popular, passa a ser no discurso
oficial e midiático extensão e causa do banditismo atual
271
.
Chico Buarque, dizendo escrever sob a pena de João Alegre, traz para sua peça um
momento divisor entre o romantismo de um malandro que começa a dar passos para a
extinção e a formação agora quase incontrolável de quadrilhas e a banalização da violência.
- Foi só um improviso, sem maldade...
Eu sei João, não precisa se preocupar, não estou aqui acusando sua personagem de
nada, muito menos Chico Buarque. Acho que a Ópera do malandro é realmente um marco
na moderna dramaturgia brasileira. Esse pedaço da história é recontado com propriedade e
os finais do texto já apontam para conjunturas das quais Chico Buarque já pode ver o
esboço em 1978. Na canção Ópera, por exemplo, há diversos indicativos da pesudo-
modernização do Brasil, que se dão através da invasão de produtos estrangeiros em nossa
economia. Chico Buarque parodia várias árias européias para indicar em seu “Epílogo
270
Alba Zaluar, op.cit., p.252.
271
Idem, p.290
151
ditoso” que o Brasil pode comemorar o fato de estar saindo da situação de miséria para se
inserir num mercado internacional. E é um samba da personagem João Alegre que
interrompe a execução das árias.
A última cena da peça é certamente influenciada por fatores extratextuais e pelo
momento histórico relativo ao final da década de 70. Solange Ribeiro afirma que a
interrupção das óperas internacionais pelo samba do malandro está associado com a
esperança de uma inserção promissora do Brasil na economia mundial, buscando atenuar as
desarmonias ciclópicas do capitalismo mundial
272
.
Chamo atenção para os últimos versos da última canção cantada pela personagem
João Alegre, O malandro n° 2: “O cadáver/Do indigente/É evidente/Que morreu/E no
entanto/Ele se move/Como prova/O Galileu”. Chico Buarque parece assumir a morte do
malandro enquanto tipo que é cooptado pela arte e pelo senso comum que o mitifica.
Talvez essa permanência do mito do malandro seja a movimentação proposta na letra. Indo
um pouco mais fundo, podemos pensar na figura de Galileu Galilei, um cientista que
descobre que a terra não é o centro do universo e é forçado pela Inquisição a negar suas
descobertas para ficar vivo. É como o sambista que ressalta e valoriza o trabalho formal nas
suas canções para ser aceito pelo discurso oficial. Há de se pensar ainda que Bertolt Brecht
escreve uma peça que se chama Galileu Galilei, discutindo exatamente o que é “se
entregar” ao sistema quando a vida está em jogo. Essa peça de Brecht é montada pelo
Grupo Oficina em 1968, ano de instituição do AI-5. A censura não consegue justificar
porque proibir uma peça que havia sido escrita e representada décadas antes. Chico
Buarque parece novamente comunicar-se com o movimento teatral, executando a mesma
estratégia do Grupo Oficina para reler um enredo escrito meio século antes a fim de driblar
a censura. De que Galileu Chico Buarque fala, se do cientista, da personagem brechtiana,
da montagem do Oficina não é o mais importante. É importante perceber o quanto a análise
de apenas uma frase da Ópera do malandro pode nos remeter a tão distintos referenciais,
dada a quantidade de transcontextualizações que a peça no traz. Acho que esse pedaço bem
digerido da história ainda pode ser recontado muitas e muitas vezes. E realmente acabo
aqui.
- O que tá feito, tá feito.
272
Solange Ribeiro, op.cit., p. 80.
152
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160
7. ANEXOS
161
Anexo I: Letras das canções da peça Ópera do malandro
Pequeno roteito introduzindo as canções
273
: estamos no Rio de Janeiro dos anos
40. O comerciante Fernandes de Duran e sua mulher, Vitória Régia, exploram uma
cadeia de bordéis na Lapa, empregando centenas de mulheres. O casal tem uma filha,
Teresinha de Jesus que é criada e envernizada com todos os requisitos para arranjar
um casamento vantajoso. O chefe de polícia, o inspetor Chaves, controla a moral e os
bons costumes da cidade e, por coincidência, aceita presentes e gratificações de Duran.
E o contrabandista Max Overseas chefia uma quadrilha que age por aí, sem maiores
embaraços, até que essas figuras se cruzam e a historinha dá no que dá.
1) Antes de abrir o pano, o produtor do espetáculo apresenta ao público o
autor dessa ópera, um malandro chamado João Alegre. Vestido a caráter, João canta
um samba que descreve a longa trajetória de uma pequena malandragem.
O malandro
O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé
O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português
O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor
Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
273
O presente roteiro encontra-se reproduzido no LP Ópera do malandro com a maioria das canções
da peça gravado em 1979 e no Cd de mesmo título remasterizado em 1993.
162
Dá um trambique/De cem mil réis
O usineiro/Nessa luta
Grita (ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Banco/Do Brasil
Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador
Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber
A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Banco/Do Brasil
O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador
Este chega/Pro galego
Nega arreglo/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?
O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçon
O garçon vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação
163
2) Fernandes de Duran, cidadão zeloso da lei, todas as manhãs exercita seu
hino, dura advertência aos contraventores do mundo inteiro.
Hino de Duran
Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas, sussurros, ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raio-x
Se vives nas sombras, freqüentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de dobermann
E se definitivamente a sociedade só te tem
Desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo
És um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
Depois chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas, agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar, infrator
Com seus braços de estivador
Se pensas que pensas (etc.)
164
3) A experiente Vitória Régia Fernandes de Duran é responsável pela educação
moral e física das profissionais admitidas pelo marido. Aqui ela fornece algumas
noções básicas a uma recém-contratada.
Viver do amor
Pra se viver do amor
Há que esquecer o amor
Há que se amar
Sem amar
Sem prazer
E com despertador
- como um funcionário
Há que penar no amor
Pra se ganhar no amor
Há que apanhar
E sangrar
E suar
Como um trabalhador
Ai, o amor
Jamais foi um sonho
O amor, eu bem sei
Já provei
E é um veneno medonho
É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não é um vício
O amor é sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar
É iluminar a dor
- como um missionário
165
4) Infelizmente, Duran e Vitória ficam sabendo que Teresinha, a filha única, a
princesinha do lar, fugiu do lar para se casar com o estelionatário, muambeiro e
inimigo público nº 1, Max Overseas. Daí o casal amaldiçoa a filha com uma canção
denaturada.
Uma canção desnaturada
Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquilada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder
Te ver, as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
166
5) O casamento de Teresinha com Max será celebrado no esconderijo do
contrabandista. Enquanto o padrinho não chega, Max apresenta a noiva a seus
subordinados que, nas horas vagas, também são compositores. Chegaram mesmo a
participar do último Festival de Presidiários de Ilha Grande. E agora dedicam uma
canção inédita a Teresinha.
Tango do covil
Ai, quem me dera ser cantor
Quem dera ser tenor
Quem sabe ter a voz
Igual aos rouxinóis
Igual ao trovador
Que canta os arrebóis
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Deixa eu cantar tua beleza
Tu és a mais linda princesa
Aqui deste covil
Ai, quem me dera ser doutor
Formado em Salvador
Ter um diploma, anel
E voz de bacharel
Fazer em teu louvor
Discursos a granel
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Tu és a dama mais formosa
E, ouso dizer a mais gostosa
Aqui deste covil
Ai, quem dera ser garçom
Ter um sapato bom
Quem sabe até talvez
Ser um garçom francês
Falar de champinhom
Falar de molho inglês
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
És tão graciosa e tão miúda
Tu és a dama mais tesuda
Aqui deste covil
Ai, quem me dera ser Gardel
Tenor e bacharel
167
Francês e rouxinol
Doutor em champinhom
Garçom em Salvador
E locutor de futebol
Pra te dizer febril
Bem-vinda
Tua beleza é quase um crime
Tu és a bunda mais sublime
Aqui deste covil
168
6) Quando finalmente aparece o padrinho, os convidados de Max saem
correndo. É que se trata do inspetor Chaves, o famigerado Tigrão, o chefe de polícia
que, pelo que se vê, é amigo de infância de Max.
Doze anos
Ai, que saudades que eu tenho
Dos meus doze anos
Que saudade ingrata
Dar banda por aí
Fazendo grandes planos
E chutando lata
Trocando figurinha
Matando passarinho
Colecionando minhoca
Jogando muito botão
Rodopiando pião
Fazendo troca-troca
Ai, que saudades que eu tenho
Duma travessura
O futebol de rua
Sair pulando muro
Olhando fechadura
E vendo mulher nua
Comendo fruta no pé
Chupando picolé
-de-moleque, paçoca
E, disputando troféu
Guerra de pipa no céu
Concurso de piroca
169
7) Terminada a cerimônia os recémcasados cantam.
O casamento dos pequenos burgueses
Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto
Ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo
Ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto
Ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias
170
Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto
Ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una
171
8) Quando Duran descobre que o inspetor Chaves, seu velho devedor, é o
padrinho de casamento e melhor amigo do inimigo nº 1, ameaça armar um escândalo
fatal para a reputação de um chefe de polícia. Conhecedor do caráter de Chaves, não
tem dúvida de que, a ser demitido do emprego público, ele vai preferir renunciar à
amizade de Max Overseas. E eliminar sumariamente o ex-amigo. É o que Teresinha
escuta, entre outras delicadezas, quando passa na casa dos pais para apanhar uns
trecos. E, interpelada pela mãe sobre os motivos que a levaram a casamento tão
desastroso, sai-se com uma resposta mais desastrosa ainda: casou-se por amor.
Teresinha
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E, assustada, eu disse não
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E, assustada, eu disse não
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
172
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração
173
9) O autor da peça, João Alegre, volta ao palco e pede licença para se auto-
homenagear.
Homenagem ao malandro
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
174
10) Teresinha diz a Max que o Tigrão virá prendê-lo, sob pressão de Duran.
Promete cuidar dos negócios enquanto ele tira umas férias. E é num bordel do próprio
Duran que Max vai procurar refúgio. Max goza de excelente prestígio entre as
raparigas de Duran. Como a Mimi Bibelô, por exemplo, que o recebe cantando com
falso desdém.
Folhetim
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim
175
11) Mas o prestígio de Max não impede que essas mulheres aceitem ordens
superiores. Duran induziu-as a participar de uma passeata estrondosa, e elas estão
preparando cartazes com o seguinte poema: abaixo a corrupção! Max e Chaves na
prisão!” Max tenta comprá-las com promessas mirabolantes. E brinda as meninas
com meias de náilon, última novidade do mundo civilizado. É a festa.
Ai, se eles me pegam agora
Ai, se mamãe me pega agora
De anágua e de combinação
Será que ela me leva embora
Ou não
Será que vai ficar sentida
Será que vai me dar razão
Chorar sua vida vivida
Em vão
Será que faz mil caras feias
Será que vai passar carão
Será que calça as minhas meias
E sai deslizando
Pelo salão
Eu quero que mamãe me veja
Pintando a boca em coração
Será que vai morrer de inveja
Ou não
Ai, se papai me pega agora
Abrindo o último botão
Será que ele me leva embora
Ou não
Será que fica enfurecido
Será que vai me dar razão
Chorar o seu tempo vivido
Em vão
Será que ele me trata a tapa
E me sapeca um pescoção
Ou abre um cabaré na Lapa
E aí me contrata
Como atração
Será que me põe de castigo
176
Será que ele me estende a mão
Será que o pai dança comigo
Ou não
177
12) Talvez alertado por algum alcagüete, o inspetor Chaves, seguido de Dona
Vitória, entra no bordel e prende Max. Dona Vitória faz questão de exibir os cartazes
da passeata, para que o Tigrão fique ciente de que lhe convém executar a tarefa até o
fim. Max está abandonado. Seus próprios comparsas, despedidos pela nova patroa a
executivíssima Teresinha Overseas estão às ordens de Duran para a eventualidade
de se concretizar a passeata. Alguém comenta que aquilo é uma traição a Max. Mas a
opinião geral, entre a arraia-miúda, é a de que patrão é tudo igual. E o patrão agora é
Duran.
Se eu fosse o teu patrão
Eu te adivinhava
E te cobiçava
E te arrematava em leilão
Te ferrava a boca, morena
Se eu fosse o teu patrão
Ai, eu te tratava
Como uma escrava
Ai, eu não te dava perdão
Te rasgava a roupa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encarcerava
Te acorrentava
Te atava ao pé do fogão
Não te dava sopa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encurralava
Te dominava
Te violava no chão
Te deixava rota, morena
Se eu fosse o teu patrão
Quando tu quebrava
E tu desmontava
E tu não prestava mais, não
Eu comprava outra morena
Se eu fosse o teu patrão
Pois eu te pagava direito
Soldo de cidadão
Punha uma medalha em teu peito
Se eu fosse o teu patrão
O tempo passava sereno
178
E sem reclamação
Tu nem reparava, moreno
Na tua maldição
E tu só pegava veneno
Beijando a minha mão
Ódio te brotava, moreno
Ódio do teu irmão
Teu filho pegava gangrena
Raiva, peste e sezão
Cólera na tua morena
E tu não chiava não
Eu te dava café pequeno
E manteiga no pão
Depois te afagava, moreno
Como se afaga um cão
Eu sempre te dava esperança
De um futuro bão
Tu me idolatrava, criança
Se eu fosse o teu patrão
179
13) Com a prisão de Max, o inspetor Chaves vai pedir a Duran que suspenda a
passeata. Mas Duran ainda não está satisfeito. Ele quer ver Teresinha viúva,
urgentemente. Enquanto isso, a filha do Tigrão, Lúcia Chaves, visita Max na cadeia.
Lúcia, para Max, é como se fosse uma sobrinha. Lúcia é um velho xodó de Max que,
aliás, cansou de carregá-la no colo, ou por outra, Lúcia é bastante íntima de Max e
por sinal está esperando um filho dele. Max promete levá-la ao altar e ao cartório,
pretendendo mesmo passar a lua-de-mel em Hollywood, desde que ela o liberte. Lúcia
está quase cedendo quando entra Teresinha. Lúcia e Teresinha não se dão bem.
O meu amor
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
180
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
181
14) Teresinha é enxotada e Lúcia não resiste a Max. Solto, Max dá-lhe um beijo
e some. Tigrão tem uma crise de nervos, manda revirar a cidade, mas não encontra
Max. Vai à casa dos Duran que estão igualmente enfurecidos. Com a fuga de Max, a
passeata sai mesmo e o inspetor estará arruinado. A não ser que por milagre...É
quando surge Genival um funcionário de Max, passador de perfumes, jóias, sedas e
cristais. Genival às vezes também se chama Geni e gosta de trocar confidências com
Dona Vitória. Rápida, Vitória pergunta pelo paradeiro de Max. Geni quer tomar um
conhaque. Duran insiste em saber de Max. O chefe de polícia implora, aos prantos.
Falta uma hora para sair a passeata, mas Geni não tem pressa. Exige recompensa,
com juros, por várias informações anteriores. Pede outro conhaque e vai cobrando o
que quer. É atendido em tudo. Enfim, o clima está maravilhoso para fazer um
swozinho. E, para desespero de seus ouvintes, canta uma história que não acaba mais.
Geni e o Zepelim
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co'os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
182
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
183
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
184
15) Capturado, Max reconhece que está no fim. Nem se comove com a visita de
Teresinha que veio lhe participar da criação de uma promissora firma de
importações, a Maxtertex S.A.. O casal se despede para sempre.
Pedaço de mim
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
185
16) Tigrão só espera a dissolução da passeata para liquidar Max. Vitória e
Duran vão dispersar a multidão. Só que a multidão, a essa altura, ninguém mais
dispersa. Aos assalariados de Duran, juntaram-se todos os marginais e descontentes
do Rio de Janeiro, ou seja, por baixo, 90% da população. Incapaz de conter a massa,
Vitória suspende o espetáculo. Mandar descer o pano, acender as luzes, cortar o som e
multar os atores. Duran vai catar o autor da peça e passa-lhe uma descompostura.
João Alegre é aconselhado a refazer o final do espetáculo, criar um happy end, um
gran finale de acordo com o que se espera de uma ÓPERA.
Ópera
João Alegre: Telegrama
Do Alabama
Pro senhor
Max Overseas
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
Terezinha: Chegou a confirmação
Da United coisa e tal
Que nos passa a concessão
Para o náilon tropical
Max: Então nós vamos montar
Em São Paulo um fabricão
Teresinha: Depois vamos exportar
Fio de náilon pro Japão
Max: Sei que o náilon tem valor
Mas começa a me enjoar
Tive idéia bem melhor
Nós vamos ramificar
Teresinha: Já ramifiquei, ha ha
Fiz acordo com a Shell
Coca-Cola, RCA
E vai ser sopa no mel
Coro: Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
Max: Que tal juntarmos
186
Esses capitais
Pra abrir um banco
Em Minas Gerais
Teresinha: Que brilhante idéia, meu amor
Que plano original
Com fundos do exterior
Você fundar
Um banco nacional
Capangas de Max: E eu que já fui
Um pobre marginal
Sem documento
E sem moral
Hei de ser um bom profissional
Vou ser quase um doutor
Contínuo da senhora
E do senhor
Bancário ou contador
Coro: Que sucesso
O progresso
Corta o mal
Pela raiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
Chaves: Irmão
Nem começar eu sei
Receio te inibir
Max: Tua vontade é lei
É falar
É mandar
É exigir
Chaves: É que
Num mundo tão cruel
Cheio de inveja e fel
Não lhe fará mal
Ter à mão
Proteção
Policial
Quer os meus préstimos?
Max: Eu acho ótimo
187
Barrabás:
(auxiliar de Chaves)
Serve um acólito?
Max: Também vou te empregar
Lúcia: Eu não
Tenho com quem deixar
Meu filho que já vem
Max: Barrabás é um par
Exemplar
Quer casar
E adora neném
Coro: Maravilha
Que família
Dois pombinhos
E um petiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
Vitória: Só tenho um único
Breve reparo
A tão preclaro
Genro viril
É o esquecimento
Do sacramento
Afinal
Se casou
Só no civil
Oh oh oh
Oh oh oh
Só no civil
Oh oh oh
Oh oh oh
Só no civil
Max: Mas nesse ínterim
Mudei de crença
Já peço a bênção
188
No santo altar
Vitória: Que maravilha
Não perco a filha
E um varão
Bonitão
Eu vou ganhar
Ah ah ah
Ah ah ah
Eu vou ganhar
Ah ah ah
Ah ah ah
Eu vou ganhar
Duran: Duran
Minha filha eu desejo pedir teu perdão
Teresinha: Oh, meu pai, isso é bom demais!Finalmente! Até que enfim!
Duran: Duran
Não sei como fui pra você tão durão
Tão mandão, tão sem coração
Tão malvado assim
Max: Meu sogro, o senhor não sabe
Quanta alegria
Me dá, ao dizer que já se juntou
Aos nossos
Duran: Só Deus sabe há quanto tempo
Eu tanto queria
Poder apertar
esses ossos
Coro: Que alegria
Quem diria
Como os grandes
São gentis
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
189
Duran: Não quero ser
Nas suas costas um fardo
Porém, talvez
Eu necessite um resguardo
Max: Tua instituição
Tão tradicional
Vai ter um padrão
Moderno
Cristão e ocidental
Funcionárias de Duran: Vamos participar
Dessa evolução
Vamos todas entrar
Na linha de produção
Vamos abandonar
O sexo artesanal
Vamos todas amar
Em escala industrial
Todos: O sol nasceu
No mar de Copacabana
Pra quem viveu
Só de café e banana
Tem gilete, Kibon
Lanchonete, Neon
Petróleo
Cinemascope, sapólio
Ban-lon
Shampoo, tevê
Cigarros longos e finos
Blindex fumê
Já tem Napalm e Kolinos
Tem cassete e rai-ban
Camionete e sedan
Que sonho
Corcel, Brasília, plutônio
Shazam
Que orgia
Que energia
Reina a paz
No meu país
190
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
191
17) João Alegre dá seu último recado.
O malandro nº 2
O malandro/Tá na greta
Na sarjeta/Do país
E quem passa/Acha graça
Na desgraça/Do infeliz
O malandro/Tá de coma
Hematoma/No nariz
E rasgando/Sua bunda(banda)
Uma funda/Cicatriz
O seu rosto/Tem mais mosca
Que a birosca/Do Mané
O malandro/É um presunto
De pé junto/E com chulé
O coitado/Foi encontrado
Mais furado/Que Jesus
E do estranho/Abdômen
Desse homem/Jorra pus
O seu peito/Putrefeito
Tá com jeito/De pirão
O seu sangue/Forma lagos
E os seus bagos(cacos)/Estão no chão
O cadáver/Do indigente
É evidente/Que morreu
E no entanto/Ele se move
Como prova/O Galileu
192
Anexo II: Cd com as canções do disco gravado em 1979
1. O malandro
2. Hino de Duran
3. Viver do amor
4. Uma canção desnaturada (cuja letra dá origem à paródia Uma revista desnaturada
Capítulo IV)
5. Tango do covil
6. Doze anos (cuja letra dá origem à paródia Trocentos anos Capítulo III )
7. O casamento dos pequenos burgueses
8. Teresinha (cuja letra dá origem à paródia Transcontextuazinha Capítulo II )
9. Homenagem ao malandro (cuja letra dá origem à paródia Homenagem ao epílogo
Capítulo V )
10. Folhetim
11. Ai, se eles me pegam agora
12. Se eu fosse o teu patrão
13. O meu amor
14. Geni e o Zepelim (cuja letra dá origem à paródia Gênese e o fim Capítulo I )
15. Pedaço de mim
16. Ópera
17. O malandro nº 2
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